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CULTURA COMO PERFORMANCE

A história do teatro como história cultural1

Erika Fischer-Lichte
Universidade Livre de Berlim

Durante os últimos anos, nossa compreensão dos processos culturais mudou


consideravelmente; e também o nosso conceito de cultura. Não procedemos mais
considerar apenas o pressuposto de que a cultura deve ser compreendida como um
texto, feito de signos que deve ser lido como o foi o conceito de cultura que dominou
desde a virada linguística nos anos setenta: "A cultura como texto". Preferimos entender
que a cultura também é, se não em primeiro lugar, performance. Dificilmente pode ser
inspecionado/omitido/esquecido até que ponto a cultura é produzida como performances
– não apenas em performances de diferentes artes, mas também, e principalmente, em
performances de rituais, festivais, comícios políticos, competições esportivas, jogos,
desfiles de moda e afins – apresentações que, em forma midiatizada, alcance milhões de
pessoas. Daí decorre que o conceito de performance, que a teoria da performance está
no centro e no cerne de todos os debates em estudos culturais, sociais e artísticos.
Então, vou esboçar em linhas gerais o conceito de performance que foi
desenvolvido no contexto do Sonderforschungsbereich (Centro de Excelência)
"Kulturen des Performativen" (Cultura performativa). Vou apresentá-lo e explicá-lo
seguindo quatro argumentos:

1. Uma performance surge pela co-presença corporal de atores e espectadores,


pelo seu encontro e interação.

2. O que acontece nas performances é transitório e efêmero. Apesar disso, o


que quer que apareça em seu curso, nasce hic et nunc (neste exato instante e
local) e é vivenciado como presente de maneira particularmente intensa.

1
FISCHER-LICHTE, Érika. Performance as Culture: Theatre history as cultural history (2004). Artigo
disponibilizado pelo Centro de Estudos de Teatro, Actas/ Proceedings, História do Teatro e Novas
Tecnologias. Tradução de Raimundo Vagner Leite de Oliveira. Disponível em:
https://www.yumpu.com/en/document/view/10175071/erika-fischer-lichte. Acesso em: 10/12/2017.
3. Uma performance não transmite significados pré-dados. Em vez disso, é o
performance que traz à tona os significados que surgem durante seu curso.
4. Performances são caracterizadas por sua eventualidade. O modo específico de
experiência que eles permitem é uma forma particular de experiência liminar.

Primeiro argumento: uma performance ocorre na e através da co-presença


corporal de atores e espectadores. Pois, a fim de trazê-lo sobre dois grupos de pessoas
que agem como 'fazedores' e 'espectadores' têm que se reunir em um determinado
momento e em um determinado lugar para compartilhar uma situação, um período de
vida. Uma performance surge fora de seu encontro – fora de sua interação.
Isso quer dizer que em uma performance as condições mediais são
completamente diferentes daquelas subjacentes à produção e recepção de textos ou
artefatos. Enquanto os atores fazem alguma coisa – movem-se pelo espaço, fazem
gestos, manipulam objetos, falam e cantam –, aqueles que agem como espectadores os
percebem e reagem. Pode ser que tais reações, pelo menos em parte, sejam internas,
imaginativas e em processos cognitivos, ou seja, processos puramente mentais. No
entanto, a maioria das reações e respostas podem ser percebidos pelos atores e outros
espectadores – como risos, gargalhadas, gritos, bocejando, roncando, soluçando,
chorando, comendo, bebendo, comentando o que está acontecendo, levantar, sair
correndo, bater as portas e assim por diante. A percepção de tais respostas, por sua vez,
resultam em outras reações perceptíveis. O que quer que os atores façam, tem um efeito
sobre os espectadores; e o que quer que os espectadores façam, isso tem um efeito sobre
o atores e em outros espectadores. Concluindo deste estado de coisas, pode-se
argumentar que uma performance surge apenas em seu curso. Ela se produz pelas
interações entre atores e espectadores. Portanto, segue-se que seu curso não é
completamente para ser planejado nem a ser previsto. Deve ser considerado como um
processo autopoiético (sistema organizado auto-suficiente; capacidade dos seres vivos
de produzirem a si próprios) que é caracterizada por um alto grau de contingência. O
que quer que apareça no decorrer de uma performance, não pode ser totalmente previsto
em seu início. Muitos elementos surgem no curso de uma performance como
consequência de certas interações.
É verdade, os atores estabelecem as pré-condições decisivas para o curso do
desempenho – pré-condições que são fixadas pelo processo de encenação. Apesar disso,
eles não são capazes de controlar totalmente o andamento da performance. No final,
todos os participantes juntos realizam a performance. Isso não apenas minimiza, mas
também exclui a possibilidade de que uma pessoa individual ou um grupo de pessoas
seja capaz de planejar completamente seu curso, dirigi-lo e controlá-lo. O desempenho é
removido do controle de qualquer indivíduo.
Em outras palavras: A performance, dessa forma, a todos os participantes abre a
possibilidade de experimentar-se em seu curso como um sujeito capaz de co-determinar
as ações e comportamento dos outros e cujas próprias ações e comportamento, da
mesma forma, são determinados por outros. O participante individual – seja ele/a ator
ou espectador – experimenta-se como um sujeito que não é nem totalmente autônomo
nem totalmente determinado por outros, como um sujeito que assume a
responsabilidade para uma situação que ele/ela não criou, mas da qual participa.
Isso elucida que qualquer performance – mesmo que artística – também deve ser
considerado um processo social. Nela, diferentes grupos se encontram, negociam e
regulam seu relacionamento de maneiras diferentes. Tal processo social se transforma
em um processo político num exato momento em que durante a performance uma luta
de poder entre atores e espectadores é iniciada porque um grupo tenta impor ao outro
certas definições da situação ou da relação entre eles, certas ideias, valores, convicções
e modos de comportamento. Uma vez que cada participante individual – mesmo que de
forma diferente – co-determina o curso da performance assim como se deixa determinar
por ela, não há ninguém que participe 'passivamente' da performance. Nesse sentido,
todos os participantes assumem a responsabilidade conjunta pelo que está acontecendo
durante a performance.
Além disso, em seu percurso pode ocorrer algum tipo de agrupamento entre os
espectadores. É mesmo possível que durante toda a duração da performance ou pelo
menos para certos trechos de tempo uma comunidade entre os espectadores ou mesmo
entre atores e espectadores pode vir a ser. Isso é o que pode transformar uma
performance em um ato eminentemente político – sem que nenhum tipo de tema
político seja tratado.
Segundo argumento: A materialidade de uma performance, sua espacialidade,
corporalidade e a qualidade do som é produzida por e no decorrer da performance. Por
isso segue o paradoxo da performance. É efêmero e transitório. No entanto, o que
aparece e toma forma em seu curso, surge hic et nunc (neste exato instante e local) e é
vivenciado como presentes de forma particularmente intensa.
Mesmo que, nesse sentido, as performances se esgotem em sua presentidade, ou
seja, em seu permanente devir e passar, isso não exclui que em seu curso, objetos
materiais sejam usados – objetos que depois do fim permanecem como vestígios do
desempenho e pode ser mantido como tal. Enquanto em sua exibição posterior em um
museu – teatro, etnológico ou outro museu – o interesse centra-se no próprio objecto, a
atenção da performance é direcionada ao seu uso: quais ações são executadas quando o
objeto é manipulado e que efeito eles têm?
Tudo o que aparece em uma performance, por um lado, procede de intenções,
ideias e planos de vários sujeitos. É pela produção, pela misen-cena que define quais
elementos devem aparecer em que momento e em que ponto do espaço, como eles
devem se mover através do espaço e quando e onde eles devem desaparecer dela. Por
outro, o que aparece brota das interações como descrito acima. Não importa se tais
fenômenos como a percepção dos espectadores e que respostas são declaradas
constitutivas da performance como John Cage fez em seu Silent Pieces2, que incluía
todos os sons produzidos pelos espectadores, bem como aqueles que penetram no
espaço da performance de fora; ou se tais elementos são entendidas como disruptivas e
como a materialidade da performance é definida apenas que é intencionalmente trazido
à tona pelos artistas envolvidos – o que quer que apareça no curso de uma performance,
em qualquer caso, co-constitui a materialidade particular desta performance. É por isso
que temos que distinguir claramente entre o conceito de mise-en-scène e a performance.
Enquanto 'mise-en-scène' significa a materialidade da performance que é trazida de
acordo com os planos e intenções do artista, 'performance' inclui qualquer tipo de
materialidade trazida em seu curso. Isso é, por que a mise-en-scène é reproduzível,
enquanto a performance ocorre apenas uma vez.
Mesmo que determinados gêneros de performance possam ocorrer em espaços
que são construídos especificamente para eles, a espacialidade da performance é sempre
efêmera e transitório. Pois não se identifica com o espaço físico-geométrico em que
acontece. Ela surge no e através do espaço performativo. É o espaço performativo que
abre possibilidades particulares para a relação entre atores e espectadores, para
movimento e percepção, que, além disso, organiza e estruturas. De que maneiras essas
possibilidades são usadas, realizadas, evitadas ou neutralizadas, terá um efeito sobre o

2
Oração silenciosa , 4′ 33″ , 0′ 00″ , One 3 : essas são manifestações em evolução da mesma obra ou são
quatro obras distintamente diferentes. Ver também: PENA, Eder Wilker Borges. “Unsilencing” the Silence:
Unacknowledged Silent Pieces. OPUS, [s.l.], v. 26, n. 3, p. 1-26, jan. 2021. ISSN 15177017. Disponível em:
<https://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/opus2020c2617 >. Acesso em: 10 jun. 2023.
espaço performativo. Cada movimento de pessoas, animais, objetos, luz, cada som que
ressoa no espaço vai mudá-lo e, assim, fazer surgir espacialidade nova e diferente. O
espaço performativo não é estável, mas em permanente flutuação e mudança. É por isso
que em uma performance a espacialidade não existe, mas acontece.
Isso é ainda mais verdadeiro se considerarmos a atmosfera particular que
coconstitui o espaço performático. Como o filósofo Gernot Böhme mostrou, as
atmosferas, embora não vinculadas a um lugar específico, se derramam no espaço. Eles
não são vinculados aos objetos – ou às pessoas – dos quais/de quem parecem emanar
nem as pessoas que entram no espaço e os sentem fisicamente. Normalmente, eles são
os primeiros que apreendem o espectador/visitante, tinge-o e assim possibilita-lhe uma
experiência do espaço. Tal experiência não pode ser explicada recorrendo aos elementos
únicos no espaço – sua extensão, objetos particulares, cheiros, sons ou outro. Pois não
são eles como elementos individuais que criam a atmosfera, mas a interação entre todos
eles que, em produções teatrais costuma ser cuidadosamente calculado. Böhme define
atmosferas como "espaços na medida em que são tingidos pela presença de objetos, de
seres humanos ou de constelações ambientais. Eles são eles próprios esferas de presença
de algo, sua realidade no espaço."
O termo "esferas de presença" visa um modo particular no qual os objetos são
presente. Böhme o explica como "êxtase do objeto", como o modo pelo qual uma coisa
aparece de uma maneira particular como presente. Não só as suas cores, cheiros ou sons
são conceituados como êxtases – ou seja, as chamadas qualidades secundárias de uma
coisa –, mas também suas qualidades primárias como extensão e forma. O êxtase das
coisas resulta em que as coisas têm um efeito sobre o seu ambiente, que atraem a
atenção, até a exigem e que aparecem para quem os percebe de forma particularmente
intensa como presentes. Eles se forçam em sua atenção mostrado, atmosferas, embora
não vinculado a um determinado lugar, despeje no espaço. Eles não estão presos aos
objetos – ou às pessoas – de quem parecem emanar nem às pessoas que entram no
espaço e os sentem fisicamente. Normalmente, são os primeiros que apreendem o
espectador/visitante, tinge-o e assim possibilita-lhe uma experiência muito específica do
espaço. Tal a experiência não pode ser explicada recorrendo aos elementos isolados do
espaço – sua extensão, objetos particulares, cheiros, sons ou outros. Pois não são eles
como indivíduos elementos que criam a atmosfera, mas a interação entre todos eles que,
em produções teatrais geralmente é cuidadosamente calculado. Böhme define
atmosferas como “espaços na medida em que são tingidos pela presença de objetos, de
seres humanos ou constelações ambientais. Eles próprios são esferas de presença de
algo, sua realidade no espaço.”
A atmosfera contribui consideravelmente para a produção da espacialidade. Por
causa e pela atmosfera, que o espaço e as coisas emanam – incluindo os cheiros que
exalam e os sons que deixam ressoar –, as coisas e o espaço aparecem ao sujeito que
neles entram, sentido enfático, como presentes de maneira uniforme. Não só por se
apresentarem em seus chamados primários e qualidades secundárias; além disso, na
atmosfera, eles até invadem o corpo do sujeito perceptivo – o que, acima de tudo, é ser
experimentado com luz, cheiros e sons. Pois o espectador não se confronta com a
atmosfera, não se distancia dela; ao contrário, ele está cercado por ela, ele imerge nela.
Por causa da co-presença corporal de atores e espectadores, a corporeidade
desempenha um papel essencial nas performances. Em uma performance lidamos com o
fenomenal assim como com o corpo semiótico. Os atores aparecem em seu ser-no-
mundo corpóreo, não importa seja um ator de teatro, um político, um atleta, um xamã,
um padre, um cantor, um dançarino ou o parceiro em uma interação cotidiana normal.
De seu corpo fenomenal pode proceder uma radiação particular que os outros
participantes/espectadores sentem corporal. Em muitos casos, parece que um fluxo de
energia emana deles, que é transferido para os espectadores e os energiza por sua vez.
Em um determinada maneira e de forma particularmente intensa, o ator é vivenciado
como PRESENTE. No mesmo tempo, o espectador que é atingido por tal fluxo de
energia, experimenta-se em uma maneira particular e particularmente e intensamente
como presente.
O corpo fenomênico do ator e do espectador é o fundamento existencial de todo
tipo de performance – seja na vida cotidiana, nas artes ou em apresentações culturais.
Que é dizer que o caráter performativo da cultura não pode ser investigado
adequadamente sem recorrer à corporeidade de todos os que participam de uma
performance. Não são ideias, conceitos, significados que devem ser examinados em
primeiro lugar, a fim de trazer à tona o caráter performativo da cultura, mas os corpos
fenomenais particulares por quem e entre quem a performance é produzida – o corpo do
ator que aplicando certas técnicas e práticas consegue ocupar o espaço e em chamar a
atenção total dos espectadores sobre isso, sua presença corporal, bem como como o
corpo dos espectadores que respondem a tal experiência de presença em um modo
particular.
Nas performances, é o corpo fenomenal dos participantes, o corpo em seus
diferentes estados fisiológicos, afetivos, energéticos e motores que atuam no corpo
fenomênico dos outros e é capaz de evocar neles aspectos fisiológicos, estados afetivo,
energético e motor. Em todos esses casos, o corpo fenomenológico, muitas vezes,
aparece ao mesmo tempo que um corpo semiótico. Seja no dia a dia da interação, num
ritual ou numa representação teatral, aquele que faz o papel do espectador não apenas
sentirá o outro em sua corporeidade fenomênica, mas ao mesmo tempo colocam a
questão do que significa quando o outro abaixa a pálpebra, levanta o braço ou se move
através do espaço – ou, em qualquer caso, se tais movimentos são destinados a
significar nada mesmo.
Se até agora o corpo semiótico nas performances atraiu e recebeu muita atenção,
o corpo fenomenal de atores e espectadores raramente vinha à vista. Isso é tanto mais
surpreendente quanto o corpo fenomenal e o corpo semiótico estão indissoluvelmente
ligados entre si – o que permite pensar o corpo fenomênico sem fazer referência ao
corpo semiótico, ainda que não o contrário. Parece bastante produtivo relacionar ambos
um ao outro por meio do conceito de corporificação. Por personificação, não me refiro
ao processo de emprestar temporariamente o corpo a algo mental – uma ideia, um
conceito, um significado ou mesmo um espírito sem corpo – que precisa de um corpo
para poder se articular e ganhar aparência. Em vez disso, o termo “corporificação” visa
tais processos corporais pelos quais o corpo fenomênico se revela como um, em cada
caso, corpo particular e ao mesmo tempo significados específicos. Assim, o ator por
processos de corporeidade, produz seu corpo fenomênico de maneira muito específica,
que às vezes é experimentado como PRESENÇA e, ao mesmo tempo, produz uma
dramática figura, por exemplo, Hamlet. A PRESENÇA assim como a figura dramática
não existem além dos processos particulares de corporificação pelos quais o ator os traz
a existência na performance; em vez disso, eles são produzidos por eles.
O que é característico do jogo do ator pode ser aplicado a todos os tipos de
performers e suas ações em outros gêneros de performance. Mesmo aqueles que usam
seu corpo fenomenal de uma maneira particular trazem, ao mesmo tempo, assim,
significados específicos – sejam eles uma figura dramática ou qualquer tipo de
identidade, um 'papel' social ou uma ordem simbólica. Todos esses tipos de significados
estão fundamentados no corpo fenomenal, não existem ao lado ou além dele. O que
chamamos de PRESENÇA em um ator, em um político líder, num xamã ou no
sacerdote podemos chamar também de carisma. Mas isso abre bastante para outro
debate.
Terceiro argumento: uma performance não transmite significados pré-dados.
Em vez de, é a performance, que traz à tona os significados que surgem durante seu
curso.
Por muito tempo, os estudiosos partiram do pressuposto de que as performances
servem ao propósito de transmitir significados pré-dados específicos. Partiu-se da
premissa de que a performance de um texto dramático transmite os significados fixados
nele ou em uma determinada interpretação do mesmo; que em um festival da corte do
século 17 um determinado pré-dado programa alegórico foi realizado, ou que festivais
políticos e outros eventos performáticos de massa devem ser consideradas como
representação do poder de um indivíduo como o de Alexandre, o Grande, Augusto, Luís
XIV, Napoleão, Mussolini, Stalin ou Hitler.
Caso os dois primeiros argumentos pareçam consistentes, tal opinião não pode
mais ser realizada. Pois, por um lado, existem os elementos imprevistos e não
planejados surgindo na interação entre atores e espectadores durante a performance, que
irá perturbar o programa pré-determinado. E por outro, focando a atenção em a presença
particular de corpos fenomênicos, êxtases de coisas e atmosferas, distraí-lo de corpos
semióticos, objetos e espaços etc. e, assim, ir contra o procedimento de tal interpretação.
Pelo contrário, é a performance que produz significados. Nesse sentido, os significados
que surgem na e durante a performance, devem ser consideradas emergentes.
Perceber o corpo, as coisas e o espaço em sua presença específica, não significa
percebê-los como sem sentido. Em vez disso, diz, para perceber todos esses fenômenos
como algo. Não se trata aqui de um estímulo inespecífico, de meros dados sensoriais,
mas com uma percepção de algo como algo. Na minha percepção as coisas aparecem
em sua fenomenalidade particular. Eles significam aquilo como eles aparecem. Sua
auto-referencialidade, portanto, não deve ser descrita como a mediação de um
significado pré-dado, nem como uma desmantização, mas como um processo de um
tipo muito particular de produção de significado. Este processo é realizado como a
percepção de um fenômeno em sua materialidade particular, em seu ser fenomenal.
Perceber e gerar significado, aqui, são realizadas no e pelo mesmo ato. O significado é
produzido por e no ato de perceber. Em outras palavras: não há algo que primeiro
percebamos e ao qual então – em um ato de interpretação – atribuímos o significado de
outra coisa.
Em vez disso, perceber algo como algo é realizado ao mesmo tempo que um
processo de produzir seu significado como esse ser fenomenal particular. Com tal modo
de percepção, um muito diferente anda de mãos dadas. Primeiro o elemento aparente é
percebido em e como seu ser fenomenal. No momento em que a atenção dissolve seu
foco do elemento percebido como tal e começa a se extraviar, o elemento aparece como
uma espécie de significante ao qual as mais diversas associações referem-se a seus
significados como imagens, ideias, memórias, emoções, pensamentos etc. questionável
se tais associações surgem seguindo regras particulares e, portanto, previsivelmente. Em
vez disso, deve-se supor que eles descem sobre a percepção do assunto, mais ou menos
por acaso, mesmo que posteriormente explicável. Eles parecem não estar em disposição
do destinatário. Eles simplesmente emergem.
Tal oscilação da percepção entre focalizar o fenômeno como auto-referencial e
nas associações que ele pode desencadear, chamarei de ordem de presença. Dele eu
distingo outro tipo de percepção e significado produção, ou seja, a ordem da
representação. Perceber o corpo do ator em sua corporalidade o ser-no-mundo
fundamenta a ordem da presença. Para percebê-lo como um sinal, pois uma figura
dramática ou outra ordem simbólica estabelece a ordem da representação. Isto exige
relacionar qualquer elemento percebido à figura dramática ou à ordem simbólica,
respectivamente. Enquanto a primeira ordem produz sentido como o ser fenomênico do
percebido – o que não exclui que tal significado seja capaz de evocar outros
significados que não estão diretamente ligados aos fenômenos percebidos como em uma
cadeia de associações – a segunda ordem traz significados que, em sua soma total,
constituem o drama figura ou outra ordem simbólica.
Durante uma performance, nossa percepção oscila entre as duas ordens de
percepção. No momento em que passa de um para o outro, surge uma ruptura, acontece
a descontinuidade. Um estado de instabilidade surge. Ele coloca a percepção do sujeito
entre as duas ordens, transfere-o para um estado entre e entre, para um estado de
liminaridade: Cada mudança, cada instabilidade provoca a dinâmica do processo de
percepção para tomar outro rumo. Quanto mais frequentemente ocorre uma mudança,
mais frequentemente o sujeito que percebe começa a vagar entre dois mundos, entre
duas ordens de percepção. Cada vez mais ele se dá conta de sua incapacidade de
provocar, orientar e controlar os turnos. Ele/ela pode tentar intencionalmente ajustar sua
percepção de novo - para a ordem de presença ou à ordem de representação. Muito em
breve, porém, ele/ela tome consciência de que a mudança ocorrerá mesmo que não seja
sua intenção, que ela acontecerá, acontece com ela/ele, que ela/ele entra em um estado
entre as duas ordens sem querer ou poder impedi-lo. Nesse momento, o espectador
experimenta sua própria percepção como emergente, como retirado de sua vontade e
controle, mas ainda assim, como conscientemente realizado. Isso quer dizer que a
mudança chama a atenção do sujeito que percebe para o processo de percepção, bem
como à sua dinâmica particular. No momento da mudança, o processo da própria
percepção torna-se conspícua, desta forma, consciente e em si mesma objeto de
percepção. O sujeito que percebe passa a se perceber como sujeito que percebe, o que
produz novos significados, que, por sua vez, geram outros significados e assim por
diante. Essa forma, o processo de percepção continuamente toma outro rumo. O que
será percebido e quais significados serão produzidos, parece cada vez menos previsível.
O sujeito que percebe toma consciência de que os significados não lhe são transmitidos,
mas que é ele mesmo que os produz e que poderia ter gerado significados bem
diferentes, se a mudança de uma ordem para outra tivesse acontecido mais cedo ou mais
tarde ou mais ou menos frequentemente.
Quarto argumento: Performances são caracterizadas por sua eventualidade. O
modo específico de experiência que eles permitem é uma forma particular de
experiência liminar.
A fim de compreender adequadamente as performances, elas não devem ser
consideradas obras da arte, mas como eventos. Uma vez que uma performance surge
por meio da interação entre atores e espectadores, uma vez que se manifesta em e por
meio de um processo, é impossível rotulá-lo como obra. Pois quando o processo
autopoiético chega ao fim, a performance não é dada como seu resultado; em vez disso,
até mesmo performance veio para um fim. Ele se foi e está irremediavelmente perdido.
Ele existe apenas como e no processo de realização; existe apenas como um evento.
A performance como evento – bem diferente da mise-en-scène – é não
recorrente e não deve ser repetido. É impossível que exatamente a mesma constelação
entre atores e espectadores aparecerá mais uma vez. As respostas dos espectadores e
seus efeitos sobre os atores e outros espectadores serão diferentes a cada desempenho.
Uma performance deve ser entendida como um evento também no sentido de que
nenhum participante terá controle total sobre isso, que acontece com eles - e, em
particular, aos espectadores. Isso vale não apenas no que diz respeito às conseqüências
do corpo co-presença de atores e espectadores, mas também no que diz respeito à
presença particular em quais os fenômenos aparecem, bem como para a emergência dos
significados. Como tem sido explicada sobre a mudança de percepção, ela também recai
sobre o sujeito que percebe e o transfere para um estado intermediário e intermediário,
para um estado de instabilidade.
Além disso, o evento particular das performances é caracterizado por um
estranho colapso de oposições. Os participantes de uma experiência performática como
sujeitos que co-determinam seu curso são, ao mesmo tempo, determinado por ela. Eles
vivem através da performance como uma estética tanto quanto social, mesmo um
processo político, em cujo curso as relações são negociadas, as lutas de poder lutadas, as
comunidades se constroem e se dissolvem. Sua percepção segue a ordem de presença,
mas também da representação. Ou seja: O que, tradicionalmente no Ocidente culturas, é
tida como uma oposição que é apreendida por pares de conceitos dicotômicos tais
como: sujeito autônomo vs. sujeito determinado por outros; arte versus social
realidade/política; presença vs. representação, em performances é experimentado não no
modo de um ou outro, mas de um também. A oposição desmorona, as dicotomias
parecem se dissolver.
No momento em que isso acontecer, no momento em que um pode ser também o
outro, nossa atenção é atraída pela passagem de um estado a outro, pela instabilidade
que, por sua vez, é experimentado como um evento. O espaço entre os opostos, um
intervalo abre. O "entre e entre", torna-se assim uma categoria privilegiada. Ele aponta
para o limiar entre os espaços, ao estado de liminaridade, em que a performance
transfere todos aqueles que dela participam.
Uma vez que tais pares de conceitos dicotômicos não servem apenas como
ferramentas para a descrição e cognição do mundo, mas também como reguladores de
nossas ações e comportamento, sua desestabilização não só resulta em uma
desestabilização de nossa percepção do mundo, a nós mesmos e aos outros, mas
também no estilhaçamento das regras e normas que orientam nosso comportamento.
Dos pares de conceitos podem ser deduzidos diferentes enquadramentos como "Isto é
teatro/arte" ou "Esta é uma situação social ou política". Tais enquadramentos implicam
premissas para um comportamento adequado em uma situação que eles abrangem. Ao
deixar colidir quadros opostos ou apenas diferentes, permitindo, assim, valores
diferentes, parcialmente até completamente opostos e afirma estar lado a lado, de modo
que todos são válidos, bem como se anulam, as performances criam situações liminares.
Eles transferem o espectador entre todas essas regras, normas, ordens, eles os
transferem para uma crise.
Ou seja: a performance transfere o espectador para um estado que aliena-o de
sua vida cotidiana, das normas e regras nela válidas, sem, no entanto, mostrar-lhe
maneiras de encontrar uma reorientação. Tal estado pode ser experimentado tanto como
um prazer quanto como um tormento. A transformação, o sujeito nele sofre, podem ser
os mais diversos. Principalmente, serão transformações temporárias, que duram apenas
um período de tempo limitado na performance. Estas incluem alterações dos estados
fisiológicos, afetivos, energéticos e motores do corpo, mas também nele percebeu
mudanças de status como aquelas do status de espectador para o de ator ou a construção
de uma comunidade entre atores e espectadores ou apenas entre os espectadores. Tais
mudanças ocorrem durante a performance e são perceptíveis; depois no final da
performance, no entanto, eles geralmente não continuam. Só podem ser discutidos e
decididos em relação a casos individuais, se a experiência de desestabilização da
percepção da realidade, de si e dos outros, a perda de normas válidas e regras realmente
leva a uma reorientação do respectivo indivíduo e, nesse sentido, a uma transformação
contínua e mais duradoura. Também pode ser o caso que deixando o espaço da
performance, o espectador descarta sua desestabilização temporária como sem sentido e
infundada e tenta retornar à sua percepção anterior da realidade, eu e os outros – ou que
mesmo após o término do espetáculo permanece por um bom tempo em estado de
desorientação e muito mais tarde, por meio de reflexões, chega a uma reorientação ou
retorna aos seus antigos valores e padrões de comportamento. Seja qual for o caso, ele
passou por uma experiência liminar enquanto participava da performance.
No caso de performances artísticas, chamamos essa experiência liminar de
experiência estética, no caso de rituais de experiência ritualística. A experiência pela
qual performances dos mais diversos tipos participam3, geralmente é uma experiência
liminar. No entanto, somos capazes de discernir entre a experiência liminar enquanto
experiência estética e como experiência ritualística. A experiência ritualística é
caracterizada por dois critérios não válidos para a experiência estética: irreversibilidade
e aceitação social. No entanto, embora a experiência estética não resulte em uma
mudança socialmente aceita de status ou identidade, pode muito bem causar nos
participantes individuais uma mudança de sua percepção da realidade, de si mesmo e
dos outros. Isso vale não apenas para os artistas envolvidos, mas também para os

3
No texto original o termo que aparece é allow, que significa permitir. Mas ao traduzir com o referido
termo e seus sinônimos (de maior incidência como permitir e conceder), a frase fica sem sentido. Por isso
o termo “participar/participam” foi escolhido.
espectadores. Nesse sentido, o acontecimento da performance pode resultar em uma
transformação dos participantes, que é capaz de durar até o final da performance.

Conclusões

O conceito de performance, conforme descrito acima, envolve uma enorme


inovação potencial no que diz respeito à arte, estudos sociais e culturais, que devo, pelo
menos, brevemente indicar.
Nos estudos de arte, o conceito de obra de arte está no centro. O trabalho tem
que ser analisado no que diz respeito aos diferentes dispositivos artísticos aplicados e a
serem interpretados a fim de entendê-lo. Se as artes não produzem mais obras, mas
performances, ou seja, eventos, como acontece não só no teatro, na música, na
performance art, mas desde os anos sessenta do século XX cada vez mais também nas
outras artes, então não se pode aplicar nenhuma estética da obra nem estéticas de
produção e recepção que a ela se referem. O que está em aposta agora é o desafio de
desenvolver novas estéticas, sobretudo teorias da experiência estética, bem como no
local de trabalho, análise de novos métodos de desempenho análise.
As disciplinas histórico-hermenêuticas, ao tratarem de performances, não mais
serão capazes de partir da premissa de que realizam uma representação alegórica
particular ou representam o representam o poder de um indivíduo ou que a performance
de um texto dramático pode ser considerado como sua interpretação. Em vez disso, as
abordagens histórico-hermenêutico devem levar em consideração que os significados
emergem não antes do processo de performance, mas em seu curso e, portanto, não
pode ser idênticos aos significados que grupos de pessoas ou indivíduos queiram se
expressar através da performance.
O conceito de performance acaba sendo igualmente importante para as ciências
sociais. Pois, dada a premissa de que em uma performance todos os participantes, ou
seja, atores e espectadores, estão envolvidos na medida em que co-determinam seu
curso e se deixam ser determinado por ela, falha a tese difundida e popular da
manipulação. Isso diz que comícios políticos e outras performances de massa são
bastante adequados ao propósito de manipulando a população participante de acordo
com as intenções e planos do governante ou das classes dominantes. Isso pressuporia
que os organizadores são capazes de, ao aplicar tais estratégias de encenação, que têm o
poder de subjugar as audiências passivas da maneira como foi exatamente pré-calculada
e, levá-las ao comportamento desejado. Se tivermos em mente a interação entre atores e
espectadores, bem como a corresponsabilidade, que cada participante carrega para o
decorrer da performance, parece dificilmente viável que tal manipulação pudesse
realmente ocorrer.
Um problema especial oferece performances midiatizadas. Gravações de filmes,
televisão e vídeo de performances, por sua vez, não podem ser definidas e
compreendidas como performances. A co-presença corporal de atores e espectadores,
que constitui um desempenho, não é dado na performance midiatizada. Portanto, não
estão incluídos no conceito de performance; porém, em todo caso, no conceito de
performatividade [sim]. Além disso, existe um diferença considerável entre, nesse
sentido, performances midiatizadas e performances que fazem amplo uso dos diferentes
meios de comunicação e todos os tipos de tecnologia de reprodução. Tais performances
são um desafio para nossa percepção por exigir novos modos de percepção sem
questionar o conceito de performance em si.
O potencial inovador, que o conceito de performance implica, ainda precisa ser
descoberto e explorado pela arte e pelos estudos culturais.

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