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Yacy-Ara Froner Gonçalves

OS DOMÍNIOS DA MEMÓRIA

– um estudo sobre a construção do pensamento preservacionista nos campi


da Museologia, Arqueologia e Ciência da Conservação –

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

– São Paulo –

2001
Yacy-Ara Froner Gonçalves

OS DOMÍNIOS DA MEMÓRIA

– um estudo sobre a construção do pensamento preservacionista nos campi


da Museologia, Arqueologia e Ciência da Conservação –

Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação


do Departamento de História, da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, como exigência parcial
à obtenção do título de Doutor em História, sob a
orientação do Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

– São Paulo –

2001

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BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Raquel Glezer


Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari
Prof. Dr. Luiz Antonio Cruz Sousa
Prof. Dr. Murillo de Azevedo Marques
Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello

Aprovada em 16/10/2001

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Resumo

Os domínios da memória, concebidos nesta investigação, são aqueles validados pela


pesquisa científica enquanto vestígios do passado pertinentes à reconstituição do
pensamento intelectual por meio da formulação do conceito de Patrimônio Cultural. O
recorte da pesquisa procurou compreender não apenas a história da construção do
pensamento epistemológico de cada área selecionada – Museologia, Ciência da
Conservação e Arqueologia -, mas a projeção desse pensamento nos organismos
internacionais fundados pela UNESCO – ICOM, ICCROM e ICOMOS –, os quais
orientam por meio de suas ações as diretrizes da maioria das ações de preservação do
Patrimônio Cultural. Desde que as grandes instituições responsáveis pela formação,
gerenciamento e direcionamento das políticas internacionais voltadas aos bens
culturais foram criadas, o discurso relacionado a este campo de estudo tem se
modificado, principalmente no que tange ao posicionamento dos profissionais
relacionados à área. A partir de então, esta pesquisa orientou-se da seguinte maneira:
compreender a construção das disciplinas específicas por meio da história dos
paradigmas formulados em cada uma delas e o reflexo dessas formulações na estrutura
dos modelos documentais – produzidos entre 1945 e 1999 – elaborados por essas
instituições internacionais que surgiram sob os auspícios da UNESCO.

UNITERMOS: Ciência da Conservação, Arqueologia, Museologia, Patrimônio


Cultural, Cultura Material, Patrimônio Intangível.

Abstract

The domains of memory, which were investigated in this thesis, are those that are
intended for scientific research – the remnants of the past that are pertinent to
intellectual thought as recovered by Cultural Heritage concepts. The scope of this
study sought to embrace not only the historical construction of epistemological
thought in relation to the selected issues – Museology, Conservation Science and
Archaeology – but also the projection of these concepts within international
institutions founded by UNESCO – ICOM, ICROM and ICOMOS – which have
guided the actions of these institutions regarding the preservation of Cultural Heritage.
Since these great institutions responsible for the formulation, management and
direction of international politics oriented towards the cultural milieu were created,
the discourse related to this field has modified principally with respect to professionals
attitudes related to this area from this point on. As a result, this research was oriented
by the following guidelines: to comprise the construction of specific disciplines by
means of the history of the paradigms imbedded in each of them and through the
reflection of these formulations upon the structure of the documentary models
produced between 1945-1999, and elaborated by those international institutions which
arose under the auspices of UNESCO.

UNITERMS: Conservation Science, Archaeology, Museology, Cultural Heritage,


Material Culture, Intangible Culture.

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Dedico este trabalho à Profa. Beatriz Ramos
Vasconcellos Coelho, a quem devemos todos os
esforços para a fundação do CECOR-UFMG e a
implementação de uma política de conservação,
restauração e preservação de bens culturais no
país.

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OS DOMÍNIOS DA MEMÓRIA

– um estudo sobre a construção do pensamento preservacionista nos campi


da Museologia, Arqueologia e Ciência da Conservação –

Ao final de um trabalho de pesquisa que durou cinco anos, muitas são


as pessoas a agradecer. É oportuno lembrar que a jornada anterior ao
desenvolvimento do projeto também foi fundamental para o estabelecimento
dele. O mais correto seria certamente iniciar agradecendo aos professores e
colegas do CECOR-UFMG pelos primeiros passos em direção ao
conhecimento da prática da conservação e da restauração e aos amigos do
IEB-USP e do MAE-USP, com os quais tive oportunidade de trabalhar entre
1992 e 1997. Também não há como esquecer Kathleen Dardes e os colegas
latino-americanos que conheci por ocasião dos cursos promovidos pelo The
Getty Conservation Institute, no México e no Chile.

Os caminhos anteriores ao processo de pesquisa são fundamentais,


como são fundamentais os meios de apoio para desenvolvê-la. Durante dois
anos, antes de ingressar como professora na Universidade Federal de
Uberlândia, pude contar com o apoio do CNPq para a pesquisa. A bolsa foi
fundamental e coloco aqui o depoimento de que sem o apoio institucional não
há condição de se desenvolver a pesquisa científica em nosso país. Estudei
em escola pública, graduei-me em universidade pública e fiz toda minha pós-
graduação – especialização, mestrado e doutorado – em instituições de
ensino publico; acredito veementemente que o Estado é o melhor provedor
do ensino e que é dever de todos nós, apesar de todos problemas, apoiar o
ensino gratuito de qualidade e cobrar do governo a manutenção dessas
instituições.

Agradeço aos conhecidos e desconhecidos, com quem contatei para


dar suporte instrumental ao trabalho, por meio de textos e imagens, e que
muitas vezes, sem me conhecerem, responderam prontamente à
correspondência eletrônica ou formal que lhes enviei: Gina Muñoz, Gilson
Rambelli, Pedro Martins, Rodrigo Aguiar, Frank Matero (ICOM), Gianna

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Paganelli (ICCROM), Victoria Claire (GCI). Sou igualmente grata aos amigos,
os filósofos Bento Itamar Borges e Marcos César Seneda, pelas sugestões,
críticas e correções ao texto escrito.

Agradeço aos professores Pedro Paulo Funari e Maria Cristina de


Oliveira Bruno, que participaram da banca de qualificação, como também ao
professor Luiz Sousa, os quais enriqueceram esta pesquisa com apoio
bibliográfico, críticas e sugestão de caminhos. Á minha orientanda de
iniciação científica, Rosileni Cerri, pelo apoio.

Agradeço, e não é pró-forma, ao meu orientador Prof. Luiz Norberto


Guarinello. Aprendi, no decorrer desta pesquisa, que a busca do
conhecimento é apenas mais um caminho e que tenho mais perguntas a
fazer do que respostas a dar; descobri com o Prof. Norberto que a amizade
que une orientador e orientando tem mais valor do que qualquer outro vínculo
acadêmico e que é preciso se despir de conceitos preestabelecidos,
arrogância e inflexibilidade quando se propõe a seguir este caminho.

Agradeço ainda à minha filha, Ieda Maria, pela sua paciência durante
as horas no computador, pela minha ausência e até mesmo pela minha
própria falta de paciência durante a construção do texto final. Ela foi gerada
justamente no início deste doutorado; assistiu à maior parte das disciplinas
cursadas ainda em meu ventre e, fora dele, acompanhou todas as etapas
vencidas.

Obrigada a minha mãe e meu irmão Bira, que nas idas e vindas destes
últimos anos sempre estiveram presentes.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................12

CAPÍTULO 1: AS RAZÕES PRÁTICAS DA CIÊNCIA ............................23


1.1. Os conceitos de campus e habitus como
fundamentos metodológicos e a análise
discursiva como prática epistemológica ..........................23
1.2. Gerenciamento patrimonial e instituições
Oficiais: apresentação do problema .............................36

CAPÍTULO 2: MUSEUS E MUSEOLOGIA ............................................49


2.1. O conceito de Museu ........................................................49
2.2. ICOM: um Conselho Internacional de Museus e
seus reflexos .....................................................................68

CAPÍTULO 3: CIÊNCIA DA CONSERVAÇÃO E RESTAURO ...............88


3.1. Das origens à era contemporânea ..................................89
3.2. ICCROM: as metas da Conservação ..............................116

CAPÍTULO 4: PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO E MONUMENTOS .....126


4.1. A disciplina arqueológica: conceitos e contextos ..............136
4.2. ICOMOS: a consciência da preservação de
monumentos e sítios..........................................................154

8
CAPÍTULO 5: UNESCO: a construção do discurso possível ..................171
5.1. Patrimônio Histórico ..........................................................183
5.2. Patrimônio Arqueológico ...................................................205
5.3. Patrimônio Arquitetônico ...................................................221
5.4. Bens Culturais Móveis .......................................................238
5.5. Patrimônio Subaquático ....................................................251
5.6. Patrimônio Natural.............................................................261
5.7. Patrimônio Cultural: tangível e intangível ..........................283

CAPÍTULO 6: UNESCO: a estruturação das políticas culturais..............294


6.1. Políticas Culturais .............................................................319
6.2. Conflitos Armados .............................................................327
6.3. Mobilidade .........................................................................347
6.4. Turismo e Educação .........................................................371

CAPÍTULO 7: A PRESERVAÇÃO NO CONTEXTO NACIONAL ............399


7.1. A influência dos documentos internacionais nos
princípios balizadores da instituição ..................................399
7.2. Patrimônio cultural: corrida contra o relógio ......................432

CONCLUSÃO .........................................................................................440

BIBLIOGRAFIA.......................................................................................447

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1. De onde viemos, o que somos, para onde vamos? Paul Gauguin, Museum of
Fine Arts, Boston ,1897 (p.11).
2. Museus: O Salão Quadrado. Giuseppe Castiglione, Museu do Louvre, Paris,
1865 (p.49).
3. Conservação: Fun Magazine, 1877. Crédito: Frank Matero (p.88).
4. Arqueologia: Cairo. Crédito: Frank Matero (p.126).
5. UNESCO: Planta urbana com a localização da UNESCO, em Paris (p.171).
6. Patrimônio Histórico: A cidade de Tiradentes-MG. Crédito: Miguel Ahum
(p.183).
7. Patrimônio Arqueológico: Petroglifo da Praia da Joaquina-SC. Crédito:
Rodrigo Aguiar (p.206).
8. Patrimônio Arquitetônico: Construções Vernaculares. Crédito: Obede Borges
Faria (p.221).
9. Patrimônio Móvel: A Mulher Chocadeira (1962) – Antônio Poteiro-GO.
Crédito: Museu de Arte Popular (p.238).
10. Patrimônio Subaquático: Baía de Angra, 1999 (p.251).
11. Patrimônio Natural: O Parque Nacional Marinho de Abrolhos. Crédito: Pedro
Martins (p.261).
12. Patrimônio Intangível: vinheta da UNESCO (p.283).
13. Patrimônio em Risco: Guerra – Budas de Bamyiam.
http://articles.cnn.com/2001-03-02/ (p.327).
14. International Banner of Peace (Roerich Movement flag) - Criado por Nicholas
Roerich (p.331)
15. The Blue Shield. http://portal.unesco.org/culture/en/ev.php
(p.333)
16. Patrimônio em Risco: Roubo – Ficha de identificação do IPHAN. (p.347).

GRÁFICO 1 – Atividades do ICCROM (p. 123).


GRÁFICO 2 – Sítios e Monumentos da WHL- 2000 (p.163).
GRÁFICO 3 – Fluxo Turístico Mundial (p.392).
GRÁFICO 4 – Sítios e Monumentos da WHL – 1995 (p.393)
TABELA 1 – Documentos da UNESCO (p.118)
QUADRO 1 – Quadro cronológico de documentos (p.182).
QUADRO 2 – Quadro cronológico de documentos (p.309).

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1. De onde viemos, o que somos, para onde vamos?
1897 – Boston, Museum of Fine Arts
Paul Gauguin

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INTRODUÇÃO

Uma vez que as obras de arte são coisas às quais está


relacionado um valor, há duas maneiras de tratá-las. Pode-se
ter preocupação pelas coisas: procurá-las, identificá-las,
classificá-las, conservá-las, restaurá-las, exibi-las, comprá-
las, vendê-las; ou, então, pode-se ter em mente o valor:
pesquisar em que ele consiste, como se gera e se transmite,
se reconhece e se usufrui.
ARGAN. História da arte como história da cidade, 1995: 13.

A elaboração deste estudo se pautou, inicialmente, por uma


necessidade particular de compreender melhor a área da Ciência da
Conservação e Restauro enquanto estrutura de saber construído e filosofia
de ação. Durante vários cursos de especialização na área, percebemos, pelo
próprio caráter técnico da especialização, uma certa lacuna historiográfica a
que impunha uma inconsciência em relação à História e aos fundamentos
ideológicos que envolviam o conceito de Patrimônio ou da própria
epistemologia que fundamentava a prática da Restauração e da Conservação
de acervos. Somada a este desconhecimento, a incompreensão das causas
da hierarquia acadêmica imposta em relação às disciplinas correlatas
envolvidas na preservação da memória e responsáveis pelo gerenciamento
dos bens patrimoniais, direcionou este estudo para o conhecimento do
significado mais profundo do conceito de preservação.

Ao eleger como objeto de estudo a construção dos conceitos de


Patrimônio – e suas vertentes específicas como Patrimônio Cultural;
Patrimônio Histórico; Patrimônio Arqueológico; Patrimônio Arquitetônico;
Patrimônio Subaquático; Patrimônio Móvel e Patrimônio Natural – e de
Preservação elaborados pela UNESCO, contemplando as áreas de
Arqueologia, Museologia e Ciência da Conservação, este trabalho foi
orientado pelas seguintes questões:

1. a análise da atividade científica como uma atividade social, portanto,


uma construção social da realidade;

12
2. a hipótese de que as ações voltadas para a preservação do
patrimônio são desenvolvidas a partir de bases científicas e que essas bases
se manifestam sob a forma de uma linguagem acadêmica;

3. o recorte dessa linguagem acadêmica como uma metodologia capaz


de viabilizar a análise científica do desenvolvimento das disciplinas
especializadas relacionadas com a proteção de bens patrimoniais1;

4. a percepção de que o domínio científico de cada disciplina


especializada, apesar de dirigir-se ao mesmo objeto de estudo, é um campo
de lutas internas e externas – dentro da própria área de conhecimento como
em relação às áreas afins –, expressas nas atuações específicas, na maneira
de se relacionar com as disciplinas correlatas, no tratamento das fontes, nos
organogramas institucionais, nas tentativas de regulamentar e legitimar seu
domínio de conhecimento;

5. a idéia de que os conceitos de Patrimônio e de Preservação são


conceitos construídos, admitindo configurações e percepções variadas de
acordo com cada contexto social e cada período histórico.

Partindo dessas orientações, inicia-se esta tese com uma proposta


epistemológica: determinar a nomenclatura da disciplina da Conservação e
Restauro na categoria de Ciência – a Ciência da Conservação –, procurando
não restringi-la apenas à atividade técnica, mas percebê-la enquanto um
saber constituído, resultante de paradigmas, de reflexões e do
desenvolvimento histórico, reunindo assim todas as premissas necessárias à
categoria científica. O sufixo logos de Museologia e Arqueologia parece
introduzir imediatamente estas áreas no campo circunscrito da Ciência, não
havendo, em um primeiro momento, a necessidade de reiterar suas posições
nesse campo específico. Em 1958, no Seminário Regional da UNESCO
sobre a Função Educativa dos Museus, um dos grandes temas discutidos
estava relacionado ao caráter científico da Museologia. Para Hernan Crespo

1
. A idéia de que a atividade científica é uma atividade social e a construção científica é
também uma construção social da realidade, além de não ser uma idéia assombrosa, só faz
sentido quando especificada (BOURDIEU, 1996, p. 87).

13
Toral (1995, p.9), o resultado de tal reflexão compactuava com a noção desta
área enquanto disciplina científica, uma vez que, devido à amplitude e
transcendência dos fenômenos que deveria explicar, não poderia ser
concebida de outra maneira. A Museografia, por seu lado, se relacionava
diretamente com a técnica a que se deveria recorrer para concretizar,
objetivamente, o pensamento e a mensagem do museu.

De acordo com Thomas Kuhn (1970), a Ciência seria uma estrutura


formada por paradigmas específicos, sendo definido o paradigma como um
sistema aceito da prática científica, incluindo leis, teorias, aplicações e
instrumentos, os quais providenciariam um modelo para uma determinada
tradição de pesquisa, coerente com seu objeto de estudo. Assim, qualquer
campo do conhecimento que se pretendesse científico deveria ser um corpo
modelado por esses paradigmas reconhecidos internacionalmente, os quais
poderiam ser qualificados e avaliados a partir da existência de uma
comunidade científica dotada de estruturas comuns – publicações
internacionais, associações, academias – que dariam suporte à divulgação
dos esquemas interpretativos, pesquisas e teorias formuladas em torno do
conhecimento específico. A Ciência da Conservação, ao dispor de métodos,
critérios, teorias e, acima de tudo, de uma comunidade científica preocupada
tanto com a prática quanto com a teoria, estaria circunscrita nesse conceito
específico, como também a Arqueologia e a Museologia.

No início, este estudo se propôs a uma análise restrita dos Códigos de


Ética elaborados nas áreas de Museologia, Arqueologia e Ciência da
Conservação e sua relação com as legislações e a composição hierárquica
de instituições científicas voltadas para a pesquisa de bens patrimoniais
móveis – obras de arte, objetos e artefatos –; mas a partir da leitura das
fontes primárias propostas e de uma definição mais ampla do arcabouço
teórico – os documentos produzidos pela UNESCO – constatou-se a
necessidade de ampliar os objetivos, sem, no entanto, deixar de se definir de
maneira sistemática o método de análise das fontes e evitar projeções vagas
que dificultassem a elaboração de um estudo mais acurado sobre as
estratégias de oficialização do discurso acadêmico e científico voltado para a

14
construção dos conceitos de Patrimônio Cultural e as noções que justificam
sua preservação.

Como decorrência das disciplinas cursadas, da leitura das fontes


primárias e secundárias e da discussão com outros profissionais, a pesquisa
demonstrou que os códigos de ética, mesmo aqueles relacionados às
profissões específicas, tratam as questões de preservação, uso, pesquisa e
gerenciamento: o que está em jogo não é a tipologia do acervo – coleções e
edifícios históricos; artefatos arqueológicos ou etnográficos; ruínas,
paisagens; coleções artísticas ou de caráter cultural –, mas a maneira como
cada esfera de conhecimento, a partir de profissionais pertencentes a um
determinado campo de estudo, se relaciona e concebe o significado de
Patrimônio Cultural.

Os domínios da memória concebidos neste trabalho são aqueles


validados pela pesquisa científica enquanto vestígios do passado pertinente à
reconstituição das ações humanas. Nesse sentido, o recorte da pesquisa
procurou compreender não apenas a história da construção do pensamento
epistemológico de cada área, mas a projeção desse pensamento nos
organismos internacionais fundados pela UNESCO, os quais orientam por
meio de suas ações as diretrizes da maioria das ações preservacionistas:

. ICOM – International Council of Museums –, com sede em Paris,


reúne, desde 1946, especialistas do mundo inteiro, como uma organização
internacional não governamental de museus e trabalhadores profissionais de
museu, criada para levar avante os interesses da Museologia e outras
disciplinas relacionadas com a gerência e operações de museu (Artigo 1 #1,
Estatuto Interno do ICOM);

. ICCROM – International Center for the Study of Cultural Property –,


com sede em Roma, atua de maneira mais direcionada às atividades de
Conservação e Restauro desde 1956, quando fundado pela UNESCO;

. ICOMOS – International Council on Monuments and Sites – com sede


em Paris, atuando de maneira similar ao ICOM com relação aos
monumentos, sítios históricos e arqueológicos. Foi fundado em 1965 após a

15
adoção da Carta de Veneza – International Charter for the Conservation and
Restoration of Monuments and Sites (1964).

Desde que as grandes instituições responsáveis pela formação,


gerenciamento e direcionamento das políticas internacionais de preservação
patrimonial foram criadas, o discurso relacionado a este campo de estudo
tem se modificado, principalmente no que tange ao posicionamento dos
profissionais relacionados à área. A partir de então, esta pesquisa orientou-se
da seguinte maneira: compreender a construção das disciplinas específicas
por meio da história dos paradigmas formulados em cada uma delas e o
reflexo dessas formulações na estrutura dos modelos documentais
produzidos por essas instituições internacionais que surgiram sob os
auspícios da UNESCO. Somente a partir da compreensão de estruturas já
consolidadas é que seria possível perceber sua ingerência no cenário
nacional. This international perspective developed when the Egyptian temples of
Abu Simbel and Philae were threatened by the building of the great dam in Aswan in
1960. Both Egypt and Sudan presented a request to UNESCO for assistance in their
safeguarding, and this was the basis for the first international campaign of UNESCO.
The response from public and private bodies was quite surprising. Even children from
schools all around the world reacted by sending small contributions. The message
was clear: these monuments do not belong only to Egypt. They represent a value to
each and every one of us. It is no exaggeration to say that international campaigns
for preservation undoubtedly constitute one of the key areas for the implementation
of the concept of universal heritage (BOUCHENAKI, 1999, s.p.).

Dois autores foram responsáveis por esse redirecionamento: Pierre


Bourdieu, por meio das obras Razões Práticas, sobre a teoria da ação (1996)
e A economia das trocas simbólicas (1974) e Robert Merton, com The
sociology of science (1976). Os conceitos de campus e habitus,
desenvolvidos especialmente em Bourdieu, foram fundamentais na definição
da estratégia de análise e na delimitação dos objetos desta pesquisa, como
poderá ser observado no Capítulo 1. Por sua vez, a leitura de Foucault
permitiu-nos visualizar as possibilidades do uso dos discursos na estrutura de
análise desta investigação. Mesmo reconhecendo que Bourdieu aplica sua

16
análise sociológica em um determinado ambiente específico – o meio
intelectual francês –, não foi considerado improvável redimensionar sua
estrutura de análise para um campo maior – a esfera internacional. Primeiro,
porque a criação destas instituições está vinculada aos conceitos
relacionados à valorização do Patrimônio Cultural produzidos no interior das
academias francesa, inglesa e, posteriormente, americana, instituições
localizadas nos países que se fortaleceram no período pós-guerra. Segundo,
porque habitus e campus são esferas que podem ser identificáveis nos
discursos levantados e operacionalizados no decorrer dos processos de
análise.

A busca da interdisciplinaridade e a tentativa que compreender a


estruturação dos campi específicos de cada disciplina correlacionada às
grandes instituições globais possibilitam compreender a construção do
conceito de Patrimônio Cultural de uma maneira geral, pois a metodologia
proposta tem por objetivo a análise conceitual dos discursos desenvolvidos
nas várias áreas de conhecimento, sendo fundamental compreender esses
discursos na sua totalidade, a partir de sua inserção no contexto de onde
partem. Assim, nosso objetivo é examinar a relação entre as disciplinas que
se relacionam com vestígios do passado – Arqueologia, Museologia e Ciência
da Conservação – e seu meio social a partir de uma perspectiva histórica;
perceber os problemas de objetividade, subjetividade e acumulação gradual
de conhecimento produzido a partir da comparação dos pontos de vista
produzidos e reproduzidos em documentos oficiais de organismos
internacionais amplamente reconhecidos nos meios científicos.

Parafraseando Argan (1984), aplica-se a este estudo a distinção feita


por Scheler em sua teoria geral do valor: supõe-se que, de um lado, está o
patrimônio ou as coisas que têm valor (Wertdinge) e, do outro, está o valor da
coisa (Dingwert) ou o discurso formulado sobre seu valor e que justifica sua
preservação. A área de concentração deste trabalho seria então o estudo da
Questão Preservacionista e a maneira como ela vem se modificando nos
vários discursos voltados à preservação; que importância foi-lhe dada nos
vários momentos históricos e quais seus limites, incongruências ou

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discordâncias entre esferas de conhecimento que buscam o mesmo caminho
– a preservação da cultura material –, mas que em determinados momentos
se contrapõem e se contradizem.

Delimitando temporalmente o período desta investigação – da década


de 40 a 90 –, procura-se analisar de que modo e em qual medida os
discursos institucionais se modificaram na segunda metade do século XX.
Importante para esta abordagem, esse período registra a ingerência da
UNESCO nos processos de discussão global da questão patrimonial no
contexto subseqüente à Segunda Grande Guerra. No entanto, não é possível
descartar os períodos anteriores, uma vez que apenas por meio das
observações sobre a mudança dos paradigmas científicos no interior de cada
disciplina específica é que será possível compreender os modelos atuais de
percepção em relação ao resgate, preservação e exposição dos vestígios do
passado, além da preocupação com ecossistemas específicos e
manifestações culturais, que fazem parte do discurso da sociedade
contemporânea.

Os documentos produzidos em convenções, encontros, simpósios e


seminários, as cartas de intenções, as recomendações, os históricos e
demais registros elaborados pelas instituições selecionadas, foram avaliados
em função de sua posição enquanto referência e representatividade nas
políticas dirigidas, institucionais e globais, de preservação patrimonial. Assim,
uma compreensão mais abrangente dos discursos elaborados nas grandes
instituições oficiais e sua contextualização, parecem responder melhor aos
objetivos levantados neste projeto.

O campo intelectual ora investigado é o campo voltado para a


preservação do Patrimônio Cultural e seu significado nas várias áreas de
conhecimento: Arqueologia, Museologia, Restauração. O desconhecimento
ou a falta de clareza do sentido específico de cada área resulta nos
problemas institucionais reproduzidos em todas as esferas culturais, desde a
implantação de uma política de preservação coerente, até o reconhecimento
das áreas científicas envolvidas no processo; da formação ao fortalecimento

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das instituições responsáveis pela unificação de determinadas classes; das
diretrizes às normalizações éticas, técnicas ou conceituais. Nesse momento,
cabe ressaltar que a escolha das grandes instituições é justificada pela
influência e representatividade que elas têm na formação das outras
instituições em todo mundo, além do próprio sentido histórico, com um
discurso mais elaborado e sedimentado, que assume certa correspondência
com as ações determinadas pelo IPHAN no contexto nacional.

O contexto específico atual – o reflexo da globalização na esfera


cultural – corresponde exatamente ao questionamento proposto neste
trabalho: de que modo é possível utilizar as experiências globais, sem
desrespeitar os limites regionais? Como responder à urgência de
preservação de coleções, edifícios históricos, sítios, em contextos em que a
interdisciplinaridade, as responsabilidades e a compreensão sobre o papel
dos agentes culturais encontram-se indefinidas? Não há pretensão de
oferecer respostas definitivas a estas indagações, mas, a partir da reflexão
histórica e conceitual sobre a questão preservacionista, oferecer uma
compreensão mais abrangente e coerente de seu discurso, sua
contextualização e seu desenvolvimento enquanto prática e filosofia de ação.

As fontes primárias que embasaram esta pesquisa foram cinqüenta e


cinco documentos – entre cartas, tratados, declarações, resoluções,
convenções e sinopses – produzidos pela UNESCO ou aceitos por ela como
modelo de conduta e padrão oficial de ações protecionistas para o Patrimônio
Cultural. Com o intuito de compreender esses testemunhos e conecta-los às
áreas relacionadas à proteção de bens culturais, dividimos a tese em oito
capítulos. O primeiro aborda o referencial teórico, colocando a teoria de
campus e habitus de Bourdieu como metodologia de investigação na área da
História Social voltada para a análise e configuração da prática e do discurso
preservacionista; nesse mesmo capítulo apresentamos o problema desta
investigação, com a delimitação do discurso das instituições oficiais da
UNESCO como objeto desta pesquisa.

19
O segundo capítulo aborda a formação do conceito de Museu, a
formação profissional voltada para esta área e o debate promovido no interior
do ICOM nos últimos anos. O terceiro capítulo procura compreender o
desenvolvimento e a formação da Ciência da Conservação e a ingerência do
ICCROM nessa área. Seguindo a mesma linha de apresentação, o quarto
capítulo aborda a construção do pensamento arqueológico e a ação do
ICOMOS enquanto órgão responsável pela proteção de sítios, monumentos e
centros históricos.

A base desta pesquisa, estruturada nos capítulos anteriores, fornece a


pista necessária à investigação de nosso problema central: a construção do
discurso possível, voltado ao Patrimônio Cultural da Humanidade, no interior
da UNESCO. No trabalho intitulado Nossa diversidade criadora (1997), Javier
Pérez de Cuéllar – Secretário Geral das Nações Unidas entre 1985 e 1990 –
procurou discutir a política cultural da UNESCO sob o parâmetro da ética
universal. Nossa proposta é mais restrita, tende a buscar a especificidade do
discurso, compreender as formulações e as propostas proferidas em
momentos determinados, encontrar a estruturação das políticas culturais sob
a ótica das questões delimitadas e perceber que o conceito de Patrimônio
pode ser reunido em conjuntos coesos.

O quinto capítulo, mais longo do que todos os outros, não poderia ser
dividido, apesar de suas estruturas tópicas internas, mas apenas entendido
em sua continuidade: abarca a formulação das noções e a estruturação dos
atributos que definem os conceitos de Patrimônio Cultural; Patrimônio
Natural; Patrimônio Histórico; Patrimônio Arqueológico; Patrimônio
Arquitetônico; Patrimônio Subaquático e Bens Culturais Móveis. O sexto
capítulo, mais próximo da proposta de Cuéllar, pretende compreender a
formulação das políticas culturais, de acordo com as propostas de ações e as
intenções registradas nas fontes primárias levantadas.

Sob a tutela dessa estrutura central, foi possível desenvolver o último


capítulo, relacionado ao IPHAN e aos reflexos da política das instituições
oficiais da UNESCO sobre a política nacional de preservação.

20
A construção do conceito de patrimônio e dos critérios para sua
preservação é determinada pela prática e pelo saber desenvolvido no interior
das Ciências Humanas, transformando-se em epistémê e empiria –
conhecimento e ação. Michel Foucault, ao analisar a gênese das Ciências
Humanas em As palavras e as coisas (1995), mostra como a ciência moldou
seu vocabulário, fechou-se em compartimentos e desenvolveu seus hábitos
mais profundos; menos audacioso do que a obra de Foucault, nosso trabalho
pretender perceber como o conceito de patrimônio vem sendo moldado, qual
sua relação com as Ciências Humanas e a sociedade, quais seus limites e
suas projeções.

A noção de cultura como base social que determina a esfera


econômica e é determinada por ela, referencial desta pesquisa, incorpora-se
plenamente à tese de Cuéllar de que o desenvolvimento divorciado de seu
contexto humano e cultural não é mais do que um crescimento sem alma. A
noção de crescimento econômico vista apenas como a expansão do capital e
o seu acesso através do aumento da renda per capita, proporcionando um
maior acesso aos bens e serviços, restringe o fenômeno cultural à cultura de
massa. Crescimento significa em última instância liberdade de escolha;
possibilidade de acesso a um estilo de coexistência satisfatório, forjado em
valores culturais próprios. É importante, portanto, reconhecer o grande alcance da
função instrumental da cultura no processo de desenvolvimento, e, ao mesmo
tempo, reconhecer que tal papel não esgota toda dimensão cultural do
desenvolvimento. O papel da cultura deve ser considerado com um fim desejável em
si mesmo, que é o de conferir sentido à nossa existência (CUÉLLAR, 1997, p. 32).

Não há conclusões estritas, nem hipóteses fechadas. Esta tese


apresenta mais indagações do que respostas; aponta possibilidades e não
dogmas; oferece janelas para problemas sem soluções: o que vem a ser este
tal patrimônio; para que preservar; para quem preservar? Nenhum problema
histórico pode ser elucidado sem a percepção da construção do pensamento
histórico relacionado a ele: a construção e as transformações do conceito de
patrimônio, enquanto base para o estabelecimento da memória e da história
tem sido o norte desta pesquisa. Provavelmente não haverá respostas, mas

21
apenas um olhar sobre os domínios da memória, do poder que o passado
exerce tanto sobre leigos quanto sobre especialistas.

22
1. AS RAZÕES PRÁTICAS DA CIÊNCIA

1.1. Os conceitos de campus e habitus como


fundamentos metodológicos e a análise
discursiva como prática epistemológica

Para Canguilhem, a história das ciências é a história de


formas de conceituação. Preocupada com o desempenho, a
ciência em ação negligencia comodamente a historicidade de
seus objetos. A própria história das ciências deve elaborar os
percursos de objetos que possuem uma história. Perceber o
estado de uma ciência a partir de sua última linguagem é
permitir voltar ao passado até o momento em que os
conceitos desaparecem, perdem sua precisão e sua
pertinência. Elaborar as colocações conceituais é fazer
sobressair à constituição de normas que ocasionam a
possibilidade de retificações; aqui estamos distantes das
designações leves, das cômodas classificações com
amplitude indefinida.
DESCAMPS, Christian. As Idéias Filosóficas Contemporâneas na
França, 1986, p. 88.

A possibilidade de análise da produção científica não é matéria


recente. No entanto, poucos trabalhos teóricos têm procurado investigar o
desenvolvimento dos paradigmas que norteiam a prática preservacionista.
Levando-se em consideração a teoria de Bourdieu, que define os conceitos
de campus e habitus como ferramentas capazes de auxiliar na análise dos
fenômenos sociais é necessário captar a lógica desse espaço social
específico – a cultura preservacionista de bens patrimoniais –, investigando
uma realidade empírica particular – a esfera internacional e globalizante –,
com o intuito de determinar o universo de configurações possíveis e
apreender as estruturas e os mecanismos de construção, a partir dos
sistemas de elaboração e de reprodução social, expressos nos princípios
morais e científicos desenvolvidos nos discursos preservacionistas
produzidos por instituições reconhecidas nos meios (campus) determinados
nessa pesquisa.

Bourdieu aponta que grande parte dos estudos científicos, procurando


imputar à linguagem uma aparência de universalidade, acaba por

23
desenvolver um léxico impreciso que mal se distingue do senso comum. Por
outro lado, a linguagem científica, muitas vezes, em busca de um pretenso
cientificismo, cai nas armadilhas de uma expressão forjada em um absoluto
obscurantismo, desconectada da realidade e sem respaldo empírico. A
necessidade de definição de conceitos, de estudos que não se limitem às
biografias individuais e de pesquisas que indiquem as diferenças reais que
separam tanto as estruturas quanto as disposições dos agentes em dados
espaços sociais e em tempos distintos, orienta o pesquisador a procurar
modelos não circunscritos nas singularidades individuais, mas voltados às
particularidades das histórias coletivas diferentes (BOURDIEU, p. 1996, 15).

Assim, o conceito de campus, compreendido como um espaço social


determinado que reúne agentes ou grupos dispostos a partir de princípios
geradores de práticas distintas e distintivas – o habitus –, tornou-se
fundamental no balizamento deste trabalho, pois possibilitou definir as áreas
de estudo, sua dinâmica e suas estruturas individuais, porém circunscritas na
esfera social. Além disso, Bourdieu adverte que as propriedades intrínsecas
de um grupo não devem ser confundidas com as propriedades que lhe
cabem em um momento dado, formulado de acordo com sua posição em um
espaço social determinado e uma dada situação de bens e práticas possíveis
– o momento histórico e o espaço social.

As disciplinas voltadas para a preservação de bens patrimoniais –


neste caso, a Ciência da Conservação, a Arqueologia e a Museologia –, ao
serem percebidas por meio dessas categorias sociológicas de análise,
podem ser examinadas a partir das noções de espaço social, espaço
simbólico e posições sociais – levando-se em conta que os cientistas ocupam
um lugar determinado na sociedade, dentro e fora da comunidade científica –
, tornando-se sistemas passíveis de comparação e análise das relações
verificáveis sobre as disposições e as tomadas de posições expressas nos
discursos formulados ao redor dos princípios éticos que norteiam os
discursos institucionais. Cabe observar que o desenvolvimento e a evolução
desses discursos determinam os princípios geradores de práticas distintas e
distintivas, expressões de opiniões semelhantes e diferentes, constituindo

24
uma rede de trocas de capital simbólico. A história da vida intelectual e artística
das sociedades européias revela-se por meio da história das transformações da
função do sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura desses
bens, transformações correlatas à constituição progressiva de um campo intelectual
e artístico, ou seja, a autonomização progressiva do sistema de produção, circulação
e consumo de bens simbólicos.(BOURDIEU, 1974, p. 98).

Por sua vez, os discursos institucionais que determinam as diretrizes


internacionais em relação à preservação do Patrimônio Cultural estabelecem
a percepção do sentido e do valor dos bens culturais.

Dentro do espaço social, os agentes se distribuem de acordo com o


volume global de capital possuído; este capital – no caso, o conhecimento
científico – é determinante na manutenção e/ou no estabelecimento da
posição que seus detentores ou produtores ocupam na hierarquia acadêmica
e no contexto social2, sendo fruto de um processo cumulativo, que resulta no
peso relativo do capital cultural e econômico no conjunto desse patrimônio. A
possibilidade de avaliar o peso relativo do capital científico a partir dos
discursos selecionados, sobrepuja as análises que tendem a privilegiar as
biografias individuais e os autores específicos em detrimento da produção
científica. A análise dos campi determinados nos permite visualizar as
estruturas de diferenças, bem como os princípios geradores dessas
estruturas, ou seja, os tipos de capital eficientes no universo social,
considerando suas variáveis no tempo e no espaço, que condicionam a
distribuição das formas de poder. O trabalho simbólico de constituição ou de
consagração necessário para criar um grupo unido tem tanto mais oportunidade de
ser bem sucedido quanto mais os agentes sociais sobre os quais ele se exerce
estejam inclinados a se reconhecerem mutuamente e se reconhecerem em um
mesmo projeto (BOURDIEU, 1996, p. 51).

É nesse espaço simbólico de consagração que os grupos tornam-se


coesos, apesar das diferenças internas: Sou arqueólogo! Pertenço a uma

2
. De acordo com Christian Descamps (1990), ultimamente, o meio intelectual francês tem
sido sistematicamente bombardeado por um tipo de produtor midiático, cujas obras buscam
apenas atingir o máximo de reconhecimento (vendas) perante o público.

25
elite intelectual de investigadores! Um tipo especial de pesquisador,
possuidor de um capital cultural específico! Ou então: Sou conservador!
Tenho a prerrogativa de tocar, restaurar e determinar as condições ideais de
conservar uma obra! E mais: Sou museólogo! Posso dispor, expor e compor
com os objetos da maneira que eu quiser! Apresento ao público o que antes
era de acesso restrito.3 Este espaço simbólico pode ser considerado como
um campus específico, onde se desenvolvem habitus distintos e distintivos.

Menos vago do que o conceito de profissão, o conceito de campus nos


permite compreender a dinâmica da produção cultural, a qual propõe àqueles
que tomam parte desse processo um universo de configurações possíveis,
determinante na composição dos parâmetros e nos modelos referenciais, na
colocação dos problemas, nas perguntas e nas respostas propostas para a
solução desses problemas em um dado momento histórico, todo um sistema
de orientações indispensáveis à construção e à participação de um campo
específico. Conforme Bourdieu, o cabedal necessário para participar e
formular um jogo! Esse espaço de possíveis, que transcende os agentes
singulares, funciona como uma espécie de sistema comum de coordenadas que faz
com que, mesmo que não se refiram uns aos outros, os criadores contemporâneos
estejam objetivamente situados uns em relação aos outros (BOURDIEU, 1996, p.
54).

Um outro viés de análise é dado pela obra de Foucault, que ao propor


uma formulação mais rigorosa do projeto estruturalista com relação à análise
das produções culturais, estabelece um enunciado no qual apresenta a
hipótese de que nenhuma obra existe por si mesma – ou seja, fora das redes
interdependentes de vinculação entre uma obra e outra –, o que determina
que estas obras coexistem a partir de um campo de possibilidades
estratégicas, define-se um sistema regrado no interior do qual cada obra
singular. Ao tratar o campo das teorias como estruturas estruturadas, sem
sujeitos estruturantes, é possível conferir cientificidade à leitura interna de

3
. Ainda que estas colocações possam parecer arrogantes, em verdade, é a sede de
reconhecimento que norteia as especulações científicas, a ação cultural, as posturas
intelectuais, todas carregadas de um conteúdo simbólico proveniente do valor dado a um tipo
de capital específico: o capital cultural.

26
textos atemporais: ao analisar os modelos discursivos elaborados em torno
do conceito de preservação, compreendemos os paradigmas imputados ao
discurso, sem necessitar conhecer os nomes daqueles que o fizeram. Se a
análise dos fisiocratas faz parte dos mesmos discursos que a dos utilitaristas, não é
porque eles viveram na mesma época, não é porque eles se enfrentaram no interior
de uma mesma sociedade, não é porque seus interesses se confundem em uma
mesma economia, é porque as duas opções provinham de uma mesma e única
distribuição de pontos de escolha, de um único e mesmo campo estratégico
(FOUCAULT, 1971, p. 29).

Os produtos ou as produções intelectuais ao tomarem parte de um


sistema global de referências comuns possibilitam estudos comparativos que
identifiquem as interdependências, os confrontos, as coalizões, as rupturas
dentro desse universo de configurações possíveis. Partindo desse
pressuposto, a análise dos documentos produzidos por instituições
internacionais oficialmente reconhecidas e gerados pelo organismo
considerado, por excelência, balizador das questões culturais mundiais – a
UNESCO –, encontra respaldo epistemológico e conceitual. Delimitando
temporalmente a metodologia de análise a partir da própria
contemporaneidade dos textos, será possível perceber de que modo e em
qual medida os discursos institucionais se modificaram nessa segunda
metade do século XX.

Considerando que a maioria dos códigos, tratados, cartas e propostas,


não especifica autor ou autores determinados, trazendo, geralmente, o timbre
institucional de validade universal – ou, melhor dizendo, comum ao meio de
onde parte e para onde se dirige –, é possível investigar as tendências, as
preocupações, os problemas mais significativos colocados em relação à
preservação do patrimônio arqueológico, artístico e cultural no decorrer do
século XX. As similitudes e as diferenças nas posturas oficiais e
oficializantes; os confrontos e as coerências dentro do próprio métier e com
relação às disciplinas correlatas – neste caso de estudo, a Ciência da
Conservação, a Museologia e a Arqueologia – e a lógica de funcionamento

27
desses campos específicos evidenciadas em seus discursos sobre como agir
em relação ao seu objeto de estudo e com relação aos seus pares.

Nesse sentido, este estudo não se reduz à análise apenas do contexto


de onde parte o discurso moral dos códigos e discursos analisados, mas
tentando perceber que cada campo intelectual comporta-se como um
microcosmo social, com gênese, estrutura, leis e comportamentos definidos,
que não são simples reflexos do mundo exterior, uma composição
interdependente e dialética, produto, reprodutora e produtora desse universo.
As mudanças que ocorrem no interior do campo de produção originam-se na própria
estrutura do campo, isto é, das oposições sincrônicas entre posições antagônicas no
campo global, cujo princípio é o grau de consagração no interior ou no exterior do
campo e, tratando-se da posição no sub-campo de produção restrita, da posição na
estrutura de distribuição do capital específico de reconhecimento (BOURDIEU, 1996,
p. 68).

Cabe ressaltar que este discurso aborda um capital simbólico


específico – as regras de conduta moral, ética e ao mesmo tempo de práticas
científicas relacionadas à proteção do Patrimônio Arqueológico, propostas
por grupos determinados em um dado momento histórico –, elaborado dentro
de um sistema fechado – o campus intelectual relacionado com um
determinado objeto de estudo –, apesar de inserido no espaço social4.
Considerando tal observação, cabe ressaltar que esse sistema abriga
agentes das mais variadas áreas de conhecimento e ainda, que estas áreas
podem expressar de maneiras distintas e/ou semelhantes suas intenções;
podem ter propostas convergentes e/ou antagônicas, atuando dentro de um
equilíbrio instável de relações de força. No domínio do conhecimento, como nos
outros, há competição entre grupos ou coletividades em torno do que Heidegger
chamou de a interpretação pública da realidade. De maneira mais ou menos
consciente, os grupos em conflito querem ver triunfar sua interpretação do que as
coisas foram, são e serão (MERTON, 1973, p. 110-111).

4
. Toda teoria ou descoberta científica só tem sentido se vai além de seu universo
circunscrito; se for divulgada por meio do ensino, de publicações, de exposições. Caso
contrário, ela se perde em sua hermética singularidade. Não estamos sendo utilitaristas, mas
tentando perceber a reciprocidade entre as produções científicas e o universo social.

28
Segundo Bourdieu, a verdade é um lugar de lutas. Evidenciadas nas
posturas, ações e tomadas de posições dentro e fora dos campi específicos,
estas lutas estão marcadas por posições de princípios legítimos e
legitimadores de visão e de divisão do mundo. Por meio da análise dos
códigos de ética de áreas correlatas, pode-se observar como e quando estes
conflitos são apresentados nos códigos individuais; de que maneira o
discurso relacionado à ação profissional manifesta os setores de intersecção,
confronto, convergência, lacunas, enfim, as regras normativas que, apesar de
voltadas para um mesmo objeto de estudo, são nominalmente diferentes.
Lembrar a dimensão social das estratégias científicas não é reduzir as
demonstrações científicas a simples exibicionismos retóricos; invocar o papel
simbólico como arma e alvo de lutas científicas não é transformar a busca do ganho
simbólico na finalidade ou na razão de ser únicas das condutas científicas; expor a
lógica agonística de funcionamento do campo científico não é ignorar que a
concorrência não exclui a complementaridade ou a cooperação e que, sob certas
condições, da concorrência e da competição é que podem surgir os controles e os
interesses de conhecimento que a visão ingênua registra sem se perguntar pelas
condições sociais de sua gênese (BOURDIEU, 1996, p. 86).

As atividades científicas, as regras normativas, os discursos oficiais


engendram-se nas disposições reguladoras de um habitus desenvolvido em
um determinado campo (campus). Esse habitus, fomentado pelas
perspectivas possíveis – a necessidade imanente do campo científico –,
também é fruto das limitações estruturais ocasionadas pela disposição ampla
das normas internacionais que esbarram em questões de soberania nacional
e contextos históricos específicos vivenciados pelos países membros e não
membros destes organismos. A possibilidade de investigação sobre essas
disposições reguladoras por meio dos códigos disponíveis estabelece uma
leitura diferenciada do discurso que remete ao valor patrimonial e às ações
preservacionistas, além de contribuir à percepção do lugar que cada
disciplina ocupa, sua correspondência com o universo social e sua relação
com as demais áreas de conhecimento.

29
Paralelo à análise sistemática dos discursos selecionados, o estudo do
desenvolvimento e das correntes internas de cada organismo – ICOM,
ICOMOS e ICCROM – nos dará pistas para efetuar o confronto e a
correspondência entre os princípios balizadores dos discursos formulados,
indispensável ao tratamento comparativo dos sistemas propostos nessa
pesquisa. A partir dos questionamentos levantados nos tópicos anteriores,
evidencia-se a importância de se estabelecer um paralelo entre a evolução
do pensamento histórico filosófico no século XX e sua correspondência (ou
não) na formulação do pensamento das disciplinas voltadas para a
preservação, pesquisa e exposição da cultura material.

Contra a pretensão fenomenológica segundo a qual a liberdade pode realizar


o sentido, cumprir a história, o pensamento estrutural dos anos 60 vai assegurar o
enfraquecimento do sujeito. A partir dos resultados da etnologia, da leitura do
inconsciente e da lingüística, este movimento coloca em relevo a idéia de
significações que existem apenas como conseqüências de oposições. Ao modelo do
sentido a constituir, ele opõe a idéia de um sentido estabelecido. Essa indicação
de Christian Descamps (1986, p. 11) nos oferece um panorama do debate ao
redor da teoria do conhecimento científico e do sentido da história a partir da
segunda metade do século XX.

Nesse sentido, foi possível encontrar nas problematizações do


universo intelectual francês, pistas para os problemas epistemológicos
enfrentados pelas disciplinas que se apóiam no positivismo, empirismo e
objetivismo – Arqueologia, Ciência da Conservação, Museologia –, lidando
com o manuseio das fontes materiais da cultura como se estas tivessem vida
própria, alheias ao meio social, a partir de uma postura que perpassa dois
níveis de expressão – o acadêmico e o social – sustentados discursivamente
pela adoção do que se chamaria efeito da realidade e que aparece nesses
estudos como naturalização da sociedade, a partir da objetivação imediata de
suas produções materiais. Cada disciplina, conforme sua própria ótica,
conduziria esta apropriação imediata da cultura material, conforme seus
objetivos e sua ótica reduzida, deslocando o objeto de um contexto amplo
para um contexto limítrofe de suas intenções acadêmicas, científicas ou de

30
extroversão. O discurso preservacionista encontra-se presente em cada
organismo congregador, mas revela as diferenças elementares dos diversos
esquemas de abordagem. Ainda que ICOM, ICOMOS e ICCROM admitam
uma correspondência mútua, cada qual atua em um determinado sentido, a
partir das orientações sedimentadas no segmento ou campus determinante
em seu interior: não é por acaso que ICOM encontra nos museólogos a
maioria absoluta de seus membros; ICOMOS, arqueólogos e arquitetos; e
ICCROM, cientistas e técnicos restauradores e conservadores.

É pertinente considerar que no conjunto das ações práticas e da


construção dos princípios de ação éticos, as significações são permeadas por
uma rede de sentidos, oculta na manifestação dos modelos de linguagem,
gerando um abismo entre as consciências: os dados imediatos (quase
sempre falsos) e o mundo dos conceitos (acessado pelo status científico). A
verificação desses abismos entre o dito e o interdito (as palavras e as coisas
por trás das palavras) marca o pensamento francês – Dumézil (história das
idéias); Lévi-Strauss (estruturalismo) e Barthes (estudos de semiótica).
Afastando-se da empiria, torna-se imperativo propor uma aproximação dos
campi que atual junto ao Patrimônio Cultural com a Ciência Social.

A análise de Funari elaborada em Reflexões sobre a mais recente


teoria arqueológica (1988), onde os textos de Hodder, Shanks e Tilley são
colocados em evidência, nos oferece um panorama sobre a formulação do
pensamento arqueológico contemporâneo: a reconstrução, proposta por
estes autores, implica no reconhecimento do caráter construído do saber
arqueológico, permitindo questionar os meios e os fins dessa construção;
arkhé enquanto origem e poder do discurso. Freud ou Foucault, Douglas ou
Derrida, Barthes ou Bourdieu, Weber ou Wittgenstein, ou qualquer outro escritor não
arqueólogo, deveriam ser uma preocupação essencial de todos os arqueólogos em
todos seus trabalhos práticos [...]. Enquanto discurso (logos) sobre o poder (arkhé),
a Arqueologia em reconstrução não pode ignorar as teorias em Ciências Sociais que
lhe são inerentemente pertinentes (HODDER, apud FUNARI, 1988, p. 205).
Partindo desse texto, pode-se verificar que são estas as mesmas lacunas
que tornam a formulação epistemológica das teorias conservacionistas e

31
museológicas desestruturadas, desconexas e distantes do sentido contextual
– no tempo e no espaço – de suas formulações e princípios.

Ao questionar o lugar do sujeito na história, tanto para a


fenomenologia quanto para o estruturalismo, o pensamento singular do final
da década de 60, ancorado na leitura de Nietzsche, duvida da própria
ideologia da ciência. Sem a posição de superioridade, reexamina o princípio
da universalidade das razões, questionando a busca do fundamento único e
percebendo a possibilidade de uma coexistência pacífica entre várias formas
de pensamento, desde que exista uma possibilidade de tolerância e respeito.
Durante o curso ministrado pelo Prof. Dr. Philippe Brunneau5 no Museu de
Arqueologia e Etnologia da USP, ele relatou seu espanto ao se deparar com
uma instituição que reunia pesquisadores das áreas Clássica e de Pré-
História: em sociedades acadêmicas mais sedimentadas esta convivência
não seria possível. Esta intolerância demonstra a fragilidade daqueles que se
julgam detentores do capital intelectual ou científico, sendo a origem da
maioria dos problemas de implantação de programas e cursos; formação de
instituições e centros de pesquisa. O perigo das teorias que pretendem
questionar a postura de outras linhas – anteriores ou contemporâneas – é de,
literalmente, jogar fora a criança junto com a água da bacia: ao destruir as
bases hipotéticas ou teóricas, desfaz-se inclusive dos argumentos, conceitos
e propostas válidas.

A área de preservação é um campo de lutas e poder, sendo possível


percebê-los nos debates internos a cada área e externos entre áreas
relacionadas. No entanto, muitas vezes o discurso encaminha-se para o
mesmo sentido ou conclusão e o óbvio torna-se anunciado pelo bom senso.
A proposta de Hodder, Shanks, Tilley e Trigger, direcionada à reconstrução
da Arqueologia, enquanto uma disciplina em formação, vem de encontro às
idéias filosóficas geradas a partir da segunda metade do século XX.
Desmontar, desconstruir, decifrar são as palavras de ordem nos anos 70.

5
Professor na Universidade de Sorbonne – Paris.

32
Durante esses últimos anos, a filosofia abandonou a idéia de um
tribunal da história que julgaria, em última instância, a verdade da filosofia. A
este respeito, o trabalho de Michel Foucault é exemplar ao partir de uma
analogia para a verdade. Influenciado por Nietzsche, Foucault não propõe a
relação da verdade com as coisas, mas a maneira pela qual os discursos são
constituídos, investidos, com efeito, de verdade. Decifrar a história das idéias
não é tanto visar um estabelecimento do verdadeiro e sim perceber arranjos
que articulam jogos de verdade: o incluído e o excluído, o tolerado e o
intolerável.

A obra de Foucault, ao questionar o mapa do saber – seus territórios e


suas regras, suas condições de possibilidade e suas lacunas –, percebe que
o saber científico é produto de seu contexto histórico específico, pois cada
época tece ligações que legitimam esse saber: a força de um regime
discursivo depende tanto do enunciado (conteúdo), quanto da legitimidade
daquele que fala. Desmembrar as estratégias dos saberes e dos poderes
torna-se imperativo: descrever o arranjo dos poderes não é propor um
funcionamento mais justo, mas é questionar o que a evidência encara como
adquirido. Quando aponta a Arqueologia do silêncio, remete à dificuldade de
articular um discurso capaz de pensar o outro. Desse modo, é possível tornar
evidente – por meio de uma pesquisa comparativa mais abrangente – a
maneira pela qual o pensamento constrói relações de similitude e de
equivalência, a partir do surgimento de uma lógica das significações.

Paul Veyne afirma que: a intuição inicial de Foucault não é a estrutura,


nem o corte e nem o discurso: é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos
humanos são raros, eles não estão instalados na plenitude da razão [ainda que
algum tipo de razão possa permear as atitudes], há um vazio em torno deles para
outros fatos que nossa sabedoria não imagina – pois aquilo que é poderia ser
diferente (1979, p. 204). A diferença básica entre Dumézil e Foucault é que,
enquanto o primeiro procura, por meio da análise estrutural, encontrar os
pontos de contato entre sociedades distantes; o segundo tenta delinear as
formas estruturadas da experiência que caracterizam as diferentes épocas
para mostrar o que as distingue umas das outras. Dumézil tende a detectar

33
uma mesma estrutura por meio de suas múltiplas encarnações históricas,
enquanto Foucault busca as mudanças, as rupturas que se instauram sob a
superfície (nos subterrâneos) da história. As diferenças evidentes entre
Foucault e Bourdieu, mais profundas e significativas, parecem inviabilizar a
presença deste sociólogo e daquele filósofo neste mesmo arcabouço
conceitual, porém, enquanto o primeiro nos fornece um esquema
metodológico passível de aplicação no meio social, o segundo nos fornece
pistas de como trabalhar além da superfície dos discursos, admitindo uma
investigação histórica de organizações voltadas para a preservação na esfera
global.

Nessa história, há cortes, descontinuidades e também aquilo que


Foucault chama de acontecimento clássico – justamente o ponto de ruptura
(ERIBON, 1992). A ruptura dos campos de pensamento, evidenciada em
Arqueologia do Saber, apresenta – apesar de toda forma de banalização da
teoria de Foucault – uma proposta que não pode ser compreendida apenas
por uma epistemologia pura e simples. Foucault escreve: É fato que eu jamais
apresentei a Arqueologia como uma ciência, nem mesmo como os primeiros
fundamentos de uma ciência futura (FOUCAULT, apud MARIETTI, 1985, p. 5). Em
todo caso, a Arqueologia do saber é certamente um método regular diante de
um objeto delimitado, que não é a ciência, mas o saber: um método rigoroso
que trata de compreender os discursos de uma época, as formas de
normatização e as regras de formação do saber, método amplo que se apóia
por meio das extraterritoriedades científicas, ainda que operante pela
abordagem dos métodos das ciências reconhecidas e oficiais, tais como a
história e a epistemologia, a sociologia e a psicologia social.

Amparada nesta relação – que torna possível visualizar a produção


científica como uma rede de significações ocultas e aparentes, situadas no
contexto social e com débitos em relação à estrutura de poder –, justifica-se a
pertinência desta pesquisa, uma vez que a questão da preservação –
evidenciada nos discursos oficiais – reflete as estruturas de construção do
saber e da cultura. Os processos de preservação, extroversão e pesquisa são
estabelecidos a partir de paradigmas seletivos, determinados, em última

34
instância, pelos agentes culturais que controlam cada um destes processos,
sendo, portanto, processos passíveis de análise arqueológica, a partir do
método proposto na obra de Foucault.

A procura das fontes ontológicas ocultas, presente em toda sua obra,


poderia ser a pretensão de uma reconstrução do processo que envolve a
preservação da cultura material. No entanto, tal posicionamento causaria um
círculo vicioso voltando-se ao mesmo problema que torna alienada a práxis –
arqueológica, conservacionista ou de musealização da cultura material – do
meio social, gerando um discurso do discurso voltado apenas para este
mesmo discurso, como a serpente que devora a si mesma em um moto-
contínuo. Nossa intenção não é propor aquilo que Foucault chamou de uma
ordem mais justa, mas tornar expostas as lacunas e falhas – se for possível –
e oferecer um panorama do processo de construção da consciência
preservacionista por meio de campos específicos: o discurso, a visão de
mundo, os valores e as referências formariam o habitus desse meio
intelectual. Até que ponto o discurso fala uma mesma linguagem e perde a
percepção de ouvir o outro?

A perspectiva aberta pela análise da obra de Foucault vem contribuir e


dar subsídios conceituais e metodológicos indispensáveis a este trabalho,
justificando os rumos que vem tomando esta pesquisa. Se Bourdieu nos
fornece uma racionalização maior e um rigor metodológico imprescindível à
construção histórica, a perspicácia de Foucault ao questionar a relação de
verdade e produção de conhecimento científico nos permite perceber os
limites da análise dos discursos levantados neste trabalho, justificando,
porém, a pertinência deste estudo.

35
1.2. Gerenciamento patrimonial e instituições
oficiais: apresentação do problema.

Os acidentes mudam nosso ritmo vital e obrigam nossas


mentes a gerar uma nova atividade, de modo que muitas de
nossas políticas pessoais e públicas não obedecem tanto à
análise racional, mas ao reflexo de nossas reações
exageradas frente aos acidentes.
Robert Ornsteis, The evolution of consciousness, 1991, p. 1.

Let's be honest ! Sob este título Jonathan Ashley Smith, conservador


chefe do V&a Museum of London iniciou sua palestra na II Conferência,
Preventive Conservation: Practice, Theory and Research, em 1994, no
Canadá. Seu trabalho consistia em uma arguta explanação, para não dizer
sarcástica, em que o autor declarava a falsa idéia de controle pleno que os
conservadores, museólogos, diretores de museu fingiam ter quando em
exposições temporárias. This talk is about people rather than objects. People are
more difficult to deal with, but we should never loose sight of the fact that we
conserve objects for the benefit of people, salientava o autor, e este é o cerne da
questão proposta nesta tese: quando falamos de conservar, falamos de
conservar para quem, por quem e por quê. Quando falamos de uma política
de preservação, estamos colocando no centro do problema as decisões
tomadas por pessoas e instituições: são estas decisões que determinam
quais são os bens materiais culturais que devem ser preservados ou não, a
quem interessam estes bens, qual o sentido deles para a cultura ou a história
da humanidade. Esta é a diferença básica entre a existência física da cultura
material e o quê confere valor cultural às coisas que têm existência física.

Estas decisões são políticas, mas ao mesmo tempo referentes – e


referência – do universo mental de onde partem, dos preconceitos e dos
conceitos de ordem moral, social, filosófica, cultural e até mesmo econômica
do meio – campus – e do habitus daqueles indivíduos que têm o privilégio de
ocupar postos, participar de conferências e, a partir de então, tomar
decisões.

36
No decorrer desta pesquisa, várias vezes foram questionadas sua
relevância ou sua direção. O último correio eletrônico do orientador deste
projeto perguntava-me: o que é preservar, para quê, por quê? Ninguém tem
respostas para essas questões e, o que é pior, ninguém consegue nem mesmo
formulá-las com clareza. Clareza de formulação já seria um ganho apreciável. Afinal,
o que está em jogo? Para que nos serve o passado? Como documento científico,
como monumento, para diversão pública, pela aura do antigo? Clareza de
formulação ou a identificação nos jogos de formulação atrás dos discursos
produzidos pode ser uma saída para pensar o sentido deste longo caminho,
nesta corrida contra o relógio. Seremos nós o Angelus Novus de Paul Klee
analisado por Walter Benjamin6, carregados pelo vento do progresso que nos
impulsiona de costas para o futuro, enquanto assistimos escandalizados aos
horrores das ruínas e dos destroços que produzimos? Sobre quais mãos
pairam os destinos e o sentido da preservação? Walter Benjamin, na sua
nona tese sobre a filosofia da história, afirma que o historiador volta as costas
a seu próprio tempo, e seu olhar visionário ilumina-se com o vislumbre dos
picos das montanhas das gerações anteriores, recuando cada vez mais
profundamente no passado (BENJAMIN, 1985, p. 226). A valorização do
passado e dos fragmentos deixados por ele seria uma maneira de se
esconder do tempo presente?

Pensar a preservação na esfera global pode significar perder o sentido


das limitações nacionais, regionais e locais. Contudo, conhecer as
correspondências entre as decisões internas e as diretrizes indicadas pelas
organizações internacionais torna-se importante para a percepção do
processo de formação dos conceitos preservacionistas. Durante muito tempo
a comunidade científica e a ingerência das esferas públicas têm sido cegas

6
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece
querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua
boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está
dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las.
Esta tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto
o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso
(BENJAMIN, 1985, p.226).

37
em acreditar que a preservação depende única e exclusivamente dos
avanços laboratoriais, das ciências exatas – como a química, a física ou a
biologia – e dos equipamentos sofisticados. Nada é possível sem a
consciência do sentido da preservação, sem a educação, sem o debate
amplo e sincero (Let's be honest!) sobre nossos limites e possibilidades e,
principalmente, sem o envolvimento da sociedade como um todo. A
preservação, a exposição, a pesquisa ou o restauro de bens culturais não
devem ser feitos apenas para o deleite, o exercício criativo, investigativo ou a
afirmação do ego de cientistas e homens cultos. Afinal, é a sociedade civil
que paga este trabalho e ela deveria ser a primeira a se beneficiar com a
preservação de seus bens. Assim, é fundamental compreender que o sentido
da preservação perpassa questões profundas, subordinadas aos conceitos
de valor, poder político e econômico. No entanto, a ordem primeira que
orienta os debates institucionais é o princípio ético sob o qual estão
sedimentadas a origem, as bases e as intenções ou os fins a que se
propõem essas instituições: são os regimentos internos, as cartas de
intenções, os códigos éticos que conformam os princípios balizadores que
norteiam as ações preservacionistas.

Em outubro de 1930, quase 200 diretores de Museus, historiadores de


arte e cientistas se reuniram em Roma em uma conferência internacional até
então nunca vista. Promovida pelo Escritório Internacional de Museus da Liga
das Nações, a conferência teria como propósito declarado o estudo de
métodos científicos para o exame e a preservação de obras de arte. Esta
reunião é sintomática: a Primeira Guerra Mundial já havia deixado suas
marcas nos monumentos e nas obras de arte de toda a Europa; a Guerra
Civil Espanhola não ficaria atrás na Península Ibérica e os primeiros anos da
Segunda Grande Guerra anunciavam o que viria a ser a bárbara destruição
de homens, idéias, livros e testemunhos históricos e artísticos.

Sintomático, porque os agentes culturais envolvidos com a


preservação de bens patrimoniais têm o hábito de se reunir e definir
propostas quando assolados por catástrofes: a Carta de Atenas, estabelecida
em 1931, surge a partir da iminência de desastres nas ruínas da Acrópole e

38
das prováveis degradações provocadas por uma outra guerra; a Carta de
Veneza (1964), após uma inundação sem precedentes. O conceito moderno
de Conservação e Restauro provém da reunião de 1930 acima citada,
quando intelectuais, cientistas e agentes governamentais compreendem o
perigo das intervenções inadequadas e da necessidade de critérios mais
rígidos, dado o montante de restaurações nos anos após a Guerra. A
preocupação com a perda substancial de monumentos e obras artísticas nos
momentos de desastres naturais e ações humanas não é matéria do século
XX. Burckhardt afirma, sobre a guerra de 1870 e suas ameaças: lo más
ominoso no es para mi la presente guerra, sino la era de guerras en que entramos y
la consecuente adaptación del espíritu. Cuánto, cuánto de lo que han amado los
hombres cultos habrá que tirar por la borda a título de mero lujo espiritual...
Piénsese sólo en la cantidad de literatura que vá a se quedar destruida...De todas
las quejas que pueden formularse contra el destino las más justas de todas son,
indudablemente, las que versan sobre la destrucción de las grandes obras de arte y
la poesía (BURCKHARDT, 1943, p. 14).

O mundo atual é diferente do mundo do XIX ou daquele da


Conferência de 1930. Sete decênios mais tarde e os problemas científicos,
éticos e conceituais seguem sendo fundamentais às áreas, instituições e
diretrizes preservacionistas. Contudo, a preservação enfrenta novas
circunstâncias que apresentam questionamentos que vão além dos debates
de laboratório: atualmente, a partir da dotação de recursos, da política e da
consciência pública é que as agendas são determinadas e os critérios de
seleção dos monumentos a serem preservados são estabelecidos
previamente. Hoje, existe no mundo um grande número de instituições
comprometidas com a Ciência da Conservação de bens patrimoniais móveis
e imóveis, formação de especialistas, publicações especializadas, além da
promoção contínua de debates ao redor dos temas referentes ao
gerenciamento patrimonial de bens públicos e privados, concebendo que a
manutenção desses bens significa, antes de tudo, a criação da memória, da
história e da cultura das mais diversas sociedades.

39
Seria ingenuidade, porém, acreditar que esses organismos encontram-
se comprometidos apenas com ideais humanistas voltados para a
preservação da cultura, uma vez que o mundo das artes e das antigüidades
envolve transações financeiras complexas e vultuosas. Além do mais, não
apenas o mercado das artes determina, no mundo moderno, a valorização da
cultura material: a manutenção de museus, sítios históricos e arqueológicos
resulta, em grande parte, do afluxo turístico e da própria importância
imputada pelo público, pela mídia e até mesmo pelos cientistas àquele lugar
sagrado da cultura. No entanto, são esses organismos que auxiliam e
orientam os profissionais que se dedicam à preservação de acervos, atuando
tanto no âmbito nacional, quanto no âmbito internacional.

A mudança de atitudes e de mentalidades em relação à ingerência


internacional inicia-se, no entanto, em 1945, quando, a partir dos destroços
materiais e dos desenganos filosóficos, o mundo Ocidental procurou
recuperar-se da Segunda Grande Guerra por meio de criação de organismos
de projeção como a ONU e a UNESCO. Como instrumento oficial de resposta
às incoerências da guerra, a Convenção de Hague (1954) estabelece os
primeiros princípios relacionados à preservação do Patrimônio Cultural em
momentos de conflitos armados. Nesse mesmo período, uma nova ordem
mundial se estabelece a partir das lutas de independência e do processo de
descolonização em vários países da África e Ásia. A consciência da
necessidade de preservar as identidades culturais através de seu patrimônio
cultural, impulsionou várias políticas relacionadas às comunidades até então
subjugadas. Como reconhecimento da política de emancipação desses
povos, a UNESCO elaborou o documento denominado The Cultural Heritage
of Mankind (1980), o qual salienta que uma emancipação política é de
pequena significância se ela não acarretar a emancipação cultural.

Atuando como um dos maiores responsáveis pelas políticas


preservacionistas na segunda metade do século XX, a UNESCO tem
contribuído para a criação de institutos centralizadores das atividades
especializadas voltadas aos bens patrimoniais – como o ICOMOS, o ICOM e
o ICCROM – e gerado o conceito de Patrimônio Mundial. A compreensão

40
acerca da formulação dos conceitos de patrimônio e de preservação, matéria-
prima desta investigação, torna possível identificar quais são os parâmetros
que, em última instância, determinam para onde devem ser destinadas as
verbas e concentrados os esforços preservacionistas, além do significado
econômico proveniente deste termo – Patrimônio Cultural –, atraindo turismo
e pesquisa. É importante lembrar que a Ciência da Conservação dos bens
culturais submete-se a necessidades crescentes e recursos limitados: cada
vez mais as restrições econômicas limitam nosso sentimento de querer tudo
preservar e dar igual peso, valor e, portanto, dispensa de recursos e
esforços. O conceito de seleção e a noção de fixação de prioridades vêm
tomando conta das instituições nos processos decisórios e estas decisões
são, antes de tudo, uma práxis política, que envolve racionalidade e
planejamento, como também resultado de uma formulação conceitual,
abarcando os conceitos de valor e validade em relação aos bens culturais.

Com o intuito de discutir os conceitos de Preservação e Patrimônio sob


a ótica das relações de poder e a partir da compreensão da construção dos
atributos que os caracterizam, selecionamos três órgãos fundados pela
UNESCO como instâncias específicas da elaboração do discurso
preservacionista e formadoras das opiniões dos agentes culturais.
Atualmente, esses três importantes organismos atuam internacionalmente de
uma maneira mais ampla e devido à influência internacional imputada a estas
instituições, geradas no interior da UNESCO, é que foram consideradas
primordiais no desenvolvimento desta pesquisa:

1)ICOM (http:/www.ICOM.org/)- International Council of Museums –,


com sede em Paris, reúne, desde 1946, especialistas do mundo inteiro, como
uma organização internacional não governamental de museus e
trabalhadores profissionais de museu, criada para levar avante os interesses
da Museologia e outras disciplinas relacionadas com a gerência e operações
de museu (Artigo 1 #1, Estatuto Interno do ICOM). Ainda que se autodefina
como uma instituição sem fins lucrativos, o ICOM movimenta anualmente
consideráveis somas de dinheiro, provenientes de seus associados,
congressos, cursos, publicações e demais atividades. Todavia, mais do que

41
nunca, o ICOM tem se preocupado com os países do terceiro mundo,
incentivando nesses países a prática museológica;

2)ICCROM (http:/www.ICCROM.org/) – International Center for the


Study of Cultural Property –, com sede em Roma, atua de maneira mais
direcionada às atividades de Conservação e Restauro desde 1956, quando
fundado pela UNESCO. Como instituição intergovernamental, com mais de
noventa países membros, tem por prerrogativa ser um fórum de debates
permanente, no que concerne à ação conservacionista, e um agente
catalisador dos projetos efetivos. Também contribui com o World Heritage
Commitee – UNESCO – para a avaliação de propostas, cursos, grupos de
trabalho e atuações efetivas nas obras e propriedades inscritas na World
Heritage List;

3)ICOMOS (http://www.ICOMOS.org/) – International Council on


Monuments and Sites – com sede em Paris, atuando de maneira similar ao
ICOM com relação aos monumentos, sítios históricos e arqueológicos. Foi
fundado em 1965 após a adoção da Carta de Veneza. No sentido de
promover a doutrina e as técnicas de Conservação, o ICOMOS contribui com
o World Heritage Commitee – UNESCO – para a avaliação de propriedades
culturais propostas e inscritas na World Heritage List, por meio de estudos
comparados, assistência técnica e relatórios sobre as áreas declaradas
Patrimônio Mundial.

ICOM e ICOMOS estabelecem-se como organizações não-


governamentais, ainda que associadas à UNESCO, enquanto que o
ICCROM, com sede em Roma, aparece vinculado ao governo italiano. Outros
institutos assumem papéis importantes no cenário mundial, algumas vezes
dissidentes daqueles primeiros, outras vezes criados a partir da mesma ótica.
Tais instituições, funcionando a partir da iniciativa pública ou privada, muitas
vezes atuam de maneira conjunta, apesar da concorrência e das próprias
divergências que possam existir entre as instituições. Our historians analyzing
the role of international organizations during the 20th century would consider many
other professional institutions that were also developing programs and activities

42
related to cultural heritage during the second half of this century: the Council of
Europe (as an intergovernmental body), The Getty Conservation Institute, the Aga
Khan Trust for Culture, the International Foundation of Landscape Architects (IFLA),
the World Monuments Fund, and many others at regional and sub-regional levels,
such as Europa Nostra. All of these organizations faced the challenge of preserving
the values of the past in a changing world in which heritage is often at risk. The main
achievement of these international organizations, according to historians, would
certainly be the raising of international concern. (BOUCHENAKI, 1999, s.p.).

Um dos exemplos é o AIC – American Institute for Conservation of


Historic and Artistic Works –, uma associação de profissionais norte-
americanos (EUA) fundada em 1972 quando se separou do IIC –
International Institute for Conservation. Além do AIC, nas Américas, o ICC –
Institut Canadien de Conservation, com sede em Otawa, desempenha um
importante papel, principalmente no que se refere à preservação de acervos
etnográficos. O ICMM – Institute of Conservation and Methodology of
Museums –, associa-se à UNESCO para promover eventos, integrando duas
grandes áreas de trabalho: a Ciência da Conservação e a Museologia. O
UKIC – United Kingdon International Institute –, no Reino Unido, atua na
mesma linha de conduta, sendo um dos primeiros centros agrupadores de
profissionais do ramo. Na América Latina, vários centros desempenham
atividades similares, como a COLCULTURA – Instituto Colombiano de
Cultura –; o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no
Brasil; o INAH – Instituto Nacional de Arqueologia e História, no México; o
Centro Nacional de Conservação e Restauração da DBAM – Direção de
Bibliotecas, Arquivos e Museus, do Chile; o Instituto Nacional de Cultura do
Peru e outros organismos, cuja maioria está subordinado à égide do estado.
Estes centros latino-americanos de cultura procuram associar-se às
instituições internacionais mais ricas, como The Getty Conservation Institute
e o Smithsonian Institute, além daquelas descritas acima, para fomentar a
preservação em seus territórios.

Por meio de todas essas instituições, os profissionais especializados –


arqueólogos, museólogos e conservadores – discutem os princípios que

43
balizam suas práticas, formulando e divulgando seus códigos profissionais.
Contudo, nem sempre suas ações efetivas procuram respaldar-se nesses
códigos e, muitas vezes, eles não se ajustam à sociedade multicultural de
nossos dias. O primeiro organismo a promover um debate ao nível
internacional sobre as questões éticas de preservação foi o Comitê de
Conservação do ICOM, em 1986. Recentemente, a ECCO – European
Confederation of Conservator-Restorer –, publicou Professional Guidelines
(1994), com o intuito de sistematizar, unificar e definir os princípios básicos
da atuação de conservadores e restauradores. Ambas instituições
compartilham a opinião de que o termo “conservador” abarca a ação de
conservar e restaurar, uma vez que a tendência atual demonstra que a
Ciência da Conservação envolve ações mais amplas, incluindo a intervenção
de Restauração. No entanto, cabe uma pergunta: Are these documents
applicable world wide, or is a different international code of ethics required for those
conservators working in countries which do not have a national code of ethics?
(PEARSON, 1995, p. 18).

Um código de ética é reconhecido como: written set of principles,


guidelines, rules, formulated by or for a group of individuals or organizations with a
common purpose, to improve the behavior and public service functions provided by
the group and its stature within the society it serves (LIND, R.C. 1987, p. 63). Desde
que cada uma dos organismos acima citados se formou, os códigos da
prática profissional têm sido discutidos. Da Carta de Veneza – International
Charter for the Conservation and Restoration of Monuments and Sites –,
publicada em 1964 pela UNESCO, ao seminário realizado em Budapeste –
Problems of the completion, ethics and scientifical investigation in the
restoration – mais recentemente (1997), muitas instituições têm discutido as
normas éticas para o exercício profissional das áreas de Arqueologia, Ciência
da Conservação e Museologia, procurando orientar tanto os museus e
centros de pesquisas, quanto os especialistas. O IIC – International Institute
of Conservation –, o UKIC – United Kingdom of Conservation – e o Australian
Institute of Conservation também promoveram na década de oitenta debates
internos sobre questões éticas ligadas às ações de seus especialistas,

44
acentuando o caráter nacional tanto legal, quanto da própria dinâmica de
suas instituições.

O desenvolvimento de códigos de ética profissional em instituições


isoladas tem gerado controvérsias em relação aos limites e amplitude das
ações dos especialistas, mas, de uma maneira geral, os mesmos têm
seguido as diretrizes propostas ou adotadas pela UNESCO, como o uso da
própria Carta de Atenas (1931). No entanto, a falta de clareza na formulação
das ações dos agentes culturais produz vários problemas: quantas vezes as
atuações de conservadores, museólogos, arqueólogos e demais profissionais
de museus parecem se mesclar, fazendo com que um profissional invada a
área do outro, uma vez que a extensão de seu trabalho parece assinalada
por uma linha tênue? No mesmo sentido, a falta de reconhecimento
profissional e de instituições especializadas na formação de pessoal
capacitado gera incursões malogradas de uma área de conhecimento para
outra. Arqueólogos crêem que restauradores e museólogos encontram-se
hierarquicamente abaixo de seu trabalho e que eles próprios são os únicos
profissionais capazes de interpretar os artefatos; museólogos acreditam que
a Ciência da Conservação e o Restauro são apenas apêndices da
Museologia e que os arqueólogos somente fornecem os subsídios para a
elaboração de exposições, uma vez que o público é a prioridade de qualquer
instituição; conservadores, por sua vez, acham que os profissionais acima
citados cometem arqueocídio, resgatando e expondo artefatos e obras sem o
mínimo conhecimento dos processos de degradação que envolve a matéria.
Vários países têm questionado esta postura diante de seu Patrimônio
Cultural. Em um texto enviado à Revista Chungara, da Universidade de
Tarapacá, Chile, os professores Bernardo Arriaza e Vicki Cassman
questionam o papel da Arqueologia, sob o título Se está produciendo un
arqueocídio?. Este texto, ao abordar a problemática da quantidade maciça
de material arqueológico continuamente extraído, questiona a
responsabilidade do arqueólogo e do antropólogo físico no manejo e
gerenciamento das fontes coletadas.

45
Uma política conservacionista perante os artefatos significa, a longo
prazo, assegurar o potencial de investigação desses objetos, uma vez que se
preocupa em manter sua integridade material. Pareciera que la primera ley de la
arqueología es que a toda excavación le sigue una entropía o caos, de tal manera
que es fundamental que las sociedades de arqueología tengan un papel
supervisador mucho más activo en el control y administración de los recursos
arqueológicos (ARRIAZA & CASSMAN, 1987, p. 12). Neste mesmo texto, os
autores advertem sobre a necessidade de incluir nos currículos das
disciplinas relacionadas com o estudo do passado as cadeiras de manejo de
coleções e princípios básicos de Conservação Preventiva. Desta forma, as
novas gerações poderiam ser orientadas a proteger o patrimônio estudado –
arqueológico ou não –, percebendo-o globalmente, tanto em seus aspectos
materiais quanto conceituais.

Ultimamente, México, Chile, Argentina, Colômbia, Peru, Venezuela e


Equador, países de considerável produção arqueológica na América Latina,
têm se preocupado com os parâmetros da Conservação Preventiva, como
mecanismo de preservação de seu Patrimônio Cultural. Nestes países, existe
uma tendência acentuada a transformar a área da Ciência da Conservação
em uma área amalgamada à Arqueologia. Solamente el esfuerzo de un equipo
profesional mutidisciplinario, real, y no tan sólo en el papel, así como un
planteamiento de la filosofía de excavación y museos podrán contribuir en forma
fundamental a incrementar nuestros conocimientos y a posibilitar la preservación y
optimización de los recursos arqueológicos (ARRIAZA & CASSMAN, 1987, p. 15).

Urge unificar os códigos profissionais dos agentes culturais e


sistematizar as áreas de conhecimento. Ainda que esses agentes anunciem
que suas ações são governadas pelo respeito à integridade física, estética,
histórica e conceitual dos objetos, na prática isso nem sempre acontece.
Freqüentemente torna-se complexo preservar a integridade física dos
artefatos, estacionando os processos degenerativos, e preservar as
evidências que registram a cultura material da sociedade. Os artefatos –
etnográficos e arqueológicos – exemplificam a extensão desse conflito: como
manter vestígios de alimentos em têxteis, uma vez que aqueles aceleram o

46
processo de degradação das fibras? Por sua vez, quantas vezes o
conservador/restaurador de acervos arqueológicos trabalha com elementos
simbólicos e sagrados: ossos humanos, representações de divindades e
objetos de culto?

A obra de arte contemporânea vem incrementar este debate: como


investir recursos humanos e financeiros em uma obra que tem como
referência conceitual sua autodestruição? Se o restaurador age a partir de
seu sentido preservacionista ele estará interferindo na proposta original do
artista; se não age, contraria os princípios básicos de sua profissão. Se os
Museus, geralmente públicos no Brasil, aceitam a obra por consignação, têm
responsabilidade de preservá-la durante sua permanência na instituição; se a
compram utilizam dinheiro público em uma obra de existência relativa. Se
não adquirem nem recebem uma obra contemporânea dessa natureza,
correm o risco de permanecer no atraso conceitual. Os códigos de ética de
uma categoria nem sempre respeitam a atuação dos outros agentes,
tampouco cobrem questões mais amplas, tais como: de que maneira
combinar o acesso público com a produção científica de conhecimento e a
preservação dos bens culturais. Patrimônio e Cultura material parecem
reflexos invertidos de um mesmo objeto. Na encruzilhada dessas questões,
os diretores de museus muitas vezes caem, despreparados, no bojo dessas
discussões, tendo de administrar, além dos próprios problemas institucionais,
problemas concernentes ao gerenciamento do patrimônio sob sua
responsabilidade e dos especialistas sob seu mandato. Visando tornar os
diretores de museus mais eficientes durante sua administração, algumas
instituições – como The Getty Conservation Institute e Smithsonian Institute –
investem em cursos para a capacitação de diretores e coordenadores de
centros de pesquisa e museus. Os diretores nomeados por sua experiência
na área ocupam um cargo, ainda que margeado por questões políticas, que
nunca é delegado a um leigo, o que minimiza os conflitos acima citados.

O trabalho científico da preservação não se leva a cabo em um vazio


político. As decisões concernentes à dotação de recursos e à Conservação
das propriedades culturais implicam em considerações políticas. Um maior

47
apoio político para a conservação e a preservação de bens culturais
dependerá de uma maior consciência pública de sua necessidade. As ações
internacionais, respaldadas em conceitos, critérios, parâmetros e métodos de
lidar com o patrimônio cultural, impõem uma nova postura àqueles que
trabalham com os bens culturais e com a própria noção de cultura.

48
2. MUSEUS E MUSEOLOGIA

2.1. O conceito de Museu

Exatamente porque o museu é um depósito de tudo aquilo


que de perto ou de longe está ligado à história nacional, os
objetos que aí se encontram devem ser acessíveis a todos; e
pela mesma razão, devem ser preservados. Saídos do
invisível, é para lá que devem voltar. Mas o invisível ao qual
estão destinados não é o mesmo de onde são originários.
Situa-se algures no tempo. Opõe-se ao passado, ao
escondido e ao longínquo que não pode se representado por
objeto nenhum. Este invisível que não se deixa atingir senão
através da linguagem é o futuro. Ao colocar objetos nos
museus expõem-se ao olhar não só do presente, mas
também das gerações futuras, como dantes se expunham
outros ao dos deuses.
POMIAN. Colecção, 1984, p. 84.

Giuseppe Castiglione
2. O Salão Quadrado, 1865, Museu do Louvre
Créditos: Museu do Louvre – Paris
http://www.louvre.fr/espanol.htm

49
Para compreendermos o sentido da fundação de organismos que
aglutinem profissionais ligados aos museus, é importante conhecer as
origens e o processo construtivo desse tipo de instituição. Tanto quanto na
origem da arqueologia ou da conservação, a linha tênue que separa a prática
amadorística da atividade profissional dos agentes culturais se define por
uma necessidade inexplicável de o homem retornar ao seu passado para
procurar referências, compreender sua história, justificar suas práticas,
embasar seus discursos, construir seu universo mental.

Etimologicamente a palavra Museu provém do grego mouséion,


através do latim museum, significando templo dedicado às musas7. Dentre as
musas, Clio – a musa da história – estaria mais comprometida com a tradição
de sua mãe Mnemósine, a deusa da memória. Em respeito a esses
santuários dedicados às musas, a civilização greco-romana utilizaria este
ambiente mais para discussões filosóficas e científicas do que para o espaço
destinado às coleções públicas de obras de arte, transformando esses locais,
inclusive, em uma espécie de instituição de ensino superior e investigação
nas várias áreas da ciência.

Waldisa Rússio Guarnieri (1989, p. 7) relata que a primeira atividade


sistemática de organização de acervos tem origem na Caldéia, seis séculos
antes de Cristo, quando a princesa Bel Chalti Nannar reuniu e documentou,
através de registros, o tesouro contido no palácio de seu pai, contendo jóias e
artefatos. O primeiro registro conhecido do emprego da palavra “museu”, no
entanto, é o Mouséion de Alexandria, fundado por Ptolomeu Soler, junto à
Biblioteca de Alexandria, sendo esse espaço constituído por um museu
científico que abrigava um parque botânico e zoológico, salas de anatomia e
instalações para observação astronômica, cujos estudiosos viviam sobre a

7
As Musas, filhas de Júpiter e Mnemósine, eram as deusas das artes e da memória. Em
número de nove, tinham a musas a seu encargo, cada uma separadamente, um ramo
especial da literatura, da ciência e das artes: Calíope era a musa da poesia épica; Clio, da
História; Euterpe, da poesia lírica; Melpône, da tragédia; Terpsícore, da dança e do canto;
Érato, da poesia erótica; Polínia, da poesia sacra; Urânia, da astronomia e Tália, da comédia
(BULFINCH, 1998, p. 15).

50
tutela do Estado. Os atuais museus devem o seu nome aos antigos templos das
Musas. Todavia, o mais famoso de entre estes, o Museu de Alexandria, não o era
por causa das coleções de objetos; tornou-se famoso graças à sua biblioteca e à
equipe de sábios que aí viviam em comunidade (POMIAN, 1984, p. 56).

Sob essa perspectiva, podemos vislumbrar no Museu da Alexandria


uma certa veia acadêmica, o germe dos museus científicos e do campus
universitário: dele assimilamos o modelo aristocrático que tornava o museu
acessível apenas às classes favorecidas; uma ação museológica, ainda que
ligada à investigação científica, totalmente voltada para si própria ou para a
comunidade científica de onde partia e um saber restrito, vinculado ao erudito
da corte (ou do Estado), o qual vivia às suas expensas e cujo poder refletia.
Ao escolhermos o Museu de Alexandria para representar a Antigüidade, tivemos em
conta que ele representa a grande ruptura com o museu sagrado para caminhar
para o museu científico e, portanto, humano. Entretanto, como os demais museus
da Antigüidade, fica restrito ao acesso de poucos: substitui os sacerdotes e
sacerdotisas por cientistas e filósofos; o sagrado pelo científico e um restrito público
de devotos por um outro, não menos seleto, de jovens nobres. Do ponto de vista
organizacional, superpõe museu, arquivo e biblioteca, sem especializá-los
(GUARNIERI, 1989, p. 8).

No mundo antigo, não se empregou a palavra museu para as coleções


de obras de arte: a pinacoteca (pinakês – plural de pinax, quadro pintado
sobre madeira, pinus) e o thesaurus, pequeno monumento ou capela votiva
destinada ao culto aos deuses (téos) e a receber as doações de fiéis, se
transformaram em verdadeiras coleções públicas, sendo que o sacerdote
assumia a custódia do templo, a gestão das coleções, os inventários e até
mesmo a responsabilidade pela conservação das obras. De acordo com Luc
Benoist (1970), citado em Guarnieri (1989, p. 7), Pausânidas se refere a uma
coleção de pinturas abrigada numa ala dos Propileus como sendo uma
pinakês (pinacoteca): a partir dessa noção de conjunto temos uma primeira
especialização dentro de uma classificação ou tipificação de museus.
Formados por una acumulación lenta de exvotos llevados por los fieles, los tesoros

51
de los templos fueron en Grecia los primeros depósitos de obras de arte que se
visitaban pagando un óbolo al sacristán, déspues de haber hecho sus devociones
ante la divindad local (BAZIN, 1969, p. 14).

O objeto oferecido ao deus e recebido por ele segundo os ritos torna-


se hieron ou sacrum e participa da majestade e da intangibilidade dos
deuses; devido a essa função sacra sua única competência é participar da
estrutura do invisível do olhar e do orar. Oferecidos aos deuses, os objetos
eram registrados em inventário e protegidos contra ladrões pelo tesoureiro
sagrado8. Além dos tesouros reunidos nos santuários, que atraiam peregrinos
e admiradores da arte clássica, pequenos principados gregos e vilas romanas
tornaram-se os pilares da cultura helenística: através da acumulação de
obras de arte, documentos e da formação de bibliotecas, príncipes
colecionistas, comerciantes ricos e políticos expunham os símbolos do poder
e da riqueza sob seus pórticos, dentro e ao redor das cellas e,
principalmente, nos jardins – coleções adquiridas, muitas vezes, a partir dos
espólios de guerra. Os objetos mantidos então fora das atividades
econômicas, inacessíveis ao homem comum a não ser por intermédio do
culto, acumulavam-se nas residências dos homens detentores do poder:
embaixadores, generais, imperadores. Os despojos parecem estar na origem
das coleções particulares em Roma.

Roma legou ao mundo a sistematização de leis e constituições,


através do registro formal de suas normas – o direito romano. Desde Cláudio,
as bibliotecas públicas possuíam regulamentos e dependiam de uma direção
central, função desempenhada por um procurador versado em literatura.
Contudo, espaços públicos destinados à exposição9 ou ao culto de obras de
arte não contavam com jurisdição estadual, nem ingerência do Estado, sendo

8
A palavra tesoureiro, guardião de tesouro, advém do mesmo termo latino thesaurus, reunião
de objetos de valor, o aurum (ouro).
9
Os peregrino, que eram ao mesmo tempo turistas, iam aos templos não só para rezar, mas
também para admirar os objetos, e toda uma literatura, cujo exemplo mais conhecido é a obra
de Pausânia, se aplicava em descrever os exemplares mais notáveis, os que se distinguiam
pelo material, dimensões, dificuldade de execução, circunstâncias extraordinárias em que
tinham sido depositados no templo ou por outros traços que o tornavam fora do comum
(POMIAN, 1984, p.57).

52
formados a partir da iniciativa privada e gerenciados pelo aeditus, um
conservador/inventarista nomeado pelo patronus daquela coleção específica.
Em 162 d.C, um édito do Senado Romano decretava que a Coluna Trajana
jamais deveria ser destruída ou mutilada, sendo este édito considerado uma
das primeiras medidas em forma de lei que se orientava à preservação de um
monumento histórico (BAZIN, 1969, p. 41).

Da queda do Império Romano do Ocidente, em 476, à tomada de


Constantinopla pelos turco-otomanos, em 1453, os constantes saques e
invasões das cidades greco-romanas produziram o desaparecimento dos
templos públicos, o desmantelamento de coleções privadas e a destruição de
arquivos e bibliotecas, expoentes da cultura arcaica, independente das leis
que visavam sua proteção. A Coluna de Trajano, erigida entre 106 e 113 d.C.
para celebrar as campanhas vitoriosas sobre os Dácios, teve o busto do
imperador que a coroava destruído com a invasão dos visigodos em 410 d.C.
Roma, que no auge do império contava com cerca de um milhão de
habitantes, nesse período chegou a ter menos de cinqüenta mil habitantes. A
destruição da Biblioteca de Alexandria em 640 marcou o fim da utilização da palavra
Museu, tanto nos países que a criaram e de onde desaparecera com os mitos
sagrados, como nas regiões que lhe herdaram a civilização. Por todo o milênio que
se seguiu (476-1453), da queda do Império Romano do Ocidente à tomada de
Constantinopla pelos turcos, os museus estiveram ausentes da civilização ocidental
(CAMPOS, s.d., p. 14).

Na Idade Média, o arquivo forense e a sala de custódia das abadias,


além da sala de tesouros dos castelos feudais, viriam a ser os depositários
das riquezas provenientes das cruzadas e das relíquias10 resgatadas das
mãos dos infiéis. O crescente entusiasmo religioso, refletido no enorme
incremento das peregrinações e culminando, a partir de 1095, nas cruzadas
para a libertação da Terra Santa do domínio islâmico, promoveu a reabertura

10
. A origem do conceito de relíquia é anterior ao cristianismo: de acordo com Pomian (1984:
54), Pausânidas descreve estes objetos a partir da dimensão mágica que ele adquire ao ter
estado em contato com um deus ou um herói, ou então que signifique um vestígio de
qualquer grande acontecimento mítico. Cooptado pela tradição cristã, o conceito sai da esfera
da cultura pan-helênica para a cultura cristã: os testemunhos materiais dos deuses e santos
são substituídos pelos apóstolos, santos, mártires e pelo próprio Cristo.

53
das vias comerciais do Mediterrâneo ao mundo ocidental através dos canais
de Veneza, Gênova e Pisa. A reativação do comércio no Mar Mediterrâneo
incrementou o intercâmbio e a mobilidade de obras de arte na Europa
Ocidental.

A partir do século XI, a influência da arte clássica na arte românica – a


qual procura resgatar os estilos desenvolvidos na Roma antiga – gera a
procura de artefatos, objetos, esculturas e pinturas do período arcaico. As
relíquias eram também objetos de comércio, e os cemitérios romanos serviam, por
assim dizer, de minas de onde se extraíam os restos dos santos para vendê-los
depois nos países transalpinos (GUIRAUD, apud POMIAN, 1984, p. 60). Príncipes,
reis, nobres e comerciantes ricos incentivaram escavações nas terras que
depositavam vestígios do mundo antigo. Além das relíquias, as igrejas
conservavam e expunham outros objetos, como oferendas e curiosidades
naturais: tapeçaria, quadros, esculturas, vitrais e ornamentos retirados das
ruínas gregas ou romanas. É importante perceber que, sob essa ótica, a
igreja medieval oferecia ao olhar uma gama variada de objetos, sendo o
único local aberto ao público onde era possível observar as coleções antes
restritas apenas ao homem de posses.

No final do século XII, o cardeal Giordano Orsine – um dos maiores


colecionadores do período – criou em Roma um gabinete de antigüidades,
atual Museu do Vaticano, que abria uma vez por semana ao público com o
intuito de divulgar a superioridade da arte ocidental11. A própria palavra
“antigüidade”, relacionada à cultura material produzida pelo mundo arcaico
greco-romano – Roma e Grécia historicamente mais antiga do que a Roma e
a Grécia da Idade Média e do Renascimento –, passaria a designar objetos
raros, antigos ou de especial valor material, artístico ou histórico. Nesse
sentido, a formação dos primeiros museus ocidentais estaria fortemente
ligada ao comércio de antigüidades e às expedições e escavações que o
alimentavam, tornando complementar as ações de resgatar, restaurar e expor

11
. Artes e antigüidades sempre significaram símbolos de poder – mágico ou real – e de
riqueza, e, portanto, de doutrinação ideológica. O resgate da arte românica no final da Idade
Média consistiria, acima de tudo, no resgate da cultura ocidental em contraposição à cultura
oriental difundida pelo Islã.

54
artefatos, aproximando, portanto, a Arqueologia, a Restauração e a
Museologia, antes de elas próprias se firmarem enquanto disciplinas
especializadas e antes mesmo que percebessem sua interdisciplinaridade.

As categorias de coleção particular ou religiosa, mencionadas acima,


diferem em quase todos os aspectos da concepção contemporânea, como
também entre elas: não provêm dos mesmos locais; os objetos acumulados
não têm um caráter comum; seus visitantes ou espectadores não são os
mesmos. O único denominador comum que faz com que seja possível reunir
esses conjuntos de objetos desconexos de coleção é o seu possuidor. O
significado do visível e do invisível; do dito e do inaudito desses objetos é
colocado por Pomian a partir do confronto de significados. O que acontece
quando os objetos destinados aos deuses, neste caso as oferendas, são
expostos ao olhar dos homens? Os objetos que se encontram em lugares
dedicados ao culto determinam a mutação da estrutura física do material
para uma percepção mágica do ícone, a fronteira entre o sagrado e o
profano, sendo atribuído à imagem – consubstancializada na matéria – poder
e, portanto, seu mérito enquanto objeto de devoção. Se na esfera religiosa o
objeto ocupa esse espaço invisível devido a sua relação mística, no local do
profano o espaço invisível imputa poder ao objeto pelo valor histórico,
estético ou capital, determinando a exposição do poder de seus detentores.
Para evitar qualquer mal-entendido, sublinhe-se já que a oposição entre o visível e o
invisível pode manifestar-se de modos extremamente variáveis. O invisível é o que
está muito longe no espaço: além do horizonte, mas também muito alto ou muito
baixo. E é aquilo que está muito longe no tempo: no passado, no futuro. Além disso,
é o que está para lá de qualquer espaço físico, de qualquer extensão, ou num
espaço dotado de uma estrutura de fato particular. É ainda o que está situado num
tempo sui generis ou fora de qualquer fluxo temporal: na eternidade. É por vezes
uma corporeidade ou uma materialidade distinta daquela dos elementos do mundo
visível, por vezes uma espécie de antimaterialidade pura. Os objetos, aqueles que
colaboram no intercâmbio entre o visível e o invisível e se endereçam uns aos
outros, diferem entre si segundo o caráter dos destinatários e dos emissores
(POMIAN, 1984, p. 66).

55
As coleções são apenas um mecanismo de comunicação entre dois
mundos, a unidade e o universo. A gênese deste significado – a necessidade
de comunicar – se perpetua na compreensão contemporânea das relações
entre as coleções, os objetos, os monumentos e a sociedade: nada que
sobrevive, que ainda está vivo, pode ser tratado impassivelmente. Temos de ser ou
insensíveis, inconscientes, ou ambos a fim de assumir objetividade para com as
obras de arte. Não podemos deixar de ser atraídos ou repelidos por elas, de senti-
las como forças com as quais agimos como amigos ou evitamos como outras
criaturas vivas. Tudo que tem vida e enquanto retém vida possui capacidade de
fazer bem ou mal, que não podemos e não devemos ignorar (BERENSON, 1947,
p.47).

Cada período da história se relacionou de maneira distinta com os


objetos que produziu, as construções que ergueu ou as obras de arte que
elaborou. É, no entanto, na segunda metade do século XIV que começam a
surgir na Europa novas atitudes mentais no que diz respeito às coleções; a
valorização do passado aparece sob a forma de retorno aos ideais da
Antigüidade clássica12. Nesse período, o comércio ativo de antigüidades pode
ser estudado através dos inúmeros registros, como as notas fiscais de
Oliviero Fozza de Forzetta, um rico comerciante que anotou suas compras
por ocasião de sua viagem à Veneza (JANSON, 1986, p. 366-435).

Através das obras greco-romanas utilizadas como modelos nas


escolas de arte ou como inspiração de artistas consagrados – Mantegna
possui um museu arqueológico em sua residência em Mântua – os italianos
do quatroccento procuraram reconciliar as tradições pagãs da civilização da
Antigüidade, adaptando-as ao cristianismo. É justamente nesse período que
as grandes famílias burguesas – os Strozzi, Pazzi, Martelli, Capponi, Mancini,
Medicis, Visconti – ostentaram seu patrimônio financeiro por meio da coleção
de obras de arte, antigas e contemporâneas. Se, por um lado, os herdeiros

12
Com efeito, os vestígios da Antigüidade tiveram durante séculos o caráter de desperdício:
salvo as peças excepcionais que, tidas em geral por relíquias, encontraram abrigo nos
tesouros das igrejas ou dos príncipes, estes vestígios não tinham significado nem utilidade e
não circulavam entre os homens, que não os procuravam. Adquirem um significado a partir do
momento em que são relacionados com os textos provenientes da Antigüidade, dos quais
devem tornar possível a compreensão (POMIAN, 1984, p.76).

56
dessas famílias se fizeram promotores do humanismo, protegendo artistas,
filósofos e cientistas, a natureza de suas fortunas provinha, geralmente, da
prática comercial, de transações bancárias e da própria tirania de alguns
pequenos déspotas do século XV (BURCKHARDT, 1943).

De acordo com Pomian, os objetos passam de uma condição restrita –


relíquia ou mirabilia – para uma condição significante ou uma categoria
denominada semióforos (aqueles que se estudam). Para ele, quatro
categorias de semióforos são forjadas no Renascimento, quando os objetos
tornam-se objetos de estudo: a primeira categoria de semióforos corresponde
aos objetos da Antigüidade, sendo estudados e colecionados por uma nova
classe de homens, os humanistas, que lhes imputam significado e valor pela
relação estabelecida entre esses objetos e os textos clássicos; a segunda
categoria é composta por objetos que retratam outras culturas, são coletados
nas viagens e expedições e atraem pelo seu sentido invisível de representar
o desconhecido; a terceira categoria de semióforos é constituída de obras de
arte contemporâneas ao próprio Renascimento, o novo estatuto das obras de
arte baseia-se na sua vinculação com a representação da beleza idealizada,
reinvidicada pelo neoplatonismo; a quarta e última categoria respeita o
fascínio gerado pelos instrumentos científicos, principalmente aqueles de
precisão matemática vinculados à Astronomia, que auxiliaram a cruzar as
fronteiras dos mares europeus. Até agora mencionou-se apenas acidentalmente
o meio mais importante utilizado na concorrência para o açambarcamento de
semióforos: o dinheiro. Este é um fator de primeira importância, não só porque os
detentores do poder, se querem garantir os serviços dos artistas e cientistas e ter
coleções, são obrigados a pagar, mas também porque o par da hierarquia do poder
e da do saber sagrado (o clero) e profano (o meio artístico e intelectual) se coloca
uma hierarquia da riqueza que não corresponde às outras duas (POMIAN, 1984, p.
79).

Assegurada a demanda do mercado de obras artísticas, antigas ou


científicas, organiza-se pouco a pouco a conduta dos homens que se
aventuraram por esse caminho: negociantes especializados fazem a
intermediação. Enquanto o trabalho de conservação e de inventário das

57
obras dos santuários gregos e romanos era feito por um sacerdote ou um
auditor público, o Renascimento inaugura a tradição de nomear artistas de
fama reconhecida para a conservação, restauração e expertise de suas
coleções. Donatello é nomeado por Cosme, o Velho, para cuidar dos acervos
de sua família; Michelangelo, pelo papa Júlio II; Leornando da Vinci é
cooptado por Francisco I, da França e Rafael, por Leão X13. Os inventários da
família dos Médicis apresentam registros desde 1456, quando Pedro de
Médici resgata as anotações de seus antepassados. Com Cosme e Lorenzo
de Médicis, o patrimônio familiar – em obras de arte e antigüidades – se
amplia em projeções consideráveis. Por esse período, o termo “museu”
reaparece para designar a coleção de livros raros e gemas, em um dos
últimos inventários – a partir da morte de Lorenzo, em 1492 –, como museo
dei codici e cimeli artistici. Com a expulsão dos Medicis de Florença pelos
franceses e o saque de seus palácios, além da retomada da tradição dos
príncipes colecionistas, também se retoma o exercício dos espólios de guerra
e o processo de translado das coleções de um lado para outro da Europa
(BAZIN, 1989, p. 59-73).

Reis, papas, nobres, comerciantes, nomeiam peritos para adquirir


obras provenientes de saques, leilões e falências, sendo que Veneza
reafirma-se como cidade de intermediação e de afluxo dos objetos
resgatados do Oriente – com a tomada de Constantinopla pelos turcos – e do
Ocidente – com as constantes disputas entre pequenos principados, famílias,
cidades-estado.

Cabe relembrar que todo Patrimônio Artístico também se traduz em


patrimônio financeiro, em ostentação de poder. Em 1471, Sixto IV editou uma
bula para proibir o êxodo das antigüidades romanas e fundou o Museu de
Arte e Antigüidades do Capitólio. Porém, tão inócuo quanto o édito romano
que protegia a Coluna de Trajano, a bula papal não evitou que coleções

13
. Em relação a Donatello, Germain Bazin afirmar que Cosme, o Velho o contratou, enquanto
Luiza Becherucci, citada por Guarnieri (1989: 9), afirma que Lourenço, o magnífico foi o
contratante. De qualquer modo, ambos pertenciam à família Médici e promoveram o
inventário de seu acervo.

58
inteiras fossem parar nas mãos de colecionadores particulares de toda
Europa.

Sob o mandato de Júlio II, consolidou-se o papel do papa enquanto


protetor das artes e da valorização das antigüidades clássicas: em 1506
quando foi encontrado o Laocoonte, os canhões de Sant'Ângelo e os sinos
das igrejas romanas comemoraram o resgate de uma das esculturas mais
valiosas do mundo helênico já conhecida a partir dos relatos de Plínio, o
Velho. Pensou-se durante muito tempo que se tratava de um original grego, de um
grupo executado por Hagesandro, Atenodoro e Polidoro de Rodes e que, segundo a
descrição de Plínio, encontrava-se no palácio do imperador Tito. Atualmente, julga-
se ser uma cópia ou reconstituição romana de uma obra helenística tardia. O tema
possuía uma significação especial para os Romanos: a punição divina infligida à
Laocoonte e seus filhos foi para Enéias uma advertência da queda iminente de Tróia
e levou-o a fugir da cidade a tempo. Como se acreditava que Enéias viera para Itália
e que dele descendiam Rômulo e Remo, a morte de Laocoonte podia ser encarada
como o primeiro elo de uma cadeia de acontecimentos que levou mais tarde à
fundação da cidade de Roma (JANSON, 1986, p. 147).

Um dos maiores escultores do Renascimento, Michelangelo


Buonarotti – protegido do papa Júlio II –, foi incumbido de organizar seu
transporte e executar seu restauro, conforme descrito por Vasari em seu
compêndio sobre artistas e obras da época. De acordo com o costume
vigente, as restaurações nem sempre respeitavam as características
estéticas e materiais do original e, muitas vezes, as complementações de
partes faltantes eram feitas sem nenhum critério, de acordo com a
criatividade do artista selecionado para reparar o objeto. Há registro das
complementações executadas por Michelangelo – os dedos das mãos de
Laocoonte, as mãos de seus filhos, o dorso e a cauda da serpente –,
restaurações que não comprometeram a integridade da obra. Cabe notar
que, mais tarde, Bernini – um dos escultores mais influenciados por
Michelangelo – iniciaria sua carreira como restaurador de antigüidades.
Quando a cidade de Hárles fez a doação à Luiz XIV da Vênus encontrada em
seu teatro, o rei encarrega a Girardón o cuidado de lhe fazer os braços.

59
Leão X, sucessor de Júlio II, procurou organizar de maneira mais
racional a conservação dos monumentos e o resgate das antigüidades,
nomeando Rafael – o grande pintor do Renascimento – como
superintendente das antigüidades de Roma, colocando sob sua direção os
museus do Capitólio e do Vaticano, como também o programa de
preservação e de escavações dos monumentos antigos. Rafael teria por
tarefa supervisionar os trabalhos dos funcionários contratados para guardar,
inventariar e restaurar as coleções da igreja, como também manter o papa
informado, através de relatos detalhados, sobre os resgates das artes
clássicas. Sabba de Castiglioni, nobre milanês que morreu em 1554,
escreveu em suas memórias (Ricordi), que um nobre ou cavalheiro deve
cuidar do ornamento de sua casa, tendo diversos gabinetes para abrigar
instrumentos musicais; esculturas antigas; medalhas ou moedas antigas;
retratos e tapeçarias, além de obras de mestres como Donatello,
Michelangelo, Mantegna, Bellini.

A febre de testemunhos do passado fez com que nobres e papas


incentivassem as escavações. Frederico II ordenou escavações próximas à
Augusta, na Sicília, e Paulo II ordenou expedições nas termas de Diocleciano
e de Caracala, jardins de César, foro de Trajano, templo de Netuno. Na
verdade, essas empreitadas significariam apenas busca de tesouros,
destruindo mais os vestígios e os testemunhos históricos, do que trazendo à
luz as preciosidades almejadas. Ainda nesse período, a arqueologia, a
restauração e as normas de exposição não apresentavam um corpus
conceitual sistematizado e adequado. O erro da prática não criteriosa,
evidenciado na destruição dos objetos, acabou por levar, alguns séculos mais
tarde, à busca de uma orientação mais segura nos processos descritos
acima. O fazer museal é, nesse momento, essencialmente coleta e crescimento das
coleções e a noção de restauro abarca desde a restauração verdadeira até a cópia
para fins de segurança que pode, eventualmente, facilitar a comercialização da obra
de arte. Por outro lado, a apresentação dos objetos é sempre feita em decoração
invocadora da Antigüidade, modelo que começa nos Uffizi e que será copiado
intensamente (GUARNIERI, 1989, p. 9).

60
No século XVI, a Itália foi a grande promotora da valorização da arte e
da cultura. Porém, no século XVII, com o crescimento econômico do norte da
Europa – principalmente Flandres, os portos de Antuérpia e Amsterdã –, o
eixo de comercialização e divulgação das artes desloca para além do
Mediterrâneo. Durante esse período, o comércio de arte se organiza e se
regulamenta através de associações, como o grêmio de São Lucas.
Marchands ou mercadores são contratados a peso de ouro para comprar
obras específicas, adquirir coleções inteiras e farejar desastres familiares ou
regionais que faziam deslocar fortunas de uma para outra mão; a figura do
colecionador, como hoje, não se expunha no comércio das artes. Como o
comércio de relíquias da Idade Média gerou toneladas de fragmentos da cruz
de Cristo, o interesse pelas antigüidades gerou o aparecimento das cópias e
das falsificações. Houve quem preferisse uma boa cópia a um mau original,
porém o elevado número de falsificações fez com que se duvidasse de
muitas coleções originais.

O desenvolvimento do colecionismo no decorrer do século XVII foi


uma conseqüência direta da prosperidade econômica e das transformações
sociais decorrentes da riqueza acumulada. Na França e na Inglaterra a bolsa
de obras de arte aumenta com enriquecimento dos países nórdicos. Além do
volume de ofertas, devido ao trânsito de obras por toda Europa, e da
demanda do novos e dos velhos poderosos, a especulação em torno do
comércio das artes atinge diversos setores da economia. Enquanto as
coleções de pinturas e obras mestras incentivaram a construção de galerias e
os artefatos arqueológicos, a sala de antigüidades dos palácios e o studio de
leitura abrigavam coleções encomendadas para homenagear os homens
ilustres contemporâneos e antigos, representantes das letras, das artes e das
ciências; os doze césares e até mesmo as nove musas do Olimpo. Essas
salas foram os embriões da tradição dos Museus Históricos. Na organização
do sistema das hastas públicas, um dos momentos mais importantes é o que vê o
aparecimento do catálogo dos objetos que serão postos à venda. A primeira obra
deste gênero foi publicada na Holanda em 1616. Ela testemunha a existência de um
público suficientemente numeroso que se interessa por peças de coleção e que só

61
as pode obter comprando em hasta pública, primeiro local e depois internacional
(POMIAN, 1984, p. 80).

Sob o Antigo Regime, a idéia de riqueza e opulência passa pela


ostentação de obras de arte, depois do XVII, as obras de arte e as
curiosidades se alojam em duas classes de locais distintas, aos quais se
delegam sentidos diferentes: os gabinetes e as galerias. A tradição dos
Gabinetes de Curiosidades reafirma-se no século XVIII, sobrevivendo ainda
ao século XIX. Inicialmente, o termo curieux – curioso – foi adotado pelos
humanistas franceses com a acepção do aficionado. O uso da palavra pode
estar ligado a um dicionário latino-francês editado em 1538 por Henri Etiènne,
em que “antiquário” é traduzido por um homem curioso de ter o saber das
coisas antigas, designando tanto o erudito quanto o colecionador.
Posteriormente, as curiosidades passariam a ser toda classe de objetos que
não fizessem parte da classificação artes e antigüidades, englobando desde
instrumentos científicos até exemplares botânicos, minerais e animais; dos
chifres de unicórnio imaginários aos fósseis. Em um tratado de 1727,
intitulado Museografia, Caspar F. Neickel descreve os locais mais aptos para
reunir objetos, a maneira de conservá-los em um clima apropriado e
determina algumas classificações: Naturalia, para os gabinetes e Curiosa
Artificialia, para os elementos estéticos.

O holandês Quiccheberg, em Munique, em 1565, ao elaborar a primeira


tentativa de uma teoria das coleções de museu, talvez não pudesse avaliar o
pioneirismo de sua contribuição numa área totalmente nova ou que seria seguido,
posteriormente, por Major, no século XVII, afirmando o caráter disciplinar da
Museologia; por Neickelius, em 1727; por Diderot, em 1765, com seu ensaio sobre a
organização racional do Louvre; por Lafont Saint Yenne, durante a Revolução
Francesa, postulado em panfletos por “museus para o povo”; por Goethe e seus
lúcidos textos sobre a atividade museal (aumento das coleções, arranjo estético,
função educacional dos museus); sem falar, é claro, na primeira historiografia de
museus (1837), elaborada por Kleimm, versando as coleções de arte e de ciência na
Alemanha (GUARNIERI, 1989, p. 7).

62
A racionalização museológica se traduz em forma de organizar e
classificar as coleções durante todo esse período. No século XVIII, também
aparecem novos métodos de restauração e conservação: com o
desenvolvimento da arqueologia14 – levando a um maior respeito ao
documento original – e o intercâmbio constante de óleos sobre tela –
provocando danos consideráveis devido ao transporte e às mudanças
climáticas, os tratamentos tornam-se mais complexos: los cuidados que
requieren los cuadros son entonces objeto de estudios minuciosos y de consulta a
los expertos, antes de confiarlos a los operarios. En Francia, se solicita el consejo de
la Academia de Pintura y de Escultura (BAZIN, 1969, p. 118). Como nos tempos
atuais, as intervenções e os métodos de tratamento suscitam polêmicas:
processos radicais, como o reentelamento, as transposições pictóricas da
madeira para o tecido e o escalpelo de pinturas murais são questionados
pelo próprio metiér e pelos especialistas que atuam na área.

Paralelo ao enriquecimento dos tesouros artísticos acumulados por


nobres e homens ricos em diversos pontos da Europa, aparecem os
depósitos de obras que pertencem à coletividade. O museu – concebido
como uma instituição favorável ao conhecimento humano –, a partir do
século XVIII instala-se no seio das universidades. A Universidade da Basiléia
– que teve a honra de formar e ter como professor o grande historiador Jacob
Burckhardt – recebeu em 1661 o gabinete completo dos Aubach, uma família
de impressores que fez fortuna com o comércio de livros. Oxford é a primeira
universidade inglesa a organizar um espaço museológico, agregando a ele
um laboratório de ciências naturais e um conservador, responsável pela
organização de um catálogo em latim.

Em 1713, o regulamento do Ashmolean Museum of Oxford prevê a


abertura de suas portas não apenas aos homens ilustrados, mas ao público
em geral. A entrada era cobrada pelo número de visitantes e o tempo da
visita. Na Inglaterra, a primeira instituição museológica de caráter nacional foi

14
. Durante o século XVIII, o progresso do estudo arqueológico deu lugar à fundação de
sociedades culturais que organizavam escavações e com os objetos encontrados formavam
museus.

63
criada pelo Parlamento inglês – o British Museum – em cujos estatutos se
afirma enquanto um estabelecimento nacional, fundado pelo Parlamento,
destinado principalmente aos eruditos e estudiosos ingleses e estrangeiros,
para ajudar-lhes em suas investigações em todos os campos de
conhecimento (Regulamento do Ashmolean Museum of Oxford, apud BAZIN,
1969, p. 145).

Com a Revolução Francesa e, mais tarde, com as Guerras


Napoleônicas, do norte ao sul da Europa ocorre a transformação das
coleções particulares em museus públicos. O Museu se converte em uma
das instituições fundamentais do Estado Moderno, enquanto pilar da cultura,
reafirmação da soberania e do poder. O primeiro traço característico dos
museus é sua permanência (BAZIN, 1989; POMIAN, 1984): distinto da
coleção particular de sua origem ao seu destino, o museu sobrevive aos seus
fundadores e tem, ao menos na maior parte dos casos, sua sobrevivência
assegurada pela sua função social; quanto às coleções particulares,
raramente sobrevivem à morte ou às flutuações da fortuna daquele que as
formou, ao contrário na maioria das vezes se dispersam ou acabam parando
em uma instituição oficial. A maioria dos museus históricos, artísticos ou de
história natural tem seu patrimônio ampliado pela política de doação de
particulares, mais do que pela política de aquisição consciente. Nesse
momento, temos a gênese do conceito moderno de museu quando os
museus dos príncipes tornam-se museus nacionais e a burguesia triunfante
leva para as organizações museais seus padrões estéticos, organizacionais e
políticos (GUARNIERI, 1989, p. 9).

Apesar do vandalismo gerado pela intolerância política e religiosa no


final do século XVIII e o início do XIX, em nenhum outro momento da história
o instinto de conservação se associa tão estreitamente ao ato de destruição.
As obras de arte confiscadas pela Convenção se reúnem em depósitos;
mosteiros são evacuados; obras contendo emblemas da nobreza e do clero
são queimadas até que um comitê de instrução pública, criado em 1791 pela
Assembléia Legislativa, decide proteger o patrimônio francês. O Museu da
República, o Louvre, criado em 1793 e o Museu dos Monumentos Franceses,

64
em 1795, assumem o papel da revalorização dos acervos franceses que,
anteriormente, eram os símbolos do poder do Antigo Regime. Contraditório
ou não, os museus públicos franceses resgatam a história da França e o
próprio Michelet afirma que são nesses museus, como em nenhum outro
lugar, onde se pode sentir a verdadeira intuição da história (BAZIN, 1969, p.
44).

Para a França revolucionária atacada pela Europa, os exércitos de


Napoleão significaram manutenção da Revolução a qualquer preço,
convertendo esse país em uma potência conquistadora em resposta à
iminência das invasões e da intransigência dos governos déspotas. Com
Napoleão, a conquista das obras de arte em honra aos vencedores – os
espólios de guerra – alimentaram os museus franceses. Por sua vez, em
cada reino invadido, o Imperador se preocupou em fundar imediatamente um
Museu ou deixar essa tarefa para seus mandatários, uma forma de
presentear o povo, tornando públicas as riquezas que anteriormente eram
privilégio de uma determinada classe social. Com a queda de Napoleão, a
França se viu obrigada a devolver as obras mais valiosas às suas cidades de
procedência. No entanto, a maioria delas não foi parar nas igrejas ou nas
galerias privadas de onde saíram; em nome dos mesmos princípios da
revolução que os haviam arrebatado, os Estados legaram ao povo os
museus.

O homem comum do século XIX dispõe de museus oficiais cada vez


mais numerosos e ainda que sua aparência externa tome ares de um templo
greco-romano (neoclássico), o espaço museológico integra-se ao plano
urbanístico das grandes cidades e responde às exigências do público,
expondo desde antigüidades até obras de arte contemporâneas.
Gradativamente, organizações nacionais e internacionais são formadas para
compreender, sistematizar e preservar os vestígios do passado, através da
sistematização das disciplinas de Museologia, da Arqueologia e da Ciência
da Conservação/Restauração. O fazer museal é Museografia, entendia muito
mais como descrição de museus e cópia de modelos consagrados, de acordo com
os padrões estéticos burgueses. Inicia-se, também, alguma reflexão, buscando a

65
Museologia e seu conteúdo científico, muitas vezes prejudicada pela adoção de
critérios positivistas (GUARNIERI, 1989, p. 9).

Atualmente, os museus de arte moderna determinam uma nova função


do espaço museológico: não apenas o conhecimento do outro, do que é
estranho ou provém do passado, mas, estendendo-se ao presente, a
instituição abre-se ao futuro, pois ensina o homem a ver o que o homem
construiu e aquilo que é capaz de construir. De acordo com o ICOM, o museu
é reconhecido como: a non-profit-making, permanent institution, in the service of
society and its development, and open to the public, which acquires, conserves,
researches, communicates and exhibits, for the purpose of study, education and
enjoyment, material evidence of man and his environment (KAVANAGH, 1994, p.
15). Esse momento, caracterizado pelo processo de urbanização,
industrialização e especialização cada vez mais restrita das áreas de
conhecimento determina um senso de organização melhor estruturado. Os
debates internacionais auxiliam na promoção de debates e reflexões que
operam com realidades díspares, fazendo com que conceitos
tradicionalmente aceitos sejam questionados.

Para a Associação dos Museus do Reino Unido, o museu é uma


instituição que coleta, documenta, preserva, exibe e interpreta as evidências
materiais e suas informações associadas, para o benefício do público.
Destrinchando o conceito expresso, para Timothy Ambrose (1994, p. 15) o
termo “instituição” implica em um estabelecimento formal que possui
objetivos a longo prazo; “coleção” abarca o sentido de aquisição;
“documentação” enfatiza a necessidade de manutenção dos registros;
“preservação” inclui todos os aspectos da conservação e segurança;
“exibição” confirma as expectativas dos visitantes em relação à seleção
apresentada dos objetos mais representativos do acervo; “interpretação”
cobre os vários campos relativos à exposição, educação, pesquisa e
publicações; “material” indica algo tangível, cujo sentido de “evidência”
garante sua autenticidade. “Para o benefício do público” seria uma noção
deliberadamente aberta e tem o intuito de refletir o pensamento atual, tanto

66
dos agentes culturais quanto do público leigo, de que os museus existem
para servir à sociedade.

É possível levantar a percepção da evolução do estabelecimento


formal da instituição museológica a partir da história da construção de
Museus, principalmente das instituições tradicionais que incorporam o
discurso oficial. Os países do chamado “terceiro mundo” têm discutido,
ultimamente, a transposição desse modelo ocidental europeizado para a
realidade dos países latino-americanos, asiáticos e africanos, uma vez que
as diretrizes propostas nem sempre contemplam as necessidades locais.
Desde 1958, a partir de posições teóricas lançados por George Henri
Revière, que a discussão do papel social dos museus foi colocada em pauta:
dessas discussões resultaram os documentos Declaração de Santiago
(1972); Declaração de Quebec (1984) e Declaração de Caracas (1992), os
quais veremos em tópicos seguintes. O fazer museal, pela própria dinâmica
imposta a partir da abertura dos museus à malha social, condiciona os
profissionais de museus a repensar seu papel perante a sociedade e lutar
pelo reconhecimento da profissão e pelo estabelecimento de programas de
formação que possibilitem a esses profissionais um desempenho coerente
com as realidades locais, como também com um mundo globalizado,
informatizado e influenciado por uma mídia que tende a homogeneizar os
padrões de conduta em detrimento das diferenças identitárias.

Até o momento foi apresentado o desenvolvimento de parâmetros


institucionais concernentes à construção formal da instituição Museu.
Contudo, o processo de formação e transformação dos agentes que
trabalham nesse tipo de instituição é um processo dinâmico e em constante
mutação, que efetivamente começou a ser pensado na segunda metade
deste século, principalmente pelo ICOM.

67
2.2. ICOM: um conselho internacional de museus
e seus reflexos

It is important to know exactly what we mean when we use


the word “museum”. But, even so, definitions do not come
easily and most need some qualification. The concept of a
“museum” is in a continuous state of development. It is
modified by the politics of the museum’s situation, the content
of its collections and the audiences it aims to serve. However,
a number of what might be called ‘working definitions’ are in
existence and these guide our thinking by reminding us of the
fundamental features that distinguish a museum from other
types of institutions and practices .
AMBROSE, Timothy. Some definitions of museum, 1994, p. 15.

O International Council of Museums – ICOM – foi fundado em


Novembro de 1946 em Paris, como uma organização não governamental,
criada com o objeto de reunir profissionais e instituições museológicas,
promovendo o intercâmbio de experiências e servindo de fórum de
discussões para a sedimentação dos conhecimentos da área. A UNESCO
participou ativamente de sua fundação fornecendo suas dependências e sua
infra-estrutura para o Centro Documental, o qual tinha a responsabilidade de
prover informações, orientações, recursos e serviços direcionados aos
profissionais de museus, pesquisadores e aos Estados-membros da
UNESCO. Nos encontros gestores que antecederam sua criação, quatorze
países membros da ONU estavam representados, dentre eles o Brasil na
figura de Oswaldo Aranha, o único representante latino-americano. No
primeiro encontro oficial, Dr. Chauncey J. Hamlin, Diretor do Buffalo Museum
of Science, dos Estados Unidos, foi indicado temporariamente para ocupar o
cargo da presidência da organização.

Em 1995, o Report of the World Commission on Culture and


Development constatou: since the end of Second World War, there has been an
exponential growth of museums throughout the world, and probably well over 90
percent of the total number of the world’s museums postdate the creation of
UNESCO and ICOM in 1946. De acordo com Mounir Bouchenaki (1999), o
ICOM é a mais antiga instituição não-governamental, criada imediatamente

68
após a UNESCO, que desempenhou um papel fundamental nas
transformações do papel e da função dos museus na sociedade
contemporânea. Scattered over the five continents, there are many museums
which are breaking new ground, in an effort to prove that the museum is not
necessarily an obsolete, elitist institution and that it has an essential part to play in
the world today and tomorrow, escreveu Kenneth Hudson em 1977, no relatório
Museums for the 1980s.

O primeiro instrumento de divulgação, ICOM News, um periódico


publicado até hoje, surge já na fundação da instituição. Atualmente, pode ser
acessado pelas páginas da internet, em Francês e Inglês, e recebido pelos
associados do mundo todo, existindo publicações específicas em Espanhol.
Os idiomas delimitam o universo de projeção global desta instituição fundada
no período pós-guerra sob os auspícios da UNESCO: são os países mais
fortes, Inglaterra, Estados Unidos e França, vencedores da guerra, que
dirigem os rumos dessa instituição. A pressão dos países latino-americanos
que mantêm relações com aqueles países fez com que alguns periódicos e
livros especializados fossem traduzidos para espanhol.

Apesar de a primeira conferência internacional realizar-se na cidade do


México – First Interim Conference of ICOM15, entre 07 e 14 de Novembro de
1947, a maioria dos encontros ocorreu em países europeus: das dezoito
conferências gerais realizadas até 1998, Estados Unidos, Canadá, México e
Argentina sitiaram a Conferência Geral apenas uma vez, as outras quatorze
reuniões se realizaram nos países europeus. Nenhuma dessas Conferências
Gerais ocorreu em países asiáticos ou africanos, ainda que as reuniões
regionais tenham se preocupado com o patrimônio desses países. A próxima,
que ocorrerá em 2002, está agendada para ocorrer no Brasil.

Nesse cenário, as décadas de 40 e 50 determinaram a afirmação do


ICOM enquanto instância internacional de discussões referentes à
planificação de uma estratégia global e um mecanismo aglutinador de

15
. Museólogos de 53 países compareceram, mas ainda não existe nenhum documento
oficial dos Estados enquanto subordinação às decisões tomadas pelo Conselho.

69
questões voltadas para a educação, treinamento profissional e formação da
disciplina Museológica: a I Conferência Geral realizada entre 28 de junho a
03 de julho de 1948 criou vinte comitês de estudos específicos. Nesse
mesmo ano, o Prof. Leroi-Gourhan iniciou um levantamento técnico legal
sobre o mecanismo de troca de obras entre museus, levado a cabo em 1976,
através da XIX Seção da Conferência Geral da UNESCO em Nairobi, com a
homologação do documento Recommendation Concerning the Exchange of
Cultural Property.

O documento foi uma das primeiras propostas aceitas


internacionalmente sobre os mecanismos de intercâmbio de obras e objetos
entre países, respeitando o direito à propriedade, os cuidados com as
condições materiais das obras e a integridade cultural desses acervos. Esse
documento surgiu após um longo caminho de espoliações constantes de
objetos de arqueologia clássica procedentes dos países do Mediterrâneo,
Mar Egeu, Egito e Europa Oriental, além da fome de objetos etnográficos
Africanos e Americanos que assolou a Europa do início do século XX. De
Freud a Picasso, todos os bons e nobres homens cultos desejavam ter em
suas mãos uma pequena mostra desse curioso universo: além deles, os
Museus mais ricos puderam manter em suas mãos estruturas arquitetônicas
clássicas inteiras, sob a justificativa de melhores condições de preservação.

Entre 1948 e 1958 ocorreram vários encontros organizados em


cooperação entre a UNESCO e o ICOM, abordando temas variados, voltados
principalmente às questões técnicas e à formação educacional do
profissional que atuava na área, principalmente conservadores e
museólogos: o Prof. Cesário Brandi, um dos maiores nomes da restauração
de telas, organiza um seminário técnico específico em Roma; Georges Henri
Rivière, um dos grandes nomes da Museologia, discute os princípios
educacionais para uma teoria da ação museológica, culminando no seminário
de 1958 no Rio de Janeiro; Suécia e Inglaterra também abordam temas de
ordem técnica em 1950; em 1951 são discutidas questões sobre folclore e
etnologia através do encontro do Comitê para as Questões Raciais. Nesse
mesmo ano, ICOM e UNESCO organizam uma campanha que marca o início

70
de uma discussão aberta e ampla – em nível internacional – sobre o papel
educacional dos museus: as ações voltadas para a interação entre público e
instituições geram uma série de eventos, inclusive formulação de uma data
comemorativa – 18 de maio –, estabelecida em 1977, como o Dia
Internacional dos Museus.

A preocupação do papel educacional dos museus é forte nesse


período e em 1952 G. Cart, M. Harrison e C. Russell publicam um trabalho
em Nova York denominado Museums and Young People, sob os auspícios
do Comitê para Educação e do Comitê para Crianças. No complexo conjunto de
funções desempenhadas pelo museu, a função educativa é, há longo tempo,
internacionalmente reconhecida. Nos países latinos americanos, esta função
extrapola uma perspectiva complementar, para assumir, em alguns casos, papel
central na formação do cidadão. No Brasil, a polêmica sobre a dimensão deste papel
educativo, sobretudo em relação aos processos de educação formal, tem sido objeto
de diversos estudos que apontam questões como os limites desta atuação, os níveis
de sobreposição de funções, a preocupação com parcelas significativas da
sociedade alijadas do sistema escolar e a escolarização dos museus (MATTOS e
BRUNO, 1995, p. 6).

O método utilizado pelo ICOM, criando comitês específicos para


viabilizar estratégias determinadas, respalda-se no sistema de escritórios ou
oficinas gerado pela UNESCO. Este tipo de procedimento propicia o
aglutinamento de profissionais com os mesmos interesses, conhecimentos e
objetivos, concentrando esforços, pesquisas e publicações especializadas em
áreas de conhecimento comuns. Ainda que os comitês congreguem
elementos de procedências distintas como arqueólogos, educadores,
museólogos, diretores de museus, historiadores e restauradores, no Comitê
para Crianças os especialistas reunidos afirmam que quando todos remam
para o mesmo sentido a canoa desliza mais rápido. O olhar multidisciplinar já
se faz presente e a sua necessidade é crescente durante o século XX. A
exemplo do ICOM, a partir da década de 90, o INAH – Instituto Nacional de
Arqueologia e História, no México e o Centro Nacional de Conservación y
Restauración da DBAM – Direccion de Bibliotecas, Archivos y Museos, do

71
Chile, criaram comissões aglutinantes de temas específicos, com o intuito de
viabilizar pesquisas e concentrar esforços.

Em 1953, na III Conferência Geral realizada na Itália, Georges Salles,


da França, sucede J. Hamlin tornando-se o segundo presidente do ICOM.
Sob sua direção, dez novos comitês são criados orientados para as seguintes
áreas: arquitetura de museus e planejamento de museus em grandes
metrópoles; o papel dos museus nas pesquisas técnicas e científicas;
museus de história natural e proteção da natureza; participação dos museus
no intercâmbio cultural entre nações; museus de arte moderna.Desde as
exposições francesas de 1900 até as exposições itinerantes de Van Gogh,
Cèzane e Gauguin que invadiram o olhar da Europa do início do século, a
preocupação com a arte moderna e os Museus especializados foi levantada.
A partir da década de sessenta o volume de obras modernas gerou uma
demanda de instituições voltadas para esse tipo particular de objeto. A
necessidade de construções novas atiça a imaginação de arquitetos de
vanguarda e os museus passam a buscar critérios estéticos compatíveis com
as obras que comportam, alimentando-se de uma linguagem pautada pela
inovação formal. O resultado técnico dessas construções nem sempre atende
os critérios de preservação das obras contidas nesses ambientes, iniciando-
se uma longa disputa entre o gênio criativo e os princípios conservacionistas
dos santuários das obras de arte. A justificativa dessas construções é que o
Museu deve atrair o público como um todo, inclusive pela sua arquitetura.
Todavia, até onde o bom senso, o discernimento técnico e o conhecimento
prévio do comportamento de determinadas estruturas comprometem a
atividade criadora e o deleite estético? Soluções simples e percepção dos
problemas podem gerar uma construção inovadora e ao mesmo tempo
apropriada às necessidades das obras de arte? Na IV Conferência Geral
realizada na Suíça, os problemas das instalações modernas voltam à tona.

Ainda na década de 50, questões relativas à Educação foram


discutidas no Seminário Regional sobre o Papel dos Museus na Educação,
que ocorreu no Rio de Janeiro, organizado pela UNESCO em cooperação
com o ICOM. Após este encontro, o ICOM prepara um documento

72
denominado International regulations on the most effective means of
rendering museums accessible to everyone (1958), que se torna
recomendação em 1960: Recommendation on Participation by the People at
Large in Cultural Life and their contribution to it.

O Seminário Regional de 1958, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro,


significou um marco para a discussão do papel educacional dos museus na
América Latina. A personalidade de Georges Henri Rivière, multifacetada,
humanista e técnica, imprimiu a tônica ao trabalho constante, com uma contrapartida
sadia e acolhedora das autoridades e técnicos brasileiros. Os museus nos abriram
suas portas, e pudemos conhecer importantes realizações e toda essa máquina
complexa e exata que deve funcionar para que o museu cumpra sua função
essencial dentro da sociedade, relata Hernan Crespo Toral (1995). O encontro
significou uma oportunidade de intercâmbio de experiências entre os museus
latino-americanos, além de possibilitar, por parte dos profissionais envolvidos,
uma reflexão a respeito do papel do museu na sociedade contemporânea.

A prática de seminários regionais tornou-se fundamental enquanto


fórum de debates: os documentos provenientes dessas discussões sofrem
um período de amadurecimento até tornar-se um documento oficial,
homologado pela UNESCO. Os documentos gerados atualmente pelo ICOM,
ICOMOS e ICCROM assumem um caráter mais abrangente quando passam
por esse processo, uma vez que os países que fazem parte da World List
Heritage ou têm algum vínculo ou interesse naqueles organismos maiores,
acabam por, no mínimo, intencionar a acatar e divulgar as resoluções, cartas
e demais documentos internacionais estabelecidos pela UNESCO. Desta
forma, estas três grandes instituições, além de outras, envolvidas no
processo de preservação, em uma via de mão dupla, dão origem a tratados e
são receptoras de normas que buscam uma percepção global do sentido da
preservação.

Contudo é marcante a tendência de manter-se o poder decisório nos


terrenos dos países europeus e norte-americanos: na V Conferência Geral, o
terceiro presidente do ICOM é empossado e o escolhido foi Sir Philip Hendy,
do Reino Unido. Nesse mesmo ano, 1959, foi fundado por uma iniciativa

73
integrada – ICOM e UNESCO – o ICCROM, International Centre for the Study
of the Preservation and Restoration of Cultural Property, em Roma. Esta
instituição originou-se a partir da necessidade de um organismo que fosse
mais voltado para os aspectos técnicos e científicos da preservação – a
conservação e o restauro –, tornando-se parceira de trabalhos, simpósios e
demais atividades das outras duas. Gradativamente, ICOM e ICCROM,
parecem se afastar no campus das idéias e nas atitudes, decisões, objetivos
– o habitus – que engendram suas ações. A VII Conferência Geral, em 1965,
tratou justamente do tema Training of Museum Personnel, dando maior
ênfase às montagens de exposições, aos aspectos educacionais,
documentação e intercâmbio. Nesta conferência, o quarto presidente do
ICOM, Dr. Arthur van Schendel, diretor do Rijksmuseum de Amsterdã,
assumiu o cargo.

A partir da década de sessenta, sob os auspícios das discussões


levantadas pela antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, intensificam-
se os debates sobre museus e pesquisas científicas voltados para objetos
etnográficos e arqueológicos. O Comitê para Museus Científicos é convidado
a participar de um encontro junto ao Comitê de Conservação, em 1967, e
desse encontro inicia-se a segunda Campanha Internacional de Museus,
enfocando museus universitários e museus de caráter científico – História
Natural, Arqueologia e Etnologia. Além da reflexão do papel institucional,
esse período foi marcado pela discussão dos paradigmas científicos da
Museologia, o conceito de objeto de estudo da Museologia, principalmente
com J. Neustupny. Posteriormente, na década de sessenta, o I Simpósio
sobre Teoria Museológica ocorrido em Brno, em 1965, discute como objeto
da Museologia a totalidade das atividades (dos trabalhos) de museu
(Gesamtheit der Museumarbeit): vago e impreciso, o conceito não significou
acréscimo na teoria museológica, porém serviu de preparação para
encontros posteriores que discutiram o tema da Museologia como ciência ou
técnica. Algumas contribuições aos temas do ICOFOM foram retiradas de teorias
mais completas das quais as estruturas principais foram publicadas em outro lugar,
às vezes na forma de um livro (Benes, Deloche, Gluzinski, Gregorová, Schreiner); às

74
vezes em uma série de artigos de diferentes periódicos (Desvalles, Jahn, Ramoevic,
van Mensch, Razgon, Russio, Sola, Stransky, Swiecimski) (MENSCH, 1994: 2-3).

De acordo com o documento resultante do Seminário de 1958,


proposto por Georges Henri Rivière, então presidente do ICOM, a Museologia
é a ciência que tem por objetivo estudar as funções e a organização dos
museus. Firmada sobre a ótica da ciência do conhecimento, esta afirmação
procura demarcar o objeto de estudo da Museologia. O que determina uma
disciplina ser uma ciência ou não? Quais são os limites ao reconhecimento
profissional? Por que, após quarenta anos de existência e mais de vinte
séculos de prática, os agentes culturais que trabalham em museus têm de
lutar para ocupar o podium sagrado da ciência? Basicamente, é o discurso
apoiado em conceitos, hipóteses e métodos que justificam a composição de
um campo específico. A Museologia, com seus pés postos nas Ciências
Humanas – que muitos afirmam não serem ciências –, reafirma seus
princípios educacionais, ordem primeira do sentido de coletar, reunir, expor e
estudar artefatos, objetos e obras como base de sua construção teórica.

Dentro desse contexto, a organização museal é questionada em sua


forma e estrutura; em sua filosofia e ação prática; ao mesmo tempo em que a
interdisciplariedade se afirma como urgência seja para o museu, seja para a
Museologia: a corrente teórica que se estabelece afirma a disciplina como o
estudo da finalidade e organização de Museus. Esta visão, ancorada no
posicionamento de Georges Henri Rivière, elaborou uma definição mais
apurada em 1972, quando o ICOM conceituou a museologia como o estudo
da história e trajetória dos museus, seu papel na sociedade, seus métodos
específicos de pesquisa, conservação, educação, seu relacionamento com o
ambiente físico e a classificação dos diferentes tipo de museus, norteando a
maioria dos programas de treinamento em museus (MENSCH, 1994, p. 4). A
profissionalização e a construção de bases éticas claras para o desempenho
da profissão tornam-se cada vez mais prementes. Quanto à Museologia
propriamente dita, tem recebido várias conceituações, dentre as quais podemos
lembrar, é uma ciência em formação, hoje em fase inicial mas que, em futuro ainda
indefinido, será um ramo da ciência, de Zbyneck Stránský, que acrescenta: a

75
concentração consciente de nossa atenção nas bases metateóricas da Museologia,
torna-se, hoje, uma necessidade urgente. Esta é favorecida pelos esforços atuais
para o desenvolvimento de uma ciência das ciências e mais: a Museologia apóia-se
sobre uma base teórica do ponto de vista gnosiológico e metodológico, pois só
assim ela pode cumprir sua missão, não apenas em relação à prática museal mas
também, dentro do próprio sistema da ciência (GUARNIERI, 1989, p. 10).

De acordo com Peter van Mensch, uma análise da discussão


museológica nos oferece uma diversidade de opiniões em relação ao papel
da Museologia; sua instância de ação; seu objeto de estudo e sua inserção
sociológica. Os debates do ICOFOM (Comitê Internacional de Museologia)
podem proporcionar uma idéia da dimensão dos problemas e da falta da
clareza em relação às propostas. A Museologia poderia ser analisada sob os
seguintes parâmetros:

a) Como o estudo da finalidade e organização dos museus;

b) Como o estudo da implementação e integração de um certo


conjunto de atividades, visando a preservação e uso da
herança cultural e natural; admitindo como variáveis os
locais relativos ao contexto da instituição museu ou
independente de qualquer instituição;

c) A Museologia como estudo dos objetos museológicos e/ou


como uma qualidade distintiva dos objetos de museu;

d) Como o estudo de uma relação específica entre homem e


realidade.

O resultado de mais de vinte anos de discussões relativas aos agentes


de Museus propicia o reconhecimento da Museologia como uma disciplina
científica dada em universidades: dos treinamentos ocasionais até a
construção da disciplina, um longo caminho é percorrido. Apenas na década
de 70 é que algumas universidades européias começam a montar cursos de
formação e, a partir de então, lutar pelo reconhecimento profissional. As
reuniões de 1968, 1969 e 1970 foram decisivas para este fato, uma vez que
o papel dos museus é sedimentado enquanto fonte de pesquisa e espaço

76
educacional. A IX Conferência Geral, de 1971, escolhe como presidente o
tcheco Dr. Jan Jelinek, o mesmo que orientou os trabalhos do encontro
realizado em Brno, em 1967, e que demarcou as primeiras discussões sobre
o reconhecimento da Museologia enquanto disciplina científica. Durante seu
mandato, de 1971 a 1977, os esforços do ICOM concentraram-se na
formação profissional e no estabelecimento de contatos com universidades
européias para a promoção e a fixação da Museologia no campo da ciência.
No encontro de 1971, os grupos de trabalho reunidos discutem modificações
substancias em relação ao conteúdo e à forma da cooperação internacional
entre museus: revisão dos Estatutos e da definição de museu, afirmação da
importância do meio ambiente na vocação dos museus, surgimento da dimensão
política no conceito de museu, etc. Em Grenoble, a intervenção de Mário Vasquez,
do México, questionando o papel do museu na sociedade, provocou sensação
(VARINE, 1995, p. 17).

O encontro de 1971 também marcou uma tomada de posição dos


profissionais de museus da América Latina em relação à postura européia e
norte-americana: os modelos das reuniões anteriores já não correspondiam
às necessidades, anseios ou às experiências dos profissionais latino-
americanos: os especialistas museólogos, majoritariamente europeus ou
americanos, falavam de uma maneira mais ou menos dogmática, em francês
ou inglês, impondo, de uma maneira ou de outra, uma postura hierárquica e
de sobredeterminação, como se os museólogos dos grandes museus do
México, Cuba, Brasil e Argentina não pudessem contribuir para com o
debate. De acordo com Hugues de Varine, essa percepção fez com que os
profissionais desses países se organizassem e propusessem encontros
regionais – sob a orientação da então criada INODEP (Instituto Ecumênico
para o Desenvolvimento dos Povos) – cuja língua dominante fosse o
espanhol e onde a troca de experiências entre pares com os mesmos
problemas pudesse ser enriquecedora. Paulo Freire foi indicado como
coordenador desse instituto, pois poderia transpor suas experiências como
educador ao campo da Museologia, porém foi impedido pelo delegado
brasileiro junto à UNESCO por questões políticas. O Brasil vivia, então, a

77
ditadura militar e a representatividade da esquerda em organismos
internacionais não seria bem vista. Nesse encontro, em 1972, ocorreu em
Santiago uma oficina latino-americana que estabeleceu uma declaração de
princípios sob bases sociais: a Declaração de Santiago.

Na XI Conferência Geral realizada em Moscou (1977), o ICOM instituiu


um braço denominado ICOFOM (Comitê Internacional de Museologia), com o
objetivo de sedimentar as ações voltadas à especialização e à construção do
saber museológico. Contudo, Peter van Mensh (1994, p. 1-2) descreve o
campo da Museologia como um cenário onde a diversidade de visões em
relação ao seu conteúdo parece proliferar, ao invés de cristalizar-se em
escolas de pensamento bem definidas: por essa razão Z.Z. Stransky não quis
usar o termo objeto de estudo, preferindo tendência de conhecimento (...)Durante o
simpósio do ICOFOM realizado em Hyderabad em 1988, a questão discutida foi se
um mesmo corpo teórico e prático seria válido em todo o mundo. A opinião geral,
expressa pelos museólogos de diferentes partes do globo, admitiu que no nível mais
elevado de abstração, só há uma Museologia. No nível prático, no entanto, podem
haver muitas diferenças de acordo com as condições culturais e sócio-econômicas
locais.

A abrangência do ICOM e sua ação global são evidenciadas na XI


Conferência Geral realizada em Moscou em 1977: 1500 participantes de 99
países fazem parte do fórum de debates. Neste encontro, Mr. Hubert Landais
(França) sucede Dr. Jan Jelinek, orientando, então, o que viria a ser a nova
face do ICOM: a busca por uma maior projeção internacional. O título desta
conferência, Museums and Cultural Exchanges, e a criação do Dia
Internacional de Museus antecipa o direcionamento dos trabalhos.Questões
relativas à restituição e retorno de propriedades culturais aos países de
origem são levantadas no Treatise on Museology. Um Comitê ad hoc do
ICOM, convidado pela UNESCO, prepara um estudo sobre os princípios,
condições e significados para as restituições e o retorno de propriedades
culturais, com o intuito de reconstituir patrimônios dispersos, contribuindo
para a formulação, quase uma década depois, do documento The Legal

78
Aspects of the International Art Trade, organizado pela Faculdade de Direito
da Universidade de Genebra.

Na década de oitenta, Razgon (1978, 1982 e 1988) definiu a


Museologia como uma ciência social que se ocupa dos processos e leis
relativos à preservação da informação social, bem como à transferência de
conhecimento e emoções por meio de objetos museológicos. Essa
abordagem procurou perceber a disciplina como um fenômeno social que se
estrutura a partir do contexto histórico, político ou econômico onde está
inserida. Ao fundamentar seu pensamento em três instâncias – a instituição,
o acervo e o conjunto específico de atividades –, Razgon estabelece a noção
de atividades fins, as quais seriam as ações fixadas nos processos de coleta,
preservação, investigação, exposição e comunicação, com o intuito de
fornecer evidências do desenvolvimento da sociedade e partilhar seu
conhecimento. O museólogo indiano V.S Bedekar define a museologia na
mesma direção: museologia é a conceituação e a codificação profissional de
procedimentos recomendados e validados para se atingir os objetivos do
serviço de museu (MENSCH, 1994, p. 6-7). A abordagem centrada na
atividade, expressa por Mensch nas suas primeiras publicações, orientou a
tônica do debate em várias instituições, principalmente na Alemanha, e
resultou em vários documentos formalizados ao redor da ética e da definição
da profissão.

Em 1984, no encontro regional de Quebec, noções como “ecomuseus”


e “museus comunitários” retomam as diretrizes propostas em Santiago
(1972). Vinte anos depois, essa postura que propõe um museu forjado em
bases sociais, integrando o indivíduo no processo de construção do espaço
museológico e estruturando esse espaço a partir das identidades individuais,
atende pelo nome de Nova Museologia. Esta corrente de pensamento parece
firmar-se em duas propostas teóricas: a Museologia como o estudo da
implementação e integração de um conjunto de atividades visando a
preservação e uso da herança cultural e natural, cujo precursor foi o
museólogo russo A. M. Razgón (1978), e a Museologia como a análise da

79
relação específica do homem com a realidade, formulado por Stransky no
final dos anos setenta e início dos oitenta.

Projetos como os “ecomuseus” e os “museus de vizinhança” – para os


quais o Anacostia Neighborhood Museum de Washington, baseado na
valorização da identidade de camadas populacionais excluídas compostas
por negros e hispano-americanos de bairros norte-americanos, e Casa del
Museo, no México, estruturada a partir da demanda das comunidades
mexicanas, propõe uma mudança no sentido da ação museológica, viriam a
ser referências internacionais – foram implantados em várias regiões. Já não
são os parâmetros das camadas populacionais mais ricas, dos países
industrializados e dos turistas tradicionais que permeiam as intenções
educacionais desse tipo de instituição. Exposições fundamentadas de
maneira a agradar o turista estrangeiro, ocasional e bem formado, para quem
a Museologia tradicional organizava todo seu repertório de comunicação,
deram lugar a propostas construídas a partir dos próprios anseios das
comunidades locais, que contribuíam de maneira criativa e dinâmica no
processo de formação do espaço do museu. Aceita a idéia de que o ateliê tinha
revelado a existência de um novo movimento museológico, enraizado numa
multiplicidade de práticas, foi então adotada, neste espírito, e no intuito de permitir o
desenvolvimento e eficácia destas Museologias, a criação de um “Comitê
Internacional de Ecomuseus/ Museus Comunitários” no quadro do ICOM, e a criação
de uma Federação Internacional da Nova Museologia que poderia ser associada ao
ICOM e ao ICOMOS, cuja sede provisória seria no Canadá (MOUTINHO, 1995, p.
28).

A Museologia, como estudo da relação específica do homem com a


realidade, foi definida por Stransky (MENSCH, 1994) como uma abordagem
específica do homem frente à realidade cuja expressão é o fato de que ele
seleciona alguns objetos originais da realidade, insere-os numa nova
realidade para que sejam preservados, a despeito do caráter mutável
inerente a todo objeto e da sua inevitável decadência, e faz uso deles de uma
nova maneira, de acordo com as suas próprias necessidades. Esse conceito,
difundido por Anna Gregorová durante vários simpósios do ICOFOM, ampliou

80
a perspectiva para uma abordagem centrada na socialização do
conhecimento através da difusão científica, cultural e educacional. Essa
abordagem, difundida no Brasil pela escola seguidora de Waldisa Russio
Guarnieri, influenciou vários museólogos como Marcelo Araújo, Heloísa
Barbuy e Cristina Bruno. No texto de Mensch (1994: 12), o autor cita Judith
Sielbauer: se a museologia é o estudo e a compreensão do processo de
preservação ativa e integrada ao invés do estudo da instituição museu em si, novas
possibilidades surgem. Em tal conceito de museologia, o termo ativo expressa a
interação dinâmica e contínua entre o indivíduo/público/comunidade e a
evidência/informação/compreensão disponível dentro de um espaço museológico
específico.

Relações internacionais, políticas gerenciais e aspectos legais tornam-


se questões fundamentais para o respeito das fronteiras e das propriedades
culturais, possibilitando ao ICOM uma projeção maior. No início dos anos
oitenta, é possível observar as primeiras ações voltadas para a criação de
códigos de ética de profissionais de museus, com a criação de um Comitê ad
hoc para Ética Profissional. Em 1978, sob a coordenação da conservadora
Agnes Ballestrem, reuniu-se em Zagreb um grupo de trabalho – Formação
em Conservação e Restauração – responsável pela discussão e construção
do documento The Conservator-Restorer: a definition of the profession,
traduzido para o espanhol e para outros idiomas em 1989. Revisado em
1981, 1983 e 1984, este documento deu origem à proposta desenvolvida em
1986, na Argentina, com base no Code of Professional Ethics, adotado em
Buenos Aires na XVI Conferência Geral do ICOM, o qual procurou
proporcionar as linhas mestras através de um guia ético geral, que deveria
ser utilizado como base internacional de conduta mínima ao desempenho da
profissão de museus. O código proposto, aceito como estatuto de ética
profissional, respaldou as orientações nos Estatutos do ICOM adotados na
16th General Assembly of ICOM (The Hague, 1989) e sancionados na 18th
General Assembly of ICOM.

Apesar do Artigo 2, §1, definir os trabalhadores profissionais de


museus como todo o pessoal de museus ou instituições afins que possuem

81
treinamento especializado ou experiência prática equivalente em qualquer
campo pertinente para a gerência e operação de museu, o Artigo 1, §1, e
vários outros textos inseridos no documento sobrevalorizam a disciplina
museológica, no que diz respeito ao gerenciamento operacional das demais
atividades dentro de um Museu: quando coloca como objetivo do ICOM fazer
progredir e disseminar o conhecimento em Museologia e outras disciplinas
que tratam de gerência e operações de museu, o discurso possibilita uma
leitura quanto à hierarquização das áreas. No entanto, o documento oferece
vários avanços: coloca em evidência a figura do Diretor e cobra dele uma
ação consciente, discute o problema dos estatutos e da ética institucional,
coloca que as ações de extroversão – apresentações, exposições e
atividades especiais – não devem por em risco o acervo, discute políticas de
aquisição, coleta e cooperação entre instituições, depõe a favor da
necessidade de profissionais qualificados nas áreas de Documentação,
Museologia e Conservação.Traduzido e difundido na América Latina, tem
contribuído sobremaneira na organização de várias ações: a criação do
Conselho de Museus da Universidade de São Paulo, em 1996, pautou-se por
algumas questões levantadas nesse documento. Falta, ainda, uma
divulgação maior, revisões e um posicionamento mais amplo de todos os
profissionais. Em 1989, a inclusão do espanhol enquanto linguagem de
trabalho das publicações internas facilitou o acesso desse e de outros
documentos aos países em desenvolvimento16. Museu, Museologia,
Formação Profissional e Estatuto do Museólogo são, sem dúvida, temas
interligados; mas a formação e a profissão serão tanto mais respeitadas
quanto resultantes de uma convalidação social, afirma Waldisa Russio
Guarnieri (1989, p. 10). Esse reconhecimento depende tanto da ética, quanto
do direcionamento das ações desses profissionais: se distantes do social,
distantes estarão da sociedade.

16
During the 71st session of Executive Council in Paris, France, an Ethics Committee is
created. It studies various problems related to professional ethics and decides to encourage
translations of the ICOM Code of Professional Ethics guaranteeing ICOM´s moral authority
(ICOM CHRONOLOGY – 1946-1996, 1996, p.8).

82
Os anos noventa marcam esse processo de democratização do ICOM
com a abertura e o acesso de seus documentos nas páginas da internet;
publicações de custo acessível e em vários idiomas – Inglês, Francês e
Espanhol; três encontros em países africanos – Benin, Togo e Ghana – e a
criação de um Programa para a África (AFRICOM), com o objetivo de
desenvolver intercâmbios e estreitar os laços entre profissionais de museus
africanos. Nessa década, parece haver uma atenção aos países latino-
americanos, africanos e asiáticos, em uma tentativa de busca da
democratização dos trabalhos. Em 1980, é publicada em espanhol uma
edição do Museum Security Handbook e a XII Conferência Geral realizada no
México estabelece o documento: The Word's Heritage – The Museum's
Responsability, traduzido em vários idiomas, inclusive para o árabe. A
proposta democratizante do ICOM propicia que em 1989, Alpha Oumar
Konaré (Mali-África), suceda Geoffrey Lewis (UK) como o oitavo presidente
do ICOM.

Mais do que nunca, as traduções do Code of Professional Ethics


garantem ao ICOM uma autoridade moral, transformando-o em espelho para
as ações preservacionistas em vários países do mundo. Com a criação
efetiva do Comitê para Ética Profissional em 1990, a busca da
democratização dessa instituição procura respaldar-se nos princípios éticos
de suas ações. Nesse momento, a preocupação com questões relativas ao
respeito às propriedades culturais é posta em prática pela cooperação da
Interpol, das aduanas e dos escritórios federais de vários países nos
processos de investigação de tráfico ilícito de objetos culturais. Publicações
especializadas e sites na Internet auxiliam na localização de objetos
roubados ou apropriados indevidamente: uma série denominada One
Hundred Missing Objects (1994-...) auxilia nesse processo de controle.

A visão cada vez mais abrangente do ICOM nos anos 90 possibilita


que Saroj Ghose (Índia) suceda o presidente africano em 1992. Além disso, a
procura de uma ação efetiva em escala global faz com que o ICOM não
feche os olhos diante do cenário mundial. Desde a criação do MINOM –
Movimento Internacional da Nova Museologia –, ocorrido em Lisboa em

83
1985, como resultado da Declaração de Quebec (1984), profissionais de
museus, principalmente aqueles vinculados à extroversão e à educação,
buscam uma nova prática museológica a partir do envolvimento das
comunidades locais na estruturação dos conceitos de identidade, ação e
cidadania na construção de espaço de museu dinâmico e fortemente
ancorado em questões de ordem política e social. Grandes museus, a maior
parte localizados nos países industrializados e ricos, não conseguem se
libertar da camisa de força de suas exposições de obras-mestras, de valor
artístico ou histórico, voltadas para um turismo cultural baseado no senso
comum e sedimentadas sobre as bases da Museologia tradicional; é nos
bairros pobres e nas comunidades excluídas que as ações da Nova
Museologia parecem ser mais efetivas e dinâmicas, pois partem das
necessidades internas de seus construtores.

Em 1992, ocorreu em Caracas o seminário A Missão do Museu na


América Latina: novos desafios. Hernán Crespo Toral, nessa época diretor do
ORCALC – Oficina Regional de Cultura para América Latina e Caribe –,
participou do comitê organizador, transpondo para o evento toda sua
experiência anterior a partir das posturas adotadas nas mesas de discussões
ocorridas em Santiago (1972). Onze países latino-americanos participaram
do encontro e trouxeram, cada qual a seu modo, relatos de experiências
locais, na busca de um mesmo ideal: a discussão do papel do museu como
agente de desenvolvimento integral.

A abordagem museológica centrada na instituição Museu parece ter


sido a tônica das orientações na gênese da disciplina. Parafraseando Mensch
(1994, p. 15), a Museologia não é a ciência dos museus, do mesmo modo
que a Medicina não é a ciência dos hospitais e a Pedagogia não é a ciência
das escolas; ainda que para estruturar suas operações essas instituições
devam recorrer aos princípios gerais daquelas disciplinas. Desde tal
abordagem, vários estudos se dirigiram para as questões relativas às
atividades, porém, as atividades não se esgotam em si e a necessidade de
inserção no contexto social tornou-se fundamental.

84
Ampliando esse debate, a XVII Conferência Geral realizada em 1995
na Noruega, consciente da fragilidade das relações na esfera global – as
comunidades excluídas de regiões subdesenvolvidas e os problemas
relativos aos países ricos (como áreas nucleares) – adotou seis diretrizes:

a) Participação das comunidades na formação dos Museus;

b) Proteção do Patrimônio Cultural perante conflitos armados;

c) Realização de convenções que regulem a salvaguarda física e legal


dos bens culturais;

d) Treinamento de profissionais de museus e participação global;

e) Desenvolvimento de tecnologia de informações globais;

f) Patrimônio Cultural em áreas de testes nucleares.

Estas discussões demonstram uma real preocupação com o atual


cenário mundial: o ICOM deixa de ser uma entidade superior pairando sobre
a aura das regiões da preservação do saber, das artes, dos museus e desce
ao mundano mundo de guerras, armas atômicas e comércio ilegal. Nesse
momento, percebemos uma mudança nos discursos institucionais e uma
preocupação com as perdas decorrentes dos conflitos políticos. Em 1996, é
criado o International Commitee of the Blue Shield (ICBS) pelo ICOM, ICA,
IFLA e ICOMOS para responder às situações de emergência que afetam
bens patrimoniais em áreas de conflito armado: o Museu Nacional Sarajevo é
o primeiro a receber alguma ajuda através desse Comitê; os museus de
Burundi, na África Oriental, também são auxiliados em decorrências dos
conflitos civis.

Além dessas questões, é justamente nessa XVII Conferência Geral


que o ICOM cria sua home page, incentivando museus e demais entidades a
gerar acesso e contribuir na construção de um diálogo global. O ingresso na
era da informática também se faz presente nas reuniões regionais
específicas: a documentação dos acervos já não sobrevive sem uma prática
tecnológica informatizada das informações; a preservação de CD-ROM, fitas
magnéticas e disquetes passa a ser matéria de estudos.

85
A biografia institucional publicada pelo ICOM em 1997 e a leitura das
cópias dos documentos originais solicitados à instituição, forneceu os dados
para a construção deste tópico específico. Os últimos anos do século XX
parecem preparar o ICOM para redirecionar seu olhar para o outro lado do
mundo: tendo contemplado a Europa nos seus primórdios, a África e a Ásia
nas últimas gestões, tudo indica que a próxima presidência geral virá de um
país latino-americano. A publicação da série One Hundred Missing Objects –
Latin America; o encontro dos Museus das Américas em 1998, cujo tema
concentrou-se na questão dos Museus e Comunidades Auto-sustentáveis, e
o encontro realizado na Argentina em 1986, do qual saiu o Código de Ética
Profissional do ICOM, são indícios significativos.

No Brasil, o reconhecimento profissional foi uma batalha árdua,


acompanhada e observada de longe pelo ICOM, sendo que o Código de
Ética Profissional do ICOM foi utilizado como ponto de apoio. Este código foi
formulado no decorrer de vários debates, a partir das bases lançadas na IX
Conferência Geral (1971), que orientaram os esforços do ICOM para a
formação profissional e para o estabelecimento de contatos com
universidades européias para a promoção e a fixação da Museologia no
campo da ciência. Torna-se cada vez mais necessária a fundamentação da
disciplina sob os pontos teóricos, epistemológicos e metodológicos para que
a Museologia cumpra sua missão, não somente sob o prisma da prática
museal, mas também dentro do próprio sistema da Ciência.

Atualmente, o ICOM possui mais de 15000 membros associados, 116


Comitês Nacionais e 25 Comitês Internacionais, todos preocupados com a
atuação, o reconhecimento e a ética profissional, em cada campo de
conhecimento e ação. As orientações desenvolvem-se a partir de discussões
amplas e experiências multiculturais, porém, carecem de uma projeção
efetiva determinada pelos próprios países. Públicos ou particulares, os
museus encontram-se em territórios nacionais específicos e se submetem à
mesma legislação ou falta de legislação corrente; nesse momento, cabe aos
estados oferecer as ferramentas básicas e impor, através de decretos e
ações culturais, o cumprimento de normas mínimas de organização, como a

86
elaboração de estatutos e regimentos internos pautados por orientações
coerentes.

87
3. Ciência da Conservação e Restauro

3. A satiric view "the art of restoring" as it appeared in Fun


Magazine in 1877

Crédito da imagem e do texto: Frank Matero

www.getty.edu/conservation/resources/newsletter/15

88
3.1. Das origens à era contemporânea

Over the past decade, aspects of heritage have become


important issues in the discourse on place, cultural identity,
and ownership of the past. Yet for all its engagement with the
function, presentation, and interpretation of heritage as
material culture, conservation lags behind in the larger
debate, both in terms of a critical reassessment of its own
principles and in dialogue with related fields, such as design
and aesthetics, as well as history, anthropology, and the other
social sciences. This lag is due in part to conservation’s
recent and somewhat insular professional development and
its avoidance of a critical examination of the inherited
historical and cultural narratives constructed through past
motives of preservation.
MATERO, F. Ethics and Policy in Conservation. Newsletter.
GCI, Volume 15, Number 1, Spring 2000, s.p..

Ao traçar a História da Ciência da Conservação, percebe-se que não


há referências precisas relacionadas aos seus primórdios. Quando um
ceramista grego refazia a alça de uma ânfora partida ou mesmo quando um
artista do Renascimento realizava operações mais sofisticadas em pinturas
sobre tela, a prática da restauração encontrava-se presente.

Contudo, podemos conceber que a atuação desses profissionais


tornou-se mais especializada à medida que grandes coleções privadas e
públicas foram sendo formadas, tornando-se mais extensivas e mais
organizadas, além do próprio patrimônio financeiro que estas coleções viriam
representar, fator determinante na contratação de pessoal capacitado para a
manutenção desses acervos. Inicialmente, os restauradores eram artistas –
algumas vezes de grande fama, outras vezes de fama menor – contratados
pelos colecionadores e cujas técnicas de restauro eram guardadas como
segredos pessoais, uma vez que a concorrência significava perda de clientes
poderosos, como observado no ensaio precedente (p.59). Porém, ainda
distante dos apelos científicos da Arqueologia ou das estruturações da
Museologia, a restauração permaneceu por muito tempo como um trabalho
de artesão.

89
A partir do século XIX, quando as grandes coleções públicas são
formadas, é que os profissionais dessa área se vêem confrontados com uma
nova responsabilidade perante os museus. Nesse momento, a linha limítrofe
que separava a criatividade do artista e a atitude do restaurador começa ser
mais bem demarcada: o respeito estético e com relação à originalidade da
obra passa a ser uma bandeira dos profissionais mais sérios. It was then that
progress began in the restorer's practice as a craftsman. This remained,
nonetheless, quite empirical, for no-one but the restorer knew the nature of the
precious material which had to be conserved without losing the attraction of its
appearance (COREMANS, Paul. 1969, p. 10). A proliferação de museus públicos,
baseados no modelo Francês, e sua administração por especialistas
determinaram uma nova postura dos restauradores em relação a essas
coleções.

Quando as ciências naturais, particularmente a Física e a Química,


passam a fazer parte do corpus do conhecimento necessário à manipulação
da matéria, critérios científicos provenientes dessas disciplinas tornam-se
fundamentais para a compreensão da natureza e da estrutura dos artefatos
antigos e das obras de arte, transformando significativamente o
comportamento dos restauradores. Um dos primeiros laboratórios de
restauração, aberto em Staatliche Museum de Berlim, apresenta seus
primeiros registros em 1888 e dedica suas atividades, prioritariamente, ao
acervo arqueológico montado então. Ainda que as atividades de restauração
tenham se intensificado na Europa a partir da Revolução Francesa e das
Guerras Napoleônicas – devido ao vandalismo, espólio de guerra e traslados
abruptos de um país a outro, sofridos pelas coleções de artes e de
antigüidades –, é apenas no início do século XX que os laboratórios europeus
e americanos desenvolvem a prática de workshops, com o intuito de treinar,
trocar e disseminar técnicas desenvolvidas, particularmente, em cada
instituição. Em 1842, John Ruskin afirma: works of art do provide, in varying
degrees, valuable information on technique, materials, stylistic development, aspects
of social, political, or personal (the maker’s and/or the owner’s) history. They should
still be considered, first and foremost, however, in relation to their original intention

90
as work of art. Alois Riegl terms the aesthetic significance of a work of art its artistic
value and the documentary importance its historical value (RUSKIN, 1994, p. 42).

A segunda metade do século XIX concebe duas vertentes antagônicas


em relação à prática da restauração: de um lado encontramos Eugène-
Emmanuel Viollet-le-Duc e de outro Willian Morris e Jonh Ruskin. Viollet-le-
Duc, considerado um dos arquitetos-restauradores responsáveis pela
reconstrução de muitos monumentos, acredita que a restauração como
imitação e reconstrução “no estilo do original” é permissível e utiliza como
parâmetro padrões estéticos firmemente estabelecidos: this group believed that
by studying the monuments of the past, especially the great Gothic cathedrals, and
with meticulously accurate and detailed documentation of the characteristics of style
as well as of details of building and the methods of constructions, they could make
possible complete and accurate rebuilding of entire parts or phases of these
buildings (VACCARO, 1996, p. 308).

O grupo oponente, encabeçado por Willian Morris e Jonh Ruskin,


escreveu em agosto de 1877 um manifesto anti-restauração – Manifesto of
Society for the Protecting of Ancient Buildings: No doubt within the last fifty years
a new interest, almost like another sense, has arisen in these ancient monuments of
art; and they have become the subject of one of the most interesting studies, and of
an enthusiasm, religious, historical, artistic, which is one of the undoubted gains of
our time, yet we think that if the present treatment of them be continued, our
descendants will find them useless for study and chilling to enthusiasm. We think that
those last fifty years of knowledge and attention have done more for their destruction
than all the foregoing centuries of revolution, violence and contempt (1994, p.319-
322). Avessos à postura de Viollet le-Duc, consideravam que as
complementações estruturais e as construções adjacentes destruíam o
espírito original dos edifícios antigos. Esta postura alimentou a corrente
posterior, os puristas, que teve como precursor Camile Boito.

Os conceitos expostos por Riegl no texto The Modern Cult of


Monuments: Its Essence and Its Development, escrito em 1903, apesar de
circunscritos na esfera da História e da Filosofia da Arte, foram utilizados
como base para a prática da profissão, uma vez que é nesse primeiro texto

91
que o respeito ao original e os critérios de seleção a partir da noção de valor
são anunciados. O texto de Riegl – além das obras de Bereson, Panofsky,
Wöllflin, Gombrich – alerta para a indispensabilidade do
conservador/restaurador conhecer História, principalmente História da Arte,
para evitar erros, excessos e ações que danifiquem a qualidade estética ou
documental dos monumentos cultuados. Ao contrário de Riegl, Marijnissen
(1996) considera o culto ao monumento como uma relação construída a partir
do Renascimento:

Riegl feels that the origin of “Denkmalpflege” (the conservation or protection


of monuments) dates back to the Italian Renascence period, when people began
protecting vestiges of Classical period. If the Renaissance represented both the end
of a period of abandonment of ancient monuments and the beginning of a taste for
collections of rare works, does this new behavior itself constitute proof of the
emergence of a new attitude dictated by a spirit of conservation? (MARIJNISSEN,
1996, p. 277). Nenhuma época foi mais ambígua do que esta: de um lado os
homens ganhavam o Universo com a teoria de Galileu, de outro chegavam
aos infernos da Contra-Reforma, queimando Giordano Bruno; saudava-se o
Laocoonte da Antigüidade ao mesmo tempo em que se mandava reutilizar
mármores antigos na construção de edifícios novos17.

Como exemplo direto da influência dos critérios estéticos, anunciados


em Riegl no século XIX, temos o debate na área da Ciência da Conservação
em relação aos vernizes antigos e os procedimentos concernentes à sua
remoção, limpeza ou substituição: algumas vezes pigmentados, outras vezes
possuidores de uma coloração própria, eles geralmente envelhecem18 e
ocultam – parcial ou totalmente – a pintura subjacente; sua remoção pura e
simples acarreta uma descaracterização ou perda de elementos importantes
para a História das técnicas construtivas das obras de arte. Os vernizes e seu

17
It suffices recall that in 1515 Pope Leo X issued a papal brief that empowered Raphael to
intercede in the destruction of ancient marbles, usually aimed at obtaining lime and recovering
precious building material, largely for the new workshops of St. Peters’s Basilica. The
destruction was particularly intense at the time, especially in the Roman Forum (VACCARO,
1996, p.265).
18
O processo de “envelhecimento” do verniz determina a mudança de sua aparência e
condição física, ocorrendo por reações químicas, produto de sua foto-sensibilidade e que
podem gerar alterações estruturais por polimerização ou formação de cross-linkings.

92
uso histórico constituem um tema recentemente introduzido no debate da
área: conservadores, que durante muito tempo concentraram-se apenas nos
problemas relativos à proteção que os vernizes podem fornecer ou à
longevidade que possuem, começam a questionar o significado estético que
proporcionam ou conferiram no passado às obras sobre as quais foram
aplicados, ou seja, a intenção visual original. The recent acrimonious
controversies on the cleaning of pictures has done nothing more than paralyze the
position taken up by upholders of radical cleaning and the partisans of patina.
Unfortunately, once a picture has been totally cleaned, when nothing survives but the
layer of paint in full impasto, it is impossible to judge whether glazes have really been
removed, whether there still existed at least patches of old varnish, and finally
whether the patina, even if dark, was not preferable to the raw, brutal surface of paint
laid bare by the cleaning (BRANDI, 1996, p. 380). Este fragmento do texto de
Cesare Brandi, publicado em 1949 no Burlington Magazine sob o título The
Cleaning of Pictures in Relation to Patina, Varnish, and Glazes, nos fornece a
complexidade da Ciência da Conservação, oscilando entre as ciências exatas
e as ciências humanas em relação aos processos de construção teórica e
atividade prática.

A percepção de Riegl em relação ao valor de época proporciona,


porém, uma visão sobre quais bases mentais o público leigo adota uma
proposta inversa ao alerta de Brandi em relação à remoção indiscriminada de
vernizes, pátinas e velaturas quando introduz vernizes pigmentados ou
substâncias como betume, ceras e lacas com o intuito de proporcionar uma
aparência envelhecida ao objeto: esta prática comum nos antiquários
intenciona, muitas vezes, proporcionar uma “aura” do passado ou o engodo
em relação à sua antigüidade. Os antiquários têm sido vistos tradicionalmente
como as ovelhas negras na família da ciência histórica. Eles têm sido associados,
particularmente na primeira parte do período ao qual me refiro, às concepções
errôneas, erros e, efetivamente, falsificações. Tudo isso significa que eles têm
permanecido um tanto oblíquos à lei histórica. Mas uma tal posição pode significar
que eles têm muito a nos dizer sobre o lado da história, que não é o da tábua
entalhada mas, ao contrário, o do seio descoberto (BANN, 1994, p. 140-142). A
visão do passado como algo atraente por si só estabelece um relação que fez

93
com que Stephen Bann cruzasse a percepção de Riegl com a de Nietzsche
da apropriação do passado (e de suas marcas) a partir da perspectiva do
relacionamento social com seus vestígios e do valor que adquiriam em si – as
complexas atitudes mentais do homem em relação ao passado cristalizada
no culto de seus testemunhos –, o que Riegl chamou de “percepção
sensorial” e Nietzsche de “um ar bolorento”. A “tábua entalhada” e o “seio
descoberto” a que Bann se refere fazem parte de sua análise em relação à
representação de Clio, o passado enquanto racionalidade científica ou
existência mítica que permeia o imaginário popular. Não se trata de justificar
as atitudes equivocadas daqueles que recobriram obras de arte e antigüidade
com toda uma sorte de preparados para lhes dar uma aparência envelhecida;
mas perceber que esta atitude advém de uma matriz histórica que cultua os
vestígios do passado pelo seu valor histórico superficial – sua camada de
verniz envelhecido – e não pela sua relação com a sociedade.

O conhecimento das bases históricas e conceituais sob as quais os


homens se posicionaram e se posicionam em relação aos bens culturais é
extremamente importante: coletar, colecionar, expor, estudar, possuir e ver
são atitudes que implicam na manutenção ou não das condições materiais do
objeto, ao mesmo tempo em que reproduzem as noções de valor e de
significado desses bens. It is perhaps for this reason that in several European
countries, responsibility for the care and restoration of artistic and historical objects to
be handed down to future generations is entrusted to the historian (including the
archaeologists, the historian of art or architecture, the anthropologist) and not to the
conservator. (...) Change and reuse are processes associated with time and with the
concept of value; thus an object that survives from the past and comes down to the
present, and that escapes the laws of destruction and annihilation, must always have
had a demonstrable value. Various times, fashion, and cultural climates are reflected
in it, have taken possession of it to reexperience and reexamine it, have transformed
either its appearance or its significance, and have changed it. But in so doing, they
also have ensured the object’s survival for future generations (VACCARO, 1996, p.
202-3).

94
Nesse contexto específico do culto ao passado, a Ciência da
Conservação é uma maneira diversa de se relacionar com o patrimônio
cultural: no momento em que a materialidade do objeto torna-se
preponderante na operação técnica, a “aura”19 do passado dilui-se, sem que,
no entanto se perca sua emulação; do mesmo modo que ao operar um
paciente, nesse momento preciso o médico esquece do valor da vida ou da
importância do indivíduo, para se concentrar apenas na estrutura físico-
química do sangue, músculos e ossos. O conceito moderno de conservação
e sua inscrição no campo científico, assim como a Museologia e a
Arqueologia, são estruturas relativamente recentes. Desde o final do século
XIX e início do século XX, as bases teóricas sob as quais estão
sedimentadas a teoria e a prática da Ciência da Conservação estão
formalizadas: Cesare Brandi escreveu, na última década de cinqüenta, uma
série de obras relacionadas à teoria da restauração, imputando à disciplina
um vocabulário teórico metodológico próprio, ainda que apoiado em outras
áreas do conhecimento. Desde Brandi, o restaurador deixa de ser visto
simplesmente como o técnico ou o artista que executa reparos em obras de
arte e antigüidade, mas como um cientista que deve se apoiar na pesquisa
científica para atuar sobre a matéria, além de desenvolver critérios éticos,
apoiados na Estética e na História; na Antropologia e na Etnologia; bem
como no Direito. Um dos primeiros textos que servem como base, ainda hoje,
ao campo e que orientou vários documentos produzidos pela UNESCO de
acordo com os critérios apresentados foi Teoria Del Restauro, publicado em
1963, em Roma.

A reflexão epistemológica em relação à construção teórica da Ciência


da Conservação é indispensável para o reconhecimento da disciplina e a
interpretação das correntes relacionadas a ela, servindo de fundamento a

19
Para Benjamin, a noção e “aura” está relacionada ao distanciamento entre o que é
observado e o observador, sendo que este distanciamento permite a fruição de uma
sensação mística em relação ao observado: (a aura) é uma figura singular, composta de
elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que
ela esteja. Benjamin cita Riegl, que parece ter influenciado seu texto e afirma a destruição da
aura a partir da proximidade que o capitalismo impõe para com tudo – sagrado ou profano – a
partir de uma relação de consumo (BENJAMIN, 1985, p. 194).

95
todas as incursões práticas ou pesquisas de suporte técnico adjacentes a ela.
A History of conservation is valuable to us as conservators, not just to establish the
antiquity of our vocation, but to give us insight into what we may encounter on
examination and treatment of the same works today, as well as to give us an
understanding of past philosophical approaches to the subject of restoration (KECK,
1996, p. 281). Quando o conservador solicita testes laboratoriais, como
exames estratigráficos e espectrografia das camadas da policromia, não o faz
apenas para “decorar” o relatório de trabalho, mas para dar suporte material
às suas decisões, consoantes a toda uma discussão em torno do respeito
para com o original, base da construção teórica da disciplina. Max
Friedländer proclama em um artigo intitulado On Restorations (1996, p. 332),
publicado em 1944, que a restauração é um mal necessário – restoration is a
necessary evil, inasmuch as threatening decay can be stopped by the laying down of
blisters, stabilization of the pigments, strengthening of the ground that carries
everything – , mas como o próprio Alessandra Vaccaro (1996, p. 262)
salientou, é relativamente fácil demonstrar o que esta área tem de maligno; a
dificuldade está em provar o quanto é necessária.

Sob a perspectiva histórica, Camillo Boito (1836-1914) –


contemporâneo a Riegl, Nietzsche e Wölfflin – pode ser considerado um dos
primeiros teóricos a procurar, através de sua obra, avaliar os métodos e
estabelecer princípios em relação à prática da restauração. Suas primeiras
críticas dirigem-se, principalmente, à prática indiscriminada de reconstruções
e preenchimentos: How many mistakes restorations have caused! (...) In short, is
there really any need for these blessed restorations?... Are not the torso of Farnese
Hercules, known as Belvedere torso, and the torso of Bacchus admirable, broken
and mutilated as they are? Além desses problemas, Boito relata a controvérsia
sobre as ferraduras nas reproduções gregas e romanas de cavalos: a História
afirma que ferrar os cavalos não era uma prática da Antigüidade, mas que os
restauradores teimavam em executar as partes faltantes das patas com as
ferraduras nos cavalos: Perhaps you are familiar with the important question of
whether the Greeks and Romans shod their horses – it seems they did not. But then
as bas-belief turns up in which the horseshoes are visible (...), and discerning

96
archaeologists of our time sees them and exclaims triumphantly: they shod them!
(BOITO, apud: VACCARO, 1996, p. 262).

O problema maior não é apenas em relação às ferraduras dos cavalos,


mas como se comportar quando Bernini coloca um violino na mão de Apollo;
ou Rubens preenche um quadro de Ticiano; ou Rafael introduz elementos em
um afresco de Boticcelli? A prática artística, do Renascimento ao Barroco,
não considerava imoral trabalhar e criar em cima de obras de arte e
antigüidade. O problema torna-se mais visível quando, a partir do século XIX,
o objeto artístico adquire valor documental como testemunho do passado,
aquilo que Riegl reclama como “valor histórico”. Quando o Laocoonte – grupo
escultórico produzido em mármore pela escola de Rhodes do período
Helenista – foi encontrado em 1506, tornou-se o “objeto de desejo” do papa,
nobres e artistas da época: the pope and other notables vied for possession of the
gruop and the pope won. It was immediately examines by Michelangelo, who
inspired the first restoration in 1532 by Giovanni Angelo Montorsoli (1507-1563). In
the Mannerist style of the time, Montorsoli reconstructed the father’s missing arm in
an emphatically raised gesture to complete he composition (VACCARO, 1996, p.
266). Posteriormente, a descoberta do braço original de Laocoonte trouxe um
problema conceitual de suma importância: reintegrar a escultura em nome da
percepção estética do original ou manter a intervenção do século XVI como
marca histórica e testemunho do passado? In the end, the first solution was
chosen, thus giving priority to the ancient work, though it remains incomplete even
after the reintegration of the arm. This effaced the later reformulation of the group,
the memory of which was nonetheless preserved in a cast (PHILIPPOT, 1996, p.
220-223).

Na área da Restauração, diz-se: cada caso é um caso! Não há como


utilizar a experiência do Laocoonte como regra universal, mas perceber que
os procedimentos e conceitos mudam de tempos em tempos: como em toda
área científica, não existem dogmas incontestáveis, mas teorias possíveis a
partir do conhecimento disponível em sua própria época. When one examines
the evolution of the concept of restoration in the professional literature and colloquia,
one sees that interest in this type of question has grown in recent years.
Simultaneously, the nature of these concerns has been clarified appreciably, to the

97
point that today we may speak unequivocally of conservation as a discipline that is
based on method, whereas formerly it was a profession resting on no more than
empirical knowledge (PHILIPPOT, 1996, p. 216).

A compreensão da atividade de restauração como uma intervenção


técnico-científica e não como uma experiência artística modificou-se a partir
da segunda metade do século dezenove. A noção de obras de arte a partir
do conceito de patrimônio cultural é uma das primeiras mudanças de atitude
perceptível em relação à formulação do pensamento teórico proposto por
Camilo Boito na obra I restauratori (1884). Cabe ressaltar que nesse
momento histórico são formuladas as bases da maioria das disciplinas
associadas à Ciência da Conservação: Arqueologia, História da Arte e da
Arquitetura adquirem corpo conceitual justamente nesse período. Como
conseqüência da construção do culto ao monumento – como culto ao
passado – e do respeito incondicional à estrutura original desse testemunho,
os procedimentos que passaram a guiar os restauradores no final do século
XIX e início do XX , embasados na teoria de Boito, desconsideravam as
intervenções anteriores como testemunhos da própria história da obra e, num
movimento inverso, tornou-se comum a remoção de pátinas, partes e
preenchimentos executados posteriormente. Por causa dessa aversão aos
procedimentos anteriores, baseados na reconstrução das partes faltantes, a
linha de pensamento que se estabelece é conhecida como Purista, na Itália e
Inglaterra, e também chamada de Ent-Restaurerung (des-restauração), na
Alemanha. The folly of Purism, which has devastated so many museums and
buildings, is an entirely new type of absurdity, without precedent in the history of
restoration. However far into the past one probes, the prevailing attitude – with
different emphases and many variations on the theme in ancient, medieval, and
modern times, in the East and in the West – is that of continuity of maintenance and
regular replacement of damage or altered parts, of reuse, and of changes in function
as may be suitable to various cultural or political changes (VACARRO, 1996, p. 264).

Atualmente, as intervenções anteriores só são removidas se estiverem


comprometendo a vida útil da obra: consideradas testemunhos da “biografia”
da obra deixam de ser incoerentes à medida que não acarretam algum

98
prejuízo à mesma. Tais considerações fazem parte da proposta de Brandi em
relação ao conceito de estabilidade: uma vez que a estrutura físico-química,
associada à condição estética e histórica, da obra não está comprometida e a
restauração anterior permanece estável, não é recomendável submetê-la (a
obra) à intervenções novas.

Alheio aos debates dos “puristas” do início do século, o enfrentamento


da Primeira Grande Guerra na Europa impôs uma nova realidade ao meio da
conservação: a quantidade de destroços produzida e das restaurações
indiscriminadas forçou os governos, autoridades locais e pesquisadores a
repensarem sua margem de ação. Provavelmente as bases da conservação
moderna foram lançadas quando, em 1930, o Escritório Internacional de
Museus da Liga das Nações chamou o primeiro encontro internacional para
tratar dos princípios científicos da restauração: In October 1930 nearly two
hundred museum directors, art historians, and scientists gathered in Rome for a
unique international conference. Held under the auspices of the International
Museums Office of the League of Nations, the conference had as its stated purpose
"the study of scientific methods for the examination and preservation of works of art."
At the end of five days, conference participants confirmed "the utility of laboratory
research as an aid to the study of the history of art and museography..." Science in
the service of art was recognized and modern conservation was born (LEVIN, 1991,
p. 1). Pela primeira vez utiliza-se a expressão “método científico” com respeito
ao ofício da restauração. Arquitetos restauradores, baseados nos escritos de
Boito, estruturaram o pensamento das décadas de trinta e quarenta, como
Gustavo Giovannoni com seus escritos: Enciclopédia italiana di scienza
(1931), Il restauro dei monumenti (1945).

Logo após o encontro, ocorreu o Primeiro Congresso Internacional de


Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos. Nesse congresso foi
formalizado o primeiro documento de caráter internacional que concebia o
patrimônio cultural como algo de existência histórica e social ampla. O
conceito de bem cultural se expande para além das fronteiras nacionais que
viam na sua preservação a manutenção de uma identidade própria ao
adquirir uma dimensão de valor universal; de acordo com Carbonara (1996:

99
242), o trabalho de Gustavo Giovannoni inspirou diretamente a Carta de
Atenas (1931), documento resultante desse encontro que formalizou algumas
diretrizes reproduzidas ainda nos documentos atuais. Seu significado
enquanto marco do conceito moderno de patrimônio cultural determinou a
construção da noção de patrimônio mundial. A formalização do documento
apresenta sete princípios concernentes à restauração/conservação de sítios
e monumentos, e por isso também foi chamada de Carta del Restauro:

1. International organizations for Restoration on operational and advisory


levels are to be established.

2. Proposed Restoration projects are to be subjected to knowledgeable


criticism to prevent mistakes which will cause loss of character and
historical values to the structures.

3. Problems of preservation of historic sites are to be solved by legislation at


national level for all countries.

4. Excavated sites which are not subject to immediate restoration should be


reburied for protection.

5. Modern techniques and materials may be used in restoration work.

6. Historical sites are to be given strict custodial protection.

7. Attention should be given to the protection of areas surrounding historic


sites.
Apesar dessas orientações e do intercâmbio entre vários profissionais,
principalmente arqueólogos e arquitetos, as décadas de trinta e quarenta
foram marcadas por uma onda crescente de conflitos resultantes do fascismo
que se desenvolveu na Europa: entre a Guerra Civil Espanhola e a Segunda
Grande Guerra, pouco ou quase nada foi possível, em termos do diálogo
internacional proposto pelo encontro de 1930 ou pelo documento de 1931.
Porém, o Escritório Internacional de Museus contribuiu para a fundação em
1939 do Instituto Central de Restauro, em Roma – antes da eclosão do
segundo conflito. Cesare Brandi (1906-1988) foi seu fundador e diretor; sua
tese, Teoria del restauro, de 1963, influenciada pela obra de Benedetto
Croce, transformou-se em um marco da restauração moderna: Brandis’s teoria
is inspired by the idealist philosophy of Benedetto Croce; from historicism it derived a
fundamental concept that remains fully valid: the relative, partial, and transient

100
character of any restoration, even the most skillful, as it is always marked by the
cultural climate in which it is carried out (VACCARO, 1996, p. 207).

O belga Paul Philippot e o italiano Cesare Brandi, juntos, fundaram as


bases teóricas do ICCROM (1956), influenciando toda uma geração a partir
dos programas de treinamento e das atividades de cooperação estabelecidas
pelo Instituto. Ambos foram consultores da UNESCO e contribuíram de forma
intensa na construção das cartas, tratados e documentos forjados nas
convenções os quais veremos nos capítulos cinco e seis. A corrente seguinte,
portanto, pode ser denominada de historicista: if a work of art is the result of
human activity and, as such, its appreciations does not depend on fluctuations in
taste or fashions, its historical significance has priority over its aesthetic value. Since
the work of art is a historical monument, we must consider it as such from the
extreme point when the formal arrangement that shaped matter into a work of art has
almost vanished, and the monument is reduced to little more than a residue of the
material that made it up. We must examine the ways we can conserve a ruin
(BRANDI, 1996, p. 233).

A postura de Brandi, apoiada no idealismo humanista de Croce parece


se distanciar das vertentes nacionalistas e fascistas da Itália, em conjunto
com Plenderleith e Paul Philippot forjou as bases do conceito moderno de
restauração, principalmente após a Segunda Guerra. As décadas de
cinqüenta e sessenta foram inspiradas significativamente pela teoria desses
cientistas, ancorada tanto nas ciências humanas quanto nas ciências exatas.
Essa teoria irá influenciar o documento denominado Carta de Veneza (1964),
que se apoiará nos trabalhos de Brandi (Il trattamento delle lacune e la
Gestalt Psychologie, de 1953, e Teoria del restauro, de 1963), ao abordar a
questão das complementações e do respeito à estrutura original dos bens
patrimoniais imóveis (BAZIN, 1989: 286). Relativo à conservação de Sítios e
Monumentos, o documento irá preconizar a fundação do ICOMOS e se
colocará como uma referência internacional. Baseado nos princípios da Carta
de Atenas, expande o conceito de monumento histórico ao proferir no artigo
primeiro que: the concept of an historic monuments embraces not only the single
architectural work but also the urban or rural setting in which is found the evidence of

101
a particular civilization, a significant development or an historic event. This applies
not only to great works of art but also to more modest works of the past which have
acquired cultural significance with the passing of time. Desenvolvido no II
Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos,
o documento enfatiza a proteção do Patrimônio Arquitetônico; retoma a
questão do respeito à integridade das estruturas originais, porém coloca a
possibilidade de remoção de elementos, caso esta seja indispensável à sua
salvaguarda; coloca o processo de restauração como uma operação
altamente especializada e critica as ações amadorísticas sem respaldo
científico; aconselha que a substituição das partes faltantes, caso
indispensável ao suporte estrutural, não deve danificar, confundir ou
desmerecer a construção original.

Além da influência da obra de Croce na obra de Brandi, Bazin (1989,


p. 285-288) aponta para a influência do pensamento estruturalista formulado
após a Segunda Guerra: a teoria da estrutura, nascida na Alemanha a partir
dos trabalhos voltados à psicologia de Kohler e Werheimer, criou a noção da
forma (Gestalt), segundo a qual a percepção apreende seu objeto como uma
totalidade, uma totalidade em constante transformação, mas sempre igual a
si mesma. A primeira aplicação do estruturalismo fora da psicologia foi na
lingüística, na obra de Saussure, entre 1906 e 1911. Após o conflito de
quarenta e cinco, esta teoria de disseminou em outros campos de
conhecimento influenciando as formulações de Merleau-Ponty e Foucault, na
Filosofia; Lévi-Strauss, na Antropologia e Roland Barthes, na Literatura. A
influência dessa vertente é percebida na obra de Brandi quando até no título
ele utiliza a palavra Gestalt, a partir do conceito que lhe é imputado no
pensamento estruturalista: pode-se dizer que Cesare Brandi é um convertido. Sua
contribuição para a causa da arte, e notadamente da pintura, é capital; foi fundador
do admirável Instituto de Restauração de Roma e devemos-lhe a formulação dos
sãos princípios graças aos quais muitas obras-primas se salvaram(...). Não é
curioso ver como, vinte anos depois, ele tranqüiliza a si mesmo, justificando por
raciocínios estruturalistas um método de restauração que ele inventou guiado
apenas pela intuição? (BAZIN, 1989, p. 286). Bazin se refere à obra Teoria

102
Generale della Critica que Brandi publicou em Turin em 1974, após seus
ensaios de 1953 e 1963 referentes à formulação de uma teoria da
restauração. Podemos reconhecer esse período como de uma Ciência da
Conservação formulada sobre bases conceituais estruturalistas fortes, ainda
que vinculadas aos avanços laboratoriais das áreas de Biologia, Química e
Física. Na obra de Philippot, o pensamento estruturalista pode ser
encontrado da mesma maneira que o vislumbramos na obra de Brandi;
Philippot afirma: germans have a convenient word to stress this importance of the
whole of the monument. By Gesamtkunstwerk, they mean the unity resulting from
the cooperation of the various arts and crafts that combine to make a monument,
cannot be divided from it. It is obvious that a whole must be treated consistently as a
whole, and this implies that close cooperation among various specialists in
preservation – architects, conservators, artisans, archaeologists – under one
consistent policy is necessary (PHILIPPOT, 1972, p. 367-374).

No início do texto, Teoria del Restauro, Brandi comenta que é de


senso comum acreditar que a restauração é um tipo de intervenção que
permite que um produto da atividade humana recobre sua função. No
entanto, se considerarmos todos os produtos da atividade humana passíveis
de restauração, qual será nosso limite de atuação diante dos produtos
industrializados ou dos sofisticados equipamentos contemporâneos? Qual
restaurador/conservador já não passou pelo problema de explicar a um
parente ou conhecido que quebrou a “jarra de família” que ele poderia até
consertar, mas que não era bem essa sua atividade? Nem mesmo a questão
posta por Riegl, valor histórico, artístico ou de época, nos auxilia muito
nesses últimos tempos: como agir com a arte contemporânea apoiada na
multimídia, somos responsáveis pelos computadores, sons ou pelos
hologramas que estabelecem uma linguagem virtual?

Brandi afirma: restauration is the methodological moment in which the work


of art is appreciated in its material form and its historical and aesthetic duality, with a
view to transmitting it to future (BRANDI, 1996, p. 231). Os princípios que guiam a
restauração durante a fase operacional devem, naturalmente, estar apoiados
no conhecimento científico da estrutura físico-química da matéria, tanto

103
quanto nas noções históricas e estéticas referentes à obra. Essas premissas
visam manter a integridade do bem cultural, na sua totalidade – material e
conceitual –, para que sua capacidade cognitiva de transmitir informações
possa manter-se intacta para as futuras gerações. Apenas a substância física
da matéria é restaurada, mas, a partir do momento em que ocorre a
possibilidade de transmissão dessa imagem e fruição com o público, sua
inserção social se faz presente. Eis o segundo princípio proposto por Brandi:
restoration must aim to reestablish the potential unity of the work of art, as long as
this is possible without producing an artistic or historic forgery and without erasing
every trace of the passage of time left on the work of art. Se fizermos um paralelo
à teoria de Brandi, podemos perceber o quanto princípios encontram-se
presentes na Carta de Veneza (1964).

The link between restoration and the related concep of art, and by extension,
of architecture, is thus a constant issue that pormpts one to carefully investigate this
relationship from a philosophical or, if you wish, an empirical point of view:
philosophically, in the sense that from the very concept of art one rigorously deduces
the concept of restoration, thereby sustematically, which is outside any concept or
ontological conception of art, by identifying each time, within the framework of
specific works of art, the artistic and historical qualities that one wishes to keep or
recover, thereby eslabilishing the extend and the nature of the restoration
(CARBONARA, 1996, p. 236). Esse texto de Carbonara, produzido em 1974
com o título La reintegrazione dell’imagine: problemi di restauro dei
monumenti, mantém a linha estruturalista baseada na Gestalt, formuladas em
Philippot e Brandi, porém aponta uma divergência de postura entre a
abordagem teórica apoiada no idealismo da escola italiana forjada em Brandi
e o cientificismo empirico da escola britânica de Paul Philippot. O problema
maior, aponta Carbonara, é quando se parte das premissas teóricas para a
intervenção prática: além do enfrentamento com problemas ainda não
teorizados, as instâncias oficiais administrativas também promovem
situações extras que, por falta de formação apropriada, exige novas formas
de uso e adaptação, principalmente dos monumentos históricos, distantes
dos conceitos estabelecidos.

104
Restauração como um ato crítico e restauração como um ato criativo
são duas formas conceituais de abordar a Ciência da Conservação. Renato
Bonelli elaborou uma série de textos visando questionar a linha teórica
proposta por Brandi (Il fondamento teorico del restauro, Bolletino dell’ ICR:
1950) a partir das próprias limitações concernentes a ela, sem no entanto
deixar de considerar a validade dessa mesma teoria em relação à
operacionalidade metodológica proposta: análises cuidadosas são
apresentadas na teoria proposta por Brandi, mais próximas de sua condição
filológica do que científica. Bonelli’s criticism of philologism is stinging: “the idea os
atributing the character of authentic testimony of a historical past to a monument or a
building is no longer current. First of all, this is equivalent to working on an arbitrary
section in the real unity of the work, trying to select elements that can not be
isolated... the philological criterion requiring that structural bodies must be authentic
in order to obtain reliable information from them, is a point of view that marks a
certain era and culture”, one imued by positivism that witnessed the birth of scientific
theories of restoration and that is by now obsolete (CARBONARA, 1996, p. 239). A
qualidade de testemunho não é o único valor atribuído a um monumento, e
esta é a grande divergência de Bonelli em relação a Brandi.

As controvérsias que se estabelecem – conservação ou intervenção;


abordagem histórica ou estética; ato científico ou criativo – alimentam toda
uma série de debates, principalmente após o fim do legado idealista de Croce
na formação do pensamento intelectual italiano. Argan, forjado em uma
vertente marxista de análise da produção artística, estabelece uma postura
diferenciada em relação ao monumento quando escreve: Conoscere per poter
conservare (s.p.; s.d.): in the field of art everything has meaning, everything is
artistic... even materials, techniques, supports, typological or iconographic schemes,
even the state of conservation. Desde que formalizemos os conceitos a partir de
noções que compreendam o impacto e a inserção da obra de arte,
monumento e documento, no processo social, no campo da cultura não
limites definidos. A década de setenta sofreu com o impacto da aceleração
do processo de expansão industrial e crescimento descontrolado dos grandes
centros urbanos, impondo aos cientistas sociais, historiadores da arte,
arquitetos e urbanistas, além dos conservadores, a necessidade de formular

105
propostas que acompanhassem essas mudanças bruscas. Nesse período, a
Europa se preocupa com as mudanças do cenário urbano e as proporções
dessas transformações em relação ao milenar patrimônio de suas cidades,
para Argan ao contrário do espaço que é opaco, o tempo é transparente; nadando
sob a superfície da água, vêem-se os monumentos como rochedos, as ruínas como
arbustos de coral. É a cidade que Bernini e Borromini haviam imaginado para um
espaço não terreno, discutindo quanto à maneira da salvação – o céu já um pouco
calvinista rejeitou-a, ela caiu no mar do passado cuja superfície, o presente, como
todos sabem, está terrivelmente poluída. Em Roma, não há apenas o tempo da
arquitetura, ou da história, mas também o da natureza, cambiante como o céu em
um dia de vento forte; (ARGAN, 1995, p. 205). As décadas de setenta e oitenta
são marcadas pela elaboração de documentos, tanto da comunidade
européia quanto por parte do ICOMOS e UNESCO (vide quadro 1)
concernentes aos cuidados para com o patrimônio arquitetônico, incluíndo
estruturas arqueológicas e monumentos históricos, a partir de noções que
deixam de perceber esses bens culturais como entidades isoladas, mas
como estruturas se relacionam e fazem parte de uma intrincada rede social e
urbana.

O edifício deixa de ser pensado como o depositário dos bens culturais


e passa a adquirir uma condição indispensável de reciprocidade com os
acervos que contém. Instituições alojadas em prédios antigos ou construções
recentes são, em ultima instância, o ambiente no qual as coleções
encontram-se instaladas. A décadas de oitenta será marcada pelas teorias
de Garry Thomson, estruturadas a partir de uma série de artigos que
introduzem os princípios do controle climático em museus e que culminaram
com a obra The Museum Environment (1982). En fait, le concept n'est pas
vraiment nouveau. Il était dans l'air depuis longtemps, très longtemps. Déja au
19ème siècle, Adolphe Napoleón Didron, ècrivat: Conserver le plus possible, réparer
le moins possible, ne restaurer à aucun prix, laissant entendre qu'il fallait intervenir
les moins possible sur l'objet pour assurer l'authenticité de son message (GUICHEN,
1995, p. 5).

Garry Thomson coloca pela primeira vez de maneira sistemática os


problemas referentes à climatização em museus, demonstrando a

106
importância do controle da luz, da temperatura e da umidade incidente sobre
as coleções. Um mau restaurador pode destruir uma obra, um mau
conservador pode destruir uma coleção inteira, afirma Thomson (apud
GUICHEN, 1995, p. 5).

As duas últimas décadas do século vinte são marcadas por várias


discussões que fazem com que o restaurador/conservador seja obrigado a
especializar-se cada vez mais. Já não é mais possível dominar todas as
matérias – metal, pintura, cerâmica, papel, pedra –, nem lutar em todas as
frentes de batalha – escavações, museus históricos, arquivos, pinacotecas –
ou dominar todas linhas de investigação – dos laboratórios à construção
epistemológica da disciplina: os problemas de apresentação estética ainda
são discutidos, problemas como reintegração de perdas ou lacunas e
tratamento de pátinas, vernizes e velaturas aparecem nos trabalhos de Albert
e Paul Philippot (1959) e Brandi (1963); Paolo e Laura Mora (1984).
Questões relativas à Química e à Física encontram voz em Giorgio Torraca
(1982) e Paul Coremans (1961); a construção teórica da disciplina aparece
na obra exemplar editada por Nicholas Stanley Price, M. Kirby Talles Jr. e
Alessandra Melucco Vaccaro (1996) e nos artigos de Frank Matero (2000).

Com o objetivo de mudar a atitude dos profissionais perante as


20
coleções, foram realizados em 1992 – UNESCO/ARAAFU – e em 1994 –
IIC – dois congressos que discutiram a disciplina da Conservação Preventiva.
Antes disso, em 1991, o Programa Nacional de Salvaguarda de Coleções dos
Países Baixos, apresentou um modelo de atuação de Conservação
Preventiva, que serviu de referencial aos outros países, surtindo efeito
imediato em organizações como PREMA – Prévention dans les Museés
Africains –, que reúne 32 países há mais de 14 anos. Em 1994, com a
criação de um diploma de estudos especializados em Conservação
Preventiva na Universidade de Paris, ainda que o curso se abra a
especialistas de várias áreas de conhecimento – arquitetos, restauradores,

20
. AARAFU – Association des Restaurateurs d'Art et d'Archquéologie de Formation
Universitaire.

107
historiadores de arte, engenheiros, curadores, arqueólogos –, a disciplina
passou a ser mais bem embasada e difundida.

Múltiplas são as preocupações da Conservação Preventiva,


considerando que os elementos degeneradores da matéria atuam de forma
associada e estão longe de ser completamente controlados. Cada vez mais,
a química, a física, a engenharia e a meteorologia atuam como disciplinas
aplicadas à conservação de bens culturais, abrindo um leque de
possibilidades diante da interdisciplinaridade. Várias são as origens dos
danos em obras de arte, como também os métodos de controle pertinentes.
Porém, é o reconhecimento de que a conservação preventiva é fundamental,
tanto na ação de restauradores, quanto de instituições que abrigam acervos,
que tem levado muitos organismos formadores de profissionais a investir
nessa área de conhecimento.

Nesse mesmo período, a Arqueologia inicia um debate sobre as


intervenções de restauro e as medidas preventivas de conservação em
relação aos resgates das escavações. Albert France-Lanord escreve em
1964 um texto entitulado Savoir “interroger” l’ objet avant de le restaurer,
discutindo esses problemas, influenciando toda uma geração de arqueólogos
franceses que encontram nos laboratórios de conservação parceiros que os
acompanham do trabalho de campo à etapa final da pesquisa. Marie
Berducou, com sua obra La conservation en archéologie (1990) elabora um
documento de projeções teóricas e metodológicas extremamente
significativas. Berducou escreve na conclusão de seu trabalho: Auccune
lecture ne suffura à régler la totalité des problèmes de conservation archéologique
sur un site. L’ épilogue de ce manuel ne peut être que d’encourager la permanence
du dialogue entre conservateur-restaurateur et archéologue. En matière de
conservation préventive, connaître le matériau, tenter de comprendre les processus
d’altération et appliquer des “recettes” aussi bonnes qu’infailibles n’est pas
satisfaisant. Un bon diagnostic prime avant tout et relève généralemnt des
compétences d’un conservateur-restaurateur. De plus, il exist une complémentarité
manifest entre le deux interlocuteurs et non des relation de subordination. Ainsi,
l’archéologue aura tendance à appréhender un objet d’un point de vue

108
chronologique, morphologique, technique, fonctionnel, et le restaurateur, d’un point
de vue matière et technique. On conçoit alors fort bien que la frontiére entre les deux
optiques n’est pas étanche (BERDUCOU, 1990, p. 419).

A formação de outros grupos representantes de categorias


profissionais de agentes culturais impulsiona a construção do primeiro centro
internacional de restauração (ICCROM), em 1956, na Itália. A formação de
organizações internacionais gerou publicações importantes – Museum,
Studies in Conservation, ICOM News, IIC News – que consolidaram a
disciplina da conservação e restauro enquanto uma prática científica. Desde
a fundação do ICCROM (1956), a Itália manteve-se como o grande centro
formador de recursos humanos e de teorias relacionadas à prática da
conservação e da restauração. Contudo, Cesare Brandi, Paul Philippot, Harol
Plenderleith, Sir Bernard Fielden, Cevat Ender, Andrzej Tomaszewsky, Marc
Laenen, Gael de Guichen, não representam apenas a metodologia italiana de
lidar com a estruturação da Ciência da Conservação e Restauro, mas uma
construção baseada em um pensamento intelectual forjado sobre bases
científicas que, como em qualquer campo do saber, não são restritas apenas
ao seu espaço social. Gradativamente, o métier percebe a necessidade de
construir associações e instituições que propiciem o intercâmbio de
informações, publicações e treinamento adequado.

A utilização de métodos científicos provenientes de outras áreas de


conhecimento não é, no entanto, prática restrita apenas ao século vinte: os
avanços laboratoriais nas áreas de Química e Física no século XIX foram
úteis tanto para a Arqueologia e História da Arte, quanto para a Restauração:
The chemistry of ancient materials could be praticed only on minimal samples; it was
only in 1870 that von Pettenkofer introduced the use of microscope, and in 1905 that
Oswald used resources of microchemistry; it was not until 1914 that Faber
demonstrated the usefulness of the radiography of pictures, at the same time as
Kougel revealed the resources of ultraviolet and fluorescence. Then it was necessary
to wait until after the war (World War I) for the general application of X rays and
ultraviolet; at the same time (1924-32), infrared photography emerged, primarily
thanks to Bayle, and Maché made spectrography a useful technique in the
examination of painting (COREMANS, 1961, p. 109-115).

109
O encontro de 1930, mencionado anteriormente, introduziu o debate
no meio científico e acadêmico, mas só teve continuidade – no âmbito
internacional – após a Segunda Guerra: centros internacionais como o ICOM,
IIC, ICCROM, IRPA elaboraram encontros e seminários específicos para
difundir, questionar e estruturar um conhecimento científico de bases exatas
estritamente voltado para a Ciência da Conservação. A introdução de
métodos científicos de exame e critérios preservacionistas baseados na
compreensão e controle do ambiente – utilizando conhecimentos da
Engenharia Civil, Mecânica e Elétrica, além de recursos da Meteorologia e da
Biologia – fez com que a prática da restauração se deslocasse de oficinas
particulares e até mesmo de ateliês localizados nos prédios dos Museus para
laboratórios específicos, construídos em Centros de Estudo e Universidades.

Na década de oitenta, Geogio Torraca publica um trabalho entitulado


Química aplicada à Restauração, em que os compostos químicos, grupos
funcionais, compostos nitrogênicos, polaridade, atração entre moléculas,
classificação das interações, materiais protéicos e sintéticos são analisados a
partir da prática ou do uso na restauração. A tabela de solventes químicos de
Liliane Marschelein Kleiner e o método de limpeza aquosa de Richard
Wolbers são difundidos e utilizados na prática do dia dia. Ao contrário da
aplicação industrial, o uso da Química ou da Física em relação aos bens
culturais é extremamente complexo: nas indústrias, o conhecimento pode ser
compartimentado e, de um processo a outro, nem sempre há uma ação
conjunta; na restauração, o mesmo não acontece e não existe o fator
produção em série, uma vez que cada obra é única. Por essa razão, mesmo
nas publicações especializadas como Studies in Conservation ocorre um
certo cuidado para que as fórmulas químicas e suas proporções não sejam
utilizadas como receitas de cozinha: os princípios são apresentados, mas não
as formulações. Há uma frase de Torraca que adverte quanto às atitudes de
cientistas quando chamados para atuar dentro da Ciência da Conservação,
por considera-la um domínio subdesenvolvido, do ponto de vista científico,
tendem a transferir suas experiências e métodos sem considerar as
especificidades que envolvem um bem cultural: en conséquence, ils sont tentés

110
de transférer directement à la conservation idées préconçues, équipement et
procédés venus de leur champ antérieur de spécialisation. C'est seulement après
quelques expériences malheureuses qu'ils aparennent que le problème n'est pas si
simple; la terre de la conservation est pleine de pièges, et les indigènes sont
frèquemment hostiles (TORRACA, apud BERDUCOU, 1990, p.14).

Torraca relata em um artigo recente sua experiência: a few years ago, a


well-known mineralogist declared authentic some Modigliani sculptures retrieved
from a ditch (where the sculptor presumably threw them). The basis for this
conclusion was the finding that the layer of mud in contact with the stone sculptures
contained almost no lead (evidence that there were no cars and no gasoline with
tetra-ethyl-lead in it at the time the mud layer was formed). Contrary to what normally
happens with archaeometric interpretation, the gambler in this case was unlucky.
The forgers were there and able to prove that they had made the presumed
masterpieces a few days before their discovery. Em função disso, declara no
mesmo artigo, a partir do momento em que as análises voltadas à
conservação cosiderarem o dados históricos elas se tornarão, pouco a
pouco, mais próximas das necessidades da disciplina, na prática e na teoria.
Pesquisas relacionadas à literatura concernente à história das técnicas
construtivas de obras de arte e artefatos são tão indispensáveis quanto uma
visão ampla do significado cultural e da história do patrimônio analisado.
Associado ao historiador da arte, arqueólogo, etnólogo e ao restaurador, o
analista-conservador desempenha um papel primordial, lado a lado desses
outros profissionais e tão fundamental quanto eles.

Um cientista da área exata que decide entrar no campo da


conservação é normalmente confrontado com uma realidade totalmente
diversa da que advém: a literatura comparada é difícil de acessar e quando
encontrada, nem sempre responde aos modelos oficiais – poucos dados,
nenhuma estatística, nem modelos computadorizados ou proporções fixas.
On the other hand, the scientist is strongly attracted by the domain of conservation.
This is partly because the objects to be preserved are fascinating in themselves and
partly because, in multivariable processes that govern deterioration an conservation,
the hits for new schemes in a short time by application of the most standard concepts
of his normal branch of activity (TORRACA, 1996, p. 441).

111
Os cursos de treinamento e de formação de pessoal capacitado para
exercer a função de conservador/restaurador têm sedimentado a valorização
de técnicos e especialistas, ao invés daquela visão romântica do autodidata,
dotado de habilidades artísticas, que por amor à arte consertava os objetos e
limpava as imagens antigas. Até mesmo Jair Inácio – um dos mais antigos
restauradores do Brasil –, que iniciou sua carreira como autodidata em Ouro
Preto, procurou fazer um estágio no IRPA – Institute Royal du Patrimoine
Artistiquè, em Bruxelas.

A prática amadorística de arqueólogos, restauradores/conservadores e


museólogos tem demonstrado que, por falta de conhecimentos mínimos de
princípios técnicos e de normas éticas de atuação, ao invés de contribuir para
a preservação da cultura material, tem acarretado lacunas irreparáveis,
destruindo, dilapidando e apagando vestígios importantes do passado. Em
função dessas práticas inadequadas, as associações representantes dessas
profissões têm procurado incentivar sua formação através de cursos
profissionalizantes. Desde 1945, a Europa – através do Institute Royal du
Patrimoine Artistiquè de Bruxelas – e os EUA – pelo Institute of Fine Arts of
New York University – tem investido em cursos de nível técnico, graduado,
especialista, mestre e doutor em diversas áreas de conhecimento aplicado à
ciência da conservação e restauro.

No Brasil, vários esforços têm sido feitos no sentido de definir a


profissão e formar pessoal habilitado a exercê-la, principalmente através de
organismos de classe, como a ABRACOR – Associação Brasileira de
Conservadores e Restauradores – e o CECOR – Centro de Conservação e
Restauração da UFMG. O Boletim da ABRACOR de 1985 – denominado
Seminário: Formação e Treinamento Profissional para a Preservação de
Bens Culturais – formalizou as questões já discutidas pela categoria. As
universidades federais do Rio de Janeiro e da Bahia foram pioneiras na
inauguração de disciplinas de conservação e restauro: na década de
cinqüenta, o Prof. Edson Motta introduz as disciplinas de restauração de
pintura de cavaletes e de papel na Escola de Belas Artes da UFRJ e o Prof.
João José Rescala, no mesmo período, a disciplina de restauração de

112
pinturas dentro do curso de graduação em Belas Artes na UFBA. O Centro
de Conservação e Restauração da UFMG mantém, desde 1979, inicialmente
sob a coordenação e direção da Profa. Beatriz Vasconcellos Coelho, cursos
de restauração de pintura de cavalete e escultura policromada, sendo o
primeiro curso de restauro reconhecido oficialmente enquanto curso de
especialização. Atualmente o Departamento de Artes Plásticas da UFMG
mantém um curso de mestrado na área, cujo coordenador, Prof. Dr. Luiz
Souza, é químico-restaurador com projeção e reconhecimento internacionais.
A importância do CECOR é tão extensa, que nele são oferecidos cursos
associados com grandes organismos internacionais – ICCROM, ICOM, The
Getty Conservation Institute, Smithsonian Foundation –, envolvendo aspectos
da conservação preventiva e da ação interventiva apoiada em bases
científicas

Os avanços alcançados através desses cursos são inúmeros, porém, o


não reconhecimento profissional contrapõe-se às exigências de uma
formação tão específica. Profissionais não qualificados e sem nenhuma
formação continuam no mercado, atuando, muitas vezes, de maneira
inadequada. Cabe lembrar que uma intervenção de restauro indevida não é
percebida imediatamente; somente quando seus efeitos daninhos tornam-se
visíveis é que as ações desenvolvidas sem critérios são notadas. Ainda que
muitos profissionais autodidatas atuem de maneira consciente e correta, a
regulamentação da profissão significaria, na prática, uma peneira seletiva
nesse mercado de trabalho. Dentre os inúmeros caminhos percorridos pela
formação de profissionais voltados à preservação dos acervos, atualmente, a
conservação preventiva tem significado uma mudança profunda de
mentalidade. Conservação, restauração e preservação, ainda hoje, são
termos que se intercruzam e se sobrepõem. Todavia, paulatinamente, estas
classificações vêm sendo cada vez mais definidas.

Hoje, percebemos que não basta resgatar, investigar, expor e até


mesmo restaurar sem uma política preventiva anterior a estas operações,
uma vez que a deterioração de acervos em reservas e exposições
evidenciam a falta dessa política na própria degradação dos objetos.

113
Operações mais drásticas nas intervenções de restauro e, até mesmo, a
perda material desses objetos é o preço que se paga pelo não investimento
na área de conservação preventiva: antes de ser uma área de conhecimento
técnico, torna-se um compromisso ético das instituições. Por sua vez, a área
de conservação e restauro tem priorizado a conservação preventiva em
relação às técnicas de intervenção direta, como uma maneira de proteger a
integridade material dos objetos. Preservação é a utilização de todas as técnicas
científicas disponíveis para assegurar a manutenção dos artefatos, coleções
artísticas e históricas, de acordo com os critérios que buscam as melhores
condições para um acondicionamento adequado (XVIII Congresso Anual da ABPC,
1988, p. 1).

Como a medicina preventiva, a ação da Conservação Preventiva


intenciona controlar os agentes de degradação – internos ou externos –, com
o intuito de prevenir, estacionar ou retardar a deterioração dos objetos.
Assim, do mesmo modo que a partir de medidas de saneamento básico,
vacinação e controle, a medicina previne o aparecimento de certas doenças,
a Conservação Preventiva se propõe a atuar no ambiente externo, através do
controle de fatores como luz, temperatura, umidade, ataques biológicos e
manuseio – elementos diretamente responsáveis pelos danos imediatos dos
materiais constitutivos de obras e artefatos –, prevenindo o aparecimento ou
a atuação dos mecanismos que contribuam à degradação dos objetos.

Se, em um primeiro momento a ação da Conservação Preventiva


implica em certos custos, a longo prazo resulta em economia quantitativa e
qualitativa, uma vez que preserva a integridade material dos artefatos,
possibilitando estudos mais acurados, ao mesmo tempo em que descarta
métodos de intervenção mais agressivos e caros. Por sua vez, os critérios da
Conservação Preventiva têm sofrido uma série de ajustes, em função das
especificidades dos materiais existentes nos bens patrimoniais, móveis e
imóveis, e das áreas nas quais estes objetos encontram-se lotados. Assim,
os critérios adotados em países de clima tropical não devem ser os mesmos
daqueles adotados em clima temperado: a realidade é distinta; os parâmetros

114
são distintos; os mecanismos são distintos, portanto, a maneira de controlar
cada contexto também é diferente.

No entanto, não cabe ao conservador perseguir os ideais da


Conservação Preventiva como se fossem dogmas ou leis, mas procurar, a
partir destes parâmetros, desenvolver entre os vários especialistas uma
consciência da materialidade e da vulnerabilidade dos objetos, de modo a
encontrar aliados e não opositores nos projetos preservacionistas. Adaptar-se
à realidade das verbas, do espaço e dos materiais que temos por obrigação
cuidar, não é tarefa das mais fáceis. No entanto, a partir do momento que
conhecemos conscientemente e tecnicamente nossos problemas é que
poderemos encontrar soluções compatíveis com a nossa realidade. Caminhar
na direção do ideal é um passo a mais para tentar alcançar as condições
mais adequadas.

Nas últimas décadas, a Ciência da Conservação forjou suas bases de


conhecimento metodológico e epistemológico baseada em noções advindas
de outras áreas de conhecimento; mais do que nenhum outro campo é uma
ciência que se alimenta das descobertas e procedimentos de outras áreas,
ao mesmo tempo que elabora teorias e métodos aplicáveis apenas na sua
prática. No entanto, mais do que nunca, não são apenas as práticas de
laboratório que ditam seus caminhos: se pretende conhecer-se e reconhecer-
se como ciência, demanda compreender sua construção epistemológica
tanto quanto suas operações estruturais. Conservation as an intellectual pursuit
is predicated on the belief that knowledge, memory, and experience are tied to
cultural constructs, especially to material culture. Conservation –- whether of a
painting, building, or landscape –- helps extending these places and things into the
present and establishes a form of mediation critical to the interpretative process that
reinforces these aspects of human existence. The objectives of conservation also
involve evaluating and interpreting cultural heritage for its preservation, safeguarding
it now and for the future. In this respect, conservation itself is a way of extending and
solidifying cultural identities and historical narratives over time, through the
valorization and interpretation of cultural heritage (MATERO, 2000, s.p.).

115
3.2. ICCROM: as metas da conservação
Every country has its own cultural heritage, whether
historic city or archaeological site, museum or library.
This heritage is a means of identity, a source of national
pride and an integral part of development. But these
valuable resources are under increasing pressure from
a variety of sources, ranging from modernization to
pollution, catastrophe, conflict, vandalism, theft and
sheer neglect.
ICCROM: a leading voice in the conservation of cultural
heritage, 1998.

O ICCROM – International Center for the Study of Cultural Property –,


com sede em Roma, possui uma estrutura direcionada às atividades de
conservação e restauro desde 1956, quando fundado pela UNESCO. Como
instituição intergovernamental, com mais de noventa países-membros, tem
por prerrogativa ser um fórum de debates permanente, no que concerne à
ação conservacionista, e um agente catalisador dos projetos efetivos.
Também contribui com o World Heritage Commitee – UNESCO – enquanto
instância de avaliação das propostas, dos cursos, dos grupos de trabalho e
de atuações efetivas nas obras e propriedades inscritas na World Heritage
List.

De acordo com Mounir Bouchenaki: A third organization (as outras duas


analisadas em seu artigo são ICOMOS e ICOM), this one with an intergovernmental
character, was founded by UNESCO in 1956 and located in Rome after 1959
following an agreement with Italy. The main purpose of the International Centre for
the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property (ICCROM) is to
link governments and specialists in the safeguarding of both movable and immovable
cultural heritage; its statutory functions were defined as documentation, technical
cooperation, research, training, and awareness building in member states. ICCROM
is known as one of the world’s international “centers of excellence” that deal with
training and education. Hundreds of architects and conservators from all over the
world have followed and are following specialized conservation training programs in
areas such as architecture, mural paintings, stone, wood, paper, and textiles. As
Jukka Jokilehto – former assistant to the director general of ICCROM and current
president of the ICOMOS International Training Committee – noted in 1995,

116
“international courses should be understood as part of the professional career
structure of a professional, particularly when aiming at a leading position in one’s
country” (BOUCHENAKI, 1999, s.p.).

Os debates antecedentes a sua criação estão registrados na VI


Conferência Geral da UNESCO, ocorrida em 1951 na Suíça e que elaborou a
idéia de criação de um centro voltado ao estudo e difusão dos métodos de
conservação e restauração. Em 1953, a Assembléia Geral do ICOM
encorajou a UNESCO a considerar a criação do International Centre for the
Study of Conservation and Restoration of Cultural Heritage. O resultado da
discussão promovida entre a UNESCO, o ICOM e o governo italiano foi a
criação do ICCROM, estabelecido com uma sede em Roma e um acordo
formalizado entre UNESCO e governo italiano, ratificado pelo decreto
n.723/60.

Alguns dos maiores pesquisadores envolvidos com a questão do


patrimônio mundial na época – Georges Henri Riviére (Diretor do ICOM), Van
der Haagen (UNESCO), Paul Coremans e Paul Philippot (IRPA-Bélgica),
Fréderic Gysin e os italianos Cesare Brandi (Diretor do ICR), Pietro Gazzola
(Superintendente dos Monumentos de Verona) e Gugliemo De Angelis
d’Ossat coordenaram as ações necessárias à fundação de uma agência
internacional desse porte e estruturaram as diretrizes básicas da instituição
formuladas sobre alguns pontos:

a) coletar, estudar e fazer circular informações concernentes com as


pesquisas científicas, técnicas e éticas relativas à conservação e à
restauração das propriedades culturais;

b) coordenar, estimular e fomentar institutos de pesquisas através de


cooperações centros e peritos, encontros internacionais; publicações e
intercâmbio de especialistas;

c) proferir recomendações para questões gerais e específicas


relacionadas à conservação e à restauração de propriedades culturais;

117
d) promover, desenvolver e prover treinamentos relacionados à
conservação e restauração de propriedades privadas e determinar os
critérios da prática de conservação e restauro;

e) encorajar iniciativas que contribuem para a melhor compreensão do


sentido da conservação e da restauração de bens patrimoniais.

Este texto, reproduzido do documento relativo à Assembléia Geral, de


outubro de 1957 – revisado em 1993 –, demonstra que apesar de o ICOM e o
ICCROM originarem-se da mesma instituição – a UNESCO –; serem guiados
pelos mesmos modelos, recomendações e terem como objetivo a
preservação de bens culturais, o campo de ação de cada instituição admite
especificidades próprias. Os pais fundadores do ICCROM tinham em mente
uma organização inter-governamental direcionada ao treinamento e à
pesquisa, mas, paulatinamente, ela transformou-se em uma plataforma
técnica e teórica das atividades relacionadas à preservação dos bens
culturais do período pós-guerra. O Instituto Central de Restauro permaneceu
atuante na Itália e encontrou no ICCROM apoio estrutural nos momentos de
crise: at the time of Florence floods in 1966, ICCROM immediately donate $1000 to
the ICR to cover the initial costs of sending a group of restorers to the disaster scene
(ICCROM, 2000: 33). O primeiro diretor do ICCROM, Dr. Harold J. Plenderleith,
foi extremamente ativo na condução de programas de inspeção e apoio
técnico aos sítios e monumentos europeus, principalmente àqueles
danificados pela Segunda Guerra.

Apesar do reconhecimento ao governo italiano pela assistência dada à


instituição desde sua fundação e de sua ingerência dentro da UNESCO nos
debates relativos à proteção do patrimônio cultural mundial, a inexistência de
braços ou comitês em outras regiões e o fato de não ser uma ONG
(organização não governamental) parece dificultar a realização de seu papel
aglutinador dos debates específicos à área, o que não ocorre com o ICOM e
o ICOMOS, apesar da existência de outros organismos regionais e
instituições nacionais de caráter semelhante.

118
A construção do conceito moderno de restauração se confunde com a
própria história de criação e formação do ICCROM. Como colocado no tópico
anterior, Cesare Brandi e Paul Philippot forneceram as bases teóricas e
metodológicas, além do aporte político, na construção desse centro de
proporções internacionais. Em 2000, o ICCROM publicou um caderno
bilíngüe (italiano/inglês) comemorando os quarenta anos de atuação:
ICCROM & ITÁLIA: quarant’anni per la salvaguardia del patrimonio culturale.
Nas primeiras páginas, a publicação presta uma homenagem devida aos
teóricos acima citados: since the foundation of UNESCO as the family of
international organizations concerned with cultural heritage, the concept of heritage
itself has envolved. From the 1950s and 1960s, the growing interest in historic áreas
has giving an incentive for the development of appropriate methodologies. From the
1970s a concern for the environment and ecology has given rise to the policies of
environmentally sustainable development. In the 1990s, increasing attention has
been given to cultural diversity. The conservation philosophy laid down by Cesare
Brandi and Paul Philippot in the 1960s became the foundations for the further
development of ICCROM’s message, and was integrated into its training
programmes and technical cooperation (ICCROM, 2000, p.14-15).

A primeira década de adequação do ICCROM, enquanto instituição


internacional, foi marcada pela estruturação de uma base sólida de apoio
direcionada à formação de especialistas – internos e externos ao instituto – e
pela construção de uma biblioteca de apoio; o segundo decênio, ao
consolidar e expandir as bases anteriormente postas, procurou investir em
cursos de treinamento e ampliação dos estados membros pertencentes ao
quadro institucional. Cabe lembrar que, a exemplo do ICOM e ICOMOS, os
estados membros participantes por representação no ICCROM devem fazer
parte do corpo da UNESCO e por conseguinte da ONU. A terceira década foi
marcada pelos esforços de desenvolver programas de cooperação técnica, a
partir da ampliação da estutura de apoio da organização e do início de
programas regionais: as experiências de programas internacionais
multidisciplinares, elaborados com o intuito de formar ou atuar em áreas que
necessitavam dessa ajuda, expandiram a dimesão operacional do ICCROM
para além das fronteiras da Itália ou mesmo da Europa. Programas voltados

119
para a África Sub-Sahara, as Ilhas do Pacífico e a América Latina, além das
regiões do Mediterrâneo, reuniram diversos especialistas das áreas de
Conservação, Restauração, História, Arqueologia, Arquitetura e Engenharia:
this has led to development of The Support Programme for the Conservation of
Cultural Heritage in North Africa and Near and Middle East countries (NAMEC); (...)
other related activities have included the Royal Palaces of Abomey Conservation
iniciative of PREMA with GAIA-CRATerre/EAG and UNESCO in Benin and the
Feasibility study of the transport of the Axm Stele from Rome to Ethiopia (ICCROM,
2000, p. 4-5)

A última década do ICCROM tem sido dedicada à uma revisão de se


papel no mundo atual e seus reflexos no contexto internacional, a partir de
discussões trazidas pelos Estados membros e como resultado de expansão
de suas atividades regionais. Jukka Jokilehto, em um artigo entitulado
ICCROM, Achivements and Challenges, publicado no caderno comemorativo
(2000, p. 12-18), afirma: Having satisfied the urgent needs caused by the Second
World War, the period has been characterized by a further intensification of
international collaboration, and the introduction of a common language – as
expressed in international declarations, charters and conventions. Partindo dessa
noção de commom language, como elemento aglutinador e ao mesmo tempo
revelador do habitus de um determindado campus, mecanismo de
reconhecimento e distinção, em 1992 Cristiana Gianni publicou o Lessico del
Restauro – storia tecniche strumenti, onde afirma: La produzione de’un
linguaggio è il primo indizio de aggregazione e di identificazione di un qual siasi
grupo sociale e la prima apressione formale della storia che esso produce nello
spazio e nel tempo. Nella sua inadeguatezza o nella sua complessità esso esprime
comunque il livello di crescita di un ambiente omogeneo dotato di una funzione
accentratrice: oggetti, fati, azione si susseguono e si sovrappongono, ad essi sono
attribuiti dei nomi, i nomi sono destinati a formulare il linguaggio proprio de
quell’ambiente. Così, ogni attività culturale, sociale, economica, artistica esprime um
lessico tecnico specifico, che ne rispecchia le consuetudini com una fedeltà che non
è possible ritrovare nelle sue transcrizioni letterarie o iconografiche (p. 15).

Prefaciado por Umberto Baldine, diretor do ICCROM entre 1983 e


1987, o livro pretende estruturar o vocabulário da área por meio de sua

120
evolução histórica e utilização prática, como relatório ou compêndios
didáticos. A autora alerta que, para a cultura ocidental, raramente há um
interesse em conservar o léxico legado pela atividade manual ou artesanal,
incorrendo em um risco de perder um patrimônio línguístico rico em função
de um desprezo às atividades que não são consideradas teóricas ou
pertencentes ao corpo científico; uma reminiscência, talvez, das divisões
propostas na Antigüidade entre os oficios mecânicos e as atividades liberais,
que se perpetuaram no decorrer da História e que, até hoje, resulta em uma
diminuição do trabalho tido como manual.

Dicionários multilingüísticos têm sido propostos por várias associações


ou entidades de classe nacionais, mas a base do vocabulário continua sendo
italiana, em função da própria história desse país, voltada para a preservação
do patrimônio artístico desde o Renascimento. Nesse contexto, o ICCROM
tem contribuído para o desenvolvimento de programas de treinamento,
visando difundir os conceitos, parâmetros e metodologias da disciplina, bem
como incentivar a autonomia de cada região na aplicação dos conhecimentos
adquiridos. The recognition of cultural diversity and involvement of an increasing
number of countries and cultures in the international conservation scenario have
shown validity of this approach with an emphasis on the critical process, and the
international implementation of the italian concept of “restauro critico” (JOKILEHTO,
2000, p.15). Após a Carta de Veneza (1964), as orientações propostas
levaram ao engajamento do ICCROM em um debate relativo às questões de
autenticidade e validade, e na construção do Documento de Nara, em 1994,
membros atuantes da Instituição foram protagonistas no direcionamento dos
debates. O campo tradicional da conservação foi gradualmente sendo
ampliado e, da restauração de arte e objetos, o campo de atuação se
expandiu para as ações voltadas à conservação de coleções de museus;
problemas de estruturas históricas e reflexões concernentes aos bens
culturais representados pelos artefatos tradicionais ainda em uso, expansão
urbana de centros históricos e significado do patrimônio cultural.

Os encontros promovidos na década de setenta pelo Conselho da


Europa, voltados exlcusivamente ao patrimônio arquitetônico e sítios

121
arqueológicos, influenciou a formulação de dois programas regulares, a
saber, Architectural Conservation Programme e Human Settlements
Conservation Programme, além de cursos internacionais como o Course for
the Conservation of Monumental Heritage and Historic Centres; Architectural
Conservation of Building; International Scientific-Principles of Conservation
Course. De acordo com os dados estatísticos fornecidos pelo ICCROM
(Gráfico 1), nas décadas de sessenta e setenta as atividades de treinamento
ocorreram preponderantemente na sede italiana; nos anos oitenta houve um
equilíbrio entre o oferecimento interno e externo e nos anos noventa a
comunidade externa tornou-se prioridade: regular training in the 60s and 70s
were carried out mainly in Italy; as the graph shows the trend changed in the early
80s, with the start-up of regional programmes and the thematic activities as part of
international cooperation, peaking in the 90s when 66,4 percent of Iccrom’s training
was provided abroad (ICCROM Activity Report, 2000, p. 40).

ICOM e ICCROM têm atuado conjuntamente ao redor de muitas


questões relacionadas com a regulamentação profissional, às políticas
globais e às referências legais de salvaguarda patrimonial, além de uma
maior polarização dos debates éticos, que incluem as atividades dos
conservadores e restauradores enquanto profissionais de museus. Tal
ingerência pode ser percebida pelas ações desenvolvidas a partir dos anos
oitenta, quando foi criado um Comitê ad hoc para Ética Profissional, sob a
coordenação da conservadora Agnes Ballestrem (ICCROM), o qual gerou o
documento The Conservator-Restorer: a definition of the profession,
apresentado em 1978 em um encontro do ICOM, em Zagreb, o qual foi
sancionado no encontro trienal do ICOM ocorrido em Otawa.

122
GRÁFICO 1 : Atividades de Treinamento
do ICCROM entre as
décadas de 60 e 90

DÉCADA 60

DÉCADA 70

DÉCADA 80

DÉCADA 90

% 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90

CURSOS OFERECIDOS NA ITÁLIA

CURSOS OFERECIDOS EM OUTROS PAÍSES

Fonte: ICCROM

123
A intenção primordial do documento era fornecer aos profissionais um
instrumento de peso internacional que contribuísse para o reconhecimento
legal da profissão e estimulasse a promoção de cursos na área nos vários
países onde a prática ainda não era reconhecida. Tendo como bases teóricas
os postulados de Coremans (1969, p. 15), estabelece a seguinte distinção:

- Preservación es la acción de retardar o prevenir la deterioración de los


Bienes Culturales, por el control de entorno y/o tratamientos de su estructura, para
mantenerlos en un estado sin cambio, en la medida de lo posible;

- Restauración es la acción de hacer reconocible un objeto, que ha llegado a


un estado de deterioración y alteración, que lo volvió irreconocible, con un minimo de
sacrificio de la integridad historica y estetica.

Partindo da premissa de que o restaurador/conservador trabalha em


museus, instituições oficiais ou em instituições privadas, independentemente
do seu vículo empregatício, deve-se ter em mente o significado cultural de
bem patrimonial, móvel ou imóvel, e a sua dimensão estética e histórica,
retornando, aqui, ao texto de Riegl (1903). No documento, além dos aspectos
éticos em relação ao valor simbólico, a materialidade dos bens culturais é
colocada em função da necessidade do restaurador atuar a partir de uma
metodologia científica: investigación de las fuentes, analisis, interpretación y
sintesis. Solo después de un tratamiento completo, puede ser preservada la
integridade física de la obra y conseguir que su significado sea accesible al
observador (3.6). Nesse ponto, ressalta-se a cooperação interdisciplinar e o
apoio laboratorial para o desenvolvimento das atividades de restauração. Em
relação à formação do restaurador, esta compreenderia o desenvolvimento
de sensibilidade e experiência manual; a aquisição de conhecimentos
teóricos sobre materiais e técnicas, além de um repertório rigoroso na área
de metodologia científica, para adquirir a capacidade de resolver os
problemas de conservação, por aportes sistemáticos, utilizando investigações
precisas e interpretações críticas dos resultados.

Esse documento deu origem à proposta desenvolvida em 1986, na


Argentina, sobre o Code of Professional Ethics, adotado em Buenos Aires na
XVI Conferência Geral do ICOM, o qual procurou proporcionar as linhas

124
mestras através de um guia ético geral, que deveria ser utilizado como base
internacional de conduta mínima ao desempenho da profissão de museus: o
código proposto, aceito como estatuto de ética profissional, respaldou as
orientações dos artigos segundo, nono, décimo quarto, décimo quinto,
décimo sétimo e décimo oitavo dos Estatutos do ICOM adotados na 16th
General Assembly of ICOM (The Hague, 1989) e sancionados na 18th
General Assembly of ICOM (Stavanger, 1995).

O ICCROM encontra-se, atualmente, diante de uma nova situação


global: a conservação e a restauração das propriedas culturais passam a
fazer sentido apenas quando estão em consonância com o contexto cultural.
O resultado dessas reflexões faz com que os especialistas pertencentes à
instituição repensem seu papel e sua responsabilidade, redirecionando
esforços e recursos.

125
4. Patrimônio Arqueológico e Monumentos

The fact that archaeology can provide a growing number of


insights into what has happened in the past suggests that it
may constitute an increasingly effective basis for
understanding social change. That in turn indicates that in
due course it may also serve as a guide for future
development, not in the sense of providing technocratic
knowledge to social planners but by helping people to make
more informed choices whith respect to public policy. In a
world that has become too dangerous for humanity to rely on
trial and error, archaeologically derived knowledge may even
be important for human survival. If archaeology is to serve
that purpose, archaeologists must strive against heavy odds
to see the past as it was, not as they wish it to have been
TRIGGER, Bruce G. A History Of Archaeological Thought, 1989,
p.411.

4. Cairo - The international perspective concerns the cultural heritage


developed when the Egyptian temples of Abu Simbel and Philae were
threatened by the building of the great dam in Aswan in 1960. The message
was clear: these monuments do not belong only to Egypt. They represent a
value to each and every one of us. It is no exaggeration to say that
international campaigns for preservation undoubtedly constitute one of the key
areas for the implementation of the concept of universal heritage.
BOUCHENAKI, Mounir. International Conservation Organizations, 1999, s.p.
Foto: Frank Matero

126
O estudo epistemológico da disciplina arqueológica é matéria recente,
existindo, como na historiografia, uma série de debates a respeito de suas
origens, bases conceituais e posicionamento no interior do campus
intelectual. Dotada de uma série de habitus de reconhecimento e
conhecimento, circula livremente (ou nem tanto) nos terrenos das Ciências
Humanas, Exatas e Biológicas. Distante do imaginário popular criado pelos
filmes de ação, o arqueólogo não é nenhum aventureiro21 à busca de tesouros
perdidos e, se o trabalho de campo é árduo, são nos debates teóricos, nos
Congressos e na manutenção das instituições voltadas para a pesquisa
científica, entretanto, que se configuram na prática as dificuldades reais desta
profissão – the real jungle! Tanto quanto a do historiador, o sociólogo, do
antropólogo ou do conservador, esta profissão não é reconhecida no Brasil.
Em relação aos outros países, o quadro não é mais alentador: recentemente,
Larry J. Zimmerman e Steve Dasovich (1989) constataram que a Arqueologia,
nos Estados Unidos, é considerada, na melhor das hipóteses, como tendo
pouca utilidade prática. Para a grande maioria, trata-se de um hobby exótico,
um ramo da História que nos dá um pouco mais do que uma interessante
perspectiva e, talvez, um pouco de curiosidade intelectual (apud FUNARI,
1995, p. 3).

Considerando o depoimento de Karen D. Vittelli (2000, p.12): Thirty or


so years ago, when I entered the field, archaeology resided pretty firmly within the
lofty, masculine walls of academe. Beyond those walls, the public had only a vague
and romantic notion of the exotic field, fed largely by Hollywood (and James
Michener’s The Source), that regularly prompted the comment, “Oh, I always
dreamed of becoming an archaeologist” whenever I was introduced at social
gatherings. No público leigo pode-se compreender uma certa ignorância em
relação às disposições desta ou de qualquer outra disciplina especializada
distante de suas ações práticas cotidianas – é difícil associar os trabalhos de

21
The popular image of archeology is of a esoteric discipline that has no relevance for the
needs or concerns of the present. Hooton (1938:218) once described archaeologists as being
viewed as the senile playboys of science rooting in the rubbish heaps of antiquity (TRIGGER,
1989, p. 3).

127
arqueólogos, antropólogos ou etnólogos ao cotidiano, como tampouco
compreender o porquê de se estudar latim, tupi-guarani ou banto.Qual o
sentido das diferenças, afinal? Por que manter vivas culturas circunscritas na
esfera do passado? Porque preservar tribos indígenas em um mundo
civilizado? Nesse momento, é possível entrever o que mais faz falta à
sociedade contemporânea: o respeito cultural, a tolerância étnica, a
compreensão do outro, o sentido mais lato do pensamento ético. Será esta
postura herança das disciplinas exploratórias – Geografia, Biologia,
Arqueologia, Antropologia – que transformaram a humanidade em um grande
gabinete de curiosidades? Ou, quem sabe, resíduos do pensamento
utilitarista capitalista?

É possível até compreender esta alienação do homem comum, mas


não se pode aceitar, todavia, o profundo desconhecimento que envolve
intelectuais de áreas afins à Arqueologia ou até mesmo os arqueólogos. Em
verdade, quanto da formação do arqueólogo volta-se para a história da
Arqueologia, seus conceitos e seus métodos, procurando examinar os fatores
sociais que ajudaram a configurar as idéias que estruturaram seu trabalho e o
impacto recíproco que as interpretações arqueológicas tiveram sobre outras
disciplinas e a sociedade? Cursos de graduação parecem, no entanto,
priorizar questões técnicas ao invés da exposição sistemática e articulada
das teorias correntes. Following L.R. Binford (1981), a distinction will be drawn
between an internal dialogue, by which archaeologists have sought to develop
methods for interning human behavior from archaeological data, and an external
dialogue, in which they use these findings to address issues concerning human
behavior and history (TRIGGER, 1989, p. 2). Estes dois discursos não estão
claramente separados, o diálogo interno abarca conceitos específicos da
Arqueologia enquanto disciplina, enquanto o diálogo externo constitui a
contribuição arqueológica para com as outras Ciências Sociais.

Não basta preparar um número cada vez maior de arqueólogos para o


trabalho de campo, para a indústria do salvamento, se os artefatos coletados
não são tratados posteriormente nem admitem uma correspondência com a
sociedade. Abandonados nas reservas técnicas, os artefatos permanecem

128
mais mudos do que quando enterrados nos solos. A pesquisa efetiva inclui
metodologias de coleta de dados e de análise, além da teorização dos
modelos explicativos. Para que isto ocorra efetivamente, a formação teórica é
imprescindível, a consciência ética é necessária e o controle institucional –
das agências financiadoras, das associações e dos próprios centros de
pesquisa – é indispensável. Tanto quanto a prática de restauração, a prática
arqueológica ainda é exercida de forma amadorística em muitos países. No
Brasil, o controle do IPHAN, do CONDEPHAAT ou da SAB22 determina uma
certa restrição à ação arqueológica exercida por leigos. Porém, a deficiência
legislativa e a própria vulnerabilidade científica pelo não reconhecimento
profissional atuam como elementos substanciais no que concerne ao trabalho
arqueológico.

No texto A hermenêutica das ciências humanas: a História e a Teoria e


a Práxis Arqueológicas, de 1995, o Prof. Funari procura descrever e
interpretar as principais correntes epistemológicas recentes da Arqueologia.
Se a Arqueologia do século XVIII, voltada exclusivamente para as artes do
mediterrâneo, impôs uma ação exploratória aos seus pesquisadores23,
inaugurando também os estudos físico-químicos de análise de fragmentos,
são os questionamentos epistemológicos que têm conduzido os debates em
vários centros de estudos, ultimamente. Teoria e práxis – além de uma boa
dose de consciência e ética – constituem temas indissociáveis em qualquer
área de conhecimento. No que concerne à Arqueologia, a análise acurada da
cultura material deve procurar suas bases na formulação de teorias
explicativas que retornem à sociedade como reflexão desta própria
sociedade. A relação entre a Arqueologia e a Educação é tal, que as palavras
lançadas ao vento podem ter sérias implicações educacionais e sociais.

22
O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) é o órgão de preservação e
valorização do patrimônio que atua em nível federal. Para a atuação estadual existe o
CONDEPHAAT (Conselho de Defesa de Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e
Turístico do Estado de São Paulo). SAB –Sociedade Brasileira de Arqueologia.
23
O Conde de Caylus escreve sete volumes sobre Recueil d’ antiquités égyptiennes,
étrusques, grecques et romaines. Uma coletânea, à maneira antiga, sem uma análise
histórica ou teórica das estruturas lebantadas (BAZIN,1989, p.74).

129
No Brasil, a divulgação sobre a provável antigüidade do homem
Americano discutida pela pesquisa de Niède Guidon em São Raimundo
Nonato, Piauí, gerou uma grande discussão em relação aos dados obtidos.
Lançados ao público por meios de comunicação em massa, não foram
poucos aqueles pesquisadores que discordaram dos resultados da
investigação. Entre a validade ou não dos métodos empreendidos na
pesquisa e as hipóteses construídas, encontra-se o sentimento das
populações circunvizinhas à área explorada. O orgulho de dispor do homem
mais antigo das Américas pode ser destruído a qualquer momento, se a
análise não estiver apoiada em bases sólidas, e com ele a própria auto-
estima daqueles que acreditaram na importância desta pesquisa. As
implicações sociais e educacionais do trabalho científico devem ser
consideradas nas atividades da Arqueologia.

O conhecimento do arqueólogo não deve constituir-se uma verdade


apropriada ou construída para si próprio: existe uma relação social entre as
pessoas e as coisas (TILLEY, 1992, p. 176) e esta relação pode ou não ser
determinada pela atividade científica. Aos pesquisadores cabe explorar estes
elos, analisá-los e retornar à sociedade como espelho, reflexo, teorias
explicativas, saídas, reflexões.

A discussão sobre a formação de uma Arqueologia Teórica recente,


voltada para a teorização dos modelos explicativos, demonstra que o
desenvolvimento de uma práxis consciente, amparada em suportes
conceituais, encontra-se no bojo das discussões epistemológicas atuais
desta disciplina. Since the 1950s archaeology, especially in North America and
Western Europe, has shifted from a seemingly complacent culture-historical
orthodoxy to ambitions theoretical innovations. The latter, far from producing an
anticipated new consensus, have led to growing disagreement about the goals of the
discipline and how these goals can be achieved (TRIGGER, 1989, p. 1). Um
número grande de arqueólogos, seguindo a onda de historiadores e
sociólogos, abandonou o positivismo e iniciou uma jornada de dúvidas sobre
a objetividade de sua pesquisa. Eles passaram a ver os fatores sociais como
determinantes não apenas das questões colocadas, mas também das

130
respostas que julgavam convincentes.

Proveniente de outra área de conhecimento, os conservadores muitas


vezes imaginam que a Arqueologia encontra-se a milhas de distância da
Ciência da Conservação – do ponto de vista da formulação teórica –, sendo
este um assunto já sedimentado no corpus conceitual de seus
pesquisadores. Apesar do estabelecimento de cursos de graduação e pós-
graduação nessa área, as referências conceituais da Arqueologia refletem
uma dívida para com a Teoria da História, a Antropologia e a Filosofia. A
formulação das bases do pensamento arqueológico é, portanto, matéria de
discussão recente, contemporânea às próprias inquietações de outras áreas
voltadas para a preservação e a apresentação social do patrimônio, como a
Ciência da Conservação e a Museologia.

Contudo, cabe observar que destas três áreas de conhecimento, a


disciplina de Conservação é a que mais carece de um corpo de reflexão
conceitual coerente: semelhante à postura positivista da Arqueologia no
século XIX, a visão dos pesquisadores situados nesse campo de
conhecimento limita seu trabalho ao atelier ou ao laboratório de maneira
prática e empírica; mergulhados na Química, na Física e na Biologia,
esquecem que a produção do conhecimento científico não existe sem uma
correspondência com a sociedade, a filosofia e as posturas éticas do meio de
onde partem. Desse modo, os problemas colocados nesta pesquisa – o
desconhecimento dos limites de atuação e o desrespeito entre as áreas de
conhecimento voltadas para a preservação material da cultura material – têm
como origem os problemas epistemológicos e a carência de estudos críticos
referentes aos princípios, hipóteses e resultados dessas ciências já
constituídas na prática, mas que demandam uma formulação mais profunda
de seus fundamentos lógicos, valores e objetivos, bem como determinação
do alcance e da projeção social dos resultados de seus trabalhos. O
processo e o produto resultante do trabalho científico não existe no vácuo
social: toda ciência depende de contatos, ligações sociais e políticas precisas
(CHAMPION, 1991, p. 144).

131
Como exposto na obra de Trigger (1980, 1989), não há pretensão de
que a abordagem epistemológica seja considerada mais objetiva do que a
interpretação dos dados arqueológicos/etnológicos, mas compreender que a
aproximação histórica oferece um ponto de vantagem especial: a partir do
momento que a mudança de relação entre a interpretação arqueológica e seu
meio cultural e social pode ser examinada, a perspectiva temporal
providencia uma base diferente para estudar os elos entre a Arqueologia e a
sociedade, tanto quanto as perspectivas filosóficas ou sociológicas. Em
particular, permite ao pesquisador identificar os fatores subjetivos pela
observação de como e sob quais circunstâncias a interpretação dos recortes
arqueológicos modificou-se.

A necessidade de um estudo mais sistemático sobre a História das


interpretações arqueológicas é indicada pelas sérias discussões sobre a
natureza e o significado dessa História, sendo uma das maiores
controvérsias centrada sobre o papel da Arqueologia nos dois últimos
séculos: Willey e Sabloff organizaram A history of American Archaeology
(1980) baseada em quatro períodos sucessivos – Especulativa,
Classificatória-descritiva, Classificatória-histórica e Explanatória – sendo esta
última iniciada em 1960. Segundo Trigger (1989), esta divisão implica que a
Arqueologia ocidental experimentou uma longa gestação durante a qual os
objetivos classificatórios e descritivos eram predominantes, acima das teorias
que procuravam explicar o significado das fontes arqueológicas no contexto
social.

Contudo, as teorias Classificatória-descritiva e Classificatória-histórica


inscreveriam a Arqueologia na estrutura do conhecimento científico, uma vez
que a maioria dos estudos descritivos implica na existência de algum tipo de
estrutura teórica, apesar de alguns pesquisadores afirmarem que essas
teorias não possuíam consistência suficiente de acordo com o paradigma
científico elaborado por Thomas Kuhn: até 1960, as teorias arqueológicas
pareciam um corpo fragmentado de subteorias inadequadas que não
possuíam nenhuma conexão com algum tipo de sistema compreensivo
(CLARKE, 1968. apud TRIGGER, 1989, p. 5). Clarke também afirma que

132
apenas os modelos reconhecidos internacionalmente podem ser qualificados
como paradigmas, sendo indispensável, portanto, a existência de uma
comunidade científica dotada de estruturas comuns – publicações
internacionais, associações, academias – que dê suporte à divulgação dos
esquemas interpretativos, pesquisas e teorias formuladas em torno do
conhecimento arqueológico.

Alguns arqueólogos combinam a idéia da estrutura das revoluções


científicas, elaborada por Kuhn, com a estruturação de visões involuntárias
na formulação dessa disciplina. A manutenção de fases sucessivas
consistentes no desenvolvimento das teorias arqueológicas, difundidas
internacionalmente pelos meios científico e acadêmico, possibilita a
observação de paradigmas coerentes, delimitados, estruturados e passíveis
de substituição por outros modelos de acordo com as mudanças (ou
revolução) das estruturas científicas. De acordo com esta visão, inovadores
como Christian Thomsen, Oscar Montelius, Gordon Childe e Lewis Binford,
reconheceram que há um enorme número de distorções nas interpretações
convencionais dos dados e procuraram estruturar novos paradigmas os quais
promoveram mudanças significativas na pesquisa arqueológica. It may also be
that, because of the complexity of their subject-matter, the social sciences have more
such schools and competing paradigms than do the natural sciences and perhaps
because of this individual paradigms tend to coexist and replace one another
relatively slowly (BINFORD, 1982, p. 137-53). Estes paradigmas não apenas
alteraram o significado dado às fontes, mas consideraram quais problemas
seriam ou não relevantes.

Uma visão alternativa admite que as mudanças científicas ocorrem


não como revoluções, mas como mudanças graduais e progressivas,
considerando que a História da Arqueologia envolve um saber cumulativo.
Apesar de as diversas fases de seu desenvolvimento poderem ser
delineadas arbitrariamente, a Arqueologia transforma-se de forma gradual,
sem quebras radicais ou mudanças abruptas (DANIEL, 1975). Esta visão
pode gerar uma concepção de que a estrutura do pensamento arqueológico
ocorra de maneira linear e inevitável, sendo que a base dos dados sofre uma

133
expansão contínua e as novas interpretações são tratadas como uma
elaboração gradual, refinada e que modifica o corpo teórico existente. This
view does not, however, take account of the frequent failure of archaeologists to
develop their ideas in a systematic fashion (TRIGGER, 1989, p. 7).

Uma terceira visão trata do desenvolvimento da teoria arqueológica


como um processo não-linear e freqüentemente imprevisível. As mudanças
não provêm de novas fontes arqueológicas, mas das idéias sobre o
comportamento humano formuladas pelas Ciências Sociais e que refletem os
valores sociais. Por isso, a interpretação arqueológica não se modifica a
partir de um modelo linear, com os dados tornando-se cada vez mais
compreensíveis e passíveis de interpretação, ao contrário, a mudança da
percepção acerca do comportamento humano pode alterar radicalmente a
interpretação arqueológica, fazendo com que informações que pareciam
importantes num primeiro momento, tenham uma importância menor em um
momento relativo. Esta visão concorda com a proposição de Kuhn na medida
em que observa que os paradigmas dados não apenas selecionam novas
fontes, mas também dão atenção aos novos problemas colocados sobre uma
base já estudada.

Incorrendo no erro das visões nacionalistas ou da estruturação de


meios acadêmicos específicos, muitos arqueólogos afirmam que uma das
principais características da interpretação arqueológica é a orientação
específica de algumas escolas regionais devido à diversidade regional que se
reproduz nas academias, centros de pesquisa e universidades. De acordo
com Trigger, Clarke e Klejn, muitos pesquisadores tratam a História da
Arqueologia como a História das escolas regionais. Yet studies of regional
traditions, with a few notable exceptions, have failed to take account of the vast
intellectual exchange that has characterized the development of archaeology in all
parts of the world during the nineteenth and twentieth centuries (TRIGGER, 1989, p.
9).

Não há como contestar que a pesquisa arqueológica possa ser


influenciada por uma diversidade de fatores e que este segmento possuia
habitus e campus específicos, mas não deixa de ser restritivo acreditar que o

134
fator determinante da construção de pensamento arqueológico está
sedimentado apenas na influência do contexto social de onde partem os
investigadores. É preciso pensar que a investigação científica influencia a
sociedade e é influenciada por ela, em uma via de mão dupla.

Recentemente, a Arqueologia tem sido pautada pelo antipositivismo


gerado pelo ataque dos relativistas contra o conceito da racionalidade
científica e da ciência como uma empresa objetiva: a Escola de Frankfurt,
nas figuras de Habermas (1971) e Marcuse (1964), considera que a condição
social influencia tanto a seleção das fontes quanto a interpretação dos dados,
colocando o critério científico como um conhecimento que não difere de
outras formas de crenças culturais. Uma vez que um critério objetivo para a
avaliação das teorias não existe, a ciência não seria regida por regras rígidas
e as preferências pessoais e os gostos estéticos poderiam ser utilizados para
avaliar teorias rivais. Como reação, muitos consideram que a compreensão
dos fatores sociais poderia investir a pesquisa arqueológica de maior
objetividade, outros mantêm que todas bases de pesquisa são construções
mentais que não são independentes do ambiente no qual são utilizadas: Are
steady advances being made towards a more objective and comprehensive
understanding of archaeological findings, as many archaeologists assume? Or is the
interpretation of such data largely a matter of fashion and the accomplishments of a
later period not necessarily more comprehensive or objective than those of an earlier
one? (TRIGGER, 1989, p. 26).

135
4.1. A disciplina arqueológica: conceitos e contextos
O modo de ser do homem, tal como se constitui no
pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis:
está, ao mesmo tempo, no fundamento de todas as
positividades, e presente, de uma forma que não pode
sequer dizer privilegiada, no elemento das coisas empíricas.
Esse fato – e não se trata aí da essência em geral do
homem, mas pura e simplesmente desse a priori histórico
que, desde o século XIX, serve de solo quase evidente ao
nosso pensamento – esse fato é, sem dúvida, decisivo para o
estatuto a ser dado às ciências humanas, a esse corpo
fechado de conhecimento (mas mesmo esta palavra é talvez
demasiado forte: digamos, para sermos mais neutros ainda,
a esse conjunto de discursos) que toma por objeto o homem
no que ele tem de empírico.
FOUCAULT. As Palavras e as Coisas, 1966, p. 361.

A partir de uma perspectiva histórica, cabe observar que o interesse


pelo passado não é prerrogativa da sociedade moderna e que em muitas
sociedades o culto dos ancestrais, do passado e da memória ocorria pela
tradição oral, criação de mitos e ritos explanatórios. De uma maneira ou de
outra, as sociedades resgataram e valorizaram os vestígios de sua história,
distante ou próxima. No entanto, é a partir do Renascimento, com as rápidas
mudanças sociais e econômicas que marcaram o fim do feudalismo no norte
da Itália fazendo com que muitas escolas tentassem justificar as inovações
políticas pela demonstração de que houve precedentes do pensamento
humanista, que as atividades de resgate e a prática do colecionismo se
apresentaram de maneira mais sistemática: Renaissance intellectuals turned to
surviving literature of the classical era to provide a glorious past for the emerging
Italian city states and to justify the increasing secularization of Italian culture. (...)The
appreciation of classical antiquity was not restricted to literature but rapidly extended
into the fields of art and architecture. These were of particular concern to the Italian
nobility and welthy merchants, who were rivaling each other as patrons of art. (...)
This development gradually made it clear that not only the written word but also
material objects surviving from the past could be important sources of information
about classical civilization (TRIGGER, 1989, p. 35-6).

136
É no século XVIII, todavia, que, instigados pela febre do colecionismo
e dos Gabinetes de Curiosidade, alguns autores tentaram sistematizar os
vestígios coletados: Esses cacos lhe (Conde de Caylus) serviam para análises
Físicas ou Químicas que ele solicitava aos cientistas – o físico Majault, o naturalista
Jussiu, o químico Rouelle – ou que ele próprio manipulava. Sucedeu que esses
exames o levaram a distinguir nos objetos que lhe mandaram, várias fraudes, pois
estas se multiplicavam para atender a uma demanda que se intensificava em uma
época em que tanta gente da Europa procurava as antiqualhas (BAZIN,1989, p. 75).
A obra de Louis Millian entitulada Antiquités nationales (1799) proporá uma
síntese dos modelos explicativos de relíquias e antigüidades (BAZIN, 1986, p.
99). Por sua vez, em Acerca da Imitação das Obras dos Gregos (1755),
Winckelmann formalizará alguns parâmetros do que veio a ser a Arqueologia
Clássica: o estabelecimento da História da Arte como um ramo dos estudos
clássicos foi a principal contribuição desse pesquisador alemão, o qual
fornecerá em sua obra a primeira periodização das esculturas gregas e
romanas, com uma meticulosa descrição dos trabalhos individuais e dos
fatores que influenciaram a arte clássica, clima, contexto social e
personalidades. Winckelmanns work shaped the future development of classical
studies, which until modern time have continued to be based on the dual
investigation of written documents and art history (TRIGGER, 1989, p. 38). A
proposição de Winckelmann de que uma obra de arte deveria ser avaliada de
acordo com a quantidade de luz que ela derramaria sobre um texto, sobre um
problema de história antiga ou quando servia como ilustração ao mito, à
fabula e à história, deu sustentação à Filologia, estrutura que inspirou e
dominou a Arqueologia até o início do século XIX onde quer que fossem
produzidos os estudos clássicos (BERENSON, 1947, p. 44).

Apesar de as obras produzidas na Antigüidade Clássica terem


seduzido o olhar dos intelectuais desde o Renascimento, foram as
expedições de Napoleão Bonaparte no final do século XVIII e início do XIX –
ao Egito e ao Norte da África – que contribuíram para ampliação dos

137
horizontes da pesquisa arqueológica24. Do mesmo modo, o interesse pelos
artefatos pré-históricos intensificou-se quando antiquários europeus
aprenderam a descrever e classificar monumentos e artefatos, escavar e
encontrar registros, utilizando vários métodos de datação, incluindo
estratigrafia, para estimar a idade dos achados. Alguns desses
colecionadores e comerciantes concluíram que, com base nas evidências
arqueológicas que eles tinham em mãos, os artefatos em pedra foram
utilizados na Europa antes do uso de metais e que o bronze provavelmente
foi precedido pelo ferro. Apesar da coleta aleatória, a atividade intensiva de
expedições e as tentativas de catalogação representaram um progresso
genuíno, trazendo ao estudo da Pré-história vestígios que foram coletados na
China, Japão e outras partes do mundo, como a África, antes da influência
Ocidental.

Um dos mais sérios empecilhos para o estabelecimento de uma


cronologia para a Pré História e, portanto, para a aquisição de um maior
conhecimento sistemático dos primórdios da civilização foi a crença de que
os objetos e os monumentos simplesmente ilustravam as lembranças das
realizações históricas do passado. Em conjunto com o dogma, partilhado com
os arqueólogos, de que o conhecimento histórico seria apenas acessado
pelas fontes escritas ou tradições orais e que sem estas seria impossível
reconstituir ou conectar os registros encontrados com as ações humanas dos
primeiros tempos da civilização25. The creation of prehistoric archaeology required
that antiquarians find the means to liberate themselves from this restricting
assumption (TRIGGER, 1989, p. 72).

O desenvolvimento de um estudo independente e sistemático da Pré-

24
Não podemos esquecer que sob o regime napoleônico as obras de arte conquistadas nas
expedições pela Europa, Ásia e África – os espólios de guerra – alimentaram os museus
franceses.A origem dos museus públicos também provém das ações desse Imperador: em
cada reino invadido se preocupou em fundar imediatamente um Museu, uma forma de
presentear o povo, tornando públicas as riquezas que anteriormente eram privilégio de uma
determinada classe social. (HOBSBAWM, 1987, p. 90-94).
25
O texto de Le Goff, publicado na Enciclopédia Einaudi em 1984, que trata do conceito
Documento/Monumento, esclarece a mudança no trato das fontes primárias e o uso dos
produtos das realizações humanas – artefato, objeto e estrutura – como primordiais à
investigação histórica.

138
história, distinto do antiqüarismo dos primeiros momentos, envolve dois
movimentos distintos que se iniciaram na primeira metade do século
dezenove:

a) O primeiro estudo sistemático originou-se na Escandinávia e foi


baseado na utilização de técnicas modernas para a datação das fontes
arqueológicas, tornando possível a compreensão dos períodos tardios da
Pré-história. Este desenvolvimento marcou o início da Arqueologia Pré-
histórica, que rapidamente foi capaz de se reafirmar, como a Arqueologia
Clássica, enquanto um significante componente para o estudo do
desenvolvimento humano.

b) A segunda corrente, que se iniciou na França e Inglaterra, foi


pioneira no estudo do período Paleolítico, não formulado anteriormente
devido aos dogmas católicos que colocavam a origem da humanidade
baseada das Escrituras e datavam o aparecimento do homem na terra a
partir da genealogia bíblica. The world was thought to be of recent, supernatural
origin and unlikely to last more than few thousand years. Rabbinical authorities
estimated that it had been created about 3700 BC, while Pope Clement VIII dated
the creation to 5199 BC and as late as the seventeenth century Archbishop James
Usher was to set it at 4004 BC. These dates, which were computed from biblical
genealogies, agreed that the world was only a few thousand years old (TRIGGER,
1989, p. 31).

Estudos arqueológicos, associados às pesquisas paleontológicas e


geológicas, puderam comprovar que o homem pré-histórico conviveu com
espécies extintas e que a datação bíblica da presença do homem na terra e
da própria formação do planeta seria inferior ao encontrado e comprovado
pelos estratos geológicos. A Arqueologia voltada para o Paleolítico, elaborada
a partir dos postulados acerca da origem da raça humana, foi apresentada
para a comunidade científica e para o público em geral a partir dos debates
promovidos pelos evolucionistas e criacionistas que orbitavam em torno da
publicação da obra Sobre a Origem das Espécies de Charles Darwin, em
1859. A teoria de Darwin sobre o processo de seleção e evolução natural das
espécies contribuiu para a libertação da ciência dos dogmas medievais

139
acerca da criação do mundo, fomentando as pesquisas arqueológicas e
paleontológicas. The obvious implication that humanity had involved from some
ape-like primate not only made the antiquity of the human species a burning issue
that had to be empirically studied but also made this investigation a vital part of the
broader controversy that was raging concerning Darwin’s theory of biological
evolution (TRIGGER, 1989, p. 94). Esta obra polêmica, ao mesmo tempo que
apresenta um outro caminho para a compreensão das origens da raça
humana, diferente daqueles propostos pelos dogmas religiosos, também
possibilita sua utilização para fins menos nobres do que entender
cientificamente as transformações na terra: a teoria evolucionista da seleção
natural das espécies deu margem às explicações de caráter racista,
promovendo a criação da noção da superioridade das raças.

A linha de pesquisa que se diferenciava da abordagem evolucionista


foi elaborada pela escola Dinamarquesa de Jürgensen Thomsen (1788-1865)
e propunha a criação de uma cronologia controlada independentement de
testemunhos escritos. As pesquisas de antiquários do século XVIII e os
conceitos progressistas do Iluminismo foram indispensáveis ao
desenvolvimento desta escola e a importância de suas realizações não pode
ser relegada, uma vez que a partir da metodologia proposta a Arqueologia
pode se firmar como um estudo que poderia prescindir de fontes escritas. Os
estudos em Paris e a organização de uma coleção de moedas romanas e
escandinavas em Copenhagen possibilitaram a Thomsen estabelecer
critérios de catalogação baseados nas datas, inscrições e estilo, a partir de
regiões e regências. It was also often possible to assign coins on which dates and
inscriptions were illegible to such series using stylistic criteria alone (TRIGGER,
1989, p. 74).

O principal problema de Thomsen foi definir conjuntos definidos por


critérios específicos a partir de uma série de estudos comparativos para
determinar a periodicidade de cada artefato. A noção de fases sucessivas –
pedra, bronze e ferro – não seria apenas especulação, uma hipótese
comprovada pelas evidências materiais. O método proposto por Thonsen
logrou classificar os objetos a partir do método comparativo, descritivo e de

140
observação, dispensando os testemunhos escritos para dar suporte às suas
teses: ao distinguir os artefatos a partir do suporte material, das marcas de
construção, estilo e das formas características específicas a cada região,
período ou sociedade, ele inaugurou uma nova maneira de abordar os
testemunhos arqueológicos. No passado, poucos arqueólogos procuraram
subdividir os artefatos da Pré-história em segmentos temporais, ficando as
subdivisões registradas baseadas largamente na intuição. Thomsen superou
este impasse pelo desenvolvimento de uma forma simples porém eficaz de
seriação, baseada em evidências científicas passíveis de comprovação.

Outros pesquisadores puderam comprovar as teorias de Thomsen,


como Worsaae (1821-1885) que, com subsídio da coroa dinamarquesa, pode
realizar expedições na Grã Bretanha e Irlanda e verificar que as categorias
propostas eram aplicáveis não apenas na Dinamarca, mas em toda Europa.
No entanto, enquanto a escola Dinamarquesa procurou identificar os avanços
tecnológicos, a escola Escandinava procurou, por meio das evidências,
verificar os avanços culturais. Nilson strongly believed in cultural evolution but,
unlike Thomsen, he was mainly interested in the development of subsistence
economies rather than technology (TRIGGER, 1989, p. 80). Worsaae também
teve um papel importante para a interdisciplinaridade forjada na Arqueologia:
apoiado na Geologia e na Biologia, desenvolveu pesquisas importantes
relacionadas aos sambaquis encontrados em Sjaelland.

Assim, na Europa, a Arqueologia Pré-Histórica desenvolveu-se no


século XIX primeiramente como um estudo evolucionista da História da
humanidade, revelando não apenas a complexidade tecnológica da indústria
da Idade da Pedra, mas que esta era foi testemunha do gradual
desenvolvimento da habilidade humana de controlar o ambiente. As duas
correntes – Dinamarquesa/Escandinava e Franco/Inglesa – foram
complementares entre si, sendo a primeira responsável pela classificação
dos artefatos encontrados no Neolítico, Idade do Bronze e Idade do Ferro, e
a segunda pela classificação do Paleolítico. Enquanto a Arqueologia
Paleolítica tendia a basear-se nas Ciências Naturais, a Arqueologia
Escandinava procurou aprender, por meio dos vestígios arqueológicos,

141
acerca das atividades sociais que ocorriam nos grupos humanos do passado.
Ambas foram produtos do Iluminismo ao acreditar que a evolução da cultura
material significaria desenvolvimento moral e social: Large numbers of middle-
class people, whose economic and political power was increasing as result of the
industrial Revolution, were pleased to view themselves as a wave of constitution of
the universe. White Americans were happy to share this optimistic view but were not
prepared to extend it to embrace the native people whose lands they were seizing
(TRIGGER, 1989, p. 109).

Sob a égide do nacionalismo crescente após as guerras napoleônicas,


os cientistas e intelectuais se apoiaram no evolucionismo para alegar que as
características nacionais eram o caminho para a distinção entre os grupos
humanos, em lugar da crença do século XVIII nas semelhanças intelectuais e
emocionais entre os diferentes grupos sociais e na relativa relação das
influências ambientais como causa das diferenças físicas e comportamentais.
Estas idéias ganharam expressão nos escritos do Conde de Gobinau (1816-
1882), especialmente no trabalho intitulado Essai sur l’inégalité des races
humains (1863), onde é enfatizado que as civilizações foram determinadas
pela sua composição racial e que quanto mais as características das
civilizações avançadas forem diluídas, mais se encaminhará para a
estagnação e a corrupção. Em particular, este membro da aristocracia
francesa proclama que as sociedades européias iriam florescer apenas se
seus membros evitassem a miscigenação com os não-europeus26. Para
muitos pesquisadores, a cultura das sociedades avançadas foi vista como
uma operação do processo de seleção natural, o qual produzia indivíduos
possuidores de uma inteligência superior e de um maior autocontrole. A visão
darwiniana sobre a natureza humana foi incorporada na Arqueologia pré-
histórica por John Lubbock (1834-1913), por meio da obra Pre-historic Times,
as Illustrated by Ancient Remains, and the Manners and Customs of Modern
Savages. The Darwinian explanation of the racial differences that was popularized

26
Os ensinamentos de Gobineau influenciaram o racismo de Richard Wagner a Adolf Hitler e
na América foi popularizado em publicações, como The Passing of the Great Race (1916) de
Madison Grant.

142
by Lubbock reinforced the racist views inherent in colonial situations and which had
already influenced the interpretation of archaeological evidence in the United
States(TRIGGER, 1989, p. 145).

Alfred Wallace (1823-1926) que viveu em algumas sociedades tribais


na América do Sul e Sudeste da Ásia, com base em suas observações,
questionou essa teoria ao afirmar que a inteligência, habilidade inata ou
capacidade mental independia de um processo de seleção natural e que os
povos concebidos como primitivos não eram diferentes dos povos europeus.
(BINFORD, 1962, p. 217-25).

Por volta de 1880, com o crescimento dos problemas econômicos e


sociais na Europa Ocidental e com o advento da Revolução Industrial, o
conceito de progresso e evolução social começou a ser questionado, da
mesma maneira que a supremacia política das classes médias foi sacudida
pelos primeiros movimentos operários. A desilusão acerca do progresso,
concomitante com a manutenção da crença de que o comportamento
humano era biologicamente determinado, promoveu um certo ceticismo em
relação à humanidade. Friedrich Ratzel (1844-1901) rejeitou o conceito da
psique única, tentando demonstrar que algumas invenções difundiram-se de
uma sociedade para outra e que cada sociedade possuía uma identidade
única que deveria ser entendida em seus próprios termos. Isto envolve a
aceitação de duas doutrinas: relativismo cultural, que nega a existência de
um padrão universal que poderia ser utilizado para comparar os níveis de
desenvolvimento ou valor de diferentes culturas e o particularismo histórico, o
qual percebe cada cultura como um produto de uma seqüência única de
desenvolvimento na qual quanto maior a chance de promover operações de
difusão, maior a possibilidade de mudanças. The only way to explain the past
was to determine the successive idiosyncratic diffusionary episodes that had shaped
the development of each culture (TRIGGER, 1989, p. 152). A transição do modelo
de pensamento evolucionista para o difusionista foi lenta e gradual, sendo
que o último carregava resíduos da explicação anterior.

No entanto, os arqueólogos reconhecidos como evolucionistas – como


Edward Tylor e Lewis Henry Morgan – não ignoravam os princípios do

143
difusionismo, ao contrário, percebiam a interdependência de ambas visões.
As a matter of fact, they regarded it as a major process of culture changes among
peoples. And, far from seeing an antithesis between evolution and diffusion, they
saw that these two processes work harmoniously together, the one originating
culture traits, the other spreading them far and wide (WHITE, 1945, p. 341).

O crescimento do interesse da variação e difusão cultural nas


Ciências Sociais promoveu uma estrutura que permitiu que os arqueólogos
expusessem evidências tanto das variações espaciais e temporais quanto
dos dados acumulados por meio da Europa. A crescente ênfase na
distribuição espacial, tanto quanto a cronologia dos achados arqueológicos,
determinou uma mudança de um modelo de observação que se preocupava
com a questão evolucionista para um modelo que buscava a orientação
histórica das transformações: Oscar Montelius (1843-1921) foi um dos
grandes nomes desta nova abordagem caracterizada por um método
tipológico que propunha um refinamento da metodologia serial proposta por
Thomsen. Seguindo esta outra linha de pensamento, os arqueólogos da
segunda metade do século XIX mergulharam nas teorias das Ciências
Sociais, História, Antropologia e Etnologia como uma maneira de percepção
global, a partir de um conceito holístico de cultura, das sociedades.

O positivismo e o imperialismo do século XIX influenciaram


sobremaneira os rumos da formação dos modelos de pensamento da
Arqueologia deste período. No entanto, a abordagem cultural-histórica da
segunda metade desse século deve-se à construção de uma ótica
diferenciada a partir da teoria marxista e do posicionamento de muitos
intelectuais contrários ao racismo das teorias evolucionistas: a busca de
modelos específicos de sociedades pré-históricas não ficou restrita apenas à
Europa, mas cada país procurou, nos vestígios do passado, encontrar sua
própria identidade, principalmente aqueles recém independentes. China e
Japão procuraram entender sua própria cultura, levantar sua memória e sua
História. Com o processo revolucionário chinês, a Arqueologia tornou-se uma
atividade dirigida pelo Estado. Durante a revolução cultural, manteve-se
como um instrumento importante de educação política. Após a Segunda

144
Guerra, a Arqueologia proporcionou uma visão sobre a cultura japonesa
ajudando a preencher o vácuo deixado pelo militarismo anterior. For many
Japanese, archaeological finds provide tangible contact with the past and help to
reinforce a sense of stability in a period of great social, cultural change and
uncertainly (TRIGGER, 1989, p.179).

No México, o passado foi um instrumento de manipulação após a


conquista espanhola em 1519: com o peso da religião católica e do poder
civilizatório europeu, as sociedades pré-colombianas foram obrigadas a
abandonar seus cultos, sua arte e cultura e durante todo esse período a
negar suas realizações. During the struggles preceding Mexican independence in
1821, Spanish officials continued to discourage the study of the pre-hispanic period,
but creoles turned to it as a source of inspiration and national identity (TRIGGER,
1989, p.180). Contudo, após a independência, as ruínas astecas se
transformaram em orgulho nacional, sendo possível perceber ainda na
atualidade a consciência de um passado que é motivo de autoestima, dada a
complexidade da arte e da arquitetura pré-colombiana, realizações que
colocam por terra a idéia de superioridade da raça européia fomentada desde
a teoria evolucionista de Darwin.

No início do século XX, a Arqueologia européia começou a alinhar-se


com a História e foi vista como uma fonte de conhecimento acerca do
desenvolvimento de alguns povos na Pré-história: estes achados foram
importantes como defesa das identidades nacionais, em oposição aos
conflitos de classes que se desenvolveram na segunda metade do século
XIX. Porém, esta mesma Arqueologia que poderia encobrir os conflitos de
classe, serviu de sustentação para as campanhas de libertação das colônias
européias, fazendo com que desejassem aprender mais sobre seu passado.
Ethnic and national groups continue to desire to learn more about their prehistory
and such knowledge can play a significant role in the development of group pride and
solidarity and help to promote economic and social development. This is particularly
important for peoples whose past has been neglected or denigrated by a colonial
approach to archaeology and history(TRIGGER, 1989, p. 205).

A partir de 1930 a Arqueologia soviética despontou como pioneira nos

145
estudos das questões sociológicas aplicadas às fontes arqueológicas, pois a
orientação marxista após a Revolução Russa de 1917 possibilitou explicar as
transformações encontradas nos vestígios arqueológicos a partir de uma
ótica que abordava os fatores sociais internos àquela comunidade.
Paulatinamente, fatores externos como movimentos de migração e difusão
cultural tornaram-se imprescindíveis à compreensão dos mecanismos de
transformação social. The political and economic influences that adjacent societies
exert upon another can be analyzed easily in terms of a traditional Marxism
framework by enlarging the scale of the unit being studied and thereby treating a
number of interacting cultures as parts of a world system (TRIGGER, 1989, p. 242).

Em oposição à abordagem marxista, a Arqueologia Ocidental


representada pelas pesquisas inglesas, francesas e americanas se
desenvolveu em torno do pensamento funcionalista, no qual as
interpretações das fontes arqueológicas ocorrem a partir das relações entre a
cultura e o ambiente, de acordo com o resultado das análises como os
artefatos foram feitos e utilizados. A proliferação de uma visão antropológica,
oriunda dos EUA e Inglaterra, iniciada em 1930, encorajou os arqueólogos a
perceberem as culturas pré-históricas como internamente diferenciadas,
porém com alguns níveis de estilos de vida integrados, promovendo a
consideração dos fatores internos e externos nos processos de mudança.
Fundamentados no pensamento antropológico de Durkheim (1858-1917) e
Malinowski (1884-1942), o funcionalismo na Arqueologia ocidental – também
conhecido como Arqueologia Processual – procurou um paradigma válido
que pudesse abarcar tanto o conceito de cultura quanto o caráter descritivo
dos testemunhos. Malinowski’s theory of needs is central to his functional approach
to culture, it is the theoretical statement linking the individual and society. It is a
simple notion: culture exists to meet the basic biological, psychological, and social
needs of the individual. But the theory seems unduly simplistic if we do not
understand Malinowski’s notions of function, the hierarchy of needs, and the role of
symbolism, and if we ignore the intellectual context of Malinowski’s thinking
(MOORE, J.D. 1982, p.132).

O mesmo se aplica às abordagens de Gordon Childe (1893-1957),

146
arqueólogo australiano que reafirmou o papel da cultura na construção do
paradigma arqueológico e inaugurou uma abordagem mais científica,
excluindo as tradições racistas anteriores. Influenciado pelas idéias
socialistas, procurou nas estruturas de produção das sociedades pré-
históricas a chave para a organização social, sendo o processo de seleção
dos artefatos estudados regido por uma orientação funcionalista. Ele propôs
que potes, ornamentos e enterramentos rituais tendiam a refletir melhor os
gostos locais, portanto poderiam ser utilizados como fontes para verificar a
coesão social e identificar determinados grupos étnicos; enquanto armas e
ferramentas, além de outros instrumentos de tecnologia, eram rapidamente
difundidos de um grupo a outro, por transformação ou cópia, tornando-se
portanto vestígio menos evidente para a identificação de um grupo (DANIEL
& CHIPPINDALE, 1982, p.12-19).

O modelo histórico-cultural proposto por Childe, originado na obra de


Gustav Kossina (1858-1931), colocou este pesquisador na vanguarda da
pesquisa arqueológica moderna. Para Childe, os arqueólogos deveriam buscar
descobrir culturas homogêneas, culturas essencialmente conservadoras. (...)
Semelhanças são consideradas sinais de proximidade social e espacial,
dissemelhanças são índices de distância, de modo que os pressupostos da
existência de cultura e identidade como algo monolítico e delimitado são
confirmados pelos próprios métodos de investigação (FUNARI, 2000, p. 2).

A abordagem funcionalista mantém-se até a década de 60, quando


começa a surgir um novo posicionamento, apoiado tanto no estruturalismo de
Lévi-Strauss27, quando nas novas abordagens marxistas: tanto a Arqueologia
Soviética quanto a Americana recebem uma certa influência das teorias

27
O Universo tem significado bem antes que se começasse a saber o que ele
significava...Porém mantém-se uma situação fundamental e que depende da condição
humana, isto é, que o homem dispõe, desde sua origem, de uma totalidade de significante
cuja atribuição a um significado –determinado como tal sem ser, para tanto, conhecido – lhe é
bastante incômodo fazer. Existe sempre uma inadequação entre os dois, somente absorvida
pelo entendimento divino, e que resulta na existência de uma superabundância de significante
em relação aos significados sobre os quais ela pode se assentar, Lévi-Strauss. Sociologie et
Anthropologie, 1950, p. 48-49 (texto traduzido)

147
soviéticas da década de trinta e da antropologia francesa de cinqüenta.
Ambas abordagens foram baseadas na visão evolucionista do processo
cultural e pensadas para entender as regularidades exibidas nesse processo.
Eles acreditam que estas regularidades eram fortes e poderiam ser
estudadas pelo uso da estrutura materialista – paradigma materialista:
migração e difusão eram colocadas de lado em favor da tentativa de explicar
as transformações que ocorriam dentro dos sistemas culturais durante longos
períodos de tempo. Os estudos da tipologia tradicional que buscavam
elucidar as variações cronológicas e espaciais da cultura material foram
relegados como ultrapassados e houve um aumento considerável das
interpretações funcionalistas das fontes arqueológicas.

Mesmo com as semelhanças, as abordagens americana e soviética


tiveram diferenças marcantes: a Nova Arqueologia abarcou várias formas de
determinismo ecológico e demográfico, pressupondo que o maior fator de
transformação encontrava-se situado fora do sistema cultural, tratando as
realizações humanas como conseqüências passivas das forças superiores ao
seu entendimento e controle; a outra via, o materialismo dialético, apesar de
não negar a importância dos fatores ecológicos, colocava as causas das
transformações culturais diretamente vinculadas ao domínio social, o qual
estabelecia as formas de competição em relação ao controle do poder entre
os diferentes grupos de uma mesma sociedade. Apesar da Nova Arqueologia
afirmar a necessidade de estudar todos os aspectos dos sistemas culturais,
as publicações na área demonstram que seus estudos concentram-se nos
níveis de subsistência, comércio e nos níveis menores de organização social.

As pesquisas de Binford normalmente tratam das questões de


tecnologia e subsistência relacionadas às adaptações com o ecossistema.
Major aspects of human behavior, such as religious beliefs, aesthetics, and scientific
knowledge, received little attention. The scope of the New Archaeology does not
appear to have expanded beyond the already embraced by the ecological and
settlement-pattern approaches that developed in the 1950s. The fields investigated
by the New Archaeology also fall within the lower echelons of Hawkes’ hierarchy,
although Binford rejected the claim that this hierarchy established inevitable

148
restrictions on the archaeological study of any aspect of human behavior (TRIGGER,
1989, p.327).

A Nova Arqueologia dividiu com o neo-evolucionismo a crença de que


os sistemas culturais eram caracterizados pelo alto nível de uniformidade e
que era possível descrevê-los pela identificação dos fatores ecológicos que
determinaram o comportamento humano. Desse modo, as transformações
culturais seriam mera conseqüência das adaptações sociais ao ecossistema,
uma vez que as pressões econômicas e sociais são mais difíceis de serem
reconhecidas pois se encontram situadas nas esferas da fé e dos valores.
Portanto, as técnicas adotadas pela Nova Arqueologia seriam mais eficazes
ao tratar de aspectos objetivos, quantitativos e descritivos, considerando as
questões subjetivas vinculadas ao processo cultural de difícil acesso e
comprovação. As discussões sobre as limitações dos sistemas explicativos
tradicionais e do que foi chamado New archaeology colocam em evidência as
falhas de sistemas herméticos totalizantes: a Nova Arqueologia, apoiada
cada vez mais nas disciplinas exatas, muitas vezes se esquecem que por traz
dos objetos existem sujeitos, coletividades, culturas; por sua vez a
Arqueologia tradicional, apoiada na subjetividade, não conduz à investigação
clara, de bases científicas sólidas e testemunhos acurados. Diante deste
impasse Rowlands afirma: objetividade e subjetividade são opostos um ao outro
como escolhas excludentes, quando, no final de contas, é sua relação interna, de
uma com a outra, em um único campo de investigação, que precisa ser levada
adiante (apud FUNARI, 1994, p. 4).

A reação objetivista da New Archaeology ou Arqueologia Processual


situa-se no extremo oposto da perspectiva investigativa do início deste
século: a refutação total de abordagens histórico-culturais – base da
Arqueologia Histórica – colocou em risco a legitimidade social da pesquisa
arqueológica. Repetindo uma frase colocada no início deste trabalho, o
perigo das teorias que pretendem questionar a postura de outras linhas –
anteriores ou contemporâneas – é de, literalmente, jogar fora a criança junto
com a água da bacia: ao destruir as bases hipotéticas ou teóricas, desfaz-se
inclusive dos argumentos, conceitos e proposições válidas. Passado o

149
impacto da aversão às análises pautadas por parâmetros subjetivos – como
mentalidade, psicologia ou adaptação ao meio –, a ciência arqueológica volta
a discutir as abordagens histórico-culturais. Quando a racionalidade e o
positivismo da objetividade absoluta, tomada como verdade axiomática, não
são capazes de responder por meio dos modelos propostos às perguntas
impostas, os cientistas partem em busca de novas perspectivas, aprendendo
com os erros e os acertos das teorias antagônicas. Bruce G. Trigger, Ian
Hodder Trigger, Ian Bodder, além de outros cientistas trabalham com o que
ficou conhecido como Arqueologia Pós-Processual, uma nova perspectiva
que abandona os modelos universais de comportamento.

Contudo, o próprio termo Pós-Processual é amplo, tendendo a


manifestar certos acordos epistemológicos entre tendências díspares ou
realizar incursões em outras áreas de saber, como a preocupação das
Ciências Humanas e a linguagem manifesta nesta tendência. Neste sentido, a
Arqueologia Pós-Processual incorpora essa preocupação com a discursividade do
objeto e do sujeito (FUNARI, 1995, p. 5). A utilização dos prefixos pré ou pós nas
nomenclaturas científicas determina uma existência ainda amorfa, trazendo
no seu interior elementos do que foi ou virá a ser, sem, no entanto manifestar
amadurecimento pleno ou uma nova forma de pensamento.

As fontes arqueológicas têm sido acumuladas constantemente por


muitos séculos e novos dados são tradicionalmente coletados como um
critério de avaliação das interpretações recentes, ainda que as fontes
coletadas e os métodos escolhidos sejam determinados pelos critérios
daquilo que o pesquisador acredita ser relevante, refletindo nas proposições
teóricas, ambos – dados e interpretação – compactuam com as influências
sociais. Muitas vezes, as fontes coletadas no passado nem sempre
respondem aos problemas considerados importantes no presente e isso não
é porque os arqueólogos do passado não estavivessem familiarizados com
as técnicas mais sofisticadas, mas porque nem sempre consideravam
relevantes os problemas sociais ora apresentados. Hence, while archaeological
data are being collected constantly, the results are not necessarily as cumulative as
many archaeologists believe. Indeed, archaeologists often seem to build more on

150
what their predecessors concluded about the past than on evidence on which these
conclusions were based (TRIGGER, 1989, p.16). A pesquisa arqueológica,
também é determinada pelos recursos disponíveis, contexto institucional de
apoio, sejam sociedades científicas ou instâncias governamentais, além das
estruturas legais, acadêmicas e tecnológicas dadas. Não apenas em relação
ao meio social de onde parte o pesquisador, mas também ao meio onde se
realiza propriamente a pesquisa.

Até o início do século XX, poucos arqueólogos recebiam formação,


pois vinham de outras áreas de conhecimento: no século XIX um número
crescente de pesquisadores em Arqueologia provinha das ciências exatas e
biológicas. Mais recentemente, um grande número de arqueólogos
especializados em Pré-história procura suporte nas áreas de Antropologia e
História, mas a interpretação arqueológica também tem sido influenciada pelo
desenvolvimento das ciências biológicas e exatas. Nas últimas décadas, é
comum a parceria entre especialistas das áreas de ciências naturais e
Arqueologia: o desenvolvimento da técnica de datação pelo radio-carbono e
outras técnicas geocronológicas forneceu à Arqueologia pela primeira vez um
método universalmente aplicável, possibilitando o estabelecimento de
manifestações específicas; a análise de pólen tem proporcionado novas
visões sobre o clima na Pré-história e suas mudanças ambientais, enquanto
proporciona elementos de identificação do movimento de certos tipos de
alimentos.

As interpretações das fontes arqueológicas têm sido profundamente


afetadas pelas transformações nas teorias acerca do comportamento
humano e pelas revisões epistemológicas colocadas pelas Ciências
Humanas, principalmente vinculadas à História, Ciências Sociais,
Antropologia e Etnologia, disciplinas com as quais a Arqueologia admite um
estreito diálogo. Conceitos teóricos derivados da Geografia, Economia,
Sociologia e Ciências Políticas influenciam os esquemas interpretativos, tanto
diretamente quanto por meio da Antropologia e da História. Problemas
colocados pela Museologia, Pedagogia, Documentação e Ciência da
Conservação ficam, ainda, distantes dos debates conceituais. A palavra chave

151
do ensino de História que se pretenda transformador da sociedade, que busca a
formação de uma cidadania crítica é pluralismo (FUNARI, 1997, p. 2). O mesmo
ocorre com as pesquisas arqueológicas, se elas não se propuserem a
contribuir para a transformação social, por meio da difusão do conhecimento
e da educação, continuarão restritas às publicações específicas, às falas
exclusivas de um arqueólogo para outro arqueólogo.

Não é possível esquecer que o desenvolvimento da Arqueologia


admite uma correspondência com o aumento do poder da classe média na
sociedade ocidental: apesar de os patronos da Arqueologia Clássica
tomarem parte da aristocracia quinhentista, os arqueólogos dessa época
eram membros da classe média. Além do mais, grande parte do interesse em
relação às pesquisas arqueológicas provém da busca de educação, formação
e aquisição de conhecimento por parte da classe média, que procurou
reafirmar sua distinção no corpo social – política, econômica e ideológica –
sob os auspícios do pensamento do século XVII, o qual proclamava o saber
científico como uma forma de poder distinto das amarras do saber teológico.

Isso não significa que a classe média seja um fenômeno unitário, ao


contrário, os interesses da classe média variam de país para país, e mesmo
dentro de um mesmo país, de um estrato social para outro, dependendo de
posicionamentos conservadores ou avançados. Isso significa que a
Arqueologia não está associada com a totalidade dos valores burgueses,
mas apenas com uma parte deles, vinculados à erudição, ao conhecimento e
à compreensão das questões relacionadas à formação social. As relações
entre os conceitos e os interesses são contextualmente mediados por um
grande número de fatores: econômicos, políticos, ideológicos, ainda que a
classe média proporcione um foco importante para examinar a relação entre
a Arqueologia e a sociedade. À Teoria Arqueológica falta uma leitura mais
profunda da própria proposta arqueológica de Foucault: investigar os
subterrâneos desta produção científica é encontrar os nexos, os eixos, os
ninhos das formulações e dos posicionamentos teóricos. A Arqueologia do
século XIX era uma área exclusiva da elite – intelectual e financeira –, trazia
em seu cerne os conceitos e preconceitos, as visões de mundo e de mundos

152
desta mesma camada social; atualmente, apesar de ainda excludente, a
universidade já não traz em seu interior condes, duques, barões.

153
4.2. ICOMOS: a consciência da preservação de
monumentos e sítios

Imbued with a message from the past, the historic


monuments of generations of people remain to the present
day as living witness of their age-old traditions. People are
becoming more and more conscious of the unity of human
values and regard ancient monuments as a common heritage.
The common responsibility to safeguard them for future
generations is recognized. It is our duty to hand them on the
full richness of their authenticity
The Venice Charter, 1964.

O ICOMOS é uma organização internacional, não governamental


dedicada à Ciência da Conservação de monumentos históricos, sítios
arqueológicos e áreas naturais, atuando em parceria com a UNESCO,
Centros de Pesquisa e Órgãos Estaduais. Fundado em 1965, como resultado
da adoção da Carta de Veneza – Charter for the Conservation and
Restauration of Monuments and Sites – firmada no II Congresso Internacional
de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, realizado em Veneza,
no ano anterior, o ICOMOS organiza-se por meio de Comitês Nacionais.
Tanto quanto o ICOM e o ICCROM, o ICOMOS surge como conseqüência
política de cientistas e intelectuais do pós-guerra, preocupados com a
preservação de sítios e monumentos. ICOMOS was created in 1965 in Warsaw
just one year after the elaboration of one of the most recognized international
charters on the conservation and restoration of monuments and sites, known as the
Venice Charter. As one of the founders of ICOMOS and the main drafter of the
Venice Charter, Raymond Lemaire, wrote years later: “ICOMOS was conceived as
an organization aimed at promoting on an international level the conservation,
protection, utilization, and valorization of monuments, ensembles, and sites.
Following the accepted concept, which was very innovative at the time, the objective
could only be reached through a large interdisciplinary collaboration. It was therefore
necessary to gather within one single organization all institutions, organizations, and
people professionally interested in the protection of our historic architectural and
urban heritage. This professional aspect appeared to us very important, since it

154
guarantees the scientific value of its activity, thereby giving it authority”
(BOUCHENAKI, 1999, s.p.).

O intelectual emerge sob um fundo cultural e sob uma forma de papel


político-social no final do XIX, em oposição ao status intelectual do início
daquele século, quando o ofício de pensar é privilégio de poucos e as coisas
do espírito permanecem envoltas pela aura do ininteligível, do inacessível. A
partir de uma nova concepção da palavra “intelectual”, a atividade reflexiva
deixa de ser uma atividade voltada única e exclusivamente para as coisas do
espírito e passa a fazer parte do mundo físico, material. O pensamento
emerge como uma maneira de analisar o mundo real, sobre as grandes
causas, problemas sociais e políticos (MORIN, 1979, p. 13).

O ICOMOS, sediado em Paris em um momento histórico específico, a


década de sessenta, foi testemunha da independência de dezessete países
africanos e manifestações contra a discriminação racial; a construção do
muro de Berlim (1961); o assassinato de Kennedy e Luther King; a chegada
do homem ao espaço e o início da Guerra do Vietnã. O aparecimento do
instituto ocorreu concomitante ao do surgimento da pílula anticoncepcional,
dos Beatles e do movimento de contracultura, da mesma maneira que viveu
uma das épocas mais efervescentes do pensamento filosófico francês. Os
primeiros membros que fizeram parte dessa organização eram
provavelmente oriundos das mais divergentes linhas de pensamento, do
positivismo ao estruturalismo; da fenomenologia do sujeito ao marxismo, mas
todos, com certeza, possuíam enraizado um conceito gerado no século
anterior, o conceito de cultura: that complex whole which includes knowledge,
belief, art, morals, law, custom, and other capabilities and habits acquired by man as
a member of society (Edward Tylor, apud TRIGGER, 1989, p.162).

Desde sua fundação, os Comitês Nacionais e Internacionais eram


compostos por profissionais independentes de áreas afins ao objetivo
proposto – conservadores, arqueólogos, arquitetos, engenheiros, químicos,
educadores –, que se uniram com o intuito de trocar experiências –
investigação, docência, projetos, materialização, difusão, conscientização,
comunicação –, auxiliando uns aos outros na composição de modelos de

155
atuação similares, parâmetros e formas de organização comuns, a partir de
experiências positivas e negativas, com o intuito de criar um sistema de ação
global, consciente, integrado e voltado à conservação patrimonial e à
identidade cultural de cada país. Até 1997, estes comitês eram encontrados
em aproximadamente noventa países, uma projeção semelhante ao ICCROM
e pouco abaixo do ICOM, que abarca 116 países atualmente. Responsável
pela World Heritage Conventions, em parceria com a UNESCO, promove a
nomeação dos sítios e monumentos que deverão constar na World Heritage
List (WHL). Por meio de seus 16 Comitês Internacionais, procura estabelecer
parâmetros internacionais de preservação, restauração e gerenciamento de
sítios culturais.

A partir de congressos, encontros e assembléias gerais, o ICOMOS


discute e sanciona cartas de recomendações, códigos de atuação ética, além
dos próprios dispositivos legais da própria organização. Em 1978, foi firmado
o Estatuto Geral, proposto na V Assembléia Geral de Moscou, que se tornou
o documento máximo de orientação desta associação. Percebe-se que, da
proposta à formulação efetiva de seus estatutos, há um espaço de quatorze
anos. Ao retroceder, no entanto, é possível perceber-se que, desde a Carta
de Atenas para a Restauração de Monumentos Históricos de 1931, fazia-se
já presente a necessidade de um organismo voltado para a preservação de
sítios.

No decorrer do século XX, foi possível observar a criação, o


amadurecimento e a regulamentação das entidades preservacionistas. Entre
a idéia, a junção dos indivíduos, a formulação dos conceitos e a
materialização do organismo, há um longo tempo para seu amadurecimento.
Cabe ressaltar que para a Arqueologia, a década de setenta foi marcada pela
preocupação com as questões sociais do ponto de vista Cultural-Histórica,
com as obras de Piggot, Hawkes e Griffin; pela abordagem funcionalista de
Childe; pelas incursões da Arqueologia Processual de Binford, Clarke e
outros; pelas teorias de Hodder, Leone e Leroi-Gourhan na linha do Pós-
Processual, como é possível observar no quadro cronológico proposto por
Trigger (1989). Por outro lado, as áreas de Filosofia e da História admitiam a

156
convivência de várias correntes de pensamento, do estruturalismo de
Foucault ao desconstrutivismo de Derrida; da História das Mentalidades de
Vovelle e Le Goff ao pensamento do etnólogo Pierre Clastres, o qual colocará
as questões filosóficas no campo antropológico contemporâneo
(DESCAMPS, 1986, p. 37).

Apesar de as reflexões dessa época alimentarem o sentido da


liberdade – os movimentos de contestação estudantil de 68 personificados na
figura do poeta John Cage –, a Europa continua sendo o centro do universo
acadêmico e cultural, sendo permitida nesse jogo somente a entrada
daqueles que seriam então o centro do universo econômico, como Estados
Unidos e Canadá. Desde a fundação do ICOMOS, a maioria de suas
Assembléias Gerais ocorreu na Europa e Estados Unidos. Em 1965, realizou-
se em Cracóvia a I Assembléia Constitutiva; posteriormente realizaram-se
Assembléias Gerais em Oxford (1969), Budapest (1972), Rothenburgo
(1975), Moscou (1978), Roma (1981), Dresden (1984), Washington (1987),
Lausana (1990) e Colombo (1993). A exemplo do ICOM e ICCROM, os
encontros do ICOMOS permanecem trienais.

Na América Latina, foi criado em 1973 o Comitê Argentino do


ICOMOS. Concentrado nas problemáticas regionais, o Centro estabelece
parcerias com a Comissão Nacional de Museus, Monumentos e Sítios
Históricos; o Museu Histórico do Banco da Província de Buenos Aires Dr.
Arturo Jauretche; o Centro para Preservação do Patrimônio Urbano Rural,
além de grandes centros universitários argentinos. Sua atuação no continente
sul-americano se dá principalmente nas zonas do sul do Brasil, Paraguai e
Uruguai. Os problemas territoriais com o Chile têm consistido em um grande
impasse no intercâmbio de atividades entre esses países, mesmo com a
semelhança na forma organizacional para a preservação – Direção Geral de
Museus, Arquivos, Bibliotecas, Monumentos e Sítios, subdividida em comitês
de áreas afins.

A diretiva do ICOMOS-Argentina tem se empenhado na formação de


grupos de trabalho a partir de áreas territoriais, campos e especialidades.

157
Devido à maior concentração de sítios arqueológicos e monumentos
históricos nas áreas rurais – oriundos das Missões Jesuíticas e construções
coloniais espanholas – foram realizados vários encontros temáticos sobre
estas áreas específicas, na década de 80.

Neste mesmo período, discutia-se nos Estados Unidos uma política de


revitalização e preservação de Centros Históricos e Áreas Urbanas –
Preservations Charter for the historic Tonws and Areas of U.S. (1987) –,
devido ao crescimento desordenado das grandes cidades, destruindo
complexos arquitetônicos de importância histórica e cultural. O crescimento
urbano norte-americano e a expansão da agricultura e da pecuária na esfera
macroeconômica nas áreas sul-americanas determinam preocupações
distintas, ainda que ambas tenham sido resultantes do mesmo progresso não
controlado. Nesse momento, a história social é determinante entre os
historiadores americanos, podendo ser considerada o centro de interesse da
academia americana; a escola da cultura material também contribuirá para o
aumento do nível de pesquisas profissionais. Considerando-se o caso das
publicações especializadas na área, como por exemplo os periódicos Material
Culture e Winterthur Portfolio, que trazem o termo “cultura material” como
parte de seus cabeçalhos, enfatizando a pesquisa histórica de muitas
disciplinas que integram os artefatos em seus contextos culturais. A que se
atribui o interesse no estudo das coisas americanas? Quais são as bases dos
estudos da cultura material? O que pode ser importante para a história social
americana? Thomas J. Schlereth coloca a Cultura Material e a História Social
lado a lado, situando o debate em torno dos paralelos e das desavenças
entre a história intelectual e a nova história social. O sentido das evidências
históricas como promotoras de uma consciência-própria, base do interesse
comum, parece vir de encontro à necessidade de preservação de edifícios
históricos em um país, cuja memória recente foi sendo demolida pelos
empreendimentos imobiliários ou pelo abandono público.

Por sua vez, na década de noventa, a maior parte dos debates foi
orientada para a discussão de questões relacionadas ao papel educativo dos
centros de pesquisas arqueológicas. Além das questões de extroversão, a

158
própria educação dos profissionais que participam de expedições em campo
tem sido um dos pontos-chave na preservação de áreas arqueológicas. Em
1995, foi elaborado um Guidelines for Education and training in the
Conservation of Monuments, Ensembles and Sites . Dois anos mais tarde,
em parceria com o ICCROM, foi realizado no Chile um curso de três meses
de duração sobre aspectos da Conservação nos trabalho de campo de sítios
históricos. It is widely recognized that a knowledge and understanding of the origins
and development of human societies is of fundamental importance to humanity in
identifying its cultural and social roots. The archaeological heritage constitutes the
basic record of past human activities. Its protection and proper management is
therefore essential to enable archaeologists and other scholars to study and interpret
it on behalf of and for the benefit of present and future generations. The protection of
this heritage cannot be based upon the application of archaeological techniques
alone. It requires a wider basis of professional and scientific knowledge and skills
(ICOMOS, 1990, p. 1).

Além do intercâmbio com profissionais de Arquitetura, Ciência da


Conservação, Física ou Química, os arqueólogos têm a obrigação de
desenvolver ações conjuntas com pedagogos, museólogos e
documentalistas. Antropólogos e herdeiros étnicos-culturais das sociedades
pesquisadas são de suma importância, principalmente no que se refere ao
estudo de elementos místicos, religiosos ou enterramentos. A relação com
sociedades ainda vivas é um dos pontos mais delicados das pesquisas
arqueológicas e antropológicas.

A remoção de ícones de valor cultural inestimável para longe de seus


santuários de origem ou a invasão de cemitérios não estão completamente
solucionadas neste intrincado meio cultural ocidental. Em um artigo sobre as
novas relações estabelecidas entre os Museus americanos e os nativos28
americanos, havaianos ou do Alaska, a partir da legislação de 1990 (§5237) –
The Native American graves Protection and Repatriation Act –, Elizabeth

28
.O termo native, natural, originário parece ajustar-se melhor à nomenclatura de etnias
sócio-culturais organizadas. O termo indígena ou índio vêm carregados da visão pejorativa
dos portugueses em relação ao outro, homogeneizando toda cultura que não fosse a européia
a partir do XV.

159
Welsh (1991, p. 1) tece considerações sobre os efeitos dessa lei nas novas
posturas éticas de antropólogos, arqueólogos e conservadores americanos. A
partir dessa lei, povos nativos têm o direito de obter informações sobre
artefatos, esqueletos e qualquer vestígio cultural pertencente à sua etnia
alocado em museus e demais instituições americanas. Esta lei também
determina que objetos adquiridos de forma ilícita ou elementos de valor
simbólico irrefutável deverão ser repatriados ao seu meio de origem.

Cabe lembrar o redirecionamento da Antropologia e da Etnologia a


partir da década de sessenta. Pierre Clastres, partindo de pesquisas
explanatórias na América Latina se pergunta: Como é que os homens
puderam desejar a servidão? Como pôde nascer o Estado? Como se
produziu concretamente este acontecimento fortuito, este acidente trágico
que modificou a história do mundo: Pierre Clastres vive longamente em meio a
sociedades indígenas onde ninguém obedece nem comanda. Sua experiência o leva
a recusar a idéia, essencialista, de que teria existido, em toda parte e sempre,
dominadores e dominados. Claro, nas sociedades selvagens que descreve,
encontramos chefes, porém, quase desprovidos de poder. Seu papel se resume a
uma persuasão que de modo algum se apóia sobre uma autoridade transcendente.
Impelidos à generosidade, os chefes e suas mulheres devem produzir para dar aos
outros. E, se esquecem esta obrigação veemente, são roubados, a fim de
rememorá-la (DESCAMPS, 1986, p. 37).

As sociedades nativas, tribais, indígenas; seus artefatos, objetos e


adereços; suas danças e ritos, tudo deixa de ser mera curiosidade do grande
gabinete de curiosidades em que haviam se transformado a Etnologia, a
Antropologia e a Arqueologia. O outro deixou de ser estranho para entrar na
categoria minoria, mas toda minoria depende do ponto de vista; da
metodologia quantitativa utilizada: quantos brancos, cristãos, alfabetizados e
possuidores de computador existem no mundo? Na verdade, o outro, minoria
reivindica o status de ser, com prerrogativas, exigências, sistemas de valor,
experiências. Compreender essas experiências no seu próprio contexto,
respeitar os sistemas simbólicos e as atitudes sociais, colocar-se diante de
cada grupo social despido de conceitos como “bom selvagem” ou “mau

160
selvagem”, este é o maior dilema das ações relacionadas ao patrimônio
indígena.

No entanto, cabe a pergunta: Quais são as implicações dessa lei para


os profissionais da Conservação? How will conservators respond when native
peoples want collections cared for in ways that conflict with our profession’s
standards or code of ethics? Quais são os limites de atuação diante de objetos
sagrados? Além dos objetos sagrados, o estudo de enterramentos, de
sociedades extintas ou não, é um assunto sério; merece respeito e
discussões quanto aos limites e às extensões desses trabalhos. This is an
exciting time of changes as we face challenges to the established order.
Conservators should prepare themselves to join others who are critically scrutinizing
what have long been regarded as the rights and purposes of museum, university,
and private collections (WELSH, 1991, p. 2).

Além de questões éticas envolvendo povos nativos das Américas,


questões relacionadas ao intercâmbio de antigüidades, peças de arte e
demais objetos têm sido matéria de discussão em vários fóruns de debate
promovidos pela UNESCO, pelo ICOMOS, pelo ICCROM e pelo ICOM.

Um dos maiores centros de discussão e de atuação internacional com


relação aos sítios, monumentos e paisagens naturais tem sido o World
Heritage Committee, cujo escritório em Paris, por meio de um trabalho
integrado – UNESCO e ICOMOS –, tem gerado recursos financeiros e
treinado recursos humanos para a preservação de sítios e monumentos.
Além deste tipo de auxílio, o significado de pertencer à lista é amplo: livros,
sites e CDs-ROM divulgam as áreas de preservação, salientando seu
potencial atrativo turístico. Ainda que auxílios financeiros diretos sejam
extremamente controlados e dirigidos apenas em momentos de risco
extremo, parcerias entre Estados e organizações não governamentais
auxiliam em vários momentos.

Criado em 1972, o World Heritage Comitte foi elaborado a partir da


Convenção de 1972, a qual estruturou os conceitos de patrimônio cultural e
patrimônio natual: These concepts are the result of the development of the modern

161
historical consciousness of the values of heritage that paved the way for the 1972
Convention, also called the World Heritage Convention. It was a significant
innovation, as it linked sectors that had hitherto been considered very different -- the
protection of the cultural heritage and that of the natural heritage. The 20th century
introduced the idea of world heritage, the significance of which transcends all political
or geographical boundaries. The experts of all specialized organizations mentioned
above have contributed to the development of this new concept and the doctrine
applicable in this domain (BOUCHENAKI, 1999, s.p.).

A década de setenta significou a estruturação regimental do WHC com


a criação do documento Operational Guidelines for the Implementation of the
World Heritage Convention (1977, 1978). Neste período, 57 sítios, parques e
monumentos foram escolhidos para a lista do Patrimônio Mundial, os seis
primeiros localizados nos seguintes lugares: Canadá (L’ Arse aux Meadows
National Historical park), Equador (Galápagos), Etiópia (Roch-hewn
churches), Alemanha (Aachen Cathedral), Polônia (Cracóvia Historic Center)
e Estados Unidos (Mesa Verde). Até 1999, 582 propriedades – 445 culturais,
117 naturais e 20 mistas, conforme caracterização do WHC –, localizadas em
114 países, faziam parte da lista. O Brasil está presente com nove
localidades: Cidade Histórica de Ouro Preto (1980); Cidade Histórica do
Centro de Olinda (1982); Parque Nacional de Iguaçu (1984); Centro Histórico
de Salvador (1985); Santuário de Bom Jesus de Congonhas (1986); Brasília
(1987); Serra da Capivara (1991); Centro Histórico de São Luís (1997) e as
áreas de Missões Jesuíticas (1984), em parceria com a Argentina.

162
GRÁFICO 2 : Sítios e Monumentos do Patrimônio Cultural 654 SÍTIOS/ 2000

NÚMERO DE MONUMENTOS NÚMERO DE PAÍSES POR REGIÃO

115 38
320
36
160

24
28
131

EUROPA AMÉRICAS ÁSIA E PACÍFICO ÁFRICA

Fonte: WHC

163
Em 2000, o quadro ampliou-se de 582 propriedades para 654,
conforme pode ser observado no Gráfico 2, em que é possível perceber a
disparidade que permanece entre o número de sítios europeus inscritos na
lista em relação ao resto do mundo, sendo que França, Itália, Espanha e
Alemanha são os países com maior número de bens; nas Américas, Estados
Unidos e México respondem por mais de quarenta sítios; na Ásia e no
Pacífico, China e Austrália também dominam o panorama, enquanto que na
África e nos Emirados Árabes há uma distribuição mas eqüitativa, apesar de
muitos países dessas regiões não terem nenhum monumento inscrito.
Estranhamente, na organização da World Heritage List, América do Norte e
Europa estão aglutinadas no mesmo tópico e África e Emirados Árabes
encontram-se separados, apesar de vários países, como Argélia, Tunísia e
Egito, aparecerem repetidos em ambas listagens. Jerusalém e Vaticano
configuram-se como territórios independentes, sendo que a cidade Sagrada
de Jerusalém foi inscrita pela Jordânia em 2000.

Nas décadas de setenta e oitenta, o WHC procurou manter atividades


regulares como encontros, troca regular dos membros do comitê,
organização das listas do patrimônio mundial e do patrimônio mundial em
perigo. A partir dos anos 90, estratégias globais de conduta foram
estabelecidas: em 1992 foi escrito o documento Operational Guidelines, um
guia para a implantação das ações nos processos de legitimação das normas
e das áreas indicadas como Patrimônio Mundial; em 1993, foi criado um
relatório para monitoramento das áreas patrimoniais; em 1994, os
documentos Report of the Expert Meeting on Routes as Part of the Cultural
Heritage; Information Document on Heritage Canals, Report on the
Conference on Authenticity, Report of the Expert Meeting on the Global
Strategy, Report of the Expert Meeting on Evatuation of general principles
and criteria for nominations of natural World Heritage sites, a criação de um
Glossário com termos técnicos do World Heritage e a realização de reuniões
na África e Ásia, marcam a abertura e a ampliação deste canal de discussão.

A mudança de atitudes do WHC reflete a mudança de atitudes das


várias instituições analisadas neste trabalho. UNESCO, ICOM, ICCROM e

164
ICOMOS discutem seu papel, seus limites e extensões. Quais são os critérios
de valor? Qual é o bem patrimonial, de existência tangível ou intangível, que
merece ser preservado? Como os países se comportam em relação às
indicações de um conselho externo à sua esfera de poder? O documento
gerido na 8a Sessão do WHC, realizada em 1994 na Tailândia, Report of the
Expert Meeting on the Global Strategy, demonstra esta preocupação: the
three days of in-depth discussions by the experts led to unanimous agreement being
reached on a number of observations. It was apparent to all the participants that form
its inception the WHL has been based on as almost exclusively monumental concept
of the cultural heritage, ignoring the fact that not only scientific knowledge but also
intellectual attitudes towards the extent of the notion of cultural heritage, together
with the perception and understanding of the history of human societies, had
developed considerably in the past twenty years. Even the way in which different
societies looked at themselves – their values, history, and the relations that they
maintained or had maintained with others societies – had developed significantly (8a
Sessão do WHC. 1994, p.2).

Em 1972, a idéia de Patrimônio Cultural estava apoiada em conceitos


limitado à existência física e confinados em monumentos arquitetônicos.
Neste meio tempo, História da Arte, Arqueologia, Antropologia e Etnologia
desenvolveram teorias que expandiam a visibilidade dos elementos
(arquitetônicos ou paisagísticos), considerando grupos e sociedades como
sistemas complexos e multidimensionais – estruturas, modos de vida,
crenças, sistemas de conhecimento e formas de representação do passado e
do presente. Cada peça individual de evidência deste sistema não deve ser
considerada isolada, mas partícipe de um contexto mais amplo e seu
entendimento se dá a partir de uma compreensão física e não-física das
múltiplas e recíprocas relações estabelecidas.

A música, a dança, a cerimônia religiosa, as vestes, os cantos, os


ritos... são estes elementos que dão vida e sentido aos altares, igrejas,
circos, casas e sítios. A compreensão do significado mais profundo do
“patrimônio” foi uma das mais significativas mudanças no discurso dessas

165
importantes organizações não governamentais – ICOM, UNESCO, ICOMOS,
ICCROM.

A expressão atitudes intelectuais inserida no discurso demonstra uma


mudança no repertório do discurso preservacionista. A preservação não é
apenas uma atitude de laboratório, mas uma construção intelectual, repleta
de noções de valor e formulação de conceitos. Ao ler o documento gerado
em 1972, é pertinente observar que as palavras valor estético e valor
científico são empregadas várias vezes, sendo que o conceito de valor
universal excepcional é considerado valor resultante da avaliação do ponto
de visto histórico, etnológico ou antropológico.

LA CONFERENCIA GENERAL de la Organización de las Naciones Unidas


para la Educación, la Ciencia y la Cultura, en su 17a, reunión celebrada en París del
17 de octubre al 21 de noviembre de 1972,
Constatando que el patrimonio cultural y el patrimonio natural están cada vez
más amenazados de destrucción, no sólo por las causas tradicionales de deterioro
sino también por la evolución de la vida social y económica que las agrava con
fenómenos de alteración o de destrucción aún más temibles,
Considerando que el deterioro o la desaparición de un bien del patrimonio
cultural y natural constituye un empobrecimiento nefasto del patrimonio de todos los
pueblos del mundo,
Considerando que la protección de ese patrimonio a escala nacional es en
muchos casos incompleto, dada la magnitud de los medios que requiere y la
insuficiencia de los recursos económicos, científicos y técnicos del país en cuyo
territorio se encuentra el bien que ha de ser protegido,
Teniendo presente que la Constitución de la UNESCO estipula que la
Organización ayudará a la conservación, al progreso y a la difusión del saber,
velando por la conservación y la protección del patrimonio universal, y
recomendando a los interesados las convenciones internacionales que sean
necesarias para ese objeto,
Considerando que las convenciones, recomendaciones y resoluciones
internacionales existentes en favor de los bienes culturales y naturales, demuestran
la importancia que tiene para todos los pueblos del mundo, la conservación de esos
bienes únicos e irremplazables de cualquiera que sea el país a que pertenezcan,
Considerando que ciertos bienes del patrimonio cultural y natural presentan
un interés excepcional que exige se conserven como elementos del patrimonio
mundial de la humanidad entera,
Considerando que, ante la amplitud y la gravedad de los nuevos peligros que
les amenazan, incumbe a la colectividad internacional entera participar en la
protección del patrimonio cultural y natural de valor universal excepcional prestando
una asistencia colectiva que sin reemplazar la acción del Estado interesado la
complete eficazmente,

166
Considerando que es indispensable adoptar para ello nuevas disposiciones
convencionales que establezcan un sistema eficaz de protección colectiva del
patrimonio cultural y natural de valor excepcional organizada de una manera
permanente, y según métodos científicos y modernos,
Habiendo decidido, en su décimosexta reunión, que esta cuestión sería
objeto de una Convención internacional, Aprueba en este día dieciséis de noviembre
de 1972, la presente Convención:
I. DEFINICIONES DEL PATRIMONIO CULTURAL Y NATURAL
ARTICULO 1
A los efectos de la presente Convención se considerará patrimonio cultural:
los monumentos: obras arquitectónicas, de escultura o de pintura monumentales,
elementos o estructuras de carácter arqueológico, inscripciones, cavernas y grupos
de elementos, que tengan un valor universal excepcional desde el punto de vista de
la historia, del arte o de la ciencia, los conjuntos: grupos de construcciones, aisladas
o reunidas, cuya arquitectura, unidad e integración en el paisaje les dé un valor
universal excepcional desde el punto de vista de la historia, del arte o de la ciencia,
los lugares: obras del hombre u obras conjuntas del hombre y la naturaleza así como
las zonas incluidos los lugares arqueológicos que tengan un valor universal
excepcional desde el punto de vista histórico, estético, etnológico o antropológico.
ARTICULO 2
A los efectos de la presente Convención se considerarán patrimonio natural:
los monumentos naturales constituidos por formaciones Físicas y biológicas o por
grupos de esas formaciones que tengan un valor universal excepcional desde el
punto de vista estético o científico, las formaciones geológicas y fisiográficas y las
zonas estrictamente delimitadas que constituyan el habitat de especies animal y
vegetal amenazadas, que tengan un valor universal excep- cional desde el punto de
vista estético o científico, los lugares naturales o las zonas naturales estrictamente
delimitadas, que tengan un valor universal excepcional desde el punto de vista de la
ciencia, de la conservación o de la belleza natural. (1972, p. 2 – traduzido ao
espanhol em 1984).
Ainda que as linhas gerais tenham se mantido – como a manutenção
dos comitês, as reuniões anuais, os encontros trienais, as propostas e as
listas –, a preocupação intelectual com os conceitos e os sistemas de valores
introduziu no discurso do WHC vocábulos como cultura e expressão, além da
referência às coisas não-físicas (sendo a palavra espiritual evitada). Para as
coisas não-físicas, a nomenclatura “patrimônio intangível” veio substituir o
conceito de folclore ou tradição, ficando nesse campo específico a música, a
dança, a língua, a culinária etc.

As estratégias de atuação também se ampliaram, mantendo o respeito


e a autonomia dos Estado. No campo da lingüística, o glossário, em francês e
inglês, facilitou a homogeneização de certos vocábulos, aplicados nas

167
reuniões, encontros, simpósios, seminários e textos. Esta padronização de
termos tem facilitado a construção de discursos científicos, técnicos e
legislativos, implicando em uma compreensão do significado dos diversos
tipos de patrimônio. Two initiatives must therefore be undertaken concurrently:
rectification of the imbalance on the List between regions of the world, types of
munument, and periods, and at the same time a move away from a purely
architectural view of the cultural heritage of human towards one which was much
more anthropological, multi-functional and universal (8a Sessão do WHC, 1994, p.4).

As estratégias globais de atuação enfrentam problemas em relação à


autonomia das fronteiras nacionais e os problemas relacionados às áreas de
conflitos armados, temas comuns nos encontros anuais: áreas de conflitos
bélicos ou de convulsão social interna, além daqueles submetidos às
catástrofes naturais, são consideradas áreas de risco; todos os anos sai uma
lista denominada List of the World Heritage in Danger.

No ano de 1999, os países africanos em guerra e os países Latino-


americanos assolados por enchentes, terremotos ou conflitos internos
fizeram parte da lista. Nos Estados Unidos, o parque Yellowstone – uma das
primeiras áreas de preservação controlada –, também esteve em perigo
devido a problemas político-ambientais. No ano anterior, as áreas de conflito
da Europa Oriental, as regiões da antiga Iugoslávia, mereceram atenção.
Como foi mencionado anteriormente, o Museu Nacional Sarajevo foi o
primeiro a receber alguma ajuda por meio do International Commitee of the
Blue Shield (ICBS), formado pelo ICOM, ICA, IFLA e ICOMOS e criado para
responder às situações de emergência que afetam bens patrimoniais. Os
museus de Burundi, na África Oriental, também foram auxiliados em
decorrência dos conflitos civis no final do século XX.

Além das áreas de risco, um outro campo tem sido considerado nos
levantamentos e nos direcionamentos relatados pelo ICOMOS: a questão de
sítios arqueológicos em áreas submersas e parques naturais marinhos ou
fluviais. A Draft Charter for the Protection and Management of the Underwater
Cultural Heritage (1995), contribuiu sobremaneira para que vários países se
organizassem para atuação na proteção dessas áreas. Portugal, em 1998,

168
sancionou a legislação concernente à pesquisa e à preservação de sítios
subaquáticos. No Brasil, poucos pesquisadores atuam neste campo, como o
arqueólogo Gilson Rambelli, formado pelo MAE-USP. Ainda que em 1996 a
carta do ICOMOS referente ao Patrimônio Subaquático29 tenha sido traduzido
para o português, a legislação brasileira referente a este tipo de patrimônio é
ineficiente e obscura.

A lei n.7542 de 1986, com Portaria Interministerial – Ministério da


Marinha e Ministério da Cultura – n.69, de janeiro de 1989, afirma que todos
os bens artísticos, históricos e arqueológicos encontrados submersos
pertencem à União, todavia, a imprecisão da lei sobre as diferenças entre
bens submersos ou bens não submersos e a falta de políticas claras em
relação à estes bens tornam a lei inoperante. À mercê de aventureiros ou nas
mãos de organismos oficiais sem formação específica de procedimentos
científicos de Conservação, este patrimônio é o que mais sofre perdas pela
falta de qualificação do Estado em sua gestão.

As leis de tombamento, a legislação preservacionista, Ministérios da


Cultura ou Educação, institutos oficiais brasileiros encarregados da
Conservação de bens patrimoniais mundiais ou regionais, têm demonstrado
uma devastadora ineficiência. No ano de 1998, uma das mais importantes
igrejas coloniais mineiras, Igreja Nossa Senhora do Carmo de Mariana, foi
vítima de incêndio, por simples falta de prevenção.

Discutir as leis, implementá-las e colocá-las em efetivo funcionamento


é dever do Estado. À sociedade civil cabe exigir que o Estado cumpra seu
papel. Os organismos internacionais, responsáveis pela discussão de
questões mais amplas, parecem cumpri-lo. Por meio de encontros,
congressos e seminários, encontram respaldo intelectual da comunidade
científica. A partir da subvenção de cursos de formação, capacitam
profissionais para atuarem em vários países. Enquanto fórum de debates,
discute as diretrizes, tendo como premissa uma estratégia global. Seus

29
Publicada na Revista do MAE, n.7, de 1997, como A Carta Internacional do ICOMOS sobre
a proteção e gestão do Patrimônio Subaquático.

169
documentos são acessíveis, suas intenções são claras e a forma como
coordenam seus trabalhos é objetiva.

Contudo, a preservação deste ou daquele sítio, paisagem ou


monumento depende de uma rede complexa de relações: a comunidade
onde se localiza; a comunidade que o visita; as autoridades locais, do Estado
e/ou da União (conforme a organização de cada país); as verbas disponíveis;
a disponibilidade técnico-científica; a educação e, acima de tudo, a
compreensão profunda do sentido de preservação daquele bem.

O ICOMOS teve como antecessores o ICOM e o ICCROM,


aprendendo com eles e suplantando-os em sua área de atuação específica.
Esta troca é salutar: os critérios de preservação – manutenção da integridade
física e conceitual das obras, mínima intervenção, Conservação Preventiva,
respeito ao original – são conceitos amplos que valem para um fragmento de
cerâmica, uma escultura clássica, uma tela de Picasso, uma igreja de
Bramante, um paredão com pinturas rupestres em Campo Formoso ou o
centro antigo de Chicago.

Gradativamente, percebemos dotados de uma linguagem, um campo


ou um grupo de cientistas voltados para uma orientação específica – museus,
acervos, sítios e monumentos –, o quê não nos impede de admitir áreas de
interseção, cortes comuns, óticas semelhantes. No que tange a esta
pesquisa, são as propostas da percepção preservacionista que configuram
este cruzamento.

170
5. UNESCO – Organização Educacional, Científica e
Cultural das Nações Unidas: a constituição do discurso
possível
Nós não vivemos mais, somos vividos. Não temos mais
liberdade, não sabemos mais nos decidir, o homem é privado
da alma, a natureza é privada do homem. Nunca houve uma
época mais perturbada pelo desespero, pelo horror da morte.
Nunca silêncio mais sepulcral reinou sobre o mundo. Nunca o
homem foi menor. Nunca esteve mais irrequieto. Nunca a
alegria esteve mais ausente e a liberdade mais morta. E eis
que grita o desespero: o homem pede gritando a sua alma,
um único grito de angústia se eleva do nosso tempo.
Hermann Bahar (1916), apud Mário De Micheli, 1991: 61.

5. A UNESCO, com sede em Paris, na Place de Fontenoy,


apresenta outros setenta e três escritórios espalhados pelo
mundo, inclusive em Brasília-Brasil.
www.unesco.org

171
A UNESCO foi fundada no período imediatamente posterior à
Segunda Grande Guerra, como um braço da Organização das Nações
Unidas voltado especificamente para as questões educacionais, científicas e
culturais. Compreendendo que todas estas questões estão imbricadas, sendo
impossível distinguir os limites precisos entre elas – uma vez que a
educação, a cultura e a ciência não existem em si e por si, mas para a
formação integral dos indivíduos e da sociedade –, a Constituição referente à
normatização dessa instituição foi discutida em 16 de Novembro de 1945, em
Londres, sendo ampliada, subseqüentemente, nas seguintes vinte e cinco
sessões da Conferência Geral. As diretrizes propostas no documento advêm
do mesmo espírito da ONU de recompor um mundo assolado pela barbárie
do pós–guerra; das lembranças dos campos de concentração e das
atrocidades cometidas por uma sociedade que se considerava a única
detentora do título de civilização: o mundo ocidental.

No primeiro parágrafo da Constituição está registrado: The


Governments of the States Parties to this Constitution on behalf of their people
declare: that since wars being in the minds of men, it is in the minds of men that the
defenses of peace must be constructed; that ignorance of each others ways and
lives has been a common cause, throughout the history of mankind, of that suspicion
and mistrust between the peoples of the World through which their differences have
to often broken into war; that the great and terrible war which has now ended was a
war made possible by denial of the democratic principles of the dignity, equality and
mutual respect of men, and by the propagation, in their place, through ignorance and
prejudice, of the doctrine of the inequality of men and races; (UNESCO, 1945, p. 1).
O início deste documento deixa claro o posicionamento político dos primeiros
membros a se reunirem em torno do ideal da união das nações: revisando o
uso da teoria evolucionista que alimentou a ciência desde a teoria de Darwin
(1859), a qual estimulou cientistas e intelectuais a alegar que as
características biológicas eram o caminho para a distinção entre os grupos
humanos, fundamentando a crença na relação de superioridade das raças,
os intelectuais e políticos que se reuniram para forjar as bases da UNESCO
desejavam desenvolver uma nova ótica mundial fundamentada no respeito
étnico e na convivência de múltiplas culturas.

172
Não há como negar que todo a documentação forjada nesse primeiro
momento pela UNESCO procurava a linguagem multirracial; a fuga da
intolerância; a crítica às orientações racistas de qualquer natureza e a fé
baseada na noção de que o conhecimento e o respeito para com cada
cultura existente no mundo seriam a única maneira de se alcançar a
solidariedade da raça humana: the peace based exclusively upon the political and
economic arrangements of governments would not be a peace which could secure
the unanimous, lasting and sincere support of the peoples of the World, and that the
peace must therefore be founded, if it is not to fail, upon intellectual and moral
solidarity of mankind (UNESCO, 1945, p. 1). Esta nova sensibilidade diante da
sociedade ocidental, misto de vergonha e procura de alguma saída, se
reproduziu em todos outros campos de conhecimento, ficando, não apenas
ao meio diplomático ou científico a disposição de olhar a sociedade sob o
prisma de uma consciência humana ciente de sua fragilidade.

Na Alemanha pós-guerra, os problemas sociais e políticos levaram os


artistas a refletir em sobre a violência passada e os problemas decorrentes
dela. Esta reflexão assumiu um caráter crítico, um tom polêmico: reagia-se
contra todas as formas de arte que não compartilhavam dessa postura, que
iludiam a realidade, que fugiam dela através do espiritualismo puro ou do
tecnicismo sem alma. O caminho se concretizava numa arte arraigada
exatamente naquela realidade contraditória e acidentada, uma arte dura e
implacável, portadora de uma memória recente, enfim, em uma arte não tão
revolucionária na forma, como no conteúdo. Em 1952, Kokoschka afirma: A
sociedade proletária de hoje em dia tem necessidade, sobretudo, de uma reflexão
para que não aconteça que cada indivíduo, do alto de sua soberba intelectual, se
julgue chamado para uma obra de destruição, certo de que a telha fatal possa atingir
somente o crânio de seu vizinho. Se não uma consciência social alerta, pelo menos
uma inteligente reflexão deveria sugerir ao artista que uma linguagem artística não
comunicável perde todo seu significado caso não transmita a mensagem do eu ao
você a experiência que nossa humanidade renova sem cessar. A experiência é
aquilo que, de membros de um rebanho, nos converte em verdadeiros homens.
Igualmente vazia é a existência do esteta encerrado na própria torre de marfim. A
existência dele é inútil e anti–social, como que desenrolando-se num refúgio

173
blindado subterrâneo. Não podemos esquecer que o mundo não existe para um
único indivíduo e não se move somente por nós (Apud DE MICHELLI, 1991, p. 18).

Cabe lembrar que o posicionamento intelectual contra o racismo que


imperava na Europa não é prerrogativa dos intelectuais do pós-guerra; como
também não está circunscrita à esfera do nazismo a postura anti-semita. O
episódio Dreyfus – o capitão judeu do exército francês condenado por
traição30 – evidencia esta afirmação: a partir daí, Zola proclama o manifesto
dos intelectuais em defesa desse capitão, o ser intelectual reivindica uma
posição ímpar diante da sociedade – penso, logo existo e faço parte do
mundo; meu pensamento pode intervir de maneira qualitativa nesse mundo
que me rodeia. Não foi para uma colheita de ódio, foi para uma colheita de
bondade, de eqüidade, de esperança infinita, que semeamos. Ao proferir essa
frase, Zola, compartilhando do espírito dos homens de seu tempo, assumiu
enquanto escritor uma postura em relação ao processo histórico. O talento de
Zola foi compreender que não havia, no momento, mais nada a esperar das vias
legais, que o único recurso era a opinião pública. Para mobilizá-la, era preciso parar
de fazê-la conhecer o caso Dreyfus por partes, por pedaços muitas vezes pouco
compreensíveis (BREDIN, 1993, p. 279).

As lacunas humanas deixadas pela guerra são irreparáveis, o


historiador Lucièn Fébvre é fuzilado quando atuava no movimento de
resistência; o filósofo Walter Benjamin se suicida na fronteira da Espanha. A
UNESCO surge em um momento específico de posicionamento por parte dos
intelectuais ocidentais em relação aos outros povos: o paternalismo herdado
do colonialismo e do imperialismo adquire uma outra face, que não deixa de
se levar pelos resíduos eurocêntricos31. Porém, sua proposta reafirma os
ideais da Constituição Universal dos Direitos Humanos ao colocar para os
povos de todo o mundo – sem distinção de raça, sexo, linguagem ou religião
– suas intenções de alcançar através da educação uma maior união. The

30
A derrota de 1870 desenvolve na França um sentimento xenofóbico, anti–semita e
nacionalista.
31
A Constituição da UNESCO fica à disposição para sua assinatura por outros países nos
arquivos do Governo britânico, logo após sua redação.

174
purpose of the Organization is to contribute to peace and security by promoting
collaboration among the nations through education, science and culture in order to
further universal respect for justice, for the rule of law and for the human rights and
fundamental freedoms (UNESCO, 1945, p.1). Cultura, educação e ciência
convergem para conceitos que envolvem a manutenção das tradições; o
reconhecimento do passado de cada povo; a valorização do patrimônio que
se substancializa na cultura material e imaterial de todo e qualquer grupo
social. Uma das iniciativas da UNESCO, como visto nos capítulos anteriores,
foi fomentar a criação de Conselhos Internacionais voltados para as questões
patrimoniais – como o ICOM, o ICOMOS e o ICCROM –, de acordo com a
proposta de difusão do conhecimento por meio da conservação e proteção
de livros, obras de arte e monumentos históricos e científicos; pelo estímulo à
cooperação entre as nações em todos os ramos da atividade intelectual,
incluindo intercâmbio de educadores e cientistas; pela disposição de
informações a respeito dos bens culturais, artísticos, históricos, científicos,
além do Patrimônio Natural e, acima de tudo, pela disposição em auxiliar
países em momentos de crise, sem, no entanto, interferir na independência e
na autonomia de cada nação.

Com o intuito de tentar compreender a estrutura dos diálogos


promovidos pela UNESCO em torno desse tema, foram selecionados alguns
documentos direcionados à preservação patrimonial e à formulação de
conceitos concernentes à cultura produzidos desde sua fundação. Não é
nossa intenção determinar quais indivíduos produziram esses documentos,
mas perceber, a partir das categorias sociológicas de Bourdieu, as
orientações que determinaram a produção desse conhecimento específico: o
campus que ora se apresenta estrutura o sistema de trocas simbólicas, dos
conceitos de valor, das premissas intelectuais que orientaram as relações
reproduzidas nos discursos das Cartas, Recomendações, Tratados e
Convenções. O recorte empregado na análise desses textos foi de dupla
natureza: cronológica e de acordo com as áreas de interesse específicas,
conforme pode ser observado na Tabela 1.

As categorias e as ações discutidas nos documentos podem ser

175
reunidas nos seguintes conjuntos, os quais foram dispostos na tabela
seguindo tanto o critério temporal – as questões são apresentadas na ordem
cronológica de aparecimento –, quanto a especificidade do assunto
abordado:

a) Tipo de Patrimônio: Patrimônio Histórico; Patrimônio


Arqueológico; Patrimônio Arquitetônico (Imóvel); Bens Patrimoniais Móveis
(Obras, objetos e coleções); Patrimônio Natural; Patrimônio Subaquático.

b) Assuntos específicos: Conflito Armado; Mobilidade; Turismo;


Educação; Política.

Cabe ressaltar que a divisão dos documentos em categorias visou


ressaltar as abordagens expostas, não sendo, porém, de caráter restritivo,
mas indispensáveis a operacionalizar o tratamento temático: é importante
esclarecer que um testemunho individual pode debruçar-se ao mesmo tempo
sobre mais do que um assunto. Assim, um documento que trata do
Patrimônio Histórico, não exclui questões relacionadas ao Patrimônio
Arqueológico, Arquitetônico, Cultural, nem, às ações educativas, de pesquisa
ou restauração. O conceito de Patrimônio Cultural foi explorado por meio das
noções de Patrimônio Histórico, Patrimônio Arqueológico, Patrimônio
Arquitetônico e Bens Culturais Móveis, compreendendo que nem sempre
existem limites significativos entre uma categoria e outra: a Acrópole é ao
mesmo tempo Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Arqueológico.

Na composição da proposta de análise desses documentos, adotamos


também a teoria de Bourdieu que percebe nos discursos institucionais a
possibilidade de percepção das condições materiais que determinam a
transformação de aparelhos de produção simbólica cujos bens deixam de ser
vistos apenas como instrumento de comunicação, mas como ordenação
simbólica da maneira de ver o mundo: Um vez que os sistemas simbólicos
derivam de suas estruturas da aplicação sistemática de um simples “principium
divisionis” e podem assim organizar a representação do mundo natural e social
dividindo-o em termos de classes antagônicas; uma vez que fornecem tanto o
significado quanto um consenso em relação ao significado através da lógica da

176
inclusão/exclusão, encontram-se predispostos por sua própria estrutura a preencher
funções simultâneas de inclusão e exclusão, associação e dissociação, integração e
distinção (BOURDIEU, 1974, p. 12).

O conceito de Patrimônio Cultural não é fácil de se delimitar, uma vez


que, para a formação cultural de uma comunidade, não apenas estão
sedimentados a identidade e os conhecimentos transmitidos pelas
realizações humanas, mas também a paisagem e a natureza que caracteriza
a relação desse ambiente com a sociedade. Porém, com o intuito de
operacionalizar a análise dos documentos, serão feitos compartimentos
temáticos específicos. As categorias propostas nesta investigação, ao reunir
os documentos em conjuntos específicos, não pretendem excluir as relações
existentes entre as propostas elaboradas, mas operacionalizar a análise a
partir da metodologia proposta. As Cartas, Declarações, Recomendações,
Resoluções, Tratados, Convenções e Normas selecionadas foram as
mesmas expostas no site do ICOMOS e da UNESCO –, resgistradas sob o
título International Conventions and Other Instruments; UNESCO
Recommendations and Other Standards; Cultural Protection Treaties and
Other International Agreements; Charters and Other Instruments.

A maior parte das fontes selecionadas procede do ICOMOS,


instituição criada após a Carta de Veneza (1964), com a responsabilidade de
preservar o patrimônio edificado. No entanto, ao tratar de questões como
mobilidade – importação, exportação, empréstimo – e bens patrimoniais em
área de conflito armado, os documentos expostos evidenciam não apenas a
área de interesse específica, mas se expande para a construção do conceito
de Patrimônio e para a estruturação de uma filosofia de ação. Com base
nesses pressupostos, os documentos produzidos ou incorporados pela
UNESCO ao longo da segunda metade do século XX proporcionaram o
fundamento para a percepção da construção dos conceitos de patrimônio e
preservação, relacionados à própria construção da memória (Tabela 1).
Nesta primeira tabela, é possível perceber a organização cronológica desses
discursos.

177
TABELA 1
CARTAS, TRATADOS, RESOLUÇÕES E OUTROS MODELOS RELACIONADOS
À PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL ADOTADOS PELA UNESCO

1. 1931 Athens Charter for the Restoration of Historic Monuments. First


International Congress of Architects and Technicians of Historic
Monuments, Athens, 1931.

2. 1935 Roerich Pact. Treaty on the Protection of Artistic and Scientific


th
Institutions and Historic Monuments, 7 International Conference of
American States, Montevideo, 1933- Washington, April 1935.

3. 1945 Constitution of UNESCO. General Conference, London, November


1945.

4. 1954 The Hague Convention. Convention for Protection of Cultural Property


in the Event of Armed Conflict, The Hague, May 1954.

5. 1954 European Cultural Convention. Council of Europe, Paris, December


1954, May 1955.

6. 1956 Recommendation on International Principles Applicable to


Archaeological Excavation. General Conference of the UNESCO, New
Delhi, December 1956.

7. 1956 Recommendation Concerning International Competitions in


Architecture and Town Planning. General Conference of the UNESCO,
New Delhi, December 1956.

8. 1962 Recommendation Concerning the Safeguarding of Beauty and


Character of Landscapes and Sites. General Conference of the
UNESCO, Paris, December 1962.

9. 1964 The Venice Charter. International Charter for the Conservation and
Restoration of Monuments and Sites. II International Congress of
Architects and Technicians of Historic Monuments, ICOM/UNESCO,
Venice, May 1964.

10. 1964 Recommendation on the Means of Prohibiting and Preventing the


Illicit Import, Export and Transfer of Ownership of Cultural Property.
General Conference of the UNESCO, Paris, November 1964.

11. 1967 Norms of Quito. Final Report of the Meeting on the Preservation and
Utilization of Monuments and Sites of Artistic and historical Value,
Quito, December 1967.

12. 1968 Recommendation Concerning the Preservation of Cultural Property


Endangered by Public or Private Works. General Conference of the

178
UNESCO, Paris, November 1968.

13. 1969 European Convention on the Protection of the Archaeological


Heritage. Council of Europe, Paris, May 1969.

14. 1970 Convention on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit
Import, Export and Transfer of Ownership of Cultural Property.
General Conference of the UNESCO, Paris, November 1970.

15. 1972 Convention Concerning the Protection of the World Cultural and
Natural Heritage – General Conference of the UNESCO, Paris,
November 1972.

16. 1972 Recommendation concerning the Protection, at National Level, of the


Cultural and Natural Heritage – General Conference of the UNESCO,
Paris, November 1972.

17. 1972 Resolutions of the Symposium on the Introduction of Contemporary


Architecture into Ancient Groups of Buildings. General Assembly of
ICOMOS, Budapest, June 1972.

18. 1975 Resolution on the Conservation of Smaller Historic Towns. General


Assembly of ICOMOS, Bruges, June 1975.

19. 1975 Declaration of Amsterdam. Congress on the European Architectural


Heritage, Council of Europe, Amsterdam, October 1975.

20. 1975 European Charter of Architectural Heritage. Congress on the


European Architectural Heritage, Council of Europe, Amsterdam,
October 1975.

21. 1976 Convention of San Salvador. Convention on the protection of the


Archaeological, Historical and Artistic Heritage of the American
Nations, San Salvador, June 1976.

22. 1976 Recommendation Concerning the Safeguarding and Contemporary


Role of Historic Areas. General Conference of the UNESCO, Nairobi,
November 1976.

23. 1976 Recommendation Concerning the International Exchange of Cultural


Property. General Conference of the UNESCO, Paris, Nairobi, 1972.

24. 1976 Charter of Cultural Tourism. International Seminar on Contemporary


Tourism and Humanism, ICOMOS, Brussels, November 1976.

25. 1978 Recommendation for the Protection of Movable Cultural Property. –


General Conference of the UNESCO, Paris, November 1978.

179
26. 1981 The Burra Charter. The Australia ICOMOS Charter for the
Conservation of Places of Cultural Significance, General Assembly of
ICOMOS, Australia, June 1981

27. 1982 The Florence Charter. Historic gardens and landscapes, ICOMOS,
Florence, December 1982.

28. 1982 Tlaxcala Declaration on the Revitalization of Small Settlements. Inter-


American Symposium on the Conservation of Building Heritage,
Mexican National Committee of ICOMOS, Tlaxcala, October 1982.

29. 1982 Declaration of Dresden. ICOMOS National Committee of GDR,


Dresden, November 1982.

30. 1982 Deschambault Declaration. Charter for the Preservation of Quebec’s


Heritage. ICOMOS Canada, April 1982.

31. 1983 Declaration of Rome, ICCROM, Rome, December 1982.

32. 1983 Appleton Charter for the Protection and Enhancement of the Built
Environment. ICOMOS Canada, 1983.

33. 1985 European Convention on Offenses Relating to Cultural Property.


Council of Europe, June 1985.

34. 1985 Convention for the Protection of the Architectural Heritage of Europe.
Council of Europe, October 1985,

35. 1986 Código de ética profesional de los Museos. XV Asamblea General del
ICOM, Buenos Aires, Noviembre 1986.

36. 1987 The Washington Charter. Charter on the Conservation of Historic


Towns and Urban Areas, ICOMOS, Washington, October 1987.

37. 1987 First Brazilian Seminar About the Preservation and Revitalization of
Historic Centers, ICOMOS Brazil, Rio de Janeiro, July 1987,

38. 1990 Charter for the Protection and Management of the Archaeological
Heritage, General Assembly of ICOMOS, Lausanne, 1990.

39. 1992 European Convention for the Protection of the Archaeological


Heritage of Europe. Council of Europe, La Valette, January 1992.

40. 1992 Charter of Courmayeur. UNESCO, Aosta Valley, June 1992.

41. 1992 New Zealand Charter. Charter for the Conservation of Places of
Cultural Heritage Value, ICOMOS New Zealand, October 1992.

180
42. 1992 A Preservation Charter for the Historic Towns and Areas of the United
States of America, US/ICOMOS, Washington, May 1992.

43. 1993 Guidelines for Education and Training in the Conservation of


Monuments, Ensembles and Sites. General Assembly ICOMOS, Sri
Lanka, August 1993.

44. 1993 Resolution on the Return or Restitution of Cultural Property to the


Countries of Origin. General Assembly ICOMOS, November 1993.

45. 1994 The Nara Document on Authenticity. Nara Conference on Authenticity


in Relation to the World Heritage Convention, Nara, Japan, from 1-6
November 1994.

46. 1994 Buenos Aires Draft Convention on the Protection of the Underwater
Cultural Heritage. ICOMOS, Buenos Aires, 1994.

47. 1994 Resolution on Information as an Instrument for Protection against War


Damages to the Cultural Heritage. UNESCO/ICOMOS, Stokholm,
June 1994.

48. 1995 Unidroit Convention on Stolen or Illegally Exported Cultural Objects.


ICCROM/INTERPOL/UNESCO, Roma, June 1995.

49. 1996 Charter for the Protection and Management of the Underwater Cultural
Heritage. General Assembly ICOMOS, Sofia, October 1996.

50. 1996 Final Communiqué of the NATO Partnership for Peace Conference on
Cultural Heritage Protection in Wartime and State of Emergency.
NATO/UNESCO/ICOM/ICOMOS. Cracow, June 1996.

51. 1996 Declaration of San Antonio at the InterAmerican Symposium on


Authenticity in the Conservation and Management of the Cultural
Heritage. San Antonio, March 1996.

th
52. 1998 The Stockholm Declaration. Declaration of ICOMOS marking the 50
anniversary of the Universal Declaration of Human Rights, adopted by
the ICOMOS Executive and Advisory Committees at their meetings in
Stockholm, 11 September 1998.

53. 1999 International Charter on Tourism Cultural. ICOMOS, 1999.

54. 1999 Principles for the Preservation of Historic Timber Structures. ICOMOS,
1999.

55. 1999 Charter on the Built Vernacular Heritage. ICOMOS, México, Outubro
2000.

181
QUADRO CRONOLÓGICO POR ÁREA DAS CARTAS, CONVENÇÕES, RECOMENDAÇÕES E TRATADOS ELABORADOS PELA UNESCO EM
CONJUNTO COM ICOMOS, ICOM E ICCROM - QUADRO 1 –

SÉCULO XX
TIPOLOGIA 30 – 40 40 – 50 50 – 60 60 – 70 70 – 80 80 – 90 90 – 00
PATRIMÔNIO . Carta de Atenas (31) . Convenção . Carta de Veneza (64) . Convenção p/ Patrimônio Cultural . Carta de Burra (81) . Carta Cidades
. Pacto de Roerich (35) Cultural . Normas de Quito (67) e Natural Mundial (72) . Carta de Florença (81) Históricas EUA (92)
HISTÓRICO
Européia (54) . Recomendações p/ Patrimônio . Carta de Quebec (82) . Carta de Nova
Cultural e Natural Nacionais(72) . Declaração de Roma (83) Zelândia (92)
. Recomendações p/ pequenas . Carta de Washington (87)
cidades históricas (75) . Seminário para Revitalização
. Recomendações s/ o papel de Centros Históricos Brasil (87)
Áreas Históricas (76)
. Convenção de San Salvador (76)
PATRIMÔNIO .Carta de Atenas (31) . Recomendações . Carta de Veneza (64) . Convenção de San Salvador (76) . Carta para o Gerenciamento . Convenção para a
ARQUEOLÓGICO Internacionais . Normas de Quito do Patrimônio Arqueológico (90) Proteção do
p/ Escavações (67) Patrimônio
(56) . Convenção Patrimônio Arqueológico Europeu
Arqueológico (69) (92)
PATRIMÔNIO . Carta de Atenas (31) . Recomendações . Carta de Veneza (64) . Recomendações sobre Edifícios . Carta de Florença (82) .Patrimônio Vernacular
ARQUITETÔNICO Internacionais p/ . Normas de Quito Antigos (72) . Carta Centros Históricos (87) (99)
o Planejamento (67) . Declaração de Amsterdã (75) . Carta de Appleton (83)
arquitetônico(56) . Carta da Europa (75) .Convenção sobre Patrimônio
Arquitetônico Europeu (85)
BENS CULTURAIS . Pacto de Roerich (35) . Normas de Quito . Convenção de San Salvador (76)
MÓVEIS (OBRAS E (67) . Recomendações p/ Patrimônio
COLEÇÕES) móvel (78)
PATRIMÔNIO . Convenção para
SUBAQUÁTICO proteção de Patrimônio
Subaquático (94)
Carta Patrimônio
Subaquático (96)
PATRIMÔNIO . Recomendações p/ . Convenção p/ Patrimônio Cultural .Carta de Burra (81) . Carta de Nova
NATURAL paisagens (62) e Natural Mundial (72) . Carta de Florença (82) Zelândia (92)
. Recomendações p/ Patrimônio
Cultural e Natural Nacionais(72)

182
5.1. Patrimônio Histórico

The concept of an historic monument embraces not only the


single architectural work but also the urban or rural setting in
which is found the evidence of a particular civilisation, a
significant development or an historic event. This applies not
only to great works of art but also to more modest works of
the past which have acquired cultural significance with the
passing of time.
Article 1, The Venice Charter, 1964.

6. A cidade de Tiradentes transformou-se em poucos anos em uma cidade


com uma economia auto-sustentável, através da preservação dos
monumentos históricos e de sua utilização como centro turístico. A partir do
incentivo às práticas locais de artesanato, culinária e festividades, e do
envolvimento da comunidade em eventos específicos, como o Festival de
Música e a Semana Santa, a cidade conseguiu desenvolver uma política
econômica que atendesse aos cidadãos e ao mesmo tempo conservasse
seu patrimônio. (Tiradentes-MG-Brasil-1702)
Crédito da foto: Miguel Ahum

183
O conceito de Patrimônio Histórico, definido oficialmente pelos
organismos gestores selecionados neste trabalho, foi a base para a reunião e
análise dos documentos abaixo relacionados, resultando na elaboração deste
tópico específico:

1) Carta de Atenas para a restauração de monumentos históricos –


adotada pelo I Congresso de Arquitetos e Técnicos de Monumentos,
Atenas, 1931.

2) Tratado sobre a proteção de Instituições artísticas e científicas e


monumentos históricos – Pacto de Roerich, Abril de 1935.

3) Convenção Cultural Européia – Paris, dezembro de 1954.

4) Carta de Veneza – Carta internacional para a conservação e


restauração de monumentos e sítios – II Congresso Internacional de
Arquitetos e Técnicos em Monumentos Históricos, Veneza, maio de
1964.

5) Normas de Quito – Relatório final do encontro sobre a preservação e


utilização de monumentos e sítios de valor histórico e artístico, Quito,
dezembro de 1967.

6) Convenção sobre a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural


– Paris, novembro de 1972.

7) Recomendações relativas à Proteção, aos níveis nacionais, do


patrimônio cultural e natural – Paris, novembro de 1972.

8) Bruges Resolutions – Resoluções para a Conservação de pequenas


Cidades Históricas, IV Assembléia Geral do ICOMOS, Rothenburg ob
der Tauber, maio de 1975.

9) Convenção sobre a proteção do Patrimônio Arqueológico, Histórico e


Artístico das nações americanas – San Salvador, junho de 1976.

10) Nairobi Recommendations – Recomendações concernentes à


Salvaguarda e Papel Contemporâneo de Áreas Históricas, Nairobi,
novembro de 1976.

184
11) Carta de Burra – Carta para a conservação de Lugares de Cultural
significado – ICOMOS-Austrália, 1981.

12) Carta de Florença – Comitê Internacional de Jardins Históricos,


ICOMOS–IFLA, Florença, maio de 1981.

13) Deschambault Declaration – Carta de Quebec para a Preservação de


seu Patrimônio, Quebec, abril de 1982.

14) Declaração de Roma – Comitê Nacional Italiano, junho de 1983.

15) Carta de Washington – Carta para a conservação de cidades históricas


em áreas urbanas –, Assembléia Geral do ICOMOS, Washington,
outubro de 1987.

16) Primeiro Seminário brasileiro sobre a preservação e a revitalização de


centros históricos, ICOMOS, Brasil, julho de 1987.

17) Carta para a proteção de Cidades Históricas nos Estados Unidos –


ICOMOS/US – Comitê sobre as Cidades Históricas, Washington, maio
de 1992.

18) Carta de Nova Zelândia – Carta para a Conservação de Lugares de


Valor Patrimonial Cultural, Nova Zelândia, outubro de 1992.

A Carta de Atenas (1931) é um documento que nasceu antes da


criação da UNESCO, todavia, este registro aparece como referência primeira
dos documentos subseqüentes, direcionados à questão da salvaguarda do
Patrimônio Histórico: no site do ICOMOS, esta carta é citada como um dos
modelos a ser utilizado como base ou padrão de conduta. Configurada em
Atenas, em 1931, foi elaborada pelo Primeiro Congresso Internacional de
Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos; de estrutura simples, não
mais do que cinco páginas, a proposta procura operacionalizar a ação
internacional voltada para a preservação de Monumentos Históricos.

Direcionada para a área da Ciência da Restauração, foi criada em um


contexto histórico específico: a crise econômica associada à crise de
consciência do período pós–guerra contribui para a expansão de correntes
nacionalistas extremas, como o fascismo de Mussolini (1922) e o nazismo de

185
Hitler (Mein Kampf, 1924); entre 1918 e 1931 ocorre a consolidação de vários
estados europeus com a fundação das repúblicas da Polônia, Áustria,
Tchecoslováquia, Finlândia, Alemanha e Espanha; em 1929, a quebra da
Bolsa de Nova York repercutiu tanto no continente europeu quanto no
americano, promovendo uma crise mundial de enormes proporções. O final
do século passado foi marcado pelo apogeu do colonialismo europeu (1876–
1914), rompido abruptamente pelo conflito da I Grande Guerra que
questionou a hegemonia inglesa e francesa. Um mundo cada vez mais
dividido, desigual, com fronteiras demarcadas e sentado em uma bomba
relógio prestes a explodir. Os destroços deixados pela I Grande Guerra
promoveram uma intensa atividade de restauração por toda Europa,
atividades descontroladas e muitas vezes sem nenhum conhecimento
técnico. Para quem trabalha nessa área de conhecimento específica sabe,
por experiência, que uma intervenção inadequada normalmente é mais
prejudicial do que intervenção nenhuma. A partir dessa premissa e sob a
égide de uma consciência da necessidade de cooperação, a Carta de Atenas
estabelece como prerrogativa:

a) Estabelecer uma organização internacional para a Restauração com a


função de aconselhar e operacionalizar essas ações específicas;

b) Projetos de Restauração devem ser sujeitos à avaliação crítica com o


intuito de evitar erros que possam causar a perda das características e
do valor histórico as estruturas;

c) Os problemas de preservação dos sítios históricos devem ser


solucionados pelas legislações nacionais;

d) Sítios arqueológicos em processo de escavação não são objeto de


intervenção imediata, devendo ser oficializados para sua proteção;

e) As atividades de restauração devem utilizar técnicas e materiais


modernos;

f) Sítios históricos devem ficar sob estrita proteção custodial;

186
g) Atenção especial deve ser dada às áreas de entorno dos sítios
históricos pesquisados.

A iniciativa desse encontro evidencia a necessidade de se estabelecer


alguns critérios internacionais nas atividades de Restauração e Pesquisa, da
mesma maneira que tenta controlar as práticas ilegais de escavação e
intervenção em sítios e monumentos históricos. Ao propor a ação
governamental, a partir da custódia e do estabelecimento de legislações
específicas, coloca o Estado como um agente fundamental nesse processo,
sem, no entanto, minimizar os aspectos da cooperação internacional. A
questão da posse de edifícios históricos é matéria do segundo ponto da carta
– II. Medidas Administrativas e legislativas relacionadas aos Monumentos
Históricos –, quando se ressalta que quando as medidas legislativas
conflituam com os direitos individuais, quem paga é o patrimônio. Como
recomendação, é sugerida ao Escritório Internacional de Museus a
publicação de um estudo comparativo constantemente atualizado com o
repertório das medidas legislativas dos diferentes países, com o intuito de
auxiliar as instituições públicas na formulação de leis baseadas nas
experiências positivas de cada país. Este trabalho, contudo, jamais chegou a
existir32.

Como conseqüência, a Carta de Atenas também reflete as linhas de


conduta expressas no encontro promovido pela Liga das Nações em outubro
de 1930, quando historiadores da arte, arquitetos e cientistas se reuniram em
Roma para uma Conferência Internacional única: o objetivo dessa reunião
seria o estudo dos métodos científicos para o exame e a preservação de
obras de arte. Ao cabo de cinco dias, os participantes da conferência
confirmaram a indispensabilidade da investigação de laboratório como ajuda
ao estudo de História da Arte e da Museografia; com o reconhecimento da
ciência a serviço da arte a Conservação moderna havia nascido, com um
atraso relativo de um século em relação ao nascimento da Arqueologia

32
It earnestly hopes that the International Museums Office will publish a repertory and a
comparative table of the legislative measures in force in the different countries and that this
information will kept up to date (Carta de Atenas, 1931, p. 2).

187
científica. Ainda que aspectos legais sejam mencionados, a carta,
compactuando um posicionamento racionalista e tecnicista, enfatiza as
questões técnicas que envolvem os monumentos: o respeito à integridade do
original; o uso de materiais reversíveis e cientificamente aprovados; o
controle dos fatores ambientais de degradação e a parceria de arquitetos e
curadores com cientistas das áreas de Química, Física e Ciências Naturais.
Estranhamente, a área de Arqueologia não é citada nesse tópico específico,
principalmente em um período – década de trinta – em que a Arqueologia
Histórica se firma como linha de pesquisa nas obras de Kossinna, Childe e
Wheeler, conforme vimos no capítulo anterior.

Embora os documentos produzidos, inclusive a própria Carta de


Atenas, coloquem a necessidade de se respeitar a comunidade do entorno
das áreas pesquisadas, tombadas ou gerenciadas como ponto turístico, nem
sempre os interesses das comunidades são levados em consideração, como
tampouco se produz uma relação de cumplicidade, respeito e troca. Nas
áreas ecológicas de preservação, as experiências de parceria com a
comunidade local por meio de campanhas educativas e da promoção de
estratégias de desenvolvimento auto-sustentável sem a agressão ao meio
ambiente, têm sido mais eficazes. Um dos pontos mais polêmicos da Carta
trata da questão da remoção de esculturas, alto-relevos e baixo-relevos de
áreas de risco. Em princípio, o encontro desencoraja a remoção de
elementos, sendo recomendada a preservação dos modelos originais. No
entanto, nenhum ponto coloca a questão de elementos extraídos de várias
partes do mundo – como aqueles retirados das ruínas gregas –,
principalmente pelos museus britânicos e franceses. A retirada ilícita de bens
móveis e elementos de bens imóveis é uma das matérias mais difíceis de
acordar.

Em abril 1935, dando continuidade ao debate, também subsidiado pelo


Escritório Internacional de Museus, realizou-se em Montividéo a VII
Conferência Internacional dos Estados Americanos, sendo retirado desse
encontro o documento: Tratado sobre a proteção de Instituições artísticas e
científicas e monumentos históricos – Pacto de Roerich. Este pacto, baseado

188
na cobrança da ingerência do Estado na preservação de seus bens
patrimoniais, foi assinado pela Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,
Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala,
Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Estados
Unidos e Uruguai. O representante oficial do Brasil foi Oswaldo Aranha era
então o embaixador do Brasil nos Estados Unidos sob o regime do Estado
Novo e já havia sido Ministro da Justiça entre 1930 e 1937. Em relação à
Carta de Atenas, esse documento preconiza o debate sobre a situação dos
Bens Patrimoniais em situação de guerra ou conflitos armados; já no primeiro
artigo é afirmado que: the historic monuments, museums, scientific, artistic,
educational and cultural institutions shall be considered as a neutral and such as
respected and protected by belligerents; the same respect and protection shall be
due to the personnel of the institutions mentioned above.

A neutralidade e a proteção do Patrimônio Cultural, artístico e


científico, parece ser o direcionamento principal desse documento, obrigando
aos Estados participantes a assumir um compromisso oficial de respeitar as
decisões internacionais em momentos de conflitos armados. A preocupação
é tanta, que se determina que uma bandeira branca com um símbolo
específico – um círculo vermelho com três esferas vermelhas em seu interior
formando um triângulo (ver pág. 339) – seja sempre colocada em caso de
guerra para a proteção das áreas oficialmente reconhecidas como bens
culturais. Não podemos esquecer que exatamente nesse momento histórico o
conflito da II Grande Guerra começa a se delinear com a liderança de Hitler
na Alemanha (1933) e a Guerra Civil Espanhola (1936–1939). Nos Estados
Unidos, Roosevelt introduz o New Deal (1933) e a organização Pan
Americana parece uma possibilidade de união do Continente Americano.
Este documento foi um dos últimos documentos com o caráter internacional
de proteção aos Bens Culturais, produzidos antes da Guerra; os próximos
tratados internacionais relacionados ao tema somente viriam a ser firmados e
discutidos após a fundação da UNESCO em 1945.

Relativo à conservação de Sítios e Monumentos, o documento


seguinte a ser produzido, a Carta de Veneza (1964), irá preconizar a

189
fundação do ICOMOS e se colocará como uma referência internacional para
a Conservação e Restauração de Monumentos. Baseada nos princípios da
Carta de Atenas, expande o conceito de monumento histórico ao proferir no
artigo primeiro que: the concept of an historic monuments embraces not only the
single architectural work but also the urban or rural setting in which is found the
evidence of a particular civilization a significant development or an historic event.
This applies not only to great works of art but also to more modest works of the past
which have acquired cultural significance with the passing of time. Desenvolvido no
II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos
Históricos, o documento enfatiza a proteção do Patrimônio Arquitetônico;
retoma a questão do respeito à integridade das estruturas originais, porém
coloca a possibilidade de remoção de elementos, caso esta seja
indispensável à sua salvaguarda; coloca o processo de restauração como
uma operação altamente especializada e critica as ações amadorísticas sem
respaldo científico; aconselha que a substituição das partes faltantes, caso
indispensável ao suporte estrutural, não deve danificar, confundir ou
desmerecer a construção original. Estes pressupostos éticos de fundo técnico
têm, no entanto, sido de difícil avaliação, uma vez que a Ciência da
Restauração não tem se desenvolvido como uma disciplina em si, mas como
um apêndice das práticas de intervenção por arquitetos, arqueólogos,
historiadores e museólogos.

Um dos grandes nomes entre os promotores da Carta é o do arquiteto


e historiador da arte Cesário Brandi, fundador do Instituto de Restauração de
Roma. Seu trabalho Il trattamento delle lacune e la Gestalt psychologie
(1963) e Teoria del restauro (1963) encontram-se presentes no texto quando
este aborda a questão das complementações e do respeito à estrutura
original dos bens patrimoniais imóveis (BAZIN, 1989: 286). Quanto às
escavações, o documento reafirma os padrões e as recomendações
definidas em 1956, documento que será analisado mais adiante. Uma das
recomendações mais enfáticas determina a necessidade de os trabalhos de
preservação, restauração e escavação serem sempre documentados sob a
forma de relatórios analíticos e críticos, ilustrados por desenhos e fotografias

190
– antes e depois da obra –, os quais têm poder de testemunho no caso de
acusações de prática indevida. O registro dos materiais e da metodologia
empregada deve fazer parte desse dossiê e são fundamentais para as ações
de manutenção. Não obstante de o período pós-guerra reorientar a postura
de muitos intelectuais voltados para a História da Arte, a Arqueologia e a
Museologia, dos modelos estruturalistas para as questões sociológicas, a
exigência do método científico como base das investigações mantêm a
orientação pragmática de muitos debates.

A Carta de Burra, elaborada em 1976 na Austrália, apesar de posterior


às Resoluções das IV e V Assembléias Gerais do ICOMOS, segue a mesma
linha conceitual da Carta de Veneza: prioriza os aspectos técnicos das
atividades de conservação e restauro e reafirma a cientificidade dessas
atividades. No primeiro artigo, as palavras: lugar; significado cultural, suporte
material (fabric), manutenção, preservação, restauração, reconstrução,
adaptação e compatibilidade, são conceituadas de maneira específica e
objetiva com o intuito de padronizar as terminologias utilizadas em projetos
de conservação de sítios, monumentos e áreas históricas. Os princípios e os
processos de conservação respeitam uma ordenação específica, similar
àquela que será apresentada na Carta de Washington, sem, no entanto, o
direcionamento voltado para o planejamento urbano exposto neste
documento.

A Declaração de Roma (1983) segue também o mesmo caminho da


Carta de Atenas ao priorizar a questão da cientificidade e dos critérios de
restauração e manutenção do patrimônio italiano como questão fundamental
daquele encontro. Exige da Universidade, dos Ministérios e das
Administrações Públicas uma ampliação da participação nessa área,
principalmente no que tange à formação de pessoal, criticando as ações de
profissionais desqualificados e, pela primeira vez, a formação específica é
cobrada: serious consequences due to the fact that architectural restoration
operations are too often awarded to insufficiently qualified professional of the private
and public sector. This situation proves the absolute necessity to employ competent

191
restorers, having received university level training and post-graduate level
specialised training (Declaration of Rome, ICCROM, 1982).

O encontro de Roma solicita ao Parlamento, ao Governo e às


administrações específicas uma maior integração na coordenação das
iniciativas didáticas, normativas, técnicas e culturais implantadas por
organismos nacionais e internacionais, cuidando na contratação de serviços
voltados aos bens culturais italianos, além de reafirmar a importância de
treinamento de técnicos, formação de cientistas e profissionais
especializados nas áreas de Conservação e Restauro. Em 1975, dez anos
depois da Carta de Veneza, a orientação do debate em torno de Sítios e
Monumentos Históricos encontra um outro direcionamento quando, na IV
Assembléia Geral do ICOMOS realizada em Rothenburg ob der Tauber,
Bélgica, registra-se a necessidade de preservação de pequenos centros
históricos como fator indispensável à manutenção de uma memória recente,
considerando os aspectos políticos, sociais e econômicos que envolvem este
tipo de patrimônio: Smaller historic towns can be classified into different types
which are characterised by problems in common and by specific features which vary,
among other things according to their size, cultural context and economic function.
Measures adopted to revitalise and rehabilitate such towns must be respect rights,
customs and aspirations of their inhabitants and must be responsive to communal
aims and objectives. Consequently, as regards both strategy and tactics, each case
must be judged in its own merits (Bruges Resolutions, ICOMOS, 1975.).

Neste documento, pela primeira vez não se olha apenas para a


materialidade do Patrimônio, para a estrutura dos complexos arquitetônicos
ou sítios arqueológico; a maior preocupação exposta no documento está
voltada para a população que vive no entorno ou no próprio centro histórico.
Os danos provocados pelos impactos ambientais não são vistos como fatores
isolados em si – poluição, variação de temperatura e umidade, ataque
biológico – mas como conseqüência das atividades econômicas de uma dada
organização social: a migração e o crescimento populacional descontrolado
ou o movimento inverso de abandono dessas localidades em função da
atração exercida pelos grandes centros urbanos; a necessidade de infra-

192
estrutura hospitalar, escolar e administrativa; a existência de atividades
econômicas, como indústrias extrativas ou de produção, indispensáveis à
sobrevivência financeira da população, todos esses fatores, somados ou
isolados, podem causar danos irreparáveis às pequenas cidades históricas.
Um exemplo do impacto social em uma cidade histórica de médio porte é a
atual situação da cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais: o crescimento
desordenado gerado pelo afluxo populacional produziu bairros como Bauxita
e Barra, totalmente descaracterizados em relação aos padrões da cidade
colonial; a poluição da ALCAN, empresa multinacional de alumínio, somada
ao desmatamento do entorno da cidade tem ocasionado enchentes e
deslizamentos constantes, colocando em perigo todo o Patrimônio
Arquitetônico do século XVIII.The gulf between the public authorities and the
people is the same as that between civil society and the past, due to the lack of
information, even though the inhabitants of colonial towns depend on tourism to their
own survival. Who are the strongest enemies of the preservation of these colonial
towns? First and foremost the town administration itself, unaffected by the social
problems and ignorant of cultural issues in general, but sometimes the inhabitants
too, unaware of the importance of the monuments, contribute to the deformation of
the urban setting. New windows, parabolic antennae, garages, roofs, and whole
houses are enough to transform a colonial town into a modern one, a mere shadow
of an old colonial town, as is the case with so many of them” (GRAMONT, apud
FUNARI, 2001, p. 25).

Como exemplo oposto de revitalização, a cidade de Goiás-Velho, no


Estado de Goiás, procurando fazer parte da World Heritage List, tem
procurado afirmar sua valorização histórica investindo na infra-estrutura física
da cidade e utilizando o turismo como fonte de renda da população: a
produção de Alfinins e doces típicos da região; a educação para a
consciência da importância da cidade nos programas educacionais do ensino
básico e médio da localidade e a parceria entre a administração e a
comunidade tem proporcionado uma revitalização dessa pequena cidade de
não mais de 10000 habitantes. As atividades rurais no entorno da cidade
também tem sido orientadas pelos técnicos da EMATER no que tange à
utilização adequada do solo; os problemas das queimadas, desmatamentos e

193
uso de defensivos químicos na agricultura e a necessidade de se preservar
as cachoeiras e manter a vegetação dos leitos dos rios. Como colocado na
própria Resolução de Bruxelas (Bruges Resolutions, ICOMOS, 1975): In many
places, the preservation of smaller towns has largely been the result of local initiative
and such worthwhile activities must be encouraged and supported.

Como decorrência desse primeiro documento, outras discussões


abordam as questões sociais e a inserção do conceito de patrimônio sob a
ótica do mundo contemporâneo: Recommendation on the Role of Historic
Areas (1976); The Burra Charter (1981); Deschambault Charter (1982); First
Brazilian Seminar about the Preservation and Revitalization of Historic
Centers (1987); New Orleans Charter (1992) e A Preservation Charter for the
Historic Towns and Areas of U.S (1992). Desde 1960, tanto os organismos
nacionais quanto os internacionais de preservação afirmaram a importância
do registro escrito das práticas e dos princípios da conservação. A prática da
formalização dos conceitos e critérios envolvidos no tema, possibilita a
percepção da coerência e das contradições das propostas, bem como a
importância relativa dada a cada um dos problemas concernentes à
construção filosófica das demandas e à instrumentalização efetiva das ações.

Na XIX Conferência Geral da UNESCO realizada em outubro de 1976


em Nairobi – Recomendações concernentes à Salvaguarda e Papel
Contemporâneo de Áreas Históricas –, a questão humana foi crucial no
desenvolvimento dos debates: as áreas de preservação foram vistas como
um espaço de convivência do passado e do presente de alguns
agrupamentos humanos e a integração desses tempos percebida como
fundamental no planejamento racional do desenvolvimento daquela
sociedade específica: every historic area and its surroundings should be
considered in their totality as a coherent whole whose balance and specific nature
depend on the fusion of the parts of which it is composed and which include human
activities as much as building, the spatial organisation and the surroundings
(Recommendation Concerning the Safeguarding and Contemporary Role of Históric
Áreas, 1976). Em nome da modernização, o final do século XIX e o início do
século XX viram um processo de destruição acelerada dos testemunhos

194
históricos com a demolição de edifícios e monumentos arquitetônicos,
objetivando sua substituição por outros edifícios que atendessem as
demandas econômicas e sociais. A partir da década de 70, a preocupação
com o crescimento desordenado preocupa várias áreas de estudo: a questão
do recall ou reaproveitamento na Arquitetura; o desenvolvimento controlado e
auto-sustentável na Ecologia e as questões demográficas na Geografia
Humana, constantemente avaliadas pela UNESCO como forma de
determinar padrões mínimos aceitáveis de subsistência de acordo com os
índices de mortalidade infantil, miséria, fome, violência.

Como princípio geral do documento de Nairobi (1976) –


Recomendações concernentes à Salvaguarda e Papel Contemporâneo de
Áreas Históricas – é colocada a obrigatoriedade de o governo responder pela
preservação e integração com a sociedade de seu patrimônio cultural,
principalmente o patrimônio histórico edificado: a alocação de recursos; o
estabelecimento de estratégias, pesquisas e projetos de integração; a criação
de legislação e a fiscalização ficam subordinadas à responsabilidade da
administração pública, a qual pode ser auxiliada pela iniciativa privada por
meio de parcerias e cobrada pela comunidade pelos seus atos. Com o intuito
de uma ação mais expressiva, recomenda-se que os planos de fiscalização,
controle e planejamento das cidades históricas propostos pela administração
específica – prefeitura – devem ser submetidos a uma comissão
multidisciplinar – conservadores, historiadores, arquitetos, sociólogos,
economistas, ecologistas, especialistas em saúde pública e bem estar social
–, sendo indispensável que qualquer ato de reforma, ocupação ou demolição
sejam avaliados. Uma das maiores preocupações desse documento é a
questão das ações indiscriminadas de demolição que ocorreram na primeira
metade do século a partir da autonomia do Estado e dos proprietários.

Enquanto o documento de Nairobi cobrava do Estado uma


responsabilidade específica, a Carta de Quebec (1982) proclamava o
envolvimento da população como questão fundamental à preservação dos
bens patrimoniais, colocando como exemplo o próprio acervo de Quebec.
This individual and collective commitment resulted in significant achievements in the

195
areas of preservation, stimulation of community participation and development.
Whether through municipal, provincial or federal programs, large-scale projects or
more modest actions, the people of Quebec have show that they are interested in
their heritage and are determined to revive it. Algo interessante no documento
canadense é a consciência histórica da formação cultural de seu povo
registrada na carta, dando suporte à justificativa política de preservação de
Quebec: local de lutas dos nativos americanos, os primeiros habitantes da
região, a cidade de Quebec foi primeiramente francesa e então colônia
inglesa até transformar-se em uma confederação canadense. A história
política de Quebec é marcada pelo esforço em se preservar o francês e sua
formação católica em um continente norte-americano predominantemente
inglês e protestante. O conceito de patrimônio é definido, na carta, para além
do significado material de posse de edifícios antigos erguidos em um
passado distante e seu valor perpassa pelo significado que representa para a
comunidade: heritage is a reality, a possession of the community, and a rich
inheritance that may be passed on, which invites our recognition and our
participation. Como conseqüência dessa visão diferenciada, pela primeira vez
a palavra cidadão como agente de preservação é colocada em pauta, sendo
imputadas a cada indivíduo a responsabilidade e a participação na proteção
dos bens culturais da coletividade: o povo tem o legítimo direito de participar
de qualquer decisão relativa às ações de intervenção, controle e uso do
patrimônio, devendo ser esclarecido e informado sobre todas as questões
que envolvam seus bens culturais; o patrimônio nacional é um tesouro que
pertence a toda a comunidade; é precioso e insubstituível.

Cinco anos mais tarde, no Primeiro Seminário brasileiro sobre a


preservação e a revitalização de centros históricos (1987), as demandas
relacionadas à necessidade de envolver a comunidade nas ações
preservacionistas se repetem. Nos princípios básicos está escrito: the main
purpose of preservation is the maintenance and enhancement of reference patterns
need for the expression and consolidation of citizenship. It is through the outlook of
the citizen’s political appropriation of urban space that preservation may contribute to
improve life quality.

196
Quebec, Roma e Brasil propõem a percepção social, do ponto de vista
da integração das sociedades modernas aos monumentos históricos, como
uma forma de lidar com os problemas da preservação. É, no entanto, na
Carta de Nova Zelândia, em 1992, que as comunidades indígenas são
consideradas como agentes de preservação de sua própria cultura. Nova
Zelândia possui um acervo arqueológico, etnográfico, histórico e natural
único, sendo a herança Maori e Mariori formada não apenas pelas coisas de
natureza física, mas pelos relatos familiares, agrupamentos tribais e
cerimoniais que mantêm vivas suas tradições culturais. O Tratado de
Waitangi é a base histórica da confirmação da sociedade indígena como
mantenedora e guardiã de sua própria cultura: This interest extends beyond
current legal ownership wherever such heritage exists. Particular knowledge of
heritage values is entrusted to chosen guardians. The conservation of places of
indigenous cultural heritage value therefore is conditional on decisions made in the
indigenous community, and should proceed only in this context. Indigenous
conservation precepts are fluid and take account of the continuity of life and the
needs of the present as well as the responsibilities of guardianship and association
with those who have gone before. In particular, protocols of access, authority and
ritual are handled at a local level. General principles of ethics and social respect
affirm that such protocols should be observed (New Zealand Charter, ICOMOS,
1992.).

A prática da conservação, exercida de maneira integrada entre


profissionais especializados e a própria comunidade indígena, admite o
respeito não apenas em relação à materialidade do objeto, mas sua condição
sacra ou de uso originada em sua própria comunidade. A comunidade, neste
caso, participa não apenas da reflexão acerca da preservação, mas de sua
ação efetiva. Não obstante de as questões sociológicas serem abordadas em
vários documentos, a maioria prioriza a prática científica da conservação e
restauro ou o planejamento urbano dos centros históricos, como a base das
ações preservacionistas. Em outubro de 1987, na Assembléia Geral do
ICOMOS realizada nos Estados Unidos, a Carta de Washington – como ficou
conhecido o documento elaborado no encontro – traz o resultado de doze
anos de discussões com respeito aos centros históricos em áreas urbanas,

197
em função das reflexões acerca do impacto da industrialização nas
sociedades modernas que convivem com monumentos que perpetuam o
passado e edificações que respondem ao presente. Aliada à diversidade
temporal, a maior parte desses centros urbanos traz a diversidade cultural,
sendo indispensável ao planejamento e à manutenção dos aspectos
característicos de cada zona o conhecimento de seu desenvolvimento
histórico. Mesmo considerando os aspectos humanos, os princípios e
objetivos descritos na carta enfatizam as estratégias de planejamento urbano
e, ao contrário das recomendações dos documentos canadense e brasileiro,
não envolve o cidadão nesse processo de revitalização e valorização dos
centros históricos. A Carta de Washington (1987) significou a manutenção
dos encaminhamentos da Carta de Veneza (1964) e também a continuidade
das ações de planejamento urbano relacionado aos centros históricos que foi
discutido pela Carta de Florença (1982). Este documento, forjado pelo
International Commitee for Historic Gardens – ICOMOS/IFLA, ampliou as
discussões sobre centros históricos em áreas urbanas considerando, não
apenas os monumentos arquitetônicos ali apresentados, mas os jardins
históricos que fazem parte desse cenário: As a monument, the historic garden
must be preserved in accordance with the spirit of the Venice Charter. However,
since it is a living monument, its preservation must be governed by specific rules
which are the subject of the present charter.

Enquanto os primeiros documentos relativos aos centros históricos,


monumentos e sítios enfocavam os aspectos das Ciências Exatas na prática
conservacionista das ações de preservação – as práticas de laboratório, as
técnicas e os materiais empregados –, os registros subseqüentes até então
analisados se direcionaram aos aspectos políticos, sociais e econômicos
relativos ao impacto da industrialização em zonas históricas e, nesse último
momento, as questões relativas ao planejamento urbano dessas áreas. Um
outro caminho de análise é a ação internacional conjunta proposta desde a
Carta de Atenas: Convenção Cultural Européia (1954); As Normas de Quito
(1967), A Convenção sobre a proteção do patrimônio mundial, cultural e
natural (1972) e A Convenção de San Salvador (1976).

198
A conferência de Atenas, convencida de que as questões de
conservação de propriedades artísticas, arqueológicas ou históricas da
humanidade devem ser vistas como um patrimônio comum enquanto
testemunho da civilização, ressalta a importância de iniciativas e reflexões
comuns, com a participação do maior número de nações possíveis. A
Convenção Cultural Européia, realizada em 1954 segue os mesmos
princípios: apesar de estar direcionada ao patrimônio europeu, procura nas
ações integradas um meio de controlar problemas concernentes à posse de
bens patrimoniais. O caso desta convenção é específico, principalmente
neste Continente, uma vez que os conflitos territoriais europeus, as disputas
étnicas, as conquistas coloniais geraram um intercâmbio contínuo de obras
de arte, objetos, elementos arquitetônicos e arqueológicos de um lado para
outro em toda Europa. No documento está escrito: considering that the aim of
the Council of Europe is to achieve a greater unity between its Members for the
purpose, among others, of safeguarding and realising the ideal and principles which
are their common heritage, (...) have agreed as follows: each Contracting Party shall
take appropriate measures to safeguard and to encourage the development of its
national contribution to the common cultural heritage of Europe.

Com uma redação pautada pela linguagem jurídica, mais parecendo


uma ação de divórcio do que um documento forjado na implantação de uma
política de cooperação, a todo momento se refere às “partes contratantes”
interessadas na preservação e promoção da cultura européia. Não podemos
nos esquecer que a década de cinqüenta na Europa foi pautada mais por
uma sedimentação dos blocos capitalistas versus comunistas, resultando na
construção do muro de Berlim em 1961, do que na busca de uma possível
união dessas nações: em 1955 o Pacto de Varsóvia, assinado pelos países
do Leste Europeu e a criação do Mercado Comum Europeu em 1957, pelos
países do Oeste, demonstram essa cisão. Posteriormente, os documentos
direcionados ao patrimônio europeu, principalmente aqueles específicos do
patrimônio arquitetônico, formalizaram propostas mais coesas e palpáveis de
ações integradas entre os Estados-membros do Conselho da Europa.

199
Se o primeiro documento gerado pelo Conselho Europeu parece
retratar a fragilidade das relações entre as nações européias, a proposta
elaborada pela Organização dos Estados Americanos (1967) reproduz uma
vontade comum de realizar um trabalho integrado no que concerne à
proteção do patrimônio Latino-Americano. No relatório final do primeiro
encontro para a preservação e utilização de monumentos e sítios de valor
artístico ou histórico, realizado em Quito, na introdução é colocada
claramente a necessidade de uma ação integrada dos governos do
continente americano. No encontro realizado em Punta del Este (1967), na
Declaração dos Presidentes, no item segundo referente às instruções das
agências da Organização dos Estados Americanos está escrito: Extend inter-
American co-operation to the preservation and use of the archaeological, historic and
artistic monuments. No Conselho Cultural Inter-Americano também lê-se: ...the
extension of technical assistance and financial aid to the cultural patrimony of
member states will be carried out as part of their economic and tourist travel
development.

A avaliação crítica em relação ao patrimônio monumental americano


coloca que, apesar da abundância de vestígios da cultura pré-colombiana e
da representativa variedade de estilos arquitetônicos resultantes dos
processos de colonização e imigração – européia, asiática e africana –, não
há uma ação mais efetiva direcionada à sua preservação e integração social.
O processo de crescimento desordenado e a expansão das atividades
industriais na segunda metade do século XX contribuíram sobremaneira para
a destruição contínua dos sítios históricos. As Normas de Quito propõem
como uma solução de reconciliação a elaboração de planos regulamentares
de adaptação entre as demandas do crescimento urbano e a proteção dos
centros históricos: The protection and enhancement of the monumental and artistic
heritage does not conflict in either theory or practice with a scientifically develop
policy of urban planning. On the contrary, it should serve to complement such a
policy. Ainda que esta proposta pareça preconizar as demandas colocadas na
Carta de Quebec (1982) ao colocar a necessidade primordial de integrar o
conceito de patrimônio ao meio social, o documento canadense restringe

200
suas orientações ao espaço físico restrito de Quebec, apesar dessa reflexão
particular ser passível de uma aplicação mais ampla. As Normas de Quito,
ao contrário, impõem a necessidade do diálogo entre os países americanos
como uma forma de preservar esta identidade, mesmo diante de um
contexto multi-cultural: continuity of the latin American history and cultural horizon,
seriously compromised by overwhelming acceptance of chaotic process of
modernisation, require the adoption of measures for the protection, recovery and
enhancement of the regional monumental heritage and the preparation of both
immediate and long-range national and multi-national plans.

Dentro desse mesmo espírito de cooperação, a Convenção sobre a


proteção do patrimônio mundial, cultural e natural (1972), realizada em Paris,
apesar de considerar os aspectos econômicos e sociais nos processos de
degradação dos bens culturais existentes em todo mundo, conduz o debate
em torno de dois eixos centrais: a ação intervencionista internacional e a
responsabilidade dos Estados onde se encontram cada bem cultural
existente. É a partir desta convenção que a UNESCO financia o projeto da
World Heritage List, como também a List of the World heritage in Danger.
Considerando que certos bens do Patrimônio Cultural e natural significam um
interesse excepcional, exigindo sua conservação como uma herança para a
humanidade inteira, o encontro de Paris aprova as definições específicas do
que vem a ser Patrimônio Cultural e Patrimônio Natural, determinando que
cada Estado-membro da ONU, presente na Convenção, reconheça sua
obrigação de identificar, proteger, conservar, reabilitar e transmitir às
gerações futuras o patrimônio situado em seu território; com o objetivo de
garantir essa proteção a UNESCO, através do instrumento legal aprovado
pela convenção, criou o Comitê do Patrimônio Mundial, composto por quinze
representantes de cada Estado eleitos durante as reuniões, responsável pela
publicação da Lista do Patrimônio Mundial (World Heritage List).

Tanto a World Heritage List, como a List of the World Heritage in


Danger tiveram por objetivo oficializar as ações integradas de preservação,
propostas pela UNESCO desde sua fundação. Em relação ao patrimônio em
perigo: list for the conservation of which major operations are necessary and for

201
which assistance has been requested under this Convention. This list shall contain
an estimate of the cost of such operations. The list may include only such property
forming part of the cultural and natural heritage as is threatened by serious and
specific dangers, such as the threat of disappearance caused by accelerated
deterioration, large-scale public or private projects or rapid urban or tourist
development projects; destruction caused by changes in the use or ownership of the
land; major alterations due to unknown causes; abandonment for any reason
whatsoever; the outbreak or the threat of an armed conflict; calamities and
cataclysms; serious fires, earthquakes, landslides; volcanic eruptions; changes in
water level, floods and tidal waves.

Com a formalização do Comitê do Patrimônio Mundial em 1972, a


UNESCO outorgou poderes a um organismo internacional para estudar os
pedidos de ajuda, as demandas e as intervenções necessárias para
assegurar a preservação de bens patrimoniais considerados mais
representativos. Desde então, ano após ano, vários países entram com
projetos solicitando a inclusão de centros históricos, cidades, monumentos ou
áreas naturais nessa lista. A inclusão de um determinado sítio na WHL, não
significa o apoio financeiro da UNESCO na manutenção dessa área, mas o
compromisso internacional do Estado sob o qual esse patrimônio está sob
custódia de cumprir com suas obrigações administrativas no que diz respeito
à preservação. Nesse mesmo encontro ficou estabelecido – nas
Recomendações relativas à Proteção, nas esferas nacionais, do patrimônio
cultural e natural – o compromisso dos Estados-membros de implantar
políticas internas de salvaguarda de seu patrimônio nacional, seguindo as
recomendações propostas em relação ao patrimônio cultural e natural
mundial, conforme o documento anterior.

Seguindo a mesma linha de conduta, a Convenção para a Proteção do


Patrimônio Arqueológico, Histórico e Artístico das Nações Americanas,
ocorrida em 1976 em San Salvador, procurou definir como premissa básica
para qualquer tipo de acordo entre os países americanos, o respeito às
propriedades culturais através de ações coercitivas à importação e
exportação ilegal, bem como o incentivo às ações de auxílio mútuo no que

202
tange a preservação desse patrimônio. Com o intuito de anular qualquer
forma de preconceito em relação à arte e cultura pré-colombiana, no artigo
segundo do texto é mencionado que a propriedade cultural inclui como uma
de suas categorias, monumentos, objetos, fragmentos, ruínas e materiais
arqueológicos pertencentes às culturas existentes antes do contato com a
cultura européia, como também os vestígios das ações humanas, fauna e
flora relacionados a estas culturas. Na Convenção de San Salvador,
realizada em 1976, a propriedade cultural americana é classificada de acordo
com as seguintes categorias:

a) Monumentos, objetos, ruínas e materiais arqueológicos pertencentes à


cultura americana anterior ao contato com a cultura européia, bem
como os vestígios das ações humanas, fauna e flora dessas culturas;

b) Monumentos, edifícios, objetos de natureza artística, utilitária ou


etnológica, como também fragmentos da era colonial e do século XIX;

c) Bibliotecas e arquivos, incunabula e manuscritos; livros e outras


publicações, iconografias, mapas e documentos publicado antes de
1850;

d) Todos os objetos originados após 1850 que os Estados-membros da


OEA admitem como propriedade cultural;

e) Toda propriedade cultural que qualquer Estado-membro declare


incluída no escopo desta convenção.

A delimitação temporal de 1850 é dada pela independência da maioria


dos estados americanos nessa época, mas não responde mais ao conceito
de memória, uma vez que documentos da memória recente das ditaduras
latino-americanas são registros importantes do passado e fazem parte da
herança de cada país, considerando que o valor do patrimônio herdado
também é atribuído pela quantidade de luz que ele lança sobre o
reconhecimento histórico de cada um de nós. Ao contrário, reafirma o valor
da cultura colonial e a dependência dos povos conquistados: Os elementos de
cultura material apontados ad nauseam como exemplos de adaptação do
colonizador ao colonizado não deveriam ser chamados a provar mais do que podem.

203
Ilustram o uso e abuso do nativo e do africano pelo português (inglês, francês,
espanhol) tanto no nível do sistema econômico global quanto nos hábitos enraizados
na corporeidade. Por quê idealizar o que aconteceu? Deve o estudioso brasileiro
competir com outros povos irmãos para saber quem foi melhor colonizado? Não me
parece que o conhecimento justo do processo avance por meio desse jogo
inconsciente e muitas vezes ingênuo de comparações que necessariamente
favoreçam o nosso colonizador (BOSI, 1982, p. 29).

As discussões sobre a essência da preservação dos sítios,


monumentos e centros históricos percorrem caminhos que vão desde o
caráter científico pragmático da preservação – a restauração material do
objeto – até os significados culturais que o Patrimônio Histórico, a herança do
passado, representa para uma coletividade específica ou para a humanidade
como um todo. Entre o patrimônio e a cultura não há relação de termos
distintos: o problema encontra-se na esfera do significante e do significado da
memória dentro do sistema social. Por definição, Patrimônio Histórico pode
ser tudo e qualquer coisa – material ou imaterial – que mantenha viva a
memória de um determinado tempo. Dentro do sistema cultural moderno, os
monumentos e centros históricos admitem uma figura disciplinar complexa: a
integração entre o novo e o velho nem sempre ocorre de maneira linear e os
processos de socialização e sociabilidade dos bens culturais ocorre por meio
de uma única via, a educação. Não a educação pensada no seu sentido
restrito, mas a educação forjada na convivência, na consciência, na
participação e na ação efetiva. Há não muito tempo, Joachim Hermann (1989: 36)
sugeriu que “uma consciência histórica é estreitamente relacionada com os
monumentos arqueológicos e arquitectónicos e que tais monumentos constituem
importantes marcos na transmissão do conhecimento, da compreensão e da
consciência históricos”. Não há identidade sem memória, como diz uma canção
catalã: “aqueles que perdem suas origens, perdem sua identidade também” (Ballart,
1997: 43). Os monumentos históricos e os restos arqueológicos são importantes
portadores de mensagens e, por sua própria natureza como cultura material, são
usados pelos actores sociais para produzir significado, em especial ao materializar
conceitos como identidade nacional e diferença étnica. Deveríamos, entretanto,
procurar encarar estes artefactos como socialmente construídos e contestados, em

204
termos culturais, antes que como portadores de significados inerentes e ahistóricos,
inspiradores, pois, de reflexões, mais do que de admiração (Potter, s.d.). Uma
abordagem antropológica do próprio património cultural ajuda a desmascarar a
manipulação do passado (Haas, 1996). A experiência brasileira, a esse respeito, é
muito clara: a manipulação oficial do passado, incluindo-se o gerenciamento do
patrimônio, é, de forma constante, reinterpretada pelo povo. Como resumiu António
Augusto Arantes (1990: 4): “o patrimônio brasileiro preservado oficialmente mostra
um país distante e estrangeiro, apenas acessível por um lado, não fosse o fato de
que os grupos sociais o re-elaboram de maneira simbólica”. Esses estratos são os
excluídos do poder e, assim, da preservação do patrimônio (FUNARI, 2001, p. 24).

Os desafios relacionados à filosofia, ética e diretrizes nas ações


concernentes à preservação perpassa pelos próprios desafios estruturais das
sociedades capitalistas ou das sociedades fundamentais em hierarquias
étnicas, por castas ou qualquer outro tipo de conduta que privilegie uma visão
de mundo em detrimento de outra: o discurso oficial transmitido através da
educação, da construção de museus, da seleção do que “merece” ser
preservado, enfim, a condução dos recursos financeiros, esforços humanos e
discursos acadêmicos ou intelectuais mantêm as estruturas de dominação ao
invés de permitir a multiplicidade ou a multiplicação de identidades. O
discurso que nivela, mascara e silencia as diferenças.

205
5.2. Patrimônio Arqueológico
Since the aim of archaeology is the understanding of
humankind, it is a humanistic discipline, a humane study. And
since it deals with the human past it is a historical discipline.
But it differs *from the study of written history – although it
uses a written history – in a fundamental way: the material the
archaeologists find does not tell us directly what to think.
Colin Renfrew e Paul Banh, Archaeology: theories, method
and practice, 1991, p. 10.

7. Petroglifo da Praia da Joaquina –-SC

A atividade humana na Ilha de Santa Catarina teve início por volta de 5000 anos
atrás, com a chegada dos primeiros caçadores e coletores, grupos pré-ceramistas
que construíram os Sambaquis. Depois dos caçadores e coletores, ocuparam
também o território ilhéu os ceramistas Itararé, vindos do planalto e, finalmente, o
Carijó, índio guarani que viria a ter o contato com o europeu colonizador.
Crédito da foto e do texto: Rodrigo Aguiar

http://www.geocities.com/Athens/Acropolis

206
Não há como separar os conceitos de Patrimônio Histórico, Artístico,
Arqueológico ou Arquitônico, pois todos, de uma maneira geral, estão
circunscritos na esfera da cultura. O que na verdade difere é a abordagem
que move cada grupo de cientistas, pesquisadores e agentes culturais ao
formular os paradigmas, os conceitos e critérios, os códigos simbólicos que
estruturam suas relações com os objetos relacionados: suas intenções
últimas definidas dos discursos propostos. Com o intuito de operacionalizar
este trabalho, estes foram os documentos específicos ao tema Patrimônio
Arqueológico, sem desconsiderar que todos os outros documentos em algum
momento mencionam essa categoria:

1) Carta de Atenas para a restauração de monumentos históricos –


adotada pelo I Congresso de Arquitetos e Técnicos de Monumentos,
Atenas, 1931.

2) Recomendação Internacional dos Princípios Aplicados à Escavação


Arqueológica – Nova Delhi, dezembro de 1956.

3) Carta de Veneza – Carta internacional para a conservação e


restauração de monumentos e sítios – II Congresso Internacional de
Arquitetos e Técnicos em Monumentos Históricos, Veneza, maio de
1964.

4) Normas de Quito – Relatório final do encontro sobre a preservação e


utilização de monumentos e sítios de valor histórico e artístico, Quito,
dezembro de 1967.

5) Convenção sobre a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural


– Paris, novembro de 1972.

6) Convenção sobre a proteção do Patrimônio Arqueológico, Histórico e


Artístico das nações americanas – San Salvador, junho de 1976.

7) Gerenciamento e Proteção do Patrimônio Arqueológico –, Lausanne,


outubro de 1990.

8) Convenção Européia para a Proteção do Patrimônio Arqueológico –


La Valette, 1992.

207
Como visto anteriormente, a Carta de Atenas foi o primeiro instrumento
internacional destinado à regulamentar os princípios gerais e as doutrinas
relacionadas à proteção de sítios históricos e monumentos. Conforme
declarações da própria carta: the members of the Conference, after having visited
in the course of their deliberation and during the study cruise which they were able to
make in this occasion, a number of excavation sites and ancient Greek monuments,
unanimously paid a tribute to the Greek Government which, for many years past, has
been itself responsible for extensive works and, at the same time, has accepted the
collaboration of archaeologists and specialists from every country. Os membros
presentes acentuam então as vantagens e os alcances das cooperações
entre áreas intelectuais e internacionais. Ao acentuar as questões da
restauração como fator primordial à preservação, dando ênfase aos
problemas gerados por projetos mal elaborados, e ao mencionar as
atividades arqueológicas como integradas ao processo de preservação, inclui
este campus específico das Ciências Humanas no universo conceitual das
ações de preservação.

O documento seguinte – Recommendation on International Principles


Applicable to Archaeological Excavations –, gerado apenas em 1956, irá
abordar propriamente o tema, conduzindo o debate em torno dos seguintes
eixos temáticos:

a) Regulamentações governamentais e colaboração


internacional nas escavações;

b) Comércio de antigüidades;

c) Repressão às escavações clandestinas e à exportação ilegal


de descobertas arqueológicas;

d) Escavações em territórios ocupados;

e) Acordos bilaterais.

Na apresentação do documento, como de praxe, o assunto é abordado


a partir de sua pertinência no meio cultural, científico e acadêmico, sendo
apresentadas as justificativas concernentes ao tema. O documento

208
esclarece: considerando a importância da preservação de monumentos e vestígios
do passado; convencidos de que esses estudos promovem o entendimento entre as
nações; considerando que os governos de cada país devem ser orientados por
certos princípios já comprovados e que a partir da regulamentação das escavações
de acordo com a jurisdição própria, os princípios básicos soberania podem conviver
harmonicamente com a liberdade de entendimento e o livre intercâmbio
internacional, os Estados-membros da UNESCO assinam esse documento
(Recommendation on International Principles Applicable to Archaeological
Excavation, UNESCO, 1956).

Como “Escavação Arqueológica” a Carta define qualquer pesquisa


direcionada à descoberta de objetos de caráter arqueológico, quando estas
pesquisas envolvem escavar a terra, exploração sistemática da superfície,
exploração do subsolo ou das águas territoriais de cada Estado-membro; as
prerrogativas expostas nas recomendações propostas aplicam-se em
qualquer local cuja preservação seja de interesse público do ponto de vista
da história da arte e da arquitetura. No que se refere às descobertas
arqueológicas, o pesquisador é obrigado a declarar suas descobertas –
móveis ou imóveis –, ficando subordinado às leis locais. De acordo com essa
perspectiva, fica estabelecido que o pesquisador deverá realizar as
escavações mediante autorização prévia das autoridades competentes;
qualquer pessoa que encontre um vestígio arqueológico deve declarar à
autoridade competente; os Estados devem prever penalidades a quem
infringir essas regulamentações; objetos não declarados ficam sujeitos ao
confisco; os Estados devem definir o status legal do subsolo arqueológico; a
classificação dos monumentos históricos é dada pelos elementos essenciais
do Patrimônio Arqueológico.

Estas normatizações, um tanto quanto óbvias para aqueles que já


trabalham na área há alguns anos, formalizaram os princípios éticos básicos
da pesquisa arqueológica. Se pensarmos que a prática indevida desta
profissão está na origem de saqueadores e aventureiros, nada mais correto
do que enunciar o que pode parecer evidente: archaeology is partly the
discovery of treasures of the past, partly meticulous work of scientific analyst, partly

209
exercise of the creative imagination (RENFREW, C. 1991, p. 9). Nos textos sobre a
construção do pensamento arqueológico, pouco se falou na estruturação
ética da prática desta profissão. Um dos avanços desse documento da
metade deste século é colocar quais são os direitos e as obrigações do
arqueólogo, bem como a jurisprudência relativa ao comércio de antigüidades.
Quanto ao comércio, as regulamentações governamentais devem coibir o
contrabando de artefatos, possibilitando, porém, que museus estrangeiros
adquiram objetos que estejam livres de qualquer tipo de restrição legal tanto
no país receptor quanto no país de origem.

Este documento foi elaborado onze anos após a Segunda Grande


Guerra, e nele se encontra o primeiro registro das preocupações em relação
às escavações em territórios ocupados: in the event armed conflict, any Member
state occupying the territory of another State should refrain from carrying out
archaeological excavations in the occupied territory. In the event on chance finds
being made, particularly during military works, the occupying Power should take all
possible measures to protect these finds, which should be handed over, on the
termination of hostilities, to the competent authorities of the territory previously
occupied, together with all documentation relating thereto. Ao menos teoricamente
este acordo mútuo entre os países membros parece por fim a uma das
práticas mais comuns, sancionada desde a antigüidade e praticada sem
nenhuma animosidade pelos governos civilizados europeus até a Segunda
Grande Guerra, a saber, a ação indiscriminada dos espólios de guerra. Os
objetos mantidos fora do circuito das atividades econômicas acumulavam-se não só
nos templos, mas também nas residências dos detentores do poder: os
embaixadores levavam-lhes presentes, que eram por vezes mostrados às multidões
que assistiam à sua chegada, e sempre aos cortesãos; afluíam aí também tributos e
despojos.(...) Em Roma, o general que voltava de uma campanha vitoriosa tinha o
privilégio de fazer ostentação dos homens que tinha submetido e das riquezas que
tinha conquistado (POMIAM, 1984, p. 58). De acordo com o relato de Pomian,
Plínio na Naturalis historia, relata o triunfo de Pompeu a partir da relação dos
espólios de guerra. Objetos de desejo, artefatos arqueológicos nunca foram
apenas objetos de estudo e é nessa relação invisível que reside o perigo.

210
O documento seguinte, a Carta de Veneza (1964), dá continuidade à
Carta de Atenas (1931), pois mantêm como foco de preocupação o controle
das atividades de restauração e a conservação de sítios e monumentos.
Sendo resultado de um encontro que deu origem ao ICOMOS, este registro
reafirma os padrões científicos e as recomendações definidas no documento
de 1956, no que tange à prática da escavação. Contudo, como as discussões
são produtos do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de
Monumentos Históricos, os aspectos arquitetônicos dos monumentos
parecem ser mais relevantes do que as questões arqueológicas. A
nomenclatura “técnicos de monumentos históricos” encontra-se situada
naquela categoria de que tudo pode ser qualquer coisa. Do mesmo modo,
pelo fato de a legislação brasileira não reconhecer várias profissões das
áreas de Ciências Humanas, entre elas arqueólogos, historiadores e
restauradores, no Catálogo Brasileiro de Profissões aparece a nomenclatura
“técnico de museu”, reunindo desde o numismata até o montador de
exposição.

Como relatado no item anterior, As Normas de Quito (1967) constituem


um dos primeiros documentos a abordar o acervo patrimonial das Américas.
Não trata apenas do Patrimônio Histórico, mas suas referências abarcam o
Patrimônio Artístico e Arqueológico, principalmente aquele que guarda
vestígios do período pré-colombiano. O documento indica a necessidade de
se produzir um diálogo entre o patrimônio e a sociedade; a história e a
memória; o conhecimento e o envolvimento resultante deste no que tange à
participação social. O turismo cultural não é visto como uma atividade em si,
mas como resultante do processo da pesquisa.

Na Convenção sobre a proteção do patrimônio mundial, cultural e


natural (1972), nas definições do Patrimônio Cultural e Natural, os elementos
ou estruturas de caráter arqueológico, que tenham um valor universal
excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, é colocado
em evidência no artigo primeiro. Não há nenhuma referência específica às
ações voltadas para a preservação do Patrimônio Arqueológico, apenas sua
inclusão nos parâmetros de definição do Patrimônio Cultural. Como foi visto,

211
as políticas governamentais e intergovernamentais são prerrogativas do
encaminhamento desse discurso. A Convenção sobre a proteção do
Patrimônio Arqueológico, Histórico e Artístico das nações Americanas –
realizada em San Salvador, em junho de 1976, segue a mesma orientação
da convenção anterior: as ações políticas parecem ser o foco dos debates.

Na Carta de San Salvador, porém, ressalta-se que o patrimônio Latino-


Americano é o mais atingido e que: that such acts on pillage have damaged and
reduced the archaeological, historical, and artistic wealth, though which the national
character of their peoples is expressed. Um olhar mais atento sobre esta
constatação percebe que, com um certo atraso histórico, as nações
americanas começaram a se posicionar em relação à pesquisa e à retirada
indiscriminada de seus testemunhos culturais; todo o século dezenove
conheceu no território americano as idas e vindas de cientistas, etnólogos,
arqueólogos, naturalistas europeus e suas andanças para a formação de
Museus e coleções particulares na Europa: Os dois geógrafos e topólogos
alemães Alphous Stübel e Wilhelm Reisss percorreram a Colômbia, o Equador, Peru
e Bolívia de 1869 a 1887 realizando trabalhos de suas especialidades, além de
escavações em sítios arqueológicos (Ancón, por exemplo). Stübell doou ao Museu
de Dresden uma grande parte de sua coleção etnográfica e arqueológica. Os
materiais da expedição de Stübel e Reiss foram trabalhados e publicados por Max
Uhle ( KÄSTNER, 1991, p. 162).

Com a proposta de proteger e salvaguardar o Patrimônio Cultural das


nações americanas, a identificação e o registro desse patrimônio são dados
como fundamentação para o controle e a coibição do tráfico ilícito. Mesmo
que tratado determine que o Estado é responsável pelas regulamentações
necessárias à manutenção do patrimônio sob seu território, é recomendada a
troca de informações sobre descobertas científicas e arqueológicas entre os
Estados-membros, com o intuito de dar suporte às teorias concernentes aos
povos pré-colombianos: como na África, os limites territoriais impostos pelo
colonizador e modificados pelas disputas internas nem sempre são os
mesmos daqueles vivenciados pelas civilizações extintas. Adotada por
unanimidade pelos membros da assembléia Geral, as indicações referentes

212
ao controle do tráfico ilícito de propriedade cultural presentes no documento
de San Salvador foram reiteradas, em 1990, pelos países da Costa Rica,
Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá e
Peru.

Menos amplo do que esses últimos registros, a carta do ICOMOS


sobre o Gerenciamento e Proteção do Patrimônio Arqueológico –, realizada
em Lausanne na Suiça, em outubro de 1990, se aproxima mais dos escritos
de 1956 ao se dirigir especificamente ao tema Patrimônio Arqueológico.
Cobrindo aspectos mais amplos e complexos do que apenas as questões
relativas ao comércio ou à pratica das escavações, o discurso focaliza a ação
arqueológica do ponto de vista ético e de formação profissional, cobrança
que desde 1931 caía sempre nas costas dos restauradores. Uma visão mais
consciente da própria área, compactuando com os escritos acerca da
pesquisa epistemológica da prática arqueológica – a História da Ciência da
Arqueologia – coloca a importância das investigações não apenas pelas
descobertas em si, mas também pelas pistas e pela luz que lançam sobre as
teorias e as linhas de pesquisas concernentes àquele objeto de estudo:

The archaeological heritage constitutes the basic record of past human


activities. Its protection and proper management is therefore essential to enable
archaeologists and other scholars to study and interpret it on behalf of and for the
benefit of present and future generations.
The protection of this heritage cannot be based upon the application of
archaeological techniques alone. It requires a wider basis of professional and
scientific knowledge and skills. Some elements of the archaeological heritage are
components of architectural structures and in such cases must be protected in
accordance with the criteria for the protection of such structures laid down in the
1966 Venice Charter. Other elements of the archaeological heritage constitute part of
the living traditions of indigenous peoples, and for such sites and monuments the
participation of local cultural groups is essential for their protection and preservation.
For these and other reasons the protection of the archaeological heritage
must be based upon effective collaboration between professionals from many
disciplines. It also requires the cooperation of government authorities, academic
researchers, private or public enterprise, and the general public. This charter
therefore lays down principles relating to the different aspects of archaeological
heritage management. These include the responsibilities of public authorities and
legislators, principles relating to the professional performance of the processes of
inventorization, survey, excavation, documentation, research, maintenance,
conservation, preservation, reconstruction, information, presentation, public access
and use of the heritage, and the qualification of professionals involved in the

213
protection of the archaeological heritage (Charter for the Protection and Management
of the Archaeological Heritage, ICOMOS, 1990).
No documento, o Patrimônio Arqueológico representa a parte de um
patrimônio material sobre o qual os métodos arqueológicos proporcionam as
informações primárias. Ele compreende todos os vestígios de existência
humana e se refere aos locais onde tenha se manifestados qualquer tipo de
atividade humana, incluindo estruturas abandonadas e registros de todos os
tipos (subterrâneos ou subaquáticos), sendo associado a todos os tipos de
cultura relacionada a ele. Com esta definição, a Arqueologia vem como
disciplina básica, indispensável à prática do resgate de testemunhos
enterrados, submersos ou abandonados, admitindo-se que seu corpo
científico teria prioridade nas atividades científicas, no que tange à ordem das
investigações, pois, caso contrário, outras práticas envolvidas poderiam
desaparecer com registros que pareceriam sem importância a um leigo, mas
que seria fundamental à construção teórica do saber arqueológico: the
archaeological heritage is a fragile and non-renewable cultural resource.

Em relação à investigação do Patrimônio Arqueológico, a Arqueologia


é vista como uma pesquisa científica voltada para esse tipo de patrimônio,
admitindo que a mesma abarca toda uma gama de métodos não destrutivos
voltados para amostragem ou para a análise global do sítio:

It must be an overriding principle that the gathering of information about the


archaeological heritage should not destroy any more archaeological evidence than is
necessary for the protectional or scientific objectives of the investigation. Non-
destructive techniques, aerial and ground survey, and sampling should therefore be
encouraged wherever possible, in preference to total excavation. As excavation
always implies the necessity of making a selection of evidence to be documented
and preserved at the cost of losing other information and possibly even the total
destruction of the monument, a decision to excavate should only be taken after
thorough consideration.
Excavation should be carried out on sites and monuments threatened by
development, land-use change, looting, or natural deterioration. In exceptional cases,
unthreatened sites may be excavated to elucidate research problems or to interpret
them more effectively for the purpose of presenting them to the public. In such cases
excavation must be preceded by thorough scientific evaluation of the significance of
the site. Excavation should be partial, leaving a portion undisturbed for future
research.
A report conforming to an agreed standard should be made available to the
scientific community and should be incorporated in the relevant inventory within a

214
reasonable period after the conclusion of the excavation. (Charter for the Protection
and Management of the Archaeological Heritage, ICOMOS, 1990).
Estas considerações estão registradas de maneira mais ampla e ao
mesmo tempo precisa na obra La Conservation en Archéologie, de M.C.
Berducou (1990). O texto também aborda a questão da qualificação
profissional, colocando que, mesmo que várias disciplinas possam estar
voltadas para o objeto arqueológico – resgate, conservação, gerenciamento –
, apenas o treinamento adequado de profissionais competentes, portadores
de conhecimentos específicos que vão desde a Química aplicada à
Antropologia comparada, poderá promover ações pautadas pelo
conhecimento especializado, evitando-se assim erros fatais quanto à
preservação e ao conhecimento científico voltado para esse patrimônio:

The objective of academic archaeological training should take account of the


shift in conservation policies from excavation to in situ preservation. It should also
take into account the fact that the study of the history of indigenous peoples is as
important in preserving and understanding the archaeological heritage as the study
of outstanding monuments and sites.
The protection of the archaeological heritage is a process of continuous
dynamic development. Time should therefore be made available to professionals
working in this field to enable them to update their knowledge. Postgraduate training
programmes should be developed with special emphasis on the protection and
management of the archaeological heritage (Charter for the Protection and
Management of the Archaeological Heritage, ICOMOS, 1990).
Berducuo (1990: 419) afirma a indispensabilidade do diálogo e entre as
áreas: Aucune lecture ne suffira à régler la totalité des problèmes de conservation
archéologique sur un site. L’épilogue de ce manuel ne peut êtrê que d’encourager la
permanence du dialogue entre conservateur-restaurateur et archéologue. Em
matière de conservation préventive, connaitre le matériau, tender de comprendre les
processus d’altération et appliquer des « recettes » aussi bonnes qu’infailibles n’est
pas satisfaisant. Un bon diagnostic prime avant tout et relève généralement des
compétences d’un conservateur-restaurateur. De plus, il existe une complémentarité
manifest entre les deux interlocuteurs e non des relations de subordination. Ainsi,
l’archéologue aura tendance à appréhender un objet d’un point de vue
chronologique, morphologique, technique, fonctionnel ; le restaurateur, d’un point de
vue matière et technique. On conçoit alors fort bien que la frontière entre les deux
optiques n’est pas étanche.

A Arqueologia busca indícios materiais, objetos e vestígios que de

215
alguma maneira permitam recuperar o caráter dos grupos humanos,
elaborando cronologias e tipologia de séries definidas, estabelecendo pontos
de contato entre esses grupos e suas ações. Mais recentemente, o estudo de
técnicas antigas também tem sido matéria de pesquisa, além da ética
profissional, o papel social, a interdisciplinaridade (como a Etno-arqueologia)
e os objetivos pretendidos pela disciplina (como a história do pensamento
arqueológico). Contudo, no que respeita ao Patrimônio Arqueológico a ação
integrada é fundamental, pois a complexidade do trabalho científico impõe
conhecimentos específicos e campos determinados no sentido de estudar,
preservar e expandir os resultados obtidos. Nesse sentido, a técnica de
conservação e restauração de materiais arqueológicos é, ao mesmo tempo,
uma disciplina em si e uma disciplina adjunta, que deve ter como base o
cuidado de não apagar vestígios materiais (restos humanos/ vegetais/
animais) que signifiquem informações preciosas aos demais pesquisadores.

É necessário fazer uma investigação minuciosa de todos os


componentes do material a ser tratado, devendo considerar que somente
uma parcela das atividades humanas deixa traços materiais; uma parcela
desses traços se mantêm através dos tempos; desses, apenas alguns são
encontrados e acessíveis; é preciso fazer uma leitura desses traços. A
arqueologia atua com realidades conflitantes: o caráter parcial das fontes de
estudo e a dificuldade de interpretação, impostos pelo grau de aleatoriedade
da permanência de alguns vestígios através dos tempos, em detrimento de
outros. Os critérios de escavação admitem a exaustividade e objetividade na
coleta de todos os tipos de registros existentes em um determinado sítio e, ao
mesmo tempo, uma amostragem pertinente que ocorra de acordo com os
limites do problema proposto. Nos procedimentos de escavação
arqueológica, o movimento da terra deve ser subentendido como um
procedimento de risco, uma vez que é inevitável a destruição de muitos
registros por impactos imprevistos.

Em todos os documentos propostos, os interlocutores nos lembram


que os vestígios que nos chegam depois de decênios, séculos ou mesmo
milênios de abandono, não mantêm sua composição original, sofrendo

216
transformações, às vezes muito e às vezes pouco importantes. Lacunas,
deformações, mudanças de características mecânicas e químicas são difíceis
compreender retroativamente: Como diferenciar os materiais alterados dos
originais? Quais os riscos do novo ambiente?

Vários são os riscos e os traumatismos nas escavações: o equilíbrio


entre o objeto e seu meio (o local onde se encontrava soterrado) foi obtido
através de um longo tempo de adaptação, o qual promoveu um processo de
interação entre meio e objeto, conduzindo a um equilíbrio estável. Sendo
assim, devemos ter em conta que a remoção ou intervenção de um objeto
nesse estado de equilíbrio, pode ser mais prejudicial, caso ele não seja
devidamente acondicionado e ambientado (climatizado). A sensibilidade dos
materiais pós-escavação é igual à dos pacientes após uma intervenção
cirúrgica – sob qualquer risco ou exposição a instabilidade pode ser fatal. A
mudança abrupta de seu contexto representa um esforço de readaptação
brutal para o objeto:

a) novas contrações mecânicas: ocasionada pelo manuseio e pela


exposição a novos fatores, uma vez que sua imobilização, associada a
certos materiais presentes no meio, estabilizaram o objeto durante seu
período de soterramento;

b) novas condições físicas: exposição à luz, mudanças de temperatura e


umidade, ocasionando uma elevação no ritmo de alterações do objeto
e sua conseqüente degradação;

c) novo ambiente químico: a atmosfera, caracterizada pela presença de


poluentes e gases nocivos, além de partículas sólidas, pode danificar
os objetos;

d) novo ambiente biológico: flora e fauna;

O contraste entre o ambiente antigo e o novo provoca muitos efeitos


indesejados, acarretando uma série de danos irrecuperáveis. É necessário
minimizar e controlar esse contraste. Ex.: As grutas de Altamira e Lascaux
conservaram durante milênios suas pinturas rupestres. A partir de seu

217
descobrimento, a visitação descontrolada e contínua ocasionou uma
alteração drástica do ambiente interno, promovendo perdas significativas e
irrecuperáveis. Devemos ter consciência de que, tanto no momento da
escavação, quanto na intervenção e na exposição, os impactos são
inevitáveis; desse modo, toda ação deve ser integrada e previamente
planejada. Nas escavações, é imprescindível avaliar a natureza do material, o
tipo de solo e a dimensão do sítio; programar as linhas de conservação
imediatas e futuras, e as condições de guarda e/ou exposição mais
adequadas.

Na conservação, a avaliação correta da alteração e/ou das interações


ocorridas é condição importante para seu tratamento posterior.
Transformações ocorridas pela reação do objeto com o solo muitas vezes
dificultam a nossa capacidade de reconhecer um artefato. Assim, ocorre a
necessidade de se reconhecer e analisar os mecanismos de alteração.
Compreender o contexto arqueológico é indispensável, situando o
conservador em relação às referências básicas de conhecimento em relação
ao objeto de estudo e intervenção, pois este não deve esquecer que para a
Arqueologia o objeto vale por seu conteúdo informativo. Portanto, as
intervenções de conservação/restauro estabelecem um compromisso com a
Arqueologia, devendo participar e conhecer a estratégia arqueológica do
estudo dos objetos; preservar a possibilidade de confrontos sucessivos entre
diversas áreas estratégicas; respeitar as relações que o objeto estabelece
com outras áreas de estudo – Arqueologia; Antropologia; História. Para a
intervenção de conservação e restauro em Arqueologia, o projeto de
investigação inicia-se antes da escavação e permanece até muito tempo
depois da descoberta dos materiais. Assim, a preparação da obra de
escavação deve levar em conta os conhecimentos das condições de
trabalho:

a) Documentação e catalogação para evitar confusões;

b) tipo de sítio, época e material encontrado;

c) o contexto peculiar da escavação – os locais disponíveis, o destino

218
dos objetos encontrados, a documentação do processo, recursos
de equipamentos, produtos e pessoas; características do terreno;

d) as particularidades do projeto em relação à conservação – análises


previstas; os métodos de datação; pessoal especializado; local
determinado para embalagem, guarda, e conservação de primeiros
socorros;

e) o tipo de clima a ser encontrado e as variações entre o ambiente do


solo e o ambiente externo;

f) o acondicionamento dos objetos na área de escavação pode evitar


uma reação brutal à mudança/troca de meio, levando-se em conta
o manuseio, a embalagem, a catalogação, a organização da área
de estocagem e o transporte (dentro e fora do sítio). Deve procurar
conceber as condições possíveis pelas quais o objeto irá passar e
quais são capazes de suportar.

Todas essas orientações, presentes tanto nas cartas da UNESCO


quanto na sistematização prática e teórica da obra de Berducou são
importantes, principalmente na América-Latina onde a prática amadorística e
a existência de instituições que não contam com especialistas são comuns.
A Convenção Européia que se reuniu em torno deste tema em 1992 manteve
as mesmas considerações propostas acima (European Convention for the
Protection of the Archaeological Heritage of Europe, 1992):

To preserve the archaeological heritage and guarantee the scientific


significance of archaeological research work, each Party undertakes to apply
procedures for the authorisation and supervision of excavation and other
archaeological activities in such a way as:
a) to prevent any illicit excavation or removal of elements of the
archaeological heritage;
b) to ensure that archaeological excavations and prospecting are undertaken
in a scientific manner and provided that: non-destructive methods of investigation are
applied wherever possible; the elements of the archaeological heritage are not
uncovered or left exposed during or after excavation without provision being made
for their proper preservation, conservation and management;
c) to ensure that excavations and other potentially destructive techniques are
carried out only by qualified, specially authorised persons;
d) to subject to specific prior authorisation, whenever foreseen by the

219
domestic law of the State, the use of metal detectors and any other detection
equipment or process for archaeological investigation.
A preocupação do patrimônio em blocos, europeu e americano, não
impede que o intercâmbio internacional seja uma prática comum,
principalmente entre universidades. No entanto, não temos em mãos nenhum
documento relativo a um projeto integrado relacionado ao patrimônio
33
africano , asiático ou da Oceania. Na América Latina e, mais
especificamente, no Brasil, a formação do arqueólogo encontra-se forjada em
bases elitistas: A sociedade brasileira, patriarcal, dominada por uma estrutura
social hierárquica secular, produziu muito tardiamente a universidade, séculos
depois das primeiras congêneres hispano-americanas. A universidade brasileira,
desenvolvendo-se a partir da década de 1930, viria a ter algumas características
estruturais, derivadas do próprio caráter restritivo à liberdade intelectual da
sociedade nacional, ainda presentes entre nós. Florestan Fernandes, um dos nossos
primeiros acadêmicos, advertia, antes do golpe militar de 1964, que “o intelectual se
torna, literalmente, um escravo do poder. Se ele tentar o contrário, corre o risco de
sofrer pressões muito violentas e de ser eliminado da arena intelectual” (Fernandes,
1975: 85). Segundo outro decano da ciência nacional, Milton Santos, “buscar o novo
é perigoso”, resultado da falta de valorização do mérito intelectual propriamente dito:
“Eu acho que o meio intelectual no Brasil é, até certo ponto, opaco, no sentido de
que a vida acadêmica não se caracteriza pela existência de um mercado acadêmico.
As pessoas nascem, crescem, evoluem e morrem no mesmo universo. Então, a
idéia de competição se compromete e o sistema de referências é igualmente
doméstico. É muito autocentrado e funciona, com freqüência, em detrimento de uma
emulação mais ampla” (FUNARI, 2000, p. 4).

O que está em jogo, na preservação do Patrimônio Arqueológico, vai


além das técnicas ou dos profissionais envolvidos; está circunscrito na esfera
da percepção, das escolhas, da filosofia de ação e das justificativas
relacionadas tanto à validade das pesquisas, quanto à integridade dos
resultados ou o uso dos mesmos.

33
. A não ser o Droit et Patrimoine en Afrique, produzido em 1990 pela UNESCO, com a
cooperação do ICCROM, UNIDROIT, Universidade Internacional de Língua Francesa ACCT,
um documento específico voltado para a compilação de legislação relativa à proteção do
patrimônio africano.

220
5.3. Patrimônio Arquitetônico
A Porta representa de maneira decisiva como o separar e o
ligar são apenas dois aspectos de um mesmo e único ato. O
homem que primeiro erigiu uma porta ampliou, como o
primeiro que construiu uma estrada, o poder especificamente
humano ante a natureza, recortando da continuidade e
infinitude do espaço uma parte e co-formando-a numa
determinada unidade segundo um sentimento.
G. Simmel, Brücke und Tür. apud ARGAN, 1995, p. 1.

b) Reforma com ampliação do c) Casa construída em c.


a)Construção popular recente piso superior em pau-a-pique, 1750, em adobe, taipa e pau-
em adobe sem revestimento sobre térreo em adobe a-pique, restaurada em 1996
(Prados-MG) (Arquiteto Marcos Borges, pelo arquiteto Marcos Borges
Tiredentes-MG). (Tiradentes-MG).

8. O adobe: a terra, de preferência pouco argilosa e muito arenosa, é


misturada com água até a obtenção de uma mistura plástica, o barro.
Pode ser adicionado de palha picadas ou outras fibras. O
amassamento é feito tradicionalmente com os pés, ou por animais;
depois o barro é moldado, à mão, em formas, desenformado logo em
seguida e os tijolos postos a secar ao sol, ou meia sombra.

Créditos das fotos e do texto: Obede Borges Faria

http://www.construmais.com.br/arquiteturadaterra.htm

221
O Patrimônio Arquitetônico, como foi visto anteriormente, não se fecha
em categorias excludentes; é ao mesmo tempo Patrimônio Cultural,
Arqueológico, Histórico. No entanto, com a finalidade de operacionalizar as
análises, os documentos relacionados ao tema tratam de uma maneira
específica deste objeto. Quando se pensa em Patrimônio Arquitetônico, logo
de imediato a noção de monumento vem à mente, como uma correlação
espontânea de conceitos: monumento arquitetônico, monumento histórico,
monumento arqueológico. A configuração que se apresenta à mente é um
edifício antigo, podendo ser um depósito de cereais asteca, um templo da
Antigüidade Clássica; um castelo medieval, uma igreja barroca e até mesmo
o Empire States. A palavra latina “monumentum” remete para a raiz indo-européia
“men”, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória
(memini). O verbo “monere” significa “fazer recordar”, donde “avisar”, “iluminar”,
“instruir. O “monumentatun” é um sinal do passado. Atendendo às suas origens
filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a
recordação, por exemplo, os atos escritos. Quando Cícero fala dos “monumenta
hujus ordinis” designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado.
Mas desde a Antigüidade romana o “monumentum” tende a especializar-se em dois
sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura; arco de triunfo,
coluna, troféu, pórtico, etc; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a
recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente
valorizada: a morte (LE GOFF, 1984, p. 95).

A arquitetura romana reflete um modo de vida pública e particular,


utilizando elementos etruscos e gregos: o arco e a abóbada são elementos
fundamentais na arquitetura monumental, servindo também de base para
projetos de aquedutos, esgotos e pontes, primando a eficiência utilitária sobre
a condição estética – sentido utilitário de ordem, permanência e
monumentalidade. Dessa maneira peculiar de ver o espaço construído, que a
cultura ocidental forja seu conceito de monumento. Os princípios
arquitetônicos e urbanos elaborados nos documentos levantados, significam
um elo a mais na larga corrente de discussão sobre conceitos englobados no
termo decorum, utilizado por Vitruvio no seu tratado De Architectura. O
decorum, segundo Vitruvio, consistia na adequação do edifício, ou em última

222
instância, das regras da arquitetura, às particularidades dos lugares, dos costumes
ou dos seus ocupantes. O termo era o equivalente ao Prepon grego, que estava
vinculado à categoria ética de fazer as coisas com propriedade. Esse conceito,
resgatado no Renascimento e considerado em toda a tradição clássica adquire, sob
o termo “convenance” e no âmbito dos questionamentos da beleza como princípio
absoluto defendidas por Perrault, destaque fundamental no século XVII. No século
XIX, Quatremère de Quincy, evocando largamente o termo "caráter", considera a
"propriedade" e "conveniência" da diferenciação entre a simples moradia e os
monumentos citadinos, entre o privado e o público e Camilo Sitte, poucos anos
antes do término do século, declara a necessidade de alguns elementos da cidade
serem apresentados com "roupas de trabalho" e outros com "trajes domingueiros"
(GONZÁLES, C.C., 2001, sp).

Nesses conceitos que tratam de adequação ao lugar, e neste caso ao


lugar urbano – nos seus dois sentidos, de acomodação e adequação ética ou
atuação com propriedade e decoro – podemos encontrar as raízes das
discussões relacionadas à revitalização, restauração e uso do patrimônio
cultural arquitetônico. Pensando nessa categoria de análise e na questão
específica da construção arquitetônica, foram reunidos os seguintes
documentos:

1) Carta de Atenas para a restauração de monumentos históricos –


adotada pelo I Congresso de Arquitetos e Técnicos de Monumentos,
Atenas, 1931.

2) Recomendações Relativas às Competências Internacionais em


Arquitetura e Planejamento Urbano – Nova Delhi, dezembro de 1956.

3) Carta de Veneza – Carta internacional para a conservação e


restauração de monumentos e sítios – II Congresso Internacional de
Arquitetos e Técnicos em Monumentos Históricos, Veneza, maio de
1964.

4) Normas de Quito – Relatório final do encontro sobre a preservação e


utilização de monumentos e sítios de valor histórico e artístico, Quito,
dezembro de 1967.

223
5) Resoluções sobre a introdução da Arquitetura contemporânea em
Grupos de Edifícios Antigos –, Budapeste, junho de 1972.

6) Declaração de Amsterdã – Amsterdã, outubro de 1975.

7) Carta européia sobre o Patrimônio Arquitetônico – Amsterdã, outubro


de 1975.

8) Carta de Florença – Comitê Internacional de Jardins Históricos,


ICOMOS–IFLA, Florença, maio de 1981.

9) Carta de Appleton – 1983.

10) Convenção Européia para a Proteção do Patrimônio Arquitetônico –


Granada, outubro de 1985.

11) Carta de Washington – Carta para a conservação de cidades


históricas em áreas urbanas –, Assembléia Geral do ICOMOS,
Washington, outubro de 1987.

12) Carta sobre o Patrimônio Vernacular Construído –, Assembléia Geral


do ICOMOS, México, outubro de 1999.

Em todos os textos estudados anteriormente e que se repetem aqui


neste tópico, é possível perceber que a condição dons bens patrimoniais na
sociedade contemporânea é colocada no centro dos debates, mesmo
quando estes se direcionam para as técnicas de restauro ou exploração; a
questão social da memória material ou o sentido da preservação da cultura.
Quando se trata de pensar em uma política de preservação do Patrimônio
Arquitetônico, os problemas de degradação e a iminência de destruição
parecem sofrer um processo de sinergismo: isolado, cada problema parece
fácil de controlar; reunidos todos em um mesmo segmento, potencializam o
grau de complexidade no trato com o patrimônio.

Os critérios mais difíceis de se estabelecer, que possam ser seguidos


efetivamente, são aqueles para com o Patrimônio Arquitetônico. Quando
localizados no perímetro urbano, não suportam, muitas vezes, a pressão
econômica do crescimento industrial; a demanda de moradia, espaços
públicos e comerciais; a ampliação de vias de acesso e as necessidades

224
próprias da cidade. Assim, os bens imóveis são colocados abaixo ou
simplesmente são abandonados até cairem. Sofrem a poluição inerente às
grandes cidades e, portanto, alterações químicas e físicas em sua estrutura.
Sofrem a descaracterização e a incompreensão histórica de sua existência. A
crise da cidade, como agregação histórica da sociedade, é relacionada por
Argan à crise da arte e à crise do objeto: A desagregação dos mármores
romanos nada mais é que uma enlutada alegoria da radical incompatibilidade
daquilo que resta da cidade com a vida da metrópole – a angustiante consciência de
poder assistir à consumação de uma catástrofe cultural sem paralelo possível, à
perda, no breve transcorrer de poucos anos, de todo o patrimônio histórico e
artístico que não pode ser imediatamente conservado em museus. Os objetos, as
obras de arte – numa sociedade cuja estrutura cultural não seja mais a história,
como corre o risco de acontecer com a sociedade atual – são fragmentos de um
passado não mais relacionável ao presente, são quase ilhas, resíduos de um
continente submerso (ARGAN, 1995, p. 7).

Essa percepção da crise da história e da memória traduzida nas


produções humanas não é matéria recente. Desde Burckhardt (1818-1897) e
seus escritos por ocasião dos conflitos europeus de 1870 – a Guerra Franco-
Prussiana –, a preocupação com a destruição dos testemunhos do passado
e da valorização da história surge como uma guilhotina pronta a decepar
aquilo que cremos manter nosso senso de civilização e de humanidade, ou
seja, a História. A destruição da memória é apenas mais uma conseqüência
da necessidade cada vez maior do novo, do imediato, do descartável, do
consumível e, portanto, daquilo que silencia, porque não deixa marcas. Sob
esta ótica, é que a Carta de Atenas (1931) retorna ao corpo do texto,
principalmente pelo fato de a mesma ter sido produzida em um encontro de
arquitetos preocupados no início deste século com a preservação de
monumentos e sítios históricos.

Sendo este tópico específico orientado para o Patrimônio


Arquitetônico, cabe justificar que a lacuna nesta investigação ao não abordar
a área de Arquitetura deve-se ao fato de o arquiteto-restaurador ter sido
incluído na especialidade da Ciência da Conservação, já que a profissão de

225
restaurador não esta regulamentada, ocorrendo, assim, a especialização de
profissionais oriundos de outras graduações, como no caso do restaurador-
arquiteto. Desse modo, não interessa o desenvolvimento da História da
Arquitetura em si, mas a compreensão de um tipo particular de arquiteto,
aquele que se preocupa especificamente com a condição de patrimônio
histórico, artístico e cultural das estruturas arquitetônicas. Três problemas
relacionados à área são colocados em evidência na Carta de Atenas: a
manutenção do edifício, a restauração e a ocupação, ações que devem ser
sempre integradas às outras áreas de conhecimento:

Whatever may be the variety of concrete cases, each of which are open to a
different solution, the Conference noted that there predominates in the different
countries represented a general tendency to abandon restorations in loco and to
avoid the attendant dangers by initiating a system of regular and permanent
maintenance calculated to ensure the preservation of the buildings.
When, as the result of decay or destruction, restoration appears to be
indispensable, it recommends that the historic and artistic work of the past should be
respected, without excluding the style of any given period.
The Conference recommends that the occupation of buildings, which ensures
the continuity of their life, should be maintained but that they should be used for a
purpose which respects their historic or artistic character.

O documento seguinte mantêm as mesmas reflexões elaboradas pela


Carta de Atenas, sendo observada a referência constante a este documento
oficial nas resoluções e discussões subseqüentes. A mesma Conferência
Geral da UNESCO, que formalizou a Recomendação Internacional dos
Princípios Aplicados à Escavação Arqueológica, em dezembro de 1956 em
Nova Delhi, aprovou o documento denominado Recomendações Relativas às
Competências Internacionais em Arquitetura e Planejamento Urbano. Os
princípios balizadores de ambos documentos foram a formalização e a
construção de modelos regulamentares de conduta nas ações relativas à
preservação. No caso das recomendações concernentes à Arquitetura, o
planejamento urbano e a própria estrutura arquitetônica foram a tônica dos
debates.

Uma prática comum para a escolha de projetos de arquitetura ou


engenharia, a organização de concorrência, licitações e concursos não fazem

226
parte dos hábitos da Museologia, Restauração ou Arqueologia. Encaminhado
como ponto de discussão único, o acordo proposto em 1956 admite a
organização de competições internacionais como forma de impulsionar a
qualidade dos projetos técnicos de restauração e conservação de edifícios
antigos, bem como planejamento urbano de centros históricos. As normas
respectivas a essas competições são abordadas em tópicos específicos,
quais sejam organização; preparação dos programas; registro e admissão
dos competidores; preços; reprodução; organização do júri e exibição dos
planos: The organizers of international competitions may request the assistance of
the Commission on International Competitions of the International Union of Architects
in drawing up the program, nominating persons qualified to serve on the jury,
determining the amount of awards in relation to the nature and size of the program,
the work involved and the expenses incurred by competitors, as stipulated in Article
20, and settling any disputes that may arise between the organizers and competitors

A carta seguinte a este documento e que deu margem à fundação do


ICOMOS como um organismo específico voltado para a proteção de sítios,
monumentos e edifícios históricos foi a Carta de Veneza (1964).
Anteriormente, ICOM e ICCROM tentavam abarcar esta área, mas com a
necessidade de uma atuação mais direcionada, o ICOMOS é então fundado.
A mudança deste documento em relação aos anteriores é a definição do
conceito de monumento histórico abarcando não apenas simplesmente as
construções arquitetônicas, mas também os espaços urbanos e rurais nos
quais estes testemunhos se encontram. A questão da profissionalização do
arquiteto-restaurador ou do restaurador de monumentos fica implícita na
orientação quanto à prática específica da conservação e do restauro. Como
complementação da Carta de Atenas (1931) e da Carta de Veneza (1964), a
Carta de Florença (1981) amplia a compreensão do espaço do monumento
para além de suas estruturas arquitetônicos: a manutenção de jardins,
pomares e hortas é incluída como prática importante à concepção da
proposta geral:

Art. 1. An historic garden is an architectural and horticultural composition of


interest to the public from the historical or artistic point of view. As such, it is to be
considered as a monument.

227
Art. 2. The historic garden is an architectural composition whose constituents
are primarily vegetal and therefore living, which means that they are perishable and
renewable. Thus its appearance reflects the perpetual balance between the cycle of
the seasons, the growth and decay of nature and the desire of the artist and
craftsman to keep it permanently unchanged.
Art. 3. As a monument, the historic garden must be preserved in accordance
with the spirit of the Venice Charter. However, since it is a living monument, its
preservation must be governed by specific rules which are the subject of the Present
charter.
Art. 4. The architectural composition of the historic garden includes: Its plan
and its topography; Its vegetation, including its species, proportions, colour schemes,
spacing and respective heights; Its structural and decorative features; Its water,
running or still, reflecting the sky
Art. 5. As the expression of the direct affinity between civilization and nature,
and as a place of enjoyment suited to meditation or repose, the garden thus acquires
the cosmic significance of an idealized image of the world, a paradise in the
etymological sense of the term, and yet a testimony to a culture, a style, an age, and
often to the originality of a creative artist.
Art. 6. The term, historic garden, is equally applicable to small gardens and to
large parks, whether formal or landscape.
Art. 7. Whether or not it is associated with a building in which case it is an
inseparable complement, the historic garden cannot be isolated from its own
particular environment, whether urban or rural, artificial or natural.
Art. 8. An historic site is a specific landscape associated with a memorable
act, as, for example, a major historic event; a well-known myth; an epic combat; or
the subject of a famous picture.

A inclusão desses elementos complementares às construções faz


parte de uma percepção maior do espaço e reflete a busca de uma
integração homem-natureza que ocorre nos grandes centros urbanos. É na
década de oitenta que a recuperação dos rios europeus; dos parques e
jardins urbanos e das campanhas de reflorestamento com mata nativa ocorre
em várias partes do mundo. As palavras de ordem dessa década são
ecologia, ecossistema, equilíbrio ambiental, desenvolvimento auto-
sustentável e, principalmente, integração social no que se refere à proteção
do patrimônio natural e cultural.

Como vimos, nesta busca de participação social e do intercâmbio


internacional as Normas de Quito (1967) propõem a reconciliação entre a
demanda do crescimento urbano com a proteção dos bens patrimoniais por
meio de regulamentações governamentais, projetos internacionais e,

228
principalmente, pela educação e participação da comunidade: it is possible to
develop a country without disfiguring it to prepare for and serve the future without
destroying the past. The improvement of living standards should be confined to
achievement of a progressive material well-being, it should be associated with the
creation of a way of life worthy of mankind. A procura desse way of life corre
também pela percepção do espaço e pela sua compreensão integral.

O interesse social e a ação cívica são as bases de qualquer atitude


referente à proteção de bens culturais. Anos de negligência oficial, conforme
relatado no documento, e a negação das origens de cada nação geraram
lacunas irreparáveis. Associadas a este descaso, a falta da elaboração de
uma política educacional e a pressão exercida pelos meios de comunicação
em relação à modernidade produzem uma indiferença social aos temas
culturais: patrimônio, cultura, memória, história, documento são categorias
circunscritas ao meio intelectual e que não dizem respeito ao habitante da
favela, da vila ou do bairro. Centros Históricos transformam-se em espaço do
comércio informal durante o dia e albergue de mendigos à noite. O problema
da preservação de monumentos arquitetônicos é, acima de tudo, um
problema social e de educação popular. Não basta cercar, vigiar ou controlar
a entrada dos monumentos, essas medidas são paliativas e ineficazes. É
indispensável a integração dos bens culturais à sociedade, além de
programas de apoio àqueles que ocupam de maneira inadequada esses
espaços urbanos. Nothing can contribute more to the awakening of awareness
than seeing the example itself. Once the results of certain world of restoration and
renewal of buildings, plazas and sites are apparent, the public usually reacts
favorably, calling for a halt to destructive action and supporting the attainment of
more ambitious objective. In any case, the spontaneous and extensive collaboration
of individuals in plans for enhancing the use and value of the historic and artistic
heritage is absolutely essential in small communities. Consequently, the preparation
of such plans should take into account the advisability of a related program of civic
education developed systematically and simultaneously with the execution of the
plan (Norms of Quito. Final Report of the Meeting on the Preservation and Utilization
of Monuments and Sites of Artistic and historical Value, Quito, December 1967.).

229
De acordo com Le Goff, o monumento tem como característica o ligar-
se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades
históricas; é um legado à memória coletiva, principalmente nos espaços onde
o acesso ao documento escrito é restrito – quer pelas normas, quer pela
forma. Não é possível esquecer que América Latina, Ásia e África possuem
diferentes índices de analfabetismo neste mundo pseudo-informatizado. O
monumento surge como um elo possível de ligação do presente com o
passado em um contexto social onde a memória parece cada vez mais
cronologicamente limitada. Porém, o monumento precisa dizer algo, falar ao
ouvido das pessoas acerca de suas histórias, senão mudo permanece no
campo do intocável. Toda uma parte, e sem dúvida a mais apaixonante do nosso
trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer falar as
coisas mudas, para faze-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os
homens, sobre as sociedades que as produziram, e para constituir, finalmente, entre
elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entre-ajuda que supre a ausência do
documento escrito? (FEBVRE, Lucién. apud LE GOFF, 1984, p. 98).

Esta vertente de pensamento, que imputa ao objeto e ao monumento a


qualidade de lançar luz sobre o passado e, portanto, adquirir um valor de
testemunho documental foi formulada por Riegl em um texto denominado
The modern cult of monuments, em que o autor afirma: according to modern
understanding, all human activity and all human fate of which we have evidence or
knowledge may claim historical value: in principle, we consider every historical event
to be irreplaceable (1994, p. 70).

As questões mais amplas relativas ao Patrimônio Arquitetônico são


tratadas no registro de 1972, Convenção sobre a proteção do patrimônio
mundial, cultural e natural. Depois dele vem a Declaração de Amsterdã
(1975), um documento que, como os exemplos da Carta de San Salvador e
das Normas de Quito que se voltam para o patrimônio cultural americano,
reafirma a necessidade de uma interpretação do patrimônio arquitetônico
europeu como um todo. Apart from its priceless cultural value, Europe’s
architectural heritage gives to her people the consciousness of their common history
and common future. Its preservation is, therefore, a matter of vital importance.

230
Vinte anos após o Pacto de Varsóvia e da criação do Mercado Comum
Europeu, este documento pretende construir uma concepção centralizada no
destino comum desses povos. O muro de Berlim, construído em 1961, na
década de setenta ainda permanece firme e forte, mas as pressões para uma
Europa unida – por questões de mercado ou pela busca da identidade
(autoridade) perdida – orientam o discurso de Amsterdã. Os conflitos
armados e étnicos permanecem vivos em todo território europeu – as ações
do IRA na Irlanda do Norte são as mais extremistas nas décadas de 70 e 80;
as ações dos povos bascos na Península Ibérica; a invasão de Praga pelo
exército russo – e parecem distanciar o documento proposto da realidade
política européia.

Contudo, se olharmos o documento sob a ótica da Europa estável e


economicamente respeitável, os planos propostos parecem se ajustar às
intenções pretendidas: projetos de catalogação de áreas de proteção foram
levados a contento pela UNESCO, como a formulação da World Heritage List
(1972), e pelo próprio Comitê do Conselho de Ministros Europeus (Committee
of Ministers of the Council of Europe), por meio da proposta de formulação de
parâmetros legislativos comuns aos países membros do Conselho. O
Patrimônio Arquitetônico Europeu, objeto desse encontro, não se restringe
aos centros históricos, sítios e monumentos culturalmente aceitos – como o
Partenon ou o Palácio de Versalhes –, mas se expande a partir da inclusão
de grupos de pequenos edifícios urbanos e vilas características em áreas
rurais.

O documento gira em torno de dois eixos temáticos:

a) integração dos monumentos à sociedade – Integrated conservation is


achieved by the application of sensitive restoration techniques and the correct choice
of appropriate functions. In the course of history the hearts of towns and sometimes
villages have been left to deteriorate and have turned into areas of substandard
housing. Their deterioration must be undertaken in a spirit of social justice and
should not cause the departure of the poorer inhabitants. Because of this,
conservation must be one of the first considerations in all urban and regional
planning. It should be noted that integrated conservation does not rule out the

231
introduction of modern architecture into areas containing old buildings provided that
the existing context, proportions, forms, sizes and scale are fully respected and
traditional materials are used.

b) recomendação aos governos dos Estados-membros para atuarem


como promotores das ações preservacionistas relacionadas ao Patrimônio
Arquitetônico europeu – Recommends that the governments of member states
should take the necessary legislative, administrative, financial and educational steps
to implement a policy of integrated conservation for the architectural heritage, and to
arouse public interest in such a policy, taking into account the results of the
European Architectural Heritage Year campaign organized in 1975 under the
auspices of the Council of Europe. Durante o ano de 1975 ocorreu a campanha
Ano Internacional do Patrimônio Arquitetônico Europeu, direcionada à
conscientização e à educação das comunidades urbanas e rurais que vivem
no entorno de sítios, monumentos e centros históricos.

Para Carlo Argan, entre arquitetura e cultura não há relação entre termos
distintos: o problema diz respeito apenas à função e ao funcionamento da
arquitetura dentro do sistema. Por definição, é arquitetura tudo o que concerne à
construção, e é com as técnicas da construção que se intui e se organiza em seu ser
e em seu devir a entidade social e política que é a cidade. Não só a arquitetura lhe
dá corpo e estrutura, mas também a torna significativa como o simbolismo implícito
em suas formas (1995, p. 243).

A continuação desse encontro ocorrerá dez anos depois com a


reunião do Conselho da Europa em Granada, em outubro de 1985. Com a
formalização da Comunidade Econômica Européia na década de oitenta e a
continuidade das ações propostas em 197534 por meio de recomendações
aprovadas no Parlamento do Conselho Europeu, esse documento, a exemplo

34
. Uma vez que a Carta do Patrimônio Arquitetônico foi adotada pelo Comitê de Ministros do
Conselho da Europa em 26 de Setembro de 1975 e a Resolução 28 de 1976 adotada em 14
de Abril de 1976, internamente cada país propôs leis e regulamentações necessárias a uma
ação integrada de preservação do patrimônio arquitetônico europeu. Além dessas ações, a
Recomendação 880 (1979) da Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa; a
Recomendação No. R16 (1980) do Comitê de Ministros dos Estados-membros sobre o
treinamento de arquitetos, planejadores urbanos, engenheiros civis e paisagistas, e a
Recomendação No. R13 do Comitê de Ministros adotada em 01 de julho de 1981,
contribuíram para a efetiva realização das propostas de 1975.

232
dos documentos elaborados acerca da definição de Patrimônio Cultural e
Patrimônio Natural, constrói a noção de Patrimônio Arquitetônico de maneira
mais delineada:

1. Monuments: all buildings and structures of conspicuous historical,


archaeological, artistic, scientific, social or technical interest, including their
fixtures and fittings;
2. Groups of buildings: homogeneous groups of urban or rural buildings
conspicuous for their historical, archaeological, artistic, scientific, social or
technical interest which are sufficiently coherent to form topographically
definable units;
3. Sites: the combined works of man and nature, being areas which are partially
built upon and sufficiently distinctive and homogeneous to be topographically
definable and are of conspicuous historical, archaeological, artistic, scientific,
social or technical interest.

Cabe lembrar que A Declaração de Amsterdã (1975), a Carta Européia


sobre o Patrimônio Arquitetônico Europeu (1975) e Convenção para a
Proteção do Patrimônio Arquitetônico Europeu (1985) fazem parte dos
esforços de integração implementados após a criação do Mercado Comum
Europeu e foram patrocinadas pelo Conselho Europeu, sendo apoiadas pelo
ICOMOS-UNESCO e incorporadas às propostas (standards) básicas dessas
instituições.

Para além das questões regionais, nacionais ou continentais, a


questão do planejamento urbano e da integração dos monumentos
arquitetônicos ao cotidiano da comunidade é matéria primordial para a
construção do conceito de proteção. Como abordado nos tópicos anteriores,
os documentos relacionados ao patrimônio arquitetônico que mais defendem
o modelo acima descrito são: A Carta de Washington (1987) e as
recomendações geradas no Primeiro Seminário Brasileiro de Revitalização
dos Centros Históricos (1987). O principal objetivo de ambos documentos é
formalizar as ações práticas de um planejamento urbano consciente e
integrado à sociedade e cobrar dos poderes legislativos a formulação de leis
efetivas que protejam os centros históricos em áreas urbanas.

A proposta apresentada pela Carta de Washington, esquemática e


objetiva, estrutura-se em torno de questões específicas de planejamento

233
urbano: definição dos lotes e ruas; intercâmbio entre os edifícios e as áreas
verdes e abertas; a aparência formal do interior e do exterior; a relação entre
o centro urbano e seu entorno; as várias funções que o centro e a área
urbana desenvolvem com o tempo. Além disso, a operacionalidade do
trânsito, as relações sociais e econômicas com os habitantes residentes nas
áreas históricas e o apoio de equipes multidisciplinares – com arqueólogos,
historiadores, arquitetos, técnicos, sociólogos e economistas – são fatores
indispensáveis aos planos de conservação adotados. Apesar dessa estrutura
mais fechada, a Carta de Washington irá influenciar uma série de
documentos elaborados posteriormente, como a Carta para a proteção de
Cidades Históricas nos Estados Unidos, a qual valorizará, do mesmo modo
as questões técnicas de planejamento urbano em áreas históricas.

No entanto, a questão do uso de grupos de edifícios antigos é


colocada em pauta já em 1972, em Budapeste, quando o Simpósio
Internacional de Arquitetura, patrocinado pela Terceira Assembléia Geral do
ICOMOS, expressa a necessidade de adaptar os prédios históricos do ponto
de vista da arquitetura contemporânea. Como resultado deste encontro foi
gerado o documento Resoluções sobre a introdução da Arquitetura
contemporânea em Grupos de Edifícios Antigos, o qual irá dar suporte ao
documento seguinte elaborado na Quarta Assembléia Geral, realizada em
1975 na cidade de Bruxelas, acerca da necessidade de manutenção da vida
econômica das pequenas cidades históricas como mecanismo indispensável
à permanência dos habitantes, evitando-se, assim, o abandono dos edifícios
históricos.

Ao expressar o apoio ao uso de técnicas modernas arquitetônicas na


restauração dos edifícios antigos, não partilha, porém, daquilo que a
Arquitetura Contemporânea costuma chamar hoje de recall: a manutenção
das fachadas externas, com a reestruturação do espaço interno em função
das demandas específicas dos clientes. No Brasil, esta prática tornou-se
comum com a vinda de multinacionais – como Bancos e empresas de
Telecomunicações – para as grandes cidades, impulsionando o mercado
imobiliário desses grandes centros; como não haveria tempo e espaço

234
apropriado para a construção, essas empresas têm comprado edifícios
antigos e adaptado-os às suas necessidades; esta adaptação envolve a
manutenção do glamour da fachada, a facilidade de localização urbana e a
possibilidade de reformas internas do espaço de acordo com a dinâmica da
empresa. Como nem sempre esses prédios são tombados e as legislações
brasileiras – municipais, estaduais e federais – não são claras em relação
aos limites da prática de restauração arquitetônica, não há empecilho a esse
tipo de procedimento.Contrariando a essa atitude, o documento de 1972
afirma:

1. The introduction of contemporary architecture into ancient groups of buildings


is feasible in so far as the town-planning scheme of which it is a part involves
acceptance of the existing fabric as the framework for its own future
development.

2. Such contemporary architecture, making deliberate use of present-day


techniques and materials, will fit itself into an ancient setting without affecting
the structural and aesthetic qualities of the latter only in so far as due
allowance is made for the appropriate use of mass, scale, rhythm and
appearance.

3. The authenticity of historical monuments or groups of buildings must be taken


as a basic criterion and there must be avoidance of any imitations which
would affect their artistic and historical value.

4. The revitalization of monuments and groups of buildings by the finding of new


uses for them is legitimate and recommendable provided such uses affect,
whether externally or internally, neither their structure nor their character as
complete entities.

Contudo, como compatibilizar o uso de edifícios antigos com as


demandas de seus usuários? Como reestruturar, sem descaracterizar? O
Estado não é capaz de preservar edifícios históricos sem ocupação, como
também não pode ocupar todos os edifícios antigos que existem. Em
Salvador, Bahia, a revitalização do Centro Histórico do Pelourinho pode
resguardar tanto as fachadas, quanto as estruturas internas dos prédios no
aproveitamento do comércio local. Contudo, cada caso é um caso e desse
debate só há uma posição a tomar: as questões éticas não devem ser
subordinadas aos assuntos comerciais, mas tampouco devem ficar alheias às
mudanças e transformações da sociedade. O texto de Carlo Argan (1995)

235
duvida da possibilidade de compatibilizar o crescimento urbano com a ação
preservacionista, porém, quanto à preservação do Patrimônio Arquitetônico,
não se trata de fé ou falta de fé, mas de buscas de mecanismos para sua
efetivação.

Em 1999, no México, realizou-se um encontro para discutir o


Patrimônio Vernacular Construído, que resultou numa carta que assim se
inicia:

El Patrimonio Tradicional ocupa un privilegiado lugar en el afecto y cariño de


todos los pueblos. Aparece como un característico y atractivo resultado de la
sociedad. Se muestra aparentemente irregular y sin embargo ordenado. Es utilitario
y al mismo tiempo posee interés y belleza. Es un lugar de vida contemporánea y a
su vez, una remembranza de la historia de la sociedad. Es tanto el trabajo del
hombre como creación del tiempo. Sería muy digno para la memoria de la
humanidad si se tuviera cuidado en conservar esa tradicional armonía que
constituye la referencia de su propia existencia. El Patrimonio Tradicional o
Vernáculo construido es la expresión fundamental de la identidad de una comunidad,
de sus relaciones con el territorio y al mismo tiempo, la expresión de la diversidad
cultural del mundo. El Patrimonio Vernáculo construido constituye el modo natural y
tradicional en que las comunidades han producido su propio hábitat. Forma parte de
un proceso continuo, que incluye cambios necesarios y una continua adaptación
como respuesta a los requerimientos sociales y ambientales. La continuidad de esa
tradición se ve amenazada en todo el mundo por las fuerzas de la homogeneización
cultural y arquitectónica. Cómo esas fuerzas pueden ser controladas es el problema
fundamental que debe ser resuelto por las distintas comunidades, así como por los
gobiernos, planificadores y por grupos multidisciplinarios de especialistas.
Nesse documento, expande-se o conceito de Patrimônio Arquitetônico,
descolando o eixo de atenção dos grandes monumentos, da polis, da vida
urbana dos grandes centros ou das áreas arqueológicas que indicavam uma
concentração social para áreas isoladas, na maioria das vezes rurais, que
preservam técnicas construtivas excepcionais. A homogeneização das
técnicas de construções arquitetônicas gerou uma perda substancial de
métodos de construção únicos. A perda de memória e a desagregação
desses sistemas construtivos também significam a perda de possibilidade de
aprendizagem da própria arquitetura contemporânea com as soluções
geradas pelas necessidades e pelo conhecimento do ambiente de regiões
específicas. Por sua vez, a dissolução de métodos tradicionais de construção
subordinam as comunidades mais carentes às imposições do mercado

236
construtivo, à dependência do capital ou então, à total exclusão, como os
“sem teto” das grandes cidades.

Para o Patrimônio Vernacular construído, valor técnico é associado ao


valor de uso: El Patrimonio Vernáculo no sólo obedece a los elementos materiales,
edificios, estructuras y espacios, sino también al modo en que es usado e
interpretado por la comunidad, así como a las tradiciones y expresiones intangibles
asociadas al mismo. A manutenção desse tipo de construção, incentivada pela
Educação e por programas multidisciplinares conjuntos, tem por objetivo
manter viva as técnicas construtivas tradicionais diante da massificação dos
métodos construtivos: ao reconhecer a importância de um vocabulário
tecnológico próprio de certas comunidades, reafirma a competência e a
capacidade dessa comunidade de encontrar seus caminhos.

237
5.4. Bens Culturais Móveis
O olho torna-se humano quando o seu objeto se torna um
objeto social e humano, vindo do homem e destinado ao
homem. Os sentidos tornam-se, assim, diretamente e na
prática dos teóricos, sentidos transformadores, impregnados
de vida social, de razão – poderes sobre os objetos.
LEVBVRE, Henri. apud DUVIGNAUD, Jean. Sociologia da
Arte, 1970, p.32.

9. A Mulher Chocadeira (1962) – Antônio Poteiro –GO


Obra popular que revela um mundo psicológico
povoado de imagens naturalistas, míticas e
cotidianas, o artesanato adquire o status de obra de
arte quando primam a individualidade e a qualidade
do artista.

Crédito da foto e do texto: Museu de Arte Popular

http://www.ciclope.com.br/map/ac10.htm

238
Apesar da força discursiva do objeto – configurado na produção
artística ou no artefato de uso cotidiano –, este tem sido preterido como fonte
de análise histórica em muitas correntes historiográficas. No entanto, o objeto
não deve ser visto como um produto manifesto fora da vida social, alheio a
sua existência e ignorante de seus valores, nem tampouco como um simples
resultado da ideologia ou das relações das forças produtivas, mas como uma
manifestação integrada à complexa rede das relações sociais. Desde o
momento em que o homem atua sobre a matéria, modificando-lhe as formas,
o discurso entre esta matéria e a humanidade já está prvesente. A obra de
arte e o objeto tornam-se possíveis e vivem por intermédio de uma relação
integrada com a sociedade; caso contrário, seus discursos inexistem
(FRONER, 1994).O primeiro objeto da história da humanidade remonta ao
momento em que o Homo Sapiens, segurando bem firme uma pedra, bateu com ela
na superfície doutra, com uma inclinação de 90°. A operação implica uma única
consciência: precisamente a de orientar uma pedra de modo a que o lascar permita
um determinado tipo de uso: o de cortar.(...) Esta ferramenta primitiva está na
origem da experiência tecnológica do homem: a capacidade de associação,
multiplicação e contínua renovação permite ao homem caminhar em direção àquilo a
que os antropólogos do século passado (XIX) chamavam, romanticamente, de “os
alvores da civilização” (DE SETA, 1984, p. 91).

Provavelmente jamais encontremos a primeira pedra lascada – a


primeira ferramenta produzida conscientemente –, mas é dela que remontam
todas as criações seguintes; todas as invenções técnicas ou artísticas. A
pedra lascada perde-se na própria história da humanidade, porém, enquanto
objeto de estudo e foco de atenção inicia-se com as pesquisas da Pré-
História desenvolvidas pelos colecionadores e arqueólogos dos séculos XV e
XVII: neste período, os antiquários europeus aprenderam a descrever e
classificar monumentos e artefatos, escavar e encontrar registros, utilizando
vários métodos de datação, incluindo estratigrafia, para estimar a idade dos
achados; com base nas evidências dadas pelos próprios objetos,
estruturaram a Pré-História em três momentos significativos – Idade da
Pedra, Idade do Bronze e Idade do Ferro. Estes desenvolvimentos
representam um progresso genuíno e trouxeram ao estudo da Pré-história

239
testemunhos coletados na China, Japão e outras partes do mundo, como a
África, antes da influência Ocidental. Apesar dos avanços, os intelectuais
dessa época alegavam ser impossível reconstituir ou conectar os registros
encontrados com as ações humanas dos primeiros tempos da civilização:
apenas o documento escrito proveria as provas necessárias à construção
histórica. De acordo com Le Goff, o termo latino documentum, derivado de
docere “ensinar”, evoluiu para o sentido de “prova”: o documento que para a
escola histórica positivista do séc. XIX será o fundamento do fato histórico,
ainda que resulte da escolha e de uma decisão do historiador, parece
apresentar-se por si mesmo como prova histórica através das fontes escritas;
sua objetividade parece opor-se à intencionalidade do monumento ao
afirmar-se essencialmente como um testemunho escrito, retirando dos
objetos e das construções a força discursiva que lhes é inerente (LE GOFF,
1984, p. 96).

A posição do objeto, enquanto testemunho histórico e fonte de


pesquisa, afirma-se mais na Arqueologia do século XIX do que na disciplina
histórica do mesmo período. Como foi visto, o primeiro estudo sistemático
que se originou na Escandinávia, baseado na utilização de técnicas de
datação – como o carbono 14 –, tornou possível a definição dos períodos da
Pré-História a partir dos próprios artefatos coletados. Enquanto isso, a França
e a Inglaterra romperam as fronteiras da teologia e se propuseram a estudar
o período Paleolítico através das evidências arqueológicas, contrapondo-se
as hipóteses formuladas com as periodizações bíblicas anteriores, a partir
das “provas” trazidas pelos próprios objetos. Embora a Arqueologia Clássica
tenha firma-do inicialmente enquanto a grande coletora, é na Arqueologia
Pré-Histórica que o valor do objeto como fonte documental parece se realizar:
na primeira, os objetos falam através dos textos; na segunda, é necessário
que falem por si só.

Os objetos adquirem valor pelas mãos do conhecimento. Berenson


afirma que nenhuma história pode ser escrita sem valores axiomáticos,
conscientemente manifestos ou inconscientemente supostos; os valores não
podem existir sem um avaliador e não conhecemos nenhum avaliador, exceto

240
o homem (BERENSON, 1947, p. 230). O objeto existe enquanto um elemento
a ser preservado quando lhe é imputado um valor histórico, artístico e
cultural. Assim, a noção de objeto permeia duas possibilidades de
significados na rede das trocas simbólicas: o valor é dado em função da luz
que ele traz ao conhecimento e é inerente à sua condição estética, fazendo
com que os parâmetros oscilem entre esses pólos. De fato, tanto a cultura
material como a história das artes referem continuamente objetos que não
teriam sentido sem este dado imprescindível: a referência ao objeto concreto
e também ao valor estético que concorre para lhe definir a especificidade,
ambos interligados pelas várias análises da história das artes (DE SETA,
1984, p. 91). A partir da proposição de Cesare de Seta é possível estabelecer
uma primeira distinção entre objeto de uso e objeto artístico, distinção que
em um primeiro momento parece óbvia, mas que repousa na história da
produção e da construção do pensamento; na intenção poética ou técnica; na
elaboração contínua do viver em sociedade: homens e objetos estabelecem
suas posições dentro desses acordos sociais.

O significado desse objeto no contexto social é o foco das disciplinas


específicas que tratam de sua valorização enquanto testemunho: História da
Arte, Museologia e Arqueologia. Para a Arqueologia, a percepção do Homo
sapiens como Homo faber implica na classificação dos objetos segundo o
uso a que se destinam, sendo sua ingerência social muitas vezes mais
importante do que seu significado plástico: as transformações técnicas, as
mudanças nos processos de fabricação e o que pôde acarretar tais
transformações são as questões primordiais para a Arqueologia, a
Antropologia e a Cultura Material.

Por outra via, o significado da criação artística embutida na obra de


arte, também é resultado de transformações sociais: na Antigüidade Clássica,
as Artes Liberais (gramática, dialética, retórica, geometria, aritmética,
astronomia e música) ocupavam um espaço de destaque em relação às Artes
Mecânicas ou Servis, que incluíam a prática artística. Esta distinção manteve-
se presente até o século XVIII, principalmente no mundo colonial, fazendo
com que os oficiais mecânicos e os artesãos não pudessem ocupar um papel

241
de destaque no meio social. Não obstante o Renascimento reclame um papel
de destaque para o produtor artístico, com as obras de Cennino Cennini
(1370) e Fillipo Villani (1404)35, as produções artísticas permaneceram
atreladas ao gosto da nobreza e da Igreja, posteriormente, ao da burguesia,
mantendo a criação artística circunscrita aos interesses dessas classes.

Mesmo com as conturbações trazidas pelas ambições políticas e


territoriais de Alexandre VI e Júlio II; apesar da revolta de Savonarola e das
expedições guerreiras de Carlos VIII, Luiz XII e Francisco I; o homem do
século XV mantêm a crença na modernidade e concretiza efetivamente os
princípios anunciados desde do séc. XIII – retomada dos ideais clássicos de
beleza, perspectiva e imitação da natureza – nas formas de apresentação
plástica. Sob o signo da genialidade, os artistas vão se separar das
corporações de ofício e reagrupar-se em academias (Escola de Atenas):
artistas e intelectuais reconduzem a arte a uma nova posição perante a
sociedade; a de fonte geradora para a elevação do espírito.

Entre 1540 e 1550, Vasari escreve Vite de pintori e scultori36, um


estudo da história das artes agrupada em biografias. Inúmeras são as fontes
utilizadas por Vasari na tentativa de recuperar a História da produção artística
dos últimos 300 anos da Itália – Florença e Roma são sua base. Utiliza guias,
manuscritos e inquirições, tanto por contato direto, como por
correspondências, além dos arquivos e a prática do colecionismo de
gravuras. Sua iniciativa mais notável no domínio da documentação foi constituir
uma coleção pessoal de obras dos artistas que menciona (BAZIN, 1989, p. 27).

Arte e Antigüidade imputam ao objeto um outro significado social.


Atrelados aos significados míticos, religiosos ou de uso, do Paleolítico

35
Erudito da cidade de Florença que ousa buscar um lugar para os produtores de arte, no
contexto de valorização intelectual conforme citação de Bazin: Muitos consideram, na verdade
não sem razão, que os pintores não são inferiores àqueles a quem o exercício das artes
liberais faz mestres; estes possuem os preceitos inerentes à literatura por via do estudo e
saber, enquanto aqueles aprendem unicamente pela elevação de seu gênio e pela segurança
de sua memória aquilo que expressam por meio da arte (BAZIN, 1989, p. 6).
36
As vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos de Cimabue ao
nosso tempo, descritas em língua toscana por Giogio Vasari, pintor aretino, com uma
introdução útil e indispensável para as diferentes artes – Título da capa (1012 páginas).

242
Superior à Idade Média, os objetos estavam relacionados ao culto ou a sua
utilidade prática, seu valor era, portanto, sedimentado nessas referências
mentais. No Renascimento, cada objeto ocupa um lugar a partir de outros
critérios relacionados aos valores mentais dados a eles, sem, no entanto,
romper a questão de valor de uso e ritual: testemunho do passado, do exótico
ou da beleza, o colecionismo implica em uma nova relação alheia à mística
religiosa ou ao atributo cotidiano.

A febre dos antiquários dos séculos XVI e XVII, como visto nos
capítulos anteriores, foi resultante das viagens marítimas; do ressurgimento
do comércio; da valorização das artes, antiguidades e do exótico; do
aparecimento dos gabinetes de curiosidade; de mensageiros comerciantes
das artes e, acima de tudo, do fluxo de capital, que estruturou uma relação
simbólica diferenciada, fora do modelo sagrado ou do sentido funcional,
baseada na relação do objeto enquanto testemunho do passado e do homem
ver e se relacionar com o real.

O modo de ver de uma sociedade não é um modo de ver único, mas


vários modos de ver, determinados por uma relação contínua e circular entre
o saber erudito e o saber popular. Os diversos níveis sociais influenciam-se
mutuamente, ainda que de maneira diferenciada, estabelecendo um
comportamento característico intimamente ligado à sua história, tempo e
lugar. Walter Benjamin afirma: O cronista que narra os acontecimentos, sem
distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do
que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. (1985, p. 223).
Assim, todo produto da ação humana torna-se um documento fundamental
para o resgate do passado: a produção artística destaca-se não apenas
como produto técnico/afuncional, mas como um produto elaborado pela
consciência humana, e deste modo, o registro de uma mentalidade e de uma
ideologia; a força do registro artístico consiste em determinar, por intermédio
de um ato voluntário, uma parcela do mundo visível.

Contudo a utilização do testemunho figurativo como fonte histórica


enfrenta dois problemas fundamentais: a mistificação e o método. Alguns

243
autores sacralizam o produto e/ou o produtor artístico, assim inviabilizam uma
leitura analítica coerente com o contexto histórico, além de dissimular o
discurso político. A passagem da posição meramente colecionadora, para a
atitude do historiador da arte realiza-se na segunda metade do século XVIII,
por dois eruditos, um francês e um alemão, o conde de Caylus e
Winckelmann. Caylus (1692-1787) utilizou-se da química e da física em suas
pesquisas, valorizando os fragmentos esparsos: Os monumentos antigos são
apropriados para ampliar os conhecimentos; eles explicam os usos singulares,
esclarecem os fatos obscuros ou mal detalhados nos Autores; colocam os
progressos das artes sob nossos olhos e servem de modelos para aqueles que a
cultivam. Winckelmann (1711-1778), envolvido com a reflexão filosófica
acerca da arte, procurou responder às necessidades do iluminismo:
Paradoxalmente, Winckelmann contribuiu para o destronamento da arte antiga. De
uma civilização imortal fez ele um momento histórico; fê-la decair do absoluto para o
relativo. Acreditando unir-se a ela, dela se separa pelo próprio ato que, objetivando-
a, a dessacraliza (BAZIN, 1989, p. 85).

Nos séculos XVII e XVIII, a distância entre o valor dado aos objetos de
uso e o objeto artístico torna-se acentuada através das Academias de Belas
Artes; do mesmo modo, o acesso aos registros artísticos ficam restritos às
classes superiores. Diderot (1751) afirma: As artes liberais (agora inclusa a
prática artística) promoveram-se demasiado a si próprias; poderiam agora passar a
promover as artes mecânicas. Compete às artes liberais resgatar as artes
mecânicas do desprezo a que têm sido votadas pelos preconceitos ao longo do
tempo. É preciso que saia das academias alguém que desça aos laboratórios e aí
recolha os fenômenos das artes expondo-os numa obra que leve os artistas a ler, os
filósofos a pensar com utilidade, e os poderosos a usarem utilmente a sua
autoridade e recompensas (apud DE SETA, 1984, p. 100). Diderot reclama o lugar
do artesanato, da produção em série, assunto tão caro à nossa modernidade
após a invenção da fotografia e da industrialização: a obra de arte e o objeto
de consumo na época de sua reprodutibilidade técnica, parafraseando Walter
Benjamin (1985), constitui o grande problema do lugar do objeto na cultura
contemporânea.

A partir dessas reflexões, é possível perceber a transformação dos

244
sentidos em relação aos objetos; porém, não foi possível localizar os
parâmetros que determinam quais são os bens patrimoniais móveis, quais
objetos, merecem lugar nos enfoques da preservação: a exceção; o raro; o
documento; a obra de arte; o artesanato; o sagrado; o profano; o cotidiano; o
incomum?

Pensando nestas questões, foram selecionados alguns textos


produzidos pela UNESCO, ficando as questões específicas que envolvem os
critérios de conservação e restauro ou fluxo (empréstimo, venda, troca,
importação, exportação, tráfico e coleta) consolidadas no próximo capítulo.
Os documentos escolhidos são:

1) Tratado sobre a proteção de Instituições artísticas e científicas e


monumentos históricos – Pacto de Roerich, Abril de 1935.

2) Normas de Quito – Relatório final do encontro sobre a preservação e


utilização de monumentos e sítios de valor histórico e artístico, Quito,
dezembro de 1967.

3) Convenção sobre a proteção do Patrimônio Arqueológico, Histórico e


Artístico das nações americanas – San Salvador, junho de 1976.

4) Recomendação para a Proteção de Bens Patrimoniais Móveis – Paris,


novembro de 1978.

Os monumentos, abordados em vários documentos, tratam


exclusivamente de bens patrimoniais imóveis, cuja imobilidade configura-se
na estrutura de edifícios, construções, sítios arqueológicos e demais vestígios
que não podem (ou não deveriam ser) transportados de um lugar para outro.
Sobre esta categoria, da Carta de Atenas às recomendações específicas que
abordam o Patrimônio Histórico, Arqueológico e, principalmente,
Arquitetônico, há uma grande concentração de discussões. Aos bens
patrimoniais móveis – objetos artísticos, históricos ou arqueológicos –, os
debates propostos parecem direcionar-se mais aos problemas de translado –
lícito e ilícito – que provêm da própria mobilidade dos objetos. Estas
discussões, concernentes às esferas políticas das ações propostas serão

245
tratadas no próximo capítulo. Nesse momento, pretendemos averiguar como
este tipo de testemunho é tratado nos documentos selecionados.

Tanto o Pacto de Roerich (1935), quanto As Normas de Quito (1967),


firmados entre os Estados do Continente Americano, introduziram a questão
da preservação do ponto de vista legal e dos tratados de respeito mútuo em
tempos de guerra. As propostas relacionadas aos bens imóveis são
introduzidas a partir das questões políticas que envolvem sua preservação.
No documento de Quito lê-se:

1. It is readily apparent that the Americas, and particularly Latin America, are
abundantly endowed with monumental resources. In addition to magnificent vestiges
of pre-Columbian cultures, this hemisphere offers a varied profusion of architectural
and artistic expressions representative of its long cultural history. A native accent,
derived from the phenomenon of acculturation, stamps the imported styles with the
authentically American flavor of many characteristic and distinctive local expression.
Archaeological ruins of outstanding importance, not always accessible or fully
explored, together with amazing survivors from the past, urban complexes, and
entire towns, can become centers of vivid historic interest and tourist attractions.
2. It is equally apparent that much of this heritage has been wantonly
destroyed during the past few decades or is currently in imminent danger of ruin.
Many factor have contributed and still contribute to depletion of the inventory of
archaeological, historic and artistic properties in most of the Latin American
countries, but it must be acknowledged that the basic reason for the increasingly
rapid destruction of this potential wealth is the lack of an official policy to enforce
current measures for protection effectively and practically, and promote enrichment
of the monumental heritage in terms of public interest and the economic benefit of
the nation.
3. At this critical juncture when the Americas are engaged in a great
progressive endeavor that calls for the exhaustive exploitation of natural resources
and the gradual transformation of socio-economic structures, the problems relating to
the protection, preservation, and utilization of monumental buildings, sites and areas
are particularly important and timely.
4. The entire process of accelerated development entails the expansion of
infrastructure and the occupation of extensive areas by industrial installations and
construction that tend to alter and even totally disfigure the landscape, erasing the
stylistic traits and expressions of the past, evidence of a historic tradition of
inestimable value.
5. A great many Latin American cities that until recently contained a rich
monumental heritage as evidence of their past grandeur – churches, plazas,
fountains and narrow streets that combined to accentuate their personality and
attraction – have suffered such mutilation and degradation of their architectural
contours that they are unrecognizable. All of this has been done in the name of a
misconceived and even more mismanaged urban progress.
6. It is no exaggeration to state that the potential wealth destroyed by these
irresponsible acts of urban vandalism in many cities of the hemisphere far exceeds

246
the benefits to the national economy derived from the installations and infrastructural
improvements claimed as justification for such acts.

A percepção do bem móvel não ocorre separadamente do bem imóvel:


os saques e o abandono de sítios históricos resultam na própria destruição
de artefatos, objetos e obras de arte do período pré-colombiano e, como
conseqüência, na perda de referenciais essenciais à construção da(s)
identidade(s) americana(s). O documento, no entanto, coloca representantes
dos países americanos, a indissociabilidade entre as práticas de preservação
– restauro, revitalização das áreas históricas e sua sociabilização – e da
documentação: a catalogação, pesquisa e inventário são indispensáveis no
processo de estruturação dos projetos de preservação, locais, nacionais ou
internacionais. Nenhum dos documentos citados trata da conceituação dos
bens patrimoniais móveis de maneira exclusiva, mas integrada aos conceitos
de Patrimônio Cultural, Histórico e arqueológico. Como foi visto
anteriormente, apenas na Convenção de San Salvador (1976) os objetos são
mencionados especificamente como parte dos complexos históricos.

Contudo, na Conferência Geral da UNESCO ocorrida em Paris, em


1978, o documento gerado na vigésima sessão aborda a questão dos Bens
Patrimoniais Móveis de maneira restrita, considerando que os bens
patrimoniais móveis representam as diversas culturas e fazem parte do
patrimônio da humanidade. Nas definições, o Patrimônio Móvel é
considerado: all movable objects which are the expression and testimony of human
creation or of the evolution of nature and which are of archaeological, historical,
artistic, scientific or technical value an interest, including items in the following
categories:

a) products of archaeological exploration and excavation conduced on


land and under water;
b) antiquities such as tools, pottery, inscriptions, coins, seals, jewellery,
weapons and funerary remains, including mummies;
c) items resulting from the dismemberment of historical monuments;
d) items relating to history, including the history of science and
technology and military and social history, to life of peoples and
national leaders; thinkers, scientists and artists and to events of
national importance;

247
e) items of artistic interest, such as paintings and drawings, produced
entirely by hand on any support and in any material (excluding
industrial designs and manufactured articles decorated by hand);
original prints, and posters and photographs, as the media for original
creativity; original artistic assemblages and montages in any material;
works of statuary art and sculpture in any material; works of applied
art in such materials as glass, ceramics, metal, wood, etc.;
f) manuscripts and incunabula, codices, books, documents or
publications of special interest;
g) items of numismatic (medals and coins) and philatelic interest;
h) archives, including textual record, maps and others cartographic
materials, photographs, cinematographic films, sound recordings and
machine-readable records;
i) items of furniture, tapestries, carpets, dress and musical instruments;
j) zoological, botanical and geological specimens.
O grande gabinete de curiosidades que se monta nessa classificação
parece comprovar as questões elaboradas anteriormente, quando foi
colocado que a percepção atual do patrimônio móvel remonta à febre dos
colecionadores do séc. XVII. Menos excludente do que o documento de San
Salvador (1976), que limita a validade do objeto histórico ao ano de 1850, o
documento gerado na Conferência de Paris não supera o estigma que
acompanha a produção artesanal: ela não é percebida enquanto elemento
cultural e os artigos manufaturados decorados à mão são deliberadamente
desclassificados (excluídos).

Arte e artesanato se confundem na história da arte, se considerarmos


que o status do artista é relativamente recente, como um ser criador
independente, cuja produção não possui (ou não deve possuir) nenhuma
finalidade prática, a não ser a reflexão teórica ou estética. Para Alberti, as
características que se apreciam nos objetos mais belos e mais bem
decorados são frutos das descobertas e cálculos engenhosos, ou do trabalho
do artífice, ou ainda características dadas diretamente pela natureza a esses
objetos (apud DE SETA, 1984: 93). A criação, o trabalho e a natureza são as
três funções verificáveis na composição do objeto artístico, independente de
seu caráter único ou reproduzido. Na Idade Média, tampouco se faz a
distinção entre o objeto de uso e o objeto artístico, sendo a indústria medieval
ricamente decorada, de acordo com a influência ocidental (carolíngia; anglo-

248
irlandesa) românica, bizantina ou gótica. Ao abordar o problema a arte no
mundo antigo, Bandinelli (1961: 50) afirmou que toda a arte do mundo clássico
deve ser considerada como um artesanato de grande qualidade.

Ao marginalizar o artesanato que constrói objetos de uso – panelas,


tapetes, rendas etc. –, a história da arte ocupa-se da qualidade e do caráter
estético desses produtos “inúteis” que são as obras de arte, afirma Cesare de
Seta. Porém, o que está em jogo não é a utilidade das coisas, pois desse
modo seríamos mecanicistas, mas o lugar que as coisas ocupam no meio
social. A manutenção das tradições manufatureiras faz parte, hoje, das
discussões acerca da memória tecnológica de cada povo; resgatar as
pinturas, tramas, urdiduras, pontos, tinturas, modelagens não é apenas
manter vivos elementos exóticos em um mundo de produção em série, mas
compreender a identidade que mantêm coesa uma certa organização social.
Mesmo que George Kubler afirme que apesar de ligados entre si por um ponto
comum, uso e beleza mantêm-se irredutivelmente diferenciados: nenhum utensílio
será alguma vez cabalmente explicado como obra de arte, ou vice-versa. Por mais
elaborado que seja o seu mecanismo, o utensílio será sempre intrinsecamente
simples, ao passo que a obra de arte, que é um complexo de vários estados e níveis
de intenções intrincadas, por muito simples que o seu efeito possa parecer será
sempre uma coisa intrinsecamente complicada. As obras de arte não são utensílios:
e está é a questão de fundo (apud DE SETA, 1984, p. 96), não há como negar a
propriedade cultural que permeia o artesanato, sua importância reside em
representar uma identidade que vai além da subsistência de um grupo, mas
que reflete uma linguagem própria, um modo de ver e de se relacionar com a
sociedade.

Retornando ao documento de 1978, o patrimônio móvel é considerado


mais susceptível aos danos ocasionados por conflitos armados, acidentes e,
principalmente, roubo e tráfico ilícito. A documentação que possibilite a
identificação desses elementos torna-se fundamental á sua salvaguarda.
Ultimamente, ICOM/ICOMOS e ICCROM se uniram para produzir um
periódico que se chama One Hundred Missing Objects, produzido desde

249
1994, em várias versões e enfocando diversas regiões, com o intuito de
viabilizar a recuperação de objetos roubados.

Além dos aspectos documentais, a Conservação Preventiva dos Bens


Patrimoniais Móveis é primordial à sua preservação. No artigo sexto do
princípios gerais lê-se: cultural property is liable to deterioration as a result of poor
conditions of storage, exhibition, transport and environment unfavorable lighting,
temperature or humidity, atmospheric pollution), which in the long run may have
more serious effects than accidental damage or occasional vandalism. Suitable
environmental condition should consequently be maintained in order to ensure the
material security of cultural property. The responsible specialists should include in
the inventories data on the physical state of the objects and recommendations
concerning the requisite environmental conditions (Recommendation for the
Protection of Movable Cultural Property, UNESCO, 1978).

As recomendações, correspondentes às anotações indispensáveis nos


inventários acerca do estado de conservação e dos parâmetros relativos ao
controle ambiental, raramente fazem parte de fichas catalográficas dos
acervos, ou se fazem, nem sempre são preenchidas. As necessidades de
padronização e compreensão das normas de documentação e de controle
ambiental são dirigidas aos Museus e Centros Históricos, que são os
depositários dos bens culturais móveis. Apesar de elaboradas em 1978, as
recomendações propostas no documento ainda não são visíveis nos países
da América Latina. A catalogação executada em 1999 na África acerca da
legislação relativa à defesa de seu patrimônio – Droit et Patrimoine en Afrique
–, realizada pela UNESCO em parceria com o ICCROM, UNIDROIT e
Universidade SENGHOR, sob a coordenação de Vicent Negri, reuniu as leis
de quarenta países africanos. Iniciativas nesse sentido, que procurem a
correspondência do micro-cosmo regional ao macro-cosmo internacional
possibilitam a aplicabilidade das diretrizes propostas.

250
5.5. Patrimônio Subaquático
Nós homens, descobrimos tudo o que está oculto nas
montanhas por meio de sinais e correspondências exteriores;
e é assim que encontramos todas as propriedades das ervas
e tudo o que está nas pedras. Nada há nas profundezas dos
mares, nada nas alturas do firmamento que o homem não
seja capaz de descobrir.
Paracelso, apud Foucault. As palavras e as coisas, 1966, p.
48.

10. Segunda Fase de Prospecção – "Baía de Angra”

http://www.terravista.pt/guincho/1430/arqsub0.htm

O resgate de objetos submersos não é uma prática recente: da


pirataria do século XVI aos submarinos de expedições arqueológicas atuais,
os homens se aventuram nas profundezas dos oceanos, lagos e rios atrás de
riquezas submersas. Porém, assim como a Arqueologia de soterramento do
século XVII, a prática do resgate de artefatos e objetos submersos ainda hoje
permanece envolta pelas práticas clandestinas e aventureiras da “caça ao
tesouro”. Questões legislativas relacionadas aos limites territoriais de cada
nação tornam os oceanos vulneráveis às práticas não controladas.

251
Além dos limites territoriais – a zona econômica de duzentas milhas
padronizada pelo mercado internacional –, por sua própria natureza o
Patrimônio Subaquático é um recurso internacional: grande parte desse
patrimônio encontra-se em território internacional e é resultante do
intercâmbio e das comunicações internacionais entre embarcações (e seu
conteúdo) que se perdeu entre seus portos de origem e destino.

O debate em torno desse assunto é recente e a legislação direcionada


ao Patrimônio Subaquático ainda incipiente em vários países, inclusive no
Brasil. O ICOMOS, por meio de uma série de discussões realizadas na
década de noventa, tem procurado alertar as nações acerca da necessidade
de atuar de maneira mais intensa e profissional com respeito à esse tipo de
patrimônio, o qual, muitas vezes, não se reduz aos Bens Patrimoniais Móveis
resgatados, mas inclui também ruínas arqueológicas e arquitetônicas que
testemunham as ações humanas em espaços geográficos hoje submersos.

Considerados áreas de risco contínuo, sítios arqueológicos em áreas


submersas e parques naturais marinhos ou fluviais são vítimas da exploração
desordenada, dos saques e dos resgates inconseqüentes realizados sem o
apoio de conservadores especializados. Por sua vez, problemas
concernentes à falta de pesquisas científicas relacionadas ao tema são
comuns, como também as questões legais referentes a posse do material
resgatado.

O assunto tem sido matéria específica apenas em discussões


recentes: somente os documentos Buenos Aires Draft Convention on the
Protection of Underwater Cultural Heritage (1994) e a Draft Charter for the
Protection and Management of the Underwater Cultural Heritage (1996)
enfocaram os testemunhos submersos. O debate, iniciado em 1982 com a
Convenção da UNESCO dirigida às Leis Marítimas, prosseguiu em 1985 na
European Convention on Offences Relating to Cultural Property e adquiriu
forma em 1990 na Charter for the Protectin and Management of the
Archaeological Heritage, quando é definido que: the "archaeological heritage" is
that part of the material heritage in respect of which archaeological methods provide

252
primary information. It comprises all vestiges of human existence and consists of
places relating to all manifestations of human activity, abandoned structures, and
remains of all kinds (including subterranean and underwater sites), together with all
the portable cultural material associated with them.

Á luz dessas discussões, vários países elaboraram medidas


legislativas direcionadas ao Patrimônio Subaquático, sendo Portugal pioneiro
ao sancionar em 1998 a legislação concernente à pesquisa e preservação de
sítios subaquáticos. No Brasil, poucos pesquisadores atuam neste campo,
como o arqueólogo Gilson Rambelli formado pelo MAE-USP, e mesmo com a
tradução da carta do ICOMOS referente ao patrimônio subaquático37 para o
português e espanhol, a legislação brasileira ainda é ineficiente e obscura
quando se trata desse tipo de testemunho.

A lei n.7542 de 1986, com Portaria Interministerial – Ministério da


Marinha e Ministério da Cultura – n.69, de janeiro de 1989, afirma que todos
os bens artísticos, históricos e arqueológicos encontrados submersos
pertencem à União, todavia, a imprecisão da lei sobre as diferenças entre
bens submersos ou bens não submersos e a falta de políticas claras em
relação a estes bens, torna a lei inoperante. À mercê de aventureiros ou nas
mãos de organismos oficiais sem formação específica – como a própria
Marinha –, este patrimônio é o que mais sofre perdas pela falta de
qualificação dos amadores que se aventuram a resgatá-lo ou pelo número
exíguo de pesquisadores disponíveis. Além disso, a infra-estrutura de
salvamento em áreas submersas é de custo elevado, exigindo equipamentos
sofisticados.

O problema maior relacionado à remoção de vestígios arqueológicos


submersos é a carência de estudos específicos direcionados ao tratamento
posterior desses objetos. Vários são os riscos e os traumatismos nos
resgates submarinos: o equilíbrio entre o objeto e seu meio (o local onde se
encontrava submerso) foi obtido através de um longo tempo de adaptação, o
qual promoveu um processo de interação, conduzindo a um equilíbrio

37
Publicada Revista do MAE, n.7, de 1997, como “ A Carta Internacional do ICOMOS sobre a
proteção e gestão do patrimônio subaquático”.

253
estável. A remoção ou intervenção de um objeto nesse estado de equilíbrio
pode ser mais prejudicial, caso ele não seja devidamente acondicionado e
ambientado (climatizado).O contraste entre o ambiente antigo e o novo
provoca muitos efeitos indesejados, acarretando uma série de danos
irrecuperáveis. É necessário minimizar e controlar os efeitos ocasionados
pela mudança ambiental, bem como ter a consciência de que, tanto no
momento da escavação, quanto no resgate submarino, os impactos são
inevitáveis; desse modo toda ação deve ser integrada e previamente
planejada. Na pesquisa, é imprescindível avaliar a natureza do material, o
tipo de ambiente e a dimensão do sítio; programar as linhas de conservação
imediatas e futuras e as condições de guarda e/ou exposição mais
adequada. Sendo prática recente, há pouca bibliografia especializada sobre o
assunto, fazendo com que arqueólogos e conservadores trabalhem a partir
dos parâmetros das escavações de soterramentos. Nem mesmo uma das
obras mais completas sobre a conservação em Arqueologia, o texto de Marie
Claire Berducou (1990), chegou a elaborar algum capítulo ou tópico dirigido
ao tema.

A mudança abrupta de seu contexto representa um esforço de


readaptação brutal ao objeto. A sensibilidade dos artefatos submersos
encontram-se em um estado mais delicado ainda do que aqueles soterrados:
objetos e estruturas submersas possuem uma outra condição em relação aos
soterramentos; pesquisas desenvolvidas em torno dessa realidade
demonstram que não é possível utilizar os mesmos parâmetros, as mesmas
medidas e os mesmos procedimentos voltados à Química, Física ou Biologia
para a conservação desses testemunhos. Em 1991 foi criado o Comitê
Internacional do ICOMOS na Austrália, que teve como presidente o seu
idealizador, Dr. Graeme Henderson, oceonógrafo e Diretor do Museu Marítmo
de Westen, em Fremantle, Austrália. A criação deste comitê, conforme
depoimento do Dr. Robert Grenier – atual presidente da CIPCS (Comissão
Internacional para a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático) –, foi uma
reação às explorações descontroladas dos vestígios do Titanic: parecia
evidente que los desarrollos tecnológicos, permitiendo traballar a cualquier

254
profundidad, amenazarían los restos conocidos y desconocidos, protegidos hasta el
momento por su inaccesibilidad. El concepto de un comité que reuniera a expertos
internacionales en arqueología subaquática había nacido: este grupo de expertos de
dieciocho paises tiene por misión asistir al ICOMOS Internacional y a la UNESCO a
promover la protección y la buena gestión de los bienes culturales sumergidos como
parte importante del patrimonio de la humanidad (GRENIER, 1999, p. 1).

A Arqueologia Subaquática, ao ser uma disciplina recente, é ainda


desconhecida em vários países, carecendo também de uma formação
direcionada à sua prática: a possibilidade de uma formação mais aberta nos
cursos de pós-graduação dificulta ao pesquisador que pretende dedicar-se à
área receber uma orientação mais precisa e sistemática, sendo indispensável
procurar em centros mais sedimentados a formação necessária. A missão da
CIPCS é suprir a carência de profissionais qualificados em lugares que não
dispõem desse tipo de cientista, inibindo a ação de pessoas não
especializadas e servindo de conselho técnico às atividades voltadas para a
Arqueologia Subaquática.

Considerando a atualidade desta classificação, apenas dois


documentos tratam especificamente desse tipo de patrimônio:

1) Convenção para a Proteção de Patrimônio Cultural Subaquático –


Buenos Aires, agosto de 1994.

2) Carta Internacional Sobre a Proteção e a Gestão do Patrimônio


Cultural Subaquático –, Sofia, outubro de 1996.

Ambos documentos são colocados pelos debatedores como


documentos complementares à Carta para a Gestão do Patrimônio
Arqueológico de 1990, a qual define o Patrimônio Arqueológico como parte
do patrimônio material sobre o qual os métodos da arqueologia provêm
informação primária, compreendendo todos os vestígios da existência
humana, os sítios vinculados a todas as manifestações de atividades
humanas, estruturas abandonadas e vestígios de toda natureza, assim como
Bens Culturais Móveis associados aos mesmos. Para o propósito da
formulação destes documentos seguintes, o Patrimônio Cultural Subaquático

255
é entendido como aquele que está localizado em um meio subaquático ou
que tenha sido removido dele: inclui sítios e estruturas submersas, zonas de
naufrágio, restos de naufrágio e seu contexto arqueológico e natural.

Nesse ponto, o contexto natural assume importância significativa, pois


a conservação do entorno – assunto abordado em outros documentos – é
responsabilidade de qualquer tipo de investigação ou resgate de bens
culturais: não há como se esquecer que em muitos sítios submersos todo um
ecossistema se desenvolveu, ocorrendo que em muitos restos de naufrágio
pequenas espécies os transformaram em refúgio contra predadores maiores.
Por sua vez, as áreas de sítios subaquáticos podem ser ameaçadas por
construções que alterem as costas e os leitos marinhos, ou então que
alterem o fluxo das correntes, os sedimentos e a biosfera a partir de agentes
poluidores. O acesso impróprio e a remoção de objetos ou elementos
submersos (como conchas) podem ocasionar um impacto incontrolável, não
perceptível pelos visitantes, mas sensível à natureza. Muchas de estas
amenazas pueden evitarse o reducirse substancialmente si se consulta previamente
con los arqueólogos y si se implementan proyectos que atenúen estos efectos,
relata o documento que apresenta a Carta do Patrimônio Subaquático (1996)
à comunidade científica.

Nos preâmbulos da Convenção de Buenos Aires lê-se:

. Acknowledging the importance of the underwater cultural heritage as an


integral part of the cultural heritage of humanity and a particularly important element
in the history of peoples, nations, and their relations with each other concerning their
shared heritage;
. Noting growing public interest in the underwater cultural heritage;
. Perceiving that growing threats to the underwater cultural heritage include
increasing construction activity, advanced technology that enhances identification of
and access-to wreck, exploitation of marine resources, and commercialization of
efforts to recover underwater cultural heritage;
. Determining that the underwater cultural heritage may be threatened by
irresponsible activity and that therefore cooperation among States, salvors, divers,
their organizations, marine archaeologists, museums and other scientific institutions
is essential for the protection of the underwater cultural heritage;
. Considering that exploration, excavation, and protection of the underwater
cultural heritage necessitates the application of special scientific methods and the
use of suitable techniques and equipment as well as a high degree of professional
specialization, all of which indicates a need for uniform governing criteria;

256
. Recognizing that the underwater cultural heritage belongs to the common
heritage of humanity, and that therefore responsibility for protecting it rests not only
with the State or States most directly concerned with a particular activity affecting the
heritage or having an historical or cultural link with it, but with all States and other
subjects of international law;
. Bearing in mind the need for more stringent supervision to prevent any
clandestine excavation which, by destroying the environment surrounding underwater
cultural heritage, would cause irremediable loss of its historical or scientific
significance;
. Realizing the need to codify and progressively develop the law in conformity
with international rules and practice, including provisions in the 1982 United Nations
Convention on the Law of the Sea;
. Convinced that information and multidisciplinary education about the
underwater cultural heritage, its historical significance, serious threats to it, and the
need for responsible diving, deep-water exploration and other activity affecting the
underwater cultural heritage, will enable the public to appreciate the importance of
the underwater cultural heritage to humanity and the need to preserve it; and
committed to improving the effectiveness of measures at international and national
levels for the preservation in place or, if necessary for scientific or protective
purposes, the careful removal of the heritage that may be found beyond the territorial
sea.

Este preâmbulo, baseado nos tratados internacionais da Convenção


de Viena de 1945 quando se fundou a UNESCO, introduz o tema da
exploração, uso e resgate de vestígios submersos tanto do ponto de vista
legal, quanto do caráter científico particular que envolve a conservação de
objetos e estruturas submersas: no último parágrafo é colocado que as
atividades devem ser realizadas no local e que qualquer remoção deve ser
criteriosa. Propostas científicas que preservem esses sítios também
contemplam a segurança do local e as ações que considerem o entorno –
como as atividades urbanas e de subsistência local (pescaria, turismo e
outras) –, procurando inserir o monumento subaquático em programas de
crescimento auto-sustentável que reconheçam a necessidade de sua
preservação e seu uso, e retorne à comunidade como elemento educacional
de construção de identidade e fonte de recursos. The public must be educated
and informed of these threats in order to appreciate the importance of the
underwater cultural heritage to humanity and the need to preserve it as a component
of history of humanity (ICOMOS, 1994: 2).

257
Este documento, forjado também nas projeções propostas pela
Convenção da UNESCO de 1982, quando se discutiu a Lei dos Mares,
reconheceu que a jurisdição relativa às costas, o limite marítimo de cada
nação, não seria suficiente para dar conta das áreas fora desses limites,
sendo indispensável leis internacionais geridas pela UNESCO-ONU que
pudessem servir de âncora às questões extra-territoriais, uma vez que o
patrimônio subaquático – independente de sua origem – é um patrimônio de
toda humanidade.

A definição do patrimônio subaquático, nesse documento, foi a


seguinte:

1. “Underwater cultural heritage" means all underwater traces of human


existence including:
(a) sites, structures, buildings, artifacts and human remains, together with
their archaeological and natural contexts; and
(b) wreck such as a vessel, aircraft, other vehicle or any part thereof, its
cargo or other contents, together with its archaeological and natural context.

O abandono da investigação científica dessas áreas deve ocorrer


quando nenhuma tecnologia for capaz de viabilizar a pesquisa 25 anos após
sua descoberta, ficando o proprietário da área obrigado a repassar o direito
de exploração à comunidade internacional após essa data, sendo que esta
terá mais um tempo para tentar dar andamento ao projeto. De acordo com os
comentários com respeito a essa normativa, o conceito de abandono é
colocado com o intuito de minimizar as expectativas quanto aos limites da
Convenção, o conceito de abandono é alusivo e sujeito às legislações locais:

for example, in Columbus-America Discovery Group Atlantic Mutual


Insurance Co., 974 F.2d 450 (4th Cir. 1992), a federal appeals court in the United
States upheld the 135-year-old sub-regaled interests of insurance underwriters in a
cargo of gold. The SS Central America sank in 1857 off the coast of South Carolina.
On board was a shipment of gold from Californian merchants, bankers and express
companies to New York banks. Following the loss, the insurance companies paid out
under the policies and, under the doctrine of subrogation, became the owners of the
gold that was eventually found in 1989. The lower court held that the claimants'
failure to recover the gold for 130 years and destruction or loss of documentary

258
evidence of their payments under the policies meant that they had abandoned the
gold. The Court of Appeals remanded the action to the lower court with instructions
to take account of the interests of the successor insurers. In November 1993 the
lower court awarded 90% of the treasure to salvoes and 10% to the insurance
companies (N.Y. Times, Nov. 19, 1993, at A13).

A Convenção de Buenos Aires discute as legislações nacionais,


considerando que a exploração do Patrimônio Subaquático não deve ocorrer
sem critérios éticos e científicos muito bem determinados e que os Estados-
membros da ONU devem respeitar as recomendações internacionais. A
Carta é entendida como um modelo que providencia parâmetros de conduta
sob os quais os Estados podem seguir para avaliar se as atividades
relacionadas com o patrimônio cultural subaquático podem ser ou não
aceitáveis; se as escavações ou a remoção de testemunhos ocorrem a partir
de bases científicas, tanto do ponto de vista da arqueologia subaquática,
como da conservação preventiva e interventiva dos objetos. Embarcações
militares receberam um tratamento exclusivo no documento, no artigo
segundo está escrito: this Convention does not apply to any warship, military
aircraft, naval auxiliary, or other vessels or aircraft owned or operated by a State and
used for the time being only on government non-commercial service, or their
contents.

Os artigos seguintes abordaram a responsabilidade do Estado na


manutenção de suas reservas arqueológicas subaquáticas, sua
jurisprudência e seu controle contra a exploração ilícita; por sua vez, reafirma
a obrigatoriedade tanto dos pesquisadores quanto do governo de divulgar à
sociedade as informações e os resultados das investigações, bem como
documentar e relatar os procedimentos em curso. A Arqueologia, como as
outras ciências voltadas à preservação, deve ser vista como uma atividade
pública: todos tienen el derecho de indagar en el pasado para enriquecer sus
propias vidas, y cualquier acción que restrinja esse conocimiento es uma violación a
la autonomia personal. El patrimônio cultural subaquático contribuye a la formación
de la identidad y puede servir para afirmar el sentido de pertenencia de los
miembros de una sociedad. Si se administra con sensibilidad, el patrimonio cultural

259
subaquático puede jugar un papel positivo en la promoción de la recreación y el
turismo (Carta Internacional, 1996).

A Arqueologia é impulsionada pelas investigações, enriquece o


conhecimento da diversidade cultural humana e proporciona novas
interpretações do passado; por sua vez, a educação, promovida pelo
esclarecimento e pela divulgação das informações, sempre é um mecanismo
que transforma a sociedade em uma aliada nas ações preservacionistas. Do
outro lado, o turismo cultural, colocado ultimamente como fonte de recursos
e, portanto, justificativa da preservação aos olhos da comunidade que vive
próxima às áreas tombadas, não contempla a totalidade das motivações que
implicam nas ações protecionistas: a auto-estima; as noções de crescimento
auto-sustentável e a consciência de que os testemunhos históricos fazem
parte da própria vida de cada população, sendo matéria incorporada ao
cotidiano e não alheia a ele, são indispensáveis a uma ação contínua, cujos
resultados a longo prazo são mais efetivos do que os interesses passageiros
de um turismo forjado na busca do lucro imediato.

Não há de se condenar a atividade turística, mas compreender seus


limites e seus alcances, bem como a necessidade de fomentá-la sem causar
prejuízo ao ambiente subaquático, à vida da população local ou às atividades
científicas.

As discussões preliminares ocorridas na Conferência de Buenos Aires


de 1994 geraram um documento que previa vinte e três artigos em torno de
vários eixos temáticos: as leis de salvamento; as zonas de preservação; as
águas territoriais internas e externas; a violação das normas expostas na
Carta e nos demais documentos da UNESCO; o controle dos navios e das
práticas dos Estados-membros em áreas fora de sua competência marítima;
a apreensão de artefatos resgatados indevidamente; as sanções penais; as
notificações de explorações impróprias; a colaboração e a partilha dos
resultados das investigações; a educação; as disputas; as línguas oficiais de
registro da Carta (árabe, chinês, inglês, francês, russo e espanhol); as
ratificações e as revisões do documento; a aplicabilidade das normas nas

260
unidades territoriais; o acesso ao documento pelos Estados-membros e não
membros da UNESCO; as denúncias. Baseados nesses princípios ao longo
de dois anos, a Carta para a Proteção e o Gerenciamento do Patrimônio
Cultural Subaquático aprovada em 1996 na 11ª Assembléia Geral do
ICOMOS, realizada em Sofia, estruturou quinze artigos fundamentais, sendo
confirmado o caráter aberto do documento, uma vez que é intenção revisá-lo
constantemente. O registro aponta no seu artigo primeiro a prerrogativa do
trabalho in situ e a orientação para ações que signifiquem o menor impacto
ambiental ou à permanência do sítio subaquático:

Article 1 – Fundamental Principles


.The preservation of underwater cultural heritage in situ should be
considered as a first option.
.Public access should be encouraged.
.Non-destructive techniques, non-intrusive survey and sampling should
be encouraged in preference to excavation.
.Investigation must not adversely impact the underwater cultural
heritage more than is necessary for the mitigatory or research
objectives of the project.
.Investigation must avoid unnecessary disturbance of human remains
or venerated sites.
.Investigation must be accompanied by adequate documentation.

Ao longo dos artigos seguintes, estão consolidadas as diretrizes


propostas anteriormente, porém formalizadas de uma maneira mais
esquemática e precisa, servindo de orientação e normativa aos
procedimentos efetivos, conforme a proposta do próprio documento de vir a
se tornar um modelo das ações dos estados, centros de pesquisa, museus e
das legislações regionais ou nacionais. Os artigos seguintes, se dividem em
torno de quatorze temas: preparação do projeto; financiamento; calendário;
objetivos, metodologia e técnicas de investigação; qualificação,
responsabilidade e experiência; estudos preliminares; documentação;
conservação material; gestão e manutenção do sítio; saúde e segurança;
informes; cuidado; difusão e cooperação internacional. Mais esquemática e
objetiva, a Carta pretende ser um parâmetro para as atividades de
investigação, exploração e manutenção do Patrimônio Cultural Subaquático.

261
5.6. Patrimônio Natural
La conservación de los paisajes culturales requiere de un alto
grado de libertad para la reflexión, de un abrirse a la
creación, de un discurso político que trabaja en la
confrotación buscando la consertación (...) Entre las
condiciones para encarar la puesta en valor de este
patrimonio se encuentra la salud, la educación y la
participación de sus actores. El desafío comporta entender
que se trabaja en un espacio eminentemente cambiante y
funcionalmente flexible; que se actúa en un entorno de
continuos y variados flujos; que la potencialidad de
crescimiento y de intercambio constituye su esencia. El
desafio consiste en dar un nuevo sentido a la salvaguarda del
patrimonio...
Jorge Nestor Bozzano. Reflexiones para la conservación del
patrimônio. Paisajes culturales. 1999, p. 166.

11. O Parque Nacional Marinho de Abrolhos foi criado no dia 6 de Abril de


1983, através de decreto presidencial, atendendo uma solicitação do
departamento de Parques Nacionais do IBDF (Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal) e da Marinha. O Parque de Abrolhos – primeiro
do gênero no Brasil e na América do Sul – engloba quatro das cinco ilhas
do arquipélago: Redonda, Siriba, Sueste e Guarita. A ilha de Santa Bárbara
continua sob a jurisdição e controle do Ministério da Marinha. Com a
criação do parque fica proibida a pesca no espaço marítimo de 110 mil
hectares ao redor do recife das Trombetas. Além disso, também não é
permitida qualquer atividade predatória a fauna terrestre das ilhas.

Crédito da foto e do texto: Pedro Morais Rego Martins

http://www.terravista.pt/FerNoronha/4038/fotos3.html

262
O conceito de Patrimônio Natural é um conceito relativamente recente,
como também os conceitos de ecossistema, ecologia, parque ecológico,
reserva natural e crescimento auto-sustentável. São conceitos criados no
século XX em virtude das grandes modificações geradas pelas
transformações tecnológicas e industriais: em menos de dois séculos,
centenas de animais foram extintos ou entraram em extinção devido à
destruição de seu habitat natural e à caça indiscriminada; florestas inteiras
desapareceram na costa leste latino-americana, norte dos Estados Unidos,
Europa, Ásia e África. O aumento da temperatura da Terra; a poluição de
rios, mares e subsolos; a destruição da flora e da fauna, todos esses fatores
têm obrigado a sociedade capitalista a repensar suas práticas de exploração
da natureza, pois o esgotamento das reservas naturais e a destruição do
meio ambiente podem vir a significar sua própria destruição.

Contudo, a percepção da natureza e de seu significado enquanto


patrimônio da humanidade corresponde também a um conceito construído.
De acordo com a Hieroglyphica de Horapolo (1505), todos os animais, e também
as plantas, têm sempre qualquer coisa a comunicar aos homens. Mais do que isso,
são instrumentos de que se vale o eterno para se manifestar no tempo e o
sobrenatural no natural (apud BUARQUE DE HOLANDA, 1992, p. 218). A natureza
existe como veículo da compreensão humana, posto que o homem é a
medida de todas as coisas. A construção das visões do Paraíso no século
XVI retoma a própria construção bíblica da terra prometida e a natureza,
percebida também pela noção do Jardim do Éden, é cultivada pela cultura
ocidental como uma fuga daquilo que eles acreditam ser “as grandes
cidades”, a desenfreada vida urbana da época dos descobrimentos.

No Renascimento italiano, Palladio nos seus Quatro livros sobre


Arquitetura (1570) introduz uma visão integrada do monumento com a
natureza: o monumento é um unicum; o monumental, um conjunto. Este
conjunto é percebido no seu aspecto cenográfico, tornando a ruína parte

263
integrante da paisagem. A concepção de um espaço urbanístico é encontrada
também na extraordinária disseminação das vilas palladianas na zona rural de
Vicenza. Estão por demais afastadas uma da outra para formar contextos visuais,
ainda que, de alguma forma, os bem cultivados campos, os recorrentes contornos
das colinas, a própria luz em que estão mergulhadas, as mantenham unidas, de
forma que se pode falar de uma correlação, como que entre dois afrescos da
mesma série, entre os quais o discurso prossegue mesmo que eles não se
enquadrem no mesmo campo visual (ARGAN, 1995, p. 162).

A natureza desses campos, o contorno das colinas, a luz e o céu são


vistos como se vê através de uma paisagem: paisagem esta concebida não
por meio de sua existência real, mas pela sua composição figurativa em um
quadro; a natureza é o fundo de uma narrativa, a moldura de uma imagem
relacionada com um tema específico, cujas imagens do primeiro plano
correspondem à estrutura cognitiva da obra, enquanto a natureza
apresentada apenas compõe o cenário. As montanhas da Virgem dos
Rochedos (1485) de Leonardo da Vinci são utilizadas como estratégia para a
composição de sua técnica de chiaro-scuro: o recanto escondido e rochoso
que serve de enquadramento, o lago em frente e a vida vegetal parecem
conferir à obra uma atmosfera mística; na Tempestade (1505), os
personagens de Giorgione pertencem à Natureza, são testemunhas passivas
– vítimas, quase – da tormenta prestes a desabar sobre elas; no Nascimento
de Vênus (1480), de Sandro Botticelli, o vento, o mar e a flora são
personificações de deuses mitológicos. Durante a Idade Média, as formas
clássicas se divorciaram dos temas clássicos. Os artistas utilizavam o
repertório Antigo de atitudes, gestos e expressões, mas trocaram a
identidade das figuras: os filósofos se transformaram em apóstolos; Orfeu em
Adão; Hércules em Sansão ou Cristo. Quando havia oportunidade de
representar deuses pagãos, os artistas interpretavam os relatos literários, ao
invés de se reportarem às produções artísticas antigas. Somente com
Pollaioullo e Mantegna, as formas e o conteúdo clássico começam a
associar-se de novo. As pinturas perdidas dos Trabalhos de Hércules de
Pollaioullo assinalam o primeiro caso de assuntos da mitologia clássica

264
tratado num estilo inspirado nos Antigos monumentos. O Nascimento de
Vênus contém a primeira imagem monumental, desde os tempos romanos,
da deusa nua numa atitude derivada das suas estátuas clássicas. Como
podiam justificá-la sem expor o autor ou seu patrono à acusação de neo-
paganismo? Fundir a fé cristã com a mitologia antiga exigia uma
argumentação sofisticada, que ficaria a dever-se aos filósofos neo-platônicos,
cujo representante principal, Marsílio Ficino, gozou de grande prestígio. O
pensamento de Ficino, baseado tanto no misticismo de Plotino como nas
obras de Platão, representava a antítese do sistema escolástico medieval.
Para Ficino, a vida do Universo, incluindo o Homem, estava ligada a Deus por
um circuito espiritual, de modo que toda revelação – quer da Bíblia, quer dos
filósofos, da natureza e dos mitos da Antigüidade – era só uma. A filosofia
neo-platônica e a sua manifestação na arte eram demasiado complexas para
se tornarem populares fora do circuito restrito e intelectualmente superior de
seus admiradores, mas as paisagens concebidas como cenário eram
sensíveis a todos que conheciam ou não a mitologia: a natureza percebida
por meio de seu conteúdo idílico remete ao Éden, ao mesmo tempo que
retorna à Antigüidade.

Diferente das questões propostas pela Ecologia, a noção de


Patrimônio Natural perpassa por esta relação construída pelo “ver”: o que nos
seduz na paisagem em um primeiro momento é a sua imagem, e não o
reconhecimento cognoscível de seu significado na biosfera. No entanto, nem
sempre a natureza é percebida pela sua qualidade de integração com a
narrativa ou por sua visão favorável: O espírito de rebelião é quase uma segunda
natureza das gentes de minas. A própria paisagem parece incitar ao motim (...) A
terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos;
destilam liberdade os ares; vomitam insolências as nuvens; influenciam desordens
os astros; o clima é tumba da paz e o berço da rebelião; a natureza anda inquieta
consigo e, amotinada lá por dentro, é como no inferno (Conde de Assumar. apud
VASCONCELLOS, 1958, p. 24). A natureza em transe parece apenas
reproduzir a personalidade dos homens.

265
No século XIX os viajantes e as expedições procuraram compreender
a natureza dentro da ótica positivista, como algo a ser desvendado: os
Institutos Geográficos, as expedições à Antártica e todas as aventuras
românticas, também estavam carregadas de um cientificismo latente gerado
no século anterior. As histórias das idéias ou das ciências – aqui designadas
somente pelo seu perfil médio – imputam ao século XVII uma curiosidade nova:
aquela que os fez, se não descobrir, pelo menos dar uma amplitude e uma precisão
até então insuspeitadas às ciências da vida” (FOUCAULT, 1966, p. 139).

Nesse momento, o século XIX, surge uma disciplina que é origem do


que hoje conhecemos como Ciências Biológicas e que é a base da
compreensão da natureza não mais como simples cenário, mas como um
objeto a ser estudado, classificado, descrito e registrado, a História Natural:
Como pôde a idade clássica definir esse domínio da “história natural”, cuja evidência
hoje e cuja unidade mesma nos parece tão longínquas e como que já confusas?
Que campo é esse em que a natureza apareceu próxima de si mesma o bastante
para que os indivíduos que ela envolve pudessem ser classificados, e
suficientemente afastada de si, para que o devessem ser pela análise e pela
reflexão? (FOCAULT, 1995, p. 142).

A História Natural sendo oriunda de outras pequenas histórias do


século XVI – como a História Admirável das Plantas; História da Natureza das
Aves ou História natural dos quadrúpedes, conforme descrito por Foucault –
recebe destas obras pioneiras uma mesma lógica de configuração: ao
descrever a natureza, o discurso não distingue o registro do olhar, do
conhecimento ou da imaginação. A divisão para nós evidente, entre o que vemos,
o que os outros observam e transmitem, o que enfim os outros observaram e
transmitiram, a grande tripartição, aparentemente tão simples e tão imediata, entre a
Observação, o Documento e a Fábula não existia. E não porque a ciência hesitasse
entre uma vocação racional e todo um peso da tradição ingênua, mas por uma razão
bem mais precisa e bem mais constringente é que os signos faziam parte das
coisas, ao passo que no XVIII eles se tornam modos de representação (FOUCAULT,
1966, p. 143).

Quando, no século XIX, a História Natural se firma como ciência,


limitando e filtrando o visível através de estruturas de classificação, a partir

266
das divisões específicas da Geologia, Geografia, Botânica e Zoologia, a
percepção do mundo natural passa a ser feita em compartimentos fechados;
perde-se a noção do todo, do conjunto visível que vinculava o cenário natural
às ruínas do passado – o conjunto monumental proposto por Palladio – e
cria-se uma relação de afastamento, própria da estrutura cientificista da
época.

Como paisagem ou como mapeamento de mundo, a natureza existe


independentemente da consciência humana, porém apenas a consciência
humana é capaz de percebe-la em perigo, na sua inserção cultural ou no seu
valor enquanto ecossistema. A partir desses pressupostos, os documentos
que registram a preocupação da UNESCO em relação ao Patrimônio Natural
são seis:

1) Recomendação relativa à salvaguarda da Beleza e das Características


de Paisagens e Sítios – Paris, Novembro de 1962.

2) Convenção sobre a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural


– Paris, novembro de 1972.

3) Recomendações relativas à proteção do patrimônio cultural e natural,


aos níveis nacionais – Paris, novembro de 1972.

4) Carta de Burra – Carta para a conservação de Lugares de Significado


Cultural – ICOMOS–Austrália, 1981.

5) Carta de Florença – Comitê Internacional de Jardins Históricos,


ICOMOS–IFLA, Florença, maio de 1981.

6) Carta de Nova Zelândia – Carta para a Conservação de Lugares de


Valor Patrimonial Cultural, Nova Zelândia, outubro de 1992.

Nesses documentos, duas naturezas são manifestas enquanto


patrimônio a ser preservado: a Natureza em si – existente como paisagem,
reserva natural ou ecossistema – e a Natureza fabricada, criada pelo homem
para compor um conjunto arquitetônico ou um edifício, desenhada nos
jardins, pomares ou campos.

267
O primeiro documento direcionado ao tema foi elaborado em
dezembro de 1962, em Paris, na vigésima sessão da Conferência Geral da
UNESCO. Sob o título, Recomendações concernentes à Salvaguarda das
Belezas e Características de Paisagens e Sítios, o texto reivindica o valor
cultural dessas áreas como ponto fundamental para sua preservação, sendo
este valor cultural baseado tanto nos critérios estéticos quanto nos científicos.
Considerando o progresso acelerado da sociedade contemporânea como um
dos maiores fatores de degradação das áreas virgens, a natureza é
percebida também como fator econômico, indispensável à manutenção de
certas sociedades: Considering that, on account of their beauty and character, the
safeguarding of landscapes and sites, as defined in this recommendation, is
necessary to the life of men for whom they represent a powerful physical, moral and
spiritual regenerating influence, while at the same time contributing to the artistic and
cultural life of peoples, as innumerable and universally known examples bear witness
(Recommendation Concerning the Safeguarding of Beauty and Character of
Landscapes and Sites, UNESCO, 1962).

Como testemunho ou como fator de sobrevivência, a natureza é


percebida por meio de sua dimensão cultural, estritamente vinculada ao
relacionamento estabelecido com a sociedade. O conceito de crescimento
auto-sustentável, baseado em uma gestão exploratória não destrutiva e numa
integração total do homem com o ambiente natural, ainda não está formulado
no texto, apesar de citar o fator econômico como uma dessas esferas de
relacionamento. É, no entanto, o fator estético que guia a definição: For the
purpose of this recommendation, the safeguarding of beauty and character of
landscapes and sites is taken to mean the preservation and, where possible, the
restoration of the aspect of natural, rural and urban landscapes and sites, whether
natural or man-made, which have a cultural or aesthetic interest or form typical
natural surroundings. De acordo com os próprios princípios gerais, o objeto do
texto não limita a preservação à paisagem natural, mas àquelas formadas
pela ação human: protection should not be limited to natural landscapes and sites,
but should also extend to landscapes and sites whose formation is due wholly or part
to the work of man.

268
As formas de preservação dessas áreas correspondem a ações
preventivas e corretivas, sendo o Estado o agente responsável pela
preservação, apesar da recomendação do estabelecimento de institutos de
pesquisa científica como uma forma de cooperação e ação conjunta. A
percepção da expansão das sociedades contemporâneas não é reduzida
apenas à construção dos centros urbanos, mas a todas as atividades que
alimentam esta sociedade industrial e que, de uma maneira ou de outra,
produzem o impacto ambiental: a construção de estradas; complexos
elétricos e de transmissão de telecomunicações; estações petrolíferas e
mineradoras; expansão de fazendas de criação e campos cultivados;
poluição do ar, da água e do solo; todos esses elementos, em conjunto ou
separadamente, estão relacionados ao desmatamento e à descaracterização
das paisagens. O planejamento urbano e rural e a supervisão contínua das
autoridades competentes são apontados como mecanismos indispensáveis,
bem como a demarcação das zonas e a elaboração de regras claras e
divulgadas relacionadas às mesmas. No trigésimo artigo lê-se: The
fundamental norms and principles governing the protection of landscapes and sites
in each Member State should have the force of law, and the measures for their
application should be entrusted to the responsible authorities within the framework of
the powers conferred on them by law.

A educação é enunciada em um tópico a parte, correspondendo a seis


artigos dos quarenta e dois propostos; como em todas as recomendações e
cartas elaboradas pela UNESCO desde sua fundação, a educação é vista
como arma primordial da conscientização e, portanto, da preservação de
qualquer bem patrimonial, móvel ou imóvel, cultural ou natural. No texto
específico, a educação para a preservação do patrimônio natural deve se
realizar dentro e fora da escola, sendo o museu regional apontado como um
instrumento eficaz para este fim. Além dos museus, a imprensa, as
associações privadas e as organizações populares contribuem para a
formação da opinião pública em relação aos sítios a serem preservados.

Apesar de a beleza ser o valor cultural apontado neste documento


como fator primordial ao reconhecimento das áreas naturais, retomando

269
muitos conceitos pré-existentes advindos da Renascença, as recomendações
propostas procuram uma integração maior entre as áreas a serem
preservadas e as sociedades do entorno. É, no entanto, apenas em 1972,
que a categoria de Paisagem Cultural é discutida especificamente, sendo
esta a primeira Convenção voltada especificamente para as questões
relativas ao patrimônio cultural e natural. A partir desse momento, a
Convenção constitui um instrumento jurídico internacional próprio destinado a
identificar, proteger, conservar e legar às gerações futuras as paisagens
culturais de valor universal excepcional. Neste encontro é criado o Comitê do
Patrimônio Mundial, sendo estipulada no artigo onze a criação da World
Heritage List, que comportaria não apenas o patrimônio cultural, mas também
o natural. A descrição do que significaria o patrimônio cultural foi apresentada
no primeiro tópico deste capítulo. A seguir reproduzimos o texto que delimita
o sentido do patrimônio natural:

For the purposes of this Convention, the following shall be considered as


"natural heritage":

natural features consisting of physical and biological formations or groups of


such formations, which are of outstanding universal value from the aesthetic or
scientific point of view;

geological and physiographical formations and precisely delineated areas


which constitute the habitat of threatened species of animals and plants of
outstanding universal value from the point of view of science or conservation;

natural sites or precisely delineated natural areas of outstanding universal


value from the point of view of science, conservation or natural beauty.

Ainda que a beleza seja colocada como um fator determinante, este


documento salienta a responsabilidade humana diante dos ambientes
naturais no que tange à manutenção de espécimes vegetais e animais. O
termo ”paisagem cultural”, incluso no texto em 1990, trata de uma tipologia de
patrimônio extremamente extensa, que abarca uma diversidade de
manifestações resultantes da interação do homem com seu ambiente natural.
De acordo com Maria de las Nieves Arias Incollá (1999: 12), as paisagens
culturais são divididas em três categorias:

270
a) Los paisajes diseñados, concebidos y creados por el hombre
(jardines como por ejemplo, los de Aranjuez en España, el de
Versailles en Francia o el Central Park de Nueva York);

b) Los paisajes esencialmente cambiantes evolutivos ( como los


viñedos en Europa, los arrozales en el norte de las Filipinas, o las
terrazas cultivadas en Perú);

c) Los paisajes asociativos de aspectos religiosos, artisticos o


culturales como los sitios sagrados o conmemorativos (Urluru en
Australia, Tongariro en Nueva zelandia, o los bosquecillos
sagrados de Ghana).

De acordo com este artigo publicado na edição da UNESCO


denominada Paisajes Culturales, o valor único e testemunhal das paisagens
está baseado nos critérios culturais, estabelecidos pela correspondência
dada entre sua existência e seu significado atribuído pela sociedade. Nesse
sentido, os critérios culturais que determinam sua relevância são:

a) obra mestra de gênio criativo: intencionalmente produzida


pelo homem, como parques e jardins;
b) áreas que signifiquem um intercâmbio de valores humanos
durante um período em uma área cultural;
c) testemunho único de uma civilização;
d) exemplos de um tipo paisagístico que ilustrem uma etapa
significativa;
e) exemplo de um habitat ou estabelecimento humano
tradicional do uso da terra;
f) associados diretamente ou tangivelmente com tradições
vivas, idéias, obras artísticas ou literárias.

As categorias b, c, d e e estão relacionadas com as paisagens


evolutivas, organicamente desenvolvidas ou resultantes de imperativos
sociais, econômicos, administrativos, religiosos e que respondam tanto às
questões evolutivas postas pela ciência da Pré-História ou pelas Ciências
Humanas. De uma maneira ou de outra, a percepção relativa à necessidade
de preservação de determinado patrimônio natural parece sempre posta pelo
vínculo, como testemunho ou vivência, que estabelece com a sociedade.

271
Deste ponto de vista, a proposta do CICOP – Centro Internacional para a
Conservação do Patrimônio – formada por escritórios regionais em várias
partes da América Latina, tem como proposta a percepção da importância
regional das áreas: El CICOP se planteó como objetivos traer más que el concepto
de universalidad, aquel de lo representativo regional, identificando y valorando
paisajes culturales del Cone Sur que puedan presentarse en un futuro ante
Patrimonio Mundial (INCOLLÀ, 1999: 14). Diante desta proposta, os Estados-
membros são chamados a cumprir seu papel de agente fiscalizador e
promotor da educação voltada às áreas propostas, enquanto estas não
pertençam à WHL.

Essa orientação, colocada como base dos cinqüenta e cinco


documentos produzidos pela UNESCO, prevê a obrigatoriedade de os
Estados-membros presentes nas Convenções realizadas desde 1945
identificarem, protegerem, reabilitarem e transmitirem às gerações futuras o
patrimônio cultural e natural situado em seu território. No artigo quarto do
documento de 1972 está escrito: It will do all it can to this end, to the utmost of its
own resources and, where appropriate, with any international assistance and co-
operation, in particular, financial, artistic, scientific and technical, which it may be able
to obtain.

A busca de uma política geral que abarcasse a proteção tanto do


patrimônio cultural quanto do patrimônio natural, atribuindo-lhes uma função
social a partir de sua integração na vida da coletividade e um reconhecimento
internacional a partir da formação de uma Lista do Patrimônio Mundial, gerou
o Comitê do Patrimônio Mundial. Composto inicialmente por quinze Estados-
membros presentes na Convenção da UNESCO de 1972, foi constituído por
uma Assembléia Geral realizada durante as reuniões ordinárias, prevendo-se
sua ampliação até vinte e um membros, com a adoção do documento
proposto por um número maior de quarenta Estados. No artigo oitavo
declara-se a importância da representatividade das culturas na organização
do Comitê e na elaboração da World Heritage List: Election of members of the
Committee shall ensure an equitable representation of the different regions and
cultures of the world.

272
Além dos representantes regionais dos Continentes, representantes de
institutos específicos respondem pela preservação equilibrada das várias
tipologias apresentadas nos tópicos anteriores: A representative of the
International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural
Property (Rome Centre), a representative of the International Council of Monuments
and Sites (ICOMOS) and a representative of the International Union for Conservation
of Nature and Natural Resources (IUNC), to whom may be added, at the request of
States Parties to the Convention meeting in general assembly during the ordinary
sessions of the General Conference of the United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization, representatives of other intergovernmental or non-
governmental organizations, with similar objectives, may attend the meetings of the
Committee in an advisory capacity.

A criação do Comitê, da Lista e de um Fundo específico para socorrer


áreas em perigo, fomentou a participação dos Estados na busca de inclusão
de seus bens culturais na WHL, uma vez que a base dos inventários é
apresentada pelos Estados, sendo necessário seu consentimento para a
inscrição de um bem na Lista do Patrimônio Mundial.

Apesar do respeito à autonomia estatal, muitas vezes o Comitê, bem


como o ICOMOS e a UNESCO recebem informações filtradas, que nem
sempre consideram os conflitos internos. Posicionamentos concernentes aos
embates legislativos, entre o direito público e o privado; os limites nacionais e
as demandas internacionais foram discutidos em todos os documentos
produzidos posteriormente e até hoje as ações preservacionistas esbarram
em problemas que vão além da materialidade de um bem cultural. Em março
de 1997 veiculou-se pela internet o seguinte documento, escrito por Emilio
Dionicio Reys:

Quien suscribe la presente, Emilio Dionicio Reyes, como representante de los


campesinos de las áreas adyacentes a las ruinas de Chan Chan en Trujillo, Perú; se
dirige a ustedes con la sana pero firme intención de hacer llegar nuestra más
enérgica protesta por los abusos que se han cometido con los agricultores de la
Zona Arqueológica de Chan Chan de parte del Instituto Nacional de Cultura La
Libertad, dirigida por Ana María Hoyle Montalva quien usó a los representantes de la

273
UNESCO (Patricia Uribe) y la ICOMOS (Jose Correo Orbegoso) como banderas
para arrasar nuestras viviendas, con la poderosa ayuda del Ejercito Peruano y la
Policia Nacionall; estos abusos aumentaron después de mi denuncia personal en las
oficinas de la UNESCO en París el 12 Mayo 1997. A denúncia aponta abuso de
poder contra os camponeses da zona extendida de Chan Chan, área
arqueológica correspondente a 1400 hectares, demarcados pelo Estado
peruano em 1967 e destribuídos em 1969 para a Reforma Agrária: En 24 de
Junio de 1969 el gobierno Revolucionario del General Velasco Alvarado emite la ley
de Reforma Agraria, expropia los citados terrenos y los entrega a los partidarios
(sembradores a medias con los hacendados); entre ellos los actuales campesinos,
otorgándoles títulos y certificados de posesión a todos los conductores de las tierras
debidamente identificados.

De acordo com o documento, en 1986 la UNESCO inscribió a Chan Chan


como Monumento Universal, basándose en una incompleta evaluación de la
ICOMOS, información admitida por ambas entidades y en 1987 el Gobierno Peruano
emite una orden Ministerial por la cual se ordena al Procurador de la República,
tomar aciones coactivas contra los habitantes de los asentamientos humanos y los
agricultores de las ruinas de Chan Chan. Com o intuito de averiguar a extensão
da zona arqueológica, demarcada sem um estudo sistemático, em janeiro de
1988 é nomeada uma Comissão Multisetorial, cujas recomendações
expostas em 1995 prevêem uma nova demarcação da área a ser preservada
e um trabalho de cooperação e integração dos agricultores e instituições
científicas. Porém, em 1997 os conflitos se intensificam e a expulsão dos
camponeses da área sob a alegação da destruição do patrimônio
arqueológico impede qualquer diálogo.

O teor das denúncias, mesmo que pareçam ampliadas pela ótica do


líder dos agricultores daquela região, não pode ser desconsiderado: é
importante lembrar que nem sempre os representantes do governo, os
políticos e o próprio governo respeitam a vontade, as necessidades e as
prioridades da população; principalmente nos países violados pela corrupção,
pelas ditaduras e pelo poder da “aristocracia” agrária que determina os
caminhos da política nacional. A distância entre a ponta da pirâmide social e
sua base amplia a disparidade das ações públicas e sua incongruência ou

274
incompetência diante das demandas sociais. Não é impossível conciliar a
preservação das áreas naturais, sítios arqueológicos e paisagens culturais
com as necessidades da população do entorno, desde que estas sejam
ouvidas prioritariamente.

O documento concernente às recomendações sobre a Proteção do


Patrimônio Cultural e Natural nas esferas nacionais, discutidas na mesma
conferência, inicia suas considerações partindo da premissa de que a
interação entre o patrimônio natural e cultural e a comunidade ocorre a partir
de sua função ativa no seio dessa sociedade: considering that, in a society
where living conditions are changing at a accelerated pace, it is essential for man’s
equilibrium and development to preserve for him a fitting setting in which to live,
where he will in contact with nature and the evidences of civilization bequeathed by
past generations, and that, to this end, it is appropriate to give the cultural and
natural heritage an active function in community life and to integrate into an overall
policy the achievements of our time, the values of the past and the beauty of nature;
considering that such integration into social and economic life must be one of the
fundamental aspects of regional development and national planning at every level
(Recommendation concerning the Protection, at National Level, of the Cultural and
Natural Heritage, UNESCO, 1972.)

Considerando esses tópicos e outros que colocam o país no qual


encontram-se situados patrimônios culturais e naturais, reconhecidos ou não
pela World Heritage List, como mantenedor, gerenciador e protetor desses
bens, o documento proposto aponta a obrigatoriedade de as nações que
pertençam ao corpo dos Estados-membros da Organização das Nações
Unidas adotarem os instrumentos internacionais elaborados pela UNESCO,
criando mecanismos institucionais e legais para o estabelecimento dos
modelos e princípios descritos nessas recomendações. No artigo terceiro lê-
se: In conformity with their jurisdictional and legislative requirements, each State
should formulate, develop and apply as far as possible a policy whose principal aim
should be to co-ordinate and make use of all scientific, technical, cultural and other
resources avaliable to secure the effective protection, conservation and presentation
of the cultural and natural heritage.

275
Mesmo com as recomendações concernentes às medidas
administrativas, científicas, técnicas, legais e financeiras, a prática tem
demonstrado que os próprios Estados-membros são os primeiros a
desconsiderar as propostas e os caminhos apontados: o caso de Chan-Chan
não é um caso isolado de alijamento da comunidade local do processo de
tombamento de uma área, ainda que todos os documentos recomendem a
integração e a educação como fórmula básica da atividade preservacionista.

Por outro lado, várias comunidades têm se organizado para


transformar sua região ou elevar seus monumentos à condição de Patrimônio
Mundial da Humanidade. Para elas, esse título é motivo de orgulho e de
divisas. Mounir Bouchenaki (1999: s.p.), ex-diretor do Museu de Antigüidades
da Algéria e atual diretor da Divisão de Patrimônio Cultural e Centro do
Patrimônio Mundial da UNESCO relata: I have had the opportunity to attend
ceremonies in various parts of the world in which the whole population of a given site
has been present, singing and dancing, showing happiness and pride at having the
site recognized by the international community. When attending a 1997 ceremony to
unveil the plaque declaring the Medina of Meknès, Morocco, as a World Heritage
site, the delegation headed by Federico Mayor, director general of UNESCO, was
surprised to see the population of the city in the streets expressing their joy. On
many other occasions--for example, in Italy in 1999, for the unveiling of the plaque
declaring Paestum and Il Valle del Cilento as World Heritage sites -- I again saw the
population attending the ceremony and celebrating the recognition of its heritage.

Dando seqüência ao debate, influenciada pela Carta de Veneza


(1964), a qual ampliou o conceito de monumento histórico ao considerar os
espaços urbanos e rurais nos quais este se encontra, definindo o significado
dos “lugares de significado cultural”, a Carta de Burra (1981) define como
lugar, o espaço físico onde se encontram os sítios, áreas, edifícios ou
complexos arquitetônicos, incluindo seus pertences e seu entorno: place
means site, area, building or other work, group of buildings or other works together
with pertinent contents and surroundings.

Nesse sentido, estabelece no artigo vinte e quatro que: the study of a


place by any disturbance of the fabric or by archaeological excavation should be

276
undertaken where necessary to provide data essential for decisions on the
conservation of the place and/or to secure evidence about to be lost or made
inaccessible through necessary conservation or other unavoidable action.
Investigation of a place for any other reason which requires physical disturbance and
which adds substantially to a scientific body of knowledge may be permitted,
provided that it is consistent with the conservation policy for the place. Assim,
estudo e planejamento fazem parte da política que se prontifica preservar
locais de importância cultural. Nesse documento específico, a nomenclatura e
a definição dos critérios de conservação são os conceitos predominantes,
não existindo nenhuma referência à educação ou ao respeito à comunidade
nos processos de preservação.

Como colocado inicialmente, duas naturezas são descritas nos


documentos selecionados, a natureza em seu estado próprio e a natureza
moldada, produzida pela criação. Tanto a Carta de Burra, quanto a Carta de
Florença percebem o espaço físico como um complemento, um cenário ou
um prolongamento da criação humana. A Carta de Florença (1981) explicita
esta visão ao definir como objeto de estudo os jardins históricos, definidos da
seguinte maneira:
Art. 1. An historic garden is an architectural and horticultural composition of
interest to the public from the historical or artistic point of view". As such, it is to be
considered as a monument.
Art. 2. The historic garden is an architectural composition whose constituents
are primarily vegetal and therefore living, which means that they are perishable and
renewable." Thus its appearance reflects the perpetual balance between the cycle of
the seasons, the growth and decay of nature and the desire of the artist and
craftsman to keep it permanently unchanged.
Art. 3. As a monument, the historic garden must be preserved in accordance
with the spirit of the Venice Charter. However, since it is a living monument, its
preservation must be governed by specific rules which are the subject of the Present
charter.
Art. 4. The architectural composition of the historic garden includes:
•Its plan and its topography.
•Its vegetation, including its species, proportions, colour schemes, spacing
and respective heights.
•Its structural and decorative features.
•Its water, running or still, reflecting the sky.

277
Art. 5. As the expression of the direct affinity between civilization and nature,
and as a place of enjoyment suited to meditation or repose, the garden thus acquires
the cosmic significance of an idealized image of the world, a "paradise" in the
etymological sense of the term, and yet a testimony to a culture, a style, an age, and
often to the originality of a creative artist.

O jardim, visto como cenário, aproxima o homem da natureza através


de uma noção de subordinação, uma vez que a natureza exposta é a
natureza dominada, planejada e disposta de acordo com um desenho
humano, selecionada e construída de modo a eliminar os riscos, o indesejado
ou o selvagem, próprios da natureza em estado bruto. A reprodução do
paraíso corresponde às visões particulares dos paisagistas e implica em uma
noção própria da imagem idílica da natureza. Os jardins são testemunhos,
associados aos edifícios, capazes de resgatar as construções mentais e as
relações do homem com a natureza e com sua própria sociedade.

Para além do significado da natureza construída dos jardins,


delimitada no entorno como paisagem ou como complemento cenográfico
aos edifícios históricos ou sítios arqueológicos, a Carta de Nova Zelândia
(1992) aponta para uma outra percepção do espaço físico, incluindo os locais
sagrados e a existência da natureza em si, enquanto contraste e diferença da
sociedade contemporânea. Pelo Tratado de Waitangi, as sociedades
indígenas são consideradas responsáveis pela guarda de seus tesouros,
monumentos e locais sagradas, considerando que o patrimônio Maori e
Moriori está relacionado à família e grupos tribais, sendo a identidade destes
povos inseparável do significado cultural atribuído às cerimônias, locais
sagrados e de convivência cotidiana.
The purpose of conservation is to care for places of cultural heritage value,
their structures, materials and cultural meaning. In general, such places:
i. have lasting values and can be appreciated in their own right;
ii. teach us about the past and the culture of those who came before us;
iii. provide the context for community identity whereby people relate to the land
and to those who have gone before;
iv. provide variety and contrast in the modern world and a measure against
which we can compare the achievements of today; and provide visible evidence of
the continuity between past, present and future.

Tendo em vista que a preservação das culturas indígenas representa a


preservação de testemunhos de valor único e, portanto, de valor universal, a

278
definição dos locais de valor patrimonial ocorre a partir da participação dessa
sociedade nos processos de planejamento e estruturação.

Conservation projects should include the following:


i. definition of the cultural heritage value of the place, which requires prior
researching of any documentary and oral history, a detailed examination of the place,
and the recording of its physical condition;
ii. community consultation, continuing throughout a project as appropriate;
iii. preparation of a plan which meets the conservation principles of this charter;
iv. the implementation of any planned work; and the documentation of any
research, recording and conservation work, as it proceeds.

É possível observar que os documentos analisados mantêm a


percepção da natureza semelhante àquela produzida no Renascimento. A
lógica dominante na eleição dos bens naturais a serem preservados
permanece circunscrita aos valores que lhe são atribuídos a partir de seu
relacionamento com a sociedade, seja do ponto de vista do sagrado; da
integração que a subordina à condição de cenário dos monumentos; do
caráter pitoresco, bucólico ou idílico que comporta enquanto paisagem; das
conotações políticas ou ideológicas enquanto testemunho histórico ou da
referência científica que estabelece com o circuito evolutivo das espécies,
incluindo a espécie humana. Jorge Néstor Bozzano afirma (1999, p.160): los
documentos internacionales sobre Patrimonio Natural y otros como la Carta de
Venecia, constituyen la sínteses del pensamiento moderno em relación a la
conservación del patrimonio. Los documentos tratan de establecer los principios
universales para la intervención, definiendo com amplitud y claridad el marco posible
de actuación. En la preservación de un monumento se tiene la certeza de lo
dominado; lo absoluto se impone como guía orientadora.

Dominando o tempo, a natureza e a matéria, o homem moderno finge


controlar a sociedade. A questão que se impõe na preservação de
determinados locais, paisagens ou entornos é o seu significado afetivo tanto
quanto econômico com a sua comunidade. Se a palavra “conservação”
adquire uma conotação positiva, associada à tradição, à recuperação do
passado, da memória e da história, a preservação de áreas naturais de
significado cultural também corresponde à urgência da preservação da
natureza não apenas como deleite, mas como referência e existência em si.
La elección se ha transformado em predilección. De tanta homegeneidad se há

279
perdido la coherencia; de tanta originalidad se ha perdido la creatividad. El rasgo
que resta es la caricatura. Es el auge de la imitación y de la mimesis que ha
conquistado la salvaguarda de los monumentos (BOZZANO, 1999, p.161).

De acordo com Bozzano, a problemática das paisagens culturais pode


abrir um caminho renovador em relação à conservação do patrimônio, a partir
do momento que a dimensão humana for percebida por meio de um
relacionamento integrado com a natureza, o qual, fomentado pela educação,
é capaz de fazer dos habitantes de cada região agentes participativos nos
processos decisórios de preservação; atores que procurem através do
desenvolvimento auto-sustentável uma forma de interagir com a natureza de
forma não violenta, retirando seu sustento sem agredi-la.

Em 1987, O Relatório da Comissão Mundial de Meio Ambiente e


Desenvolvimento – Nosso futuro comum – apontava o desenvolvimento
sustentável como o desenvolvimento que responde às necessidades do
presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer
suas próprias necessidades; nesse sentido, o meio ambiente deixou de ser
percebido como algo estático, mas inerente e atuante nos processos de
crescimento, considerando o capital humano como parte primordial nos
programas de preservação. A sustentabilidade, vista como um conjunto de
fatores – capital humano, capital físico, bem-estar, adaptação, equilíbrio
econômico e político, capacidade de elaborar projetos que aglutinem valores
econômicos e culturais –, torna-se um problema multidisciplinar, que exige
responsabilidade e respeito ao meio ambiente não apenas pelo seu valor
cultural ou econômico, mas pela indissociabilidade entre a existência
humana e a preservação: a terra é uma só, mas o mundo não. Nós todos
dependemos de uma biosfera para sustentar nossas vidas. Contudo, cada
comunidade, cada país, luta por sua sobrevivência e prosperidade sem se preocupar
com o impacto sobre os outros (CUÉLLAR, 1987, p. 27).

A noção de sustentabilidade levanta a questão de como a natureza é


concebida em uma sociedade a partir de seus valores culturais; esses
valores devem ser considerados importantes nos projetos que pretendam
alcançar a sustentabilidade ecológica, uma vez que as variáveis multiculturais

280
determinam em última instância o tipo de relacionamento, a justificativa e os
objetivos a serem alcançados, a qualidade dos resultados e as condições de
perpetuação das ações propostas. A percepção global do patrimônio natural
não deve ocorrer em detrimento de uma inserção local; do mesmo modo, que
as culturas individuais não devem ser desresponsabilizadas quanto ao seu
papel preservacionista do patrimônio mundial. Tal posicionamento não
implica em uma visão reducionista da natureza, fragmentada e subordinada à
espécie humana, mas a noção de que patrimônio natural e humanidade
dependem de um relacionamento pautado por uma via de mão dupla,
intercambiante, complementar e, portanto, equilibrada.

No bojo dessas discussões, não devemos desconsiderar o fenômeno


mundial da urbanização, a passagem de uma vida predominantemente rural
para uma existência urbana, gerando problemas econômicos, sociais e
políticos jamais vivenciados e acarretando impactos ambientais imensuráveis.
Em 1950, 29,3% da população vivia nas áreas urbanas; em 1994, 44,8%; a
estimativa para o ano 2025 é de que 61,1% da população mundial (cinco bilhões de
pessoas) morem nas zonas urbanas. Entre 1960 e 1992, o número de moradores de
cidades no mundo aumentou em 1,4 bilhão. Nos próximos 15 anos, crescerá cerca
de mais um bilhão. Essas mudanças implicam um movimento populacional massivo
do interior para as cidades. Acrescente-se a isso o crescimento demográfico natural
(CUÉLLAR, 1997, p. 285).

Somado a este fenômeno, a destruição das paisagens naturais para


dar lugar às paisagens fabricadas pelos homens: campos de pastagens,
plantações, madeireiras, hidroelétricas, esgotos, depósitos de lixo e
reservatórios de água são montados para abastecer, nutrir e suprir as
grandes cidades. Cada vez mais é necessário um planejamento urbano que
vise o meio ambiente do entorno, interno e externo às grandes cidades.
Árvores, parques e jardins adquirem um significado que vai além de seus
atributos culturais, sua condição de lazer ou seus laços afetivos com a
população: tornam-se indispensáveis ao equilíbrio ecológico da vida urbana
como agentes de controle dos poluentes atmosféricos, da emissão de ultra-
violeta e da manutenção da umidade do ar e do solo. No ambiente externo, a

281
destruição das paisagens naturais pode provocar, em pouco tempo, a
destruição de todo ecossistema. Faltou ao relatório de Cuéllar a análise do
envolvimento dos países ricos no esgotamento das reservas naturais, estes
são responsáveis pelo consumo de 80% da energia gerada no planeta e se
recusam abertamente a controlar o consumo dessa energia e a emissão de
poluentes, alegando questões econômicas relacionadas à produtividade
como justificativa às suas ações.

Somos parte da terra, e ela é parte de nós... Nós sabemos disso. A terra não
pertence ao homem; é o homem que pertence à terra. Nós sabemos disso. Todas as
coisas estão ligadas entre si. Da mesma forma que o sangue une uma família, todas
as coisas estão ligadas. Tudo que afetar a terra afeta os filhos da terra. O homem
não teceu a teia da vida; ele é apenas um fio dela. Tudo o que fizer a este fio, fará a
38
si próprio . O olhar sobre o patrimônio natural expande-se para além de sua
importância cênica, histórica e cultural, amplia os domínios da memória e
impõe à sociedade a necessidade de rever seu posicionamento diante dessa
própria natureza; educar seu pensamento para ações protecionistas que
partem do cotidiano, do particular ao global; assimilar a sustentabilidade a
partir do multiculturalismo que ela propõe. O homem como medida de todas
as coisas define essas medidas a partir de parâmetros próprios, os quais
podem estabelecer resultados diferenciados sobre uma mesma matéria;
esses resultados correspondem aos papéis representados pelo homem
diante da natureza e da sociedade, tomando como pressuposto que ele é um
agente de suma importância mas não o centro do universo.

38
Discurso proferido pelo Chefe Seattle em 1854, em resposta à venda de terra de seu povo
proposta pelo governo americano.

282
5.7. Patrimônio Cultural – Tangível e Intangível
Cultural phenomena are of such complex that it seems to me
doubtful whether valid cultural laws can be found. The causal
conditions of culture happenings lie always in the interaction
between individual and society, and no classificatory study of
societies will solve this problem. The morphological
classification of societies may call to our attention some
problems. It will not solve them. In every case it is reducible to
the same source, the interaction between the individual and
society
Franz Boas. Race, Language and Culture, 1966, p. 257.

12. Chamada da UNESCO para apresentar os documentos que


discutem a questão do Patrimônio Intangível.

http://www.unesco.org/culture/heritage/intangible

A percepção do fenômeno cultural não é, como podemos observar


pela citação de Boas, tarefa fácil de se empreender: não importa quais
regras, metodologias ou estruturas de análise as Ciências Humanas se
proponham a seguir, sempre há lacunas, dúvidas, incoerências. No entanto,
o conceito de cultura, como tantos outros com que convivemos, não é um
conceito estático, mas uma idéia mutante e vinculada, principalmente, às
mudanças que ocorreram nos dois últimos séculos. Do mesmo modo, o
conceito de Patrimônio Cultural é um conceito de difícil elaboração; quaisquer
que sejam as palavras que utilizemos para explicá-lo parecem sempre
excludentes, transitórias ou insuficientes. Boas e seus seguidores não se
consagravam, de um modo geral, ao estudo de sociedades tribais índias
directamente observáveis, enquanto entidades em acção, mas tentavam a
reconstrução das características dessas sociedades com base nos resíduos
materiais fragmentários e nas reminiscências de informadores de idade avançada,

283
vivendo em condições de destribalização nas reservas indígenas sob a tutela do
governo (LEACH, 1985, p.105). Mesmo com as críticas em relação à
construção antropológica do pensamento de Boas, as contribuições relativas
à percepção da complexidade de cada segmento ou estrutura cultural são
deveras importantes.

Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã, esclarece Alfredo
Bosi; Hobsbawm fala o mesmo quando diz que as palavras são testemunhas
que muitas vezes falam mais alto que os documentos (1982, p. 17). As
palavras cultura, culto e colonização vêm do latim e derivam do mesmo verbo
colo: “colo” significou, na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra e, por
extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo (BOSI, 1982, p. 11). A cultura
remonta a própria origem do trabalho, mas, assim como o conceito de
“raízes”, passou a ser interpretada como todo o conjunto de manifestações e
expressões que constróem a identidade de um povo: sua compreensão
ultrapassa a existência física. A raiz, por sua vez, deixa de ser percebida a
partir de uma anatomia vegetal, para configurar-se no terreno da percepção
mental: torna-se sinônimo de origem do modo de ser, ver, agir e de se
relacionar com o mundo.

É também possível explorar diferentes significados no termo


“Patrimônio Cultural” a partir da etmologia: Romance languages use terms
originated in the Latin patrimonium to refer to property inherited from one’s father or
ancestor, heritage, inheritance, like it was the case in Middle English. Germans use
Denkmalpflege, the care of monuments, whilst the English language adopted
heritage, originally restricted to that which has been or may be inherited, but through
the same process of generalisation which affected the Romance patrimony it too was
to be used as a general reference to the inherited monuments from older
generations. In all these expressions, there is always a reference to remembrance,
moneo (Latin, to cause or make to think, in both patrimonium and monumentum),
Denkmal (German, denken to think), and to the forefathers, implicit in inheritance.
Side by side with these rather subjective and affectionate terms, linking people to
their real or supposed ancestors, there is also a more economic or legal definition,
cultural property, or cultural assets, as is usual in Romance languages (Italian, beni
culturali), implying a less passionate and personal link between monument and

284
society, so much so that it is treated as a property. As the definition of property is a
political one, cultural property is always a political matter, not a theoretical one, as
Carandini (1979: 234) put it (FUNARI, 2000, p.1).

Como herança material e, portanto, detentor de um valor de capital ou


como herança espiritual e, desse modo, vinculado às relações afetivas, o
Patrimônio Cultural estabelece com a sociedade um intrincado diálogo que
percorre todos os níveis intelectuais de construção, desde a percepção de
sua ingerência econômica na vida social, até os significados mais profundos
relacionados à construção histórica e antropológica do viver em sociedade.

O Patrimônio Cultural não admite um conceito fechado, restrito ou


limitado, por ele podemos conceber: the combined creations and products of
nature and man, in their entirety, that make up the environment in which we live in
space and time; heritage is a reality, a possession of the community, and a rich
inherence that may b passed on, which invites our recognition and our participation
(Carta de Quebec, ICOMOS, 1982). Mas é a partir da Convenção sobre a
proteção de patrimônio mundial, cultural e natural, ocorrida em 1972 em
Paris, que o conceito passa a ser delimitado. Como parâmetros estabelecidos
na convenção, a noção de bem cultural foi estabelecida nos seguintes
termos:

a) monuments: architectural works, works of monumental sculpture and


painting, elements or structures of an archaeological nature, inscriptions, cave
dwellings and combinations of features, which are of outstanding universal value
from the point of view of history, art or science;

b) groups of buildings: groups of separate or connected buildings which,


because of their architecture, their homogeneity or their place in the landscape, are
of outstanding universal value from the point of view of history, art or science;

c) sites: works of man or the combined works of nature and man, and areas
including archaeological sites which are of outstanding universal value from the
historical, aesthetic, ethnological or anthropological point of view.

As diretrizes propostas pelos idealizadores do texto demonstram


claramente o posicionamento intelectual ao redor do sentido da preservação
por parte de seus autores: o documento jurídico internacional proposto

285
aplica-se apenas aos bens imóveis e foi concebido, sustentado e mantido a
partir de perspectivas e pontos de vista resultantes do modo de ver e lidar
com a cultura por parte das sociedades industrializadas e desenvolvidas,
refletindo, desse modo, a preocupação com um certo tipo de patrimônio que
é valorizado por aqueles países (CUÉLLAR, 1997, p. 234). Tanto é assim,
que a noção de valor se dá pela compreensão de que os vestígios das
culturas desaparecidas ou do passado é que devem ser preservados, não
existindo nenhum enunciado em relação às sociedades tradicionais ainda
vivas.

Em um texto de Alois Riegl, The Modern Cult of Monuments: its


essence and its development, escrito no início do século (1903) e traduzido
por Karin Bruckner para um compêndio intitulado Historical and Philosophical
Issues in the Conservation of Cultural Heritage (1996), o autor faz uma
diferenciação entre o valor de época (Age Value), o valor histórico (Historical
Value) e o valor comemorativo (Deliberate Commemorative Value): in oldest
and most original sense a monument is a work of man erected for the specific
purpose of keeping particular human deed or destines (or a complex accumulation
thereof) alive and present in the consciousness of future generation (...) When we
speak of the modern cult of monuments or historic preservation, we rarely have
“deliberate” monuments in mind. Rather, we think of “artistic and historical
monuments”, the official term to date, at least in Austria (...) By common definition a
work of art is any tangible, visible, or audible work of man of artistic value; a historical
monument with any of the same properties will posses a historical value (1994, p.
69). Riegl chamará de monumentos “deliberados”, os vestígios não
intencionais e considerará, em sua explanação, apenas as referências
ocidentais da percepção de cultura: o valor artístico, apoiado em noções
hierárquicas propostas desde a Renascença e o valor histórico, vinculado aos
grandes feitos ou aos testemunhos “operacionais” da história, remontam à
construção do discurso oficial relacionado ao patrimônio cultural,
compreendido, então, como propriedade cultural.

No próprio discurso de criação da UNESCO, o sentido da preservação


é demarcado sobre o parâmetro do patrimônio material: The creation of the

286
United Nations Educational, Scientific, and Cultural Organization (UNESCO) in the
middle of the 20th century was certainly a landmark in the process that has led to an
increasing awareness of the world’s cultural heritage. Its constitution, adopted in
London in 1945, stated that UNESCO was entrusted with the task of “ensuring the
preservation and protection of the world heritage of works of arts and monuments of
historic or scientific interest (BOUCHENAKI, 1999, s.p.). Abordado no decorrer
deste quinto capítulo, o patrimônio cultural material – bem patrimonial
tangível, propriedade cultural – tem sido o foco dos debates, encontros e
discussões realizadas em torno das questões preservacionistas que
envolvem os bens culturais e a sociedade. Mais próximos da noção de
herança material, todos os documentos adotados pelas instituições ICOM,
ICCROM, ICOMOS ou UNESCO apontam para as questões voltadas ao
patrimônio tangível, desconsiderando, até então, os patrimônios de existência
imaterial. Desde a formulação do World Heritage Committe, o conceito de
monumentalidade sobredeterminou a inserção dos bens culturais na Lista,
em detrimento de outras correspondências sócio-culturais. A reciprocidade
entre os processos construtivos – evidenciados nos sítios, monumentos e
conjuntos arquitetônicos – e os modos de vida – crenças, sistemas de
conhecimento e representação das diferentes culturas do presente e do
passado – não foi considerada na estruturação da proposta: desse modo, a
noção de patrimônio acabou por ficar isolada, dissociando-se da noção de
cultura.

Tornou-se indispensável perceber que a complexidade entre os bens


tangíveis e intangíveis, ao determinar a malha de configurações sociais,
econômicas e representacionais de uma comunidade, possuem uma relação
extremamente intrincada. Em 1989, a XXV Conferência Geral da UNESCO
adotou a "Recomendación sobre salvaguardia de la cultura tradicional y
popular", definida como: El conjunto de creaciones que emanan de una
comunidad cultural fundadas en la tradición, expresadas por un grupo o por
individuos y que reconocidamente responden a las expectativas de la comunidad en
cuanto expresión de su identidad cultural y social; las normas y los valores se
transmiten oralmente, por imitación o de otras maneras. Sus formas comprenden,
entre otras, la lengua, la literatura, la música, la danza, los juegos, la mitología, los

287
ritos, las costumbres, la artesanía, la arquitectura y otras artes. Esta
Recomendação solicita aos Estados-membros que adotem as disposições e
medidas legislativas necessárias, de acordo com as práticas constitucionais
de cada Estado, para tornar efetiva a proteção do patrimônio imaterial;
também estabelece pautas de avaliação em relação ao patrimônio intangível
dos Estados-membros e constitui um marco para a elaboração de um
instrumento internacional.

Com o intuito de elaborar uma agenda de trabalhos relacionados ao


desenvolvimento da noção e de propostas sobre o Patrimônio Intangível, foi
criada a Divisão do Patrimônio Intangível, no Comitê de Cultura da UNESCO,
atualmente sob a direção da Dra. Noriko Aikawa. Entre 1995 e 1999 foram
relizadas oito conferências regionais sobre o tema, sendo que em 1997
ocorreu no México um Seminário Regional para América latina e o Caribe.
Em 1999, a UNESCO reuniu em Washington, em cooperação com o Center
of Folklife and Cultural Heritage (Smithsonian Institution), a Conferência
Internacional, cuja porposta resultou no documento "Uma avaliação global da
Recomendação de 1989 sobre salvaguarda da cultura tradicional e popular:
fortalecimento do poder local e cooperação internacional". A Conferência de
Washington analisou o contexto atual e a projeção do patrimônio intangível,
os principais problemas concernentes à proteção desse patrimônio e as
diretrizes possíveis para encaminhamentos efetivos.

De acordo com a mensagem da Dra. Noriko Aikawa, encaminhada às


Segundas Jornadas del MERCOSUR sobre Patrimonio Intangible (Ayolas,
Paraguay, 16-19 de abril 2000), as recomendações resultantes dos encontros
anteriores foram as seguintes:

a. Desarrollar instrumentos legales y administrativos para proteger las


comunidades tradicionales (que crean y nutren la cultura tradicional y popular) de la
pobreza, la explotación y la marginalización.
b. Asegurar la participación de los grupos tradicionales en los procesos de
toma de decisiones sobre temas y políticas que los afectan.
c. Desarrollar, en cooperación con las comunidades, tareas de educación y
formación, incluyendo formación legal, en materia de preservación y conservación
de la cultura tradicional y popular.

288
d. Desarrollar programas dirigidos a la naturaleza transnacional de algunos
grupos culturales tradicionales.
e. Otorgar una importancia especial a programas que reconozcan y apoyen el
papel de la mujer en todos los aspectos de la vida comunitaria.
f. Apoyar programas de revitalización cultural, especialmente para grupos
desplazados por causa de guerras, hambre o catástrofes naturales así como en
grupos en vías de extinción.
g. Adoptar medidas de asistencia a grupos tradicionales, incluyendo
asistencia legal, para mejorar su estatuto social y económico, requisito indispensable
para continuar sus prácticas culturales.
Em 1994, um grupo de especialistas apresentou um relatório na
décima oitava sessão do Comitê de Patrimônio Mundial, realizada na
Tailândia, cujo tema era enunciado pelo título A Estratégia Global – estudos
temáticos para avaliar a representatividade da Lista do Patrimônio Mundial.
De acordo com o documento, o objetivo desse estudo seria fazer uma
prospecção sobre o grau e a projeção da World Heritage List em relação aos
países e ao multiculturalismo: many high-quality attempts had been made over
the past decade to consider the best ways of ensuring the representative nature, and
hence the credibility, of the World Heritage List in the future, but they had failed to
achieve a consensus among the scientific community, despite the fact that all the
component bodies and partners of the convention were conscious of its weakness
and imbalances. Since the adoption of the Convention by the General Conference of
UNESCO in 1972, moreover, the concept of cultural heritage had also developed
considerably in meaning, depth, and extent. The object of this meeting was therefore
to carry out an examination in depth of all the studies made of this question over the
last ten years and to arrive at concepts and a common methodological procedure as
a result of a detailed analysis of the different approaches adopted.

De acordo com os analistas, apenas em 1991 é que os coordenadores


do World Heritage Bureau recomendaram aos grupos temáticos uma
aproximação das “atividades humanas-culturais-temporais” (time-culture-
human achievement), em relação aos bens culturais. Os especialistas
concordam que a consciência da responsabilidade pela preservação de bens
culturais firmou-se, como visto nos tópicos anteriores, em torno do conceito
relacionado aos bens tangíveis – o patrimônio construído. Mesmo quando
Museus são criados como base e fomento à educação, na maioria das vezes,

289
são direcionados às coleções e acervos. Como conseqüência, o conceito
preservacionista tem sido construído em torno desse tipo de patrimônio,
priorizando as ações concernentes a ele e direcionando os esforços humanos
e financeiros das instituições em seu benefício. Nenhum documento visto, até
o momento, abordou especificamente esta problemática, apesar de o grupo
responsável pela discussão da Estratégia Global apontar para esse caminho:

In order to redress the imbalances in the current List, some areas have been
identified as having high potential to complete gaps in representation. Areas such as
these should be considered in their broad anthropological context through time:
HUMAN COEXISTENCE WITH THE LAND
– Movement of peoples (nomadism, migration)
– Settlement
– Modes of subsistence
– Technological evolution
HUMAN BEINGS IN SOCIETY
– Human interaction
– Cultural coexistence
– Spirituality and creative expression

Com o objetivo de embasar a World Heritage List de maneira mais


representativa, balanceada e, portanto, adequada de modo a ter credibilidade
e legitimidade, não basta somente ampliar os tipos, regiões ou períodos não
contemplados ou sub-representados na listagem, mas também considerar os
novos conceitos sobre a idéia de Patrimônio Cultural que vem sendo
desenvolvida nos últimos vinte anos. Como resultado desta recomendação,
foi criado o Comitê do Patrimônio Intangível, que realizará no em Nairobi, em
2002, sob os auspícios da UNESCO e do ICOMOS, o primeiro encontro
internacional voltado exclusivamente para o tema.

“Criar novos conceitos sobre a idéia de patrimônio cultural”. Não há


claramente um divisor que demarca o patrimônio intangível do tangível; ao
contrário, a correspondência e a integração são as marcas dessa relação.
Podemos tratar o patrimônio intangível de forma a torná-lo tangível: fotografá-
lo, filmá-lo, gravá-lo ou congelá-lo; ou podemos criar mecanismos para que
ele permaneça vivo, não apenas na memória, mas nas experiências
cotidianas e nas manifestações reais de cada povo. Leach afirma: mais do
que o aspecto econômico, funcional ou histórico das investigações acerca da

290
cultura, seja o aspecto simbólico aquele que oferece uma perspectiva mais ampla de
desenvolvimento futuro e aberturas mais prometedoras (1985, p. 133).

De acordo com a UNESCO, los métodos de conservación aplicables al


patrimonio físico no pueden aplicarse al patrimonio intangible. El sistema de
protección conservatoria que preconiza la Convención del património mundial no es
aplicable al patrimonio intangible. Lo que se puede hacer para la preservación de
esas formas particulares del patrimonio cultural de la humanidad es, por una parte,
registrar su aspecto actual en soportes físicos (en forma sonora, escrita o
iconográfica) y, por otra parte, fomentar su supervivencia a través de sus detentores
y de su transmisión a las generaciones futuras. La proclamación de las obras
maestras del patrimonio oral e intangible se propone precisamente alentar la
perennidad de las manifestaciones culturales más notables sin prejuzgar acerca de
su inevitable evolución. Cabe recordar que la UNESCO ya ha lanzado un programa
de apoyo y de valorización de los detentores de conocimientos en el ámbito de la
cultura tradicional. El nombre de este programa es: Tesoros humanos vivos.
Asimismo, la UNESCO ha creado una colección de Música tradicional del mundo
que valoriza las obras musicales tradicionales de los diferentes grupos culturales .

As manifestações humanas possuem uma natureza muito mais frágil


do que as realizações que se estruturam de maneira física; principalmente no
mundo atual, onde a mídia tende a disseminar padrões de conduta
homogeneizados, pautados pelo oferecimento de produtos industrializados
fabricados em série e pela pressão de um consumo que destrói as bases
artesanais e os modos de vida “diferentes” do senso
ocidentalizado/europeizado. Elementos intangíveis, como penteados, pinturas
corporais, vestimentas, culinária, tradições locais, dialetos e até mesmo
línguas correspondem às práticas vivas de natureza espiritual, ritual e
comportamental. Quando, ao rever as diretrizes da World Heritage List, os
especialistas apontaram (1994) para uma problemática séria: as culturas
mortas eram priorizadas em relação às culturas vivas, como se o passado
adquirisse uma importância em si. This is, in fact, the first time in our history that
the international community is considering expressions of the creativity of mankind, in
both their tangible and intangible forms, as an indivisible whole. As the tangible
expression of each national genius is now seen to be part of the world’s heritage, all

291
such expressions must therefore be respected, preserved, studied, and passed on to
future generations (BOUCHENAKI, 1999, s.p.).

Durante a ditadura paraguaia, os habitantes do país foram proibidos de


falar o guarani, base primeira da língua local. A justificativa não poderia ser
mais preconceituosa: manter esse dialeto indígena, seria atrasar a
modernidade e o processo civilizatório da região. Mesmo na clandestinidade,
noventa por cento da população paraguaia mantêm a língua guarani viva e,
atualmente, pesquisadores e sociedade civil lutam para inscrevê-la como
patrimônio intangível da humanidade. Em 2000, como resultado de um
encontro em Ayolas, foi elaborada uma petição de assistência à UNESCO
com o objetivo de candidatar o idioma guarani como Patrimônio Intangível da
Humanidade. O documento esclarece que: la lengua guaraní es actualmente la
única lengua antigua de la región hablada en el MERCOSUR que tiene
reconocimiento oficial.

O reconhecimento de bens culturais de natureza intangível ocorre em


um momento fundamental, considerando que a riqueza da diversidade
humana parece, cada vez mais, estar prestes a desaparecer. As pressões
mundiais – da mídia, economia e do processo civilizatório ainda vivo – têm
gerado processos de assimilação comportamental e lingüística que
comprometem a manutenção dessa diversidade. De acordo com relatórios da
UNESCO, noventa por cento dos idiomas atualmente falados correm o risco
de se extinguirem no próximo século (Endangered languages of the world –
1995). Atualmente, o número de dialetos varia entre cinco mil e seis mil
idiomas; só na Índia são 380 dialetos falados; na China, 142; na Nigéria 413,
conforme declaração da Dra. Noriko Aikawa. No Brasil, não existem dados
oficiais em relação aos idiomas falados pelas comunidades indígenas e a
diversidade de expressões idiomáticas regionais é vasta. Da expansão
colonial à construção dos impérios mercantilistas; do expansionismo midiático
ao processo de globalização, a extinção de vários idiomas por todo o mundo
vem se acelerando cada vez mais, como resultante de um processo
“civilizatório” homogeneizador, que destrói as bases identitárias de cada
povo. Além disso, alguns outros fatores são presentes, tais como a destruição dos

292
habitats e das bases ecológicas dos locutores de línguas locais, a assimilação
forçada, a educação deliberadamente assimilatória e a preferência generalizada pela
língua falada pela população monoglota majoritária (CUÉLLAR, 1997, p. 239). Em
1993, a UNESCO iniciou um projeto denominado O Livro das Línguas em
Perigo. Como resultado desse trabalho, em 1996 publicou-se o Atlas mundial
de idiomas em perigo de desaparecimento. O projeto inclui uma atualização
permanente dos dados e uma receptividade de projetos regionais realizados
com o objetivo de prover a obra de sustentação documental.

Minha pátria é minha língua, disse Caetano Veloso. E o poeta siciliano


Ignazio Buttitta (1899) nos fala:

A un populo mittitilu a catina Ponha um povo em cadeias,


Spugghiatillu, attupaci a vucca despoje-o, amordace-o,
é ancora ligirue. e ele continuará livre.
Livatici u travagghiu, Retire seu trabalho,
u passaportu, seu passaporte
A tavula unni mancia, A mesa sobre a qual come,
u lettu unni dormi, o leito onde dorme,
é ancora riccu. e ele continuará rico.
Un populu, Um povo,
diventa poviru e servu, se torna pobre e escravizado
quannnu ci arrobanu a lingua quando se lhe rouba a língua
addudata de patri: deixada por seus ancestrais:
é perso pi sempri. ele se perde para sempre.

Como vimos, o conceito de Patrimônio envolve questões relacionadas


à natureza das coisas – física e mental – e seu vínculo – político, econômico,
religioso, cultural – com a sociedade, mas cuja raiz léxica determina a
consolidação de uma percepção específica em relação ao seu sentido último,
seu significado mental, a construção coletiva de pensar sobre algo a partir da
consciência forjada na experiência mútua. Nas categorias delimitadas nos
tópicos anteriores, os patrimônios tangíveis ocupam uma projeção e um
discurso mais sedimentado no decorrer das formulações das cartas,
recomendações e tratados firmados, incorporados pela UNESCO e pelas
instituições internacionais na segunda metade do séc. XX. Na última década
deste século, iniciou-se um debate que pretende ampliar esta concepção:
para o discurso preservacionista, várias são as frentes de batalha e,

293
conforme uma chamada do The Getty Conservation Institute, travamos uma
corrida contra o relógio.

294
6. UNESCO: a estruturação das políticas culturais
Quando a cultura é entendida como base do
desenvolvimento, a própria noção de política cultural deve ser
consideravelmente ampliada. Toda política de
desenvolvimento deve ser profundamente sensível à cultura,
e inspirada por ela.
CUÉLLAR, Javier Pérez. Nossa diversidade criadora. 1997, p.305.

Para compreender a estruturação das políticas culturais nos discursos


proferidos pela UNESCO, é imprescindível compreender o significado, o
sentido e a noção de cultura na sociedade contemporânea. As palavras
denotam a consciência que temos das coisas e nada mais complexo do que
traduzir o sentido único atribuído por este ou aquele idioma a uma
manifestação social comum 39.

No capítulo anterior, utilizamos as noções de Boas e as citações de


Bosi na definição da palavra cultura. Nesse momento, o confronto entre
cultura e civilização proposto na obra de Norbert Elias parece mais
pertinente ao tópico. De acordo com este autor, esses conceitos produzem
conotações diferentes e podem ser comparados se analisarmos o significado
que adquirem em algumas sociedades ocidentais: para franceses e ingleses, o
conceito de civilização resume em apenas uma palavra seu orgulho pela importância
de suas nações para o progresso do Ocidente e da humanidade. Já no emprego que
lhe é dado pelos alemães, “Zivilization”, significa algo de fato útil, mas, apesar disso,
apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a aparência externa
de seres humanos, a superfície da existência humana. A palavra pela qual os
alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o orgulho
em suas próprias realizações e no próprio ser, é “Kultur” (ELIAS, 1939, p. 24).

39
Se a palavra pode figurar num discurso onde ela quer dizer alguma coisa, não será por
virtude de uma discursividade imediata que ela deteria propriamente e por direito de
nascimento, mas porque na sua forma, nas sonoridades que a compõem, nas mudanças que
sofre segundo a função gramatical que ocupa, nas modificações enfim a que se acha sujeita
através do tempo, obedece a um certo número de leis estritas que regem de maneira
semelhante todos os outros elementos da mesma língua; de sorte que a palavra só está
vinculada a uma representação, na medida em que primeiramente faz parte da organização
gramatical pela qual a língua define e assegura sua coerência própria (FOUCAULT, 1995, p.
296).

295
O conceito de civilização denota o processo colonizador que se iniciou
no século XVI e que promoveu um olhar sobre o outro carregado de
intolerância, preconceito e afastamento, enquanto o conceito de cultura
procura refletir a consciência de si mesmo, a busca da identidade, dos
valores últimos de uma determinada sociedade. A gênese da estruturação
destes conceitos na sociedade ocidental se perde e nem sempre pode ser
rastreada, mas seus significados cristalizam as experiências passadas e
podem esclarecer determinadas posturas nos discursos contemporâneos:
conceitos matemáticos podem ser separados do grupo que os usa. Triângulos
admitem explicações sem referência a situações históricas. Mas o mesmo não
acontece com conceitos como civilização e “Kultur”. Talvez aconteça que
determinados indivíduos os tenham formado com base em material lingüístico já
disponível de seu próprio grupo, ou pelo menos lhes tenham atribuído um novo
significado. Mas eles lançaram raízes. Estabeleceram-se. Outros os captaram em
seu novo significado e forma, desenvolvendo-os e polindo-os na fala e na escrita.
Foram usados repetidamente até se tornarem instrumentos eficientes para
expressar o que pessoas experimentaram em comum e querem comunicar.
Tornaram-se palavras de moda, conceitos de emprego comum no linguajar diário de
uma dada sociedade (ELIAS, 1939, p. 26).

Edmund Leach (1985) relaciona ambos conceitos como intrincados,


considerando que a estruturação do pensamento que separa Kultur de
Civilização foi somente remodelada no século XX. Em Inglaterra, pouco depois
de 1960, um certo número de autores usava ‘culture’ como sinônimo de ‘civilisation’,
e o clássico da antropologia “Primitive Culture” (1871) de Taylor abre com a
definição freqüentemente citada: a cultura ou civilização, entendida no seu sentido
etnográfico amplo, é o conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a
arte, a moral, o direito, o costume e toda a demais capacidade ou hábito adquiridos
pelo homem enquanto membro de uma sociedade (LEACH, 198, p. 102).

De acordo com Leach, a ambigüidade subsiste ainda hoje e, tomando


como exemplo aquele dado pelo próprio autor, quando um letrado inglês dos
nossos dias usa a palavra culture, é provável que ao seu pensamento
corresponda um conceito elitista, mais próximo da acepção que lhe deu
Matthew Arnold (1869), quando equiparou cultura e civilização como um

296
atributo do homem bem-educado, do que da acepção antropológica indicada
por Taylor.

Os discursos proferidos pela UNESCO aproximam-se mais do conceito


antropológico de cultura, uma vez que Kultur relaciona-se diretamente às
ações intelectuais, artísticas, religiosas próprias de um modo de ser
específico, característico e sedimentado sobre valores próprios de uma
determinada sociedade. Conforme Elias, o sentido atribuído ao conceito
Kultur encontra sua expressão clara em seu derivado, o adjetivo kulturell, que
descreve o caráter e o valor de determinados produtos humanos, ou o
substantivo Kulturvölker, refinamento, e não o valor intrínseco das pessoas,
enquanto o vocábulo kultiviert (cultivado) aproxima-se mais do conceito
ocidental de civilização e pode ser associado à matriz latina colo, cultivar a
terra, ampliado na palavra colônia enquanto espaço que se está ocupando e,
no sentido colonizador, o espaço que está sendo subjugado pelo civilizado.

Essa noção de cultura, vinculada ao pensamento kantiano, tende a


considerar os sistemas simbólicos – como a arte, o mito e a linguagem – em
sua qualidade de instrumento de comunicação e conhecimento pela forma
com a qual se estrutura a identidade consensual de um grupo. Reproduzida
em Cassirer, Durkheim e Lévi-Strauss, parece privilegiar a cultura como
estrutura estruturada em lugar de enxergá-la como estrutura estruturante, relegando,
portanto, as funções econômicas e políticas dos sistemas simbólicos e enfatizando a
análise interna dos bens e mensagens de natureza simbólica. Por esse motivo, não
consegue ser uma teoria da integração lógica e social de representações coletivas
cujo paradigma é a obra de Durkheim (BOURDIEU, 1974, p. 8).

Uma outra vertente é a perspectiva proposta por Weber, que se orienta


para a percepção da cultura como instrumento de poder e legitimação da
ordem vigente a partir da sedimentação do sentido ideológico das
manifestações culturais. A tradição materialista salienta o caráter alegórico dos
sistemas simbólicos numa tentativa de apreender tanto seu caráter organizacional
próprio – o núcleo do projeto weberiano – como as determinações que sofre por
parte das condições de existência econômica e política e a contribuição singular que

297
tais sistemas trazem para a reprodução e a transformação da estrutura social.
(BOURDIEU, 1974, p. 9).

Compreender as diretrizes das políticas culturais implica em verificar


de que modo e em qual medida o conceito de cultura é visto de um ponto de
vista dos parâmetros dos conceitos de civilização ou de identidade cultural;
da percepção da cultura como estrutura estruturada em si própria ou como
estrutura determinada pelas relações econômicas. Se o conceito de
civilização é carregado de estereótipos niveladores que reduzem os
indivíduos a um determinado status social e a cultura denota experiências
sociais comuns partilhadas nas várias esferas de relação, nem sempre os
discursos são elaborados conscientes das palavras em seu sentido último.
No entanto, mesmo sem esta consciência explicita, é possível verificar que
muito do que é considerado um patrimônio digno de se preservar encontra-se
vinculado às noções de civilização, do ponto de vista da cultura urbana da
civilidade, e dos critérios ideológicos eurocêntricos de monumento e
documento: um exemplo que ocorre no Brasil é do olhar que a sociedade
lança sobre as cidades e os centros históricos da época colonial –
remanescentes prolongamentos da arte e da arquitetura européia –, em
detrimento de Quilombos ou aldeias indígenas – espaços vivos de resistência
e manifestação cultural autóctone. O patrimônio arqueológico stricto sensu
poderia deixar de ser afectado por esta falta de interesse na preservação da cultura
material da elite, na medida em que a Arqueologia produz evidência de indígenas e
dos humildes em geral (cf. Trigger 1998: 16). Entretanto, há muitos factores que
inibem um engajamento activo da gente comum na protecção patrimonial. Em
primeiro lugar, há falta de informação e de educação formal sobre o tema.
Indígenas, africanos e pobres são raramente mencionados nas lições de História e,
na maioria das vezes, as poucas referências são negativas, ao serem representados
como preguiçosos, uma massa de servos atrasados incapazes de alcançar a
civilização. Os índios eram considerados ferozes inimigos, dominados por séculos e
isso pleno iure. Em famoso debate, no início do século XX, Von Ihering, então diretor
do Museu Paulista, propôs o extermínio dos índios Kaingangs que, segundo ele,
estavam a atravancar o progresso do país (Schwarcz 1989: 59) e, mesmo que tenha
sido desafiado por outros intelectuais, principalmente do Museu Nacional do Rio de

298
Janeiro, sua atitude era e ainda é muito sintomática da baixa estima dos indígenas,
mesmo na academia. Basta lembrar que o material indígena proveniente do oeste
do Estado de São Paulo, coletado há oitenta anos, à época de Von Ihering, apenas
agora está sendo exposto, graças a um projecto inovador da Universidade de São
Paulo (Cruz 1997): antes tarde do que nunca! (FUNARI, 2001, p. 27).

O problema das sociedades indígenas, a valorização de sua cultura e


de suas estruturas construtivas não é um problema que está condicionado
apenas ao Brasil: na América Latina, mesmo nos países em que a população
indígena é maioria, são as tradições espanholas, as igrejas barrocas e os
modelos europeus que adquirem valor de Patrimônio Cultural. Mesmo
quando os vestígios remanescentes do patrimônio pré-colombiano são
valorizados, ocorre devido ao olhar do outro – europeu ou americano – que
“descobrem” esses lugares como objeto de pesquisa científica ou como
atração turística. Em 1971, em um encontro do ICOM, um grupo de
especialistas discutiu a relação dos Museus nas sociedades latino-
americanas; após uma explanação arguta de Jorge Henrique Hardoy, doze
especialistas de grandes museus dessa região perceberam o quanto seus
trabalhos se distanciavam da realidade de seus povos: no México, o público era
constituído mais por turistas gringos que por índios, cuja herança estava
apresentada nas salas (VARINE, 1995, p. 18).

A cultura negra, em uma mesma via, permanece silenciada ou


depreciada. A desagregação e a destruição das evidências do Quilombo de
Palmares reproduz o preconceito e o achatamento da sociedade brasileira:
um bom exemplo é o destino de um sítio arqueológico particularmente importante no
Brasil: o quilombo do século XVII, conhecido como Palmares. Desde a década de
1970, começou-se a suspeitar que o famoso quilombo, que resistiu por quase um
século ao sistema escravista, se localizava no interior do Estado de Alagoas, na
Serra da Barriga. Ativistas negros encontraram restos de superfície na colina e
conseguiram, depois de uma campanha sem precedentes, fazer com que as
autoridades declarassem a área património nacional, em 1985. Contudo, devido ao
pouco caso do “establishment” arqueológico, controlado por forças conservadoras
ligadas ao regime militar, o sítio ficou nas mãos das autoridades locais. O resultado
foi o uso de tractores para nivelar uma parte importante do sítio, o que permitiu que

299
as autoridades promovessem festas e, desta forma, conseguissem o apoio eleitoral
(FUNARI, 2001, p. 26).

Nesse mesmo caminho, os centros urbanos parecem merecer um


tratamento majoritário em relação aos espaços naturais ou rurais, sejam eles
vestígios arqueológicos de concentrações sociais do passado ou centros
históricos situados em cidades ainda em atividade: a cultura urbana parece
atrair pela possibilidade de análise e aproximação entre as várias formas de
urbanidade como também pela presença do conceito de civilização,
compreendido como o conjunto de realizações, o nível tecnológico, científico
e dos padrões de organização de uma determinada sociedade.

A base da política cultural compreende noções de valores construídas


pelo saber acadêmico, científico ou intelectual em relação ao objeto de
preservação – material ou imaterial –; aos caminhos da educação e ao
desenvolvimento pleno de um indivíduo ou de uma sociedade. A noção de
política cultural percorre o sentido dado ao conceito de cultura e à posição
que ela ocupa na construção dos discursos desenvolvidos ao seu redor:
quando a cultura começa a ser entendida como base do desenvolvimento, a
própria noção de política cultural é ampliada, proporcionando uma
formulação mais abrangente, ainda que específica, dos objetivos que se
pretende alcançar. Nesse sentido, é importante delimitar as estruturas que
explicaram durantes séculos o sentido da civilização e, desse modo,
subjugaram e exploraram, em nome da colonização e da expansão de
valores culturais específicos apenas a um determinado povo, continentes
inteiros sem considerar as manifestações culturais, as estruturas étnicas, a
história e os conflitos internos.

O continente africano pode ser tomado como exemplo da violência e


da incoerência do processo civilizador ocidental: todas a diversidade étnica
foi condensada em uma única classificação, a do homem negro; o contorno
das colônias, das possessões européias, não se preocupou com a história ou
a distribuição social de cada povo, reunindo em campos comuns sociedades
conflitantes e dividindo, através das fronteiras, grupos coesos; as

300
manifestações culturais artísticas, artesanais, religiosas e as tradições mais
caras aos povos africanos foram massacradas, depreciadas e proibidas; a
barbárie da escravidão permanece viva no apharteid e as atuais guerras civis,
a fome, a miséria e a estagnação de vários países africanos são
conseqüência direta do processo colonizador. A perda da auto-estima, dos
valores e do olhar sobre si próprio resulta na perda da crença na
possibilidade de desenvolvimento e de mudanças do status quo. Somente na
medida em que tem como função lógica e gnosiológica a ordenação do mundo e a
fixação de um consenso a seu respeito, é que a cultura dominante preenche sua
função ideológica –isto é, política –, de legitimar uma ordem arbitrária; em termos
mais precisos, é porque enquanto uma estrutura estruturada ela reproduz sob forma
transfigurada e, portanto, irreconhecível, a estrutura das relações sócio-econômicas
prevalecentes que, enquanto uma estrutura estruturante, a cultura produz uma
representação do mundo social imediatamente ajustada à estrutura das relações
sócio-econômicas que, doravante, passam a ser percebidas como naturais e,
destarte, passam a contribuir para a conservação simbólica das forças vigentes
(BOURDIEU, 1974, p. 12).

Contudo, o desenvolvimento cultural pode ser compreendido como a


estrutura que forja as bases para um desenvolvimento político e econômico
(estrutura estruturante): a partir do momento em que os valores intrínsecos
de uma sociedade são respeitados e valorizados, cresce a consciência
individual e grupal, ampliando a noção crítica da estrutura social, a qual
determina as escolhas políticas e a busca de caminhos alternativos aos
problemas existentes. Conforme vimos, definir e aplicar esse tipo de política
significa encontrar fatores de coesão que unam sociedades multi-étnicas por meio
de um melhor uso das realidades e oportunidades de pluralismo. Isso implica a
promoção da criatividade na política e no governo, na tecnologia, na indústria e no
comércio, na educação e no desenvolvimento social e comunitário, da mesma forma
que nas artes. Também requer que a mídia seja usada para abrir oportunidades de
comunicação para todos, reduzindo o hiato entre “os que têm” e os “que não têm”
informação. Significa a adoção de uma perspectiva de respeito à igualdade entre os
sexos, que se preocupe com o interesse das mulheres e com suas necessidades, e
busque uma redistribuição mais justa de recursos e de poder entre homens e

301
mulheres. Significa dar às crianças e aos jovens um lugar melhor como portadores
de uma nova cultura mundial em formação. Implica uma ampla diversificação da
noção de Patrimônio Cultural em um contexto de transformações sociais. Significa,
com respeito ao meio ambiente natural, edificar uma maior consciência da dimensão
profundamente cultural da gestão ambiental, criando instituições que tornem efetiva
essa conscientização (CUÉLLAR, 1997, p. 306).

Utopia e realidade: como desenvolver critérios de respeito multiétnicos


em áreas de confrontos constantes? Jerusalém é um exemplo natural
quando se pensa na dimensão do patrimônio físico em relação aos valores
intrínsecos às culturas judaicas, mulçumanas e cristãs; os próprios líderes de
cada segmento utilizam-se dos pilares arquitetônicos como bandeiras para
instigar os conflitos e reafirmar sua supremacia sobre os territórios, locais que
confundem e amalgamam valores sagrados, soberania política e poder
econômico. Como desenvolver respeito ao meio ambiente, quando os
próprios governantes de países desenvolvidos como Japão e Estados Unidos
se recusam a respeitar acordos firmados em relação às políticas ambientais
em função de interesses econômicos? O não cumprimento dos acordos que
limitam a caça à baleia e a quebra do pacto de Khioto sobre o controle da
emissão de poluentes que destróem a camada de ozônio são exemplos que
demonstram quanto o discurso se distancia da prática; quanto as intenções
se distanciam das ações; quanto a consciência se distancia do razão
cotidiana que visa o lucro imediato.

Por sua vez, a noção paternalista que vê nos governos, independente


de sua escolha política, como responsáveis pelo processo de
desenvolvimento social, econômico e cultural de um povo reproduz a visão
medieval do poder divino que revestia de autoridade a figura do governante e
retirava da sociedade o poder de decisão. Para Bourdieu, a organização do
mundo e o estabelecimento de discursos que indiquem um consenso nessa
organização permitem à cultura dominante legitimar suas práticas; desse
modo, o sistema classificatório aparece como o produto de um pensamento
coletivo capaz de conferir às práticas um direito inquestionável e assim
orientar suas ações. No caso do consenso alcançado nos discursos da

302
UNESCO em relação às políticas culturais, várias nações estão
representadas nas discussões, mas apenas uma camada social encontra-se
presente. Cuéllar (Peru), Mahbud ul Haq (Paquistão), Angeline Kamba
(Zimbábue), Celso Furtado (Brasil), Príncipe Hassan Bin Talal (Jordânia), que
assinam o Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento,
fazem parte de um grupo seleto de intelectuais que tiveram acesso à
educação, alimentação e bens de consumo. Até que ponto, esses
representantes dão voz às demandas da sociedade como um todo?

A sociedade é definida como um sistema de relações onde cada


elemento traz contribuições específicas ao todo, compreendendo este todo
como uma agregação social, cultural, econômica, lingüística e territorial
determinada. No entanto, nem sempre esta fórmula condiz com a realidade
específica e os conflitos étnicos marcam o estabelecimento de uma geografia
descontínua e desconexa nos contornos das nações, bem como as
desigualdades sociais impostas por estruturas de dominação ou por
intolerâncias religiosas que destróem bens patrimoniais da humanidade. Em
sociedades multi-étnicas, as questões culturais estão circunscritas na esfera
do poder: a hegemonia cultural estabelece uma política excludente dos
grupos subordinados e marginalizados. A dominação ou hegemonia cultural
baseia-se, freqüentemente, na exclusão de grupos subordinados. A distinção entre
‘nós’ e ‘eles’ e a carga de significações vinculadas a tal distinção são socialmente
determinadas, e fundamentam-se em argumentos pseudocientíficos invocados por
um grupo, a fim de justificar a seus próprios olhos o exercício do domínio sobre o
outro. Distinções baseadas na raça, na etnia ou na nacionalidade são artificiais,
desprovidas de qualquer fundamento biológico (CUÉLLAR, 1997, p. 34).

A distinção entre o “eu” e o “outro” estabelece uma rede simbólica de


atitudes que é multiplicada em todos os níveis – econômicos, culturais e
sociais –, se reproduzindo no inconsciente e no cotidiano e justificando o
exercício de dominação sobre o outro, que deixa de existir enquanto “voz”,
“pensamento” e “ação” nas manifestações políticas e culturais, supondo que
toda ação política é cultural e vice-versa. Essa distinção, ancorada nos
conceitos de superioridade e inferioridade; dominante e subordinado;

303
civilizado e primitivo; desenvolvido e subdesenvolvido, é forjada a partir de
justificativas artificiais baseadas nas diferenças de valor simbólico imputadas
às “raças”, “etnias” e “nacionalidades”, desprovidas de qualquer fundamento
científico, mas que alimentam o inconsciente coletivo como um anestésico
contra a indignação cultural diante de uma atrocidade. O discurso que
incentiva as estruturas de dominação racial é o mesmo discurso que fomenta
o ódio e a intolerância.

Essa perspectiva determina o valor simbólico dado às construções


artísticas, manifestações e expressões enquanto quadro de referência da
estrutura social vigente, resultante da construção ideológica baseada em um
estoque cultural plural muitas vezes formado por matrizes antagônicas que
não permitem pontos de interseção. A seleção de significações que define
objetivamente a cultura de um grupo é, no entanto, arbitrária, na medida que
não pode ser deduzida de qualquer objetivo universal (BOURDIEU, 1974, p.
22), porém, pode ser conduzida pelos discursos majoritários ou dominantes,
impondo a afirmação de condutas, conceitos e critérios favoráveis à sua
própria manutenção. Não é destituído de significado o fato de sítios
históricos, monumentos e obras que marcam a construção identidária de um
povo serem destruídos ou utilizados como bandeira em situações de conflito.
Nesse caso, o valor físico ou econômico do sentido de valor da obra não
importa tanto quanto seu valor emblemático.

Por outra via, a identidade cultural também é uma forma de


autovalorização de sociedades que conquistaram sua soberania, sendo,
portanto, uma preocupação relevante na formulação das políticas pós-
colonial; na mesma escala, a preservação de valores culturais de
comunidades isoladas torna-se a única forma de sobrevivência da existência
de determinados grupos étnicos autóctones: a Carta de Nova Zelândia (1992)
aponta para a revitalização das culturas Maori e Moriori. The indigenous
heritage of Maori and Moriori relates to family, local and tribal groups and
associations. It is inseparable from identity and well-being and has particular cultural
meanings. The Treaty of Waitangi is the historical basis for indigenous guardianship.
It recognizes the indigenous people as exercising responsibility for their treasures,

304
monuments and sacred places. This interest extends beyond current legal ownership
wherever such heritage exists (Carta de Nova Zelândia, ICOMOS, 1992).

A busca de auto-sustentabilidade através da manutenção ou


restauração de valores e práticas tradicionais também contribui para a
restituição da auto-estima e, de uma maneira ou de outra, pela afirmação de
práticas positivas relacionadas à proteção do meio ambiente. Atividades
econômicas artesanais ou de extração controlada tendem a preservar o meio
ambiente, opondo-se às práticas industriais ou de exploração depredatória.
Nos últimos anos, tem-se tentado aprender sobre o dinamismo e a criação do
conhecimento técnico autóctone. Em todas as regiões, busca-se compreender
melhor a forma como os fazendeiros, pastores e povos das florestas fazem
experiências e partilham suas descobertas com os outros, e como os curandeiros
tradicionais utilizam plantas e ervas para fins medicinais (CUÈLLAR, 1997, p. 282).

O grande impasse que o mundo atual impõe é a globalização dos


sistemas culturais através dos meios de comunicação. As sociedades
tradicionais que enfrentam a introdução da tecnologia moderna têm
dificuldade de encontrar mecanismos de ajuste e adaptação aos conceitos,
modos de ver e lidar com a realidade. A televisão transformou-se em uma
janela que é vista e vê o mundo a partir de recortes, parâmetros e critérios
comerciais; não temos noção da dimensão da revolução da internet, ao criar
uma rede global de divulgação não controlada; TV à cabo, computador,
cinema e televisão muitas vezes se orientam por um leque de opções
estreitas, de valores determinados. O acesso a esses valores pode promover
a erosão da autoridade ou autenticidade do conhecimento tradicional; se
esses valores são difundidos de forma aleatória e indiscriminada em aldeias,
povoados e sociedades indígenas, os padrões de conduta apresentados
podem destruir os sistemas simbólicos, os modos e as formas de
relacionamento e reconhecimento.

Contudo, o isolamento não é a melhor forma de proteger os sistemas


culturais; uma forma de adaptação é a utilização desses mecanismos pela
própria comunidade e a construção de imagens, produtos e sistemas partindo
da própria sociedade: não mais a visão do “outro” sobre “outro”, mas a visão

305
de “si próprio” sobre “si próprio”. Não há mais como preservar o mito do “bom
selvagem”; o isolamento torna-se cada vez mais difícil e sem a compreensão
dos limites e dos alcances da tecnologia, sociedades minoritárias correm o
risco de serem soterradas por um processo que foge ao controle. Entre 1988
e 1997, a UNESCO elaborou o Relatório da Comissão Mundial de Cultura e
Desenvolvimento; nesse mesmo período, dezenove documentos foram
formulados em relação à proteção e à construção da noção de Patrimônio
Cultural. Nas diretrizes propostas pelo Relatório, é definida uma agenda
internacional cujos objetivos são definidos como:

1) Fornecer um veículo permanente para a discussão e a análise dos


temas de cultura e desenvolvimento em nível internacional;

2) Iniciar um processo no qual os princípios e os procedimentos já


comuns no nível interno dos países sejam estendidos à escala internacional e
global;

3) Criar um foro no qual o consenso internacional sobre questões


ligadas à cultura e ao desenvolvimento possa ser alcançado.

O problema da pluralidade, que repercute na intolerância cultural em


sociedades multi-étnicas e na pressão exercida sobre as minorias, e a
questão dos desníveis econômicos são colocados como os impasses
principais ao desenvolvimento integral. Mais de um bilhão de pessoas estão à
margem do processo de mundialização cultural, aponta o relatório; não
apenas os países subdesenvolvidos apresentam uma base da pirâmide
social sedimentada na pobreza, países ricos demonstram internamente um
quadro de comunidades pobres, excluídas e carentes. Nos Estados Unidos
os homeless, sem-teto, vivem em condições de carência comparadas aos
mendigos das ruas de São Paulo, cidade do México ou Nairóbi.

O discurso globalizante das políticas culturais propostas pela UNESCO


pode não ser o discurso plural que pretende ser, mas é o discurso possível.
Desde sua formulação, tem buscado construir um modelo onde a cultura e a
noção de Patrimônio Cultural são vistas como base da própria noção de
desenvolvimento: a busca de fatores de coesão em sociedades multiéticas e

306
o incentivo à importância da diversidade estão reproduzidos nos documentos
relacionados ao turismo e à educação; o estabelecimento de regras de
conduta mínimas em momentos de conflitos armados em relação ao
Patrimônio Cultural procura o comprometimento dos governos em relação
aos documentos propostos; as ações relacionadas ao tráfico lícito ou ilícito de
objetos; políticas de conservação e restauração de documentos e
monumentos observam o respeito à cultura material produzida no interior de
cada sociedade, sua relevância e a necessidade de soberania sobre elas; a
formulação de uma nova categoria de patrimônio, o patrimônio imaterial ou
intangível, dá voz às manifestações dinâmicas, intrínsecas ou eventuais, de
cada povo, como a língua, a música, a dança, o teatro e a festa – ao
desmontar o conceito de folclore e transformar estas categoria em patrimônio
intangível, o olhar sobre o outro diminui de intensidade em relação ao
discurso pré-estabelecido da diferença marcante entre o popular e o erudito.

Com o intuito de perceber as categorias acima descritas, dividimos os


documentos propostos pela UNESCO em grupos específicos: política;
conflitos armados; mobilidade; educação e turismo. A justificativa dos
recortes propostos, cujos critérios envolvem a compreensão do processo de
institucionalização, encontra fundamento nos processos históricos que
contemporizaram as discussões referentes aos eixos temáticos. Do mesmo
modo, a divisão em propostas específicas permite análises comparativas, de
caráter operacional, estabelecendo critérios de análise empírica.

Com estas divisões não pretendemos reduzir as propostas da


UNESCO nos segmentos estabelecidos, que são de ordem mais ampla, mas
verificar os direcionamentos a partir das fontes analisadas por meio dos
métodos sociológicos elaborados por Bourdieu. Cultura e desenvolvimento
tornam-se conceitos que cobrem uma gama indefinida e desconcertante de
significações, do mesmo modo que questões específicas como paz,
educação, soberania, tolerância e diferença. A expansão internacional dos
processos de natureza cultural deve ser considerada tão importante, quanto
ao desenvolvimento dos processos econômicos: de Ladakh a Lisboa, da China
ao Peru, no norte, no sul, leste e oeste, os jovens usavam jeans, penteados

307
semelhantes, camisetas, joggings, tinham hábitos alimentares parecidos, gostos
idênticos de música, atitudes semelhantes em relação à sexualidade, ao divórcio e
ao aborto. Tais atitudes estão se tornando globais. Também transcenderam
fronteiras e tornaram-se crimes globais o tráfico de drogas, o abuso e a violência
sexuais que vitimam as mulheres, a fraude e a corrupção, relatam os membros da
Comissão de Cuellár (1997, p. 37). Mesmo assim, movimentos de resistência
mantêm vivas tradições e costumes como fator de coesão e identidade
próprias; muitas ações partem da própria comunidade e nem sempre
esperam auxílio ou incentivo do governo ou da comunidade internacional.

Toda ação é política, uma vez que as escolhas relativas influenciam os


resultados finais no seio de uma sociedade; a política cultural é uma ação
específica capaz de dar voz ou retirá-la, determinando, em última instância,
as relações de poder.

308
QUADRO CRONOLÓGICO POR ÁREA DAS CARTAS, CONVENÇÕES, RECOMENDAÇÕES E TRATADOS ELABORADOS PELA UNESCO EM CONJUNTO
COM ICOMOS, ICOM E ICCROM

- QUADRO 2 –

PERÍODO
TIPOLOGIA 30 – 40 40 – 50 50 – 60 60 – 70 70 – 80 80 – 90 90 – 00
POLÍTICA .Constituição da .Convenção Cultural . Convenção p/ Patrimônio .Convenção Européia . Documento de Nara
INTERNACIONAL UNESCO (45) Européia (54) Cultural e Natural Mundial sobre as ameaças (85) (94)
(72) . Declaração de San
.Carta de San Salvador (76) Antônio (96)
. Declaração de
Estocolmo (98)
CONFLITO ARMADO .Protection of artistic .Convenção de The . Convenção p/ Patrimônio Declaração de Dresden . Resoluções para
and scientific Hague (54) Cultural e Natural Mundial (82) Proteção do
Institutions (35) (72) Patrimônio (94)
. Comunicado da
NATO (96)
MOBILIDADE . Recomendações para . Convenção para a Prevenção .Carta de Courmayeur
a Prevenção à à Importação Ilícita (69/70) (92)
Importação Ilícita (64) .Recomendações intercâmbio . Resolução sobre a
(76) devolução de bens
patrimoniais (93)
. Convenção de
Unidroit (95)
TURISMO e . Função Educativa . Declaração de Santiago(71) . Declaração de Quebec .Declaração de
EDUCAÇÃO dos Museus (58) . Carta de Turismo Cultural (84) Caracas (92)
(76) . Guia p/ educação (93)
. Turismo cultural (99)

310
6.1. Políticas Culturais
Nas primeiras linhas da “Ética de Nicômano”, Aristóteles
introduz com destaque, na definição da ética e de seus fins,
as noções de ciência política (espistéme politiké), do bem (tò
kalón), de justo (ta díkaia), assim como a de humano
(anthopeion). A ética está subordinada à política, a ciência
prática arquitetônica que tem por fim (télos) o Bem
propriamente humano (tò agathòn anthopinon). Se este
último depende da política, é porque a humanidade do
homem prende-se à sua vinculação à uma comunidade
(koinonía) e a cidade (polis) constitui o fim de toda
comunidade.
Catherine Darbo-Peschanski. Humanidade e justiça na
historiografia grega (V-I a.C). Ética. 1999, p. 35.

As políticas culturais, como vimos, estão subordinadas aos conceitos


de cultura, civilização e urbanidade, sendo que, desde suas formulações
práticas até seu sentido etmológico, a palavra política se encontra totalmente
agregada à noção da polis, do viver em sociedade. O convívio social, onde as
relações humanas se manifestam por excelência, supõe a formulação de
regras, valores, sistemas simbólicos, linguagem e estruturas complexas de
interação entre aqueles que compartilham de uma mesma comunidade. Por
sua vez, cada comunidade apresenta heranças culturais de caráter tangível e
intangível, as quais reproduzem a memória coletiva e traduzem o senso de
identidade inerente a sua própria existência. Esses recursos são,
essencialmente, não renováveis, uma vez que destruídos ou esquecidos
dificilmente voltam a significar mentalmente ou existir materialmente como o
eram anteriormente. Dessa percepção, cada vez mais torna-se forte a
consciência da responsabilidade pela proteção dos testemunhos, não apenas
do passado, mas de toda forma de expressão de uma identidade cultural.
Nos documentos formalizados, essa consciência voltou-se majoritariamente
em torno dos bens construídos, principalmente monumentos e sítios
históricos, reafirmando o caráter da polis, da cidade, da vida urbana e social
na construção das noções de preservação, patrimônio e, portanto, política
cultural.

311
Paralelo ao foco dado aos sítios e monumentos, encaminha-se a
questão da utilização e estratégias de preservação desses locais; os museus
surgem com alternativa viável de ocupação, reunindo inclusive objetos
coletados em áreas arqueológicas, coleções históricas e artísticas ou
qualquer tipo de acervo que possa resgatar a memória e a identidade local.
Junto aos museus, fomentam-se políticas educativas e atividades turísticas
que alimentam e dão sentido ao objeto preservado. Essas estratégias
resultam em políticas culturais locais, regionais, nacionais ou internacionais
que difundem e tornam visíveis noções invisíveis como reconhecimento,
memória, tradição, história e identidade. Apesar dos bens tangíveis –
monumentos, obras de arte ou artesanato e objetos de uso – serem
privilegiados no quadro de ações das políticas de preservação, atualmente o
debate tem sido direcionado ao patrimônio intangível e em 2002 realizar-se-á
na África o primeiro encontro internacional sobre patrimônio intangível, não
existindo, no entanto, nenhuma carta ou recomendações voltadas
exclusivamente para este tema.

Resgatando os documentos elaborados pela UNESCO, relacionamos


alguns que tratam exclusivamente das questões políticas, com enfoque aos
acordos bilaterais, apesar de na totalidade dos documentos selecionados
para este estudo encontrarmos diretrizes políticas indicadas:

1) Constituição da UNESCO –, Londres, 1945.

2) Convenção Cultural Européia – Paris, dezembro de 1954.

3) Convenção sobre a proteção do patrimônio mundial, cultural


e natural – Paris, novembro de 1972.

4) Convenção sobre a proteção do Patrimônio Arqueológico,


Histórico e Artístico das nações americanas – Convenção de
San Salvador, Santiago, junho de 1976.

5) Convenção Européia sobre ofensas relacionadas à


propriedade cultural – Conselho da Europa, Delphi, junho de
1985.

312
6) Documento de Nara sobre autenticidade – Nara, novembro
de 1994.

7) Declaração de San Antonio – Simpósio Interamericano sobre


autenticidade na conservação e gerenciamento do
Patrimônio Cultural, San Antonio, 1996.

8) Declaração de Stocolmo – Declaração do ICOMOS no 50°


Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
Stocolmo, setembro de 1998.

Adotada em Londres, em 16 de novembro de 1945, a Constituição da


UNESCO foi elaborada em francês e inglês, distribuída pelo Reino Unido e
adotada por todos os países membros da Organização das Nações Unidas.
No início do documento está escrito: That since wars begin in the mind of men, it
is in the minds of men that the defenses of peace must be constructed; that
ignorance of each other’s ways and lives has been a common cause, throughout the
history of mankind, of than suspicion and mistrust between the peoples of the world
throughout which their differences have all too often broken into war...; That the wide
diffusion of culture, and the education of humanity for justice and liberty and peace
are indispensable to the dignity of man and constitute a sacred duty which all the
nations must fulfill in a spirit of mutual assistance and concern; That a peace based
exclusively upon the political and economic arrangements of governments would not
be a peace which could secure the unanimous, lasting a sincere support of the
peoples of the world, and that peace must therefore be founds, if it is not to fail, upon
the intellectual and moral solidarity of mankind.

Compartilhando a memória recente da guerra, das destruições e das


atrocidades que adveio desta, a proposta inicial de formulação da UNESCO é
de criar um organismo capaz de auxiliar, através da educação, cultura e
intercâmbio científico, na manutenção da paz. O próprio documento aponta
que o desconhecimento gera a intolerância, difundindo a doutrina da
desigualdade entre homens e raças, sendo indispensável o intercâmbio
cultural, científico e educacional para a construção de uma comunidade
internacional mais igualitária: não apenas a política ou a economia dariam

313
suporte a estas ações, mas o fortalecimento de uma noção moral e
intelectual de humanidade, baseada no respeito e no reconhecimento mútuo.

São propostas idealistas, principalmente em um mundo em que os


países ricos gastam dez vezes mais em medidas protecionistas internas do
quê investem no auxílio aos países em desenvolvimento. Nesse mesmo
documento, também são colocados superficialmente os problemas da
autonomia e soberania nacional: no artigo II, sobre o quadro dos membros da
UNESCO, são admitidos todos os países associados à Organização das
Nações Unidas, sendo que territórios e grupos de territórios que não são
responsáveis pela conduta de suas relações internacionais podem ser
admitidos desde que aprovados por dois terços dos membros presentes na
votação. Relacionada à Alemanha dividida, mas também aos países que
ainda vivenciavam a condição colonial, esta normativa permite a entrada de
representantes relacionados às áreas internacionais, mas não vislumbra
questões relacionadas às minorias étnicas em sociedades multirraciais.

A UNESCO se organizará, a partir desse documento, através de


Conferências Gerais, realizadas em sessões bianuais, as quais devem
discutir as diretrizes e os objetivos da instituição, e por meio de uma Mesa
Executiva, representantes eleitos pelos delegados indicados na Conferência
Geral, sendo que os membros da Mesa não poderão ser reconduzidos ao
cargo ou ocorrer que mais do que um membro represente o mesmo país. A
Mesa Executiva será responsável pela agenda das ações proposta pela
UNESCO, pela abertura e pelo fechamento das Conferências Gerais. O
Secretariado, composto pelo Diretor-Geral – com um mandato de seis anos –
e seu staff, se responsabilizará pela viabilização, divulgação e
regulamentação das ações propostas. O orçamento da UNESCO,
administrado pela própria organização, será de responsabilidade de todos os
Estados-membros, além de contribuições voluntárias e receita própria
advinda de publicações, pesquisas ou outras fontes de renda aprovadas pela
Mesa. O artigos 104 e 105 da Carta da Organização das Nações Unidas
conferem o status legal, com seus privilégios e imunidades, aos seus
membros.

314
Forjado no pós-guerra, o documento parece buscar uma integração
entre as sociedades humanas através da cooperação científica e do
intercâmbio cultural e intelectual. Porém, nesse últimos cinqüentas anos o
mundo continua desigual, intolerante e dividido: um sexto da população
mundial vive em condições de miséria; o analfabetismo, a falta de acesso à
saúde ou às condições mínimas de subsistência atinge essa população,
sendo que grande parte desses excluídos vive em favelas, ruas e viadutos
das grandes cidades. Não foi possível barrar a guerra do Vietnã, a invasão de
Praga ou do Afeganistão, os conflitos armados nos Bálcãs, na África do Sul
ou na Indonésia. Até quando a ONU permanecerá calada em relação ao
embargo de Cuba ou ao conflito entre a Palestina e Israel? Torna-se difícil se
posicionar politicamente quando as grandes potências estão envolvidas.

Por sua vez, em relação às políticas propostas, parece ocorrer uma


dicotomia entre os tratados que envolvem a Comunidade Européia e os
tratados firmados entre a Organização dos Estados Americanos, como se o
mundo flutuasse entre esses dois continentes, a partir de dois grandes
centros polarizadores: Estados Unidos, na América, e Reino Unido e França,
na Europa. A não ser o documento de Nara (1994), firmado no Japão, a
maior parte das discussões concernentes à política cultural destaca os
acordos entre essas áreas, apesar do caráter abrangente dado aos
documentos gerais promovidos pela UNESCO nas Conferências Gerais.

Entre 1954 e 1972, auge da guerra-fria, as discussões concernentes


aos tratados internacionais parecem sofrer um recrudescimento, porém, as
décadas de oitenta e noventa compreenderam uma ampliação no número de
debates e encontros internacionais, intencionando a formulação de tratados
específicos. Dentre as ações propostas, as ações mais direcionadas e
efetivas dizem respeito aos conflitos armados e tráficos de objetos, como
veremos mais adiante.

Analisando o eixo europeu, tomamos como base o documento


proposto em dezembro de 1954, quando realizou-se em Paris a Convenção
Cultural Européia acordando que: Considering that for these purposes it is

315
desirable not only to conclude bilateral cultural conventions between Members of the
Council but also to pursue a policy of common action designed to safeguard and
encourage the development of European culture; Having resolved to conclude a
general European Cultural Convention designed to foster among the nations of all
Members, and of such other European States as may accede thereto, the study of
the languages, history and civilization of the others and of the civilization which is
common to them all. Em acordo com estas prerrogativas, determina o incentivo
ao estudos das línguas e das civilizações existentes no território europeu.
Considerando que o estudo tem por objetivo ampliar o conhecimento e
aprimorar as relações entres os países europeus, no artigo quarto deste
documento recomenda-se que cada Estado-membro do Conselho da Europa
facilite o intercâmbio de pessoas, bem como de objetos de valor cultural para
a realização desse fim.

The Europe that awoke in the days following the Liberation was in a sorry
state, torn apart by five years of war. States were determined to build up their
shattered economies, recover their influence and, above all, ensure that such a
tragedy could never happen again. Winston Churchill was the first to point to the
solution, in his speech of 19 September 1946 in Zurich. According to him, what was
needed was "a remedy which, as if by miracle, would transform the whole scene and
in a few years make all Europe as free and happy as Switzerland is today. We must
build a kind of United States of Europe". Movements of various persuasions, but all
dedicated to European unity, were springing up everywhere at the time. All these
organizations were to combine to form the International Committee of the
Movements for European Unity. Its first act was to organize the The Hague
Congress, on 7 May 1948, remembered as "The Congress of Europe". More than a
thousand delegates from some twenty countries, together with a large number of
observers, among them political and religious figures, academics, writers and
journalists, attended the Congress (Council of Europe, 1948).

Procurando fomentar o intercâmbio cultural entre os países europeus,


o Conselho da Europa abarcou exclusivamente a Europa Ocidental, uma vez
que a partir de 1960 o muro de Berlim demarcou fisicamente, o que
mentalmente já existia desde a adoção do comunismo pela República

316
Soviética: a divisão entre a Europa Ocidental, capitalista, e o Leste Europeu,
comunista, impôs uma distância no diálogo entre essas nações.

Apesar dessa divisão, várias propostas foram construídas pela


comunidade européia no que tange à proteção de sítios arqueológicos, sítios
e monumentos históricos em seu território: dentre os documentos analisados,
cinco abordam tratados específicos em relação ao Patrimônio Cultural
europeu elaborados pelo Conselho da Europa. Em junho de 1985, a
Convenção Européia assina o documento relativo às ofensas contra o
Patrimônio Cultural europeu, utilizando no texto a terminologia de
propriedade cultural. Esse documento inscreve as ações compreendidas
como “ofensa” no plano criminal, passível, portanto, de penalidades. São
listadas as ações consideradas “ofensivas”:

1) Roubo ou apropriação ilegal, através de compras ilícitas,


receptação, fraude ou qualquer tipo de ação nesse sentido;

2) Destruição ou danos à propriedade alheia;

3) Alienação de bens inalienáveis de acordo com as leis dos Estados


Europeus;

4) Compra, venda, roubo, aquisição, importação e exportação de


produtos resultantes de escavação arqueológica, sem a autorização das
autoridades competentes;

5) Exportação e importação de propriedades culturais proibidas pelas


leis européias;

6) Modificações em sítios, monumentos arquitetônicos, bens móveis,


conjuntos e demais propriedades culturais protegidas por lei, sem o
consentimento das autoridades competentes.

O descuido ou descaso das autoridades responsáveis é apontado


relativamente – according to which the owner or the possessor of a protected
monument of architecture, a protected movable monument, a protected monumental
ensemble or a protected site, is held to preserve it in adequate condition or to give

317
notice of defects which endanger its preservation –, porém, não é abordado
exaustivamente.

A restituição de propriedades culturais é matéria específica do quarto


tópico: The Parties undertake to co-operate with a view to the restitution of cultural
property found on their territory, which has been removed from the territory of
another Party subsequent to an offense relating to cultural property committed in the
territory of a Party, notably in conformity with the provisions that follow. As
pendências relativas às ações movidas entre membros do Conselho
Europeu, podem ser trazidas ao mesmo, ressaltando a necessidade de os
documentos serem elaborados nas línguas oficias do Conselho: francês e
inglês.

Paralela às ações do Conselho da Europa, a Organização dos Estados


Americanos procurou criar mecanismos internos de proteção e
reconhecimento de sua propriedade cultural, em uma tentativa semelhante
de organização, auto-valorização e respeito imposto pela comunidade
européia. A Organização dos Estados Americanos foi fundada em 30 de abril
de 1948 quando vinte e uma nações do Hemisfério se reuniram em Bogotá
para adotar a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), na qual
confirmaram seu apoio às metas comuns e o respeito à soberania de cada
um dos países. De acordo com os documentos da própria organização, os
princípios consagrados pela OEA têm sua origem numa história de
cooperação regional que remonta ao século XIX:

• Em 1826, o Libertador Simón Bolívar convocou o Congresso do Panamá com


a idéia de criar uma associação de Estados no Hemisfério.

• Em 1890, a I Conferência Internacional Americana, realizada em


Washington, D.C., estabeleceu a União Internacional das Repúblicas
Americanas e sua secretaria, o Escritório Comercial das Repúblicas
Americanas, predecessor da OEA.

• Em 1910, esta organização se converteu na União Pan-Americana

• Em 1948, na IX Conferência Internacional Americana, os participantes


assinaram a Carta da OEA e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres

318
do Homem, a primeira expressão internacional de princípios dos direitos
humanos.

Imbuído do espírito de uma comunidade americana unida, é que os


documentos Convenção de San Salvador – realizada no Chile em 1976, em
pleno regime militar – e Declaração de San Antonio – realizada no Texas-
EUA em 1996 – foram elaborados. Diferente da proposição européia, o
primeiro documento aponta o espólio e a remoção do patrimônio americano,
como uma das causas principais na formatação do documento: that such acts
of pillage have damaged and reduced the archeological, historical, and artistic
wealth, through which the national character of their peoples is expressed; that this
heritage can only be protected and preserved through mutual appreciation and
respect for such properties, within a framework of the soundest inter-American
cooperation; we resolve to approve the following Convention on the Protection of the
Archeological, Historical, and Artistic Heritage of the American Countries.

Considerando a diversidade cultural uma experiência enriquecedora e


na totalidade dessa diversidade a possibilidade de percepção de uma
estrutura comum, a declaração aponta para a construção de ações
específicas – identificar, registrar e proteger – para com o Patrimônio Cultural
americano, com o intuito de prevenir a exportação ilegal e promover a
cooperação entre os Estados. Conforme vimos anteriormente, o texto
estabelece noções específicas para a identificação do que vem a ser
propriedade cultural, porém, no artigo quarto é colocado que qualquer
problema na aplicação das definições estabelecidas, os Estados-membros
poderiam recorrer ao CIECC – Conselho Inter-Americano para Educação,
Ciência e Cultura. A autonomia dos Estados é mantida, sendo de
responsabilidade interna a adoção de medidas legais e institucionais para a
proteção da propriedade cultural sob seu território.

O texto, na maior parte de seus vinte e três artigos, aponta o tráfico


ilegal como o maior problema a ser controlado. Mecanismos que coíbam
ações de importação e exportação ilícitas também dizem respeito aos
tratados firmados entre as nações americanas. Como pano de fundo, a
declaração estabelece o retorno da propriedade ao seu país de origem, caso

319
seja comprovado que objetos resultantes de escavações ou pesquisas;
objetos sacros, históricos ou artísticos tenham sido levados de uma país a
outro sem o conhecimento e a autorização prévia das autoridades
competentes do país de origem, como também do país de recepção. No
entanto, uma vez que o objetivo da declaração é promover a integração entre
os estados americanos, as ações que envolvem a circulação de informações
– como imagens, textos, exposições – devem ser incentivadas. Articles on loan
to museums, exhibitions, or scientific institutions that are outside the state to whose
cultural heritage they belong shall not be subject to seizure as a result of public or
private lawsuits.

Além dessas questões, o texto afirma o caráter legal do documento


exposto, uma vez que os Estados-membros se comprometem a adotar as
medidas coletivas indicadas; cooperar e garantir as ações técnico-científicas,
de difusão cultural e pesquisa, no sentido de aprimorar o conhecimento e o
reconhecimento da cultura americana e, especificamente, estabelecer o
Registro Inter-Americano de propriedade cultural. Em relação a este ponto
específico, vinte anos depois de sua idealização ainda não se concretizou
efetivamente: recentemente, agências financiadoras – como a Fundação
Vitae – e iniciativas institucionais têm promovido a catalogação do acervo
artístico e histórico no Brasil; vários países latino-americanos não possuem
inventários internos e nem ainda desenvolvem projetos nesse sentido.

De acordo com a OEA, a proposta de um museu virtual, pode vir a


significar um poderoso recurso digital para unir os museus do hemisfério. O
Museu Virtual das Américas – conhecido como Musa das Américas –
apresentará exibições digitais, cobrindo diversos temas relacionados com a
cultura de cada região, incluindo história, arqueologia, arte, alimentação,
esporte e ciência. Além disso, o Museu Virtual precede a construção de um
novo edifício para abrigar o Museu das Américas a ser construído junto à
sede da OEA, em Washington. O edifício do Museu das Américas – um
projeto iniciado pela OEA, o Smithsonian Institute e o Banco Interamericano
de Desenvolvimento – deve ser inaugurado em 2005 para receber uma vasta

320
coleção de objetos latino-americanos e caribenhos, estimada em mais de 500
mil peças.

O documento seguinte, Declaração de San Antonio (1996), formulado


pelo ICOMOS National Committes of the Americas, aborda assuntos
específicos diferenciados da proposta anterior: a questão da autenticidade e
seu significado para a proteção do Patrimônio Cultural das Américas é o tema
central do encontro. Os especialistas da área tomam como base os
indicativos propostos na Carta de Veneza (1964), Documento de Nara (1994)
e pelos encontros preparatórios que ocorreram anteriormente.

As questões relativas à autenticidade são indispensáveis para que as


propriedades culturais possam ser incluídas na World Heritage List: o
parágrafo vinte e quatro do Operational Guidelines proposto pelo World
Heritage Comitte determina que serão considerados bens patrimoniais
aqueles bens que responderem a um ou mais critérios de classificação de
Patrimônio Cultural – conforme enunciado no capítulo quinto desta pesquisa
– e responderem aos parâmetros de autenticidade. De acordo com o texto, o
teste de autenticidade deve determinar as características distintivas,
significativas e autênticas que comprovem a importância, relevância e valor
cultural da propriedade que pretende ser incluída na WHL. O comitê julgará a
inclusão da mesma a partir de um dossiê contendo documentação detalhada,
sendo que aqueles bens que sofreram algum tipo de restauração ou
reconstrução devem apresentar provas da estrutura original antes do
processo de intervenção.

Os documentos propostos admitem que o conceito de autenticidade é


vago e depende de diferentes interpretações sociais e culturais.
Autenticidade e sua aplicação em relação ao World Heritage Convention
foram discutidos em Nara (1994) e a partir de um encontro preparatório
ocorrido no mesmo ano em Bergen, na Noruega. Nearly 30 years after the
founding of ICOMOS, a great number of experts in the field of cultural heritage met in
Nara, Japan, in November 1994 in order to discuss the various aspects of the criteria
of “authenticity” and, as K. E. Larsen, chairman of ICOMOS Norway and scientific
coordinator of the Nara conference, observed during the meeting--to move forward

321
“the international preservation doctrine from a Eurocentric approach to a postmodern
position characterized by recognition of cultural relativism” (BOUCHENAKI, 1999,
s.p.).

A Declaração de San Antonio procurou incluir as nações americanas


nesse debate específico, uma vez que desde que foi idealizado o World
Heritage Comitte, na Conferência Geral da UNESCO de 1972, os parâmetros
para a formulação da World Heritage List estão sendo discutidos e a
inclusão de bens culturais de áreas em defasagem (vide Gráficos 2, 3 e 4)
vem ocorrendo a partir da iniciativa dos braços regionais do ICOMOS em
cada país, bem como das ações da sociedade civil organizada que
impulsiona as iniciativa dos Estados. De acordo com o texto dessa
declaração, baseado nos documentos anteriores, o Comitê Americano
procurou discutir a natureza, definição, documentação e gerenciamento da
noção de autenticidade em relação ao patrimônio arquitetônico, urbano,
arqueológico e paisagens culturais de acordo com parâmetros forjados na
identidade cultural das Américas. No artigo primeiro está escrito:

The cultures and the heritage of the Americas are distinct from those of other
continents because of their unique development and influences. Our languages, our
societal structures, our economic means, and our spiritual beliefs vary within our
continent, and yet, there are strong common threads that unify the Americas. Among
these is our autochthonous heritage, which has not been entirely destroyed in spite
of the violence of the Conquest Era and a persistent process of acculturation; the
heritage from the European colonizers and the African slavery that together have
helped build our nations; and finally, the more recent contribution of European and
Asian immigrants who came searching for a dream of freedom and helped to
consolidate it. All these groups have contributed to the rich and syncretic
pluriculturalism that makes up our dynamic continental identity.

Em função dessa diversidade cultural, de caráter multiétnico, grupos


com identidades próprias coexistem em um mesmo espaço físico-temporal,
compartilhando manifestações e expressões culturais, as quais assinalam
diferentes valores diferenciados, sendo indispensável que na formulação de
parâmetros associados ao estabelecimento de bens culturais o

322
reconhecimento dos valores sem a imposição de predominância hierárquica
de nenhum cultura sobre outra: The comprehensive cultural value of our heritage
can be understood only through an objective study of history, the material elements
inherent in the tangible heritage, and a deep understanding of the intangible
traditions associated with the tangible patrimony.

Em relação à autenticidade material o documento aponta: The material


fabric of a cultural site can be a principal component of its authenticity. As
emphasized in Article 9-Venice Charter, the presence of ancient and original
elements is part of the basic nature of a heritage site. The Charter also indicates that
the material elements of our tangible cultural heritage are bearers of important
information about our past and our identity. Those messages include information
about a site's original creation as well as the layered messages that resulted from the
interaction between the resource and new and diverse cultural circumstances. For
these reasons, those materials and their setting need to be identified, evaluated and
protected. In the case of cultural landscapes, the importance of material fabric must
be weighed along with the immaterial distinctive character and components of the
site.

Compreendendo que tanto as técnicas construtivas quanto o aspecto


estético devem ser mantidos com o intuito de possibilitar a análise histórica e
o valor de testemunho cultural, os bens patrimoniais devem manter suas
características originais ao máximo, sendo inconveniente e desastroso incluir
elementos novos, construções adjacentes e reformas que descaracterizem e
desvalorizem o sentido original de qualquer obra – móvel ou imóvel – de bens
culturais. O valor social de qualquer patrimônio também está associado ao
seu sentido de uso: a manutenção de igrejas do período colonial em
atividade; a inclusão de sítios, centros históricos e paisagens culturais na vida
da comunidade; a manutenção de sítios que mantêm viva a mensagem
espiritual dos ancestrais. Por meio da preservação do sentido intangível, que
o patrimônio tangível pode ser compreendido em toda sua plenitude. Assim,
seu valor não fica restrito apenas à materialidade, mas à sua capacidade de
testemunhar e preservar as tradições que orientam o sentido de comunidade,
a identidade cultural. Em função do crescimento urbano e dos deslocamentos
populacionais dos povos americanos, a questão da originalidade ou

323
autenticidade pode ser comprometida. Desse modo, o documento de San
Antonio recomenda que sejam considerados alguns indicadores no que tange
à identificação de bens patrimoniais:

i.Reflection of the true value. That is, whether the resource remains in the
condition of its creation and reflects all its significant history.

ii.Integrity. That is, whether the site is fragmented; how much is missing, and
what are the recent additions.

iii.Context. That is, whether the context and/or the environment correspond to
the original or other periods of significance; and whether they enhance or diminish
the significance.

iv.Identity. That is, whether the local population identify themselves with the site,
and whose identity the site reflects.

v.Use and function. That is, the traditional patterns of use that have
characterized the site.

Baseado no documento de Nara, as ações discutidas em San Antonio


atendem à proposta do documento anterior: The experts considered that an
expanded dialogue in different regions of the world and among specialist groups
concerned with the diversity of cultural heritage was essential to further refine the
concept and application of authenticity as it relates to cultural heritage. Such on-
going dialogue will be encouraged by ICOMOS, ICCROM, and the World Heritage
Centre, and will be brought to the Committee's attention as appropriate. No final do
relatório, no entanto, o comitê americano aponta algumas falhas relativas às
diferenças de conteúdo e significado que ocorre entre as versões em francês
e inglês do documento elaborado no Japão. Além dessa questão pontual, os
experts declaram algumas diferenças primordiais na percepção do Patrimônio
Cultural:

a)a noção da participação da comunidade local e uso dos bens imóveis,


como fundamentais à manutenção e preservação de sítios e monumentos;

b)o uso inapropriado de palavras como “nacionalismo” e “minoria” em


relação ao continente americano, uma vez que muitas vezes uma minoria de
uma nação pode ser mais influente e impositiva de seus valores culturais
sobre os grupos majoritários, alterando e massacrando o denominador

324
comum como forma de poder;

c)a importância da dinâmica cultural entre as comunidades autóctones e


as sociedades urbanas, além do respeito para com todas as culturas
africanas, asiáticas ou européias que imigraram para o continente americano
e construíram bens que respondem a um identidade cultural própria. Em
função desse dinamismo proposto, o relatório final discute a dificuldade de
ajustar os parâmetros propostos tanto nos documentos elaborados pelo
Conselho da Europa quanto na proposição de Nara.

A questão crucial que se coloca é de que nos países europeus e


asiáticos desenvolvidos as áreas consideradas bens patrimoniais culturais já
estão cristalizadas; o patrimônio natural remanescente encontra-se
delimitado por espaços específicos, como reservas, parques e jardins. Como
se comportar em relação aos países em desenvolvimento, cujo crescimento
populacional e os modelos capitalistas de desenvolvimento impõem uma
prática de crescimento acelerado, comprometendo tanto as paisagens
culturais quanto os centros históricos? A poluição da ALCAN em Ouro Preto,
ou da CSN em Congonhas do Campo – MG compromete a integridade dos
monumentos coloniais; a expansão de fazendas e atividades extrativas na
Região Norte do Brasil tem promovido uma destruição acelerada das
reservas naturais. Como preservar e ao mesmo tempo oferecer condições de
vida, saúde, educação e trabalho às populações dessas regiões? Um turismo
planejado, como em Tiradentes; projetos que admitam a participação dos
povos das florestas, comunidades de pescadores e artesãos podem auxiliar
num sentido de buscar um crescimento auto-sustentável apoiado na
identidade cultural e no reconhecimento de modos de vida alternativos. Por
outro lado, os projetos e modelos desenvolvimentistas estão, via de regra,
comprometidos pela corrupção e desvio de dinheiro pelos dirigentes políticos
e órgãos públicos: SUDAM e SUDENE são exemplos clássicos da
promiscuidade política no Brasil.

Em relação ao direito das comunidades, etnias e nações participarem


dos fóruns de decisão relativos às ações, encaminhamentos e diretrizes de

325
seus bens culturais, a declaração do ICOMOS por ocasião do qüinquagésimo
aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, solicita a inclusão
dos itens abaixo:

. The right to have the authentic testimony of cultural heritage, respected as an


expression of one's cultural identity within the human family;
. The right to better understand one's heritage and that of others;
. The right to wise and appropriate use of heritage;
. The right to participate in decisions affecting heritage and the cultural values
it embodies;
. The right to form associations for the protection and promotion of cultural
heritage.

Elaborado em 1998, esse documento é resultante das mudanças


significativas que ocorreram em relação ao lugar dos monumentos no
inconsciente e no cotidiano da vida das pessoas: preservamos, educamos,
criamos museus ou realizamos pesquisas para as pessoas; nenhum bem é
mais sagrado do que a vida, a vida compreendida em seu sentido amplo,
com o direito de cada ser humano ser respeitado em sua identidade cultural,
amparado no que diz respeito ao seu desenvolvimento pleno e participar nas
decisões relativas à sua existência individual e coletiva.

326
6.2. Conflitos Armados
Entre o homem com a sua razão, e os animais, com o seu
instinto, quem afinal, estará mais bem dotado para o governo
da vida? Se os cães tivessem inventado um deus, brigariam
por diferenças de opinião quanto ao nome a dar-lhe,
Perdigueiro fosse, ou Lobo-d’Alsácia? E, no caso de estarem
de acordo quanto ao apelativo, andariam, gerações após
gerações, a morder-se mutuamente por causa da forma das
orelhas ou do tufado da cauda do seu canino deus?
José Saramago. In Nomine Dei. 1999, p.7.

13. For those who watch the Taleban closely, the decree to
destroy the ancient Buddhas in Bamiyan, Afghanistan,
indicates deepening divisions within its fractured ranks.
Afghan opposition leaders in India said the fundamentalist
Islamic movement began tearing down two immense, 2,000-
year-old statues of the Buddha carved into a rock face near
the central town of Bamiyan. Cultural authorities worldwide
have urged Taleban to spare the statues, but Taleban
leaders consider them graven images "insulting to Islam.
.

http://articles.cnn.com/2001-03-02/

327
Atividades belicosas, conflitos, guerras, revoluções, revoltas, golpes,
todas essas atividades fazem parte do vocabulário da existência social
humana, manifesto em todos os períodos da História e em todos os espaços
geográficos do planeta. Heráclito afirma, a guerra é a mãe de tudo
(BURCKHARDT, 1943, p.214), e também é filha das crises políticas,
econômicas e religiosas.

O padrão de agressividade, seu tom e intensidade, não é hoje exatamente


uniforme entre as diferentes nações do Ocidente. Mas essas diferenças, que de
perto às vezes parecem muito grandes, desaparecem se a agressividade das
nações civilizadas forem comparadas com a de sociedades em diferentes estágios
de controle e emoções. Comparada com a fúria dos guerreiros abissínios ou com a
ferocidade das tribos à época das Grandes Migrações, a agressividade mesmo das
nações mais belicosas do mundo civilizado parece bem pequena. Como todos os
demais instintos, ela é condicionada, mesmo em ações visivelmente militares, pelo
estado adiantado da divisão de funções, e pelo decorrente aumento na dependência
dos indivíduos entre si a face do aparato técnico. É confinada e domada por
inumeráveis regras e proibições, que se transformaram em auto-limitações (ELIAS,
1939, p. 190).

Apesar dessa percepção de Norbert Elias, em verdade, as regras nem


sempre são cumpridas nos momentos de guerras, mesmo na “civilizada”
sociedade contemporânea. Temos assistido notícias de campos de
refugiados bombardeados, crimes de guerra contra populações civis, testes
com armas químicas em minorias, franco atiradores e genocídios, destruição
e saque de patrimônios culturais e se o distanciamento tecnológico não faz
com que o piloto de avião sangre, sue ou urre quando lança uma bomba de
hidrogênio, nem por isso sua atitude deixa de ser menos atroz, bárbara ou
ignóbil. O atual poder destrutivo da humanidade – uma quantidade de
mísseis que pode destruir o mundo uma centena de vezes, sendo que uma
só vez já basta – parece condicionar as guerras às “batalhas” de
computadores. De acordo com Hobsbawm, o século XX é o século marcado
por guerras: a humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do
século XX desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas
ruíram. Não há como compreender o breve século XX sem ela. Ele foi marcado pela

328
guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões
se calavam e as bombas não explodiam. Sua história e, mais especialmente, a
história de sua era inicia de colapso e catástrofe devem começar com a guerra
mundial de 31 anos (2000, p. 30).

Alguns fatores anteriores ao século contribuíram para o mapa bélico


atual, se buscarmos na origem das guerras não apenas as questões
econômicas e ideológicas, mas étnicas e religiosas: a expansão romana e a
construção do Império Bizantino, com a adoção do cristianismo em 310
através do Édito de Milão; a expansão mulçumana a partir de Maomé; a
divulgação do Budismo; a formação dos Reinos Cristãos Europeus na Idade
Média e as Cruzadas do séc. XI; a expansão marítima do XV e XVI, enfim,
questões religiosas associadas às questões políticas resultam em muitos
conflitos recentes que ocorrem no mundo, mantendo a intolerância de etnias
sobre etnias, nações contra nações, religiões contra religiões. Nos territórios
africanos, o problema maior é o contorno geográfico providenciado pelos
colonizadores europeus, que não respeitaram as divisões internas e as
culturas específicas, bem como os conflitos anteriores entre nações
africanas. Além disso, a manutenção de estruturas de dominação, como o
apharteid sul-africano, ou a criação de mitos populistas fazem parte de um
cenário pouco favorável à construção da paz. Na região árabes o barril de
pólvora – ou melhor dizendo, de petróleo – é ainda maior: povos nômades
tiveram que se adaptar à noção moderna de Estado – a qual prevê uma
identidade baseada na língua, etnia e geografia – e se estabelecer em
territórios fixos. Após a Segunda Guerra Mundial, a criação do Estado de
Israel não foi assimilada pelas nações árabes e os distúrbios na região
tornaram-se constantes. Por sua vez, o que está em jogo nos conflitos árabes
não são apenas as questões políticas e religiosas, mas o interesse
econômico sobre a região, reserva natural do combustível que move o
mundo. Nas Américas a guerra não-declarada ocorre em função do tráfico de
drogas, das ações militares e paramilitares de confronto pelo poder do
Estado e, principalmente, os conflitos inerentes ao desnível social: a
circulação de armas em grandes centros, como New York, Rio de Janeiro e

329
Bogotá determina uma situação bélica denominada guerra urbana. Os
Estados Unidos, sem ter mais como levantar a bandeira da guerra fria,
mantêm seus mísseis apontados para o mundo e parecem longe de reduzir
seu potencial bélico.

Dando continuidade à sistemática desta pesquisa, selecionamos alguns


textos elaborados pela UNESCO que abordam esse tema específico:

1) Roerich Pact. Tratado dobre a Proteção de Instituições Artísticas e


Científicas e Monumentos Históricos – Montevidéo, abril de 1935.

2) Convenção de The Hague. Convenção para a Proteção de


Propriedades Culturais em Eventos ou Conflitos Armados – The
Hague, maio de 1954.

3) Convenção sobre a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural


– Paris, novembro de 1972.

4) Declaração de Dresden. Reconstrução de Monumentos destruídos


pela guerra – Dresden, novembro de 1982.

5) A informação como um instrumento para a proteção do Patrimônio


Cultural contra danos de guerra – Suíça, junho de 1994.

6) Comunicado Final da NATO. Conferência sobre a Proteção do


Patrimônio Cultural em períodos de guerra ou em estado de
emergência – Cracróvia, junho de 1996.

A preservação do Patrimônio Cultural em momentos de guerra não é


matéria recente: conforme abordamos no capítulo segundo, em 162 d.c um
édito do Senado Romano decretava que a Coluna Trajana – erigida entre 106
e 113 d.C. para celebrar as campanhas vitoriosas sobre os Dácios – jamais
deveria ser destruída ou mutilada, sendo este édito considerado uma das
primeiras medidas em forma de lei que se orientava à preservação de um
monumento histórico. Contudo, em 410 d. C. teve o busto do imperador que
a coroava destruído com a invasão dos visigodos. Da Idade Média à Idade
Moderna, a prática da pilhagem e da destruição de obras de arte fez parte do
vocabulário dos generais, ditadores ou imperadores que passaram por este

330
mundo. A guerra, declara uma das “chanson de geste”, significa descer como o
mais forte sobre o inimigo, cortar suas videiras, arrancar pelas raízes suas árvores,
assolar suas terras, tomar de assalto seus castelos, entupir seus poços, e matar
suas gentes (ELIAS, 1939, p. 192). Esta prática medieval não está distante de
nossas práticas atuais.

14. International Banner of Peace (Roerich Movement flag)


Criado por Nicholas Roerich

Um dos primeiros documentos incorporados pela UNESCO sobre este


tema específico trata do documento Proteção de Instituições Científicas e
Artísticas e Monumentos Históricos em momentos de conflito. Aprovado na
VII Conferência Internacional dos Estados Americanos, ocorrida em
dezembro de 1933 em Montividéo, contou com a assinatura da maioria dos
países americanos, excluindo Canadá. Nesse tratado, os países que assinam
o documento se comprometem a preservar as áreas – monumentos,
instituições e localidades – que tiverem fixada a bandeira (acima) proposta
pelo Pacto de Roerich, conforme as discussões iniciadas no Roerich Museum
dos Estados Unidos.

No artigo primeiro está declarado que os monumentos históricos;


museus; instituições científicas, artísticas, educacionais e culturais devem ser
consideradas como áreas neutras, no que diz respeito às ações beligerantes,
do mesmo modo que os pesquisadores e o pessoal que atuam nesses locais.
A bandeira adotada (um círculo vermelho, com três esferas vermelhas ao
centro), seria utilizada com o intuito de reconhecer esses espaços
específicos. A União Pan-Americana seria, então, a instância de denúncias

331
de quebra do tratado firmado pelas nações americanas, havendo um prazo
máximo de três meses para o julgamento da ação. Entre 1933 e 1945 não
ocorreram conflitos significativos nos territórios americanos e a adoção de um
outro mecanismo internacional, proposto pela UNESCO em 1954, veio a
substituir esse acordo, ou pelo menos a bandeira adotada pelo tratado.

Antes do Pacto de Roerich, também conhecido por Pacto de


Washington, houve na Europa, entre 1889 e 1907 uma série de encontros
que originou um documento denominado Convenção de The Hague – IV
Convenção respecting the Laws and Customs of War on Land –, assinada
em The Hague, em 18 de outubro de 1907 e estabelecida (entry into force)
em 26 de janeiro de 1907. Nesse documento, apenas dois artigos abordam a
questão do comportamento, em situação de guerra, para com a propriedade
cultural:

Art. 47. Pillage is formally forbidden.

Art. 56. The property of municipalities, that of institutions dedicated to religion,


charity and education, the arts and sciences, even when State property, shall
be treated as private property. All seizure of, destruction or willful damage
done to institutions of this character, historic monuments, works of art and
science, is forbidden, and should be made the subject of legal proceedings.

Apesar do tratado ser firmado antes da Primeira Grande Guerra (1914-


1918), o acordo pouco ou nada pôde contra os bombardeios aéreos e a falta
de uma maior sistematização das ações concernentes às instituições
científicas, artísticas ou educacionais, bem como à proteção dos
monumentos, demonstrando a ineficácia das propostas, uma vez que
importantes centros e áreas que deveriam ser protegidas foram destruídos
em toda Europa. Porém, aproveitando o enunciado do artigo cinqüenta e
seis, o Pacto de Washington (1935) estruturou o conceito de preservação
para com instituições relacionadas às artes, ciência ou educação; sítios e
monumentos históricos. A vantagem deste segundo documento está na
identificação através de uma bandeira das áreas protegidas, forçando aos
comandos de batalha respeitar as mesmas e com o intuito de que, no caso
de infração ao acordo, houvessem mecanismos de comprovação do
desrespeito ao tratado.

332
Utilizando ambos documentos é que a Convenção de 1954 estruturou
um tratado mais completo, revisado e atualizado em 1996, sendo que até
1996 oitenta e oito países já haviam assinado o acordo. A estrutura do
documento está dividida em quatro partes:

a) O Documento gerado pela Convenção para a Proteção de Propriedade


Cultural em Eventos ou Conflitos Armados – dividida em sete capítulos
abordando: 1)Recomendações Gerais ; 2) Proteção Especial; 3)
Transporte de Propriedade Cultural; 4) Pessoal; 5) Emblema Distintivo;
6) Escopo para a aplicação da Convenção; 7) Execução da
Convenção; Dispositivos Finais, englobando uma totalidade de
quarenta artigos;

b) Regulamentação para a Execução da Convenção para a Proteção de


Propriedade Cultural em Eventos ou Conflitos Armados – estruturada
em quatro capítulos específicos – I. Controle; II Proteção Especial; III.
Transporte de Propriedade Privada; IV. Emblema Distintivo, em vinte e
um artigos complementares ao documento anterior;

c) Protocolo, com o comprometimento formal das partes em respeitar sua


orientação

d) Retificação posterior, compilada pela UNESCO em junho de 1996.

Em relação às adesões conflitantes – países que não estão vinculados


à ONU; países em guerra, etc –, a listagem abaixo vinculada ao último item
acima citado – Retificações – propicia uma noção do posicionamento político
da UNESCO e dos países que aderiram ao pacto:

1. This State lodged a notification of succession at the mentioned date, by which


it stated that it was bound by the Convention and its Protocol which the USSR
ratified on 4 January 1957. (Armenia; Georgia; Tajikstan)

2. This State lodged a notification of succession at the mentioned date, by which


it stated that it was bound by the Convention and its Protocol which
Yugoslavia ratified on 13 February 1956. (Bósnia-Herzegovina; Croatia;
Slovena)

3. This State lodged a notification of succession at the mentioned date, by which


it stated that if was bound by the Convention and its Protocol which
Czechoslovakia ratified on 6 December 1957. (Solovak; Czech Repuplic)

333
4. In conformity with the procedure set forth in the Convention and the Protocol,
both agreements enter into force, for the first States, three months after the
deposit of instrument of ratification by the fifth State, Mexico. (Myanmar; San
Marino; Egito; Yogoslavia)

5. The German Democratic Republic deposited an instrument of accession to


the Convention and its Protocol on 16 January 1974. Through the accession
of the German Democratic Republic to the Basic Law of the Federal Republic
of Germany, with effect from 3 October 1990, the two German States have
united to form one sovereign State.

6. The instrument of ratification was deposited by the USSR, on 4 January 1957.


The Director-General has been informed that the Russian Federation would
continue the participation of the USSR in UNESCO conventions. (Russian
Federation; Germany)

7. The People's Democratic Republic of Yemen deposited its instrument of


accession on 6 February 1970. After the unification of the People's
Democratic Republic of Yemen and the Yemen Arab Republic into a single
sovereign State called "the Republic of Yemen", the Ministers of Foreign
Affairs of the Yemen Arab Republic and the People's Democratic Republic of
Yemen informed the Secretary-General of the United Nations on 19 May
1990 that all treaties and agreements concluded between either the Yemen
Arab Republic or the People's Democratic Republic of Yemen and other
States and international organizations in accordance with international law
which are in force on 22 May 1990 would remain in effect. (Zaire; Yemen)

15. The Blue Shield is the cultural equivalent of the Red


Cross. It is the symbol specified in the 1954 Hague
Convention for marking cultural sites to give them
protection from attack in the event of armed conflict. It
is also the name of an international committee set up in
1996 to work to protect the world's cultural heritage
threatened by wars and natural disasters.
Fonte: http://portal.unesco.org/culture/en/ev.php-URL

No quarto capítulo das Regulamentações e sétimo da Conferência, a


escolha do emblema da Bandeira de Identificação é apresentada: o emblema
– uma flâmula branca, com um losango azul na ponta inferior e um triângulo
azul no extremo superior, cujos vértices se tocam (figura acima) – pode ser

334
utilizado sozinho ou repetido três vezes no entorno do monumento ou
edifício, formando um triângulo. Além de identificar propriedades culturais
protegidas, também é utilizado em veículos que transportam bens culturais
móveis em trânsito e refúgios improvisados em áreas de alto risco. Pessoal
técnico responsável pela preservação de propriedades culturais em conflitos
armados, formalmente indicadas pela UNESCO, também são identificadas
por este emblema, tanto em cartões de identificação quanto em braçadeiras
que contenham o símbolo.

1. The placing of the distinctive emblem and its degree of visibility shall be left
to the discretion of the competent authorities of each High Contracting Party. It may
be displayed on flags or armlets; it may be painted on an object or represented in
any other appropriate form.
2. However, without prejudice to any possible fuller markings, the emblem
shall, in the event of armed conflict and in the cases mentioned in Articles 12 and 13
of the Convention, be placed on the vehicles of transport so as to be clearly visible in
daylight from the air as well as from the ground.
3. The emblem shall be visible from the ground:
(a) at regular intervals sufficient to indicate clearly the perimeter of a center
containing monuments under special protection;
(b) at the entrance to other immovable cultural property under special
protection (Regulations, Chapter V).

Em outubro de 1993, o ICOM, com apoio do GCI, conduziu uma


missão à República da Croácia. De acordo com relatos de Bárbara Roberts,
na qualidade de observadora, importantes obras de arte, estruturas históricas
e instituições culturais foram bombardeadas, independente das bandeiras
desgastadas da ONU que demarcavam as áreas como espaços protegidos.
En Croácia hay 143 instituciones com 86 colecciones dependientes que contienen
aproximadamente cinco millones de objetos culturales. A fines de 1993, 47 de estas
instituciones habían sufrido daños directos o perdidas en sus colecciones. El número
puede ser mayor aún. El Centro de Documentación de Museus (MDC) del país tiene
poca o ninguna información sobre 8 de los 17 museos y galerías en la Croacia
ocupada por los serbios. Estas colleciones incluían alredor de 200000 objectos
(1994, s.p.).

Nesse mesmo artigo, Dra. Roberts relata o transporte ilegal de obras


de arte de Vukovar para a Sérvia sem nenhum tipo de autorização, ciência ou

335
auxílio da UNESCO. O Ministro da Cultura da Sérvia teria aparecido em um
programa de televisão afirmando que reconduziria os objetos transladados ao
local de origem, quando fosse firmado um acordo de paz – de acordo com o
artigo décimo nono do terceiro capítulo das Regulamentações: Whenever a
High Contracting Party occupying territory of another High Contracting Party
transfers cultural property to a refuge situated elsewhere in that territory, without
being able to follow the procedure provided for the Article 17 of the Regulations, the
transfer in question shall not be regarded as misappropriation within the meaning of
Article 4 of the Convention, provided that the Commissioner-General for Cultural
Property certifies in writing, after having consulted the usual custodians, that such
transfer was rendered necessary by circumstances. Em função do não
cumprimento dessas orientações e das atividades de traslado
descontroladas, a observadora do GCI recomendou atenção da comunidade
internacional de museus em relação ao aparecimento de objetos croatas no
mercado de artes e antiguidades.

Em relação à prática anterior, o documento apresentaria versões em


espanhol e russo, além do inglês e francês tradicional, conforme indicação do
artigo vinte e nove das Previsões Finais. Somente a partir da sistematização
de atividades específicas, como a restauração, a prática museológica, a
arqueologia e a etnologia; da construção de fóruns internacionais de debates
e de instituições de peso – moral e financeiro –, como o ICCROM, o ICOMOS
e o ICOM, que iniciou-se uma campanha mundial de conscientização da
necessidade de proteger o Patrimônio Cultural, tanto em tempos de guerra
quanto em tempos de paz. Na Convenção Internacional sobre a Proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, realizada em Paris, como resultado do
artigo sétimo do capítulo segundo – for the purpose of this Convention,
international protection of the world cultural and natural heritage shall be understood
to mean the establishment of a system of international co-operation and assistance
designed to support States Parties to the Convention in their efforts to conserve and
identify that heritage –, foi fundado o World Heritage Committee, descrito no
artigo oitavo como: An Intergovernmental Committee for the Protection of the
Cultural and Natural Heritage of Outstanding Universal Value, called “World Heritage

336
Committee”, is hereby established within the United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization.

Procurando atuar especificamente nas situações de risco, o World


Heritage Committee iniciou um programa em 1972 sobre o World Heritage in
Risk. Disponível através de publicações, internet e divulgado nas
conferências da UNESCO, o programa é alimentado por grupos de trabalhos
específicos que compilam e alimentam a base de dados proposta. Após vinte
e oito anos de pesquisa, realizou-se a primeira redação global do trabalho:

La redacción de un primer Informe Mundial sobre Patrimonio en Peligro es


una tarea importante que ICOMOS asumió con éxito en un plazo de tiempo muy
breve. Realizado en continuidad con las ideas de nuestro presidente anterior, Roland
Silva, este logro es el resultado de esfuerzos de individuos muy diferentes de todo el
mundo. ICOMOS y su equipo especial de trabajo "Patrimonio en Peligro" quieren
expresar su gratitud a todas estas personas. ICOMOS es una red de miembros
expertos. La iniciativa y el informe sobre Patrimonio en Peligro han tenido el
privilegio de beneficiarse de las informaciones aportadas por los Comités Nacionales
y los Comités Científicos Internacionales de ICOMOS. Otras contribuciones
provienen de expertos individuales o de organizaciones asociadas. Parte de la
información fue recogida y compilada por el equipo especial de trabajo. También
quisiéramos dar las gracias a los expertos que participaron en la reunión de Munich,
en julio de 2000. Gracias al examen que hicieron de los resultados preliminares de la
encuesta, estos expertos aportaron una perspectiva global y crítica y reforzaron las
bases intelectuales de esta iniciativa de ICOMOS. La redacción del informe exigió
muchas horas de trabajo. Mucho se debe a los considerables esfuerzos de un
equipo editorial formado por Marilyn Truscott, ex-Presidente de ICOMOS Australia,
que dedicó generosamente la mayor parte de su año sabático en París a ayudarnos
en este ejercicio, y a John Ziesemer, con la ayuda de Hannelore Puttinger, de
ICOMOS Alemania. Gustavo Araoz, director ejecutivo de ICOMOS/EE.UU., nos
ayudó con sus inteligentes sugerencias y su talento de traductor. No queremos
olvidar el apoyo esencial y discreto del personal del Secretariado de ICOMOS en
París. En nombre de ICOMOS, los miembros del equipo especial de trabajo
Patrimonio en Peligro quieren expresar su gratitud a todas estas personas por su
preciosa y generosa contribución y por su trabajo
(http://www.international.icomos.org/risk/preambulo.htm).

337
Mesmo com a ação constante da UNESCO, como o apoio do ICOM,
ICOMOS e ICCROM, além de outras organizações internacionais e
nacionais, em 1982, em um encontro promovido pelo ICOMOS National
Committee da República Democrática da Alemanha, o qual reuniu onze
países, os membros presentes declararam sua total perplexidade diante da
situação de perdas de Patrimônio Cultural em momentos de guerra, tomando
como exemplo a situação da própria República Democrática da Alemanha,
quase quarenta anos após o conflito da Segunda Grande Guerra: uma
substancial parte de seus patrimônio permanecia perdido ou, principalmente
no caso do patrimônio arquitetônico, danificado.

O significado político desse documento pode ser relacionado à


vivência específica da Alemanha dividida – República Federal Alemã
(Ocidental) e República Democrática Alemã (Oriental) – e destruída do pós-
guerra: elaborado em Dresden, no lado oriental, essa cidade pôde
testemunhar as experiências acumuladas nos anos do pós-guerra.
Sistematizando as discussões sobre os problemas levantados, o documento
aborda em doze itens, vários aspectos específicos. A primeira recomendação
trata da necessidade imediata de reconstrução de monumentos destruídos,
como uma forma de elevar a auto-estima de povos submetidos à destruição
das guerras, a justificativa dessas ações também repousa no fomento
econômico que as áreas culturais significam, através da exploração turística.

Contudo, toda ação de reconstrução deve basear-se nos critérios


internacionais de intervenção: reconhecimento das interferências; utilização
de materiais reversíveis ou reconhecidamente estáveis; respeito ao original,
por sua vez: in the task of reconstructing monuments, a highly meticulous scientific
methodology has evolved, as well as skills in technology, artistry and craftsmanship.
Arising from the legitimate desire of peoples to restore damaged monuments as
completely as possible to their national significance, necessary restoration work,
going beyond conservation, has attained a high professional level and thereby a new
cultural dimension as well .

A percepção de que o valor “intangível” – intelectual, significado


identitário, valor político ou afetivo para uma comunidade – também deve ser

338
considerado, durante o processo e após o seu término, indica que a
revalorização de um monumento não passa apenas pela sua reconstrução
material. No décimo parágrafo está escrito: The new interest in the intellectual
acknowledgment of monuments has frequently given rise to the wish to restore a
monument by reason of its meaning and impact, in addition to mere preservation.
The type and scope of restoration have been and continue to be dependent on the
significance and specific character of the monument, on the extent of destruction,
and of the cultural and political function attached to it. Essa relação específica
entre o sentido do mérito em relação ao investimento nas atividades
específicas de restauração e o respaldo social dado pelo valor simbólico que
esse espaço físico representa indica as orientações nas propostas de ação.

A Delaração de Dresden (1982), perseguindo as propostas anteriores,


reivindica o uso dos monumentos – centros históricos, igrejas e edifícios
históricos – como uma maneira de acelerar as atividades de restauração,
bem como a custódia e a conservação do prédio: The need to continue the
traditional use of a building has frequently accelerated the restoration of destroyed
architectural monuments. Increasing awareness of the spiritual value of monuments
has further encouraged this trend. This concerns to a large extent residential houses
in towns and villages as well as town-halls, churches, and other historic buildings. De
acordo com o próprio texto, existe, atualmente, uma necessidade premente
de ajustar as necessidades de uso de edifícios e monumentos históricos para
sua própria preservação. Porém, como reconstruir ou adaptar edifícios
antigos, sem descaracteriza-los? A reconstrução de monumentos destruídos
deve considerar o contexto contemporâneo à reconstrução, mas a inclusão
de elementos modernos, conforme indicado na proposta, esbarra na maior
parte das recomendações elaboradas desde a Carta de Atenas (1931): In the
restoration of monuments destroyed by war special care should be taken that the
historic development up to the present time can be traced. This applies to the
elements of monuments from different periods as well as other evidence of its fate.
This might include modern elements which have been added in a responsible
manner. The complete reconstruction of severely damaged monuments must be
regarded as an exceptional circumstance which is justified only for special reasons
resulting from the destruction of a monument of great significance by war. Such a

339
reconstruction must be based on reliable documentation of its condition before
destruction. A interferência de construções adjacentes ou elementos
estruturais modernos contrastantes com as estruturas originais tornam-se
conflitantes e impactantes quando concorrem com a visibilidade do elemento
original. O respeito à integridade, física e moral, de cada propriedade cultural
deve ser orientada de maneira a promover um diálogo consciente e
compreensível, entre o presente e o passado: More and more clearly, peoples
combine pride in monuments of their own history with interest in monuments of other
countries and with respect for cultural achievements, both past and present, of the
peoples represented by these monuments. Worldwide exchange of knowledge and
experience on characteristic features, historical evidence, and the beauty of the
cultural heritage, especially the monuments of every people and each ethnic and
social group, plays a constructive role in assuring equitable, peaceful co-existence
between peoples.

Na década de noventa, após a queda do muro de Berlim e um certo


resfriamento na chamada Guerra Fria, vários debates sobre a preservação do
Patrimônio Cultural em momentos de guerra foram realizados: a ratificação
das normas propostas na Convenção de 1954 e a adesão de novos países
ao acordo em 1996; a reunião de Stocolmo, em 1994, e o Comunicado Final
da NATO, em 1996. O documento central permanece sendo aquele
produzido em The Hague: The first years of WAC belonged to the historical
context mentioned above, but after the fall of the Berlin Wall in 1989 and once the
post-war framework vanished, these international agendas had to look for another
basis of legitimacy. One of the main questions, however, survives and could be
posed in terms of which kind of judgement are we looking for: a professional one? A
political one on the basis of the post-Berlin wall’s political correctness? An ethical
one? A political engaged one? A social engaged one? If these two latter were the
case, engaged to what? Or are we looking for ways to cope with the problem of the
(des) unity of science? But in Brace we went straight to an event inherited from
WAC-3 and which wanted to be judged: the demolition of the Babri Masjid Mosque in
Ayodhya and archaeologists’ responsibility in relation to situations like these. No less
meaningful was the issue of WAC´s responsibility in banning the debate during the
Congress, which had been understood as a step against its statutes (FUNARI, 1998,
p. 1).

340
Em junho de 1994, em Stocolmo, ocorreu um encontro internacional
cujo tema de trabalho foi: A Informação como um instrumento para a
Proteção contra danos provocados pelas guerras em Propriedades Culturais.
Ao constatar o aumento de conflitos étnicos, raciais e religiosos em muitos
países e, muitas vezes, o desrespeito ao acordo de 1954, os especialistas
apontam a necessidade de manter os programas educacionais iniciados pelo
Conselho da Europa e a convicção de que o uso de todos os mecanismos de
divulgação disponíveis – jornais, televisão, internet – pode auxiliar no
combate às ações deliberadas de destruição do Patrimônio Cultural. Nos
conflitos armados ou nos projetos religiosos baseados na intolerância, a
destruição de obras e monumentos faz parte da demonstração de força, da
deploração e menosprezo para com a outra cultura e, além disso, retira os
vínculos simbólicos e físicos que exteriorizam a legitimidade de permanência
de uma determinada cultura em um espaço geográfico específico: The
meeting express its conviction that the deliberate destruction in both international and
non-international armed conflicts of the cultural heritage is but one part of a strategy
of domination through destruction of self-esteem by torture, rape, expulsion and
extinction of its members. The destruction of historic records, monuments and
memories serves furthermore the purpose of suppressing all that bears witness that
the threatened people were ever living in the area.

A destruição do Patrimônio Cultural vista sob a ótica da destruição da


identidade de povos subjugados e, portanto, a incapacidade desses povos
reclamarem seus direitos sobre a terra, a partir da destruição das evidências
físicas sobre sua história e sua memória, suas tradições e sua cultura, parece
ser, pela primeira vez, reportada em um documento oficial: a destruição das
propriedades culturais passa a ser vista como parte de uma estratégia de
eliminação de grupos étnicos. Partindo dessa observação, os especialistas
apontam a necessidade de algumas ações específicas em relação aos bens
patrimoniais:

a) Uma ação preventiva em áreas reconhecidas como lugares de risco,


envolvendo tanto a educação quanto o registro dos bens culturais da
região;

341
b) Promoção de encontros com autoridades locais, governo, militares e
agentes culturais, inclusive jornalistas, para conscientização em
relação ao acordos internacionais vigentes e sua divulgação;

c) Formação de grupos de observadores que possam ir às áreas de


conflito e verificar o cumprimento dos acordos;

d) Alimentação constante da World Heritage in Risk List;

e) Estratégias de divulgação pela mídia dos Bens Culturais destruídos,


danificados, roubados, transportados ilicitamente ou que tenham
sofrido qualquer ação que contrarie a Convenção de Hague. In times of
conflict it is of vital importance that international opinion access to rapid and
accurate information on any violation to the cultural heritage;

f) As forças de paz da ONU devem ser treinadas para a proteção de


propriedades culturais, bem como a notificação de problemas
concernentes ao Patrimônio Cultural, natural ou histórico.

Como decorrência desse encontro, há sete anos atrás os especialistas


da área apontaram para os problemas que estavam ocorrendo no
Afeganistão, em relação à intolerância religiosa dos líderes que governavam
o país. Apesar do acordo firmado em 1999, com sua inclusão na lista de
Hague, em 2001, por ocasião da destruição de esculturas budistas milenares,
o ICOMOS divulgou via internet a seguinte nota, intitulada Safe the Cultural
Heritage of Alfghanistan:

ICOMOS (International Council on Monuments and Sites) and ICOM


(International Council of Museums) learned with great shock of the new decree
issued by the Taliban leadership of Mullah Mohammad Omar ordering the systematic
destruction of all statues in the country. This decision breaks the commitment made
by the Taliban leadership in 1999 to protect all cultural heritage in Afghanistan and in
particular the giant Buddha figures at Bamiyan. Adding to the dishonor of breaking a
commitment to preserve the ancient and diverse heritage of Afghanistan as part of
that of the whole of mankind, such an act of destruction would be a total cultural
catastrophe. It would remain written in the pages of history next to the most infamous
acts of barbarity.
For many years, ICOM has alerted the world on illicit trade in cultural objects
from Afghanistan. ICOMOS, in its 2000 World Report on monuments and sites in
danger, pointed out in detail the dangers to cultural heritage in Afghanistan, in
particular the pre-islamic figures of the Buddha in Bamiyan. This decree of Mollah
Mohammad Omar confirms the imminence of this danger. As world-wide non-

342
governmental organizations, ICOMOS and ICOM call on all people, governments,
International Organizations and associations to take immediate action to prevent this
cultural catastrophe from happening. A dialogue should be established with the
Taliban leaders to ensure adequate protection of all Afghan heritage, whether pre-
islamic or islamic. This is a matter of the highest importance and the greatest
emergency.

Acordos são quebrados em menos de dois anos e o descrédito parece


ser a tônica quando o assunto é preservar propriedades culturais em áreas
de conflito. Como preservar pedras, se nem mesmo crianças, velhos,
mulheres, civis e doentes são poupados? Mesmo assim, observadores se
arriscam em territórios minados e as pedras podem significar os únicos
vestígios dos direitos de um povo sobre um lugar.

Em 1949 foi criada a Organização dos Tratados do Atlântico Norte – a


NATO – cuja “Sociedade para a Paz” (Partnership for Peace) promoveu, por
iniciativa do governo polonês, uma Conferência em junho de 1996 para
abordar o problema da proteção do Patrimônio Cultural em momentos de
guerra. Participaram do evento quinze países, incluindo Croácia, Estônia e
Lituânia. Centrando as discussões nos instrumentos legais e nas
experiências dos países presentes, inclusive a Polônia invadida na Segunda
Guerra, de acordo com as plenárias os debatedores desenvolveram um
documento para apoiar a UNESCO, a ONU e a NATO em relação às
diretrizes que deveriam ser traçadas com o intuito de fazer com que os
acordos firmados fossem cumpridos.

O documento de Hague, quase cinqüenta anos depois, permanece


atual e sem necessidade de um maior tratamento no que diz respeito à
abordagem ética, conceitual e prática. O problema maior tem sido forçar as
partes, os Estados que assinaram o documento, a cumprirem as orientações
quando em conflitos armados. A falta de esclarecimento, dos governos, dos
agentes culturais, da população e do próprio exército tem sido apontada
como uma das maiores falhas para o atendimento das normas. Quantos
soldados conhecem efetivamente os emblemas de identificação? Se
conhecem, quanto são treinados a evitar conflitos ou armamento pesado
próximo desses sítios, prédio e monumentos? Até que ponto as

343
“necessidades militares” devem ser contidas em relação às propriedades
culturais?

Em relação à terminologia “conflitos armados”, a noção deve ser


estendida não apenas às guerras de ocupação, mas aos embates internos,
guerras civis, conflitos étnicos e religiosos e, ultimamente, as guerrilhas
urbanas resultantes do tráfico de drogas, miséria e exclusão social. Os
mecanismos para proteção da propriedade cultural devem ser aplicados
também nesses casos. Esta constatação remete ao problema que muitos
agentes culturais têm em grandes centros urbanos: quantas vezes
monumentos e edifícios públicos servem de abrigo para mendigos ou alvo
para traficantes, sendo danificado pelos restos de comida, urina e
excrementos que são depositados sobre eles, além das pichações. Será que
o emblema azul de Hague seria respeitado nessas condições? Do mesmo
modo, em momentos de guerra, será possível bombardear uma cidade sem
destruir suas casas, seus monumentos, museus e centros históricos? A
inclusão do conceito de distância mínima de separação entre as operações
militares para com as propriedades culturais, prevista no parágrafo terceiro,
parece querer conferir racionalidade à mais irracional prática humana. A
inclusão de símbolos topográficos específicos em mapas para a demarcação
das áreas protegidas, por sua vez, associado ao registro de bens
patrimoniais culturais em áreas de risco, pode ser um instrumento de apoio
nos processos e enquanto testemunho de acordos violados: the willful
damaging or destruction of cultural property during military operations in violation of
the Hague Convention of 1954 should be recognized as a war crime subject to
international and states' tribunals. The conference also recognized the need for
improved mechanisms for the return of cultural properties taken in violation of
international law. Julgamento de crimes e criminosos de guerra pode coibir as
ações futuras nesse sentido. Como resultante do encontro, além dos
indicativos acima citados, os proponentes indicam:

Participants of the conference expressed their support for the "Appeal for
International Aid for Croatian and Bosnia-Herzegovina Monuments Destroyed During
the War" issued by the European Conference of Ministers responsible for cultural
heritage on 31 May 1996, in Helsinki.

344
Participants supported the proposal by the Republic of Poland for the
establishment, under the patronage of UNESCO, an international center for the
training of civilian and armed forces personnel for the protection of cultural heritage
in the context of armed conflicts and all emergency situations.
Participants requested that the papers and proceedings of the conference at
least be published in English and widely distributed to organizations in the fields of
cultural property conservation, civil defense and armed forces.

Na entrada do terceiro milênio, cinqüenta e seis anos após a Segunda


Guerra Mundial – a grande guerra do século vinte –, o comportamento
“civilizado” em momentos de conflitos armados parece distante de se efetivar.
No entanto, as discussões são importantes e, mais ainda, mecanismos que
comprovem a existência de bens culturais de minorias étnicas, religiosas ou
políticas e que, desse modo, sejam de alguma forma protegidas, torna-se
indispensável em um contexto político baseado na xenofobia, na intolerância
e no racismo. Como colocado na introdução deste trabalho, tentamos ao
menos olhar para os documentos propostos e perceber sua inserção na
construção social de uma realidade, suas perspectivas, seus avanços e quais
seus limites. Os limites maiores têm sido a implantação efetiva das ações
propostas: o registro inter-americano de propriedade cultural, proposto em
1935, nunca foi elaborado; não houve nenhuma sanção contra as forças
armadas do comando sérvio por ocasião dos danos provocados nos
monumentos croatas; a UNESCO pouco pode fazer por ocasião da
destruição das imagens milenares budistas no Afeganistão; não existem
mapas ou listas oficiais de monumentos, museus e obras de importância
histórica/artística nacional em áreas de conflito. Divulgação, mobilização da
opinião pública e informação têm sido as armas mais freqüentes nas ações
internacionais e o envolvimento mais efetivo com intercâmbio de cientistas,
técnicos e grupos de apoio, além dos observadores que se dirigem aos locais
de conflito, tem proporcionado um reconhecimento imediato dos problemas
mais sérios, auxiliando na tomada de decisões referentes à ajuda financeira
ou ao deslocamento de profissionais disponíveis.

A manutenção constante da lista do Patrimônio Cultural da


Humanidade em Risco – World Heritage in Risk – foi uma das ações mais

345
significativas, proposta em 1972 e concluída em 1999, na batalha para a
preservação. Sua conclusão ou seu formato final, sabemos impossível de
alcançar: sempre haverá um conflito, um terremoto ou uma catástrofe que
implica na mobilização de esforços para a preservação. Poderíamos pensar
que a bomba de nêutrons ou as armas químicas, que destróem pessoas mas
preservam os edifícios, seria uma saída ao cumprimento dos acordos, porém,
monumentos são preservados para pessoas e a integridade física, moral e
cultural dos indivíduos são as metas que se pretende alcançar quando é
reivindicado a preservação do Patrimônio Cultural.

346
6.3. Mobilidade

It has been 28 years since the adoption by UNESCO of the


Convention on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit
Import, Export or Transfer of Ownership of Cultural Property. Fifteen
years have passed since the United States become the 55th nation
to join the convention, then the only major art-importing country to do
so. Ratification of the convention was the strongest U.S. response to
an international problem--the pillage of cultural objects from their
context and the illicit trade of such objects. It is still the strongest
national response, even though the problem has not diminished over
time. Rather, according to Interpol, it now ranks with drugs and arms
as one of the three most serious illicit international trading activities,
valued at approximately $4.5 billion annually. At the time of the
convention's ratification, the United States was the world's largest art
market. With recent figures from the Art Sales Index showing that
over 45 percent of the dollar value of the world's auction sales is
conducted in the United States, it still holds that distinction.

Maria Papageorge Kouroupas. Illicit Trade in Cultural Objects. GCI


Newsletter, Volume 13, N.1, 1998, p. 07.

Ficha Nº: 474

Tipo de bem: Escultura


Denominação: Nossa Senhora do Rosário
Data/Época: século XVII (?)
Dimensões
Altura: 80 cm

Materiais/Técnicas: madeira/policromia

Estado de conservação: regular

Marca e/ou inscrição: sem marca


Descrição: De frente. Braços flexionados, o
esquerdo em posição de segurar o menino
Jesus (que não mais existia), mão direita em
posição de segurar atributo. OBS: A altura
marcada é aproximada.

16. O Iphan está sistematizando as informações existentes em seus arquivos


sobre os bens culturais tombados, desaparecidos nas últimas décadas. Em
conjunto com a Polícia Federal/INTERPOL e o Conselho Internacional de
Museus, o Iphan desenvolve desde o ano de 1997 a campanha Luta Contra o
Tráfico Ilícito de Bens Culturais. Com este trabalho pretende devolver aos
lugares de origem as obras de arte furtadas ou desviadas de forma ilegal.
Crédito da foto e do texto: IPHAN

http://www.iphan.gov.br/bancodados/BENSPROCURADOS

347
As ações relacionadas à mobilidade envolvem atitudes positivas e
negativas em relação a um mesmo tema. O intercâmbio de objetos, obras de
arte e artefatos arqueológicos e etnográficos propicia o reconhecimento
histórico, artístico, intelectual e cultural de sociedades e povos. A vinda de
obras européias do início do século - em exposições que cultuam o fauvismo,
o expressionismo ou o cubismo - para museus do continente americano; a
mobilidade da exposição Brasil 500 Anos; bienais internacionais e exposições
itinerantes contribuem para a divulgação do conhecimento, das idéias, da
arte e da história da humanidade. Porém, voltando ao texto de Ashley Smith,
Let’s be honest!, as ações que envolvem a mobilidade de acervos são mais
complexas do que imaginamos: necessitam de formatação de aspectos
legais, como seguro de obras quando saem da instituição de origem, termos
de compromisso e regras fiscais de tributação aduaneira, importação e
exportação circunscritas às esferas nacionais e internacionais; demandam
infra-estrutura tecnológica e pessoal especializado imprescindível à
conservação preventiva dos objetos, cujos procedimentos remetem aos
cuidados desde a embalagem até retirada das peças de seus invólucros,
além da climatização, vistoria, manuseio e exposição do acervo fora da
instituição de origem; como também da mobilidade que ocorre sob a forma
da lei ou a irregular, que ocorre geralmente em áreas de conflito ou em
países pouco avançados nos procedimentos de catalogação, inventário e
formatação de leis de proteção.

O tráfico ilícito de propriedade cultural é uma prática oportunista que se


dirige, justamente, aos povos ou comunidades que vivem momentos de crise
política, social ou econômica e tornam-se vulneráveis à destruição, roubo,
compras ilegais ou exportação de obras e documentos, significando o
despojamento, a descaracterização e o aniquilamento, em muitos casos, do
Patrimônio Cultural dessa sociedade. A perda de objetos e obras de arte, em
última instância, implica na perda da memória, da história e da auto-estima,
forjada no reconhecimento de experiências culturais múltiplas, de um
determinado sistema de trocas simbólicas que perpassam as esferas do culto
e da construção histórica reproduzidos na estruturação das imagens, das

348
obras artísticas, dos artefatos arqueológicos ou etnográficos, dos objetos que
remetem ao passado.

Quanto aos parâmetros lícitos, a mobilidade de objetos artísticos por


ocasião de exposições temporárias e itinerantes tem sido incentivada por
vários governos e instituições. A OEA, a UNESCO e o ICOM consideram
essas exposições extremamente válidas no que concerne à divulgação das
culturas entre os povos. No entanto, todo conceito ou idéia resultante da
composição de exposições deve, em primeiro lugar, ter como parâmetro
fundamental à preservação daquilo que se pretende expor: não se trata de
ocultar a obra do público, mas preservá-la para futuras gerações. Qual a
vantagem de expor uma coleção por um mês em um ambiente sem controle
nenhum, se os danos provocados nessa exposição significarem o
aceleramento da degradação ou a destruição dessa mesma obra?

É comum, em instituições pelo mundo inteiro, que os diretores dos


museus assinem termos de compromisso ou afirmem a estabilidade do
ambiente apenas com o intuito de apresentarem uma exposição importante
ao grande público e, desse modo, ficarem em evidência no “mundo
intelectual da cultura”. Ashley-Smith afirma: What are the motivations for lying?
Is it necessary? Firstly an institutions may, for political reasons, misrepresent
conservation views on the physical stability and environmental requirements of an
object in order to deny the request for a loan. In these circumstances the proposed
relaxation of environmental parameters would not be deemed helpful. Lenders may
stipulate strict environmental requirements to suggest that they keep their collections
in ideal conditions. The borrower will promise to adhere to an impossible specification
encouraging the lender with the illusion that “We will be looking after your objects
with the same great care that se loaf after our own”. Thus both sides can preserve
the illusion and neither side can be accused of negligence (1994, p.3).

Além dessa “brincadeira de faz de conta”, muitas vezes, museus sérios


que efetivamente mantêm seu acervo dentro dos parâmetros da
Conservação Preventiva são vítimas de promessas de cuidados apenas para
receberem as exposições que um outro tanto almeja. O próprio Ashley-Smith
relata que os curadores do Museu do Kremlin afirmaram durante mais de

349
quinze anos que o frio russo não implicaria em degradação de obras de arte,
em função da baixa concentração de umidade do ar. Má fé ou despreparo, na
verdade, quem está no final desta cadeia de transações – regionais ou
internacionais – é o restaurador que é chamado de emergência para reparar
os danos provocados pelas infestações, desprendimentos de policromias por
variações climáticas ou manuseio por parte de pessoal não qualificado. No
final, a obra perde suas características originais, sua integridade ou diminui
sua vida útil em função de ações descontroladas.

No texto acima citado, o autor coloca que os parâmetros relacionados


ao controle de umidade, temperatura e iluminação, abordados nas obras
clássicas de Garry Thomson (1978, 1986); Gael de Guichen(1995) e o
recente trabalho de Stephan Michalski (1996) – Relative Humidity: a
discussion of Correct/Incorrect Values – ICOM-CC Preprints –, ainda estão
longe de uma conclusão final: as discussões e as pesquisas encontram-se
distantes de determinar os reais danos provocados pelas variações
ambientais sobre cada objeto em particular, procedente de um ambiente
específico e dirigido a outro ambiente específico. Entre 1992 e 1994, por
ocasião de um trabalho realizado na Coleção de Imaginária Sacra do Acervo
Mário de Andrade do IEB-USP, tivemos oportunidade – a coordenadora do
projeto, Profa. Beatriz Coelho, e eu - de presenciar os efeitos de mudanças
climáticas bruscas em esculturas policromadas: ao removermos algumas
peças do piso térreo para o laboratório de Conservação localizado no piso
superior, a variação desproporcional de umidade e temperatura entre os dois
ambientes fez com que as policromias de algumas peças se desprendessem.

De uma maneira geral, o que se está em jogo é calcular os riscos e os


benefícios de exposições itinerantes: the benefits of sending an object to an
exhibition elsewhere may be financial. They will certainly include a new and larger
audience appreciating that object and may include new discoveries brought about by
renewed interest or by comparison with other objects brought from others museums.
A large proportion of benefit is pleasure. For the public the pleasure of seeing
beautiful or famous things. For the scholar the pleasure of new insights. What is the
risk? Some objects are damaged when they are loaned. Most of this comes from bad

350
packing or handling. Occasionally there is catastrophic damage caused by
environment, usually a very large difference between the environments of lending
and borrowing conditions (ASHLEY-SMITH, 1995, p. 5).

Não se trata de impedir as exposições itinerantes, mas conscientizar


diretores, museólogos, curadores e couriers de que o investimento em
pessoal especializado em montagem, limpeza e controle das áreas
expositivas e de reserva; a construção de ambientes mais adequados; o
acompanhamento efetivo das obras quando fora das instituições de origem e
a contratação de firmas especializadas em embalagem e transporte de
acervo são indispensáveis à preservação do mesmo. O patrimônio existe
para o benefício das pessoas; as pessoas têm o direito de ter contato com os
acervos e os promotores dos eventos têm o dever de preservar para as
futuras gerações esse mesmo patrimônio.

No que diz respeito ao tráfico ilícito de objetos artísticos, comerciantes


especializados atuam de maneira semelhante aos traficantes de drogas e
armas, se aproveitando da miséria de alguns para alimentar a riqueza de
outros. Maria Papageorge Kouroupas alerta (1998, p. 2): Filmed documentation
shows Malian peasants shoveling the earth for Djenné terra-cottas to supply the
pipeline out of Africa to Europe and the United States. In an interview several years
ago in Vanity Fair magazine, the former owner of a major U.S. hockey team and a
founder of ancient coin trading partnerships admitted that the ancient hoards were
"'fresh'--that is, fresh out of the ground--stolen or illegally excavated and smuggled
out of Mediterranean countries such as Turkey and Italy." Not long ago, a tourist was
arrested in Athens for taking a chisel to the Parthenon to remove a keepsake.
Recently, too, several Roman-Byzantine mosaics, each weighing a ton, were sawed
and pried out of their original context in Syria; intended for the U.S. market, they
were shipped to Canada, where they were seized by authorities. Particularly troubling
was the ransacking of the Kabul Museum in Afghanistan and the selling off of its
treasures, many of which had been scientifically excavated. The stakes seem so high
and the gain so great that homicide, theft, bribery, fraud, and money laundering have
become crimes associated with the unauthorized movement of cultural property.

A dificuldade de controlar a saída de objetos culturais de países


subdesenvolvidos é proporcional à dificuldade de controle da entrada ilegal

351
desses mesmos objetos nos países desenvolvidos. Não significa que exista
uma conivência das autoridades, mas uma indiscutível falha no sistema que
controla não apenas o tráfico ilícito de objetos culturais, mas também o
tráfico de drogas e armas. O problema maior, nesse caso, é que associado
ao tráfico ilícito também estão associadas à coleta e a exploração ilegal,
utilizando uma população carente e mal esclarecida, que recorre às práticas
depredatórias, de furto e despojamento de seu próprio Patrimônio Cultural
em troca de quantias infinitamente menores do que o valor – capital e
simbólico – da obra, como uma forma de subsistência.

De acordo com Engin Özgen, PhD em Arqueologia Clássica e Diretor


Geral do Centro de Monumentos e Museus do Ministério da Cultura da
República da Turquia entre 1992 e 1996, o Patrimônio Cultural arqueológico,
histórico e arquitetural turco é constantemente ameaçado por práticas que
envolvem as próprias comunidades locais: The increased demand by the
international art market for Turkish antiquities ignited the organized looting and
destruction of the archaeological record of our country, just as is the case in all art-
rich countries, especially in the Mediterranean region. Turkey's vast archaeological
heritage is threatened by local people who act as agents of art dealers. According to
the Turkish Financial Police and gendarmerie, there are over one thousand
archaeology and art-related crimes yearly. You can easily guess the possible number
of unrecorded cases. A nation's archaeological property is essential to gaining a
correct understanding of its historical past and culture, and is the foundation upon
which its culture can grow and advance. It is crucial, therefore, to properly preserve it
and to make it accessible to the public. The archaeological record, on the other hand,
is also very important. We have to maintain its integrity if we are to study it and
understand it. (1998, s.p.).

Os problemas internos da Turquia, com a devastação de seu


patrimônio arqueológico, são semelhantes aos problemas que ocorrem na
Grécia, no Egito, no México ou Brasil: o comércio ilegal de fósseis, artefatos e
vestígios arqueológicos significa tanto a perda dos vestígios culturais que
determinam a identidade de um povo como a impossibilidade do
desenvolvimento de pesquisas científicas apoiadas nesses testemunhos que
se perdem nos mercados de antiguidades e nas estantes daqueles que

352
adquiriram esses objetos. O cerne da questão é que, uma vez deslocados de
sua área de origem e isolados dos pesquisadores que lhe confeririam voz, os
testemunhos do passado tornam-se mudos e, destituídos de um sentido
histórico e cultural, não passam de pedras, madeira ou vidro; perdem seu
significado e seu valor real: o valor de um objeto é proporcional ao valor
cultural, à quantidade de luz que lança sobre a construção histórica, artística,
social ou filosófica de uma determinada sociedade.

Ao redor desse assunto específico, foram produzidos alguns


documentos oficiais:

1. Recomendação sobre mecanismos de Proibição e Prevenção contra a


Importação Ilícita, Exportação e Transferência de Propriedade Cultural
– Paris, novembro de 1964.

2. Convenção sobre mecanismos de Proibição e Prevenção contra a


Importação Ilícita, Exportação e Transferência de Propriedade Cultural
– Paris, novembro de 1970.

3. Recomendações Concernentes ao Intercâmbio Internacional de


Propriedade Cultural – Nairobi, novembro de 1976.

4. Recomendações para a Proteção de Bens Culturais Móveis – Paris,


novembro de 1978.

5. Charter of Courmayeur – Itália, junho de 1992.

6. Resolution on the Return or Restitution of Cultural Property to the


Countries of Origin – Paris, novembro de 1993.

7. Unidroit Convention on Stolen or Illegally Exported Cultural Objects –


Roma, junho de 1995.

Apesar desses documentos específicos, o tráfico ilícito pode ser


considerado um prolongamento do tópico anterior, pois são nos momentos
de conflitos – internos e externos – que o oportunismo dessas transações
ilegais ocorrem; além do mais, a prática da pilhagem é tão antiga quanto à
prática da guerra, sancionada pelos comandantes romanos, mongóis ou
espanhóis. The stealing of art in bulk is a crime for which history provides numerous

353
examples, the most notorious being Napoleon's collection of loot during his
campaigns or Hitler's systematic acquisition of "Aryan" artworks for his showpiece
museum at Linz. But the motivation for these confirmations of the old adage "to the
victor go the spoils" differs markedly from the impetus behind today's eruption of art
theft--namely, filthy lucre (JACKSON, 1998, p. 8). Abordando este tópico
específico no capítulo terceiro das disposições reguladoras, a Convenção de
Hague indica que objetos que sejam transferidos, por motivo de segurança
ou reparo, são imunes e não devem ser confiscados, sendo os delegados
nomeados para a Força de Proteção os responsáveis imediatos nas questões
que envolvem a comunicação, o registro e a proteção da operação. Uma vez
que o Registro Internacional de Propriedade Cultural sob Proteção Especial,
recomendado em 1954, ainda não foi elaborado, a World Heritage List e a
World Heritage in Risk têm cumprido o papel de um documento oficial de
reconhecimento internacional. Uma vez transportado para outros territórios,
por medida de segurança, os Estados receptores são considerados apenas
depositários dos bens culturais, assumindo o compromisso de retorna-los aos
locais de origem quando for seguro e protege-los durante sua estadia.O
problema que envolve o tráfico ilícito em situações de conflitos armados é
que a fiscalização torna-se quase impossível e os roubos, saques e
destruições são inevitáveis.

Em 1964, na décima terceira sessão da Conferência Geral da


UNESCO realizada em Paris, foi elaborado o primeiro documento direcionado
ao tráfico ilícito, considerando que estas práticas podem ocorrer, muitas
vezes, com a própria conivência das autoridades e governos que permitem o
trânsito livre de objetos e fragmentos artísticos, histórico e arqueológico, tanto
na saída quanto na entrada dos países. Desse modo, cada Estado-membro
da UNESCO, ao assinar esse documento, se comprometeria e adotar os
critérios estipulados nas Recomendações. Dentro dos princípios gerais,
recomenda-se aos Estados a adoção de mecanismos legais e administrativos
de controle da importação e exportação de propriedade cultural: To ensure the
protection of its cultural heritage against all dangers of impoverishment, each
Member State should take appropriate steps to exrt effective control over the export

354
of cultural property as defined in paragraphs 1 and 2. A definição de propriedade
cultural, já discutida nos tópicos anteriores, remete aos bens móveis e
imóveis (partes ou todo) de importância cultural ao país de origem,
englobando arte e arquitetura, manuscritos e outras propriedades artísticas,
históricas ou arqueológicas; artefatos etnográficos; espécies de flora e fauna;
coleções científicas e importantes coleções arquivísticas, incluindo arquivos
musicais.

Os inventários nacionais – de museus, monumentos e institutos


artísticos e científicos –, são indispensáveis à aplicação das normas
propostas, sendo necessário que os países estabeleçam serviços nacionais
de proteção à propriedade cultural, composto por um corpo administrativo e
operacional capaz de implementar programas de cadastramento,
inventariado, tombamento e de formalização de dispositivos legais
necessários à proteção do patrimônio de cada país. De acordo com o
documento, esses organismos têm por obrigação:

i) Recognition of the cultural property existing within the territory of the State,
and, where appropriate, the establishment and maintenance of a national inventory
of such property, in accordance with the provisions of paragraph 10;

ii) Cooperation with other competent bodies in the control of the export, import
and transfer of ownership of cultural property, in accordance with the provisions of
Section II above; the control of exports would be considerably facilitated if items of
cultural property were accompanied, at the time of export, by an appropriate
certificate in which the exporting State would certify that the export of the cultural
property is authorized. In case of doubt regarding the legality of the export, the
institution entrusted with the protection of cultural property should address itself to
the competent institution with a view to confirming the legality of the export .

A transferência dos direitos à propriedade não é discutida formalmente


nesse documento, sempre sendo qualificada no mesmo patamar que as
questões do tráfico, da importação e da exportação ilícita. Na convenção
realizada em 1970, a coibição dessas ações por parte dos Estados-membros
é considerada, na abertura do documento, como uma obrigação “moral” de
cada país, baseado no respeito ao Patrimônio Cultural de cada nação.

355
Reconhecendo que as instituições culturais, museus, livrarias e arquivos
compartilham dessa obrigação, as mesmas devem acatar os dispositivos
declarados no documento. Em relação ao documento anterior (1964), o texto
define mais claramente os elementos considerados bens culturais, conforme
descrito no artigo primeiro:

a) Rare collections and specimens of fauna, flora, minerals and anatomy,


and objects of palaeontological interest;
(b) property relating to history, including the history of science and
technology and military and social history, to the life of national leaders,
thinkers, scientists and artists and to events of national importance;
(c) products of archaeological excavations (including regular and clandestine)
or of archaeological discoveries;
(d) elements of artistic or historical monuments or archaeological sites which
have been dismembered;
(e) antiquities more than one hundred years old, such as inscriptions, coins
and engraved seals;
(f) objects of ethnological interest;
(g) property of artistic interest, such as:
(i) pictures, paintings and drawings produced entirely by hand on any support
and in any material (excluding industrial designs and manufactured articles
decorated by hand);
(ii) original works of statuary art and sculpture in any material;
(iii) original engravings, prints and lithographs;
(iv) original artistic assemblages and montages in any material;
(h) rare manuscripts and incunabula, old books, documents and publications
of special interest (historical, artistic, scientific, literary, etc.) singly or in
collections
(i) postage, revenue and similar stamps, singly or in collections;
(j) archives, including sound, photographic and cinematographic archives;
(k) articles of furniture more than one hundred years old and old musical
instruments.
Conforme discutimos no tópico relacionado aos Bens Móveis, o
problema do artesanato está no limite dessa terminologia em relação a
determinadas obras: a arte do ceramista português Antônio Poteiro ou as
miniaturas do artesão nordestino Mestre Vitalino passam a responder aos
critérios de identidade e história, transformando-se, portanto, em bens
culturais, patrimônio nacional. Da mesma maneira que certas máscaras
africanas ou tapetes persas que remontam técnicas perdidas ou possuem

356
ligação com a história e a cultura dos países de origem.

Para além do comércio ilegal, um grande problema que se enfrenta


hoje é a transferência do direito à propriedade a partir de uma compra legal:
qual o direito de um empresário japonês ser enterrado com uma obra de Van
Gogh? O direito material à obra corresponde ao seu direito intelectual? A
autonomia que o valor capital exerce sobre o Patrimônio Cultural pode
sobredeterminar o direito e o dever de sua existência? Nenhum leilão obriga
àqueles que adquirem bens culturais a assinar termos de compromisso de
uso ou conservação. Nos documentos da UNESCO, existe um Código de
Éticas para Merchands, o qual, porém, não dispõem de contraponto legal nas
formalizações legislativas.

O comércio de propriedade cultural, como atividade capitalista que


responde às leis de mercado, incentiva a depredação de monumentos, o
roubo, as escavações irregulares e as ações ilícitas de exportação e
importação, bem como a introdução de réplicas e obras falsas nesse mesmo
mercado. O artigo quinto das normas produzidas na Convenção de 1970
afirma que uma legislação e um corpo institucional de peso pode evitar a
transferência, a evasão, a mutilação e a saída de obras de arte de seu
próprio país:

To ensure the protection of their cultural property against illicit import, export
and transfer of ownership, the States Parties to this Convention undertake, as
appropriate for each country, to set up within their territories one or more national
services, where such services do not already exist, for the protection of the cultural
heritage, with a qualified staff sufficient in number for the effective carrying out of the
following functions:
(a) contributing to the formation of draft laws and regulations designed to
secure the protection of the cultural heritage and particularly prevention of the illicit
import, export and transfer of ownership of important cultural property;
(b) establishing and keeping up to date, on the basis of a national inventory
of protected property, a list of important public and private cultural property whose
export would constitute an appreciable impoverishment of the national cultural
heritage;
(c) promoting the development or the establishment of scientific and technical
institutions (museums, libraries, archives, laboratories, workshop) required to ensure
the preservation and presentation of cultural property;
(d) organizing the supervision of archaeological excavations, ensuring the
preservation "in situ" of certain cultural property, and protecting certain areas

357
reserved for future archaeological research;
(e) establishing, for the benefit of those concerned (curators, collectors,
antique dealers, etc.) rules in conformity with the ethical principles set forth in this
Convention; and taking steps to ensure the observance of those rules;
(f) taking educational measures to stimulate and develop respect for the
cultural heritage of all States, and spreading knowledge of the provisions of this
Convention;
(g) seeing that appropriate publicity is given to the disappearance of any
items of cultural property.
Nos vinte e seis artigos do documento, as ações concernentes à
vigilância, educação e informação são consideradas prioritárias nas ações:
inventário sem vigilância não evita o roubo; vigilância sem inventário não
consegue agir; ambas sem a educação e a conscientização do povo são
inoperantes. O impacto do texto apresentado, modificou a prática
amadorística de coletar souvenirs ou objetos para uso próprio, utilizada por
profissionais que tinham acesso ilimitado às fontes de pesquisa: Many
archaeologists of those years built up guilt-free collections of antiquities “for teaching
purposes.” They consorted freely with local amateurs, who, in turn, sought out
archaeologists for advice and openly shared their collections and information about
newly discovered sites. Wealthy, well-educated, and passionately involved collectors
often served as patrons for archaeologists, providing access to their private
collections and funding for fieldwork and travel. Ford Foundation grants paid
fieldwork expenses for graduate students. Life was good. Then came the 1970
UNESCO Convention on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit Import
and Transfer of Ownership of Cultural Property. The convention brought archaeology
into public and professional discussions in a different context. A host of new phrases
entered our vocabularies: cultural property, clandestine excavations, illicit export,
country of origin, states parties, and the like. The national antiquities laws of the
countries we worked in, which had seemed simple manifestations of bureaucratic red
tape, took on larger meaning. Our research objects were publicly defined as “cultural
heritage” whose “true value can be appreciated only in relation to the fullest
information regarding its origins, history, and traditional setting” (UNESCO
Convention preamble). The convention told us that looting –- actually, it used the
even stronger term pillage –- is a direct result of the market demand for antiquities by
dealers and collectors. The battle lines for the coming decades were drawn (KAREN
D. VITELLI, 2000, p. 12).

358
Se os documentos de 1964 e 1970 apontam para os problemas
causados pela circulação ilegal de bens culturais, em 1976 o documento
gerado na décima nona sessão da Conferência Geral da UNESCO, realizada
em Nairobi, dirige-se ao Intercâmbio Internacional de Propriedades Cultural a
partir de bases legais, recalling that cultural property constitutes a basic elemnt of
civilization and national culture; considering that the extension and promotion of
cultural exchanges directed towards a fuller mutual knowledge of achievements in
various fields of culture, will contribute to the enrichment of the cultures of other
nations making up the cultural heritage of all mankind. Em função dessas e de
outras prerrogativas, a possibilidade de intercâmbio de bens culturais deve
ser incentivada. A transferência de propriedade, sob a forma da lei, torna-se
possível a partir de empréstimo, doações, venda ou depósito temporário de
acervos específicos, desde que firmado acordos que não infrinjam as normas
legais de cada país.

Além do intercâmbio de bens culturais, o intercâmbio institucional de


cientistas e pesquisadores e a abertura de instituições artísticas e científicas
para a livre pesquisa deve ser uma prática considerada importante, desde
que bem regulamentada. Arqueólogos, etnólogos, historiadores e curadores
não podem remover artefatos, objetos ou obras dos campos de pesquisa,
sem o conhecimento e a autorização das autoridades competentes.
Compromisso ético e moral associado ao conhecimento das normas legais
nem sempre faz parte dos currículos que formam os pesquisadores.

Em relação aos compromissos institucionais para com as obras


intercambiadas – em exposições temporárias, por empréstimo, doação ou
aquisição – apenas o parágrafo sétimo recomenda: Exchange agreements
should include na indication that the recipient institution is prepared to take all
necessary measures of conservation for the proper protection of the cultural property
involved. Como visto no texto de Ashley-Smith, a normativa vaga também
esbarra uma certa falta de preparo de algumas instituições em torno do tema
da Conservação Preventiva. A cooperação internacional, incentivada como
uma forma de divulgação da cultura de cada povo e, portanto, instrumento
educativo na construção do respeito e da compreensão mútua entre culturas

359
distintas, deve ocorrer a partir de parâmetros legais e operacionais que
protejam tanto o direito à propriedade quanto à integridade física dos
acervos.

Em 1978, na vigésima sessão da Conferência Geral da UNESCO,


realizada em Paris, as recomendações concernentes à proteção do
Patrimônio Cultural Móvel utilizou como base para o estabelecimento das
recomendações os documentos produzidos na Convenção de Hague (1954);
os Princípios Internacionais da Escavação Arqueológica (1956), as
Recomendações e a Convenção específicas para a Prevenção e Proibição
do Tráfico Ilícito (1964 e 1970) e um documento denominado The Most
Effective Means of Rendering Museums Accessible to Everyone (1960). As
definições de patrimônio móvel mantiveram-se dentro do contexto
estabelecido nos documentos anteriores, utilizando principalmente os
documentos gerados em 1972 sobre As Recomendações relativas à
Proteção do patrimônio Natural e Cultural – nos níveis nacionais e
internacionais.

Dentro das recomendações específicas, questões relativas às


coleções particulares aparecem pela primeira vez: o incentivo à catalogação
de acervos pessoais e à gratificação fiscal para as doações em instituições
públicas, artísticas ou científicas é medidas que visam cuidar dos bens
culturais móveis. A necessidade de um corpo oficial que controle as ações
dos particulares é apontada como uma alternativa à fiscalização das práticas
alheias à esfera pública ou de instituições privadas de caráter específico,
buscando coibir as atividades clandestinas, o mau uso ou cuidado do acervo
sob a posse de particulares, sendo especificado nesse item a obrigatoriedade
da proteção contra fogo.

Propriedades culturais situadas em edifícios religiosos ou sítios


arqueológicos devem permanecer nos locais de origem, desde que não
corram risco de roubo ou depredação, sendo recomendado aos governos dos
países providenciar o suporte financeiro e de pessoal especializado para a
manutenção desses locais. Instituições de pesquisa e museus, responsáveis

360
pelos cuidados com o patrimônio desses locais são consideradas alternativas
viáveis ao controle do acesso público e à valorização desses acervos pela
própria comunidade.

O intercâmbio internacional, abordado no parágrafo dezesseis, é um


dos primeiros documentos a salientar os cuidados que as instituições devem
ter por ocasião de empréstimos e recepção de bens móveis em exposições
temporárias ou para pesquisa científica: since movable cultural property is
particularly exposed, during transport and temporary exhibition, to risks of damage
which can arise from inept handling, faulty packaging, poor conditions during
temporary storage or climatic changes, as well as inadequate reception
arrangements, special measures of protection are required. In the case of
international exchanges Member States should take the necessary measures to
ensure that appropriate conditions of protection an care during transport and
exhibition.

No final da década de setenta e nas décadas de oitenta e noventa, as


pesquisas na área de conservação preventiva tornam-se mais freqüentes: o
lema Conservar para não Restaurar é a tônica das publicações
especializadas e que culminam com a obra de Thomson Climate Control
policy, publicada em Zagreb pelo ICOM em 1978 e The Museum Environment
de 1986. Apesar das recomendações específicas relativas à Conservação
Preventiva dos acervos em trânsito serem pontuadas no documento como
indispensáveis à prevenção de danos, a simplificação administrativa
relacionada às leis que permitem a circulação de bens culturais entre
instituições culturais é solicitada como uma norma de incentivo ao
intercâmbio internacional e regional.

Há pouco tempo atrás, o artista plástico Frans Krajcberg teve uma


exposição presa no porto de Santos, sendo cobrado do artista uma multa
desproporcional em função da permanência das obras nos depósitos
portuários, devido à própria burocracia alfandegária que demorou a liberar a
carga que havia saído do país para uma mostra internacional. Apenas com a
intervenção do próprio presidente da República, sensibilizado pela
mobilização da opinião pública, que foi possível devolver as obras ao artista

361
sem que este tivesse que pagar multas exorbitantes. A burocracia e a
ineficiência de alguns setores públicos significam, em vários países –
desenvolvidos ou subdesenvolvidos – a corrupção, a cobrança de propinas e,
em último caso, a facilidade do tráfico ilícito de propriedades culturais.

Em junho de 1992, em Courmayeur, Vale de Aosta, na Itália, foi


realizado um encontro específico para discutir as ações nacionais e
internacionais contra o tráfico ilícito de bens culturais. O texto resultante
desse encontro utiliza pela primeira vez da noção de “atividades criminais”
para classificar os atos que resultam na transferência ilegal de um país a
outro de Patrimônio Cultural. Conforme explicitado, o encontro pretende,
através de diretrizes propostas pelas discussões, auxiliar os Governos e as
organizações na contenção da evasão de bens culturais de seus países de
origem. Além do mais, pretende contribuir à discussão sobre roubou e
exportação ilegal de propriedade cultural que, naquela época, preparava as
bases de uma instituição de peso maior a UNIDROIT – Instituto Internacional
para a Unificação do Direito Privado.

Como medida efetiva para o controle do tráfico internacional, e


partindo da cooperação internacional, pela primeira vez intituições
especializadas são chamadas a contribuir: in view of the need for international
co-operation to cope with the illicit trade with cultural objects, Governments shoul
estabilish focal points that would handle, in close collaboration whit
ICPO/INTERPOL, all matters related with the transnational trafic with art objects and
items belonging to the cultural patrimony, including requests for international co-
operation.

A ICPO-INTERPOL – International Criminal Police Organization – é


uma organização intergovernamental, composta por cento e setenta e sete
países membros, que se dedica a solucionar os delitos e crimes
considerados de abrangência internacional. Utilizando a cooperação entre as
polícias de cada nação, estabelece uma rede de comunicações capaz de
auxiliar na prevenção e na apreensão de objetos culturais roubados. Desde
1947, sob intermédio da UNESCO, dispõe de um programa de ações
específicas contra o tráfico ilícito de obras de arte e antiguidades.

362
Para que as agências de investigação internacionais pudessem agir de
maneira eficaz, os governos de cada país deveriam promover um sistema de
inventários detalhados e extensivos relacionado ao Patrimônio Cultural. Com
o intuito de promover a aplicação da Convenção de 1970, a UNESCO, a
INTERPOL e o ICOM promoveram oficinas regionais de treinamento: em
fevereiro de 1992 ocorreu na Tailândia; em junho do mesmo ano, no
Camboja e em março de 1993 na Hungria; em 1994, um encontro sobre o
tema, em Mali, reuniu os países Oeste-Africanos e em 1996, na República
Democrática do Congo, os países da África Central. Em 1995, no Equador,
discussões relacionadas ao desaparecimento de propriedade cultural Latino
Americana promoveu uma série de medidas, entre elas a publicação do
catálogo One Hundred Missing Objects – LA.

O tráfico ilícito de objetos artístico, circunscrito na mesma esfera que o


tráfico de drogas ou o contrabando e armas, envolve uma intricada rede de
relações clandestinas, cujos caminhos se entrecruzam e convergem às
mesmas bases criminais: While banking authorities are ever more vigilant in
tracing the movement of funds and cash, the art thief can move art and antiques with
relative ease across international borders. Those involved in terrorism and drug-
related crimes now use art as a currency, replacing diamonds and bullion. It came as
no surprise to learn that one of the underworld characters behind the great 1986 theft
of paintings from the Irish home of Sir Alfred Beit wanted to set himself up as a major
cocaine importer into the British Isles, and that one of the subsequent handlers of the
paintings was a member of an outlawed paramilitary group in Northern Ireland. Art
theft is regarded as the third-most-lucrative international crime, after drugs and arms
running lucre (JACKSON, 1998, p.8).

No Brasil, algumas iniciativas têm se encaminhado na direção dessas


propostas: o IPHAN produziu um sistema de documentação que pode ser
acessado via internet com a listagem de peças roubadas de alguns estados
brasileiros; Fundações de Amparo à Pesquisa de cada Estado e Fundações
Privadas têm financiado projetos de inventariado em igrejas e instituições
culturais; organizações não governamentais e entidades de classe têm
procurado sistematizar e orientar os museus em relação à formalização da

363
documentação, cadastramento e inventariado de acervos; a CPC-USP
publicou em 1997 a segunda edição – revisada e ampliada – do Guia de
Museus Brasileiros, formalizando e unificando a partir de uma banco de
dados próprio, constantemente alimentado por informações que chegam dos
próprios museus, o perfil museológico no Brasil.

A divulgação de informações é apontada no documento como a arma


principal para o controle e a recuperação de obras roubadas; o Registro de
Obras Perdidas (Art Loss Register) é colocado como um instrumento eficaz e
a UNESCO, em parceria com o ICOM, se propões a assistir os países que
solicitarem na preparação de inventários e legislação apropriada, bem como
treinamento de pessoal em relação aos crimes contra a propriedade cultural,
Como resultante desta orientação, foi publicada a série One Hundred Missing
Objects, que em 1993 e 1994 abordou o desaparecimento de objetos
africanos – Looting in Africa – e em 1997 o saque nos territórios Latino-
Americanos – Looting in Latin America. This publication provides a
comprehensive survey of the types of plunder that take place in Latin America,
affecting museums, churches, communities and archaeological sites (ICOM, 1997, p.
8).

A USIA – United States Information Agency –, formada a partir da Lei


de Aplicação da Convenção sobre Bens Culturais, habilitou os Estados
Unidos a aplicar as diretrizes descritas na Convenção de 1970, sobre o
Tráfico Ilícito, em relação aos direcionamentos das medidas necessárias à
contenção de transferência ilegal de propriedades culturais. Estados Unidos,
como Estad Parte de la Convención, puede imponer restricciones a las
importaciones de ciertas categorías de material arqueológico y etnológico, cuyo
saqueo pone en peligro el patrimonio cultural de las naciones. Para que un país
pueda gozar de dicha protección, debe ser Estado Parte en la Convención y
presentar a Estados Unidos una solicitud para la obtención de ésta. Las pautas para
la elaboración de la solicitud pueden conseguirse dirigiéndose a la USIA (ICOM,
1997, p. 141).

Como conseqüência da dificuldade de controlar o tráfico ilícito de


objetos culturais, em novembro de 1993, dando prosseguimento aos debates

364
em torno na UNIDROIT, a temática da Assembléia Geral da UNESCO foi: O
retorno ou a restituição de propriedade privada ao seu país de origem. O
texto estabelece:

1. Commends the United Nations Educational, Scientific and Cultural


Organization and the Intergovernmental Committee for Promoting the Return of
Cultural Property to Its Countries of Origin or Its Restitution in Case of Illicit
Appropriation on the work they have accomplished, in particular through the
promotion of bilateral negotiations, for the return or restitution of cultural property, the
preparation of inventories of movable cultural property, the reduction of illicit traffic in
cultural property and the dissemination of information to the public;
2. Reaffirms that the restitution to a country of its objets d'art, monuments,
museum pieces, archives, manuscripts, documents and any other cultural or artistic
treasures contributes to the strengthening of international cooperation and to the
preservation and flowering of universal cultural values through fruitful cooperation
between developed and developing countries;
3. Recommends that Member States adopt or strengthen the necessary
protective legislation with regard to their own heritage and that of other peoples;
4. Requests Member States to study the possibility of including in permits
for excavations a clause requiring archaeologists and palaeontologists to provide the
national authorities with photographic documentation of each object brought to light
during the excavations immediately after its discovery.

Uma vez que as escavações arqueológicas, as atividades


antropológicas ou etnográficas ocorrem, muitas vezes, a partir de parcerias
ou pesquisas internacionais, os Estados devem ter mecanismos internos para
controlar e impedir a evasão das fontes para fora do país.

As discussões anteriores foram utilizadas por suporte à elaboração do


acordo proposto em 1995, a parir da Convenção de UNIDROIT, dirigida
especificamente ao Roubo ou Exportação Ilegal de Objetos Culturais.
Realizada em Roma, esta Conferência Diplomática reuniu setenta países que
participaram oficialmente da Conferência – entre eles o Brasil – e oito
Estados que tomaram assento apenas como observadores: Bósnia-
Herzegovina, Ghana, Guatemala, Honduras, Jordânia, Arábia Saudita, Síria e
Venezuela.

Na introdução do texto final está escrito:

CONVINCED of the fundamental importance of the protection of cultural


heritage and of cultural exchanges for promoting understanding between peoples,

365
and the dissemination of culture for the well-being of humanity and the progress of
civilisation,
DEEPLY CONCERNED by the illicit trade in cultural objects and the
irreparable damage frequently caused by it, both to these objects themselves and to
the cultural heritage of national, tribal, indigenous or other communities, and also to
the heritage of all peoples, and in particular by the pillage of archaeological sites and
the resulting loss of irreplaceable archaeological, historical and scientific information,
DETERMINED to contribute effectively to the fight against illicit trade in
cultural objects taking the important step of establishing common, minimal legal rules
for the restitution and return cultural objects between Contracting States, with the
objective of improving the preservation and protection of the cultural heritage in the
interest of all,
EMPHASISING that this Convention is intended to facilitate the restitution and
return cultural objects, rind that the provision of any remedies, such as
compensation, needed to effect restitution and return in some States, does not imply
that such remedies should be adopted in other States,
AFFIRMING that the adoption of the provisions of this Convention for the
future in no way confers any approval or legitimacy upon illegal transactions of
whatever kind which may have taken place before the entry into force of the
Convention,
CONSCIOUS that this Convention will not by itself provide a solution to the
problems raised illicit trade, but that it initiates a process that will enhance
international cultural co- operation and maintain a proper role for legal trading and
inter- State agreements for cultural exchanges,
ACKNOWLEDGING that implementation of this Convention should be
accompanied by other effective measures for protecting cultural objects, such as the
development and use of registers, and the physical protection of archaeological sites
and technical co-operation,
RECOGNISING the work of various bodies to protect cultural property,
particularly the 1970 UNESCO Convention on illicit traffic and the development of
codes of conduct in the private sector.

As determinações seguintes, expostas em cinco capítulos e vinte e um


artigos, estabelecem os encaminhamentos referentes à formatação de uma
legislação internacional unificada, ancorada no Direito Privado e sedimentada
em acordos multilaterais. De uma maneira geral, dois são os parâmetros
estabelecidos pelo documento:

1) restituição de objetos culturais roubados;

2) restituição de objetos removidos dos territórios de origem – os


Estados que assinam o documento – por intermédio de tráfico
ilegal ou exportação ilegal.

366
Objetos escavados e removidos sem consentimento são considerados
roubados e o período para que os Estados aviltados reclamem seus objetos
ilicitamente exportados, comprados ou transferidos é de setenta e cinco
anos, sendo que objetos roubados de instituição pública não estão sujeitos
às limitações temporais especificadas no acordo. The possessor of a stolen
cultural object required to return it shall be entitled, at the time of its restitution, to
payment of fair and reasonable compensation provided that the possessor neither
knew nor ought reasonably to have known that the object was stolen and can prove
that it exercised due diligence when acquiring the object .

Apoiado nos debates antecedentes, o texto reproduz uma percepção


mais ampliada do impacto cultural resultante da evasão de propriedades
culturais, considerando tanto a perda e a fragmentação do passado
produzido pelas lacunas irreparáveis em decorrência do espólio de
instituições históricas, igrejas e sítios arqueológicos, bem como a violência
estabelecida pelo empobrecimento dos elos simbólicos resultante da perda
de artefatos rituais ou sagrados em comunidades ou tribos indígenas.

A restituição passa a ser de vital importância, principalmente no que


concerne a revitalização de culturas não extintas, a partir da manutenção dos
ritos e da identidade, por meio da construção de uma noção que entrecruza
os bens culturais de acordo com uma relação intrincada entre o patrimônio
tangível e intangível. Por outro lado, o espólio resultante de invasões
territoriais impede a manutenção dos traços que legitimam o direito dos
povos conquistados de reclamarem seus direitos inalienáveis, corrompidos
pela prática da dominação. Os bens culturais tornam-se veículos de
reconhecimento identitário e, portanto, estrutura simbólica de resistência
contra a intolerância racial, religiosa ou cultural.

No entanto, a repatriação depende não apenas da vontade de ambas


as partes de cumprir um papel ético e histórico diante da propriedade cultural
exportada ilicitamente, o parágrafo terceiro do artigo quinto esclarece:

The court or other competent authority of the State addressed shall order the
return of a illegally exported cultural object if the requesting State establishes that the
removal of the object from its territory significantly impairs one or more of the
following interests:

367
(a) the physical Preservation of the object or of its context;
(b) the integrity of a complex object;
(c) the preservation of information of, for example, a scientific or historical
character;
(d) the traditional or ritual use of the object by a tribal or indigenous
community, or establishers that the object is of significant cultural importance for the
requesting State.

A revitalização de sociedades tribais e comunidades isoladas significa


o reconhecimento da diversidade, do multiculturalismo e a manutenção da
riqueza cultural humana, considerando também que retomada da auto-estima
de um determinado povo resulta na reconstrução sócio, econômica e cultural
a partir das próprias visões de mundo, experiências e tradições. Arte,
artesanato, técnicas agrícolas e de subsistência forjadas no conhecimento
autóctone são primordiais à sobrevivência digna de minorias étnicas,
contribuindo também à preservação ambiental, uma vez que as ações desses
povos são baseadas no respeito e no uso consciente das reservas naturais.

Entretanto, os limites ao retorno de bens culturais aos países e


estruturas tribais de origem torna-se complexo quando aqueles bens
encontram-se localizados em Museus ou Instituições de Pesquisa. Nos
Estados Unidos, desde 1990, a legislação, através do dispositivo legal
HR5237, reconhecia o direito dos Nativos Americanos de Proteção e
Repatriação de suas Propriedades Culturais. Os resultados dessa lei pode
ser percebido em um documento publicado na Newsletter 14, da WAAC
(1992: 13-22): Elizabeth Welsh, Catherine Sease, Basil Rhodes, Steven
Brown e Mirian Clavir discutem Multicultural Participation in Conservation
Decision-Making.

As novas regulamentações significam, em última instância uma


mudança nos hábitos e na própria filosofia da Conservação: quais o limite e a
amplitude das ações conservacionistas diante de um objeto repatriado?
Restauradores e conservadores recebem uma formação que os levam a crer
que a preservação de bens culturais significa sua missão fundamental; nesse
novo contexto o embate entre o direito cultural de um povo e a manutenção

368
da integridade física de um objeto torna-se evidente: é notório que, uma vez
deslocado de uma Reserva Técnica ou uma Exposição climatizada,
controlada e vigiada, o objeto passa a ter uma vida útil menor, estando
exposto ao manuseio, à degradação biológica ou às ações da temperatura e
da umidade. Como compactuar com tal situação? Also voiced may be strongle-
felt positions that some cultural material held in museums belongs back in use –
sometimes for religious purposes, sometimes for other social purpose. And “back in
use” may well mean releasing artifacts into an environment that may reduce their
longevity and alter their condition (WELSH, 1992, p. 13).

Posto o problema, é indispensável uma abordagem multicultural e


multidisciplinar para encontrar as respostas. Os debates à respeito da
restituição de propriedade cultural estão apenas começando. O respeito às
sociedades multi-étnicas depende de políticas comprometidas com a
manutenção de tradições não oficiais; das ações cooperativas que
representem mudança de postura da comunidade científica diante da
sociedade real; dos governantes, diante das minorias étnicas e do sentido
último da preservação: o Patrimônio Cultural existe para o conhecimento e o
reconhecimento da diversidade cultural; os bens patrimoniais só têm sentido
se atendem às necessidades das pessoas e as pessoas têm o direito de uma
percepção divergente do senso comum em relação à suas necessidades
individuais.

No Brasil, considerando as questões tributárias referentes à entrada de


obras artísticas no país, o Senador Edison Lobão apresentou em 2000 o
Projeto de Lei do Senado nº 176, que propõe:

O art. 1º isenta do Imposto de Importação (II) os objetos de arte, de autoria


de artista brasileiro, classificados nas posições 9701, 9702, 9703 e 9706 da
Nomenclatura Comum do Mercosul – NCM. O art. 2º prevê idêntica isenção para as
importações realizadas por museus instituídos e mantidos pelo poder público e
outras entidades culturais reconhecidas como de utilidade pública,
independentemente da autoria.
O art. 3º revoga a Lei nº 8.961, de 23 de dezembro de 1994, que concede
isenção do Imposto de Importação (II) incidente sobre os citados objetos de arte
recebidos, em doação, pelas instituições retrorreferidas. O art. 4º determina a
vigência imediata da lei.

369
Justificando a proposição, o senador relata que uma vez exportado, o
produto brasileiro passa a ser considerado estrangeiro, para efeito de
tributação, nos termos da legislação aduaneira. Mas, segundo seu
entendimento, os produtos artísticos devem ser tratados com ótica diferente,
uma vez que sua re-importação representa um verdadeiro resgate de um
testemunho da memória ou de componente importante da cultura nacional que, por
qualquer motivo, havia sido remetido para o exterior. O mesmo se aplica,
evidentemente, ao objeto de arte produzido, no exterior, por artista brasileiro. O
autor dá razão ao advogado Marcelo Fadel que, em artigo publicado no jornal
O Globo, afirmou: queiram ou não, é rematado exercício de apatriotismo,
verdadeiro crime de lesa-pátria, embaraçar o reingresso de obras de arte
brasileiras em país já tão carente de iniciativas culturais". Sua conclusão é
que "antes de se pensar em taxação, o mais lógico é pensar em incentivo
para tal prática. Por outro lado, referindo-se às obras de arte importadas por
museus públicos e entidades culturais reconhecidas como de utilidade
pública, cuja isenção tributária está condicionada aos casos de doação, ele
pondera: essa condição não faz o menor sentido, pois a circunstância de pagar ou
não pela obra não desnatura a sua finalidade essencial, que é a de enriquecer o
Patrimônio Cultural do País. Ilogicamente, justo quando o museu normalmente
carente de recursos, consegue pagar por uma obra de arte, é castigado pela
obrigação de pagar o imposto de importação.

Os documentos formalizados enfocando o tráfico ilícito, a restituição e


o trânsito legal de objetos culturais têm por objetivo incentivar o
desenvolvimento de políticas nacionais e reforçar a cooperação internacional:
Los objetivos de la UNESCO en su lucha contra el tráfico ilícito de los bienes
culturales son: desarrollar las capacidades de los estados para que tomen medidas
eficaces; reforzar la cooperación internacional y regional contra esta plaga, de
conformidad con la Convención de la UNESCO de 1970. En la prática, estos
objetivos consisten principalmente en preparar textos legislativos nacionales y llevar
a cabo actividades de formación regionales o nacionales, en estrecha colaboración
con organizaciones tales como ICOM o la INTERPOL (ICOM, 1997, p.138).

370
6.4. Turismo e Educação

Tanto o capitalismo quanto o socialismo(...) mostraram-se


incapazes de arrancar a maioria de nosso povo da miséria (...)
Portanto, a questão cultural que se coloca é a seguinte: há alguma
outra solução, uma solução propriamente nossa? Será que não
possuímos imaginação, tradição e reservas intelectuais e
organizacionais para elaborar nossos próprios modelos de
desenvolvimento, consentâneos com a verdade do que fomos, do
que somos e do que queremos ser, e responsáveis diante das
sociedades civis que se desgastam na base e na periferia.

Carlos Fuentes. La socialización de la política desde abajo.


Ventana, Nicarágua, 1990.

Em todos os documentos citados anteriormente, a Educação sempre


está presente como método de esclarecimento, participação social e política
de ação na preservação de bens culturais. Como instrumento de
envolvimento das comunidades onde estão localizados os monumentos,
museus, sítios, aldeias ou as paisagens culturais, o estabelecimento de uma
consciência comunitária baseada no conhecimento da importância da
manutenção das estruturas culturais – por meio da Educação – é colocado
como o fim último das práticas preservacionistas. Por sua vez, como método
de orientação dos profissionais envolvidos com o resgate, a exposição ou o
restauro de bens culturais, a Educação é vista como prerrogativa à
legitimidade dessas ações.

Além da valorização da própria identidade, a divulgação de áreas que


contêm patrimônios culturais é incentivada como uma forma de disseminar a
tolerância e o respeito multiétnico por meio do conhecimento das realizações,
tradições, história e memória do outro. Os domínios da memória refletem a
estrutura simbólica de existência e de relacionamento social com o sagrado e
o cotidiano. Assim, o turismo passa a ser uma outra face da mesma moeda
que estabelece como justificativa às ações preservacionistas, o
desenvolvimento educacional e a divulgação das culturas, da história e da
memória de cada povo.

Educação e cultura são elementos que se cruzam e alimentam-se


mutuamente. Retomando o texto de Leach (1985), a percepção do conceito

371
de cultura como algo imbricado ao conceito pejorativo de civilização impõe
uma relação hierárquica entre aquele que detém o poder e aquele que está
subordinado à ele: o civilizador e o não civilizado. Por essa mesma via, o
debate antropológico expresso nas academias, estrutura-se também na vida
cotidiana: é de senso comum a utilização da palavra cultura para designar o
homem culto, refinado e educado e, por conseguinte, detentor de uma capital
simbólico específico, o qual obteve através de uma posição social, recursos
materiais e financeiros. O homem culto, letrado ou estudado, parece longe da
gama de analfabetos que povoam os países subdesenvolvidos.

As próprias comunidades não percebem a cultura como uma


expressão própria, uma contribuição única e especial; como a “sua” cultura e
a “sua maneira” de se relacionar com o sagrado e o profano: o saber erudito
sobrepuja o saber popular, tradicional ou consuetudinário ao disseminar um
discurso onde cultura, civilização e educação encontram-se amalgamados e
o saber é apenas aquele que se aprende nas escolas, academias ou
universidades. Por outra via, a “cultura material”, no sentido de configurar um
corpo de artefatos exterior ao indivíduo, passa a ser utilizada por
arqueólogos, etnólogos, museólogos e restauradores como algo que possui
um valor em si, desconectado da função e alheio à existência social. Há uma
falta de comunicação entre o mundo académico, em particular a comunidade
arqueológica, e o povo. Os arqueólogos deveriam agir com a comunidade, não para
ela, dando ao povo uma melhor compreensão do passado e do mundo. Para atingir
esses objectivos, pesquisas de largo fôlego não deveriam levar à diversão, mas à
integração de processos, como é o resgate de edifícios históricos e a escavação de
sítios arqueológicos, e produtos, como a publicização do trabalho científico por meio
de diferentes media (FUNARI, 2001, p. 28).

Ilya Prigigine assinalou que o século XX transformou o planeta de um


mundo finito de certezas em um mundo infinito de indagações e dúvidas. O
sentido ativo contido no termo cultura em seu sentido original precisa ser restaurado.
Cultura significa o ato de cultivar. Hoje, mais do que nunca, é necessário cultivar a
criatividade humana, pois, em um contexto de rápida mutação, os indivíduos, as
comunidades e as sociedades só podem adaptar-se ao que é novo e transformar

372
sua realidade por meio da iniciativa e da imaginação criadoras (CUÉLLAR, 1997, p.
102).

As diretrizes específicas relacionadas à Educação e o vínculo


estabelecido com a noção de Turismo Cultural – além de Turismo Ecológico
–, estão reproduzidas nos textos elencados em torno desse tema:

1. Função Educativa dos Museus – Rio de Janeiro, setembro de 1958.*

2. Declaração de Santiago – Santiago, maio de 1972.*

3. Carta do Turismo Cultural – Bélgica, novembro de 1976.

4. Declaração de Quebec – Quebec, outubro de 1984.*

5. Código de Ética Profissional de Museus – Buenos Aires, novembro de


1986.

6. Declaração de Carácas – Carácas, fevereiro de 1992.*•

7. Diretrizes para a Educação e Treinamento em Conservação de


Monumentos, Conjuntos e Sítios. – Sri Lanka, agosto de 1993.

8. Carta Internacional do Turismo Cultural – Paris, novembro de 1999.

Desde a Carta de Atenas (1931), que as três orientações relativas ao


vínculo Educação – Patrimônio foram estabelecidas: educação dos
profissionais que manejam os bens culturais; esclarecimento da comunidade
e divulgação internacional:

a) Technical and moral co-operation.


The Conference, convinced that the question of the conservation of the artistic
and archaeological property of mankind is one that interests the community of the
States, which are wardens of civilisation,
Hopes that the States, acting in the spirit of the Covenant of the League of
Nations, will collaborate with each other on an ever-increasing scale and in a more
concrete manner with a view to furthering the preservation of artistic and historic
monuments;
Considers it highly desirable that qualified institutions and associations should,
without in any manner whatsoever prejudicing international public law, be given an

*. Esses documentos não aparecem nas listas de documentos oficiais incorporados ou


sancionados pela UNESCO, mas fazem parte das resoluções discutidas por grupos de
trabalho do ICOM. Encontram-se traduzidos no documento A Memória do Pensamento
Contemporâneo, produzido pelo Comitê Brasileiro do ICOM em 1995.

373
opportunity of manifesting their interest in the protection of works of art in which
civilisation has been expressed to the highest degree and which would seem to be
threatened with destruction;
b) The role of education in the respect of monuments.
The Conference, firmly convinced that the best guarantee in the matter of the
preservation of monuments and works of art derives from the respect and
attachment of the peoples themselves;
Considering that these feelings can very largely be promoted by appropriate
action on the part of public authorities;
Recommends that educators should urge children and young people to abstain
from disfiguring monuments of every description and that they should teach them to
take a greater and more general interest in the protection of these concrete
testimonies of all ages of civilisation.

Apesar dessas recomendações, na prática, várias atividades que se


desenvolvem em comunidades isoladas, carentes e de regiões
subdesenvolvidas são estabelecidas de maneira alheia à vontade,
conhecimento ou benefício dessa população. Além da falta de comunicação,
há uma postura marcada pela conduta que olha o “outro” não civilizado
europeu ou europeizado como um objeto “pitoresco” da pesquisa científica: O
grandioso empreendimento conhecido como Human Relations Area Files (HRAF),
centrado na Universidade de Yale e que foi uma iniciativa do professor Murdock,
está ainda a recolher activamente dados tribo a tribo, segundo os mesmos
princípios. Este ficheiro de informação etnográfica, com as suas entradas e
referências bem elaboradas, especifica os traços culturais de muitas centenas de
“culturas” consideradas como separadas, dispersas por todo mundo (LEACH, 1985,
p. 108). O simples mapeamento de sociedades diferentes da cultura européia,
parece ser mais importante do que a valorização e a manutenção dessas
culturas. Sob esse prisma, a educação parece simplesmente significar bolsas
de estudo, verbas de pesquisa e uma certa arrogância intelectual daqueles
que podem observar o “outro” como cobaias de laboratório ou
microorganismos sob lentes de microscópio.

Qual o sentido da educação? Qual o sentido da preservação dos


patrimônios culturais? A quem elas se dirigem, a educação e a cultura? A
Arqueologia, ultimamente, tem procurado perceber os vestígios do passado
sob uma ótica diferenciada, que valoriza os movimentos de resistência e

374
conflitos baseados nas lutas para o estabelecimento do poder: In recent years
historical archaeologists have become increasingly interested in exploring how to use
material culture to study conflicts and struggles, as well as in considering how the
interpretation of the past evidence is affected by modern perceptions. Just recently,
volume 3 of the International Journal of Historical Archaeology dealt with
“Archaeologies of Resistance in Britain and Ireland” and volume 33 (1) of Historical
Archaeology was concerned with “Confronting Class”, both published in 1999. A bit
earlier, modern perceptions were the subject of Historical Archaeology 31 (1), on “In
the Real of Politics: Prospects for Public Participation in African-American and
Plantation Archaeology” and on “Archaeologists as storytellers” (Historical
Archaeology 32, 1). Both subjects are also at the heart of several chapters of an
edited volume on Historical Archaeology (Funari et al. 1999), with contributions from
all over the world. The same issues are also behind the initiative of a new scholarly
archaeological journal, Public Archaeology, spearhead by the Institute of
Archaeology (University College London). Conflicts in the past and conflicts in the
interpretation of the past is thus a growing concern in the discipline (FUNARI, 2000b,
p. 2).

As mudanças de percepção sobre o significado das pesquisas


científicas, as transformações relacionadas à filosofia e à ética das ações
propostas e as re-orientações em torno da maneira de abordar o mundo
material e imaterial da cultura têm contribuído para novas posturas diante das
diferenças entre grupos sociais humanos. Várias questões têm sido
colocadas aos profissionais de museus em todo o mundo: como agir diante
das legislações que obrigam a repatriação de objetos de culto ou de valor
cultural às suas sociedades de origem? Aos etnólogos e arqueólogos, as
perguntas de fundo concentram-se no sentido de suas pesquisas e quais
contribuições efetivamente trazem à sociedade – seja àquela sociedade
“europeizada”, baseada nos padrões “civilizatórios”, que através de
instituições ocidentais, como as Universidades, financiam a pesquisa; seja
àquela comunidade, cujos artefatos foram extraídos do solo ou coletados das
casas.

Em 1958, o documento gerado no Seminário Regional da UNESCO


sobre a Função Educativa dos Museus, de autoria de Georges Henri Rivière,

375
aponta para um tipo de Museu que teria um papel exclusivamente
educacional: os museus pedagógicos e os museus didáticos. Esta postura
não implicaria em depreciar as outras atividades essenciais da instituição
como a conservação, a investigação científica ou as exposições, mas criar
um dinâmica entre os profissionais internos com o intuito de privilegiar as
ações externas voltadas à educação: com a condição de que seja lógica e
agradável, e que proponha, em vez de impor, a exposição terá por si valor didático.
Deve-se dedicar uma atenção especial à exposição polivalente, e que deverá
manter-se em um certo nível, porque, além de dirigir-se ao visitante médio, que não
pode ser decepcionado, deverá contribuir para a evolução dos visitantes não
preparados, tornando-se para eles uma etapa crucial entre as apresentações de
caráter didático e as apresentações de estudo (Comitê Brasileiro do ICOM, 1995, p.
16).

A partir dessa nova perspectiva, ocorreu em 1972 um encontro em


Santiago do Chile o qual reuniu os profissionais da América-Latina; como
decorrência desse evento adveio a Declaração de Santiago, sedimentada em
uma nova postura a ser adotada nesses países: o museu integral propunha
discutir e abranger a totalidade dos problemas da sociedade na qual estava
inserido, inclusive a pobreza e o analfabetismo; o museu enquanto ação,
seria a proposta que imputaria ao museu o papel de agente de mudança
social, enquanto instrumento dinâmico de conscientização. Contudo, nas
décadas seguintes, as ditaduras latino-americanas que emergiram, do Chile
ao Paraguai, contribuíram para que as propostas de socialização do saber
não fossem implementadas: nos grandes museus da América Latina não mudou
muita coisa. As coleções nacionais e suas instituições imitam, mais ou menos, os
estilo museológicos em vigor no mundo industrializado. Os imperativos turísticos, os
gostos das oligarquias do poder e do dinheiro ainda são a norma. A maioria dos
participantes de Santiago não pôde implementar as resoluções adotadas. Além
disso, os sobreviventes, como eu, estão vinte e três anos mais velhos (VARINE,
1995, p.18).

Associada à ação direta de profissionais que lidam com o Patrimônio


Cultural, a mudança de perspectiva em relação à estrutura tangível e
intangível dos bens patrimoniais, determinam uma reestruturação da própria

376
posição do museu na estrutura social: o conceito de museu integral questionou
noções consagradas do universo museológico como o colecionismo, o museu entre
quatro paredes, e o patrimônio oficial, identificado apenas com o histórico e o
artístico. Despertou a atenção dos profissionais para todo um patrimônio à espera
de musealização, para a importância da participação comunitária em todas as
instâncias museológicas, e impôs novos métodos de trabalho. Colocou, ainda, a
necessidade de se repensar a formação profissional para a área. O museu integral
trouxe uma nova perspectiva de atuação, fora das fronteiras tradicionais, que
acarretou entre outros problemas, uma crise de identidade institucional, na qual os
museus se confundiram com outros modelos de ação cultural, como centros
culturais, casas de cultura e memoriais, entre outros (MATTOS e BRUNO, 1995, p.
6).

Para quem serve a indústria do passado? Esta questão não pode ser
respondida impunemente. Se ela servir apenas aos interesses elitistas de
alguns poucos detentores de capital, pouco ou nada estará contribuindo ao
sentido da preservação: o largo fosso que separa a pobreza dos valores
preservacionistas desenvolvidos no Ocidente não pode ser coberto por uma
concepção que tenda, por exemplo, a apoiar as operações comerciais, ao mesmo
tempo em que perturba o relacionamento delicado entre os níveis econômicos
existentes, os laços de vizinhança, o tecido urbano tradicional e o tecido
monumental que está ligado a ele, embora de forma precária, relata Yasmin
Cheema no livro produzido por Cuéllar (1997, p. 241).

Dois lados de uma mesma moeda entrecruzam o turismo do ponto de


vista educacional: a educação daqueles que têm no Patrimônio Cultural as
marcas de sua identidade e a educação daqueles que buscam outras
identidades para dissipar a intolerância; caminhos opostos, ainda que
interligados: a introversão e a extroversão. As bases éticas de conduta em
relação a esse ponto específico devem estar apoiadas nas respostas
advindas da própria comunidade – sem ela, não há preservação possível,
como o exemplo vivo de Bamiyan –, mas também ancoradas nas noções
internacionais discutidas.

Em 1984, a Declaração de Quebec significou uma ampliação nos


debates relativos ao papel dos Museus no processo educacional

377
desenvolvido a partir do Patrimônio Cultural. Entre os objetivos prioritários
resultantes da reunião ocorrida em Quebec estavam, o intercâmbio entre as
experiências obtidas em Ecomuseus e a discussão da Nova Museologia, uma
proposta teórica embasada nas práticas sociais. Essa postura resultou em
críticas severas às diretrizes museológicas oficiais, instituídas e divulgadas
principalmente pelo ICOM, totalmente vinculadas às noções de cultura,
patrimônio, educação e museus desenvolvidas nos países ricos e
industrializados. Resultantes dos encontros de 1958 e 1972, da idéia vaga de
novas formas de Museologia – museus comunitários, museus de vizinhança,
ecomuseus etc –, o ateliê de Quebec foi evoluindo para o reconhecimento de um
movimento com uma amplidão que não podeia mais deixar de ser tomada como
uma realidade nova da Museologia (MOUTINHO, 1995, p. 26). Nessa reflexão, a
pesquisa, a interpretação e as formas de comunicação deveriam estar
comprometidas com as questões de ordem social, com a integração da
comunidade e com a revitalização de formas de expressões artesanais,
agrícolas e culturais, principalmente de grupos economicamente excluídos. A
idéia da exposição, enquanto espetáculo a ser contemplado, deixaria de ser
fundamental, uma vez que, nessa nova proposta museológica, o público teria
participação fundamental no processo de criação e utilização do espaço.

A palavra Educação – cuja raiz léxica latina Educo significa educar,


alimentar, produzir (fazer crescer da própria terra) – envolve o sentido de
retirar do próprio indivíduo as substâncias que contribuem ao seu
crescimento. Seu homógrafo Docere, da raiz hindo-européia de-ock, admite o
sentido de demonstrar, instruir, mostrar. Ao educar, apresenta-se um
universo desconhecido àquele que se pretende ensinar. Porém, qual o
sentido da educação através do Patrimônio Cultural? Será o de catequizar,
impor um olhar civilizador e homogeneizador, partindo das premissas, dos
conceitos, dos valores e das prerrogativas de uma única ótica? Ou forjar
sobre as próprias bases de cada indivíduo a matéria que lhe fará crescer e
desenvolver sua individualidade própria, a partir de parâmetros que lhes são
únicos?

378
A Educação é um processo que pode ocorrer de várias formas,
partindo das próprias experiências e da experiências dos outros. A grande
sacada, é tentar utilizar a informação que chega em prol do próprio
desenvolvimento: não se trata de isolar as sociedades para que suas
manifestações não percam a integridade; não se trata de fechar as cidades
históricas, os sítios ou os monumentos, as paisagens culturais ou os objetos
de museus com um cordão de isolamento para que não danifiquem. A
questão é fornecer ferramentas para que preservação da cultura material e
manutenção de tradições imateriais possam coexistir; que pesquisa e
comunidade descubram mecanismos próprios a partir do fortalecimento de
sua própria consciência cultural; que exposição e preservação abracem a
mesma causa à favor do crescimento dos indivíduos.

Em 1992, o encontro regional do ICOM em Caracas reafirmou o papel


na Nova Museologia no processo de integralização dos museus latino-
americanos. Como resultado dessa reunião, formalizou-se o documento
denominado Declaração de Caracas: a missão do Museu da América Latina.
O propósito desse Seminário, nos conduz a refletir sobre a vinculação entre o museu
e seu entorno social, político, econômico e ambiental, com resultados alentadores. A
nova dimensão do museu na América Latina é a de ser protagonista de seu tempo,
registra a conclusão do texto (Comitê Brasileiro do ICOM, 1995, p.44). Os desafios
impostos e percebidos pelos participantes do evento demonstram que o
processo de transposição de idéias e conceitos pré-estabelecidos, coerentes
nas sociedades industrializadas e em áreas privilegiadas do mundo ocidental,
nem sempre são adequadas às realidades multiculturais da América-Latina,
ou mesmo de outros países. A necessidade de incentivar uma consciência
crítica, apoiada na valorização da própria identidade por meio da
compreensão da dimensão cultural do patrimônio tangível e intangível, e de
imputar ao museu um papel político de ação social é levantada nessa
declaração. Revisando o conceito tradicional das instituições e das práticas
museológicas, bem como do tipo de patrimônio circunscrito nesse contexto, o
documento aponta para uma nova perspectiva de envolvimento dos agentes
culturais no interior das comunidades onde encontram-se instalados. Nessa

379
perspectiva, as abordagens da Nova Museologia em relação à educação
privilegiam a relação estabelecida entre a instituição e a comunidade do
entorno em relação ao público eventual, turistas e visitantes esporádicos.

O conceito de Educação, permeado em todos os discursos analisados


nessa pesquisa, dirigem-se a três esferas distintas:

a) a Educação dos profissionais que atuam como agentes culturais e


pesquisadores, com o intuito de prepará-los para lidar com a cultura material
de maneira a manter sua integridade física, suas características estéticas e,
de uma maneira geral, ampliar sua vida útil, além de sua capacidade de
transmitir conhecimento;

b) a Educação específica das comunidades que vivem no entorno


das propriedades culturais, naturais ou construídas, com o intuito de integrar
sua vida cotidiana aos programas de manutenção desses bens;

c) a Educação global da humanidade, baseada em posicionamentos


éticos e filosóficos, por meio da divulgação do Patrimônio Cultural da
Humanidade e a partir da participação de representantes de diversos países
nos fóruns de debates propostos pela UNESCO ou por outros órgãos
voltados à preservação, estudo e divulgação dos bens culturais.

Em relação aos dois últimos pontos, o incentivo ao turismo, como uma


maneira de atrair recursos e divulgar os bens culturais, e a integração social,
como uma maneira de introduzir os habitantes locais nos programas de
preservação de seus sítios e monumentos, eles têm sido tratados de maneira
conjunta, como s estivessem indissociados, orientado vários debates. Quais
as conseqüências dessa vinculação entre turismo e educação? Para essa
pergunta não cabe generalizações. Cada caso é um caso, cada estrutura é
única, porém é indispensável perceber os impactos de um turismo controlado
ou descontrolado; ter a consciência dos prejuízos e avaliar os benefícios.
Dean MacCannell, um consultor especializado na área, para quem o turismo
sempre significou benefícios, em um artigo publicado no GCI Newsletter
comentou: As tourism becomes the central drive, the unifying trait, in urban and
regional development, it transforms itself and the world around it in ways that

380
undermine and subvert the original motive for cultural travel – and even the original
basis for culture. This notion is wrapped in sufficient common sense that it easily can
be taken for granted. Recently, however, it has been subject to criticism. One of the
strongest intellects in tourism studies, Marie-François Lanfant, comments: The
discovery of heritage, by procedures such as restoration, reconstitution, and
reinvestment with affect, in some sense breaks the very chain of significance which
first invested it with authenticity, in that on subsequent occasions it is retouched and
elevated to a new status. The object of heritage is reconstructed through this process
of marking, and thereby it certifies the identity of a place for the benefit of anonymous
visitors. Tradition, memory, heritage: these are not stable realities. It is as if the
tourists have been invited to take part in a fantastic movement in which collective
memory is constructed through the circulation of tourists (2000, s.p.).

A questão de fundo, no qual mergulha o problema da preservação de


bens culturais, é que a relação que se estabelece deve ser de mão dupla,
forjada a partir da compreensão e interação da comunidade, do país ou da
etnia e expandida para além de suas fronteiras. Quando não há o
envolvimento, reconhecimento ou compreensão da própria sociedade onde
encontram-se situados os monumentos, museus ou paisagens culturais, não
importa qual seja a pressão ou o apelo internacional, as vantagens
econômicas que o turismo traz ou a importância científica do local, pois as
ações externas deixam de adquirir significado: a destruição das imagens em
Bamiyan ou do Quilombo dos Palmares são exemplos vivos da falta de
vínculos entre o Patrimônio Cultural e a cultura local.

Para Dean MacCannell (2000) os caminhos trasformadores, baseados


no conhecimento e na preservação ainda estão por fazer: What is needed are:
(1) development of strong cultural theory, (2) education programs that create deeper
understanding of the function and value of cultural heritage, and (3) reinvention of the
museum, restored heritage site, monument, memorial, and every other
representation of heritage, tradition, and collective memory.

Nos sucessivos documentos produzidos, a educação é sempre


colocada em relação a esses aspectos. Contudo, a partir de 1972, com a
definição dos conceitos de Patrimônio Cultural e Patrimônio Natural; a
estruturação do World Heritage Committee e da World Heritage List e as

381
definições dos papéis dos governos e das comunidades internacionais,
resultantes do duplo documento elaborado sobre o mesmo tema, uma nova
noção de manejo foi introduzida no debate: a questão do Turismo Cultural.
Esta noção aparece e outros documentos, anteriores e posteriores – Normas
de Quito (1967); Sobre propriedades em perigo por ações públicas ou
privadas (1968); Proteção, ao Nível Nacional, sobre propriedades Culturais e
Nacionais (1972); Conservação sobre Pequenos Centros Históricos (1975);
Recomendações sobre a Segurança e o Papel Contemporâneo de Áreas
Históricas (1976); Carta de Proteção do Patrimônio Subaquático (1996);
Declaração de San Antonio (1996) –, mas a busca para que os bens
patrimoniais de uma nação faça parte da lista do Patrimônio Mundial da
Humanidade tem feito com que governos e comunidade local se unam para
elaborar dossiês e revitalizar as áreas.

O primeiro documento que utiliza a noção de turismo cultural foi


produzido em 1967 (Normas de Quito), como orientação da ONU para que a
UNESCO a incorporasse como prolongamento do processo educacional e
preservacionista, adotando a concepção de que o turismo pode ser uma
maneira de restaurar o valor simbólico do monumento e recuperar o capital
investido em sua restauração física. Além disso, o turismo seria visto como
uma forma adequada de manter um monumento que desapareceria sem uma
profunda transformação econômica – derivada das atividades turísticas – na
região em que o monumento encontra-se situado. No parágrafo terceiro do
Capítulo Sétimo – Monumentos como Atração Turística – está escrito: The
United Nations Conference on International Travel and Tourism (Rome, 1953) not
only recommends that high priority be assigned to tourist investments under national
plans, but emphasized that "from the tourist standpoint, the cultural, historic and
natural heritage of nations is quite an important factor;" therefore, it urged "the
adoption of adequate measures designed to ensure the preservation and protection
of that heritage" (Final Report, Doc.4). The United Nations Conference on Trade and
Development (1964), in turn, recommended that both government and private
financing agencies and organizations "offer assistance, in the most appropriate form,
to work aimed at the conservation, restoration and desirable use of archaeological,
historic and scenic sites" (Resolution Annex A, IV.24). Recently, the Economic and

382
Social Council of that world agency, after recommending that the General Assembly
designate 1967 as International Tourist Year, resolved to invite the United Nations
organizations and the specialized agencies to give "favorable consideration to the
request for technical and financial assistance to the developing countries, in order to
accelerate improvement of their tourist resources (Resolution 1109-XL).

O turismo cultural passa a ser incentivado como forma de revitalização


econômica e gerador de divisas para as localidades que abrigam os sítios,
monumentos e paisagens culturais, bem como um mecanismo de divulgação
do multiculturalismo. As vantagens econômicas e sociais são aclamadas
tomando como exemplo os dados estatísticos relativos à realidade européia:
Europe owes to tourism, directly or indirectly, the salvation of much of its cultural
heritage condemned to complete and irreparable destruction, and modern man, more
visually than literally sensitive, finds increasing opportunities for self-enrichment
through viewing examples of western civilization, scientifically rescued because of
the powerful incentive of tourism (Normas de Quito, UNESCO, 1967).

Em 1968, na abertura do texto que aborda as questões relativas aos


danos em propriedades, o texto salienta a importância da preservação
relacionada à indústria turística: Considering equally that adequate preservation
and accessibility of cultural property constitute a major contribution to the social and
economic development of countries and regions which possess such treasures of
mankind by means of promoting national and international tourism. Já nos
documentos elaborados na década de setenta, há uma maior preocupação em
estabelecer ações controladas em relação ao turismo cultural: Voluntary
organizations should be set up to encourage national and local authorities to make
full use of their powers with regard to protection, to afford them support and, if
necessary, to obtain funds for them; these bodies should keep in touch with local
historical societies, amenity improvement societies, local development committees
and agencies concerned with tourism, etc., and might also organize visits to, and
guided tours of, different items of the cultural and natural heritage for their members
(Recommendation Concerning the Preservation of Cultural Property Endangered by
Public or Private Works, UNESCO, 1968).

Com propostas de revitalização de pequenas cidades históricas, em


1975, a UNESCO elabora o documento denominado Resolução de Bruges,

383
abordando aspectos importantes. Considerando que as pequenas cidades
podem sofrem impactos violentos em função de mudanças bruscas no ritmo
de vida local ou danos irreversíveis ao Patrimônio Cultural a partir do
abandono, do isolamento ou da dispersão das comunidades em função da
migração da população para centros mais atrativos ou transformações
urbanas aceleradas devido ao turismo cultural e ao crescimento desordenado
da cidade, o discurso adverte:

•they may suffer from a lack of economic activity leading to the emigration of
their populations to larger centres and the resultant abandonment and decay;
•even when the population is numerically stable, there may still be a
tendency, due to traffic and other inconveniences, for the inhabitants, to move to
modern quarters on the fringes of the town, leading to dereliction of the historic town
centre;
•on the other hand, too much economic activity may cause disruption of the
old structure and the insertion of new elements which upset the harmony of the urban
environment;
•measures to adapt the town to modern activities and uses may have similar
effects. For example, tourism, which can be a legitimate means to economic
revitalization, can also have a negative impact on the appearance and structure of
the town;
•the increasing unit size of the social infrastructure such as schools and
hospitals tends to destroy the scale of the town and to reduce the level of its services.

Pela primeira vez, o impacto negativo do turismo é considerado nas


variáveis relacionadas ao incentivo dessa atividade: a modernidade e a
revitalização econômica podem, da mesma maneira que o esvaziamento
social, contribuir para a degradação de sítios, paisagens, monumentos e
centros históricos. Esta noção reaparece nas recomendações em relação ao
papel contemporâneo de monumentos históricos (1976), realizada em
Nairobi. A percepção de que o crescimento desordenado somado à
incompetência dos governos de implementar leis eficazes, descaracterizam e
destróem bens culturais importantes permeia todo o texto. O cidadão é
chamado a atuar e contribuir, através da denúncia, dos cuidados e ações
sociais voltados para a preservação de sua própria identidade; do mesmo
modo que às autoridades é recomendado o uso de leis flexíveis, mas

384
operantes, ajustadas e associadas ao planejamento da cidade, da região, do
bairro ou da localidade específica.

Áreas históricas devem ser protegidas contra danos resultantes de uso


indevido ou alterações resultantes de adições ou suprimento de partes;
mudanças estruturais e estéticas; restaurações impróprias; poluição e toda
forma de descaracterização que danifique a percepção global ou parcial dos
monumentos. Nessas condições, a urbanização moderna surge como
contraponto impondo um aumento considerável do número de edifícios, bem
como a ocupação daqueles já construídos – determinando sua
reestruturação, ou recall –, contribuindo, portanto, ao processo de
esfacelamento da integridade histórica de certas áreas. Mesmo com o
planejamento urbano, cada vez é mais difícil não ceder aos apelos da vida
moderna ou às pressões de grupos econômicos.

Mesmo quando o planejamento faz parte da política e da legislação


local, é difícil combinar crescimento urbano e preservação. De acordo com
Argan (1995, p. 205), é mais fácil projetar as cidades do futuro do que a do
passado. Roma é uma cidade interrompida, porque deixou-se de imaginá-la e
começou-se projetá-la (mal). Em Roma, é mais uma questão de tempos do que de
espaços. As marés das épocas passaram e se retiraram, deixando na areia os
restos de distantes naufrágios; como todos os salvados, têm ao redor um espaço
próximo e limitado, o mar e a praia. É uma cidade que viveu de despojos, depois de
ruínas, hoje de refugos. Também os romanos, de Enéias em diante, vieram de
remotos desastres: criaturas do tempo, vivem de tempo e não receiam desperdiçá-
lo. Antes de Roma se tornar, graças à especulação imobiliária, chata e amorfa como
uma polenta no prato, os romanos viviam se movendo nas camadas das épocas
sobrepostas como peixes na água, em profundidade e na superfície. Sem dúvida, o
mal foi causado pela especulação, mas quem fez a especulação?

Dessa pergunta em diante, Argan questiona a noção de valor de bens


culturais sob uma base teórica que coloca como hipótese a crise da arte, do
objeto e da cidade como parte do processo de destruição do valor simbólico
apoiado na estética, na técnica, na história e no sagrado, substituído pelo
valor simbólico conferido pelo mercado, a essência da sociedade capitalista.

385
Se Roma, com todo seu significado histórico e toda uma infra-estrutura de
universidades e centros de pesquisas, sendo inclusive a sede do ICCROM,
enfrenta sérios problemas causados pelo fluxo contínuo de turistas e pelo
crescimento desordenado, como agir em outras cidades que, de repente,
tornam-se espaços turísticos atrativos, quer pela sua natureza, quer pelos
seus monumentos?

Terramolinos, na costa mediterrânea espanhola, é um bom exemplo da


desagregação da identidade local em função da pressão turística: During the
1960s and 1970s, Torremolinos overreached as it reproduced itself and the markers
of its heritage. Planned for German tourists and now overdeveloped, the place caters
to "cheap and cheerful" packaged tours for British working-class vacationers who
want the Spanish sand, sun, sea, and tokens of its former culture –- without giving up
their beer and chips, the enjoyments of home. Torremolinos has become a mélange
of markers of Spanish fishing village traditions, working-class fantasies of jet set
luxury, and Spanish versions of British fish and chips cuisine. The Spanish
fishermen, or their children, are now integrated into the global economy as service
workers for transnational tourists (MACCANNELL, 2000, s.p.).

Com a formalização do World Heritage Committee, a partir de 1972


vários governos se organizaram para que seus parques, reservas e
monumentos fizessem parte da Lista. Dentre as exigências da UNESCO, a
necessidade de investimentos em infra-estrutura, educação e parcerias
nacionais e internacionais nos processos de revitalização e restauração de
sítios, monumentos e centros históricos encontra-se presente. Em 1976, a
Carta do Turismo Cultural percebe o evento turístico como uma fato social,
econômico e cultural irreversível; a partir dessa percepção, considerando que
o processo de expansão e difusão dessa atividade tende a crescer
continuamente, torna-se necessário influenciar para que o processo discorra
de forma positiva, tanto a favor da preservação física dos espaços culturais,
quanto da identidade das populações que residem em seu entorno: Whatever,
however, may be its motivations and the ensuing benefits, cultural tourism cannot be
considered separately from the negative, despoiling or destructive effects which the
massive and uncontrolled use of monuments and sites entails. The respect of the
latter, just like the elementary wish to maintain them in a state fit to allow them to

386
play their role as elements of touristic attraction and of cultural education, implies the
definition and implementation of acceptable standards.

Essa primeira carta, de não mais do que duas páginas, determina a


formação de um comitê específico, cujo resultado se consolidará no
documento apresentado em 1999 como o 8. Esboço da Carta do Turismo
Cultural, encaminhado ao ICOMOS para aprovação. Na introdução, o
documento confere a legitimidade da preservação, pontuando como
justificativa a manutenção da identidade e a difusão das diferenças: El
concepto de Patrimonio es amplio e incluye sus entornos tanto naturales como
culturales. Abarca los paisajes, los sitios históricos, los emplazamientos y entornos
construidos, así como la biodiversidad, los grupos de objetos diversos, las
tradiciones pasadas y presentes, y los conocimientos y experiencias vitales. Registra
y expresa largos procesos de evolución histórica, constituyendo la esencia de muy
diversas identidades nacionales, regionales, locales, indígenas y es parte integrante
de la vida moderna. Es un punto de referencia dinámico y un instrumento positivo de
crecimiento e intercambio. La memoria colectiva y el peculiar Patrimonio cultural de
cada comunidad o localidad es insustituible y una importante base para el desarrollo
no solo actual sino futuro.

Seis princípios são estabelecidos na Carta:

1. Desde que el Turismo nacional e internacional se ha convertido en


uno de los más importantes vehículos para el intercambio cultural, su
conservación debería proporcionar oportunidades responsables y bien
gestionadas a los integrantes de la comunidad anfitriona así como
proporcionar a los visitantes la experimentación y comprensión
inmediatas de la cultura y patrimonio de esa comunidad

2. La relación entre los sitios con Patrimonio y el Turismo, es una


relación dinámica y puede implicar valoraciones encontradas. Esta
relación debería gestionarse de modo sostenible para la actual y para
las futuras generaciones.

3. La Planificación de la conservación y del turismo en los Sitios con


Patrimonio, debería garantizar que la Experiencia del Visitante le
merezca la pena y le sea satisfactoria y agradable

4. Las comunidades anfitrionas y los pueblos indígenas deberían


involucrarse en la planificación de la conservación del Patrimonio y en
la planificación del Turismo.

5. Las actividades del Turismo y de la conservación del Patrimonio


deberían beneficiar a la comunidad anfitriona.

387
6. Los programas de promoción del Turismo deberían proteger y
ensalzar las características del Patrimonio natural y cultural.

A orientação básica do documento relaciona o envolvimento da


comunidade, a planificação e o re-direcionamento dos recursos em benefício
da manutenção, gerenciamento e preservação dos recursos dessa mesma
coletividade. O que está em jogo nos processos de revitalização,
reconhecimento ou preservação de sítios e monumentos não é o turismo em
si, mas a maneira de manejá-lo em prol da educação e da divulgação do
conhecimento. A atividade turística é, portanto, produto da sociedade capitalista
industrial e se desenvolveu sob o impulso de motivações diversas, que incluem o
consumo de bens culturais. O turismo cultural, tal qual o concebemos atualmente,
implica não apenas a oferta de espetáculos ou eventos, mas também a existência e
preservação de um Patrimônio Cultural representado por museus, monumentos e
locais históricos. Além do valor cultural específico, do ponto de vista do turismo
cultural, esses bens materiais possuem outro valor, o de serem objetos
indispensáveis, cujo consumo constitui a base de sustentação da própria atividade.
O mesmo acontece com o patrimônio ambiental, cuja valorização ultrapassa sua
importância para a qualidade de vida das populações locais (RODRIGUES, 2001, p.
17).

O turismo cultural pode, sem dúvida alguma, elevar os níveis sócio-


econômicos locais e promover a manutenção dos indivíduos em seus
espaços de origem, além de determinar investimentos humanos e financeiros
em benefício da preservação das fontes atrativas – naturais ou culturais –,
como parte da consciência de que uma vez esgotado ou destruído esses
recursos, também desaparecem os fluxos turísticos. Percebe-se, portanto,
que a noção de turismo cultural admite aspectos positivos e negativos,
dependendo exclusivamente do manejo em relação ao mesmo.

Cuéllar demonstra essa preocupação no seu relatório: o reconhecimento


da contribuição do patrimônio histórico e cultural para a promoção do turismo tornou-
se um lugar comum. O turismo está se tornando rapidamente a maior indústria
mundial; é o Patrimônio Cultural que lhe fornece grande parte da força vital. A
relação simbiótica entre os dois conceitos é evidente, tendo conduzido à emergência

388
da chamada indústria do patrimônio (...)Contudo, a Comissão manifesta sua
preocupação com a possibilidade de que o Patrimônio Cultural venha a se tornar um
bem a serviço exclusivo do turismo, degradando-se e dilapidando-se no processo;
(...) Muitos observadores alertam quanto aos limites da capacidade de visitação de
monumentos e centros históricos. O número excessivo de visitantes já causou
efeitos catastróficos ao estado de conservação e ao tecido social e ambiental de
vários sítios. O próprio turismo tem sido afetado de forma adversa nos centros
urbanos históricos, deteriorados pela decadência da situação imobiliária, pelo
tráfego fora de controle e pela poluição atmosférica (1997, p.244).

O maior desafio em relação ao desenvolvimento de construir uma


política cultural sobre as bases da preservação consiste em passar dos
princípios à prática. O planejamento é etapa primordial, mas o grande
enfrentamento situa-se na esfera econômica: grupos imobiliários tendem a
impor um crescimento em áreas de fluxo turístico, ampliando os espaços
tradicionais nem sempre de maneira consciente, o que significa
descaracterização, sistemas de esgotos impróprios ou insuficientes e
introdução de estabelecimentos – restaurantes, clubes e disco – díspares em
relação à identidade local, além disso, impõem um fluxo monetário proibitivo
aos próprios habitantes da comunidade, que passam a não conseguir
comprar ou ocupar o seu próprio pedaço de terra.

Porém, várias comunidades têm utilizado o turismo de maneira séria e


controlada e feito dessa atividade um elemento positivo para o seu próprio
desenvolvimento econômico e social: Costa Rica, atualmente, é um país que
vive basicamente da indústria turística, desenvolvendo programas ambientais
de repercussão internacional, como a reprodução das tartarugas marinhas e
o manejo controlado de suas florestas.

Apesar desses problemas, várias organizações, comunidades e


governos têm se organizado com o intuito de inscrever seus monumentos,
sítios e centros históricos na World Heritage List. Em 1994, um comitê da
UNESCO elaborou um dossiê denominado Global Study, o qual tinha como
objetivo verificar a representatividade da lista. Apresentado na Tailândia, em
novembro, reuniu experts da Austrália, Brasil, Canadá, França, Alemanha,

389
Nigéria, Siri Lanka e Tunísia. O texto expressa o consenso, entre os
participantes do debate, quanto às lacunas e à dificuldade de se chegar aos
parâmetros técnicos, científicos e teóricos nos métodos de definição dos
bens culturais de natureza representativa e nos processos seletivos passíveis
de credibilidade e legitimidade. No segundo ponto de discussão, o
documento afirma: It was apparent to all the participants that from its inception the
World Heritage List had been based on an almost exclusively “monumental” concept
of the cultural heritage, ignoring the fact that not only scientific knowledge but also
intellectual attitudes towards the extent of the notion of cultural heritage, together
with the perception and understanding of the history of human societies, had
developed considerably in the past twenty years. Even the way in which different
societies looked at themselves – their values, history, and the relations that they
maintained or had maintained with other societies – had developed significantly. Até
1972, a idéia de Patrimônio Cultural parecia circunscrita aos monumentos
arquitetônicos, paulatinamente os documentos ampliaram esse conceito e os
monumentos passaram a adquirir uma correspondência maior e
multidimensional em relação à cultura, principalmente com a inclusão do
sentido do patrimônio intangível.

Como conclusões gerais, o grupo de trabalho ressalta:

1) a Europa encontra-se mais representada (over-represented)


em relação ao resto do mundo;

2) as cidades históricas e os edifícios religiosos encontram-se


mais representados em relações a outros tipos de
propriedades;

3) monumentos cristãos são mais representados do que os


oriundos de outras religiões;

4) a arquitetura de elite encontra-se mais representada do que


a arquitetura vernacular;

5) de uma maneira geral, as culturas vivas – em especial as


tradicionais – e sua maneira de viver pouco figuram na lista.
Apenas suas construções de valor arquitetônico são

390
consideradas, excluindo outras representações de valor
econômico, simbólico, social e filosófico que representam
sua interação com o ambiente natural e a diversidade.

6) A divisão, patrimônio natural e Patrimônio Cultural, parece


simplificada diante do leque de possibilidades.

391
GRÁFICO 3 : Fluxo Turístico
Em 1992, 482 milhões de pessoas viajaram

FLUXO TURÍSTICO POR REGIÃO (em milhões))

280 EUROPA

101 AMÉRICA LATINA E NORTE

74 ÁSIA

21 ÁFRICA

Fonte: Cuéllar, 1997

392
GRÁFICO 4 : Patrimônio Cultural
Em 1995, 321 sítios faziam parte da WHL

NÚMERO DE SÍTIOS POR REGIÃO

174 EUROPA E AMÉRICA DO NORTE

40 AMÉRICA LATINA

91 ÁSIA E EMIRADOS ÁRABES

16 ÁFRICA

Fonte: Cuéllar, 1997

393
Em relação ao primeiro ponto, estudos da UNESCO apresentados no
livro de Cuéllar (1997, p. 234, 243), demonstram a disparidade entre o
número de monumentos na Europa e no restante do mundo. Uma
comparação entre o Gráfico 3 e Gráfico 4 pode fornecer uma relação entre
o número de sítios relacionados na WHL e o fluxo de turismo por região.

A crença exagerada nos modelos modernos de arquitetura e


urbanização conduziu à demolição de trechos inteiros de cidades pré-
coloniais, de aldeias indígenas ou de vestígios de um passado próximo.
Nesses casos, a percepção das comunidades não se aproximou da idéia de
patrimônio histórico como fonte de identidade, mas como conceito de
ultrapassado, antiquado e atrasado, incentivado pela iniciativa privada que
vende a idéia de progresso em blocos de cimento armado e esquadrias de
vidro, erradicando a diversidade da malha urbana e convertendo o espaço
dos centros históricos em espaço de uso comercial.

Esses problemas, que atingem grandes centros urbanos como Roma


ou pequenos centros como Ouro Preto, traduzem a complexidade de
normatizar o uso do espaço cultural na sociedade contemporânea. Como as
leis e os tratados de proteção em períodos de guerra, diante da pressão do
mercado turístico ou imobiliário, as normas relacionadas à preservação de
bens culturais torna-se cada vez mais difíceis de serem cumpridas.

Porém, os próprios documentos elaborados com em torno do sentido


da preservação apontam para as possibilidades de enfrentamento e solução
dos problemas: a conscientização da comunidade; uma via de
responsabilidade, cumplicidade e valorização endógena; a compreensão
primeira dos riscos e benefícios das atividades turísticas por parte dos
habitantes locais e um fórum de discussão permanente envolvendo o
cidadão, que de expectador passa a agente da preservação, têm suscitado
experiências bem sucedidas. Instituições de classe, como as associações de
arquitetos, restaurados, arqueólogos, museólogos, preenchem os espaços
deixados por entidades governamentais e auxiliam as comunidades locais a
gerir a conservação cultural.

394
Como a mídia, o turismo cultural pode render bons frutos, desde
conscientemente manejado e diretamente direcionado para o bem estar da
população que recebe os visitantes. Em relação à mídia, podemos perceber
um paralelo entre suas projeções e as projeções do turismo cultural: uma
nova esfera de mídia ampliou consideravelmente os mecanismos de
transmissão de conhecimento, informações e, portanto, educação. Dirigida a
uma cultura de massas, baseada na divulgação de mercadorias produzidas
em série, as várias possibilidades comunicacionais – rádio, televisão, cinema,
internet – tendem a homogeneizar a percepção de realidade. Porém, podem
ampliar o acesso à educação, quando transcende as experiências
particulares e as tornam universais. Em sua biografia, Nelson Mandela relata
o encontro que teve no Círculo Ártico com um grupo de jovens inuit:

Ao conversar com aqueles brilhantes jovens brancos, descobri que eles


haviam visto minha libertação pela televisão e que estavam familiarizados com os
eventos da África do Sul. Os “inuit” são um povo aborígine historicamente maltratado
por uma população de colonos brancos. Há paralelos entre as lutas dos negros sul-
africanos e do povo inuit. O que me marcou enormemente foi descobrir que o mundo
havia se tornado tão pequeno durante minhas décadas de cativeiro. Era
impressionante, para mim, saber que um adolescente inuit, que mora no teto do
mundo, podia ver a libertação de um prisioneiro político no extremo sul da África. A
televisão realmente encolheu o mundo e se tornou uma grande arma para a
erradicação da ignorância e para a promoção da democracia. (MANDELA, apud
CUÉLLAR, 1997, p. 137).

De acordo com a proposta da Carta do Turismo Cultural, de 1999: el


turismo debería aportar beneficios a la comunidad anfitriona y proporcionar
importantes medios y motivaciones para cuidar y mantener su Patrimonio y sus
tradiciones vivas. Con el compromiso y la cooperación entre los representantes
locales y/o de las comunidades indígenas, los conservacionistas, los operadores
turísticos, los propietarios, los responsables políticos, los responsables de elaborar
planes nacionales de desarrollo y los gestores de los sitios, se puede llegar a una
industria sostenible del Turismo y aumentar la protección sobre los recursos del
Patrimonio en beneficio de las futuras generaciones.

395
O sentido de uso do Patrimônio Cultural e pela busca do sentido da
preservação, perseguido no decorrer desse trabalho. O resultado que
diferencia as ações conscientes das atividades mal planejadas pode ser
visualizado em vários centros turísticos de todo o mundo; em países
desenvolvidos e subdesenvolvidos. A preservação do Patrimônio Cultural, no
entanto, é proporcionalmente mais difícil quanto maior for o nível de pobreza
e menor o nível de educação: a conservação de bens culturais torna-se um
luxo em contextos que imperam a fome, a miséria, a exclusão social e os
conflitos armados (internos ou externos). Por sua vez, as ações
conservacionistas em centros urbanos desequilibrados, cuja qualidade de
infra-estrutura – saneamento, esgoto, coleta de lixo, transporte, segurança –
deixa a desejar, tampouco rendem resultados.

Em relação à Educação dos agentes culturais, dos cinqüenta e cinco


textos levantados, pelo menos trinta tratam da indispensabilidade de
investimento em mão de obra qualificada, dos técnicos mais simples aos
cientistas envolvidos no processo, e do intercâmbio entre nações no que
tange o desenvolvimento de métodos de prospecção, estruturação,
consolidação e apresentação dos bens culturais móveis e imóveis. Desde a
Carta de Veneza, que as noções relacionadas à especialização de
profissionais relacionados diretamente com o manejo dos bens culturais
influenciou as instituições a desenvolverem programas de treinamentos
específicos, com o intuito de divulgar e aprimorar métodos apropriados e
critérios conscientes a partir das características particulares de cada
comunidade ou região. To define the knowledge and skills required in conservation
means defining conservation itself –- its aims, approaches, and methods. But each of
these is rapidly evolving. Aims have, rightly, escalated to encompass public
awareness, holistic management, cultural economics, and risk assessment.
Approaches have shifted decisively from remedial treatment to preventive and
passive intervention, and from a focus on individual objects to sites and collections.
Methods have proliferated hugely as scientific technology is more effectively
harnessed, and in response to the more complex demands of passive intervention.
Moreover, the professional, and hence educational, definitions of the individuals who
under-take this bewildering range of activities depends, in turn, on the administrative

396
infrastructure of conservation, on who legally –- or traditionally –- is responsible for
what. This varies not only nationally (and even occasionally regionally) but also with
the proprietary context within which the conservation is undertaken –- that is,
whether public or private, and whether it is a site, museum, or historic building in
current use. (CARTHER, 2000, s.p).

De acordo com essas noções, treinamentos ou oficinas de curto,


médio e longo prazo visam preparar os profissionais de cada área específica,
direcionando o repertório ou o programa dos cursos a partir das
necessidades e da tipologia do patrimônio local. Comitês específicos buscam
desenvolver programas que atendam tanto a necessidade de
aperfeiçoamento de profissionais que já trabalham na área, quanto de
ingressantes. Os resultados desses cursos são importantes, principalmente
para os países que carecem de cursos específicos40.

No documento Guidelines for Education and Training in the


Conservation of Monuments, Ensembles and Sites, de 1993, a Conservação
do Patrimônio Cultural é vista como um campo de atuação amplo,
relacionado ao desenvolvimento cultural, ambiental e tecnológico de maneira
concomitante. As estratégias de manejo implicam, portanto, em uma ação
que combine o respeito ao patrimônio – e sua preservação material – com a
integração desse bem cultural nas esferas sociais e econômicas, incluindo o
turismo. Apesar do objetivo primeiro da Conservação seja prolongar a vida
útil do Patrimônio Cultural e resgatar sua integridade física e estética,
baseado em estudos científicos e humanísticos apoiados na pesquisa
sistemática, o respeito ao contexto cultural deve possuir o mesmo peso que o
respeito à obra. Desse modo, partindo do pressupondo de que a qualificação
desses profissionais deva ser ao mesmo tempo ampla – no que tange os
aspectos éticos, históricos e sociológicos – e específica – em relação à
especialidade do tipo de patrimônio que pretende manejar, os programas de

40
Por duas vezes tive oportunidade de participar de cursos oferecidos pelo The Getty
Conservation Institute: em 1994, uma oficina de Restauração e Conservação de Cerâmica, no
Chile e em 1995, no México, um curso de Conservação Preventiva em Museus. Como
resultado imediato, a remodelação do Laboratório de Conservação do MAE e o planejamento
da Reserva Técnica, projetos patrocinados pela VITAE e FAPESP e que foram elaborados a
partir das noções apreendidas.

397
treinamento e cursos devem ter por objetivo:There is a need to develop a holistic
approach to our heritage on the basis of cultural pluralism and diversity, respected by
professionals, craftspersons and administrators. Conservation requires the ability to
observe, analyze and synthesize. The conservationist should have a flexible yet
pragmatic approach based on cultural consciousness which should penetrate all
practical work, proper education and training, sound judgment and a sense of
proportion with an understanding of the community's needs. Many professional and
craft skills are involved in this interdisciplinary activity.

Desde 1973, quando o Curso Internacional dos Princípios Científicos


da Conservação foi idealizado por Paul Philippot, que as atividades de
Conservação foram reconhecidas como interdisciplinares. De acordo com as
experiências adquiridas com a formatação desse curso – divulgado e
regulamente oferecido pelo ICCROM, dentro e fora da Itália –, foi perceptível
a visão de que vários especialistas envolvidos com a área – restauradores,
técnicos de laboratório, historiadores da arte, arqueólogos – recebem um tipo
de qualificação que não prevê a colaboração multidisciplinar, resultando
numa situação em que, apesar dos mesmos interesses, esses especialistas
não falem uma mesma linguagem ou compartilhem uma base comum de
conhecimento que leve à uma ação conjunta desenvolvida de forma
harmoniosa. Como proposta básica do curso, a junção de profissionais de
áreas diversas, mas que dependem de critérios baseados em noções
científicas, determinou um programa ancorado nas diferentes áreas: teoria da
conservação, estrutura de materiais; tecnologia da conservação,
planejamento e manejo integrado dos sítios, monumentos e conjuntos
arquitetônicos.

398
7. A PRESERVAÇÃO NO CONTEXTO NACIONAL

7.1. A influência das cartas internacionais nos


princípios balizadores da instituição federal
Quando propomos o debate e a reflexão sobre as políticas de
patrimônio histórico, queremos trata-lo não apenas no âmbito
restrito das técnicas de intervenção ou dos critérios de
identificação e preservação e seus conceitos operacionais.
Para além desses aspectos, é preciso politizar o tema,
reconhecendo as condições históricas em que se forjaram
muitas de suas premissas – e articulando-as com as lutas
pela qualidade de vida, pela preservação do meio ambiente,
pelos direitos à pluralidade e sobretudo pelo direito à
cidadania cultural. Com isso esperamos retomar um sentido
de patrimônio histórico que nos permita entende-lo como
prática social e cultural de diversos e múltiplos agentes.
Déa Fenelon. Políticas culturais e patrimônio histórico. In: O direito
à memória, 1992: 31.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, hoje


vinculado ao Ministério da Cultura, foi criado em 30 de novembro de 1937,
pelo decreto-lei nº 25 sob o nome de Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – SPHAN. Nesse momento histórico – a ditadura getulista –
, o então Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, confiou a
Rodrigo Melo Franco de Andrade a tarefa de implantação do Serviço do
Patrimônio e do estabelecimento das diretrizes políticas das ações relativas
ao gerenciamento e preservação dos bens culturais.

Esse momento coincide com a discussão, no âmbito internacional, da


preservação de bens históricos e artísticos: desde a reunião de 1930,
promovida pela Liga das Nações, agentes culturais no Brasil buscaram
concentrar esforços visando à proteção dos bens patrimoniais internos ao
país, redigindo uma legislação específica, preparando técnicos, realizando
tombamentos, restaurações e revitalizações que asseguraram a permanência
da maior parte do acervo arquitetônico e urbanístico brasileiro, bem como do

399
acervo documental e etnográfico, das obras de arte integradas e dos bens
móveis.

Como ações antecedentes à criação de um organismo


preservacionista na esfera federal, encontramos que o primeiro documento
administrativo referente à proteção de monumentos de valor histórico no
território nacional data de 1742, quando Dom André de Melo Castro, Conde
de Galveias e Vice-Rei do Estado do Brasil, expediu ao governador de
Pernambuco Luís Pereira Freire de Andrade, uma carta visando a proteção
das construções ali deixadas pelos holandeses. Apesar do interesse
demonstrado por Dom Pedro II em relação aos estudos da história da Pátria
e aos próprios monumentos artísticos do país, a próxima tentativa ocorreu
mais de um século depois, com o aviso de 13 de dezembro de 1855
expedido pelo Ministro do Império, Conselheiro Luiz Pedreira de Couto
Ferraz, que transmitia ordens aos Presidentes das Províncias e ao Diretor
das Obras Públicas da Corte (OSWALDO, 1987, p. 186-9).

Em 1920, Alberto Childe, conservador de Antigüidades Clássicas do


Museu Nacional do Rio de Janeiro, foi encarregado pelo Professor Bruno
Lobo, presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes, de elaborar um
anteprojeto de lei em defesa do patrimônio artístico nacional: o anteprojeto
estava direcionado especificamente à proteção do patrimônio arqueológico,
propondo inclusive a desapropriação dessas áreas como medida de proteção
e de garantia da pesquisa arqueológica in situ. Tal proposta gerou polêmica
entre os membros, considerando que a sociedade agrária e coronelista – a
qual encontrava-se no poder – não admitia qualquer forma de expropriação
de seus bens, fazendo com que o projeto de preservação dos bens culturais
brasileiros não tivesse, assim, seguimento. Um outro projeto, de autoria do
deputado pernambucano Luiz Cedro, apresentado em 3 de dezembro de
1923, visava organizar a proteção dos monumentos artísticos, mas ao
contrário de Alberto Childe, esse não se preocupava com os monumentos
arqueológicos, mas com os museus, igrejas e casas históricas. Um ano
depois, Augusto de Lima apresentou um projeto que visava proibir a saída de
obras de arte “antigas” para o estrangeiro: o projeto, no entanto, não era

400
viável uma vez que entrava em choque com a Constituição Federal e com o
Código Civil, que não previam sanção alguma contra os que agissem em
detrimento do patrimônio.

A partir desses relatos, fica claro que as iniciativas tomadas para a


proteção dos monumentos eram desconectadas umas das outras, além de
descontínuas, demonstrando a má vontade do poder constituído de fazer
com que a preservação dos bens culturais brasileiros fossem prioritárias e a
falta de uma política séria para essa questão. Na década de vinte houve um
deslocamento das iniciativas de proteção do patrimônio histórico da esfera
federal para a esfera estadual: em 1925, o governo de Minas Gerais, através
do presidente do Estado Melo Vianna, encaminhou medidas para o
Congresso Nacional para impedir a dispersão do patrimônio histórico e
artístico das velhas cidades mineiras. O projeto não surtiu efeito no âmbito
federal. Pouco tempo depois, Bahia e Pernambuco decidiram organizar a
defesa de seus acervos históricos. A Bahia, com o então presidente estadual
Francisco M. Góis Calmon, através das leis estaduais n. 2031 e n. 2032 de 8
de agosto de 1927, regulamentadas pelo decreto 5339 de 6 de dezembro de
1927, criou a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais. Pernambuco,
pela lei estadual n. 1918 de 24 de agosto de 1928, criou a Inspetoria
Estadual de Monumentos Nacionais e um Museu.

Apesar das medidas adotadas, os Estados não conseguiam assegurar


a proteção dos monumentos históricos e artísticos, pois o Código Civil não
previa sanções aos que atentassem contra o patrimônio. Em agosto de 1930,
o deputado baiano José Wanderley de Araújo apresentou à Câmara um novo
projeto para a proteção dos monumentos históricos, que com a dissolução do
Congresso Nacional causada pela Revolução de outubro de 1930 tornou-se
sem efeito; mesmo assim, esse projeto tem um papel muito importante entre
os antecedentes do Decreto-Lei n° 25. Nessas circunstâncias, Getulio
Vargas, líder civil de um movimento armado, tornou-se presidente do Brasil41.

41
A posse de Getulio Vargas ocorreu logo depois dos militares terem deposto o governo legal
de Washington Luis e terem impedido Julio Prestes de tomar posse apesar de ter vencido
Getulio nas eleições oficiais.

401
Finalmente, em 1933 surgiu a primeira lei federal sobre a matéria, o
decreto n° 22928 de 12 de julho, que erigia a cidade de Ouro Preto como
Monumento Nacional. Em 14 de julho de 1934, o decreto n° 24735 aprovou
um novo regulamento para o Museu Histórico Nacional. A partir desses
dados, podemos perceber a dificuldade existente para a criação de uma
política realmente preocupada com a preservação nacional e, mais adiante,
poderemos perceber que esta ausência de compromisso efetivo se repete no
não seguimento das políticas adotadas e dos compromissos políticos
anunciados. A nova Constituição Federal de 1934 é que cria, efetivamente, a
proteção legal do patrimônio artístico e histórico brasileiro. Em 1935, no
Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Natureza, ocorrido no Rio de
Janeiro, surge a decisão de se criar um serviço técnico especial de
monumentos nacionais.

1937-1967 – A memória oficial

O Presidente Getúlio Vargas aprovou em 1936 a iniciativa do Ministro


da Educação Gustavo Capanema de implantar o projeto do Serviço do
Patrimônio e autorizou a contratação de pessoal para a constituição do órgão
federal em caráter provisório. Depois de aprovado pela Câmara, o projeto foi
modificado pelo Senado e novamente afetado pela dissolução do Congresso
Nacional, ocorrida em novembro de 1937, pelo golpe de Estado: o Brasil
iniciou, a partir de então, oito anos de regime autoritário. Nesse período de
imposições governamentais, foram criadas algumas legislações específicas
para a preservação do patrimônio histórico e artístico, sendo que a mais
importante é o Decreto-Lei n° 25 de 30 de novembro de 1937 que organiza a
proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e oficializa a instância
administrativa federal responsável por essa função por meio da criação do
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que já funcionava, como
visto, experimentalmente.

Dando-se a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional (SPHAN), com a Direção-Geral de Rodrigo Melo Franco de
Andrade, podemos perceber, principalmente pelas entrevistas de Rodrigo,

402
que os primeiros anos do órgão foram de grandes esforços pessoais, porém
carentes de recursos humanos e financeiros. Neste contexto, em data de 23
de dezembro de 1940, foi criado o Decreto-Lei n° 2809 que dispunha sobre a
aceitação de donativos particulares pelo SPHAN e nesse mesmo ano, a 7 de
dezembro, foram feitas algumas modificações no Código Penal.

Em relação às discussões internacionais, Oswaldo Aranha participou


como representante brasileiro do debate em Montevidéu em relação ao Pacto
de Roerich, firmado em abril de 1935 entre as nações americanas como
documento balizador das normas de preservação de bens culturais em
momentos de guerra. Parceiro político de Getúlio Vargas, o advogado
Oswaldo Aranha foi Ministro da Justiça durante o governo provisório (1930) e
Ministro da Fazenda e líder na Assembléia Geral Constituinte após a
revolução paulista de trinta e dois. Entre 1934 e 1938, foi nomeado
Embaixador do Brasil nos Estados Unidos, exercendo representatividade
diplomática na II Reunião Pan-Americana de Geografia e História e na
Conferência de Paz em Buenos Aires em 1936. Com a instalação do
chamado Estado Novo, a 10 de novembro de 1937, Oswaldo Aranha, de
regresso ao Brasil, foi nomeado Ministro das Relações Exteriores (1938-
1944) e logo a seguir representante do Brasil nas Nações Unidas (1946-
1947), sendo eleito Presidente da Sessão Especial que criou a nova nação
de Israel, pela qual muito batalhou, tendo, mesmo, sido a principal figura nos
debates em defesa do povo judeu (SPALDING, 1969: sp).

Não obstante a proeminência política da figura de Oswaldo Aranha,


suas ações enquanto jurista estavam mais relacionadas às implicações legais
dos pactos e acordos assinados, não existindo, nenhuma ingerência
específica em relação à preservação do Patrimônio Cultural ou à introdução
dos parâmetros discutidos externamente no processo de construção interna
de uma política governamental de proteção dos bens culturais. Rodrigo Melo
Franco de Andrade, Paulo Duarte e Mário de Andrade eram, nessa época, os
grandes promotores de um debate interno quanto à tomada de consciência
em relação à preservação dos bens culturais nacionais; mas, o aliado político
de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, é quem foi nomeado Ministro da

403
Educação e Saúde em 1933, ocupando a pasta até 1945. Nesse momento
específico, o debate internacional ao redor do tema encontrava-se paralisado
em virtude dos conflitos europeus: a Carta de Atenas (1931) e o Pacto de
Roerich (1935) eram os únicos documentos internacionais reconhecidos.

O meio intelectual brasileiro não desconhecia o direcionamento


externo: entre as recomendações propostas na Carta de 1931 encontrava-se
a solicitação aos governos e autoridades de cada país de organizar leis
internas de proteção patrimonial e ao Escritório Internacional de Museus a de
elaborar um relatório comparativo que compilasse as legislações já
estabelecidas. Coincidência ou ciência, nesse momento específico, o
governo brasileiro toma a iniciativa de formalizar legalmente as normas para
a proteção do Patrimônio Cultural nacional: A Constituição Federal de 1934
inicia ao nível nacional a proteção legislativa ao patrimônio histórico e artístico
brasileiro. Além do artigo 148, a alínea III do artigo 10 declara que compete
concorrentemente à União e aos Estados proteger as belezas naturais e os
monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de
arte (SALA JR., 1988, p. 18).

Em um discurso proferido em 1939 na Escola Nacional de Engenharia


(OSWALDO, 1939, p. 54), Rodrigo demonstra um certo conhecimento da
Carta de Atenas: a inteligência dos técnicos se vem esclarecendo e cultivando em
relação aos problemas em apreço, ao mesmo tempo em que a sua sensibilidade se
afina em face dos monumentos do passado. Os novos princípios de urbanismo que
foram sustentados nos congressos internacionais de arquitetura moderna e
urbanismo e se consubstanciaram nas “Conclusões de Atenas, 1933”, põem em
xeque a velha técnica que prevaleceu durante o século XIX, e que exigia
sistematicamente os alinhamentos rígidos e as avenidas implacavelmente retas,
com a derrubada estrondosa de tudo quanto lhes surgisse pela frente, por mais
precioso e venerável que fosse. Apesar dos documentos da UNESCO e
ICOMOS estabelecerem o congresso com a data de 1931, em vários outros
textos o encontro aparece como tendo sido realizado em 1933 (ROCHA
FILHO, 1991); (NEVES, 1987).

A influência de Gustavo Capanema junto ao governo Vargas foi

404
fundamental, neutralizando uma certa animosidade que o então ditador
(1937-1945) tinha em relação às posturas mais avanças de Rodrigo Melo e,
principalmente, Mário de Andrade. É de notório saber, registrado
principalmente em publicações da década de oitenta e nas próprias cartas de
Rodrigo Melo Franco de Andrade, que o mentor intelectual da proposta
estrutural de criação da Secretaria do Patrimônio foi Mário de Andrade. O
anteprojeto, criado quando Mário ocupava a direção do Departamento de
Cultura do Município de São Paulo (1936), abarcava as categorias de arte
arqueológica, ameríndia, popular, histórica, erudita nacional, erudita
estrangeira, aplicadas nacionais e aplicadas estrangeiras. A atuação de Mário
de Andrade ao elaborar o anteprojeto da lei estabelecendo as condições de
funcionamento de uma entidade governamental destinada à preservação do
Patrimônio Cultural é sempre lembrada como pioneira face ao ineditismo das
propostas, surpreendendo a todos, sobretudo a abrangência das idéias ali contidas
(LEMOS, 1993, p. 17).

A visão social, introduzindo a noção de patrimônio intangível e cultura


popular, não agradou a elite que se encontrava no poder: o projeto
nacionalista de Getúlio Vargas, baseado em uma construção paternalista da
figura estatal, na organização social controlada e num discurso ancorado em
uma modernidade prometida, não admitia a socialização do conhecimento a
partir do respeito às especificidades das comunidades brasileiras. O projeto
político getulista desconsiderou as diferenças lingüísticas, comportamentais e
ideológicas na busca de uma sociedade homogeneizada: a construção da
nação, enquanto ideologia política do moderno Estado nacional, envolvia
uma representação ideal de como a sociedade deveria ser organizada (REIS,
1988: 191), e a abertura de caminhos autônomos não seria bem vista nesse
momento histórico.

O anteprojeto de Mário de Andrade é suficientemente conhecido e


dispensa maiores comentários. Em face das mutilações ao texto original,
devido às alterações feitas por Rodrigo Melo – o qual foi incumbido por
Capanema da tarefa de redigir o projeto de lei efetivamente encaminhado ao
Congresso –, o próprio Mário responde aos amigos: Vocês (Capanema e

405
Rodrigo) ajudem com todas as luzes possíveis a organização definitiva, façam e
desfaçam, à vontade, modifiquem e principalmente acomodem às circunstâncias, o
que fiz e não tomou em conta muitas circunstâncias porque não as conhecia.
Não sou nem turrão nem vaidoso de me ver criador de coisas perfeitas. Assim, não
temais jamais me magoar por acomodações ou mudanças feitas no meu anteprojeto
(apud LEMOS, 1981, p. 38).

As cincurstâncias eram o golpe, a ditadura, o exílio do amigo Paulo


Duarte e do prefeito de São Paulo. O confronto entre as duas propostas
resulta de diferentes posturas em relação à cultura e seu interstício social: há
no projeto de Mário uma preocupação dominante em integrar as expressões da
cultura popular no elenco do patrimônio histórico e artístico do país, ênfase
desprezada nos termos da lei (ANDRADE, 1993, p. 110). O projeto apresentado à
Câmara, por sua vez, preocupa-se com a organização administrativa do
serviço e o caráter de monumentalidade transpareceu em toda noção
apresentada. O conflito maior se dá entre o projeto de Mário, pluralista em termos
de cultura (e congruente com o projeto político federativo de Sales de Oliveira) e o
decreto da ditadura, unificador de uma cultura nacional sob o signo da propriedade e
da igreja (SALA JR, 1988, p. 30). Até mesmo na nomenclatura, vemos essa
disparidade: enquanto o projeto de Mário considerava o patrimônio artístico,
cujo sentido de arte era lato, através da denominação do órgão como Serviço
do Patrimônio Artístico, o projeto encaminhado à Câmara estabelece a
nomenclatura de Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
considerando a história e a nação os eixos de ligação para a determinação
do que seria a arte. A invenção da tradição faz parte da construção do
conceito de Estado moderno, e os domínios da memória – personificado no
culto ao passado – investem de identidade um elite que se pretende culta,
simbolicamente detentora dos poderes herdados pelo sobrenome dos
antepassados que ergueram ou foram aclamados nos monumentos erguidos:
os vestígios de um passado construído para ser cultuado serviram para reforçar uma
concepção de patrimônio que o destituía de toda historicidade (CUNHA, 1992, p.
11).

Para Sérgio Miceli (1987, p. 44), a diferença entre os dois intelectuais


também resulta das diferenças forjadas na história de vida de cada um: a

406
experiência social cosmopolita de um autodidata de gênio, mulato, sem profissão
definida entre os homens de sua classe de origem, às voltas com uma sociedade
complexa, diversificada, em ritmo alucinante de transformação, marcada pelo
trinômio imigração-urbanização-indutrialização, contrastava com o projeto de vida
acalentado pelo herdeiro das elites mineiras cindido entre as lides burocráticas e
renome literário. Contudo, até que ponto Rodrigo espelhava essa face? Até
que ponto foi conduzido pelas circunstâncias? O próprio Mário de Andrade se
calou e consentiu as modificações todas, participando do cenário oficial então
montado.

Os estudos recentes sobre as políticas públicas dessa primeira fase


do SPHAN (1937-1967) criticam sua atuação sedimentada pela defesa dos
“monumentos da oligarquia”, no entanto, Antônio Luiz Dias afirma (1993, p.
112) fosse verdadeira a opção ideológica pelo patrimônio da oligarquia, não deixaria
de ser paradoxal constatarmos haver sido justamente o Estado Novo, em sua
cruzada contra os interesses oligárquicos, o promotor da preservação dos bens
culturais no Brasil. Essa contradição é inerente ao regime autoritário que se
estabeleceu e que se apóia no consenso entre a opinião pública, o apoio dos
exércitos e os acordos com as elites. Em relação à política de preservação, o
que se viu no Brasil também é um reflexo dos modelos intelectuais forjados
desde a Carta de Atenas, e que se estrutura ao redor do patrimônio
edificado. Sob a ótica ideológica, conforme observa Elisa Reis (1988, p.191),
na experiência brasileira, a “nação” como ideologia política aparece antes mesmo da
Independência. Ela estava claramente presente na obra dos doutrinários e políticos
que, pregando ou antevendo a Independência, refletiam sobre a organização da
sociedade brasileira. Contudo, foi somente durante o primeiro período republicano
que projetos de construção da nação adquirem maior especificidade, e somente com
o experimento de modernização autoritária, sob Vargas (1930-1945), uma
ideologia nacional ganhou maior relevância na política.

A preservação de monumentos “oligárquicos” ou representantes de


outras formas de poder; a representatividade da cultura branca em
detrimento de outras culturas; o culto à história ou àquela história que o
Ocidente considerava pertinente e a utilização dos bens culturais como
estruturação de uma identidade nacional estavam presentes nos discursos de

407
vários países, principalmente nos recém formados ou independentes, como a
própria Itália, os Estados Unidos, a Argentina ou o Brasil. A construção
moderna do conceito de nação perpassa pela definição do Estado e pelo
caráter homogenizador do qual ele se reveste: nous entendons par nation une
société matériellement et moralement intégrée, à pouvir central stable, permanent, à
frontière déterminées, à relative unité morale, mentale et culturelle des habitants que
adhèrent consciemment à l’ État et à sés lois (MAUSS, 1960, p. 573), do mesmo
modo que a construção do conceito de patrimônio perpassa pelo uso do
monumento para os mesmos fins. Nesse sentido, torna-se óbvio que a
preservação do patrimônio edificado, símbolo do poder ou de uma herança
cultural “superior” (a branca européia), seria consagrado como bases de uma
passado “edificante” e homogenizador: a visão das sedes do poder público e
religioso – representados pelas igrejas, capelas, quartéis, fortes, câmaras e
cadeias – e dos casarios da classe dominante, estabelecia um discurso
nivelador, onde o confronto entre a casa grande e a senzala; o nativo e o
colonizador; os excluídos e os detentores do poder deixavam de ser
reconhecidos. Vencia outra vez a perspectiva de consagrar como obras de arte e a
cultura os símbolos do poder constituído. Desprovida assim de memória coletiva que
lhe permitisse a consciência histórica – pelo efeito desagregador da impossibilidade
de acumular suas realizações como cultura – a maioria da população continuou sem
se reconhecer nesses símbolos. Com isso, foi expropriada também de sua memória
e da sua história (FENELON, 1992, p. 30).

O momento de construção do sentido de Patrimônio Cultural no Brasil


assemelha-se à proposta da construção do conceito de Patrimônio Cultural
pelo Escritório Internacional de Museus: apoiados nos textos de Riegl, o
conceito de patrimônio perpassa pela noção de bens móveis e imóveis de
valor histórico, artístico ou “de época”, considerando os feitos históricos como
guia para o reconhecimento dos bens culturais. A noção de
monumentalidade sobrepuja a de identidade; a cultura erudita, a popular e a
cultura imaterial é esquecida; por sua vez, o próprio Pacto de Roerich afirma
a dimensão ideológica do monumento como “tesouro” de um povo e sua
representação cultural, justificando o pacto: in order thereby to preserve in any
time of danger all nationally and privately owned immovable monuments which form

408
the cultural treasure of peoples. Repetindo esse modelo, o Decreto Lei n.25 de
30 de Novembro de 1937, proclama no artigo primeiro: constitui o patrimônio
histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no
País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico, bibliográfico ou artístico. Nesse mesmo decreto, o sistema
operacional e a tipologia classificatória são determinados pela categoria dos
Livros do Tombo:

Art. 4º – O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá


quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o
art. 1º desta lei, a saber:
1º) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas
pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e
popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º.
2º) no Livro do Tombo Histórico, as obras de arte histórica;
3º) no Livro do Tombo das Belas-Artes, as coisas de arte erudita nacional
ou estrangeira;
4º) no Livro do Tombo das Artes aplicadas, as obras que se incluírem na
categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.

Os critérios estabelecidos internamente em relação ao processo


seletivo de preservação envolvem parâmetros conceituais e classificatórios
correspondentes àqueles discutidos externamente. O sentido de valor,
assimilado completamente pelos intelectuais brasileiros a partir de noções
externas, pode ser identificado no próprio discurso de Rodrigo, para quem os
monumentos europeus são considerados os cânones da memória, apesar de
todos os seus esforços de preservar os monumentos nacionais, conforme
matéria publicada em O Jornal – RJ, em 30/10/1936 (OSWALDO, 1987, p.
48-49): Porque, em verdade, apesar dos valores artísticos e históricos existentes no
Brasil serem menos consideráveis, de um ponto de vista universal, que os que
possuem a Grécia, a Itália ou a Espanha, essa circunstância não é de molde a
desaconselhar a sua preservação, qualquer que seja o conceito formado sobre a
importância do nosso patrimônio comparado ao de tantas nações estrangeiras. E, de
resto, nem sempre o interesse das obras dessa natureza se medirá pela sua
perfeição ou pela sua riqueza de estilo, segundo um modelo clássico. Nas próprias
nações de patrimônio artístico mais opulento se atribui cada dia importância maior

409
às manifestações de arte primitiva ou exótica de outros povos. Mas, o que é,
sobretudo evidente é o valor inestimável que têm, para cada país, os monumentos
característicos de sua arte e de sua história. A poesia de uma igreja brasileira do
período colonial é, para nós, mais comovente do que o Parternon. Nos
pronunciamentos de Rodrigo Melo Franco de Andrade, reunidos em duas
publicações do IPHAN, o propósito de formar a opinião pública em relação a
uma consciência de um patrimônio nacional é patente; na seleção desses
bens, a arte colonial, principalmente a mineira, recebeu um destaque
incontestável42.

A idéia de patrimônio recebe o crivo de construção nacional: o Estado


autoritário e centralizador de Getúlio expurgou qualquer possibilidade de
divergência, intelectual ou política. Armando Salles de Oliveira, então
governador de São Paulo, cujo projeto democratizador federativo baseado na
autonomia dos Estados confrontava-se com a proposta de Vargas, encontrou
apoio em uma aliança política recém formada, a União Democrática
Brasileira. Em face à oposição paulista e à possibilidade de ser derrotado nas
urnas, Getúlio Vargas, apoiado pelo general Góes Monteiro, instala o Estado
Novo, destitui o Congresso Nacional e impede as eleições de 1938.

A ditadura estabeleceu limites ideológicos rígidos, sufocando qualquer


expressão contrária aos seus propósitos: o então deputado estadual Paulo
Duarte intencionava criar um Departamento de Cultura do Estado de São
Paulo que fosse forte o bastante para dar suporte a um projeto específico.
Nesse momento, o SPHAN já existia provisoriamente, sem, no entanto, o
crivo do Congresso Nacional; Rodrigo Melo responde, em 14 de outubro de
1937, à correspondência enviada por Mário de Andrade: Li com grande
satisfação o projeto apresentado pelo Paulo Duarte no sentido da criação do
departamento do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado. Saiu uma coisa mais
completa que o projeto da lei federal, porque seguiu mais de perto o seu notável

42
Influenciado pela formulação crítica proposta por Mário de Andrade: Mas foi, sem dúvida, o
pequeno ensaio de Mário de Andrade escrito em 1928, que revelou as obras do barroco
mineiro sob a ótica da moderna história crítica da arte, rompendo os vícios das apologias
tradicionais, ao apresentar o fenômeno artísticos de forma inseparável das formações sociais
e ideológicas, fornecendo as bases para o reconhecimento de uma arte genuinamente
nacional (ANDRADE, 1993, p.115).

410
anteprojeto (OSWALDO, 1987, p. 138). No entanto, o projeto paulista, baseado
em uma noção democrática de cultura, sofre restrições e perseguições.
Retido em 08 de janeiro de 1938, Paulo Duarte foi exilado junto com Sales de
Oliveira e, não se sabe como, Mário de Andrade não o acompanhou. Em 19
de janeiro de 1933, a carta de Mário de Andrade a Paulo Duarte no primeiro
e curto exílio em Paris após a Revolução Constitucionalista de 1932 dá uma
idéia de seu posicionamento: Feliz você meu Paulo, que masca o guaraná
fortificante e duro da miséria e do exílio, não vive, feito nós, entre ódio, vergonha e
nojo (...); o pioríssimo de tudo, é que tem paulista bastante impuro, bastante
ingênuo, bastante sem-vergonha, não sei, que acredita em tenente, que acredita em
general (ANDRADE, Mário. 1985, p. 147).

O contexto político que envolve a criação do SPHAN e, portanto, da


sedimentação de um discurso oficial concernente à construção do conceito
de patrimônio e preservação é resultante de um processo contraditório e
conflituoso, cujo elemento chave é o projeto original de Mário de Andrade,
utilizado de maneira diversa por duas posições visivelmente antagônicas:
Paulo Duarte, compactuando com Armando Sales e imprimindo uma tônica
social ao projeto, e Rodrigo Melo Franco de Andrade, orientado por
Capanema, o qual encontrava-se totalmente subordinado aos desígnios de
Getúlio Vargas. A imagem funcional da identidade cultural brasileira,
sedimentada no discurso oficial do órgão da administração federal criado
para esse fim foi estabelecida, portanto, sob as bases de um regime
autoritário: uma anti-história que tentasse o desmonte de versões oficiais sobre a
formação dessa identidade, preparando terreno e recolhendo dados para uma
história de oprimidos e derrotados, forçosamente teria de considerar a instituição do
SPHAN como um momento estruturador de um conceito de nacional que coincide
com a presença e Vargas na direção da vida política do país. Pela manipulação
desse conceito mascarou-se a realidade da opressão, ocultando seu sujeito e
mediatizando-se as relações de violência. Violência bruta que se exerceu sob a
forma de tortura e de prisão, tanto na Colônia quanto no Estado Novo. Negam-se as
diferenças e os conflitos sociais, as elites dirigentes que representam o Estado
mantêm e confirmam o monopólio da violência. Simbólica ou concreta, nos textos do
SPHAN ou nos porões da ditadura de Vargas, cultura e tortura se constróem, são

411
produzidos em regime de monopólio e censura: desde a Colônia, a violência é
símbolo social de poder pessoal; o Estado Novo confunde-se com Getúlio e a elite
que o cerca (SALA JR, 1988, p. 46).

A ditadura getulista foi decisiva para a formulação de um projeto


baseado em uma interação subordinativa da sociedade para com o Estado,
um padrão autoritário que persiste até hoje. A legislação social varguista
permaneceria como o instrumento mais avançado de afirmação da cidadania. Mais
ainda, o que é usualmente descrito como a componente populista da política do
período 45-64 atesta também o predomínio ideológico continuado dos recursos de
autoridade sobre as iniciativas de solidariedade (REIS, 1988, p.196).

A dialética da colonização, estrutura estruturante que elaborou os


padrões históricos da construção da cultura e do poder, estabeleceu um
regime de continuidade na República Velha, no Estado Novo, na Nova
República, na Ditadura de 64 ou na nossa Novíssima República. O poder
centralizador do Estado permaneceu presente nas estruturas subseqüentes
do SPHAN: mesmo com as mudanças de nomenclatura, a falta de diálogo
entre as instâncias estaduais e federais ainda se faz presente; o
distanciamento da população e o menosprezo para com as formas de
expressão de tradição negra, indígena e popular, também. A cultura
monumentalista, cujo enfoque permanece no culto às cidades coloniais, na
valorização dos edifícios e no investimento à preservação de áreas urbanas,
mantém a mesma ideologia baseada no Estado centralizador e paternalista
que escolhe e decide o que deve ser preservado, como deve ser preservado
e para quem deve ser preservado. Nascida nos meandros e contradições do
autoritarismo do Estado Novo, esta concepção de patrimônio histórico, mesclada de
rebeldia modernista, acabou por cristalizar os elementos do nacionalismo autoritário
com as intenções modernistas, na tentativa e com o objetivo de recuperar o passado
para alcançar uma definição da identidade. Em suas falas e em suas memórias, os
intelectuais que deram forma e conteúdo à política de preservação do SPHAN
sempre se consideraram não apenas como portadores de uma grande autonomia
em relação ao Estado, mas também como vanguardas de cunho liberal que
propugnavam a identificação, a defesa, a restauração e a conservação dos grandes
monumentos e obras de arte que dariam consistência à chamada cultura brasileira

412
(FENELON, 1992, p. 29).

Na verdade, esta autonomia é relativa: nenhum membro do grupo


intelectual reunido ao redor do SPHAN – entre eles Alberto Lamego, Judith
Martins e Heloísa Alberto Torres – ousou estabelecer um discurso mais à
esquerda, uma vez que nesse momento político a questão social continuava
sendo caso de polícia e o marxismo de qualquer tendência, o inimigo público
número um. As nove revistas editadas pelo SPHAN até 1945 serão marcadas
pelo silêncio, pela impossibilidade de propor uma “teoria social do
patrimônio”: não há, ao longo de toda a série de publicações do SPHAN, nenhuma
carta de intenções relativa aos pressupostos metodológicos de alguma escola de
historiadores ou de críticos da arte, ou mesmo de vínculo a alguma corrente
filosófica ou grupo de pensamento político. Há, por outro lado, uma imensa lacuna,
um silêncio nos interstícios do texto; um branco absoluto e pacífico onde ressoa
música clássica (SALA JR., 1988, p. 20).

José Reginaldo Gonçalves (1988, p. 264-275) confirma essa postura


dos formalizadores oficiais da política preservacionista ao colocar que no
contexto brasileiro os conceitos de Patrimônio Cultural têm variado em
termos diacrônicos e sincrônicos: desde a década de trinta até o final dos
anos setenta, o conceito oficial que norteou a política patrimonial
permaneceu inalterável. Se Getúlio Vargas permaneceu no poder por quinze
anos, Rodrigo Melo ficou à frente do SPHAN por trinta e indicou como
sucessor alguém que daria continuidade ao projeto oficializado por
Capanema e Getúlio no Decreto de 1937. Em um contexto onde o patrimônio
edificado é fundamento ideário, nada mais coerente do que nomear um
arquiteto, Renato de Azevedo Duarte Soeiro, para ocupar o lugar do
jornalista.

Terminado o regime autoritário implantado pelo Estado Novo, a nova


Constituição promulgada em 1946 estabelecia no artigo 178 que os bens
culturais da nação ficam sob proteção do poder publico43. Quanto à questão
do patrimônio no governo do general Dutra, além de ser feita a Nova

43
As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os
monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sobre

413
Constituição44, como estabelecido no artigo 178, houve uma mudança na
nomenclatura do SPHAN, pelo Decreto-Lei n. 8534 de 2 de janeiro de 1946,
que passou a ser DPHAN e a contar com quatro novos Distritos com sedes
em Recife, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo; e com a subordinação de
três Museus, o Museu da Inconfidência em Ouro Preto, das Missões, no Rio
Grande do Sul, e do Ouro, em Sabará. Antes disso, em 1940, o Código
Penal também é modificado: Este Código, nos seus artigos 165 e 166, estabelece
penas tanto ao comportamento de quem destrói, danifica ou mutila a coisa tombada
por autoridade competente, como aos que, sem licença da autoridade, alterem o
aspecto de local especialmente protegido por lei (ROCHA FILHO, 1991, p. 48).

As décadas de trinta a sessenta sedimentaram o projeto inicial, deram


corpo ao conceito de bem patrimonial, estruturado a partir dos parâmetros
oficiais. Coincidentemente, na esfera internacional, o período pós-guerra
gerou poucos documentos específicos no tocante à questão da preservação
do Patrimônio Cultural: a Constituição da UNESCO (1945); Convenção
Cultural Européia (1954); Convenção de The Hague (1954); além das
Recomendações Internacionais sobre os Princípios aplicados às Escavações
Arqueológicas e Recomendações Internacionais Concernentes à Arquitetura
e Planejamento Urbano, resultantes da Conferência da UNESCO em Nova
Delhi em 1956. Concordante com o documento elaborado em 1956, relativo
às recomendações internacionais concernentes às escavações, ainda com
Rodrigo Melo à frente do Serviço do Patrimônio, a lei nº 3.924, de 26 de julho
de 1961 dispõe sobre os Monumentos Arqueológicos e Pré-Históricos. De
acordo com o artigo segundo, são considerados monumentos arqueológicos:

a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem


testemunhos da cultura dos paleomeríndios do Brasil, tais como
sambaquis, montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos,
aterrados, estearias e quaisquer outras não especificadas aqui, mas de
significado idêntico, a juízo da autoridade competente;
b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos
paleoameríndios, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha;
c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso
prolongado ou de aldeamento “estações” e “cerâmicos”, nos quais se

proteção do poder público, de acordo com o relatório do SPHAN, de 1980.


44
Esta foi a quarta Constituição brasileira desde a queda do Império em 1889.

414
encontram vestígios humanos de interesse arqueológico ou
paleoetnográfico;
d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de
utensílios e outros vestígios de atividade de paleoameríndios.

Esse adendo à legislação patrimonial, formulado vinte e quatro anos


após a criação do SPHAN, foi assinado pelo então presidente Jânio Quadros,
seguido por Brígido Tinoco Oscar Pedroso Horta, Clemente Mariani e João
Agripino. A formulação do decreto, no entanto, apresenta as mesmas
deficiências em relação aos documentos internacionais: não especifica a
formação, nem rege a atuação ética e técnica dos exploradores. No entanto,
como vimos no tópico específico do Capítulo 5, o documento estabelece a
base científica, considerando que a Arqueologia é uma ciência comparativa,
como justificativa ao intercâmbio de profissionais e o acesso aos sítios
explorados.

Nos momentos mais críticos da política nacional, o silêncio, aprendido


na ditadura getulista, manteve-se nos bastidores do órgão federal, já nessa
época denominado DPHAN. Em 1965, sob o mandato de Castelo Branco, já
sob a égide da ditadura militar, no âmbito do DPHAN houve a proibição da
saída para o exterior de obras de arte produzidas do país até o período
monárquico: essa construção temporal data do pacto de Roerich (1933), e a
consciência forjada em uma “autenticidade” imposta ao passado a partir de
limites temporais precisos, corresponde à própria invenção da história: a
memória histórica está definitivamente datada, ainda que possa vir a ressurgir em
nome de outras bandeiras e outras lutas. Historicamente ela está indissoluvelmente
ligada à afirmação do Estado nacional e à maneira pela qual a história foi contada
sob o signo da identidade e sustentada pelas crenças da unidade do povo que
deveria assumir os papéis da cidadania. Em nome da memória histórica, por
exemplo, a experiência do anarquismo no Brasil ficou legada ao silêncio porque não
corroborava com os mitos da identidade nacional (De DECCA, 1992, p. 134).

O período demarcado corresponde às normativas declaradas nos


documentos oficiais. Na Convenção de San Salvador (1976), a estrutura
classificatória que determinava a linha simbólica de separação entre o

415
presente e o passado fixava a metade do século XIX como o referencial:

. Monuments, buildings, objects of an artistic, utilitarian, and ethnological nature,


whole or in fragments, from the colonial era and the Nineteenth century;
. Libraries and archives; incunabula and manuscripts; books and other
publications, iconographies, maps and documents published before 1850;
. All objects originating after 1850 that the States Parties have recorded as
cultural property, provided that they have given notice of such registration to the
other parties to the treaty;

Esse parâmetro parece ter se reproduzido até a década de oitenta,


conforme depoimento do arquiteto argentino Ramón Gutiérrez (1992, p. 121);
para ele, consolidou-se no continente americano a idéia de que a
“autenticidade” de um bem cultural correspondia à sua antiguidade: uma
visão inicial reducionista enfatizava a noção do patrimônio nos aspectos
históricos consagrados por uma historiografia centrada nos episódios bélicos
e figuras paradigmáticas, ou então em recortes cronológicos arbitrários
fomentando o aparecimento de legislações que protegiam os bens segundo
sua cronologia, fixada no mínimo em cem anos.

Em relação à legislação brasileira de 1965, referente ao tráfico ilícito


de bens culturais, o dispositivo encontra correspondência nas indicações
propostas em 1964, na décima terceira sessão da Conferência Geral da
UNESCO realizada em Paris: nesse encontro, foi elaborado o primeiro
documento direcionado ao tráfico ilícito, recomendando-se que cada Estado-
membro da UNESCO adotasse os critérios estipulados nas Recomendações
sobre mecanismos de Proibição e Prevenção contra a Importação Ilícita,
Exportação e Transferência de Propriedade Cultural. Como vimos no capítulo
anterior, dentro dos princípios gerais, a adoção de mecanismos legais e
administrativos de controle da importação e exportação de propriedade
cultural por parte dos estados era matéria fundamental. Entre 1948 e 1976,
sob recomendação do ICOM, o Prof. Leroi-Gourhan iniciou um levantamento
técnico legal sobre o mecanismo de troca de obras entre museus, discutidos
em vários encontros e consolidado em Nairobi, em 1976, sob o título
Recomendações Concernentes ao Intercâmbio Internacional de Propriedade
Cultural.

416
As diretrizes internacionais parecem influenciar as ações internas,
como se o Estado brasileiro quisesse demonstrar sua capacidade diante da
comunidade internacional. Até que ponto o aparelho burocrático reproduzia
essa discurso a partir de uma reflexão cuja origem era interna? Até que ponto
as ações eram fixadas como exposição de uma suposta modernidade que
revestia de legitimidade um Estado militarizado? Segundo Fenelon (1992, p.
30): Enquadrado no aparelho burocrático, o SPHAN passou a ser considerado uma
espécie de “refrigério da cultura oficial” pela proclamada autonomia que seus
dirigentes sempre buscaram resguardar. Apesar de sempre se pretender técnica e
neutra em sua atuação, a política de preservação deste órgão constitui talvez o
exemplo mais fecundo da intervenção governamental na área da cultura,
empenhada em construir uma memória e uma identidade nacionais.Vencia outra vez
a perspectiva de consagrar como obras de arte e da cultura os símbolos do poder
constituído. Desprovida assim de memória coletiva que lhe permitisse a consciência
histórica – pelo efeito desagregador da impossibilidade de acumular suas
realizações como cultura – a maioria da população continuou sem se reconhecer
nestes símbolos. Com isso, foi expropriada também de sua memória e da sua
história.

Aloísio Magalhães (1985) – diretor entre 1979 e 1982 – afirma que


durante a criação do SPHAN, na década de 30, o conceito de bem cultural já
tentava abarcar a amplitude da cultura brasileira ao estabelecer no artigo
primeiro: Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público,
quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. Apesar das
críticas feitas ao período “heróico” ou “monumental”, ele considera que
durante a gestão Rodrigo Melo Franco de Andrade, este lutou para uma
política de preservação que fosse a mais ampla possível, mas, por “razões
lógicas”, isto é, por ter que priorizar algumas categorias de bem cultural, ele
se dedicou mais explicitamente aos bens de pedra e cal, ou seja, ao
patrimônio edificado. No entanto, o que podemos perceber é que a ênfase
dada aos monumentos arquitetônicos se estende por todo esse período, por
mais que se tenha tentado amenizar esses efeitos com programas especiais

417
que visavam a incorporação de outras categorias de bens culturais. Para
Magalhães (1985: 19), existe vasta gama de bens – procedentes, sobretudo, do
fazer popular – que por estarem inseridos na dinâmica viva do cotidiano não são
considerados como bens culturais, nem utilizados na formulação das politicas
econômica e tecnológica. No entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se
reconhece a vocação e se descobrem os valores mais autênticos de uma
nacionalidade. Desse modo, é patente a maneira diferenciada como são
tratados os bens culturais impregnados de valor histórico – principalmente os
que estão voltados ao passado – e a dificuldade de se atuar em relação aos
bens culturais que estão se construindo a cada dia no nosso cotidiano,
principalmente os do fazer popular.

No âmbito internacional, a década de sessenta produziu documentos


importantes, como A Carta de Veneza (1964), a qual originou o ICOMOS, e
As Normas de Quito (1967). Contudo, as diretrizes propostas nesses
documentos iriam ecoar somente nas gestões posteriores. Com a saída de
Rodrigo Melo Franco de Andrade não se inicia uma nova fase; ao contrário,
nascido sob o signo de Estado Novo, o Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, na condição de Diretoria, mantêm sua existência
controlada e construída por uma ditadura militar que se estabeleceu nas
figuras dos generais que assumiram o poder.

A década de setenta

Em 15 de março de 1967, o Marechal Arthur da Costa e Silva toma


posse como Presidente da República. Em termos legislativos, a Constituição
brasileira de 1967, no Título II que trata “da família, da educação e da
cultura”, estabeleceu o seguinte: O amparo à cultura é dever do Estado. Ficam
sobre a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de
valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem
como as jazidas arqueológicas. Nesse período, entre 1967 e 1979, a direção do
órgão passa às mãos do arquiteto Renato de Azevedo Duarte Soeiro e, sob a
tutela da ditadura militar o DPHAN irá desenvolver suas ações, voltadas
principalmente para o patrimônio edificado.

418
A noção de autenticidade do Patrimônio Cultural embasado no critério
de monumento serviu de justificativa à concentração de esforços para com
esse tipo de bem cultural. A Carta de Veneza, proposta em 1964, sedimentou
esse paradigma, considerando, porém, o meio no qual a criação arquitetônica
encontra-se inserida: como visto anteriormente, a estrutura arquitetônica não
deveria ser vista de maneira isolada, uma vez que a paisagem seria o cenário
ou a moldura que lhe forneceria uma percepção tectônica. A preservação do
monumento implicaria, portanto, no controle dos processos urbanos de
construções, demolições e alterações do espaço físico. Concomitante a esta
proposta, o Departamento de Assuntos Culturais da Organização dos
Estados Americanos promoveu o encontro do Equador, realizado em 1967,
do qual surgiu As Normas de Quito, reiterando a aceitação das diretrizes
propostas pela Carta de Veneza por parte dos estados americanos.

A percepção de um certo distanciamento das propostas formuladas


externamente obrigou ao DPHAN solicitar a colaboração da UNESCO, além
de promover dois encontros de governadores, um em Brasília (Carta de
Brasília, 1970) e outro em Salvador (Carta de Salvador, 1971), visando a
descentralização do gerenciamento da política patrimonial e a adaptação da
política interna aos encaminhamentos externos. A nova política do instituto
direciona-se – seguindo a orientação internacional – para o tombamento de
conjuntos urbanos: com isso ganhou nove diretorias regionais com sedes em
Belém, São Luís, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília,
São Paulo e Porto Alegre e sete grupos de Museus e Casas Históricas. Em
1973 foi criado junto à Seplan o Programa das Cidades Históricas (PCH), visando a
rentabilizar a preservação e a restauração dos bens patrimoniais, tanto em termos
econômicos quanto sociais, sobretudo em regiões carentes. Essa perspectiva
modernizadora foi também que inspirou a criação, em 1975, do Centro Nacional de
Referência Cultural (CNRC), que procurou estender a revisão crítica do trabalho
sobre o Patrimônio Cultural ao campo conceitual. À diferença do SPHAN “heróico”
dos anos 30-40, que centrou sua atuação na salvação dos remanescentes da arte
colonial, o CNRC se voltava para o referenciamento da cultura “viva”, sobretudo
daquela enraizada no fazer popular, como forma de tornar mais “nacional” e mais
“plural” a cultura brasileira (FONSECA, 1996, p. 156).

419
Antagônica afirmação de Maria Cecília Londres Fonseca, pois o
“pluralismo” proposto situava-se em um contexto de censura, perseguições
políticas e imposição governamental. Como diacrônico era o contexto
vivenciado no país em relação às proposições externas: os anos setenta
foram os mais intensos na consolidação e proposição de documentos
voltados ao pluralismo cultural e à preservação na esfera global, com a
criação, inclusive, do World Heritage Commitee, enquanto no Brasil a relação
desse “pluralismo” encontrava-se circunscrita a uma certa ordem, a ordem
oficial. É complexo questionar a intelectualidade brasileira no projeto de
construção do conceito de patrimônio, uma vez que o modelo oficial interno
assemelha-se ao modelo externo tanto na fixação das prioridades quanto no
estabelecimento dos parâmetros.

Se voltarmos aos Quadros 1 e 2, entre 1970 e 1980 foram produzidos


mais de dez documentos, entre Cartas, Recomendações, Declarações e
Normativas. Foi um período fecundo e, mesmo com os limites já criticados
anteriormente, a Convenção Geral da UNESCO para a Preservação do
Patrimônio Cultural e Natural Mundial, significou uma consolidação das
intenções estruturadas e discutidas desde a fundação da UNESCO, bem
como uma sistematização das diretrizes e ampliação do poder decisório. Os
grupos de apoio se propuseram cada vez mais a refletir uma estratégia global
baseada em aspectos não excludentes de grupos minoritários. Na esfera
educacional, a Declaração de Santiago, dando continuidade ao encontro
promovido pelo ICOM em 1958 no Rio de Janeiro, assumia uma posição
ideológica bem demarcada, voltada à socialização do conhecimento através
das instituições museológicas. No Brasil, os efeitos desses debates foram
sistematicamente peneirados para atender o contexto histórico.

Em 1970, sob o mandato de Garrastazu Médici, ainda no governo


militar, o Decreto n° 66967, de 27 de julho, dispõe sobre a organização
administrativa do Ministério da Educação e Cultura, e em seu artigo 14
transforma o DPHAN em IPHAN. A proposta do Instituto é de
descentralização, embora seja de um aparelho estatal centralizador: no início
dos anos 70, o Ministério da Educação (ao qual se vinculava o IPHAN) passou a

420
orientar os estados no sentido de realizar uma ação supletiva à federal na área de
preservação dos bens culturais, induzindo à criação de órgãos estaduais de
preservação. Em encontro convocado pelo então Ministro Jarbas Passarinho,
diversos governadores de estado, representantes de governos estaduais e de
entidades assinaram o chamado “Compromisso de Brasília”, documento que
continha um conjunto de diretrizes programáticas comuns a serem aplicadas nos
estados sob orientação do IPHAN. Dois anos mais tarde, essas diretrizes seriam
complementadas pelo “Compromisso de Salvador”, que já registrava nítida
preocupação com o conflito entre o desenvolvimento econômico e a preservação de
conjuntos urbanos, paisagísticos e arqueológicos (MACHADO, 2000, sp).

Esse discurso preservacionista, forjado em uma preocupação de


“como” preservar o patrimônio histórico em contextos urbanos, reproduzem
as mesmas preocupações estabelecidas na Carta de Veneza (1964) e
Normas de Quito (1967). As orientações propostas coincidem com o aumento
dos problemas urbanos e seus reflexos no plano ambiental. A partir de então,
a consciência para com a questão ambiental torna-se indissociável dos
paradigmas que norteiam os projetos preservacionistas, tanto nas cidades –
com seus centros históricos – quanto nas áreas isoladas. No entanto, os
paradigmas propostos carecem de formular conceitos relacionados com a
existência cultural do monumento na malha social: o arquiteto Riccardo
Mariani (1992: 66) critica a visão formalizada nesse período; para ele as
ações deflagradas não passam de osteologia: Sabem o que é osteologia? O
tratamento dos ossos. Nesse caso, significa transformar a cidade histórica num
esqueleto. Como se fosse esqueleto. Faz-se paleontologia. No sentido de que
algumas partes estruturais da cidade histórica são privilegiadas e limpas e, então,
procede-se à restauração da área que foi limpa. Aí eu me pergunto e interrogo
vocês também: quando vêem um esqueleto no chão, quem sabe distinguir os ossos
de uma rã dos ossos de um sapo? Quem dentre nós sabe distinguir o esqueleto de
um cavalo do esqueleto de uma zebra? Quando se perde o tecido que mantêm
os monumentos vivos, as carnes e os ossos, e também um coração pulsante,
perde-se a relação primordial da reivindicação de sua preservação, afirma o
autor.

Neste sentido, podemos confrontar essa política de preservação

421
instituída pelo IPHAN com a ausência de educação esclarecedora à
população dessas regiões: sem a educação democrática da questão
preservacionista, o que ocorre entre o técnico do IPHAN e o cidadão
residente no local é um conflito de direitos. Não podemos negar ao habitante
de um núcleo tombado o direito de escrever sua própria história e criar sua
identidade (CORDEIRO e PENNA, 1988). Preservar nosso passado não
significa negar as produções do presente, pois estancaria a nossa memória,
mas encontrar mecanismos de intersecção social. Em novembro de 1969 a
UNESCO aprovou as recomendações sobre a conservação dos bens
culturais que a execução de obras públicas ou particulares pudesse expor ao
perigo – Recommendation Concerning the Preservation of Cultural Property
Endangered by Public or Private Works –; refletindo a polêmica que as ações
preservacionistas enfrentavam nos espaços urbanos que se modificavam
constantemente, o debate ao redor desse tema prosseguiu pelas décadas de
setenta e oitenta afora.

Nesse momento, o tombamento ou as regulamentações relativas à


proteção de um Patrimônio Cultural edificado torna-se sem efeito caso exista
uma falta de compatibilização com os projetos de ampliação, assentamento e
uso das áreas urbanas, considerando as leis de uso de solo, mananciais,
espaços públicos e privados e outros mecanismos de política urbana,
geralmente restritos à esfera da administração pública. A variável ambiental
impõe uma noção mais ampla, mas ainda restrita às dimensões técnicas: a
preservação do meio ambiente e do Patrimônio Cultural são relações
intimamente ligadas ao bem estar coletivo. Todavia, como divulgá-las e
usufruí-las em contextos de miséria, fome, segregação econômica e racial
e/ou censura política, ideológica, religiosa ou de outra natureza?

Ao analisar o contexto brasileiro sob os aspectos instrumentais de


atuação, é possível observar que a introdução dos Estados nas políticas de
preservação dos bens culturais parecem indicar a descentralização. Porém,
não podemos esquecer que os modelos específicos, os critérios e as
discussões de fundo permanecem condicionadas ao domínio federal e que a
década de setenta encontra-se situada no momento de maior repressão

422
política do período ditatorial imposto em 1964. De acordo com Jurema
Machado, uma das transformações mais significativas desse período foi o
rompimento com o critério de seleção centrado no juízo estilístico, estético e
ideológico, sendo este redirecionado para o fato histórico, e dá como
exemplo os movimentos do IAB e Clube de Engenharia para a preservação
de um conjunto arquitetônico eclético da Avenida Rio Branco do Rio de
Janeiro, levando-se em consideração seu testemunho significativo da reforma
urbanística proposta por Pereira Passos. O que ocorre a partir dos anos 70 não
é simplesmente a aceitação do ecletismo como uma manifestação arquitetônica
válida, mas sim uma ampliação da perspectiva histórica, levando, inclusive, à
reconceituação dos valores artísticos (2000, sp).

A Convenção Geral da UNESCO para a Preservação do Patrimônio


Cultural e Natural Mundial (1972) gerou uma série de outras propostas, como
Resolution on the Conservation of Smaller Historic Towns (1975) Declaration
of Amsterdam (1975); Recommendation Concerning the Safeguarding and
Contemporary Role of Historic Areas (1976). O papel contemporâneo das
áreas históricas foi teorizado como parte da justificativa dessas propostas,
mas o suporte técnico correlacionado não deixava de levantar o impacto
social e a indispensabilidade de se envolver as comunidades no processo de
preservação de seus próprios referenciais culturais.

Em meados da década de 70, no governo de Ernesto Geisel, foram


sancionadas a Lei n° 6292 de 15 de dezembro de 1975 – que tornou o
tombamento e seus cancelamentos dependentes da homologação do
Ministério da Educação e Cultura – e a Portaria n°230 de 26 de março de
1976 que aprovou o regimento interno do IPHAN e criou vários programas
que depois se agregaram aos trabalhos deste. Dentre esses programas, o
Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste
(PCH)45 surgiu de uma iniciativa interministerial visando não só a preservação
das cidades históricas, como também seu desenvolvimento econômico. Em

45
Após fase de grande crise, o “milagre econômico” ocorrido nos anos 60 trouxe a
urbanização desenfreada, maior especulação imobiliária, aumento do turismo, tornando-se
um desafio à capacidade de ação de IPHAN e revelando a inadequação do órgão para
enfrenta-lo, o que levou à criação de programas especiais de ação, como o PCH e o CNRC.

423
1977 houve a integração dos Estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro e
Minas Gerais ao programa. No entanto, o PCH sofria carência de recursos
financeiros. Já está claro que a carência de recursos humanos e financeiros
é característica comum nos programas de preservação dos bens culturais no
Brasil. Outra maneira de tentar resolver o problema da preservação, foi a
criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) em 1975. O
centro preocupava-se com o caráter dinâmico e diversificado da cultura
brasileira. Aloísio Magalhães, que foi presidente do CNRC, afirmava a
importância de se estudar, registrar e impulsionar as atividades culturais vivas
- por exemplo, as formas de tecnologias pré-industriais, o fazer popular, a
criação de objetos utilitários, etc -, ajudando-as a dinamizar-se
(MAGALHÃES, 1985).

O Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas (1973)


antecede às propostas formalmente oficializadas pela UNESCO com os
documentos gerados em 75 e 76, mas encontra como referencial as
recomendações propostas pelo ICOMOS em Budapeste: Resolutions of the
Symposium on the Introduction of Contemporary Architecture into Ancient
Groups of Buildings (1972). De acordo com esse documento, os projetos de
restaurações de cidades, centros e monumentos históricos deveriam
considerar o uso posterior desses elementos. Uma das tarefas mais instigantes
de uma política do Patrimônio Cultural em um período de mudança social é
encontrar fórmulas adequadas que não cristalizem as diferenças, mas que legitimem
os símbolos materiais e imateriais desta heterogeneidade, afirma Gilberto Velho
(1985, p. 50). No Brasil, um dos maiores problemas enfrentados pelos órgãos
oficiais é desvencilhar-se das relações ideológicas estabelecidas com o
poder vigente – município, estado ou federação –, uma vez que é mais
simples para o autoritarismo presente compelir à homogeneidade cultural.

A fusão do IPHAN/CNRC buscou a revitalização das atividades do


Instituto. Conforme depoimento do seguinte diretor do IPHAN, Aloísio
Magalhães (1985, p.117), o IPHAN não pode continuar como órgão tão fechado,
no sentido de bastante precário em termos de funcionamento. O IPHAN funciona
ainda como um grande ideal. Porque na realidade as pessoas que ainda trabalham

424
lá estão mais fortemente presas a uma idéia do que a uma realidade operacional,
uma ação. Teoricamente a atuação integrada desses órgãos – IPHAN-PCH-
CNRC – traria uma conscientização para essa “nova” instituição a respeito da
relação que esta deveria manter com a comunidade, o que não ocorreu na
prática. São várias as diferenças entre a cultura burguesa, dominante, erudita,
oficializada, oficial, por um lado, e a popular, folclórica, rústica, periférica, subalterna,
por outro. Diferem quanto a linguagens, temas, graus de elaboração, esferas de
circulação, alcance, aceitação. Aliás, tanto aquela como esta não são únicas,
homogêneas. Subdividem-se, diversas, múltiplas. Há uma cultura dominante de
origem agrária, que se recria ao lado e junto com outra urbana, propriamente
burguesa, capitalista, cosmopolita. Da mesma maneira, há diferentes versões da
cultura popular: cabocla, operária, indígena, afro-brasileira, imigrante de várias
procedências (IANNI, 1987, p. 31). Até que ponto essa pluralidade tem sido
considerada nos processos de tombamento; nos esforços de revitalização,
restauração, inventariado e uso dos bens culturais?

A década de oitenta

Sob o governo do general João Baptista Figueiredo (1979-1985), o


IPHAN voltou a ser novamente SPHAN46, mas como Secretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, e o Diretor-Geral empossado foi Aloísio
Magalhães. Há uma nova tentativa de descentralizar suas ações, com a
criação da Fundação Pró-Memória47 como um catalisador de recursos
humanos e financeiros, viabilizando a interação entre organismos públicos,
privados e regionais, na busca de articular melhor a heterogeneidade da
cultura brasileira.

Quando assumiu a direção do IPHAN, em 1979, uma das primeiras


iniciativas de Aloísio Magalhães foi instaurar a prática de consulta às
comunidades das cidades históricas. De acordo com Maria Cecília Londres
Fonseca (1996: 156), os seminários que ocorreram nas cidades históricas
visavam introduzir as comunidades no processo de preservação de seus
monumentos: embora se possa questionar a representatividade dos que falavam

46
Pelo Decreto n° 84198 de 13 de novembro de 1979.
47
Criada pela Lei n° 6757 de 26 de novembro de 1979.

425
em nome dessas comunidades – à medida que se vivia um tempo hostil às
manifestações democráticas – esse tipo de iniciativa pelo menos trazia para a esfera
pública dessas cidades a questão de preservação de seu Patrimônio Cultural.

De acordo Jurema Machado (2000, s.p) a variável ambiental, já nos


anos oitenta, veio trazer importantes contribuições para a questão do
patrimônio:

. a introdução de leituras do espaço urbano a partir da compreensão da


relação do ambiente/cidade com o indivíduo, indo além de análises excessivamente
macro, baseadas apenas em fatores sócio-econômicos, e lançando mão de recursos
da Semiologia e Psicologia;
. o questionamento das noções de progresso e de desenvolvimento,
perfeitamente aplicável aos processos que ocorriam, e ainda ocorrem, nos centros
urbanos, e, principalmente
. a sua invejável capacidade de mobilização popular e de formação de
mentalidades comprometidas com a preservação.

Apesar desses avanços, pouco se fez no sentido de se estabelecer


cursos de formação técnica, graduada ou de especialização voltados
exclusivamente para as áreas de restauração de bens culturais móveis e
imóveis: ainda hoje o CECOR da UFMG e o CECRE da UFBA são os únicos
centros regulares que oferecem cursos voltados à formação técnica
especializada nas áreas de conservação e restauração.

A Universidade Federal da Bahia foi pioneira na estruturação de


cursos nessa área ao fixar em 1981 o Curso de Especialização em
Restauração de Monumentos e Conjuntos Históricos, voltado exclusivamente
para engenheiros e arquitetos, dentro do programa de pós-graduação lato
sensu da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Desde 1974 o curso era
fomentado pelo IPHAN e se realizou em São Paulo (1974), Recife ( 1976) e
Belo Horizonte (1978). A partir dos anos oitenta, estabeleceu-se
definitivamente no programa da Universidade Federal da Bahia. Formulado
de maneira a funcionar bianualmente, tem duração de dez meses e é
responsável pela formação de pessoal responsável pelas restaurações do
patrimônio edificado. Ao contrário do que Antônio Dias de Andrade (1993)
afirma, não são os parâmetros de Viollet le Duc – baseados na reconstrução,

426
complementação e modificações das características originais dos
monumentos (PHILIPPOT, 1994: 216) – que são utilizados como
fundamento teórico das atividades reguladas pelo IPHAN. Ao contrário,
desde suas origens, o IPHAN constituiu um corpo técnico especialisado
capáz de fiscalizar e controlar as ações concernentes ao patrimônio edificado
de modo que as intervenções executadas nos patrimônios edificados
respeitem o modelo proposto desde a Carta de Atenas (1935), passando
pelas teorias de Brandi (1963) à Carta de Veneza (1964); o problema reside
na carência de verbas para a demanda do país.

O Estado da Bahia firmou-se na década de oitenta como um pólo de


ação voltado à preservação de seu patrimônio. Além da fixação do curso de
especialização em restauração do patrimônio edificado, desenvolveu um
programa denominado IPAC – Inventário de Proteção do Acervo Cultural –,
que vem sendo elaborado pelo governo do Estado da Bahia há mais de vinte
anos. As normas do IPAC-BA foram elaboradas a partir daquelas adotadas pelo
Conselho de Cooperação Cultural da Europa e transcritas por Pietro Gazzola em
L’Inventário de Protezione del Patrimônio Culturale, Verona, 1970. Foram
necessárias algumas modificações para adaptá-las às condições brasileiras e
permitir uma avaliação mais objetiva atendendo às peculiaridades de nossos
monumentos (ROCHA FILHO, 1991, p. 49).

O CECOR da UFMG, que inicia suas atividades no início dos anos


oitenta, apenas em 1988 estabelece turmas regulares com cursos de dois
anos de formação. Até 1998 contou com o apoio de bolsas de
especialização, mas a política educacional suprimiu essa modalidade de
custeio e retirou o apoio aos cursos de especialização como uma iniciativa
geral, sem considerar as especificidades da formação, a demanda, o número
de cursos existentes na área ou a própria história institucional de cada
unidade; nem mesmo considerou que o CECOR seria o único curso
reconhecido e instalado no interior de uma Universidade voltado para a
formação de restauradores de bens culturais móveis e que, portanto, é de
vital importância à introdução de profissionais qualificados nesse campo de
atuação específico. Se utilizarmos a ABRACOR como parâmetro,

427
observamos que muitos restauradores no Brasil são ainda autodidatas e uma
parcela significativa se forma no exterior, em cursos que vão de uma semana
a quatro anos, nos níveis introdutórios ou de mestrado, realizados tanto em
instituições desconhecidas quanto em instituições de renome.

Atualmente, o strictu sensu da UFMG surge como uma perspectiva


nova àqueles profissionais que já atuam na área e que desejam desenvolver
pesquisas e se colocar, dentro de suas instituições acadêmicas, em um nível
superior à estrutura técnica. No edital do curso está escrito: Depois de
consolidar seu Curso de Especialização em Artes Plásticas e o Curso de
Conservação/Restauração de Bens Culturais Móveis, único neste nível em todo o
Brasil, desenvolvido no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais
Móveis (CECOR), a Escola de Belas Artes (EBA) criou, em 1995, o Curso de
Mestrado em Artes, com área de concentração em Imagem e Som, em associação
com o Departamento de Ciência da Computação (DCC) do Instituto de Ciências
Exatas da UFMG. A EBA e o DCC foram então contemplados com o programa
CAPES/PROIN, resultando na instalação do Laboratório Multimídia na EBA
(EBA/UFMG, 2000, s.p.). O estabelecimento de um curso desse porte significa,
naturalmente, a sedimentação da pesquisa científica e o reconhecimento do
status de pesquisador dos profissionais que atuam no campo, porém, não se
deve esquecer que os níveis técnico, de graduação e especialização são
indispensáveis às ações práticas e que falta ainda uma política de
reconhecimento e incentivo à criação ou manutenção de cursos específicos.

No processo de descentralização do IPHAN, cada Estado e Município


parece ter se comportado de maneira distinta: o que se verificou, e acredito que
possa ser estendido, é que o estado não é homogêneo, que o comprometimento e
até mesmo a percepção do significado da preservação é flagrantemente desigual
entre os diversos municípios e que as instituições municipais são ainda frágeis e
efêmeras frente às oscilações do poder local. Isto significa que há e haverá, ainda
por muito tempo, um papel importante a ser cumprido pelo nível estadual (e federal).
Entendo que trata-se claramente de um modelo de gestão que deve se caracterizar
pelo compartilhamento de ações, de forma flexível e adaptável às oscilações
(MACHADO, 2000, s.p.).

Como resultante desse processo, os critérios de seleção

428
condicionados aos livros de tombamento, conforme o projeto de 1937,
passaram por uma transformação de ordem operacional: a diversidade de
bens que são apresentados para tombamento colocam ao lado das igrejas
setecentistas, construções representativas da vida moderna, como vilas
operárias, mercados, ferrovias; ao lado das esculturas policromadas,
instrumentos de medicina; ao lado dos testamentos das irmandades,
panfletos anarquistas e cartazes das bienais. Se a inclusão desses tipos de
bens no universo da preservação indica uma ampliação do conceito de
Patrimônio Cultural, também significa um aumento dos problemas
específicos, como inventários, restauração, pesquisa e exposição. Maria
Cecília Londres Fonseca (1996, p. 157) relata que a maioria dessas
solicitação parte das próprias comunidades representativas de correntes
migratórias, das etnias indígenas e afro-brasileiras, e de comunidades que
possuem algum tipo de tradição artística, de artesanato ou festejo, e que
deseja manter viva e consolidar a importância desse bem cultural. Se para
muitos intelectuais a política de tombamento parece ser inoperante, para as
populações ter em sua região um bem tombado é, na maioria das vezes, um
motivo de orgulho e esse orgulho faz parte do processo de reconhecimento e
valorização.

Em 1987 realizou-se o I Seminário para Revitalização dos Centros


Históricos do Brasil e, a exemplo desse encontro, vários outros países
passaram a discutir as noções de patrimônio a partir dos parâmetros internos
de correspondência: a Carta de Washington (1987), estabeleceu programas
direcionados ao patrimônio americano, do mesmo modo que a Carta de
Quebec (1983) e a Declaração de Roma (1983) centraram suas discussões
em torno dos problemas internos. Se a década de setenta significou a
divulgação de um modelo patrimonial baseado na ótica promovida pela
UNESCO – culminando com a promoção da World Heritage List – as
décadas de oitenta e noventa, no âmbito internacional, foram marcadas pela
divisão de comitês e sub-comites, como também pela ampliação dos braços
do ICOM e do ICOMOS, na solução de problemas e demandas regionais.
Compreendeu-se que a noção de preservação passa pela busca de

429
soluções, pelos sistemas culturais de valor e pela demanda social que bens
culturais assumem no interior de cada comunidade, região ou país.

A “febre” de inserir sua região na WHL, tem promovido em várias


comunidades um movimento de revitalização de suas áreas naturais e
históricas, como as ações empreendidas em Goiás Velho-GO e Tiradentes-
MG, no entanto, mesmo o patrimônio oficial tombado tem tido uma certa
dificuldade de se manter preservado. Em um artigo da revista Época de
janeiro/2000 há um relato do péssimo estado no qual se encontra o Centro
Histórico de Olinda-PE: considerado patrimônio da humanidade pela
UNESCO, encontra-se ameaçado de perder esse título devido à infra-
estrutura precária da cidade histórica (Revista Época, n.86 – jan/2000: p.40).
Um mês depois, dia 19 de fevereiro, uma notícia no Jornal Nacional alerta a
população a respeito da ameaça da UNESCO em retirar o título de
patrimônio da humanidade do Parque do Iguaçu-PR por causa da reabertura
de uma estrada que atravessa a área, ameaçando sua preservação.

As questões de preservação no Brasil ficam esquecidas, assim como


muitos dos bens preservados, e só são discutidos quando se encontram em
profundo estado de decadência, isto é, quando os monumentos e sítios estão
ameaçados ou de cair ou de perderem o titulo de patrimônio da humanidade,
como nos casos acima exemplificados.

A preservação do bem cultural continua sendo ainda hoje, um grande


problema no Brasil. Já se passaram mais de 60 anos da criação do IPHAN,
mesmo assim muitos de seus objetivos e de suas intenções permanecem
inatingíveis, mas apesar das críticas, não há como negar que o IPHAN vem
procurado realizar um trabalho permanente de fiscalização, proteção,
identificação, restauração, preservação e revitalização dos monumentos,
sítios e bens móveis do país. Nos momentos de crise, esta instituição, mais
do que qualquer outra, é que sofre com os cortes orçamentários.

O trabalho do IPHAN pode ser reconhecido nos mais de 16 mil


edifícios tombados, 50 centros e conjuntos urbanos, 5 mil sítios
arqueológicos cadastrados, mais de um milhão de objetos, incluindo acervo

430
museológico, cerca de 250 mil volumes bibliográficos, documentação
arquivística e registros fotográficos, cinematográficos e videográficos,
conforme informações colhidas na própria instituição. Atualmente, sua ação
se desenvolve por intermédio de 14 coordenações regionais e 19 sub-
regionais, museus – entre eles o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu
Imperial, o Museu Histórico Nacional, o Museu da República e o Museu da
Inconfidência –, além de nove casas históricas, um parque histórico, a
Cinemateca Brasileira, o Palácio Gustavo Capanema, o Paço Imperial e o
Sítio Roberto Burle Marx. Hoje o Brasil conta com sete monumentos culturais
inscritos na World Heritage List, representados por seis centros históricos do
período colonial e um moderno, e cinco reservas naturais considerados pela
UNESCO como Patrimônio da Humanidade.

Alfredo Bosi (1993, p. 319) afirma: Certa vertente oculta, ocidentalizante,


de fundo colonizador, estigmatiza a cultura popular como fóssil correspondente a
estados de primitivismo, atraso, demora, subdesenvolvimento. Para essa
perspectiva o fatal (que coincide no fim com seu ideal mais caro) é o puro
desaparecimento desses resíduos, e a integração de todos os seus sujeitos nas
duas formas institucionais mais poderosas: a cultura para as massas e a cultura
escolar. Se observarmos o cenário mundial em relação aos documentos
propostos pela UNESCO, a maioria aborda o patrimônio histórico,
arquitetônico e arqueológico, ocorrendo uma lacuna, nos seus cinqüenta e
cinco anos de existência, em relação aos programas de preservação do
patrimônio intangível, que se iniciaram apenas na década de noventa.

Dada a proximidade temporal do período analisado, é ainda difícil


compreender as tendências dominantes ou levantar bibliografia pertinente ao
esquema comparativo proposto; da mesma forma torna-se complexo elaborar
uma imagem que identifique os avanços, as resistências, as continuidades ou
rupturas no processo de construção do conceito de patrimônio e nas ações
preservacionistas que envolvem essa questão.

431
7.2. Patrimônio Cultural: corrida contra o relógio
O que é pequeno desaparece. Em nossa época, só o que é
grande parece poder sobreviver. As pequenas coisas
modestas desaparecem, bem como as pequenas imagens
modestas ou pequenos filmes modestos. Mas, se perdermos
tudo o que é pequeno, perdemos também essa nossa
orientação, nos tornamos vítimas do que é grande,
impenetrável, superpotente. Deve-se lutar por tudo o que é
pequeno e ainda existe. Aquilo que é pequeno confere ao
que é grande um ponto de vista. Numa cidade, o que é
pequeno, vazio, aberto, é a fonte de energia que nos permite
recarregar as forças, que nos protege contra a hegemonia do
que é grande.
Wim Wenders. A paisagem urbana. In: Revista do IPHAN, 23, 1994:
181.

A preservação do Patrimônio Cultural brasileiro tem sido matéria de


discussão em vários campos de estudo. Da História à Antropologia, da
Sociologia à Arqueologia, da Literatura à Lingüística, inúmeras correntes
procuram explicar esta imensa colcha de retalhos que é o processo de
construção da cultura nacional.

Da cultura brasileira já houve quem a julgasse ou a quisesse unitária, coesa,


cabalmente definida por esta ou aquela qualidade. E há também quem pretenda
extrair dessa hipotética unidade a expressão de uma identidade nacional. Ocorre,
porém, que não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos
comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário: a admissão do seu caráter
plural é um passo decisivo para compreende-la, com efeito, de sentido, resultado de
um processo de múltiplas interações e posições no tempo e no espaço (BOSI, 1982,
p. 7).

No bojo dessas discussões, a busca da produção da memória se dá


por meio de variados esforços direcionados à preservação da cultura
material, plural, herdada de nosso passado. A criação do Serviço de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; a formulação de legislações
voltadas aos bens patrimoniais móveis e imóveis; a fundação de museus e
casas históricas; a formação de profissionais que se dedicam à pesquisa, à
veiculação e à conservação de bens patrimoniais móveis e imóveis; todos

432
esses caminhos confirmam esta hipótese. No entanto, o papel do Estado
como agente gerenciador do Patrimônio Cultural tem se mostrado
contraditório. Grande parte dos monumentos históricos tombados pelo
Governo, literalmente cai no chão por falta de manutenção; inúmeros sítios
arqueológicos não são investigados por falta de financiamento, sendo os
contratos de salvamento mais comuns que pesquisas sistemáticas; museus
de pequeno, médio e grande porte sobrevivem como podem, diante dos
escassos recursos repassados; as leis que incentivam a preservação da
memória, quando não desaparecem entre um governo e outro, raramente
são cumpridas. No Brasil, a política cultural do Estado tem sido conceituada como
o conjunto de princípios filosóficos, políticos e doutrinários que orientam a ação dos
órgãos governamentais, marcando sua intervenção nas mais diversas
manifestações sociais – sempre pautada pelos critérios do mercado e do consumo
cultural. No tocante às políticas de preservação do patrimônio histórico, seja no
âmbito federal como no estadual e municipal, estas ações guardaram sempre a
marca da improvisação e da empiria, ou da manipulação e do uso político da cultura
(FENELON, 1992, p. 29).

O resultado desta política centralizadora, má administrada pelo


Estado, é a perda quantitativa e qualitativa dos bens patrimoniais, fruto da
ignorância, da falta de pessoal especializado, da falta de verbas e da própria
burocracia, no que se refere à manutenção do Patrimônio Cultural – material
e imaterial. Ao contrário de outros países, o Brasil e grande parte da América
Latina pouco incentivam a participação da sociedade no processo de
gerenciamento e preservação do patrimônio; desse modo, a iniciativa privada
e a sociedade civil, em geral, raramente investem em áreas culturais, fazendo
com que o Estado seja o único mantenedor, gerenciador e provedor de
recursos e pessoal no estabelecimento de uma política preservacionista dos
bens culturais nacionais. As verbas destinadas, algumas vezes insuficientes,
outras vezes atrasadas e muitas vezes perdidas na burocracia, por sua vez,
nem sempre são bem empregadas, agravando a situação dos edifícios e dos
acervos, os quais vem sendo destruídos pela falta de cuidados elementares.
Nas próprias palavras de Rodrigo Melo Franco de Andrade, a criação do

433
Serviço nasceu à vista de ocorrências penosas. Assistíamos, impassíveis,
utilizando meios que logo se revelaram inoperantes, a destruição e evasão dos
monumentos e das peças mais caras à tradição e à arte do país (OSWALDO, 1987,
p. 7).

Regina Clara Simões Lopes (1987, p. 26) defende o aparelho estatal


no artigo A Propósito da Política Cultural: por política cultural normalmente se
entende o conjunto de princípios filosóficos, políticos e doutrinários que orientam a
ação cultural (execução da política) nos seus diversos níveis. Hoje, com a
indefinição das competências e atribuições do Estado, através dos seus diversos
órgãos, e da empresa privada, através da Lei Sarney, a expressão adquiriu novos
significados e pode-se ler nas entrelinhas do processo cultural mensagens mais ou
menos subliminares como competição, promoção da imagem institucional dentro de
um sistema de marketing, rentabilidade (de qualquer natureza) do investimento,
agilidade, eficiência, em suma, o que se pretenderia “modernidade”.

Pelo artigo adentro, Regina Lopes demonstra sua preocupação com a


perda do discurso hegemônico em função do debate e da descentralização
que paulatinamente vem ocorrendo: diluída a função original do órgão
federal, qual a razão de sua existência se os órgão estaduais ou municipais
demonstrarem melhor eficiência no âmbito de suas ações locais? Destituído
o barroco de seu título de referencial cultural brasileiro, não ficaremos
perdidos? De fato, afirma a autora, temo eu, até, que tenhamos perdido na
substituição daquele barroco que nossos artistas dignificavam em igrejas, pinturas e
esculturas admiráveis, por uma modernidade duvidosa (1987, p. 27). O problema
que se coloca é que, em função das críticas constantes, a única instituição
que até o momento foi modelo de atuação na área de patrimônio, mas que
também é referência de dois momentos autoritários específicos, possa ser
desativada e desarticulada no contexto de um processo histórico de
democratização da sociedade brasileira.

Apontado como aparelho ideológico do Estado, o IPHAN corre o risco


de desaparecer entre um governo e outro, como também as suas políticas,
as suas verbas e seus diretores. A fragilidade do instituto é também o reflexo
da fragilidade das próprias instâncias políticas de um país que vive a

434
experiência democrática a não mais de dezesseis anos, sem contar a política
do Café-com-Leite da Velha República ou o intervalo democrático entre uma
ditadura e outra. O texto de Regina Lopes chama a atenção ao abordar o
problema do IPHAN sob uma nova ótica. Lembrando a carta de Mário de
Andrade a Rodrigo: Já comecei a trabalhar no SPHAN, eta entusiamo por não sei
o quê!, captamos um pouco o sentido daqueles que, por mais que se
esforcem, nem sempre conseguem implementar uma política mínima de
ação.

Não se trata de desmontar o IPHAN, mas a descentralização de suas


ações é cada vez mais necessária e os programas de apoio ou suporte às
comunidades que intencionem preservar seus acervos podem ser mais
eficazes do que ações paternalistas que, pela falta de introjeção na malha
social, acabam por ser excludentes: a formulação de uma política cultural por
parte do Estado em suas várias instâncias revela, basicamente, o tipo de
relacionamento proposto entre o Estado e a sociedade. O estabelecimento de
diretrizes, prioridades e soluções será, assim, o espelho da orientação político-
filosófica vinculada à noção de continuidade no processo cultural (LOPES, 1987, p.
28). Apesar dessa constatação, não são vazias as ações que procuram ouvir
as comunidades e dar voz aos segmentos representativos excluídos pelo
modelo oficial de Patrimônio Cultural. O exercício de cidadania é um
exercício que não se aprende de um dia para outro. Ele se reflete em todas
as instâncias: na briga pelo direito de troca de um produto quebrado, quando
o consumidor encontra respaldo no PROCOM ou na transformação da casa
do Mestre Vitalino em um museu de arte popular, quando a comunidade
encontra apoio no Estado.

Sim, através da cultura contam-se votos, criam-se mitos, e as festas


folclóricas – do carnaval ao bumba-meu-boi – transformam-se em palanques
oportunos, ou então ganha-se dinheiro atraindo turistas e transformando a
indústria cultural do evento na maneira mais fácil de atrair multidões e
anestesiar a alma em alguns dias de festa; mas também descobre-se
enquanto indivíduo detentor de uma identidade própria e com essa
identidade resgata-se a culinária, o artesanato, a dança, o patrimônio

435
vernacular, as formas de plantio e de uma existência possuidora de cores,
gestos e modos de ver e de se relacionar com o mundo, carregada de um
valor único e ao mesmo tempo pertencente a uma comunidade.

No limiar entre a privatização dos órgãos públicos e o controle sobre a


ação da livre iniciativa, fica o vácuo, e o espanto do povo, que se pergunta o
que isto significa, afirma Regina Lopes. Entretanto, não é na manutenção de
um aparelho estatal engessado que encontraremos as respostas, ou no
estabelecimento de um regime autoritário que dissiparemos as diferenças,
contradições e conflitos de uma sociedade tão complexa, desigual e ao
mesmo tempo rica em tradições - e chamemos de tradições todas aquelas
anunciadas por Otavio Ianni (1987) - quanto a sociedade brasileira.

Como extremo oposto de Regina Lopes, o sociólogo Sérgio Miceli


publica no mesmo número da Revista do IPHAN, um artigo denominado
SPHAN: Refrigério da Cultura Oficial, estruturando uma análise que afirma
que a política do patrimônio nacional contêm uma marca “classista” em todos
os momentos de sua atuação. Isso pode ser corroborado se analisarmos as
listas de bens tombados pelo IPHAN, afirma o autor, pois os bens que ali se
encontram são bens representantes de todas as frações da classe dirigente
brasileira. Nestas circunstâncias, o outro lado, caracterizado por grupos
populares, índios e negros, permanece esquecido, assim como os bens
produzidos por essas categorias (MICELI, 1987, p. 44-47). Miceli chama o
órgão de “refrigério”, geladeira ou congelador que conserva por meio da
cultura oficial a ideologia das classes dominantes, sem, no entanto, ter a
mesma eficiência que as políticas externas. Tomando-se como base a
França, com um orçamento destinado ao Patrimônio Cultural beirando cinco
por cento do orçamento nacional na década de setenta, a política francesa do
patrimônio foi dilatando a tal ponto as fronteiras de sua jurisdição que passou
a abarcar quaisquer modalidades de expressão cultural, associadas a
quaisquer suportes, buscando assim alcançar a universalidade proposta nos
discursos proferidos pelas instâncias internacionais. No caso do Brasil, tem-
se somado a um contexto histórico autoritário, o fato das verbas destinadas à
instituição ser o mínimo necessário à sua sobrevivência: quão distinta é a

436
situação brasileira quer em termos de volume de recursos disponíveis, da jurisdição
coberta, quer no tocante ao tamanho dos púbicos atingidos ou mobilizáveis como
consumidores de bens e eventos produzidos pelas agências executoras da política
do patrimônio (MICELI, 1987, p. 47).

O próprio Aloísio Magalhães, ex-diretor da instituição, assumiu que a


ação prática do órgão tem sido delimitadora e restritiva, prejudicando o
entendimento da população a respeito da construção do conceito de
Patrimônio Cultural e consagrando símbolos do poder instituído. Segundo ele
(1985), já na primeira versão da Revista do SPHAN era possível perceber a
grande ênfase dada aos monumentos arquitetônicos, como se
representassem oficialmente o patrimônio histórico nacional. Não podemos
desmerecer o potencial empreendido pelo Diretor-Geral do SPHAN Rodrigo
Melo Franco de Andrade em regulamentar a situação do órgão, mas
tampouco podemos desconsiderar a atenção prioritária dada aos edifícios
históricos em uma gestão de 30 anos e que continuou por ainda doze anos
na gestão do arquiteto Renato Soeiro, mesmo com as várias tentativas de
expansão das ações do IPHAN48. Esta situação comprometeu a atuação do
órgão, que ao longo desse tempo caracterizou-se como elitista e restritiva.

Gradativamente, a desatenção com a questão do Patrimônio Cultural


tem significado a perda massiva de nossos olhos, nossos espelhos, nossos
espíritos – nosso passado material – e os meios pelos quais ainda são
gerenciados os patrimônios culturais permanecem inoperantes. A perda
quantitativa e qualitativa destas fontes tem gerado lacunas irreparáveis, dificultando
a compreensão e composição deste passado recente. Os elementos que compõem
este jogo, muitas vezes, parecem estilhaços de um conjunto que não se arma
(FRONER, 1994, p.20). Se, por um lado, a destruição dos bens culturais
evidencia a dificuldade da atividade pública no gerenciamento do patrimônio
público, também demonstra uma falta de preparo para ingressar no mundo
high tech, inaugurado pela era da informatização e pela especialização das
áreas de conhecimento que envolve a cultura material.

48
A criação do PCH e CNRC em meados dos anos 70.

437
Five centuries after Columbus the world seems finally on the way to become
a globe. This unifying process is certainly not new. It could be predict since last
century, it was an economic reality already before world War I. But we do feel
nowadays especially sensitive to this globalizing trend, as if we were going through a
new turning point. In sense, a global word is a problem for us, something urgent,
compelling us to think about it and adapt ourselves to it. This trend poses new
questions also to those involved in heritage study, preservation and display. Is it
possible, or even desirable to think of heritage in global terms? (GUARINELLO,
1996, p. 1).

Há algum tempo é possível acessar as páginas do IPHAN e encontrar


programas de divulgação de obras desaparecidas e de outros projetos
específicos, mas os artigos produzidos nas revistas não estão disponíveis ao
grande público – ao contrário das newsletter produzidas pelo GCI, AIC, AAC
ou em universidades que possuem programas específicos na área – e o
custo para adquirir a publicação do IPHAN é relativamente alto, determinando
uma dificuldade de acesso aos temas discutidos no interior da instituição.

Por sua vez, a política preservacionista do país pouco tem investido


em cursos de formação de pessoal técnico especializado, principalmente na
área de restauração: já não é possível tratar questões relacionadas à
preservação do patrimônio – material ou imaterial – de maneira amadorística
ou casual. Diante da cultura material e dos próprios artefatos resgatados –
estudados ou não, expostos ou não, guardados ou não –, surgem questões
primordiais para sua manutenção: Por quê e para quem preservar? Quais
organismos devem discutir, pesquisar e propor diretrizes de atuação? Como
conservar os vestígios do passado? Estas indagações percorrem vários
níveis, como vimos no decorrer do trabalho:

1. Conduta ética no gerenciamento patrimonial e ação prática


especializada voltada à materialidade dos acervos;

2. Compreensão e conhecimento das diretrizes, acordos e normas


internacionais e formalização, respaldada nesses documentos, de
diretrizes internas;

438
3. Compreensão do quadro político nacional e da função ideológica das
instituições imaginárias construídas ao redor dos conceitos de
patrimônio, memória, história, arte, preservação, museu.

Já não é possível aceitar as práticas da Museologia, Arqueologia ou


Restauração sem a formação ou o conhecimento especializado: urge
reconhecer legalmente as áreas específicas e proporcionar suporte
educacional através de cursos nos níveis técnico, de graduação e pós-
graduação. Tampouco o Estado deve se manter alheio às diretrizes
internacionais propostas e fazer de seus representantes junto a UNESCO,
ICOM, ICCROM, ICOMOS e demais instituições internacionais meros
espectadores. Se a globalização gera inconvenientes e problemas ainda sem
soluções, também oferece parcerias, possibilidade de participação
democrática – cientistas dos mais diversos países podem discutir sobre um
mesmo tema nas páginas da Internet – e ampliação das discussões.

Tal ampliação tem sido verificada nas instituições internacionais que


concentram o debate preservacionista: apesar de se autoproclamarem
internacionais desde suas origens, durante muito tempo concentraram sua
atenção para as suas próprias zonas de atuação (Europa e América do
Norte). Atualmente, têm revelado uma maior preocupação com os destinos
dos bens patrimoniais do terceiro mundo. Para tanto, têm promovido cursos,
simpósios e seminários direcionados aos profissionais da América Latina,
África e Ásia, conforme visto nos esforços do ICCROM na década de
noventa49. A partir de diretrizes apontadas no interior desses organismos, a
comunidade científica e acadêmica, voltada para a investigação e a
preservação de bens culturais, discute cada vez mais a necessidade de
ampliar seus conhecimentos; investir em informação e formação de
profissionais; intervir nas ações governamentais relacionadas à preservação
do Patrimônio Arqueológico, artístico e histórico; agir de maneira consciente,
com bases técnicas e morais, distanciando-se de práticas amadoras que,

49
. Em 1995, The Getty Conservation Institute, INAH e ICCROM, realizaram no México o
primeiro curso voltado para a formação de conservadores latino-americanos; em 2001
realizou-se no CECOR um outro curso de especialização com duração de dois meses.

439
muitas vezes, resultam em ações incoerentes. Essa afirmação não discute a
origem dessas questões – se a demanda do meio resultou na formulação do
debate ou se o debate evidenciou as diretrizes prementes –, mas admite a
tese de que a maior parte das formulações levantadas foi organizada,
consolidada e expandida a partir de documentos internacionais e ações
operacionais difundidas pelas instituições internacionais levantadas nesse
estudo.

No Brasil, uma legislação pouco voltada para o reconhecimento das


profissões que lidam com a cultura material demonstra a falta de atenção do
Governo, das instituições acadêmicas, da sociedade civil e a carência de
mobilização das próprias categorias com relação a esse assunto; por outro
lado, a falta de direcionamento e união dos grupos interessados compromete
uma ação conjunta voltada para esse fim. Museólogos, arquivistas e
documentalistas há pouco tempo atrás não tinham sua profissão
reconhecida. Ainda hoje, arqueólogos e restauradores não são reconhecidos
legalmente. Se, por um lado, cada vez mais se torna necessária uma
especialização nessas áreas, a falta de regulamentação profissional gera, em
um outro sentido, a permanência de profissionais não qualificados no
mercado de trabalho e o desestímulo daqueles que buscam uma formação
mais especializada.

440
CONCLUSÃO

A memória é um fenômeno sempre atual, uma ligação do


vivido com o eterno presente; a história é uma representação
do passado. Porque ela é afetiva e mágica, a memória se
acomoda apenas nos detalhes que a conformam; ela se nutre
de lembranças, vagas, telescópicas, globais ou flutuantes,
particulares ou simbólicas, sensível a toda transferência,
censura ou projeção. A história, porque operação intelectual
e laicizante, exige a análise e o discurso crítico... A memória
se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no
objeto. A história não se liga a não ser em continuidades
temporais, nas evoluções e relações de coisas. A memória é
um absoluto, a história não conhece mais do que o relativo.
Pierre Nora, Les lieux de mémoire, apud de Decca, 1992, p.134.

Ao final da pesquisa, estranhamente percebo a origem do título desta


tese, Os Domínios da Memória, e na sua exposição encontro a melhor
maneira de realizar a conclusão deste trabalho.

Relendo um texto de Giorgio Lombardi, A cidade histórica como


suporte da memória, o autor abre sua exposição colocando sua satisfação de
estar no Brasil e de participar de um Congresso com um título tão instigante
e interessante (1992, p. 81). O arquiteto italiano comentava, assim, o título do
Congresso O Direito à Memória, organizado pelo Departamento do
Patrimônio Histórico, cuja diretora era Déa Fenelon, e pela historiadora Maria
Clementina Pereira Cunha.

Nessa época, eu morava no alojamento estudantil da Universidade de


São Paulo, estava terminando de escrever a dissertação de mestrado e
trabalhava como restauradora contratada pela Vitae para cuidar da coleção
de imaginária sacra e popular do acervo Mário de Andrade, no Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Após a realização do
Congresso, fiquei sabendo do evento por uma amiga de Ouro Preto, a Dedé,
com quem fiz História. Anos depois, no início desta tese é que tive, por
intermédio do Norberto, contato com a publicação gerada pelo mesmo. Li

441
apenas alguns textos para a qualificação de doutorado e foi exatamente
nesse momento que o título desta pesquisa foi modificado.

Houve também, por conta da qualificação, um redirecionamento em


relação ao enfoque e a seleção das fontes prioritárias a serem analisadas: se
inicialmente foi pensado utilizar os códigos de ética gerados pelas áreas
abordadas, a partir do levantamento dos documentos gerados pela UNESCO
decidimos – meu orientador e eu – tentar compreender a construção do
discurso preservacionista a partir dos processos de seleção, exclusão,
identificação e descrição do objeto “Patrimônio Cultural”.

Não assisti nenhuma das palestras, infelizmente, mas o contato com o


material produzido no Congresso ficou reservado em alguma parte da
memória, para mais tarde aflorar sob o título dessa tese.

Observando o material estudado e as bases epistemológicas sobre as


quais foram estruturadas essa pesquisa percebo que, de uma maneira ou de
outra, o direito à memória parece ter sido mapeado ao longo da investigação:
para que seja possível compreender a quem a memória tem sido útil, para
quem preservamos e porque preservamos é imprescindível investigar os
domínios da memória, a quem pertencem e como o discurso é forjado e
sedimento em todas as esferas do conhecimento. Perscrutar o saber
constituído em torno do conceito de Patrimônio Cultural, cartografando seus
territórios e suas regras, suas condições de possibilidade e suas lacunas, e
perceber que a legitimidade dos discursos oficiais corresponde tanto ao peso
do enunciado quanto da condição política daquele que fala, pode nos ajudar
a não andar tão às cegas nos nossos campos específicos.

Há mais de dez anos atuando como conservadora, confesso que


pouco ou nada sabia da construção epistemológica dessa prática; como
tampouco sabia da história turbulenta da oficialização do SPHAN ou das
referências relacionadas à construção do conceito de patrimônio no Brasil.
Mesmo lidando com o patrimônio vinculado à construção ideológica oficial, de
fato, o que foi vivenciado, é que a maioria das instituições brasileiras se

442
equilibra como pode, inclusive para preservar os títeres da história: o
patrimônio edificado.

Do Congresso, um texto que me chamou a atenção foi aquele


produzido por Marilena Chauí, Política Cultural, Cultura Política e Patrimônio
Histórico (1992, p. 37-46). Ela comenta: A Secretaria Municipal de Cultura de
São Paulo estabeleceu como diretriz política a idéia e a prática da Cidadania Cultural
que define a cultura como direito do cidadão e determina esse direito sob três
aspectos: como direito de acesso à informação e de fruição da criação cultural;
como direito de produção das obras culturais; e como direito de participação nas
decisões de política cultural. A cultura é por nós entendida sob um duplo registro: no
sentido antropológico amplo de invenção coletiva e temporal de práticas, valores,
símbolos e idéias que marcam a ruptura do humano em face das coisas naturais
com a instituição da linguagem, do trabalho, da consciência da morte e do tempo,
do desejo como diverso da necessidade, do poder como diverso da força e da
violência, do pensamento como diferenciação entre o necessário e o possível, o
contraditório e o idêntico, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o
bom e o mau, a determinação ética da existência pela liberdade e pela culpa, à
determinação política da existência pelo trabalho realizado sobre as diferenças e
conflitos sociais.

Somos todos seres culturais, afirma Marilena Chauí, e o patrimônio


surge como uma possibilidade de memória, da construção da memória
excluída, como os museus dos bairros negros das cidades americanas, ou da
minha própria memória, relatada no início dessa conclusão. Este trabalho é
fruto de um posicionamento político, como também é fruto das seleções das
fontes, da maneira de abordá-las e dos enfoques estabelecidos. Como
ciência ou como prática cotidiana, não estamos à margem dos debates, dos
conflitos ou das proposições. Os domínios da memória pertencem a muitos, a
todos, principalmente se envolvidos no processo: a máxima de Gramsci de
afirmar que todos somos intelectuais, de que todos possuímos os meios para
sistematizar nossas idéias e descobrir de que modo somos feitos como
indivíduos históricos (SCHWARZ, 1992: 70), pode orientar uma mudança de
postura no ato de pesquisar, coletar, expor ou restaurar o Patrimônio Cultural
tangível ou manter vivo o Patrimônio Cultural intangível. Ao dividir as

443
decisões e introduzir a comunidade no debate, evitamos excluir as pessoas
para quem, supostamente, trabalhamos.

A construção cultural é, simultaneamente, uma vivência e uma


estrutura de trocas simbólicas estabelecidas por meio da construção de
parâmetros, modelos, critérios e sistemas de valor: exercer essa existência
cultural parece ser o desafio maior, um direito a conquistar; a preservação do
Patrimônio Cultural pode ser, assim, um meio de reconhecimento, um direito
incontestável de cidadania.

Ao final de tudo, tenho a sensação de que o ganho desse trabalho


está centrado mais na sistematização das fontes e sua organização, do que
na análise propriamente dita: tenho ciência da falta de aprofundamento dos
capítulos quinto e sexto, mas encontro neles um ponto de partida para
futuras pesquisas. Ao mesmo tempo, acredito que as leituras que
embasaram os primeiros capítulos puderam fornecer uma visão mais
abrangente das áreas vinculadas à preservação, exposição e pesquisa da
cultura material, servindo de suporte às estruturas posteriores. Em relação ao
último capítulo, várias publicações, artigos, teses e dissertações foram
inicialmente levantadas, demonstrando a importância da historicização das
instâncias administrativas responsáveis pela proteção patrimonial no meio
acadêmico; o enfoque dado – a influência das diretrizes discutidas
externamente –, no entanto, não impediu a reflexão do contexto interno, ao
contrário, tornou-se justificativa para os modelos analisados. Lacunas e
deslizes podem ter sido cometidos, principalmente ao entrar em áreas
específicas, como a Museologia e a Arqueologia; quem sabe foi mantida a
promessa inicial – foram feitas mais perguntas do que formuladas as
respostas – mas, de uma maneira ou de outra, esta tese finaliza-se com um
sentimento incontestável: o direito à memória inicia quando os domínios da
memória são expostos, compreendidos e reconhecidos.

Edgar de Decca (1992, p. 129-136) afirma que com o advento da


modernidade o processo histórico foi acelerado impondo ao cidadão
contemporâneo uma ruptura com o passado e, ainda, um esquecimento ou

444
desconhecimento do próprio passado recente em virtude do acúmulo e da
rapidez das informações. Os suportes sociais da memória coletiva
modificaram-se em relação os modelos tradicionais de continuidade: o
passado exposto passa a ser aquele construído oficialmente pelas
academias – cuja população comum não tem acesso – ou aquele imaginário
produzido pela televisão, cinema ou outros meios de comunicação. Como
expectador, o homem contemporâneo deixa de existir na história para
observa-la como voyeur. A memória coletiva encontra-se refugiada nos
silêncios, nos grupos que se mantêm – por quanto tempo? – alheios ao
processo de homogeneização dos gestos, gostos, parâmetros de beleza, arte
e consumo. A percepção desse contexto obriga aos grupos minoritários
organizar-se, não mais espontaneamente enquanto essência da existência,
mas conscientemente como única maneira de preservar sua presença na
malha social. Ao historiador, parece que lhe foi roubado o papel de coletar e
contar a História, pois, conforme de Decca afirma, começa a existir uma
progressiva desprofissionalização da história, na medida em que sua
produção deixa de ser prerrogativa dos historiadores e passa a ser
reivindicada como prática de outros grupos sociais na luta pela preservação
de sua identidade.

O impasse colocado por essa mudança do papel do historiador


envolve todas as áreas de conhecimento próximas, do arqueólogo ao
etnólogo; do antropólogo ao museólogo, do arquivista ao restaurador: não
cabe mais a sistematização pura e simples, torna-se imprescindível
reivindicar a dimensão crítica, a construção da memória histórica como
afirmação de cidadania e preservação das diferenças. No entanto, o fim de
um princípio explicativo único da história, que animou tantas filosofias, inclusive o
marxismo, deixou-nos aberto o futuro, sem as menores garantias e tornou invisível o
passado, dando-nos a sensação de que ele está em vias de desaparecimento (De
DECCA, 1992, p. 135).

Esse sentimento do deslocamento do devir do passado e do papel


daqueles que se alimentam dele poderá alterar nossas relações específicas?

445
Perdida a inocência, conseguiremos utilizar a consciência como salto, ponte
ou caminho? Quem somos, de onde viemos, para onde vamos?

446
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