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MAURO LÚCIO LEITÃO CONDÉ

Um papel para a história


O problema da historicidade
da ciência ·
Um papel para a história
O problema da historicidade
da ciência
-
U FPR
UNIVEJISIDADE ffDEII"'- DO PARANÁ

Reitor
Ricardo Marcelo Fonseca
Vice-Reitora
Graciela Inês Bolzón de Muniz
Pró-Reitor de Extensão e Cultura
Leandro Franklin Gorsdorf
Diretora da Editora UFPR
Suzete de Paula Bornatto
Vice-Diretor da Editora UFPR
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Conselho Editorial que aprovou este livro
Claudio José Barros de Carvalho
Cleverson Ribas Carneiro
Cristina Gonçalves de Mendonça
Diomar Augusto de Quadros
Fernando Cerisara Gil
Jane Mendes Ferreira
Márcia Santos de Menezes
Maria Cristina Borba Braga
Sérgio Luiz Meister Berleze
Mauro Lúcio Leitão Condé

U-rn papel para a história


O problema da historicidade
da ciência
© Mauro Lúcio Leitão Condé

Um papel para a h'istória


O problema da historicidade
da ciência
Coordenação editorial
Rachel Cristina Pavim
Revisão
Suzete de Paula Bomatto
Revisão final
do autor
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica
Rachel Cristina Pavim
Série Pesquisa, n. 332
Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas.
Biblioteca Central. Coordenação de Processos Técnicos.
C745 Condé, Mauro Lúcio Leitão, 1965-
Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência /
Mauro Lúcio Leitão Condé. -Curitiba: Ed. UFPR, 2017.
171 p. - (Série pesquisa, n. 332)

Inclui bibliografia
ISBN 978-85·8480-116-9
1. Ciência - Filosofia. 2. Ciência - História. 3. Linguagem e línguas
- Filosofia. 4. Ciência - Historicidade. 1. Universidade Federal do
Paraná. li. Titulo. Ili. Série.
CDD: 501
Bibliotecária: Paula Maschio - CRB 9/921

ISBN 978-85-8480-116-9
Ref. 903
Direitos desta edição reservados à
Editora UFPR
Rua João Negrão, 280, 2° andar - Centro
Tel.: (41) 3360-7489
80010-200 - Curitiba - Paraná - Brasil
www .editora.ufpr.br
editora@ufpr.br
2017

Associação Brasileira
das Editoras Universitárias
Para Elizabete Lara Condé, em nossas bodas de prata.
Uma jornada que nos deu filosofia, história, ciência e
três lindos filhos.
AGRADECIMENTOS

-Agradeço imensamente ao Prof. Dr. Eduardo Salles de Oliveira Barra


- Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná - pelo
convite feito a mim para ministrar o curso na Escola Paranaense de História
e Filosofia da Ciência que gerou esse livro. Agradeço ainda pelo sempre
vívido estímulo no processo de elaboração desse livro, bem como pela
paciência na espera dos originais e o empenho para publicá-los.

Agradeço à Profa. Dra. Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli - De-


partamento de Filosofia da Universidade Estadual de Santa Cruz - pela
leitura atenta, pelas sugestões e por sua delicadeza.
Agradeço ao Prof. Dr. Carlos Alvarez Maia - Departamento de História da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - por compartilhar, em contínuo
diálogo, o interesse nas questões deste livro.

Agradeço a todos os pesquisadores da Escola Paranaense de História e


Filosofia da Ciência que tão bem me acolheram durante a semana em que
lá ministrei o curso. Em especial, agradeço ao Daniel Laskowski Tozzini
pela constante atenção e sempre grande simpatia.
Agradeço aos alunos da Escola Paranaense de História e Filosofia - edição
de 2013 - pela acolhida e disposição para o diálogo.
SUMÁRIO

PREFÁCIO/ 11
INTRODUÇÃO
A ciência tem história / 19
CAPÍTULO 1
O filósofo e as máquinas: Koyré, Zilsel e o debate
internalismo versus externalismo / 31
1 Considerações iniciais/ 31

2 O interna/ismo de Koyré / 35

3 Zi/sel e as origens sociais da ciência moderna/ 45


4 Interna/ismo, externai ismo e historicidade da ciência/ 53
5 Considerações finais/ 57

CAPÍTULO 2
O elo perdido: Fleck e a emergência da historicidade
da ciência / 59
1 Considerações iniciais / 59

2 A contínua "redescoberta" de Fleck/ 63


3A epistemologia do estilo de pensamento e o seu coletivo/ 68
4 A historicidade da ciência em Fleck / 77

5 Considerações finais/ 84

CAPÍTULO 3
"Um papel para a história": historicidade versus
relativismo em Thomas Kuhn / 85
1 Considerações iniciais/ 85
2 Romantismo versus iluminismo: o debate entre Kuhn e
Popper/ 93
3 Kuhn versus Bloor: as fraquezas do Programa Forte/ 99
4 Evolução e linguagem: esboço de uma teoria da ciência / 109
5 Considerações finais/ 116
CAPÍTUL04
Wittgenstein e a gramática da ciência: linguagem e
práticas sociais no conhecimento científico/ 119
1 Considerações iniciais/ 119
2 A gramática da ciência/ 123
3 Gramática da ciência e interna/ismo / 128
4 Gramática da ciência e externa/ismo/ 141
5 Considerações finais/ 150

CONCLUSÃO/ 153
REFERÊNCIAS/ 159
ÍNDICE REMISSIVO/ 167
SOBRE O AUTOR/171
PREFÁCIO

2ste é um livro sobre a historicidade da ciência. Dizer que a ciência


tem uma história pode, à primeira vista, parecer uma grande trivialidade.
Pelo simples fato de ser uma construção humana, a ciência não nasceu
ontem e, desde sempre, passou por diversas mudanças em seus mais
variados aspectos; o que entendemos hoje por "ciência" resultou de um
longo e reiterado processo envolvendo continuidades e rupturas com
o que lhe precedeu - isso todos sabemos e isso basta para admitirmos
que a ciência tem uma história.
Mas não é nada trivial que a ciência tenha, além de uma história
ordinária, uma determinada historicidade. Poderia muito bem ocorrer
que ter uma história fosse tão somente uma questão de fato sobre a
ciência, de tal modo que os nexos com o seu passado não seriam mais
que meras contingências. Ou, ainda, não seria impensável que o alcance
das circunstâncias históricas a que a ciência está sujeita não ultrapassasse
o nível mais superficial ou visível dessa atividade - normalmente, aquele
a que os leigos têm acesso e que constitui a imagem pública do ofício do
cientista, tais como as práticas laboratoriais, as aplicações tecnológicas
etc.-, de tal modo que a ciéncia, digamos, em si mesma não seria minima-
mente afetada por essas vicissitudes históricas. Nesse caso, deixaria de
ser impositivo admitir que a ciência tem uma história. O enfoque proposto
por Condé neste livro, entretanto, não recomenda absolutamente pensar
assim. Para o nosso autor, a historicidade da ciência não é definitivamente
uma mera contingência. Ao contrário, ela deve ser admitida como uma

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


Oproblema da historicidade da ciência 11
questão de direito sobre a ciência, isto é, uma condição sine qua non para
que a ciência seja o que é, sob qualquer ponto de vista.
Em linhas gerais, o objetivo deste livro é sustentar "a perspec-
tiva de que a história de um conhecimento afeta [isto é, condiciona] seu
resultado final". Admitir que a história é condição para o resultado das
investigações científicas significa afirmar que, se a história fosse outra,
determinados resultados poderiam absolutamente não existir. Conforme
o leitor logo perceberá nos primeiros parágrafos a seguir, nosso autor in-
clina-se a favor da interpretação mais forte dessa afirmação: sem história,
sem ciência. A grande fonte de inspiração para as ideias de Condé sobre
a historicidade da ciência foram as análises de um, até bem pouco tempo
atrás, desconhecido cientista e intelectual polonês chamado Ludwik Fleck
(1896-1961). Para Fleck, nas palavras de Condé, "não existe conhecimento
fora de sua história". Mas a tese de Fleck reivindicada por Condé tem
uma outra condição anterior à historicidade: "não existe conhecimento
fora do social". Em outras palavras, o conhecimento não ocorre como
uma relação de um sujeito solitário diante de um objeto isolado, ambos
desconectados de todos os seus vínculos sociais, tais como identidades
familiares, econômicas, culturais, étnicas, religiosas, estéticas etc. Ao
contrário disso, esses diversos fatores sociais são condições necessárias
para o conhecimento, em geral, e para a ciência, em particular.
A defesa de um nexo estreito entre ciência, história e sociedade
tem sido, no entanto, a fortuna e a miséria dos filósofos, dos sociólogos
e dos historiadores da ciência nas últimas décadas. Neste livro, o leitor
terá a oportunidade de acompanhar com incomum riqueza de detalhes
os principais episódios da história recente desse campo de investiga-
ção sobre a ciência - que Fleck sugestivamente chamou de "ciência da
ciência" e que, mais recentemente, os norte-americanos rebatizaram
de science studies ou, numa tradução bastante literal, "estudos sobre a
ciência". Um dos principais protagonistas desse processo foi o físico e
filósofo norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996). Kuhn, além de ser o
responsável pela redescoberta dos textos de Fleck, foi também o princi-
pal disseminador da "nova imagem da ciência" construída com base na

12 I ....... l.dao ........ CQHO,


sua historicidade. No entanto, Kuhn foi talvez o crítico mais contundente
daqueles filósofos, sociólogos e historiadores que radicalizaram essa
perspectiva a ponto de reduzir a ciência a uma "negociação" entre os seus
agentes ( cientistas, engenheiros, gestores públicos, capitalistas etc.). A
relevância das ideias de Kuhn para o projeto historiográfico e analítico
desenvolvido por Condé está, portanto, em evitar os equívocos tanto da
subestimação da historicidade da ciência quanto da sua superestimação.
Vejamos um exemplo que ilustra como a subestimação da sua
historicidade dá lugar a uma imagem distorcida da ciência. Esse exemplo
foi retirado de uma publicação recente de ampla repercussão. Trata-se
de um segmento da manifestação da presidência da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência {SBPC) dirigida à Câmara Federal, criticando
um projeto de lei que facultava o ensino de doutrinas criacionistas nas
aulas de ciências da escola de educação básica. A linha de contestação
adotada pela SBPC permite, inicialmente, supor que a historicidade da
ciência ocuparia lugar de destaque na sua argumentação, ao sustentar
que" a descoberta e o entendimento do processo da evolução representa
uma das maiores conquistas na história da ciência". Ledo engano. Mais
alguns parágrafos adiante e, então, lê-se:

O criacionismo não é uma teoria científica, não satisfaz a con-


dição essencial de poder ser testada, refutada, confrontada
com a realidade por meio de observações e experiências,
de tal modo que se possa verificar se suas afirmações são
conformes aos fatos. Segundo Popper, 'o critério de cienti-
ficidade de uma teoria reside na possibilidade de invalidá-la,
de refutá-la ou ainda de testá-la'. Os sistemas que não podem
1
ser refutados não são ciência, são dogmas.

Contudo, não pense o leitor que o evolucionismo e suas possíveis virtu-


des serão objeto de discussão neste livro. Nem aqui, nem mais adiante,
o que interessa não é o próprio evolucionismo ou qualquer um de seus

1 Of. SBPC-122/Dir. 28 nov. 2014, São Paulo. 4f. Disponível em: <http://www.sbpcnet.eom.br/
site/arquivos/arquivo_402.pdf>. Acesso em: 12 de jan. 2015.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da cilncia 13
possíveis sistemas rivais. Esse episódio recente do famoso debate foi
aqui evocado exclusivamente para atender ao propósito de ilustrar com
um exemplo a lamentável frequência com que cientistas, mesmo os mais
dedicados e zelosos, emitem opiniões bastante empobrecidas sobre
o seu próprio ofício. É curioso que eles não desconfiem que algumas
das "maiores conquistas na história da ciência" não se sustentariam se
fossem efetivamente submetidas ao rigor do teste da refutabilidade
popperiana; não por negligência de seus proponentes, mas por mera
inviabilidade prática. E, no entanto, esse fato pouco ou nada afetaria
a cientificidade - ou, se se preferir, a racionalidade - de qualquer uma
daquelas "maiores conquistas" da história da ciência.
O livro a seguir, ao oferecer um completo quadro histórico
dos debates filosóficos, historiográficos e sociológicos que propiciaram
alternativas muito mais sensatas para explicar o fato de que certas
conquistas da ciência são maiores e mais impactantes do que outras,
oferece um excelente guia para todos aqueles que estão descontentes
com uma imagem tão empobrecida da ciência quanto aquela acima e
suas subsidiárias. Este livro também mostrará que o equívoco nessas
questões não é, entretanto, uma exclusividade dos que subestimam a
relevância da historicidade da ciência. Ele também ocorre entre aqueles
que a supervalorizam.
Para contrapor-se à supervalorização da historicidade da
ciência - que, na sua maior parte, corresponde às concepções reunidas
sob o rótulo de "relativistas"-, Kuhn fez certa vez um exercício que, em
geral, poucos críticos se preocupam em fazer. Ele se propôs a não apenas
apontar as fragilidades dos argumentos de seus adversários, mas tam-
bém a compreender por que eles pensavam da forma como pensavam
e, sobretudo, por que chegaram a conclusões tão estapafúrdias - "des-
construção enlouquecida", nas suas próprias palavras.
Para identificar a fonte dos riscos envolvidos na superesti-
mação da historicidade da ciência, Kuhn sustentou que os relativistas
pensavam como pensavam porque, logo no início de suas análises, eles
adotavam uma imagem muito empobrecida da ciência. Encarando a
ciência a partir dessa imagem empobrecida, era previsível que não en-
contrassem correspondência alguma entre essa imagem e os resultados
recolhidos por meio de suas pesquisas históricas e sociológicas sobre a
ciência. O passo seguinte seria, então, denunciar o caráter enganoso da
imagem adotada, que, generalizada, anularia qualquer possibilidade de a
ciência ser encarada como um empreendimento regido por parâmetros
próprios de racionalidade. Restava-lhes, ao fim e ao cabo, proclamar
os fatores sociais como os únicos capazes de explicar e sustentar as
práticas científicas.
Com base nessa reconstrução da estratégia de argumenta-
ção empregada por certos filósofos, historiadores e sociólogos ditos
"relativistas", Kuhn quis mostrar que, para fazer frente a esse modo de
pensar a ciência, não basta refutar os seus argumentos; é preciso tam-
bém articular um novo ponto de partida sobre a natureza e a dinâmica
das práticas científicas que faça jus tanto a sua historicidade quanto a
sua racio"nalidade. Creio que as reflexões de Mauro Condé expostas a
seguir deverão proporcionar aos seus leitores algo de relevância similar.
De modo direto, Condé combate o relativismo com a tese
que recolheu nos textos de Fleck: a historicidade da ciência. Para esse
autor, não se trata de uma simples tese metodológica. Trata-se de uma
genuína tese epistemológica, o que significa dizer que se trata de algo
profundamente enraizado no próprio conceito de conhecimento. Adotar
esse ou aquele método pode ser uma mera questão de oportunidade
ou de comodidade, e vários métodos distintos podem levar ao mesmo
resultado. Mas isso não ocorre com o conceito de conhecimento. Se
considerarmos o conhecimento como sendo essencialmente uma prática
social, teremos que analisar a ciência a partir das relações sociais em que
ela está imersa. Mas se, ao contrário, considerarmos que o conhecimento
é uma relação privada entre um indivíduo e um objeto qualquer, devemos,
com todos os prejuízos que isto envolveria, ser capazes de imaginar uma
concepção de conhecimento ajustada a autênticos robinsons crusoés
vivendo solitariamente em seus insulamentos cognitivos.
Ao encarar a tese da historicidade da ciência como uma tese
epistemológica, Condé acredita que ela possa desempenhar a função de

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 15
impor resistência ao relativismo histórico e sociológico igualmente com-
batido por Kuhn. Nisso talvez esteja o aspecto mais original e perspicaz
das análises que o leitor encontrará adiante. Para articular sua resposta ao
desafio lançado por Kuhn acerca da necessidade de uma "nova imagem
da ciência", Condé inspira-se nas últimas publicações do célebre filósofo
austríaco LudwigWittgenstein (1889-1951), nas quais se destaca a defesa
de que, para ocupar uma posição central na estruturação das relações
e produções humanas, a linguagem deveria ser investigada não de um
ponto de vista lógico, mas do ponto de vista da linguagem comum, do
seu uso e dos significados que incorpora. Wittgenstein recomendava,
entre outras coisas, que se adotasse a linguagem e sua gramática (toma-
da aqui num sentido mais amplo do que o de simples registro da norma
culta de uma determinada língua) como ponto de partida e de chegada
de toda e qualquer análise filosófica. Em sintonia com essa perspectiva,
Condé confia que uma autêntica "nova imagem da ciência" deve emergir
justamente de uma gramática da ciência, destinada a permitir pensar que
a ciência "constitui suas próprias regras de funcionamento sendo, assim,
autônoma, ainda que não independente da sociedade que a criou".
Vê-se, assim, que a originalidade do trajeto investigativo
percorrido por Condé reside, em particular, no modo como nos propõe
radicalizar a crítica ao relativismo. A esse propósito, Condé considera que
mesmo as críticas de Kuhn ao relativismo não alcançaram a radicalidade
almejada porque o filósofo norte-americano manteve-se fiel à abordagem
kantiana, o que significa não abandonar o tratamento transcendental
em favor do tratamento gramatical recomendado por Wittgenstein. A
vantagem evidente desse modo de proceder seria recuperar a possibili-
dade de enfrentar o adversário no seu próprio campo, afinal, conforme
Condé não deixa de assinalar e contestar, certas versões do relativismo
sociológico reivindicam as ideias de Wittgenstein como uma das suas
principais fontes de inspiração.
Por tudo isso, a leitura do livro a seguir reúne todos os elemen-
tos para multiplicar as perspectivas e dividir as opiniões sobre os recentes
estudos sobre a ciência. Ao provocar olhares não lineares divergentes

16 \ ....,.., Ulao WTÃO CONo!


das análises construídas a partir de um único ponto de vista, este livro
favorecerá o reconhecimento de que tanto relativistas quanto seus
críticos tradicionais arriscam naufragar a indispensável historicidade da
ciência na mais completa irrelevância - ainda que o façam por razões
diametralmente opostas; num caso, por superestimá-la, no outro, por
subestimá-la. O leitor terá a oportunidade de reconhecer por que esse
debate não se resolve como um simples "cara ou coroa", isto é, como
se nossas alternativas se resumissem a apenas dois lados, simétricos e,
de certa forma, complementares. Mas, para isso, será importante que se
disponha a honestamente desconfiar que a ciência em nada se assemelha
a qualquer uma das suas muitas imagens de amplo apelo midiático e que,
portanto, é sempre urgente renovar o exercício crítico de confrontar suas
convicções e suas dúvidas com sólidas alternativas. Um leitor ávido a se
lançar nessa aventura crítica encontrará nestas reflexões de Condé um
contraponto de especial interesse e utilidade.

Eduardo Salles de O. Barra


UFPR

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


o problema da historicidade da ciência 17
INTRODUÇÃO

A CIÊNCIA TEM HISTÓRIA

Qualquer teoria do conhecimento sem estudos históricos


ou comparados permaneceria um jogo de palavras vazio,
2
uma epistemologia imaginária.
Ludwik Fleck ( 1935)

Afilosofia da ciência sem a história da ciência é vazia; a


3
história da ciência sem a filosofia da ciência é cega.
lmre Lakatos (1970)

2ste livro, que surgiu a partir de um curso ministrado na Escola Pa·


ranaense de História e Filosofia da Ciência, em setembro de 2013, é uma
análise de episódios importantes da historiografia da ciência produzida
ao longo do século XX. Nesse sentido, não é propriamente um livro de
história da ciência, mas de como podemos pensar filosoficamente a
escrita da história da ciência. Portanto, a historiografia da ciência, como
aqui entendida, se situa entre a história da ciência e a filosofia da ciência,
uma vez que ela nunca é uma simples fotografia das diferentes formas
de como a ciência foi escrita pelos historiadores, mas pressupõe sempre
uma concepção epistemológica por trás de seus modelos, objetivos,
limites, possibilidades etc.

2 "Bleibt jede Erkenntnistheorie ohne geschichtliche und vergleichende Untersuchungen ein


leeres Wortspiel, eine Epistemologia imaginabilis." Quando a tradução for do autor deste livro,
o trecho no idioma original constará em nota de rodapé (N. A.).
3 "Philosophy of science without history of sclence is empty; hlstory of sclence without philo-
sophy of science is blind."

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 19
Com efeito, este livro se desenvolve na encruzilhada entre
ciência, história da ciência, filosofia da ciência, mas também com ra-
mificações pela sociologia da ciência. Portanto, ao envolver diferentes
saberes, a historiografia da ciência é um saber híbrido. Em certo sentido,
o grande fascínio que essa encruzilhada oferece é, ao mesmo tempo, a
sua grande dificuldade. Todo pesquisador dessa área, em alguma medida,
é incompleto, por mais que sua formação seja multidisciplinar. Assim,
nessa área de conhecimento, somos sempre estrangeiros. Quem vem
de um percurso na filosofia tem que buscar os conhecimentos de outras
áreas, da mesma maneira os oriundos das demais áreas estão sempre
buscando alguma complementação. Talvez essa incompletude seja exa-
tamente o que alimenta esse fascínio. Acredito que o melhor a fazer é
transformar a sensação de desconforto em estímulo para compreender
aquilo que tanto nos interessa, que é a ciência em seus aspectos científi-
cos, históricos, sociológicos, filosóficos etc. E, certamente, na medida em
que a ciência é uma atividade que tem uma importância central na nossa
cultura, impactando-nos de diferentes e variados modos, toma-se cada
vez mais necessário analisá-la a partir de múltiplos aspectos.
Não apenas as ciências e seus impactos cresceram exponen-
cialmente ao longo do século XX. O mesmo ocorreu com suas muitas
possibilidades de análises, que, por consequência, produziram uma
historiografia muito ampla e variada, escrita por filósofos, historiadores,
sociólogos, antropólogos, jornalistas, além dos próprios cientistas. Assim,
mais do que fazer ciência, passamos a ter uma visão "transversal" dela,
pela qual analisamos tanto as condições epistemológicas intrínsecas à
produção do conhecimento científico quanto os seus impactos sociais,
políticos etc. Com isso, passamos a ter uma ideia muito mais diversificada
da atividade científica.
O processo do crescimento da ciência em nossa sociedade e
suas múltiplas análises produziu um novo fenômeno: a ideia de que a
ciência tem história. No âmbito desta ideia, construímos também a con-
cepção epistemológica de que a história da ciência tem fortes implicações
no próprio processo de desenvolvimento do conhecimento científico.

20 1 MAURO Ulao LBTÃO CO•••


Em outras palavras, construímos ao longo do século XX a ideia de que a
história de um saber altera os resultados finais desse saber. Mais do que
ter história, a ciência tem uma historicidade. Aciência necessariamente se
constitui em um processo histórico não apenas no sentido cronológico,
isto é, que se dá no tempo, mas também no sentido de que a própria his-
tória de um conhecimento torna-se elemento constitutivo desse conhe-
cimento e, assim, interfere no seu resultado final. Não há conhecimento
sem história e sua história interfere nos seus resultados: o que chamo
aqui de historicidade da ciência. Enfim, em nossas atividades científicas,
não podemos fugir de nossa própria história, da mesma maneira como
não podemos saltar nossa própria sombra. Estamos necessariamente
inseridos em nosso quadro histórico, cultural, sociológico e político, e
todo nosso conhecimento se processa dentro desse quadro.
O fenômeno da historicidade do conhecimento científico é
fruto, assim, não apenas dos desenvolvimentos e impactos da ciência,
mas também de uma compreensão mais detalhada desse processo
realizada pelos diferentes profissionais que tomaram a ciência como
objeto de estudo. Pelo início do século XX, com a exceção dos cientistas,
quase que apenas os filósofos tinham interesse pela ciência. Mas hoje o
quadro é bem diferente. O interesse de diversos profissionais na ativida-
de científica como objeto de análise, talvez, faça que o foco da análise
"transversal" sobre a ciência se concentre muito mais na sua história
do que propriamente na sua filosofia. Deste modo, talvez a história da
ciência tenha passado a ser central na articulação das muitas disciplinas
que colaboram para uma reflexão transversal sobre o processo de pro-
dução do conhecimento científico. Não apenas o volume de trabalhos
em história da ciência cresceu extraordinariamente - e conexas a eles as
abordagens sociológicas e antropológicas, além dos chamados science
studies-, mas também cresceu consideravelmente, em diferentes lugares
do mundo, o número de instituições voltadas para a história da ciência.
De alguma forma, a partir dessa ampla consciência da atividade científica
como uma atividade histórica, a própria epistemologia tornou-se uma
"epistemologia histórica", obrigando o pensamento contemporâneo a

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da hlstorlddade da ciência 21
criticar severamente as "epistemologias fundacionistas" ( empiristas ou
racionalistas).
Ao longo do século XX, o próprio conceito de "epistemologia -
histórica" foi construído nessas reflexões sobre a relação entre a história
da ciência e a filosofia da ciência. Diferentes foram os autores a postular
de modos distintos a ideia de uma "epistemologia histórica". Alguns
trabalharam essa ideia sem propriamente usar a expressão, outros
usaram o termo sem que se aprofundasse a ideia. E mesmo os autores
que se apropriaram do termo "epistemologia histórica" pensaram a re-
lação entre história e filosofia de maneira diversa, às vezes partindo da
filosofia para a história, isto é, confirmando a universalidade das ideias
na contingência da história, às vezes, no sentido contrário, partindo da
concretude da história para construir a própria possibilidade universal do
conhecimento. Enfim, o conceito de "epistemologia histórica" carrega a
problemática da historicidade da ciência 4 ecoando a velha dicotomia aris-
totélica entre a universalidade da episteme e a contingência da história. 5
O propósito deste livro é abordar a questão da historicidade
da ciência. Procuro aqui compreender quando e como a ideia de histo-
ricidade da ciência se estabeleceu, além de que tipo de compromisso a

4 A compreensão do fenômeno da historicidade humana é algo muito mais antigo e foi tratado
e matizado, pelo menos, desde a modernidade por diferentes autores (Vico, Herder, Hegel,
Marx etc.) preocupados com uma filosofia da história. Contudo, esse não é o ponto em tela.
Trata-se aqui tão-somente de compreender por historicidade da ciência a influência da dimen-
são histórica no processo do conhecimento dos fenômenos naturais (ciência). Portanto, a
questão da história ou historicidade como algo Intrinsecamente associado ao conhecimento
da natureza compõe o cerne da epistemologia histórica, isto é, a"( ... ) epistemologia histórica
envolve a afirmação de que o sistema de conhecimento científico não é apenas determinado
pelas observações, mas está também sujeito a requisitos epistemológicos que podem mudar no
processo histórico do fazer a pesquisa científica. Como resultado, o sistema de conhecimento
depende do caminho em que sua forma é contingenciada a partir das escolhas epistemológicas
feitas em determinados pontos históricos" (Carrier, 2012, p. 239) No origlnal:."Historical epis-
temology involves the claim that thesystem of sclentific knowledge is not determined by the
observations but is also subject to epistemic requirements that may change in the historical
process of doing research. As a result, the system of knowledge is path-dependent in that its
shape is contingent on epistemlc choices made at certain historlcal points".
5 Para a abordagem da questão da "epistemologia histórica", ver Rheinberger (2010 ), Carrier
(2012); para as abordagens correlatas da "ontologia histórica", ver Hacking (2002); e para a
"epistemologia social", ver Fuller (2002 [1988]).

MAURO lÚCIO LEITÃO COND!


história da ciência passou a ter com essa ideia, uma vez que, em nossa
época, uma história da ciência entendida prioritariamente como descri-
ção ou mera represent2ção é algo anacrônico, banido do horizonte da
ciência da história.
Entretanto, se, por um lado, temos a concepção de que toda
a nossa visão é necessariamente condicionada historicamente, por ou-
tro, não podemos ignorar o comportamento da natureza. Isso nos leva
a alguns questionamentos: ainda que presos em nossa historicidade,
seria possível ter uma compreensão da natureza? Em outras palavras,
é possível perceber aquilo que a natureza é, nela mesma, ainda que a
partir de uma perspectiva histórica? Ora, se eu posso perceber apenas
a partir de uma perspectiva histórica, posso saber efetivamente o que
a natureza é? Aparentemente, estamos diante de um paradoxo: quanto
mais desenvolvemos nossas ferramentas sociais, institucionais e cogni-
tivas para fazer ciência, mais sabemos o que é a natureza, isto é, quanto
mais "artificiais" somos, mais conhecemos o "natural". De modo oposto,
quanto mais somos seres naturais, menos conhecemos o natural. En-
fim, se acreditamos ser possível compreender o natural sendo isentos
desses aspectos sociais, caímos na ilusão positivista. Parece, assim, que
precisamos encontrar um equilíbrio entre os polos sociedade e natureza
( cultural e natural).
Esta é a questão central subjacente a este livro. Ele é um es-
forço para compreender como historiadores, filósofos e sociólogos da
ciência se posicionaram diante dela. Partimos de um positivismo extremo,
no início do século XX, quando se pensou que uma boa epistemologia
era a que recomendava descrever objetivamente os fatos da natureza
de forma neutra e, ao final do mesmo século, chegamos a um relativis-
mo extremo no qual a natureza teria uma relevância quase secundária
diante do papel central das "negociações" na ciência. Acredito que não
deveríamos ficar em nenhum dos lados desses dois extremos. Assim,
para subsidiar essa reflexão, este livro procura analisar como esse pên-
dulo oscilou entre esses dois lados opostos. No fim, pretendo concluir
que as posições extremas não parecem ser as melhores e busco uma

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 23
conciliação entre esses polos. Desta forma, tendo em mente as questões
acima, procuro compreender em que medida algumas das abordagens
historiográficas mais influentes - seguidas por centenas de historiadores
da ciência - trouxeram novos elementos para pensarmos filosoficamente
a atividade científica, em especial, o problema da historicidade da ciência.
Certamente, a questão da historicidade da ciência traz uma série de ques-
tões conexas ou derivadas como: a questão da objetividade, da verdade,
dos fundamentos da ciência, do relativismo científico etc. Entretanto, tais
questões serão vistas aqui apenas na medida em que dialogam com a
problemática da historicidade da ciência trazida pela história da ciência.
Em certo sentido, o eixo condutor deste livro é a obra de
Thomas Kuhn. O autor de um dos maiores best-sellers acadêmicos de
todos os tempos, A estrutura das revoluções científicas, abre o seu livro
exatamente trazendo a dimensão da história para o debate. Kuhn pos-
tula "um papel para a história" do conhecimento científico (Kuhn, 1998
[1962], p. 19-28)- eis aí a motivação para o título desta obra - a partir do
qual a disciplina história da ciência se modificaria indelevelmente. Assim
Kuhn abre sua magna obra: "Se a História fosse vista como um reposi-
tório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir
uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos
domina" (Kuhn, 1998 [1962], p.19). Kuhn não foi o primeiro a perceber
a importância da história na construção do conhecimento científico, mas
a sua obra e o seu contexto histórico ressonaram essa ideia com vigor
e alcance extraordinários. Assim, tomando Kuhn como referência, este
livro analisa seus antecessores, a obra kuhniana e seus sucessores, tendo
sempre a questão da historicidade da ciência como a questão central.
Para realizar esse percurso, este livro é composto de quatro capítulos.
No primeiro capítulo, intitulado "O filósofo e as máquinas:
Koyré, Zilsel e o debate intemalismo versus extemalismo", abordo aspec-
tos da controvérsia conhecida como internalismo versus externai ismo na
historiografia da ciência. Entre o fim da segunda guerra mundial e o fim

241 MAURO Lúao LSTÃO COND!


6
da guerra fria, diferentes autores valorizaram os aspectos sociais e tec-
nológicos na form2ção da ciência moderna. Tais aspectos sociais seriam
determinantes na estruturação da ciência? Ou o conhecimento científico,
ao procurar compreender o funcionamento da natureza, constitui-se de
forma independente desses fatores sociais? Nesse debate, o grupo que
salientava a importância dos aspectos sociais, isto é, afirmava a posição
que ficou conhecida como externalismo, era muito heterogêneo (Zilsel,
Hessen, Grossmann, Merton etc.). A partir de variadas perspectivas, al-
guns autores defenderam essa tese de forma mais moderada enquanto
outros a defendera:11 de modo mais contundente. No lado oposto, Ale-
xandre Koyré tornou-se o grande ícone do internalismo ao postular em
sua concepção de história da ciência que a ciência não é conduzida por
contextos sociais ou aspectos tecnológicos, mas seria essencialmente
teoria ( theoria ). Para ele, ideias científicas não são influenciadas por
práticas sociais e desenvolvimentos tecnológicos, mas por uma atitude
metafísica. Ao contrário do que pretendeu a perspectiva extemalista,
para Koyré, seria exatamente a teoria que teria a função de guiar o pro-
cesso tecnológico e 1 por consequência, suas implicações sociais.
No auge do debate, a querela internalismo versus extemalismo
não teve propriamente uma "solução" epistemológica. Embora a ques-
tão epistemológica estivesse aí subjacente, em larga medida, o objetivo
não foi solucioná-la. Com efeito, acredito que devemos entender essa
querela muito mais como o estabelecimento de posições metodológicas
que definiram campos de atuação de sociólogos e historiadores do que
propriamente como um debate epistemológico. Foram exatamente os
historiadores e os sociólogos que, de diferentes modos, estabeleceram as

6 Shapin (1992, p. 333) sugere essa demarcação e não devemos entendê-la de modo muito
rígido. Essas datas não seriam tão precisas, sobretudo, se levarmos em conta o fato de que
importantes trabalhos de Koyré e Zilsel, autores que estarão no epicentro do debate, já ti-
nham sido publicados no final dos anos 1930 e mesmo no período da segunda grande guerra.
Quanto ao fim do debate, a imprecisão é maior. Talvez ele tenha mais se transformado do
que propriamente terminado. O próprio Shapin reconhece que ele ainda apresenta pontos
não resolvidos (Shapin, 1992, p. 334).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 25
metodologias de análise social da ciência definindo suas áreas de atuação
e, em certa medida, ignoraram a questão epistemológica aí subjacente.
Para compreender as posições características dos dois lados
da querela entre internalismo e externalismo, analiso os dois modelos
mais representativos de cada lado: Koyré, como representante do inter-
nalismo, e Zilsel, como representante do externai ismo. Veremos que, por
mais que a chamada "tese de Zilsel", ao ressaltar o valor de artesãos e
artesãos-engenheiros na formação da ciência moderna, tenha mostrado
a importância das técnicas e dos aspectos sociais, essa tese não con-
seguiu responder satisfatoriamente ao internalismo de Koyré quando
ele, no bojo de suas críticas às abordagens sociológicas, argumentou
que, se o uso e a ampla disseminação de técnicas fosse o pressuposto
central da emergência da ciência moderna, ela teria sido inventada pelos
engenheiros romanos, cerca de mil anos antes do seu real surgimento.
Com efeito, após caracterizaras duas posições, termino concluindo que,
ainda que não pareça ter sido a sua intenção principal, esse debate não
conseguiu equacionar a questão epistemológica quanto à compreensão
do real papel dos aspectos sociais na formação da ciência moderna.
Deste modo, a querela internalismo versus externalismo não foi capaz
de instaurar a ideia de historicidade da ciência. No entanto, ainda assim
essa controvérsia foi importante para alcançarmos um entendimento
mais amplo dos muitos fatores envolvidos no funcionamento da ciência.
A "solução" ou readequação epistemológica desta controvérsia ficou
para a geração seguinte, que, de certa forma, encontrará em Thomas
Kuhn o seu mais amplo alcance. Contudo, ainda nos anos 1930, a obra do
polonês Ludwik Fleck - àquela altura desconhecida - já tinha avançado
muito para uma clara compreensão da ideia de historicidade da ciência.
Com efeito, no capítulo dois, intitulado "O elo perdido: Fleck e
a emergência da historicidade da ciência", procurarei mostrar que a ideia
de historicidade da ciência nasceu com Fleck. Ainda que tivesse muito a
contribuir no debate internalismo versus externalismo, lamentavelmente,
por diferentes razões, Fleck teve suas ideias praticamente ignoradas dos
anos 1930 até o final dos anos 1970. Sua principal obra, Gênese e desen-

261 MAURO lllao LEITÃO CONDI


volvimento de um fato científico, escrita em 1935, apenas entrará na cena
da historiografia da ciência anos mais tarde pelas mãos de Kuhn, ao ser
citada em A estrutura das revoluções científicas. Nos anos 1960, o cenário
para a recepção das ideias de Fleck - e a própria elaboração da obra de
Kuhn - foi mais propício à aceitação da ideia de historicidade da ciência.
Com efeito, mesmo que reconhecido tardiamente, Fleck foi o primeiro
autor a postular, de modo efetivo, uma epistemologia que assume a his-
tória da ciência como um dos importantes elementos na determinação
do desenvolvimento científico, isto é, Fleck afirmou a historicidade da
ciência. Mais do que entender que há conexões entre a ciência e a socie-
dade que se estabelecem no tempo, isto é, mais que analisar o caráter
histórico da produção do conhecimento científico, Fleck defendeu que
o conhecimento é acima de tudo um ato social. Embora extremamente
original, a obra de Fleck foi o "elo perdido" que não pôde dialogar com
a historiografia produzida entre os anos 1930 e 1960. Certamente, Fleck
teria tido um grance impacto nesse contexto. Mas, ainda assim, quando
redescoberto, foi muito importante - especialmente para Kuhn - para a
consolidação da ideia de historicidade da ciência. O que nos remete ao
próximo capítulo.
No capítulo três, "'Um papel para a história': historicidade da
ciência versus relativismo em Kuhn", tendo como eixo a obra do historia-
dor e filósofo da ciência norte-americano, procuro analisar como, a partir
dos anos 1960, a ideia de historicidade da ciência se impõe. Nesse novo
contexto, o relativismo surge como a principal ameaça a essa perspec-
tiva. Historicidade seria necessariamente sinônimo de relativismo? Com
o propósito de compreender como Kuhn consolida a "nova imagem da
ciência" sustentada na afirmação da sua historicidade, analiso a relação
entre historicidade e relativismo em dois momentos das suas reflexões.
Inicialmente, a partir da contraposição entre a história da ciência de Kuhn
e a filosofia da ciência de Popper, no célebre debate entre as perspec-
tivas desses dois pensadores, ocorrido em 1965. Na sequência, analiso
as críticas feitas por Kuhn à sociologia do conhecimento científico do
Programa Forte de David Bloor, já nos anos noventa. Por fim, concluo

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 27
que, embora a obra de Kuhn tenha se tornado um marco na atribuição
de "um papel para a história", isto é, na apresentação da ideia de histori-
cidade da ciência - em especial, devido ao grande alcance de A estrutura
das revoluções científicas -_, ele não foi capaz de resolver plenamente as
novas dificuldades impostas à ideia de historicidade da ciência, particu-
larmente frente ao relativismo. Isso se verifica tanto quando defende
a historicidade contra a crítica de relativismo quanto quando critica as
posições relativistas que se apropriaram de sua obra e da ideia de histo-
ricidade. Ao fim e ao cabo, parece que todas as tentativas de equacionar
as dificuldades enfrentadas, fizeram Kuhn retornar a Wittgenstein e Fleck,
suas influências iniciais. Infelizmente, Kuhn termina por não concluir uma
nova teoria da ciência que estaria desenvolvendo quando de sua morte.
No quarto capítulo, intitulado "Wittgenstein e a gramática
da ciência: linguagem e práticas sociais no conhecimento científico",
abordo a ideia de que afirmar a historicidade da ciência com todas as
suas implicações nos conduz a compreender a ciência como o resultado
da interação entre sociedade, linguagem e natureza. Procurando solu-
cionar os impasses trazidos pelo conceito kuhniano de léxico, avalio a
filosofia da linguagem de Wittgenstein. Trabalho a ideia de "gramática
da ciência", inspirada na pragmática da linguagem de Wittgenstein, a
partir da qual é possível compreender o conhecimento científico como
um tipo de tessitura entre o social e sua linguagem, por um lado, e a
natureza por outro. O processo dessa tessitura constitui a historicidade
do conhecimento. Deste modo, essa perspectiva ergue-se criticamente
não só contra uma posição positivista que entendeu o conhecimento
científico como uma "descrição" ou "representação" da natureza, mas
também contra os radicalismos socioconstrutivistas que subestimaram
a participação da natureza na produção de conhecimento científico.
Ciência não é apenas uma "descoberta", mas também uma "invenção",
e invenção significando apenas que a ciência articula "linguisticamente"
a relação entre a sociedade e a natureza. Com efeito, todo conhecimen-
to da natureza é tecido a partir de sua historicidade social e linguística.
Com a concepção de gramática da ciência retomo a querela internalismo

281 MAURO IJlao LETÃO COND!


versus externalismo para responder algumas questões colocadas pelo
internalismo de Koyré e pelo externalismo do Programa Forte de Bloor.
Procuro mostrar que, a P.artir da gramática da ciência, podemos ter
uma compreensão mais adequada das práticas sociais na construção do
conhecimento científico, isto é, a partir de uma compreensão da função
efetiva da linguagem nas práticas sociais da ciência podemos alcançar
um entendimento epistemológico da ideia de historicidade da ciência,
indo muito além de uma divisão metodológica entre internalismo e exter-
nalismo, abrindo, assim, um frutífero caminho de novas possibilidades.
Por fim, quero salientar que os autores aqui tratados, que trou-
xeram grandes contribuições para o entendimento da historicidade da
ciência, foram escolhidos por dois critérios: (1) a existência de uma rede
de ideias e citações recíprocas ou unilaterais entre eles;7 (2) mas também
pelo meu próprio percurso nessa rede, tendo sido o pensamento desses
autores, desde muitos anos, objeto de meus interesses e de minhas
pesquisas. Neste livro, eles são reavaliados em um esforço de sistema-
tização da questão da historicidade da ciência. Lecionando por muitos
anos para historiadores da ciência no Programa de Pós-Graduação em
História da UFMG, diante dos dilemas enfrentados pelos pesquisadores
em história da ciência, pude perceber que, bem mais que uma reflexão
epistemológica abstrata para o filósofo, a questão da historicidade
da ciência impacta diretamente as escolhas teórico-metodológicas do
historiador, influenciando o resultado de suas pesquisas - processo
esse muitas vezes angustiante, mas instigante e desafiador tanto para
o historiador quanto para o filósofo.
Por uma imposição do tempo e espaço reduzidos de que
disponho, procurei tratar esses autores circunscrevendo-os o máximo
possível à questão da historicidade. A obra de cada um deles possui

7 Certamente, outras redes são possíveis para tratar questões semelhantes às deste livro, seja
com esses e outros autores ou mesmo com autores de outras tradições, como, por exemplo,
a tradição francesa (Canguilhem, Bachelard, Foucault etc.). Em certo aspecto, Koyré seria um
elo entre essas duas redes, embora eu tenha aqui tomado sua obra muito mais na perspectiva
de sua recepção norte-americana que o compreendeu pela ótica do debate intemalismo versus
extemalismo.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


o problema da historicidade da ciência 29
grande complexidade, remetendo a muitos outros problemas. Em outros
trabalhos analisei os principais pensadores, aqui tratados, isoladamente
ou um em relação a outro.ª Ao retrabalhar aqui esses autores procurando
estabelecer um elo entre eles a partir da questão da historicidade, foi
inevitável algum tipo de sobreposição ou mesmo eventuais repetições
de ideias já parcialmente formuladas nos textos anteriores.
Trabalhei diretamente as obras dos autores em foco. Em quase
sua totalidade, as citações feitas neste livro são dos autores que intitulam
os capítulos. Assim, evitei as referências bibliográficas secundárias sobre
esses autores. Aqui elas aparecem minimamente e, na maioria das vezes,
em pés de página. Ainda que essa escolha, por um lado, evite importantes
discussões acerca das diferentes interpretações desses autores, por ou-
tro, deixa o leitor mais prói<imo de seus textos e ideias. Da mesma forma
que no curso que deu origem a esse livro - destinado a um público de
diferentes formações científicas - procurei ser o mais didático possível,
aqui busquei manter a mesma orientação. Portanto, este é um livro de
introdução à temática e caso ele consiga, pelo menos, estimular a leitura
das obras dos autores aqui tratados, terá alcançado êxito.

8 Para um eventual desdobramento dessa e de outras questões tratadas por essa rede de
autores, cito as publicações na adem em que os autores abordados neste livro aparecem:
Koyré (Condé, 2015); Fleck (Condé, 2010, 2012); Kuhn e Fleck (Condé, 2005); Kuhn e o Progra-
ma Forte (Oliveira, Condé, 2002); Popper, Kuhn e Bloor (Condé, 2012); Wittgenstein e Fleck
(Condé, 2012); Wittgenstein (Condé,1998, 2004); Wittgenstein e Kuhn (Condé, 2013).

MAURO LÚCIO LEITÃO (ONDt


CAPÍTULO 1

0 FILÓSOFO E AS MÁQUINAS: KOVRÉ,


ZILSEL E O DEBATE INTERNALISMO VERSUS
EXTERNALISMO

A ciência, esta de nossa ép_oca, como aquela dos gregos,


9
é essencialmente theoria.
Alexandre Koyré

Plebeus artesãos fazem experimentos e inventam, mas


lhes falta treinamento racional e metódico. Por volta
de 1600, com o progresso da tecnologia, o método
experimental é adotado por acadêmicos das classes
superiores treinados racionalmente. Assim, finalmente,
os dois componentes da J'esquisa científica são unidos: a
1
ciência moderna nasce.
EdgarZilsel

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ü objetivo deste capítulo é analisar o debate conhecido como "inter-


nalismo versus externalismo" na história da ciência. Em grande medida,
essas discussões giraram em torno das interpretações sobre o surgimento
da ciência moderna. O que teria proporcionado a emergência da ciência no
início da modernidade? Fatores sociais peculiares a esse contexto teriam

9 "La science, celle de notre époque, comme celle des Grecs, est essentiellement theoria".
10 "Plebeian craftsmen experiment and invent but lack methodical rational training. About
1600, with the progress of technology, the experimental method is adopted by rationally
trained scholars of the educated upper class. Thus, the two components of sclentific search
are united at last: modem science is bom".

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 31
sido os principais responsáveis pela construção da ciência moderna? Ou ela
teria se constituído a partir de razões teóricas e metodológicas intrínsecas
ou "internas" ao seu próprio funcionamento? O internalismo sustentou
a ideia de que a ciência encontra seu caminho independente de fatores
sociais e tecnológicos. De acordo com Koyré, principal representante dessa
perspectiva, a ciência se institui, antes de qualquer coisa, a partir de uma
"atitude metafísica" sendo, assim, essencialmente a teoria com a qual
moldamos a experiência e o nosso entendimento da natureza. Soma-se
ainda a essa perspectiva, um intemalismo de fundo positivista, postulando
a ideia de que esses fatores sociais teriam um papel inexpressivo perante
11
a inexorabilidade das leis naturais. No entendimento oposto da questão,
encontramos o extemalismo representado por Zilsel, segundo o qual fato-
res sociais e tecnológicos produziram um tipo específico de organização
social que possibilitou a junção entre o saber teórico da tradição filosófica
e o saber prático de artesãos e artesãos-engenheiros, instaurando, assim,
a ciência moderna.
Procuro compreender, neste capítulo, em que medida o debate
intemalismo versus externalismo teria contribuído para a instituição da
ideia de historicidade da ciência. Assim, após caracterizar as duas posições
desse debate, termino concluindo que, ainda que não pareça ter sido seu
objetivo central, ele não conseguiu equacionar a questão epistemológica
quanto à compreensão do real papel dos aspectos sociais na formação da
ciência. Com efeito, não foi capaz de instaurar a ideia de historicidade da
ciência. Não obstante, essa controvérsia foi importante, sobretudo, por
algumas razões complementares: (1) ela nos mostrou um entendimento
mais amplo dos muitos fatores envolvidos no funcionamento da ciência;
(2) abriu o caminho epistemológico para o aprofundamento da questão
sobre o papel das práticas sociais na produção do conhecimento científico;
e assim (3) preparou o terreno para a assimilação da ideia trazida por Kuhn

11 Essa observação é importante, sobretudo, porque a forte presença de representantes do


neopositivismo nos Estados Unidos (camap, Reichenbach) também marcou, de certa maneira,
essa divisão entre intemalismo e extemalismo, em especial, a distinção entre "contexto da
descoberta" versus "contexto da justificativa" de Reichenbach. O próprio neopositivista Zilsel,
que viria a se tomar uma figura central nesse debate, veio de Viena para os Estados Unidos.

MAURO Lúao LEITÃO COND~


de que existe "um papel para a história" na construção do conhecimento
científico, afirmando, com isso, a ideia de historicidade da ciência.
Em 1968, já como um dos mais renomados historiadores da ciên-
cia, Kuhn escreve um artigo intitulado "A história da ciência", para o volume
14 da lntemational Encyclopedia of the Social Science (reimpresso em Kuhn,
1977 [1968], p. 105-126). Após delinear as origens da história da ciência como
uma mera ilustração introdutória de muitos tratados técnicos, passando
pelo aprendizado com a história da filosofia, a história geral, a sociologia
alemã e a historiografia marxista, Kuhn prossegue, na maior parte restante
do artigo, tratando daquele que era o problema central na historiografia da
ciência, naquele momento, isto é, a questão conhecida como intemalismo
versus extemalismo na ciência. Por um lado, a "abordagem interna" com a
tradição de "historiadores" cientistas e filósofos que lidavam com a história
dos conceitos e ideias científicas; por outro, a "abordagem externa" com
a tradição de historiadores e sociólogos para os quais os fatores sociais
representavam grande relevância na construção da ciência. Segundo Kuhn,
aproximar as duas tradições talvez fosse o maior desafio da profissão e ha-
veria boas possibilidades de encontrar uma resposta para essa aproximação,
mas, naquele momento, constata Kuhn, "qualquer pesquisa sobre o atual
estado da área, infelizmente, encontrará as duas empresas como virtual-
mente separadas"12 (Kuhn, 1977 [1968], p. 110). Contudo, após caracterizar
as duas abordagens e procurar mostrar que uma tem o que aprender com
a outra, Kuhn conclui que "embora a abordagem interna e a externa da
história da ciência tenham um tipo de autonomia natural, elas são, de fato,
preocupações complementares"13 (Kuhn, 1977 [1968], p. 120 ).
Com efeito, no que se segue, analisarei esse quadro encontrado
por Kuhn no início de sua carreira, isto é, o debate internalismo versus
externalismo. Caracterizarei essa querela a partir de duas figuras proemi-
nentes da historiografia da ciência: Alexandre Koyré, ícone do internalismo,

12 "any survey of the field's present state must unfortunately stlll treat the two as virtually
separated enterprises."
13 "though the Internai and the externai approaches to the history of science have a sort of
natural autonomy, they are, in fact, complementary concerns."

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


o problema do historicidade do ciência 33
e Edgar Zilsel, representante do extemalismo. A escolha desses autores
não é algo arbitrário, já que em 1957, como nos lembra Kuhn (1977 [1968],
p. 115), ela foi proposta por Wiener e Noland através de uma seleção de
artigos - publicados nos 18 primeiros volumes do Journa/ of the History of
ldeas - que caracterizassem os dois modos de se fazer história da ciência.
No entanto, nesse mesmo ano de 1957, quando o jovem historiador da
ciência Kuhn publicou o seu primeiro trabalho de maior fôlego, o livro A
revolução copernicana (Kuhn, 1985 [1957]), não havia propriamente no
cenário da historiografia uma busca de conciliação ~ntre intemalismo e ex-
temalismo, mas, de certa forma, uma busca para destacar suas diferenças.
Como salienta Shapin, a justaposição desses ensaios contrastando Zilsel
e Koyré foi "uma forma que fez essas historiografias divergentes mais
14
visíveis" (Shapin, 1992, p. 341). 15 Diante dessas posições antagônicas,
de 1957 a 1962, Kuhn buscará um caminho da conciliação. Com efeito,
para uma melhor compreensão de como Kuhn institui "um papel para a
história" da ciência, é significativo analisarmos esse cenário pré-kuhniano.
Antes de entrarmos no debate intemalismo versus extemalis-
mo, é importante dizer que Koyré não se atribuía o epíteto de intemalista,
embora tenha chegado a assumir o idealismo de sua perspectiva (Koyré,
1973 [ 1966], p. 399 ). Da mesma forma, Zilsel também não se definia como
um externalista. A denominação desse debate de "internalismo versus
externalismo", e a própria escolha desses autores como sendo os mais
representativos dessas concepcões, foi uma atribuição da historiografia
da ciência posterior ao desenvolvimento de suas obras. Em outras pala-
vras, esses dois autores europeus foram lidos dessa forma, sobretudo,
16
no contexto norte-americano de recepção de suas ideias.

14 "a form that made that divergent historiographies most visible."


15 Os artigos selecionados foram publicados no livro Roots of scientific thought: a cultural pers-
pective {Wiener, Noland, 1957).
16 Nesse sentido o caso de Zilsel é muito surpreendente, precisamente por ele ser um pensador
vindo do Círculo de Viena. Con~udo, aquela que posteriormente seria conhecida como a
"tese de Zilsel" é o resultado de um projeto que Zilsel começou a trabalhar quando de sua
imigração para os Estados Unidos. Se analisarmos a obra de Zilsel produzida em Viena, talvez
o considerássemos um autor muito mais próximo de Koyré, em especial, tendo em vista sua
compreensão do importante papel da matemática no tratamento dos processos empíricos.

MAURO LÚCIO UITÁO CONDl1


2 O INTERNALISMO DE KOYRÉ

Não há dúvida de que, no século XX, o filósofo Alexandre Koyré


(1892-1964)1 7 foi um dos mais respeitados e admirados historiadores da
ciência. Sua influência foi decisiva não apenas na formação de muitos
18
historiadores da ciência, mas também na própria estruturação da disci-
plina história da ciência. Os principais trabalhos de Koyré sobre a história
das ideias científicas centraram-se na história da revolução científica 19
(Koyré, 1961), em especial, na obra de Galileu (Koyré, 1966 [1939]) e
Newton (Koyré, 1965). Contudo, ao se opor às teses de caráter social
sobre o surgimento da ciência moderna que afirmavam o importante
papel das práticas sociais e das "técnicas" enquanto principal impulso e
símbolo de toda uma transformação histórica, social e epistemológica
no coração da ciência moderna, Koyré passou a ser concebido como o
principal ícone do internalismo.
O intemalismo de Koyré é tributário de sua concepção de mate-
mática, mais especificamente de uma defesa filosófica do realismo mate-
mático de cunho platônico e cartesiano, e é precisamente daí que advêm
suas críticas às abordagens sociológicas e às técnicas como elementos
determinantes na formação da ciência moderna, como enfatizado pelas
abordagens extemalistas. No início do século XX, Koyré começou sua car-
reira filosófica com um grande interesse no problema dos fundamentos da
matemática, antinomias e paradoxos (Koyré, 1971 [1912][1921]). Ele tinha
um fascínio pelo realismo matemático. Naquele momento, estava ligado
ao círculo de matemáticos e filósofos em torno da figura de Husserl. Não
sendo possível realizar seu doutoramento em um tema relacionado à ma-

17 Para uma nota biográfica de Koyré, ver Salomon (2010, p.193-204).


18 Kuhn, por exemplo, relata no prefácio de A estrutura das revoluções cientificas que a transição
de sua formação de físico para historiador da ciência foi precedida pelo estudo da obra de
Koyré (Kuhn, 1998 [1962], p. 10). Em The Road since structure, Kuhn fornece um relato de
sua relação com Koyré e diz que os Études Galiléennes mostravam a ele "a maneira de fazer
as coisas" (Kuhn, 2006, p. 345).
19 Em The scienti'fic revolution, Shapin salienta o papel de Koyré na formatação do conceito
de revolução científica. "A frase 'revolução científica' não era comumente usada antes de
Alexandre Koyré, que a tomou amplamente corrente em 1939" (Shapin, 1998, p. 2).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


Oproblema da historicidade da ciência 35
temática, sob a orientação do eminente fenomenólogo, Koyré partiu para
Paris (Zambelli, 1999). A impossibilidade de realizar seu doutoramento com
Husserl não afastou os dois filósofos e, muito menos, diminuiu a influên-
cia de Husserl sobre ele. A relação entre os dois se estenderá por muitos
anos, através de visitas ou cartas. Anos mais tarde, muito provavelmente
por essa influência do círculo matemático de Husserl, ao desenvolver
sua história da ciência, Koyré reafirma o realismo matemático como uma
2
chave para a leitura das obras de Galileu º (Koyré, 1966 [1939]) e Newton
(Koyré, 1965), além de estender essa concepção a autores como Maxwell
e Einstein (Koyré, 1971 [1961], p. 267).
Para Koyré, "a ciência, esta de nossa época, como aquela
21
dos gregos, é essencialmente theoria" (Koyré, 1973 [1966], p. 399). A
ciência é a racionalidade que organiza fatos e experiências. A natureza
está escrita em linguagem matemática, como foi afirmado por Galileu, e
o realismo matemático por trás dessa afirmação foi o elemento principal,
ainda segundo Koyré, na construção da ciência moderna. Baseado neste
realismo matemático, o autor dos Estudos de história do pensamento
científico afirmou a perspectiva que iria se tornar conhecida como inter-
nalismo, isto é, a concepção de que a ciência encontra suas justificativas
nessa estrutura teórica, uma espécie de mathesis universalis cartesiana,
e, portanto, se justifica a si mesma de modo independente, longe das
influências de contextos sociais. Consequentemente, Koyré tornou-se
extremamente crítico quanto à real importância dos aspectos técnicos
e sociais ( externalismo) na fundação da ciência moderna, como defen-
dido à época por Zilsel, Hessen, Grossmann etc. (Koyré, 1965, p. 6; 1966
22
[1939 ], p. 12-13 e 1973 [1966 ], p. 167), ainda que o próprio Koyré tenha

20 Supostamente, anos mais tarde, quando Husserl escrevia sua Crise das ciências européias, Koyré
o teria influenciado acerca da presença de Galileu no livro, ver Gutting (1978, p. 45). Contudo,
há quem sustente que isso não seria possível e que, contrariamente, Husserl também teria
influenciado o estudo de Koyré nesse ponto e, na realidade, Cassirer teria sido a principal ins-
piração para Husserl abordar Galileu. Mas, independente de quem tenha exercido a influência,
podemos perceber por esse e outros exemplos a relação teórica entre Koyré e Husserl.
21 "La science, celle de notre époque, comme celle des Grecs, est essentiellement theoria".
22 Nessas diferentes obras, com maior ou menor ênfase, Koyré critica esses e outros autores que
defendem uma abordagem social para a compreensão do surgimento da ciência moderna.

361 MAuAo.__LBTÃOCOND<
trabalhado extensivamente o problema da técnica e da interpretação
23
sociológica (Koyré, 1971 [1961], p. 305-362). Koyré reconhece que, ao
longo de toda a história da ciência, a conciliação entre a theoria, de um
lado, e a praxis, de outro, sempre foi uma tarefa extremamente difícil,
ainda que ele deixasse bem nítido o seu entendimento de que a teoria
exerce uma supremacia sobre a prática. Assim, ao ver a ciência essencial-
mente como uma theoria que se fundamenta no realismo matemático e
em bases metafísicas, ele foi interpretado pela historiografia da ciência
como um internalista.
Com efeito, a concepção de história da ciência formulada por
Koyré guardará uma estreita relação com as suas convicções sobre os
fundamentos da matemática enquanto uma ordem a priori que rege
toda possibilidade do conhecimento. A ciência é, para ele, a mathesis
universalis de Descartes, a matemática de Galileu, mas nunca o empirismo
de Bacon. De acordo com Koyré, o empirismo baconiano fundamenta a
ciência no registrar, classificar e colocar em ordem os fatos, mas "Des-
cartes, por sua vez, tira uma conclusão exatamente oposta, a saber, a
de fazer penetrar a teoria na ação, isto é, da possibilidade da conversão
da inteligência teórica ao real, da possibilidade tanto de uma tecnologia
24
quanto de uma física" {Koyré, 1971 [1961], p. 346). Em outras palavras,
da mesma forma que, para ele, há um realismo matemático que funda-
menta a ciência da matemática, também a história da ciência deveria

23 Na realidade, as críticas feitas a esse grupo de historiadores da ciência de perspectiva social


não ganha o foco das atenções nas principais obras de Koyré. Essas críticas aparecem, sobre-
tudo, em pés de página de seus principais textos. Talvez porque essa seja mais uma questão
epistemológica do que propriamente de história da ciência, assunto central dos textos onde
as críticas aparecem. Entretanto, após 1945, Koyré desenvolve um maior interesse na questão
da técnica. Segundo Zambellf, esse interesse se dá a partir do curso sobre ciência e técnica
no mundo moderno lecionado por ele, em 1946, na instituição The New Schoo/ for Social Re-
search nos EUA(Zambelli, 1998, p. 521). Nesse período é que se originaram os textos em que
Koyré desenvolve a questão da técnica como foco central: "Les philosophes et la machine",
uma resenha crítica da segunda edição do livro Machinisme et phi/osophie, de Pierre Schuhl
(Schuhl, 1947 [1937]) e "Ou monde de l'à peu pres à l'univers de la précision", posteriormente
publicados em Critique, 1948.
24 "Descartes, lui, en tire une concluslon exactement opposée, à savoir celle de la possibilité
de faire pénétrer la théorie dans l'action, c'est-à-dire, de la possibilité de la conversion de
l'intelligence théorique au réel, de la possibilité à la fois d'une technologie et d'une physique".

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 37
ser feita com este pressuposto. Enfim, a concepção epistemológica de
Koyré sustenta que a ciência moderna não se fez pelo mero acúmulo de
experiências, mas pelas ideias e pelo primado da teoria que se orienta
pelo realismo matemático. Assim sintetiza Koyré sua concepção filosó-
fica subjacente à ciência moderna: "a atitude filosófica que, em última
instância, bem se prova não é a do empirismo positivista ou pragmatista,
mas ao contrário, a do realismo matemático. Em resumo, não a de Bacon
25
ou Comte, mas a de Descartes, Galileu e Platão" (Koyré, 1971 [1961], p.
267). Ao longo de toda sua obra em história da ciência, Koyré defenderá
apaixonadamente a perspectiva de que a ciência é, sobretudo, teoria.
Ao introduzir essa nova perspectiva de análise da ciência ba-
seada no primado da teoria sobre a prática, Koyré criou uma alternativa
ao forte positivismo presente na história da ciência, que prevalecia até
então. Em grande medida, esse pano de fundo da nova concepção de his-
tória da ciência, isto é, o realismo matemático, se exprime no platonismo
advogado por Koyré (Koyré, 1973 [1966], p.187-188, 191,193). Embora as
circunstâncias que o levaram para a história da ciência (pensamento reli-
gioso, filosófico etc.) e suas possíveis influências (Platão, Hegel, Husserl
etc.) tenham sido muito variadas, a defesa de um realismo matemático
certamente é um dos elementos-chave na sua concepção de história da
ciência. Mais que isso, esse realismo matemático ou platonismo subjacen-
te à sua obra parece ser exatamente o elo pelo qual dialoga com todas
26
as suas demais influências.

25 "L'attitude philosophlque qul à la longue s'avere bonne n'est pas celle de l'empirisme posi-
tivlste ou pragmatiste, mais, au contraire, celle du réalisme mathématique. En bref, non pas
celle de Bacon ou de Comte, mais celle de Descartes, Galilée et Platon".
26 Em sua resenha de um livro coletânea de textos de Koyré, Metaphysics and measurement
(Koyré, 1968), Kuhn salienta que a afirmação do primado das ideias sobre a prática susten-
tada por Koyré seria bem diferente se ele tivesse analisado outras ciências como a química
ou outras questões científicas como a eletricidade ou o magnetismo (Kuhn, 1970c, p. 69).
Podemos entender com isso que Koyré pôde ser mais "teórico" por ser um "matemático",
mas se fosse um físico ou um químico ou se analisasse problemas dessas disciplinas, sua
epistemologia forçosamente incorporaria aspectos técnicos, experimentais e práticos de
uma forma mais preponderante.

MAURO lÚCIO LEITÃO CONDlt


Koyré c2racteriza o pensamento moderno como uma revolu-
27
ção, um novo "estilo de pensamento" ou uma "mutação" no pensa-
mento (Koyré, 1973 [1966], p. 18). Para ele, a ciência está no epicentro
dessa mudança. A revolução científica do século XVII seria um evento
absolutamente extraordinário. Contudo, ainda assim a ciência seria es-
sencialmente teoria (theoria ), isto é, a capacidade teórica interpretativa
do mundo não estaria baseada em uma coleção de fatos, mas no enten-
dimento das leis universais que são estritamente matemáticas. O uso da
linguagem matemática para compreender a natureza revela-nos o mundo
racional da precisão contra o "mundo do mais ou menos" da experiência
(Koyré, 1971 [1961], p. 341-362). Mesmo o método experimental implica,
sobretudo, o uso da razão sobre a experiência. Caracteriza-se, assim, o
primado da teoria sobre os fatos, práticas e técnicas. Com efeito, mes-
mo a lei de inércia teria se dado a partir do desenvolvimento de ideias e
não do acúmulo de experiências. Os gregos caracterizaram o repouso
como a condição primária do ser. Os modernos, partindo dessa ideia,
complementaram-na colocando o movimento no mesmo nível ontológico
(Koyré, 1973 [1966], p.185). Essa equiparação ontológica entre repouso
e movimento permitiu criar a compreensão da máquina do mundo, isto
é, a mecânica clássica. Assim, para Koyré, isso se deu muito mais por
haver conexões entre as ideias de Platão e Galileu (Koyré, 1973 [1966 ],
p. 167-195) do que pelo fato de Galileu procurar resolver problemas de
balística para fins militares. 28 Enfim, questões tecnológicas ou sociais

27 Veremos, no próximo capítulo, que as expressões "estllo de pensamento" e "mutação"


também ser-ao centrais para Ludwik Fleck, ainda que ele construa conceitos diferentes a
partir delas.
28 As interpretações so:,re a obra de Galileu e Descartes feitas por Koyré, por um lado, e pelos
historiadores de perspectiva social, por outro, são diferentes e mutuamente controversas.
Koyré destaca a dimensão matemática presente tanto em Descartes quanto em Galileu, que
mesmo sendo um cientista experimental, vê o livro da natureza escrito em caracteres mate-
máticos e daí, segundo Koyré, justifica seu platonismo e estaria longe de ser um engenheiro
ou um homem prático do arsenal. Contrariamente à essa perspectiva, para Grossmann, por
exemplo, não apenas existe uma importante dimensão prática na matemática de Descartes
(ver Grossmann, 2009b, p.157-229), mas a origem da ciência moderna não estaria exatamente
em Galileu, mas em autores anteriores como Leonardo Da Vinci, pois, ainda que o "artista-
-engenheiro" não tenha formulado e escrito os princípios da mecânica clássica, sua obra foi
feita sobre a pressuposição da ciência da física, (ver Grossmann, 2009a, p. 103-156 ).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 39
não teriam sido determinantes na formação da ciência moderna ou no
pensamento de Galileu.
No extremo oposto de Koyré, autores como Zilsel, Hessen, 29
Grossmann e mesmo Merton 30 produziram diferentes interpretações da
ciência moderna formuladas prioritariamente a partir da afirmação de
fatores históricos, sociais e tecnológicos. Portanto, diferentemente de
Koyré, esses autores procuraram compreender a construção do conhe-
cimento científico como a relação entre a sociedade e a natureza em um
tempo histórico específico. Com maior ou menor ênfase, eles considera-
vam as interações sociais e históricas - nas quais se configuram os diferen-
tes usos das técnicas e das práticas científicas - como algo determinante
na estruturação da ciência moderna. Ao criticar essas abordagens sociais
da ciência, Koyré não estabelece uma crítica individualizada a cada um
desses historiadores de perspectiva social, mas, certamente, Zilsel é um
claro alvo de sua crítica. Em diferentes oportunidades, Koyré parece
ter em mente, precisamente, as principais ideias de Zilsel quando, por
exemplo, critica as concepções que atribuem aos artesãos-engenheiros,
às cidades, às críticas à tradição etc., os elementos centrais da formação
da ciência moderna. Reproduzirei uma passagem de Koyré que, embora
longa, sintetiza sua crítica a esses autores e, ao mesmo tempo, reforça
sua própria posição:

Alguns insistem no papel da experiência e da experimentação


na ciência nova, a luta contra o saber livresco, a nova fé do
homem moderno em si mesmo, em sua capacidade de desco-
brir a verdade por seus próprios meios, pelo exercício de seus

29 Hessen foi um dos representantes da delegação russa presente no célebre li Congresso


Internacional de História da Ciência e da Tecnologia de 1931, quando ele apresentou seu
trabalho "The social and economic roots of Newton's Principia" (Hessen, 2009 [1931]), no
qual procurou fazer uma análise marxista (social) do surgimento da referida obra de Newton.
Para uma análise das teses de Hessen e Grossmann, ver Freudenthal, Mclaughlin (2009 ). Para
uma análise do contexto político e científico de Hessen, ver Freire Jr., 1993.
30 Em seu livro Sclence, technologyand soclety in seventeenth-century England, Merton, 2001 [1938]
mostrou que existem relações recíprocas entre ciência, tecnologia e sociedade. Contudo, o seu
programa de entendimento dessas relações destacava uma dimensão sociológica sem assumir
um comprometimento epistemológico. Para uma análise da tese de Merton, ver Shapin (1988).

MAURO lÚCIO LEITÃO COND~


sentidos e de sua inteligência, fé que exprimiram com tanta
força Bacon e Descartes se opondo à crença que prevalecia
até então no valor supremo e esmagador da tradição e da
autoridade consagrada. Outros sublinham a atitude prática do
homem moderno que se volta contra a vita contemplativa que
a idade média e a antiguidade consideravam, alega-se, como o
apogeu da vida humana, para se voltar para a vita activa, ope-
rativa, como Bacon a chamava ou dizia Descartes, uma ciência
que faria o homem senhor e possuidor da natureza. A ciência
nova, somos por vezes informados, é a ciência do artesão e
do engenheiro, do trabalhador comerciante, empreendedor
e calculador, em suma, da classe burguesa ascendente na
31
sociedade moderna (Koyré, 1968, p. 28-29).

Uma vez exposta essa síntese das teses sociológicas para o


advento da ciência moderna, Koyré reconhece que elas são parcialmente
corretas, mas insatisfatórias. Em outras palavras, reconhece que elas são
condições necessárias, mas não condições suficientes para a construção
da ciência moderna (Koyré, 1973 [1966], p. 75).

Existe certamente verdade nessas descrições e explica-


ções; é claro que a crença da ciência moderna pressupõe as
cidades; é evidente que o desenvolvimento das armas de
fogo, sobretudo o da artilharia, chamou atenção sobre os
problemas de balística; que a navegação, sobretudo para

31 "Certains lnsistent sur le rôle de l'expérience et de l'expérimentation dans la sdence nouvelle, la


lutte contre le savoir livresque, la foi nouvelle de l'homme moderne en lui-même, en sa capacité
à découvrir la vérité par ses propres moyens, par l'exercice de ses sens et de son intelligence,
foi qu' exprfmerent avec tant de force Bacon et Descartes s'opposant à la croyance, qui pré-
valait jusque-là, en la valeur suprême et accablante de la tradition et de l'autorité consagrée.
Certains autres soulígnent l'attitude pratique de l'homme modeme qui se détoume de la vita
contemplativa que le Moyen Age et l'antigulté considéraient, prétend-on, comme l'apogée
de la vie humaine, pour se toumer vers la vita activa; homme modeme qui, par conséquent,
ne peut plus se satisfaire de spéculation pure et de théorie ; que veut une science qu' il puisse
utíliser: une scientiaactiva, operativa, comme l'appelait Bacon ou, comme le disait Descartes,
une science qui rendrait l'homme maitre et posseseur de la nature. La science nouvelle, nous
dit-on parfois, est la science de 1' artisan et l'ingénieur, du commerçant travailleur, entreprenant
et calculateur, en somme de la classe bourgeoise montante dans la socienté modeme."

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


Oproblema da historicidade da ciência 41
a América e as índias, favoreceu a construção de relógios
etc.; contudo, devo reconhecer que essas explicações não
me parecem satisfatórias. Não sei o que a scientia ativa teve
a ver com o desenvolvimento do cálculo, nem a ascensão
da burguesia com a astronomia copernicana ou kepleriana.
Quanto à experiência e à experimentação - duas coisas que
devemos não apenas distinguir, mas mesmo opor uma à ou-
tra - estou convencido de que a ascensão e o crescimento da
ciência experimental não é a fonte, mas, bem ao contrário,
o resultado da nova concepção teórica ou, antes, metafísica
da natureza que forma o conteúdo da revolução científica do
século XVII, conteúdo que devemos compreender antes de
32
tentar a explicação (seja ela qual for) deste fato histórico
(Koyré, 1968, p. 28-29).

Enfim, para Koyré, 2 revolução científica não é derivada dos


fatos, técnicas, experimentos, aspectos históricos e sociais. E mesmo
que essas possam ser condições necessárias, a emergência da ciência
moderna, em última instância, é, antes de tudo, uma mudança no pen-
samento, uma "atitude metafísica". Entretanto, ainda que afirme essa
perspectiva, Koyré não se descuidou de examinar com atenção a questão
da tecnologia e mesmo os aspectos centrais da tese sociológica. Em es-
pecial, nos artigos de 1948, "Les philosophes et la machine" (Os filósofos
e a máquina] e "Ou monde de I' 'à-peu-pres' à l'univers de la précision"

32 "li y a certafnement du vrai dans ces descriptions et explicatlons; il est clair que la croissance
de la science moderne préssupose celles de villes; il est évldent que le développement des
armes à feu, surtout celul de l'artlllerie, a attiré l'attencion sur les problemes de balistlque;
que la navigatlon, surtout ceife pour l'Amérique et les lndes, favorisa la construction des
montres, etc.; je dois avouer cependent que ses explicatlons ne me paraissent pas satisfa-
saintes. Je ne vois pas ce que la scientio activa a jamais eu à falre avec le développement
du calcul, ni la montée de la bourgeoisie avec l'astronomie copemicienne ou képlérienne.
Quant à l'expérience et à l'expérimentation - deux choses que nous devons non seulement
distinguer mais même opposer l'une à l'autre - je suis convaincu que la montée et la crois-
sance de la science expérimentale n'est pas la source mais, bien au contralre, le résultat de
la nouvelle conception théorique ou plutôt métaphysique de la nature qui forme le contenu
de la révolutlon scientifique du XVII e siêcle, contenu que nous devons comprendre avant de
tenter l'explication (quelle qu'elle soit)de ce fait historique."

421......, lOOO LBTÃO CoNo!


3
[Do mundo do "mais ou menos" ao universo da precisãoJ,3 Koyré tra-
tou o problema da técnica e da concepção psicossociológica, como ele
denomina, com o objetivo de consolidar sua afirmação de que a ciência
é sobretudo teoria. A ciência é o resultado de "uma mudança de atitude
34
metafísica" (Koyré, 1966 [1939], p. 13) e não propriamente do desen-
volvimento social e tecnológico. Assim, ele afirma que é "incontestável,
mesmo impossível, como acredito, dar uma explicação sociológica do
nascimento do pensamento científico, ou à aparição de grandes gênios
que revolucionaram o desenvolvimento da ciência - Siracusa não explica
Arquimedes, não mais que Pádua ou Florença explicam Galileu"35 (Koyré,
1971 [1961], p. 323-324).
Para combater as teses sociológicas que afirmam o destacado
papel dos fatores sociais e tecnológicos na fundação da ciência moderna,
Koyré formula uma série de argumentos, embora reconhecendo que essa
qu~stão não parece ter uma solução satisfatória (Koyré, 1971 [1961], p.
341). Sempre destacando o primado das ideias científicas, argumenta que
uma solução - de conveniência - nos mostra que a tecnologia apenas
deixou de ser técnica e passou a ser tecnologia com o advento da ciência.
Portanto, a ciência foi um evento anterior à tecnologia. Seria impossível o
surgimento da tecnologia sem o desenvolvimento da ciência, ainda que,
naturalmente, haja conexão entre a história da técnica e a do pensamento
intelectual (Koyré, 1971 [1961], p. 345). Em outras palavras, a história da
técnica é conexa à da ciência e, certamente, a ciência se aproveitou da
técnica, mas a ciência não foi criada por técnicos e engenheiros (Koyré,
1966 [1939], p. 11, 13). Na Grécia, a técnica era rudimentar e a física, ine-
xistente. Após a modernidade ter criado a física, abriram-se as condições

33 Como analisarei à frente, nesses artigos Koyré se esforça contra a abordagem sociológica
representada pelas máquinas (Koyré, 1971 [1961], p. 305-339). Os filósofos e as máquinas tam-
bém é o título do livro de Paolo Rossi. Porém, em seu livro, Rossi aprofunda a tese oposta à
de Koyré, isto é, a "tese de Zilsel" (Rossi, 2002 [1962]).
34 "Changement d'attitude métaphysique"
35 "li est incontestableque, même s'il est impossible, comme je le crois, de donner une explica-
tion soclologique à la nalssance de la pensée scientifique, ou à l'apparition de grands génies
qui en révolutionnerent le développement - Syracuse n'explique pas Archlmêde, pas plus
que Padoue ou Florence n'expliquent Galilée".

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 43
para o surgimento da tecnologia e, por consequência, para os impactos
tecnológicos daí advindos.
À primeira vista, segundo Koyré, o relógio, por exemplo, pa-
rece-nos meramente um objeto tecnológico, mas, por trás dele, existe
toda uma concepção científica (e mesmo cultural) que foi criada antes
do relógio em si. Portanto, a criação do relógio deve muito mais a Galileu,
Huygens e Hooke do que a técnicos, ainda que os relojoeiros tenham
sido exímios construtores desse artefato, que se tornou presente na
vida cotidiana. Isto nos mostra que "um objeto teórico pode tomar-se
36
objeto prático" {Koyré, 1971 [1961], p. 357). A própria mudança do
tempo natural para o tempo artificial do relógio seria, antes de técnica,
uma mudança cultural {Koyré, 1971 [1961], p. 354). Da mesma forma, o
fabricante de luneta é um artesão e não um óptico. Assim conclui Koyré
sobre "a função própria do instrumento que, nele mesmo, não é um
prolongamento do sentido, mas na acepção mais forte e mais literal do
termo, é a encarnação do espírito, materialização do pensamento" 37
{Koyré, 1971 [1961], p. 352).
Ao afirmar esse importante papel da teoria na história da ciên-
cia - inserido no quadro mais amplo de suas concepções metafísicas - ,
Koyré compreende que há um entrelaçamento entre ciência, religião
(teologia) e filosofia (metafísica) formando, assim, uma "unidade do
pensamento" humano (Koyré, 1973 (1966], p.11). Não são as técnicas e
os comportamentos sociais que constroem o estilo de pensamento de
uma época, mas as convicções metafísicas, as ideias religiosas, filosóficas
e científicas. Em síntese, Koyré caracteriza seu internalismo afirmando o
realismo matemático, a atitude metafísica e o primado da teoria sobre a
experiência, a prática e a tecnologia. Tanto a experimentação quanto a
tecnologia já seriam frutos dessa condição teórica, mas não o contrário.

36 "Un objet théorique peut devenir objet pratique".


37 "La fonction propre de l'instrument qui, lui, n'est pas un prolongement du sens mais, dans
l'acceptlon la plus forte et la plus littérale du terme, incamation de l'esprit, matérialisation
de la pensée".

441 MAuRO LÜCIO ""'° COHD!


Dessa forma, parodiando o seu título, "Les philosophes et la
machine" (Os filósofos e a máquina], poderíamos concluir que a partir
de seu internalismo o próprio Koyré pode ser caracterizado pela figura
do "filósofo", isto é, aquele que se opõe às "máquinas" e às "técnicas"
enquanto força motriz e símbolo de toda a transformação histórica, so-
cial e epistemológica que culminou na construção da ciência moderna.
Em síntese, mesmo que a ciência moderna tenha sido revolucionária,
para Koyré, os aspectos sociais e tecnológicos não foram a força motriz
dessa revolução, mas1 ao contrário, esses aspectos seriam derivados de
mudanças teóricas, influenciadas pela filosofia (Koyré, 1971 [1961], p.
255-256) e pela religião.

3 ZILSEL E AS ORIGENS SOCIAIS DA CIÊNCIA MODERNA

Sob a forte influência de Koyré, estabeleceu-se uma das mais


difundidas representações da ciência moderna, segundo a qual a revolu-
ção científica foi enormemente patrocinada pelas extraordinárias ideias
de grandes cientistas tais como Copérnico, Galileu e Newton. Certamente,
há muito de verdade nessa imagem da ciência e suas explicações sobre
o funcionamento da natureza. Contudo, os historiadores de perspectiva
social compreenderam a emergência da ciência moderna como um fe-
nômeno muito mais complexo que contou com a participação de outros
agentes históricos, dentre eles pessoas do povo, como artesãos, mari-
nheiros, ferreiros, ceramistas, relojoeiros, construtores de instrumentos
musicais; enfim, uma variada gama de trabalhadores manuais que, com
seu labore conhecimento prático do m1:1ndo, contribuíram (1) não apenas
para a configuração de um novo contexto histórico, social e econômico
no qual foi possível o surgimento da ciência moderna, mas também (2)
tiveram uma grande importância na própria estruturação do conheci-
mento científico e a consequente formação da ciência moderna. Esses
são alguns dos pressupostos da concepção chamada de externalismo
na história da ciência.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 45
Essa perspectiva de valorização dos aspectos sociais e tecno-
lógicos na construção da ciência moderna, ou simplesmente concepção
extemalista, talvez, pudesse ser sintetizada na chamada "tese de Zil-
sel". 38 Essa tese, formulada pelo filósofo e historiador da ciência Edgar
Zilsel (1891-1944), 39 atribui a formação da ciência moderna à confluência
de fatores sociais, econômicos e tecnológicos. Para ele, do final da idade
média até cerca de 1600, esses fatores contribuíram para a formação de
um ambiente social e cultural totalmente singular até então na história da
humanidade. Neste contexto, configurou-se, por exemplo, a progressiva
centralização da cultura na cidade, o progressivo uso de máquinas para
produção de armas e bens de consumo e o nascimento do capitalismo.
Esses fatores sociais e econômicos permitiram a interação entre três
estratos sociais: (1) artesãos, (2) acadêmicos das universidades e tam-
bém (3) os humanistas. Os artesãos, por serem pessoas iletradas, eram
ignorados pelos acadêmicos, uma vez que as universidades, no seu início,
não consideravam as atividades práticas como parte fundamental do
conhecimento. Contudo, alguns artesãos superiores (artesãos-engenhei-
ros) começaram a requerer mais e mais conhecimentos (além daqueles
meramente práticos) para realizar seus trabalhos, como, por exemplo,
Leonardo Da Vinci. Por outro lado, alguns acadêmicos, tais como Gilbert,
que tinha fortes interesses práticos (Zilsel, 2000 [ 1941 ], p. 72-96 ), também
voltaram a atenção para as técnicas e a vida prática. Após certo tempo,
nesse contexto de crítica às autoridades, livre concorrência e individua-

38 O que se convencionou chamar de "tese de Zilsel" era, na realidade, um projeto de pesquisa


- sobre as origens sociais da ciéncia moderna - muito mais amplo que, Infelizmente, ele não
pôde realizar devido a sua morte precoce. Uma primeira síntese desse projeto intitulada "The
social roots of science" foi apresentada no V Congresso para a Unidade da Ciência ocorri-
do na Universidade de Harvard, em setembro de 1939. Em 1942, Zilsel publicou um artigo
mais trabalhado sobre seu projeto Intitulado "The sociological roots of sclence". Para uma
coletânea dos principais artigos de Zilsel em alemão, ver Zilsel (1976) e, em inglês, ver, Zilsel
( 2000 ). Para um desdobramento da tese de Zilsel, ver o já citado livro de Rossi, Os filósofos e
as máquinas, especialmente o capítulo 1, "Artes mecânicas e filosofia no século XVI" (Rossl,
2002 [1962]).
39 Fugindo do nazismo na Europa, Zilsel imigrou para os Estados Unidos, onde Iniciou seu projeto
sobre as origens sociais da ciência moderna. O trabalho de Zilsel na Áustria, no âmbito do Cír-
culo de Viena, era muito distinto dessa sua nova proposta de pesquisa trazida para os Estados
Unidos. Para uma nota biográfica de Zilsel escrita por Haven e Krohn, ver Zilsel (2000, xix-lx).

461 ....... Lllao LETÃO CoND<


lismo trazidos pelo capitalismo, a interação entre artesãos-engenheiros
e acadêmicos conduziu à emergência da ciência moderna.
Portanto, para Zilsel, do século XIV ao XVII, o "saber fazer"
do homem do povo, dos artesãos e alguns artesãos-engenheiros aliado
ao "saber pensar" dos filósofos ligados às universidades, bem como
dos humanistas isolados, foi o fator mais forte para a constituição da
ciência moderna. Para entender como o "saber fazer" patrocinado pela
tradição de artistas e engenheiros desempenhou esse papel, inicialmente
analisarei alguns aspectos históricos da relação entre técnica e arte e, em
seguida, da relação entre técnica e ciência. Isso nos permite perceber que
a separação entre o "trabalho prático" e o "trabalho teórico" apresenta
certamente uma distinção histórica- já que vieram de tradições distintas
-, mas não possuem uma radical distinção epistemológica, uma vez que
são as duas faces de um mesmo processo de produção do conhecimen-
to. Para produzir conhecimento, é preciso "pensar" e é preciso "fazer".
Com isso, a partir da tese de Zilsel, concluímos que não apenas a dívida
da ciência moderna com a tradição do saber manual das artes e ofícios
de artesãos e engenheiros é muito grande, mas também a própria ideia
de homem moderno, enquanto "ser de artifício", beneficiou-se das artes
e ofícios, isto é, da atuação desses artesãos e artesãos-engenheiros.
Para Zilsel, assim como para Koyré, a modernidade também é
um momento singular. "A sociedade humana não muda tão frequente-
mente como mudou tão radicalmente na transição do feudalismo para
40
o início do capitalismo" (Zilsel, 2000 [1942], p. 8). Entretanto, diferen-
temente de Koyré, para Zilsel, essa nova visão de mundo depende muito
41
mais do espaço e do tempo em que práticas econômicas, inovações
tecnológicas, comportamentos sociais e novas ideias são articulados do
que propriamente de ideias abstratas isoladas originadas no mundo clás-
sico, no qual a ordem social e econômica era totalmente diversa daquela

40 "Human society has not often changed so fundamentally as it did with the transition from
feudalism to capitalism."
41 Tanto Zilsel quanto os demais hist:>riadores de perspectiva social, como Grossmann e Hessen,
sofreram influências do marxismo, ainda que cada um tenha assimilado tais influências, e até
mesmo militância, de forma muito diferente.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1

O problema da historicidade da ciência 47


presente na Europa de início da modernidade, ainda que, como assinala
Zilsel, a reinserção de conhecimentos do mundo clássico - por exemplo,
nas matemáticas - tenha sido muito importante para a formação da mo-
dernidade. Entretanto, não fosse um conjunto de fatores determinantes
e confluentes como ideias, comportamentos sociais, práticas econômi-
cas e hábitos culturais, não haveria a ciência moderna. Assim lista Zilsel
alguns dos principais fatores e condições para o nascimento da ciência:

1-A emergência dos primórdios do capitalismo( •.. ), a cultura


( ... ) centrada nas cidades. 2- O fim da idade média foi um
período de rápido progresso tecnológico e de invenções tec-
nológicas. Máquinas começaram a ser usadas na produção
de bens e na guerra. 3- Na sociedade medieval o indivíduo
estava ligado à tradição do grupo ao qual ele inalteravelmente
pertencia. No início do capitalismo, o sucesso econômico
dependia do espírito de empreender do indivíduo. No início
do feudalismo, a competição econômica era desconhecida.
( ... ) O individualismo da nova sociedade é o pressuposto
do pensamento científico. 4- (...) a emergência do método
quantitativo, o qual virtualmente era inexistente nas teorias
medievais, não pode ser separado do espírito de contar e
42
calcular do capitalismo econômico (Zilsel, 2000, [1942], p.
8-9, itálicos meus).

Para entender a tese de Zilsel, temos que considerar que, em


nossos dias, arte e técnica são coisas distintas. Algumas vezes, são até
antagônicas quando compreendemos que o "tecnicismo" de um pro-
cesso qualquer anularia sua "arte". Isso ocorre, por exemplo, quando

42 "1- The emergence of early capitalism (... ), culture ( ...) centered in towns. 2-The end of the
Middle Ages was a period of rapidly progressing technology and technologlcal inventlons.
Machines began to be used bothin production of goods and ln warfare. 3- ln medieval society
the individual was bound to the traditions of the group to which he unalterably belonged. ln
the early capltalism economic success depended on the spirit of enterprise of the individual.
ln the early feudalism economic competition was unknown. (...) The lndivldualism of the
new soclety is a presuppositlon of scientific thinking. ( ... ) The emergence of the quantitative
method, which is virtually non-existent in medieval theories, cannot be separated from the
counting and calculating splrit of capitalistic economy."

MAURO Lúoo LEITÃO CONDé


dizemos que o "futebol arte" foi ultrapassado pelo "futebol técnica".
Entretanto, como nos mostra a história, nem sempre foi assim. Apenas
nos últimos séculos, sobretudo depois do renascimento, estabeleceu-
se esse distanciamento entre arte e técnica. Para os gregos, techné era
tanto a técnica quanto a arte, isto é, técnica e arte eram a mesma coisa.
A cultura latina traduziu a palavra techné por technica, mas também por
ars (arte). Contudo, na sequência, atribuiu a essas expressões significa-
dos distintos. Não raramente, a dimensão técnica presente na palavra
arte nos escapa e, às vezes, o senso comum nem percebe que de "arte"
também provêm "artefato", "artifício", "artificial", "artesanal" etc.,
significados esses que relacionamos mais à técnica enquanto produtora
de construtos - o "artificial", aquilo que é construído, como o oposto
ao "natural". Com efeito, ao falar do que era produzido pelos artesãos,
e mesmo pelos artesãos-engenheiros, certamente não estamos falando
de um fruir estético, mas da geração de conhecimento como artefatos,
produtos e serviços. Dito de outro modo, estamos falando de como dife-
rentes técnicas forjam diferentes saberes - e reciprocamente diferentes
saberes forjam diferentes técnicas - e como esses afetam a sociedade
em que são produzidos.
Para essa separação entre arte e técnica também parece ter
contribuído a modificação da concepção de estética elaborada no século
XVIII pelo filósofo Alexander Baumgarten (1714-1762), segundo a qual
a estética seria a ciência que trata do conhecimento sensorial - algo
que já se encontrava na origem grega do termo, pois estética significa
percepção - que alcança a apreensão do belo, expressando-se nas ima-
gens da arte. Entretanto, a palavra "estética", a partir de então, vai se
afastando da sua origem etimológica e passa a ser compreendida como
uma concepção de belo, mas sem seus atributos técnicos e operacionais.
Da mesma forma, no outro extremo, a palavra "arte" também passa a
expressar a ideia de belo ocultando o seu "suporte técnico". Paradoxal-
mente, a cultura ocidental construiu uma arte sem técnica e uma estética
sem percepção. Entretanto, a arte e a técnica estão juntas. Há arte na
técnica e técnica na arte.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 49
Assim como há técnica na arte e arte na técnica, de modo se-
melhante, há ciência na técnica e técnica na ciência. Contrariamente aos
gregos que separavam radicalmente episteme de techné (técnica/arte),
segundo a tese de Zilsel, o homem moderno unirá episteme e techné para
criar a ciência moderna (scientia) - concepção essa que Koyré jamais
aceitaria. Com efeito, ciência, técnica e arte, embora se apresentem
como domínios distintos, a partir do renascimento, têm suas histórias
e seus processos de elaboração imbricados. Diferentemente do mundo
clássico, na sociedade contemporânea, estamos tão habituados com a
estreita relação existente entre ciência e tecnologia a ponto de muitas
vezes não sabermos o que, nesse complexo, é propriamente ciência,
ciência aplicada, técnica ou tecnologia. Na maioria das vezes, nem mes-
mo nos colocamos a questão sobre a diferença entre elas indagando,
por exemplo, se a medicina ou a administração são ciências ou técnicas.
Contudo, como salienta a tese de Zilsel, essa relação nem sempre foi tão
próxima assim. Até por volta do renascimento, ciência e técnica eram
práticas totalmente distanciadas, vinham de tradições históricas distin-
tas e os seus praticantes, que possuíam formações e posições sociais
diferentes, em sua maioria, não tinham a mesma visão de mundo, os
mesmos interesses e muito menos a mesma condição social. O homem
da técnica invariavelmente provinha da tradição do "saber fazer" práti-
co, enquanto o homem da filosofia (ciência), contrariamente, do pensar
abstrato e distanciado do trabalho manual. É precisamente essa junção
dos saberes dessas tradições distintas que, segundo Zilsel, formará a
ciência moderna.
Assim como no caso da relação arte e técnica, o renascimento
é o palco da incipiente relação entre a técnica e a ciência, ou pelo menos
com o que a tradição ocidental naquele momento entendia como ciência
( algo muito mais próximo da filosofia grega do que propriamente da
scientia moderna). Em pouco tempo, já na modernidade, essa relação
se efetivará formando a ciência moderna. A antiga concepção de ciên-
cia criada pelos gregos (episteme) - enquanto um saber racional que
buscava compreender a complexa estrutura do real - tem importantes

50 1 MAURO Ulao LEITÃO CoNot


contribuições para a construção da ciência moderna (scientia), seja
complementando a perspectiva moderna, e até mesmo contrapondo-se
a ela. Como na episteme grega, a ciência experimental moderna parte
do pressuposto de que existe uma ordem a priori da realidade que pode
ser apreendida pelo homem, ainda que para os gregos essa ordem não
se encontrasse no mundo da experiência. Entretanto, diferentemente
da ciência teórica grega, na qual a apreensão dessa ordem é muito mais
~ma "contemplação" da realidade (bios theoretikos), para os modernos,
a ciência é essencialmente um instrumento de transformação da reali-
dade (vita activa), isto é, da natureza e, consequentemente, da própria
sociedade. O caráter abstrato fez da ciência grega um saber especulativo
distanciado da técnica, porque a técnica era entendida como um saber
prático aplicado à vida mundana e muito pouco relacionado à ideia abs-
trata de "ciência" (episteme).
Na medida em que a "ciência" grega não fornecia diretamente
suporte à produção econômica, mas contrariamente era por essa susten-
tada, ela pôde se manter nesse distanciamento dos aspectos empíricos,
práticos e técnicos do mundo da vida, o que não ocorrerá com a ciência
experimental moderna. Se "saber é poder", como ensinou Bacon, um
dos pais da ciência moderna - ainda que Koyré jamais tenha concordado
com essa importância atribuída a Bacon -, certamente este saber é o
"científico" e "tecnológico" que engendra poder "político" e "econô-
mico". A combinação entre episteme e techné criará a scientia (ciência) e
tornará o conhecimento algo inserido diretamente no modo de produção
econômico, transformando a natureza e a própria sociedade moderna.
Com efeito, segundo a tese de Zilsel, a ciência experimental
moderna será formada, por um lado, pela filosofia grega (episteme), a
tradição do homem letrado portador de uma ciência teórica desvinculada
do mundo do trabalho manual e, por outro, pela tradição do artesão e
do engenheiro. Enfim, do homem da técnica que faz do mundo material
à sua volta o seu "livro de aprender", e do fazer experimental a sua arte
e profissão. Essa tradição de homens ligados à técnica passa a ter uma
importância fundamental a partir do século XIV. Homens como Palissy

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 51
e Norman, mais do que produzir técnicas, passam também a ser críticos
dessa tradição filosófica "livresca", procurando mostrar que o "livro da
natureza" é muito mais rico que as abstratas especulações filosóficas. Em
um movimento complementar, a partir de autores como Gilbert, a filoso-
fia alertará, contudo, que as técnicas, sem uma organização sistemática
através da teoria (episteme), não poderão construir a ciência e nem a
tecnologia, isto é, saber técnico sem teoria seria um catálogo medieval
de técnicas dispersas, um simples "gabinete de curiosidades". Rossi (2002
[1962]) desenvolve primorosamente esses aspectos da tese de Zilsel.
Os inúmeros artefatos criados por esses artesãos modificaram
o cotidiano do homem europeu e passaram a exercer um forte traço
no comportamento desse homem, substituindo, aos poucos, a ideia de
"homem natural" pela de "homem artificial". Assim, na modernidade,
o homem não é produto apenas das ideias teóricas e científicas que
transformaram seu imaginário, mas é, em grande medida, um produto
"tecnológico", isto é, um produto "artificial". Com efeito, todos esses
aparatos tecnológicos e práticas sociais teriam possibilitado o ambiente
necessário para a emergência da ciência moderna. Com base nele, sin-
tetiza Zilsel sua tese:

Do período do final da idade média até 1600 os acadêmicos


das universidades e os humanistas literatos são treinados
racionalmente, mas não fazem experimentos, pois desprezam
o trabalho manual. Muitos outros plebeus artesãos fazem ex-
perimentos e inventam, mas lhes falta treinamento racional e
metódico. Por volta de 1600, com o progresso da tecnologia,
o método experimental é adotado por acadêmicos das classes
superiores treinados racionalmente. Assim, finalmente, os
dois componentes da pesquisa científica são unidos: a ciência
moderna nasce. O processo como um todo está embutido no
avançar do início da economia capitalista, que enfraquece a
mente coletiva, o pensamento mágico, as tradições e a crença
na autoridade e promove o pensamento mundano, racional

s2 \ MAURO Wco I.BTÃO CONo<


e causal, o individualismo e a organização raciona1 43 (Zilsel,
2000 [1939], p. 6).

Em síntese, essa junção do saber dos homens da técnica ( arte-


sãos) aliado ao saber dos homens da episteme (filósofos), afirmada pela
tese de Zilsel, será responsável por profundas transformações na vida
moderna. Tais transformações, portanto, foram operadas não apenas por
teorias científicas como as de Copérnico, Kepler ou Galileu, mas também
pelas crescentes inovações tecnológicas surgidas a partir do século XIV
e consolidadas na modernidade. Nesse momento, na perspectiva de
Zilsel, as teorias afirmam o caráter universal da ciência, mas apenas ao
abraçar a técnica são encontradas as condições para a demonstração
da própria teoria, constituindo, assim, a ciência experimental. É nesse
sentido que, ao serem associadas, técnicas e ideias teóricas acabaram
não apenas construindo a ciência experimental, mas reformulando
o modelo de sociedade existente, criando muitas vezes, a cada nova
técnica, a necessidade exponencial de mais e mais técnicas, marcando
definitivamente, dessa forma, a sociedade moderna como uma sociedade
científica e tecnológica.

4 INTERNALISMO, EXTERNALISMO E HISTORICIDADE DA CIÊNCIA

Qual teria sido a contribuição do debate internalismo versus


externalismo para a ideia de historicidade da ciência? Por um lado, embora
o externalismo tenha ampliado a compreensão dos aspectos sociais na
produção do conhecimento científico, por outro, em termos epistemoló-

43 "ln the period from the end of the Middle Ages until 1600 the university scholars and the
humanistic literati are rationally trained but they do not experimentas they despise manual
labor. Many more or less plebeian craftsmen experiment and invent but lack methodical
rational training. About 1600, with the progress of technology, the experimental method is
adopted by rationallytrained scholars of the educated upper class. Thus, the two components
of scientific search are united at last: modem science is born. The whole progress is embedded
in the advance of early capitalistic economy wich weakens collective-mindedness, magicai
thinking, traditions, and the belief in authority, which furthers mundane, rational and causal
thinking, individualism and rational organlzation."

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 53
gicos, ele não avançou suficientemente para incorporar, de modo efetivo,
a ideia de historicidade da ciência, isto é, a perspectiva de que a história
de um conhecimento afeta seu resultado final. Podemos perceber essa
limitação tanto contrastando a tese de Zilsel com a concepção de ciência
de Koyré, quanto analisando os impactos que essas duas perspectivas
tiveram. Se pensarmos em termos epistemológicos, podemos perceber
que as ideias de Zilsel não fizeram frente a alguns importantes posicio-
namentos de Koyré. Se olharmos em termos das influências exercidas
pelos dois pensadores, podemos ver que elas demarcaram dois campos
de atuação independentes e sem estabelecer um diálogo entre si. Assim,
embora tanto Koyré quanto Zilsel fossem filósofos, os diferentes modelos
de história da ciência propostos por eles - ainda que comportassem uma
dimensão epistemológica - tiveram muito mais impactos metodológicos
do que propriamente epistemológicos. As posições demarcadas por eles
serviram muito mais como orientações historiográficas para se constituir
metodologias de abordagens da ciência do que propriamente a consti-
tuição de um acirrado debate epistemológico. Como observou Kuhn,
44
internalismo e externalismo foram "empresas virtualmente separadas"
(Kuhn, 1977 [1968], p. 110).
Uma vez que o historiador escolhia a forma de fazer história
da ciência, seguia-se o cânone metodológico, praticamente ignorando
o que o outro lado realizava. Enfim, esse debate muito mais instituiu
metodologias de abordagem da ciência do que propriamente questiona-
mentos epistemológicos. Talvez seja por isso que Shapin, ao analisar essa
controvérsia, diz que ela afetou mais aos historiadores e aos sociólogos
do que aos filósofos (Shapin, 1992, p. 336). Historiadores e sociólogos da
ciência tiveram um grande trabalho definindo seu campo de atuação e
compondo suas metodologias e isso de modo independente e distante da
história internalista tradicionalmente realizada por cientistas e filósofos.
Nesse sentido, a possibilidade de um efetivo embate filosófico existia,
mas, em certa medida, faltaram elementos conceituais para a concre-

44 "virtually separated interprises".

541 MAuRO Lolao LEITÃO COND!


tização desse debate em termos epistemológicos, sendo seu aspecto
metodológico muito mais forte.
Contudo, ainda que não tenha havido um profundo debate
epistemológico entre as duas posições, em alguma medida, elas foram
confrontadas a partir desse ponto de vista. Se tomarmos a tese de Zilsel,
que nos diz que os principais agentes promotores da ciência moderna
- os acadêmicos e os artesãos - encontraram-se devido a determinadas
condições sociais, podemos, por exemplo, nos perguntar em que medida
essas condições sociais presentes nesse contexto não foram apenas con-
dições necessárias - que Koyré aceitaria sem maiores problemas -, mas
também condições suficientes para o surgimento da ciência moderna. As
ideias teóricas criaram os artefatos (relógio etc.), como sustenta Koyré?
Ou os artefatos permitiram a criação de novas ideias e teorias, como
sustenta a tese de Zilsel? Mesmo que, para Zilsel, ciência e sociedade
estejam imbricadas no mundo moderno de forma indelével - contra-
riamente ao mundo clássico, em que a ciência poderia ser a atividade
de uma vida contemplativa distante das atividades práticas -, sua tese
não conseguiu responder epistemologicamente à forte crítica de Koyré
às práticas sociais e aos usos das técnicas como elementos centrais na
formação da ciência moderna. Na impactante afirmação de Koyré, "se o
interesse prático fosse a condição necessária e suficiente do desenvol-
vimento da ciência experimental - na nossa concepção dessa palavra
- esta ciência teria sido criada mil anos antes( ... ) pelos engenheiros do
45
império romano, senão pelos da república romana" (Koyré, 1973 [1966 ],
p. 75). A essa crítica o extemalismo de Zilsel não conseguiu dar uma
resposta satisfatória. Essa questão demandava uma refinada resposta
epistemológica que, de um modo geral, as concepções externa listas não
estavam prontas para dar nos anos 1940 e 1950. Sem procurar assumir
esse debate de modo efetivo, as concepções externalistas estavam
muito mais preocupadas em demonstrar "como" essas práticas sociais

45 "Si l'intérêt pratique était la condition nécessaire et suflisante du développement de la science


expérimentale - dans notre acception de ce mot - cette science aurait été créée un millier
d'année [ ... Jparles ingénieurs de l'Empire romain, sinon par ceux de la République romaine" ·

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


o problema da historicidade da ciência 55
e os usos das técnicas se desenvolveram do que propriamente extrair
daí alguma lição epistemológica. E é nesse sentido que o externalismo
foi muito mais uma orientação metodológica desse "como" do que um
posicionamento epistemológico.
No contexto desse debate, seria muito difícil a abordagem
de Zilsel fazer frente epistemologicamente às ideias de Koyré. O ar-
senal conceituai necessário para tal apenas se consolidaria nos anos
1960 - arsenal esse do qual Kuhn muito se beneficiou ao lidar com essas
questões. Embora, de um ponto de vista sociológico, a tese de Zilsel
possa ser comprovada com certa facilidade, pois a ciência e a tecnologia,
inegavelmente, consolidaram-se nesse contexto e trouxeram grandes
transformações sociais, não ficou muito claro, em especial aos olhos de
Koyré, em que medida a produção de conhecimento científico é algo
eminentemente social. Em certo sentido, Zilsel dirige sua atenção a
macro fatores de natureza social (estratificação, mobilidade), mas não
analisa micro fatores de natureza linguística (jogos de linguagem, Gestalt
etc.) intrínsecos a essas práticas sociais e muito importantes para a ma-
nutenção desses próprios macro fatores sociais. Enfim, a tese de Zilsel
não trabalhou importantes aspectos cognitivos, linguísticos e simbólicos
do mecanismo social de produção do conhecimento científico. Em certa
medida, ela pressupõe que o social está estruturado linguísticamente, de
onde os mecanismos de produção cognitiva e representação simbólica
(teorias científicas, imagens da ciência) se constituem, mas essa tese
não explicitou tais mecanismos. Com efeito, a perspectiva de Koyré se
sobrepôs à tese de Zilsel em termos epistemológicos. Ainda assim, Zilsel
ajudou a demarcar um importante espaço de atuação metodológico
para a análise da ciência na afirmação de sua perspectiva social, além
de abrir o caminho para o aprofundamento da compreensão do papel
da história na ciência e, assim, para a consolidação futura da ideia de
historicidade da ciência.
No entanto, embora tenha sido epistemologicamente hegemô-
nico, o internai ismo de Koyré deixou algumas importantes questões sem
respostas: (1) como incorporar os contextos sociais como peça efetiva

561 MAURO LÚao LBTÃO COND<


na construção da ciência sem perder a própria autonomia da ciência? (2)
Onde nascem essas ideias que compõem a unidade de pensamento? (3)
Não seria exatamente das práticas sociais? Mas, então, por que os enge-
nheiros romanos não fundaram a ciência, não construíram uma teoria,
não elaboraram a mecânica clássica? (Koyré: 1973 [1966], p. 75). Voltarei
a essas questões no último capítulo, após abordarmos os elementos que
faltaram na tese de Zilsel, mas foram desenvolvidos por outros autores
e muito auxiliaram Kuhn em suas concepções. No próximo capítulo,
abordarei as ideias de Ludwik Fleck, aquele que poderia ter trazido um
grande avanço epistemológico para o debate internalismo versus ex-
ternalismo, mas, infelizmente, ainda que tenha produzido sua obra na
mesma época que Koyré e Zilsel, não teve seu pensamento conhecido
nesse tempo e contexto.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos neste capítulo que o debate internalismo versus exter-


nalismo, especialmente a partir das ideias de Koyré e Zilsel, ao discutir as
origens da ciência moderna, ampliou as possibilidades de compreensão
da história da ciência, seja por um viés teórico e metafísico (Koyré), seja
considerando o papel dos aspectos sociais e tecnológicos na constituição
do conhecimento científico {Zilsel). Para Koyré, que se tornou o ícone
do internalismo, a ciência é a teoria que orienta a experiência. Com essa
concepção ele estabelece o primado da teoria sobre a experiência, da
ciência sobre a tecnologia. Em síntese, a posição de Descartes contra a
de Bacon. Essa compreensão é estabelecida por ele tendo como base seu
realismo matemático de inspiração platônica e cartesiana. Com efeito,
Koyré se torna ferrenho crítico quanto a atribuir um papel central às
práticas sociais e à tecnologia na construção da ciência moderna. Para
ele, não são os eventos sociais e os usos tecnológicos que produzem a
ciência, mas, contrariamente, a ciência é que se corporifica na tecnologia
e, como consequência, engendra ações sociais. Ao defender que a ciência
encontra na teoria suas próprias razões, independente de questões so-

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 57
ciais e tecnológicas, Koyré consolidou a concepção que ficou conhecida
como internalismo. Por sua vez, caracterizando uma posição externalista,
Zilsel entende que a emergência da ciência moderna é fruto de um con-
texto social e econômico que emerge entre o final do renascimento e o
início do capitalismo. Nesse contexto, três estratos sociais - a tradição
do artesão e do artesão-engenheiro, a tradição do filósofo da universi-
dade e ainda a dos humanistas - passaram a interagir confluindo para a
construção da ciência moderna. Para ambos os autores, a constituição
da ciência moderna foi um evento excepcional. Contudo, o que Koyré
entende como a emergência da ciência moderna enquanto uma mudança
do modo de pensar patrocinado por bases metafísicas, Zilsel compreende
como uma mudança no modo de pensar possibilitado pela modificação
de estruturas sociais, inovações tecnológicas e práticas econômicas.
Entretanto, por mais que tenha angariado adeptos, o ex-
ternalismo de Zilsel encontrou dificuldades para responder a algumas
importantes questões colocadas por Koyré, como, por exemplo, a que
indaga: se a técnica foi o elemento principal na formação da ciência mo-
derna, então por que engenheiros romanos, conhecedores que foram
de muitas técnicas, não produziram a ciência? Por mais que a chamada
"tese de Zilsel" pudesse funcionar como um bom programa metodoló-
gico para a realização de pesquisas históricas e sociológicas acerca da
produção do conhecimento científico, ela teve dificuldades para res-
ponder epistemologicamente ao internalismo de Koyré. Contudo, ainda
que hegemônica em seu contexto, a concepção de história da ciência
de Koyré também deixou algumas lacunas quanto ao efetivo papel do
social na construção da ciência. Concluímos, por fim, que o debate in-
ternalismo versus externalismo não encontrou soluções epistemológicas
que permitissem estabelecer a ideia de historicidade da ciência, ainda
que tenha se constituído uma importante estruturação metodológica
para o entendimento de questões sociais e tecnológicas na produção
do conhecimento científico.

581 MAURO L0ao LSTÃO CoND!


CAPÍTULO 2

0 ELO PERDIDO: FLECK E A


EMERGÊNCIA DA HISTORICIDADE DA
CIÊNCIA

O processo de conhecimento representa a atividade


humana que mais depende das condições sociais, e o
46
conhecimento é o produto social por excelência.
Ludwik Fleck

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

f i s t e capítulo, abordarei a obra epistemológica do médico e micro-


biologista polonês Ludwik Fleck(1896-1961), 47 procurando mostrar como
pioneiramente ele elaborou a ideia de historicidade da ciência, sobretudo
48
em seu livro de 1935, Gênese e desenvolvimento de um fato científico.
Infelizmente, por diferentes razões, sua obra não foi reconhecida em seu

46 "Das Erkennen stellt dle am stãrksten sozlalbedingte Tãtigkeit des Menschen vor und Er·
kenntnls ist das soziale Gebilde katexochen."
47 Para uma pequena biografia de Fleck, ver Schãfer, Schnelle (2010) e Schnelle (1982).
48 Ainda que o conhecimento da obra de Fleck no Brasil não tenha atingido sua plenitude, tem
havido esforços nesse sentido por parte dos pesquisadores brasileiros e já contamos com
artigos, dissertações e teses que trabalham as ideias de Fleck. Em 2012, foi publicado no Brasil
o primeiro livro especificamente dedicado a Fleck, com a contribuição de autores brasileiros
e estrangeiros, ver Condé (2012). Também é demonstração desse esforço de divulgação do
pensamento de Fleck entre nós a tradução para o português, em 2010, de sua obra magna,
Gênese e desenvolvimento de um fato científico (Fleck, 2010 [1935]), transcorridos exatos
três quartos de século desde sua primeira edição no original alemão, na Suíça. Fleck visitou
o Brasil, em 1955, participando do li Congresso Internacional de Alergistas sobre o qual, no
ano seguinte, publica em coautoria um artigo caracterizando, em linhas gerais, o referido
congresso (Fleck; Lille-Szyszkowicz, 1956).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 59
tempo. 49 Para além de uma vasta produção científica no campo da micro-
biologia, 5° Fleck realizou uma série de análises dos aspectos históricos,
sociais e epistemológicos da ciência, em função do que ele se tomou,
após a sua morte, um renomado pensador. Em suas análises, ele propõe
de modo inovador a ideia de que a história da ciência altera o resultado
final do processo científico, uma vez que fazer ciência é necessariamen-
te uma atividade social e histórica e qualquer "fato científico" - mais
do que ser uma mera descrição da natureza - é forjado nessa tessitura
entre aspectos empíricos e sociais ao longo de muitos anos. Em outras
palavras, o pensador polonês elabora a ideia de historicidade da ciência.
Embora contemporâneo de Koyré e Zilsel, como mencionado,
Fleck esteve ausente do debate internalismo versus extemalismo, ainda
que sua obra muito pudesse contribuir para o entendimento das relações
entre ciência, sociedade e história na produção do conhecimento cientí-
fico. Apenas em 1962, um ano após a sua morte, o·nome de Fleck entra
efetivamente na cena da historiografia da ciência quando é citado em A
estrutura das revoluções científicas de Kuhn. Meu objetivo central aqui é
mostrar Fleck como um filósofo que concebeu a ideia de historicidade da
ciência através da compreensão do processo social e histórico de produção
do conhecimento científico, isto é, procuro demonstrar que, mais que um
historiador ou sociólogo da ciência, Fleck estabelece um frutífero modelo
epistemológico de entendimento do funcionamento da ciência no qual
não se pode separar a ciência de seus aspectos sociais e de sua história.

49 Embora tenha sido ignorada por décadas, a obra epistemológica de Fleck tem tido cada vez
mais relevância. Mais que uma aplicação na história e sociologia da ciência, recentemente,
diferentes campos do conhecimento têm revelado grandes possibilidades de uso de seu
pensamento (artes, política, educação científica, administração etc.). Aspectos dessa possi-
bilidade dos diferentes usos da obra de Fleck se mostravam desde o início. Leon Chwistekjá
observara, ao escrever a primeira resenha do livro de Fleck, que o pensamento ali contido
aplicava-se não apenas à ciência, mas também às artes (Chwistek, 2011 [1936], p. 606-611).
Na política, o próprio Fleck, tendo sofrido no campo de concentração as atrocidades do na-
zismo, manifesta sua preocupação com o mau uso da ciência em um artigo de 1960, "Crisis
in science" (Fleck, 1986, [1960], p. 153-158).
50 Uma lista das publicações científicas de Fleck apareceu em Schãfer, Schnelle (1983) e foi
ampliada em Werner, Zittel (2011).

60 1- lÚCIO LETÃO CONOê


No início dos anos 1960, apesar de o debate internalismo versus
externalismo não estar plenamente resolvido, ele já tinha colocado na
agenda da historiografia da ciência a necessidade de se pensar as rela-
ções entre ciência e sociedade de um modo mais efetivo. De fato, esse
cenário será muito mais propício para a aceitação das ideias de Fleck. No
entanto, dos anos 1930 até os anos 1960, mesmo que tivesse tido maior
visibilidade, seria difícil o trabalho de Fleck despertar interesse, devido à
grand.e diferença entre a originalidade de sua proposta e as concepções
epistemológicas vigentes nesse período, muito pouco receptívas à ideia
de historicidade da ciência. Fleck foi um autor à frente de seu tempo e
assim de difícil interpretação em sua própria época. Para sua obra ser
discutida, era preciso mudar o contexto epistemológico no qual foi pro-
duzida, mas, paradoxalmente, ela era exatamente uma das principais
chaves de mudança desse contexto. A solução para esse paradoxo, isto
é, a exposição da obra de Fleck, não aconteceu. Com efeito, o pensador
polonês não teve o reconhecimento devido à época. Mais que isso, a
epistemologia e a história da ciência demoraram algumas décadas para
chegar a concepções semelhantes às que ele já tinha desenvolvido nos
anos 1930. Apenas após uma mudança longa e gradativa na historio-
grafia da ciência é que o seu trabalho ganhou visibilidade e encontrou
seus leitores. Nesse sentido, Fleck foi um tipo de "elo perdido" entre a
historiografia da ciência dos anos 1930 e a dos anos 1960.
Fleck escreveu a partir do final da década de vinte, e seu livro
foi publicado na efervescente década de 1930 do século XX, quando o
51
desenvolvimento da ciência - especialmente da física - demandava
uma reflexão sobre os fundamentos, os limites e as possibilidades do
conhecimento científico. Ele desenvolveu um entendimento singular da
problemática da relação entre a ciência e a sociedade, que incorporava
simultaneamente aspectos sociológicos, históricos e epistemológicos. O
pensador polonês teve a compreensão de que essa dimensão social não
é apenas a base para o conhecimento - ou as "condições necessárias"

51 Ésignificativo que um dos primeiros artigos publicados por Fleck, "Sobre a crise da realidade"
(1929), decorra exatamente de uma discussão estabelecida inicialmente na Física.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 61
como diria Koyré-, mas que todo e qualquer processo cognitivo é antes
de tudo um processo social e, assim, o social - se continuarmos com a
referência de Koyré - também se constitui como condições suficientes
do conhecimento. Afirma Fleck:

Qualquer teoria do conhecimento que não leva em conta esse


condicionamento social de todo conhecimento é uma brinca-
deira. Quem, entretanto, considera o condicionamento social
como um mal necessário, como uma lamentável imperfeição
humana a ser combatida, não sabe que, sem esse condicio-
namento, o conhecimento simplesmente não é possível, e
- eu diria ainda - que a palavra "conhecer" somente ganha
um significado no contexto de um coletivo de pensamento
(Fleck, 2010 [1935], p. 86).

Podemos concluir, radicalmente, a partir da obra de Fleck,


que não existe conhecimento fora do social. Visto que esse processo se
dá no tempo, não existe conhecimento fora de sua história. Assim, ao
analisar um episódio da história da medicina - como surgiu a doença que
conhecemos como sífilis 52 - Fleck tem como objetivo central demonstrar
a historicidade da ciência. Esse caminho apresentado por ele foi extre-
mamente novo em relação às correntes históricas e epistemológicas
hegemônicas em seu tempo. Se o debate internalismo versus externa-
lismo, ao analisar a relação entre ciência e sociedade, não conseguiu ir
muito além de uma demarcação metodológica do campo de atuação de
historiadores e sociólogos, Fleck, diante dessa questão, elaborou uma
proposta epistemológica original para a compreensão da relação entre
ciência e sociedade - além da relação da ciência com sua própria história.
Diferentemente do debate internalismo versus extemalismo, Fleck enten-
deu a relação entre esses dois polos - ciência e sociedade - de maneira

52 Para caracterizar essa produção histórica do conhecimento, Fleck escolheu a história da sífilis.
Procurou mostrar como do século XVI ao XX diferentes fatores sociais, culturais e econômicos
interagiram para a produção do conhecimento que a medicina estabeleceu sobre a sífilis, sua
constituição etiológica, seus testes de diagnósticos e suas práticas de cura.

MAURO lÚCIO LEITÃO CONDt


orgânica e não apenas como uma justaposição. Para ele, todo e qualquer
conhecimento se dá a partir das próprias práticas sociais. Em posição
diametralmente oposta a Koyré, como visto no capítulo anterior, de
acordo com Fleck, "o processo de conhecimento representa a atividade
humana que mais depende das condições sociais, e o conhecimento é o
produto social por excelência" (Fleck 2010 [1935], p. 85).

2 A CONTÍNUA "REDESCOBERTA" DE FLECK

Embora a citação do livro de Fleck feita por Kuhn em A estru-


tura das revoluções científicas tenha levado o nome do pensador polonês
a um público muito amplo, o grande esforço de divulgação de seu pen-
samento, pós 1962, foi realizado por um grupo de sociólogos e, assim,
não foi empenho de filósofos ou historiadores da ciência. Esse trabalho
de disseminação feito pelos sociólogos trará algumas implicações na
recepção das ide:as de Fleck. Antes mesmo da tradução de Gênese e
desenvolvimento de um fato científico para o inglês - publicada em 1979
- que teve como um de seus editores ninguém menos que o sociólogo
Robert Merton, foi o também sociólogo alemão Wilhelm Baldamus que
realizou um contínuo esforço para o uso e a divulgação da obra de Fleck
(Baldamus, 1966, 1972, 1977, 1979). Ex-aluno de Mannheim, Baldamus,
que imigrou da Alemanha para a Inglaterra, compreendia que o ponto
central do trabalho de Fleck não era a história e nem a filosofia, mas a
sociologia. Como ele afirma,

primeiro foi apenas uma ociosa curiosidade que me levou ( em


1963) a procurar uma cópia da desconhecida monografia de
Fleck. Minha reação imediata foi a de que a sua análise era
completamente sociológica. Na verdade, muito mais marca-
damente do que a da obra de Kuhn (Baldamus 1977, p. 138).

Foi trabalhando inicialmente junto a Baldamus que o sociólogo


Thomas Schnelle levou à frente o importante projeto de divulgação do

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 63
pensamento do autor de Gênese e desenvolvimento de um fato científico.
Conduziu a republicação do livro de Fleck (1980) e a edição de uma coletâ-
nea dos principais artigos epistemológicos do pensador polonês {Schafer,
Schnelle, 1983 ). Posteriormente, Cohen e Schnelle (1986) editaram esses
mesmos artigos em inglês, desta vez acompanhados de uma série de
análises críticas sobre a obra de Fleck feitas por eminentes autores da
historiografia da ciência (Toulmin, Elkana, Shapin, Bloor, Lõwy etc.). Inse-
rido nesse contexto sociológico, Schnelle também trabalhou em sua tese
de doutoramento, na qual apresenta um panorama das ideias de Fleck
e de seu contexto de produção, exatamente essa dimensão sociológica
presente na obra. O título da tese, Ludwik Fleck - vida e pensamento:
sobre a gênese e o desenvolvimento do estilo de pensamento sociológico
na filosofia da ciência {Schnelle, 1982), sintetiza essa preocupação, ainda
que ressalte também a dimensão da filosofia da ciência.
Corroborando ainda essa forte leitura sociológica da obra de
Fleck, a referência feita por Kuhn diz respeito exatamente a esta questão
sociológica. Relata-nos o autor de A estrutura das revoluções científicas
que, além de antecipar muitas de suas ideias, Fleck o alertou para a impor-
tância da "sociologia da comunidade científica" (Kuhn, 1970a, p. viii-ix).
Por fim, o próprio Fleck ressalta o aspecto sociológico como central na
compreensão do conhecimento, enfatizando em um de seus artigos que
"o embrião da moderna teoria do conhecimento encontra-se nos estudos
da escola de Durkheim e Levy-Bruhl sobre a sociologia do pensamento
e no pensamento dos povos primitivos" (Fleck, 1986b (1936], p. 80).
Todas as considerações acerca da dimensão sociológica na
produção do conhecimento constituem um ponto central na epistemo-
logia de Fleck, assim, não é meu objetivo negá-la, mas isso não o torna
necessariamente um sociólogo da ciência - ou não apenas um sociólogo
da ciência -, uma vez que o leitmotiv de sua obra teria sido compreen-
der como se dá a produção do conhecimento - portanto, uma questão
epistemológica, ainda que ele tenha encontrado nos aspectos sociais e
históricos os mecanismos de constituição desse conhecimento.

641 MAURO Ulao I.STÃO COND<


Nos anos 1990, por sua vez, os historiadores da ciência come-
çaram a fazer amplo uso do arsenal conceituai de Fleck para a escrita
da história da ciência. Em especial, é de grande relevância o trabalho da
historiadora da medicina llana Lõwy, que muito contribuiu para a com-
preensão do contexto cultura: de Fleck ao analisar a escola de história
e filosofia da medicina polonesa (Lõwy, 1990 ). Para alguns intérpretes,
essa escola seria a principal filiação do médico Ludwik Fleck, mesmo que
ele nunca tenha assumido essa posição diretamente. Além dos aspectos
culturais, Lõwy também contribuiu para ampliar o conhecimento da
epistemologia de Fleck. Para quem afirma a historicidade da ciência,
certamente a história é fundamental, mas isso também não faz de Fleck
um historiador da ciência no sentido tradicional do termo. Nem mesmo
afirmar que ele pratica um tipo de história intelectual ou história das
ideias detendo-se muito pouco em fontes primárias determina-o como
um historiador estrito senso. Não há dúvida de que, em alguma medida,
ele é um historiador da ciência, mas sua concepção de história, assim
como a de sociologia, se estabelece muito mais em função de sua con-
cepção epistemológica do que propriamente de sua intenção de historiar
objetos ou processos científicos. 53 Nesse sentido, Fleck seria um filósofo
da ciência que busca compreender, a partir de elementos da história da
ciência e dos aspectos sociológicos das práticas científicas, como emerge
o conhecimento, realizando, portanto, em última instância, uma proposta
epistemológica. Em outras palavras, a tese da historicidade da ciência,
ponto central da contribuição de Fleck a partir do qual ele articula toda
sua teoria da ciência, é uma tese epistemológica.
Contudo, o próprio Aeck entende que é extremamente difícil
separar aspectos sociais, históricos e epistemológicos no entendimento
da ciência. Ao contrário, é exatamente essa junção que nutre sua epis-
temologia. Daí talvez a própria dificuldade de analisar seu pensamento.

53 Em certo sentido, ser interpretado como um historiador da ciência dificultou a disseminação


do pensamento de Fleck, uma vez que, de um ponto de vista estrito da história da sífilis, seu
livro não trazia novidades significativas. Assim, muitos não compreenderam que Fleck, mais
do que uma história já conhecida da sífilis, mostrava uma original maneira de compreender
a ciência.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 65
Separar as instâncias do social e do histórico na produção do conheci-
mento seria desmanchar a tese de Fleck sobre a historicidade da ciência e,
dessa forma, desqualificar a sua própria epistemologia. Mas seria, então,
Fleck prioritariamente um filósofo? Desde a retomada da sua obra essa
questão emergiu e, assim, já se discutia, em 1986, se ele era um filósofo
ou um sociólogo da ciência (Cohen, Schnelle, 1986, xvi). Acredito que
Fleck é, antes de tudo, um filósofo em função de que sua tese principal
sobre a historicidade da ciência é uma tese epistemológica. No entanto,
é preciso observar que, para ele, afirmar a historicidade da ciência não
significa dizer que haja uma hegemonia da epistemologia sobre a hist9ria
e a sociologia, pois esse é um mecanismo que funciona conjunta e sime-
tricamente. Por isso, talvez, ele tenha formulado a expressão "ciência da
ciência" em seu artigo de 1946, "Problemas da ciência da ciência" (Fleck,
54
1986 [1946]). Para o pensador polonês, "a ciência das ciências é uma
ciência separada com base na observação e na experiência, nas investi-
gações históricas e sociológicas" (Fleck, 1986 [1946 ], p. 127). Precisamos
olhar a ciência a partir dessas múltiplas perspectivas para sabermos o
que, efetivamente, é o conhecimento e como ele funciona. Essa tarefa
tradicionalmente pertenceu à epistemologia. Assim, é preciso considerar
Fleck, além de sociólogo e historiador, também um importante filósofo
da ciência. Ou, se quisermos, um "cientista das ciências".
Com efeito, embora tenha sido redescoberto primeiramente
por sociólogos, que o compreenderam, sobretudo, como um sociólogo
da ciência e, em um segundo momento, por historiadores, que, por sua
vez, fizeram grande uso de suas ideias, a obra do pensador polonês
parece não ter sido ainda avaliada com toda profundidade em sua di-
mensão epistemológica. Sua contribuição filosófica não parece ter sido
plenamente explorada. Em outras palavras, o epicentro de suas ideias
epistemológicas - mesmo que assentadas na história e nas práticas so-
ciais - ainda não recebeu a atenção merecida, talvez, em parte, devido à

54 Kuhn (1977, p.122), que talvez não tenha conhecido esse artigo de Fleck, menciona o uso da
expressão "ciência da ciência" feito por Solla Price ( 1966), vinte anos após Fleck, mas em
um sentido muito próximo ao do pensador polonês.

661 MAU,o l.0001.STllo COND!


dificuldade de compreensão desses aspectos históricos e sociais que são a
base de sua epistemologia. Passadas mais de cinco décadas da retomada
de Fleck, as análises filosóficas de sua obra ainda são em número muito
menor do que os usos sociológicos e históricos que vêm sendo feitos
dela. Análises de filósofos, sejam elas um pouco mais antigas, como a
de Hacking (2002), ou mais recentes, como a de Strobach (2011), ainda
são em número muito reduzido.
Por um lado, na medida em que, para Fleck, o "condiciona-
mento social de qualquer processo de conhecimento" (Fleck, 2010
[ 1935], p. 81, 86) é um fator indiscutível, filósofos que não abraçaram
a "epistemologia histórica" ignoram completamente seu trabalho. Por
outro, pensadores que defendem uma epistemologia histórica ainda não
realizaram uma análise pormenorizada das ideias de Fleck. No entanto, a
obra do pensador polonês tem sido mais e mais utilizada por antropólo-
gos, historiadores, educadores etc. Enfim, Fleck tem sido lido, citado eco-
mentado por esses novos pensadores da ciência de perspectiva histórica,
social e antropológica, mas sem que se tenha feito uma análise filosófica
detalhada sobre sua obra. A julgar por essas utilizações da obra de Fleck,
parece que a epistemologia histórica encontrou na história da ciência,
antropologia da ciência ou educação científica um lugar mais adequado
55
para seu florescimento do que propriamente no terreno da filosofia.

55 Certamente Fleck é um filósofo, mesmo que não em termos de uma filosofia tradicional da
ciência, mas dessa nova posição de compreensão da ciência a partir de sua historicidade,
isto é, de uma epistemologia histórica. Essa estreita associação entre filosofia e história, que
conduziu à ideia de uma epistemologia histórica, atraiu tantos outros grandes pensadores
como Kuhn, Canguilhem, Bachelard, Foucault etc. Se Fleck não foi compreendido como um
filósofo da ciência, muito menos o foi como filósofo estrito senso. Na realidade, a própria
reflexão filosófica sobre a ciência nunca ocupou um lugar central na filosofia. Os grandes
epistemólogos não foram necessariamente considerados os mais influentes filósofos. Ainda
que não tenha sido um filósofo com uma obra muito extensa, Fleck realizou análises filosó-
ficas tão elaboradas quanto um Heidegger ou um Wittgenstein, mas infelizmente Fleck não
continuou sua obra filosófica. A afirmação da condição de Fleck como um filósofo inaugural
é, assim, complexa e indefinida. Mesmo Kuhn, o filósofo da ciência que mais teve a obra
divulgada, comentada e seguida em todos os tempos, não teria atingido para alguns o grau
de complexidade para que pudesse ser chamado de filósofo. No obituário que escreve sobre
Kuhn, Richard Rortysalienta essas questões e afirma que é preciso considerar que Kuhn não
apenas foi um filósofo, mas foi o filósofo de língua inglesa mais influente da segunda metade
do século XX {Rorty, 1996).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 67
Afirmar a historicidade da ciência como um fundamento
epistemológico é uma posição filosófica formulada por Fleck que será
herdada por Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas, e ecoará na
historiografia pós-kuhniana. Contudo, parece que ainda não extraímos de
Fleck - o próprio Kuhn, como veremos, parece que também não - tudo
que poderíamos tirar de sua perspectiva de historicidade da ciência. Ainda
precisamos aprofundar as ideias de Fleck e, a partir delas, enfrentar as
dificuldades colocadas não apenas pela epistemologia tradicional, mas
também pelos novos estudos da ciência, como o Programa Forte da esco-
la de Edimburgo ou os chamados science studies. Precisamos ainda com-
preender mais detalhadamente as implicações da tese da historicidade
da ciência frente a esses novos desafios. Sem esse aprofundamento não
iremos muito além da querela internalismo versus externalismo, realizan-
do apenas uma demarcação de programas de pesquisa. Enfim, corremos
o risco de separar definitivamente o externalismo do internalismo que
Fleck e Kuhn aproximaram com grande empenho e muitas dificuldades.
Por mais que a tarefa de demarcação seja importante, toma-se necessária
uma melhor compreensão epistemológica das imbricações entre ciência
e sociedade formuladas pioneiramente por Fleck. Mesmo que tenhamos
avançado - e certamente o trabalho de Kuhn, enquanto herdeiro de Fleck
é resultado disso-, não conseguimos ainda dirimir todas as dificuldades
56
presentes nessa questão. Talvez, um entendimento aprofundado do
pensamento de Fleck possa nos dar melhores condições de compreensão
desses desafios. Enfim, o filósofo polonês ainda parece ter um enorme
potencial na equação de questões epistemológicas contemporâneas.

3 A EPISTEMOLOGIA DO ESTILO DE PENSAMENTO E O SEU COLETIVO

As reflexões de caráter filosófico, histórico e sociológico de


Fleck sobre a natureza da ciência e de sua história foram publicadas, em

56 Como veremos no capítulo três, o próprio Kuhn não conseguiu efetivamente equilibrar essa
relação entre ciência e sociedade frente às posições do Programa Forte de Bloor.

681 MAU'° Lúao LurÃO CON°'


1935, em seu livro Entstehung und Entwicklung einer wissenscha~lichen
Tatsache: Einführung in die Lehre vom Denkstil und Denkkol/ektiv (Gênese
e desenvolvimento de um fato científico: introdução à doutrina do estilo
de pensamento e do coletivo de pensamento), bem como em mais alguns
57
poucos artigos. O livro de Fleck tem certamente uma história tão sin-
58
gular quanto a de seu próprio autor. Durante a ocupação nazista da
Polônia na segunda guerra mundial, como judeus, Fleck e sua família
foram enviados a campos de concentração, e os nazistas o obrigam a
trabalhar em uma vacina contra o tifo. Embora ele, seu filho e sua espo-
sa tenham conseguido sobreviver, 59 sofreram as muitas consequências
desse trágico e traumático fato.
Porém, ainda que a guerra tenha dificultado a divulgação do
trabalho de Fleck, ela não foi a única forte razão para sua obra não ser
conhecida. Seu livro não teve uma recepção merecida à época por dife-
rentes razões, mas, principalmente, pela originalidade das ideias contidas
nele em um cenário epistemológico pouco propício a recebê-las. Tendo
circulado precariamente e, sobretudo, entre os profissionais da área
60
médica, até ser "encontrado" por Kuhn, o livro de Fleck não recebeu
nenhuma atenção mais significativa de filósofos ou historiadores da ciên-

57 Esses artigos originalmente publicados em diferentes periódicos em polonês ou alemão foram


republicados em alemão (Schãfer, Schnelle, 1983) e em inglês (Cohen, Schnelle, 1986). São
eles: "Algumas características específicas do modo médico de pensar" (1927); "Sobre a crise da
'realidade"' (1929); "Observação científica e percepção em geral" (1935); "O problema de uma
teoria do conhecimento" (1936); "Problemas da ciência da ciência" (1946); "Olhar, ver e saber''
(1947); e "Crise na ciência" (1960), sendo que este último permaneceu inédito até 1983. Essa
lista foi republicada após ser ampliada com mais uma dúzia de artigos científicos de Fleck que se
mostraram importantes para a compreensão do seu pensamento filosófico (Wemer, Zittel, 2011 ).
58 Latour refere-se ao livro como a baleia branca Moby Dick, que aparece, depois submerge
para emergir de tempo em tempo, ver Latour (2008, p. 251). Para uma história do processo
editorial do livro de Fleck, ver Graf (2009).
59 Existe um documentário sobre esse episódio, feito em 1992 pela BBC de Londres.
60 Kuhn soube da existêr:cia do livro de Fleck em uma nota de Experienceand prediction (1938, P·
224) do filósofo neopositivista Hans Reichenbach (Kuhn, 1977, viii)-livro no qual Reichenbach
formulou a sua conhecida distinção entre o "contexto da descoberta" versus o "contexto da
justificativa". O autor de A estrutura das revoluções científicas relata que ficou entusiasmado
ao encontrar a referência e disse: "se alguém escreveu um livro com esse título, eu tenho
de lê-lo!" (Kuhn, 2000, p. 342). Para Kuhn, era surpreendente que um fato tivesse um "de-
senvolvimento" (Kuhn, 2000, p. 342). A biblioteca de Harvard tinha um exemplar, comprado
em 1936, que Kuhn consultou de imediato.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da clência 69
eia. Considerado superficialmente, o livro foi compreendido apenas como
mais um "estudo de caso" de uma doença - a sífilis - aparentemente
com poucos atrativos para sua história. Soma-se a isto o fato de Fleck
nunca ter abandonado a ciência para abraçar uma carreira especifica-
mente voltada para a história e filosofia da ciência, como muitos outros
epistemólogos de igual envergadura fizeram (Popper, Kuhn, Feyerabend
etc.), ainda que, hoje sabemos, Fleck tenha feito algum esforço nesse
sentido {Graf, 2009).
Ao ser publicado, em 1935, seu livro não teve apresentação,
trazia apenas um pequeno prefácio de uma página e meia do próprio
autor. Isso simbolicamente refletia seu isolamento, já que ele não dialo-
gava diretamente com o Círculo de Viena, propositor da epistemologia
dominante à época e alvo de algumas contundentes críticas de Fleck.
Embora tenha buscado junto a um dos principais representantes do
neopositivismo, Moritz Schlick, um apoio para a publicação de seu
61
livro - apoio esse que não veio na resposta de Schlick62 - , Fleck não
interagia diretamente, usando um de seus conceitos, com o "coletivo
de pensamento" (Denkkollektiv) representado pelo neopositivismo do
63
Círculo de Viena, uma vez que esse não se mostrava preocupado em
pensar aspectos históricos e sociais da ciência. Mesmo as preocupações
de Zilsel com os aspectos sociais da ciência se desenvolveram apenas
posteriormente, quando de sua imigração para os Estados Unidos da
América. Assim, em grande medida, esse isolamento ocorreu porque
Fleck, naquele momento, para continuar utilizando seus conceitos,

61 Conforme correspondência entre Fleck e Schlick datada de 05 de setembro de 1933, na qual


Fleck solicitava a Schlick auxílio para encontrar um editor disposto a publicar seu livro, cujo
título Inicial era Die Analyse einer wissenscha~fichen Tatsache: Versuch einer vergleichenden
Erkenntnistheorie (A análise Ge um fato cientifico: ensaio de um uma teoria do conhecimento
comparada), ver Werner, Zittel (2011, p. 561-562).
62 Schlick respondeu a Fleck mais de seis meses depois, em 16 de março de 1934, desculpando-se
pelo longo atraso, dizendo que tinha interesse pela temática, mas relatando as dificuldades de
publicação e informando, enfim, que não teria como ajudá-lo, verWemer, Zittel (2011, p. 562-563).
63 Fleck passou o ano de 1927 estudando medicina em Viena no Instituto Governamental de
Soroterapia, estando assim mais próximo da atmosfera do Círculo de Viena. Nesse mesmo
ano, também inicia sua carreira de epistemólogo, publicando o artigo "Algumas características
específicas do modo médico de pensar''.

MAURO LúCJO LEITÃO CONDt


lançava as "pré-ideias" (Praideen) ou as "protoideias" (Urideen) de um
novo "estilo de pensamento" (Denksti/)64 que viria a se desenvolver,
efetivamente, cerca de três décadas mais tarde, quando os aspectos
históricos e sociais passaram a ganhar importância para a compreensão
da ciência. Fleck identifica protoideias, a exemplo das de átomo ou sífilis,
como ideias que surgem remotamente e são transformadas ao longo do
tempo ao serem retomadas por diferentes estilos de pensamento. Com
efeito, a protoideia fleckiana de que a ciência tem um forte componente
histórico e social frutificará apenas a partir do estilo de pensamento dos
anos 1960.
Muito densa e complexa, a obra de Fleck tem uma arquitetura
de exposição relativamente simples. Gênese e o desenvolvimento de um
fato científico possui apenas quatro capítulos ao longo dos quais o autor
procura mostrar que o fato científico não é propriamente algo simples-
mente dado, mas algo que, para além de uma descrição do empírico, se
estabelece e se desenvolve através de um complexo processo de inte-
rações sociais ao longo de muito tempo. Portanto, fatores históricos e
sociais estão na base de todo e qualquer fato científico. Antecipando-se
a Kuhn, 65 Fleck foi um dos primeiros autores a perceber essa dimensão
psicológica, social e histórica que envolve a ciência. Para ele, a ciência é
colocada em termos de uma atividade coletiva, isto é, constitui-se em uma
comunidade de praticantes, tanto em seus aspectos teóricos quanto nos

64 Embora Fleck tenha dado a essa expressão uma conceituação filosófica própria, ela teria sido
usada primeiramente por Mannheim, em 1925, verTrenn (1979, xv). Éinteressante ainda notar
que Camap - alvo das críticas de Fleck ao neopositivismo -, no prefácio à primeira edição do
seu livro Der logischeAufbau der Welt (A construção lógica do mundo), em 1928, ao caracterizar
a mudança no modo de se fazer filosofia, trazida pelo Círculo de Viena, utiliza a expressão
Denkstil, tão cara a Fleck. Ao esclarecer o que muda na nova filosofia da ciência, salienta Car-
nap, "essa nova atitude muda não apenas o estilo de pensamento (DenkstiQ, mas também a
tarefa" da filosofia {Carnap, 1961 [1928], xix). Como mencionado no capítulo um, não é menos
interessante a utilização da expressão "estilo de pensamento" por Alexandre Koyré. Em seu
texto de 1930, "La pensée modeme", posteriormente presente em seu livro Étude d'histoire de
la pensée scientifique, Koyré utiliza a expressão "estilo" para caracterizar o que ele chama de
Zeitgeist da modernidade ou o "estilo de nossa época" utilizando, por fim, a própria expressão
"style de pensée" (estilo de pensamento) {Koyré, 1973 [1966], p.18).
65 Para uma aproximação entre Kuhn e Fleck mostrando semelhanças e distanciamentos, ver
Condé (2005).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 71
práticos. Entretanto, ela é mais que isso. Éuma atividade que se processa
no bojo das relações sociais que envolvem o científico e o não científico.
Embora, em última instância, os critérios de científicidade sejam legiti-
mados no interior da ciência, eles são também, em medidas variáveis,
influenciados por atividades fora da ciência. Como percebe Fleck - e
depois Kuhn - esse é um ponto central no problema da historicidade da
ciência. A separação entre o que é a natureza e o que é a cultura não é
tão nítida assim como pretendeu a distinção de Reichenbach.
Para desenvolver sua teoria da ciência, como mencionado,
Fleck escolhe narrar a história da sífilis para mostrar como se estabeleceu
o moderno entendimento dessa doença em seus aspectos históricos,
desde finais do século quinze até a chamada "reação de Wassermann",
descoberta no início do século XX. Diferentes épocas e contextos elabo-
raram explicações variadas para a doença. Para Fleck, o que hoje chama-
mos "sífilis" foi compreendido de forma distinta em diferentes coletivos
de pensamento - ou comunidades científicas situadas historicamente
- , que produziram as teorias e as práticas científicas pelas quais foram
determinados os problemas e o modo como foram percebidos. Assim
Fleck nos apresenta os conceitos de estilo de pensamento e coletivo de
pensamento.

Se definirmos o "coletivo de pensamento" como a comuni-


dade das pessoas que trocam pensamentos ou se encontram
numa situação de influência recíproca de pensamentos,
temos, em cada uma dessas pessoas, um portador do de-
senvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um
determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um
estilo específico de pensamento (Fleck, 2010 [1935], p. 82).

Uma comunidade científica define, assim, seu estilo de pen-


samento, isto é, sua capacidade de perceber os problemas e articular
soluções a partir dos valores e práticas que definem o "sistema de
referência" (Bezugssystem) no qual esse estilo de pensamento é criado.
Podemos, portanto, definir o estilo de pensamento como
percepção direcionada em conjunção com o processamento cor-
respondente no plano mental e objetivo. Esse estilo é marcado
por características comuns: dos problemas, que interessam a
um coletivo de pensamento; dos julgamentos, que considera
como evidentes, e dos métodos, que aplica como meios do
conhecimento. Éacompanhado, eventualmente, por um estilo
técnico e literário do sistema do saber (Fleck, 2010 [1935], p.
149, destaque do autor).

Entre o sujeito e o objeto da teoria do conhecimento tradicio-


nal, para Fleck, interpõe-se a comunidade científica- coletivo de pensa-
mento - que irá desempenhar um papel extremamente importante na
constituição do conhecimento. "Por isso, o processo de conhecimento
não é o processo individual de uma 'consciência em si' teórica; é o resul-
tado de uma atividade social, uma vez que o respectivo estado do saber
ultrapassa os limites dados a um indivíduo" (Fleck, 2010 [1935], p. 81-82).
Portanto, um fato nunca pode ser algo como uma pura descrição que
o sujeito, isoladamente, faz de seu objeto, mas é visto por um coletivo
de pensamento a partir de um estilo de pensamento. "Fazendo parte
de uma comunidade, o estilo coletivo de pensamento passa por um
fortalecimento social" (Fleck, 2010 [1935], p. 150). É nesse sentido que
um conceito, urna teoria ou um fato nunca é algo isolado, mas "existe
um vínculo no estilo de todos - ou muitos - conceitos de uma época,
vínculo que consiste em sua influência mútua. Por isso, pode-se falar
num estilo de pensamento que determina o estilo de todo conceito"
(Fleck, 2010 [1935], p. 49). Em síntese, o pensamento coletivo - com
seu estilo de pensamento - orienta o que deve ser pesquisado, isto é, o
que se constitui como problema para os cientistas, fornecendo, assim,
o suporte e o sistema de referência (Bezugssystem) para a produção do
conhecimento científico.
Com essa perspectiva, Fleck posiciona-se de modo contrário
à epistemologia predominante à época, isto é, a do Círculo de Viena,
segundo a qual os dados observacionais descritos pelas sentenças

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 73
protocolares remetem-nos à positividade do fato como critério de obje-
tividade, independente dos aspectos sociais e históricos (Condé, 1995).
A partir de sua perspectiva epistemológica, Fleck direciona sua crítica a
Carnap desejando que o filósofo neopositivista "descubra finalmente o
condicionamento social do pensamento. Somente então ele se livrará do
absolutismo das normas de pensamento, tendo que abrir mão, eviden-
temente, da 'ciência unificada"' (Fleck, 2010 (1935], p.141).
O neopositivismo de Carnap e do Círculo de Viena, também
conhecido como positivismo lógico ou ainda empirismo lógico, estrutu-
rou sua epistemologia a partir de dois postulados básicos: (1) afirmação
da empiria ou positividade dos fatos e a (2) crença de que uma rigorosa
linguagem lógica, possibilitada pela lógica matemática, conduziria o
conhecimento por um caminho seguro a partir da empiria. Fleck não
apenas critica a ideia de um fato puro - visto que nossa percepção
sempre é condicionada socialmente -, mas também não acredita que a
linguagem lógica usada para a compreensão da ciência consiga realizar
as intenções neopositivistas. Fleck reconhece o importante papel da
linguagem, mas a linguagem da ciência estaria muito mais próxima da
linguagem cotidiana do que propriamente de algum tipo de teoria lógica
66
da linguagem, como postulado por Carnap. Seria uma ilusão acreditar
que a lógica poderia depurar a linguagem de seus aspectos sociais. Salien-
ta Fleck, "já na estrutura da linguagem reside uma filosofia imperiosa da
comunidade, já numa única palavra se encontram teorias emaranhadas.
A quem pertencem essas filosofias, a quem pertencem essas teorias?"
(Fleck, 2010 (1935], p. 85). A linguagem lógica supostamente pura, pre-
tendida pelo neopositivismo, desviaria a atenção da linguagem cotidiana
e seu importante papel nas práticas científicas, nas instituições, enfim,
nos próprios conceitos científicos. A historicidade da ciência também se
transmite pela linguagem. Alerta-nos Fleck:

66 Para uma análise da função da linguagem para o neopositivismo, ver o conhecido artigo de
Carnap "A superação da metafísica através de uma análise lógica da linguagem" (Carnap,
2009 [19321). Para uma análise da crítica de Fleck à concepção de linguagem de Camap, ver
Nogueira (2012).

MAURO LÚCIO LEITÃO CONDÉ


Querendo ou não, não conseguimos deixar para trás o passa-
do- com todos os seus erros. Ele continua vivo nos conceitos
herdados, nas abordagens de problemas, nas doutrinas das
escolas, na vida cotidiana, na linguagem e nas instituições.
Não existe geração espontânea (Generatio spontanea) dos
conceitos; eles são, por assim dizer, determinados pelos seus
ancestrais (Fleck, 2010 (1935], p. 61).

Enfim, linguagem e fatos, para Fleck, se processam de um


modo inteiramente diferente do que pretendeu o neopositivismo. Assim
ele destaca o papel ativo da linguagem na própria objetivação:

A objetivação se divide em algumas etapas: começa com a


referência a outros pesquisadores e ao percurso histórico de
um problema, para despersonalizá-lo; introduz nomes espe-
cíficos: termos técnicos; acrescentam-se signos particulares
e, eventualmente, toda uma linguagem particular de signos,
como é usada na química, na matemática ou na lógica. Essa
linguagem, alheia à linguagem humana, garante o significado
fixo dos conceitos e os torna sem evolução, absolutos (Fleck,
2010 (1935], 200).

Aquilo que nos parece fixo, objetivo e absoluto, na realidade,


passa por um longo processo de evolução social e linguística. Essa ideia
de evolução mostra a filiação de Fleck a uma perspectiva darwinista, isto
é, ele transpõe para a epistemologia a concepção de evolução. O desen-
volvimento científico é visto de modo análogo à evolução darwinista: "A
biologia me ensinou a examinar uma área submetida à evolução sempre
em sua história evolutiva" (Fleck, 2010 [1935], p. 62). A ciência tem uma
evolução e nesse processo suas transformações são muito mais "muta-
ções" do que propriamente revoluções. O conhecimento evolui de um
estilo de pensamento a outro, havendo assim "mutações do estilo de
pensamento" (Fleck, 2010 [1935], p. 67). Podemos mesmo ver em um de-
terminado estilo de pensamento os remanescentes de um antigo estilo,
da mesma forma que também um estilo de pensamento pode conter as

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema do historicidade do ciência 75
protoideias (Urideen) que prefiguram futuras ideias, conceitos e teorias
de um novo estilo de pensamento que ainda surgirá.
Com efeito, negando o postulado neopositivista de afirmação
da positividade dos fatos, Fleck sustenta o desenvolvimento - evolução -
de um fato científico a partir do condicionamento social do pensamento
e nos mostra que, contrariamente ao que postulava o Círculo de Viena,
"falta o factual, o fixo: as coisas podem ser vistas de uma maneira ou
outra, quase de maneira arbitrária. Falta o chão, a coerção, a resistência,
o 'solo firme dos fatos 111 (Fleck, 2010 [1935], p. 142). O fato é uma cons-
trução social e linguística do pensamento coletivo.

Assim nasce o fato: primeiro um sinal de resistência no pensa-


mento inicial caótico, depois certa coerção de pensamento e,
finalmente, uma forma (Gestalt) a ser percebida de maneira
imediata. Ele sempre é um acontecimento que decorre das
relações na história do pensamento, sempre é resultado de
um determinado estilo de pensamento (Fleck, 2010 [1935],
p. 144-145).

A Gestalt é importante na formação do coletivo de pensamento


porque cabe a ela dar forma ao resultado produzido pelas interações
ocorridas no interior desse coletivo. Embora não haja propriamente
uma observação sem pressupostos, para Fleck, pode-se estabelecer
uma escala entre uma visão vaga e uma visão plenamente desenvolvida
como uma Gestalt. Essa Gestalt do cientista é adquirida pela experiência
e pelo treino.

A percepção da forma (Gestaltsehen) imediata exige experiên-


cia (Erfahrensein) numa determinada área do pensamento:
somente após muitas vivências, talvez após uma formação
prévia, adquire-se a capacidade de perceber, de maneira
imediata, um sentido, uma forma e uma unidade fechada.
Evidentemente, perde-se, ao mesmo tempo, a capacidade de
ver aquilo que contradiz a forma (Gestalt ). Mas essa disposição
à percepção direcionada é a parte mais importante do estilo
de pensamento (Fleck, 2010 [1935], p.142).

Vemos o mundo a partir de nosso estilo de pensamento, e a


Gestalt da alteridade ou do outro estilo de pensamento impede-nos de
ver algo que contradiga nossa própria Gestalt. Como consequência, há
uma luta dos pontos de vista (Fleck, 2010 [1935], p. 142). No entanto,
diferentemente do modo radical pelo qual Kuhn utilizará o conceito de
Gestalt em A estrutura das revoluções científicas, em Fleck essa rivalidade
entre os campos visuais de pensamento não parece ser um processo
absolutamente incomensurável. Se a Gestalt nos impede de ver o que o
outro vê im~diatamente a partir dos pressupostos alheios (Fleck, 2010
[1935], p.188), não significa dizer que impede radicalmente a compreen-
são de outra Gestalt, de outro estilo de pensamento.

4 A HISTORICIDADE DA CIÊNCIA EM FLECK

Pelo que foi abordado até aqui, percebemos que o que carac-
teriza a ideia de historicidade da ciência em Fleck é o fato de, para ele, a
ciência ser um produto social que se dá no tempo, portanto, constitui-
se como um fenômeno histórico. Para caracterizar a historicidade da
ciência, no entanto, ele não usa a expressão "historicidade", mas uma
série de outras expressões ligadas à ideia da produção do conhecimento
científico como um fenômeno histórico. Deste modo, ao longo do livro,
ele faz referências ao conhecimento científico usando expressões tais
como: "história", "histórico", "condicionamento cultural e histórico",
"história do pensamento", "história do saber", "desenvolvimento histó-
rico", "vínculos históricos", "história do conceito", "relações históricas",
"contexto das ideias históricas" etc. Enfim, um conjunto de expressões
para caracterizar que "a experiência especificamente científica decorre
de condições particulares, histórica e socialmente dadas" (Fleck, 2010
[1935], p. 110 ).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 77
A partir do ambiente social, a ciência se desenvolve, e apenas
o desenvolvimento histórico motivará as "mutações do estilo de pen-
samento" (Fleck, 2010 [1935], p. 67) ou consolidará as permanências.
Neste processo histórico da ciência, para Fleck, "muitas teorias atra-
vessam, por exemplo, duas épocas: uma clássica durante a qual há um
acentuado acordo, e então uma segunda fase durante a qual as exceções
67
começam a aparecer" (Fleck, 2010 [1935], p. 49). Portanto, mudanças
frequentemente ocorrem nessas zonas de turbulências. Para uma his-
tória da ciência de perspectiva sociológica é importante sustentar que
grandes transformações no estilo de pensamento, isto é, importantes
descobertas e ou invenções ocorrem durante esses períodos de confusão
social geral. Tais "períodos de inquietação" revelam a rivalidade entre
as opiniões, diferenças entre pontos de vista, contradições, falta de cla-
reza e a impossibilidade de perceber diretamente uma forma (Gestalt)
ou sentido (Sinn). Um novo estilo de pensamento nasce de tal situação
(Fleck, 2010 [1935], p.144-145). Estenovoestilodepensamentonãoape-
nas surge desse embate social, mas condicionará a leitura dos futuros
posicionamentos da ciência. Com efeito, para Fleck,

até a observação mais simples é condicionada pelo estilo


de pensamento, ou seja, vincul,ada a uma comunidade de
pensamento. Por esse motivo, chamamos o pensamento de
atividade social por excelência, que, de modo algum, pode
ser localizada completamente dentro dos limites do indivíduo
(Fleck, 2010 [1935], p.149).

A história do conhecimento - e aqui podemos incluir a de


uma ciência, uma teoria científica, uma instituição científica, ou ainda
qualquer corporação que tenha como objetivo produzir e disseminar

67 Essa citação parece ser retirada de um dos capítulos de Aestrutura das revoluções científicas
na qual Kuhn trabalha a ideia de ciência normal/revolução científica. Para Kuhn, como veremos
no próximo capítulo, a ciência normal desenvolve o que foi estabelecido pelo paradigma até
que apareçam anomalias e instaura-se uma crise que conduzirá à mudança de paradigma etc.
(Kuhn, 1970 [1962], esp. capítulos de li a IV).

781 MAURO lÚCIO LEITÃO CONDt


conhecimentos, como escolas, universidades, associações científicas,
liceus de artes e ofícios, guildas etc., - apenas pode efetivamente ser
compreendida através da inter-relação que se estabelece entre o modo
de produzir o conhecimento (epistemologia) e o processo histórico no
qual esse conhecimento está inserido em um dado contexto histórico
e social {história e sociologia). Portanto, o aspecto epistemológico está
indelevelmente articulado ao aspecto histórico e social. Com efeito, con-
clui FI eck, "qual quer teoria do conhecimento sem estudos históricos ou
comparados permaneceria um jogo de palavras vazio, uma epistemologia
imaginária (epistemologiaimaginabilis)" (Fleck, 2010 [1935], p. 62). Se a
produção de conhecimento é essencialmente um processo histórico, não
é suficiente compreender os mecanismos de produção de conhecimento
por eles mesmos, mas torna-se necessário também conhecer o processo
histórico em que tais conhecimentos se desenvolveram. É a história de
um saber em seu contexto social que nos mostra a singularidade desse
saber. Portanto, para Fleck, devemos entender por conhecimento a arti-
culação coletiva e sistemática de elementos como informações, práticas,
processos e dados empíricos. Assim, gerar conhecimento é a capacidade
de articular ou rearticular esses elementos ou ainda a capacidade de in-
serir novos elementos nesse processo, relacionando-os em um "sistema
de referência" e conferindo-lhes uma forma (Gesta/t).
E é exatamente esse conjunto de conhecimentos produzidos
por um coletivo de pensamento ou uma comunidade em um determinado
tempo histórico que Fleck chamou de estilo de pensamento. Diferentes
configurações históricas produzem, deste modo, diferentes estilos de
pensamento. Um estilo de pensamento é algo que não apenas reúne o
grupo em torno de um objetivo, mas imprime a marca do grupo. Ele se
constitui como um modelo teórico e operativo para todos que entram
nesse grupo. Desta forma, a ideia de pertencimento ao coletivo - har-
monia das ilusões {Fleck, 2010 [1935], p. 70 )- não é apenas algo abstrato
marcado pelo pensamento, mas se estabelece a partir das práticas, ações
e orientações desse grupo. Portanto, aderir a um estilo de pensamento
não significa apenas "pensar" o coletivo de pensamento, mas também

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


Oproblema da historicidade da ciência 79
"atuar" de modo semelhante ao modo como este coletivo atua. Da
mesma forma que há uma articulação intrínseca entre epistemologia e
história, também estão imbricados o coletivo de pensamento e o estilo de
pensamento. Novamente,é nesse sentido que um estilo de pensamento
apenas surge a partir de um coletivo de pensamento com suas práticas,
ações e pensamentos engendrados em um específico tempo histórico.
Um coletivo de pensámento se configura como um todo orga-
nizado - um conjunto que mostra para todos o que está dentro e o que
está fora dele, residindo aí sua imensa força de coesão do grupo-, no qual
seu estilo de pensamento é uma espécie de "propriedade emergente",
isto é, algo que "emerge" na somatória das partes, mas que não existe
nas partes isoladamente. Portanto, enquanto uma propriedade emergen-
te, o estilo de pensamento é a resultante da somatória das interações
dos múltiplos e variados pensamentos, ações e práticas perpetradas, de
forma ordenada (Gestaltsehen), pelos diferentes membros desse coletivo
de pensamento. Com efeito, para identificar o que seja um estilo de pen-
samento, mais que compreendê-lo em seu conjunto, torna-se necessário
compreendê-lo em filigrana, isto é, é necessário compreender o processo
de constituição de sua tessitura (não apenas ver o tecido pronto). Esse
processo se dá não simplesmente na identificação das linhas mestras que
compõem esse tecido, mas também no próprio processo temporal de
tessitura, isto é, na compreensão histórica da trama dos conceitos que
orientaram as práticas formadoras do estilo de pensamento. Embora a
expressão "estilo de pensamento" possa dar a entender alguma hege-
monia do pensamento sobre a ação - de modo semelhante ao primado
da teoria sobre a prática postulado por Koyré -, em Fleck essa dicotomia
não existe. Teoria e prática acontecem simultaneamente. O estilo de
pensamento também é um "estilo de ação". A união de pensamento
e ação caracteriza a singularidade de um tempo histórico. Diferentes
interpretações (teorias) e decisões (ações) são tomadas em um singular
tempo histórico, caracterizando seu estilo de pensamento.
Com isso, estamos assumindo que a efetiva teoria do conhe-
cimento de um coletivo de pensamento não é algo que antecede a sua

80 1 MAURO Lúao LDTÃO C0ND!


prática ou o seu fazer, mas algo que tem a sua "gênese" em sua prática
para iluminar a sua própria prática (tendo um crescimento exponencial,
interno ao coletivo), ainda que diferentes pontos de origens (ou pro-
toideias) possam ser identificados. É tecendo que se cria a tessitura; é
produzindo conhecimento que se cria um estilo de pensamento cientí-
fico. Ainda que outras teorias de outros coletivos de pensamento sejam
trazidas ou perpassadas, elas apenas terão sentido se articuladas com
as práticas e teorias geradas pelo próprio coletivo de pensamento. Pois
essa tessitura marca a sua própria singularidade, construída na interação
dessas práticas e ideias em um dado tempo histórico.
Devido à sua porosidade intrínseca, um estilo de pensamento
não se apresenta propriamente como "incomensurável" com outros -
como acreditou Kuhn a propósito da sua noção de paradigma. Ainda que
essa incomensurabilidade possa ser uma possibilidade extrema, o que
ocorre, na maioria dos casos, é uma dificuldade de comunicação entre
estilos de pensamento muito diferentes. Para o autor de Gênese e desen-
volvimento de um fato científico, a incomensurabilidade seria, assim, essa
dificuldade de comunicação e não propriamente uma impermeabilidade
entre diferentes estilos de pensamentos. Segundo Fleck, existe uma
gradativa mutação no estilo de pensamento (Fleck, 2010 [1935], p. 67),
pois entre diferentes estilos de pensamento sempre permanece algo.
Como salienta, "provavelmente, poucos conceitos novos se formam
sem qualquer relação com estilos de pensamento anteriores" (Fleck,
2010 [1935], p. 150). Portanto, sempre é possível existir laços históricos
no conhecimento. Talvez a incomensurabilidade absoluta seja um mito.
Ao conceber o conhecimento a partir dessa dimensão da his-
toricidade, a epistemologia de Fleck ganha tons que o diferenciam das
epistemologias tradicionais. A questão da objetividade do conhecimento,
um problema central da epistemologia, tomada por esse enfoque da
historicidade, por exemplo, é vista de um modo totalmente inovador.
Diferentemente da tradição, em especial do Círculo de Viena, Fleck conce-
berá a relação entre o sujeito e o objeto como algo que é permeado por
um terceiro elemento, o coletivo ou o social: "Pelo menos três quartos,

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 81
talvez a totalidade, do conteúdo das ciências são condicionados e po-
dem ser explicados pela história do pensamento, pela psicologia e pela
sociologia do pensamento" (Fleck, 2010 [1935], p. 62). O que permite a
Fleck concluir que: "Por isso, o processo de conhecimento não é o pro-
cesso individual de uma 'consciência em si' teórica; é o resultado de uma
atividade social, uma vez que o respectivo estado do saber ultrapassa os
limites dados a um indivíduo" (Fleck, 2010 [1935], p. 81-82).
Ao dar ênfase ao coletivo ou ao social como elemento mediador
e estruturador do conhecimento, Fleck destitui a ideia tradicional de cons-
tituição de categorias com as quais o sujeito (transcendental ou não) en-
quadra o objeto. A partir desse quadro de referência social que transcende
o sujeito singular, uma vez que o coletivo fala em um único homem (Fleck,
2010 [1935], p. 90 ), Fleck compreende a relação entre o sujeito e o objeto
como "acoplamentos". "Acoplamento ativo" para a ênfase do sujeito e
"acoplamento passivo" para a ênfase no objeto. Em outras palavras, na
concepção fleckiniana de "acoplamento ativo" evidencia-se a capacidade
de o homem produzir, enquanto ser social, os ordenamentos dos objetos
68
(acoplamentos passivos). Com efeito, para Fleck, mais do que descrever
a natureza, o homem, enquanto ser social, interfere nesse processo. Para
ele, "observar, conhecer é sempre testar e assim literalmente mudar o
objeto de investigação" (Reck, 1986 [1929], p. 53).
Acoplamento é, portanto, interação dinâmica entre o homem,
enquanto coletivo, e o mundo. Com essa concepção de acoplamento
ativo Fleck procura superar a tradicional dicotomia entre objetivo e
subjetivo. Enquanto construtor do conhecimento, o cientista promove
os acoplamentos ativos que articulam os acoplamentos passivos. Ainda
que o objetivo principal da ciência seja produzir o máximo possível de

68 Daston e Galison salientam que, vindo de seus cognatos do latim, com Duns Scotus e Guilher-
me de Ockham, a palavra "objetividade", que surgiu posterionnente dentro deste contexto,
possuía sentido contrário ao que atribuímos hoje. "'Objetividade' referia-se às coisas enquanto
presentes na consciência, ao passo que 'subjetividade' referia-se às coisas nelas mesmas"
(Daston; Galison, 2007, p. 29). Em certo sentido, ao denominar de acoplamento "ativo" o
papel do homem em contraposição ao acoplamento "passivo" do empírico, Fleck retoma o
conceito de objetividade em suas origens.

821 MAURO Lúao LEITÃO CONDt


acoplamentos passivos (Schãffer; Schnelle, 2010, p. 23)- ou de realidade
objetiva, em termos tradicionais - o homem possui papel relevante nesse
processo (acoplamento ativo).

Conhecer, portanto, significa, em primeiro lugar, constatar


os resultados inevitáveis sob determinadas condições dadas.
Estas condições correspondem aos acoplamentos ativos,
formando a parte coletiva do conhecimento. Os resultados
inevitáveis equivalem aos acoplamentos passivos, formando
aquilo que é percebido como realidade objetiva. O ato de
constatação compete ao indivíduo (Fleck, 2010, [1935], p. 83).

Enfim, para Fleck, o conhecimento é, antes de qualquer coisa,


um ato social. "O processo de conhecimento representa a atividade
humana que mais depende das condições sociais, e o conhecimento é o
produto social por excelência" (Fleck, 2010 [1935], p. 85). Infelizmente,
essa tese de Fleck enfrentará grandes dificuldades para se impor. Entre
as principais razões que dificultaram a disseminação de ideias como
as apresentadas em Gênese e desenvolvimento de um fato científico,
talvez, a formulação de Reichenbach da distinção entre o "contexto
da descoberta" versus o "contexto da justificativa" tenha sido a mais
contundente. Segundo essa distinção, fatores históricos e sociológicos
como elencados por Fleck poderiam até ter alguma relevância para a
"descoberta" do conhecimento científico, mas apenas a própria ciência
com seus postulados teóricos, experimentais e metodológicos, em últi-
ma instância, daria as "justificativas" desse conhecimento. Pensada por
Reichenbach, alguns anos antes, no contexto do neopositivismo, essa
distinção será disseminada a partir de seu livro Experience and prediction
(1938), publicado apenas três anos após a obra de Fleck. Ela atravessará
décadas relegando ao segundo plano a perspectiva sociológica do co-
nhecimento defendida por autores como Fleck, Mannheim, Ourkheim
etc. Apenas a partir dos anos 1960 com Kuhn - e posteriormente com
o Programa Forte - é que a distinção de Reichenbach será questionada
com maior vigor frente ao enfraquecimento das teses neopositivistas e

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 83
uma nova retomada dos aspectos históricos e sociais na construção da
ciência. O livro de Reichenbach, em certo sentido, sufocou as ideias de
Fleck, mas, por outro lado, ironicamente, fez ressurgir essas ideias, já que
foi no mesmo livro de Reichenbach que Kuhn soube da existência da obra
magna de Fleck. A tese da dimensão social e histórica do conhecimento
científico será a grande herança que Fleck deixará para Kuhn, ainda que
o autor de A estrutura das revoluções científicas não tenha dado a ela
todo desenvolvimento que ela pudesse alcançar.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, vimos que, embora Fleck não tenha usado a


expressão "historicidade da ciência", ele propõe a tese da historicidade
da ciência, isto é, a ideia de que o resultado final do conhecimento cien-
tífico sofre grande influência do contexto social e histórico no qual se
realiza. O autor de Gênese e desenvolvimento de um fato científico constrói
assim uma perspectiva epistemológica na qual a história da ciência, a
sociologia da ciência, além dos próprios aspectos científicos, tornam-se
essenciais para a compreensão da produção da ciência. Contudo, ainda
que tenha formulado ideias muito inovadoras para a sua época e seu
contexto, a epistemologia de Fleck não foi (re) conhecida antes de sua
morte. Apenas após o início dos anos 1960, a obra de Fleck entra na cena
da historiografia da ciência. Na medida em que seu trabalho estava muito
avançado em relação à problemática do externalismo versus intemalismo,
é lamentável que sua obra não tivesse sido conhecida entre os anos 1930
e 1960. Fleck muito contribuiria para resolver essa querela. Com efeito,
Fleck foi um tipo de elo perdido. Entretanto, ao ser redescoberto tardia-
mente ainda assim muito ajudou na compreensão do processo social e
histórico na produção do conhecimento científico. O pensamento de
Fleck constituirá, dessa forma, uma importante herança para Kuhn, que
irá consolidar a ideia de historicidade da ciência reafirmando "um papel
para a história" na formação da ciência. No próximo capítulo, portanto,
abordarei a obra de Kuhn.

841 MAURO Lúao UITÃo CoNDI


CAPÍTULO 3
"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA":
HISTORICIDADE VERSUS RELATIVISMO
EM THOMAS KUHN

Se a História fosse vista como um repositório para algo


mais do que anedotas ou cronologias, poderia
produzir uma transformação decisiva na imagem de
ciência que atualmente nos domina.
Thomas Kuhn

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

_fleste capítulo, analiso a importante contribuição de Kuhn para a


consolidação da ideia de historicidade da ciência, as dificuldades por
ele superadas, bem como os novos impasses surgidos a partir de suas
propostas. Historicidade seria necessariamente sinônimo de relativismo?
É o que parece pressupor a velha máxima de que "a verdade é filha do
tempo" quando colocada diante da ideia de inexorabilidade das leis da
natureza. Permanência e mudança na história: como conciliar essas ideias
antagônicas presentes na cultura ocidental desde seus primórdios? Assim,
aqui o propósito é compreender como Kuhn consolida a "nova imagem da
ciência", afirmando a historicidade da ciência, não exatamente propondo
uma "solução" definitiva para esse antigo impasse, mas mostrando que,
necessariamente, a história da ciência tem que lidar com essa "tensão
essencial" entre natureza e cultura. A nova imagem da ciência tem que
enfrentar, de um lado, os perigos do relativismo extremo e, de outro, o
do positivismo ingênuo.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 85
No início de sua trajetória, Kuhn recebe a crítica de ser relati-
vista ao postular a ideia de historicidade da ciência, isto é, ao defender
"um papel para a história" da ciência muito mais relevante do que a
mera descrição realizada pela tradicional história da ciência, ele estaria
encapsulando o conhecimento nos limites do paradigma, mas, para seus
críticos, a ciência sendo algo universal, não poderia estar restrita aos
limites de um contexto histórico singular. Essa crítica seria pertinente?
Ironicamente, em um segundo momento, é o próprio Kuhn quem critica
alguns dos excessos na compreensão da historicidade da ciência, quando
a interpretação socioconstrutivista diminui a importância da natureza e
exacerba os aspectos sociais, conduzindo, assim, ao relativismo. Para
compreender como a ideia de historicidade na obra de Kuhn oscilou
entre esses dois momentos, após analisar em linhas gerais A estrutura
das revoluções científicas, abordarei, inicialmente, alguns aspectos da (1)
contraposição da história da ciência de Kuhn com a filosofia da ciência de
Popper, no célebre debate Kuhn versus Popper de 1965. Posteriormente,
analisarei as (2) críticas de Kuhn à sociologia do conhecimento científico
do Programa Forte de Bloor, no início dos anos 1990. Por fim, (3) abor-
darei as dificuldades de Kuhn na solução dos novos impasses trazidos
pela historicidade da ciência. Dificuldades essas que o fazem retornar às
suas fontes de inspiração iniciais: Fleck e Wittgenstein.
Lançado em 1962, A estrutura das revoluções científicas, de Tho-
mas Kuhn (1922-1996) foi, sem dúvida, o livro de história da ciência mais
impactante de todos os tempos. Com essa singular obra, Kuhn trouxe
uma importante contribuição para o entendimento do funcionamento
da ciência. Diferentemente de outros grandes filósofos e historiadores
da ciência, a importância de Kuhn para o pensamento contemporâneo
ultrapassou em muito a filosofia e a história da ciência. Ele teve grande
influência em quase todas as áreas de conhecimento e até mesmo no
cotidiano das pessoas, quando elas usam a expressão "mudança de
paradigma", na acepção kuhniana, sem sequer saberem que paradigma
é um conceito forjado pelo pensador norte-americano. O livro de Kuhn
se tornou um dos maiores best-sellers acadêmicos de todos os tempos.

861 MAURO Lúoo LETÃO CON"'


Até o final do século XX, já tinham sido vendidas mais de um milhão de
cópias, traduzidas para mais de vinte línguas. Também na passagem para
o século XXI, figurou absoluto em todas as listas - nacionais e estrangei-
ras - dos livros mais influentes na formação do século XX.
Além de sua grande importância para a epistemologia, Kuhn
teve relevância não apenas no desenvolvimento teórico e metodológi-
co da disciplina história da ciência, mas também na estruturação desse
campo de pesquisa. Ele liderou grupos de pesquisa e associações para o
desenvolvimento dessa área de conhecimento plural e diversa chamada
história da ciência. Com a sua influência, Kuhn consolidou o entendimento
de que para compreendermos efetivamente a ciência, temos que levar
em conta seus aspectos históricos, sociológicos, filosóficos, além dos
científicos. Enfim, ele disseminou com maestria a ideia de historicidade da
ciência, ainda que não tenha sido o primeiro a formular tal ideia- mérito
69
que coube ao livro de Fleck.
Vindo de uma formação em física, ao iniciar sua carreira na
história da ciência, 7° Kuhn encontrou como problemática central na his-
toriografia da ciência o debate internalismo versus externalismo. Como
mencionado no capítulo um, em seu artigo-verbete de 1968, "A história
da ciência", para a lnternational Encyclopedia of the Social Science, ele

69 Para semelhanças e diferenças entre Kuhn e Fleck, ver Condé (2005). Já em A estrutura das
revoluções científicas existiam se11elhanças e divergências entre as direções tomadas pelos
dois autores. Parte considerável das divergências talvez se devesse ao fato de eles serem
provenientes de comunidades de historiadores da ciência muito distintas. As influências de
Fleck (darwinismo, escola polonesa de filosofia da medicina, sociologia do conhecimento,
crítica ao positivismo lógico) demarcam posições bastante diferentes das defendidas pela
comunidade de historiadores da ciência da qual Kuhn é proveniente (A. Koyré, H. Butterfield,
A. R. Hall, 1. B. Cohen etc.). A tradição em que Kuhn se Insere foi marcada pela Ideia de que o
desenvolvimento da ciência se faz por descontinuidade, isto é, através de revoluções cientí~cas.
Fleck passa ao largo dessa ideia e entende, a partir dos conceitos de estilo de pensamento e
coletivo de pensamento, que o desenvolvimento científico deve ser visto como um processo
contínuo em termos darwinistas, assim, a ciência tem uma "evolução" que se processa a
partir de uma "mutação" (Fleck, 2010 [1935], p. 67) e não uma "revolução", como em Kuhn.
Entretanto, em seus últimos textos, ao propor a ideia de "mutações revolucionárias", Kuhn
caminha em direção a Fleck, isto é, as divergências que restaram tendem a se tomar conver-
gências, aproximando ainda mais Kuhn de Fleck.
70 Para uma análise do ambiente histórico e da política científica no contexto de produção das
ideias de Kuhn, ver Wener, Zittel{2013).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 87
dedica boa parte de suas reflexões à abordagem dessa questão. Em
certo aspecto, o debate internalismo versus externalismo já pavimentara
o caminho de Kuhn, que acreditava em uma complementaridade das
duas posições. Assim, alguns anos antes desse artigo, já em A estrutura
das revoluções científicas, de 1962, Kuhn procurava, em certa medida,
uma conciliação dessas duas abordagens e, de algum modo, conseguiu
71
responder aos interesses dos dois lados do debate.
Embora a obra magna de Kuhn não tenha sido a primeira a ten-
tar, mais que uma junção metodológica, uma conexão epistemológica 72
entre esses dois entendimentos do funcionamento da ciência, o impacto
de A estrutura das revoluções científicas foi extraordinário e, consequen-
temente, tornou-se o livro que mais disseminou a pré-ideia fleckiana de
historicidade da ciência, ainda que Kuhn tenha retrabalhado essa ideia em
seu novo contexto. Mesmo com essa forte referência de Fleck,73 certa-
mente, a tarefa de Kuhn não era nada fácil diante de um cenário em que
as abordagens intemalistas e externa listas não se cruzavam. Se, por um
lado, o conhecimento fosse compreendido como um produto social que
nos permitisse realizar" descobertas" de novos fatos científicos, por outro
lado, em última instância, essas descobertas seriam legitimadas apenas

71 Embora, por um lado, A estrutura das revoluções cient{'ficas tenha sido uma grande referência
para o desenvolvimento das abordagens sociais da ciência, por outro lado, também agradou
muito aos cientistas, historiadores da ciência de orientação intemalista e mesmo aos filó-
sofos neopositivistas. Segundo Kuhn, Koyré teria lido A estrutura das revoluções científicas
pouco antes de falecer e enviou-lhe uma carta elogiando o livro e dizendo que Kuhn teria
conseguido aproximar a história interna e a história exterm da ciência que se encontravam
separadas (Kuhn, 2000, p. 345). Camap, talvez a principcl referência do neopositivismo,
ficou entusiasmado com o livro de Kuhn, do qual foi o parecerista, exatamente para uma
publicação organizada pelo movimento neopositivista em solo norte-americano. O Irônico
é que o livro de Kuhn, com concepções nitidamente contrárias ao ideal neoposltivlsta, foi o
segundo volume do projeto neopositivista da enciclopédia da ciência unificada.
72 Kuhn salienta que por razões de espaço não tratou em profundidade as questões filosóficas
em seu livro (Kuhn, 1998 [1962], p.15). Contudo, ainda que a filosofia possa não ser o tema
central - cabendo essa função à história da ciência - o livro de Kuhn está cercado de filosofia
por todas as partes, isto é, pressupõe filosofia e implica filo;ofia.
73 Nos três momentos nos quais se refere a Fleck, Kuhn reconhece sua dívida com ele (Kuhn,
1998 [1962], p.11; 1979, p. vii-xi; 2000, p. 283), mas não precisou a extensão dessa dívida. De
qualquer modo, ao reler o livro de Fleck, já em sua edição norte-americana, ainda se diz muito
impressionado com o que o autor de Gênese e desenvolvimento de um fato cientí'fico já tinha
desenvolvido, em especial com relação à questão dos manuais na ciência (Kuhn, 1979).

881 MAURO Lllao l<ITÃO COHo!


pelas "justificativas" estabelecidas pela própria ciência, isto é, por teorias,
experimentos e metodologias científicas e de modo inteiramente indepen-
dente dos contextos sociais. Assim, o "contexto de descoberta" versus
o "contexto de justificativa" de um conhecimento, como formulado pelo
filósofo neopositivista Hans Reichenbach (1938), parecia impor um rígido
divisor de águas epistemológico entre as duas tradições historiográficas
da ciência. Se religião, arte, política e cultura pudessem ser formatadas
pelo contexto social, parecia que a ciência, enquanto um discurso sobre
a natureza, jamais se renderia ao social. A objetividade das leis naturais
se imporia sobe:anamente ao social, e o historiador da ciência jamais po-
deria fugir dessa realidade. Contudo, Kuhn mostrará que essa distinção
não é tão clara assim quando procuramos ter um quadro mais detalhado
do funcionamento da ciência. Uma explicação pormenorizada de como
funciona a produção do conhecimento científico parecia ter que levar em
consideração a forte conexão entre os dois lados dessa divisão, ainda que
a dificuldade dessa tarefa de transitar entre esses dois polos deixasse certo
ar de confusão. Afirma Kuhn no início de seu livro:

Muitas de minhas generalizações dizem respeito à sociologia


ou à psicologia social dos cientistas. Ainda assim, pelo menos
algumas das minhas conclusões pertencem tradicionalmente
à Lógica ou à Epistemologia. Pode até mesmo parecer que
( ... ) eu tenha violado a muito influente distinção contempo-
rânea entre o "contexto da descoberta" e o "contexto da
justificativa". Pode algo mais do que profunda confusão estar
indicado nessa mescla de diversas áreas de interesse? (Kuhn,
74
1998 [ 1962] , p. 28).

74 Essa posição de Kuhn foi vista como imprecisão por alguns ou ainda como falta de demarcação
rígida entre o cientifico e o não científico. Estabelecer "critérios de demarcação" foi um ponto
importante para a epistemologia neopositivista do Círculo de Viena e, posteriormente, para
Popper. Se, por um lado, a obra magna de Kuhn foi um forte impulso para o crescimento das
abordagens extemalistas ou sociais da ciência, por outro, Kuhn declarará nunca terfeito pro-
priamente uma história externa - ainda que se preocupasse com essa discussão intemalismo
versus extemalismo (Kuhn, 2000, p. 288). Mais que mostrar uma ambiguidade, o esforço de
Kuhn é demonstrar o caráter movediço do limite entre o intemalismo e o extemalismo, bem
como a necessidade de considerar os dois lados.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 89
Embora a "conciliação" proposta por Kuhn não tenha propria-
mente conseguido solucionar esse impasse como um todo, ele mudou
o rumo do debate quando mostrou, na esteira de Fleck, que aquilo que
o cientista percebe (Gesta/t) da natureza, isto é, sua visão de mundo,
é condicionado pela comunidade científica. Com efeito, por mais que
se estabeleçam critérios "objetivos" de cientificidade, esses sempre
serão criados a partir da comunidade científica e, assim, condicionados
socialmente, uma vez que essa comunidade está inserida na sociedade.
E, para Kuhn, o limite exato dessa separação entre o que é social e o
75
que é científico seria algo incerto. Mesmo não solucionando o debate
internalismo versus externalismo em todas as suas dimensões, Kuhn
encontrou nessa problemática um fértil terreno para abraçar a ideia de
historicidade da ciência. Se até então essas duas tradições não se conec-
tavam, com A estrutura das revoluções científicas surgiu a possibilidade
de aproximação entre elas. Kuhn salientou assim o objetivo de seu livro
"esboçar um conceito de ciência bastante diverso que pode emergir dos
registros históricos da própria atividade de pesquisa" (Kuhn, 1998 [1962],
p. 20). Com isso, ele apresentou de modo emblemático "um papel para
a história" na compreensão da ciência, impondo, deste modo, a ideia de
76
historicidade da ciência. Em outras palavras, com o grande impacto que
o livro de Kuhn alcançou, não apenas a ciência passaria definitivamente
a ser vista como portadora de uma história, mas essa história passaria a
ser considerada como fundamental no entendimento da própria ciência.
A estrutura das revoluções científicas é um livro formado por
treze capítulos - e, a partir da segunda edição, de 1970, inclui o impor-

75 Apesar dessa dificuldade, Kuhnsempre procurou o equilíbrio entre a natureza e o social, ainda
que esse não tenha sido o entendimento de muitos de seus seguidores, que radicalizaram
essa dimensão social na compreensão da ciência, conduzindo o conhecimento científico a
um relativismo.
76 Apesar de acentuar a importância de Fleck em diferentes momentos de seus textos, ao
fazer um balanço da epistemologia no século XX, Hacking atribui a Kuhn o ponto da virada
para essa perspectiva histórica que caracterizará a "nova imagem da ciência". Mais que
seus antecessores, Kuhn introduz definitivamente a dimensão da história nas discussões
epistemológicas {Hacking, 1983).

MAURO Lúao LEITÃO CONDÉ


tante posfácio assinado em 1969. 77 Sempre na trilha de Fleck no que
tange a "sociologia da comunidade científica" (Kuhn, 1998 [1962], p.
11), Kuhn parte da ideia de que a ciência é um empreendimento pro-
duzido não por um cientista solitário, mas essencialmente por uma
comunidade científica. O conjunto das ideias e práticas científicas dessa
comunidade caracterizará o que ele chamou de paradigma. Paradigmas
são "realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante
algum tempo, fornecem problemas e soluções para uma comunidade
78
de praticantes de uma ciência" (Kuhn, 1998 [1962], p.13). Mudanças
e desenvolvimentos na ciência ocorrem quando um paradigma vigente
não mais consegue acomodar novos fenômenos, isto é, não consegue
mais explicá-los, predizê-los, quantificá-los, relacioná-los a outros
fenômenos previamente conhecidos etc. Em um complexo processo,
antigas ideias, práticas e teorias científicas são substituídas por outras
mais adequadas e eficazes na solução do novo problema apresentado
(Kuhn, 1998 [1962], p. 126).
O aparecimento de novos problemas que são equacionados
apenas por novas propostas fora do paradigma vigente caracteriza o que
Kuhn chamou de uma revolução científica ou mudança de paradigma.
Exemplificando com a história da física - mas estendendo às demais
ciências - relata Kuhn que "essas transformações de paradigmas da
Óptica Física são revoluções científicas e a transição sucessiva de um
paradigma a outro, por meio de uma revolução, é o padrão usual de de-

77 Aedição norte-americana conta a introdução como um capítulo. A edição brasileira não conta
a introdução como o primeiro capítulo, sendo assim composta: introdução, doze capítulos e
posfácio.
78 Essa é uma definição de paradigma, mas o próprio Kuhn reconhece que, ao longo do livro,
várias outras são apresentadas, tomando esse conceito polissêmico. Para uma crítica dessa
polissemia, ver Masterman (1970). Em seu posfácio, Kuhn retrabalhará o conceito de para-
digma reduzindo-o a duas categorias principais: (1) sociológica; (2) realizações exemplares
(Kuhn, 1970 [1962], 175). Essa segunda divisão está mais próxima de Fleck. Poderíamos
equiparar o conceito de paradigma kuhniano na sua acepção sociológica à noção de estilo de
pensamento. Fleck reserva a palavra paradigma para algo muito próximo à segunda acepção
de Kuhn, ao entender um experimento como "paradigma de muitas descobertas" (Fleck,
2010 [1935], p. 123). Contudo, Kuhn não ficará satisfeito com a sua noção de paradigma, ainda
que reconsiderada, e gradativamente a substituirá pela noção de léxico.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 91
senvolvimento da ciência amadurecida" (Kuhn, 1998 (1962], p. 32).Após
a mudança de paradigma, o cientista tem uma perspectiva inteiramente
nova sobre o problema científico a enfrentar: "após uma revolução, os
cientistas reagem a um mundo diferente" (Kuhn, 1998 [1962], p. 146).
Já no interior do novo paradigma, todos os problemas científicos são
analisados e resolvidos por essa nova "visão de mundo" ou Gesta/t
do cientista. Uma vez consolidada a revolução, a partir da percepção
(Gestalt) possibilitada pelo paradigma instalado, segue-se o que Kuhn
chama de "ciência normal", na qual todos os problemas são tratados
minuciosamente como resolução de quebra-cabeças (puzzles), isto é, a
partir das regras e princípios par2digmáticos preestabelecidos, busca-se
solucionar os problemas apresentados pela natureza e assim, da mes-
ma forma que não podemos recortar uma peça de um quebra-cabeça
para forçar seu encaixe, não podemos subverter a regra do paradigma
para resolver o quebra-cabeça imposto pela natureza. Esse processo
se mantém até que novos problemas - quebra-cabeças insolúveis pelo
paradigma - desafiem outra vez esse paradigma e haja outra revolução
científica ou mudança de paradigma.
Assim se cumpre, para Kuhn, o roteiro de desenvolvimento da
ciência: ela sempre opera dentro de um paradigma; uma vez esgotadas
as possibilidades desse paradigma em resolver novos problemas, pelo
trabalho da ciência normal, instaura-se um momento de crise que con-
duz ao surgimento de novas ideias contrárias ao paradigma vigente; há
competição entre teorias divergentes e finalmente uma se mostra mais
eficaz, conduzindo à revolução com o consequente abandono da teoria
antiga. A consumação dessa revolução caracteriza uma mudança de pa-
radigma ou revolução científica. Surge, assim, um novo paradigma. Mais
que isso, a revolução científica mostra como os paradigmas operam em
"mundos diferentes", levando Kuhn a assinalar, assim, a incomensurabi-
lidade entre os diferentes paradigmas (Kuhn, 1998 [1962], p.146). Este
último conceito trará muitos problemas para Kuhn, uma vez que para
muitos a incomensurabilidade passará a ser entendida como sinônimo

921 MAuRO U)ao 1.STÃO COND'


de relativismo, já que cada comunidade percebe o mundo do seu modo,
pelas lentes específicas de seu paradigma. 79
Nos trinta anos que se seguiram à publicação de seu seminal
livro, Kuhn não apenas respondeu às críticas de ser relativista, mas rea-
valiou os limites e impasses de sua teoria da ciência e procurou criar uma
nova teoria que respondesse satisfatoriamente a todos os problemas
surgidos com A estrutura das revoluções científicas. Embora jamais tenha
concluído uma segunda versão definitiva, ele deixou inúmeras pistas do
que seria essa nova teoria, construída em uma perspectiva "evolucionis-
ta" - mais uma vez, a possível influência de Fleck -, na qual natureza e
cultura se equilibram. Entretanto, a julgar pela erudição e refinamento
dos escritos que Kuhn deixou na trilha desse seu novo entendimento da
ciência, mesmo que tivesse finalizado sua nova teoria, essa dificilmente
teria alcançado o impacto das ideias contidas em A estrutura das revolu-
ções científicas, sobretudo devido ao caráter didático e pedagógico de
sua obra magna, que apresentou uma compreensão do comportamento
da ciência a milhares de pessoas, efetivando, assim, a ideia de "um papel
para a história" na compreensão da ciência.

2 ROMANTISMO VERSUS ILUMINISMO: O DEBATE ENTRE KUHN E POPPER

Ao abordar um tema central como a ciência com boas ideias,


clareza didática e muita força argumentativa, o livro de Kuhn teve um
impacto extraordinário. 80 Ao ressaltar a importância da história para o
entendimento efetivo da ciência, Kuhn não apenas alavancou o desen-
volvimento das abordagens sociais da ciência, mas chamou a atenção das

79 Na realidade, a noção de incomensurabilidade comportou ainda outros aspectos como a


incomensurabilidade metodológica e semântica. Kuhn nunca abandonou inteiramente essa
noção e passou a concentrar sua posição na dimensão semântica. Anos depois de A estrutura
das revoluções cient(ficas, ele a qualificará como incomensurabilidade local declarando que
"a afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é mais modesta do que supuseram
muitos de seus críticos" (Kuhn, 2006, p. 51).
80 Fuller nos lembra que o título do livro de Kuhn é composto por palavras que tiveram imenso
impacto nos anos 1950 e 1960: estrutura, revolução e ciência (Fuller, 2000).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 93
epistemologias opostas à sua concepção histórica de ciência. A estrutura
das revoluções científicas logo se polarizou com a principal perspectiva
epistemológica daquele contexto, que era representada não propriamen-
te por uma concepção de história da ciência internalista, mas por uma
filosofia da ciência pouco comprometida com a ideia de que pressupostos
sociais e históricos fossem determinantes no entendimento da ciência:
a epistemologia de Sir Karl Popper.
Três anos antes da publicação do livro de Kuhn, em 1959, viera
a público a tradução para o inglês da monumental obra The logic of scien-
tific discovery, 81 do eminente pensador austríaco radicado na Inglaterra.
Proveniente do movimento do Círculo de Viena, Popper se tornou um
dissidente propondo o "racionalismo crítico" como uma epistemologia
alternativa ao neopositivismo. No entanto, herdou dessa tradição empi-
rista a valorização da questão da demarcação entre ciência e não ciência,
como preconizado na orientação geral do movimento neopositivista e
estipulado pela separação entre o "contexto de descoberta" e o "con-
texto de justificativa" de Reichenbach. Ainda que fosse um dissidente,
contraposto à abordagem histórica de Kuhn, o autor de A lógica da pes-
quisa científica continuava muito mais próximo das tradições empirista
e racionalista para as quais aspectos históricos seriam secundários no
entendimento da ciência. Desta forma, o debate que se estabeleceu entre
a história da ciência de Kuhn e a filosofia da ciência de Popper, em alguma
medida, foi uma continuidade do debate internalismo versus externalis-
mo na ciência. Nesse sentido, a oposição entre Kuhn e Popper deve ser
entendida muito mais como a confrontação entre duas tradições do que
propriamente entre as filosofias de dois autores singulares.
Para o racionalismo crítico de Popper, o principal objetivo da
ciência deveria ser o de resolver problemas genuínos e não "resolver

81 Publicada, em 1935, com o título de Logik der Forschung. Em português, recebeu o título de
A lógica da pesquisa cientifica. Curiosamente, essa obra aparece na referência bibliográfica do
livro de Fleck, Gênese e desenvolv:mento de um fato científico. Entretanto, Popper não é citado
ao longo do livro. Fleck teve muito pouco tempo para analisar a obra popperiana, já que seu
livro foi publicado no mesmo anc. Fleck conheceu Popper no fim dos anos 1950 na Inglaterra,
quando os dois passaram uma ta·de conversando (Schnelle, Klingberg, 2009, p. 21).

941 MAURO lÚCIO LEITÃO CONDt


quebra-cabeças 11 • O conhecimento avança por meio dos problemas
apresentados e das tentativas para resolvê-los. Diferentemente dos
neopositivistas, que afirmavam a positividade dos fatos como parâmetro
da construção do conhecimento, Popper se coloca contra o primado
da pura observação. Segundo sua filosofia, não se constrói a ciência
diretamente do dado bruto da observação, e as próprias teorias a par-
tir das quais observamos os fatos - primado da teoria - são seletivas.
Todavia, mesmo sendo dissidente do Círculo de Viena, a compreensão
da hegemonia da teoria sobre os fatos jamais conduziu Popper a uma
forte valorização das práticas sociais na construção do conhecimento.
Para o racionalismo crítico popperiano, aspectos históricos e sociais são
importantes para compreender a ciência, mas uma boa epistemologia
deveria evitar tanto o relativismo da institucionalização do conhecimento
quanto o dogmatismo das epistemologias tradicionais que postulavam
um fundamento último na experiência.
Com efeito, para Popper, toma-se necessária uma requalificação
do que entendemos por experiência, já que não podemos afirmar ingenua-
mente a base do conhecimento a partir dos dados empíricos. Com esse
intuito, o filósofo austríaco analisa a lógica indutiva subjacente ao método
experimental. Ele aceita a crítica da indução feita por Hume, mas no lugar
de ter uma atitude cética quanto às reais possibilidades da indução, termina
por substituir a indução pela ideia de "falseabilidade". Salienta Popper, "na
minha visão não existe tal coisa como a indução. Assim, inferências para
teorias, a partir de proposições que são 'verificadas pela experiência' (seja
lá o que isso possa significar), é algo logicamente inadmissível. Portanto,
teorias nunca são empiricamente verificáveis" (Popper, 1992 [1935], p. 18).
Abandonando o critério de verificação empírica adotado pelos neopositivis-
tas como parâmetro basilar, Popper propõe a ideia de que uma teoria deve
ser considerada científica apenas se ela for refutável por certos eventos.
Portanto, o principal procedimento em ciência não seria a verificação em-
pírica de uma teoria. Efetivamente, testamos uma teoria científica apenas
quando tentamos refutá-la ou falsificá-la. Um contra-exemplo falsifica uma
teoria. Se uma teoria nunca se deixa falsificar, então, ela não é científica

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 95
( exemplos: psicanálise, marxismo). Conclui o pensador austríaco que, para
sabermos o que é ciência e o que não é ciência, não será "a verificabilidade,
mas a falseabilidade (fasifiability) de um sistema que deve ser tomada como
critério de demarcação" (Popper, 1992 [1935], p.18).
Em A estrutura das revoluções científicas, Kuhn observa a
restrição popperiana à ideia de verificação e critica o conceito de falsea-
bilidade proposto pelo autor de A lógica da pesquisa científica. Relata o
pensador norte-americano:

Uma abordagem muito diferente de todo esse conjunto de


problemas foi desenvolvida por Karl Popper, que nega a exis-
tência de qualquer procedimento de verificação. Ao invés disso,
enfatiza a importância da falsificação (falsification), isto é, do
teste que, em vista de seu resultado negativo, toma inevitável a
rejeição de uma teoria estabelecida. O papel que Popper atribui
a falsificação assemelha-se muito ao que este ensaio confere as
experiências anômalas, isto é, experiências que, ao evocarem
crises, preparam caminho para uma nova teoria. Não obstante,
as experiências anômalas não podem ser identificadas com as
experiências de falsificação. Na verdade, duvido muito de que
essas últimas existam (Kuhn, 1998 [1962], p.186).

Contudo, a contraposição entre as ideias de Kuhn e Popper se


deveu muito mais ao que cada um representava para suas respectivas
tradições do que propriamente a essa pequena crítica muito pontual à
filosofia popperiana. Tendo em vista contrastar essas duas tradições,
os colaboradores de Popper organizaram um simpósio com a presença
dos dois eminentes pensadores. À época, Popper aos 63 anos, em plena
maturidade intelectual, era o principal filósofo da ciência do século XX.
Kuhn, aos 43 anos, tinha sido lançado recentemente à notoriedade com
82
o grande alcance de seu livro. Não sem muitas negociações, o simpósio

82 Segundo Gattei, que além de uma análise teórica reafiza uma descrição detalhada da preparação
do simpósio e das negociações de bastidores para sua realização, Kuhn chegou a desistir de ir,
tendo revisto sua decisão apenas após um telefonema de Popper (Gattel, 2008, p. 37-72).

MAURO Lúao LEITÃO CONDÉ


ocorreu, em 1965, em Londres. Alguns anos depois de sua realização, foi
publicado como livro com o título Criticism and the growth of knowledge.
O livro contava com as diferentes contribuições dos presentes ao sim-
pósio e convidados que não puderam comparecer ao evento, além das
respostas de Kuhn a seus críticos (Lakatos, Musgrave, 1970).83
Não é meu objetivo aqui realizar uma abordagem pormenori-
zada de cada argumento dos dois lados do debate, mas mostrar as linhas
gerais dessas tradições antagônicas: a perspectiva kuhniana, que afirma
a historicidade da ciência, por um lado, e a popperiana, que se opõe à
aceitação de fatores históricos como determinantes na construção da
ciência, por outro lado. Ainda que buscasse contrapor cada argumento
das duas tradições ou dos dois paradigmas, para usar uma expressão
kuhniana, talvez não lograsse muito êxito, pois, como afirma Kuhn ao se
referir à obra de Popper, "nossas intenções são muitas vezes bastante
diferentes quando dizemos a mesma coisa.( ... ) Eu chamo o que nos
84
separa de uma mudança de Gesta/t, em vez de um desentendimento"
(Kuhn, 1970b, p. 3).
Assim como em Popper, a história da ciência de Kuhn se
opunha ao empirismo. Entretanto, mais que corrigir o empirismo, para
muitos, a perspectiva trazida por Kuhn representou uma "revolta" his-
tórica contra o empirismo da filosofia da ciência das primeiras décadas
do século XX - em especial ao neopositivismo do Círculo de Viena - em
que a afirmação preponderante de critérios empíricos e racionais na
compreensão da ciência ocupava lugar central. Na direção oposta do
empirismo, a epistemologia subjacente ao livro de Kuhn - na esteira
de Fleck - mostrava, entre outras coisas, que os dados empíricos não
poderiam mais se constituir como fundamento último do conhecimento
científico. Nosso olhar para o objeto está contaminado de subjetividade
(Gestalt ). Não tem como apreender esse objeto de maneira pura, isenta

83 Além dessa publicação, existem diferentes reconstruções teóricas desse debate, por exemplo:
Bloor (1976), Hacking (1983), Fuller (2004), Gattei (2008).
84 "our fntentions are often quite different when we say the sarne thing. ( ... ) That is why I call
what separates usa gestal: switch ratherthan a disagreement".

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 97
dos valores extracientíficos. Como consequência, indo muito além do
que Popper estava disposto a assumir, para Kuhn, comunidades cien-
tíficas (subjetividades) diferentes ou diferentes períodos históricos
apreenderiam diferentes "objetividades" ao olhar para o mesmo objeto.
Caracteriza-se, assim, a historicidade da ciência. A teoria construída
no âmbito da comunidade científica falaria mais alto do que os fatos.
A verdade torna-se tributária da historicidade; dados empíricos não
poderiam mais ser compreendidos como reguladores absolutos do
conhecimento científico.
Segundo Popper, ao radicalizar suas posições, Kuhn pratica um
relativismo histórico que, ao fim e ao cabo, seria a tese tradicional do re-
lativismo. Ver o mundo na ótica do paradigma seria, ainda de acordo com
Popper, deixar-se levar pelo mito do referencial (framework). Insistir na
incomensurabilidade entre os paradigmas seria, para o pensador austría-
co, "simplesmente exagerar uma dificuldade em uma impossibilidade"
{Popper, 1970, p. 56 ), já que "uma comparação de teorias competidoras,
de referenciais diferentes, é sempre possível" {Popper, 1970, p. 57). Kuhn
responde à crítica de relativismo feita por Popper trazendo à cena a ideia
de árvore da evolução com a qual faz uma analogia do conhecimento
com a biologia. Observa Kuhn:

o desenvolvimento científico, tal como o biológico, é um pro-


cesso unidirecional e irreversível. As teorias científicas mais
recentes são melhores do que as mais antigas, no que toca a
resolução de quebra-cabeças nos contextos frequentemente
diferentes aos quais são aplicadas. Essa não é uma posição de
relativista e revela em que sentido sou um crente convicto do
progresso científico (Kuhn, 1998 [1962], p. 252-253).

Na análise do debate Popper versus Kuhn em seu livro Conheci-


mento e imaginário social, Bloor, após delinear as duas posições, conclui
que "o embate entre Popper e Kuhn representa um caso quase perfeito
da oposição entre o que pode ser chamado de ideologias iluminista e
romântica" {Bloor, 2008 [1976], p. 99). A ideologia iluminista, segundo
Bloor, seria individualista, enfatizaria a racionalidade na busca do prazer
e da diminuição da dor. Ela considera princípios gerais abstratos e é
prescritiva. O pensamento romântico, por sua vez, ainda segundo Bloor,
abraça a ideia de que nossa natureza é social. E esse social, ainda que
seja um coletivo, tem características como as de um indivíduo: estado
de espírito, tradições etc. E, por fim, conclui Bloor, "é fácil demonstrar
que Popper deve ser classificado como um pensador iluminista e Kuhn,
como um pensador romântico" (Bloor, 2008 [1976], p.102). Com efeito,
se adotarmos a leitura de Bloor, fica evidente que o consenso entre as
duas posições seria algo muito difícil de alcançar. Por mais que atribuísse
valor aos aspectos sociais e históricos, Popper jamais os aceitaria como
determinantes na construção do conhecimento científico. Por sua vez,
o arcabouço teórico de Kuhn sem a afirmação dessa posição perderia
muito de sua força explicativa.
Esse lugar teórico de onde cada autor fala parece, assim,
corroborar a ideia kuhniana de diferentes paradigmas, ou, como o pró-
prio Kuhn assinalou ao se referir à obra de Popper, um distanciamento
devido à existência de diferentes percepções (Gesta/t). Dificilmente um
lado convenceria o outro, mesmo que se acumulassem muitas e muitas
análises, argumentos persuasivos etc. Parece enfim que, nesse debate,
prevaleceu a ideia de Kuhn segundo a qual "a competição entre paradig-
mas não é o tipo de batalha que possa ser resolvida por meio de provas"
(Kuhn, 1998 [ 1962], p.188).

3 KUHN VERSUS BLOOR: AS FRAQUEZAS DO PROGRAMA FORTE

Até que ponto a ciência poderia ser uma construção social,


visto que nela a natureza ocupa um papel central? Dito de outro modo,
diferentemente de outras construções sociais como arte, política, religião
etc., a natureza não teria exatamente a função de impor limites às falsas
representações (hipóteses e teorias) que dela fazemos? Se isso é certo,
então, nossas representações da natureza dependeriam muito mais
dela própria do que de arranjos sociais, ideias e expectativas que dela

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 99
temos, enquanto seres sociais. A estrutura das revoluções científicas, ao
demarcar o caráter histórico e social acabou sendo o ponto de viragem
de toda uma geração que buscou enfatizar as questões sociais presentes
na compreensão da ciência. A forte influência da noção de paradigma
como orientador modelar das práticas científicas de uma comunidade
científica teria possibilitado o grande desenvolvimento das abordagens
socioconstrutivistas da ciência. Mais que isso, a consideração de que
diferentes paradigmas científicos são incomensuráveis conduziu essas
leituras socioconstrutivistas ao relativismo científico. Para a perspec-
tiva socioconstrutivista, o importante seria enfocar não os aspectos
da natureza, mas exatamente as práticas sociais de produção do co-
nhecimento científico que, em última instância, seriam equivalentes às
demais práticas sociais (política, religião, arte etc.), portanto, sujeitas aos
mesmos acordos ou "negociações" sociais. O entendimento das teorias
e experimentos ficaria em segundo plano em relação à centralidade da
trama social e política envolta na produção do conhecimento científico.
Não que a natureza em si deixasse de ter importância para a ciência, mas
dado que esses aspectos sociais pudessem conduzir os rumos da ciência,
apesar da importância da natureza, eles seriam centrais para a ciência.
Ainda que tenha inspirado essas correntes, Kuhn não con-
cordava com muitos de seus aspectos. Certamente, ele reconhecia a
importância dessa dimensão social na "negociação" da ciência, mas
nunca aceitou afirmá-Ia em detrimento de importantes aspectos como
teorias, experimentos e o papel da natureza. Assim, ele tecerá críticas
a essas abordagens, entendendo que elas radicalizaram as posições
defendidas em A estrutura das revoluções científicas e, muitas vezes, não
consideraram de modo devido o papel da natureza e, consequentemente,
foram conduzidas ao relativismo. Em uma longa entrevista e em mais três
textos, republicados em 2000 no livro O caminho desde a Estrutura, Kuhn
reavalia essas posições socioconstrutivistas. Estes textos são: "The road
since structure", que emprestou o nome ao livro; "Afterwords", que é
um comentário de Kuhn aos trabalhos apresentados em um colóquio
em sua homenagem no MIT em 1990, e posteriormente editado por Paul

100 \ MAURO L.olao WTÃO COND!


Horwich; "The trouble with the historical philosophy of Science", uma
conferência feita na Universidade de Harvard em 1991; e "A discussion
with Thomas Kuhn", que é a transcrição de uma entrevista concedida
em Atenas, em 1995, um ano antes do falecimento de Kuhn. Se, nos
anos 1960, as ideias de Kuhn teriam provocado certo desconforto para
a abordagem popperiana ao trazer uma visão histórica da ciência que
foi interpretada como relativista, agora, era Kuhn que tentava refrear os
desdobramentos de suas próprias ideias rumo ao relativismo. Contudo,
para Kuhn, se sua obra gerou interpretações socioconstrutivistas, então
era preciso reavaliar seu percurso para corrigir tais excessos.
Assim como existiam elementos comuns entre Popper e Kuhn
(Kuhn, 1970a, p. 1-2), também existia algo em comum entre Kuhn e a
interpretação socioconstrutivista, mas era preciso, segundo o pensador
norte-americano, reavaliar as diferenças que repousavam no modo de
entender essa "construção social da ciência". Ao invés de tentar, por
exemplo, refazer experiências, reavaliar as análises conceituais e a lógica
dos argumentos, segundo Kuhn, os historiadores e sociólogos da ciência
centraram-se em demasia em suas análises das práticas de negociação,
na construção social dos consensos científicos e na difusão das interpre-
tações da ciência. Essa grande valorização das negociações, na visão de
Kuhn, parece ter sido um fenômeno peculiar à geração que o sucedeu,
quando foi muito forte a reflexão sobre os aspectos sociais, a crítica às
autoridades e a percepção dos processos de negociação em todas as
esferas sociais e também das ciências. Relata nosso autor:

Essas são as questões centrais para o trabalho da geração que


seguiu a minha, e as principais contribuições a seu esclarecimento
não vieram da filosofia, mas de uma nova espécie de estudos
históricos e, mais especificamente, sociológicos que a obra de
minha geração ajudou a suscitar. Esses estudos trataram, de
maneira pormenorizada ao extremo, do processo corrente em
uma comunidade ou grupo científico do qual emerge, finalmente,
um consenso dominante, um processo a que essa literatura com
frequência se refere como "negociação" (Kuhn, 2006, p. 137-138).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 1O1
Para Kuhn, atribuir um papel às questões de interesse e poder
não deveria ser a prioridade ou exclusividade da história da ciência. Ainda
que negociações, autoridade e poder pudessem desempenhar importan-
tes funções na produção da ciência, esses fatores não poderiam encobrir
nossa compreensão sobre o real comportamento da natureza. Essa crítica
de Kuhn poderia se aplicar a muitos autores contemporâneos que têm
lidado com as ciências nesta abordagem social, mas ele se voltou espe-
cificamente contra o "Programa Forte da Sociologia do Conhecimento
Científico" e sua concepção de "negociação" na ciência.
O chamado Programa Forte foi elaborado por David Bloor em
seu livro Imaginário social e conhecimento, de 1976. Na realidade, Bloor
esboça seu programa alguns anos antes no artigo de 1973, "Wittgenstein
85
and Manheim on the sociology of mathematics". No cenário aberto pe-
las ideias presentes em A estrutura das revoluções científicas, o Programa
• ,.
Forte com os seus pnnc1p1os 86
procurava uma nova a bordagem para a
sociologia do conhecimento científico que avançasse para além da "socio-
logia do conhecimento" de autores como Mannheim e Durkheim (Bloor,
87
2008 [1976], 21). Para Mannheim, o nosso conhecimento do mundo é
estruturado socialmente. Conhecemos o que nossa inserção social nos _,.

permite conhecer. Se· o conhecimento é algo coletivo e social, vemos o


mundo pelos olhos das instituições sociais da religião, arte, política etc.
Contudo, diante das ciências naturais e da matemática, Mannheim acabou

85 Bloor terá em Wittgenstein una forte referência. Sobre a obra do pensador austríaco, Bloor
escreveu artigos e livros, de qJe destaco Wittgenstein: a social theory of knowledge (1983) e
Wittgenstein: rufes and institutions (1997).
86 De acordo com os princípios do Programa Forte de Bloor, a sociologia do conhecimento científico
deveria ser: 1- Causal - condições que ocasionam as crenças ou estados de conhecimento; 2- lm-
parcial - verdade x falsidade, racionalidade x irracionalidade; 3- Simétrica - os mesmos tipos de
causas deverão explicar crenças falsas e verdadeiras; 4- Reflexiva - aplicáveis à própria sociologia.
87 Nesse sentido, o Programa Forte também se diferencia da "tese de Merton", isto é, a
tradicional "sociologia da ciência" proposta por Merton em seu livro Science, technology
and society in seventeenth-century England {Merton, 2001 [19381), que tinha proposto um
entendimento sociológico da relação entre ciência e tecnologia mostrando como elas se
influenciavam mutuamente. Contudo, esse tipo de abordagem tradicional da sociologia da
ciência centrava-se em macro fatores sociais e, assim, não avançava na compreensão do papel
dos aspectos sociais nos mecanismos de produção do conhecimento. Para uma análise da
tese de Merton, ver Shapin (1988).

102 I MAURO Lúao LEITÃO CONDÉ


por refrear o uso da sociologia do conhecimento. O objetivo do Programa
Forte de Bloor é estender o uso da sociologia do conhecimento à ciência,
isto é, realizar uma sociologia do conhecimento científico. Era preciso ir
além de Mannheim, que não foi capaz de incorporar a matemática e as
ciências naturais como um legítimo objeto da sociologia do conhecimen-
to. A natureza e suas leis se impuseram à sociologia do conhecimento, que
88
interditou o seu uso para a compreensão do conhecimento científico.
89
Bloor entende que a obra do segundo Wittgenstein - em
especial sua filosofia da matemática que propõe uma compreensão
social para o funcionamento da matemática - trouxe o entendimento
que faltava à sociologia do conhecimento para fazer a ciência ser, enfim,
objeto das considerações sociológicas:

Wittgenstein tomou(...) o processo da aritmética elementar


para usar uma fórmula e mostrar a necessidade de inseri-la na
prática social padronizada. Os termos cruciais são sociológi-
cos: "o modo como nós sempre os usamos", "o modo como
somos ensinados a usá-los". Isso significa que, a partir dessa
perspectiva, cada instância de utilização de uma fórmula é o
culminar de um processo de socialização. Toda comunicação
que envolve uma fórmula é o testemunho da existência de um
90
costume, de uma prática social particular. (Bloor, 1973, p. 184)

88 Uma ilusão de Fleck foi ;,ensar que, em sua época, as demonstrações da sociologia do conheci-
mento já tinham comprovado definitivamente que ela poderia ser aplicada à ciência. A distinção de
Reichenbach que surgiu na mesma época irá relegar ao segundo plano as aspirações da sociologia
do conhecimento. Apenas cerca de três décadas depois, Kuhn trouxe novamente a discussão para
o foco da epistemologia e, na década seguinte, o Programa Forte retoma esse projeto de fazer
da sociologia do conhec·mento também uma sociologia do conhecimento científico.
89 A expressão, segundo Wlttgenstein, refere-se à filosofia de maturidade do filósofo austríaco,
caracterizada, sobretudo, por seu livro Investigações filosóficas, em oposição radical à sua
filosofia presente no Tractatus lógico-philosophicus. Este livro de juventude muito influenciou
o Círculo de Viena.
90 "Wittgenstein has ( •.. ) :aken the basic arithmetlcal process of using a formula and shown
the necessity of embedding it in standardized social practice. The crucial terms are socio-
loglcal: 'the way we always use it', 'the way we are taught to use it'. This means that, from
this perspectlve every instance of the use of a formula is the culmination of a process of
sociallzation. Every communlcation lnvolving a formula stands witness to the existence of a
custom, a particular soáal practice."

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


o problema da historicidade da ciência 1O3
Com efeito, para Bloor, a partir do segundo Wittgenstein, po-
demos achar elementos para realizar uma sociologia do conhecimento
científico, além do conhecimento artístico, religioso etc. Assim todas
essas formas de conhecimento estariam no mesmo patamar, pois "para
o sociólogo, o conhecimento é tudo aquilo que as pessoas consideram
conhecimento" (Bloor, 2008 [1976], p. 18). Aqui percebemos o caráter
social e coletivo da ideia de conhecimento do Programa Forte. Assim
como para Fleck e Kuhn, conhecimento, para Bloor, não é algo que está
abstratamente na cabeça de um indivíduo, mas aquilo que é compartilha-
do institucionalmente por um grupo de pessoas com suas ideias, crenças
e práticas. Com a valorização desses aspectos sociais na construção do
conhecimento científico, Bloor - assim como Popper, Fleck e Kuhn -
também realiza uma crítica ao empirismo:

O ponto crucial quanto ao empirismo é o seu caráter indi-


vidual. Os aspectos do conhecimento que cada um de nós
pode e deve fornecer a si próprio podem ser explicados de
maneira adequada por esse tipo de modelo. Mas quanto do
conhecimento humano e quanto da ciência são construídos
tão somente pela confiança individual na interação do mundo
com nossas capacidades animais? (Bicor, 2008 [1976]).

Uma teoria do conhecimento baseada no empirismo, como


pretendeu o neopositivismo, por exemplo, seria impossível para Bloor.
É certo que uma teoria empirista "oferece alguns tijolos, mas cala-se
quanto ao design dos vários edifícios que construímos com ela" (Bloor,
2008 [1976], p. 34). Ao avaliarmos os processos de produção do co-
nhecimento como um todo, chegamos à conclusão de que ele "é mais
bem igualado à cultura que à experiência" (Bloor, 2008 [1976], p. 33).
Portanto, para Bloor, assim como Kuhn ensinou - e antes dele Fleck - ,
não podemos negar que haja um componente social no conhecimento,
mas, diferentemente de Kuhn, para o Programa Forte, ainda que o social
não seja tudo na produção do conhecimento, uma vez que é preciso
contar com os "tijolos" fornecidos pela natureza, o social direcionará

041
1 MAURO Wao LET.., COND<
esse processo de construção do conhecimento. Bloor nos pergunta:
"a aceitação de uma teoria por um grupo social a torna verdadeira? A
única resposta a ser dada é 'não"' (Bloor, 2008 (1976], p. 73). Não existe
uma conexão necessária entre a crença de um grupo e a verdade dessa
crença. Podemos acreditar em premissas falsas. Contudo, independente
da verdade ou não desse conhecimento, uma vez que ele se torna uma
crença, para Bloor, ele orienta a visão de mundo do grupo. Continua o
autor de Conhecimento e imaginário social, "a aceitação de uma teoria
a torna o conhecimento de um grupo, ou faz que ela seja a base para
o seu entendimento e a sua adaptação ao mundo? A única resposta a
ser dada é 'sim"' (Bicor, 2008 (1976], p. 73). Enfim, para o Programa
Forte, vemos o mundo radicalmente pela ótica do social, o que torna
qualquer negociação extremamente importante na determinação do
nosso conhecimento sobre ele. Como os conhecimentos do grupo - ou
os paradigmas kuhnianos - são circunscritos às suas próprias regras
institucionais e, para o Programa Forte, tais regras são determinantes
na constituição do conhecimento, em última instância, caracteriza-se
uma perspectiva relativista. 91
A obra escrita a partir da orientação do Programa Forte que
atraiu a crítica de Kuhn foi o livro Leviathan and the Air-Pump: Hobbes,
92
Boyle and the experimental life, de Shapin e Schaffer. Este livro é muito
significativo, não apenas por ser alvo da crítica de Kuhn, mas em especial
devido ao seu extraordinário alcance, tendo se tomado um dos clássicos
da historiografia da ciência. Nele, os autores abordam a querela entre
Hobbes e Boyle sobre a existência ou não do vácuo. Em sua crítica ao
Programa Forte, Kuhn afirma que, a fim de demonstrar a teoria da
negociação na ciência, seus autores não exploram adequadamente os
aspectos metodológicos e experimentais, possíveis naquele momento,
que seriam muito importantes para orientar as discussões entre Hobbes

91 Para uma abordagem do problema de relativismo no Programa Forte, ver Hollls, Luke (1982).
92 Embora os autores definam o livro corno um "exercício de sociologia do conhecimento cien-
tífico" (Shapin, Schaffer, 1985, p. 15), em diferentes passagens eles definem a abordagem do
livro a partir da ideia de "forma de vidê" de Wittgenstein (Shapln, Schaffer, 1985, p. 18, 20, 22).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da cllncfa 105
e Boyle sobre a existência ou não do vácuo (Kuhn, 2006, p. 379-380 ). Eis
o núcleo da crítica de Kuhn ao Programa Forte:

A própria natureza, seja lá o que for isso, parece não ter papel
algum no desenvolvimento das crenças a seu respeito. Ofalar
de evidências, da racionalidade de asserções extraídas dela e
da verdade ou probabilidade dessas asserções foi visto como
simplesmente a retórica atrás da qual a parte vitoriosa esconde
seu poder. O que passa por conhecimento científico torna-se,
então, apenas a crença dos vitoriosos. Eu estou entre aqueles
que consideram absurdas as afirmações do programa forte: um
exemplo de desconstrução desvairada. E, em minha opinião,
as formulações históricas e sociológicas mais moderadas que
procuram depois substituí-lo dificilmente são mais satisfatórias.
Essas formulações mais recentes reconhecem francamente
que as observações da natureza desempenham, de fato, algum
papel no desenvolvimento científico, mas continuam, na prá·
tica, não dando informação alguma acerca desse papel - isto,
acerca do modo pelo qual a natureza entra nas negociações
que produzem crenças a seu respeito (Kuhn, 2006, p. 139).

Embora Kuhn tenha reconhecido as importantes contribuições


desse livro, ele critica, em especial, o desconhecimento ou a falta de interes-
se de Shapin e Schaffer em certos aspectos científicos do entendimento de
Boyle sobre a pressão do ar. Após observar que Boyle se refere à pressão
às vezes como pressão e às vezes como mola do ar e, vendo inconsistência
nessa alternância, Shapin eSchafferfazem dessa alternância um exemplo
de como o debate com Hobbes era de certa forma vazio, isto é, muito mais
retórico que propriamente científico. Para Kuhn, os autores não levaram
em conta que, ao tratar do ar, Boyle usava o modelo hidrostático; se eles
tivessem feito essa observação, segundo Kuhn, teriam visto que aquela
alternância no tratamento da questão não tinha nada de incompatível nem
de inconsistente de um ponto de vista científico.
Com efeito, Kuhn reavalia a necessidade de uma compreensão
mais adequada de aspectos científicos por parte de abordagens socio-

061
1 MAUl<O Lolao LETÃO CONO,
construtivistas como a proposta pelo Programa Forte e, em certo sentido,
Kuhn mostra a importância de uma abordagem internalista atenta aos
detalhes técnicos das teorias e experimentos. O pensadornorte-america-
no procura mostrar a.ssim que Boyle, mais que do que uma boa retórica,
tinha muitos motivos "racionais" para defender sua perspectiva contra
Hobbes. Esse tipo de inconsistência, para Kuhn, desacredita várias das
análises da nova historiografia da ciência (Kuhn, 2006, p. 379). É certo
que, para Kuhn, existe "negociação" na ciência em certos casos, mas em
outros ela é apenas uma metáfora e não devemos nunca desconsiderar
o papel da natureza quando fazemos história da ciência, mesmo tendo a
compreensão de que aspectos históricos são essenciais. A partir de sua
crítica, Kuhn não pretende apenas apontar os erros dessas perspectivas
socioconstrutivistas ou descartá-las, mas buscar entender as dificuldades
que elas colocavam para superar tais problemas.

O programa forte e seus descendentes foram repetidamente


rejeitados como expressões descontroladas de hostilidade à
autoridade em geral e à científica em particular. Por alguns
anos, eu próprio reagi dessa maneira. Mas penso agora que
essa avaliação apressada ignora um desafio filosófico real. Há
uma linha contínua (ou uma escorregadia ladeira contínua)
que parte das inescapáveis observações iniciais subjacentes
aos estudos microssociológicos e chega a conclusões ainda
inteiramente inaceitáveis (Kuhn, 2006, p.139).

93
Enfim, o que Kuhn está criticando não é a atribuição da
importância do social, mas o excessivo papel da negociação na ciência

93 Na segunda edição do livro de David Bloor, Conhecimento e imaginário social, publicado em


1991, o autor ao responder aos "ataques ao Programa Forte", não incluía ai a contundente
crítica de Kuhn que apenas aparece publicada no ano seguinte em " O problema com a
filosofia histórica da ciência" {Kuhn, 2006 [1992], p.133-151). Até a morte de Kuhn, Bloor não
se prontificou a defender seu Programa Forte da crítica kuhniana. Em um artigo obituário
Intitulado Conservative constructivist, Bloor limitou-se apenas a afirmar a importância de Kuhn
para a nova filosofia da ciência, em especial no que diz respeito à afirmação da dimensão
social {institucional) da ciência {Bloor, 1996).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 107
atribuído por essa escola. Ainda que Kuhn reconheça que a dificuldade
é sempre a linha tênue que separa a cultura e a natureza. 94
Vimos que Bloor, ao interpretar o debate Popper versus Kuhn,
caracteriza a posição de Kuhn como romântica em oposição à posição
iluminista de Popper. Se tomarmos essa leitura do romantismo versus
iluminismo e a aplicarmos à crítica de Kuhn ao Programa Forte, ironica-
mente, os papéis se invertem: Kuhn, com sua crítica ao Programa Forte,
passa a ser o iluminista versus a posição romântica de Bloor. Com isso,
podemos perguntar até que ponto Kuhn é distinto de Popper em suas
preocupações epistemológicas. Não necessariamente nos resultados
alcançados por suas diferentes filosofias da ciência, mas no posiciona-
mento com relação ao papel que a natureza ocupa na compreensão que
dela temos a partir das instâncias sociais e históricas.
A noção de natureza, por exemplo, desempenha segundo a
ótica de Kuhn um papel mais importante no desenvolvimento das ciên-
cias do que no de outras práticas sociais. Ainda que não desconsidere o
papel das negociações, dos interesses e do poder no desenvolvimento
cientifico, Kuhn não acredita que estes possam substituir inteiramente
as noções de evidência, razão, verdade e objetividade. Em outros ter-
mos, a perspectiva de que fatos não são descobertos, mas construídos
não significa que eles sejam inteiramente construídos em função das
negociações, interesses e forças sociais que interagem no empreen-
dimento científico, pois existem resistências naturais exteriores a tais
negociações (natureza).
Kuhn acreditava que, para compreender esses problemas
trazidos pelo Programa Forte, era necessário reavaliar as suas próprias
posições e construir uma nova teoria da ciência que levasse em consi-

94 Exatamente no mesmo ano da morte de Kuhn, 1996, Alan Sokal publicou o seu famoso
pastiche "Transgressing the boundaries: toward a transformative hermeneutics of quantum
gravity" no periódico Social Text(Sokal, 1996), iniciando um acirrado debate sobre os excessos
do relativismo, pós-modernismo, usos e abusos de conceitos científicos nas humanidades.
No ano seguinte, juntamente com Jean Brlcmont, Sokal lançará Imposturas intelectuais, um
livro com mais detalhes de sua crítica, incluindo aí o Programa Forte (Sokal, Bricmont, 2006
[1997]). Esse livro contém uma reedição do artigo de Sokal. Para uma análise da querela que
recebeu o nome de "guerra das ciências", ver Ávila (2013).

1081 MAURO Lúao LEITÃO CONDl1


deração dois aspectos importantes: (1) que a matriz de entendimento
do conhecimento é a biologia - o progresso do conhecimento é algo
que se processa em termos evolutivos-; (2) que o papel da linguagem
é fator fundamental na compreensão dos mecanismos de produção do
conhecimento. A partir desses seus posicionamentos, podemos per-
ceber que Kuhn, ao procurar dar respostas a esses antigos problemas
recolocados pela nova historiografia da ciência, acaba se reaproximando
de dois importantes pensadores que o influenciaram de modo decisivo
desde o início: Ludwik Fleck com sua matriz de conhecimento biológica
e Wittgenstein com a filosofia da linguagem.

4 EVOLUÇÃO E LINGUAGEM: ESBOÇO DE UMA TEORIA DA CIÊNCIA

Apesar do singular sucesso de A estrutura das revoluções


científicas, Kuhn nunca negou os problemas que seu livro não conseguiu
solucionar. Jamais se acomodou diante das críticas e dificuldades enfren-
tadas por sua obra magna. Ele modificou alguns conceitos (incomensura-
bilidade, revolução científica), abandonou outros (paradigma, mudança
de Gestalt da comunidade científica como um todo) e criou novos (léxico,
especiação do conhecimento)- fez tudo isso para remodelar sua teoria
da ciência diante dessas novas críticas e dificuldades. Contudo, essas
modificações não lhe pareceram satisfatórias, e ele procurou criar uma
segunda teoria da ciência em um livro que estaria escrevendo {Kuhn,
2006, p. 115,116,124,134), A pluralidade dos mundos: uma teoria evolucio-
nária da descoberta científica, mas que, infelizmente, nunca veio a lume.
No entanto, embora não tenha terminado seu livro, Kuhn nos
deixou indicativos de como ele seria por intermédio de artigos, conferên-
cias e capítulos que escreveu. Nessa sua última fase, talvez pudéssemos
identificar pistas de dois aspectos importantes para a sua nova teoria da
ciência: as ideias de evolução e linguagem. Compreendemos a importân-
cia desta perspectiva biológica, por exemplo, na epistemologia evolu-
cionária descrita em seu artigo "The road since Structure." Com relação
à linguagem, percebemos que, em sua última fase, ocupa seu interesse

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 109
progressivamente até sua morte, em 1996. Kuhn afirma, em sua longa
entrevista de 1995: "muito de minhas ideias atualmente tem a ver com
linguagem" (Kuhn, 2006, p.315).Aexpectativade Kuhn era a de que essa
sua nova teoria, a partir de uma perspectiva evolucionária e com uma
refinada teoria da linguagem, pudesse lidar de modo mais satisfatório
com as dificuldades apresentadas, por exemplo, pelo Programa Forte.
Eé exatamente ao postular as ideias centrais de evolução e linguagem
como parâmetros para encontrarmos possíveis soluções para os novos
problemas levantados pela historiografia da ciência que, de algum modo,
Kuhn retorna a duas de suas influências principais: Fleck e Wittgenstein.
No que diz respeito à influência da biologia, talvez esse tenha
sido o ponto que Kuhn menos assimilou de Fleck ao escrever A estrutura
das revoluções científicas. Podemos ver nitidamente que muitos con-
ceitos kuhnianos podem encontrar semelhanças em Fleck (paradigma,
comunidade científica, ciência normal, manuais etc.), 95 mas em sua obra
magna Kuhn não possui um modelo geral de inspiração biológica - ou,
mais especificamente, evolucionária - como o que está por trás do livro
e da tradição de Fleck. Kuhn pertence muito mais à tradição "revolucio-
nária" inaugurada por Koyré, 96 em que a emergência da ciência moderna
é vista como uma ruptura, do que à tradição "evolucionária" de Fleck
na qual a ciência sofre "mutações" {Fleck, 2010 [ 1935], p. 67) em seu
desenvolvimento. Ainda que tenha finalizado A estrutura das revoluções
científicas citando Darwin, Kuhn demorará muitos anos para perceber
a grande força explicativa de um modelo epistemológico baseado na
ideia de evolução. Ele já tinha certamente compreendido nas páginas
finais de seu livro que os resultados da evolução são "produtos de um
processo que avançava com regularidade desde um início primitivo,

95 Para uma comparação entre Kuhn e Fleck, ver Condé (2005 ).


96 Como observa Cohen (1989) em seu livro Revolución en la ciencia, a expressão "revolução
científica" aparece em quase todos os títulos dos livros dos autores dessa tradição. Kuhn
seria, assim, o ápice dessa tradição, também usando a expressão "revolução científica" no
título de sua obra magna, além, naturalmente, de ter o conceito de revolução como epicentro
em suas análises sobre a ciência. Para uma análise da ideia de revolução científica em Koyré,
Kuhn e Shapin, ver Silva (2015).

110 \ ....... I.OOo LEITÃOCONot


sem, contudo, dirigir-se a nenhum objetivo" (Kuhn, 1970 [1962], p.172) e
tinha também utilizado uma analogia entre conhecimento e biologia no
posfácio de sua magna obra, mas, como Kuhn reconhece (Kuhn, 2006,
p. 120-121), ele demorou muito a entender que essa concepção pudesse
ser efetivamente estendida para um modelo epistemológico. 97 Assim,
de modo semelhante a Fleck, Kuhn finalmente transpõe essa ideia de
evolução para a epistemologia e entende que sua nova teoria da ciência
deveria ser uma "teoria evolucionária do conhecimento", como sugere
o subtítulo do livro prometido. O conhecimento se dá por um processo
de especiação (Kuhn, 2006, p. 145-146) e não mais por mudanças de pa-
radigma como ele pensava anteriormente. Enfim, a orientação geral da
nova teoria da ciência que Kuhn estava formulando parece aproximá-lo
mais ainda de Fleck, exatamente no aspecto que ele tinha ignorado de
Gênese e desenvolvimento de um fato científico, isto é, a matriz de conhe-
cimento evolucionária de Fleck.
Com relação à importância dada à linguagem no processo de
construção do conhecimento científico, ao invés da noção de paradigma,
Kuhn, inspirado em Wittgenstein, fala então de comunidade linguística. 98
Ele cria o conceito de léxico como o campo semântico e pragmático
próprio a cada especialidade de conhecimento ou de cada comunidade
científica ( ou ainda nicho, para ficarmos com a referência biológica)
(Kuhn, 2006, p. 130). Cada novo campo desenvolve sua linguagem por
meio de um léxico próprio que estrutura suas teorias e práticas. Esse
léxico é replicado em seus departamentos, associações e periódicos
especializados. O compartilhamento de um determinado léxico constitui
a base para a conduta e a avaliação de suas pesquisas e, ao mesmo tem-
po, libera o grupo da necessidade de comunicação com outros fora do
grupo, mantendo seu isolamento de membros de outras especialidades.

97 O irônico é que, ao fazer o parecer de A estrutura das revoluções científicas, Camap perce-
beu - antes do próprio Kuhn - essa possibilidade de estender o modelo da evolução para a
epistemologia, ver Gattei (2008, p.180) e Condé (2012a, p. 314-315).
98 Para uma comparação entre Kuhn e Wittgenstein, ver Condé (2013).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da hlstorlcfdade da cfêncfa 111
A teoria do léxico de Kuhn tem muita semelhança com a filo-
sofia da linguagem de Wittgenstein. Isso pode ser percebido em muitos
usos - explícitos e implícitos - de conceitos wittgensteinianos ao longo
dos textos do primeiro, por exemplo: jogo de linguagem (Kuhn, 2006, p.
126 ), uso (Kuhn, 2006, p. 82, 87-88), semelhança de família (Kuhn, 1998
[1962], p. 70 ), forma de vida (Kuhn, 2006, p. 298,300), a linguagem como
uma técnica etc. Assim como as noções de gramática e jogos de lingua-
gem de Wittgenstein - como veremos no próximo capítulo - , para Kuhn,
"possuir um léxico, um vocabulário estruturado, é ter acesso ao conjun-
to variado de mundos que este léxico pode ser usado para descrever"
(Kuhn, 2006, p. 80). No entanto, diferentes léxicos ou mundos não mais
são necessariamente incomensuráveis, como nos fez crer A estrutura das
revoluções científicas. Agora pode haver sobreposições parciais entre os
diferentes léxicos, as diferentes comunidades científicas em uma mesma
época ou entre o presente e épocas passadas. Com efeito, Kuhn afirma
a possibilidade de entrelaçamento desses mundos:

Diferentes léxicos - os de diferentes culturas ou diferentes


períodos históricos, por exemplo - dão acesso a diferentes
conjuntos de mundos possíveis, superpondo-se em grande
parte, mas jamais por completo. Embora um léxico possa
ser enriquecido de forma que dê acesso a mundos previa-
mente acessíveis apenas por meio de outro léxico (Kuhn,
2006, p. 80-81).

Para Kuhn, por meio da linguagem poderíamos encontrar


0 mecanismo para a compreensão de diferentes mundos, isto é, para
compreender diferentes mundos é necessário compreender seus léxicos
e suas possíveis similaridades e diferenças. "Para compreender algum
corpo de crenças científicas passadas, o historiador precisa adquirir um
léxico que, aqui e ali, difere sistematicamente daquele corrente em sua
própria época" (Kuhn, 2006, p. 78). Essa perspectiva não conduziria,
necessariamente, ao relativismo, pois a diferença entre léxicos não mais
significaria a inexistência de sobreposição entre eles. O que existe são

112 \ ....... Ulao LET.., CONOO


variados graus de diferenças linguísticas. Embora haja dificuldades de
entendimento entre léxicos, isto não sig~ifica que a compreensão entre
eles seja impossível. Kuhn esclarece que, por exemplo, a proposição "os
planetas giram em torno da Terra" (Kuhn, 2006, p. 120) tem significados
muito diferentes antes e depois de Copérnico, mas isso não impede o
historiador de compreender essa diferença.
Assim, o que anteriormente para ele eram revoluções, agora
são mudanças no léxico ou diferenças entre os léxicos de diferentes
comunidades científicas. O léxico de um mundo é específico a este
mundo e não a outro, embora possa haver sobreposição com outros
mundos e seus diferentes :éxicos. Existe uma pluralidade de mundos
possíveis, como sugeriu o título do livro prometido. No entanto, se-
gundo Kuhn, essas mudanças não são criações aleatórias, mas algo
estruturado no próprio léxico com base na relação entre a linguagem e
a natureza. Na ciência, a linguagem tem um papel muito importante na
nossa compreensão do mundo, mas a natureza está sempre lá, junto
com a linguagem. Podemos nomear a natureza de forma adequada
ou não, mas isso não diminui seu papel. Gradualmente, criamos di-
ferentes léxicos para compreendê-la melhor. Com efeito, para Kuhn,
o desenvolvimento da ciência - dentro de uma área ou para novas
áreas de conhecimento - é um processo de especiação conforme o
modelo evolucionário, e ele é acompanhado pela mudança da lingua-
gem utilizada (léxico) por uma dada comunidade para expressar seu
modo de percepção da natureza.
Embora possamos perceber uma inspiração wittgensteiniana
no conceito de léxico, também há importantes pontos de divergência en-
tre o léxico de Kuhn e a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein.
Talvez a principal diferença entre os dois autores quanto à linguagem seja
a tentativa de Kuhn em "categorizar" o léxico. Em outras palavras, Kuhn
estabelece um paralelo entre o léxico e as categorias kantianas, ainda
que faça restrições a certos aspectos das categorias do autor da Crítica
da razão pura. As categorias de Kuhn não são eternas, mas condicionadas
histórica e culturalmente. Aqui, Kuhn soma a sua teoria linguística do

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


Oproblema da historicidade da ciência 113
léxico com a orientação darwiniana evolucionária de seu projeto de uma
nova teoria da ciência. Esclarece o filósofo norte-americano,

A posição que estou desenvolvendo é um tipo de kantismo


pós-daiwiniano. Como as categorias kantianas, o léxico for-
nece as precondições da experiência possível. Mas categorias
lexicais, ao contrário de suas predecessoras kantianas, podem
mudar e mudam, tanto com o passar do tempo quanto com
a passagem de uma comunidade a outra (Kuhn, 2006, p.131).

Kuhn se distancia completamente de Wittgenstein ao enfatizar


ainda mais a sua posição kantiana, dizendo que o que garante a possibi-
lidade de mudanças entre os léxicos é algum tipo de "coisa em si" (Ding
an sich) kantiana. "Subjacente a todos estes processos de diferenciação
e mudanças, precisa haver algo permanente, fixo e estável. Porém, como
a Ding an sich de Kant, esse algo é inefável, indescritível, não-analisável"
(Kuhn, 2006, p.132). No entanto, aparentemente, Kuhn tenta mitigar a
natureza metafísica das categorias kantianas e da Ding an sich dando a
elas aspectos históricos e sociais. Talvez sua antiga ideia de paradigma
fosse algo muito mais sociológico do que seu novo uso das ideias de
categorização e coisa em si, ainda que essas ideias, diferentemente de
Kant, fossem agora consideradas históricas.
Embora Kuhn pareça estar certo em atribuir às categorias
uma dimensão histórica e social, em uma perspectiva wittgensteiniana
não faz sentido, a partir dos jogos de linguagem, pensar em termos de
categorias. Como veremos no próximo capítulo, os jogos de linguagem e
a gramática seriam exatamente a tentativa de eliminar as categorias com
finalidade de "dissolver" as dicotomias tradicionais, como por exemplo,
internalismo versus externalismo. Na tradição que remonta a Aristóteles,
passando por Kant, categorizar é uma forma de dizer o que está dentro e
0 que está fora da imagem do mundo, criando, assim, dicotomias como
fato/valor, sujeito/objeto etc. A insistência de se manter categorias
ainda seria um resquício da filosofia tradicional metafísica. Ainda que as
questões que Kuhn procura resolver encontrem boas possibilidades de

1141 MAUao Ulao LSTÃO COND!


solução em suas fontes de influência, parece que ele não levou às últimas
consequências o pensamento de Wittgenstein e Fleck.
Esse conjunto de questões que perpassa a obra de Fleck e
Wittgenstein povoava o pensamento de Kuhn quando da sua tentativa
de resolver os problemas surgidos com suas ideias iniciais formuladas
em A estrutura das revoluções científicas. Ele não apenas se voltou para
Fleck e Wittgenstein buscando novas inspirações, mas chegou mesmo
a unir os dois autores em um mesmo texto, o prefácio da edição nor-
te-americana do livro de Fleck, em 1979. Ele afirma que a tentativa de
Fleck de resolver os problemas do coletivo de pensamento com seus
"elementos ativos e passivos do conhecimento" (acoplamentos ativos
e passivos, segundo Fleck) não seria satisfatória porque esses também
seriam termos tomados de empréstimos da psicologia individual (1979,
p. xi). Anos mais tarde, Kuhn ainda pensa da mesma forma, "nunca me
senti de modo algum confortável, e ainda não me sinto, com o 'coletivo
de pensamento' [ de Fleck]. Sem dúvida, era um grupo, uma vez que era
coletivo, mas o modelo [ de Fleck para isso] eram a mente e o indivíduo"
(Kuhn, 2006, p. 342). Pelo que vimos no capítulo dois, essa interpretação
de Kuhn não parece ser coerente com a obra do pensador polonês (Fleck,
2010 [ 1935], p. 90 ). Ao estabelecer o social como o fundamento a partir
de onde engendramos nossos conhecimentos e ações, Fleck entende a
ciência, antes de qualquer coisa, como um ato social. Kuhn termina seu
prefácio ao livro de Fleck de modo lacônico e enigmático, remetendo as
dificuldades de Fleck a Wittgenstein, em especial no livro Sobre a certeza
do filósofo austríaco. Contudo, Kuhn tem uma posição pessimista ao
enfatizar que desde Wittgenstein os problemas colocados por Fleck se
tornaram centrais na filosofia, mas ainda permanecem insolúveis (Kuhn,
1979, p. xi). Como veremos no próximo capítulo, embora Kuhn esteja
certo em trazer Wittgenstein para o centro da discussão, é possível ser
mais otimista com a contribuição do pensador austríaco para resolver
problemas semelhantes aos tratados por Kuhn.
O filósofo da ciência norte-americano parece não ter conse-
guido formular a sua nova teoria da ciência não apenas pela dificuldade

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 11 5
intrínseca à problemática, mas também porque seus resultados parciais
pareciam conduzi-lo mais e mais a seus velhos conhecidos, Fleck e Wit-
tgenstein. Kuhn parece não ter conseguido ir muito além do que esses
autores já tinham lhe sinalizado - Kuhn não conseguiu ver um potencial
maior neles - e também, infelizmente, não conseguiu criar sua nova
teoria prometida.
Contudo, mesmo que não tenha conseguido formular sua nova
teoria da ciência, a importância de Kuhn para a historiografia da ciência
é inquestionável. No que diz respeito à afirmação da ideia de historici-
dade da ciência, a obra de Kuhn, ao alcançar um grande público, ecoou
essa perspectiva como nenhuma outra. O desafio maior que temos que
enfrentar, mostrado por Kuhn, foi a necessidade de abraçar a ideia de
conhecimento científico como a atividade humana que emerge de nossas
interações históricas e sociais com a natureza, ainda que essa polarização
ciência e natureza - mesmo assumindo a historicidade do conhecimento
científico - seja uma "tensão essencial" que, talvez, nunca seja resolvida
e tenhamos que conviver com isso.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, vimos que a obra de Kuhn foi extremamente


importante para a historiografia da ciência por diferentes razões. Entre
elas sua ideia de estabelecer "um papel para a história" da ciência foi
fundamental para um melhor conhecimento da atividade científica e de
sua própria história resultando, assim, uma compreensão mais detalha-
da da própria ciência. Ainda que tenha seguido a trilha de Fleck - que
ressalta a dimensão social e histórica na produção do conhecimento
científico - Kuhn deu a essa ideia um contorno próprio, respondendo às
necessidades de seu contexto.
Ao produzir uma obra que alcançou grande impacto, Kuhn
chamou a atenção da principal perspectiva epistemológica do período,
representada pela epistemologia de Karl Popper. O eminente pensa-
dor austríaco entendia a história da ciência de Kuhn como um modelo

1161 MAuRO Ulao LEITÃO COM..


representante do relativismo. O célebre debate realizado em Londres,
em 1965, mostrou que seria muito difícil uma conciliação da perspectiva
dos dois autores. Segundo Bloor, eles eram representantes de duas
posições tão diferentes quanto o romantismo e o iluminismo. Popper
seria um pensador mais próximo dos ideais iluministas, enquanto Kuhn
representaria o romantismo. Mesmo que Kuhn não tenha aceitado as
críticas de relativista, procurando mostrar como acreditava no progresso
da ciência, acaba por afirmar que sua concepção é diferente do raciona-
lismo crítico popperiano. Seriam visões de mundo diferentes e, apesar de
eles tratarem dos mesmos problemas, na perspectiva kuhniana, operam
em paradigmas diferentes.
Vimos também que Kuhn se posicionou de modo contrário
aos radicalismos socioconstrutivistas que exageraram no papel das
negociações na ciência. A crítica kuhniana recai especificamente sobre
o Programa Forte de Bloor e a historiografia da ciência que o seguiu,
particularmente, representada pelo livro Leviathan and the Air-Pump:
Hobbes, Boyle and the experimental life, de Shapin e Schaffer. Para Kuhn,
na tentativa de apresentar o destacado papel das negociações na ciên-
cia, os autores colocaram em segundo plano importantes fatores que
poderiam revelar que a hegemonia de Boyle sobre Hobbes era científica
e não apenas retórica. Kuhn procurou tirar uma lição dos exageros do
Programa Forte tentando reavaliar a sua própria obra.
À medida que sua teoria da ciência encontrou dificuldades para
superar os problemas apresentados pelas novas perspectivas como, por
exemplo, a do Programa Forte, Kuhn entendeu que deveria criar uma
nova teoria da ciência, que seria exposta em livro que estaria escrevendo,
mas isso nunca aconteceu. Entretanto, ele deixou textos nos quais desen-
volvia parcialmente essa nova teoria, nos permitindo, assim, ter uma ideia
de como ela seria. Parece que dois eram os postulados básicos de sua
nova teoria da ciência: a concepção de evolução e a função da linguagem.
Enfocando esses aspectos, percebemos que Kuhn se reorientou para
duas de suas influências iniciais, Fleck e Wittgenstein. No entanto, vimos
também que, embora haja proximidades entre Kuhn e esses autores,

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 117
ele não incorporou tudo o que eles poderiam, efetivamente, contribuir.
Kuhn foi crítico quanto ao pensamento dos dois, entendendo que, por
mais que eles tenham sido importantes, as questões prementes na his-
toriografia da ciência não foram efetivamente resolvidas por eles - nem
por ninguém depois deles - e ainda estariam em aberto.
Talvez a grande lição que Kuhn tenha deixado com a sua im-
portante contribuição à historiografia da ciência é a de que a questão
da relação entre sociedade e natureza não é apenas de difícil solução,
mas que talvez não exista uma solução definitiva para esse problema
da historicidade da ciência. Temos que conviver com essa "imprecisão"
quando fazemos história da ciência, ainda que sempre tentando minimizá-
-la. Contudo, com sua ob:-a, Kuhn afirmou a importância da historicidade
da ciência de modo definitivo.

1181 MAU"° Ulao LEITÃO CON°'


CAPÍTULO 4
WllTGENSTEIN E A GRAMÁTICA DA
" ,
CIENCIA: LINGUAGEM E PRATICAS
SOCIAIS NO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Que espécie de objeto alguma coisa é, é dito pela gramática.


A essência está expressa na gramática.
Ludwig Wittgenstein

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

fios capítulos precedentes, vimos que desde o debate intemalismo


versus extemalismo o problema da historicidade da ciência foi gradati-
vamente incorporado na agenda da historiografia da ciência. Embora
esse problema não tenha encontrado uma solução definitiva, é inegável
a relevância de aspectos históricos e sociais na construção do conheci-
mento científico. Vimos que, para autores como Fleck e Kuhn, o conhe-
cimento científico necessariamente passa pelas práticas sociais, além de
se constituir historicamente. Mais do que justapor ciência e sociedade,
esses autores afirmaram a perspectiva epistemológica dessa relação,
isto é, compreenderam que aspectos históricos e sociais interferem no
resultado final da ciência. Vimos ainda que eles atribuíram uma grande
importância à linguagem na estruturação dessa relação entre ciência e
sociedade, isto é, tanto Fleck quanto Kuhn entenderam que, além dos
aspectos históricos e sociais, a linguagem tem uma função decisiva na
compreensão da ciência. Infelizmente, eles não elaboraram uma efetiva

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 119
proposta para a compreensão dos mecanismos linguísticos na construção
do conhecimento científico.
Mesmo atribuindo essa forte importância à linguagem, Fleck
não chegou propriamente a formular uma "teoria da linguagem" que
ajudasse a entender a produção do conhecimento científico. 99 Como
vimos no segundo capítulo, ao criticar a linguagem logicista do Círculo de
Viena, o autor de Gênese e desenvolvimento de um fato científico limitou-
se a valorizar a linguagem cotidiana sem, contudo, explicitar em detalhes
os mecanismos linguísticos de produção da ciência. Por sua vez, tendo
a mesma percepção da importância da linguagem na construção do co-
nhecimento científico, Kuhn criou sua concepção de léxico enormemente
inspirado em Wittgenstein. No entanto, como vimos no capítulo anterior,
o conceito de léxico kuhniano também encontrou suas dificuldades. Ainda
que a "virada linguística" de Kuhn tenha sido um avanço significativo na
afirmação da importância da linguagem no conhecimento científico, sua
noção de léxico não explicitou o funcionamento do mecanismo linguístico
na produção da ciência em toda sua complexidade. Kuhn ainda se manteve
ligado à tradição quando sustenta uma concepção de linguagem ancorada
em categorias e na ideia de coisa em si, em moldes kantianos. Com efeito,
ao se manter preso a um modelo cognitivo com raízes kantianas - ainda
que tentando revestir-lhe de aspectos históricos e sociais - o autor de A
estrutura das revoluções científicas não explicitou adequadamente a função
da linguagem nas relações entre ciência e sociedade.
Neste capítulo, procuro aprofundar esta tese da importância
da linguagem na ciência exatamente a partir de uma das fontes de in-
fluência de Kuhn, isto é, a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein
100
(1989-1951). Em grande medida, a segunda filosofia de Wittgenstein
pressupõe o mecanismo social presente na produção do conhecimento
científico de modo muito semelhante aos modelos formulados por Fleck
e Kuhn. Com efeito, a partir do filósofo austríaco, é possível compreen-
der o conhecimento científico como um tipo de tessitura entre o social

99 Para uma análise entre Fleck e Wittgenstein, ver Condé (2012).


100 Para uma abordagem da obra de Wittgenstein, ver Condé (1998, 2004).

120 1 MAURO Uklo UITÃO C0ND1


e sua linguagem, por um lado, e a natureza por outro. O processo dessa
tessitura constitui a historicidade do conhecimento. A linguagem pode
ser entendida como um tipo de "ajuste fino" do social, porque o próprio
social - e em certa medida o natural - está estruturado como uma lin-
guagem.101 ·A linguagem é uma manifestação, ainda que específica, do
social. A linguagem e o social são dois aspectos da mesma estrutura que
na interação com a natureza produz o nosso conhecimento científico.
Com efeito, mais que compreender que a ciência é um fenômeno social
- como afirmado pela tradição externalista -, é preciso compreendê-la
como um fenômeno sociolinguístico.
Talvez seja mesmo impossível estabelecer uma diferença
efetiva entre o social e a linguagem, tendo em vista a noção wittgenstei-
niana de jogos de linguagem. Desta forma, a produção do conhecimento
científico - que necessariamente envolve a natureza - é uma atividade
social e linguística. Dado que não apenas a atividade social, mas também
a atividade linguística se dá no tempo, configura-se a dimensão histórica.
Na medida em que esse processo social e histórico afeta o resultado final
de uma configuração de conhecimento, caracteriza-se a historicidade da
ciência. Aqui, a partir de Wittgenstein, procuro mostrar como a lingua-
gem, assentada em uma perspectiva histórica e social, nos permite ter
uma compreensão mais pormenorizada da ciência.
102
Embora Wittgenstein, mais do que um filósofo da ciência,
tenha sido um filósofo da linguagem, sua segunda filosofia, presente

101 É conhecida a afirmativa de Lacan segundo a qual o inconsciente está estruturado como
uma linguagem (l'inconscient est structuré comme un langage) (Lacan, 1981, p. 187). Não
se trata aqui de fazer comparações com a psicanálise lacaniana, mas, em uma perspectiva
social, como a defendida por Fleck, Kuhn e Wittgenstein, poderíamos dizer que o próprio
inconsciente estruturado como uma linguagem Já seria reflexo do social estruturado como
uma linguagem. O inconsciente reflete as estruturas sociais que são linguísticamente orien·
tadas. Embora tenha um amplo espaço de diferenciação de sua subjetividade, o sujeito é
formado a partir do social, vê e age pelos olhos do coletivo. Certamente, não se trata de
afirmar que o inconsciente tenha o mesmo discurso do social (para a psicanálise ele tem
suas regras próprias), mas apenas enfatizo aqui a similitude da estruturação linguística. Em
última instância, apresentada no social.
102 A influência de Wittgenstein na filosofia da ciência se deu, inicialmente, com o grande im·
pacto do Tractatus logico-philosophicus no Círculo de Viena. Em sua segunda filosofia, suas
contribuições recaem na filosofia da matemática e na filosofia da psicologia.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 121
sobretudo nas Investigações filosóficas, pode nos auxiliar na compreen-
são do funcionamento da ciência. O que denomino aqui por "gramática
da ciência" é o uso de aspectos importantes da filosofia da linguagem
de Wittgenstein para o entendimento do funcionamento da ciência.
Para compreender como isto se dá, após abordar aspectos centrais do
pensamento do segundo Wittgenstein, procuro mostrar como sua filo-
sofia da linguagem pode ser lida como uma "gramática da ciência". Na
sequência, com o objetivo de demonstrar como a gramática da ciência
pode ser útil na solução de problemas epistemológicos, abordarei o
debate internalismo versus externalismo retornando ao internalismo de
Koyré e ao externalismo do Programa Forte de Bloor.
Conforme visto no capítulo um, a "tese de Zilsel" não se impôs
epistemologicamente frente ao internalismo de Koyré. No contexto dos
anos 1940 e 1950, ela encontrou seus limites e o debate internalismo ver-
sus externalismo não passou de uma demarcação metodológica. Em gran-
de medida isso se deu porque, sem uma compreensão mais pormenoriza-
da do funcionamento da linguagem, não seria possível à "tese de Zilsel"
responder ao internalismo de Koyré. No outro extremo, o externalismo
do Programa Forte, ao radicalizar os aspectos sociais - negociações -,
parece não ter considerado alguns importantes pressupostos da obra de
Wittgenstein. Se o Programa Forte defende uma perspectiva relativista,
se bem que o autor das Investigações fi/osóficastenha inspirado posições
relativistas - assim como Kuhn também inspirou-, veremos que temos
boas razões para afastar a posição wittgensteiniana do relativismo. Assim
como demandava Kuhn, para Wittgenstein, a natureza é um ponto tão
importante que, se os fatos fossem outros, nosso conhecimento seria
inteiramente diferente do que é. Enfim, nossas argumentações (negocia-
ções?) parecem ter uma relação muito mais estreita com a natureza do
que pressupôs o Programa Forte. Deste modo, procuro, neste capítulo,
reconsiderar os dois extremos do debate internai ismo versus externalis-
mo em uma perspectiva wittgensteiniana. Devido à complexidade dessas
questões, certamente não é possível abordá-las em todos os seus deta-
lhes. Assim, o objetivo maior é mostrar que a filosofia de Wittgenstein,

1221 MAURO Ulao ...... (ONO,


mesmo que já tenha sido fonte de inspiração para as epistemologias de
perspectiva histórica, ainda tem muito a nos oferecer.

2 A GRAMÁTICA DA CIÊNCIA

Em sua obra de maturidade, sobretudo representada pelas


Investigações filosóficas, Wittgenstein reconsidera as concepções de
linguagem e de lógica defendidas por ele em sua obra de juventude,
o Tractatus logico-philosophicus - a grande inspiração para o Círculo
de Viena construir sua epistemologia e sua concepção logicista de lin-
guagem. Em sua segunda filosofia, Wittgenstein entende que abordar
a linguagem na perspectiva do logicismo seria agora uma atitude vista
como reducionista perante as muitas funções que a linguagem apresenta
(Wittgenstein, 1979 [1953], § 23). Mais ainda, acreditar na existência de
uma essência lógica como se ela fosse o mais puro e forte cristal - enquan-
to algo transcendental - , seria uma ilusão (Wittgenstein, 1979 [1953],
§ 97). Assim, a partir dessa crítica à sua própria filosofia do Tractatus
logico-philosophicus e às concepções logicistas de linguagem, Wittgens-
tein formula uma nova filosofia da linguagem, em suas Investigações
filosóficas. Procurarei mostrar, neste capítulo, que sua segunda filosofia
pode ser usada como uma nova forma de entender o funcionamento
da própria racionalidade científica. Este novo modelo de racionalidade
apresentado porWittgenstein baseia-se, em particular, em suas noções
de "gramática" e "pragmática da linguagem".
Portanto, ainda que o autor das Investigações filosóficas não
tenha refletido primariamente sobre a ciência, mas sobre a linguagem,
encontramos elementos que podem nos ajudar a estabelecer uma teoria
da ciência para responder vários problemas de natureza epistemológica.
Para o segundo Wittgenstein, a linguagem não é vista apenas como uma
"representação" do mundo, mas, mais que isso, como uma "interação"
com o mundo. Sua nova abordagem pragmática baseia-se nas noções de
"significado como uso" e "jogos de linguagem". Segundo ele, os usos
que fazemos da linguagem em diferentes contextos, situações e eventos

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


o problema da historicidade da ciência 12 3
permitem os significados das expressões, isto é, "o significado de uma
palavra é seu uso na linguagem" (Wittgenstein, 1979 (1953], § 43). Este
aspecto pragmático presente no uso diário que fazemos de expressões
nessas diferentes situações e contextos em que elas aparecem conduziu
Wittgenstein a formular a noção de "jogos de linguagem" (Sprachspiele).
Esta noção envolve não só palavras, mas também as atividades com que
essas expressões estão interligadas (Wittgenstein, 1979 [1953], §7). Assim
como algumas características aparecem e desaparecem de um jogo para
outro, o mesmo ocorre entre os jogos de linguagem. Nos múltiplos e
variados jogos de linguagem, as únicas conexões que eles possuem são
como que as similaridades entre os membros de uma família. Os jogos
de linguagem são similares uns com os outros de variadas formas, e é
devido a essas similaridades ou semelhanças de família (Familieniinhli-
chkeiten) que eles são chamados de jogos de linguagem (Wittgenstein,
1979 [ 1953], §§ 65-7).
No entanto, embora o uso de uma palavra em um jogo de lin-
guagem forneça o seu significadoi essa não é uma prática indiscriminada.
Apesar de relativamente livre, o uso é regido por regras que distinguem
o uso correto do uso incorreto das palavras nos diferentes contextos.
O conjunto de regras compõe a gramática. Com efeito, a gramática é
constituída como um conjunto de regras que é formado a partir dos
múltiplos e variados jogos de linguagem. Estas regras não são apenas
regras linguísticas, mas também regras pragmáticas, isto é, elas envolvem
ações {Wittgenstein, 1979 [ 1953], § 7). No conjunto de tais regras há um
aspecto dinâmico, o que cria um fluxo contínuo de múltiplas conexões,
estabelecendo a gramática. Para além dos aspectos sintáticos e semân-
ticos da gramática - como ocorria no Tractatus Iogico-philosophicus -,
aspectos pragmáticos também são incorporados, já que a gramática
necessariamente emerge das práticas sociais. Uma regra só pode ser
eficaz enquanto regra na medida em que se insere na práxis social. A
gramática é um produto social. Da mesma maneira que o uso afeta uma
regra, a regra determina se o uso está correto ou não. No entanto, como

1241 MAURO Wao LaTÃO CON. .


a gramática é um conjunto de regras que está em aberto, novas regras
podem ser adicionadas ou velhas regras alteradas etc.
A noção de gramática no segundo Wittgenstein tem algumas
características centrais das quais, possivelmente, a mais importante é
a de considerar a regra como um produto da práxis social. Com base
nesse ponto, segue-se que a regra é uma convenção social que surge da
prática social e, portanto, poderia ser diferente se essa práxis fosse outra
( ou poderia ser mudada de uma sociedade - ou forma de vida - para
outra). A regra como uma "invenção" ou uma criação social não reflete
nenhum tipo de essência transcendental. Ela é uma criação "arbitrária"
e, nesse sentido, é uma "invenção". No entanto, a regra não pode ser
completamente arbitrária porque ela deve manter a sua coerência com
todas as outras regras e práticas, isto é, com o restante da gramática
como um todo, pois "se o que é regra se torna exceção e a exceção,
regra; ou se as duas se tornassem fenômenos de frequência mais ou
menos igual - então nossos jogos de linguagens normais perderiam seu
sentido" (Wittgenstein, 1979 [1953], § 142). Portanto, as regras vêm de
nossos "padrões" de comportamento, de nossos hábitos, costumes
e instituições (Wittgenstein, 1979 [1953], §§ 142, p. 199, 202, 226, 227).
Quando entendemos a regra como o produto de um jogo de linguagem,
podemos concluir pelo caráter operante da regra. Seguir uma regra é uma
operação - este é o caráter pragmático da regra. "Compreender uma
linguagem significa dominar uma técnica" (Wittgenstein, 1979 [1953],
§ 199). Este não é um processo mental isolado. "'Seguir a regra' é uma
práxis. Eacreditar seguir a regra não é seguir a regra. Edaí não podermos
seguir a regra 'privadamente'; porque, senão, acreditar seguir a regra
seria o mesmo que seguir a regra" (Wittgenstein, 1979 [1953], § 202).
Nas Investigações filosóficas, Wittgenstein distingue dois níveis
da gramática: A "gramática de superfície" e a "gramática profunda"
(Wittgenstein, 1979 [1953], § 664). A gramática de superfície aborda as
características específicas de expressões sem ter em conta o contexto
gramatical geral em que essas expressões são geradas. Por outro lado, a
gramática profunda(poderíamos dizer, a gramática panorâmica) é uma

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 12 5
gramática na 'qual as regras do uso da linguagem são engendradas em
sua relação com todo o conjunto de regras. Assim como em um jogo de
linguagem em cuja prática são geradas as várias expressões linguísticas
e seus significados, a gramática, enquanto somatória de múltiplos jogos
de linguagem, ao gerar significados gera racionalidade. Sendo mais
abrangente, a gramática profunda leva em consideração não apenas os
aspectos específicos de um determinado jogo de linguagem, mas tudo
o que está envolvido na prática da linguagem: usos, ações, produção de
regras, enfim, múltiplos jogos de linguagem. A racionalidade é produto
desse processo.
Talvez o sentido geral da noção de gramática em Wittgenstein
pudesse ser expresso da seguinte forma: a lógica está expressa nas regras
da gramática. Cada possibilidade lógica é gramatical. Nas Investigações
filosóficas, a gramática possibilita a lógica. Mais que isso, a gramática é
a própria lógica. A gramática nos diz o que é lógico, isto é, o que está
dentro e o que está fora dos limites do sentido. "Portanto, depende
inteiramente de nossa gramática o que é (logicamente) possível e o
que não é" (Wittgenstein, 1979 [1953], § 520 ). Como consequência mais
imediata, a racionalidade é, antes de tudo, gramatical. A gramática é,
portanto, o conjunto de todas as normas erigidas a partir da interação
entre a linguagem e as ações de um modo regular, determinando aí o
que é racional - lógico - e o que não é. Assim, a noção de gramática de
Wittgenstein é uma noção central na formulação de sua nova raciona-
lidade. A gramática aparece como um tipo peculiar de sistema que tem
como um dos seus principais aspectos uma perspectiva holística, embora
não seja um sistema metafísico totalizante.
Podemos estender essa concepção de racionalidade linguís-
tica de Wittgenstein para a ciência. A ciência em seu modus operandi
também é um tipo de gramática. Essa "gramática da ciência" - como
uma caracterização da racionalidade científica - pode ser concebida
como uma teoria da ciência. Ao contrário da racionalidade científica
moderna - com base na ideia de mathesis universalis - essa nova noção
de racionalidade não se constitui a partir de uma estrutura hierárquica ou

1261 MAUIU> Ulao lUTÃO CONo!


de uma ordem metafísica a priori. Pelo contrário, ela é vista como uma
"teia", uma rede flexível e multidirecional que se estende por meio de
semelhanças de família (Wittgenstein, 1979 [1953], §§ 67, 77, 108). Não
é totalizante porque, além de não ter um fundamento último, não se
propõe a fornecer "uma" inteligibilidade total e completa do mundo,
como se todas as visões de mundo devessem convergir umas para as
outras. No entanto, é holística, pois apresenta uma visão panorâmica
(Übersichtlichkeit) do mundo, constituindo um tipo de sistema aberto e
descentralizado no qual a racionalidade não está baseada em nenhum
lugar especial privilegiado, mas, em vez disso, é configurada a partir das
múltiplas relações dentro do sistema. Embora seja um sistema autônomo,
a gramática não é fechada como em um sistema de relativismo extremo,
uma vez que ela permanece aberta para outros sistemas de pensamento
(outras gramáticas).
Não é apenas através da possibilidade de utilizar o conceito de
gramática em muitas áreas (gramática de cores, usos etc.), mas também
através da associação da gramática com a noção de instituições formula-
da pelo filósofo austríaco - instituições do dinheiro (Wittgenstein, 1979
[1953], § 584); da escrita e leitura (Wittgenstein, 1979 [1953], § 156); do
sistema de medidas (Wittgenstein, 1979 [1953], § 50) etc. - que podemos
pensar a própria instituição da ciência como uma gramática, isto é, como
uma instituição com um conjunto de regras e práticas que encerram
em si sua racionalidade, ainda que esteja aberta para se conectar com
outras gramáticas. Em outras palavras, como a gramática, a ciência tem
os seus valores em si, mesmo que ela tenha "semelhanças de família"
com outras gramáticas (política, artes, religião etc.).
Portanto, diferentemente de Koyré, para o segundo Wittgens-
tein, o que permite a ciência funcionar não seria nenhum tipo de "base
metafísica" ou "realismo matemático". Na medida em que o cálculo mate-
mático é um "operar com regras", por exemplo, ele é um tipo específico
de jogo de linguagem. As inferências de um cálculo matemático, para
Wittgenstein, são estabelecidas pelas regras, pelos jogos de linguagem
próprios à matemática - e nesse aspecto específico Bloor estaria certo

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da hfstorfcldade da cllncla 127
quanto a sua utilização da filosofia ca matemática do filósofo austríaco
(Bloor, 1973). Como observa Wittgenstein, "as regras de inferência lógica
são regras do jogo de linguagem" (Wittgenstein, 1956, p. 181). O uso da
matemática na medição, seja como ato de medição ou referência para a
própria medição, é produto de uma instituição (Wittgenstein, 1979 [1953],
§§ 50, 199, 380) (Wittgenstein, 1956, p. 80), de uma forma de vida, do
mesmo modo que "se não existisse a técnica de jogar xadrez, eu não
poderia ter a intenção de jogar uma partida de xadrez" (Wittgenstein,
1979 [1953], § 337), se não houvesse a técnica de medir- instituição - ,
não seria possível medir. Enfim, em uma perspectiva wittgensteiniana, se
não existisse a instituição de fazer ciência, não seria possível fazer ciência.

3 GRAMÁTICA DA CIÊNCIA E INTERNALISMO

O internalismo de Koyré recebeu muitas críticas, mas tam-


bém muitos adeptos. Certamente que o grande volume de trabalhos
publicados a partir de abordagens sociais da ciência - sobretudo após
A estrutura das revoluções científicas, de Kuhn - muito contribuiu para a
desvalorização da perspectiva epistemológica defendida por Koyré, em
que pese todo o valor de suas abordagens históricas. A afirmação pro-
gressiva de uma epistemologia histórica pós 1962 colocou em segundo
plano o internalismo de Koyré - que se sustentava em uma perspectiva
metafísica. Entretanto, os que defendem a concepção de que teorias
e leis científicas estão em um diálogo direto com a natureza - e vimos
que essa foi uma posição muito cara a Kuhn - e que os aspectos sociais
são, em medidas diversas, tributários da natureza, ainda encontram
no internalismo uma forte referência. Essa demanda por explicações
internalistas do funcionamento da ciência não reafirma necessariamen-
te os aspectos metafísicos formulados por Koyré, mas pergunta pelos
parâmetros teóricos, metodológicos e experimentais da ciência, inde-
pendentes de aspectos sociais. Sobretudo entre os cientistas, desejosos
ou não, conscientes ou não de reflexões epistemológicas, a ciência é
entendida como o conhecimento que tem a exclusividade da produção

1281 MAURO Lúao LDTÃO CONO,


de objetividade e isso seria a principal justificativa para a afirmação do
internalismo. Nem sempre é claro para esse cientista em que medida
seu fazer é perpassado por um condicionante histórico e social porque,
para ele, a confirmação de sua teoria estaria na objetividade presente
na bancada de seu laboratório diante dos seus olhos.
Os cientistas, os filósofos e os historiadores da ciência que
têm a referência do internalismo demandam se não uma independên-
cia da ciência frente aos fatores sociais, pelo menos uma autonomia
científica diante destes fatores. Se parece relativamente fácil refutar
os elementos metafísicos presentes no internalismo de Koyré, torna-se
difícil compreender como a ciência segue seu próprio caminho, suas
ideias e teorias com autonomia (embora não independência) em relação
a esses fatores sociais. Parece, assim, que ao refutar o internalismo de
modo puro e simples, corremos o risco de desperdiçar o que de bom
ele tem a nos oferecer. Talvez esse internalismo presente no imaginário
científico, em uma época em que a ciência é tão marcada por fatores
sociais, pudesse ser formulado do seguinte modo: como compreender
que a ciência, mesmo sendo um produto social - portanto, sujeita às
influências externas -, possui regras próprias de comportamento que
lhe conferem autonomia com relação a esses mesmos fatores sociais?
Em outras palavras, ainda que o internalismo assentado no realismo
matemático ou em atitudes metafísicas à la Koyré não mais seja aceito,
isso não implica dizer que a necessidade de compreender a ciência em
sua lógica "interna" não mais exista. Como vimos, Kuhn destacou esse
ponto em sua crítica ao Programa Forte.
Assim, se, por um lado, a partir de Wittgenstein podemos ter
boas razões para ver a ciência como uma instituição, ou um tipo de gra-
mática que emerge das práticas sociais, por outro, o internalismo, pelo
menos em parte, ainda parece ser atual na medida em que nos alerta
para a necessidade de pensarmos a autonomia da ciência com relação a
essas práticas sociais. Com efeito, mesmo que adormecida, como advertiu
Shapin, a questão do internalismo versus externalismo não parece ser
uma questão inteiramente resolvida (Shapin, 1992, p. 334). Meu objetivo,

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da cl!ncla 129
nesta seção, é compreenderem que sentido o intemalismo de Koyré, para
além dos seus aspectos metafísicos, ainda nos coloca importantes pon-
tos não suficientemente esclarecidos nessa querela. Reavaliarei alguns
desses pontos à luz da "gramática da ciência" inspirada porWittgenstein.
Em um primeiro momento, o esforço é no sentido de esclarecer que os
pressupostos metafísicos do intemalismo de Koyré são, para Wittgens-
tein, pressupostos gramaticais ou institucionais da ciência. Não se trata,
assim, de estabelecer uma atitude metafísica, mas de entender nossas
"considerações gramaticais" (Wittgenstein, 1979 [1953], § 90) sobre a
ciência. Esta abordagem nos permite compreender certos aspectos da
convergência entre internalismo e gramática da ciência na questão da
autonomia da ciência. Portanto, ao salientar a importância de aspectos
internalistas não se trata de afirmar a perspectiva epistemológica de
Koyré, mas de reconsiderar alguns pontos importantes colocados por
seu internalismo.
Onde o intemalismo de Koyré vê theoria, realismo matemático
e as bases metafísicas da ciência, a partir de Wittgenstein podemos ver
a ciência como um tipo de gramática regida por regras, decorrentes dos
jogos de linguagem presentes em uma forma de vida. No entanto, apesar
de Wittgenstein distanciar-se de Koyré com sua gramática e pragmática
da linguagem, de alguma forma, ele acaba se aproximando do interna-
lismo do eminente historiador da ciência ao estabelecer a sua ideia de
autonomia da gramática - o que pode ser interpretado, na perspectiva
de Koyré, como uma espécie de autonomia da ciência. Ainda que Fleck
e Kuhn tenham consolidado a dimensão histórica e social presentes
na ciência, ofuscando, assim, o internalismo - levando alguns autores
a radicalizar o externalismo -, o internalismo ainda tem importantes
ponderações a fazer, em especial, com relação à ideia de autonomia da
ciência. O internalismo, conforme Kuhn assinalou em sua crítica ao Pro-
grama Forte, ainda tem algo com o que contribuir - mesmo que não na
postulação metafísica de Koyré -, especialmente na ideia de afirmação
da autonomia da ciência frente aos aspectos sociais. Contudo, apenas a
partir de uma compreensão detalhada do papel da linguagem na produ-

130 1 MAURO l.ÚCIO ,.,,,.. . CONo<


ção do conhecimento científico podemos compreender a contribuição
do internalismo. Além disso, uma análise da linguagem também nos
permite compreender melhor os próprios aspectos sociais, isto é, o ex-
ternalismo. Com essa compreensão da linguagem podemos responder,
por exemplo, a questão colocada por Koyré do por que engenheiros
romanos, ainda que dominassem muitas técnicas, não criaram a ciência
moderna - questão essa que a tese de Zilsel não poderia responder exa-
tamente por não oferecer uma abordagem linguística, mas apenas social.
Enfim, o confronto entre essas duas importantes abordagens a partir da
questão da linguagem - e essa seria a contribuição de Wittgenstein -,
nos permite encontrar bons subsídios para enfrentarmos epistemologi-
camente esse debate.
Na defesa de seu realismo matemático, Koyré critica o prag-
matismo afirmando que "a atitude filosófica que, em última instância,
bem se prova não é a do empirismo positivista ou pragmatista, mas,
103
ao contrário, a do realismo matemático" (Koyré, 1971 (1961], p. 267).
Contrariamente, Wittgenstein defende, a partir do pragmatismo, uma
completa inversão de perspectiva. Portanto, o objetivo aqui não é "conci-
liar" a proposta de Koyré com o pragmatismo, mas utilizar o pragmatismo
para buscar equacionar impasses colocados pelo internalismo de Koyré
e "dissolvê-los" a partir da gramática da ciência.
O que Koyré entendeu como a emergência da ciência moderna,
enquanto uma mudança do modo de pensar baseado em uma atitude
metafísica, Wittgenstein compreenderia como uma mudança no modo
de pensar possibilitado pela gramática e pela pragmática da linguagem
de uma forma de vida, isto é, pelas estruturas sociais de um dado con-
texto e as práticas cognitivas aí engendradas. Enfim, a ciência moderna
constitui uma "gramática da ciência" assentada em práticas sociais, pe-
culiares àquele contexto. Por volta do século XVII, a Europa encontrou
as "condições necessárias" e a partir dessas estabeleceu as "condições
suficientes" para o surgimento da ciência. Mas por que isso aconteceu

103 "L'attitude philosophlque qui à la longue s'avere bonne n'est pas celle de l'empirisme posi-
tiviste ou pragmatis1e, mais, au contraire, celle du réalisme mathématique".

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 131
nesse tempo, local e contexto?Vimos que as abordagens sociológicas não
tiveram boas respostas frente à posição de Koyré que afirmou a emer-
gência da ciência moderna como uma mudança de atitude metafísica na
qual aspectos tecnológicos e sociais não foram determinantes. Afinal,
retruca o historiador da ciência, "se o interesse prático fosse a condição
necessária e suficiente do desenvolvimento da ciência experimental - na
nossa concepção dessa palavra - esta ciência teria sido criada mil anos
antes(... ) pelos engenheiros do império romano, senão pelos da república
104
romana" (Koyré, 1973 [1966], p. 75) (itálicos meus).
A partir da perspectiva wittgensteiniana, podemos abordar
essa questão colocada por Koyré. Entretanto, antes de procurar res-
pondê-la é preciso distinguir diferentes aspectos subentendidos nesse
tipo c'.e questão. Koyré está interessado em responder a um "porquê"
metafísico da emergência da ciência moderna e não a um "porquê"
histórico ou sociológico. Daí as suas críticas às explicações sociológicas
para o surgimento da ciência moderna. Para Koyré, esse "porquê" his-
tórico apresentaria as condições necessárias, mas apenas o "porquê"
metafísico forneceria as condições suficientes. Para Wittgenstein, um
"porquê" em termos metafísicos, como pretendido por Koyré, seria
uma ilusão gramatical (Wittgenstein, 1979 [1953], § 110), uma falta de
compreensão da nossa linguagem {Wittgenstein, 1979 [1953], §111 ). Com
efeito, a gramática da ciência não pergunta pelo "porquê", mas busca
pelo "como" epistemológico. Esse "como" fornece as "condições sufi-
cientes" - que para Koyré estariam em bases metafísicas - assentadas
no "porquê" histórico das "condições necessárias".
Conforme sabemos, algumas sociedades preferiram dedicar-se
mais ao conhecimento mágico, religioso, à constituição de castas políticas
etc., e não se interessaram por fazer ciência, como salientou Koyré (1971
[1961], p. 324). Fazer ciência não é uma meta a ser seguida a priori por

104 "SI l'intérêt pratique était la condition nécessaire et suffisante du développement de la


science expérimentale - dans notre acception de ce mot - cette science aurait été créée un
millier d'année [ ... ]parles ingénleurs de l'Empire romain, sinon par ceux de la République
romaine".

1321 MAURO Lúao LEITÃO CONDt


nenhuma sociedade - como pretenderam algumas leituras positivistas
-, mas uma construção que se estabeleceu a partir de necessidades,
condições e interesses de dada sociedade em certo contexto histórico.
Nesse sentido, o fato de a ciência ter se constituído nos primórdios da
modernidade é, sob certos aspectos, uma contingência formada pelos
condicionantes daquele contexto histórico.
Uma vez estabelecido um evento histórico - em suas variadas
circunstâncias motivadoras ou condições necessárias - podemos ana-
lisá-lo enquanto um (1) fenômeno histórico procurando entender por
que ele se deu naquele tempo e espaço, mas também enquanto um (2)
fenômeno social, no qual podemos procurar compreender como se deu
ali a produção do conhecimento. O por que diz respeito às "condições
necessárias" e o como, às "condições suficientes". Assim, ao analisar
o surgimento da ciência moderna e da tecnologia, devemos procurar
compreender na análise desse processo histórico não apenas por que,
mas também como se deu a tessitura social e linguística (gramática)
desse fenômeno. Com efeito, vista pela pragmática da linguagem de
Wittgenstein, a interação entre teorias, ideias e práticas científicas em
um contexto específico (forma de vida) no início da modernidade- como
abordadas pelos historiadores de vertente social da ciência, por exemplo
- possibilitou tanto a produção dP. práticas, artefatos e produtos quanto
a produção de linguagens e teorias, uma vez que a própria linguagem
(teoria) é também uma técnica (Wittgenstein, 1979 [1953], § 199).
Deste modo, sobre o "porquê" dos aspectos históricos, uma
perspectiva wittgensteiniana, talvez, tivesse nada ou muito pouco a dizer.
A pragmática da linguagem não recai sobre o "porquê", mas sobre o
"como", em termos das práticas sociais, se dá esse processo de produção
de conhecimento. Em outras palavras, não se trata de justificar, a partir
da gramática da ciência, o "porquê" histórico que formou o desenho
de macro eventos sociais, políticos, econômicos etc., que articularam as
"condições necessárias" para a emergência da ciência - a tese de Zilsel
tem esse propósito - , mas compreender em que medida aquela socie-
dade, em sua dinâmica de práticas sociais e cognitivas de seu processo

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 133
histórico, produziu suas próprias regras (gramática) de constituição de
seu conhecimento, ainda que esse processo possa influir no desenho
histórico como um todo e reciprocamente por ele ser influenciado.
Portanto, precisamos fazer essa distinção entre esses dife-
rentes aspectos da questão para compreendermos o que está em jogo
em algumas das importantes questões presentes no internalismo de
Koyré sobre o nascimento da ciência e da tecnologia. Boa parte das
questões colocadas por ele são, na realidade, questões de um "porquê"
metafísico e, assim, ele rechaça os "porquês" históricos que podem ter
respostas relacionadas às circunstâncias políticas, sociais, econômicas
etc., do contexto em que os eventos ocorreram. Indaga Koyré: "por que
o pensamento técnico da antiguidade não se desenvolveu?"; "por que
os inventores da episteme não a aplicaram à práxis?"; "por que( ... ) a
ciência grega não desenvolveu uma tecnologia, já que formularam essa
ideia?" (Koyré, 1971 [1961], p. 338). Algumas respostas a esses "porquês"
históricos são dadas pela abordagem psicossociológica - e criticadas por
Koyré. Mesmo que estas sejam respostas bem plausíveis não são respos-
tas epistemológicas procurando compreender "como" se engendrou a
produção do conhecimento no contexto grego ou moderno. Certamente,
existem fatores históricos que confluíram para explicar o nascimento da
técnica, da tecnologia e da ciência. As explicações psicossociológicas
propostas por Schuhl no livro Machinisme et phi/osophie (Schuhl, 1947
[1937]), resenhado por Koyré [O filósofo e as máquinas] (Koyré, 1971
[1961], p. 305-362), poderiam oferecer boas razões quando afirmam que a
falta da tecnologia no mundo antigo foi devida à presença do escravismo,
do preconceito contra o trabalho manual, da sociedade aristocrática etc.
Ou, como sintetiza Koyré, para essa abordagem, a antiguidade não pre-
cisou de máquinas (Koyré, 1971 [1961], p. 308). Interessado no "porquê"
metafísico, Koyré recusa essas explicações: para ele, elas não seriam nem
adequadas e nem satisfatórias.
Koyré e Schuhl estão respondendo a mesma questão de
diferentes perspectivas, isto é, uma metafísica e outra histórica. Elen-
car razões históricas pelas quais a antiguidade não criou a tecnologia

1341 MAu,aUlao""ÃOCON..
e nem a ciência experimental pode nos fornecer respostas plausíveis,
mas essas seriam sempre respostas pelo "porquê" histórico e não pelo
"como" esses conhecimentos surgiram. Ao desqualificar as respostas
psicossociológicas, Koyré conclui que a Grécia não usou a tecnologia,
mas apenas a técnica, porque para criar a tecnologia era preciso antes
criar a ciência, e essa, apenas os modernos criaram.
Em certo sentido, essa resposta de Koyré está no âmbito da
"gramática da ciência" inspirada em Wittgenstein e com a qual podemos
dizer que existem paralelos entre conhecimento científico e tecnológico,
pois ambos são produtos da mesma gramática. Certamente, a tecnologia
não poderia ser criada antes da ciência. Não podemos compreender ciên-
cia e tecnologia isoladamente, já que o sentido de ambas é peculiar ao
contexto da ciência moderna, na qual se desenvolveram conjuntamente.
A ciência moderna, como postulado pela "tese de Zilsel", é um tipo de
propriedade emergente que surge da somatória destas duas formas
de conhecimento: o saber prático e o saber teórico. Contudo, Zilsel
não desenvolveu os mecanismos linguísticos que mostrassem "como"
esse processo efetivamente se deu. A gramática da ciência moderna
mostra-nos exatamente o modo "como" esses conhecimentos se insti-
tucionalizaram dentro de certo contexto (forma de vida) propício para
tal, ainda que essa gramática tenha pouco a nos dizer sobre o "porquê"
histórico disto ter ocorrido. Neste último ponto, a "tese de Zilsel" tem
muito mais a nos dizer.
Koyré jamais aceitou a resposta sociológica (histórica ou psi-
cossociológica ). Para ele, a partir de uma mera explicação sociológica,
Siracusa jamais poderia conceber Arquimedes, assim como Florença
não conceberia Galileu (Koyré, 1971 (1961], p. 323-324), pois, mesmo
que as condições institucionais "necessárias" para se produzir a ciência
estivessem aí presentes, segundo Koyré, estas ainda não seriam "condi-
ções suficientes" de ordem metafísica. Contudo, contrariamente a essa
posição, na perspectiva da gramática da ciência, essas sociedades - ao
produzirem as estruturas institucionais que possibilitaram a existência
desses pensadores - estabeleceram aí também as "condições suficien-

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da hlstorlcldade da clêncla 135
tes" de formação desses pensadores. Arquimedes e Galileu são frutos de
suas respectivas sociedades. Da mesma forma que Wittgenstein salienta
que não se pode jogar xadrez sem a instituição do jogo de xadrez, ou
medir sem a instituição da mediçãoi seria impossível também fazer ciência
ou filosofia sem a institucionalização da ciência ou da filosofia. Mesmo
com estruturas institucionais mínimas, Siracusa e Florença produziram
as condições de possibilidade ( necessárias e suficientes) de formação de
seus pensadores por meio de dispositivos institucionais práticos e inte-
lectuais ( que para Wittgenstein são indissociáveis). Esses autores seriam
impensáveis em outros contextos, ou seriam pensadores diferentes.
Mesmo que, na socied2de grega, o ideal da juventude não
fosse alcançar o conhecimento, mas sim obter o poder e o gozo {Koyré,
1971 [1961], p. 330), ainda assim foi essa mesma sociedade grega que,
diferentemente de outras, criou as condições de produção do conheci-
mento racional, que inventou a própria ideia de ciência, muito embora
esse não fosse um conhecimento disseminado para toda a população da
Grécia. Na medida em que uma sociedade apresente uma complexidade
de instituições, é possível que uma delas seja a instituição de fazer ciên-
cia, ainda que nem todos os membros dessa sociedade façam ciência.
Mas em que medida as práticas sociais são não apenas con-
dições necessárias, mas também condições suficientes? É certo que a
ciência precisa dessas condições sociais necessárias para se desenvolver
(apenas em certas condições sociais valoriza-se o conhecimento, criam-se
escolas científicas etc.), mas onde estariam as condições suficientes para
a formação da ciência? Vimos que, segundo Koyré, condições históricas
e sociais são necessárias, mas não são condições suficientes. Contudo,
em uma perspectiva wittgensteiniana, mesmo a tese central de Koyré
- que defende o primado da teoria sobre a técnica ou a supremacia de
Descartes sobre Bacon - não pode ser concebida sem as profundas impli-
cações das condições sociais também como condições suficientes. Koyré
observa que o empirismo baconiano fundamenta a ciência no registrar,
classificar e colocar em ordem os fatos, mas "Descartes, por sua vez, tira
uma conclusão exatamente oposta, a saber, a de fazer penetrar a teoria

1361 MAURO LOao LETÃO CoNo<


na ação, isto é, da possibilidade da conversão da inteligência teórica ao
real, da possibilidade tanto de uma tecnologia quanto de uma física" 10s
(Koyré, 1971 [1961], p. 346).
No entanto, vista de uma perspectiva wittgensteiniana, adis-
tinção entre teoria e prática não seria tão nítida assim. Mesmo o aspecto
mais teórico de um conhecimento como, por exemplo, o filosófico, já
seria sustentado por esses condicionantes das práticas sociais. O próprio
cogito cartesiano seria um jogo de linguagem que se insere em uma insti-
tuição (forma de vida), a de fazer filosofia ( ou ciência). Descartes apenas
pôde encontrar-se na profunda subjetividade de seu cogito porque ele
lá entrou socialmente. Foi socializado, educado conforme os princípios
educacionais de La Fleche, nos quais se inseriu na instituição do fazer
filosofia - e ciência - e aprendeu as regras (gramática) do jogo de lingua-
gem do filosofar, a partir das quais criou a sua filosofia da consciência.
Entretanto, uma atividade prática não se transforma espon-
taneamente em uma atividade teórica, e Koyré está parcialmente certo
em dizer que "não é do desenvolvimento espontâneo das artes indus-
triais, por aqueles que as exercem, é da conversão da teoria à prática
que Descartes espera os progressos que irão fazer do homem 'mestre
e possuidor da natureza"'1º6 (Koyré, 1971 [1961], p. 346). Contudo, na
medida em que, em uma perspectiva wittgensteiniana, a teoria é uma
orquestração gramatical que emerge do "solo áspero" das práticas
sociais, não haveria teoria sem esses condicionantes sociais. Existe uma
conexão entre o "saber fazer" técnico e o "saber pensar" teórico, ainda
que mediada por muitos e complexos mecanismos institucionais (sociais
e linguísticos). A linguagem e as práticas sociais, como posto por Witt-
genstein, estão imbricadas nos jogos de linguagem (Wittgenstein, 1979
[1953], § 7) e na gramática.

105 "Descartes, lui, en tire une conclusion exactement opposée, à savoir celle de la possibilité
de faire pénétrer la théorfe dans l'action, c'est-à-dire, de la possibllité de la conversion de
l'lntelligence théorique auréel, de la possibílité à la fois d'une technologie et d'une physlque."
106 "Ce n'est pas du développement spontané des arts industrieis par ceux qui les exercent, c'est
de la converslon de la theorie à la pratique que Descartes attend les progres qui rendront
l'homme 'maitre et possesseuer de la nature'."

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 137
Conhecimentos teóricos e práticos são formados conjunta-
mente em um único contexto. Assim, não apenas práticas, mas as teorias
que orientam essas práticas tendem a ser construídas paralelamente.
Nesse sentido, Koyré está certo em afirmar que uma sociedade que não
desenvolve tecnologias também não desenvolve as linguagens (teorias)
que orientam os usos dessas tecnologias. "É igualmente verdade que não
são apenas os instrumentos de medida que faltam, mas a linguagem que
poderia servir para exprimir os resultados" 1º7 (Koyré 1971 [1961 ], p. 349).
Portanto, Koyré também entende que há um paralelismo entre técnica e
teoria, ainda que, para ele, o ponto central seja a afirmação do primado da
teoria sobre a técnica ao passo que, para Wittgenstein, a própria teoria -
enquanto linguagem - seria um tipo de técnica. Assim, para explicar uma
técnica que não tenha conseguido se desenvolver, afirma Koyré, "não é
108
a insuficiência técnica, é a falta de ideia que nos fornece a explicação"
(Koyré, 1971 [1961], p. 351). Sem ideias certamente não haveria técnicas
e nem explicações, mas, em uma perspectiva wittgensteiniana, ideias
e técnicas são produtos da gramática, da pragmática da linguagem em
uma forma de vida onde técnica e linguagem, teoria e prática acontecem
ao mesmo tempo.
Com efeito, para Wittgenstein, as práticas sociais não são ape-
nas as condições necessárias para a formulação do conhecimento, mas
também as condições suficientes. O "como" tais práticas estabelecem
as instituições em uma dada sociedade também forma as condições
suficientes para os nossos critérios sobre o que esteja certo ou errado
quando produzimos conhecimento. Em suma, onde Koyré vê a teoria
assentada em uma atitude metafísica, Wittgenstein concebe as possibi-
lidades gramaticais e pragmáticas a partir de onde vemos o mundo. A
gramática nos diz o que o mundo é. "Que espécie de objeto alguma coisa
é, é dito pela gramática" (Wittgenstein, 1979 [1953], § 373). Enfim, "a
essência está expressa na gramática" (Wittgenstein, 1979 [1953], § 371).

107 "li est vrai également que ce nesont pas seulement les instruments de mesure qui manquent,
mais le langage qui aurait pu servir à en exprimer les résultats".
108 "C'est ne pas l'fnsuffisance technique, c'est l'absence de l'idée qui nous foumit l'éxplication".

1381 MAURO Lúao LEITÃO CONo!


No entanto, se existem diferenças entre Wittgenstein e Koyré
quanto ao real papel das práticas sociais na formulação de teorias cien-
tíficas, parece haver pontos de convergência com relação à questão da
autonomia da ciência. Em uma perspectiva wittgensteiniana, podemos
entender a sociedade como o conjunto de complexos mecanismos ins-
titucionais onde operam as diferentes gramáticas: gramática da ciência,
da arte, da filosofia, da religião etc. em que essas múltiplas gramáticas
interagem entre si no todo da sociedade. No entanto, ainda que haja
"semelhanças de famílias" (Wittgenstein, 1979 [1953], § 67) entre essas
várias gramáticas - ou as sobreposições, de acordo com o léxico kuh-
niano - cada uma em si tem sua autonomia dada pelas suas próprias
regras. Com efeito, para uma perspectiva pragmática, a gramática da
ciência tem sua autonomia, embora seja permeada por outras gramáticas
ou outras instituições. Ao afirmar que a ciência compõe uma "unidade
de pensamento", juntamente com a filosofia e religião, Koyré salienta
algo nesse sentido da interação entre diferentes gramáticas. Em outras
palavras, ainda que a ciência tenha sua razão de ser nela mesma, ela está
em constante relação com essas outras áreas das quais, muitas vezes,
provêm ideias que auxiliam na constituição da própria ciência, mesmo
que, em última instância, essas influências de outras esferas fiquem fora
da prática e do discurso final da ciência. Como salienta Koyré,

quaisquer que sejam as ideias para científicas ou ultra-científi-


cas que tenham guiado um Kepler, um Descartes, um Newton
ou mesmo um Maxwell em direção às suas descobertas, tais
ideias não têm, no final das contas, senão pouca ou nenhuma
importância. O que conta é a descoberta efetiva, a lei estabe-
lecida, a lei dos movimentos planetários e não a harmonia do
mundo. A conservação do movimento e não a imutabilidade
109
divina (Koyré 1971 [1961], p. 255).

109 "Quelles que soient les idées para· ou ultra-sclentifiques que aient guidé un Kepler, un
Descartes, un Newton, ou même un Maxwell vers leurs découvertes, elles n'ont, en fin de
compte que peu - ou pas - d'importance. Ce qul compte, c'est la découverte effectlve, la
foi établi, la foi des mouvements planétaire et non l'Harmonie du Monde, la conservation
du mouvement et non l'immLtabilité divine".

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


o problema da historicidade da ciência 13 9
Aqui, Koyré procura ressaltar a "unidade de pensamento"
entre a ciência e as outras áreas de conhecimento mostrando a forte
presença desses fatores não científicos na ciência, que são muitas ve-
zes deliberadamente ignorados (certamente, para Koyré, esses fatores
não são as "negociações" do Programa Forte, mas as bases metafísicas
da ciência). Entretanto, ainda que procure afirmar o papel da unidade
de pensamento, ao não incorporar as técnicas e as práticas sociais na
ciência, Koyré acaba fazendo uma rígida separação entre o científico e
o não científico. Para Wittgenstein, mesmo havendo uma distinção não
existiria aqui propriamente uma dicotomia. Essa estranha "unidade"
de Koyré deixa de fora as práticas sociais e as técnicas. Antes de tudo,
em uma perspectiva wittgensteiniana, assim como para Fleck, qualquer
conhecimento é um ato social e histórico. A gramática nos situa his-
toricamente. Sua função é exatamente construir em um dado tempo
histórico a especificidade dos diferentes conhecimentos. Desse modo,
a gramática da ciência constrói a historicidade do conhecimento. Arte e
ciência, por exemplo, são conhecimentos que nascem do mesmo "solo
áspero" das práticas sociais, mas se distanciam - especiação conforme
Kuhn - tecendo suas diferentes gramáticas (gramática da arte, gramática
da ciência), construindo suas diferentes historicidades.
A ciência é certamente permeada por outras esferas de conhe-
cimento, e nesse sentido faz parte de um tipo de "unidade do pensamen-
to" como pretendeu Koyré, mas, em uma perspectiva wittgensteiniana,
na medida em que as regras que compõem a gramática da ciência estabe-
lecem também seus próprios critérios de julgamento - ainda que possua
semelhanças de família com outras formas de conhecimento - a ciência
é autônoma. Em certo sentido, a ciência encontra "internamente" seus
critérios e, assim, é internalista, ainda que - como Koyré nunca aceitou
- todo e qualquer conhecimento nasça das práticas sociais, portanto,
sendo também externalista.
Se a ciência justifica suas "condições suficientes" em si mes-
ma, a partir do seu desenvolvimento enquanto uma instituição que tem
suas regras próprias (gramática), com teorias e práticas legitimadas no

140 I MAURO Lo)ao I.STÃo CONof


seu próprio atuar- embora seja influenciada por outras instituições ou
gramáticas como as da política, arte, religião etc. -, então, podemos
concluir que, no contexto romano de produção do conhecimento, essas
regras de constituição da instituição ciência (gramática da ciência) não
foram suficientemente estabelecidas para que os engenheiros roma-
nos pudessem desenvolver a ciência. Portanto, ainda que, no contexto
romano, muitas fossem as situações favoráveis, enquanto condições
necessárias, não houve a institucionalização (gramática) do fazer ciência
a ponto de desenvolver as "condições suficientes" para o surgimento do
conhecimento científico. Com efeito, a ciência jamais poderia surgir com
os engenheiros romanos, mas não pelas razões (metafísicas) elencadas
por Koyré. Portanto, entre os romanos, não faltou propriamente uma
"atitude metafísica" ou uma teoria científica baseada no realismo mate-
mático, mas faltaram práticas sociais (gramática) com a complexidade
"suficiente" para estabelecer, mais que o lócus institucional, a criação de
ideias, teorias, técnicas, objetivos etc. (gramática da ciência), e, assim,
possibilitar a emergência da ciência.

4 GRAMÁTICA DA CIÊNCIA E EXTERNALISMO

Nesta seção, analisarei alguns aspectos do extemalismo do


Programa Forte a partir da gramática da ciência wittgensteiniana. A
controvérsia em torno do Programa Forte foi grande. A literatura crítica
se prolongou com inúmeros artigos atacando as posições do Programa
Forte, suscitando igualmente um grande número de defesas. Na segunda
edição de Conhecimento e imaginário social, Bloor acrescentou um pos-
fácio intitulado "ataques ao Programa Forte" no qual procurava defen-
der-se das críticas às suas ideias. O objetivo aqui não é abordar todos os
110
matizes do Programa Forte e de sua existência controversa. Pretendo
apenas mostrar que, da mesma forma que sustentar um intemalismo

110 Para a visão de diferentes críticas ao Programa Forte, além das comentadas por Bloor na
segunda edição de seu livro, ver Haddock (2004) e Sokal, Bricmont (2006 [19971).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 141
metafísico seria uma ilusão, sustentar um externalismo radical que finda
no relativismo seria um equívoco. Na análise que se segue, a partir da
ideia de gramática da ciência aqui exposta, procurarei centrar exatamente
na crítica feita por Kuhn ao Programa Forte, isto é, a desconsideração
da natureza na produção social do conhecimento científico - ainda que
esse talvez seja um ponto central na controvérsia contra o Programa
Forte - além do excesso das negociações (política) na ciência.
Conforme visto no capítulo três, Kuhn acredita que o Pro-
grama Forte - em especial, através de sua análise do Leviathan and thé
Air-Pump: Hobbes, Boyle and the experimental life, de Shapin e Schaffer-,
não considerou efetivamente o papel da natureza na elaboração de seu
programa de sociologia do conhecimento científico. Em parte, a noção
de léxico de Kuhn já apontava para a necessidade e possibilidade de uma
compreensão mais adequada da relação entre sociedade e natureza.
Contudo, vimos também que o léxico kuhniano, ao procurar sustentar-
se nas ideias kantianas de categorias e "coisa em si", afastou-se de uma
perspectiva inteiramente social defendida, anteriormente, pelo próprio
Kuhn. Tentando evitar o relativismo ao qual a ideia de léxico pudesse con-
duzir, Kuhn procurou estabelecer algo permanente ou fixo: "Subjacente
a todos estes processos de diferenciação e mudanças, precisa haver algo
permanente, fixo e estável. Porém, como a Ding an sich de Kant, esse
algo é inefável, indescritível, não-analisável" (Kuhn, 2006, p. 132). Com
essa perspectiva, Kuhn acabou adotando uma postura semelhante às
tradicionais concepções epistemológicas que buscam porfundamentos
últimos como algo "inefável", "indescritível" e "indiscutível". Com esse
vocabulário metafísico e a concepção pouco clara subjacente a ele, o
autor de A estrutura das revoluções cientrjicas não foi capaz de dar uma
resposta efetiva ao Programa Forte, ainda que sua crítica à nova histo-
riografia da ciência fosse pertinente. Assim, utilizarei a crítica de Kuhn
para procurar avançar, em uma perspectiva wittgensteiniana, alguns
importantes aspectos da questão.
Antes de qualquer coisa, é preciso observar que Wittgenstein
exerceu forte influência na elaboração do Programa Forte (Bloor, 1973),

1421 MAuRO f.úao I.DrÃo C<>N..


mais que isso, Bloor dedicou boa parte de sua pesquisa à análise da se-
gunda filosofia de Wittgenstein, escrevendo sobre ela inúmeros artigos
e alguns livros (Bloor, 1983, 2002). Entretanto, em alguma medida, Bloor
procurou fazer certa separação entre o Programa Forte e sua análise da
filosofia de Wittgenstein. Assim, não apenas a presença direta do filósofo
austríaco em Conhecimento e imaginário social tornou-se diminuta - ao
que poderíamos esperar, comparativamente à sua importância no artigo
de inauguração do Programa Forte (Bloor, 1973) - , mas a avaliação da
filosofia wittgensteiniana feita por Bloor passou a ocorrer paralelamente
ao Programa Forte, e, de certa forma, independentemente dele. Disso
podemos concluir que, apesar da forte influência, uma identificação mera
e simples entre Wittgenstein e o Programa Forte seria um equívoco. Evi-
dentemente, soma-se a isso o fato de a interpretação de Bloor da obra
wittgensteiniana não ser necessariamente a única possível. Vimos ainda
que Wittgenstein também foi muito caro a Kuhn, mesmo assim o autor
de A estrutura das revoluções científicas fez severas críticas ao Programa
Forte. Ainda que os dois eminentes pensadores tenham sido leitores de
Wittgenstein, procuro compreender a querela entre ambos a partir da
obra do próprio Wittgenstein.
Outro aspecto a salientar é que, como já mencionado, ainda
que o livro de Shapin e Schaffer siga as orientações do Programa Forte
(Shapin, Schaffer, 1985, p. 15), tem uma relativa autonomia e, muitas
vezes, como afirmam seus autores, eles se apoiam em um uso "liberal"
e "informal" de Wittgenstein (Shapin, Schaffer, 1985, p. 18, 20, 22). Cer-
tamente, essa interpretação "liberal" de Wittgenstein é algo bastante
questionável. 111
De acordo com o referido livro criticado por Kuhn, estabele-
ceu-se na década de 1660 uma querela entre Boyle e Hobbes acerca dos
experimentos de Boyle sobre a bomba de ar. Conforme vimos, para Sha-
pin e Schaffer, nessa querela estavam envolvidos mais do que aspectos

111 Shapin e Schaffer salientam que o livro também está ancorado nas pioneiras ideias de Fleck
(Shapin, Schaffer, 1985, p. 16). En:retanto, talvez Fleck não concordasse com a posição
relativista do Programa Forte. Para uma crítica de Bloor a Fleck, ver Bloor (1986).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


Oproblema da historicidade da ciência 143
teóricos e experimentais que pudessem confirmar a existência ou não
do vácuo. O que teria decidido a questão, para esses autores, teriam sido
muito mais aspectos sociais e políticos (retóricos) do contexto histórico e
social do que propriamente científicos ( et?istemológicos ). Segundo seus
autores, a intenção do livro não era compreender as razões do vencedor.
"Não tomamos como uma das nossas perguntas: 'Por que Boyle ganha?"'
(Shapin, Schaffer, 1985, p. 341). A ideia era partir dos princípios da so-
ciologia do conhecimento científico (Shapin, Schaffer, 1985, p. 15) para
compreender como os dois diferentes lados construíram seus discursos,
suas argumentações, sem que se tomasse um partido de antemão, isto é,
analisar a controvérsia não buscando pela verdade ou objetividade, mas
pelo modo como as condições sociais influíram sobre a ciência.
Assim, cada perspectiva tinha sua visão relativa do processo.
Os autores argumentam que a intenção era compreender a lógica interna
da "forma de vida" que estavam analisando com seus valores próprios.
Com efeito, independentemente de Boyle ser considerado por muitos
historiadores da ciência o criador da "vida experimental" ( experimental
/ife ), esse não seria o ponto da história da ciência que eles procuram fazer.
Para eles, "a solução do problema do conhecimento é política" (Shapin,
Schaffer, 1985, p. 342). A nova proposta científica de Boyle compartilhava,
com a nova ordem política instituída pela "restauração", a mesma forma
de vida que sustentava o ideal de uma sociedade aberta e liberal. Essa
nova organização política deveria ser também o espaço para se construir
a então nascente ciência. O laboratório, como o espaço da construção
do saber útil, pertencia à mesma ordem política trazida pela restauração.
Os autores terminam o livro concluindo: "colocamo-nos em posição de
perceber que somos nós mesmos e não a realidade que é responsável
por aquilo que sabemos. O conhecimento, tanto quanto o Estado, é o
produto da ação humana" (Shapin, Schaffer, 1985, p. 344).
Como vimos, Kuhn discorda desse tipo de abordagem para a
história da ciência dizendo que Shapin e Schaffer, no ímpeto de defender a
ideia de política - negociação - na ciência, não foram capazes de concluir
que existiam ali aspectos científicos bastante convincentes para resolver
o debate a favor de Boyle. Este tipo de análise feito pela historiografia
da ciência com base no Programa Forte nos permite retornar à crítica
de Kuhn perguntando, com ele, até que ponto os aspectos sociais se
sobrepõem à natureza. Ainda que consideremos os valores próprios de
um grupo, uma comunidade científica ou uma sociedade - uma forma
de vida - cabe-nos perguntar: seria possível ao historiador da ciência
encontrar parâmetros para compreender se uma dada negociação é
retórica ou é científica? Para compreendermos essa questão em uma
perspectiva wittgensteiniana, dois pontos são aqui muito importantes:
( 1) compreender como o aspecto empírico é visto pela gramática da
ciência e (2) entender como diferentes gramáticas - diferentes formas
de vida - podem relacionar-se.
O importante na compreensão do primeiro ponto é perceber
que, ainda que entenda o conhecimento como um processo no qual a
linguagem é fundamental, para Wittgenstein, a empiria também é muito
importante. A linguagem não se faz sem a empiria que é parte do jogo
de linguagem, na maioria das vezes. A crítica ao dado empírico como
critério último de conhecimento não destitui a importância desse dado
empírico. Entretanto, de um modo semelhante a Fleck, para o autor
das Investigações filosóficas, os "fatos" são vistos em uma perspectiva
sistêmica a partir do todo da gramática. Não podemos ter acesso direto à
positividade dos fatos, uma vez que toda a nossa abordagem deles é feita
a partir da gramática e dos jogos de linguagem em uma forma de vida.
Para Wittgenstein, dicotomias como "fato/valor", "linguagem/mundo"
etc., da forma como são concebidas não apenas pelo neopositivismo,
mas pela tradição filosófica, constituem meras ilusões filosóficas que se
dissolvem ao serem vistas sob a ótica da pragmática da linguagem. Asim-
ples denotação de um objeto já é algo possibilitado apenas pelas regras
de uso, pelos jogos de linguagem, enfim, pela gramática. Não posso nem
mesmo expressar a ideia "isto está aqui!" sem um conjunto de regras
linguísticas e ações (gramática) que me permitam formular essa ideia.
O meu modo de ver o mundo é condicionado pela minha gramática, ou
pela gramática do meu coletivo.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 145
Entretanto, ainda assim, mesmo que os fatos não sejam mais
compreendidos como referência última na fundamentação do nosso
conhecimento, como pretendeu o neopositivismo, eles têm sua impor-
tância no contexto da gramática e dos jogos de linguagem, pois, para
Wittgenstein, se os fatos fossem outros, nossos jogos de linguagem
também seriam outros. "Se as coisas se comportassem de modo total-
mente diferente do que se comportam de fato-( ... ) então nossos jogos
de linguagem normais perderiam seu sentido" (Wittgenstein, 1979 [1953],
§142). Ou ainda, "se imaginamos os fatos diferentemente do que são,
certos jogos de linguagem perdem alguma importância, enquanto outros
se tomam importantes. E, desse modo, há uma alteração - gradual - no
uso do vocabulário de uma língua" (Wittgenstein, 1969, §63). Com efeito,
mesmo que a prática e o discurso cientifico se alterem, essa alteração
tende a ser gradativa e em acordo com os fatos.
Portanto, para Wittgenstein, o conhecimento não pode ser
algo que se construa sem levar em consideração os fatos e a linguagem,
enquanto usos, regras (gramática) e as práticas sociais no interior de uma
forma de vida. É a partir desses processos interativos entre linguagem,
objetos e ações que constituímos nosso entendimento das diferentes si-
tuações que nos cercam. O conhecimento, para o autor das Investigações
filosóficas, é um processo que se estabelece levando em consideração
os múltiplos jogos de linguagem que formam a gramática, isto é, fatos,
objetos, ações e linguagens. Todos esses aspectos se articulam para
formar a gramática de nosso conhecimento, estabelecendo, assim, a
gramática da ciência como um sistema autorreferente ou um "sistema
de referência" {Wittgenstein, 1969, § 83), no qual

toda prova, todo confirmar e invalidar de uma suposição


acontece já no interior de um sistema. Esse sistema não é
um ponto de partica mais ou menos arbitrário e duvidoso
para todos os nossos argumentos, ao contrário, pertence à
essência do que chamamos um argumento. O sistema não
é tanto o ponto de partida quanto o elemento da vida dos
argumentos (Wittgenstein, 1969, § 105).

1461 MAURO U)oo LEITÃO CON. .


o conhecimento, portanto, é um sistema que se estabelece em
uma rede de conexões entre os seus múltiplos aspectos, signos, ações,
objetos, fatos etc. Para Wittgenstein, não se trata apenas de afirmar que
aquilo em que acreditamos "forma um sistema" (Wittgenstein, 1969, §
141), ou ainda que aquilo a que nos agarramos "não é uma proposição,
mas um conjunto de proposições" (Wittgenstein, 1969, § 225), mas, so-
bretudo, de constatar que "o nosso discurso adquire o seu significado a
partir do resto de nossas ações" (Wittgenstein, 1969, § 229). Em outros
termos, o sistema não é apenas um sistema linguístico, mas um sistema
de linguagem, ações e objetos. A partir dessa perspectiva pragmática
é que "o nosso saber forma um grande sistema. E só no interior desse
sistema é que o singular tem o valor que lhe damos" (Wittgenstein,
1969, § 410). É isso que significa afirmar que até a singularidade de uma
proposição empírica, ou a afirmação de "isto está aqui!", apenas adquire
seu sentido a partir do todo da gramática. Ainda que proposições empíri-
cas aprendidas por nossas experiências possam ser consideradas como
certas por nós (Wittgenstein, 1969, § 273), a experiência "não as ensina
isoladamente; pelo contrário, ensinou-nos um conjunto de proposições
interdependentes" (Wittgenstein, 1969, § 274). Para a gramática da ciên-
cia, se há excessos na negociação 1 desconsiderando algum fator empírico
(ou mesmo teórico), isso pode ser corrigido pela análise do sistema como
um todo - a autocorreção é um dos importantes aspectos da gramática
da ciência, bem como o postulado da empiria, ainda que esse não seja o
fundamento último. Em outras gramáticas ( arte ou religião), por exemplo,
empiria ou auto-correção não são aspectos centrais.
Se, para o autor de Sobre a certeza, no todo do "sistema é que
o singular tem o valor que lhe damos" (Wittgenstein, 1969, § 410), as
relações entre o todo e a parte, isto é, entre cada elemento singular e a
soma dos elementos, enquanto um conjunto, tornam-se os parâmetros
de aferição para a compreensão do comportamento do sistema. Com
efeito, fatos, experimentos e resultados científicos - apesar de toda a
nossa dificuldade de entendê-los - parecem ter muito mais peso no sis-

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 147
tema de conhecimento da ciência do que o Leviathan and the Air-Pump:
Hobbes, Boyle and the experimental life parece estar disposto a aceitar.
Entretanto, nessas relações entre os elementos do sistema
- a gramática - , o sentido (Witz) do jogo de linguagem não é algo fixo
( ou pertencente a uma esfera fixa, seja teórica ou experimental). Em
Wittgenstein, não há a necessidade de postular algo fixo, como Kuhn
pretendeu. Os elementos do sistema, bem como suas ações - gramática
da ciência - , flutuam a partir do ordenamento das múltiplas relações do
sistema; às vezes a ênfase é dada pela teoria (mas ainda em interação
com a experiência), às vezes a ênfase é dada pela experiência (mas ainda
em interação com a teoria).
E aqui chegamos ao nosso segundo ponto, a questão do rela-
tivismo da forma de vida. Para Shapin e Schaffer, "Hobbes e Boyle espe-
cificaram as regras e acordos de formas de vida filosóficas diferentes" 112
(Shapin, Schaffer, 1985, p. 331) que seriam impermeáveis entre si. E aqui
residiria seu relativismo herdado não da antiga "incomensurabilidade
entre os paradigmas", mas supostamente do conceito wittgensteiniano
de forma de vida. Shapin e Schaffer argumentam que a forma de vida
de Wittgenstein, ao estabelecer os critérios de nosso conhecimento e
julgamento na gramática e jogos de linguagem, acaba por encerrar o
conhecimento no relativismo. Por isso, Hobbes e Boyle não entrariam em
acordo. No entanto, esse talvez tenha sido o maior equívoco atribuído
à filosofia de Wittgenstein, e essa seria a questão central subjacente ao
livro de Shapin e Schaffer. Se a gramática fosse impermeável a outras
gramáticas, teríamos sim o relativismo, mas, na medida em que a gramá-
tica é um sistema aberto, podemos mitigar o relativismo.
Certamente, existe o fim da cadeia de razões entre as pers-
pectivas defendidas por dois indivíduos (ou mesmo grupos), entretanto,
ainda que com perspectivas diferentes, Hobbes e Boyle inseriam-se em
uma mesma forma de vida, que instituía a racionalidade como parâmetro
da conversação e da própria possibilidade de argumentação. A partir da

112 "Hobbes and Boyle specified the rules and conventions of dlffering philosophical forms of life".

1481 MAURO U)ao LEITÃO CONo<


minha gramática, posso estabelecer relações e critérios para compreen-
der outras gramáticas com base em eventuais pontos de aproximação,
mas, sobretudo, no compartilhar "semelhanças de família" no modo
como atuamos no mundo. Embora a gramática seja o lugar onde cons-
truo os meus critérios de julgamento, é possível compreender outras
gramáticas através dela:

Imagine que você chegue como pesquisador em um país


desconhecido com uma língua inteiramente desconhecida.
Em que circunstância você diria que as pessoas ali dão ordens,
compreendem-nas, seguem-nas, se revoltam contra elas, e as-
sim por diante? Omodo de atuar compartilhado pelos homens
é o sistema de referência por meio do qual interpretamos
uma linguagem estrangeira (Wittgenstein, 1979 [1953], § 206).

A referência para a compreensão de uma gramática estrangeira


não é apenas o seu atuar, mas também o nosso próprio atuar, pelo qual
compartilhamos igualdades, diferenças, aproximações etc., - semelhan-
ças de família - com a cultura estrangeira. Não existe propriamente um
solo comum entre diferentes formas de vida no sentido de que haja um
fundamento comum, mas simplesmente comportamentos, práticas, in-
terações, enfim, modos de atuar, que podem ser compartilhados como
semelhanças de família, às vezes em maior, às vezes em menor grau.
Existiam muitas semelhanças de família entre Hobbes e Boyle, ainda que
também muitos desacordos. Hobbes, enquanto filósofo representante
de uma antiga visão de mundo, poderia nunca aceitar as ideias de Boyle
(assim como Agassiz/Darwin, Pouchet/Pasteur etc.), mas a sociedade -
comunidade cientifica - à qual os dois pertenciam foi capaz de substituir
uma perspectiva racional "não" experimental por outra experimental.
Os membros dessa comunidade, muito provavelmente o próprio Boyle,
passaram por esse processo de transição encontrando semelhanças de
família entre uma concepção e outra e, finalmente, migrando de uma
concepção tradicional para uma nova (transformando a forma de vida ou
migrando de uma para outra). Mais que isso, o laboratório e os critérios

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 149
experimentais públicos - realização de experimentos abertos ao públi-
co - tiveram grande importância nessa transição, isto é, na aceitação da
gramática da ciência experimental.
Enfim, da mesma forma, diferentes teorias e práticas cientí-
ficas não são necessariamente impermeáveis, o que não implica dizer
que encontram na positividade dos fatos ou na essência transcendental
a referência absoluta de convergência ou refutação do conhecimen-
to. Diferentemente disso, a possibilidade de diálogo entre propostas
científicas alternativas ( de diferentes grupos ou mesmo no interior
de um mesmo grupo) é pautada nos critérios públicos - não há uma
linguagem privada - da pragmática da linguagem e compreendida
através de sua gramática. Nessa perspectiva gramatical, a linguagem
e os fatos se "equilibram 11 nos jogos de linguagem, permitindo, assim,
a constituição da nossa racionalidade e do nosso modo de organizar
cientificamente o mundo.
Com efeito, a historicidade da ciência, em uma perspectiva
wittgensteiniana, se dá na concepção de que a gramática e todo o seu
aparato nos situa historicamente. Comportamentos sociais e linguísticos
estruturam nossas práticas cognitivas no contexto particular de uma
forma de vida, constituindo aí nossa historicidade. Entretanto, essa
gramática situada nessa forma de vida não ignora a natureza (objetos,
fatos, ações). Em uma perspectiva wittgensteiniana, fatos e teorias
equilibram-se no todo do sistema do conhecimento científico. Mais que
isso, uma forma de vida interage com outras possibilidades de práticas
sociais ou outras formas de vida, com mais ou menos conexões. Talvez a
ciência seja a gramática que mais permita aproximações, comparações,
confrontações etc., com outras gramáticas ou formas de vida.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, procurei mostrar que a filosofia da linguagem


de Wittgenstein pode ser muito frutífera para a compreensão da ciência,
isto é, a partir dela podemos construir um tipo de "teoria da ciência 11, o

150 IMAuRO IJlao LEITÃO COND<


que denominei de "gramática da ciência". Para ilustrar como a gramática
da ciência lida com questões epistemológicas, retomei o debate interna-
lismo versus externalismo. Para Koyré, um dos principais representantes
do internalismo, a ciência seria muito mais o resultado de uma mudança
de "atitude metafísica" do que propriamente um processo patrocinado
por transformações sociais e tecnológicas. Esse distanciamento entre
ciência, técnicas e práticas sociais caracterizou o internalismo de Koyré.
Por sua vez, em sua segunda filosofia, Wittgenstein elaborou uma nova
filosofia da linguagem de orientação pragmática, entendendo a própria
linguagem como uma técnica, baseada exatamente nas práticas sociais
que emergem em uma sociedade (forma de vida). Onde Koyré via theoria,
realismo matemático e as bases metafísicas da ciência, Wittgenstein nos
instigou a ver a ciência como um tipo de gramática regida por regras,
decorrentes dos jogos de linguagem presentes na sociedade. Entretanto,
aparentemente superado devido a seus aspectos metafísicos, o interna-
lismo de Koyré ainda instiga questões como a da efetiva autonomia da
ciência com relação a essas mesmas práticas sociais. Assim, concluímos
com a gramática da ciência: mesmo que a ciência surja de práticas sociais
- portanto, recebendo variadas influências da sociedade - , ela constitui
suas próprias regras de funcionamento, sendo, assim, autônoma, ainda
que não independente da sociedade que a criou. Por fim, a partir de uma
perspectiva wittgensteiniana, encontramos boas possibilidades para
responder algumas questões colocadas por Koyré sobre o surgimento
da ciência moderna.
Vimos ainda que a interpretação do Programa Forte sobre
o funcionamento da ciência reduz a uma ilusão a crença de que, na
construção do nosso conhecimento, os fatos, objetos, enfim, a na-
tureza desempenha um grande papel. Para Wittgenstein, se os fatos
fossem outros, outros seriam os nossos jogos de linguagem, outra
seria a nossa gramática de entendimento do mundo. Com efeito, a
forte ênfase na negociação proposta pelo Programa Forte parece
desconsiderar esse aspecto. A negociação na ciência nunca pode
prescindir dos critérios empíricos, ainda que eles sejam visto apenas

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 151
a partir da gramática de uma forma de vida. Vimos também que, ainda
que o Programa Forte sugira um relativismo entre as formas de vida,
não apenas parâmetros empíricos, mas, sobretudo, semelhanças de
família entre elas permitem uma profícua possibilidade de diálogo.
Dito de outro modo, ainda que uma forma de vida e sua gramática
tenham regras próprias, ela não é necessariamente impermeável a
outras gramáticas, a outras formas de vida. Isso ocorre, sobretudo,
quando as duas gramáticas compartilham algumas "semelhanças de
família" em suas práticas, usos e experimentos que, embora não sejam
decisivos, facilitam as estratégias de reconhecimento intersubjetivo
entre as diferentes gramáticas (formas de vida).

1521 MAURO Llloo L<ITÃOCONDI


CONCLUSÃO

~ pós percorrer alguns dos momentos mais significativos da histo-


riografia da ciência, podemos concluir que o crescimento exponencial
da atividade científica, bem como seus muitos impactos na cultura
contemporânea, deixou-nos de forma muito nítida o entendimento de
que a ciência tem uma história. Mais que essa compreensão histórica,
chegamos à ideia epistemológica de que essa história poderia ser um
fator determinante no resultado final da própria ciência. Essa concepção
epistemológica foi denominada aqui de historicidade da ciência. Com
efeito, o objetivo central deste livro foi analisar como a ideia de historici-
dade da ciência se constituiu e quais foram os seus alcances, dificuldades
e limites. Enfim, como a ideia de historicidade da ciência se consolidou.
Ao longo do século XX, o posicionamento frente à historicidade
da ciência oscilou de um extremo ao outro. Saímos de uma posição de não
valorização do papel da história e dos aspectos sociais na construção da
ciência, passando por uma valorização e chegamos até o extremo oposto
da supervalorização desses aspectos. No início do século, partimos do
positivismo - posteriormente neopositivismo - que ignorava o papel
da história na compreensão da ciência até, no final do mesmo século,
posições socioconstrutivistas radicais para as quais critérios científicos
não são apenas influenciados, mas seriam radicalmente condicionados
por fatores sociais. Após analisar esse percurso, parece-nos que essas
posições extremas devem ser evitadas. A posição intermediária entende
que a ciência é fruto de uma interação entre a sociedade, com sua lingua-
gem e práticas sociais, por um lado, e a natureza, por outro. Seu principal

11
UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1
O problema da historicidade da ciência 153
objetivo seria compreender as regras da natureza, ainda que a partir do
condicionamento social. A ciência recebe a influência de valores sociais,
mas a referência da natureza é um elemento central nesse processo.
Com o propósito de aprofundar como a ideia de historicidade da ciência
se desenvolveu na historiografia da ciência, analisei alguns dos autores
mais significativos para a compreensão dessa questão.
Inicialmente, abordei as ideias de Koyré e Zilsel no debate
conhecido como interna!ismo versus externalismo na história da ciên-
cia. Vimos que, ao discutir as origens da ciência moderna, essa querela
expandiu as possibilidades de compreensão da história da ciência. A
posição que ficou conhecida como internalismo ampliou a compreensão
do papel das ideias científicas na formação da ciência moderna. Por sua
vez, a concepção conhecida como externalismo, ao abordar os aspec-
tos sociais e tecnológicos na constituição do conhecimento científico,
possibilitou-nos uma melhor compreensão da relação entre ciência e
sociedade. Contudo, ainda que tenha sido muito importante para nosso
entendimento do funcionamento da ciência, esse debate não avançou
a questão da historicidade da ciência. Ele mais definiu parâmetros
metodológicos - internalista e externalista - de abordagem da ciência
do que propriamente estabeleceu uma discussão epistemológica que
aproximasse as duas abordagens.
Longe do debate internalismo versus externalismo, Ludwik
Fleck, embora não tenha usado a expressão "historicidade da ciência",
propôs a ideia de que o resultado final do conhecimento científico sofre
grande influência do contexto social e histórico no qual se realiza, isto
é, ele concebeu a tese da "historicidade da ciência". Fleck constrói uma
perspectiva epistemológica na qual a história e as práticas sociais, além
dos próprios aspectos científicos, tornam-se essenciais para a com-
preensão da produção da ciência. Infelizmente, a obra de Fleck teve uma
recepção dificultada por muitos fatores e parece que ainda temos muito
o que aprender com ele. Contudo, temos que admitir que dificilmente
suas ideias possam atingir o alcance da obra de seu sucessor Thomas
Kuhn. Em um sentido mais amplo, muitas das ideias semelhantes dos

1541 MAURO Ulao I.STÃD CONot


dois autores já foram assimiladas na nossa cultura a partir de Kuhn, cujo
pensamento foi amplamente disseminado. As pessoas não sairão por
aí anunciando "mutações" em seus "estilos de pensamentos" e, pro-
vavelmente, elas continuarão a proclamar que ocorreram "mudanças"
em seus "paradigmas" por um longo tempo. Ainda que o próprio Kuhn
tenha abandonado a ideia de mudança de paradigma, sua força midiática
e didática é tão poderosa que ela parece ter adquirido uma vida própria
na cultura contemporânea. Nesse sentido, todos ainda somos kuhnianos.
Entretanto, para o filósofo e o historiador- longe do jargão filosófico do
senso comum - as ideias de Fleck, talvez, sejam mais adequadas para um
melhor entendimento do funcionamento da ciência.
Enquanto herdeiro da ideia de historicidade da ciência propos-
ta por Fleck, Kuhn, com a excepcional exposição de sua obra, consoli-
dará definitivamente essa concepção. Em outras palavras, o autor de A
estrutura das revoluções científicas foi extremamente importante para
a historiografia da ciência por inúmeras razões, mas talvez uma de suas
maiores contribuições tenha sido ecoar a concepção de historicidade da
ciência como nenhum outro autor o fez. Ainda que inspirado em Fleck,
Kuhn deu a essa perspectiva um contorno próprio, procurando superar
com ela o debate internalismo versus externalismo. Ele estabeleceu de
modo definitivo "um papel para a história" da ciência criando, assim,
uma "nova imagem da ciência" em oposição à velha imagem de uma
ciência quase que sem história ( ou com uma história cronológica e de
anedotas). Ao buscar compreender a relação entre sociedade e nature-
za, Kuhn nos mostrou que a questão da historicidade da ciência não é
apenas de difícil solução, mas que talvez jamais encontre uma resposta
definitiva. Existe uma zona de imprecisão entre o que é da cultura e o
que é da natureza e temos que conviver com essa imprecisão ou com
essa "tensão essencial" quando fazemos história da ciência, ainda que
o objetivo seja sempre minimizar tal imprecisão. Portanto, parece que
sempre teremos que conviver com o "resíduo" da história nas nossas
interpretações da natureza, já que não podemos sair de nossa história.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


Oproblema da historicidade da cllncla 155
Com isso, Kuhn afirmou a importância da historicidade da ciência de modo
definitivo. A história da ciência nunca mais foi a mesma depois de Kuhn.
Na sequência, vimos que a questão da linguagem, valorizada
tanto por Fleck quanto por Kuhn, tornou-se muito importante para com-
preendermos em que medida a historicidade da ciência se efetiva. Infeliz-
mente, na medida em que esses autores não realizaram uma abordagem
da linguagem na compreensão da ciência de modo satisfatório, analisei a
filosofia do segundo Wittgenstein procurando entender como ela poderia
nos ser útil para a compreensão do papel da linguagem na racionalidade
científica, o que denominei de "gramática da ciência". O sentido geral
da noção de gramática da ciência é o de que a ciência é o resultado da
interação entre a sociedade, com sua linguagem e práticas sociais, por
um lado, e a natureza, por outro. As concepções tradicionais de conhe-
cimento entendiam o conhecimento como a representação da natureza,
mas segundo a perspectiva da gramática da ciência, o conhecimento é
um processo de interação entre a sociedade e a natureza mediada pela
linguagem. Signos, ações, objetos, fatos e teorias estão articulados em
múltiplos e variados jogos de linguagem em um sistema de referência
pragmático e semântico (gramática) que, em seu conjunto, constitui
nosso conhecimento. Uma teoria ou um artefato científico qualquer é
resultado dessas múltiplas conexões. Teorias, artefatos e fatos científicos
são marcados pelo conjunto dessas interações efetuadas em um dado
espaço e tempo histórico e, desse modo, carregam no entrelaçar entre
cultura e natureza a historicidade desse conhecimento. A gramática da
ciência não apenas nos fornece a compreensão da tessitura entre o social
e o natural na formulação da ciência, mas também nos dá os registros
dessa história. A gramática nos situa historicamente.
Com essa noção de gramática da ciência podemos compreen-
der que, assim como fazer uma representação positivista da ciência seria
um erro, radicalizar seus aspectos sociais também seria um equívoco. Os
jogos de linguagem e a gramática do entendimento da natureza é um
fenômeno cultural e natural ao mesmo tempo, estabelecendo assim a
tessitura entre o cultural e o natural. Enfatizar apenas um lado dessa

1561 MAURO U)oo LEITÃO COND!


equação seria construir uma falsa ideia de ciência. Deste modo, a ideia
de gramática da ciência parece ser bem profícua para a compreensão
da ciência e de sua história, enfim, para o nosso entendimento da histo-
ricidade da ciência.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1 57


O problema da historicidade da cllncla 1
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1661 MAuao Ulao LETÃO CoNDI


ÍNDICE REMISSIVO

Acoplamento ativo 82-83, 115. Condições suficientes 41, 55, 62, 131-133, 135-136,
Acoplamento passivo 82-83, 115. 138, 140-141.
Conhecer / conhecimento 20-22, 24-25, 27-29,
Arquimedes 43, 135-136.
32-33, 37, 40, 45-49, 51, 53·54, 56-67, 69-70, 73-
Ars49. 75, 77-84, 86-90, 95, 97-100, 102-107, 109, 111,
Arte 47-51, 60, 79, 89, 99,100,102,127, 137, 139-140. 113, 115-116, 119-122, 128, 131-142, 144-146, 148,
Artefato 44, 49, 52, 55, 13), 156. 150-152, 154, 156.
Artesão 26, 31-32, 41-42, 4S·47, 49, 51-52, 55, 58. Contexto de descoberta 89, 94,

Artesão-engenheiro 26, 32, 39-40, 46-47, 49, 58. Contexto de justificativa 89, 94.

Atitude metafísica 25, 3z, 42-44, 129-132, 138, Copérnico 45, 53, 113.
141,150. Cultura 20, 46, 48-49, 72, 85, 89, 93, 104, 108, 112,
Autonomia 33, 129-130, 139, 143. 149,153, 155-156.
Autonomia da ciência 57, 129-130, 138, 151. Da Vinci, Leonardo 39, 46.

Bacon, Francis 37-38, 41, 51, 57, 136. Darwin, Charles 110,149.

Bicor, David 27, 29-30, 64, 68, 86, 97·99, 102-105, Descartes, René 37-39, 41, 57, 136-137, 139.
107-108, 117,122, 127-128, 141-143. Durkheim, Émile 64, 83, 102.
Boyle, Robert 105-107, 117. 142-144, 147-149. Einstein, Albert 36.
Capitalismo 46-48, 58. Engenheiros romanos 26, 57-58, 131, 141.
Carnap, Rudolph 32, 71, 71., 88, 111. Eplsteme 22, 50-53, 134.
Categoria 82, 91, 113-114, 120, 142. Epistemologia 19, 21-23, 27, 38, 61, 64-68, 70,
Ciência 19-29, 31-33, 36-45, 47-58, 60-62, 64-72, 73·75, 79-81, 84, 87, 89-90, 94-95, 97, 103, 109,
74-75, 77-78, 82-97, 99-105, 107-108, 110, 113, 111, 116, 123, 128.
115-117, 119-123, 126-142, 144, 147, 150-151, 153-157. Epistemologia histórica 21-22, 67, 128.
Ciência moderna 25-26, 31-32, 35-36, 38-43, 45-48, Est!lo de pensamento 39, 44, 64, 68-69, 71-73,
50-52, 55, 57-58, 110, 131-133, 135, 151, 154. 75-81, 87, 91, 155.
Ciência normal 78, 92, 110. Especiação 109, 111, 113, 140.
Círculo de Viena 34, 46, 70-71, 73-74, 76, 81, 89, Evolução / evolucionária 75-76, 87, 98, 109-111,
94-95, 97, 103, 120·121, 123. 113-114, 117.
Coisa em si (Ding an sich) 114, 120, 142. Falseabilidade / Falsificação 95-96.
Coletivo de pensamento 62, 69-70, 72-73, 76, Fato 23, 25, 27, 36-37, 39, 42, 59-60, 63-64, 69-71,
79-81, 87, 115. 73-76, 81, 83-84, 88, 94·95, 98, 108, 111, 114, 120,
Condicionamento 62, 67, 74, 76-77, 154. 136, 145-147, 149-151, 156.
Condições necessárias 41.42, 55, 61, 131-133, 136,
138,141.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da clênda 167
Fleck, Ludwik 19, 26-28, 30, 39, 57, 59-84, 86-88, Linguagem 28-29, 36, 39, 74-75, 109-113, 117, 119-
90-91, 93-94, 97, 103-104, 109-111, 115-117, 119-121, 126, 130-133, 137-138, 145-147, 149-151, 153, 156.
130, 140, 143, 145, 154-156. Lógica 74-75,89, 84-96, 101, 123, 126, 128-129, 144.
Forma de vida 105, 112, 125, 128, 130-131, 133, 135, Mannheim, Karl 63, 71, 83, 102-103.
137-138, 144-146, 148-152.
Mothesis uni.,ersalis 36-37, 126.
Fundamento 24, 35, 37, 61, 68, 95, 97, 115, 127,
142, 147, 149. Marxismo 47, 96.

Galileu 35-40, 43·45, 53, 135-136. Maxwell, James 36, 139.

Gestolt 56, 76-79, 90, 92, 97, 99,109.


Mecânica clássica 39, 57.

Gilbert 46,52. Merton, Robert 25, 40, 63,102.

Gramática 112, 114, 119, 123-127, 129-131, 133-135, Metafísica 37, 42, 44, 58, 74, 114, 127-128, 130, 132,
137-141, 145-152, 156; profunda 125-126; de 134-135, 140-141, 151.
superfície 125. Método 31, 39, 48, 52, 73, 95.
Gramática da ciência 28-29, 119, 122-123, 126, 128, Modernidade 22, 31, 43, 47-48, 50, 52-53, 71, 133.
130-133, 135, 138-141, 145-151, 156-157. Mudança de paradigma 78, 86, 91-92, 111, 155.
Grossmann, Henryk 25, 36, 39-40, 47. Mutações 39, 75, 78, 81, 87, 110, 155.
Hegel, Wilhelm 22, 38. Natureza 22-23, 25, 28, 32, 36, 39-42, 45, 51-52,
Hessen, Boris 25, 36, 40, 47. 56, 60, 68, 72, 82, 82-86, 89-90, 92-93, 99-100,
História da ciência 19-25, 27, 29, 31, 33-38, 40, 44· 102-104, 106·108, 113-114, 116, 118, 121-123, 128, 137,
45, 54, 57-58, 60-61, 65, 67, 78, 84-88, 94, 97, 142, 144, 150-151, 153-156.
102, 107, 116, 118, 144, 154-156. Negociação 23, 96, 100-102, 105-108, 117, 122, 140,
Historicidade da ciência 21-22, 24, 26-29, 32-33, 142, 144-145, 147, 151.
53·54, 56, 58-62, 65-66, 68, 72, 74, 77, 84-88, 90, Neopositivisno 32, 70-71, 74·75, 83-88, 94, 97,
97-98, 116, 118-119, 121, 150, 153-156. 104, 145, 153.
Hobbes, Thomas 105-107, 117, 142-143, 147-149. Newton, Isaac 35-36, 40, 45, 139.
Husserl, Edmund 35-36, 38. Objeto 21, 29, 44, 65, 73, 81-82, 97-98, 103, 114, 119,
Hume, David 95. 138, 145-147, 150-151, 156.
Iluminismo 93, 108, 117. Paradigma 78, 81, 86, 91-93, 97-100, 105, 109-111,
114, 117, 148, 155.
Incomensurabilidade / Incomensurável 77, 81,
92-93, 98, 100, 109, 112, 148, Paradoxo 23, 35, 61.
Individualismo 48,53. Platão 38-39.
lnternalismo / Extemalismo 24-26, 28-29, 31-36, Platonismo 36-39.
44·45, 53-58, 60-62, 68, 84, 87-90, 94, 114, 119, Política 60, 87, 89, 99-100, 102, 127, 132, 134, 140,
122, 128-131, 134,141, 150-151, 154-155. 142,144.
Intersubjetividade/ intersubjetivo 152. Popper, Karl 27, 30, 70, 86, 89, 93-99, 101, 104,
Jogos de linguagem 56, 112, 114, 121, 123-128, 130, 108, 116-117.
137, 145-148, 150-151, 156. Pragmática da linguagem 28, 123, 130-131, 133,
Kepler, Johannes 53, 139. 138, 145, 150.
Koyré, Alexandre 24-26, 29-45, 47, 50-51, 54-58, Pré-ideia 71, 88.
60, 62-63, 71, 80, 87-88, 110, 122, 127-132, 134- Programa Forte 27, 29-30, 68, 83, 86, 99, 102-108,
141, 150-151, 154. 110, 117, 122, 129-130, 140-144, 151.
Kuhn, Thomas 24, 26-28, 30, 32-35, 38, 54, 56-57, Protoldeia 71, 76, 81.
60, 63-64, 66-72, 77-78, 81, 83-94, 96-122, 128-130, Racionalidade 36, 99, 102, 106, 123, 126-127, 148,
140-144, 148, 154-156.
150,156.
Leviothan 105,117,142,147.
Racionalismo crítico 94-95, 117.
Levy-Bruhl 64.
Razão 39, 69, 108, 113, 139.
Léxico 28, 91, 109, 111-114, 120, 139, 142.

168 1 MAURO Ulao LEITÃO CONoi


Realismo matemático 35-38, 44, 57, 127, 129-131, Técnica 26, 35, 37, 39-40, 42-53, 55-56, 58, 112, 125,
141, 151. 128, 131, 133-136, 138, 140-141, 150-151.
Reichenbach, Hans 32, 69, 72,83-84, 89, 94,103. Tecnologia/ tecnológico 25, 31-32, 37, 39-40, 42-
Relativismo ·23-24, 27-28, 85-86, 90, 93, 95, 98, 100- 48, 50-53, 56-58, 102, 132-135, 137-138, 150, 154.
101, 105, 108, 112, 117, 122, 12i, 141-142, 148, 151. Teoria 25, 32, 37-39, 43·44, 48, 52-53, 55-57, 72-74,
Revolução científica 35, 39, 42, 45, 78, 91-92, 76, 78, 80-81, 89, 91-93, 95-96, 98-100, 104-105,
109-110. 107, 110-113, 116, 120, 128-129, 133, 136-138, 140-
141, 148-150, 156.
Romantismo 93, 108, 117.
Teoria da ciência 28, 65, 72, 93, 108-109, 111, 114-
Schlick, Morltz 70.
117, 123, 126, 150.
Schuhl, Pierre-Maxime 37, 134. Teoria do conhecimento 19, 62, 64, 69-70, 73,
Scientia 41-42, 50-51. 79-80, 104.
Semelhanças de família 112, 124, 127, 139-140, Tese de Zilsel 26, 34, 43, 46-48, 50-58, 122, 131,
148-149, 151-152. 133,135.
Sentenças protocolares 73. Tese de Merton 40, 102.
Shapin, Steven 25, 34-35, 40, 54, 64, 102, 105-106, Theoria 25, 31, 36-37, 39, 130, 151.
110, 118, 129, 142-144, 148.
Unidade de pensamento 57, 78, 139-140.
Sistema de referência 72-73, 79, 146, 149, 156.
Verdade 24, 40-41, 45, 63, 85, 96, 98,102, 105-106,
Sociedade 20, 23, 27-28, 40-41, 47-51, 53, 55, 60- 108, 138, 144.
62, 68, 90, 118-120, 125, 132•139, 142, 144-145,
Wittgenstein, Ludwig 28, 30, 67, 86, 102-105, 109-
149, 151, 153-156.
117, 119-133, 135-140, 142-143, 145-151, 156.
Sociologia do conhecimento científico 27, 86,
Zilsel, Edgar 24-26, 31-32, 34, 36, 40, 45-48, 50,
102-105, 142,144.
52-58, 60, 70, 135, 154.
Subjetividade 82, 97-98, 121, 137.

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA'' 1


O problema da historicidade da ciência 169
SOBRE O AUTOR

Mauro Lúcio Leitlio Condé é professor do Departamento de História da


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG onde leciona as disciplinas
Historiografia da Ciência e História da Ciência nos cursos de Graduação
e Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado), linha de pesquisa Ciência e
Cultura na História. É doutor em filosofia pela UFMG com estágios de
Pós-Doutorado em Historiografia da Ciência na Universidade de Boston
(EUA) e na Universidade de Viena (Áustria).

"UM PAPEL PARA A HISTÓRIA" 1


O problema da historicidade da ciência 171

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