Você está na página 1de 181

ENTRE O SENSÍVEL E O CONCRETO

D I R E TO R E S D A S É R I E CO M I T Ê E D I TO R I A L C I E N T Í F I CO

Prof. Dr. Niltonci Batista Chaves Prof. Dr. Cezar Karpinski


Departamento de História, UEPG Departamento de Ciência da Informação/UFSC

Profa Dra. Valeria Floriano Machado Prof. Dr. Charles Monteiro


Departamento de Teoria e Fundamentos da Departamento de História, PUC-RS
Educação-UFPR
Prof. Dr. Cláudio DeNipoti
Departamento de História, UEL

Prof. Dr. Cláudio de Sá Machado Júnior


Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação, UFPR

Profa. Dra. Daniela Casoni Moscato


SEED PR

Prof. Dr. Erivan Cassiano Karvat


Departamento de História, UEPG

Prof. Dr. Fabio Nigra


Departamento de História, Universidad de Buenos Aires

Profa. Dra. Georgiane Garabely Heil Vázquez


Departamento de História, UEPG

Prof. Dr. José Damião Rodrigues


Centro de História, Universidade de Lisboa

Profa. Dra. Méri Frotscher Kramer


Departamento de História, UNIOESTE

Profa. Dra. Patrícia Camera Varella


Departamentos de Artes, UEPG.

Prof. Dr. Robson Laverdi


Departamento de História, UEPG

Profa. Dra. Rosângela Wosiack Zulian


Departamento de História, UEPG
ENTRE O SENSÍVEL E O CONCRETO

REFLEXÕES ENTRE MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E ARQUIVOS

Organizadoras
Nádia Maria Weber Santos
Hilda Jaqueline de Fraga
Vânia de Oliveira
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Fotografia / Imagem de Capa: Acervo Sandra Jatahy Pesavento

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências


bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Este e-book foi realizado com verba do CNPq.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


SANTOS, Nádia Maria Weber; FRAGA, Hilda Jaqueline de; OLIVEIRA, Vânia de (Orgs.)

Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos [recurso eletrônico] /
Nádia Maria Weber Santos; Hilda Jaqueline de Fraga; Vânia de Oliveira (Orgs.) -- Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2022.

180 p.

ISBN: 978-65-5917-437-9
DOI: 10.22350/9786559174379

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Patrimônio; 2. Arquivos; 3. Memória; 4. Sandra Jatahy Pesavento; 5. Contemporaneidade; I. Título.

CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 9
Nádia Maria Weber Santos
Hilda Jaqueline de Fraga
Vânia de Oliveira

PARTE I
O ACERVO SANDRA JATAHY PESAVENTO E SUAS FONTES:
OLHARES INTERDISCIPLINARES

1 17
O “OURO PURO” E A CAIXA 48 – COMO FAZER ESCOLHAS NA ORGANIZAÇÃO DE UM
ARQUIVO PESSOAL?
Nádia Maria Weber Santos

2 47
CIDADE, SOCIABILIDADES E GÊNERO NO ACERVO SANDRA JATAHY PESAVENTO
Hilda Jaqueline de Fraga

3 75
A PARIS DE SANDRA: ENTRE REFLEXÕES INTELECTUAIS E CARNETS DE VOYAGE
Luciana Rodrigues Gransotto
PARTE II
ARQUIVOS, DIÁLOGOS E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

4 103
UM PALÁCIO, UM ARQUIVO E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO PATRIMÔNIO
Ana Lúcia Goelzer Meira

5 121
OS ACERVOS PRODUZIDOS NO MUNDO PÓS-PANDEMIA: UMA ANÁLISE DOS
RELATOS NO “OLHO DO FURACÃO”
Beatriz Kushnir

6 140
AS ARQUEOLOGIAS DO SABER DE SANDRA JATAHY PESAVENTO (1946-2009). AS
SENSIBILIDADES NOS PRIMEIROS TRAÇOS DO ESQUECIDO MARXISMO E SUA
ATUALIDADE
Robson Corrêa de Camargo

7 157
A MEMÓRIA E O SENSÍVEL NA CONCRETUDE DO ACERVO SANDRA JATAHY
PESAVENTO
Vânia de Oliveira

SOBRE OS AUTORES 177


APRESENTAÇÃO
Nádia Maria Weber Santos
Hilda Jaqueline de Fraga
Vânia de Oliveira

A presente obra, intitulada Entre o sensível e o concreto: reflexões entre


memória, patrimônio e arquivos, é realizada como um dos produtos do Pro-
jeto “O Pensamento de Sandra Jatahy Pesavento e sua Importância na
Historiografia Brasileira: da História Econômica à História Cultural – um
Estudo a partir do Arquivo Pessoal da Historiadora”, contemplado no
Chamada Universal MCTIC/CNPq n.º 28/2018, Processo 420642/2018-8. 1
O e-book é fruto de um esforço coletivo em plena pandemia do co-
ronavírus. Ele foi realizado para publicar uma obra reunindo alguns
pesquisadores que discutem memória, patrimônio e arquivos, dando
ênfase aos estudos sobre a diversidade da documentação, a pluralidade
de profissionais, que compõem a equipe, e os diferentes usos dos mate-
riais arquivados.
As discussões priorizam enfoques tomando como referência tanto
a obra da historiadora Pesavento como o material do Acervo Sandra Ja-
tahy Pesavento (Acervo S. J. P.), a fim de gerar aportes sobre a memória,
o patrimônio e a gestão e a conservação dos Arquivos Pessoais e Insti-
tucionais, estes últimos enquanto lugares de memória, de salvaguarda

1
Os demais produtos deste projeto foram: catalogação da biblioteca do Acervo S. J. P., organização
arquivística e digitalização de documentos, conservação dos objetos por especialista, realização de
eventos acadêmicos, confecção do Guia Comentado do Acervo S. J. P. (digital), produção de artigos e
livros (publicados em revistas acadêmicas e no site do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Sul – IHGRGS, que abriga o Acervo da historiadora). Oportunamente, todo esse material estará
disponível no site do IHGRGS: http://www.ihgrgs.org.br/
10 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

e de construção do conhecimento. No campo dos Arquivos Pessoais, que


é o caso do Acervo S. J. P., são muitas as reflexões acerca do papel rele-
vante que desempenham, não só para análises em torno de uma
biografia em particular, mas também para o entendimento da sociedade
na qual ela se desenvolve e as políticas adotadas no âmbito da memória
e do patrimônio cultural.
No caso dos registros deixados pela historiadora Sandra Jatahy Pe-
savento, as dimensões do sensível e do concreto do seu acervo apontam
para um aspecto fundamental no tempo presente relativo à preservação
desses arquivos, qual seja, a necessidade de políticas públicas de gestão,
conservação e fruição cultural dos suportes neles salvaguardados, se-
guido da sua ampla divulgação, como bens culturais de uma coletividade
e da retomada da função social e da pesquisa em instituições de memó-
ria. Considere-se também que a preservação dos suportes contribuirá
para a preservação das informações e das memórias neles contidas.
A intenção foi, portanto, gerar uma obra contemplando artigos de-
correntes de conceitos transdisciplinares, buscando estabelecer inter-
relações teóricas e práticas sobre o tema, além de abranger a cataloga-
ção de alguns materiais que compõem o conjunto do acervo da
historiadora gaúcha.
Em agosto de 2021, a equipe de curadoria do Acervo S. J. P., dando
seguimento a uma das atividades representativas das suas ações, esteve
à frente da V Jornada Sandra Jatahy Pesavento – Entre o Sensível e o
Concreto: Reflexões acerca de Memória, Patrimônio e Arquivos. Essas
jornadas, tradicionalmente realizadas desde 2011, ocorrem com certa
periodicidade e sob enfoques temáticos diversos que versam sobre a
vida e a obra desta grande historiadora e, do mesmo modo,
Nádia Maria Weber Santos; Hilda Jaqueline de Fraga; Vânia de Oliveira • 11

entrecruzam-se com debates atuais no tocante às questões concretas e


sensíveis envolvendo a gestão dos arquivos pessoais. Como resultados,
o evento tem gerado publicações fecundas para o campo da historiogra-
fia e dos arquivos ao reunir aportes de pesquisadores/pesquisadoras
participantes ao longo de sua existência.
A obra que ora apresentamos tem o mesmo título desta jornada e
integra tanto alguns textos oriundos de nossa pesquisa no acervo (pri-
meira parte), a partir do edital Universal, como textos oriundos do
evento (segunda parte), escritos pelos pesquisadores convidados.
A intenção em organizá-la foi somar esforços a fim de promover um
diálogo entre as experiências do arquivo pessoal da historiadora e as dis-
cussões sobre a memória e o patrimônio, seja no âmbito da pesquisa, seja
no tocante às políticas de preservação tendo como mote este acervo.
Nesse sentido, os percursos esboçados no livro trazem à tona a po-
tencialidade dos acervos através dos muitos objetos reflexivos que
dispõem os arquivos, em que se destaca a experiência do Acervo S. J. P.
Como não se poderia deixar de lado, eles contemplam, também, os de-
safios provocados no campo do patrimônio cultural pela pandemia da
Covid-19, fornecendo múltiplas leituras sobre antigos e novos temas, as
quais as políticas públicas necessitam considerar para a sua continui-
dade e fruição cultural.
Ao concentrar trabalhos de diferentes estudiosos e profissionais
com e nesses acervos, os capítulos e suas abordagens ensejam a garantia
de sua ampla divulgação e acessibilidade e o fortalecimento das suas
funções sociais e de pesquisa.
Com base em interfaces e conceitos transdisciplinares, as interpe-
lações dos/as autores/as convidados/as convergem para a reflexividade
12 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

em torno do tema, além de contemplarem a catalogação de alguns ma-


teriais que compõem o conjunto do acervo da historiadora gaúcha e que
constituem horizontes investigativos abertos aos interessados em co-
nhecê-lo de maneira mais aprofundada.
Sendo assim, o livro está organizado em duas partes.
Na Parte I – “O Acervo Sandra Jatahy Pesavento e suas fontes: olha-
res interdisciplinares”, os capítulos abrangem textos de
pesquisadores/membros da equipe curatorial do Acervo S. J. P., tratando
de levantamentos e análises por meio de uma pequena amostragem de
fontes digitalizadas, originadas de estudos levados a cabo acerca da obra
e da trajetória de pesquisa da historiadora, acompanhadas de sínteses
cujo objetivo é divulgar e permitir o acesso do público em geral. No ca-
pítulo 1, “O ‘Ouro puro’ e a caixa 48 – como fazer escolhas na
organização de um arquivo pessoal?”, a historiadora e curadora do
Acervo S. J. P., Nádia Maria Weber Santos, apresenta uma incursão, a
partir de imagens e de uma narrativa repleta de subjetividades, a uma
das facetas da História das Sensibilidades, mostrando documentos do
Acervo S. J. P. que foram recolhidos tardiamente da escrivaninha de Pe-
savento, caracterizando suas últimas reflexões intelectuais. Ela também
apresenta um resumo dos conteúdos do Acervo S. J. P. e remete o leitor
à trajetória de sua constituição. Já o capítulo 2, “Cidade, sociabilidades e
gênero no Acervo Sandra Jatahy Pesavento”, de autoria da também his-
toriadora Hilda Jaqueline de Fraga, compõe cartografias da cidade de
Porto Alegre, cruzando sociabilidades e gêneros a partir de indícios e
fontes arquivados por S. J. P.: “focadas nos fluxos do progresso e das
incidências nas práticas de sociabilidade e nas representações sociais de
uma cidade, utilizando uma pequena amostragem do material disposto
Nádia Maria Weber Santos; Hilda Jaqueline de Fraga; Vânia de Oliveira • 13

no acervo”. No capítulo 3, de Luciana Rodrigues Gransotto, intitulado “A


Paris de Sandra: entre reflexões intelectuais e Carnets de Voyage”, a dou-
tora em Ciências Humanas, que recentemente defendeu uma tese sobre
Sandra Pesavento, transita entre imagens, narrativas de viagem e espa-
ços, tão caros à historiadora na cidade luz, mas também apresenta
reflexões teóricas de Sandra sobre viagens.
Na Parte II – “Arquivos, diálogos e desafios contemporâneos”, os
capítulos apresentados por pesquisadores/as de diferentes IES que par-
ticiparam da jornada trazem uma série de experiências, apropriações do
legado deixado por Sandra Pesavento, bem como outros redesenhos,
impressos pelo contexto pandêmico e as vivências delas decorrentes,
tratadas como fontes históricas relevantes. No capítulo 4, “Um palácio,
um arquivo e a construção social do patrimônio”, da arquiteta e urba-
nista Ana Lúcia Goelzer Meira, somos brindados com uma discussão
sobre a construção social do patrimônio, exemplificada com a trajetória
do Palácio Capanema/Rio de Janeiro e as questões contemporâneas que
o envolvem. No capítulo 5, de autoria de Beatriz Kushnir, intitulado “Os
acervos produzidos no mundo pós-pandemia: uma análise dos relatos
no ‘olho do furacão’”, a historiadora apresenta análises do projeto “Tes-
temunhos do Isolamento”, instituído pelo Arquivo Geral da Cidade do
Rio de Janeiro (AGCRJ) na pós-decretação do estado pandêmico e no es-
tabelecimento do home office pela Prefeitura do Rio, em 16 de março de
2020, com o intuito de compreender as possibilidades de elaborar depo-
imentos escritos e, assim, propor uma elaboração em tempo real dos
vários momentos vividos, em suas subjetividades e sensibilidades, e,
também, pensar este material como uma possível coleção. O capítulo 6,
escrito pelo diretor de teatro e professor de Performances Culturais,
14 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Robson Corrêa de Camargo, tem o título de “As arqueologias do saber de


Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009). As sensibilidades nos primeiros
traços do esquecido marxismo e sua atualidade”, em que o autor apro-
xima os pensamentos de Marx e Pesavento a partir das noções de
sensibilidades, mas também se utiliza de sua experiência no teatro para
discutir estes dois pensadores. Por fim, o sétimo capítulo do e-book, es-
crito pela museóloga Vânia de Oliveira, intitulado “A memória e o
sensível na concretude do Acervo Sandra Jatahy Pesavento”, apresenta-
nos “aspectos sensíveis relativos à documentação e ao resgate da me-
mória, perceptíveis e/ou presumíveis na concretude dos objetos
reunidos e tão bem preservados pelo Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Sul (IHGRGS)”.
Assim, temos nos textos elencados uma diversidade de olhares e de
análises sobre acervos e patrimônios em geral e sobre o Acervo S. J. P.
em particular, proporcionando ao leitor aproximar-se de pensamentos
contemporâneos que permeiam nossas discussões acadêmicas, mas
também da sociedade como um todo. Em cada um dos trabalhos e refle-
xões formuladas durante o evento da V Jornada, é possível visibilizar
importantes contribuições para se pensar os arquivos e os rumos de sua
gestão e conservação em tempos tão difíceis e que, por isso, requerem o
engajamento da sociedade em prol da sua defesa. Esperamos que os fru-
tos lançados pela jornada, bem como pelo projeto financiado pelo CNPq,
possam reverberar junto aos mais diversos agentes e áreas de conheci-
mento, configurando horizontes de superação e avanços ao campo.

Boa leitura!
PARTE I

O ACERVO SANDRA JATAHY PESAVENTO E


SUAS FONTES: OLHARES INTERDISCIPLINARES
1
O “OURO PURO” E A CAIXA 48 – COMO FAZER
ESCOLHAS NA ORGANIZAÇÃO DE UM ARQUIVO
PESSOAL?
Nádia Maria Weber Santos 1

A minha intenção neste texto não é discutir exaustivamente o


acervo Sandra Jatahy Pesavento (Acervo S. J. P.) – depositado no Insti-
tuto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), em Porto
Alegre –, em seus conteúdos ou mesmo na sua condição de arquivo pes-
soal, organizado a partir da entrega desse material pela família da
historiadora, em final de 2014. Muito já escrevemos sobre a constituição
deste riquíssimo acervo, sob variados pontos de vista, e, também, já
apresentamos seus conteúdos e a forma como realizamos o trabalho de
organização e de curadoria em alguns eventos acadêmicos e não acadê-
micos. 2 Interessa-me, sim, mostrar algumas imagens e discutir, em
especial, a caixa número 48, a qual eu denominei “Ouro Puro”. Mas antes
são necessários alguns breves esclarecimentos sobre este acervo e mi-
nha relação com ele.

1
Este texto é uma contribuição reflexiva para o projeto de pesquisa “O pensamento de Sandra Jatahy
Pesavento e sua importância na historiografia brasileira: da história econômica à História Cultural – um
estudo a partir do arquivo pessoal da historiadora”, findado em 28 de fevereiro de 2022, relativo ao edital
Universal do CNPq (processo 420642/2018-8) que financia o projeto e seus produtos, do qual fui
proponente e coordenadora.
2
Remeto o leitor aos artigos elencados ao final deste texto, meus e de vários outros autores, que têm
como mote, tema ou contexto a vida e obra da historiadora ou o Acervo Sandra Jatahy Pesavento; e,
também, ao meu CV Lattes, onde constam todas as produções até então (março de 2022). Disponível
em: http://lattes.cnpq.br/3929583037339642. Acessado em 6/3/2022. Alguns destes textos já são,
também, produtos do edital citado na nota anterior.
18 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Como curadora do acervo, nomeada pelo IHGRGS, e historiadora


das sensibilidades, em que a subjetividade é um de nossos parâmetros
interpretativos, interessa-me profundamente pensar os conteúdos e a
organização do acervo em relação à vida e à obra da sua produtora, a
historiadora, pesquisadora e professora da UFRGS, Sandra Jatahy Pesa-
vento (1946-2009).
Estive à frente de sua organização desde o princípio, a partir de
abril de 2015, juntamente com outras colegas e alguns bolsistas IC, tendo
realizado uma primeira triagem e organização do material, dispondo os
documentos (papel) em caixas de papelão, totalizando 56 caixas (Figura
1), e em pastas suspensas, totalizando 29 pastas (Figura 2). O trabalho
inicial terminou em 2017, tendo durado em torno de 2 anos para termos
uma noção mais exata possível das preciosidades que tínhamos guarda-
das ali e podendo, assim, abrir ao público pesquisador e a estagiários. É
importante salientar que até este momento não tínhamos arquivista no
quadro de nossa equipe curatorial, portanto, não havia classificação de
documentos e, sim, simplesmente uma organização por temas que en-
contrávamos muitas vezes separados pela própria Sandra Pesavento,
em pastas, envelopes plásticos, cadernos e folhas impressas ou manus-
critas, entre outros acondicionamentos. Como fui sua orientanda de
mestrado e doutorado, colega de GT de História Cultural e parceira de
projetos de pesquisa, tendo sempre trabalhado muito próximo à profes-
sora, eu conhecia bastante suas pesquisas e sua produção, pois estudava
seus livros e, também, partilhava com ela inúmeras organizações de
eventos, entre outros compromissos acadêmicos. Não foi, portanto,
uma organização aleatória, pois tentamos respeitar o máximo possível
Nádia Maria Weber Santos • 19

a ordem que ela mesma dava em sua biblioteca particular, onde guar-
dava todos os seus materiais de pesquisa, aulas e escritos. 3

3
Para exemplificar o material do Acervo S. J. P. do IHGRGS, resumimos, aqui, brevemente os tópicos
temáticos/títulos que se encontram nas 56 caixas: Relatório de Pós DOC; Cidades – Becos; Trabalhos
Alunos; Texto de Estudo em História Cultural; Material pesquisa Indústria Gaúcha + História Econômica;
Textos internacionais de estudo; Exposições Universais A e B e mais gavetas (muitas); Revistas e
Periódicos (mais recortes de jornais); Textos digitados de autoria SJP; Projeto pesquisa vários; Grupos
pesquisa Brasil; Manuscritos sobre POA; Projeto cidadania e exclusão (4 caixas); Grupo Clíope – Varsóvia,
Gilberto Freire, Erico Veríssimo, Unicamp; Textos de estudo SJP; Acordos internacionais; Textos aula SJP
(Ela professora); Textos digitados autoria SJP; Material/Aula Graduação/História do Brasil I – II – III;
Crônicas da cidade de POA (século XIX e XX); Material aula ensino médio/ Colégio Rui Barbosa; Material
pesquisa ano 2000 – CNPQ Polícia civil HPSP (material que originou o livro visões do cárcere – ver
também caixa 29 mesmo assunto); Texto estudo história econômica A-B; Texto de estudos miscelânea;
Planos de aula texto História RG - Sandra prof. (semelhante caixa 31); Caricaturas e imagens; Fontes de
pesquisa 7 pecados da capital + projeto [tem caixa específica sobre Crioula Fausta e pasta suspensa
sobre Joana Eiras); Seminário imaginário urbano; Transcrição pesquisa Santa Casa/HPSP/Processos
crime; Assuntos jurídicos; Textos estudos para aula (Sandra prof) semelhante 25; Trabalhos SJP como
aluna; Estudos de SJP (Manuscritos) por temas e autores A – B (Envelopes/pastas de plástico organizadas
por ela); Nova História Cultural, Nova História Cultural (origens), Micro história, Imaginário,
Representação, Narrativa, Sensibilidades, História e Literatura, Ítalo Calvino, Paul Ricoeur, Carlo Ginzburg,
Robert Darnton, Pierre Bourdieu, Antropologia, Grupo Sensibilidades, Walter Benjamin, Michel Foucault,
Mulheres (Sinara), Estudos autores e obras; Estado da arte sobre História Cultural no Brasil, Cidade e
literatura, Memória, Identidade, Literatura e História, Edward Thompson, The Lady of Shalott, Eduardo
Colombo, Banca tese Nádia, Material variado, Pasta Fronteiras Culturais Cone Sul (miscelânea); Filmes e
disquetes antigos de conteúdos diversos; Prestação de contas (eventos CNPQ – CAPES) A-B; Certificados;
Cursos no Propur (FAC. Arquitetura); Manuscritos variados (textos autorais) de SJP; Textos (matrizes) para
aulas PG (História capitalismo América Latina); Manuscritos SJP – Arguições Bancas, Apresentações em
eventos, Palestras; Material de pesquisa trabalhadores (com fotos antigas mais história oral) greves/força
e luz/operários/viação férrea (Pasta relíquia); Caderno de História do colégio de SJP (Sandra aluna);
Eventos participados; Textos de professores e pesquisadores UNICAMP; Relatórios técnicos de pesquisa
(CNPQ – FAPERGS – CAPES); Fichamento de artigos Felicíssimo de Azevedo (cousas municipais); Projeto
“PAMPA E cultura” / Martim Fierro ilustrações; “Ouro Puro A” (denominação dada pela curadora) =
Material de Gaveta escrivaninha SJP (ABERTA EM 27.04.17 NOVA DOAÇÃO). Seus últimos estudos –
História urbana, paisagens, imagens, mais cartões de restabelecimento para amigos na época de
hospital; “Ouro Puro B” = Idem - Textos a escrever, Evento Puebla, Programas Goiânia,
Sensibilidades/Imagens – Viajantes, Ruínas, Memória e Patrimônio, Cidade e Ruínas; Gilberto Freire e
paisagens – material organizado por Sandra. Pasta lilás, últimos estudos; Imagens – pasta organizada
por Sandra. Mapas de Porto Alegre, lugares onde passaram os 7 pecados, lâminas de lugares na cidade
(Paris, Rio), pinturas – descrição dela; Crioula Fausta – pasta organizada por Sandra. (Jornais, textos);
Trabalhos apresentados 1998-9. GT de História Cultural. Anpuh. Turma de colegas Nádia/Anelda + GT
gênero, com disquetes dos trabalhos enviados a ela. Material organizado por Sandra; Iconografia/Brésil
Taunay e Denis. Pesquisa Museu Castro maia. Projeto HAARP; História do RGS – Porto Alegre (Carris,
vários documentos); Projeto Mestiçagem – do Rio da Prata à Amazônia (séc. XVI – XX) – UFRGS, EHESS e
processo e negativa do CNPq; Material Pós-doc Paris 1995/1996/1997 – Textos de Chartier (com
dedicatória) e Textos Jacques Leenhardt.
Já as 25 pastas suspensas contêm documentos que a equipe de curadoria considerou especiais na
trajetória da historiadora. São elas: Material de pesquisa com alunos graduação APRS; Paisagens; Origens
históricas de POA (Texto SJP) + Mapas sesmarias; Correspondências e e-mails A-B; Família; Material de
aula Pós-graduação; Assuntos Adm. UFRGS; Textos SJP (Abusos e crianças); Desenhos de SJP;
20 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 1 – Caixas iniciais de armazenamento

Fonte: imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Documentos diversos – originais História RS; Textos Jacques Leenhardt; Pasta org. por Sandra XXIV –
ANPU Unisinos - manuscritos Sandra 2007; Crônicas POA – Textos Lit. Cidade – org. de Sandra; Cartazes
de cinemas – Memória Vera Cruz; Imagens de POA – Personagens 7 pecados; Material mestrado PUC –
doutorado USP; Exposição Paris Galerie de l´Arsenal – La ville et ses monuments; Memória, manuscritos
variados, ‘textos esperando publicação – listagem feita por ela. Pasta feita por Sandra (mantida no
original); Manuscritos SJP – Resultado da Pesquisa “A industrialização no Sul do Brasil”. Texto em francês
apresentado em Grenoble – França; Linha do Tempo Intelectual de Sandra Jatahy Pesavento, feita por
ela mesma. 1973-1991; Material Joana Eiras; Manuscritos Palestra no Museu Quai Branli; Manuscritos
Palestra EHESS, Sorbonne – Maison Amérique Latine; Questões administrativas – Pedidos de
afastamento; Dados brutos e imagens (Lâminas) da obra “Visões do Cárcere” + ZH do lançamento do
livro em 2009. Esta listagem, como aparece aqui, foi publicada pela primeira vez no artigo de 2020
(SANTOS; FRAGA, 2020a) na Revista do IHGRGS.
Nádia Maria Weber Santos • 21

Figura 2 – Pastas suspensas

Fonte: imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Também não tínhamos, como constituintes do acervo, até meados


de 2019, os objetos de viagens, os álbuns de fotografias e os diários de
viagem de Pesavento, que foram doados pela família naquele ano. Em
função da pandemia do coronavírus que acometeu a humanidade no ano
de 2020, eles foram para o acervo físico do IHGRGS em meados de 2021.
O conjunto documental, dinâmico como em geral são os arquivos pes-
soais, foi tomando forma aos poucos; e considero que, neste momento,
estamos numa situação privilegiada em relação à toda documentação, já
com a biblioteca catalogada e o conjunto documental em vias de classi-
ficação e acondicionamento correto (Figuras 3, 4 e 5). 4

4
De forma sucinta, o ASJP é composto, após as doações da família durante estes anos (2014 a 2020) de:
I – Coleção Bibliográfica: a biblioteca da historiadora, estimada em 4 mil obras, que está catalogada
graças ao financiamento do CNPq, pelo edital mencionado na nota 1 deste texto; II – Fundo Documental
(estimado em 60 mil itens): o material de estudo e de pesquisa dos 40 anos de trabalho da professora
da UFRGS e pesquisadora, compreendendo: II/1 – Caixas com material de estudo, pesquisa e sala de
aula de 40 anos; II/2 – Arquivo digital: obras completas de SJP digitalizadas e II/3 – Arquivo especial de
fichas manuscritas: fichário completo, com móvel, pertencente à historiadora, incluindo fichamento de
jornais do século XIX e início do século XX do Rio Grande do Sul; II/4 – Documentos de viagens (Álbuns
com fotografias de viagens; Diários de viagens [cadernetas e pequenos cadernos, desde 1975]); III –
22 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 3 – Amostra da biblioteca catalogada

Fonte: imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Documentos tridimensionais/acervo museológico: III/1 – Objetos de viagens (Caixas, pedras, vasos,


imagens, etc.); III/2 – Colares de Sandra Pesavento. Atualmente passa pela fase de organização
arquivística, com nova configuração física (caixas adequadas e acondicionamento de objetos) e
classificação – que não será usada neste texto, pois ainda estamos em momento de decisão sobre os
conjuntos documentais e suas tipologias. Essa classificação está sendo realizada pelo arquivista e
historiador Dr. Alexandre Veiga e a parte dos objetos está sendo conservada, restaurada e acondicionada
pela restauradora e conservadora de bens culturais Simone Steigleder.
Nádia Maria Weber Santos • 23

Figura 4 – Caixas de documentos no arquivo deslizante

Fonte: imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).


24 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 5 – Amostra dos Objetos (documentos tridimensionais)


em seus nichos de acondicionamento e conservação

Fonte: imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Não foi difícil reconhecer, no vasto material consignado pela famí-


lia ao IHGRGS, os traços da pesquisadora, da professora, da historiadora
e, por que não, da cidadã Sandra Pesavento. 5
Assim, conhecedora dos conteúdos deste arquivo, percebi que a sua
produtora foi uma pessoa muito organizada em seus materiais de es-
tudo e pesquisa, desde os primórdios de sua carreira, assim como “... é
muito notório que a professora e pesquisadora Pesavento refletia sobre
sua trajetória profissional e intelectual, deixando marcas bem concretas

5
Deixo em nota de rodapé uma informação importante: embora seja um arquivo pessoal e sempre ter
sido tratado como tal, não são constituintes do acervo e-mails e correspondências pessoais, e sim
apenas aquelas trocadas com seus pares e que dizem respeito à vida acadêmica e de pesquisa.
Nádia Maria Weber Santos • 25

nos documentos que produzia” (SANTOS; FRAGA, 2020b, p. 49). Exemplo


disso é um documento de arquivo, o qual denominamos “Linha do
Tempo Intelectual de Sandra Jatahy Pesavento, 1973-1991”, 6 feito por ela
mesma, de 17 páginas, cada página contendo 4 colunas, onde se leem
data/período cronológico, teoria da História estudada, tema historio-
gráfico e sua produção correspondente (Figura 6).
Este documento, como vemos, elucida a autorreflexão da pesqui-
sadora concernente à sua trajetória intelectual e a de sua produção,
também é onde destaca os autores que a influenciaram em suas análises
e elaborações textuais. “De certo modo, essa preocupação indica que,
para Pesavento, era fundamental ter clareza quanto ao processo inte-
lectual que se estava constituindo para a realização de suas pesquisas, o
que iria redundar em textos mais coesos e efetivos” (SANTOS; VEIGA,
2021b). Importa também registrar que tal processo institui, de certo
modo, uma leitura de si que somente a consulta ao seu acervo poderia
ser capaz de produzir.

6
Na organização inicial, estava na Pasta suspensa número 20. ASJP, IHGRGS. O documento encontra-se
digitalizado na íntegra e consta no link do ASJP, no site do IHGRGS. Disponível em:
http://ihgrgs.org.br/arquivo/inventario_sjp/linha_tempo_sjp.pdf Acessado em 6/3/2022. Sobre este
documento em específico, o analisamos e comentamos em dois artigos, que constam ao final, nas
referências Santos e Fraga (2020a, 2020b) e Santos e Veiga (2021b).
26 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 6 – Página 1 do documento “Linha do Tempo Intelectual


de Sandra Jatahy Pesavento”

Fonte: imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Chegando, assim, ao que gostaria de discutir aqui, e fazendo alusão


ao título do texto, pergunto-me como fazer escolhas ao manter certos
documentos no arquivo pessoal, e de que forma os classificar sem entrar
em conflito com nossos colegas arquivistas. Estes profissionais têm uma
vasta experiência e trajetória de organização de arquivos, sendo a ar-
quivologia um importantíssimo e necessário campo de reflexão e
atuação.
Em meados de 2017, a família Pesavento mudou-se de cidade, tendo
deixado para trás o apartamento onde viveram por décadas junto com
Sandra e onde existia a biblioteca da historiadora – uma vasta sala com
armários até o teto em três paredes, recheados de livros, teses, papéis e
materiais de pesquisa. Além dos armários, havia o sofá vermelho, a mesa
Nádia Maria Weber Santos • 27

do computador e sua cadeira, as poltronas, um armário com os fichários


(descritos na nota 4 desse texto) e as “casinhas” em cima (Figuras 7 e 8
– objetos que hoje pertencem ao acervo) e, quase ao centro do cômodo,
uma escrivaninha de grande porte com uma gaveta também grande.
Descrevo essa “cena”, pois era muito comum a professora receber
seus alunos para orientação, seus colegas, seus grupos de pesquisa nessa
sala. Muitas vezes, as reuniões eram regadas a excelentes vinhos, esco-
lhidos a dedo por seu marido... E, assim, todos nós conhecíamos este
espaço da intelectual, onde éramos acolhidos e onde ela fazia questão de
compartilhar seus livros, suas histórias de viagens, suas mais novas
pesquisas e ideias.

Figura 7 – Móvel na residência de Sandra Pesavento com casinhas e fichários

Fonte: imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).


28 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 8 – Móvel (aberto) na residência de Sandra Pesavento com casinhas e fichários

Fonte: imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Pois bem. Um pouco antes da mudança, o marido de Sandra chamou-


me à sua casa, pois tinha conseguido achar a chave e, finalmente, abrir a
gaveta desta escrivaninha, da famosa biblioteca. Perguntou-me se eu me
Nádia Maria Weber Santos • 29

interessava em buscar este material para fazer parte do acervo. Obvia-


mente minha resposta foi positiva e corri para lá. A gaveta foi aberta em
27 de abril de 2017, tendo a professora falecido em março de 2009.
Mesmo quem não fosse tocado por todo este entorno e essa “cena”
que acabo de descrever, entenderia que na gaveta chaveada estavam
presentes os últimos momentos intelectuais e, porque não dizer, senti-
mentais, de Pesavento. Organizada como ela era, ali naquele espaço
íntimo de estudo e reflexão, em sua gaveta que ninguém conhecia – em-
bora todos frequentassem aquela sala –, ela guardava o que mais lhe era
caro no momento: manuscritos em pequenas cadernetas e em folhas já
separadas, em pastas transparentes, por assuntos que continham seus
últimos estudos e pensamentos sobre história urbana, paisagens e ima-
gens, fotografia; também havia inúmeros cartões desejando
restabelecimento de sua saúde na época de sua hospitalização em 2008
(ela ficou 100 dias hospitalizada no Hospital Moinhos de Vento em Porto
Alegre, de abril a agosto); uma lista de textos a escrever; anotações sobre
o recente evento de Puebla/México, programas do evento de Goiânia
(Simpósio de História Cultural), textos sobre Sensibilidades/Imagens –
Viajantes, Ruínas, Memória e Patrimônio, Cidade e Ruínas; aulas/semi-
nários ministrados no PROPUR/UFRGS recentemente. Tudo isso bem-
organizado e mostrando que eram suas questões recentes para pensar e
escrever. Assim era Sandra.
Não tive dúvidas em nomear essa caixa (número 48 A e B), quando
cheguei com este material no IHGRGS, de “Ouro puro”. Como entender
que ela talvez deva mudar de classificação ou nome no decorrer da or-
ganização do acervo? Para quem trabalha com a história das
sensibilidades e embasa suas discussões nas reflexões sobre a
30 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

subjetividade presente nos fatos históricos e nas marcas sensíveis dei-


xadas nos traços concretos dos arquivos, aqui em um arquivo pessoal,
imagina que esses materiais, chaveados numa gaveta de escrivaninha e
que eram os últimos escritos e mesmo pensamentos mais caros a esta
intelectual, devam permanecer juntos, integrados, como um todo coeso.
Pois como dizia a própria Pesavento (2005) em um de seus textos em que
ela teoriza sobre a questão das sensibilidades na História, Sensibilidades
no tempo, tempo das sensibilidades: “toda a experiência sensível do
mundo, partilhada ou não, que exprima uma subjetividade ou uma sen-
sibilidade partilhada, coletiva, deve se oferecer à leitura enquanto fonte,
deve se objetivar em um registro que permita a apreensão dos seus sig-
nificados”. E acrescenta: “O historiador precisa, pois, encontrar a
tradução das subjetividades e dos sentimentos em materialidades, ob-
jetividades palpáveis, que operem como a manifestação exterior de uma
experiência íntima, individual ou coletiva” (PESAVENTO, 2005, § 35). 7
Passo a comentar alguns desses documentos que foram recente-
mente digitalizados e reorganizados pelo arquivista, a partir da
apresentação de algumas imagens. Como são muitas, farei uma escolha
de mostrar apenas alguns documentos manuscritos da Caixa 48 A, que
dizem respeito a duas cadernetas em especial. 8
As cadernetas que temos no Acervo S. J. P., nas quais Sandra escre-
via e deixava suas reflexões (temos também as cadernetas de viagem,

7
Este texto foi publicado em uma revista francesa: Nouveau Monde, Mondes Nouveaux, on-line, onde não
há paginação, somente parágrafos. Referência ao final deste texto.
8
A descrição sucinta das caixas, de forma esquemática na disposição inicial em que as colocamos, antes
do trabalho de classificação do arquivista, foi realizada pela acadêmica de História, hoje licenciada,
Francielle Garcia. Desta caixa em específico, 48 A e B, a descrição foi realizada em 13 de junho de 2017
e consta em nosso drive do acervo. O material digitalizado será disponibilizado ao público em geral
oportunamente no site do IHGRGS.
Nádia Maria Weber Santos • 31

que fazem parte de um outro conjunto documental do acervo), eram de


dimensões pequenas e, em geral, eram desse tipo de caderneta que ela
recebia em congressos, ou em hotéis, ou mesmo compradas em museus.
Aqui vou apresentar apenas o conteúdo de duas, como já disse, e
suas respectivas capas, mostrando tanto a organização da produtora
deste arquivo como as preocupações intelectuais que ela teve nos últi-
mos anos de sua vida e que, na disposição geral de seus materiais,
tiveram destaque por estarem na gaveta da escrivaninha.
Há uma caderneta, com a capa de um quadro de Piero della Fran-
cesca, pintor italiano do Quattrocento, escrito “Imagem” como sendo o
“título” da caderneta (Figura 9, a seguir), com 33 páginas, na qual Pesa-
vento escreve em francês algumas anotações sobre a questão da
Imagem, começando por noções relacionadas a “Mosaique – WB” (Figu-
ras 10 a 13 – não estão na ordem de paginação, são apenas ilustrativas).
Mas também está citando outros autores e teorizando sobre imagens,
paisagens, fotografias e arte.
Esses registros podem ser tanto de uma leitura que ela estivesse
fazendo, como de palestras que assistia, como fica explícito em outros
documentos. Muitas vezes, também, Sandra anotava as discussões que
mantinha com seus pares, colegas, por exemplo, do grupo internacional
Clíope, de História e Literatura, que se reuniam periodicamente para
trabalhar determinados assuntos ou autores. 9 Em alguns manuscritos é
possível identificar a fonte dos escritos, em outros não. É provável que
muitos dos conteúdos desses manuscritos tenham sido utilizados por
ela em textos que publicara, mas também existe a possibilidade de que

9
Sobre o Grupo Clíope e a relação de Pesavento com ele, remeto o leitor aos textos Santos (2015), Santos
(2022, prelo) e à tese de doutorado defendida em 2021, por Luciana Gransotto. Referências ao final.
32 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

alguma coisa ainda seja inédita. Apenas uma pesquisa mais acurada, co-
tejando os documentos de acervo e toda sua obra, poderá nos dar essa
resposta (e que não é o escopo deste artigo).
Ainda citando o mesmo texto de Pesavento (2005) sobre sensibili-
dades, cabe aqui seu pensamento de que “tais marcas de historicidade –
imagens, palavras, textos, sons, práticas – seriam o que talvez seja pos-
sível nomear como evidências do sensível. Mas, para encontrá-las, é
preciso uma reeducação do olhar. O olhar-detetive do historiador da
cultura interpretará tais sinais, estabelecendo nexos e relações para
tentar chegar ao tal mundo do passado onde os homens, falavam, ama-
vam e morriam por outras razões e sentimentos” (PESAVENTO, 2005,
§36). É Pesavento por ela mesma nos ajudando a pensar seu próprio
acervo...
Nádia Maria Weber Santos • 33

Figura 9 – Caderneta “Piero Della Francesca” – Capa, onde está escrito “Imagem”

Fonte: Caixa 48 A. Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).


34 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 10 – Caderneta “Piero Della Francesca” – conteúdo da caderneta, manuscrito.

Fonte: Caixa 48 A. Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).


Nádia Maria Weber Santos • 35

Figura 11 – Caderneta “Piero Della Francesca” – conteúdo da caderneta, manuscrito.

Fonte: Caixa 48 A. Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).


36 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 12 – Caderneta “Piero Della Francesca” – conteúdo da caderneta, manuscrito.

Fonte: Caixa 48 A. Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).


Nádia Maria Weber Santos • 37

Figura 13 – Caderneta “Piero Della Francesca” – conteúdo da caderneta, manuscrito.

Fonte: Caixa 48 A. Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Os manuscritos em francês podem também ter sido escritos em


Paris, onde, muitas vezes, Pesavento passava as férias da Universidade,
em geral, janeiro e fevereiro. Nesses períodos, ela assistia alguns semi-
nários de colegas na EHESS (École des Hautes Études em Sciences
Sociales) e reunia-se com eles em eventos ou em discussões de projetos
internacionais e obras em comum. Essa afirmação é possível, pois mui-
tas vezes eu mesma participava desses encontros em Paris; além disso,
38 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

eles estão demonstrados na tese de doutorado de Gransotto (2021), em


que estão narrados de forma exemplar os deslocamentos intelectuais de
Pesavento e suas parcerias internacionais.
É o que revela, talvez, o próximo conjunto de documentos, escritos
em francês numa caderneta de capa verde, onde se lê “Moscú” 2001 e X
FIEALC (Figura 14), e para a qual ela dá o título de “Paisagem”, ou seja, o
conteúdo dos escritos da pequena caderneta diz respeito a essa temá-
tica. FIEALC é a sigla de Federación Internacional de Estudios sobre
América Latina y el Caribe, cujo congresso em 2001 foi em Moscou e
Sandra compareceu (comprovadamente pelo seu CV Lattes 10).

10
O CV Lattes da professora ainda está on-line na plataforma e pode ser acessado pelo link
http://lattes.cnpq.br/1760145213009265. A referência citada, X FIEALC, está no item 88 de “Participação
em eventos”.
Nádia Maria Weber Santos • 39

Figura 14 – Caderneta Moscu 2001 – Capa

Fonte: Caixa 48 A – Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Vê-se, nos manuscritos da caderneta verde (somando 17 folhas es-


critas e 1 em branco), que não necessariamente os escritos são do
mesmo ano da caderneta. No caso, a primeira página tem a data de
18/1/2006. Há três datas nestes papéis: 18 de janeiro, 25 de janeiro e 1º
de fevereiro de 2006 (Figuras 15, 16 e 17). Na página 1, também há o nome
Jacques, referência a Jacques Leenhardt, parceiro intelectual francês de
Pesavento nos últimos 18 anos de sua vida acadêmica e com o qual tam-
bém dividia as reuniões do grupo Clíope. Ela assistia aos seminários de
40 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Jacques na EHESS, assim como outros colegas quando estavam em Paris.


É sabido, também, que o assunto paisagem fez parte dos temas aborda-
dos por Leenhardt em suas aulas, assim como foi trabalhado pelos
colegas no Clíope. Pesavento, embora estivesse ainda estudando esse
tema bem no final de sua vida, escreveu alguns textos sobre paisagens.
E nesse assunto há muitos conjuntos de documentos no Acervo S. J. P.,
tanto na Caixa 48 como em outras.
Em 2008 surgiu um texto de Pesavento no livro organizado por
Leenhardt, A Construção Francesa do Brasil. Ela escreveu sobre “Imagens
francesas do Brasil no século XIX: paisagens e panoramas”, e este se
configura um de seus primeiros textos sobre o assunto. Também há ou-
tros colegas do Grupo Clíope nessa obra. Sandra, num capítulo de 80
páginas, discorre sobre imagens e paisagens do Brasil pelo olhar de vi-
ajantes, dentre eles Denis, Saint-Hilaire e Debret, falando sobre os
palimpsestos da viagem em textos e imagens. Certamente encontramos
fragmentos e reflexões que levaram à sua escrita nestes documentos de
acervo.
Nádia Maria Weber Santos • 41

Figura 15 – Caderneta Moscu 2001 – conteúdo da caderneta – página 1

Fonte: Caixa 48 A – Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).


42 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 16 – Caderneta Moscu 2001 – conteúdo da caderneta – página 8

Fonte: Caixa 48 A – Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).


Nádia Maria Weber Santos • 43

Figura 17 – Caderneta Moscu 2001 – conteúdo da caderneta – página 11

Fonte: Caixa 48 A – Imagens do Acervo S. J. P. (banco de imagens no drive Google).

Gostaria de finalizar este texto afirmando ao leitor que este é ape-


nas um dos vieses possíveis para compreendermos a construção do
pensamento de Pesavento em seus últimos anos de historiadora, pes-
quisadora e intelectual. Seu acervo é riquíssimo, pois nele se encontram
os materiais que formaram sua trajetória: sua biblioteca completa, as
temáticas estudadas, suas pesquisas, as orientações de alunos, os planos
de aula, seus diários, objetos e fotos de viagens, transcrição de fontes
históricas utilizadas por ela (como jornais e processos), entre outras
44 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

tantas riquezas. E tudo isso numa organização que ela mesma entendia
ser ideal para que fosse encontrado por ela quando precisasse: é o que
demonstram as inúmeras pastas e envelopes em que estavam acondici-
onados os papéis em sua residência. E o que dizer, então, do material
“Ouro puro” da gaveta da escrivaninha?
Como historiadora das sensibilidades, ela deixou suas marcas sen-
síveis também nos itens guardados por ela, em sua prática de arquivar
a própria vida. Além de sua obra historiográfica, já tão importante, te-
mos este arquivo para desvendar outras facetas de Sandra, outros
olhares de Pesavento, que talvez não tenham aparecido nos livros. Por
que não?

Recuperar sensibilidades não é sentir da mesma forma, é tentar explicar


como poderia ter sido a experiência sensível de um outro tempo pelos ras-
tros que deixou. O passado encerra uma experiência singular de percepção
e representação do mundo, mas os registros que ficaram, e que é preciso
saber ler, nos permitem ir além da lacuna, do vazio, do silêncio
(PESAVENTO, 2005, § 40).

REFERÊNCIAS

GRANSOTTO, Luciana Rodrigues. As viagens da historiadora: internacionalização


acadêmica e deslocamentos intelectuais de Sandra Jatahy Pesavento (1990/2009).
Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/
123456789/227061

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo


Mundo Mundos Nuevos [en ligne], Colloques, mis en ligne le 04 février 2005,
consulté le 13 mars 2022. URL : http://journals.openedition.org/nuevomundo/229
Nádia Maria Weber Santos • 45

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Imagens francesas do Brasil no século XIX: paisagens e


panoramas. In: LEENHARDT, Jacques (org.). A Construção Francesa do Brasil. São
Paulo: Hucitec, 2008.

SANTOS, Nádia Maria Weber. Quando as sensibilidades tomam posição... A obra de


Sandra Jatahy Pesavento e sua importância para a historiografia brasileira. In:
LEENHARDT, J. et al. (orgs.). História Cultural da cidade: homenagem à Sandra Jatahy
Pesavento. Porto Alegre: Marca/Visual, PROPUR, 2015. p. 271-296.

SANTOS, Nádia Maria Weber. Constituição e organização do acervo Sandra Jatahy


Pesavento no IHGRGS. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DO TEMPO
PRESENTE, 3., 2017, Florianópolis. Anais..., UDESC, outubro, 2017. Florianópolis.
Disponível em: http://eventos.udesc.br/ocs/index.php/STPII/IIISIHTP/paper/view
File/585/472

SANTOS, Nádia Maria Weber; MEIRELES, Maximiano Martins de. Nos rastros da
História Cultural e das Sensibilidades: o acervo Sandra Jatahy Pesavento e sua
produção historiográfica. Revista de História Bilros, v. 5, p. 11-32, 2017. Disponível em:
http://seer.uece.br/?journal=bilros&page=article&op=view&path%5B%5D=2902&pa
th%5B%5D=2344 .

SANTOS, Nádia Maria Weber. Apresentação do Acervo Sandra Jatahy Pesavento do


IHGRGS (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul). Artelogie, v. 14, p. 1-
10, 2019. Disponível em: https://journals.openedition.org/artelogie/4184

SANTOS, Nádia Maria Weber; MEIRELES, Maximiano Martins de. O arquivo pessoal da
historiadora Sandra Jatahy Pesavento e as Sensibilidades enquanto campo teórico e
método de análise histórica. Artelogie, p. 15-35, 2019. Disponível em:
https://journals.openedition.org/artelogie/3933

SANTOS, Nádia Maria Weber; FRAGA, Hilda Jaqueline de. Acervo, memórias e trajetórias
de pesquisa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, Dossiê Sandra Jatahy Pesavento, v. 1, n. 158, p. 1-3, 2020a. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/revistaihgrgs/issue/view/4163

https://seer.ufrgs.br/revistaihgrgs/article/view/109688/59404

SANTOS, Nádia Maria Weber; FRAGA, Hilda Jaqueline de. Acervo Sandra J. Pesavento:
trajetórias e perspectivas investigativas para a História do Tempo Presente. Revista
46 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

do Instituto Histórico E Geográfico do Rio Grande do Sul, v. 1, p. 41-66, 2020b.


Disponível em: https://seer.ufrgs.br/revistaihgrgs/article/view/103359

SANTOS, Nádia Maria Weber; MEIRELES, Maximiano Martins de. As sensibilidades na


pesquisa em História da Educação: delineamentos a partir do acervo da historiadora
Sandra Jatahy Pesavento. História da Educação, 2021. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/asphe/article/view/102367/pdf

SANTOS, Nádia Maria Weber; VEIGA, Alexandre. Sandra Jatahy Pesavento, 75 anos. Porto
Alegre: IHGRGS, 2021a (E-Book). Disponível em: http://ihgrgs.org.br/arquivo/
AcervoSandraJP-75anos.pdf

SANTOS, Nádia Maria Weber; VEIGA, Alexandre. A experiência de curadoria no acervo


Sandra Jatahy Pesavento do IHGRGS: identificando traços da professora no arquivo
pessoal da intelectual. Revista Cadernos de História da Educação, Dossiê Traços que
Deixam Traços: Arquivos pessoais no Tempo Presente (Maria Teresa Cunha e Dóris
Almeida, org.), v. 20, p. 1-16, e046, 2021b. ISSN: 1982-7806 (on-line). Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/che/article/view/63325/32538

SANTOS, Nádia Maria Weber. Sandra Pesavento. In: Diogo Roiz, Rebeca Gontijo, Tânia
Zimmermann (orgs.). As historiadoras e os gêneros na escrita da história I – Pioneiras
nos estudos históricos brasileiros. Campinas: editora Mercado das Letras, 2022. No
prelo.
2
CIDADE, SOCIABILIDADES E GÊNERO NO
ACERVO SANDRA JATAHY PESAVENTO
Hilda Jaqueline de Fraga

INTRODUÇÃO

Nas palavras de Albuquerque Júnior (2019, p. 209), o papel político


do ofício do historiador consiste em construir versões acerca do passado
e disponibilizá-las para o uso público no presente. A trajetória intelec-
tual de Sandra J. Pesavento, traduzida na hibridez dos suportes
documentais de seu acervo pessoal, fruto dos trabalhos no campo da
Historiografia, demonstra o quanto soube exercer as tarefas deste ofí-
cio. O acervo singular que ela arquivara, em torno de temas que lhe
foram caros ao longo dos 40 anos dedicados à pesquisa, segue instigando
leituras e novas produções de sentidos, partindo-se do pressuposto,
conforme Cunha e Andrade (2020, p. 88), de que os arquivos pessoais são
lócus de vestígios que permitem “vislumbrar, interpretar e perceber o
passado”. Vestígios não são somente concebidos em suas dimensões
materiais – os documentos propriamente e os procedimentos necessá-
rios à conservação e à catalogação –, mas também em suas dimensões
sensíveis, ou seja, nas redes de representações, imaginários e sensibili-
dades que dão a conhecer experiências e mentalidades das sociedades
no tempo.
Interpelados por essas questões presentes no trabalho cotidiano
com os achados e as preciosidades constantes neste lugar de memória e
com sendas abertas por contribuições da historiadora desde o viés da
48 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

História Cultural, socializamos alguns suportes documentais em torno


de um dos eixos relevantes de seus estudos: a cidade – a Porto Alegre da
virada do séc. XIX para o séc. XX. As importantes imersões historiográ-
ficas a partir da capital na qual residiu, e onde exerceu sua carreira
acadêmica – de acordo com Celia Ferraz de Souza (2015, p. 65), colega e
parceira de inúmeros projetos e escritos –, trouxeram muitos ganhos
para a história da cidade, visto que propiciaram importantes ferramen-
tas teórico-metodológicas para análises complexas e interdisciplinares
da tessitura urbana e, consequentemente, um maior conhecimento so-
bre ela, produzindo importantes referenciais para as gerações de
historiadores.
Como fonte substancial de suas investidas no âmbito de uma his-
tória cultural das cidades, sobressai o apanhado representativo de
jornais da época, sobre os quais se debruça nos textos de cronistas, como
importantes testemunhos para a reflexão acerca das implicações de
transformações urbanas do período, nas práticas cotidianas e nas re-
presentações sociais delas advindas e largamente difundidas pela
imprensa local.
Através dos relatos dos cronistas como “leitores especiais”, como
se refere no artigo “Muito além do espaço: por uma história cultural do
urbano”, publicado na Revista Estudos Históricos em 1995, suas pesquisas
dão a ver diferentes modalidades de discursos, imagens e representa-
ções construídas por esses agentes citadinos acerca de uma cidade que
se encontra em vias de urbanização, mesmo em descompasso com as
demais metrópoles do período. Ao se concentrar em registros desses
leitores privilegiados do espaço urbano, os empreendimentos de S. J. P.
na direção de uma história cultural urbana trazem à superfície do
Hilda Jaqueline de Fraga • 49

visível o quanto essas modalidades e variações sensíveis são resultados


de relações sociais e de poder que permeiam sua feitura.
A historiadora inaugura, portanto, um novo momento da história
local e regional, como bem expressa Leenhardt (2015, p. 21), no qual a
cidade ganha importância integrando-se às abordagens que vinha de-
senvolvendo desde então sobre a sociedade rio-grandense. Para o
pesquisador, as produções de S. J. P. se voltam para a cidade incitando a
lê-la em seus aspectos gramaticais – organização espacial – assim como
em suas frases e discursos registrados nos jornais e folhetins. A impor-
tância dada pela historiadora a essas fontes justifica-se tendo em vista
que, segundo ela, “é nas entrelinhas dos jornais, nas ‘colunas do povo’
dos periódicos que podemos encontrar essas múltiplas vozes”
(PESAVENTO, 1995, p. 284) com os indícios do que seria a cidade em suas
ordens, interditos e artes do fazer, propondo-se, portanto, a perscrutar
a cidade em suas representações e imaginários.
Em algumas delas, os cronistas, verdadeiros leitores da urbe, dis-
correm sobre determinadas práticas, manifestações populares, valores
e acontecimentos singulares da capital porto-alegrense, chegando às
sensibilidades coletivas, como demonstram os documentos aqui seleci-
onados e as interfaces que oferecem por meio das sínteses que os
acompanham. Entretanto, convém ressaltarmos que não se pretende
somente dar a conhecer os suportes entendidos como fontes. O objetivo
para sua socialização consiste em aprofundar suas funções sociais e po-
líticas, tarefa do historiador, para outras leituras sobre as formas de
narrar e habitar que atravessaram/atravessam a cidade, recuperando
uma das assertivas da historiadora que é de torná-la objeto de
50 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

reeducação do olhar e espaço de revelação de uma nova coerência para


o mundo no qual vivemos interpelados por continuidades e rupturas.
É um convite, portanto, para que experiências interpretativas de
textos e imagens – os quais fornecem fragmentos de Porto Alegre – se
entrelacem. Buscamos, a partir dos indícios arquivados por S. J. P., com-
por cartografias focadas nos fluxos do progresso e das incidências nas
práticas de sociabilidade e nas representações sociais de uma cidade,
utilizando uma pequena amostragem do material disposto no acervo.
A cartografia, entendida sob a perspectiva foucaultiniana, signifi-
cando ler e compreender espacialmente as relações de poder e práticas
discursivas assinaladas por Albuquerque Júnior, Veiga-Neto e Souza Fi-
lho (2011, p. 10), que constituem e/ou desmancham determinadas
coordenadas e desenhos espaciais, algumas delas visíveis nos suportes
documentais elencados e em seus contextos.
Nesse sentido, nós os organizamos em três tópicos: cidade, socia-
bilidades e gênero – os dois primeiros amplamente abordados pela
historiadora S. J. P., e o terceiro como resultado de uma pesquisa em
curso no acervo 1 direcionada às questões de gênero como uma categoria
de análise histórica da cidade, sendo que o momento atual nos instiga a
repensar as cidades e suas atribuições no tempo presente.

1 OS SUPORTES DOCUMENTAIS: FRAGMENTOS, TEXTOS E CONTEXTOS

Os suportes documentais, fragmentos de um acervo pessoal trans-


formados em textos pelas operações do historiador, adquirem sentido

1
Pesquisa desenvolvida desde 2018 pela Profa. Dra. Hilda Jaqueline de Fraga, pesquisadora e membro
da Equipe de Curadoria do Acervo S. J. P., concentrada nas contribuições da obra da historiadora para
estudos da História Cultural sobre o gênero na cidade.
Hilda Jaqueline de Fraga • 51

quando contextualizados às atividades que lhes deram origem. Tal pres-


suposto permite não só conhecer a personalidade de quem os produziu,
como corrobora para enriquecer o espectro documental nele reunido,
revelando-o em suas mais variadas nuances e áreas de interesses.
Os documentos selecionados que tratamos a seguir, tomados em
seus contextos, correspondem à fase mais fértil do pensamento de S. J.
P. relativa à cidade enquanto área de interesse para os historiadores e
demais especialistas da urbe. Estes, potencializados nos escritos, prin-
cipalmente na década de 1990 do século passado, figuram em inúmeras
publicações e interlocuções com historiadores franceses sobre o tema.
Representam o trânsito da História Social para a História Cultural e,
posteriormente, para a História das Sensibilidades. Conhecedores da
obra e da produção da historiadora apontam como referência desta pas-
sagem o artigo “Um novo olhar sobre a cidade: a nova história cultural
e as representações do urbano”, de 1994. Segundo Souza (2015), é o
marco dos referenciais e aportes teórico-metodológicos e sinaliza a mu-
dança das áreas de interesse das pesquisas de S. J. P. ao incluir a
temática urbana como um dos importantes eixos de seu pensamento.
Influenciada pelos aportes de Chartier, S. J. P. passou a se debruçar
sobre questões atinentes ao urbano, indo das práticas às representações
no cruzamento de fontes que traduzem as relações sociais de poder e as
mentalidades da sociedade analisada. A cidade é abordada como artefato
cultural, aludindo o quanto esses aspectos atuam no conjunto de ideias,
valores e ordenações do vivido na urbe, localizáveis nas crônicas dos
jornais O Independente e Diário de Notícias, entre os anos de 1905 a 1927.
Sob os olhares dos cronistas, revelam-se várias cidades: a cidade
do progresso e dos dilemas da tradição, a cidade da incorporação de
52 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

novas práticas e sociabilidades no dia a dia da capital porto-alegrense,


a cidade das presenças incômodas, dos considerados causadores de suas
mazelas e, por fim, a cidade do instituído com suas normas e regulações
envolvendo o gênero.
Marciniak (2018, p. 2) pontua a necessidade de considerar que as
narrativas e as representações mobilizadas pela narrativa jornalística
operam para normatizar as condutas e formar opiniões. Enquanto um
discurso elaborado, procuram dar legitimidade e credibilidade, como se
fosse uma fotografia da realidade, porém bem sabemos que as melhores
fotografias não têm ângulos aleatórios como mostram as cartografias
de S. J. P. Contudo, entre o real e o fito, entre o fito e o real não podemos
ignorar que as crônicas de jornais são materiais valiosos que nos per-
mitem, de alguma forma, chegar até o passado eternizado em gestos,
resgatando palavras e socializando imagens desses registradores fuga-
zes (PESAVENTO, 1992, p. 10).
Hilda Jaqueline de Fraga • 53

1.1 CARTOGRAFIA 1 – CIDADE: A TRADIÇÃO E O PROGRESSO

Figura 1 – Jornal O Independente

Fonte: Caixa Nº 20 A – Acervo S. J. P.

Síntese – Os percursos cartográficos esboçados na breve crônica


do autor Quintino Guimarães sobre a Porto Alegre dos primeiros anos
54 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

do século XX remetem a leituras e percepções a respeito dos rumos do


desenvolvimento da capital sulina. Nela, o cronista se concentra na crí-
tica à apologia ao progresso, expondo os contrastes condizentes à cidade
imaginada e à cidade real na qual, ao contrário do que se pensa, a mo-
dernidade caminha a passos lentos. Para além disso, sua narrativa abre
espaços para o imaginário social implicado na realidade da urbe tanto
em suas práticas quanto em suas direções. A defesa apaixonada de al-
guns habitantes na comparação com as metrópoles europeias, modelos
de civilidade, é questionada pelo autor ao salientar os limites das di-
mensões concretas da cidade nos aspectos mais básicos de estruturação
urbana. A partir da imagem/texto fornecida, verificamos as diferentes
temporalidades que atravessam uma urbe onde os citadinos convivem
paulatinamente com mudanças em curso inevitáveis e, do mesmo modo,
com as permanências de lógicas e conformações coloniais. Assim sendo,
para o cronista, a Porto Alegre do período não passava de “uma aldeia
grande”, onde as decepções dos patrícios atraídos pelo decantado de-
senvolvimento, somadas ao relato do cronista, abrem-se às inflexões de
S. J. P. em obras específicas. 2 Em determinados escritos, a historiadora
alude a vivência da modernidade e a sua correspondência com a cons-
trução de imaginários que comportam os desejos, os sonhos e as
inspirações de uma sociedade de uma dada época acerca de uma outra
cidade – a inventada – que, no entanto, não passa ilesa pelos dilemas e
frustrações pontuados por leitores da cidade específicos quanto a um
projeto ainda por se realizar.

2
Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. O espetáculo da rua. Porto Alegre: Ed. Univer./UFRGS, 1992, p. 9.
Hilda Jaqueline de Fraga • 55

Figura 2 – Jornal O Independente


56 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Fonte: Caixa Nº 20 A – Acervo S. J. P.

Síntese – Escrita dois anos depois no mesmo jornal, esta segunda


crônica redesenha outras cartografias e sensibilidades sobre o urbano.
Sob o título sugestivo escolhido pelo autor, a mesma cidade e sua popu-
lação são consideradas cosmopolitas, diferentemente da anterior.
Todavia, é espaço dos embates entre a tradição e o novo que se anuncia,
Hilda Jaqueline de Fraga • 57

instaurando outra ordem. O tom saudosista do cronista testemunha


uma cidade que aos poucos foi perdendo seus antigos traçados, a calma-
ria; isto é, a pacata Porto Alegre do passado, a do Velho Porto dos Casais,
existe apenas na memória, na lembrança. Diante desse contexto, é pre-
ciso, mesmo que a contragosto, adaptar-se aos tempos da modernidade,
nos quais, como bem assinala, não têm lugar as carruagens, as cadeiri-
nhas de aluguel e os bondes a burro, atividade exercida pelos
escravizados de ganho, porque já substituídos desde 1906 pelos bondes
elétricos e automóveis resultados do progresso, “este caracol vagaroso
que vai deixando como rastro um sulco de prata”. Na sequência elucida
o mal-estar vivenciado pelo indivíduo da modernidade, ao mesmo
tempo celebrada e combatida devido aos desmoronamentos dos refe-
renciais daquilo que lhe era familiar na paisagem urbana
transcendendo a materialidade. Dando seguimento, o cronista pontua o
que avalia como efeitos nocivos do progresso nas práticas de sociabili-
dade e mudanças de comportamentos que têm lugar de excelência na
rua, no espaço público. Nem mesmo o regramento das condutas pelos
rituais religiosos do catolicismo que estão voltadas à defesa dos bons
costumes, como a retidão e o comedimento mencionados como valores
a serem cultivados, são capazes de controlar a vazão de novas dinâmicas
e vivências sociais, como o carnaval de rua e os estrangeirismos que in-
vadem Porto Alegre, alterando a fixidez de seus mapas e ampliando as
experiências da urbe.
58 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

1.2 CARTOGRAFIA 2 – CIDADE E SOCIABILIDADES: O INSTITUÍDO E AS


MARGENS

Figura 3 – Jornal O Independente


Hilda Jaqueline de Fraga • 59

Fonte: Caixa Nº 20 A – Acervo S. J. P.

Síntese – A cidade da modernidade, para além de leituras acerca


das transformações estruturais vividas por seus habitantes, pode ser
lida em suas interações e traços de sociabilidades associadas ao institu-
ído e às suas margens. Nela, a rua ganha cada vez mais destaque como
espaço praticado, constituindo-se como cenário povoado de outros ato-
res sociais, isto é, como o teatro da vida onde se desenrolam várias peças
(PESAVENTO, 1992, p. 81) e têm lugar as mais variadas movimentações
dos cidadãos “distintos” e dos cidadãos “comuns”. Dentre elas desta-
cam-se as tradicionais festas religiosas herdadas desde o Brasil Colonial
pelas cidades brasileiras, como as costumeiras procissões, as quermes-
ses da Festa do Divino tão populares em Porto Alegre, entre outras
tantas práticas de cunho religioso. Através das leituras do Noticiarista
tem-se uma ideia dos tempos e dos protagonistas dos rituais da festa de
60 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Corpus Christi no início do século passado e os distintos extratos sociais


que dela participam. A riqueza de detalhes recupera vivências e simbo-
logias concernentes ao festejo em particular. Para ele, naquele
momento se “via representada a nossa sociedade”, mobilizando congra-
çamentos, emoções e sensibilidades de uma coletividade. Segundo o
cronista, nessas ocasiões festivas, em torno das quais se reuniam toda a
sorte de gente – mulheres, homens, religiosos, crianças e jovens –, por
alguns instantes, a urbe se mostra não só em suas distinções sociais,
mas igualmente como espaço da mistura. As procissões, assim como as
demais festas populares, eram raros momentos de sociabilidade em que
as diferenças de classe por alguns instantes são deixadas de lado, a
exemplo das mulheres do povo e as abastadas que se misturam na mul-
tidão da procissão, acompanhadas dos representantes dos diferentes
credos religiosos. Borrando as fronteiras do instituído, todos não se fur-
tam, como menciona, “do gostinho de acompanhar o embróglio e de colocar
fitinha no pescoço”, conferindo certa identidade e pertencimento,
mesmo que momentâneo, a quem dela participa. Porém, a aparente “au-
sência do status” é ilusória, como ressalta o autor em tom irônico ao
mencionar uma das performances do festejo: o pão carregado pelo então
Padre Marcelino, símbolo da partilha nas celebrações do catolicismo e
da boa conduta cristã. Na capital orientada pelas regras do jogo da ur-
banidade, da ascendente burguesia urbana e do crescimento das
presenças incômodas situadas nas margens que dela se originam, o pão
– como demonstram décadas posteriores, em seu simbolismo, ou seja,
enquanto possibilidade de realização de aspirações e utopias sociais
anunciadas pelo crescente capitalismo-industrial – continuará uma re-
alidade para poucos.
Hilda Jaqueline de Fraga • 61

Figura 4 – Jornal Diário de Notícias


62 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Fonte: Caixa Nº 20 B – Acervo S. J. P.

Síntese – A década de 20 do século passado é marcada pela expansão


dos tradicionais contornos das cidades em nível mundial e nacional, fruto
do capitalismo-industrial em voga. Nesse cenário, os centros urbanos
passam a ser objeto de intervenções mais precisas dos planejadores as-
sentadas nos conceitos e procedimentos biologicistas. Conforme pontua
Correia (2001, p. 232), as dinâmicas urbanas alicerçadas nos discursos dos
médicos e dos urbanistas – arautos de uma política higienista e de reor-
denamento – imprimiram outros vocábulos e cartografias às práticas
Hilda Jaqueline de Fraga • 63

citadinas, reconfigurando as paisagens correlatas à cidade concebida pelo


positivismo, em resposta ao crescimento rápido e ao desordenamento das
principais capitais brasileiras. Em Porto Alegre não é diferente. Durante
os finais do século XIX, os intentos dos agentes públicos na redefinição do
solo urbano e de sua ocupação pelos indivíduos puderam ser sentidos pe-
los habitantes. Os desejos de um status de “cidade” paulatinamente vão
demonstrando melhoramentos estruturais, de serviços e das atividades
econômicas, assim como vão dando forma aos espaços esquadrinhados,
identificados pelo cronista anônimo, marcados pela coexistência de ruas
e bairros onde imperavam o fausto e o luxo – como a Rua Independência
– e aqueles considerados como as origens do “mau-lugar”, a exemplo do
bairro da Baroneza, que é foco da crônica. Conforme discorrem suas car-
tografias, o fascínio da modernização é ao mesmo tempo confrontado
pelas desigualdades, velhas conhecidas, quando descreve em detalhes os
territórios infames localizáveis nas margens da então ideologizada Porto
Alegre cosmopolita, onde residem os “refugos”, cada vez mais empurra-
dos para seus arrabaldes. Na contramão da ordem, as sociabilidades
desvalidas encaradas como nocivas pelo moralismo predominante e pelas
operações de limpeza urbana, para além das adjetivações formuladas pela
opinião pública e representadas pelo cronista, na verdade dizem respeito
ao peso da vida, àquilo que oprime a cada dia os indivíduos e que corres-
ponde à dificuldade de viver numa dada condição (CERTEAU; GIARD;
MAYOL, 2003, p. 31). Tais presenças incômodas, recuperadas em inúmeros
trabalhos de S. J. P. que tratam dos excluídos deste porto não tão alegre
com base nas representações e imaginários sociais formuladas pelas crô-
nicas e reportagens policiais, acionaram medos e ressentimentos
coletivos. Como riscos, na verdade testemunham os efeitos colaterais de
64 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

projetos tentados, perseguidos e fracassados, pontuados por Bauman


(2005, p. 34), e que pintaram uma realidade futura para as cidades dife-
rente da prevista pelos projetistas, dentre as tantas inflexões que
aportam a crônica no tempo presente.

1.3 CARTOGRAFIA 3 – CIDADE E GÊNERO

Figura 5 – Jornal Diário de Notícias

Fonte: Caixa Nº 20 B – Acervo S. J. P.

Síntese – As cidades nas primeiras duas décadas do século XX so-


freram mudanças não só em sua forma, mas igualmente naquilo que
lhes dá forma, ou seja, as práticas de uso e circulação do espaço urbano.
Hilda Jaqueline de Fraga • 65

Novas vivências e comportamentos vão reconfigurando o dia a dia dos


habitantes contagiados pela efervescência da Bella Époque, como exem-
plifica a crônica ao relatar um dia de domingo na capital e o tumulto de
transeuntes, típico dos grandes centros metropolitanos a preencher os
espaços das praças, cafés, cinemas e teatros. Dentre os destaques das
dinâmicas urbanas está o fluxo feminino captado pelos olhares dos pas-
santes e observadores da urbe. Para o cronista, elas, as mulheres, têm a
aptidão de emprestar um encanto a todas as coisas ao acompanharem o
desfile das beldades pela Rua da Praia, considerada a rua chique de Porto
Alegre. A cidade como espetáculo de uma burguesia ascendente im-
prime, portanto, outros ritmos, assim como nos demais centros urbanos
do país, nas quais as mulheres passam a figurar mais frequentemente
em atividades sociais e culturais como exposições e confeitarias, nas
quais senhoras, senhoritas e cavaleiros vêm para ver e serem vistos
(PESAVENTO, 1991, p. 56). Nesta sociedade das ruas, das compras do co-
mércio chique, das tardes de velódromo e das soirées do teatro e do
cinema, a burguesia desempenha a performance desejada correspon-
dente ao imaginário social povoado de homens e mulheres bem-
vestidos, vistos como verdadeiros flâneurs. (PESAVENTO, 1991, p. 64).
Porém, o maior trânsito feminino no espaço público, este último como
vitrine, no qual os olhos masculinos seguem encantados com a “fartura
de beleza”, ao mesmo tempo que é apreciado pelos narradores do coti-
diano, não deixa de ser circunscrito por representações estereotipadas
e/ou idealizadas do gênero na cidade, como reporta o cronista. Seguindo
uma visão essencialista do autor, as mulheres encaradas como adornos
reúnem em si tanto a graça quanto a tentação. As cartografias dessas
presenças em determinados locais, antes de primazia masculina,
66 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

demanda, portanto, que as vazões da publicidade destas experiências


nas formas de vida coletiva sejam de alguma maneira reguladas por
aqueles autorizados a falar sobre elas, os homens, incitando à formação
de opinião e ao imaginário público, já que seus deslocamentos pela ci-
dade sempre foram temidos e motivo de suspeita, como salienta Perrot
(2005, p. 295), ao analisar a cidade de Paris no final do século XIX. Pouco
a pouco, as mulheres burguesas, as do povo e as consideradas de “vida
fácil” são cada vez mais notadas e registradas nos jornais de Porto Ale-
gre, seja por meio de crônicas, seja por meio de notícias de delitos e
crimes divulgados nas páginas policiais. O fato é que sua perambulação
é seguida de uma avalanche de imagens produzidas pela ótica mascu-
lina, dando vazão à proliferação de campanhas moralistas e às
recomendações construídas a partir do imaginário dos homens acerca
dos papéis e condutas socialmente adequadas à esfera pública para am-
bos os sexos. Ou seja: a cidade da reordenação urbana é também a da
disciplinarização das relações de gênero.
Hilda Jaqueline de Fraga • 67

Figura 6 – Jornal O Independente

Fonte: Caixa Nº 20 A – Acervo S. J. P.

Síntese – Através do cronista indiscreto, como se identifica o au-


tor, a fonte recompilada no jornal Independente oferece uma ideia sobre
o sexo feminino e suas performances nas ruas movimentadas de Porto
Alegre. As observações e comentários discorrem sobre a emergência de
padrões e valores correspondentes à ordem burguesa que se instala em
sintonia com a profunda renovação urbana e tecnológica que, segundo
a historiadora S. J. P., não impediu que a cidade e o país vivenciassem o
68 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

sonho das civilizadas cidades europeias, mesmo dentro dos limites da


capacidade de acumulação capitalista local (PESAVENTO, 1992, p. 42).
Um novo imaginário e sensibilidades sociais, culturais e estéticas são
aderidos como sinônimo de urbanidade e modernização pelos agentes
citadinos. No caso das mulheres, em particular, antes totalmente invi-
síveis no espaço público, o único, segundo Perrot (2017, p. 16), merecedor
de interesse e relato, a atenção do cronista concentra-se num fenômeno
que atinge as cidades do período, a moda. As mudanças de costumes
acompanham as transformações das maneiras de vestir que permitem
certa liberdade aos corpos femininos na cidade. Ao experimentarem a
exposição no espaço público, os deslocamentos das mulheres desfilando
a moda da época não deixam de ser acompanhados de críticas e obser-
vações masculinas muito difundidas pelos moralistas inspirados na
Escola Lombrosiana que encontram eco na imprensa local. A maior mo-
bilidade inevitável das mulheres na esfera pública incita a construção
de discursos e representações de gênero em sintonia com os princípios
burgueses de higienização e esquadrinhamento urbanos. As preocupa-
ções com as mulheres públicas são apontadas, a exemplo do jornal. Em
grande parte, elas abarcam desde a proteção com relação às abordagens
do sexo masculino neste espaço agora misto, que são as ruas, até a de-
fesa de padrões de vestimenta a serem seguidos pelas mulheres de
acordo com as distinções de seu status social, na tentativa de imprimir-
lhes uma identidade segundo os rituais de passagem de cada etapa da
vida. Apesar de as cartografias indicarem uma inquietação frente a es-
tas presenças quase sempre vinculadas a uma imagem docilizada,
despossuída de identidade, reflexo da imagem masculina (CUNHA,
2000, p. 141), a cidade, como lugar de operações de poder de
Hilda Jaqueline de Fraga • 69

hierarquização dos sexos, é também aquela que permite a abertura de


destinos e outras possibilidades de modernização das relações sociais e
sexuais, muito embora as desigualdades de gênero permaneçam acirra-
das, como demonstrarão as lutas das mulheres das várias camadas
sociais nas décadas subsequentes pelo direito à cidade e à participação
na política.

Figura 7 – Jornal O Independente

Fonte: Caixa Nº 20 A – Acervo S. J. P.


70 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Síntese – Em meio ao “frisson” do vai e vem das ruas, determinados


grupos de mulheres serão alvos constantes de narrativas e representa-
ções dos jornais e das iniciativas de limpeza e ordenação urbana,
conforme menciona S. J. P. em seus trabalhos sobre os excluídos na ci-
dade de Porto Alegre. O aburguesamento da cidade inaugura uma série
de exigências, valores e critérios. Era preciso estabelecer os lugares a
serem utilizados e vivenciados pelos cidadãos e normatizar a vida. A
busca de uma estética e funcionalidade do espaço urbano requer igual-
mente os cuidados com a moral e os preceitos higiênicos, justificando
as obras cirúrgicas na zona central das cidades. Em Porto Alegre, os pla-
nejadores e a segurança sanitária e pública empreendem uma
verdadeira guerra aos cortiços, tavernas, bordéis e casas de jogatina. No
âmbito da moral, o discurso da higienização ancorava-se na ideia de
proteger as famílias e os cidadãos, principalmente as mulheres de bem,
a fim de garantir a seguridade social frente às investidas de homens de
baixa esfera e à imoralidade de mulheres depravadas entregues à pro-
miscuidade e à embriaguez. Mas a cidade que condena experiências na
contramão da ordem, entre elas as relacionadas à prostituição, é a
mesma das casas de tolerância criadas para identificar e regrar as con-
dutas das mulheres de “vida airada” – essas filhas de Eva responsáveis
pela perdição dos homens e das moças bem-nascidas. Sobre elas, o que
se sabe é traduzido pelas vozes e leis dos homens que as confinam em
casas gerenciadas por prostitutas a fim de mantê-las sob os olhos das
autoridades garantidoras da ordem, como salienta Perrot (2005, p. 78),
não sem gerarem censuras por parte da opinião pública. O tom indig-
nado e moralista do cronista no jornal O Independente, de fevereiro de
1919, ilustra muito bem o quanto a permissividade com relação à
Hilda Jaqueline de Fraga • 71

atividade de grupos de prostitutas e à obtenção de um habeas-corpus


assegurando a liberdade de exercício da profissão nas ruas e prostíbulos
da capital foram capazes de desencadear opiniões severas. A profusão
de adjetivações pejorativas e desqualificadoras sobre as experiências
pelo cronista visibiliza a cruzada moral de que eram alvo, substanciada
no ideal de pureza e da regeneração dos bons costumes. Às autoridades
e à polícia era solicitada a repressão a fim de que Porto Alegre pudesse
manter a feição dos grandes centros urbanos. Entretanto, o empenho
dos moralistas e das autoridades não foi capaz de controlar as vivências
enraizadas nas ruas da cidade. Um exemplo disso são as estratégias e as
redes estabelecidas por essas mulheres com o poder instituído no sen-
tido de burlar e borrar os limites morais e espaciais impostos pelas
autoridades. 3 Como resultado das relações de poder envolvendo o gê-
nero na cidade refletem as resistências históricas das mulheres à
segregação espacial que lhes foi e ainda é imposta e a problemática da
violência contra a mulher como algo naturalizado, recorrente e justifi-
cável na urbe. A cidade herdada da modernidade na busca incessante
por seguridade realiza-se como um lugar hostil para as mulheres. O
registro aponta o uso da categoria de gênero em análises históricas das
cidades, tanto com relação à morfologia urbana quanto às formas de
vida coletiva, expondo também em que medida as representações e o
imaginário social exercem seu papel na operação das lógicas de poder
envolvendo o tema na gestão da vida citadina.

3
Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. Crioula Fausta – o Pássaro Negro do Beco do Poço. In: Os Sete pecados
da Capital. Porto Alegre: Hucitec, 2008. Nesta obra, a historiadora discorre sobre as estratégias utilizadas
pela famosa dona do lupanário do Beco do Poço junto às autoridades e pessoas influentes da época
para escapar da vigilância policial e processos-crime relacionados às suas atividades.
72 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

À GUIZA DE CONCLUSÃO

Ao fornecer a visibilidade dos suportes documentais selecionados


para esta escrita, nosso intuito foi realizar reflexões em torno de carto-
grafias que possam expandir a compreensão acerca dos arquivos que
custodiam os acervos pessoais. Enquanto lugares de memória, eles são
geradores de conhecimento histórico; enquanto patrimônios, na acep-
ção de Funari e Carvalho (2008, p. 303), servem para “fazer pensar”.
Em cada um dos itinerários disponibilizados por S. J. P., a partir da
compilação de uma gama de exemplares de jornais constantes no
acervo, pudemos realizar leituras nos quais os espaços de textualidades
da cidade se apresentam polissêmicos (muitos significados) e polifôni-
cos (multiplicidade de vozes), dando-se a conhecer a seus tributários sob
formas muitas vezes contrastantes (FRAGA; SANTOS, 2020, p. 58). Estas,
a todo tempo, como mostrado, têm negociado e tensionado os limites da
cidade de pedra ao longo da história. As inflexões expostas, longe de es-
gotar as abordagens apresentadas, apontam para uma apreensão da
cidade desde a noção de “cidades plurais”, criando terreno para a ex-
pansão das experiências, conformando, assim, espaços democráticos
onde se vislumbram novos percursos não menos desafiadores acerca de
questões que ainda se colocam no tempo presente. Buscamos lançar al-
gumas delas àqueles interessados em formular outras perspectivas,
aguçando o olhar de quem a habita e nela constrói novos significados e
devires históricos.
Nesse sentido, o legado deixado pela historiadora S. J. P. na produ-
ção de seu arquivo permanece atemporal, interpelando-nos para novas
incursões e estudos culturais da cidade associados aos debates sobre a
gestão e a acessibilidade dos arquivos pessoais.
Hilda Jaqueline de Fraga • 73

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da
história. São Paulo: Intermeios, 2019. 276 p.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz; VEIGA-NETO, Alfredo; SOUZA FILHO, Alípio de.
Apresentação: uma cartografia das margens. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval
Muniz; VEIGA-NETO, Alfredo; SOUZA FILHO, Alípio de (Org.). Cartografias de
Foucault. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 9-12.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 170 p.

CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: 2. Morar,
cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2003.

CORREIA, José Tavares de Lira. O léxico das divisões e a história da cidade de Recife. In:
BRESCIANI, Maria Stella (Org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. Da
Universidade Federal do RS/UFRGDD, 2001. p. 157-210.

CUNHA, Maria de Fátima da. Mulher e Historiografia: da visibilidade à diferença. Revista


História e Ensino, Londrina, v. 6, p. 141-161, out. 2000.

CUNHA, Maria Tereza; ANDRADE, Ana Luisa Santiago de. Falando sobre arquivos
pessoais: Guardados sobre Sandra JatahyPesavento em tempos salteados (décadas
de 1980-2000). In: SANTOS, Nádia Maria Weber; FRAGA, Hilda Jaqueline de (Org.).
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Dossiê
Sandra Jatahy Pesavento, v. 1, n. 158, p. 85-100, 2020.

FRAGA, Hilda Jaqueline de; SANTOS, Nádia Maria Weber. Acervo Sandra J. Pesavento:
Trajetórias e perspectivas investigativas para a história do tempo presente. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Dossiê Sandra
Jatahy Pesavento, v. 1, n. 158, p. 41-66, 2020.

FUNARI, Pedro Paulo A.; CARVALHO, Aline Vieira. Patrimônio e diversidade: algumas
questões para reflexão. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 4., 2008, Campinas.
Anais..., IFCH/UNICAMP, Campinas, SP. 2008, p. 303-309.

LEENHARDT, Jacques. A teoria do “beco”: história geral e a história cultural da cidade


na obra de Sandra Jatahy Pesavento. In: LEENHARDT, Jacques; FIALHO, Daniela
Marzola; SANTOS, Nádia Maria Weber; MONTEIRO, Charles; DIMAS, Antonio
74 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

(Orgs.). História cultural da cidade: homenagem a Sandra Jatahy Pesavento. Porto


Alegre: Marcavisual/ PROPUR, 2015. p. 17-36.

MARCINIAK, Marcia. Diálogos com Sandra Jatahy Pesavento na obra “Os Sete pecados da
Capital”. Texto apresentado no evento alusivo aos 10 anos do falecimento da
Historiadora Sandra Jatahy Pesavento, Porto Alegre, Centro Histórico-Cultural da
Santa Casa de Porto Alegre, 2018, p. 1-3.

PERROT, Michele. Minha História das Mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p. 16-19.

PERROT, Michele. As mulheres e os silêncios da História. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 78-91; p.
279-316.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidade e Memória: espaços e vivências. Porto Alegre: Ed. da
Universidade/UFRGS, 1991. 133 p.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O espetáculo da rua. Prefeitura Municipal de Porto Alegre:


Ed. Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, 1992. 95 p.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano.
Revista Estudos Históricos, v. 8, n. 16, p. 279-290, 1995. [Cultura e História Urbana].

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os Sete pecados da Capital. Porto Alegre: HUCITEC, 2008.
455 p.

SOUZA, Célia Ferraz. Uma autora em busca das imagens da cidade. In: LEENHARDT,
Jacques; FIALHO, Daniela Marzola; SANTOS, Nádia Maria Weber; MONTEIRO,
Charles; DIMAS, Antonio (Orgs.). História cultural da cidade: homenagem à Sandra
Jatahy Pesavento. Porto Alegre: Marcavisual/PROPUR, 2015. p. 65-75.
3
A PARIS DE SANDRA: ENTRE REFLEXÕES
INTELECTUAIS E CARNETS DE VOYAGE
Luciana Rodrigues Gransotto

A vida de Sandra Jatahy Pesavento 1 esteve atravessada pelas via-


gens. Apesar de ter se estabelecido e se fixado na cidade de Porto Alegre
e ter feito dela a sua maior fonte de pesquisa, os deslocamentos estive-
ram fortemente presentes ao longo do tempo. Na década de 1970, Sandra
e seu esposo, Roberto Pesavento, já realizavam viagens a turismo para
países da Europa; e, mais tarde, quando os filhos nasceram, as viagens
aconteciam em família.
A formação escolar de Sandra, da infância à adolescência – do jar-
dim até o então chamado curso normal –, foi realizada no Instituto de
Educação, em Porto Alegre. Além do ensino do latim, o francês foi um
fator importante para a trajetória que viria no futuro, já que a França
foi o destino internacional de maior impacto nas suas relações e in-
fluência nas suas produções científicas.

No Instituto, o ensino do Português era primoroso. Se estudava Literatura, se


lia os clássicos, se fazia análise sintática de ‘Os Lusíadas’ em aula. Tinha Latim,
que facilitava o reconhecimento das raízes das palavras e a compreensão da
etimologia. E exames orais, que obrigavam os alunos a se empenhar em

1
Parte deste texto foi extraído da minha tese de doutorado, intitulada “As viagens da historiadora:
internacionalização acadêmica e deslocamentos intelectuais de Sandra Jatahy Pesavento (1990/2009)”.
Tese supervisionada pela historiadora Dra Cristina Scheibe Wolff e defendida em julho de 2021.
Doutorado realizado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pelo Programa Interdisciplinar
em Ciências Humanas. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/227061
76 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

termos de organização do pensamento e da fala. Além disso, o ensino do Fran-


cês se estendia pelos quatro anos do Ginásio (PESAVENTO, 2006, p. 15).

Seus trânsitos acadêmicos internacionais começaram no início da


década de 1990, quando a historiadora realizou uma sequência de três
estágios de pós-doutorado, em Paris. O primeiro, em 1990, foi na École
des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). O segundo aconteceu
em 1992, na Université Paris Diderot Paris VII, e, no período de
1995/1997, o terceiro pós-doutorado foi realizado em duas etapas, na
Université de Paris IV, entre 1995/1996 e na EHESS, entre 1996/1997. Mas
o investimento em viagens para esse país começou mais cedo, a consi-
derar um dos arquivos que ela guardou, do ano de 1989, relacionado à
comprovação do conhecimento na língua francesa, encaminhado à Co-
ordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) na
ocasião em que preparava a sua ida para o primeiro estágio. Nesse do-
cumento ela indica já ter estado – para turismo – nas cidades francesas
de Bordeaux, Avignon, Rennes, Poitiers, Rouen, Chartres e Paris, entre
os anos 1975 e 1988 (PESAVENTO, 1989). Daí por diante, ela realiza um
repertório de viagens acadêmicas, sobretudo para a França, onde cons-
tituiu uma rede de pesquisadoras/es de diferentes campos disciplinares,
especialmente nas instituições em que se encontram os laboratórios
voltados aos estudos sobre a América Latina, a exemplo da EHESS e do
Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (IHEAL), ligado à Uni-
versité Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Em minha pesquisa de doutorado, procurei entender como se deu o
processo acadêmico de internacionalização de Sandra e como as experi-
ências das viagens se encontram na pesquisa documental e na produção
historiográfica produzida pela historiadora e de que maneira foram se
Luciana Rodrigues Gransotto • 77

mobilizando ao longo do tempo. Um dos resultados do trabalho eviden-


ciou que as experiências da historiadora serviram tanto para
potencializar a sua produção acadêmica quanto para a qualificação de um
campo, no Brasil, principalmente no Rio Grande do Sul. Para recuperar as
marcas da historicidade dos seus deslocamentos intelectuais e para com-
preender como se configurou a transposição dessas experiências na sua
produção científica, o corpus da pesquisa foi sendo estruturado seguindo
os dados obtidos sobre o percurso da historiadora em termos de forma-
ção, filiações institucionais, aspectos da carreira como docente e suas
primeiras inserções no campo da pesquisa internacional. Esse conjunto
de documentos estão no Acervo Sandra Jatahy Pesavento (ASJP), que é um
arquivo pessoal e intelectual, depositado no Instituto Histórico e Geográ-
fico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), na cidade de Porto Alegre, 2 com a
curadoria da historiadora Dra. Nádia Maria Weber Santos, no qual arma-
zena materiais produzidos e/ou guardados por Sandra ao longo dos 40
anos de trabalho, incluindo a sua biblioteca pessoal. É importante menci-
onar aqui que a constituição desse acervo está relacionada com o
reconhecimento institucional sobre a trajetória de uma historiadora e é
uma fonte de pesquisa histórica sobre a História das Mulheres.
O percurso profissional da historiadora evidencia a pluralidade de
temáticas dos seus trabalhos e projetos, o seu dinamismo, a circulação
em redes intelectuais e o mergulho na experiência internacional. O seu

2
O acervo foi consignado ao IHGRGS pelo esposo e filhos da historiadora em 2014, cinco anos após o
seu falecimento (2009). A equipe curatorial é composta, atualmente, por Nádia Maria Weber Santos,
Luciana Rodrigues Gransotto, Hilda Fraga, Simone Steigleder, Anelda Oliveira, Alexandre Veiga e
Francielle Garcia. Sobre a trajetória de trabalho e de pesquisas relacionadas ao ASJP, sugiro a leitura do
Dossiê Sandra Jatahy Pesavento: acervo, memórias e trajetórias de pesquisa (2020), organizado por
Nádia Maria Weber Santos e Hilda Jaqueline de Fraga, e do artigo “As sensibilidades na pesquisa em
História da Educação: delineamentos a partir do acervo da historiadora Sandra Jatahy Pesavento”, escrito
por Nádia Maria Weber Santos e Maximiliano Martins de Meireles. Referências completas no final do
texto.
78 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

posicionamento teórico privilegiou os estudos sobre o Brasil, contem-


plando as suas duas fases historiográficas, a exemplo da sua pesquisa
sobre a industrialização do Rio Grande do Sul, o envolvimento do país
nas Exposições Universais, também as discussões sobre as fronteiras
culturais e a atenção sempre atenta à sua cidade, Porto Alegre, conside-
rando as sociabilidades e as sensibilidades de um outro tempo. A
exposição do seu trabalho fora do Brasil oportunizava, para além das
suas investigações, a divulgação das pesquisas nacionais com questões
relativas à História Econômica e à História Cultural. Mas a historiadora
não ficou restrita ao campo da História. Isso se reflete em suas viagens
ao participar de eventos de redes internacionais de pesquisadora/es so-
bre a América Latina, conjugadas à sua produção, no campo
interdisciplinar, na análise do urbano em diálogo, sobretudo com a lite-
ratura e com as ciências sociais. A historiadora utilizou, então, a viagem
como uma ferramenta metodológica, científica, que possibilitava a va-
lidação de teorias – trazidas por ela – e a articulação de novos projetos
institucionais. Para Elena Palmero (2010, p. 110), quando pensada como
uma metodologia de trabalho, a noção de deslocamento – e aqui consi-
deramos a viagem como deslocamento geográfico, afetivo e intelectual
– se depara com “[...] uma sensibilidade de transitar fronteiras fluidas,
de circular por esferas públicas em movimento ou de habitar novas co-
munidades imaginadas”.

Eu sempre viajo em função de coisas que já conheço. Sempre faço escolhas,


escolhas onde busco achar coisas que eu já suspeito. Mas existe também o
lado lúdico, viajo por prazer, viajo porque me sinto bem, porque tenho em-
patia, porque quero repetir ou quero conhecer aquilo que ainda não
conheço. Assim, na própria preparação de uma viagem se envolve muito a
tal imaginação criadora [...]. Ou seja, a partir de dados que eu tenho, planejo
Luciana Rodrigues Gransotto • 79

a viagem. Que dados são esses? São cartas, são mapas, são livros, são fotos.
Ao preparar uma viagem, o que eu levaria na minha bagagem de viajante no
espaço? Em primeiro lugar, a atitude com que se depara o outro. Viajar é
encarar a diferença. E, inclusive, se comportar diante da austeridade com
respeito pela diferença. E nessa atitude que encontro a Sandra viajando no
espaço ou viajando na História. Vamos encontrar sempre aquele outro no
tempo. O segundo elemento da minha bagagem de viajante seria a instrução
prévia, a leitura, a preparação da viagem, uma parte extremamente gostosa:
o antes. Onde reúno aquilo que vou adquirir na viagem, a minha expectativa
com a viagem. Vem toda a minha bagagem, a Sandra que consegue saber, lá
naquela igrejinha perdida tem um quadro que também está perdido; ou en-
tão que naquela estradinha, dobrando à direita, ali em algum lugar eu vou
51 encontrar um mosteiro do século doze, talvez tão bonitinho etc. Portanto,
a minha experiência me dita, a minha bagagem própria está presente na
própria bagagem que vou levar (PECHANSKY; TIMM, 2000, p. 95). 3

Trago nesse texto uma outra compreensão para as experiências de


mobilidade de Sandra: a de uma “historiadora-viajante”, tendo os Car-
nets de Voyage como fio condutor. Trata-se de onze cartas escritas e
encaminhadas por ela, por meio de correspondência digital (e-mail) à
família e às/aos amigas/os mais próximas/os, compartilhando a sua ro-
tina em Paris, no inverno de 2004. 4 As escritas de seus registros de
viagem, como documentos pessoais, foram integradas 5 ao acervo da his-
toriadora, passando a ser um objeto de análise, fonte de pesquisa

3
Essa citação acima refere-se a uma fala de Sandra em um encontro em Porto Alegre, no ano de 1999.
A proposta do evento, de certa forma mais informal (para os moldes acadêmicos), era discutir a
criatividade em situações embaraçosas da vida, com senso de humor e, no caso da mesa de debate em
que ela estava, junto a Flávio Dal Mese e Celia Ribeiro, intitulada A Criação da Viagem, tratava-se de
pensar sobre as experiências de viagens.
4
Durante esse período, Sandra também viajou para Londres, permanecendo lá por alguns dias.
5
Além desses Carnets de Voyage, outros materiais da historiadora, relacionados às viagens, foram
recentemente incorporados ao ASJP: coleção de objetos, álbuns com fotografias e diários (cadernetas e
pequenos cadernos, das décadas de 1970, 1980 e início de 1990).
80 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

histórica e literária em que investigadoras/es de diferentes áreas podem


incorporar em suas investigações.
Para composição desse texto, além de extratos dos Carnets de Vo-
yage – considerado como um material inédito, uma vez que a maior
parte desses registros não foi trabalhado cientificamente 6 – trago algu-
mas reflexões da historiadora a respeito da noção de viagem, a partir de
documentos encontrados nas pesquisas feitas junto ao ASJP (e analisa-
dos em minha tese de doutorado), também incluo registros fotográficos,
feitos por mim, em Paris, em dois momentos (2020 e 2021-2022) 7. Por
fim, trago elementos textuais sobre alguns dos roteiros comentados por
Sandra nos seus Carnets de Voyage, os quais eu revisito e trago, além da
contextualização, a minha própria experiência e percepção. Aproveito
para mencionar aqui que meu interesse nos escritos de/sobre viagens
de Sandra – além da sua produção intelectual – aconteceu no ano de
2014, quando tive acesso a esse material, apresentado por Nádia Maria
Weber Santos – que tem sido, desde o falecimento da historiadora, em

6
Em 2017 foi publicado um artigo que escrevi, intitulado “Mulheres viajantes: narrativas e sensibilidades
que aproximam estudos feministas e estudos do turismo”, apresentado no VI CONINTER: Epistemologias
não coloniais e os desafios da construção do conhecimento interdisciplinar, realizado em João Pessoa.
Na parte final desse texto, faço uma breve incursão em alguns lugares de Paris sobre os quais Sandra
escreveu nos Carnets de Voyage, propondo, por um lado, uma discussão sobre as narrativas
contemporâneas de experiências de viagens, as quais estão relacionadas às formas de apreensão do
sentido dos lugares e do mundo. De outro lado, inter-relacionar as noções de gênero-mulher – o “ser”
pesquisadora, o “ser” viajante e o “ser” escritora – de forma a aproximar questões vinculadas a
sensibilidades e subjetividades, provocando reflexões sobre o protagonismo das mulheres na
construção do(s) conhecimento(s).
7
Em 2020 estive na França para realizar um estágio de doutorado sanduíche, por seis meses, vinculado
à Université Rennes 2, com supervisão do historiador Luc Capdevila. Durante esse período, viajei para
Paris algumas vezes para realizar entrevistas e pesquisas de campo para minha tese. Entre 2021 e,
atualmente, em 2022, estou em Paris para cumprir o estágio de pós-doutorado, vinculado à Université
Paris 8 e ao Laboratoire des Études de Genre et de Sexualité (LEGS), sob a supervisão do sociólogo Éric
Fassin. Nessas duas ocasiões me propus a percorrer parte dos roteiros de Sandra, mencionados nos
Carnets de Voyage. Além de conhecer a cidade a partir da perspectiva de uma historiadora, tem sido uma
experiência sensorial que me faz ter mais subsídios para escrever e refletir mais profundamente sobre a
sua trajetória e sobre a noção de viagem.
Luciana Rodrigues Gransotto • 81

2019, guardiã 8 da sua memória intelectual –, na época minha orienta-


dora de mestrado. 9

***

A trajetória intelectual de Sandra no campo da História começou


na década de 1960, vindo a construir a sua obra historiográfica já no
final dos anos 1970. Com atenção especial na passagem do século XIX
para o século XX, Sandra se tornou uma referência contemporânea im-
portante da História Econômica e da História Cultural no Brasil. Ela
promoveu e assumiu diálogos interdisciplinares profícuos, os quais lhe
possibilitaram ocupar um lugar privilegiado em redes científicas inter-
nacionais. Por meio do estudo sobre o seu percurso, percebemos que,
para além dos desdobramentos relativos à produção científica, as expe-
riências trazidas pelas viagens podem impulsionar as carreiras
acadêmicas, a partir dos novos posicionamentos intelectuais e das mu-
danças epistemológicas que propiciam. Sandra se considerava uma
historiadora-viajante no espaço, já que a experiência de viajar, para ela,
é inseparável do conhecimento. E esse foi um posicionamento que ela
assumiu ao longo da sua carreira.

8
Nádia tem estado à frente de eventos em homenagem à historiadora, junto com outros/as parceiros/as
intelectuais de Sandra, do Brasil e do exterior, a citar a I, II, III, IV e V Jornada Sandra Jatahy Pesavento
(nos anos de 2011, 2014, 2017, 2019 e 2021, respectivamente), além de ter escrito diversos textos sobre
a vida e a obra de Sandra e a respeito da constituição do ASJP.
9
Realizei o mestrado no programa Memória Social e Bens Culturais, da Universidade La Salle, Canoas,
entre 2014 e 2016, orientada pela historiadora Dra. Nádia Maria Weber Santos e coorientada pela Dra.
Zilá Bernd, pesquisadora na área das Letras. A dissertação, intitulada “Itinerário histórico-cultural dos
becos de Porto Alegre no final do século XIX”, teve o aporte dos referenciais de Sandra Pesavento,
relacionadas ao espaço urbano, com a história e com os imaginários dos antigos becos de Porto Alegre
no final do século XIX. O trabalho pode ser acessado na sua totalidade no seguinte acesso: http://svr-
net20.unilasalle.edu.br/handle/11690/668
82 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

A viagem, sem dúvida, é algo que me é, exatamente, familiar dentro da minha


vida. Penso que é aquilo que o Caetano chama de errante navegante, uma es-
pécie que vai pegando pedaços daqui e dali e vai compondo história. Eu como
historiadora, Sandra que sou, historiadora, sou como uma viajante do tempo.
O historiador sempre viaja no tempo. E história, já disse alguém, é chegar no
passado, o passado é um país distante, onde lá eles falam uma língua dife-
rente. Chegar no passado, saber como, naquele tempo em que não estive, o
que se passa por fora da experiência do meu viver, o que as pessoas sentiam,
o que pensavam, seus códigos de valores, isso, sem dúvida, é uma viagem que
nós, historiadores, esse pessoal que pensa sempre o que já passou, de uma
certa forma já sabe o fim [...] (PECHANSKY; TIMM, 2000, p. 94-95).

Debruçando-se nas reflexões teóricas sobre a noção que ela tinha


sobre a viagem, essa experiência, para uma/um viajante, como ela
mesma afirmava em seus textos, pode ter dois olhares para um deter-
minado lugar: um olhar científico e um olhar carregado de sensibilidade
e de sentimento, provocando uma apreensão individual do mundo. Bus-
cando na cidade essa perspectiva,

a materialidade do urbano e da natureza são elementos, portadores de emo-


ções e significados, evidenciando o imaterial: o que chamamos de alma
desta cidade e que pode ser expressa por um determinado éthos, um modo
de ser, correspondendo a valores e a um certo procedimento social
(PESAVENTO, 2007, p. 13).

Sua pesquisa, dentro do campo da História Cultural, tendo a cidade


como principal horizonte, enfocava a compreensão das construções
simbólicas, sobretudo pelas noções de representação e dos imaginários,
integrando ainda os conceitos e os estudos acerca da identidade, cida-
dania, exclusão, memória, patrimônio, imagens e sensibilidades. Nos
seus escritos nos Carnets de Voyage, as caminhadas por diferentes
Luciana Rodrigues Gransotto • 83

espaços de Paris são frequentes. A reflexão que ela traz sobre os lugares
demarca os vínculos e as afetividades estabelecidos nessa cidade que foi,
ao mesmo tempo, lugar de flânerie e, sobretudo, de exercício intelectual.
Em 2004, ano em que ela escreveu e enviou as cartas, já se passava mais
de uma década de convivência frequente com Paris. Observando o tre-
cho seguinte, os seus manuscritos de viagem demarcam o seu longo
percurso na história e passam a ter uma dimensão simbólica: ela se
torna tradutora dos conhecimentos adquiridos. A historiadora narra so-
bre o roteiro feito no Marais, uma incursão pelo bairro que guarda
marcas da arquitetura medieval (Figuras 1 e 2).

Como o Marais é um bairro muito antigo, há sempre cantos de rua para se


deter e admirar os prédios, com as poutres aparecendo nas janelas, as pare-
des tortas, parecendo que a casa vai cair para o lado. Gosto bastante deste
recanto em torno da rue des Barres, como a rue du Grenier à l’eau, com sua
casa de esquina, tipo enxaimel (desculpa, França, aqui não usam tal termo),
tortinha, tortinha... Gosto também do Village Saint Paul, espécie de grande
conjunto com uma sucessão de pátios internos e onde se concentram os an-
tiquários do Marais. Tudo ao lado da antiga muralha de Charles V, que
resiste ainda, em parte, integrada às construções que se fizeram em torno
(Carnets de Voyage, PESAVENTO, 2004, s.p.).
84 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 1 – Muralha de Charles V

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).


Luciana Rodrigues Gransotto • 85

Figura 2 – A casa medieval do Marais

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).

1. DENTRE OS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE, O CAFÉ SARAH BERNHARDT

Nas primeiras temporadas em Paris, Sandra ficava hospedada na


Cité International de l’Université de Paris (na Maison du Brésil) ou em
apartamentos alugados, nas regiões próximas das principais universi-
dades que frequentava. Com o tempo e com a maior regularidade das
viagens para a capital francesa, no final da década de 1990, a historia-
dora e a família resolveram investir num apartamento próprio na Place
d’Italie. E, assim como em Porto Alegre, o apartamento de Sandra serviu
como um espaço de sociabilidade, para amigas/os e alunas/os do Brasil
em passagem por Paris e parcerias intelectuais mais próximas,
86 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

vinculadas, por exemplo, aos grupos Clíope, Histoire des Sensibilités e aos
núcleos do GT regional e nacional de História Cultural. Nesse sentido,
percebemos que os modos de fazer, de se estabelecer e de produzir vêm
acompanhados das experiências de alteridade. Conforme Ângela de Cas-
tro Gomes (1993, p. 65), há dois sentidos ligados à sociabilidade: o
primeiro “remete às estruturas organizacionais da sociabilidade através
de múltiplas e diferentes formas que se alteram com o tempo, mas que
têm como ponto nodal o fato de se constituírem nos loci de aprendiza-
gem e trocas intelectuais”; o segundo está relacionado “com as redes
que estruturam as relações entre os intelectuais”, ou seja, o espaço é
tanto aquele geográfico como também comporta afetividade, a partir
dos “vínculos de amizade/cumplicidade e de hostilidade/rivalidade”, as-
sim como da “marca de uma certa sensibilidade produzida e cimentada
por evento, personalidade ou grupos especiais”. Sandra tinha habilidade
em colocar em prática a sociabilidade, exercia um papel quase diplomá-
tico, reafirmando o seu compromisso com suas parcerias intelectuais,
da França e do Brasil, assim como com as suas amizades, de dentro ou
fora da academia. O Café Sarah Bernhardt (Figura 3) foi um lugar de en-
contros e um dos espaços estratégicos de engajamento que a
historiadora encontrou para a manutenção desses elos.

Falei em café? Meu preferido para encontrar as pessoas é o Sarah Ber-


nhardt, na Place du Châtelet, ao lado do Thêatre de La Ville, outrora dirigido
pela atriz, no século XIX. Além de ser central, ao lado da Tour Saint Jacques,
é todo decorado com fotos da Divine Sarah nos diferentes papéis que ela
interpretou (Carnets de Voyage, PESAVENTO, 2004, s.p.).
Luciana Rodrigues Gransotto • 87

Figura 3 – Café Sarah Bernhardt

Fonte: acervo pessoal da autora (2020).

2 MUSÉE D’ORSAY E A ARTE IMPRESSIONISTA

Para Sandra, a viagem é uma experiência que se estabelece com o


“outro”, com o diferente, sempre em uma relação de alteridade. Como
não há viagem sem narrativa, o relato do viajante é uma tradução do
que ela/ele vê, conhece, observa e apreende de um outro espaço para
transmitir a um/uma leitor/a, a um certo público, alguém que não teve
aquela experiência. Na etapa posterior ao vivido, ao final da viagem, o
viajante se torna narrador e estabelece um discurso. Sandra então re-
flete que, na sua perspectiva, “[...] viajar é colecionar, e o viajante é o
criador da lembrança. Com aquelas lembranças de um caminho percor-
rido, o viajante colecionador é aquele que fixa imagens que permitem a
recriação do mundo em um espaço limitado” (PESAVENTO, 2001, tradu-
ção nossa). Sendo uma forma de viajar no tempo e no espaço, as
88 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

exposições de arte serviram de inspiração para a historiadora. Ao atri-


buir os significados de cada obra ou do conjunto de obras, Sandra
promovia um diálogo, cruzando conhecimentos da história e da história
da arte. É o que vemos nos trechos a seguir em que ela escreve sobre
duas visitas ao Musée d’Orsay. Instalado em uma antiga estação ferro-
viária, o museu possui uma das maiores coleções impressionistas e pós-
impressionistas do mundo, da pintura à arquitetura, passando pela es-
cultura, artes decorativas, fotografia.
A primeira narrativa refere-se aos trabalhos de Monet e Van Gogh
(Figuras 4 e 5), e a segunda, à artista da Belle Époque, Loïe Fuller. Nos
manuscritos, Sandra faz dialogar, mesmo sem citá-las, as noções de re-
presentação e imaginário. A representação, derivada do próprio
imaginário, era, para a intelectual, “entendido como esse sistema de
ideias e imagens de representação coletiva que os homens constroem
através da história, para dar significado às coisas”. E o imaginário “é
sempre um outro real, e não o seu contrário [...] compõe-se de repre-
sentações sobre o mundo do vivido, do visível e do experimentado, mas
também se apoia sobre os sonhos, os desejos de cada época [...]”
(PESAVENTO, 2008, p. 14).

Como o Orsay é um museu do século XIX, a exposição remonta às primeiras


experiências científicas com a percepção ótica, os jogos de luz e sombra, às
sensibilidades com relação ao som, à forma, à cor. De onde temos Monet e
a catedral de Rouen (os vários quadros que pintou segundo as horas do dia),
Van Gogh e uma representação de uma noite estrelada (...) (Carnets de Vo-
yage, PESAVENTO, 2004, s.p.).
Luciana Rodrigues Gransotto • 89

Figura 4 – Monet e a Catedral de Rouen

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).


90 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 5 – Uma noite estrelada, de Van Gogh

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).

Fui ao Musée d’Orsay com o Roberto, para que ele visse a exposição sobre as
origens da abstração [...] nesta expo passam dois curtos filmes dos irmãos
Lumière sobre Loïe Fuller, a dançarina da belle époque que dançava fazendo
evoluções com os panos de seu vestido e sobre o qual se projetavam jogos
de cores, dando a ilusão de ser uma borboleta, uma chama etc. Très interes-
sant. Toulouse Lautrec fez cartazes para as apresentações da moça no
Moulin Rouge (Carnets de Voyage, PESAVENTO, 2004, s.p.).

Em dezembro de 2021, duas homenagens foram feitas à artista


dançarina, atriz e coreógrafa estadunidense, Loïe Fuller. A primeira,
uma performance de dança feita pela coreógrafa e artista visual Ola Ma-
ciejewska (Figura 6). Em meio a obras de arte do museu, a artista
Luciana Rodrigues Gransotto • 91

explorou a relação entre o corpo e o tecido, ressignificando o trabalho


de Fuller, ainda colocando a sua percepção e sensibilidade no trabalho.
A segunda homenagem foi um concerto no auditório do museu. Intitu-
lada La fée lumière, dirigida por Julien Masmondet e tocada pelo grupo
Les Apaches, com destaque para o trabalho de Coline Jaguet, harpista
francesa (Figura 7). O fio condutor foi a figura mítica de Fuller, inte-
grando imagens projetadas de filmes e apresentações originais. Loïe
criava performances vanguardistas e teve representatividade entre ar-
tistas da França, especialmente no cinema, como foi o caso dos irmãos
Lumières, de Alice Guy e Georges Méliès. Foi criadora da Serpentine
Dance, composição que integrava corpo, tecidos (trajes confeccionados
em seda), luzes, cores e imagens em movimento. Ela renovou as artes
cênicas a partir do uso de efeitos de luz e véus que dançavam no espaço,
utilizando-se de duas varas que se estendiam ao longo dos seus braços.
O primeiro filme colorido da história do cinema, produzido em 1896,
mostra os movimentos da dança criada pela fée lumière, como Loïe foi
conhecida.
92 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 6 – Performance de Ola Maciejewska

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).

Figura 7 – Concerto La fée lumière

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).


Luciana Rodrigues Gransotto • 93

3 OS PALIMPSESTOS DA CIDADE

Conforme Fernanda Arêas Peixoto (2015, p. 180), “a viagem marca,


simbolicamente, o alargamento da teoria composta antes; teoria que, a
partir daí, se desterritorializa, descolando-se com o próprio viajante –
dos limites nacionais”. Na aproximação com o “viajante-colecionador”
e ao tomar a viagem como narrativa, Sandra se torna uma historiadora-
colecionadora de viagens. Assim, a viagem, como prática intelectual, ad-
quire o sentido de produção do conhecimento e contribuem para a
constituição do “ser” e “estar” intelectual. Sandra transformava as suas
viagens em um laboratório intelectual privilegiado.

Fui até o Museu de Arte Moderna no Centro Pompidou. Só para rever um


quadro de Paul Klee, Cidades florentinas [Figura 8]. Aquilo é a representa-
ção mais perfeita do palimpsesto urbano, com as formas das ruas e casas
umas sobre as outras, misturadas. É muito lindo (Carnets de Voyage,
PESAVENTO, 2004, s.p.).

Pensando sempre nas transformações do mundo e da urbs, ela en-


xergava a cidade como palimpsesto, ideia que se refere à imagem
arquetípica para a leitura do mundo. Para uma intelectual das cidades,
conforme Luciana Gransotto e Cristina Scheibe Wolff (2017, 2019), a vi-
agem é um processo cognitivo: parte de um corpo que se desloca e
escuta, caminha, observa, percebe, sente e utiliza, em seguida, suas ca-
pacidades críticas de escrever de uma maneira científica. A viagem, para
Sandra, como historiadora, fez parte de sua técnica exploratória, do
exercício hermenêutico em relação ao passado.

Palavra grega surgida no século V a.c., depois da adoção do pergaminho para


o uso da escrita, palimpsesto veio a significar um pergaminho do qual se
94 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

apagou a primeira escritura para reaproveitamento por outro texto. A es-


cassez de pergaminhos nos séculos de VII a IX generalizou os palimpsestos,
que se apresentavam como os pergaminhos nos quais se apresentava a es-
crita sucessiva de textos superpostos, mas onde a raspagem de um não
conseguia apagar todos os caracteres antigos dos outros precedentes, que
se mostravam, por vezes, ainda visíveis, possibilitando uma recuperação.
(PESAVENTO, 2004, p. 26).

Figura 8 – Paul Klee, Cidades florentinas, 1926

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).

4 AS PASSAGENS COBERTAS DE PARIS

Sandra viajava e voltava para Porto Alegre com materiais de via-


gens que serviam como ferramenta para ilustrar as suas aulas, nos
cursos de história e arquitetura, sobretudo com gravuras, textos e com
a projeção de imagens a partir de slides de fotografias – um carretel por
Luciana Rodrigues Gransotto • 95

viagem – registradas por ela. Também compartilhava livros com colegas


da UFRGS, bolsistas e orientandas/os. Um dos roteiros que a historia-
dora fazia in loco e depois levava para a sala de aula era o passeio pelas
passages couverts de Paris. 10

[...] De lá, seguimos pelos boulevards para visitarmos as passagens de Paris.


Sempre faço este passeio para os que chegam: são aquelas galerias cobertas,
cobertas de ferro e vidro, construídas entre o final do século XVIII e a pri-
meira metade do XIX, e que funcionavam como ruas internas, cheias de
boutiques, aonde as pessoas iam para ver e serem vistas. São belíssimas e
sempre retorno com gosto (Carnets de Voyage, PESAVENTO, 2004, s.p.).

Xe. Arrondissement é o bairro mais popular e com uma região habitada, so-
bretudo, por indianos. Há neste canto da cidade algumas passagens, ou
galerias cobertas, um tanto distintas daquelas de que fala Walter Benjamin.
A passagem Brady, por exemplo, dá a impressão de que estamos em Calcutá,
a do Prado, no Cairo! (Carnets de Voyage, PESAVENTO, 2004, s.p.).

No quadro de pensadoras/es e suas interpretações sobre sensibili-


dades e imagens, Walter Benjamin foi um dos intelectuais que Sandra
privilegiou, sobretudo pela discussão a respeito do universo cultural e
das representações coletivas do século XIX. Ele dedicou parte de sua
obra às passagens parisienses, tentando capturar a arquitetura e o es-
pírito desse lugar, ainda fazendo uma análise da sociedade burguesa da
época. Refletiu sobre o significado filosófico que a nova modernidade

10
Embora eu não tenha conhecido Sandra pessoalmente, pude compartilhar um pouco das suas
flâneries e deambulações por Paris, uma vez que os roteiros que a historiadora fazia com suas/seus
estudantes e amigas/os acabaram sendo refeitos e ressignificados por elas/eles após a sua morte. Foi o
que aconteceu em 2014, primeira vez que estive em Paris. A profa. Nádia Maria Weber Santos, que foi
orientanda e amiga da historiadora, apresentou-me as passagens cobertas – lugar que Sandra tanto
apreciava e fazia questão de levar as pessoas para conhecerem a história e o lugar. Esse exercício acabou
se repetindo posteriormente, nos anos de 2020 e 2021/2022, quando pude voltar a percorrer esses
caminhos, compartilhando com outras amigas essa experiência.
96 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

urbana trazia, apontando as dinâmicas culturais, artísticas, burguesas


e políticas da primeira metade do século XIX. O roteiro feito por Sandra
das passagens cobertas serviu para a compreensão das dinâmicas da
urbs. Mais uma vez, os manuscritos reforçam que as sensibilidades e as
impressões da historiadora estão atravessadas pelo conhecimento.

Figura 9 – Galerie Vivienne

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).


Luciana Rodrigues Gransotto • 97

Figura 10 – Passagem Brady

Fonte: acervo pessoal da autora (2021).

***

Na arena de produção do conhecimento, viajar, na década de 1990


– e mesmo de 2000 – era a maneira de multiplicar contatos e interagir,
de buscar outras fontes, de ter elementos para produzir, o que também
contribuía para adquirir capital cultural e científico. Os deslocamentos
de Sandra – espaciais, teóricos e afetivos –, a exemplo de caminhos e
roteiros percorridos e narrados pela historiadora em Paris, possibilita-
ram uma maior sensibilização para as suas pesquisas. Dessa forma,
consideramos a viagem com o seu caráter empírico, crítico e complexo
98 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

e a sua potencialidade em termos de emancipação pessoal e intelectual,


reconhecendo os aprendizados, as dificuldades, os desafios e, junto com
Doreen Massey (2008), os seus efeitos nas trajetórias.
Na sua relação íntima e profunda com a viagem – a viagem, como
um eterno devir –, ela nos deixou um instigante e produtivo arsenal
teórico e empírico, fruto do seu empreendimento intelectual internaci-
onal. O sentido da viagem, na carreira e na vida pessoal de Sandra, está
relacionado com a sua motivação, projetada pelo conhecimento adqui-
rido nas experiências acumuladas. Nessa perspectiva, concordamos
com Fernanda Arêas Peixoto (2015, p. 13-14) quando escreve que as via-
gens de intelectuais “tendem a combinar lazer e estudo; profissão,
pesquisa e turismo; descoberta e reconhecimento; deslocamento geo-
gráfico, recuo temporal e transformação de si”. Os manuscritos
compartilhados pela historiadora foram uma forma do desejo de mate-
rialização da sua experiência, da sua vontade de compartilhar e do
testemunho de uma historiadora-viajante.

REFERÊNCIAS

GOMES, Ângela de Castro. Essa gente do Rio... os intelectuais cariocas e o modernismo.


Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, p. 62-77, 1993.

GRANSOTTO, Luciana Rodrigues. As viagens da historiadora: internacionalização


acadêmica e deslocamentos intelectuais de Sandra Jatahy Pesavento (1990/2009).
Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas) – Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2021.

GRANSOTTO, Luciana Rodrigues; WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres viajantes:


narrativas e sensibilidades que aproximam estudos feministas e estudos do
turismo. In: CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM CIÊNCIAS
SOCIAIS E HUMANIDADES, 6, 2017, João Pessoa. Anais... v. 1, p. 255-267, 2017.
Luciana Rodrigues Gransotto • 99

GRANSOTTO, Luciana Rodrigues; WOLFF, Cristina Scheibe. Voyages de femmes


intellectuelles du 21e siècle. Formes de subjectivités dans l’imprimé et les
publications numériques. Revue Archée, v. 1, p. 1-6, 2019.

GRANSOTTO, Luciana Rodrigues. Itinerário histórico-cultural dos becos de Porto Alegre no


final do século XIX. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Bens Culturais) –
Universidade La Salle, Canoas, 2016.

MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2008.

PALMERO, Elena. Deslocamento. In: Zilá Bernd (org.). Dicionário das mobilidades
culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010. p. 109-127.

PECHANSKY, Clara; TIMM, Liana. A criação da viagem: bagagem para um bom roteiro.
In: PECHANSKY, Clara; TIMM, Liana (orgs.). Artistas da vida, ano 1. Porto Alegre:
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2000. p. 89-110.

PEIXOTO, Fernanda Arêas. A viagem como vocação. Itinerários, parcerias e formas de


conhecimento. São Paulo: Edusp, 2015.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História Cultural: caminhos de um desafio contemporâneo.


In: PESAVENTO, Sandra Jatahy; SANTOS, Nádia Maria Weber; ROSSINI, Miriam.
Narrativas, Imagens e Práticas Sociais. Porto Alegre: Editora Asterisco, 2008.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível sob o olhar do outro: Jean-Baptiste
Debret e o Rio de Janeiro (1816-1831). Nuevo Mundo Mundos Nuevos [on-line], 2007.
Disponível em: https://journals.openedition.org/nuevomundo/3669

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sandra Pesavento e a Nova História Cultural. [Entrevista


cedida a] Ademar Vargas. Jornal da Universidade, n. 85, página 15, mar. 2006. Material
disponível no ASJP, gavetas.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. [Correspondência]. Carnets de Voyage. Não paginado. Paris,


dez. 2004. E-mail. Material disponível em ASJP.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Images & words: how to be modern & exotic. [Documento]. In:
Brazil in the 19th century universal exhibitions, 2001. Não paginado. Material
Disponível em ASJP, caixa 10.
100 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Pedido de bolsa à Capes. [documento]. Não paginado. Porto
Alegre, 1989. Material disponível na ASJP, caixa 1.

SANTOS, Nádia Maria Weber; FRAGA, Hilda Jaqueline de. Acervo, memórias e trajetórias
de pesquisa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, Dossiê Sandra Jatahy Pesavento, v. 1, n. 158, p. 1-3, 2020. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/revistaihgrgs/issue/view/4163

https://seer.ufrgs.br/revistaihgrgs/article/view/109688/59404

SANTOS, Nádia Maria Weber; MEIRELES, Maximiano Martins de. As sensibilidades na


pesquisa em História da Educação: delineamentos a partir do acervo da historiadora
Sandra Jatahy Pesavento. História da Educação, 2021. Disponível em:

Disponível em: https://seer.ufrgs.br/asphe/article/view/102367/pdf

SANTOS, Nádia Maria Weber; VEIGA, Alexandre. Sandra Jatahy Pesavento, 75 anos. Porto
Alegre: IHGRGS, 2021a (E-Book). Disponível em: http://ihgrgs.org.br/arquivo/
AcervoSandraJP-75anos.pdf
PARTE II

ARQUIVOS, DIÁLOGOS E
DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
4
UM PALÁCIO, UM ARQUIVO E A CONSTRUÇÃO
SOCIAL DO PATRIMÔNIO
Ana Lúcia Goelzer Meira

INTRODUÇÃO

Na V Jornada Sandra Pesavento, realizada em 2021, propus uma re-


flexão sobre a trajetória da preservação do patrimônio cultural no Rio
Grande do Sul com base nos acervos públicos que pesquisei durante o
Doutorado no Programa em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no qual tive o
privilégio de ter sido orientada pela Profa. Dra. Sandra Pesavento. Além
de enriquecer a formação acadêmica em Arquitetura e Urbanismo, a
convivência com a Professora Sandra influenciou de maneira decisiva a
minha atuação profissional no campo do patrimônio cultural.
Nessa pesquisa foram consultados os arquivos da Equipe do Patri-
mônio Histórico e Cultural da Prefeitura Municipal de Porto Alegre
(EPAHC), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado
(IPHAE), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) – tanto na Superintendência do Rio Grande do Sul (IPHAN-RS)
quanto no Arquivo Central do IPHAN, no Rio de Janeiro (ACI-RJ). Este
último se localiza no antigo edifício-sede do Ministério da Educação e
Saúde (MES), o qual atualmente se denomina Palácio Capanema em ho-
menagem ao ministro Gustavo Capanema – o incentivador da sua
construção.
104 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

O Palácio materializou o comprometimento do Governo Vargas


com a saúde, a cultura e a educação, que se pretendia universal e gra-
tuita – fato atestado pela frase gravada sobre a entrada principal: “O
ensino é matéria de salvação nacional” (VARGAS apud SOARES, 2021, p.
83). A construção do edifício iniciou em 1937 e foi inaugurado em 1945
(SEGRE, 2013). Contava com 16 pavimentos e uma generosa área externa
com jardins que, juntos, ocupavam uma área de 27.536 m2 (PALÁCIO...,
[202?]). Inicialmente, no edifício, funcionavam setores administrativos
do MES, áreas de atendimento ao público, arquivos, biblioteca, salão de
exposições, teatro, restaurante panorâmico e outros espaços como a es-
planada com pilotis (Figura 1).

Figura 1 – Palácio Capanema: os pilotis e o painel de azulejo de Portinari

Fonte: Sandra Branco Soares, ca. 2020. Acervo pessoal.


Ana Lúcia Goelzer Meira • 105

No Palácio foi implantado o órgão que se incumbiu da preservação


do patrimônio cultural em nível nacional, o atual IPHAN, que fazia parte
da estrutura do recém-criado Ministério. Com isso, consolidou-se o vín-
culo entre a preservação do patrimônio cultural e o discurso
vanguardista representado pelo edifício. De fato, a convivência entre o
antigo e o novo, de maneira harmônica, caracterizou a trajetória do
IPHAN (LYRA, 2016). Desde a sua criação, um grupo de intelectuais mo-
dernos ajudou a definir as escolhas sobre bens que conformavam a
identidade nacional e os rumos da sua preservação: Mário de Andrade,
Lucio Costa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Gilberto
Freire, Sérgio Buarque de Holanda sob a direção de Rodrigo Melo Franco
de Andrade. Esse fato foi inédito em nível internacional, pois geral-
mente, em outros países, foram os setores conservadores da sociedade
que se ocuparam da preservação do patrimônio cultural.
Como parte integrante da estrutura do IPHAN estava o Arquivo
Noronha Santos, hoje Arquivo Central da Instituição no Rio de Janeiro.
O poeta Carlos Drummond de Andrade foi seu diretor durante muitos
anos (CHUVA, 2009). Outros arquivos relacionados à educação e à cul-
tura também estavam sediados no Palácio, como os acervos da Divisão
de Música e Arquivo Sonoro, cujo início remonta as peças trazidas por
D. João VI e onde estão, inclusive, os manuscritos das óperas de Carlos
Gomes como Il Guarany.
As políticas arquivísticas e a formação de acervos “[...] mantém
uma íntima relação, oscilando entre a vontade e a possibilidade de re-
conhecimento e integração de peças documentais tidas como de
significativa importância, seja informacional, seja simbólica, para a so-
ciedade” (TROITIÑO, 2018, p. 93). Essa relação pode ser observada na
106 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

relação entre o IPHAN e o ACI-RJ desde os anos 1930. No Arquivo há


registros de toda a trajetória da instituição, incluindo documentos, fo-
tos e desenhos memoráveis decorrentes do objetivo de estabelecer uma
identidade nacional brasileira (décadas depois substituída pelo reco-
nhecimento da diversidade cultural). No caso do Rio Grande do Sul, há
que se destacar os preciosos registros de Lucio Costa de sua viagem às
Missões, em 1937, que incluem fotos e desenhos de bens remanescentes
da experiência jesuítico-Guaraní que já não existem mais, assim como
os esboços iniciais para o projeto do Museu das Missões.
A mudança da capital federal para Brasília e a criação do Ministério
da Educação e Cultura (MEC) determinaram mudanças nos usos do edi-
fício. O uso cotidiano e a falta de manutenção do Palácio Capanema
acabaram por deteriorar suas estruturas físicas, e algumas obras pon-
tuais ocorreram a partir dos anos 1970. Em 2014, iniciou-se uma longa e
dispendiosa obra de restauração. Durante a última etapa, iniciada em
2019, com custo de 57,8 milhões de reais (RESTAURAÇÃO..., 2019), ainda
não finalizada, os diversos setores que funcionavam no edifício foram
provisoriamente transferidos para outros locais alugados ou cedidos.
Subitamente, nos dias que antecederam a V Jornada, esses bens
culturais – o edifício, os documentos, as obras de arte, os mobiliários –
foram envolvidos numa situação inusitada que reflete o descaso atual
com as políticas públicas no campo da educação e da cultura: surgiram
as notícias sobre a privatização do Palácio, por parte do Governo Fede-
ral, e sobre a precária situação dos acervos. Em função disso, a reflexão
pretendida no texto inicial foi substituída pela defesa desses importan-
tes patrimônios culturais brasileiros.
Ana Lúcia Goelzer Meira • 107

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO PATRIMÔNIO

O universo do patrimônio está relacionado a escolhas, por parte da


sociedade, dos bens que devem ser preservados para o futuro. Essas es-
colhas não são uma unanimidade. O que é considerado patrimônio por
um grupo pode não ser para outro (MEIRA, 2019). Uma questão polêmica
se relaciona a quem cabe escolher, ou seja, quem está legitimado a re-
presentar a sociedade nessas decisões. Bourdieu (1989) esclarece que o
Estado detém o monopólio da nomeação oficial: a atribuição de declarar
oficialmente o que é patrimônio. A União, os estados e os municípios
estão aptos a oficializarem os patrimônios por meio de leis, portarias e
outros mecanismos legais. Podem ser leis ou decretos de tombamento,
legislações relativas a planejamento urbano, a inventários etc. Porém, a
oficialização como patrimônio não exclui o fato de que diferentes gru-
pos sociais atribuem valor a determinados bens culturais que adquirem,
assim, significado patrimonial independentemente da sua legitimação
oficial.
Além disso, os valores atribuídos a determinados bens se modifi-
cam com o tempo e com o lugar: as referências culturais são diferentes
na região da Serra Gaúcha, com predominância dos descendentes de
imigrantes europeus em relação aos grupos sociais que vivem no sul do
estado, mais próximos das fronteiras platinas. A atribuição de valores
vai ser diferente também em função do tempo, pois as culturas presen-
tes nesses lugares não são estáticas.
Os bens patrimoniais não possuem intrinsicamente o atributo de
se constituírem em patrimônio. Trata-se de uma construção social que
às vezes demora anos para ser reconhecida. Há poucos patrimônios que
são unanimidade. No Rio Grande do Sul, temos o exemplo das ruínas da
108 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

igreja do antigo Povo de São Miguel Arcanjo, popularmente conhecida


como ruínas de São Miguel das Missões (Figura 2), cujo contexto foi di-
versas vezes analisado por Sandra Pesavento. Outros são reconhecidos
por determinados grupos e reprovados por outros, como a casa de David
Canabarro, em Santana do Livramento, que é reverenciada pelos grupos
tradicionalistas gaúchos e criticada pelos grupos ligados aos movimen-
tos negros e aos direitos humanos devido à participação do comandante
farroupilha no Massacre de Porongos.

Figura 2 – Ruínas de São Miguel das Missões

Fonte: ACI-RJ. Autoria e data desconhecidas.

Alguns bens patrimoniais são percebidos e valorizados, inicial-


mente, por algumas pessoas que, aos poucos, vão atraindo a atenção de
outros setores da sociedade, como ocorreu em relação à Usina do
Ana Lúcia Goelzer Meira • 109

Gasômetro, em Porto Alegre. Ameaçada de demolição, a Usina foi abra-


çada pelos grupos mais diretamente relacionados à sua existência – os
eletricitários, que reconheciam sua importância na geração de energia
para o desenvolvimento da cidade; os arquitetos, que compreendiam a
relevância do patrimônio industrial abandonado como marco urbano
local; e os artistas plásticos, que anteviam as possibilidades de utilização
do espaço como centro cultural. Passados alguns anos, amplos setores
reconhecem a importância simbólica da Usina e da sua chaminé, mar-
cando o limite da península onde se desenvolveu a cidade.
Diz Jeudy (1990, p. 6) que os bens patrimoniais estruturam redes de
relações sociais que ajudam a criar laços de pertencimento e observa
que “assim como um indivíduo viveria mal sem memória, também uma
coletividade precisa de uma representação constante do seu passado”.
O patrimônio tem um caráter de representação e seus significados se
inscrevem no imaginário social. Sandra Pesavento (1998, p. 36) ressalta
que o imaginário social abarca “as dimensões do sonho, da utopia, do
inconsciente coletivo e também da ilusão do espírito, das intenções de-
liberadas, das seduções ideológicas”. Essas dimensões podem ser
percebidas em relação ao Palácio Capanema, além de outras especifici-
dades que ele apresenta, como o fato de já ter nascido com caráter
monumental. Lyra (2016) observa que a atribuição de valor cultural a
edificações antigas, promovendo-as a monumentos, remonta ao início
do século XV. A sede do MES, logo após sua construção, já recebeu a ca-
racterização de Palácio (SEGRE, 2013). E pouco depois da inauguração foi
tombado como Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
110 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO PATRIMÔNIO E O PALÁCIO CAPANEMA

A trajetória do Palácio Capanema apresenta muito bem a comple-


xidade no processo de reconhecimento de um bem como patrimônio
cultural, abarcando as contradições e as especificidades referidas ante-
riormente. Foi o primeiro edifício representativo da arquitetura
modernista onde estão presentes os cinco pontos propostos pelo
franco-suíço Le Corbusier – arquiteto conhecido mundialmente como
representante do Movimento Moderno. São eles: planta-baixa livre, fa-
chada livre, janelas em fita, terraço jardim e pilotis (o uso de pilotis
liberava o nível do térreo para uso dos pedestres). Além disso, o Palácio
apresentava uma bela integração entre arquitetura, paisagismo e obras
de arte.
O grupo responsável pelo projeto foi coordenado por Lucio Costa e
era constituído por jovens arquitetos: Oscar Niemeyer, Affonso Reidy,
Carlos Leão, Jorge Moreira e Ernani Vasconcellos. Cabe mencionar que,
na mesma época, Lucio Costa trabalhava no projeto para o Museu das
Missões no Rio Grande do Sul e, poucos anos depois, projetaria o Plano
Piloto de Brasília, declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO. O pai-
sagismo do Palácio foi projetado por Roberto Burle Marx, cujo sítio de
experimentações botânicas e paisagísticas, situado no Rio de Janeiro, foi
também, recentemente, incluído na lista do Patrimônio Mundial. Artis-
tas plásticos como Candido Portinari (Figura 3), Bruno Giorgi e Celso
Antônio contribuíram com esculturas, pinturas e painéis decorativos
nos espaços internos e externos.
Ana Lúcia Goelzer Meira • 111

Figura 3 – Detalhe do espaço interno com painel de Portinari

Fonte: Sandra Branco Soares, ca. 2020. Acervo pessoal.

Santos (2014) ressalta que, para os autores do livro Le Corbusier e o


Brasil, os alunos superaram o mestre. A partir do convite para prestar
uma consultoria ao projeto arquitetônico do MES, em 1936, os arquitetos
brasileiros desenvolveram uma arquitetura moderna e brasileira que su-
plantou a influência do mestre europeu. SEGRE (2013) transcreve o
depoimento da arquiteta Carmen Portinho, registrado por Hugo Segawa,
sobre um encontro na Europa, quando ela mostrou as fotos da obra fina-
lizada. Le Corbusier teria reagido de maneira violenta, e ressaltou que
jovens arquitetos brasileiros tinham realizado um edifício moderno que
ele próprio não havia, ainda, conseguido concretizar na Europa.
Geralmente, um patrimônio arquitetônico é preservado com o ob-
jetivo de projetar, no futuro, o passado rememorado. No caso do
Capanema, a relação entre passado e futuro não existiu, pois ele foi
112 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

tombado pouco mais de dois anos após a inauguração. Ou seja, era uma
edificação nova, uma construção modernista que não rememorava o
passado, mas sim o que de mais novo existia em termos de arquitetura
em nível mundial.
Não causou surpresa, entre os poucos arquitetos modernos atuan-
tes na época, o seu reconhecimento como Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Diz a justificativa, no processo de tombamento, “[...]
tratar-se da primeira edificação monumental destinada a sede de ser-
viços públicos, planejada e executada no mundo, em estrita obediência
aos princípios da arquitetura moderna” (SEGRE, 2013, p. 489).
O vanguardismo arquitetônico consubstanciado no projeto é am-
plamente reconhecido em nível nacional e internacional. Os principais
estudiosos da arquitetura no Brasil devotam-lhe respeito:

Para Carlos Eduardo Comas o palácio também é “protótipo e monumento”;


para Ruth Verde Zein é “citação obrigatória, marco de qualquer abordagem
histórica da arquitetura moderna brasileira”; para Mauricio Lissovsky e
Sergio de Sá, “nascida monumental, a construção deste edifício assume
desde logo caráter mitológico”; para Ítalo Campofiorito o edifício é “grácil,
gentil e forte [...] tocado de garbo, delicadeza e vigor [...] perfeito Retrato do
Modernismo quando Jovem”. (SANTOS, 2014, s. p.).

Esse reconhecimento oficial foi muito precoce em âmbito mundial,


pois só quarenta anos depois seria instituída uma organização civil, a
partir da Holanda, com o fim de documentar e preservar as criações do
Movimento Moderno, denominada Documentation and Conservation of
Modern Movement (DOCOMOMO). A presidenta do DOCOMOMO interna-
cional – a arquiteta portuguesa Ana Tostões – e o presidente da
organização no Brasil declararam recentemente que “o Palácio
Ana Lúcia Goelzer Meira • 113

Capanema é ícone de valor incalculável” (TOSTÕES et al., 2021, s.p.). O


francês Jean-Louis Cohen, um dos mais reconhecidos historiadores da
arquitetura moderna, disse que: “Objeto histórico notável, o edifício
continua a ser uma referência essencial tanto para a história da arqui-
tetura do século 20 como para a cultura de uma maneira geral. Ainda
mais pelo fato de ter criado, no momento da sua realização, um novo
tipo de arranha-céu [...]” (COHEN, 2013, p. 26).
Atualmente, o reconhecimento sobre a importância do edifício entre
os arquitetos é unânime, conforme pode ser observado nas várias mani-
festações aqui referidas. Mas, quando foi construído, os apoiadores do
projeto arquitetônico eram ampla minoria. O panorama da arquitetura
vigente na época variava do ecletismo ao neocolonial e chegava ao Art
Déco. A Escola Nacional de Belas Artes, o mais antigo centro de formação
de arquitetos no país, defendia a arquitetura neocolonial como expressão
da identidade nacional e, portanto, fazia franca oposição à arquitetura
moderna, que taxava depreciativamente como “internacional”.
Muitos outros grupos sociais opunham-se ao edifício, pois se tra-
tava de um estilo arquitetônico que não tinha precedentes no país e era
completamente diferente dos padrões estéticos a que estavam acostu-
mados. Segundo a Vanguarda (apud SOARES, 2021, s.p.), o edifício era
muito “[...] esquisito e escandalosamente maluco”. Foi ridicularizado
durante anos, segundo Capanema (apud SOARES, 2021). Era conhecido
como “Capanema Maru”, alcunha que relacionava o nome do seu ideali-
zador, ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, com as formas
dos navios japoneses – os marus, que atracavam no porto de Santos. O
poeta Carlos Drummond de Andrade (apud SOARES, 2021, p. 27) regis-
trou uma oposição de caráter ideológico: “Era um projeto demasiado
114 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

estúrdito [sic] e mesmo subversivo, pois, visto do alto, (assim o declarou


um grave articulista, numa grave revista ligada a círculos militares) ti-
nha aspecto de foice e martelo”. Portanto, o seu tombamento em nível
nacional deve ter causado estranhamento em diversos grupos da socie-
dade e agradado aos poucos intelectuais de vanguarda da época.

3 NOVOS SENTIDOS EM RELAÇÃO AO PALÁCIO CAPANEMA

A utilização original do Palácio Capanema foi se modificando ao


longo do tempo e passou a incluir “[...] o usuário cotidiano, a população
que procurava resolver problemas relativos a questões educacionais ou
até mesmo adquirir material escolar a preços mais convidativos. [...].
Construía-se a memória de um edifício de fato público... e útil” (SOARES,
2021, p. 13). Em 1994 foi criada a Sociedade de Amigos do Palácio Gustavo
Capanema, que teve entre seus membros o sociólogo Darcy Ribeiro,
dentre outros (SEGRE, 2013).
Com a mudança da capital federal para Brasília, cujo Plano Piloto
também teve a autoria de Lucio Costa, o Palácio assimilou novos usos.
Esclarece Lia Motta (2021) que instituições federais como a Fundação
Nacional de Arte (Funarte), a Fundação Palmares, o Instituto Brasileiro
de Museus (Ibram), o IPHAN, a Fundação Biblioteca Nacional (FBN),
adaptaram suas atividades e recebiam uma média de 42 mil visitantes
por ano. Segundo a autora, o Palácio

[...] é um dos lugares marcantes da cultura e educação local, estadual e na-


cional, pujante em seus usos e em sua história. O prédio, atualmente em
obras, abriga instituições federais que depois da mudança da capital federal
para Brasília, mantiveram e adaptaram seus trabalhos, condizentes com a
Ana Lúcia Goelzer Meira • 115

identidade do Rio de Janeiro, com atividades culturais, a manutenção e qua-


lificação de acervos documentais e pesquisas e ensino (MOTTA, 2021, s.p.).

Pode-se identificar, na trajetória do edifício, mudanças quanto à


atribuição de valores: de atributos representativos da vanguarda cultu-
ral brasileira ao reconhecimento do público carioca por meio do uso
cotidiano que o inseriu na memória da cidade. Sua relevância cultural
sempre foi inequívoca – pelas obras de arte que apresenta e pela utili-
zação dos seus espaços para diferentes atividades culturais relevantes
(como a palestra de Albert Camus durante sua estadia no Brasil, recitais
musicais, exposições, filmes e palco das despedidas fúnebres de ilustres
personalidades brasileiras como Heitor Villa Lobos, Cecília Meireles e
Candido Portinari). Além disso, a esplanada com pilotis começou a ser
palco de resistência por meio de protestos e manifestações, os quais se
intensificaram durante a Ditadura Militar, devido à sua localização cen-
tral e ao amplo espaço disponível para agrupamentos.
Desde 2017, por causa das obras de restauração, as atividades que
aconteciam no edifício foram sendo transferidas. Ao ACI-RJ foram des-
tinadas salas alugadas em um edifício no centro da cidade. Para lá foi
transferido o acervo que se compõe de 1.250 metros lineares de docu-
mentos textuais, 160.000 fotos e negativos, 1.678 negativos de vidro,
20.000 itens de cartografia e quase 12.000 slides que se encontram en-
caixotados. Não se conhece o seu destino, pois há uma determinação
recente para deixarem o imóvel por medida de economia. Não há uma
sinalização no sentido de retornar ao Palácio de origem, cujas obras de
restauração se encontram em fase de finalização.
E nesse cenário veio à tona a decisão do Governo Federal de incluir
o Palácio Capanema numa lista de imóveis da União a serem
116 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

privatizados, logo apelidado de “feirão”, o que se mostrou coerente com


o processo de destruição das políticas públicas no campo da cultura e,
particularmente, neste caso, das políticas patrimoniais. Diz Sônia Ra-
bello, reconhecida procuradora com atuação no campo do Direito
Público e ex-vereadora no Rio de Janeiro que

A inclusão do Capanema no feirão é um sintoma de uma doença – do des-


prezo e do desleixo – com o patrimônio cultural pelos governos. Não basta
tirar o Capanema da lista, pois a cada semana entra mais um, seja na lista
de alienação, seja na lista dos incêndios ou das demolições reais ou simbó-
licas (RABELLO, 2021, s.p.).

A notícia do leilão provocou movimentação imediata nos setores


culturais e, particularmente, entre organizações ligadas à Arquitetura e
Urbanismo. “É difícil imaginar qualquer evento neoliberal mais bárbaro
do que a decisão peremptória de leiloar o Ministério da Educação e Sa-
úde no Rio de Janeiro”, disse o renomado historiador da Arquitetura –
o inglês Kenneth Frampton (2021, s.p.). O Docomomo se manifestou en-
faticamente: “Privatizar o palácio renovado e sua praça daria prova de
vergonhosa deseducação e incultura, um falso senso de economia e im-
previdência assustadora configurando um crime contra o patrimônio
nacional e mundial. Crime desse porte não se acoberta” (TOSTÕES et al.,
2021, s.p.). Numerosas instituições e profissionais em nível nacional e
internacional se uniram em manifestações contra a privatização (Figura
4). E as manifestações tiveram ampla repercussão nas redes sociais.
Ana Lúcia Goelzer Meira • 117

Figura 4 – Manifestação das entidades contra o leilão do Palácio Capanema

Fonte: O MEC, 2021.

Atualmente o Palácio Capanema faz parte da Lista Indicativa para


Patrimônio Mundial defendida pelo Brasil junto à Unesco, almejando o
mais alto nível de reconhecimento em nível internacional, porém, pa-
radoxalmente, nunca esteve tão ameaçado em seu próprio país. Segre
foi profético em seu livro sobre o Palácio Capanema há quase dez anos
atrás. O presente descrito por ele se prolongou e alcançou os dias atuais
– um presente ainda mais incerto e angustiante:

[...] representou os ideais de liberdade, democracia e integração social que


se esperava acontecer no espaço da cidade, na fusão entre público e privado,
entre indivíduo e comunidade, entre cultura e arte, arquitetura e urba-
nismo. Construiu-se então um fragmento de utopia que poderia se
concretizar no novo mundo latino-americano, onde o Brasil assumia uma
118 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

posição de vanguarda. Mas a história da segunda metade do século XX e o


início do século 21 evidenciou que esses ideais ainda pertencem ao futuro e
não a este presente incerto e angustiante. (SEGRE, 2013, p. 513).

De modo prático, pergunta-se quanto custa um monumento com a


importância cultural do Capanema. Quanto custam os painéis de Porti-
nari, os jardins de Burle Marx, a função social do edifício? A estética da
modernidade presente na sede do antigo MES continua representando,
após quase cem anos de construção, o ideário arquitetônico aplicado de
forma pioneira em nível mundial. O símbolo da justiça social e do res-
peito à cultura e à educação, no entanto, desvaneceu-se ao longo do
tempo, atingindo níveis impensáveis nos dias de hoje. A ameaça repre-
sentada pelo feirão foi um elemento catalizador no sentido de reavivar
a importância simbólica do Palácio Capanema e associá-la à relevância
do respeito à diversidade cultural brasileira. Particularmente no campo
do patrimônio cultural, em que se inserem os monumentos, os arquivos,
os modos de fazer, as paisagens, os lugares, as práticas sociais e tantas
outras referências para a construção de um futuro democrático, que a
luta pelo Capanema possa representar a revalorização das políticas pú-
blicas de preservação no Brasil.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil S.A., 1989.

CHUVA, Márcia. Investigando as restaurações fundadoras do patrimônio: das práticas


rotineiras às normas técnicas. Nos Arquivos do IPHAN: Revista eletrônica de pesquisa
e documentação. [Brasília]: IPHAN, 2009. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/
uploads/publicacao/revele_inv_restauracoes.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.
Ana Lúcia Goelzer Meira • 119

COHEN, Jean-Louis. Apresentação. In: SEGRE, Roberto. Ministério da Educação e Saúde:


ícone urbano da modernidade carioca (1935 – 1945). São Paulo: Romano Guerra, 2013.
p. 26-27.

FRAMPTON, Kenneth. Carta de Kenneth Frampton a Ana Tostões e Renato Gama-Rosa


Costa, presidentes do Docomomo International e Brasil. Palácio Capanema em risco.
Vitruvius, Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.06, ago. 2021. Disponível em:
https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8218. Acesso em: 3 jan.
2022.

JEUDY, Henri-Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

LYRA, Cyro Corrêa. Preservação do patrimônio edificado: a questão do uso. Brasília:


IPHAN, 2016.

MEIRA, Ana L. G. Das pedras aos lambrequins: a preservação do patrimônio arquitetônico


e urbano no Rio Grande do Sul do século XX. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2019.
Coleção Focus.

MOTTA, Lia. Qual o preço do Palácio Capanema? In: Urbe CaRioca, Rio de Janeiro, 17 ago.
2021. Disponível em: http://urbecarioca.com.br/palacio-capanema-nas-palavras-
de-lia-motta-e-sonia-rabello/. Acesso em: 3 jan. 2022.

O MEC não pode ser vendido. In: CAURJ, Rio de Janeiro, 13 ago. 2021. Disponível em:
https://www.caurj.gov.br/o-mec-nao-pode-ser-vendido/#:~:text=O%20Pal%C3%A
1cio%20Gustavo%20Capanema%20(originalmente,est%C3%A1%20sob%20amea%C3
%A7a%20de%20privatiza%C3%A7%C3%A3o.&text=O%20MEC%2C%20como%20%C3
%A9%20popularmente,Patrim%C3%B4nio%20Hist%C3%B3rico%20e%20Art%C3%A
Dstico%20Nacional). Acesso em: 20 dez. 2020.

PALÁCIO da Cultura – antiga sede do Ministério de Educação e Saúde (RJ). In: IPHAN,
[Brasília, 2021?]. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/825.
Acesso em: 12 dez. 2021.

PESAVENTO, Sandra J. O desfazer da ordem fetichizada: Walter Benjamin e o imaginário


social. Cultura, São Paulo, v. 89, n. 5, p. 34-44, 1989.

RABELLO, Sônia. #Recomendo: O redespertar do Capanema – do Rio para o Brasil. In:


Urbe CaRioca, Rio de Janeiro, 17 ago. 2021. Disponível em:
120 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

http://urbecarioca.com.br/palacio-capanema-nas-palavras-de-lia-motta-e-sonia-
rabello/. Acesso em: 3 jan. 2022.

RESTAURAÇÃO do Palácio Capanema, no Rio de Janeiro (RJ), chega à última etapa. In:
IPHAN, Brasília, 11 fev. 2019. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/rj/
noticias/detalhes/4985/restauracao-do-palacio-gustavo-capanema-no-rio-de-
janeiro-rj-chega-a-ultima-etapa. Acesso em: 10 jan. 2022.

SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Revisitando a sede do Ministério da Educação e Saúde


no Rio de Janeiro. O último livro de Roberto Segre. Vitruvius, São Paulo, ano 13,
n.147.01, mar. 2014. [Seção] Resenhas On-line. Resenha da obra de: SEGRE, Roberto.
Ministério da Educação e Saúde: ícone urbano da modernidade carioca (1935 – 1945).
São Paulo: Romano Guerra, 2013. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/
read/resenhasonline/13.147/4942. Acesso em: 9 jan. 2022.

SEGRE, Roberto. Ministério da Educação e Saúde: ícone urbano da modernidade carioca


(1935 – 1945). São Paulo: Romano Guerra, 2013.

SOARES, Sandra Branco. CapanemaMaru: o Ministério da Educação e Saúde. Rio de


Janeiro, Jauá, 2021.

TOSTÕES, Ana; COSTA, Renato da Gama-Rosa; INTERNATIONAL, Docomomo; BRASIL,


Docomomo. Patrimônio sob cerco no Brasil. Palácio Capanema à venda. Vitruvius,
Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.04, ago. 2021. Disponível em:
https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8216. Acesso em: 7 jan.
2022.

TROITIÑO, Sonia. O que preservar? Por que preservar? Política arquivística e formação
de acervo. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ARQUIVOS DE MUSEUS E PESQUISA,
5., 2017, São Paulo. Políticas de acervo – coleta, preservação, descarte. São Paulo:
MAC/USP, 2018. p. 93-109.
5
OS ACERVOS PRODUZIDOS NO MUNDO PÓS-
PANDEMIA: UMA ANÁLISE DOS RELATOS NO “OLHO
DO FURACÃO”
Beatriz Kushnir

A escrita de si mesmo aparece aqui claramente em sua relação de comple-


mentaridade com a anacorese 1: ela atenua os perigos da solidão; oferece
aquilo que se fez ou se pensou a um olhar possível; o fato de se obrigar a
escrever desempenha o papel de um companheiro, suscitando o respeito
humano e a vergonha; é possível então fazer uma primeira analogia: o que
os outros são para o asceta em uma comunidade, o caderno de notas será
para o solitário.
(FOUCAULT, 1983, p. 3).

ONDE TUDO COMEÇA

O intuito é o de apresentar e esboçar as análises do projeto “Teste-


munhos do Isolamento”, instituído pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio
de Janeiro (AGCRJ) na pós- decretação do estado pandêmico e no esta-
belecimento do home office pela Prefeitura do Rio, em 16 de março de
2020. A intenção é pensar a trajetória da iniciativa em duas frentes. Por
um lado, como a epígrafe sugere, compreender as possibilidades de ela-
borar depoimentos escritos e, assim, propor uma elaboração em tempo

1
Anacorese ou Efeito anacórico é o fenômeno pelo qual microrganismos circulantes e substâncias
estranhas que circulam no sangue vão se fixando ao redor de uma área de inflamação. Além de bactérias
podem se fixar no local, substâncias como corantes, sais, substâncias metálicas, proteínas, protozoários
e esporos. Os microrganismos chegam rápido ao local inflamado onde os que se fixarem podem
sobreviver em grande número e colaborar com a colonização da região por outras espécies mais
sensíveis, causando infecções mais prolongadas e difíceis de serem tratadas. Assim, pacientes com
doenças inflamatórias (como artrite) ficam mais suscetíveis a infecções por bactérias e protozoários. Isso
é um problema constante para pacientes com doenças inflamatórias crônicas.
122 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

real dos vários momentos vividos. Por outro, as etapas e perfis que os
depoimentos vêm apontando induzem à formação de uma coleção.
Para tal, é oportuno delimitar o que se compreende como coleção.
Ou seja, um “conjunto de documentos com características comuns, reu-
nidos intencionalmente”. Diferenciando-se dos fundos cujo conjunto de
documentos tem “[...] uma mesma proveniência. Termo equivalente a
arquivo” (ARQUIVO NACIONAL, 2005). Neste sentido, como bem ex-
plana o blog “Análise diplomática dos documentos”, a coleção pode

[...] unir assim como um fundo, as mais variadas espécies de documentos há


objetos, mas o conceito se resume há uma reunião de documentos que apre-
sentam alguma característica em comum, seja qualquer aspecto usado
como motivação para reuni-los. A apresentação de uma coleção pode ser
dos mais variadas formas ou interesses, mas que sustentem o motivo de
exibi-las, não havendo sentido de organicidade arquivística e sim, a forma
mais conveniente à pessoa que tem a custódia e intenção de exibir. 2

É oportuno iniciar circunscrevendo a intenção de formar essa co-


leção ao momento vivenciado. Ao longo dos últimos meses foi possível
perceber que a pandemia mundial de COVID-19 trouxe alguns desafios
inéditos para nossa sociedade. Cada indivíduo viu suas atividades serem
transformadas ao longo do período de isolamento social/quarentena e,
aos poucos, uma nova rotina foi criada e vem, constantemente, sendo
recriada. As contradições existentes nunca estiveram mais à mostra e
demonstram as possibilidades ou não de cumprir as regras estabeleci-
das pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Em face da exposição escancarada das desigualdades e dessas rup-
turas na forma de se viver, fomos inspirados primeiramente pelas

2
Disponível em https://diplomaticabarbara.webnode.com, acessado em 8/2/2022.
Beatriz Kushnir • 123

iniciativas internacionais como as da Associação Pública dos Historia-


dores de Nova York e do Arquivo Municipal de Barcelona. Assim, o
AGCRJ se propôs a documentar, coletando essas narrativas e, em maio
de 2020, iniciamos a captação dos depoimentos via o preenchimento do
formulário “Testemunhos do Isolamento”. 3
A experiência do isolamento social/quarentena ainda que coletiva,
afeta de forma singular cada um de nós. Esse projeto tem como objetivo,
em um primeiro momento, recolher informações sobre esse período
histórico a partir da ótica dos indivíduos e seu cotidiano. O passar do
tempo trouxe também a alteração das narrativas depositadas em nossa
plataforma, o que demonstra os diversos períodos inclusos neste “mo-
mento pandêmico”. A datação do formulário nos permitia saber o
momento em que a pessoa se encontrava; com isso foi possível perceber
como essa longa pandemia foi se alterando com o passar dos dias. Com
esses relatos pessoais, acreditamos contribuir para uma leitura mais
abrangente desse cataclisma. A coleção permitirá, posteriormente, ser
cotejada ao conjunto constituído pelos documentos do Executivo Muni-
cipal, que, por lei, só serão recolhidos como documentação permanente
em vinte anos.
A proposta é salvaguardar esses depoimentos e garantir acesso a
essa documentação para pesquisadores que se interessem por estudar
esse período, permitindo, assim, outra voz. Além disso – o que já não é
pouco –, demonstra ao cidadão que sua narrativa compõe as memórias
de um tempo e em que as incluir é uma instituição de guarda, que per-
mite um exercício de cidadania. Esse material será custodiado no AGCRJ

3
Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/arquivogeral/testemunhos-do-isolamento, no qual é
possível, também, a inclusão de imagens, vídeos e voz.
124 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

para, posteriormente, ser acessado para consultas e pesquisas. Respei-


tando sempre a vontade do depoente pelo seu anonimato ou pela sua
não autorização na revelação de seu material.
A percepção de um “tempo moroso” e com diminutas alterações
cotidianas sinalizariam fatores depressivos vinculados à COVID-19. Os
relatos nos dão conta da angústia frente à repetição e à tênue noção de
novidades. Para o psicanalista Christian Dunker, o encontro das curvas
de prazer e desprazer em baixos patamares afetariam o humor e desen-
cadeariam processos de depressão. Embora, como o autor indica, nem
todos os que tiveram seu temperamento afetado, concebeu um caso de-
pressivo.
Acrescenta-se a isso a ausência da experiência do luto e da morte
de, neste momento, quase 700 mil brasileiros. Nesse sentido, como
François Hartog nos lembra, em poucas semanas, nosso vocabulário foi
aumentado e, creiamos, por bastante tempo permanecerá incluso de
tais termos. Nossas balizas agora precisam incluir, para os que se cons-
cientizaram, medidas de contenção, distanciamento social, álcool gel,
uso de máscaras, presencial, remoto, híbrido etc. Assim, o autor conclui
que

[...] em resumo, trata-se de uma nova disciplina corporal que nos compro-
metemos a instituir, mas sem dispor de tempo para incutir. Que diria
Norbert Elias? Talvez que os países onde as pessoas não têm o hábito de
apertar as mãos ou de se beijar levam vantagem em relação à Covid-19?

[...] Um tempo inédito é instaurado. [...] A Covid-19, invadindo cada vez mais
o espaço midiático, era como uma série, da qual desejávamos ver passarem
todas as temporadas de forma acelerada. [...] Uma vez decretado o confina-
mento, tudo muda. [...] Submetidos ao tempo da pandemia, devemos habitar
o tempo do confinamento: organizar o uso do tempo [...], ritmá-lo [...],
Beatriz Kushnir • 125

preenchê-lo [...]. Confeccionar uma ordem do tempo cada um por sua pró-
pria conta.

[...] O confinamento não fez desaparecer o presentismo ambiente, mas o re-


forçou. Trata-se, na verdade, de confinamento conectado, muito pouco um
retiro solitário.

[...] Mas existe também um outro confinamento, o de todos aqueles que não
estão conectados. [...] A fratura digital atravessa também o confinamento e
as relações com o tempo que ele induz, incluindo a recusa ou a negação da-
queles que indicamos como os “recalcitrantes” do confinamento (HARTOG,
2020, p. 10, 12, 13).

Recolhemos, ao longo do ano de 2020, 235 depoimentos 4 e, em que


se pode vislumbrar no quesito etário a configuração cujos extremos
mais novos e mais velhos são os maiores colaboradores. Mas o quadro
demonstra certa homogeneidade de participações.

4
Nossa última conferência dos dados foi no dia 30 de dezembro de 2020, no qual constavam 235
depoimentos, tendo sido o último enviado em 17/12/2020. Após essa data, com o fim do mandato do
então prefeito e o término de nosso período de trabalho no AGCRJ, não demos continuidade à coleta e
à análise dos dados.
126 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Gráficos 1 e 2 – Faixa Etária

Fonte: elaborado pela coordenação do projeto a partir dos dados recolhidos.

A experiência do isolamento social/quarentena, ainda que coletiva,


afeta de forma singular cada um de nós. O objetivo desse projeto, em seu
primeiro momento, foi justamente recolher informações sobre esse pe-
ríodo histórico a partir do ponto de vista daqueles que estavam vivendo
o cotidiano pandêmico, o cidadão carioca que se viu repentinamente
confinado. Nesse sentido, como mencionado anteriormente, um dos as-
pectos mais importantes do questionário proposto é engajar o cidadão
Beatriz Kushnir • 127

no processo de narrar a sua história e compreendê-la como igualmente


a da cidade. Esse projeto coloca tinta, ou o poder de descrever, nas pa-
lavras dos cidadãos e os convida a um exercício político de construção
da narrativa histórica desse momento pandêmico.
Em uma das perguntas do questionário proposto, indagamos aos
participantes o que pensavam e sentiam quando leram as primeiras no-
tícias sobre o vírus, ainda circunscrito ao território asiático, se
acompanharam a evolução, se esperavam que a doença chegasse aqui.
As respostas são variadas e demonstram como as percepções distintas
nos ajudam a contar nuances dessa história.

“Olha, honestamente, estava de férias em janeiro/2020 e não imaginava que


chegaria aqui na América do Sul, do outro lado do planeta.” – Arquivista e
Historiador, testemunho recebido em 24/6/2020.

“Passamos o Natal em família em Campos de Jordão. Recordo-me que nessa


época já comentávamos o medo de chegar ao Brasil. Recordo-me também
ter orientado minha filha não ir passar o carnaval em São Paulo, pois achava
que seria o momento que chegaria ao Brasil. É lógico que não fui ouvida.” –
Psiquiatra, testemunho recebido em 20/6/2020.

“Acompanhei, mas, dado o pouco caso das autoridades, dada a distância da


China, dado o desejo de não sofrermos por mais isso, levei uma vida normal
até a véspera da quarentena ser decretada no Rio.” – Professor de educação
física, testemunho recebido em 20/5/2020.

“No início pensei que fosse um problema local e não tão fatal. No entanto, a
evolução foi muito rápida e assustadora.” – Professora, testemunho rece-
bido em 14/7/2020.

Uma das relevâncias deste projeto é a maneira como podemos per-


ceber essa bricolagem de pontos de vista. Perguntas como essa nos
128 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

ajudam a vislumbrar como cada pessoa lidou de forma distinta com as


notícias dos veículos oficiais. Assim, como cada um realizou a “escrita
de si”.
A formulação desse projeto pelo AGCRJ recebeu uma acolhida
muito luminosa pela comunidade carioca. Utilizamos as redes sociais da
instituição para suscitar o engajamento. Entre os depoentes, era comum
encontrarmos aposentados, professores, artistas e estudantes – indiví-
duos de diversas áreas do conhecimento que consideravam importante
partilhar seu olhar sobre esse momento. Mais do que isto, cumprimos
uma das missões dos arquivos públicos – a inclusão pela cidadania que
se dará quando estes passarem pela Avenida Presidente Vargas, na es-
quina com a Rua Amoroso Lima, e terem a noção de que suas histórias
estão depositadas ali, no AGCRJ.
Relevante ressaltar, todavia, que o acolhimento de acervos sobre a
temática “Saúde” não é inédito para o AGCRJ. Uma gama de reflexões
sobre os efeitos da varíola, sífilis, gripe espanhola e HIV/Aids poderia
aclarar a presente pontuação e, inclusive, pode ser pesquisada no
AGCRJ. 5
A pandemia mundial de 2020, todavia, traz elementos muito sin-
gulares. Pensando sobre o coronavírus, neste texto optamos por agregar
igualmente as ponderações de Boaventura de Sousa Santos (2020) a par-
tir da resenha de Teófanes de Assis Santos e Hélio Souza de Cristo
(2020). Para Santos e Cristo, e muitos outros, a pandemia esgarçou todas

5
Ao longo de 2020, o Boletim Sebastião, publicação quinzenal do AGCRJ – naquele momento editado
e revisado por mim e produzido em colaboração com a equipe do Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro – dedicou as quatro edições de maio e junho para falar sobre o acervo do Arquivo no que
tangiam às várias epidemias vividas pelos cariocas: Febre Amarela, Gripe Espanhola, Varíola e a Peste
Bubônica. A publicação em PDF pode ser acessada no site do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
em: http://www.rio.rj.gov.br/ebooks/informativos_agcrj_2020/index-h5.html#page=1 (último acesso
em 5/8/2021).
Beatriz Kushnir • 129

as contradições vividas, expondo de maneira bárbara as desigualdades


sociais. Para os autores, a obra de Boaventura de Sousa Santos permite
apreender o caos vivido e vislumbrado durante a pandemia ao refletir
que

[...] o ordenamento neoliberal e o modelo capitalista têm orientado o mundo


a recrudescer políticas públicas de investimento em áreas como saúde, edu-
cação e previdência social, deixando o mundo em constante estado de crise,
o que se acentua com a pandemia do novo coronavírus (apud SANTOS;
CRISTO, 2020, e00108820).

Assim, para Sousa Santos é importante também se descolar da pan-


demia, da doença em si, e compreender o controle sobre a vida e a morte
que esta instaura; de modo a refletir como processaremos, enquanto so-
ciedade, os milhares de mortos e as ausências dos ritos de sepultamento.
Os traumas da trajetória pandêmica talvez só às guerras se assemelhem.
Nesse sentido, como sublinha Santos e Cristo, para Boaventura,

[...] a pandemia não é cega e possui “alvos privilegiados”, o que induz à busca
de soluções diferentes entre aqueles que possuem capitais sociais distintos.
No entanto, apesar dos diferentes recursos sociais que as populações pos-
suam, a receita do momento é genérica: manutenção do isolamento social,
que implica redução de atividades econômicas e, consequentemente, menor
carga de destruição da natureza (apud SANTOS; CRISTO, 2020, e00108820).

Tendo essas questões em mente, pode-se compreender a experiên-


cia do Testemunhos do Isolamento, quando planejado, como a exposição
das diferenças. Os depoimentos que nos chegaram expõem a vivência
das diferentes formas do isolamento social. O que igualmente aponta
para os silêncios e a fragilidade de quem, ao não responder, expõe que
suas condições sejam outras. Então, o quadro a seguir deve ser lido não
130 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

pelo marcador azul (“fazendo isolamento social e trabalhando em casa”),


mas pelo apontado nas demais manifestações. Foram essas pessoas que
vivenciaram e vivenciam o “fora da curva” desejada. Curva que, como
tendência indicada, nunca se instalou plenamente e que narra o que
vem acontecendo. A visibilidade do que não fazer está tão palpável ao
caminhar pelas ruas e ao tentar entender os números de mortos que
crescem.
Ao longo de 2020 foi possível perceber que a pandemia de COVID-
19 se tratava de uma realidade multifacetada. No caso, a doença e a
forma como foi encarada se transformou ao longo do tempo. A despeito
dessa mudança sensível a olho nu, como no exemplo da quantidade de
pessoas nas ruas, nos mercados e nos shoppings centers, o público que
respondeu à pesquisa do AGCRJ não se alterou tanto. A seguir dois qua-
dros de momentos distintos analisam a vivência do Isolamento Social.

Gráficos 3 e 4 – Vivência do Isolamento Social


Beatriz Kushnir • 131

Fonte: elaborado pela coordenação do projeto a partir dos dados recolhidos.

Como podemos perceber, se em 12 de junho de 2020, um mês após


o lançamento do projeto, já tínhamos 165 formulários preenchidos. Des-
tes, 60% das pessoas estavam fazendo isolamento social e trabalhando
em casa, enquanto em 3 de setembro de 2020, com 218 formulários im-
pressos, o número manteve-se similar para a questão, ou seja, com 58%.
A cifra de desempregados também não oscilou, mantendo-se em 11% ao
longo do período dessa amostragem.
O formulário on-line permitia ainda que as pessoas apresentassem
impressões e sentimentos mais abstratos. A coleta desses testemunhos
mapeia como as leituras de um mesmo período pode diferir. A experi-
ência comum da pandemia que assolou e assola ainda a cidade do Rio de
Janeiro foi percebida e, principalmente, vivenciada de maneiras muito
distintas. Por exemplo, em junho de 2020 uma médica nos narrou que:

“Todos da minha família estão se adaptando ao trabalho em casa, assim


como é necessário a adaptar a convivência com todos em casa. Rotina de
132 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

casa para o trabalho, trabalho para casa. A sensação é de que não há nenhum
lugar onde se possa espairecer e respirar. É uma situação inédita. O mundo
não tem mais divisões, é uma grande bolha de isolamento.” – Médica, tes-
temunho recebido em 10/6/2020.

No mesmo momento, nem todos tinham a mesma impressão:

“Há muita instabilidade nesse período. Poderia dizer que vivo uma flutua-
ção entre os bons e os maus momentos. Estou vivenciando dias e semanas
muito produtivas e mentalmente equilibradas que se alternam com curtos
períodos de angústia e tristeza profunda.” – Professor, testemunho rece-
bido em 2/7/2020.

A quebra de uma rotina e a dificuldade de se recriar outra é/era


visível para muitos:

“Oscila muito. Cansaço físico e mental. Abatimento. Às vezes momentos de


euforia, quando percebo que o tempo ‘livre’ poderia ser usado para realizar
coisas que adiava. Ao não conseguir fazer, o abatimento se aprofunda.” –
Servidor Público Federal, testemunho recebido em 19/5/2020.

Na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos, ao ponderar no se-


gundo capítulo (“A Trágica Transparência do Vírus”), a preocupação
com a pandemia escancara que, em sociedades capitalistas, o ponto de
vista econômico norteia as relações sociais e políticas. O autor demons-
tra as tentativas de desqualificar o discurso científico frente às
necessidades (não garantidas) dos cidadãos em suas vidas cotidianas, ou
seja, a ausência de políticas públicas assistenciais. Para Boaventura, a
quarentena escancarou a discriminação latente de cumpri-la. Nesse
sentido, aqueles que preencheram o formulário expressam uma dada
Beatriz Kushnir • 133

categoria de acesso aos bens e serviços. Os gráficos 5 e 6 representam os


depoentes por categoria de acesso aos bens e serviços.

Gráficos 5 e 6 – Categorias de acesso aos bens e serviços

Fonte: elaborado pela coordenação do projeto a partir dos dados recolhidos.

Então, embora as ponderações de Boaventura sejam recomenda-


ções efetivas para a classe média,

[...] não contemplam os cidadãos submetidos a condições de discriminação,


injustiça social e sofrimento, de modo que as ausências de suas liberdades
134 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

individuais, de direito à cidadania, ao cuidado de si, à cidade e ao trabalho


formal que lhes garantam renda para a manutenção das mínimas condições
de higiene e alimentação lhes expõem diariamente ao maior risco de con-
taminação pelo vírus (apud SANTOS; CRISTO, 2020, e00108820).

O formulário do Testemunhos do Isolamento foi respondido majori-


tariamente por pessoas com ensino superior e pós-graduação – mais de
70% dos depoimentos estavam entre o ensino superior e a pós-gradua-
ção, e cerca de 20% eram alunos universitários. Esse dado revela um
problema, ou uma limitação da amostragem: o formulário teve pouco ou
nenhum alcance entre as classes menos escolarizadas do Rio de Janeiro.
Importante ressaltar que o censo de 2010 do IBGE levantou que apenas
10,9% da população fluminense tinha diploma universitário. 6
Outro dado que recolhemos foi referente ao tipo de vínculo empre-
gatício. Apenas 18% de nossos entrevistados ao longo de todo o período
se identificaram como donos de pequenos negócios, MEI, ou empresas
de outra natureza. Os locais de trabalho daqueles que indicavam traba-
lhar no Rio de Janeiro variavam de maneira equilibrada entre as zonas,
com leve indicativo de que a área central da cidade era a que mais abri-
gava os trabalhadores que responderam nosso questionário. Dentre
eles, 13% se identificaram como aposentados, pouco mais de 30% dos que
responderam indicaram ainda não trabalhar no Rio de Janeiro.
Por fim, um último dado importante que precisamos mencionar e
que marca um fator limitante do nosso trabalho: a concentração de res-
postas de residentes da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Do total,
cerca de 30% dos participantes responderam que residiam na Zona Sul,

6
Censo do IBGE mostra crescimento no número de brasileiros com ensino superior, maio de 2012:
https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/censo-do-ibge-mostra-crescimento-no-numero-
de-brasileiros-com-ensino-superior/ (último acesso em 15/2/2022).
Beatriz Kushnir • 135

24% na Zona Norte, 16% na Zona Oeste, 12% na Zona Central da cidade e
ainda 18% dos participantes não residiam no Rio de Janeiro. Para um
segundo momento de recolhida de depoimentos, acreditamos que seria
importante encontrar meios de coletar depoimentos de mais indivíduos
em regiões mais afastadas do Centro, com menos acesso à internet e,
também, pessoas em situação de vulnerabilidade social.
As políticas públicas de cunho assistencial foram ineficazes e não
alcançaram os realmente necessitados em massa, obrigando-os às que-
bras das recomendações da OMS. O perfil dos que nos relataram não
espelha este grupo ainda, infelizmente. É comum narrativas que rela-
tam que:

“O período tem sido muito difícil, devido [a] não ter nada que se compare a
esta pandemia. Inicialmente achei que seria algo passageiro e devido a vá-
rias informações desencontradas fiquei confuso. Como exemplo cito o uso
das máscaras que inicialmente falava-se que não tinha nenhum efeito, di-
ante disto, ainda em março, ou seja, no início dos casos da covid, eu não usei
máscara, porém com o passar do tempo o noticiário mudou. A própria im-
prensa escrita, televisiva e radiofônica se mostrou confusa em seus
noticiários o que levou a maioria de nós sem saber o que fazer.” – Professor
aposentado, testemunho recebido em 15/7/2020.

“Cansada, preocupada, triste pelo número de mortos no país e impactada


por estar vivendo uma situação que nunca imaginei.” – Pesquisadora, tes-
temunho recebido em 14/7/2020.

Ainda é preciso destacar um ponto importante que o questionário


começou a evidenciar a partir dos depoimentos: a desigualdade na pan-
demia. Uma de nossas perguntas era justamente essa: “Como a
pandemia impactou as suas finanças pessoais?”. Várias pessoas respon-
deram que não foram afetadas por serem aposentadas, ou por estarem
136 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

ligadas a empregos fixos e seguros; houve aquelas que apontaram ser


afetadas positivamente pela pandemia, uma vez que tiveram menos
gastos; e há ainda as que compartilharam conosco a dificuldade que o
momento impôs.

“Meu salário teve redução de 50%, não cobria nem o meu aluguel. Além disso
a inquilina da minha casa que era alugada, cancelou o contrato de aluguel,
então o impacto foi grande demais na minha vida, de maneira negativa.” –
Operadora de turismo, depoimento recebido em 6/5/2020.

“Como somos (minha esposa e eu) aposentados do Governo Federal, não


sentimos ainda grandes impactos financeiros. Mas percebemos que esta-
mos gastando bem menos.” – Geógrafo aposentado, depoimento recebido
em 11/5/2020.

“Praticamente zerou os trabalhos como freelancer e me impediu de sair pra


procurar emprego.” – Professor, depoimento recebido em 7/5/2020.

Em março de 2021, um ano após o início da pandemia no Rio de


Janeiro, o site G1 publicou uma matéria sobre o aumento da pobreza no
Rio de Janeiro. 7 Ao cruzar as informações dos depoimentos com os re-
cortes de nível de escolaridade, localização de moradia e faixa etária que
já mencionamos, percebemos que estamos diante de um quadro dimi-
nuto da sociedade carioca, porém, ainda assim, a partir dos
depoimentos recolhidos, é possível perceber como a desigualdade social
se somou ao momento pandêmico e criou realidades muito distintas.
Talvez, com mais tempo e uma coleta ainda mais ampla desses de-
poimentos, teríamos ampliado mais o desenho sobre o tema. Pesquisas

7
“Pobreza atinge 1,7 milhão de pessoas no Rio; muitas delas passam fome” In: G1 Cf.
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/03/22/pobreza-atinge-17-milhao-de-pessoas-no-
rio-muitas-delas-passam-fome.ghtml (último acesso em 5/8/2021).
Beatriz Kushnir • 137

como a divulgada pelo site G1 demonstram que não apenas a pobreza


aumentou, como também os níveis de insegurança alimentar subiram
significativamente. Essas são outras histórias do momento pandêmico
que apenas podemos apontar, mas cuja pesquisa e coleta de depoimen-
tos do AGCRJ não alcançaram neste primeiro mapeamento. Outra
pergunta ausente desse questionário é sobre os lutos ou as perdas de
pessoas queridas. Talvez, em um segundo momento pudéssemos ter la-
pidado mais as questões.
A partir de nossa contribuição, construímos um desenho, um flash,
um instantâneo desses sete meses de pandemia, de maio a dezembro de
2020. Qualquer conclusão sobre esses depoimentos está presa a esse
tempo e igualmente acoplada ao processo pandêmico ainda vivido. En-
tão, como sintetizar esse material produzido? Recorremos mais uma vez
às palavras de Hartog, que, sem nos conhecer, sublinha o perfil da
grande maioria da população no Brasil – ou, nesse mundo globalizado,
infelizmente a muitos de nós. Assim, esse material que coletamos, a par-
tir da generosidade de 235 pessoas, nos fez objeto e pensador; e a nós,
sobreviventes ou não, que dedicamos.

Finalmente, há todas aquelas e aqueles que, embora oficialmente confina-


dos, devem trabalhar de fato. Forma-se, assim, outro conflito de
temporalidades. Eles estão, por assim dizer, com um pé no tempo de antes
e outro no tempo novo (HARTOG, 2020, p. 13).

Para concluir, acredito ser crucial uma ponderação: relativizar a ideia re-
corrente durante todo o processo pandêmico de que o sofrimento gerado
alteraria as relações sociais para melhor e nos faria aprender e nos transformar
enquanto sociedade. Trata-se de algo que nem o conhecimento das atrocidades
durante a 2ª Guerra, por exemplo, conseguiu produzir. Muito tem se
138 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

demonstrado como os processos no interior da busca pela “cura da doença” se


tornaram valiosas commodities, mercantilizando e gerando lucro em sincronia
com a lógica capitalista reinante.
A par e passo a esta discussão, durante a Feira Literária Internacional de
Paraty (Flip), em 2021, realizou-se a mesa “Cartografias para adiar o fim do
mundo”, reunindo o filósofo e escritor Ailton Krenak e o sociólogo e tradutor
Muniz Sodré. A conversa debateu as relações em sociedade, as teias das redes
econômicas e as desigualdades produzidas e vivenciadas. Em sincronia com o
exposto, Krenak criticou a noção da pandemia como algo educacional ao corpo
social. Para o filósofo, a Covid-19 mais uma vez expos que não há limites aos
seres humanos para o bem ou para o mal, e pondera que “se o vírus fosse pior
que os humanos, a gente teria desaparecido” (KRENAK, 2021).
As continuadas avaliações de Krenak sobre o tema reforçam, para mim,
que esse ponto desmistifica a noção de aprendizagem. Isto porque, ao rasgar o
que vivenciamos cotidianamente, o autor expos que

a pandemia não vem para ensinar nada. A pandemia vem para devastar as
nossas vidas. Eu não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o so-
frimento ensina. Essa ideia, eu não tenho simpatia com ela (KRENAK, 2021).

Lamentável é perceber que esses dois anos pandêmicos, que para muitos
parece mais, é esquecido por alguns quando se instalam relações de trabalho;
por exemplo, é com certo susto hipócrita que mencionam: “mas você fez lock-
down?” Sim, meu caro, ou morreria e colocaria os próximos a mim em risco!

REFERÊNCIAS

ARQUIVO NACIONAL, Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro,


Arquivo Nacional, 2005.

FOUCAULT, Michel. “A escrita de si”, Corps écrit, nº. 5: L’autoportrait, fevereiro de 1983,
p. 3-23.
Beatriz Kushnir • 139

HARTOG, François. Desordem no presentismo: o tempo da Covid-19. Revista C/M


Comunicação & Memória, Rio de Janeiro, Centro de Memória da Eletricidade no
Brasil, 2020.

KRENAK, Ailton. Cartografias para adiar o fim do mundo. Mesa redonda


reunindo o filósofo e escritor Ailton Krenak e o sociólogo e tradutor Muniz
Sodré. In: FEIRA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY (Flip), 2021.

SANTOS, Boaventura Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra, Almedina, 2020.

SANTOS, Teófanes de Assis; CRISTO, Hélio Souza de. Reflexões contemporâneas à luz da
pandemia do novo coronavírus. Resenha de A cruel pedagogia do vírus. Sousa Santos
B. Coimbra: Almedina; 2020. 32 p. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 6,
e00108820, 2020.
6
AS ARQUEOLOGIAS DO SABER DE SANDRA JATAHY
PESAVENTO (1946-2009). AS SENSIBILIDADES NOS
PRIMEIROS TRAÇOS DO ESQUECIDO MARXISMO E
SUA ATUALIDADE
Robson Corrêa de Camargo

Os conhecimentos têm três portas de acesso a nossa alma. Ver, ouvir e tocar
são as três portas.
(Diderot, 2000 [1749], p. 856)

Este artigo tem alguns objetivos. O primeiro, conectar os escritos


de Sandra Pesavento com a questão histórica da sensibilidade presente
nos primeiros escritos de Karl Marx de 1884. Esta importante preocu-
pação marxista foi infelizmente deixada de lado por muitos dos que
seguiram seu pensamento no século XX. Assim, encontramos ecos do
pensamento do Marx original nas profundas reflexões da última fase de
Sandra Pesavento, com quem estabelecemos um diálogo. Finalizo essas
anotações com apontamentos de como a questão tem sido abordada no
pensamento da neurociência recente, colocando-a no centro do debate
contemporâneo.
Este trabalho parte de duas reflexões principais, de longa data, que
desenvolvo a partir de meu trabalho como diretor de teatro e investiga-
dor. A primeira é a relação presença e representação. Teatro não é só
mímesis (reprodução, imitação). Um diretor de teatro trabalha o texto
que lhe chega às mãos como representação, voz de um tempo outro a
ser encarnada, cinzas dos tempos passados, que deve ser retomado sim-
bolicamente, mas como ser vivo. Portanto, ao mesmo tempo, o teatro
Robson Corrêa de Camargo • 141

existe como vivência do presente, um diálogo ativo com o tempo em que


vive, apresentando uma contribuição ao tempo em que se vive, com
quem dialoga e assim inclui uma plateia com distintos tempos e experi-
ências. A apresentação acontece então naquele momento novo, numa
relação entre palco que mostra e plateia que vive esse tempo suspenso,
retomado, mas vivido. Não é um tempo passado, embora também o seja.
Uma dualidade paradoxal que se estabelece ao mesmo tempo. Está en-
tre, mas também está amalgamada, em. Atravessa-se um rio
Heraclitiano onde “tudo flui e nada permanece”, há sim um ontem, mas
há um agora. Estamos na teia da cultura tecendo novas ligações. Não é
um comportamento que se restaura, mas um comportamento que se re-
cicla. Não há restauração, pois o comportamento se projeta no tempo,
apresenta elementos de seu passado, como o ovo anuncia o pássaro. Não
estamos presos na Matrix, embora hajam matrizes. Não se deve matar
o tempo nem secar a água.
A segunda reflexão é a relação do ator com a personagem. Ambos
dialogam com vida, a de ator/atriz e a de outro, personagem encarnado,
reconstruído em palimpsesto, num processo que combina experiência
dele, ator/atriz e a da personagem, de memória e imaginação, nem sem-
pre as mesmas, nem sempre diferentes, oscilando entre emoção e
sensibilidade de um tempo vivido, de sua experiência pessoal, e de um
tempo imaginado/vivido, sua experiência imaginada, projetada, recons-
truída como vida no aqui agora. A performance irrompe não apenas um
significado, não é um comportamento que se restaura, que se reinstala,
que traz de volta cenas passadas, recortadas como a edição de um filme,
nem explicação nem explanação. Seu significado é exprimido ou espre-
mido de ou por um conteúdo latente, ou que grita por um entendimento
142 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

imaginativo que se estabelece como primeira vez. Embora o teatro te-


nha mais de dois mil anos, temos que reconhecer nele a juventude de
um primeiro amor.
As imagens da arte estão além da realidade, e na realidade, e em
todo teatro, e não apenas naqueles experimentos que crepitam ou cre-
pitaram experiências inovadoras. Não é espelho, o teatro, a
performance. Nem aparelho reflexivo, não é exagero ou hipertrofia dos
dramas sociais: é coisa em si. Experimenta, expressa, articula, anuncia,
espelha, manifesta “modos de presentação” (TURNER, 1982, p. 12) e de
representação. Uma performance estabelece um processo de experiên-
cia em fusão, em amálgama, em ciclo, não final, não inicial, não
orientável. Como o pai que vê no seu filho aquilo que o assemelha e o
diferencia.
A ocasião. Em março de 2019 completaram-se os 10 anos do faleci-
mento da Profa. Dra. Sandra Jatahy Pesavento (fevereiro/1946–
março/2009) e, recentemente, em fevereiro de 2021, comemoramos o
que seriam os 75 anos de seu nascimento e o frescor de seu pensamento.
Vamos começar esta curta reflexão com uma frase da historiadora
Nádia Maria Weber Santos, num artigo de mais de dez anos atrás, em
que se discutem contribuições de Sandra Jatahy Pesavento. Afirma a
historiadora Santos: “eu diria que a História do Imaginário e das Re-
presentações começou a ser traçada, aqui no Rio Grande do Sul, através
dos textos da professora Pesavento sobre a cidade (e também na relação
entre história, literatura e representações do urbano)”. Esse artigo foi
publicado em 2009, na revista Fênix, mesmo ano do falecimento de San-
dra Pesavento, seu nome “A Sensibilidade na Vida e Obra da
Robson Corrêa de Camargo • 143

Historiadora Sandra Pesavento – A Questão da Interdisciplinaridade,


Postura Crítica e a História Cultural”. Nele Nádia acrescentaria

A descrição da realidade social, a “volta” da narrativa, a compilação de in-


formações com análise e teorização, a interdisciplinariedade, a análise das
práticas culturais e das representações, a questão do sujeito e do cotidiano
– tudo isto enriquece nossos textos historiográficos, na análise e resgate de
uma história sócio-cultural vivida na nossa cidade e nos outros “urbanos”.
E foi Sandra Pesavento a pioneira no RGS desta nova postura historiográfica
(SANTOS, 2009, p. 5).

Este pioneirismo se dava no marco do que podemos chamar de pro-


jeto desenvolvido por Sandra Jatahy Pesavento. Este apresentava uma
“nova forma de a História trabalhar a cultura”, desenvolvendo, como ela
afirmava, “uma espécie de arqueologia de um campo, o da História Cul-
tural” (PESAVENTO, 2007a, p. 15).
Santos, então, apresenta o que parece ser o cerne do pensamento
último de Pesavento em seu canto: afirma Santos a importância do con-
ceito de sensibilidade na História Cultural:

[...] assim, é com a noção de sensibilidade, muito pertinente aos atuais es-
tudos da História Cultural, que quero contemplar este artigo. Para nós,
historiadores da cultura, ela é colocada como uma outra forma de apreensão
do mundo, para além do conhecimento científico. As sensibilidades corres-
ponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência
humana no mundo, que se encontra no âmago da construção de um ima-
ginário social. O conhecimento sensível opera como uma forma de
reconhecimento e tradução do mundo que brota não do racional ou das
construções mentais mais elaboradas, mas dos sentidos, que vêm do íntimo
de cada indivíduo. (REPITO, BROTA DOS SENTIDOS). Às sensibilidades
compete esta espécie de assalto ao mundo cognitivo, pois lidam com as
144 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

sensações, com o emocional, a subjetividade, os valores, os sentimentos


(SANTOS, 2009, p. 7, grifos da autora).

Encontramo-nos assim, frente a um novo assalto ao mundo cogni-


tivo que aparenta desconhecer o que antes, de certa forma, se ignorava:
as sensibilidades. Um ano depois, em 2010, publiquei um artigo na re-
vista Moringa, seu nome “E que a nossa emoção sobreviva... Brecht, Marx
e o tratado védico Natyasastra”. Este trabalho concentrava-se também
em aspectos do conceito de sensibilidade, emoção e razão, mas se res-
tringia à sensibilidade no drama.
Sandra Jatahy Pesavento realizara, em seus escritos, uma compe-
tente arqueologia do pêndulo da História no século XX e, criticava, nessa
trajetória, os traços de um determinado marxismo que infelizmente ig-
norara o ser sensível. Esse marxismo capenga fora alçado a explicar
equivocadamente, com tentativa de régua única e sem compasso, pelo
telescópio um pouco difuso e redutor das lutas de classes, todas as coi-
sas em primeira instância, e, certamente, por isso não alcançara
aspectos fundamentais do pensamento humano, que sim haviam sido
abordados anteriormente por seu fundador. Esse marxismo, difundido
no século XX, dicotômico, míope, afastou-se progressivamente não ape-
nas da história de uma melhor forma de conhecimento do humano, mas
também de seu patrono maior.
O pensamento de Sandra Pesavento aproxima-se, ao revés, em cri-
ticar este marxismo coto, apartado das preocupações estabelecidas por
um Marx original, o qual a historiadora Sandra Pesavento retoma e, em
bases mais profundas, possibilita a união em síntese do sentir ao pensar.
Vamos ouvir um pouco minhas perorações sobre um Marx, um Marx de
Robson Corrêa de Camargo • 145

antanho, jovem, primevo, que ilumina, amplia e ata o pensamento con-


temporâneo de Pesavento numa forma ainda pouco explorada.
Em suas Teses Contra Feuerbach, de 1845, quase cento e oitenta anos
atrás, Marx (1818-1883) argumentara – e atenção para suas palavras –
que a falha capital de todo materialismo “é que as coisas [der Gegens-
tand], a realidade, o mundo sensível” não são concebidos “como
atividade humana sensível” (Tese I, negritos deste autor). Vale a pena
repetir: a falha capital de todo materialismo “é que as coisas [der Ge-
genstand], a realidade, o mundo sensível” não são concebidos “como
atividade humana sensível” (Tese I, ênfases deste autor). Uma falha ca-
pital.
Em 1845 estamos frente aos primeiros anos de uma intensa escrita
deste marxista das origens e que chegaria ao final em sua longa e fun-
damental construção apenas com sua morte, em 1883. Entretanto, Teses
Contra Feuerbach ou de Feuerbach seria publicado apenas em 1924, oi-
tenta anos depois de sua escrita, em alemão e depois traduzido ao russo
e depois ao inglês, em 1938. Certamente uma das razões, mas não certa-
mente a principal, da figura e da compreensão das sensibilidades
humanas estarem tão ausentes nas elaborações marxistas fundamen-
tais, de seus leitores posteriores e, principalmente, de alguns
historiadores que assim o reivindicaram, sem ignorar a insensibilidade
stalinista imposta. É interessante que se perceba que, neste mesmo ano,
1845, Marx publicaria ainda outros trabalhos que mostravam a maturi-
dade de seu pensamento como A Ideologia Alemã, junto com Engels, e
ainda A Sagrada Família. E ainda, para aqueles que se dedicam aos deta-
lhes, neste mesmo ano, seu principal colaborador, Engels publicaria As
condições da classe trabalhadora na Inglaterra.
146 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Temos assim aqui, publicados neste mesmo ano, escritos que, ao


mesmo tempo, aprofundam as análises que iriam compor diferentes fa-
ses ou processos posteriores do marxismo no entendimento da História
do século XX. Então, de uma certa forma, encontramos, em síntese, vá-
rias das polêmicas metodológicas em que se perderiam historiadores
marxistas no século XX, ao tomar partido por leituras mais econômicas
ou superestruturais nas determinações do mundo contemporâneo. Não
observaram que a moeda marxista tem dois lados, pula e ainda rola, tal
como apontou Sandra Pesavento ao final de sua trajetória. No ano ante-
rior ainda às Teses, Carlos Marx houvera escrito importante obra, os
seus Manuscritos Econômico Filosóficos, de 1844, em que, em suas páginas
finais, apresentou a seguinte questão, desenvolvendo as ideias de
Feuerbach em seu Essência do Cristianismo, vamos ouvir atentamente:

Que o homem seja um ser corpóreo, provido de uma força natural, vivo, real,
sensível, objetivo, significa que tem como objeto de seu ser, de suas mani-
festações vitais objetos reais, sensíveis, e que somente sobre objetos reais,
sensíveis, pode manifestar sua vida. Ser objetivo, natural, sensível, é idên-
tico a ter objeto, natureza, sentido fora de si, ou incluso ser objeto, sentido,
natureza para um terceiro. A fome é uma necessidade natural; necessita, pois,
de uma natureza fora de si, de um objeto fora de si, para poder satisfazer-se,
para poder acalmar-se. A fome é a necessidade objetiva que um corpo sente
de um objeto que está fora dele, indispensável para sua integração e a ma-
nifestação de seu ser (MARX, 1978, p. 160, tradução deste autor do espanhol,
editora Pluma).

Ou ainda, como afirmaria Marx em seus Manuscritos Econômicos e


Filosóficos: “O homem como ser objetivo sensível é, por isso, um ser que
padece, e, por ser um ser que sente sua paixão, um ser apaixonado. A
Robson Corrêa de Camargo • 147

paixão é a força essencial do homem que, de maneira energética, tende


ao sujeito” (MARX, 1978, p. 161).
Para os ainda não familiarizados com a importância de Feuerbach
no pensamento marxista, Marx (1980, p. 8) afirma, no seu prólogo aos
Manuscritos, que “A primeira crítica positiva humanista e naturalista
data de Feuerbach e, sendo esta menos ruidosa, não deixa de ser mais
segura, profunda, extensa e duradoura, a influência dos escritos de
Feuerbach”. Marx ainda não poupa elogios a este autor, ao afirmar que
os escritos de Feuerbach são os únicos que contêm uma verdadeira re-
volução teórica desde a Fenomenologia e a Lógica de Hegel. Repetindo “os
únicos que contêm uma verdadeira revolução teórica”. Entretanto, re-
tomemos ainda, brevemente, a tese de um dos escritos de Marx contra
Feuerbach, na qual ele critica sim Feuerbach, mas por ter visto o mundo
sensível apenas como contemplação e não como atividade objetiva sen-
sível. Uma grande diferença. Assim, a atividade humana sensível deve
ser vista como atividade objetiva e ainda como pensamento e práxis
sensível, como ação presente, ouçamos atentamente, dizia Marx:

A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias - o de


Feuerbach incluído – é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo
sensível são tomados apenas sobre a forma do objecto [des Objekts] ou da
contemplação [Anschauung]; (...) Feuerbach quer objectos [Objekte] sensíveis
realmente distintos dos objectos do pensamento; mas não toma a própria
actividade humana como atividade objectiva [gegenständliche Tätigkeit]. Ele
considera, por isso, em seu Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica
como a genuinamente humana, ao passo que a práxis é tomada e fixada ape-
nas na sua forma de manifestação sórdida e judaica. 1

1
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm Acesso em 14/7/2021
148 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Em outra forma, ainda em suas Teses Contra Feuerbach, agora na


tese cinco, Marx desenvolveria ainda mais esta questão, e, para que fi-
que ainda mais clara a importância do reconhecimento da sensibilidade
como força propulsora no pensamento marxista original, retomemos,
tentando ampliar o debate dessa presença na sensibilidade Pesaventi-
ana. Afirmara Marx que a sensibilidade ou o mundo sensível são
“atividade prática, humana e sensível”. A verdade, assim posta por
Marx, é uma realidade objeto-sensível, passível não apenas de reflexão,
mas de prática. Assim, o pensamento não pertence ao homem “em si”,
assim como não existe apenas o mundo “em si”, o pensamento está no
mundo conhecido, ou melhor, a se conhecer, um mundo sensível ou
mundo que existe com o Homem. Pensamento e sensibilidade estão no
mundo, numa relação dinâmica e externa, não como manifestações in-
ternas. O mundo e a humanidade se encontram numa relação dialógica,
pensamento sensível, pensamento em contato com o mundo. Praxis do
Homem no mundo, um mundo onde se age, não apenas se restaura.
Por outro lado, criticara Marx que o desejo de Feuerbach de querer
objetos sensíveis diferenciados daqueles do pensamento seria um equí-
voco, pois, atenção, o “materialista” Feuerbach “não capta a atividade
humana como atividade objetiva” (tese 1). Para Marx, a atividade
“sensível” é atividade humana, descartando a separação absoluta objeto
e pensamento, corpo e relva. Vale a pena repetir: “a separação absoluta
objeto e pensamento”. A realidade é uma realidade pensada e praticada
e praticada e pensada. Assim também o é a performance, realidade pen-
sada e praticada e praticada e pensada, não apenas restaurada.
Na tese nove, de outra forma, Marx retomaria a mesma ideia, afir-
mando que: o máximo que o “materialismo contemplativo [der
Robson Corrêa de Camargo • 149

anschauende Materialismus]” consegue, i.e., o materialismo que não


compreende o mundo sensível como atividade prática, é a visão [Ans-
chauung] dos indivíduos isolados na “sociedade civil”. Deve-se evitar,
assim, o materialismo contemplativo, procurando-se – e aqui voltamos
às teses desenvolvidas por Pesavento em seu História e História Cultural
–, repito, procurando-se o mundo sensível como atividade prática.
A performance é atividade prática sensível, atividade prática do
mundo sensível. Vale a pena repetir conjuntamente com o primeiro
marxista, na elaboração de Pesavento, que: a coisa, a natureza e o
mundo objetivo, não existem sem “atividade humana sensível” ou não é
possível pensamento sem uma atividade humana sensível. Aprofunda
Marx assim que, a mercadoria alienada contém o trabalho, a emoção e
o pensamento humano. Emoção e pensamentos que se encontram na
natureza, na sociedade e no ser humano. Toda natureza é uma natureza
do “corpo inorgânico” do homem, portanto, corpo inorgânico sensível e
o seu espírito é a arte.
Nádia Santos, em sua arqueologia do pensamento de Pesavento,
apresenta que

as sensibilidades corresponderiam a este núcleo primário de percepção e


tradução da experiência humana no mundo que se encontra no âmago da
construção de um imaginário social. O conhecimento sensível opera como
uma forma de reconhecimento e tradução do mundo [...] (SANTOS, 2015, p.
3-4).

Sandra Jatahy Pesavento, em seu trabalho Sensibilidades: Escrita e


Leitura da Alma, de 2007, já afirmara que as sensibilidades corresponde-
riam também às manifestações do pensamento e do espírito,
destacando a ambivalência presente na relação originária do homem
150 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

com a realidade. Dizia Pesavento (2007b, p. 16): “temos uma herança que
pode ser definida como clássica: a realidade é apreendida pelos sentidos,
como postulam Epicuro e Lucrécio, ou pela mente, como argumentam
Platão e Aristóteles”. E, em mais detalhes, notemos sua conclusão:

Sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em palavras e em imagens,


em objetos da vida material em materialidade do espaço construído. Falam
por sua vez do real e do não real. [...] remetem ao mundo do imaginário, da
cultura, e de seu conjunto de significações. (PESAVENTO, 2007b, p. 20).

Objetos do mundo real e do não real, amalgamados. Sandra Pesa-


vento ampliaria aí uma discussão realizada no século XX pela filósofa
Susanne Langer (1971a [1953], 1971b [1942]). Embora contida principal-
mente ao terreno da Arte, por Langer, que a tinha como sua
preocupação principal, afirmava Langer, em seu Sentimento e Forma, que
as formas de arte são expressões dos sentimentos humanos numa forma
sensorial, em que a arte é a “...criação de formas simbólicas do senti-
mento humano” (1971a [1953], p. 42). Para Langer uma obra de arte é
sempre um símbolo primário, único, indivisível, não discursivo, um
símbolo que chama presentacional, não é meio, não re-presenta, pois
presente, se presenta, e este pode ser analisado, mas não reduzido à
análise. É um símbolo presentacional construído em um “processo de
síntese de elementos”, sobrepostos, justapostos, contrapostos, apostos.
Seus elementos se compõem de forma totalizante (LANGER, 1971a
[1953], p. 383). Admite, desse modo, o trabalho do artista como a feitura
do símbolo sensível, o qual apresenta a sua significação por meio de for-
mas articuladas em um dado meio. Logo, nas palavras da autora, “o que
a arte expressa não é um sentimento real, mas idéias de sentimentos
[...]”. A Arte não é cópia de sentimento, mas sua presentação simbólica,
Robson Corrêa de Camargo • 151

“conhecimento de sentimento projetado nesta forma articulada


atemporal” (LANGER, 1971a [1953], p. 387, grifos do autor).
Acompanhando Pesavento, agora sobre os ombros de Susanne Lan-
ger, naveguemos: podemos ampliar que os ritos, a cultura e a arte são a
criação e a vivência de formas simbólicas do sentimento humano por meio
de símbolos presentacionais, tais como os símbolos da arte. Para Langer
(1971a [1953]), há os símbolos discursivos da linguagem e os símbolos
abertos apresentados ou “presentacionais” da obra de arte, que nunca
fecha seu sentido. Podemos então dizer que os ritos, os jogos, as festas,
as performances da cultura se desenvolvem também ao mesmo tempo
como linguagem e como arte, embora com dinâmicas distintas. São, ao
mesmo tempo, representação e presentação, ação de realidade. Pro-
põem essas performances culturais uma vivência da experiência
emocional dos partícipes, uma “ideia” de emoção, uma imagem em ação,
imaginação. Criam assim, ao mesmo tempo, uma aparência de tempo,
um “tempo virtual”, uma aparência de realidade, uma realidade virtual,
“espaço virtual” onde se encontram e se reiteram ilusão, aparências e
vivências de acontecimentos.
Os rituais, as festas, os jogos, ao conterem, desenvolvem formas
musicais e artísticas, simples ou complexas; ostentam e promovem uma
lógica de vivência, de semelhança, como formas de sentimentos huma-
nos. Os rituais, o movimento, a música, a gestualidade, o momento
vivido e revivido, é um “símbolo presentado” do processo psíquico e das
suas estruturas tonais que ostentam uma lógica estreita de semelhança
com as “formas de sentimento”. Parafraseando Susanne Langer, em seu
Sentimento e Forma (1971a [1953]), formas de crescimento e de atenuação,
de fluxo e de refluxo, de desorganização e de arrumação, de conflitos e
152 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

de resolução, de excitação e de calma. Assim, o símbolo e o objeto viven-


ciado, em experiência, têm uma forma lógica. Lógica sensível, que é
outra lógica. O sentimento, tanto para Langer como para Marx, é base
da experiência, da sensação, da emoção, da memória, do pensamento e
da ação. Não apenas se restaura, mas se instaura, também nas muitas
portas de Diderot.
Estivesse ainda Pesavento entre nós, como sempre aberta aos no-
vos caminhos do pensamento e da história, certamente aprofundaria a
sua investigação sobre a sensibilidade na sociedade junto aos novos e
recentes caminhos da neurociência, que não separam o pensamento “ci-
entífico” do pensamento sensível, e que, ao contrário, apresentam a
impossível separação entre os dois no estabelecimento do comporta-
mento humano e da sua intensa relação na sociedade.
Não há conhecimento sem emoção e vice-versa, como apresentam
os estudos iniciados pelo neurobiólogo português António Damásio, em
seu O Erro de Descartes, Emoção, Razão e o Cérebro Humano, de 1994. Da-
másio, neurocientista, descreve a íntima relação entre as estruturas
cerebrais envolvidas na gênese e na expressão das emoções (o sistema
límbico), na elaboração de imagens e de áreas do córtex cerebral ligadas
à tomada de decisões, recuperando elementos da teoria das emoções de
William James, de 1884, escritas um ano após o falecimento de Marx.
Para ele, James, as emoções jogam um papel central nas tomadas de de-
cisão e ainda na cognição social.
Em artigo de 2007, escrevendo também sobre a interdependência
entre cognição e emoção (On the interdependence of cognition and emo-
tion, de Justin Storbeck e Gerald L. Clore) – mesmo ano de publicação do
aqui citado Sensibilidades: Escrita e Leitura da Alma, de Pesavento –,
Robson Corrêa de Camargo • 153

Storbeck e Clore descrevem, no campo da neurologia, diferentes argu-


mentos do estado da arte desta relação fundante do ser humano,
cognição e emoção, para expressar seu ponto de vista da relação inter-
dependente e interativa entre emoção e cognição. Suas conclusões se
fundamentam em pesquisas de seu laboratório, elas apontam o papel do
afeto na percepção e da regulação afetiva nos estilos de processamento
de informação.
Storbeck e Clore apresentam três possíveis hipóteses que orientam
os estudos da neurociência, e podem nos ajudar a amplificar as contri-
buições de Pesavento nos dias de hoje. A primeira hipótese, a da emoção
e da cognição sendo processadas independentemente em áreas distintas
do cérebro; a segunda, em que o afetivo teria uma primazia nessa rela-
ção; e a última hipótese de que o afetivo seria um processo automático
que agiria automaticamente no comando dos estímulos e na avaliação.
Para nossa abordagem, até o momento, não é necessário que cheguemos
em tal ponto da definição de primazias, devendo nos concentrar no se-
guinte aspecto. Diferentes áreas de pensamento percebem
fundamentalmente que emoção e cognição não são forças separadas
e/ou opositivas, mas que se amalgamam de distintas maneiras. Tradici-
onalmente se separava o controle motor das emoções, do pensamento,
mas hoje se percebe o relacionamento efetivo e afetivo no movimento e
no conhecimento. Bom, isso é matéria ainda a ser aprofundada, o que
podemos fazer na perspectiva da sensibilidade apresentada por Pesa-
vento e da História Cultural.
Em síntese, em sua arqueologia da História Cultural, Pesavento
fala “de uma espécie de arqueologia de um campo, o da História Cultural
e da História” (PESAVENTO, 2007a, p. 15), ou ainda, como afirma no fim
154 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

de seu segundo capítulo, a “consolidação de um campo de trabalho” e “a


construção deste novo olhar da história, a partir dos seus principais
pressupostos teóricos de análise”, pressupostos que colocam a sensibi-
lidade no centro do conhecimento humano (PESAVENTO, 2007a, p. 20).
A emoção está aí para quem quiser ver.
Assim teremos várias aproximações do entendimento da ação hu-
mana e podemos ainda ampliar, não apenas da História Cultural. Como
aqui demonstrado brevemente, aproximou-se ela, ao se esquivar de de-
terminadas abordagens das concepções de um marxismo positivista e
limitado no século XX, das preocupações daquele jovem Marx, num
longo caminho ainda a ser trilhado, e que se ajunta às recentes contri-
buições da neurobiologia que, em visão transdisciplinar da afetividade,
percebe as emoções e os sentimentos como constituidores de aspectos
centrais e relacionais de nossa regulação biológica e como construtor de
pontes entre processos racionais e não racionais. Essa concepção abre
ainda o conhecimento a novos universos na elaboração da afetividade
na análise não apenas da História, mas ainda das performances cultu-
rais e da cultura, seja em ritos, festas, jogos e/ou nas vivências
individuais e coletivas.
Para terminar nossa contribuição, penso que seria sábio ouvir e co-
mungar, mais uma vez, com Fernando Pessoa, ou melhor, com Alberto
Caeiro, em seu O guardador de Rebanhos. Sentados na relva podemos ou-
vir este poema escrito, provavelmente numa noite de insônia de 1914,
um ano antes da morte virtual da personagem por tuberculose. Per-
gunto: personagens morrem de tuberculose?
Robson Corrêa de Camargo • 155

IX:

Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos


E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.

REFERÊNCIAS

CAMARGO, Robson Corrêa de. E que a nossa emoção sobreviva... Brecht, Marx e o tratado
védico Natyasastra. Moringa: artes do espetáculo, João Pessoa, v. 1, n. 2, p. 35-43,
jul./dez. 2010.

DAMÁSIO, António R. O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano, São


Paulo: Companhia das Letras, 1996. Descartes’ error: Emotion, reason and the
human brain, Putnan Pub. Group, 1994.

DIDEROT. Lettre sur les aveugles a l’usage de ceux que voient [carta aos cegos para o uso
de quem pode ver]. Paris Gallimard, 2000 [1749], p. 856.
156 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

FORGAS, Joseph P. Affect and cognition. Perspectives on psychological science, v. 3, n. 2, p.


94-101, 2008.

LANGER, Susanne K. Sentimento e Forma. São Paulo: Perspectiva, 1971a [1953].

LANGER, Susanne K. Filosofia em Nova Chave. São Paulo: Perspectiva, 1971b [1942].

MARX, Carl. Manuscritos Economico-filosoficos de 1844. Tradução de Daniel Zadunaisky e


Adriana Zuliani. Bogotá: Editorial Pluma, 1980.

MARX, Carl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MARX, Carl. Teses Contra Feuerbach. 1845. Disponível em: https://www.marxists.org/


portugues/marx/1845/tesfeuer.htm.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 3. ed. (2003, primeira edição).
Autêntica, 2007a.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In: PESAVENTO,


Sandra Jatahy; LANGUE, Frederique (orgs.). Sensibilidades na história: memórias
singulares e identidades sociais, v. 1, 2007b. p. 9-21.

SANTOS, Nádia Maria Weber. A sensibilidade na vida e obra da historiadora Sandra


Pesavento. A questão da Interdisciplinaridade, postura crítica e história cultural.
Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 6, ano VI, n. 3,
julho/agosto/setembro 2009.

SANTOS, Nádia Maria Weber. Quando as sensibilidades tomam posição... A obra de


Sandra Jatahy Pesavento e sua importância para a historiografia brasileira. In:
LEENHARDT, J. (et al.) História Cultural da cidade: homenagem à Sandra Jatahy
Pesavento. Porto Alegre: Marca/Visual, PROPUR, 2015. p. 271-296.

STORBECK, Justin; CLORE, Gerald L. On the interdependence of cognition and emotion.


Cogn Emot., University of Virginia, Charlottesville, VA, USA, v. 21, n. 6, p. 1212-37,
2007.

TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play Performance
studies series. New York: Performing Arts Journal, 1982.
7
A MEMÓRIA E O SENSÍVEL NA CONCRETUDE DO
ACERVO SANDRA JATAHY PESAVENTO
Vânia de Oliveira

INTRODUÇÃO

O presente artigo é fruto da palestra realizada na mesa que teve


como tema a “Gestão de acervos pessoais e memória” durante a V Jor-
nada Sandra Jatahy Pesavento, que teve lugar em agosto de 2021.
Registre-se aqui os agradecimentos à Profa. Dra. Nádia Weber Santos
pelo convite para integrar a equipe do projeto: “O pensamento de San-
dra Jatahy Pesavento e sua importância na historiografia brasileira: da
história econômica à História Cultural” – um estudo a partir do arquivo
pessoal da historiadora, contemplado na Chamada Universal CNPq 2018,
que findou por provocar as reflexões aqui resumidas. É fruto também
de uma bagagem profissional da autora, que reúne uma experiência com
a gestão de acervos em sua vertente de documentação e na gestão pro-
priamente dita de museus que reúnem acervos pessoais: o Museu Casa
de Benjamim Constant e o Museu Casa de Rui Barbosa.
É possível estabelecer alguns traços em comum entre os museus-
casa e o Acervo Sandra Jatahy Pesavento. O acervo reunido é resultado
de uma seleção inevitável, tanto da parte da instituição que o acolhe,
quanto por decisão de familiares e herdeiros, que nem sempre estão
propensos a se desfazer de tudo, por razões diversas. A partir dos obje-
tos/documentos selecionados, constroem-se memórias e inferências
sobre fatos correlatos e contemporâneos, traços da personalidade da
158 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

homenageada, da mesma maneira que idealizações. Instala-se então o


primeiro desafio: manter uma postura equilibrante entre o endeusa-
mento e o desmonte da imagem criada. Os dois extremos são perigos a
serem evitados na formação e na gestão de acervos pessoais. Consti-
tuem-se em desafios tanto na gestão como na documentação de seus
acervos.
Entre os rumos a serem trilhados no desenvolvimento deste artigo,
seria possível abordar as técnicas documentais e de conservação; os mé-
todos de classificação pessoais e institucionais e tantos outros temas
candentes para os que trabalham com acervos, patrimônios, memórias.
Contudo, outro caminho foi o escolhido. Sobre as atividades de trata-
mento técnico de documentação, conservação e restauro, a
conservadora e restauradora de bens culturais, Simone Steigleder, que
esteve à frente desse trabalho e, com muito mais propriedade, o descre-
veu em sua apresentação na V Jornada Sandra Jatay Pesavento. 1
A opção feita recai sobre aspectos sensíveis relativos à documen-
tação e ao resgate da memória, perceptíveis e/ou presumíveis na
concretude dos objetos reunidos e tão bem preservados pelo Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), que parabenizo
na pessoa da Profa. Dra. Nádia Weber Santos – curadora do Acervo San-
dra Jatahy Pesavento – e sua valorosa equipe. Para amparar essas breves
reflexões, recorreu-se a um texto recentemente escrito por Célia de Oli-
veira (2017), o qual traz uma excelente revisão de literatura acerca de
estudos sobre coleções e colecionamento; a Maurice Halbwachs (1990)
para falar de memória, assunto central aqui; a Gaston Bachelard (2000),
pelo olhar sobre a casa e os devaneios tão criativos quanto reveladores;

1
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=PfHNI_CVyrs>. Acesso em 28/2/2022.
Vânia de Oliveira • 159

a Nádia Weber Santos (2015), para falar de Sandra Pesavento, além de


textos dela própria (2003, 2007).
Indo direto ao ponto, nunca é demais repetir que é fundamental
preservar, em suas duas vertentes, a documentação e a conservação.
Conservar visa garantir a integridade física e/ou estabilizar o estado de
conservação em que se encontra o objeto, quando de sua incorporação
ao acervo. Adota-se aqui o conceito amplo de documentos, como defen-
dido por Paul Otlet (1934 apud ORTEGA; LARA, 2010), seguido por Suzane
Briet (1951) e pelas correntes francesa e espanhola dos estudiosos da do-
cumentação, 2 que considera documento todo e qualquer suporte de
informação, não se restringindo aos documentos de arquivo e aos livros,
em suporte papel. Tem-se então que, documentar é o ato de reunir, or-
ganizar e disseminar o conteúdo informacional dos
objetos/documentos, tanto no que se refere aos dados intrínsecos – per-
ceptíveis no objeto, pelo exame de sua materialidade –, quanto
extrínsecos, relativos à sua aquisição, histórico, contexto e vida social –
dados sobre e ao redor do objeto (CERÁVOLO; TÁLAMO, 2000) –, em to-
dos os níveis, inclusive e principalmente, nos níveis do sensível e do
imaginário. Aliás, museus e quaisquer coleções visitáveis têm como di-
ferencial lidar com aspectos sensíveis. Sobre esse diferencial, Bernard
Deloche (2011, p. 9) já nos lembrava que “o museu é um lugar privilegi-
ado de experiências sensoriais”. Através do contato com os objetos, das
“experiências sensoriais” que resultam desse contato, podem ser acio-
nados gatilhos de memórias que apelam e tocam em emoções e
sensibilidades. Assim como ela mesma em seus escritos, a coleção de

2
Para aprofundar o tema, Cf. Cristina Ortega e Marilda Lara (2010), que fazem uma importante
sistematização do conceito de documento desde Paul Otlet, e uma resenha das diversas correntes
teóricas da Documentação.
160 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

objetos reunida por Sandra Jatahy Pesavento, durante sua produtiva


vida intelectual de mais de quarenta anos, nos fala de história, de me-
mórias, de emoções e sensibilidades. Tanto observar quanto
documentar tais objetos nos proporcionam diferentes sensações e pro-
vocam indagações.
Então, permitiu-se aqui o exercício do olhar sobre esses objetos,
agora musealizados, como se estivessem em uma exposição sobre a vida
e a obra de Sandra Pesavento, tentando extrair dessa visita imaginária
alguma pequena parte de sua experiência sensível em relação aos obje-
tos que adquiriu e guardou.
Afinal, como disse a própria homenageada da V Jornada Sandra
Jatahy Pesavento,

Recuperar sensibilidades não é sentir da mesma forma, é tentar explicar


como poderia ter sido a experiência sensível de um outro tempo pelos ras-
tros que deixou. O passado encerra uma experiência singular de percepção
e representação do mundo, mas os registros que ficaram, e que é preciso
saber ler, nos permitem ir além da lacuna, do vazio, do silêncio
(PESAVENTO, 2007, p. 21).

Antes, contudo, necessário refletir sobre o ato de colecionar e ser


colecionadora.

1 A COLECIONADORA

O ato de colecionar é quase tão antigo quanto a humanidade. Há


registros arqueológicos de que já na Pré-História o ser humano “guar-
dava, protegia e atribuía um valor simbólico a objetos que possuíam
características especiais, mesmo não estando associados a necessidades
Vânia de Oliveira • 161

de sobrevivência (cf. OLIVEIRA, 2017, p. 170; POMIAN, 1984, p. 70;


LEROI-GOURHAN, 2007, p. 73-74).
Ao longo do tempo, esse hábito foi se modificando, reproduzindo
ou refletindo os contextos políticos e sociais que lhe serviam de fundo.
Até que no século XX colecionar transformou-se num fenômeno de
massas, 3 praticado por todas as camadas sociais. Certo é que na coleção
se projeta a imagem que se quer de si, contribuindo para a construção
da própria identidade e, na projeção para o futuro, na memória que se
quer deixar para a posteridade. Nesse sentido, o papel do colecionador
é crucial para dar sentido e elevar sua reunião de objetos ao status de
uma coleção. Embora seja considerado um conceito não definível,
aceita-se a “percepção, mais ou menos compartilhada, de uma coleção
como uma entidade composta por um conjunto de objetos, removidos
do circuito das atividades econômicas e sem valor utilitário” (OLIVEIRA,
2017, p. 171).
Sandra Pesavento foi uma colecionadora e colecionou com interes-
ses muito específicos, o que não é a norma, mas é encontrado em vários
colecionadores famosos, como Guita e José Mindlin e sua paixão pelos
livros, que deu origem à Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, ins-
talada no Complexo Brasiliana da USP; Jacques van de Beuque, cuja
coleção deu origem ao Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, e Ema-
nuel Araújo, que reuniu o acervo que hoje constitui o cerne do acervo do
Museu Afro Brasil, em São Paulo, que ele mesmo dirige. Colecionadores
também os há que não têm um foco específico, como Ricardo Brennand
– cuja coleção abarca um vasto universo de interesses e que hoje

3
Cf. texto de Célia Oliveira (2017), que traz um competente apanhado desse caminho percorrido pelo
ato de colecionar.
162 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

constitui o Instituto Ricardo Brennand, no Recife; como Pierre Chalita,


que colecionou nos mesmos moldes e que veio a formar o Museu de Arte
Pierre Chalita, ligado à Fundação de mesmo nome, localizada em Ma-
ceió, nas Alagoas.
Embora as proporções da coleção de Sandra Pesavento sejam muito
menores, nota-se a mesma intenção colecionadora. E como soe aconte-
cer, a coleção fala de sua colecionadora, Sandra Jatahy Pesavento, de
seus interesses, de aspectos de traços de sua personalidade, de seu “mu-
seu” pessoal. Cada uma e cada um de nós têm seu museu pessoal, de
fragmentos das experiências e memórias vividas.

2 A COLEÇÃO

Figura 1 – A coleção na casa de Sandra Jatahy Pesavento


Vânia de Oliveira • 163

Fonte: Acervo SJP/IHGRS.

A pequena mas significativa coleção de Sandra Pesavento abarca


cerca de 200 objetos, entre miniaturas de casas, guias de viagem, cartões
postais, gravuras, em sua maioria adquiridos durante suas viagens ou
presenteadas por amigas, amigos, orientandas, orientandos, alunas e
alunos, sabedores de suas predileções. Pequenos diários de viagem, com
anotações de suas andanças pelas cidades que visitou, de suas percep-
ções e até com anotações minuciosas de despesas diárias, fornecem
pistas que indicam suas preferências pessoais (como por um bom vi-
nho). Juntam-se a incontáveis colares comprados em viagens – uma de
suas paixões – e a pedras de locais visitados, guardadas em caixinhas,
164 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

devidamente organizadas e etiquetadas, com a identificação do local em


que foram coletadas. Além de obras de arte popular, e recipientes diver-
sos (canecas, vasos etc.), em miniatura ou em tamanho natural,
provavelmente daqueles vendidos em lojas de museus e outros espaços
culturais. A coleção reúne também álbuns de fotos de viagens, organi-
zadas por ela, separadas e coladas em papéis coloridos, em que cada cor
foi associada a um país; a França, por exemplo, foi representada pelo
azul. Os diversos objetos parecem não guardar relação entre si? Talvez,
mas isso não importa, pois, “o que encadeia todos os objetos é um fio de
emoções que é visível e inteligível apenas para” quem os coleciona
(OLIVEIRA, 2017, p. 174), nesse caso, para sua criadora.
Ao longo do projeto supracitado, do qual sou consultora, e, tam-
bém, devido à pandemia causada pelo novo coronavírus, houve duas
únicas visitas à coleção mencionada. A primeira, remotamente, por
meios digitais, no dia 15 de julho de 2021, conduzida pela Profa. Nádia
Santos, pela conservadora e restauradora Simone Steigleder, pela bibli-
otecária Marcela Kröef e pelo arquivologista e historiador, Alexandre
Veiga. A segunda visita ao acervo foi presencial e só aconteceu no final
de outubro. Essas duas visitas e os relatos da Profa. Nádia Santos foram
fundamentais para as pontuações aqui levantadas, com as desculpas
para possíveis equívocos. Afinal, interpretações estão sujeitas a algum
grau de suposição, posto que envolvem subjetividades.
Percebe-se que a Profa. Sandra Pesavento tinha uma organização
toda própria. O gosto pela organização e o prazer em cuidar dos objetos
que guarda são tidos como fortes características dos colecionadores
(OLIVEIRA, 2017, p. 176). Teria ela uma vontade ou desejo de memória
(NAMER, 1987, p. 177), uma intenção de construir sua própria imagem
Vânia de Oliveira • 165

para a posteridade ao fazer uma organização tão minuciosa? Sua morte


prematura não permite afirmar que já estivesse construindo uma me-
mória de si, pela consciência de desempenhar um papel importante na
historiografia sul-rio-grandense e até nacional. Papel esse já longa-
mente tratado por seus biógrafos, comentaristas e admiradores.
Contudo, é possível inferir que tinha, no mínimo, uma forte intenção de
reter a memória de suas andanças pelo mundo e seus encantos.
Seu traço de pesquisadora incansável e metódica fica bem visível
também no trato que dava ao material didático que preparava para suas
aulas e as fichas com resumos e fichamentos de textos e jornais que uti-
lizava como fontes, organizados e acondicionados em fichários
próprios, algo cada vez mais raro entre pesquisadores, a despeito dos
inúmeros recursos propiciados atualmente pelas novas tecnologias e
pelas possibilidades quase infinitas de armazenamento digital. O
mesmo cuidado foi dispensado às pedras que também reunia em suas
viagens, guardadas em caixas devidamente rotuladas com os nomes de
suas cidades e/ou países de origem (Figura 2).
166 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 2 – Caixa do Egito

Fonte: Acervo SJP/IHGRS.

Todos esses procedimentos, de colecionamento, acondiciona-


mento e registro de informações, ou seja, de documentação em última
análise, mostram sua preocupação em reter suas próprias memórias.
Seriam as pedras – em seu simbolismo de quase eternidade – uma ten-
tativa de eternizar as lembranças dos lugares que visitou, viajante
apaixonada que era? De novo, a imaginação se faz presente e conduz a
interpretação. Da coleção reunida por Sandra Pesavento nem tudo foi
transferido para a guarda do IHGRGS, tanto por determinação da famí-
lia, como pelas limitações de espaço para guarda e acondicionamento
adequados. As fotos realizadas pela equipe por ocasião da coleta do
acervo documentam a seleção feita (Figura 1). Destaque-se que só entre
as casinhas não houve seleção; foram todas para o IHGRS (Figura 3).
Vânia de Oliveira • 167

Figura 2 – O casario, como exposto na casa de Sandra Pesavento

Fonte: Acervo SJP/IHGRS.

Na visita a essa exposição imaginária, é para o conjunto mais ex-


pressivo em termos quantitativos, as miniaturas de casas, com cerca de
uma centena de objetos, que a atenção se volta nestes breves aponta-
mentos. Essas casinhas das mais diversas origens e que falam dos
lugares por onde passou trazem e, com isso, atualizam a memória de
suas viagens. Aqui eu invoco Maurice Halbwachs (1990) e seus conceitos
de memória social, memória individual e atualização de memória. Falam
também da memória e bem querer despertados pela historiadora, entre
suas amizades, alunos e alunas, que, sabedores de sua predileção, lhe
presenteavam com alguns exemplares adquiridos em suas próprias vi-
agens. Fica uma questão a ser, possivelmente, respondida com o exame
minucioso do acervo documental escrito também reunido no IHGRS:
terá ela anotado quem deu o quê?
Ao olhar para essas casinhas, imaginariamente, como em uma ex-
posição sobre Sandra Pesavento, vem à mente a impressão de alguém
168 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

que, a despeito de amar as viagens, tinha profundo apego a seu lar. Ine-
vitável trazer Gaston Bachelard para essa conversa. Em sua Introdução
à obra A poética do Espaço, em texto que é pura poesia, citando J. H. Van
den Berg, o filósofo escreve que “as coisas nos ‘falam’ e que por isso
mesmo, se damos pleno valor a essa linguagem, temos um contato com
as coisas” (BACHELARD, 2000, p. 191), tal qual ocorre em relação aos ob-
jetos de museus. É a partir dessa “fala” dos objetos casinhas, que se
consegue captar, que se constrói esta discussão, o que não significa que
todas as conjecturas serão acertadas; são muito maiores as probabilida-
des de erros. Já de partida, é preciso fazer uso da licença poética, pois,
como se sabe, em documentação, os objetos portam informações, mas
não falam. Torna-se necessário ter acesso e domínio sobre determina-
dos códigos para decifrar o que eles “falam”, ou seja, é preciso saber ler
– como aliás afirmou Sandra Pesavento na citação feita anteriormente.
Melhor ficar com o poético, por ora.
De volta à casa de Bachelard que, em seu “corpo de doutrinas que
[designou] sob o nome de topoanálise” – análise a partir ou sobre os lu-
gares –, admite que “parece que a imagem da casa se transforma na
topografia de nosso ser íntimo” (BACHELARD, 2000, p. 196). Não ignoro
que o filósofo, após explicitar o problema central que investiga, adverte
que “para resolvê-lo, não basta considerar a casa como um ‘objeto’ sobre
o qual pudéssemos fazer reagir julgamentos e devaneios” (BACHELARD,
2000, p. 199). Vamos imaginar a casa em que morou e viveu Sandra Pe-
savento, olhando para tais objetos nessa exposição imaginária como
metáforas dessa casa para ela e, como diria Bachelard, como projeções
de aspectos de seu próprio eu.
Vânia de Oliveira • 169

Como professora, provavelmente, era em casa que passava a maior


parte do tempo, pois professoras e professores trabalham mais em suas
próprias casas. Pode ter sido essa uma das razões da escolha. O fato de
serem miniaturas também pode ter determinado a opção pela coleção
de casinhas; são pequenas e fáceis de acondicionar na bagagem. Con-
tudo, muitas outras coisas em miniatura são vendidas como lembranças
de viagem, como, por exemplo, copinhos de todos os tipos e materiais.
A questão econômica pode ter sido outro fator determinante: miniatu-
ras não custam caro. Muitas variáveis se encontram nessas escolhas,
que nunca são aleatórias. Tudo isso passa pela mente, enquanto se per-
corre essa exposição imaginária, repita-se.
Bachelard (2000, p. 200) nos diz que “a casa é nosso canto do
mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo”.
Ela é a base, o espaço onde a sensação de proteção se faz mais presente,
e onde se fincam as nossas raízes. A paixão de Sandra Pesavento pelas
viagens e por determinadas cidades em particular é notória, mas, o
gosto peculiar pelas casas, parece sugerir que nela havia um apreço es-
pecial pelo “seu canto do mundo”.
Já em outro momento da exposição imaginária e olhando para a
obra historiográfica de Sandra Pesavento, ressalta o apreço pelos estu-
dos do urbano e, muito particularmente, pela Porto Alegre – sua casa no
mundo, parafraseando Bachelard. É possível afirmar que a cidade é
nossa casa no mundo, uma vez que, tal como a casa, a cidade abriga nos-
sos sentimentos de pertencimento, de segurança e de enraizamento,
sobretudo a cidade natal, mas não exclusivamente. Em texto sobre a
obra da historiadora, Nádia Weber Santos destaca Visões do Cárcere,
que, em seus dizeres “também é uma obra magistral, assim como os
170 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

“Sete Pecados da Capital” (sua última obra escrita) [...] pois ela congrega
alguns dos temas mais caros à sua trajetória como pesquisadora: o
mundo dos excluídos, a cidade, as imagens e as sensibilidades”
(SANTOS, 2015, p. 290).

Figura 3 – Detalhe do casario

Fonte: Acervo SJP/IHGRS.

Em meio às casinhas, a atenção é atraída para a representação de


um casario que se destaca do conjunto pelas proporções maiores e por
reproduzir a zona de prostituição de uma cidade (Figura 4), apontando
para a realidade de uma parcela de excluídas, as prostitutas. Terá ela
refletido ou pensado em escrever sobre prostitutas, suas condições de
vida e trabalho, sobre a desatenção a essa parcela da população urbana,
sobre essas cidadãs? A resposta a essa questão também pode ser encon-
trada nos apontamentos da pesquisadora, em etapas posteriores e mais
acuradas do tratamento técnico do acervo documental.
Vânia de Oliveira • 171

Com mais perguntas que respostas, termina a visita à exposição


imaginária. Não sem absorver um pouco mais de Sandra Pesavento, da
sua obra, da sua personalidade, para além da pesquisadora meticulosa e
professora, pois “no contexto de uma coleção, a melhor qualidade dos
objetos está na sua capacidade performativa, de produzir e espelhar a
imagem que o colecionador cria para si e projeta para os outros”
(OLIVEIRA, 2017, p. 174).

3 APONTAMENTOS SOBRE A DOCUMENTAÇÃO DO ACERVO


MUSEOLÓGICO DA COLEÇÃO

Nestas breves reflexões sobre o acervo tridimensional/museoló-


gico da coleção Sandra Pesavento, abrigado no IHGRGS, vemos algumas
questões e desafios que pertencem ao universo da documentação em
Museologia, mencionando a seguir apenas algumas dessas questões. A
começar pela seleção do que há de ser preservado como testemunho da
memória, que se impõe em qualquer instituição museológica, já que não
se pode guardar tudo, como no delírio do conto “A Memória do Mundo”,
de Ítalo Calvino (2001).
172 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Figura 4 – A seleção

Fonte: Acervo SJP/IHGRS.

Essa seleção se dá, tanto para acatar e cumprir a missão da insti-


tuição acolhedora e sua política de acervos (explícita ou não), como por
razões de espaço físico e de recursos humanos e financeiros, que per-
mitam oferecer ao acervo as melhores condições de conservação,
guarda, acondicionamento, tratamento e acessibilidade das informa-
ções nele reunidas e preservadas (Figura 5). Outro ponto a ressaltar é a
importância do registro da maior quantidade possível de informações
no momento da aquisição. Destaca-se que, dentre essas questões e
Vânia de Oliveira • 173

desafios, estão postas também as possíveis interpretações e todas as


pesquisas que demandam e os riscos que envolvem.
A Documentação – ao contrário do que pensa o senso comum – ul-
trapassa o simples preenchimento e a elaboração de instrumentos
descritivos e de controle do acervo, como fichas de inventário e catalo-
gação, inserção em uma base de dados etc. Procedimentos esses
indispensáveis, sem dúvida. Contudo, a Documentação vai muito além
disso: exige reflexão, embasamento teórico, postura crítica, opções me-
todológicas e, sobretudo, deve dirigir suas ações e escolhas técnicas para
o usuário – utilizador, público, ou como preferirem chamar, razão de
ser do ato de documentar – usufruir. Replico aqui a definição de Docu-
mentação de Helena Dodd Ferrez:

A documentação de acervos museológicos é o conjunto de informações so-


bre cada um dos seus itens e, por conseguinte, a representação destes por
meio da palavra e da imagem (fotografia [e vídeo]). Ao mesmo tempo, é um
sistema de recuperação de informação capaz de transformar [...] as coleções
dos museus de fontes de informações em fontes de pesquisa científica ou
em instrumentos de transmissão de conhecimento (FERREZ, 1994, p. 65).

Como se vê, documentar envolve muito além do registro das infor-


mações intrínsecas, do que se vê ao exame visual e tátil do objeto. Como
também nos ensinou Suely Cerávolo e Maria de Fátima Tálamo (2000, p.
250), a Documentação extrai e registra em diferentes instrumentos e
suportes as informações do objeto (entre elas, a denominação), sobre o
objeto (a descrição, por exemplo) e ao redor do objeto, que abarca “aque-
les [dados] que remetem à chamada informação associada [...] que
contextualizam a peça e remetem-na a temas que a ela podem estar [re-
lacionados]”. Essas informações sobre e ao redor, ditas extrínsecas por
174 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

não se inscreverem na materialidade do objeto, também precisam ser


abordadas, recuperadas e inferidas na medida do possível e com base na
consulta e cruzamento com as informações contidas em fontes acessí-
veis, já que objetos “não tem folha de rosto”, como os livros; fazendo uso
de outra expressão cara a Ferrez (1994, p. 70), que é bibliotecária por
graduação. Nessas consultas e cruzamentos de informações devem ser
considerados os aspectos sensíveis e subjetivos que Sandra Pesavento
tanto apontou em seus escritos sobre a História Cultural. Essas últimas,
inevitavelmente, perpassam o sensível, o não dito e até a suposição –
poder, risco e tentação do trabalho de documentalista –, que foram
exercitados na visita à exposição imaginária, na qual foram projetadas
escolhas subjetivas em relação a viagens, condições financeiras e inte-
resses de pesquisa.

Sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em palavras e imagens, em


objetos da vida material, em materialidades do espaço construído. Falam,
por sua vez, do real e do não real, do sabido e do desconhecido, do intuído
ou pressentido ou do inventado. Sensibilidades remetem ao mundo do ima-
ginário, da cultura e seu conjunto de significações construído sobre o
mundo. Mesmo que tais representações sensíveis se refiram a algo que não
tenha existência real ou comprovada, o que se coloca na pauta de análise é
a realidade do sentimento, a experiência sensível de viver e enfrentar
aquela representação. Sonhos e medos, por exemplo, são realidades en-
quanto sentimento, mesmo que suas razões ou motivações, no caso, não
tenham consistência real (PESAVENTO, 2003, p. 58, grifos da autora).

Essa coleta e registro de informações sobre e ao redor desses obje-


tos da coleção de Sandra Pesavento certamente será o próximo passo
em relação ao acervo em pauta. É nesse ao redor que residem as subje-
tividades e as sensibilidades. A realização de entrevistas e gravação de
Vânia de Oliveira • 175

depoimentos de parentes e pessoas de seu círculo de amizades podem


ser fundamentais para compor todo o rol desse nível de informações
sobre a coleção. 4 Essa, seguramente, é a tarefa mais desafiadora e insti-
gante do trabalho documental em Museologia, uma vez que envolve
questões éticas, exige pesquisa, “faro” de detetive, bom senso e, mais
que tudo, sensibilidade.
Finalizando, o que se pretende nestas breves linhas é deixar claro
que, na gestão e na preservação de acervos – e, em especial, do acervo
de Sandra Jatahy Pesavento como traços de sua memória –, entre o sen-
sível e o concreto, a Museologia e a Documentação de objetos
museológicos escolhem os dois.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danese. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.

CALVINO, I. A memória do mundo. In: CALVINO, I. Um general na biblioteca. São Paulo:


Companhia das Letras, 2001. p. 127-133.

CERÁVOLO, Suely; TÁLAMO, Maria de Fátima Gonçalves Moreira. Tratamento e


organização de informações documentárias em museus. Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, v. 10, p. 241-253, 2000.

DELOCHE, Bernard. Le musée virtuel: vers un éthique des nouvelles images. Paris :
Presses Universitaires de France, 2001. p. 261. (Questions actuelles).

FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. Estudos
de Museologia. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), 1994. p. 65-74. (Cadernos de Ensaios, n. 2).

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. 189 p.

4
Quando do lançamento deste livro, talvez alguns desses depoimentos já tenham sido colhidos.
176 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

LEROI-GOURHAN, André. As religiões da Pré-História. Lisboa: Edições 70, 2007.

NAMER, Gerard. Les instituitions de mémoire culturelle. In: Mémoire et sociétè. Paris:
Meridien, 1987. p. 159-185. (Collection Société).

OLIVEIRA, Célia. Coleções e colecionadores: as práticas de colecionar, motivações e


simbologias. Museologia & Interdisciplinaridade, v. 6, n. 12, jul./dez. 2017.

Disponível em: https://doi.org/10.26512/museologia.v6i12.16356.

ORTEGA, Cristina Dotta; LARA, Marilda Lopes Ginez de. A noção de documento: de Otlet
aos dias de hoje. DataGramaZero – Revista de Ciência da Informação. v. 11, n. 2 p.
A03, abr./2010. Disponível em <https://brapci.inf.br/index.php/res/v/7087>

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2003.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In: PESAVENTO,


Sandra Jatahy; LANGUE, Frederique (orgs.). Sensibilidades na história: memórias
singulares e identidades sociais, v. 1, 2007. p. 9-21.

POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: ROMANO, Rugiero (Dir.). Enciclopédia Einaudi: Memória
e História, vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. p. 51-86.

SANTOS, Nádia Maria Weber. A contribuição e o legado historiográfico de Sandra Jatahy


Pesavento para a História Cultural brasileira. In: LEENHARDT, Jacques; FIALHO,
Daniela Marzola; SANTOS, Nádia Maria Weber; MONTEIRO, Charles; DIMAS,
Antônio (orgs.). História Cultural da cidade: homenagem à Sandra Jatahy Pesavento.
Porto alegre: Marca Visual/PROPUR, 2015. p. 271-296.
SOBRE OS AUTORES

Ana Lúcia Goelzer Meira é Arquiteta e Urbanista com Mestrado e Doutorado em


Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS. Possui especialização em Conservação e
Restauração de Conjuntos e Monumentos Históricos pela UFBa e aperfeiçoamento pelo
Instituto ICCROM/Roma. Foi servidora no IPHAN durante 30 anos e desempenhou a
função de Coordenadora da Memória Cultural junto à Prefeitura Municipal de Porto
Alegre. Atualmente é professora no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Mestrado
em Arquitetura e Urbanismo da Unisinos, com pesquisas nos seguintes temas:
Referências urbanísticas e arquitetônicas das Missões Jesuítico-Guarani: o passado no
presente sulino e Sustentabilidade e Preservação do Patrimônio Arquitetônico e
Urbano. É representante da Região Sul no ICOMOS/Brasil e autora dos livros O Passado
no Futuro da Cidade: políticas públicas e participação popular na preservação do patrimônio
cultural de Porto Alegre (Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004) e Das pedras aos lambrequins: a
preservação do patrimônio arquitetônico e urbano no Rio Grande do Sul do século XX (São
Leopoldo, Ed. Unisinos, 2019).
Email: algmeira@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0114356511833074

Beatriz Kushnir é Doutora em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual


de Campinas (2001). Autora, entre outros, de Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-
5 à Constituição de 1988 (Boitempo, 2004/2012) e Baile de Máscaras: mulheres judias e
prostituição, as polacas e suas associações de ajuda mútua (Imago, 1996/2012). Professora
Visitante junto ao Departamento de História (desde 2007) e ao Programa de Pós-
graduação em História/Universidade Federal Fluminense (desde 2014). Professora do
Programa de Pós-graduação em Gestão de Documentos e Arquivos (PPGARQ) junto à
Escola de Arquivologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (desde 2013).
Entre 2005-2020, assumiu a Direção-Geral do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
(AGCRJ), com experiência nas áreas de Gestão Pública e de Gestão de Documentos.
Integra, desde 2015, o Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ), representando a
178 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

ANPUH. Suas reflexões e pesquisas centram-se na temática do Brasil Contemporâneo,


com ênfase nos seguintes temas: censura, governos militares, imprensa, imigração,
arquivos, investigação sobre os furtos de bens culturais e a salvaguarda do patrimônio
histórico.
E-mail: biakushnir@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1638018999454609

Hilda Jaqueline de Fraga é Historiadora e Doutora em Educação pela UFRGS. É


professora associada do Curso de Bacharelado em Produção e Política Cultural,
UNIPAMPA – Campus Jaguarão/ RS. Como docente-pesquisadora desenvolve pesquisas
na área de políticas de gestão patrimonial, patrimônio e decolonialidade, patrimônio
cultural desde a perspectiva de gênero e PCI e inclusão social. É organizadora de vários
livros dentre os quais a Série intitulada: Experimentações. É pesquisadora colaboradora
do Grupo de Pesquisa GEMMUS da UFRGS, na linha de pesquisa: Educação e Patrimônio
e do GT Ensino de História e Educação da ANPUH/Sessão RS. É pesquisadora-membro
do IHGRGS e da equipe de curadoria do Acervo Sandra J. Pesavento, junto à qual realiza
investigações sobre as temáticas: Cidade e Ensino de História e Cidade e Gênero. Faz
parte da Rede Internacional de Cooperação Acadêmica para o Patrimônio Cultural
Imaterial da América Latina e Caribe (RECA PCI LAC), atuando em projetos de pesquisa
voltados para a criação de políticas culturais de valorização do patrimônio cultural
imaterial em países da Latino-américa e Caribe.
E-mail: hildajaqueline7@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3979190690880852

Luciana Rodrigues Gransotto é Doutora pelo Programa Interdisciplinar em Ciências


Humanas da UFSC, contemplada pela Bolsa CAPES. É membro pesquisadora do IHGRGS
desde agosto de 2016, integrando a equipe curatorial do Acervo Sandra Jatahy Pesavento
(ASJP) nesta mesma instituição. Realizou pesquisa/extensão universitária na Université
d’Ottawa e na Université Laval em 2014. Pesquisa sobre intelectuais brasileiras em
mobilidade na França, dentro da perspectiva dos estudos de gênero e estudos
feministas. Realizou estágio de doutorado sanduíche na Université Rennes 2/França, em
2020. Está atualmente em estágio de pós-doutorado (2021-2022) na Université Paris 8 –
Vincennes-Saint-Denis, vinculada ao Laboratoire d’Études de Genre et de Sexualité
Sobre os autores • 179

(LEGS), com bolsa CAPES-COFECUB, vinculada ao projeto franco-brasileiro “Gênero


ameaça(n)do” – “Genre menaçant, genre menacé”.
E-mail: lucianargransotto@gmail.com
Lattes : http://lattes.cnpq.br/3015153496037876

Nádia Maria Weber Santos é médica, psiquiatra junguiana e historiadora. Possui


Mestrado e Doutorado em História pela UFRGS e Pós-Doutorado pela Université Laval
(Québec/Canadá). É bolsista de produtividade do CNPq nível 2 desde 2016. É membro
pesquisadora do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e curadora do
Acervo Sandra Jatahy Pesavento nesta instituição e pesquisadora do EFISAL/EHESS
(École des Hautes Études em Sciences Sociales) de Paris. Integra o comitê editorial da
revista Artelogie, vinculada ao CRAL/EFISAL – EHESS de Paris. Atualmente é professora
permanente do PPG em Performances Culturais da UFG (Universidade Federal de Goiás).
Autora de vários livros e artigos na área da História Cultural, com ênfase em História
da Loucura e da Psiquiatria, Memória Social, Sensibilidades, Arquivos pessoais e
Performances Culturais. Destacam-se as obras: Histórias de vidas ausentes: a tênue
fronteira entre a saúde e a doença mental (2ª edição ampliada e revista, SP, Edições
Verona, 2013); Histórias de sensibilidades e narrativas da Loucura (Porto Alegre, Ed. da
Universidade/ UFRGS, 2008); Representações e visibilidades na História Cultural: imagens,
imaginários e memórias (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015), organizado com os colegas
Cláudio de Sá Machado Júnior e Miriam de Souza Rossini; Performances Culturais,
memórias e sensibilidades, volumes 1 e 2 (Porto Alegre: Editora Fi, 2019 e 2020),
organizados com os colegas Robson Corrêa de Camargo e Eduardo Reinato.
E-mail nnmmws@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3929583037339642

Robson Corrêa de Camargo (RJ, 1952) é diretor de teatro, ator e professor aposentado
do curso de teatro da Universidade Federal de Goiás UFG, e doutor em teatro pela ECA
USP. Trabalhou na Folha de S. Paulo, como crítico teatral, entre 1984 e 1987, e no Jornal
Movimento (1974-1977). É idealizador e um dos fundadores do curso de Artes Cênicas da
Universidade Federal de Uberlândia, um dos iniciadores do curso de Teatro da
Universidade Federal de Goiás, também foi coordenador (2011-2016) e um dos
fundadores do primeiro programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances
180 • Entre o Sensível e o Concreto: reflexões entre memória, patrimônio e arquivos

Culturais no Brasil (Universidade Federal de Goiás). Publicações em


https://www.researchgate.net/profile/Robson_Camargo
E-mail: robson.correa.camargo@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9964594962008164

Vânia Dolores Estevam de Oliveira (Vânia de Oliveira) possui pós-doutorado em Artes


(PPGARTES) na UERJ, doutorado e mestrado em Memória Social, bem como graduação
em Museologia, pela UNIRIO. Atualmente é professora do Bacharelado em Museologia
e docente permanente do Programa de Pós-graduação em Performances Culturais, na
Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Foi Vice-coordenadora
do Bacharelado em Museologia (2020 e 2021) e Curadora da Reserva Técnica Documental
do Museu Antropológico da UFG (2018 a 2021). É líder do Grupo de Estudos, Pesquisa e
Ações de Extensão em Performances Culturais, Memória Social e Museologia –
GEPEMM (cadastrado e certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq). Atuou
também na Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e
Cidadania (2014-2017) e membro titular das Áreas de Ciências Humanas no Conselho
Editorial da Editora UFG (2015-2019). Das publicações, destacam-se os volumes 1 e 2 do
Urbano Palco: estudos de performances urbanas (coorganizadora). Dirigiu as seguintes
instituições culturais: Museu Gilberto Freyre (FGF), Museu Casa de Benjamim Constant
(Ibram), Museu Casa de Rui Barbosa (FCRB) e Museu de Folclore Edison Carneiro
(CNFCP/Iphan). Honrarias: Medalha Gilberto Freyre, concedida pela Fundação Joaquim
Nabuco e Placa de Honra ao Mérito, concedida pela Escola de Museologia da UNIRIO
(2019); Medalha de Honra ao Mérito 80 Anos da Escola de Museologia da UNIRIO e com
o Certificado de Reconhecimento do Conselho Universitário da UFG (2012). Outros
cargos: Assessora de Museus e Espaços Culturais da Superintendência do Iphan no Rio
de Janeiro (1996-1999); Presidente do Conselho Regional de Museologia/2ª Região (1994-
1996). Financiamentos de projetos: Vitae, BNDES, Capes e CNPq. Membro do corpo de
jurados da pré-seleção regional dos projetos inscritos no Prêmio Rodrigo Melo Franco
de Andrade, nas edições de 1998, 2003 e 2012.
E-mail: vania_de_oliveira@ufg.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1883361659918132
Cópias gratuitas de textos publicados em: https://ufg.academia.edu/V%C3%A2
niadeOliveira/Papers?s=nav#add/close)
A Editora Fi é especializada na editoração, publicação e
divulgação de produção e pesquisa científica/acadêmica das
ciências humanas, distribuída exclusivamente sob acesso aberto,
com parceria das mais diversas instituições de ensino superior no
Brasil e exterior, assim como monografias, dissertações, teses,
tal como coletâneas de grupos de pesquisa e anais de eventos.

Conheça nosso catálogo e siga as nossas


páginas nas principais redes sociais para
acompanhar novos lançamentos e eventos.

www.editorafi.org
contato@editorafi.org

Você também pode gostar