Você está na página 1de 80

O Les Éditions de Minuit,2002

Título original: L'Image suruiuante. Histoire


de I'art et temps des fantômes selon Aby Warburg

Direitos adquiridos para o Brasil por Contraponto Editora Ltda.

Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste


livro, por quaisquer meios, sem autorização da Ëditora.

Contraponto Editora Ltda.


Avenida Franklin Roosevelt 23 I 1405
Centro - Rio de Janeiro, RJ - CEP 20021-120
Telefax: (2L) 2544-0206 I 2215-6748
Site: www.contrapontoeditora.com.br
E-mail: contato@contrapontoeditora.com.br

Museu de Arte do Rio (MAR)


Praça Mauá 5
Centro - Rio de Janeiro, RJ - CEP 20081-240
Tel.: (21) 2203-1'235
Site: www.museudeartedorio.org.br
E-mail: info@museudeartedorio.org.br

Coordenação editorial e preparação de originais: Cesar Benjamin


Revisão tipográfica: Gilson Baptista Soares
Capa e projeto gráfico: Aline Paiva e Andréia Resende
Diagramação: Regina Ferraz

Coleção dirigida por Tadeu Capistrano


EscoL^ DE B€LÀ5 ARTE5 / UN vERstDADË FEDERAL Do Rlo DE JANEIRo

1'edição: abril de 2013


Tiragem: 2.000 exemplares

CIP-BRÀSIL. CATALOCAÇÃO NA-FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORÈS DE LIVROS, R]

D553i Didi-Huberman,Georges,1953-
A imagem sobrevivente : história da arte e tempo dos fantasmas se
gundo Aby \üíarburg / Georges Didi-Huberman ; tradução Vera Ribtiro.
- Rio de Janeiro : Contraponto, 2013.
506 p. : il. :24,7 cm (ArteFíssil ; 5)

tadução de: Limage survivante: histoire de I'art et temps des fan


tômes seÌon Aby \Varburg
Inclui bibliografia
ISBN 978,85-7866-079 6

l. Warburg, Abn 1866 1929.2. Arte e filosolìa. I. Título. II. Serie.

13-1516 CDD: 701


CDU:7.01
l. A imagem-fantasma:
sobrevivência das formas
e impurezas do tempo
A arte morre, a arte renasce:
a história recomeça (de Vasari a Winckelmann)

Podemos perguntar-nos se a história da arte - a ordem do discurso assim de-


nominado, a Kunstgeschichte - realmente "nâsceu" um dia. Digamos, pelo
menos, que ela nuncL nasceu umd uez só, em uma ou até duas ocasiões que
marcassem "datas de nascimento" ou pontos idehtificávets no continuwm
cronológico. Por trás do ano 77 e da epístola dedicatória da Hìstória natwral
de Plínio, o velho já se perfila, como sabemos, toda uma tradição historiográ-
fica grega.l Por trás do ano 1550 e da dedicatória das vidas de vasari perfrla-
-se também, e sedimenta-se, toda uma tradição de crônicas ou elogios compos-
tos para os uomini illustrì de cidades como Florença.2
Arriscamos isto: o discurso histórico não "nasce" nuncâ. Sempre recomeça.
Constatamos isto: a história da arte - a disciplina assim denominada - recome-
ça uez dpós outrd. Toda vez, ao que parece, que seu próprio objeto é vivenciado
como morto... e como renascendo. Foi exatamente o que se passou no século
XVI, quando Vasari baseou toda a sua empreitada histórica e estética na cons-
tatação de uma morte da arte antiga: uoracità del tempo, escreveu ele no proê-
mio de seu livro, antes de apontar a Idade Média como a grande culpada por
esse processo de esquecimento. Mas, como sabemos, essa morte teria sido
"sâlva", milagrosamente redimida ou resgâtada por um longo movimento de
rinascità que, gírosso modo, começou com Giotto e culminou com Michelange-
lo, reconhecido como o grande gênio desse processo de rememoração ou res-
surreição.3 A partir daí - a partir desse renascimento, ele próprio surgido de um
luto - parece ter podido existir algo a que se chama "história da arte"4 (fis. 1).
Dois séculos depois, tudo recomeçou (com algumas diferenças substanciais,
é claro): num o do Renascimento "
_ da restauraçã o*1 neoclássiça-:rWiaekefunann- inuentau" a" h-isiaria"d.aar*e-$ig,J) .

lnten-da,se;*a.hisúria.da arçe no, seatidç moderso.^dê palayra. jihigt=ó*r"i"4',. His-


tória da arte como proveniente dessa era das Luzes e, logo depois, da era dos
grandes sistemas - em primeiro lugar o hegelianismo - e das ciências "positi-
vâs" em que Michel Foucault viu em ação dois princípios epistêmicos con-
comitantes, o da analogia e o da sucessão: os fenômenos sistematicamente
apreendidos conforme suas homologias, e estas, por conseguinte, interpretadas
como as "formas depositadas e fixas de uma sucessão que avança de analogia

A imagem sobrevivente 73
1. Giorgio vasari, prancha clo frontispício
de Le uìte de, piìr eccellettti
pìttorì, scurtorì e archìtettorì, Frorença,
1-56g. Xilogravura (cìetalhe).

em analogia".t x7inckermann que, inferizmente,


- Foucault não comenta _ re_
presentaria, no campo da cultura e da beleza,
a virada epistemorógica de um
pensamento sobre a drte para a era autêntica, já ,,cientifica,,
- - da história.6
A história de que se trata já era "moderna", já era ,,cientíÍica,,,no
sentido
de ultrapassar a simpÌes crônica de tipo priniano
ou vasariano. visava a argo
mais fundamental, que euatremère de
euincy viria a clescrever bem, em seu
elogio a ìTinckelmann, como uma análìse dos
tempos:
o douto winckelmann foi o primeiro a tra.zer o verdadeiro espírito
de ob-
servação para este estudo; foi o primeiro
a se permitir decompor a Antigui_
dade, analisar os tempos, os povos, as escolas,
os estilos, n, .,u"rr.a, da .r_
tilo; foi o primeiro a desbravar os caminhos e fixar
os marcos nessa terra
incógnita; foi o primeiro que, ao crassificar
as épocas, abordou a história
dos monumentos, comparou os monumentos entre si e descobriu
caracterís-
ticas seguras, princípios de crítica e um método
que, retificando uma profu-
são de erros' preparou a descoberta de uma
profusào de verdades. Regres-

11 Georges Didi-Huberman
-l
bl
Fr.d
ìí
I
'ní
I'l
ti

;J
e \/--.-_
SI v -ìì
I

X.*'Í

2. .f ohann J. lVincÌ<elmanr.r, prancha do frontispício de Geschìcbte der Kunst


des Aberthums II, Dr:esclen, 1764.

sando enfim da análise para a síntese, conseguiu formar um corpo com o


que não passava de um amontoado de destroços.
ï A imagem é significativa: enquanto os "amontoados de destroços" conti-
nuavam a se espalhar pelos solos e subsolos da Itália e da Grécia, \üTinckel-
mann, em 1764, publicou um livro - sua grande História da arte entre os dn-
tigos - que, segundo a expressão de Quatremère, "formou um corpo" com
esse material disperso. Um corpo: uma reunião orgânica de objetos cuja ana-
tomia e fisiologia seriam como que a reunião dos estilos artísticos e sua lei
biológica de funcionamento, ou seja, de evolução. E também um corpo: um
corpus de conhecimentos, üm organon de princípios. Ou até um ..corpo de
doutrina". \)Tinckelmann teria inventado a história da arte, começando por::
Ê le ob- construir, para além da simples curìosidade dos antiquários, algo como um
r : ---::rigui- método histórìco.8 Dess:.pg11o-_gm-diantç, q hrs,t_or_iadpr da'a-yqe j4 o se c9[r.- j
1.f
r-:.. de es- -!çnleu.em.-colecionar e admirar seus obje.tos:..co-mo esçre,v-.eu Qu_atremère, ele
,-::ìl teffa analisou e decompôs, exerceu seu espírito de observação e de crítica, classifi-
u. . risrória cou, ap_foxlm,oq e comparou, "voÌtou da, análise pâra a s.ín1.e9-e", a fim de
r ;:::aterís- "descobrir as características seguras" que dariam a qualquer analogia sua lei
E--: Df ofu- de sucessão. Foi assim que a história da arte se constituiu como "corpo",
b. R.egres- como saber metódico e como uma verdadeira "análise dos tempos".

A imagem sobrevivente 1-5

&
À maioria dos comentarisras mosrrou-se
sensír-er âo aspecto metódico
doutrinaÌ dessa consrituição. ou
v/inckelman,, rrnaou uï"ïirtóri"
nos pelo que descobriu do da arre me_
que peÌo que consrruiu.
É insuficien te fazercom que
se sucedam o 'v'inckermann
"crítico esrérico,, das
das obras gregas e o winckelmann ,,hisroriado Reflexà), ,ob* a imitação
os antigos:e não há dúvida
,,, a'u-ullraria da arte entre
de que a "crise estética,, do
IÌuminismo entrou
na maneira .o-o .È teve
de recolher ,.u _"t.riul
:ï;tïr"ru arqueológico

obra também sentimos cerro


t-J;ï;1ï;:f"" incômodo teórico rigado à
riae,porourro,"ïi"ï":'i:"ïiïi'l;,iï:ï#:"ïüi:itï,ãrilÏiíl*
que essa contradição ,.é só
aparente,,.11 É preciso ar;..
como bem mosrrou Arex poìtr, or.'.fa é constitutiva.
u Hi.stória cra arrc ,nrrì o,
perspectiva moderna do antigosfundou a
conhecimento sobre as artes
série de paradoxos em que, uir.,"i, por meio de uma
constantemente, a posição
postulados,,eternos", ou, histórica é tecida por
inversamente
I a da s p o* u" p,àp,i

tórica insraurada nisso "


hi s toricizaçu. ;; i:i: ï_,ïïïijllïïllllï
ï: ï,1-
- só um historiador
o"r,r,rirr" lr';;;rr"
imaginando uma históriu qu" acreditaria,
."tr"írr. ,

prios objetos de estudo pró-


-, .rru,
como compreender essa- trama
.."r;;dï"'r?:ï:ï:rJ:ï:ï*ï2.s
de paradoxos? parecejme insuficiente
até impossível separar, em'wincker-"nn, .,níveis ou
de inteligibilidade,, tão dife_
rentes que viessem a formar,
no fim, uma grande poraridie
um lado' a doutrina estética, contraditória, de
a noÍma intemporar; de
a "análise dos tempos". Essa outro, a práticahistórica,
divisão, tomada aopé da letra,
do incompreensíver a própria acabaria tornan_
"história a" p.Ìo
""pr.rrão "rr.]. menos é sen_
:ï:',,ï :ïi:ffiï:','.Ë de s s a expre,, a o, q.,.
r1,*f ï,'.' " concepç ã o
te que apliquemos às ob,a,
de u.r.r
sustenra' porque uma tomada
n"rl::;:ïïïï:rti:':ï:ilï::fi:
ï^1:-t:a uma tomâda de posição quanro a um
lncrta único eremenro
de posição quanto a todos
arte sem uma filosofia da história _ o, d.-"rr, ,ráo há história da
ainda
u m a esc o rh a d e
;il
m o d e t o s t e m p, ;n a i s
da arte e sem uma escolha
; ïï:ï ï:1ï:;J irJïï1ï; :?i
de'modríos que
que modo' em winckelmann, "rrurrror.Há tentar identificar de
se
esses dois tipos de
o que Alvez seja um -od.ro, ,ì"u"""r" junros.
-:d:9. ui, u .o-preender merhor a
dedicatória coroca_
iil:it:i"1",.tït"1ï'0" aì,il "!o: o, antigos- ,,Esra história da
Hisrória

aos orhos ao r.iror, ,r,lr;il',iï.';ìrïi:":ï,'árer quase tautorógico preserva,

16 Georges Didi-Hubermarr
[- irìetódico ou >l >l )f
!r'-: da arte me-
t.ls livros, muitas vezes, são dedicados aos mortos.
:l::zer com que Inicialmente, ìTinckelmann
,::-,e J imitação ;.dicou sua Histórìa da arte à arte antiga, pois, a seu ver, fazia muito tempo
6 :J arte entre r,i- a aÍte antiga havia morrido. Do mesmo modo, dedicou seu livro ao tem-
L:]smo entrou :,-,. pois, a seu ver, o historiador era aquele que caminhava no tempo das coi-
a- ::queológico .,:r passadas, isto é, das coisas falecidas. ora, o que acontece no outro extre-
:.:Ì do livro, após algumas centenas de páginas em que a arÍe antiga nos é
:- -=:remorada, reconstruída no sentido psíquico
i= :l.o ltgado a - do termo -, reposta numa
r :e uma histó- uma espécie de fecho do circuito depressivo num sentimento de
.--'-rrativa?
E::: Jizer apenas :-:da irreparável e numa suspeita terrível: será què isso cuja história acaba de
a : ;onstitutivâ. .=: contada não resulta, simplesmente, de uma ilusão fantasiosa, pela qual esse
t:;;-ar-ç fundou a
..:iimento ou a própria perda correm o risco de nos haver enganado?
c: reio de uma Embora, ao refletir sobre a clestruição da arte, eu tenha sentido o mesmo
:";: e tecida por :esprazer que experimentaria um homem que, ao escÍever a história de seu
l o;iais são aba- :aís. se visse obrigado a descrever o panorama de sua ruína após havê-la
e .:-rciativa his- :rsremunhado, não pude me impedir de acompanhar o destino das obras da
r - -, acreditaria, -\ntrguidade até onde minha vista pôde alcançar. Assim, uma amante em
r"'. le seus pró- :ranros fica parada à beira-mar e acompanha com os olhos a embarcação
r:-:.-:iente. :--re the arrebata o amante, sem esperança de revê-lo: em sua ilusão,
ela crê
-:-.-rficiente ou :inda discernir na vela que se afasra a imagem do objeto amado
fdas Bitd
:::le" tão dife- -i.s Gelìebten].Tal como essa amante, já não possuímos, por assim dizer,
r-:.::aditória: de -:não a sombra do objeto de nossos anseios
fschattenriss (...) unserer \x/ün-
:r.:r;a histórica, -':i:e], mas a perda dele aumenta nossos desejos, e contemplamos suas có-
c::aria tornan- :'-as lKopienl com mais arenção do que faríamos com os originais
lurbit-
,;:i.1. se estivessem em nosso poder.
:- nenos é sen- euanto a isso, muitas vezes ficamos na
.:ruação dos que, convencidos da eristência de fantasmas
I :-:e concepção fGespensterl,
.:raqinam ver alguma coisa onde não há nada lwo nichts ist].ta
i*:-':ia ela admi-
l ::duo, porque P.rgina atemorizante - sua beleza e sua poesia atemorizam e radical. Se
-
-':'ria da arre recomeça nessa página, ela se define como tendo a
.-:ico elemento
por objeto
c :á história da -* ,,,bjeto decaído, desaparecido, enterrado. A arte antiga - a arte absolu-
p.l;ada - e sem ..::r-rte bela - reluz, pois, em seu primeiro historiador moderno por uma
r -rma filosofia -=rsencia categórica".15
os próprios gregos, ao menos na suposição de \)7in,
:i: rdentificar de -::.:rann, nunca fizeram a história "viva" de sua arte. Essa história começa,
r::iham juntos. ::- :-i. sua primeira necessidade, no exato momento em que seu objeto é pen-
i:;-:.:ória coloca- : -:- r coÌr1o objeto morto. Tal história será
vivida, poÍtanto, como um trabalho
'Fsra história da : -:ro tHìstória da drte entre os antìgos, trabalho do luto da arte antiga) e
r'':'gico preseÍva, -:':.\'ocação sem esperança da coisa perdida. Insistimos desde logo neste
: :-:,-r: os fantasmas de que rüinckelmann fala jamais serão ,,convocados,, ou

A imagem sobrevivente I7

út&,
mesmo "invocados" como forças - - atuantes. Não serão o equivalente
ainda
a "nada" existente ou atual lnichts lsl]. Representam apenas nossa ilusão de
óptica, o tempo vivenciado de nosso luto. Sua existência (ainda que espectlal),
sua sobrevivência ou sua reaparição simplesmente não serão contempladas.
Assim seria, pois, o historiador moderno: alguém que evoca o passado e se
entristece com sua perda definitiva. Não acredita em fantasmas (em breve, no
correr do século XIX, já não acreditará senão em "fatos"). É pessimista e usa
com frequência a palavra [Jntergang, que significa declínio ou decadência. De
fato, toda a sua iniciativa parece organizar-se segundo o esquema temporal de
grandeZa e decadêncìa.16 Com ceÍteza) seria preciso ressituar a empreitada win-
ckelmanniana no contexto de um "pessimismo histórico" característico do sé-
culo XVI[.17 Ou destacar até que ponto as ideias de \Tinckelmann podem haver
inspirado, no domínio estético, inúmeros escritos nostálgicos sobre a "decadên-
cia da arte" ou o "vandalismo revolucionário" ligado às sucessivas destruições
de obras-primas da Antiguidade.ls O modelo temporal grandeza e decadêncìa
revelou-se tão pregnante, que ainda informaria a definição da história da arte tal
como podemos encontrá-la, por exemplo, na Real-Encyclopcidie de Brockhaus:
"A história da arte é a representação da origem, do desenvolvimento, da gran-
deza e da decadência das belas-artes."re \Tinckelmann não dissera outra coisa:

O objeto de uma história ponderada da arte é remontar à sua origem [Ur-


sprwng], acompanhar seus progressos f\X/achstumf e vatiações fVeriinde-
rwng] atê sua perfeição, e marcar sua decadên cia fUntergang] e queda [Falll
até sua extinção (...).20

Esse esquema temporal corresponde, se prestarmos atenção, a dois tipos de


modelos teóricos. O primeiro é um modelo natural e, mais particularmente'
-Wachstum
biológico. Na frase de Winckelmann, a palavra deve ser entendida
como o "crescimento" vegetal ou animal, e a palavra Veriinderung também
assume a conotação vitalista implicada em toda ideia de "mutação". No fun--

[o Sr5*-ì711]Jkçlmann entende por his"!-91ia da 4rte ryão está muito distantç


de uma históritt natural:.sabe=se que.elg leg 1 dq Plínio, é claro, mas tambérn-?.
de BufÍo4;. assim como leu o tratado fisiológico de J. G. Krüger e o manual de
medicina de Allen, e quis, um dia - é o que nos informa uma carta de dezem-
bro de 1763 -, passar dos "estudos sobre a Arte" para os "estudos sobre a
Natureza".21 De tudo isso, Winckelmann deve ter tirado uma concepção da
ciência histórica que se articulava não apenas com os problemas de classifica-
ção típicos da epistemologia do Iluminismo, mas tambóm com um esquema
temporal obviamente biomórfico, estendido entre progresso e declínio, nasci-
mento e decadência, vida e morte.

18 Georges Didi-Huberman
Ê :quivalente -\ outra face dessa configuração teórica é mais conhecida: é um modelo
p ..-.- ilusão de :-ietl e, mais particularmente, metafísico. Ele se entende muito bem, portanto,
1.,-.; -spectral)' -om a "ausência" categórica de seu objeto: pensemos na célebre formulação
nr:.rp1adas. :; Sólon - o to ti en einai citado por Aristóteles - que postula a morte prévia
t :,ìssâdo e se :-:qr-rilo de que se quer enunciar a verdade, ou melhor, a "quididade".22 Nesse
s .:: breve, no .-nrido, poderíamos dizer que o desaparecimento da arte antiga funda o dis-
pr'..,rtSta e USa -.:rso histórico que fala de sua quididade última. Segundo'l7inckelmann, por-
Lc-- -..jência. De '-r-llto, a história da arte nào se contenta em descrever, classificar e datar. Ali
r- .-;rporai de rde Quatremère de Quincy fala de um simples movimento de retorno "da
'l7inckelmann
cr,: =it;rda win- -.rá1ise para a síntese" radicalizaria sua posição, ele mesmo, do
E:::.i:ico do sé- :-,nro de vista filosófico: a história da arte fdìe Gèschichte der Kunst] deve ser
s:. : ,Jem haver -s;rira a fim de que seja explicitada a essência da arte fdas'Wesen der Kunst],
È:. ,: "decadên-
-\ história da arte entre os antigos, que ofereço ao público, não é uma sim-
ú,' Jestruições lÌes narrativa cronológica das revoìuções por que ela passou. Tomo a pala-
w : .iecadência i ra "história" IGeschichte] na significação mais extensa que há na língua
k - -: da arte tal :rega, sendo meu objetivo oferecer o resumo de um sistema fLebrgebìiude]
b := Brockhaus: Je arte. (...) A história da arte fdie Geschìchte der Kwnst], no sentido mais
k.::,r. da gran- :srrito, é a história do destino que ela vivenciou em relação às diferentes
::: ltra coisa: ;ircr-rnstâncias das épocas, principalmente entre os gregos e os romanos.
\este livro, porém, eu me propus como objetivo sobretudo discutir a pró-
n :em [Ur-
-',:rinde- :ria essência da arte fdas 'Vlesen der Kwnstf .23
FÉ.
[c,-.ra [Fal/]
-\o ier esse texto, compreende-se que a historicidade da arte, tal como con-
,.:plada por'Winckelmann, não emerja exatamente, como é comum supor-se,
E* : :lis tipos de -j; um compromisso que permitiria o historiador encontrar um campo no
p;. - ;'llarmente, .:.rìor ou à margem da norma".za Falar dessa maneira é dar um crédito ex-
!r: ::: e ntendida ::>silo ao lugar do discurso histórico como tal. É imaginar que uma história
3:;'::,tg também :. Si tori-Ìe normativa ao sair dela mesma, ao forçar sua neutralidade filosófica
r-:::,--,"-Nofu,n: -:.:rural", ao trair, em suma, sua modéstia "natural", diante de puros e sim-
E :.*iro dist4nte :--' fatos da observação. É desconhecer que a norma é interna à própria nar-
D. :-.:s também a :.:',-a. ou à mais simples descrição ou menção de um fenômeno que o histo-
!Ê: : l) manual de ',-:-:or considere digno de ser preservado. A narrativa histórica, nem é preciso
r ;:--l de dezem- : :.:. é sempre precedida, condicionada por uma norma teórica sobre a "es-
*=.:,-Jos sobre a .-:-Jìa" de seu objeto. A história da arte é condicionada, portanto, pela normrr
!j J -ìncepção da ..:..ic,1 na qual se decidem os "bons objetos" de sua narrativa, esses "belos
t,. ie classifica- :'-:os" cuja reunião formará, no final, algo como uma essência da arte.
m ï- ]m esquema \_jnçkelnann:em-.tazão,.-pc.rrfanto,-em*reivindica-r.sua..história corro um
It ::;línio, nasci- -:-ì!qrta" [-LehrcpbritldçJ,'t19 sçttt,td-g
-fllqsófiço e doutrinal da palalrra. Em
:::.:-s drfçqeqlg-1r.suâ .emp1e-1ça.{4 !+Z çço. às de um Montesqqieu, um Vico, um

A Ìmagem sobrevivente 79

&
Gibbon ou um Condillac.25 Essa condição da história winckelmanniana, aliás,
ÌJïãfffirnffi tónhecida no século XVIII: Herder escreveu que "\linckel-
mann, com toda a cetteza) propôs esse sistema lLehrgebriwde] grandioso, ver-
dadeiro, eterno" como a empreitada quase platônica de uma "análise referente
ao geral, à essência dabeleza".26 Como pensador da historicidade, Herder não
tardou a indagar: "Será esse o objetivo da história? O objetivo de uma história
I da arte? Não haverá outras formas possíveis de história?" Mâs ele reconheceu
I d. bo- grado a necessidade de uma história da arte que, além das coleções
I hìstóricas de Plínio, Pausânias ou Filóstrato, tivesse fundamentação teórica: o
de sistema histórico'27
\ or. .1. chamou, acompanhando winckelmann,
Ou de "construção ideal".28 Ideal no sentido-'de ter sido inicialmente con-
cebida para se harmonizar com o princípio metafísico por excelência, com o
id.eal de beleZa,essa "essêncía da atte" que os grandes artistas da Antiguidade
souberam pôr em ptâtrca. O "belo ideal", como se sabe, constitui o ponto
cardinal de todo o sistema histórico winckelmanniano, bem como da estética
neoclássica em geral.2e Ele fornece a essência e' poftanto' a norma. A história
da arte é apenas a história de seu desenvolvimento e de seu declínio. Ele pare-
ce confirmar a filiação secular do pensamento estético à corrente filosófica do
idealismo.3o
A palavra "ideal" sugere que a essência - aqui, a essência da arte - é um
modelo; um modelo a alcançarrconforme o "imperativo categórico" dabeleza
clássica; um modelo, porém, dado como inatingíuel como tal. É muito signifi-
cativo que o capítulo dedicado por ìTinckelmann à "essência da arte" seja
mais consagrado aos desvios que nosso espírito tem que fazer para se recordar
dabeleza ideal das estátuâs gÍegas:

como o primeiro capítulo deste livro é apenas uma introdução, passo ago-
ra, depois destas observações preliminares, à própria essência da arte. (...)
Tfanspofto-me em espírito, portanto, para o estádio de Olímpia. Lá diviso
as estátuas de atletas de todas as idades, caffos de bronze com dois e quatro
cavalos, encimados pela imagem do vencedor. Lá meus olhos são atingidos
por uma multidão de obras-primas! Quantas vezes minha imaginação não
se entrega a esse sonho prazeroso? (...) Que me seja permitido fazer essa
viagem imaginária à Élida, não como uma simples imagem poética, mas
como uma contemplação real dos objetos. E, de fato, esta ficção adquire
uma espécie de realidade quando represenro para mim mesmo, como exis-
tentes, as estátuas e os quadros cujas descrições os antigos nos deixaram.3l

Eis a estranheza: o ideal é apreendido, é reconhecido atfavés de uma "con-


templação real dos objetos", como escreve \Tinckelmann. Porém não através

Georges Didi-Huberman
narniana, aliás, de uma contemplação dos objetos reais. Estes desapareceram, foram substitu-
r; re "Winckel- ídos por cópias mais tardias. Restam apenas as mediações do espírito, em
g:andioso, ver- busca desse ponto fora do tempo que é o ideaÌ. E, no entanto, a mais necessá-
m.:,ise referente ria dessas mediações - a que é reconstituição textual, restauração ideal será
-
d.. Herder não realmente denominada bistória da arte. uma história da arte que é serva da
d; uma história Ideia, apresentada como a descrição das transformações. grandezas e decadên-
l e-; reconheceu cias da normd da arte: "natüreza bela", "contorno nobre", ,,arquétipo espi-
ir las coleções ritual" no desenho dos corpos femininos, drapejados eregantes, e por aí vai.32
ta;ão teórica: o -\ História da arte entre os antigos se tece, evidentemente, com constantes
tt -::r.t.)- apelos de retorno à estética proposta, uns dez anos antes, nas Reflexões sobre
i'--:-iimente con- a ìmitação das obras gregas.
c-=ncia, com o
d:. -\ntiguidade
n.*rui o ponto
D='r da estética
r::a. ^\ história
ci-:::o. Ele pare-
rr- :ilosófica do
por princípio do "bom gosto" lder gwte Geschmackl, rejeição absoluta de
rir erte-éum "qualquer deformação do corpo", numa passagem espantosa das Reflexões
õr::,r" dabeleza em que ele expressa seu horror às "doenças venéreas e
[ao] raquitismo decor-
:t ::.uito rente delas", esses males que ele supunha desconhecidos dos gregos antigos.33
srgnrtr-
ia ia arte" seja como se essas coisas estivessem ligadas por uma obscura patologia comum,
Fa:: se recordar winckelmann exprime com igual radicalismo sua rejeição d.o páthos, essa
doença da alma que deforma os corpos e, portânto, estraga o ideal, que pres-
supõe a calma da grandeza e da nobreza de espírito:
b- :asso ago-
r ;: arte. (...) Quanto mais calma é a postura do corpo, mais ela é capaz de exprimir o
p-:. Lá diviso verdadeiro caráter da alma: em todas as posições que se afastam muito do
i::s e quatro repouso a alma não se acha no estado que lhe é próprio, mas se encontra
s,:. , atingidos num esrado de violência e coerçào. Nesses estados de paixão violenta ela se
cc:ação não reconhece mais facilmente, mas, em contrapartida, é no estado de repouso
ii - :azer essa e harmonia que ela é grande e nobre.ra
p,,:rica, mas
k;ìo adquire
o que fora proposto nas Reflexões como um postulado geral seria recon-
p.:omo exis- duzido, na Histórìa da arte, para o plano específico da arte grega. L,m vez
de
r i.iraram.31 dízet "é preciso" (ponto de vista da norma), \Tinckelmann contenta-se desde
então em escrever que os gregos "tinham o costume de',. o ponto de vista
é
* .ie uma "con- "histórico", por certo. Mas é a mesma essência que se exprime, ou, eu deveria
re:ir não através dizer, que se declara nele:

A imagem sobrevivente 21
Numenoutrosentido,aexpressãomudaostraçosdorostoeadisposição
a beleza' Ora'
do corpo; altera, por conseguinte, as formas que constituem
esta
quant; maior é essa alteração, mais ela é prejudicial à beleza. Segundo
como uma das máximas fun-
consideração, tinha-se o costume de observar,
às figuras, por-
damentais da arte, a imposição de uma postura tranquila
que, segundo a opinião de Platão, o repouso da alma era
visto como um
que a tranquilidade é
estado intermediário enrre o prazü e a dor. Por isso é
a experiência
a situação mais conveniente à beleza, tal como o é ao mar:
que os homens mais belos têm. comumente' as maneiras
mai\ suaves
mostra
e o melhor carâter. (...) Além disso, a serenidade
no homem e nos animais é
e as qualidacles
um estado que nos permite examinar e conhecer a,natLlreza
e do mar quando a
deles: é por isso que só descobrimos o fundo dos rios
portanto, que é
ágrra estã calma e sem agitação. Decorre desta observação'
essência mesma
,ã-.rr,. na calma que o artista pode conseguir transmitir a

da arte ldas Wesen der Kunst]'3s

>l >l :l

Basta esta entrada no assuntor ao que me parece,


paÍa captaÍmos a flaÍuÍeza
representado pela
eminentemente problemática do momento de pensamento
um
História d.a arte entre os antigos e por sua herança. No livro elabora-se
fechar: toda vez que
sistema, porém este falha constantemente na hora de se

são afirmadas uma tese ou uma fesolução teórica, a


contradição não tarda a
surgir. Assim, \Tinckelmann reivindica a história da arte
contra os simples
julgamentos calcados no gosto, mas a norma estética não para de embasar
história como
.uJn purro de sua narrativa histórica. Assim, ele reivindica a
ri.:
,r-" àbl.tiuação racional dos "restos" do passado, porém uma subjetivação
,,transporto-me em espírito pâra o estádio de olímpia" - não para
poderosa -
ã. g.rin, sua escrita doutqihçróga-da-.art-e pr-angvid-a por Winckelmann-
ila o tempo todo entre a essêncjia.e o devir" N-ela, o passado histórico
é tn--
osclla
u"nt"do e descoberrona mesma medida'
't *tt'u. e se
fazer com essa evidência? Dizem. desde Quarremère de Quincy,
mo-
diz até hoje, que'srinckelmann inventou a história da arte, no sentido
será que o so-
derno da expressão. Não haverá nisso mais uma contradição?
ciólogo das imagens, o iconólogo, o afqueólogo que ttlíza o microscópio
eletrônico ou o conservador de museu familiarizado com análises espectro-
métricas ainda se embaraçam com esses problemas filosóficos?
o estatuto
que já não
da história da arte como disciplina "científica" parece tão sólido,
vemos com clareza de que herança seríamos devedores em
tal mundo de pen-
que se é deposi-
samento. Mas é comum ignorar-se até mesmo a herança de

Georges Didi-Huberman
; r disposição tário. Que nó de problemas essa Hìstórìa da arte entre os antìgos continua a
: beleza. Ora, nos oferecer?
l. Segundo esta Trata-se de um nó tríplice, um nó três vezes atado, que o próprio título de
; rárimas fun- Winckelmann induz e impõe: nó da hìstória (como podemos consrruí-la, escre-
!- iiguras, por- vê-la?), nó da arte (como podemos distingui-la, olhá-la?) e nó da Antiguidade
,"':sto como um icomo podemos rememorá-la, restabelecê-la?). O "sistema" de \üTinckelmann
::,..nquilidade é decerto não é filosófico no sentido estrito e, por conseguinte, não pode iden-
': -: erperiência riiicar-se com algo como uma construção dialerica. Mas existe uma noção
I:S MAiS SUAVCS capital, uma palavra que mantém unidas as três laçadas do nó. Palavra mági-
. ros animais é ca, de certo modo: resolve todas as contradições, ou melhor, faz com que
; -..s qualidades passem despercebid"LE*g_p,*Jgft-a*11yjta.ççyo,,*Ela constitui a mola rrìesrra, a
:lar quando a
dobradiça, o eiro graças ao qual todas as diferenças se unem, todos os abis-
:. :t.rnto, que é
mos são transpostos.
..s;ncia mesma
Na conclusão de seu livro, citada acima,36 ril/ir-rckelmann pareceu cavar um
abismo: abismo depressivo, ligado à perda da arte anriga e ao rerorno impos- Lf)
sír,el desse "objeto amado", abismo separando o luto do desejo l'Wunschl, sG
abismo separando os "originais" lUrbilder] da estatuária grega e suas "có-
i :mos a nal.lJreza pias" romanas lKopìen]. Mas, em outros pontos de sua obra - a começar pelas
r-rresentado pela Reflexões, é claro -, a imitação lança uma ponte sobre esses abismos. A imita-
J
r*
r:,r elabora-se um ção dos antigos, praticada pelo artista neociássico, tem por virtude reanimar ;-
o desejo para além do luto. Cria um vínculo entre o original e a cópia, de tal Ì
l:tlr: toda vez que
sorte que o ìdeal, a "essência da arte", pode como que reviver, atravessar o -à
ii.a;1o não tarda a
ti
te mpo. É graças à imitação que a "ausência categórica" da arte grega, segundo
. r,ntra os simples
ir expressão de Alex Potts, torna-se capaz de um renascimento, ou até de uma
rl'I
| :.-ìra de embasar
"presença intensa".37
; a história como
:nasubjetivação Pois é justamente de presença e presente que se trata: o presente da imita-
-l::pia" - não para ção faz "reviver uma origem perdida"i8 e, desse modo, restabelece na origem
Winckelmann- uma presença ativa, atual. Isso só se revela possível porque o objeto da imita-
;-,r
;io l-iistórico é in-- ção não é um objeto, e sim o próprio ideal. Ali onde a verrente depressiva da
história winckelmanniana fazia da arte grega um objeto de luto, impossível de
::. de Quincy, e se atingir - "já não possuímos, por assim dizer, senão a sombra do objeto de
:-. no sentido mo- nossos anseios"'ie -, uma vertente maníaca, se me atrevo a dizê-lo, fará dessa
:: '? Será que o so- arte um ideal a cal)tur(ü, o imperativo categórico da "essência da arte", o
'z.l o microscópio único capaz de permitir a imitação dos antìgos.Imitação, como bem sabemos,
:rálises espectro- é um conceito altamente paradoxal. Mas seu paradoxo é justâmente o que
..:t;os? O estatuto permitiu a Winckelmann a famosa pirueta: "Para nós, o único meio de nos
.rlido, que já não tornarmos grandes, e, se possível, inimitáveis, é imitar os antigos."a0
:-.-- mundo de pen- Foi uma façanha considerável, e suas consequências também o seriam. To-
i= que se é dePosi- Jaram na própria estrurura. na arquitetura remporal de toda essa iniciariva: a

A imagem sobrevivente 23
história da arte construída por's7inckelmann acabaria reduzindo o tempo nd-
tural da veriinderung ao tempo ideal da -wesen der Kwnst. Foi um modo de
possibilitar a coexistência do esquema "vida e morte", ,,grand,eza e decadên-
ciâ", com o projeto intelectual de um "renascimento" ou uma restauração
"neoclássicos " . ,I,nsistimos-no-elem,erete,-cruciakles..-**Írrço-hercú1eo : a imita=^.

_9ão s6
permitia espç reryascimento imitapdo o ideal. não reconhecer aí,
.Ç_omo
reconfiguradas, mas renovadas, as três "palavras mágicas,' fundamentais do
idealismo vasariano?a1 como não reconhecer, na redução do tempo natural ao
tempo ideal, o que cria a própria ambivalência do conceito humanista de imi-
tação? Por outro lado, teria sido possível a imitação moderna dos antigos inl-
mitáueìs sem o meio-termo que constituí, para o próprio rü/inckelmann, a imi-
tação renascentìsta - por Rafael, em primeiro lugar - desses mesmos antigos?
oque era nó (a solução se atrapalha) torna-se então fechamento (a solução
se impõe). o nó da Antiguidade se desfaz ao setrazeÍ de volta uma noção de
ideal; o nó da arte se desfaz ao se resgarar umâ ideia de imitação; o nó da his-
tória se desfaz ao se resgatar uma ideia de Renascimento. Assim já fora cons-
truída a história humanista de Vasari. Assim recomeçou a história neoclássica
de Y/inckelmann. Mas refaçamos a pergunta de Herder: .,será esse o objetivo
da história? o objetivo de uma história da arre? Não haverá outras formas
possíveis de história? "a2
Precisemos os desafios atuais da pergunta, diante de uma herança winckel-
manniana tão unanimemente reivindicada. primeiro, quanto à .,análise dos
tempos": não haveria um tempo das imagens que não fosse ,.vida e morte"
nem "grandeza e decadência", tampouco esse "Renascimento" ideal cujos
valores de uso os historiadores não param de transform ar para seus próprios
fins? Não haveria Dm tempo para os fantasmas, uma reaparição das imagens,
uma "sobrevivência" fNachleben] que não estiyesse submetida ao modelo de
transmissão pressuposto pela "imitação" lNachahmung]das obras antigas por
obras mais recentes? Não haveria um tempo pdra a memória das imagens
-
um obscuro jogo entre o recalcado e seu eterno retorno - que não fosse o
proposto por essa história da arte, por essa narrativa? E, quanto à arte em si:
não haveria um "coÍpo" de imagens que escapasse às classificações instaura-
das no século xvIII? Não haveria um tipo de semelhança que não fosse o
imposto pela "imitação do ideal", com a rejeição do páthos que ela pressupõe
em ìil/inckelmann? Não haveria um tempo pard os sintomas na história das
imagens da arte? Terá essa história realmente "nascido" algum dia?

24 Georges Didi-Huberman
o tempo na- Warburg, nosso fantasma
um modo de
e decadên-
restauração
u.i+wita--
reconhecer aí,
mentais do
natwral ao um século e meio depois 's7inckelmann
de compor sua monum ental História
ista de imi- da arte entre os antigos, Aby varburg publicou, não em Dresden, mas em
antrgos tnx- Hamburgo, um texto minúsculo - na verdade, o resumo de uma conferência
nn, a imi- em cinco páginas e meia - sobre "Dürer e a Antigúdade it?lianala3 A imagem
antigos? que abria esse texto não era a de uma ressurreição .tirta,
to (a solução -r"o em Vasari
(fig. 1), nem a de uma glória olímpica, como em \Tinckelmann (fig. 2), mas a
uma noção de de um despedaçamento humano, passional, violento, cristalizado em seu mo-
o nó da his- mento de intensidade física (fig. 3).
já fora cons- A dissimetria entre esses momentos do pensamento sobre a história, a arte
ia neoclássica e a Antiguidade parece bastante radical. Em sçJr
çexto_c,IrËtq; qlre ocupa menos
esse o objetivo espaço que uma úntca vida de vasari -, tal como em toda a sua obra publicada
outras formas - que ocupa menos espaço do que a simples História da arte _. de-

a winckel-
à 'análise dos
ida e morte" warburg substituiu o modelo natural dos ciclos de "vida e morte,,, ,,grandezal
" ideal cujos e decadência", poÍ um modelo decididamente não natural e simbólico- u^ *n- |
seus propnos delo cubwral da história, no qual os rempos jâ não eram calcados em estágios 14
das imagens, biomórficos, mas se exprimiam por estratos, blocos híbridos, rizomas, .orrrol"-
\
|
ao modelo de xidades específicas, retornos frequentemente inesperados e obfetivos ,.-or.
I
antigas por frustrados. warburg substituiu o modelo ideal das "renâscenças,,, das ,.bàrrJ
das imagens - imitações" e das "serenas belezas" antigas por um modelo
fantasmalda história,
não fosse o no qual os tempos já não se calcavam na transmissão acadêmica dos saberes,
à arte em si: mas se exprimiam por obsessões, "sobrevivências", remanências, reaparições
das
lnstaurâ' formas. ou seja, por não-saberes, por irreflexões, por inconscientes do tempo.
não fosse o Em última análise, o modelo fantasmal de que falo era um modelo psíquico,
no
ela pressupõe sentido de que o ponto de vista do psíquico não seria um retoÍno ao ponto
de
na história das vista do ideal, mas a própriapossibilidade de sua decomposição teórica. Trarava-
>
dia? -se' pois, de um modelo sìntomal,no qual o devir das formas
devia ser analisado \
como um conjunto de processos tensivos - tensionados, por exemplo, entre
I
vontade de identificação e imposição de alteração, purificação e hibridaçào.
I
normal e patológico, ordem e caos, traços de evidência e traços de irreflexão.
I

A imagem sobrevìvente 25
tural da \-erJndenotg ao tempo ideal da Yesen Jer }i*,:*.r- F--r*;;; ;
possibilitar a coeristência do esquema *vida e morrÈ . -gran'leza e decadên-
cia", com o projeto intelecrual de um "renascimenro ou uma resrauracào
"neoclássicos". Insisti taj*út*--
sÇ O_;erylti? ql,t_q ren_asçimento imital{q_p=1454.9o^o não reconhecer aí,
t!2
reconfiguradas, mas renovadas, as três "palavras mágicas" fundamentais do
idealismo vasariano?a1 Como não reconheceÍ, na redução do tempo natural ao
tempo ideal, o que cria a própria ambivalência do conceito humanista de imi-
tação? Por outro lado, teria sido possível a imitação moderna dos antigos ini-
'Winckelmann,
mìtáueìs sem o meio-termo que constitu\ para o próprio a imi-
tação renascentista - por Rafael, em primeiro lugar - desses mesmos antigos?
O que era nó (a solução se atrapalha) torna-se então fechamento (a solução
se impõe). O nó da Antiguidade se desfaz ao se trazeÍ de volta uma noção de
ideal; o nó da arte se desfaz ao se ÍesgataÍ uma ideia de imitação; o nó da his-
tória se desfaz ao se resgatar uma ideia de Renascimento. Assim já fora cons-
truída a história humanista de Vasari. Assim recomeçou a história neoclássica
de ìlinckelmann. Mas refaçamos a pergunta de Herder: "Será esse o objetivo
da história? O objetivo de uma história da arte? Não haverá outras formas
possíveis de história?"a2
Precisemos os desafios atuais da pergunta, diante de uma herança winckel-
manniana tão unanimemente reivindicada. Primeiro, quanto à "análise dos
tempos": não haveria um tempo das imagens que não fosse "vida e morte"
nem "grandeza e decadência", tampouco esse "Renascimento" ideal cujos
valores de uso os historiadores não param de transformaf para seus próprios
fins? Não haveria um tempo para os fantasmas, uma reaparição das imagens,
uma "sobrevivência" [Nacbleben] que não estivesse submetida ao modelo de
.transmissão pressuposto pela "imitação" fNachahmwng] das obras antigas por
obras mais recentes? Não haveria um tempo para d memória das imagens -
um obscuro jogo entre o recalcado e seu eterno retorno - que não fosse o
proposto por essa história da arte, por essa narrativa? E, quanto à arte em si:
não haveria um "corpo" de imagens que escapâsse às classificações instaura-
das no século XVIII? Não haveria um tipo de semelhança que não fosse o
imposto pela "imitação do ideal", com a rejeição do páthos que ela pressupõe
em \X/inckelmann? Não haveria um tempo para os sìntomas na história das
imagens da arte? Terá essa história realmente "nascido" algum dia?

z4 Georges Didi-Huberman
h o tempo na- Warburg, nosso fantasma
i um modo de
Éa e decadên-
n restauração
slieo: a imita=.
rr;onhecer aí,
rdamentais do
ry natwral ao L rn século e meio depois de ìTinckelmann compor sua monum ental História
:a;rista de imi- Jt erte entre os antigos, Aby 's7arburg publicou, não em Dresden, mas em
h anrigos lttl- Hamburgo, um texto minúsculo - na verdade, o resumo de uma conferência
rJnann, a imi- em cinco páginas e meia - sobre "Dürer e a Antiguiclade.igrliSrra*1, e imagem
tu:os antigos? que abria esse texto não era a de uma ressurreição cristã, como em Vasari
lnto a solução tig. 1), nem a de uma glória olímpica, como em \Tinckelmann (fig. 2), mas a
nrna noção de de um despedaçamento humano, passional, violento, cristalizado em seu mo-
b: o nó da his- mento de intensidade física (fig. 3).
I iá fora cons- A dissimetria entre esses momentos do pensamento sobre a história, a arte
ria neoclássica e a Antiguidade parece basrante radical.lmSçUlgXle*grUrc"_gue ocupa menos
cssc o objetivo espaço que uma úníca Vida de vasari -, tal como em toda a sua obra publicada
ourras formas - que ocupa menos espaço do que a simples Hìstória da arte -, \xhrhulg .'dg_ _-
cgmlgl3$g9g:lglg-:gb:rg)rtctqmenl-e t.o_dg.s os_mgdgl_o; epistêmicos em uso
nanca rvinckel- na hiqtória da arte vasariana e winckelmanniana. Desconstruiu, por conseguin-
_ 4--%

à -análise dos te, o que a atual história da arte ainda toma por seu momenro iniciático.
bida e morte" 'warburg
substituiu o modelo natural dos ciclos de "vida e morte", "grandezal
n- rdeal cujos e decadência", por um modelo decididamente não natural e simbólico, u^ *o-
I
r seus próprios delo cwltural da história, no qual os rempos jâ não eram calcados em esrágios [í üt
o das imagens, biomórficos, mas se exprimiam por esrraros. blocos híbridos. rizomas, .o-pl.-
|
t ao modelo de ridades específicas, retornos frequentemente inesperados e objetivos ,.-p.. I
râs antigas por trustrados. warburg substituiu o modelo ideal das "renâscenças", das ,,boasJ
das imagens - imitações" e dâs "serenas belezas" antigas por um modelo
fantasmal da história,
re não fosse o no qual os tempos já não se calcavam na transmissão acadêmica dos saberes,
m à arte em si: mas se exprimiam por obsessões, "sobrevivências", remanências, reaparições das
rções instaura- formas. ou seja, por não-saberes, por irreflexões, por inconscientes do tempo.
ue não fosse o Em última análise, o modelo fantasmal de que falo era om modelo psíquìco, no
r ela pressupõe sentido de que o ponto de vista do psíquico não seria um Íetorno ao ponto de
na história das vista do ideal, mas a própria possibilidade de sua decomposição reórica. Tratava-
1
Ldia? -se, pois, de um modelo sintomal,no qual o devir das formas devia ser analisado
\
como um coniunto de processos tensivos - tensionados, por exemplo, entre
I
vontade de identificação e imposição de alteração, purificação e hibridação,
I
normal e patológico, ordem e caos, traços de evidência e traços de irreflexào.
I

A imagem sobrevivente

..,.;-"*.ç*;é;*i*È@iieic&#ea;*,*.- -... .
3. Albrecht Dúrer, Á morte de Orfeu,7494. Tinta sobre papel' Hirn'rburgo, Kr'rnsthalle.
Foto: Instituto \íarbr-rrg.

Tudo isso fala de forma muito abrupta e muito sucinta' admito. Será preci-
so toÍnar a partir do começo para construir essa hipótese de leitura. Mas uma
coisa era preciso dizer de imediato: c,gILYhJ.h*rS,S.:dgi-q.d..erte e a ideia de
história pasq3rar_n-.p-gr.uma reviravolta decisiva,. Depois dele, 1á não estanl-os
dietete*d.airu,Sgery,.ç-.lliqnte do tempo, como antes. Todavia, a história da atte
com ele não "começa", no sentido de uma refundação sistemática que talvez
tivéssemos o direito de esperar. Com ele, a história da arte se inquieta sem
cessar, a história dd arte se perturba, o que é um modo de dizer, se nos lem-

G-"oroes Didi -H uberma n


brarmos da lição benjaminianâ, que ela toca numa origem. A história da arte
segundo'lTarburg é justâmente o contrário de um começo absoluto, de uma
úbula rasa: é, antes, um turbilhão no rio da disciplina, um turbilhão - um
tnomento-dgitador - depois do qual o curso das coisas se haverá desviado
profundamente, ou até transtornado.
\{as essa mesma profundidade pârece difícil de rransparecer ainda hoje.
Tentei em outÍo trabalho caracterizar certas linhas de tensão que, na história
da disciplina e em seu estado atual, puderam criar obstáculo ao reconhecimen-
to dessa reviravolta.aa Acrescentemos a essa impress ão tenaz: 'Warburg é nossa
obsessão, está para a história da arte como estaria um fantasma não redimido
- um dibuk" - parà a casa que habitamos. E obsessão? É algo ou alguém que
r-olta sempre, sobrevive a tudo, reapârece de tempos em tempos, enuncia uma
rerdade quanto à origem. É algo ou alguém que não conseguimos esquecer. L
\{as que não podemos reconhecer com clareza. I
I

>i- )i- >l

it_:* Warburg, nosso fantasmâ: em algum lugar dentro de nós, mas em nós ina-
Gl,' preensível, desconhecido. Quando ele morreu, em 1929, os necrológios que
-s lhe foram dedicados - na pena de eruditos prestigiosos como Erwin Panofsky
ou Ernst Cassirer - manifestaram o grande respeito devido aos ancestrais im-
portantes.45 Ele foi reconhecido como o pai fundador de uma disciplina consi-
derável, a iconologia, mâs sua obra logo se apagaria por trás do trabalho tão
mais claro e distinto, tão mais sistemático e tranquilizador de Panofsky.a6
,rd Desde então, rü/arburg vagueia pela história da arte como faria um ancestral
inconfessável - sem que jamais se diga o que não conviria confessar ou o que
conviri a renegar nele -.,_g41_pa i f anra smá tiçSj**gmJgg:* *
Por que fantasmático? Primeiro porque não sabemos por onde segurá-lo.
Em seu necrológio sobre ì7arburg, Giorgio Pasquali escÍeveu, em 1930, que o
historiador, durante a vida, " jâ desaparecia atrás da instituição que havia cria-
do" em Hamburgo, a famosa Kulturwissenschaftliche Bibliothek \7arburg,
Será preci- que, depois de seu exílio, precipitado pela ameaça nazista, pôde sobreviver e
'a.Mas uma reviver em Londre s. " @ora o ur"" o qrle, {o{a".\ïaaçburgï .,E$ns t.
"

e a ideia de Ga"rbriçL--"a-gueuo teda--eahidêre$scüfúe'd&'.büe-i*iciehlens"-.rolrcehi.lo


nao estalQ-g.L pes* :hrogrdia;glçlççtuall-vcluntasa'
iria da arte E-en-t-e*.Mpççtçsp*íqurços*da"@
que talvez
inquieta sem
se nos lem- ,Í Na mitologia iudaica. um fantasma, ou alma penada. que se apo)sa do corpo de uma pessoa viva.
' [N.tì

A imagem sobrevivente
ldad-ç*-dç,"Var-burg;18 Essa decisão não deixou de ter uma "elaboração" meio
desencarnada de uma obra em que a dimensão do pátbos, ou até do patológi-
co, revela-se essencial, tanto no plano dos objetos estudados quanto no do
olhar voltado para eles. E_dggt _Yi.n-4,:,{l-1.t.:o" severamente essa remontag-e-m
pudlCa, essa.edulcoração que Gombúehf.ez:ae.não se separa um homem deseu
páthos - de suas empatias, suas patologias -, não se separa Nietzsche dqSU,"
loucura nem'üTarburg dessas perdas de si que o deixaram por quase cinco anos
entle ol mulqs de .um hospital psiquiátric.o. O perigo simétrico existe' é claro:
o de negligenciar a obra construída em prol de um fascínio duvidoso por um
destino digno de um romance noir.s0
Outra causa desse caráter fantasmático prende-se a nossa impossibilidade,
ainda hoje, de distinguir os limites exatos da obra warburguiana. Como um
corpo espectral, essa obra continua sem contornos definíveis: ainda não en-
controu seu corpus. Ela assombra cada livro da biblioteca - e até cada inter-
valo entre os livros, em razão da famosa "lei da boa vizinhança" que ìTarburg
havia instituído em sua classificaçãos1 -, mas"-acima de tude,-lpanifesta-se !p
imenso labi5lp-qo-.do.s. panuscrilqs .a'!nda inéditos, as anotações, esboços, esqge-- -
mas, diáriog-q cgt{q_sp.9g_{ênci4 que \Tarburg mantinha incansavelmente, sem
jogar nada.fo.ra,-ç qqe os.editores.até hoje não souberam reunir de maneira-
ponderada, a tal ponto é desnorteante o seu aspecto "caleidoscópico".52 Na
ignorância de tal massa de texros - alguns dos quais tinham um propósito
explícito de fundação, como os Grundlegende Brwchstücke zu einer monisti-
schen Kunstspsychologie, de 1888-1905. e os Allgemeine Ideen de 1927 -,
todas as nossas reflexões sobre \Tarburg ficam presas a uma certa indecisão.
Escrever hoje sobre essa obra é aceitar que nossas próprias hipóteses de leitura
ï sejam um dia modificadas ou questionadas por uma parte inesperada desse
corpus flutwante.
I
Porém, isso não é tudo. O aspecto fantasmático desse pensamento prende-
-se a uma terceira razão, ainda mais fundamental: uma razão de estilo, não de
época. Ler V"afbutg.apiesenta a dificu'ldade de"ver se mesclarem o rìtmo-da-
mais extenuante ou mais inesperada erudição * como a entrada em cena, em
meio a uma análise dos afrescos renâscentistas do palácio Schifanoia, em.Fer .
rara, de um astrólogo árabe do século IX, Albumasars3 - e o ritmo quase
baudelairiano dos foguetes; ideias que se fundem, pensamentos inseguros,
aforismos, permutações das palavras,-experime41a.ção de conceitos... tudo que
Çg-pbfch considera a conta certa para aborrecer o "leitor moderno", eu4n-d-o
é precisamente a modernidade de Warburg que já se assinala nesse traço.5a

28 Georoes Didi"Huberman
hboração" meio Oe q!dç. d_e*_qgg.lfff:":.,{e gue tempo nos f1l4 esse fanrasma? Seu vocabulário
raté do patológi- USbgellglled".T9lle.l1q&ql91{o lgmantismo alemão e de Carlyle. do posi_
6 quanto no do tivismo e
91j1,!,9,q9fia,l!9qgsgnjana.. Ele manifesra, em momenros alrernados, a
hEa remonta€ç-m - preocupação meticulosa com o detalhe histórico e o sopro inseguro da inspi-
n homem deseu ração profética. o próprio warburg falava de seu estilo como sendo uma
[-ieusche dç.SU? "sopa de enguias" lAalsupensti/]:55 imaginemos uma massa de corpos serpe-
guase cinco anos antes, reptilianos, em algum lugar entre as perigosas circunvoluç óes do Lao-
m eriste, é claro: coonte - que obsedaram warburg durante a vida inteira, não menos que as
trridoso por um serpentes postas na boca pelos índios que ele também estudou (fig. 37) e a
-
massa informe, sem pé nem cabeça, de um pensamento sempre avesso a se
rimpossibilidade, "coÍtar", isto é, a definir para si mesmo um comeÇo e um fim.
F".ra. Como um Acrescentemos a isso que o próprio vocabulário de's7arburg parece fadado
È ainda não en- à condição de espectro: Gombrich observou que as palavras mais impofiantes
ic até cada inter- desse léxico - como bewegtes Leben, pathosformel, Nachleben
I - eÍam difíceis
h- qu.'sflarburg de transpor para o inglês.56 Seria mais conveniente dizer que a história da arte
butrif. tra-sg-.gg*_-. anglo-saxônica do após-guerra, essa história da arte que tinha uma enorme dí-
f,-erboços, esqgg; vida para com os imigrantes alemães,s7 exerceu sobre si mesma um trabalho de
içavelmente, se-g[ renúncia à língua filosófica alemã. Fantasma não redimido de cerra tradição fi-
Lrnir de maneira lológica e filosófica, \xl'arburg vagou poÍ uma época ambígua e inapreensível: de
lot:óoico".t2 Na um lado, ele nos fala a partìr de wm passado que os "progressos da disciplina,,
F
ts r- propósito parecem haver tornado obsoleto. Em especial, é característico que o vocabulário
iB einer monisti- da Nachleben - a "sobrevivência", esse conceito crucial de toda a empreitada
peen de 1927 -, warburguiana - tenha caído completamente em desuso e não tenha sido objeto,
1."n" indecisão. quando porventura é citado, de nenhuma crítica epistemológica consequente.
lóteses de leitura Por outro lado, a obra warburguiana pode ser lida como um texto proféti-
hcperada desse co e, mais exatamente, como a profecia de um saber por yir. Robert Klein, em
1'964, escreveu sobre \Tarburg: "[Ele] criou uma disciplina que, ao contrário
Sarnento prende- de tantas outrâs, existe, mas nâo tem nome."58 Retomando essa fórmula, Gior-
lde estilo, não de gio Agamben mostÍou como a "ciência" visada por essa obra estava ,,não
kem o ritr.ne-d+ ainda funda da" - traço que designa menos uma falha da racionalidade que a
lda em cenar,.gm_ ambição considerável e o valor perturbador dessa ideia das imagens.5e war-
[tanoia, em*Eçt;- b.*g dizia a seu próprio respeito que ele menos fora feito para existir do que
b o ritrn-o quase . para "persistir [eu dírìa insìstir] como uma bela lembrança,,.60 É bem esse
o
Fnros inseguroso t9I4S-ú p-alu-*r""LIaa.blelrcn;esssterrno, do.Ílpós-vivet::r umõ õ.p"sraã-ôl
tulg que
ii!tos-,.. ... q",.__:3-9"
P_nta
de sgbreviver' Num dad.o rnome'r+t.g-,. seu.Íetornp- -em nossa me-
[terno", quada mõii-a róina.-se a própria urgência, a urgên-cia anacronica dq q.qe Nietzsche
ilesse tlê.Çg,54 cllamq u de. in atr+al. o v.intemp estiu,a - *.,
.

Assim seria \Tarburg nos dias atuais: um sobrevivente urgente para a his-
t6ria da arte. Nosso dìbuk. o fanrasma da nossa disciplina, falando-nos a

A imagem sobrevivente
um tempo de seu (nosso) passado e de seu (nosso) futuro. Questão passada:
devemos alegrar-nos com o trabalho filológico que, sobretudo na Alemanha'
prende-se há alguns anos à obra de ì7arburg.61 Questão futura: as coisas são
mais delicadas, evidentemente - uma vez reconhecido o valor de "impulso" da
obra warbu tguiana,6z as leituras põem-se a divergir. Não apenas a heran-
ça do "método warburguiano" tem sido questionada desde os primeiros mo-
mentos de sua colocação em prâtica,63 como também a atual multiplicação
de referências a esse suposto "método" proporciona uma verdadeira vertigem.
tWarburg torna-se superespectral no exato momento em que cada um começa
a invocá-lo como o santo protetor das mais diversas escolhas teóricas: santo
pÍotetor da história das mentalidades, da história social da arte e da micro-
-história;6a santo pÍotetor da hermenêutica165 santo protetor de um suposto
antiformalismol66 santo protetor de um chamado "pós-modernismo retromo-
derno"167 santo protetor da New Art History, ou até grande aliado da ctítica
feminista...68

Georges Didi-Huberman
);:stão passada: As formas sobrevivem: a história se abre
lc ra Àlemanha,
rr:: as coisas são
d. "impuiso" da
e:-nAS a heran-
u= :iimeiros mo-
ra- nultiplicação
ü:::ra \rertigem. ,-'i ;erto é que, como escreveu Ernst Gombrich - mas como pôde ele não se
c;:l um começa .-::ir r-isado por sua própria frase? -, "o [atual] fascínio exercido pela herança
rs :;óricas: santo :. \Tarburg também pode ser visto como sintoma de certa insatisfação" com
a:-- e da micro- :. :ristória da arte tal como é praticada desde o fim da Segunda Guerra Mun-
Í:a um suposto :--:.i." Em sua época, o próprio Warburg havia manifestado esse tipo de insa-
Í:_:s:iìo retromo- ::.lação, outÍa maneira de expressar uma exigência ainda não elaborada. Em
a-,:io da crítica -:!8. quando tinha apenas 22. anos, ele já fustigava, em seu diário íntimo, a
::srória da arte para "pessoas cultas", a história da arte "estetizante" dos que
ì- .ontentavam em avaliar as obras figurativas em termos de beleza; já então
---,r.ì\'ocava para uma Kunstwissenschaft, uma "ciência da arte" específica, e
-scre\-eu que, um dia, seria tão inútil falar em imagens quanto é inútil para um
:--ro médico tecer comentários sobre uma sintomatologia.T0
foi também por "aversão à história da arte estetizante" liisthetisìerende
E
{trrtstgeschichte] que's7arburg se lembrou de haver partido subitamente, em
i91.3, para as serras do Novo México.71 Ao longo de toda a vida, ele exigiria
io saber sobre as imagens um questionamento muito mais radical do que toda
: "curiosidade voraz" dos atribuicionistas - como Morelli, Venturi, Berenson
-. os quais qualificou de "admiradores profissionais"l do mesmo modo, erigi-
ria muito mais que o vago esterismo dos discípuÌos (quando vulgares, isto é,
rurgueses) de Ruskin ou ìTalter Pater, ou até de Burckhardt ou Nietzsche;
assim, evocou com sarcasmo em seus cadernos de notas o "turista super-ho-(
mem em férias de Páscoa", que vai visitar Florença "com o Zaratustra no \

bolso do casaco".72
-i
\ü/arburg pôs em prática um constante
-=le3 fqlp,g:g.la essa insatisÍação,
Jeslocamenro -"ããóiõôuinèiïtõ nó fênôâr, ïôi foritòs clê vistâ filosóficos; nos
.ampos de saber:. noi períodos histórjcos. nas hierarquias culturais. nos lugares
eeográficos. Ora. esse próprio deslocamento conrinuou a fazer dele um fantas-
:Tai..9f--,1Y3--ç,tgçg:.ç.-h9j9 P11.1-d-9-q-9-9.-!.yl,9a \)7-ar!urg foi s fogo'fátuo, ou
'
_m-el-11..91,*g.4trauessct pdredes da história da arte- Já então, seu deslocamenro
púry a_!!stó11a- dg- e{tg - paÍ-a. 4. e"I_UdiçAq.ç-4ç imageng e,m geral - resultara de
.g1.pjoçes!9.c1-ít!9.-o_'e-5-n.relação ao espaço familiar: um mal-esrar na burguesia
negociante e na ortodoxia judaica.ls.Mas sobretudo seu deslocamento atraués

A imagem sobrevivente 31
da história da arte, em sua orla e mais além, criaria na própria disciplina um
violento processo crítico, uma crise e uma verdadeira desconstrução das fron-
teiras disciplinares.
Esse processo já se faz sentir nas escolhas do jovem ì7arburg, suas escolhas
de estudante entre 1BB6 e 1888. Ele seguiu os ensinamentos de arqueólogos
clássicos - em todos os sentidos do termo -, como Reinhard Kekulé von Stra-
donitz (em cujas aulas descobriu a estética do Laocoonte efez, em 1887, sua
primeiríssima análise de uma Pathosformel) ou Adolf Michaelis (com quem
estudou os frisos do Partenon).7a Foi aluno de CarlJusti, que o iniciou na filo-
sofia clássica e em'sfinckelmann, assim como em Velásquez e na pintura fla-
menga. Em contrapartida, entusiasmou-se com a filologia "antropológica" de
Hermann Usener, com todos os problemas filosóficos, etnográficos, psicológi-
cos e históricos que ela arrastava em sua esteira. Depois, nas conferências de
Karl Lamprecht sobre a história vista como uma "psicologia social", ele en-
controu alguns fundamentos de sua futura metodologia.Ts
)i
1 Do lado do Renascimento, os ensinamentos de Riehl e Thode - que fizera do
b]' 'desenvolvimento artístico italiano uma consequência do espírito franciscano,
!relegando ao segundo plano o retorno da Antiguidade pagã - mais serviram de
!contraponto.T6 Porém, Hubert Janitschek o fez compreender a importância das
teorias da arte - a de Dante, a de Alberti -, bem como o papel das práticas so-
ciaìs ligadas a qualquer produção {igurativa.77 Quanto a August Schmarsow, ele
simplesmente iniciou tü/arburg no terreno florentino, se assim posso dizer: foi
in loco que o jovem historiador cursou seus estudos sobre Donatello, Botticelli
ou a relação entre o gótico e o Íenascentista na Florença do Quattrocento, te-
mas que hoje reconhecemos, todos eles, como eminentemente warburguianos.T8
é!É-q1d-iSSq, $ç_h11arsow def endia url'a Kun stw i s s e n s c h aft decididamente
aberta às questões antropológicas e psicológicas. Elaborou um conceito espe-
cífico da comunicação visual e da "informação" [Verstiindigungl, mas sobre-
tudo compreendeu o papel fundamental do que era chamado, na época, de
"linguagem dos gestos": retomando, para além de Lessing, a problemática
expressiva do l"aocoonle, tentou elaborar uma teoria da empatia corporal das
imagens, tudo isso enunciado a partir do binômio da "mímica" fMimik] e da
"plástica" lPlastik].'1e Nessas condições, ficaremos menos admirados de ver o
jovem \üTarburg passar da antiga Psicomaquia païa a leitura de \ü/undt, e de
Botticelli para cursos de medicina, ou até para um curso sobre as probabilida-
des, no qual, em 1891, ele fez uma exposição sobre "Os fundamentos lógicos
dos jogos de azar".8o
Mais do que um saber em formação, foi antes um saber em mouimento qLte
aos poucos se constituiu, pela ação - aparentemente errática - de todos esses

32 Georges Didi-Huberman
r:i.:. disciplina um :::,ccamenros metodológicog.
lb;-çdg*e**1_Qíe r -W=a rburg f azia parte de uma
c,:,ttção das fron- r:::;ão prestigiosa de historiadoies;;;;; (Emile M"1". ,rur..u em 1862;
-: 'ph Goidschmidt, em 1863; Heinrich \7ôlfflin, em 1864; Bernard Beren-
f,::. suas escolhas : . irrÌ 1865; Julius von schlosser, em 1g66; Max J. Friedlànder, em 1867;
e :r arqueólogos ''i
'relm vôge, em 1B68 etc.) -, mas sua posição epìstêmìcae institucional o
K-kulé von Stra- - ----r;ia em termos ahsolutos. Em I904, quando se aproximava dos quaren_
:;r. em 1887, sua :: -:-: rs. ele foi reprovado mais uma vez no exame para um cargo de professor
u..ls (com quem :: ;,r'|nn; semilúcido, semiangustiado, ele havia escrito em 1897: .,Decidi de
'- :niciou na filo- -.:: -''-z por todas que não fui feito para ser priuatdozenrr."sl Depois disso,
: - ra pintura fla- -'- a declinar de propostas de cátedras em Breslau e Halle e,
em geral, de
r::,,rp6lfgi.u" 6. : ---. ;-lier cargo público, recusando-se, por exenrplo, a representar
a delegação
:::,cos, psicológi- : -:,r- no congresso Internacional de Roma (1912), do qual tinha sido um dos
s :rnferências de - ' . .:ii'os promotores. Ele viria a permanecer como pesquisador priuado -
ã >'lçi21", ele en- .--=. :endo-se a expressão em todos os sentidos possíveis um pesquisador
-,
:- :róprio projeto, a "ciência sem nome", não podia satisfazer-se com fe-
i' - que {tzera do ---::-ntos disciplinares e ourros arranjos acadêmicos.
í:-,:: franciscano, -- ', essa, pois, a insatisfação iniciai: a terrìtorialização do saber sobre as
':-.:: ír-(. Em 1912, ao concluir
=-.rs serviram de sua comunicação no congresso de Roma sobre
r :::rortância das : :::ri.rs astrológicos dos afrescos de Francesco del cossa, em Ferrara, \(/ar-
i- ::-s prátìcas so- -
--: :ieiteou - segundo seus próprios ter:mos - uma .,abertura,, da disciplina:
s::;hmarsow, ele
.-, , arnscar aqlri esta tentativa parcial e provisória, minha intenção
a : ,,sso dizer: foi foi plei,
-:-1: LÌm alargamento metódico das fronteiras cle nossa ciência d,a
n.:.ilo. Botticelli .. :. ; i :
arte leine
o d i s ch e G r eze r w e ìt e r u n g u n s e r e t. Kunstwìs
s ens ch aftl (...7.s)
Q-.rrocento, te-
n--::3urguianos.78 :-:ia correto, porém muito incompreto, compreender esse preito como uma
f -;cididanente :'' :.ncia de "interdisciplinaridade" ou como a ampliação filosófica de um
r, :rnceito espe- : --'] de vista sobre a imagem, para além dos pr:oblemas factuais e estilísticos
ls.':_a-. mas sobre- - --- r historiador da arte tradicional formula a si mesmo. É fato que a vontade
d-.:ra época, de :: -'rarburg sempre foi conciliar a preocupãÇão fitológica (donde a prudência
;: :roblemática : : .omperência que ela pressupõe) com a preocupdção
fitosófìca (donde o
e::-: corporal das : r- -j ou mesmo a impertinência que ela supõe). porém há mais do que isso:
a
;;* \íìmìkl e da : '- -:.cia warburguiana quanto à história da arte dec.rre de
uma postura
r:-:-:.dos de ver o :-*:io precisa a respeito de cada um desses dois termos, ,.arte', e.,história,,.
r :. \\-undt, e de \bqrg,-cre!g, sgntia.se insatisfeito com â terrítonarização do saber sobre
r -:s probabilida- --: --I. agens porque tinha certeza de duas coisas, pelo menos. primeiro,
não fi-
ú.:.:entos lógicos -:-r'os dìante da iruagem como diante de algo cujas fronteiras exatas não po-
-::]os tïaçar. o conl'unto das coordenadas
positivas - autor, data, técnica,
z -,:,l'imento que -: 'rosrafia etc. - não basta, evidentemente. uma imagem, toda imagem, re-
r - ;: todos esses .--;.r dos movimentos provisoriamente sedimentados ou cristalizados
nela.

A rmagem sobrevivente 33
Esses t-,..,Crr,-infi1to9 a âtíãves3a1ll rle ic;ra
a fora. e eedã ciuaì tem'urna lraìetória
l:is'rorica. airtropoìí15';ic:r, psir:o1ó3'ica - clue ì-nilrte e'1e ionge e Ço1-Ìtiíxrla aléiÌì
-
ntt]t?1''t!iíl É,!1el"ge{lco oriCïinâmiC-lr"
iiela. Ì:ies nos obrigirln a pensá-la COnIO L1Í-1ì
airrd:r cir,.e e1e seia clper:ítico em sua estr-tltLìr:l'
para a histór'ia cla arte, clue
ol-r.,,. lsso iraz 111-ì-ì11 er,.nseqr.iência íi-lnciamental
rì seti "pleito":
$,,hr:bui:g enurncioo nna p,rioìros imedi:lt:rlneilte lìosteri'rrcs
xa";r<: c1iante de tmr tct'.'t'ltQ camt)lexoi
o tempo pl:o'
fin,,rrnos iiailte eia ln1-ageqr
visurianlente configrr,:]do" eliriâi-nico, clcsses
prtiprios in'r'imcntos' 'A conse-
(}1', 1! trt\lÌ:ì(} lú''iict'clrs i''"rnrrir:ìr"" ilJrt e
-- - r'l( Ìln- " li!arglrpt 'Ì1to nì|
rì{ìefiL'l -
r-tma destefi"ltolìaiização cla imagenl c
clo terllpo Oue crpLinre stt:r
.r-tr^ r.-rr
ç\üe o tew,l)., dti imagerct nãa é' rs tem-
historícìcrirr.r-lc. íss() signit.rea, Çial::1niente,
o teÍxpo ciLle Warburg desiae'ul' nesse
pont{}' através
pa da histtit'rn .,o g.i'"1, -[aref:r Lirgerìle (intempcsÍiva, ina-
..r:e.tcg.rj.as uniriersars" cirl evoïucãc.
rlas
i:r:fuirclar ''sua própria tL-(ìriiì'*-Lii
iga-i)? i)ara a'hi:;tti'rla,-la arte, ll"ãïi11rã-se rlc
que V/iir'bur:g relaciorÌl\i.ì 3 LÌlnrì
ei,.r,.Ìuçã'"" guir lrl:ói-'rl:r- ïetlria dc ternpo -
".csit:i-- içgiLl h istó rica: " :

par:l llcnsai ir cvoiriç:lo it-li-


Àté ailiti, i., irrsuÍÌeruÊilcirt d:15 Ciltagortas'rltlir,ers;rìs
o*t..iris ì Cispllslção rja "psicologia hìs-
perli,-o a itisiitr:irr d:., i.rte tie pôr: n.'u,
rirri,.:;r ila e -<p::essitl il'--,rnait::" \,histrtris::lte
Fs\'l'nlttg '' dcs matischlichen ALts-
e:;ct"ita. liossil jGrti:r-l clisr:iplina ("')
Jrt;cils]":.1 iir,l:,1" ic i,:stc, r-lind.,-l est:i L-ror ser
poÌítrea c tcrc''ri;-l:; stlbre o gênio' à'
trrteiiì enì nreio:,t c:'q,j.ì1ntiï15il1():; c1;r hisií.}r:i;l
stta plrip;:i;r leor-i;i c1a evolltç:io l,i'Ltt'e eìgene
Fntw'ici:-'utgslehre]"t)
'oíocì.Ìiã cie

Á,gor;,r scr:i:l precisnt p()r1er scg,.iii wirrilur'5 {:m \LI:Ì teirliìtìì-t rie "ãtri1r'cssar
qr'te cïin caírr.Ia - ou q'úe
prnaàau". dc ".ieser,cïân:;uraL"' ;t irn'tgewt e Ú tsrfi'Pa
ríij'ciir' íÌÇachâpatlter a
a cili:rcgi1. Segr.llr se,-l nrorrlineill-{l ollgânic{l itltiiv;rlerirr.
e-\fti rrl-iIììLìfada cìe críiica
nãr: cln-ritii: nacl;r. biãs podeinos iì(l nìen05 li.ti.irti
our iÌ1rtieiras pei:rs qr"iais
epistcnrológicrr iriterro,ganali,--nos sol]ire a tIarltririì
vezJ per-
ríar:ìrnrg pôs em n-r.-lïilïcnto e desktcott ct l:ìst(trir tla ttrte' h'[ais uma
estiíp iie pctitt'ir'lel.ito' {ic
cehemçs clue tucïo aqr.ri é lii-na qucstão eic estiïG -
dceisãu. iie sailer utt 5r:ìJ, 11trÌ1ír rlLìcotrì'r'' cie Iernpo' cìe anciiltncnto'
-.
;l' )! )l'

Lltrra pr:imeira matreira rie eiesloc;lr ;ls coisas é


levar 1l ïennpo necessririo' t'elíll-
cÌ.ctr^ï.,rnijlorenc;a" w*:Ìrburg já "rerare1ou" :r
história da arte: precist"u ievar unr
fit!i;.,1.!crn!),) {lud tìi.ì íì fcr:11){! \i'5..ììiíìÌ!(},i,. "fii"rrir,.is âiiIrtglaçifi''1çl()ra> c
('r'ìo"'i LlÍn tip0 inécr'ittl
o ter.ïìpo hegeïia1..ì,, do "senticlc- ilniversal el;l história".
e revolveu os
c1c r:e[elção eÌltrc {} prì-rtìculãr e o ilniYersai. i]ar:r iss{].:1tn'evessou
Er- uma traletorla - r :np tradicionais da própria arrgiçg3gjéJãíilh.flhas1AÊgg*g.-Museu dos
o s
t È .ontinua além 'i5':91. d--"9-d.ly- *ç:g"y.Sg.t*"*9-$-uqd"a ssm.hiçrarçuia- -dç-At:ehiuip, çom suas
b;,rsudiaâmiqo, -:rlif"Í3sJJs:9t:!Y-t:P::y-1-d3!.,-Fs*{q-.Ii-v:,s.q-de-ç-onrâhilirlrde., seus.tesramentos
:--car!ório- Assim. urna norificaçào do pagamenro de um ex-voro. feito em
/
Íc:ra da arte, que -'!1 no próprio rosto do doador, ou as últimas vontades de um burgues flo- I
!s : sell "pleito": :;:,:ino tornaram-se) a seu ver, uma verdadeira matéria - materia móvel e ili-
/
k,, o renqpo pro-ì :'::da - para reinventar a hìstória do Renascimento.sa uma história que já
|

b.:.rqs. A conse- : J-mos dizer fantasmal,no sentido de que nela o arquivo é considerado.r-'
lÈ ,lreiras" não é -.:s:rqio material do rumor dos mortos:
Yhü*ggSç1gy"S_U-*ç1Uç-' pê-r.a ,el,eo.co:1.
D.-:; erprime sua ,,-_i9=.*qg_ç,:tL'q._r"4çjfgg"ln$*dçgfi.id*o-g=", trarava-se de "resgarar o timbre
-=.t-_rgzçg1;1gu_dÍgqls *lden unhorbarei ittààtt-ïïi""ãiì-xtai'g1aLr)b" z,,rr-
E:i; rtaa,é.p !"9.!y_-

Fs- fonto, através .::,:en) - vozes dos desaparecidos, mas vozes deitadas, ainda redobradas na
fu:::npestiva, ina- ::-:ira simpies ou nas construções particulares de um diário íntimo do Quat-
pp: :ria teoria da
. ::,'Jinro! exumado do Archiuio.s5
Li.::.nava a uma -\s próprias imagens, nessa óptica de retorno de fantasmas, viriam a ser/
i :,:'ideradas como aquilo que sobrevive de uma dinâmica e uma sedimenta-) eflz-
;:,' antropológicas tornadas parciais, virtuais, por terem sido, em larga medi- I
-:. destruídas pelo tempo. A imagem - a começar por aqueler r.trnto, d.f
-::.rueiros florentinos. que warhurg interrogava com particular fervor d.- j
-
':::r ser considerada, portanto, numa primeira aproximação, o que sobreuìuel
:, :ríttJ população cle fantasma.s. Fantasmas cujos traços mal sao visíveis. po-i
:.::r se disseminam por toda paÍte: num horóscopo da data do nascimento,
:-j]la carta comercial, numa guirlanda de flores (justamente aquela de que
: Je "atravessaf '..::rlandaio tirou seu apelido), no detalhe de uma moda do vestuário, uma
:--.'-,a de cinto, uma circunvolução particular de um coque feminino...
: -:;achapante, a Essa disseminação antropológica Íequer, evidentemente, que se multipli-
(
= :-rda de
crítica J*-m os pontos de vista, as abordagens, as competências. Em Hamburgo, a \
::s pelas quais .::-rressionante Kulturwissenschaftliche Bibliothek ìTarburg é que viria a as- ,-ç1
.- j uma vez) per- .*rir o encargo - infinitamente paciente, sempre ampliada e novamente em c:
::nSamentO, de iras - desse deslocamento epistemológico. lmaginada por 's7arburg desde ;-. !.
.>s9 e erguida entre 1900 e 1906, essa biblioteca consriruìu uma espécie de -i-
::rs 171ãgnum em qüe seu autor, embora secundado por Fritz saxl, provavel- r't
.F\
::rirre se perdia tanto quanto construía seu "espaço de pensamenÍo" fDenl<es- H
-;:t'rtf .N6 &lggS-s_p-?ço riz-gmá1ico que, em L929, abarcava 65 mil volumes
-,
:-::essário, retar- -: :isiória da arte como disciplina acadêmica foi posta à prova de uma deso-
ç:=cisou levar um lìtaçao organizada:.rn rodô, os ponros em que harìa fronteiras enrre disci-
:-orificadoras e _: r n a s, a b- j b] i 9 1 e c 1.. p r o-c-=u.{4 y a e s q.4 b e 1.ç
çe r- I ig q ç õ e ç .8
7

;n tipo inédito \Ias esse espaço ainda era a workìng library de uma "ciência sem nome":
:: e revolveu os ::51ioteca de trabalho, porranro, mas rambém biblioteca em trabalho. Biblio-

A imagem sobrevivente 3.5

*
I
teca que Fritz Saxl disse muito bem ser, antes de qualquer outra coisa, um es-
paço de questões, um lugar para documentar problemas, uma rede complexa
em cujo "âpíce" - fato extremamente significativo para o nosso propósito -
encontravâ-se a qwestão do tempo e da história: "Trata-se de uma biblioteca
de questões, e seu carâter específico consiste justamente em que sua classifica-
ção obriga a entrar nos problemas. No âpice lan der Spìtzel da biblioteca en-
contra-se a seção de filosofia da história."88
Salvatore Settis, num artigo admirável, reconstituiu os modelos práticos
dessa biblioteca - â começar pela biblioteca universit âria de Estrasburgo, onde
'Warburg fora estudante
-, bem como o contexto teórico dos debates sobre a
classificação do saber no fim do século XIX. Em especial, ele retraçou as me-
tamorfoses de um questionamento incessante dos pefculsos e "locais" da bi-
blioteca, em função da maneira como eram experimentados por'Warburg os
problemas fundamentais assinalados pof expressões cruciais' tais como Nacb-
leben der Antike (sobrevivência da Antiguidade), AusdrwcË (expressão) ou
Mnemosyne.se
Compreendemos melhor em que sentido uma biblioteca assim concebida
podia produzir efeitos de deslocamento. Uma atitude heurística - isto é' uma
experiência de pensamento não precedida pelo axioma de seu resultado - guia-
va o trabalho incessante de sua recomposição. Como organízar a interdiscipli-
naridade? Isso pressupunha, mais uma vez, a difícil conjunção das engrena-
gens filológicas com os grãos de areia filosóficos. Pressupunha a implantação
de uma verdadeira arqweologia dos saberes ligados ao que hoje chamamos de
"ciências humanas", uma arqueologia teórica, jâ centtada na dupla questão
das formas e dos símbolos.eo
Mas, ao mesmo tempo, impunha-se a espécie de situação dporéticd gerada
por tal iniciativa. A princípio, essa tinha sido uma empreitada de um homem
só e de um único universo de questões: é muito estranho - ainda hoje se pode
'Warburg,
senti-lo nas prateleiras do Instituto em Londres - usar um instru-
mento de trabalho que leva a tal ponto a maïca dos dedos de seu constfutor.
Se a biblioteca de'Síarburg resiste tão bem ao tempo, é porque os fantasmas
das perguntas formuladas por ele não encontraram conclusão nem lepouso.
Ernst Cassirer escreveu, em seu elogio fúnebre ao historiador' uma página
magnífica sobre o carâter aurático de uma biblioteca ao mesmo tempo tão
pafticulff e tão aberta, "habitada" por "configurações espirituais originais",
como se exprimiu Cassirer, das quais parecia emergiÍ' espectral e ainda "sem
nome", uma possível arqweologia da cubwra.el }/ras é inegável que essâ estra-
nhezatraz algo como um estigma da aporia:'Warburg multiplicou as ligações
entre os saberes, ou seia, entre as respostas possíveis à sobredeterminação in-

36 Georges Did!-Huberman
ÈX$.f r{rr;;cìr I

ulra colsa, um es- sana das imagens - e, nessa multiplicação, é provável que tenha sonhado não
n: rede complexa escolher, adiar, não cortar nada, investir o tempo para levar tudo em conside-
nc)sso propósito - ração: loucura. como se orientar num nó de problemas? como se orientar na
de uma biblioteca "sopa de enguias" do determinismo das imagens?
qLe sua classifica- Há outra maneira de formular a pergunta, de deslocar as coisas. outro
I ca biblioteca en- estiÌo, outro andamento. É perder, ou melhor, fingir que se está perdendo tem,
:o. É agir de forma oblíqua, por impulso . É bifwrcar de repenre. Não adiar
n:odelos práticos rrais nada. Ir direto ao encontro das diferenças. É partir para o campo. Não
E.:rasburgo, onde que o Archìuio ou a biblioteca sejam puras abstrações, não-terrenos: ao con-
rs Jebates sobre a :rário, esses reservatórios de saber e civilização reúnem grande número de es-
Ie retraçou as me- :ratos, dos quais é possível seguir, justamente - de um arquivo a outro, de um
s ; "locais" da bi- .ampo de saber a ourro -, os mouimentos do terreno_. Mas__biíurcar é outra
n lor-Warburg os ;orsa: é mouer-se em direção q::o terrgno, ir ao local, aceitar a experiência
perlencla exls-
exi
l :ars como Nach- =nci1l4"r p_glgUtttas -quealguém formula a si rnesmo.
ct erpressão) ou Trata-se, na verdade, de experimentar em si um deslocamento do ponto de
7
'.-ista: desloc ar a própria posição de sujeito, a fim de poder oferecer meios para
) LL{
r :ssim concebida leslocar a definição do objeto. Para sua viagem ao Novo México, N7arburg f -
b::;.r - isto é, uma rnr-ocou razões que ele mesmo qualificou de "românticas" lder.wille zwmt
u :e sultado - guia- Rontantischen], acima de tudo um intenso sentimento em relação à inanidade
b;: a interdiscipli- da civilização moderna ldie Leerheit der Ziuilisation] que ele observou na
ncão das engrenâ- ;osta leste dos Estados unidos, durante uma viagem com a família; mas ele
ú: a implantação :ambém evocou razões propriamente "científicas" fzur'\YissenschaftlJlsadag
hc,;e chamamos de i;qa fl-4v,er-g4o à h_ist-órla da arte esrerizanre" e à sua busca de uma 'iciência da
na dupla questão arr9" lKunltwissenscbaftl que se abrisse para o campo simbólico .- ou, ceme
cle dizia então, cultural - em geral lKuburwissenschaftl.ez
o -;üorética gerada Embora a "viagem indígena" de \Tarburg tenha sido estudada com frequên-
ria de um homem cia,e3 a questão de saber o que ele buscou nela, exâtamente
- e o que encontrou
airda hoje se pode -. permanece até certo ponto em suspenso. Se concordarmos em reconhecer a
- Ì-rsar um instru- :mportância metodológica de tal deslocamento - para além das palestras per-
ie seu construtor. llexas, às vezes chocadas, que fariam dele o ato puramente negativo e desloca-
rcue os fantâsmas io de um historiador da arte em plena crise moral -, precisaremos nos pergun-
rsi.o nem repouso. tar que tipo de objeto tü/arburg terá encontrado durante essa viagem: que tipo
iaJor. uma página de objeto propício para deslocar o obleto "arte" contido na própria expressão
n=smo tempo tão ''história da arte". Perguntemos, simetricamente, que
tipo de tempo.ü/arburg
ú-r:ruais originais", :erá experimentado por lá que fosse propício para deslocar a "hìstórìa", tal
mraì e ainda "sem como esta costuma ser entendida na expressão "história da arte,, .
ir-el que essa estra- Que tipo de objeto, entã9? \x/arburg encon_trou nesse campo de experiência?
tiplicou as ligações \igumá êoisa que, provavelmente, ainda permanecia - era o ano de lB95
- {.LL
redeterminação in- €,q,g-i!+_dg.'A_lgo que era imagem.mas também ato (corporal, social) e símbo-

A imagem sobrevivente 37
/o (psíquico, cuftural). lJma "sopa de enguias" teórica, em suma. Um amon-
toado àe serpentes - o mesmo que fervilhava como ato no ritual de Oraibi, o
mesmo que dardejaya como símbolo em relâmpagos celestes (fig. 37 e 73-76),
o mesmo, ainda, que atravessava como imagem a visão de estalactites reptilia-
nas do Novo México, ou as espifais de um retábulo barroco diante do qual
fezaYãm alguns índios em Acoma.ea
O problema suscitado por essa "concreção" de atos, imagens e símbolos
não é saber se \íarburg buscava uma paridade ou uma disparidade em relação
a seus objetos de trabalho ocidentais, florentinos, renascentistas. Será que ele
estava lá para estabelecer uma analogia com o Renascimento' com suaS festast
suâs representações de Apolo e da serpente PítOn, seus elementos dionisíacos e
pagãos, como pensâ Peter Burke?e5 Ou estafia Iâ para experimentar uma com-
pleta inversão do ponto de vista ocidental e clássico, como pensa Sigrid'líei-
gel?e6 A Íesposta deveria ser dialética: efa na "incorporação visível da estra-
nheza", segundo a expressão de Alessandro Dal Lago,eT que'Síarburg buscava,
com certeza, uma base não comum e arquetípica) mas dìferencial e comparati-
ua comas polaridades manifestadas, segundo ele, por todo fenômeno cultural.
Mas por que esse objeto era propício para deslocar o obieto " drte" tradicio-
nalmente visado pela disciplina da história da arte? Por não ser um objeto, jus-
tamente, e Sim um complexo - ou um amontoado, um conglomerado, um ri-
zomã - de relações. Foi essa, sem dúvida, a razão principal do compromisso
apaixonado que ìíarburg manifestou, durante toda a vida, com as questões
antropológicas. Ancorar as imagens e as obras de arte no campo das questões
antropológicas foi uma primeira maneira de deslocar, mas também de orientar
a história da arte para seus próprios "problemas fundamentais". Como histo-
riador,'Warburg - à semelhança de Burckhardt, antes dele - recusou-se a colocar
esses problemas no plano dos fundamentos, como teriam feito Kant ou Hegel.
Enunciar os "problemas fundamentais" não era procular extrair a lei geral ou
a essência de uma faculdade humana (produzir imagens) ou de um campo do
ïrl saber (a história das artes visuais). Era multiplicar as singularidades pertinentes,
era, em suma, ampliar o campo fenomênico de uma disciplina até então fixada
em seus objetos - desprezando as relações instauradas por esses objetos, ou
pelas quais eles eram instaurados - como um fetichista em seus sapatos.

A antropologia, portanto, deslocou e desfamiliarizou- inquietou - a história


da arte. Não para dispersá-la numa interdisciplinaridade eclética e sem ponto
de vista, mas para abri-la a seus próprios "problemas fundamentais", que, em

Georqes Didi-Huberman
si-:e. Um amon- ì::::re parte, continuavam no não pensado da discipiinaJg-lg,_v_a:gqj-q_lA"r-g:
ir-:. de Oraibi, o à qrt-1er4a.,ç,çm?-le-x.idade das relações e detçr-miqaçÕe-s - ou lnelhoÍ,
.r --.r.- liì- e- -) -/\
/J-/O))
-:-..;l
. - ; : -i1tqlmin-dçQg;. dç q.pg ês lmagenq .se- constituíam, lgm como de refor-
-
f;-=;rites reptilia- - - -rr .1 especificidade das r:elações e do trabalho formal de que as imagens
c ::.ìnte do qual :::::.onst_itu_tives. É perfeitamente estúpido - e feito com bastante frequência
- : \.er em ìTarburg um pesquisador de "fatos" históricos e "conteúdos"
It:::1s e símbolos : ::, riógicos, um suposto antiformalista, incapaz de difer:enciar a imagem em
tz;-;;: em relação ::r: e a obra-prima singular. O que ele tentou - e o projeto Íinal, Mnemoqtne. Ì
k:.. Será que ele ::-s:a-o de forma evidente - foi, antes) recolocdr o problema do estilo,
"tt"\l;.t
f : ,:lì suas festas, :: ,blema de arranjos e eficácias formais, sempre conjugando o estudo filoló- Ì/*"
h . :ionisíacos e -:.-rr do caso singular com a abordagem antropológica das relações que tor- ii' {"!1
tse --.-: Ltnla com- r:rl essas singularidades operatórias, em termos históricos e culturais.et j
'!íei-
!r .: Sierid 1gU,4 -nççe9sári-S 9m l-ivf9,inleilg p4.ra avaliar com precisão o que Warburg t
-'
-. ', lÌ da estra- :.ira podido encontra{, na antropologia de sua época - um campo vasto, con-
-:rnente a estudos especializados de tipo etnográfico, bem como a grandes
.rstemas de inspiração filosófica -,eu€ se prestasse a transformar sua atitucle
-.:.r cultural. -: historiad.o-t.da 4f!ç," Fm especial, seria preciso reconstituir o considerável
" rradicio- nrpacto do pensamento de Hermann Usener, cujas aulas V/arburg frequentou
-.-..
-rn Bonn, entre-l 886 e.l 887, e cujo projeto de uma "morfologia das ideias
:eligiosas" imprimiu marcas profundas na metodologia warburguiana.r00 F,le
- :::promisso rar-ia abordado os mitos da Antiguidade, tal corno \Tarburg iogo viria a f azet
: -:-s questões .om os afrescos do Renascimento; ligava a investigação filológica - detalhes,
:-:.) questões e specificidades, singularidades - aos problemas mais fundamentais da psicolo-

. i: orientar qia e da antropologia; ao estuda! por exemplo, as formas da métrica grega, ele
*.':r,,o histo- o iazia para pensá-la como um sintoma de cultura global; buscava Íemanes-
--.. : colocar cências até na núsica medieval; tentava, reciprocamente, abordar cls atcls de fé
::r. .tll Hegel. em geral como formas das quais era sempre necessário, em cada caso específi-
,: ..: ,4eral ou co, tornar-se o filólogo.ror
-:: ::n-rpo dct Tarnbém poderíamos buscar os empréstimos que \X/arburg tomou da antro-
:: :::linentes, pologia das imagens - uma antropologia muito gerai - tentada por Vilhelm
: ::::-ì-O iixada Wundt em sua gigantesca Võll<erpsychologie.l0) Ou então segr-rir as pegadas
': l'ÈfOS, Oü das referências warburguianas a Lucien Lévv-Bruhl, ao serem evocadas a "lei
.:::'S. de participação", a "sobrevivência dos mortos" ou a ideia de causalidade na
"mentalidade primitiva".'ot-V"g -o-qpe i-r-npo-rta".çsçfu=re. c-çr.p{o é apenas o quç
Wa_rburg deve à antropologia de sua época. Também é preciso fazer a perguq-
ta utversa: o. que a antropologia em geral e a antropologìa histórìca etn pant-
- -: história crlar-devem a Lrma abordagem desse tipo? .

: ì:11 ponto Por diversas razões - razões antes de tudo históricas, sem dúvida, ligadas
.ì . JUe) em aos longos anos dos dois conflitos mundiaisl0a -, a escola francesa deu mostras

A imagem sobrevivente
de um desconhecimento especial dessa
tradição alemã' Hermann Usener - que
permaneceu ignorado por Jean-
Mauss, no entanto, lia com muita atenção1"t -
a \larburg' ele foi negligencia-
-pierre Vernant ou Marcel Detienne.r06 Quanto
positivistas, como também pelos que
do não apenas pelos historiadores da arte
pelos melhores da escola dos Aru-
eram receptivos ao estruturalismol0T ou até
nales.Assim,JacquesLeGoffatribuiugenerosamenteaMarcBlochaexclusi- que
..fundação da antropologia histórica; além disso, observando
vidade da
que uma dezena de páginas -
Os reis tdumaturgos não comportavam mais ..a reno-
..dossiê iconográfico,', ele concluiu que
bem pouco analíticas - de um
da pesquisa histórica atual"'108
vação da história da arte é uma das prioridades
de perspectiva' Sua maneira
Reler Warburg atualmente exige uma inversào
da arte, de abrì-la, teve como
muito particular e radical de praticar a hlstória que
perguntas da antropologia histórica - a
efeito, ao que me parece' tefazer as
g.t..khu.dt e Hermann usener -, a partir de
ele herdou, em especial, de Jacob
das imagens. Não cabe à histó-
um ponro de vista r.l"tiuo à eficácia simbólica
..renoVAr-Se" com baSe em "rÌOvas" questões' fOrmuiadas pela diS-
ria da arte
cipÌinahistórica,arespeitodoimaginário;109cabeàprópriadisciplinahistóri-
que, ,ro- dud,, momento de sua história,
o "pensamento-piloto"'
ca reconhecer
sobre os poderes da imagem'
a ,,novidade", veio de uma reflexão específica
Para\Tarburg,defato,aimagemconstituíaum..fenômenoantropológico
particularmente significativas do
total", uma cristali zação err*u Ã'ldt"sação
de sua história' É isso que é
que era uma "cultu ra" lKultutrl num -o-t"'o
que twarburg prezava de uma "for-
preciso compreender, deìmediato, "u ideia
mythenbildende Kraft im Bildl'n, E foi por
ça mitopoética da iÁagem" ldie
"disciplinar" ao orientar seus
irro q,r" .1. não vivenciou nenhuma contradição
,.fãr-.,1u, patéticas,, do Renascimento - as Pathosformeln,
estudos para as
a fórmulas visuais da
intensificados nâ representação pelo recurso
esses gestos
as mímicas sociais, a coreografia'
Antiguidade clássica -, para pesquisas sobre
amodanovestuário,-n,.o,'d.'tasfestivasouoscódigosdecumprimentos
e saudaçòes.ìrl
d'o agir global dos membros
Em suma, a imagem não devia ser dissocia da
de uma época. Tampouco, é claro,
de uma sociedade. ú.- do saber prôpno
invenção warburguiana, que foi
do crer:aí reside outro elemento essencial da
da eficâcia mágica - bem
abrir a história da arte para o "continente negro"
como litúrgica, jurídica ou política - das
imagens:

é'
(...) uma das verdadeiras tarefas da história da arte lKunstgeschichte)
comefeito,fazerentrarnoquradrodeumestudohistóricoaprofundado
da literatura cle propagan-
essas criações saídas das regiões mal esclarecidas

Georges Didi-Huberman
n;nn Usener - que -. :,:,iírico-religiosa; na verdade, essa é a única maneira de captar em toda
8noÍado por Jean- : : ': -\rensão uma das questões mais importantes da pesquisa científica
ele foi negligencia- -- ::- as civiÌizações e os estilos leine der Hauptfrdgen der stìlerforschenden
ta:rrbém pelos que : .,,::r,.1'ìssenschaft] (...), e de tentar oferecer-lhe uma resposta.rr2
cia escola dos An-
rc Bloch a exclusi- ,-.-s]izame-nrc do vocabulário é significativo: passamos de uma história
r. observando que {__{as tsq
s.
t!lt!.!g-l pgt?_1à!,1.A".-ç-retcia da cult-ura [Kz burwissenschaft], a
ze:ra de páginas - -t5r:-ç:ry9.!ç_mB.o,-abre e.ç-ampp dos objetos e encerra o enunciado dos
riliu que "a reno- ::-:-::las fundamentais. A Kunstgeschicbte relata, por exemplo, que um gê-7
h:srórica âtual".1o8 ìe:, ljs belas-artes chamado "retrato" surgiu no Renascimento graças à vi \
snla. Sua maneira :: :.: :lmanista do indivíduo e ao progresso das técnicas mimeticas;
'Warburg -at n i
A,-rri-lA, teve cOmO -i -.--;,-;i i*s,ssnschaft de contará outra história, de acordo com o rem-
-., 1,..{,1
ialstórica-aque :h- :-ll mais complexo de um novo cruzamento - um entrelaçamento, uma
s€:ler -, a partir de ; -:,i"'ïerrninação - entre a magia antiga e pagã (remanescências da imago
, \ão cabe à histó- :--,::ra. a liturgia medieval e cristã (prática de ex-votos sob a forma de efí
rn:uladas pela dis- .:5 = dados artísticos e intelectuais próprios do Quattrocento; com isso, o
r crsciplina históri- :::::.,-r se transfigurará aos nossos olhos, tornando-se o suporte antropológico
nsamento-piloto", jr' -rrâ "força mitopoética" da qual a história da arte vasariana se mostrara
bres da imagem. :a::22 de dar conta.113
eno antropológico ,is.im. a Kunstwissenschaft, "ciência da arte" ardentemente desejada por '
te significativas do â.::;rg nos anos da juventude, assumiu a forma de um questionamento es-
rória. É isso que é :e:,t:;o sobre as imagens no quadro - inespecífico, aberto a perder de vista -
z:r'a de uma "for- -: -::a Kttlturwissenschaft.lla Era necessáÃo abrir o campo dos objetos passí-
Blld),tro E foi por ,:-. ie interessar ao historiador da arte na medida em que a obra de arte já
r- ao orientar seus --:. - ;ra vista como um objeto encerrado em sua própria história, mas como o
as Pathosformeln, :'-::o de encontro dinâmico - ìTalter Benjamin acabaria falando em fwlgura-
órmulas visuais da ; - - de instâncias históricas heterogêneas e sobredeterminada,s--Ela_Qç_u=a{!lgo
iais. a coreografia, gfue'a-çonc-eilo warburg ui a sa de Ku bw r w i s s e-n s c h a,fr, E d g a r \X/in d
ie cumprimentos =55gêls
:-:cl=qu-.g!re--"toda tentatiya-.de.desvincular 4 imagem.finclusive artística] de
s;r-Cç-o!-ç"*o1n.a r-elieJagç.g-pg-q-si?: g.çq!q9.g-_o drama, é como retirar-lhe seu
ot'aÌ dos membros :
;5io :al.gge ll i febloodl'. "' -Çonrfariando qualquer ideia de uma história
ampouco, é claro, -:-:;rn-oma das imagens - o que não significa que se devam ignorar as especrfi-
burguiana, que foi : ::ç!-e_5*formais -,. a Kultu.rluìsçenscbaft de \Tarburg acabou, portanro, pe!
Ícia mágica - bem ;!'JeJet+tPo"dessa-história..Ao mandar gravar em letras maiúsculas a palavra
i:.gr correspondente a memória [Mnemosyne] no alto da porta de sua biblio-
:=;a. \x/arburg indicou ao visitante que ele estava entrando no território de
t,<tseschichte] é, : t.:ro tempo.
:o aprofundado
ra de propagan-

A imagem sobrevivente 41.

I
rts
Nachleben, ou a antropologia do tempo: Warburg com Tylor

Esse outro tempo tem por nome "sobrevivência" fNachlebenl. conhecemos


a expressão-chave, a misteriosa palavra de ordem de toda a empreitada war-
burguiana: Nachleben der Antìke. Esse é o "problema fundamental,,, do qual
a pesquisa arquivística e a biblioteca tentaram reunir todos os materiais, a fim
de compreender suas sedimentações e as movimentações de terrenos.116 É tam-
bém o problema fundamental que ''üíarburg tentou confrontar no próprio
campo - e no tempo curríssimo - de sua experiência indígençAqp_gg,__glçl
qo contexto de uma "ciência a
d-.--11rjç-{]!.gsa-r-+Ì9s.a-.idçia..de-,so-brçvivê.ncia
culprall, p1ç1en1ery-ente elabolada por \)Tarburg a partir.das.imagens da Anti-
guidade e do mundo ocidental moderno, parece oportuno situarmos a emer-
gência experimental dessa problemática no terreno pontual e "deslocado" da
viagem ao rerrirório dos hopis. 4 f.-,Eo reonça_e_heuÍístlç.{.d4..? g
!"ggi3"
alet' dc'"rei-I11rqd.u ..z i 1 a
-
diferença-.eos-oh+e Eos".e-oâ+laerarçpi56,1s."na-l++sória : sa Íaríaparrse"r: issg com
mais clareza.
A "sobrevivência", que \íarburg invocou e interrogou durante a vida intei-
ra, é, de início, um conceito da antropologia anglo-saxônica. euando, em
1 91 1 , Julius von Schlosser
amigo de Y/arburg e, em muitos pontos, próximo
-
de sua problemática1 r'-
recorreu à "sobrevivência" das práticas figurativas
ligadas à cera, não empregou o vocabulário espontâneo de sua própria língua:
não escreveu Nachleben, tampouco Fortleben ou überleben. Escreveu sur-
uiual, em inglês, como às vezes soía acontecer a'l7arburg.r18 Indício significa-
tivo de uma citação, um empréstimo, um deslocamento conceitual: o que é**_
citado pqf_$ç-!r]osset - e que, anres dele, '\V,arburg fernara qtrrplçqla_do, deslo, -
caïa - nada mais é que a swruiual do grande -qt_nólogo--britânico Edward--B_,
Ty-Jor. So deixar subitamente a Europa e se dirigir ao Novo México, \7arburg,
em 1895, não fez uma "viagem aos arquétipos" fa iourney to the archetypesl,
como acreditou Fritz Saxl, mas uma "viagem às sobrevivências"l e seu refe-
rencial teórico não foi James G. Frazer, como também escreveu saxi,11e mas
Edward B. Tylor.
4r qu*r-saih""lscoseqta+is+asde-Wa+.burg aão p-res_tanam,atenção a e s sa.
folte Sntrop-ojogjca. Quando muito, consideraram apenas as diferenças. Ernst

A rmagem sobrevivente 43
Gombrich, por exemplo, afirmou que a "ciência da cultura" reivindicada por
Tylor não poderia ser bem vista por um cliscípulo de Burckhardt que se preo-
cupava, acima de tudo, com a arte italiana...120 No entanto, essa "ciência da
cultura" lscience of cwhure] imperou na abertura de um livro a tal ponto capi-
tal - Cultura primìtiua, publicado em Londres em 1871 - que a etnologia, no
fim do século XIX, acabou sendo comumente chamada de "a ciência do Sr.
f)'Ior".121 A notoriedade de um livro, mesmo imenso, como neste caso, decerto

I não basta para garantir'Warburg


seu. status de fonte teórica. O ponto de contato entre a

Kulturwissenschaft de e a ciência da cubwra de Tylor reside, sobretu-


I
{ do, no estabelecimento de um vínculo particular entre histórìa e antropologia.
Ambas, com efeito, tinham o projeto de superar a eterna oposição - da
qual Lévi-Strauss, um século depois, ainda faria a constatação crítica122 - entre
o modelo de evolução que toda história exige e a espécie de intemporalidade
que comumente se atribui à antropologia*$/3-q-b_g-qg qpriu o campo da histór-ia,"
.da arte à antrgpologia, não apenas para que nele fossem reconhecidos novos
paru abrir seutempo. Tylor, por sua vez, ten-
'o!jg,çgs a estudar, mas também
cionava proceder a uma operação rigorosamente simétrica: começou por afir-
mar que o problema fundamental de toda "ciência da cultura" fscience of
cubwref era o seu "desenvolvimento" ldeuelopment of cuhurel; que esse desen-
volvimento não era redutível a uma lei de evolução formulável com base no
modelo das ciências naturaisl123 e que a etnologia não podia compreender o
que significava "cultura", a não ser fazendo história e até arqueologia:

(...) quando alguém procurâ perceber as leis gerais do movimento intelec-


tual [e cultural em geral], encontra uma vantagem prática em fazer suas
pesquisas em relíquias tiradas da Antiguid ade famong antìquarian relicsf e
que hoje só têm um pequeno interesse.r?'

J{ar!919,_decerto não_dgvia,-r-enegar c-s-se-prirlçíBio mçço{ológico cla inatua'


9 sinroma, o nào p-e--l-
lida_d-e;_p- qu-çJg,ZsçUr*do-lu-ma-çgl1qr4;11g1tA.q_yg?-e!:_e*
sad,o,.o,.ana-çrônico dessa cultura. Eis-nos jâ no tempo fantasmal das sobreui-
uências. Tylor o introduziu teoricamente, no começo de Cultura primitiua,
constatando que os dois modelos concorrentes do "desenvolvimento da cultu-
ïa" - a "teoria do progresso" e a "teoria da degenerescência" - pediam que
fossem dialetizados, entrelaçados um com o outro. O resultado seríaumnó de
tempo difícil de decifrar. pois nele se cruzariam incessantemente movimentos
de evolução e movimentos resistentes à evolução.i25 No espaço cavado por
esse cruzamento logo apareceria, como diferencial dos dois estatutos tempo-
rais contraditórios, o conceito de suruiual. Tylor lhe consagraria uma parte
essencial de seu esforço de fundação teórica.

44 Georges Dìdi-Huberman
- :::','indicada por
h.:Jl que se preo-
!- :iì.ì "ciência da
c . :al ponto capi-
tr: : -tnologia, no
: -. ;rência do Sr.
tr:::: aaso) deCertO
i= ; lntatO entle a
k: :..ide, sobretu-
?:; . --'tttropologia,
r--, :osição - da
i- ::riicaLI - entre
k -:,-mporalidade 4. Pontas de flechas de obsidiana. México, pré-históna. Segundo E. B. Tylor,
() Anahtrac, Londres, 1861, p. 96.
S;'':: da história,
u-::ecidos novos
Í. : : :Lla VeZ, ten- ,Vas a palavra havia surgido em sua pena, como que espontaneamente,
ic. rr..ou por afir- :rum outro contexto, numa outra temporalidade de experiência: num desloca-
ú:_ -.-" lscience of ',:t'nto. M_aiq pre-çisamente, numa viagem ao México. Entre março e lunho de
rï, . :,-e esse desen- ,:-í6, Tylor.havia cruzado o México a.cavalc, íeito observações e tomado
ü:,., ;om base no :::lhares dg no1as, ?ublicgu em 1861 o diário dessa viagem-- sua versão do_s
4' : mpreender o -'-,'s/es
trópicos.-r.no qual entraram em cena, alternadamente, cemo que para
r: ".: ,-ogia: s--rpresa dele mesmo, mosquiros e piratas, aligátores e padres missionários,
::-riico de escravos e vestígios astecas, igrejas barrocas e costumes indígenas,
tr: -: ..-:() intelec-
:::mores de terra e uso de armas de fogo, normas de etiqueta à mesa e manei-
ne .:-, :aZef SUaS
::s de fazer contas, objetos de museu e combates de rua...126 Anahuac e um7
b- - -:-;,; relicsl e
,:o iarcinanre, porque assistimos ao assomhro contínuo do autor: assombro I
,-:e a ideia de que uma mesma experiência, em um mesmo local e.r- -.r-o iü{.
L : ;o da inatua' :1 rmento, pudesse veicular esse nó de anacronistnos, essa mistura de coisas j

b -;-;.:-., o não pen: ::.sadas e coisas presentes. Assim, as festas da Semana Santa no México atu-^l
:- za\-am comemorações heterogêneas, semicristãs e semipagãs; o mercado
FJ ,J,rs sobreuì-

rc" ::1".1 prtmxttl)d) -:-:íqena de Grande aÍualizava um sistema de numeração que Tylor acreditava
i- --.-rro da cultu- : ..: só poderia encontrar nos manuscritos pré-colombianos; e os oÍnamentos
:=- - pediam que : ,ì antigos facões sacrificiais aproximavam-se dos encontrados nas esporas
n- ..rta um nó de - . L'Jqueros mexicanos...l']? (fig. 4-5).
r. -= movimentos Diante de tudo isso, Tylor teria descoberto a extrema variedade e a vertigi-
s:,,:, cavado por '.a complexidade dos fatos culturais (o que também se sente ao percorrer
[ :::::1,ÌtOS tempo- - :-:zer), mas" ter-iaì€.u"almente desco.berto algo .ainda mais perturbador (que
&:-::13 uma parte .1.a sentimos ao ler Frazer): a ação
uertiginosa do tempo na atualidade, na
-.-:reúiciel'presente de uma dada cultura. Essa vertigem se expressa, inicial-

A imâgem sobrevivente ,+.5


-5. Aguìlhões p:rra brigrs de gaJo. Mérico, século XiX. Segunclo Fì. B

Ty-lor, t\n'thuac, i.onclres, 186 I, p. 2.54.

mente, na intensa sensação - evidente em si, porém menos óbvia em suas


ll y'x,t.frr .

consequencias metodológicas - de que o presente se tece de múltìplos passã-


-dgS. É por isso que o etnólogor aos olhos de Ty1or, deve fazer-se historiador de
cada uma cle suas observações. A compieridade "horizontal" do que ele vê
decorre, antes de mais nada, de uma complexidade vertical - paradigrnática
- do tempo:
Progresso, degradação, sobrevivênci:-r, revivescêtrciir, modificação [progress,
degradatìon, suruit,al, reuìual, modìfication], tudo isso são formas peÌas
quais se Ìigam as partes da con-rplexa rede dir civiliz:rção,-B-as!!1 Llma olÌra-...
dgla parq os detalhes banais ftriuìal-dewi]s] da noss:t vida cotidiana pgrâ
19s, leyr1r a clistinguir em
que medida somos criadores e em que medida
só fazemos transmitir e modificar a herança dos séculos anteriores. AquçI9
qqç ló conhece sua pr<ipria época é incapaz de se dar conta do que vê qlran-
c1o, simplesmente, oÌha em volta enÌ seu cllÌarto. Aqui há utr-ia madressilva-.
da Assír:ia, ali, a florde-lis cle Anjou; uma cornija com moldur-a à rnoda
grega contorna o teto; o estiÌo Luís XV e o estilo Regência, ambos da mes.
r-na família, compaítilham a decoração do espelho. Transfonnadcls, deslo-
cados ou mr-rtilados ltronsformetl, shìfted, or mutilatedl, esses elementos
artísticos:rinda guardarÌ elr si, plenamente, a mârca de sua histíirìa fsti//
cdrry their histrtrl'pldinly stamped ufton them]; e se, ïìos objetos meis anti-
\\L gos, a história ó ainda mais difícii de 1er, não devemos conclr"rir disso quc
eles não a têm.rrN

É característico que esse exemplo de sobrevivência - um dos primeiros ofe-


recidos em Cubura prìntitìua - diga respeito aos elementos formais de uma
ornamentação, às "palavras prirnitivas" de qualclr-rer ideia de estiio.rre É igual-

Georges Drclr-l luberman


-:-:- .aracterístico que essa sobreuìuêncìd das formas seja expressa em ter-
ì :- LÌma chancela lstaruP].-Drzçr qqe, a p!ç g m-arca-de múltiplos
.:::-irrS é falar, antes de ma.i9.qgda, d4 indestrutibiliclacle,de uma marca do
r:_: - or,r dos tempos :- Râs. próprias. f,ormas de nossa vida atual. Assim,
: .lla da "tenacidade das sobrevivências" fthe strength of these suruìuals]
:ì qLìais, outra metáfora, "os velhos hábitos conservam suas raízes num

fN :-',oÌr-ìdo por umâ nova cultura'.110 Ele também compara a tenacidade


) : ,rrevivências a "um rio que, havendo escavado um leito para si, correrá
-rrente séculos". É um modo de erpressa! sempre em termos de marca,
:\\ :ie clrama de "permanência da cultura" lpermanence of culturel.l3l
B:
. -evantado) portanto, um "problema fundamental" em que tü/arburg
r,-,deria reconhecer sua própria interrogação sobre a "permanência",- a
-.--::-ade<lasJormas.antigas-na.L9nga duração da história da arte ocidental.
n, . ,,,Lx-ia em slras -:: slo não é tudo. Tal permanência poderia ter-se expressado -como rnui-
* ,,::tltìplos passd-- r: . :z:S iez, no século XlX, em algumas antropologias filosóficas - em termos
E:-): :ìlstoriador de : "::sjncia da cultura". O interesse fundamental do pensamento tyloriano
::: ' ,jo que ele vê :::: roÌltor assim como sua proximidade da abordagem warburguiana, pren-
ba - raradigmática -:-:: r um complemento decisivo: a "permânência da cultura" não se exprime
'rnla essência, um traço global ou utrÌ arquétipo, mas, ao contrário,
t:n sintomrT, Llm traço de exceção, uma coisa deslocada. A tenacidade
F.- :.,t.;n-ias
:.ptogress,
' .:,brer-ivências, sua própria "força", como diz Tylor, nasce na tenuidade
fà pelas :sas minúscuÌas, supérfluas, ridículas ou anormais. A sobrevivência,
:-: Llm:l olh-a,, ial. reside no sintoma Íecorrente e na brincadeira, na patologia da 1íngua
:rjian4 para r 'icorrsciente das formas. Por isso Tylor se debruçou sobre as brincadeiras
, .ue nredida. . ::inquedos infantis (arcos, atiradeiras, matracas, jogo de cucarne ou ba-
,r:s. r\q.qeÌ-e
. .: sobrevivências de antigas práticas muito sérias, de guerra ou adivinha-
:-,ie r-ê quan-
. . assim como \íarburg se debruçaria, tempos depois, sobre as práticas
. :r.rdressilva
:::: ','as do Rerrascimento. Tylor interrogou os traços de linguagem, os ditados
::ra à moda
:.- ros da mes.
- :ror'érbios e as formas de saudação,132 tal como quis fazer \7arburg, mais
r:je. conr respeito à civilização florentina.
: '-.-jos, deslo-
:i::: elementos
-\Iais que tudo, porém, Tylor interessou-se pelas sobrevivências sob o ân-i
--,-r nais específico das superstìções. A própria definição do conceito anrro-J
:.srória [srili
: s mais anti- . .,jgico foi inferida por ele do sentido tradicional de superstitlo em latim:
-.:: disso que
Poderíamos, não sem razão, aplicar a tais fatos a quaÌificação de superstì-
-.ìo, urna qualificação que seria legítimo esrender a uma profusão de sobre-
s Frimeiros ofe- -.
rr'ências. A etimoiogia da palavra superstição, que originalmente parece
: ,llais de uma raver significado o que persiste de eras antigas, torna-a perfeitamente apro-
..:ilo.rre É igual- rriada para exprimir a ideia de sobrevivência. Hoje, entretanto, esse termo

A imagem sobrevivente 47
â.

impÌica uma censura (...). Para a ciência etnográfica, é indispensável intro-


duzir uma palavra como sobreuìuência, destinada simplesmente a designar
o fato histórico.rrl

É compreensível, portanto, que a análise das sobrevivências em cultwra


prìmìtìua culmine num longo capítulo dedicado à magia, à astrologia e
a todas
as suas formas aparentadas.r3a como não pensar nesse auge da Nacbleben
der
Antìke que é constituído, em líarburg, pela análise das manipulações astroló-
gicas nos afrescos de Ferrara, ou nos próprios escritos de Martinho Lutero?r15
Nos dois casos - ainda não estamos falando de Freud
-, são a falha na cons-
ciência, a incorreção na Ìógica, o contrassenso da argumentação que, a cada
vez, abrem na atualidade de um fato histórìco a brecha de suas sobreuiuências.
Tylor, antes de \íarburg e Freud, admirava nos "detalhes banais"
ltriuial de-
tails) a capacidade de darem sentido - ou melhor, de gerarem sintoma, o que
ele também chamava de landmarËs fmarcosl à sua própria insignificância.
'warburg -
Antes de e de seu interesse pelo "animismo" das efígies votivas, Tylor
- entre outros, é verdade - tentara criar uma teoria geral desse poder dos sig-
nos.136 Antes de r7arburg e de seu fascínio pelos fenômenos expressivos
do
gesto, Tylor - igualmente entre outros tentara uma teoria da ,,linguagem
-
emocional e imitativa" lemotional and imìtatiue language].1i7 Antes de rffar-
burg e Freud, ele havia reivindicado à sua maneir:a a lição do sintoma absur-
-
do, lapso, doença, loucura - corrlo via privilegiada de acesso aos tempos ver-
tiginosos das sobrevivências. Seria a uia do sintornd a melhor maneira de ouvir
a uoz dos fantasmas?

TaIvez reclamem que, no curso deste estudo consagrado ao que chamei de


sobreuiuêncìas do antìgo estado socìal, e que são restos enfraquecidos da
cultura das primeiras erâs, (...) escolhi muitos exemplos referentes a coisas
que estão em desuso, coisas sem valor, frívolas, e até de um absurdo que
oferece perigos e de uma influência ruim. Mas preferi propositalmente esse
tipo de provas' depois de ter podido assegurar-me, por minhas pesquisas, de
quantas vezes nos sucede ter que agradecer aos loucos. Nada é mais curioso
que ver, embora continuemos na superfície do assunto, quanto devemos
à
burrice, ao espírito conservador exageraclo, à superstição obstinada, na
preservação dos vestígios da história da nossa espécie, vestígios de que
seria
lt,ã
precipitado apagar, sem o menor remorso, o utilitarismo prático.ir8
:ï'ìi

ë )l )l >i-

Entre fantasna e sintoma, a ideia de sobrevivência seria, no campo das


ciên-
cias históricas e antÍopológicas, uma expressão específica d,o rastro 13e'v7'ar-

48 Georges Didì-Huberman

,#
l
H
Li-nsáve1 intro- rrrg, como sabemos, interessava-se peÌos vestígios da Antiguidade clássica:
n-:r:e a designar -''estígios que não eram
redutíveis à existência objetal de restos mareriais, mas
:rnda assim subsistiam nas formas, nos estilos, nos comportamentos, na psi-
êr::as em Cultura ;ire. Podemos compreender facilmente seu interesse pelas suruìua/s de Tylor.
r'::,riogia e a todas
in primeiro lugar, elas designavam uma realidade negatiua - justamente aque-
e ;:- \;tcbleben der
-: que aparece numa cultura como um refugo, algo fora de época ou fora de
*srr (os bòti {Iorentinos, por exemplo, testemunhavam, no século XV, uma
u:---iacões astroló-
::árica já isolada do presente e das preocupações "modernas" que fundaram
Í.i-.rho Lutero?r3't
ic : :a1ha na cons- : erte renascentista). Em segundo lugar, as sobrevivências, segundo Tylor, de-
rrqnavam uma realìdade mascarada: algo persistia e atestava um estado desa-
n:.;:O que, A Cada
:-:recido da sociedade, porém sua própria persistência era acompânhada de
t-;: : tbreuiuências.
ln" ::-.-,s'' ltrìuial de-
:na modificação essencial - mudança de estatuto, mudança de significação
iizer que o arco e a flecha das guerras antigas sobreviveram como brinquedos
r::, .lntoma, o que
r-= :::significância. -:fantis é dizer, evidentemente, que seu stdtus e sua significação se modifica-
::n completamente).
ft:-.' ..otivas, Tylor \isso, a análise das sobrevivências se evidencia como a análise de manifes-
b'. :oder dos sig-
:-:;ões sintomais e fantasmais. Elas designam uma realìdade de ìntrusão, aind,a
]-: -\pressivOS do
::: :-r- "linguagem :;e tênue ou até insensível, e por isso designam também uma realìdade espec-
' ---iÌ a sobrevivência astrológica apareceria çomo um "fantasma" no discurso
f, \nies de War- l- Lutero, um fantasma cuja eficáciawarburg podia reconhecer através de sua
k ..::oma - absur-
:rrruÍeza de intruso e de intrusão - de sintoma - na argumentação lógica do
3- :-s tempos ver-
::eqador da Reforma.ra, Não é de admirar que a fortuna crítica d.as suruiuals
f . 'le ira de ouvir
:-"orianas tenha concernido. inicialmente, aos fenomenos da fé: esse conceito
,
,. ;:contraria no campo da história das religiões as suas mais numerosas aplica-
:-='es'rr1 Alguns estudos arqueológicos de longa duração, antecipando-se ao
:,:e André Leroi-Gourhan viria a chamar de "estereótipos técnicos',, teriam
.-:.rido, ainda assim, abordar a história dos objetos sob o ângulo da suruìual.1a2

A imagem sobrevivente

H
lesti nos do evolucionismo: heterocronias

: .,:!oso-constatar, entretânto, que a ideia de sobrevivência nunca recebeu


..---Q !e4q ç1iti-c"as-- e,não apexas na história da arre. Na época de Tylor, acu-
':':-se a suruiual de ser um conceito muito estrutural e abstrato, um conceito
:-.- escapava a qualquer exatidão e qualquer verificação factuais. 4 objeção
:iirvista-{sns.istia em perguntar:'como vocês fazem para datar uma sobrevi-
.-;ja?1a3 Isso equivalia a compreender muito mal um conceito que se destina-
'"
-:. iustamente, a qualificar um tipo não "histórico", no sentido trivial e factual,
:= :emporalidade. Hoje, a suruiual mais seria acusada de ser um conceito muìto
: :!co estrutural: um conceito, resumindo, marcado pelo selo euolwcìonìsta.E,
:,,: isso, fora de época e fora de uso: em suma, um velho fantasma cientificista
::.racterístico do século XIX. Isso é o que se acredita poder inferir de uma an-
-:opologia moderna que, de Marcel Mauss a claude Lévi-strauss, teria produ-
:lJo a reorientação necessária de conceitos etnológicos excessivamente marca-
:os pelo essencialismo (à la Frazer) ou pelo empirismo (à la Malinowski).
-\fas, ao destacar as linhas críticas, percebemos que as coisas são mais com-
:leras, com nuances maiores do que parecem. o que está em causa não é a
,.obrevivência em si, e sim um valor de uso qre the teriam dado alguns etnó-
grafos anglo-saxões do fim do século XIX. Mauss, por exemplo, não hesitava
em reivindicar esse termo: o terceiro capítulo de seu Ensaio sobre a dádiua se
intitula "Sobrevivência dos princípios [onde se institui a "troca de dádivas,,ì
nas formas de direito antigas e nas economias antigas'.r4'r No texto, ele expli-
cou que os princípios da dádiva e da contradádiva valiam como "sobrevivên-
cias" para o historiador e para o etnólogo:
(...) eies têm um valor sociológico geral, pois nos permitem compreender
um momento da evolução social. Porém há mais. EIes também têm alcance
na história social. Instituições desse tipo realmente forneceram a transição
para nossas formas, nossas formas próprias cie direito e de ecoiromia. po-
dem servir para explicar historicamente nossas próprias sociedades. A mo-
ral e a prática das trocas usadas pelas sociedades que precederam imediata-
mente as nossas ainda guardam vestígios mais ou menos importantes de
todos os princípios que acabamos de analisar [no quadro das chamadas
sociedades "Primitivas"1. t+'i

A magem sobrevivente -51


-\ourro ponto. -\Iaus:
socìedades ,,p.i-irirjrihegarìa a estender a ideìa
de sobreuìuêncza
às próprias

que não tenha


i;;-ïiljXiedade,conhecida evoruíc',
,,ivência,rJffi
Í:.t;r.ïr:ï':i.lïJË,""ïü:ïn::ïï:"ï:i:
um papeÌ' mesmo
entre eles.116
Esse era uÌÌrt moãn ;-"::"""':tn
modo de dizer: não '
- o que I as sociedades
aÌguns
durante
"primitìvas" têm
história
sem história,, _n.*nr"- -;rtt

:,..:,ffi
tQs, isso seja
i**p,::*,,,':1,*:. iïjd:.tf:i;iï:ï que' na falta de.arquivos.escri_
difícit.de
";;;ï;"ï:11'"
a"n"""à"r';J"
ìnteraçào' ou nó'
de
i,:,;,ï::::,,Ï iu "-;;;ü;;
,,,ïi,ï.:;ff ;:i'ilïíïï;ï'ï::'Ïï#::#ïÏ;:ï:'ff Íï,:i$Í;
';í2',:":"^,#,'f
iË: j.:ï':r*f
expÌicativa"
i'f 'Wf
,"fiii::i:;:l*:
enrre magia ;-;-."r,0:-"t -a hipotese];ïï:: ;ït"il::n;:
que teria sido seguìda
maìs racion"l,
moral' mais "evoluída", o.r, "rrr"r-u
-rït"o' da segunda,
Mauss ru.bénttt em ,;;":r;;""'ação
i;.ïïdï:: " o * .,,ï,,. " "
a,l, ;
mar",.,ì., "
de ,rìrììpir*,o.
:ï:il
:ïi::u:'
Esre reva nâo :l_*iil;'.;:;;;"ï;::l,ïi:::ff-
mas a sua tt.guçao u
dos m.,àero, o"
orr" ,t-iil:ïrïrtt-plificaçâo
a'i'"u"
dn"ï0",
d" "
: I'iq,;:;?:#:;,:'#,'J:';,:"';:
:ipercepçâo analógìca. e
'ì-ï"ï,,,,,-o
o chamariz
.uÌtu_
quando r"ru",","ínaa euando ,, ,.,n.,ïrdilha;;;;;r";:;ïïï1:#l:
por cima.
poral. e claro or* ot'*:1:
que a suruì-urìr';::;^ï:i,
suruìuql torna-se
o.ll^":."t uma sisnificaçao
gerar e arem_
i"g;." ì,ì';.:Jï; uma
,mirificatur, in-., "ïj,ãcuro epísremo_
lletada
. ,,"ì";;;;ïi:ï*J"iï:il::1 '"u""
*^iì",riìlu ouo. ser inrer-

-
í'- :'- .ncìa às próprias -" ::: :ie de analogias substancializadas) de pseudomorfismos de uso uni-
':^ : -- ',-)ra. é o próprio Tylor quem vai buscar seus vestígios. O arco e a flecha
, " : :::m uma "espécie", como dizia Tylor, num linguajar calcado no elo
'. -'s homens mais
' : , ja reprodução, porque, "entre dois utensílios idênticos, ou entre dois
':::-.saeasobre-
. -: - ' s diferentes, mas de forma tão próxima quanto possível, existe e existirá
: : -: s. ìtt'
,r - : -: '-::-ia descontinuidade radical, que provém do fato de que um não saiu
::,- '. 1s" têm história - -: . nlas cada um deles brotou de um sistema de representâÇãs".r-;o
a: :\Dressão "povos ,, ,:-:e de passagem que ìlarburg teria subscrito essa primeira afirmação
r: : -.:Ìnto pode ser a :- ::::rr: tratava-se de colocar a organização dos símbolos na posição de
lç -. dift"rsas", como r -:-:".:-:- iundadora do mundo empírico.
b- :. arquivos escri-
-_- , Srr4uss deu um passo supleÌrìentar - e menos prudente - ao dizer que
ì- ;: remporalidades : :::* jos provenientes de uma problemática das sobrevivências "não nos
:-.: --r. o uso das szr- : - : rrr nada sobre os processos (...) inconscientes traduzidos em experiências

&:: r,JS modelos do , r::-::s'1, o que ele mesmo invalidou, algumas páginas adiante, ao reservar
r .ìco como uma ,.:. i',ior um lugar quase fundador na avaliação da "natureza inconsciente
: , :.::omenos coletivos".l't1.,Mas Tylor, a seu ver, continuaria a ser aquele que
err :=sponde que "a :::: --:-ra uÌrÌa etnologia desprovida de qualquer preocupação histórica: bas-
':^:" :- uma COnfUSãO - ,.- rr citar uma breve passagem de Researcbes into the Early History of
r ,-:;,ì-o da segunda, .",:<:,td fPesquisas sobre a história primitiva da humanidade] (.1865), sem
:----;i prestar atenção ao título do livro, e sobretudo sem reconhecer que, seis
iA. : ::: .1 OUtfa aÍma- , . depois, Tylor desenvolvera, em Cubura primitìua, uma reflexão sobre a
u": : ,Jeríamos cha- ,:,-,rrcidade das sociedades prin-ritivas que, decididamente, Lévi-Strauss que-
= :-,os do tempo, - . -.-rrrbuir unicamente a Franz Boas.r-t2 Em 1952, o autor da Antropologia
n-' : -r-rsmo da cultu- ...-:titrral viria a enunciar sobre a historicidade "fora do alcance" dos povos
Er: -- :,,-nsrituído pela : :ritivos uma tese que foi uma paráfrase totâlmente inconsciente das passa-
q :----Jomorfismos, :-::s tllorianas citadas acima.l-s r
fu..::-:, geral e atem- Tudo isso deixa inalterada a questão de fundo: ainda se trata de saber o que
rr-:. :;ulo epistemo- .3nifica "sobrevivência". E, para começar, trata-se de saber em que esse con-
Ei-: rode ser inter- :-iro decorre ou não da doutrina evolucionistâ - em que sentido e para que
br r -,t de \7arburg, ::opósitos. Quando, no sétimo capítulo de seu livro Pesquisas sobre a história
E -: trÌ\âr tOdOs oS :,rntìtìua da bumaniddde, dedicado ao "Desenvolvimento e declínio da civili-
üsr : :- .:lle os fios ihe ilção", Tylor colore seu texto com referências a Darwin, o propósito é clara-
Ei:' ,ì -. tudo isso :Ìlente polêmico: nesse moflÌento, ele precisa jogar a evolução humana contra
E': :.::.,1111ãl, decidi- : destinação divina, ou seja, A origem das espécies conrra a própria Bíblia.15a
rs _'. Precisa reabilitar a "teoria do desenvolvimento" e o ponto de vista da espécie
k;" : ,logid estrutu- .ontra as teorias religiosas da degenerescência e da visão do pecado original.r-t5
rs- . lais parcial e, Impõe-se um esclarecimento suplementar: no momento em que Tylor entra
FÉ .: i- má-fé. Lévi- nesse jogo de referências, o vocabulário da suruiual ainda não foi elaborado.
F-:-srlo e sua utili- -\'Íesmo que o debate sobre a evolução constitua seu horizonte epistemológico

A imagem sobrevivente -53


geÍal' a ideia de sobrevivência se construirá em Tylor de
um modo claramente
findependente do_utrinas de Darwin e de Spencer.l-16 Enquanto a seleção
LLi {as
natural falava de "sobrevivência do mais apto"
lsuruiuat of tíe fittestl,gururr-
tia de novidade biológica, Tylor abordou a sobrevivência pelo
ângulo inverso
dos elementos culturais mais "inaptos e impróprio s',
lunfìt, inapproprt(fie1,
portadores de um passado acabado e não de um futuro
evolutivo.j.tT

)l >l :l

Em suma, as sobrevivências não passam de sintomas portadores


de desorien-
tação temporal: não são, em absoruto, as premissas de uma
tereorogia em
curso, de qualquer "sentido evolutivo". Decerto atestam um
estado mais ori_
ginário - e recalcado -) mas não dizem nada sobre a evolução
como tal. sem
-tênr-valor diagnóggrco, mas não têm nenhum valor de prognósriã
-{úida
Recordemos, enfim, que a teoria da cultura, segundo Tylor,
era tão pouco
decorrente de uma biologia quanto de uma teologia: pur"
.1., os "seÌvagens,,
não eram os fósseis de uma humanidade originária, tampouco
os degenerados
de uma semelhança com Deus. Sua teoria visava, antes,
â um ponto de vista
histórico e filológicct,1't8 o que bem nos mostÍa o interesse
de que pode ter-se
revestido aos olhos de Warburg.
uma coisa é certa: o conceito warburguiano de sobrevivência
lNachleben]
conheceu suas primeiras aproximações num campo epistêmico
ligado ob-
jetos da anffopologia e ao horizonte gerai das
t.oria, evolucionistas. "o,Nisso,
afirmou Ernst Gombrich, \farburg continuaria a ser um ,.homem
do século
XIX"; nisso, ele concluiu, sua história da arte permaneceria envelhecida,
ul-
trapassada em seus modelos teóricos fundamentais.r5e
Essa é uma simplifica_
ç.ão. brutal, n4o isrr-o:idgd,g.gá--fe, Na melhor das hipóteses, aresra
a dificul-
dade com que depararam os iconorógistas da segundu
gernção qranto à gestão
de uma herança decididamente fantasmática demais
p*u r.. ,,aplicável,, como
tal. Na pior, essa simplificação visa a tornar a fechar as vias
,àóri.", abertas
pela própria ideia de Nachleben.
Uq*warburs "evolucionista": o q.ue quer dizer isso? eue ele leu Darwin?
Quanto a isso' nào há a menor iombra de dúvida. qr..t. r.iurna;.ou u,-,-',
"ideia de progresso" nas artes e adotou ,r- ,.-odaÈ .orrrirrrírrn,,
do tem_
po?tt: Nada ó mais falso. Lembremos, para começar, que
a doutrina da evolu-
ção introduzíu a questão do tempo nas ciências da viáa, para além da ,,longa
duração cósmica", como a chamou Georges canguilhem,
com que Lamarck
ainda construía seu arcabouço de pensamento. Mas levantar
a questão do
lempo já etalevantat a questão dos tempo.s, isto é, das
diferentes modalidades

54 Georges Didi-Huberman
i *, 'do cÌaramente :.- :orais manifestadas, por exemplo, por um fóssil, um embrião ou um órgão
t,- ---1nto a seleção :-;:n-Ìentar.161 Patrick Tort, por outro lado, mostrou que era abusivo identifi-
::": :ittest], garan- ,.: : filosofia de Herbert Spencer - essa que vem espontaneamente à lembran- \
' I

e -. ,rngulo inverso -: :uando se pronuncia a palavra "evolucionismo" - com a teoria darwiniana


I
\:. ..:,tppropriatef , := :r'olução bioiógica: a segunda é um transformismo bioecológico do devir i

!, ,: . t. i't- :.s espécies vivas como sujeitas a variação; a primeira é uma doutrina, ou âté
:la ideologia do sentido da história, cujas conclusões - disseminadas nas
.:sses dirigentes e nos meios industriais do século XIX * se opõem, em muiros
::ectos, às da Orìgem das espécies.162
c. .-. de desorien- O pivô do mal-entendido provém justamente da ideia de sobrevivência.
r-,,,- ::ìeologia em >,rmente na quinta edição de seu livro Darwin fez intervir a expressão spence-
c ..-,.-Jo mais ori- ::-:na "sobrevivência do mais apto" fsuruiual of tbe fìttestl; os epistemólogos
ç": :-'no tal. Sem_ :- hoje só veem confusão teórica na associação dessas duas palavras (que
E :: )iognóstico. Ti 1oq como vimos, dissociou criteriosamente). Falar dessa maneira, com efei-
k:- -:,r tão pouco :,:,. é reduzir a seleção à sobrevivência: os mais aptos, os mais fortes sobrevi-
'. -m
i:. : " seivagens" aos outros e se multiplicam. A ideia de que essa lei possa concernir ao J
r. . cegenerados rundo histórico ou cultural é de Spencer, não de Darwin, que via na civiliza-,
u-- : .:lro de vista ;ão, antes, uma forma de nos opormos à seleção natural - de nos "desadap, {(
'
siE - --: node ter-se :.lrmos".r63 Nesse sentido, \üTarburg foi darwinista, sem dúvida, mas não evo-l
:;ionista no sentido spenceriano.
Nele, a Nachleben só tem sentido ao tornnr complexo o tempo histórico, ao
reconhecer no mundo da cultura temporalidades específicas, não naturais. Ba-(
:e ar uma história da arte na " seleção natural" - por elimin"çã" ;.;t; J., ì l" t'+
estilos mais fracos, vindo essa eliminação a dar ao futuro sua perfectibilidade
e . à história, sua teleologia * é, com ceÍÍeza) algo diametralmente oposto ao seu

projeto fundamental e aos seus modelos de tempo.d_f"o:ma so.brevivente, rÌo *


,:ç:rfrd-q-,d,gVarburg, não sobrevive triunfalmente à moÍte de suas concorrenter. !
-\o contrário, ela sobrevive, em termos sintomais e fantasmais, à sud própria I Ü-tr''
tttorte: desaparece num ponto da história, reaparece muito mais tarde, num
i

momento em que talvez não fosse esperada, tendo sobrevivido, por conseguin-
te, no limbo ainda mal definido de uma "memória coletiva". Nada está mais '

distante dessa ideia do que o sistematismo "sintético" e autoritário de Spencer,


seu suposto "darwinismo social".164 Em contrapartida, é possível levantar as
ligações entre essa ideia de sobrevivência e certos enunciados darwinianos re-
lativos à compleridade e à intricação paradoxal dos rempos biológicos.
A Nachlebez, desse ponto de vista, poderia ser comparada - o que nào
significa assimilada - aos modelos de tempo que constituem sinroma, precisa-
mente, na evolução, ou seja, que criam obstáculo a todos os esquemas conti-
nuístas de adaptação. Os teóricos da evolução falaram em "fósseis vivos",

A imagem sobrevivente -5-5


esses seres perfeitamente
anacrônicos da sobrevivência.r65 Fararam
perdidos". es\as formas inrermediárias de ,,eros
tes de va ri a çã o., 66 No conceiro
r; :;.ï::'.:::1i'::.ï:ffi:;'T ï;:
evolução "positiva" a uma regressão .,negativ2,,.r67 :ïi;
Assim, falaram não apenas
de "formas pancrônicas" fÃrai,
- uruo, o, formas ,obrauiuantes,
ou seja, or_
ganismos enconrrados em
esrado fóssil por ,"d"
desaparecidos' mâs de repenre ;;;;-;r. .ru- ridos como
"rrrì.r.oberros. em ..ri;; condiçòes, no es_
] tado de organismos vivosl68 -, mas também .- "í"r.ro.roïrur,,,
esses estados
jparadoxais do ser vivo em
orà ,.ì"-itnam fases heterogêneas de desenvolvi-
mento.r6e euando a ação
{ normal da seleção narurar . anï
-uoções genéticas
;?,::'i,:L:ïireender
a rormação di;-; ''J*'**., .,.s chegaram aré
capazesdegerar"ii.ff
À li':i'.ï;:;:ïililtr;;:"ï.r_.",iï*,;t*iï
m"r" ira. a r'trachrJb", *urirrrniano
'ua só nos fala,
com efeito, de ,,fós_
vivos" e formas "retrogressivas".
seis
iara-nos, sim, ar'nrirorronias,ou
"monstros promissores" como a porca de
- prodigiosa de Landser, com
dois cor_
pos e oito patas, que ìTarburg
,.ri, comentado, com
base numa gravura cre
Dürer, pelo prisma do que
d.,rÃi.rou d. ,-u ,,região dos monstros
fRegìon der wahrsagenden Monrtrol.,-)i proféticos,,
-entendido que pode ser induzido
M", ,"_bém compreendemos o mal,
peio acrjetivo ,,.unrr.io#;,
uma obra tão experimenral a propósito de
- tao inquieta e heurística _ or;;;,
a de Ìx/arburg.

:l >i- >i-

Para delinear o obreto inauditoe


anacrônico de sua busca, ìTarburg
na verdade, como toclos os procedeu,
pioneiros: fez
ma de .-prérti,rro, h.r.rogè,r""r,
"boa vizinhança'.. Ernsr ;;;
õombr"i *;J;;;:;,.
;;ïii ï.t:ï::irïffi: ff :ff;
uso que ete rez do evorucionismo
:::::t:'
fonte positivista deve ser situada
n.,.;."J";J;: ï,*iil:ili-'#ï.*:
do lado do romantismo
plo: nela rTarburg bebeu cre carlyre, por exem_
ur*,r,''.ì,o, a favor do questiondmeüo
outros
hìstória induzido por todo
,".onh.i-.",o a", f.rrômerr.r, ie ,obreuiuên.iu.cJa
carlyÌe não influenciou ì7arbu.*
,,filosofia
plano da
-e do vestuário que encontramos "0".r^-no do símbolo,,
- nesse livro estranrrrrrl-. que é sartor
Resartus, ao qual teremos
de voltar. No
ve r ade ra
o, o fi , I uri
; _ :, ;ì :_ï .
#il
cr i r j"_
-o ï;.;ì ",
Lessing, Herder, Ì(ant, Schill"r., "ï,:ïïlï;,
é .laro, ãe"11,..,r,
Jï i
Foi uma filosofia da distância ("
raro com o rongínquo) e da
hir;r;:;-ï "^,,,,^
experiência i:ï,i:ff:'jï:ï::ff::ï""ï
56 Georges Didi-Huberman
:eia vivência); foi uma filosof ia da uìsão dos tempos, simultaneamenre profé-
-ica e retrospectiva; foi uma crítica da história prudente, um elogio da história
:- I OpOr Umâ :rtística; foi uma teoria dos "sinais dos tempos" lsigns of Tìmesl que o pró-
lrio Carlyle definiu como "hiperbólico-assintótica", sempre à procura de li-
:::. 0U Seta, Of- nrtes e profundidades desconhecidos. Enquanto a história, no sentìdo banal,
-::- :idos como :ra reconhecida como sucessiva, narcatíva e linear, carlyle falou do tempo
::t;ões, no es- .omo um turbilhão feito de atos e blocos fsolìds] inúmeros e simultâneos, que
. -sses estados -ìe acabou chamando de "caos do ser" lchaos of Being,l.l7a
. :: lesenvolvi- Não é irrelevanre saber que ìTilhelm Dilthey, em 1890, comentou essa filo-
: _'-s genetlcas .ofia da história em relação à sua própria "crítica da razão histórica".r75 por
::legafam ate caminhos extremamente diferentes - divergentes em muitos pontos
-, Carlyle
e Dilthey puderam fornecer ao jovem warburg alguns instrumenros concei-
:-:-. original.rTo :uais destinados a construir aos poucos o modelo temporal de sua própria
:::iro, de "fós- iulturwìssenschaft em formação.t-o A abertura antropológica da história da
. -'-,-,/ii,7sr ou de :ne só podia modificar seus próprios esquemâs de inteligibilidade, seus pró-
,-- -cm dois cor- :rios determinismos. como quer que fosse, \íarburg viu-se participando de
'-..: gravura de ;ma polêmica que, naquele final do século XIX, opôs os historiadores positi-
::, s proféticos" ou "especialistas" aos defensores de uma Kulturgeschichte amplíada,
"'istas
:-:-rT10s o mal- :ais como salomon Reinach ou Henri Berr, na França, e, na Alemanha, \x/i-
: rropósito de -helm Dilthey ou Karl Lamprechr, o próprio professor de ì7arburg.
: :e Warburg. Que podemos concluir desse jogo de empréstimos e questões debatidas se- (
rão que o evolucionismo produziu então sua própria crise, sua própria crítica ì
I
1,,1,

:rterna? Reconhecendo a necessidade de ampliar os modelos canônicos da I

I
l:ìstória -
modelos narrativos, modelos de continuidade temporal, modelos de I

:ssunção objetiva -, dirigindo-se aos poucos para uma teoria da memória das i

:-: de um siste- iormas - uma teoria feita de saltos e latências, de sobrevivências e anacronis,
'-:i lela simples mos, de quereres e inconscientes -, Aby.ü/arburg efetuou uma ruptura decisiva
.om as próprias ideias de "progresso" e "desenvolvimento" históricos.
I Ora, essa Jogou
.r o evolucionismo contra ele mesmo. Desconstruiu-o pelo simples reconheci-
mento desses fenômenos de sobrevivência, dos casos de Nachleben que agora
::: ,rt-tntento dct precisamos tentar retomar em sua elaboração específica.
. ' rbrevivência.
:: do símbolo"

: - : DOe em COn-
.:,iia ensinada

A imagem sobrevivente 57
ie,rascimento e impureza do tempo: Warburg com Burckhardt

: : -: :ri o campo quase exclusivo de seus estudos publicados: o Renascimen-


-: :::r :rimeiro lugar o italiano (Botticelli, Ghirlandaio e Francesco del cossa,
-;. -:.::rhém Poliziano e Pico della Mirandola), depois o flamengo e o alemão
,:=:::-:ag. Van der Goes, Dúrer, bem como Lutero ou Melâncton). Hoje tor-
-:.-: : a nos debruçar sobre essa idéia porque eÌa nos parece ttazer uma lição
-:',:..: apropriada para "refundar", por assim dizer, alguns grandes pressu-
:,-::. ì de nosso saher sobre as imagens em geral._Mas_nnq
-cg,,qém esquecer-
=,: :-ìe !o__1 no contexto do Renascimento, em particular, que Warburg for-
:- -,, * q problçp4. Não podemos exigir dele algo que nunca prometeu (foi o
::.: :=z Gombrich ao censurá-lo, por exemplo, por ter falado de sobrevivên-
-'::. -isquecendo a idade Média"l.tzz o valor geral da Nacbleben resulta de
-:- - -;rrura e, portanto, de uma interpretação de rüTarburg: recruta apenas a
:::: -:sabilidade de nossa própria construção.
i:r todo caso, atribuamos a rü/arburg um gosto - sutil e sub-reptício - pela
:: --. :,cacâo: acasonãg é provocador fazer Çom que se encontrem, na mesa de
-;'.==...1q d-o histo.r-iador-filósofo, dois conceitos tão diferentes quanto "sobre-.

: -::ja a propósito do período histórico: não designa espontaneamente, como


::- ::ancês ou italiano, um processo que a expressão Nachleben der Antike
-: : então a incumbência de designar. Mas persiste a impressão de que o con-
::: -nrre as duas palavras contém algo irritante. Teremos de constatar que)
: ::, efeito, nenhuma das duas poderia sair imune de tal contato: o Renasci- 7
:::::o. como idade áureana história das artes, teve de perder algo de tr" pr- j
:=::. de sua completude. Inversamente, a sobrevivência, como processo obsco-
- :.r *oluçào, reve de perder algo de seu roque primirivo ou pré-hisrórico. f
I
-\las por que esse contexto? Por que o Renascimento? por que, em particu- J

:: :-r começado ou recomeçado - penso na tese de warburg sobre Botticelli,


::* primeiro trabalho publicadorT8 - pelo Renascimento italiano?_lgryrgiço -
; .,:+l.re foi exatamente nele que começou ou recomeçou a história da arte,
,- Wolfflin, anres de panofsky, reriam rein-_
:r_yider3çlg-ç-o!+g.g-4b,gl,_V_a1bufg_ç

' iiiado a disciplina da história da arte, retornando às condições humanìstas,

A imagem sobrevivente .t9


que nem semprç existir4-
igço é, renascentistas, de uma ordem do discurso
como tal. Para um jovem estudioso do fim do século
XIX, entrar no Renasci-
era também
mento - na história da arte pela via real do Renascimento -
"r-ttru. teórica sobre o próprio estatuto. o estilo e os desafios
entrdr numa polêmica
clo discurso histórico em geral'
de cujas célebres formu-
Essa polêmica remontl a Jules Michelet, algumas
e inter-
lações pela primeira vez uma ideia propriamente histórica
"rboçnr"- e do homem", "advento
pretativa do Renascim.n,o, "d"raoberta do mundo
deumanovaârte,,,..livreexpansãodafantasia'',retornoàAntiguidadecon-
Tentemos relativizar o que tais
cebido como "um apelo às fo.çu, vivas"17e etc.
de contestável: quando \Var-
formulações têm hoje de banalizado, ou mesmo
de Bonn, é provável
burg cursou as cadeiras de Henry Thode, na universidade
a esse Renascimento "moder-
que tenha ouvido uma centena de recriminações
de uma moral
no", essencialmente percebido como o momento de inuenção
Michelet do que aqs dois
anticristã.Recriminaiões menos dirigidas ao próprio
a suas corlSeQlretr:
pensadores 4lem{es responsáveis por levar tais formulações
ir.r.",-r"-as: Jacob Burckhardt e Frieclrich Nietzsche.l,80 A polêmica,
suspei-
ou não do Renascimento
tamos, não concernia apenas ao estatuto cristão
conhecimento histórico, de suas ambições
italiano, mas ao próprio irru,.r,o do
toda a questão da
filosóficas . nnrropà1ógicas' No coração dessa polêmica'
e Burckhardt'
nova Kuhurgeschichte foi colocada por Nietzsche
? E claro O.r.. .r.rr. as aulas "franciscanas" de Thode e os escritos "moder-o
vemos
I nor.. de Burckhardr, Warburg não hesitou nem por um instanre. Nào
ao passo
I no-. do primeiro citado uma única vez nos Gesammepe Schriften, único
\I o.r. u influência do segundo é reivindicada por toda parte.181 Basta umo retra-
.*._pto para deixar claro esse contfaste: em seu artigo de 1902 sobre
toflo,.,'tl,-'o'warburgpartiujustamentedeumaiconografiafranciscana_a
por Giotto na igreia de
Confirmação da rugrì d, São Francisco, representada
o que torna ainda mais
Santa croce . pu, Ghirl"ndaio na de santa Trinità -,
verdade, ìTarburg
Gr""r" " ".rrê',.iu de qualquer referência a Thode.ls'Na
ì -**i;;;.nte do
j silenciou ràb."., fato de que sua interpretação antropológica
proposto por
ciclo de Ghirlandaio contradizia ponto poÍ ponto o esquema
o mesmo texto co-
Thode em seu livro sobre o Renascimento. Inversamente'
pela autoridade de
meça com uma vibrante reivindicação teórica dominada
Burckhardt:

JacobBurckhardt,pioneiroexemplar|uorbìldlìcherPfadfinder],abriupara
a ciência o domínio da cultura do Renascim ento lKwltur
der Renaissance] e
como rirano
o dominou com seu gênio, porém nunca pensou em explorar

Georges Dìdi-Huberman

&
'B-
ne m sealp{e ç_x_!stlf a" Í:, -;:: a região [Land] que acabara de descobrir; ao contrário, sua abnega-
i. entrar no Renasci- '' ;:=nrífica fwissenschaftliche Selbstuerleugnwng] foi tal que, em vez de
irnento - era também !:=: : : o problema da história da civllização preservando sua unidad e [Eìn-
0 estì1o e os desafios ::::.::):<eitl, tão sedutora no plano da arte, ele o dividiu em várias partes
n:::-:iemente não relacionadas lin mehrere ìiusserlich unzusammenhiin-
;ujas célebres foÍmu- :i::. Teìlef, a fim de explorar e descrever cada uma delas com soberana
lnte histórica e inter- .:::_:iade. Em A cultura do Renascimento, ele expôs primeiro a psicologia
) homem", "advento :', social, sem consideÍar as artes plásticas; depois, em Cicerone,
-orr-íduo
o à Antiguidade con- -,:-:-:rrou-se em propor uma "iniciação ao prazer das obras de arte". (...)
, relativizar o que tais - - -.;ios da personalidade superior de Jacob Burckhardt, nem por isso de-
,::- -'t hesitar em avançar pelo caminho que ele nos apontou.183
siár'e1: quando'Síar-
: de Bonn, é provável :"- -'caminho" era de uma exigência metodológica
fBahn) extremamente
3nascimento "moder- :r,-:,, :; sustentar. Mas teria colocado a "abnegação" de \Tarburg - sua
et:ção de uma moral ib' --.;: :nleugnung, como escreveu nessa pâssagem - à altura da que ele reco-
freler do que aos doi! rl::;:-em Burckhardt. Trata-se de uma atitude quase estoica. Por um lado,
!çs a suas collsequên: :::--:. ;ue reconhecer a unidade lEinheìtlichkeitl de toda cultura, sua organi-
r -\ polêmica, suspei- : -':-:undamental. Mas, por outro, o sujeito se recusa a declará-la, a defi-
ãc, do Renascimento ri* .;- : Íer a pretensão de apreendê-la como tal: deixa as coisas em seu estado
ic,,,. de suas ambições :r :--^':são ou de "desmontagem" fZerlegung]. Como Burckhardt, ìíarburg
a- toda a questão da *:.::- se recusou a fe_glr,3-g--gpga-s-!ntqs_ç,__o_"q.u_e.
*:.::- fechar uma sínt era _u-qr mqdp, de, scÍ\pt9 ddiar
lihardt. - TênÌ^ ,l-g*g-q"!,çlql$
_:_fenro_+_g-q"!çl
- ^^-^1,,:- ^ ffi^'-^h+^ L^^^l;^-^ l^ q^^L^-
ometto h ege,[1a 1 9 d-o r)^.- :^^^
b s o I uto. P or i s s o
g_b-er a^L^^1,.-^
-_g -m .

e irs escritos "moder- : ::-;:so Ìevar a "abnegação", ou a modéstia epistemológíca, até o reconhe,
Liiãnte. Não vemos o ------
rc Schrìften, ao passo :.,:r;r ;om singularidades, como escreveu Warburg muito bem, na mesma
fe.:': Basta um único ::i-:r. iogando com o paradoxo de uma "história sintética", mas feita de
lE i902 sobre o retra- --::jos particulares", ou seja, de estudos de caso não hierarquizados:
gafia franciscana - a
1"l=smo após sua morte, esse especialista [Burckhardt], esse erudito genial,
n Giotto na igreja cle
::arece-nos como um investigador incansável; em suas Contribuições pdrd
qu- rorna ainda mais
;,:istórìa da arte na Itália, abriu mais um terceiro caminho empírico para
\-a terdade, Warburg
-::-Jer a uma história sintética da civilização fsynthetische Kwbwrgeschich-
ça,l antropológica do ::-: não recuou diante da tarefa de estudar cada obra de arte em particular
qiima proposto por '-j-is
eìnzelne Kunstwerkl em sua relação direta com o ambiente de sua
R-,l mesmo texto co-
.:oca, para apreender como "causalidades" as exigências intelectuais e
a :ela autoridade de
::iticas da vida real fdas wirklìche Lebenf.t}a
Também ì7ôlfflin - o outro grande "reinventor" da história da arte no sé-
l:,:Jer), abriu para :' r \X - admirava em Burckhardt o mestre que foi capaz de construir uma
'i,:. Renaissancef -::stória sistemática" em que o "sistema" nunca foi definido, isto fechado,
e é,
Pl,:':ar como tirano s:iematizado, simplificado. Em Burckhardt, a "sensibilidade à obra indivi-

A imagem sobrêvivente 61
dual" sempre veio em primeiro plano, deixando toda conclusão em aberto.lss
Ora, ninguém melhor do que S7arburg para executar - se é que o verbo con-
vém aqui - essa tarefa paradoxal, que em seu texto é bem expressa pelo verbo
zerlegen, "decompor". No campo da história da arte, ninguém terá ousado
tão bem quanto ele viajar por essa análìse infinita das singularidades, à qual a
falta de fechamento destas fazia passar, abusivamente, por "imperfeita" ou
"inacabada".
A modéstia e a abnegação exibidas por \X/arburg diante do "monumento"
histórico erigido por Burckhardt não são fingidas nem protocolares.r36 Mas
isso não significa que a relação entre as duas obras seja de pura filiação: em
suas anotações pessoais,'líarburg mostrou-se comumente mais crítico, mais
propício ao debate e à oposição.r87 Também é preciso dizer que o vocabulário
fundamental de \Tarburg - o da Nacbleben, o das Pathosformeln ou da teoria
da "expressão" fAusdruck] - não Íaz parÍe dos temas conceituais próprios de
Burckhardt. Por outro lado, não podemos nos impedir de achar que os famo-
sos NolizËa sten de 'ü/arburg- seus fichários de cartões multicores - são como
que a encarnação volumétrica dos Materialen qae Burckhardt havia reunido
com vistas à redação de uma Hìstórìa da arte do Renascimento, sempïe pen-
dente, jamais publicada (fig.6-7). De qualquer modo, vale a pena identificar
o que, no grande historiador basileense, pode ter servido às intuições e cons-
truções do jovem Warburg.

Entrar na história da arte pela "via real" do Renascimento florentino signifi-


cava, em 1902 (no estudo sobre o retrato), assim como em 1893 (no estudo
sobre Botticelli), tomar posição em relação ao próprio conceito criado por
Burckhardt ao longo de seu livro-rio, A cultura do Renascimento na ltália.18s
Teceram-se incontáveis comentários sobre os temas e as teses contidos nesse
livro. SaudaÍam-se sua audácia, sua inspiração e seu movimento "genial"l
admirou-se sua maneira de reunir um material histórico extraordinariamente
rico e polimorfo. Os comentarisras rampouco se privaram de submeter à obje-
ção crítica cada tema célebre: a oposição entre Idade Média e Renascimento,
a primazia da Itália, o "desenvolvimento do indivíduo".rse Ìndependentemen-
te de todas as críticas, o livro continuava a dominar o debate histórico sobre
a ideia de Renascimento.leo Mas também se fez desse "domínio" esmagador
um argumento a favor do fato de Burckhardt haver criado, com sua obra-
-prima, um Renascimento mítico, mitificado,. cuio c.ulto acabaria prgduzindq
o que Heinrich Mann condenou com a expressão Renascimento histérico.!1

62 Georges Didi-Huberman

&
ri.rsão em aberto.lss
È . que o verbo con-

e,\Dressa pelo verbo


in:uém terá ousado
p.;ridades, à qual a
pc,: "imperfeita" ou

E io "monumento"
pr-,:ocolares.l86 Mas
te rura filiação: em
E :rais crítico, mais
tÍ .--le o vocabulário
íon,:eln ou da teoria
Er::lais próprios de :. Jacob Burckhardt, esboço do projeto Kunst der Renaissance, 10 de agost<r

ìã..:ar que os famo- :. 1Si8. Tinta sobre papel. Basileia, Jacob Burckhardt-Archiv. Foto: Jacob
ì:::ck hardt-Archiv.
d:;,:res - são como
la:;r havia reunido
)nz':lo^ sempre pen-
È . rena identificar
;ãs -rruições e cons-

:- -,rentino signifi-
It93 (no estudo
-;-ito criado por
:.,rto na Itá\ia.188
s contidos nesse
-::rento "genial"l
:,rrdinariamente -. Abv Warburg,Notizkiisten. Londres, Instituto Síarburg. Foto: Instituto
:::bmeter à obje- \\ãrbur:g.
u . Renascimento,
L-;e pendentemen- >; é fato que existe um mito do Renascimento, tal mito é intrínseco à pró-
:.: -ultura renascentista * e coube a Burckhardt analisá-lo como tal. O ..de-
::o" esmagador
';;:-;,1içimsnto do indivíduo" decorre, provavelmente, de uma estÍutura míti-
. com sua obra- ;- ,rÌÌ. pelo menos, de uma estrutura ideológica e política.1e2 Nem por isso
p.raduzinda.. :.-\üLl de produzir efeitos de conhecimento e de estilo, efeitos de verdade e de
:--i:,:rria: se o "indivíduo" é um mito do Renascimento, pelo menos gerou essas

A imagem sobrevivente 63
realidades fascinantes que são os retratos florentinos do Quattrocento. Foi
exatamente daí que ìTarburg partiu: analisar um mito, decompô-lo em seus
efeitos estéticos, era ao mesmo tempo aquilatar sua fecundidade (como "ciên-
cia do concreto") e desconstruí-lo (como conjunto de fantasias).
A análise burckhardtiana, portanto, não interessava a Warburg por algu-
mas generalidades, das quais o Renascimento, como cultura ou como período,
pudesse sair totalmente puro e conceitualmente "armado", como Atena emer-
gindo da cabeça de Zeus. Burckhardt havia de fato reconhecido um "desen-
volvimento do indivíduo" na Itália renascentista, mas esse "desenvolvimento"
encontrava sua estranha conclusão numa análìse dos sintomas e chistes, das
paródias e difamações - outros tantos obstáculos a um modelo trivialmente
evolucionista - dos quais o indivíduo, desde Franco Sacchetti até Aretino, teria
sido uma vítima incessante; assim, Burckhardt falou do "desenvolvimento do
indivíduo" não como o puro progresso de uma emancipação) mas também
como um desenuoluimento de sua pró1tria peruersidade.le3
Podemos tirar dessa análise duas interpretações muito diferentes. A primei-
ra é moralista: segue o modelo "grandeza e decadência" dos pessimismos do
século XVI[.1e4 Lança uma ponte - legítima - entre Burckhardt e Schopen-
hauer.1e5 Mas, enfatizando a temática do declínio, acaba vendo em Burckhardt
apenas um ideólogo saudosista, um antidemocrata precursoÍ do Kuhurpessi-
mismus à moda de Spengler, ou até um zelador das "revoluções conservadoras"
que, na Alemanha, prepararam o advento do nazismo.le6 A outra interpretação
é estrutural: liga-se mais a identificar os modos de funcionamento da história
do que os jwlgamentos sobre a história. Tem a vantagem - que \7arbuÍg paÍece
haver compreendido perfeitamente - de ser dialética e, por isso, epistemologi-
camente fecunda. Quando Burckhardt condenou a "cultura moderna" e sua
incapacidade de "compreender a Antiguidade",ttt não proferiu propriamente
um julgamento "reacionário", mas pôs o dedo, de forma crítica, no problema
mais geral da relação entre uma cultura e sua memóri4;g.qla.cultura euç*Le-Ç-al.
*c;l sua própria memória, suas próprias sobrevivências, está tão fadada à impo-
lQ11q1q
quanto Lrma cultura imobilizada na perpétua comemoração de seu pas.
sado.'líalter Benjamin, ao que me parece, pensava da mesma maneira.res
O "desenvolvimento do indivíduo" no RenascimenÍo trazia em si, por-
tanto, o desenuoluimento de seus sintomas, suas peÍversidades, suas negati-
vidades. O que concluir dessa proposição? Uma visão moralista falaria em
"declínio", em nome de uma pateza que não se sabe muito bem se deveria ser
situada, como em'Winckelmann, na época do simples "milagre grego". Uma
visão estrutural compreenderia que o tempo - qualquer tempo de que se trate,
o da Antiguidade ou o do Renascimento - é impuro. Foi a partir de tal inter-

64 Georges Didi-Huberman

t&
Q,:::rocento. Foi , :'::-ão. creio, que todo o trabaÌho de \üTarburg pôde começar, utilizando o
E,:::o-1o em seus :-:. aas análises de Burckhardt, podia construir uma noção incisiva dessa
H::- como "ciên- --:-.:.za do tempo: construir, em surrÌa, a base teórica da "sobrevivência".
IL.: .

f-:::,:rg por âlgu-


t.-, ;,rmo período,
i.c ": -\tena emer- - : ,ie início Burckhardt havia decidido dar a medida de uma complexidade
': -:t ; r-71 própria do Renascimento; seria impossível e historicamente nefas-
-
.-::r olvimento" : - :=sumi-la na bela ciência de um Leonardo, no angelismo de um Rafael ou
- - -.:::alidade de um Michelangelo..\!e:io_1ég_r]g q.re Freud definisse sua
a,nç.ç,c
:- . rrivialmente -
da-nâo omissão, Burckhardt escreveu que o historiador
-, --: $14e.ryç-ggl'--
.-= \retino, teria --. :-'ia 'i-..glfri-r*nada.do-que pertence ao passado".lee as lacunas, os conti-
- , -.lr imento do -:rr:i:regros, as contfamotivações, as aberrações, tudo fazia parte de sua
. ras também -:-:. Eis por que o famoso "desenvolvimento do indivíduo" deve ser pensa-
: : :r_!_Eue B-urçkhardt chamou de uma "mescla de superstições antigas e
.; :.:l..as'ì-r-'19 característica da Itália renascentista (sabemos que \ü/arburg fa-
-: -::: análise semelhante da Alemanha de Llrtero e Melâncton). Enquanto
r :.:: KÌein via em Burckhardt "alguma oposição entre as duas orientações
=:: Burckhardt - :.=-ascimento" - o espírito positiuo da "descoberta do homem e do mun-
- : r' rspírito fantasioso das ficções esotéricas2.l ficaríamos tentados a
. : -,:'servadoras" -:- ...r-.er aigo como uma clarividência dialética, -, uma ideia das tensões e
::: :nterpretaçao - -: -;-;je-. que varburg teria sistematizado por conta própria em cada nível
'.'::'t dd bìstória ,
-:
-:-
-- :--\1.
-
-i.::burg parece .-':.ii .ondições. nâo vemos como a famosa "ressurreiçào cla Antrguida-
.pistemologi-
' . .lerna" :.'-::rlderia ser pensada segundo a temporalidade de um retorno puro e
:: e sua -: =. do mesmo (o mesmo "ideal de beleza", por exemplo). Foi sua relação
*-;;.r-ente-anacrônìcd
- com as especificidades do presente e do local, a
-, - :-' século XV, que deu a esse retorno sua vocação para as diferenças, as
: -.:jia qu.g--(9Çal: - -: -rr"1ades, as metamorfoses.2.3 o encontro do tempo longo das sobrevi-
È. -:dada à impo- :' :. : i - não era assim que Burckhardt as chamava ; ele dizía: .. (... ) essa Anti_
r- -i*; iizera sentir sua influência desde longa data" - com o tempo breve das
l :-.':reira.leE -: - : l.: stilísticas que fez do Renascimento um fenômeno tão complero.20a
e

t , ;,r. que Burckhardt, a propósito do conceito histórico do


renaítre fre-,
- -:-:r- anotado com essa forma verbal,
- em francês, num manuscrito de
:: ,s:a falaria em r '- -. re ria podido descrever um verdadeiro movimento dialético
entre o ): .

:r:r, se deveria ser : ':: --','rte do que ele chamou de "retomada" do passado antigo e o tempo-
1r : grego". ljma ' ': j-,, dos "restos vitais" ltebensfr)bige Restel que tinham permanecido
, J- que se trate, .i-:-r::. em certo sentido eficazes, bem no âmago da "longa interrupção" que
: '-::r de tal inter- .-r:r'era não percebidos.2's A Antiguidade não é um "puro objeto do

A imagem sobrevìvente
é um grande movimento de
tempo" que retorne tal e qual, ao ser convocada:
que atravessa todas as camadas
terrenos, uma vibração ""du, uma harmonia
históricas e todos os níveis da cultura:
povos cuia vida se prolongou
A história do mundo antigo, pelo menos a dos
que ainda ouvimos ressoar' inces-
na nossa, é como .r- uaoidt f""dn*tt'tnl
humanos'206
santemente' através da massa dos conhecimentos
espanto por encontrarmos na pena
Consequentementet será menor o nosso
aos olhos dos de-
de Burckhardt uma p-,Ço'içao tão radical- e escandalosa'
esta: "O Renascimento não criou
votos estéticos do Renascimento - quanto
eigener organischer (...) stli].'].? Que
nenhum estilo orgânico próprio,' lkrein
é impuro' tanto em seus esti-
quer dizer isso? Quer di'e' qot o Renascimento
los artísticos quanto ,-t"'"-io'ulidade
complexa de suas idas e vindas entre o
presente vivo e n nntig.tiduit
N{.9 p-o-{çmos-imaginar' no--s-éçnl-o '
"-t-otada' (em busca da unidade de 1-egp9)
XIX, uma crítica mais aguda do historicismo
rlq çst"tiçisqg. km,bllsca da un.ida-de 'estilo)-''108
de
" se cansaria de aprofundar e de
O Renascim.rr,o ã i-pt"o' \Tarburg nunca
de NacD leben e Pathosformel -
construir - graçâs no, .án..itos específicos
essaobservação.oRenascimentoéimpuro:talseria'ta|vez,seulimiteares-
o que \íarburg
peito de qualquer ideal, e tal era, porém, sua uitalidade'Foi
de elementos heterogêneos" [Ml-
escreveu, exatamente em 1920: a "mistura
scbung heterogener Elemente] deu nome
ao que havia de "vital" lso lebens-
,,cultura do Renascimenr.o" lKultwr der Renaissancel'2oe Ele no-
kriiftig] na
Isso implicava
meou o carâter "híbrido" do estil0 florentino fMischstill'}1o
"compromissos", de tal sorte que a
uma constante dialética de "tensões" e
culturarenascentistaacabariaporseapresentar,aosolhosdohistoriador,
como um verdadeiro "organismo enigmático":
de conceber a vida lLebensanschawung]
Quando maneiras contraditórias morrais e
lìrrç"In os membros isolados da sociedade em enfrentamentos
irresistivelmente, o declí.
inspiram ,..1., .,-u pnirão unilateral, elas causam'
níolVerfalt]dasociedade;noentanto'aomesmotempo'sãoforças[Kràfte]
quefavorecemodesabrochardamaiselevadacivilização(...).Nesseterreno
cresceaflordacuÌturadoRenascimentoflorentino.Asqualidadestotalmen-
teheterogêneas|heterogeneEigenschaften]doidealistamedievalecristão,
e platonizante, pof um lado, e
cavalheiresco . ,o-ânti".o, o., ài.tdn clássico
para o mundo externo'
do pragmático mercador etrusco, pagão e voltado
poroutro,impregnamohomemdaFlorençadosMedicieneleseunempara
formarumorganismoenigmático|einriitselhafterorganismus],dotadode 1 1
porém harmoniosa'2
uma energia v rtal lL eb en siner giel primária'

Georges Didi-Huberman
iJe movimento de Lebensfiihíge Reste: a sobrevivência anacroniza a história
l iodas as camadas

rJ.: se prolongou
t,s ressoar, inces-

il':ltraImos na pena - R.enascimento é impuro - a sobreuiuêncìa seria a maneira warburguiana de


i. -1os olhos dos de- -::rrminar o modo temporal dessa impureza. Apesar de discreta, a expressão
ra:nlento não criou :-sros vitais" llebensfrihìge Restel em Burckhardt parece-me decisiva para
É* ...) Stl/1.207 Que - ::lreender, acima do próprio warburg, o paradoro - e a necessidade - de
:-:-nto em sells esti- ::- lera. Trata-se do paradoxo de uma energia residual, de um vestígio de vida
i.,:.. e vindas entre o -..:da, de uma morte por pouco evitada e quase contínua, fantasmal, em
;raginar, no,s-éç.ula i-::1. que dá à cultura triunfalmente chamada de "Renascimento" seu pró-
L --ridade de temPo) : :rrncípio de uitalìdade. Mas de que vitaiidade, de que temporalidade se
:-.:-:-. e\atamente? F,m que a sobrevivência impõe um modo específico, funda-
*:-:-1Ì. de compreender a
.;- :profundar e de "vida das formas" e as "formas do tempo" que essa
*: : Pttthosformel - -..ribe?
r:r. seu limite a res- l"i ,ssa hipótese de leitura será que, para além da evocação burckhardtiana
l,oqueVarburg - : ":-sros vitais", a Nachleberz de \ü7arb,urg fornece um modelo de tempo
: =:erogêneos" [Ml- : - : : _das im,agç4s, uiï;;'í;h-í; ;i;;è;'"1'*; que rompe não apenas com
r "" itaÌ" lso lebens' .:r.'.Q!! vagalialqs (esses romances familiares) e com as nostalgias wincker-
-
,; : -. :.ìncel.z]e Ele no- -*,:
- ,i:ras (qssas glegia.s do ideal), mas também com todas as suposições usu_
;.-- Isso imPlicava . : rri o sentido da história. Assim, segundo \7arburg, a \Iacbleben intro-
-. ;e tal sorte que a : - - ja uma teoria da história: é no cotejo com o hegelianismo, no final das
,-:: ,. do historiador, " -'::ì. qlre devemos julgar ou avaliar tal conceito.2r2
rsriltamos, para começa! que o próprio V/arburg via na "sobrevivência
-- -- ::sriidade" um "problema capital" lHauptprobleml para toda a sua
-;: .';s:tnschauungf r : - , .!-.ì. Foi o que atestaram seus colaboradores e amigos mais íntimos, como
ï:::ltos mortais e 'i " -- .-'\-Ì:1,
ou ainda Jacques Mesnil:
r:.mente,odeclí-
=':,' iorças [Kriifte]
- - :,.oteca fundada em Hamburgo pelo professor \Tarburg <listingue-se
r . \esse terreno r-::::,rdl1s as bibliotecas por nàcl ser consagrada a um ou vários campos do
c:, iades totalmen- j -:: .]Lrmano, por não entrar em nenhuma das categorias habituais, tanto
::::ieval e cristão, -::: s qlÌanto locais, e sim ter sido forrnada, classificada e orientada com
J-,::. DoÍ um lado, e -:.. -i solução de um problema, ou melhor, de um vasto conjunto de pro-
,

r lundo externo, - : -ì ì conexos. Esse pr:oblema foi o que preocupou Aby V/arburg desde a
:

< :--ie se unem Para , :r:-1de: o_q!-e,{,eelrygltq,l.epresenrava â AntigLridade para os homens do


gr:-.,,llsl, dotado de : : -.
"rïrerìro? Qual era sua significaçìo para eles? Em que clomínios e por
f.- :osa.lll :
- - ,:lnhos e[a havia exercido sua iníluencia? As pergunrâr 155i;n Í,ormu-

A imagem sobrevivente 67
ladas não eram, pafa ele, uma questão apenas artística e literária. O Renas-
cimento não evocou em seu espírito Somente a ideia de um estilo' mas tam-
bém e principalmente a ideia de uma culturdi o problema da sobrevivência
e do renascimento do antigo era um probìema tanto religioso e social quân-
to arfístico.21a

A atual classificação da Biblioteca'S7arburg atesta também uma obsessão:


câda seção importante, ou quase, começa com uma subseção sobre a "Sobre-
vivência da Antiguidade" - sobrevivência dos deuses antigos' dos saberes as-
trológicos, das formas literárias, dos temas figurativos etc. Os volumes de
conferência s lVortriige der Bibliothel< \X/arburg], publicados entre 1'923 e 1'932
por Fritz Saxl, também tfazem a malca constante desse problema: à simples
abertura do primeiro volume, vemos lado a lado um ârtigo sobre Dürer como
intérprete da Antiguidade (por Gustav Pauli) e um estudo de Hellmut Ritter
sobre as sobrevivências helenísticâs na magia árabe, a famosa conferência de
Ernst Cassirer sobre o conceito de "forma simbólica" e um ensaio de Adolph
Goldschmidt sobre "A sobrevivência das formas antigas na Idade Média"
lDas Nacbleben der antiken Formen im Mittelaber]'215 Todo o esforço
biblio-
''ülarburg finalmente convergiria para a edição de dois
gráfico do Instituto
volumes consagrados apenas ao problema da sobrevivência da Antiguidade'216
Mas será que o ploblema era tão novo assim? O neoclassicismo de'lflin-
ckelmann e seus seguidores iá não tinha projetado a Antiguidade fAltertwm]
até mesmo no presente vryo fcegenwart] dos homens do século XIX?217 Ernst
Gombrich insistiu na influência de um texto de Anton Springer - o primeiro
capítulo de seu livro Bilder aus der neueren Kunstgeschichte, publicado em
1867 - sobre "A sobrevivência da Antiguidade na Idade Média" lDas Nach-
leben der Antike im Mittelalter]i na margem de uma passagem em que Sprin-
ger falava do antigo drapeado como um "instrumento perfeito de expressão",
'S7arburg
indicou seu assentimento com um lacônico "Bravo"'218
Com certeza, ìTarburg tinha um conhecimento muito preciso de toda a li-
teratura histórica relativa ao problema da "tradição antiga". Mas esse conhe-
cimento, do nosso ponto de vista, marca ainda mais fortemente a diferença
que devia separar sua própria ideia da Ì'trachleben de todas as que' sob diversas
7-l denominações, podiam circular em sua época.21e Então, em que podia a sobre-
.1r vivência, segundo Warburg, romper com todas as que a haviam precedido' ou
)" !
I
I que the eram contemporâneas? Essencialmente, em não ser passíuel de swper-
I posição a nenhumd periodização histórica. ANachleberu de Springer
I
simplifi-
J
cava a história, periodizando-a: permitia manter uma Antiguidade "diminuí-
dâ" em suas sobrevivências medievais, em oposição à Antiguidade "triunfal"

Georges Dìdi-Huberman
[:.rária. O Renas- j;:-:r-.nro. A Nachleberz de ìTarburg era um conceito estrutural. Dizia
4 ":-
"Mir
r:-- =stilo, mâs tam-
lËyü*rr :::.:r' ao Renascimento quanto à Idade Média: "Cada_período.renr-o
a :: sobrevivência S,'gru";-==:;: da Àntiguidade- que-mer.ecell"ljede Zeìt hat die Renaìssance der
f,-.,:, e social quan- tunÌiïri1 r
- j s:-: t'erdìentl, ,esçfç__v.ç_u.^110 Mas poderia ter afirmado, simetricamen_
t* iir --:.:eríodo tinha as sobrevivências que merecia, ou melhor, que lhe
flirLrn -:r:::::ias e) em certo sentido, que lhe eram estilisticamente subjacentes.
[].rr uma obsessão:
Pa:rì sobre a "sobre-
h"=-'s. dos saberes as-
ie::. Os volumes de Ì n -i-- j --, -: -ia segundo ìTarburg não nos oferece nenhuma possibilidade de
b-r ;rtre 1923 e 1932 a:rr'rrr .- ::: : história: impõe uma desorientação temível para qualquer veleida-

p:-'rlema: à simples rü& jr :r:--';izaçãoj-u-ma !dçta--qralryers-al a qualquer recorre cronológico.

p ..rbre Dürer como ln".;---::t1i! outro tempo. Assim, desorienta, abre, torna mais complexa a
ür :t Heilmut Ritter rüi:i: :: \'r;'r prÌav-!-a, 9]a,a-augçtefllza-,rmpõe o paradoxo de que as coisas
n: - sa conferência de trï.i.r :::i:S às vezes vè.mdepoìs das coìsas menos antigas; assim, a astrologia
r _....^ - a mârs remota que existe encontrou um valor de uso na
ü --:' _:-Jrano
-:rsaio de Adolph -
p' :: Idade Média" m. : -, .éculo xY depois de ter sido suplantada e tornada obsoleta pelas
iÈ ,r esforço biblio- ;r.x-* .:,,:s qrega, árabe e medieval.22l Esse únic-o-e19mp1o, longamente desen-
r: : edição de dois i j :- -1r' \ï/41bgrg, mostra como a sobrevivência desnorteia a histórìa,I I ett
ú; :: -\ntiguidade.216 - - :=j: período é tecido por seu próprio nó de antiguidades, anacronis- I
r-,:.sicismo de \7in- 1'r: {. ::-:illtes e propensões para o futuro. I
üg- Jade lAhertuml ,- ::-c o saber medieval sobreviveu em Leonardo da Vinci? por que o
rsr: iio XIX?217 Ernst r r - : !-:inrrional sobreviveu ao Renascimento clássicoìJádizj3Àlrjk_ls!*q,".
i:::::er - o primeiro U'-;-\Jé{i4-çra l'ainda mais difícil {e matar por já estar morta há múto
[r--:::. publicado em -r:'-::' - ::. \ão as coisas mortas há muito tempo, com
efeito, que assombram
:\1=:ia" [Das Ì'{ach- - - --: rrr eficácia - da maneira mais perigosa - a nossa memória: quando faz
fÊì::r1 em que Sprin- a:'- I . ',s.opo, a dona de casa de hoje continua a manipular os nomes de deu-
m.,:r de expressão", ":': :r-r-loS. nos quais, supõe-se, ninguém mais crê. A sobrevivência, portanto,
!r.'--.- : ;'-: . )::stórid - o que era a vontade de \Tarburg quando ele falava de uma
);::-;iso de toda a li- '--:: ::.1 da arte no sentido mais amplo" fwohl zum Beobacbtungsgebiet der
pa- \las esse conhe- ", :-.;a'--.dlichte imweitesten sinne]: uma história da arte aberta para os pro-
Ít::l-nle a diferença : ::--.:r anrropológicos da superstição, da transmissão das crenças.22' uma 7
tr :. J,ue, sob diversas : :' :i-r da arte informada pela "psicologia da cultura,' pela qual Warbrrrg
J

F =*- podia a sobre- - :--:.-]ra a se apaixonar junto a Hermann Usener e Karl Lamprecht. )
!; :n precedido, ou -'r: medida mesma em qlÌe amplia o campo de seus objetos, de suas aborda-
'F :-;ssíuel de super- :=:.. ie seus modelos temporais, a sobrevivêncía torna complexa a hìstória: li-
pd- >:ringer simplifi- :r::: jma espécie de "margem de indeterminação" na correlação histórica dos
ts;:rdade "diminuí- :=: renos. o depois quase se liberta do antes, quando se une ao "antes do
t;::,iade "triunfal" ::,:.! fantasmático que sobrevive: como na obra de Rembrandt, qualificada

A imâqem sobrevivente 69
por'ï7'arburg de "mais antiga e mais clássica" mais ovidiana,
- em suma - que
a de alguém como Antonio Tempesta, que a precedeu na história.22a
A forma
quase se liberta do conteúdo, como nos afrescos de Ferrara,
nos quais a estrutu-
ra renascentista - a posição recíproca das figuras, a própria referência astrológi_
ca - coexiste com uma iconografía ainda medieval, heráldica e cavalheiresca.225
tgqst4tar isso é nos rendermos à evidência de que as ideias dç g lgdkgg
lryt.a;gì5qão têm uma i.-ptà"iàià" ui.Àorirrnr., rào históricas (I_ft,{-e_M(
.ç[4, -Rena-scimento), mas são também anacrônicas (Renascime nto d.a_Idade
Média, Idade Média do Renascimento); são feitas de processos conscien{es_e
pfpcessos de esquecimentos e redescobertas, de inibições_e.d_q_s-
_inconscientes,
.truiçòes, de assimilações e inversòes de sentido, de sublrmações e alterações
termos que se encontram todos no próprio ì7arburg.16 Bastará o d"rlo.à-.rr-
-
to da perspecriva, no qual se dìaletjza omsdeLo histórico do renascimgr_tq g_g-
qp--delo a,n-Q-ç{ô-nico d.a sobreuiuêrtcìa,.para que a própria ideia
de uma ,r"rrr-
missão no tempo se torne problemática. Ainda mais que essa complexidade,
para \X/arburg, não deixava de ter uma referência obstinada com
uma dntro_
pologia apoiada nas questões conjuntas da crença, da alienação,
do saber - e
da imagem, é claro:

Na perspectiva da evoluç ão [\T{andel] das imagens dessas divindades, inicial-


mente transmitidas, depois esquecidas e redescobertas
füberliefert, uerschol-
len und wìederentdecl<t], a história da Antiguidade encerra conhecimentos
ainda inexpÌorados para uma história do pensamenro antropomórfico
e de
sua significação feìne Geschichte der Bedeutung der anthropomorphìsti-
schen Denktueise]. (...) Desse ponto de visra, as imagens e as paravras
[Bil-
der e'worte] de que se rrarou aqui - uma pequena parte daquilo de que
poderíamos ter disposto - devem ser consideradas documentos
de arquivos
ainda inexplorados, que arestam a trágica hrstória da riberdade de pensa-
menro ldie tragische Geschìchte der Denkfreibeit] do europeu moderno.
Também fizemos questão de mostrar, com a ajuda de um estudo positivo,
como é possível melhorar a metodologia da ciência das civilizaç ões
fkultur-
wissenschaftliche Methode], ligando a história da arte e as ciências
religiosas
[d i e Ve r nüp fun g u o n Kun s t g e s c b ì c h t e un d. R e I i g i o n slu i s s e n s c h aft].227

Por ser tecida de longas durações e de momentos críticos, de latências


sem
idade e ressurgências abruptas, a sobrevivência acaba por anacronìzar
a his-
tória. com ela, cai por terra quarquer noção cronológica de duração.
Em
primeiro lugar, a sobrevivênc ia anacroniza o presente: desmente
com violência
as evidências do Zeitgeisf, esse "espírito de época" em que
tantas vezes se
baseia a definição dos estilos artísticos. ìTarburg gostava de
citar esta frase de

Georges Didi-Huberman
fara. em suma - que
L h:stória.22a A forma *- :;:=:,rdade, que o espírito do honorável historiador em quem esse tempo
L l,ls quais a estrutu- 'lc :=:1.:;...'' Com isso, a grandeza de um artista ou de uma obra de arte era 1
I re:erência astrológi- ':;-:-::-;ida por ÏTarburg - ao contrário do que quer nos fazer crer a leitura I
t: : cavalheiresca.225 '..: . r:ica muito comum da obra dele - conforme sua capacidade de resisten- '{
ii;.ias de 1y_qlliçgo e ;u; : -!se espírito, a esse "tempo de época".228
f
iriricas (Ift-dq MÇ :: segun-do lugar, a sobrevivência anacroniza o passado: se o Renascimen- i
F.*:menro da,-Jdade l: -:- :ealisado por Warburg como um "tempo irlpuro", é também porque o.
E-iios conscientes-e, :ri,::;i,l em qì'e.ele..convoçeu suas "forças vivas" - a Antiguidade clássica *
r- :; inibições -e.{g_q- _l;._=.1!ra_C.41 qi n4da {e um-a origem absoluta. P_or conseguinte, a origem for-

$i -'es e alteraçõ.e_s..- :=- ;--r mesma, uma temporalidade impura de hibridações e sedimentações, de
F=:á o deslocamen- :i:::nsões e perversões: nos ciclos pictóricos do palácio Schifanoia, o que
ft" :enascime9_to*,e o i, :::i-ir-e é um modelo oriental da astrologia em que as formas gregas, mais
1Ë-,a de uma trans- ;::ias. 1á haviam conhecido um longo processo de alteração. A partir do
F€-{>: complexidade, :-: - rìeoto em que o historiador da arte corre o risco de reconhecer as longas
ld: ;om vma antro- :::=çoes que estão em ação nos monumentos artísticos do Renascimento - foi
pc.;ão. do saber - e :.:,:Ìl que Warburg apresentou em conjunto uma obra de Rafael e o arco de
i -,-::srantino, em Roma, separados um do outro por 1.200 anos22e -,_ç!gç-qrre
jJgé.$, ryu!ç_o- -lggicamente, o risco do anacronisrno: chamamos a isso uma
! - ..1.r,t'erschol-
inicial- ::;isão de reconhecer o anacronismo atuante na própria evolução histórica.
ft.:.'=rt, E que a sobrevivência realmente abre uma brecha nos modelos usuais da
f : rhecimentos
-
=,',rlução. Neles detecta paradoxos, ironias do destino e mudanças não retilí-
L: 'r:orfico e de :-as. Ela anacroniza o futwro, ao mesmo tempo em que é reconhecida por
J: :.,,rtorphisti- Tarburg como uma "Íorça formadora païa a emergência dos estilos" [a/s
! ,-. r1., ras [Bli -
,::ibìldende Macht].230 Que Lutero e Melâncton revelem interesse pelas "so-
| :.:uiJo de que ::er-ivências de práticas misteriosas da religiosidade pagã" fan den fortleben-
k, . J- arouivos ;en mysterìòsen Praktiken beidnìscher Religiositiit], eis aí algo que, com cer-
Jt-,.. d. p.r.rn- :eza. "parece muito paradoxal para nossa concepção retilínea da história"
h ..'. moderno. qeradlinig denkende Geschicbtsawffassung].231 Mas vejamos o que justificava
J *.-.o positivo,
k -..,ì". Ihul.tt ,- rÌenamente a reivindicação de tü/arburg de um modelo do tempo específico
t_'
re --j5 ì. reÌÌglosas
lara a história das imagens: o que ele chamava, como vimos, de uma pesquisa
de "sua prôpria teoria da evolução" lìhre eigene Entwicklungslehrel.232

fl -=,r,."cias sem
-----^--r-.,.. - t,:-
aú ---!utu<ur Lt Dls-
Eis-nos um pouco mais bem armados para compreender os paradoxos de uma
E':.*t:l*; história das imagens concebida como uma história de fantasma.s - sobrevivên-
L ..'n,"r rr.r"* ," cias, latências e aparições misturadas com o desenvolvimento mais manifesto
esra frase de dos períodos e estilos. uma das formulações mais impressionantes de \Var-

A imagem sobreviventê 71

[""
burg, datada d,e 1928, um ano antes de sua morte' terá sido definir a história
das imagens que ele praticava como uma "história de fantasmas paÍa gente
gfande', lGespenstergeschichte für ganz Erwachsene].233 Mas de quem, de
tü/arburg so-
onde e de quando são esses fantasmas? Os admiráveis textos de
bre o retrato - sua mescla de precisão arqueológica e empatia melancólica -
induzem prontamente à ideia de que esses fantasmâs concernem à insistência,

à sobreuiuência de wma Pós-morte.


No momento em que trabalhava com retratos da família Sassetti (uma fa-
-ü/arburg escreveu ao irmão
mília de banqueiros, como a dele mesmo), Aby
Max uma cafta emocionante) na qual tentou descrever-lhe por que todo o seu
trabalho de arquivo, apesar de "árido" leine trocl<ene Arbeit], não deixava de
ser "incrivelmente interessante" lcolossal interresant], pois devolvia a uma
espécie de vida, ou âté de palpitação, essas "imagens fantasmáticas" lscbemen-
hafte Bilderl de seres desaparecidos havia muito tempo.23a A partir disso, po-
demos compreender melhor a "vivacidade" paradoxal dos retratos florentinos
(ou seja, sua relação física com a morte) e, pof conseguinte, seu poderoso
,,animismo" (isto é, sua relação psíquica com o inanimado).23't Acaso não foi
nos sarcófagos, esses porta-joias da morte, que os artistas do Renascimento,
de Nicola Pisano a Donatello e outfos mais, perscrutaram as fórmulas clássi-
Cas para representâI a própria vida, essa "vida em movimento" que sobrevi-
via, como que fossilizada, no mármore dos vestígios romanos?216
Mas isso não é tudo. Os fantasmas dessa história das imagens também vêm
de um passado incoativo: são a sobreuiuência de um pré-nascimento' Sua aná-
lise deveria nos ensinar algo decisivo sobre o que \Tarburg chamava de "forma-
ção de um estilo", sua morfogênese. o modelo da Ì'Jachleber,
portanto, nào
concerne apenas a uma busca dos desaparecimentos: busca' ântesr o elemento
fecundo dos desaparecimentos, o que neles deixa marcas e' por conseguinte'
torna-Se passível de lembrança, retorno, ou até "renâScimento". EsSa Seria,
epistemologicamente falando, a redefinição do modelo biomórfico da evolução'
Vida, morte e renascimento, progfesso e declínio, ou seia, os modelos pos-
tos em circulação a partir de Vasari, iâ úo bastam para descrever a histori-
cidade sintomal das imagens. Darwin, é claro, havia passado por isso. Sua
análise das "aparições acidentais" - verdadeiros sintomas oD mdl-estares da
euolução - articulara admiravelmente a "regressão dos caracteres perdidos"
com o tema das "latências" pelas quais sobrevivia a estfutura biológica do
"ancestral comum":

Todavia, encontfamos um caso diferente nos pombos, isto é, a aparição


acidental, em todas as raçâs, de uma coloração azul-ardósia, das duas fai-

72 Georges Didi-Huberman
o definir a história r-:s negras sobre as asas, dos flancos brancos com uma barra na extremidâ-
[asmas para gente :- da cauda, cujas penas são, junto da base, externamente debruadas de
\Ias de quem, de ::anco. Como estes diferentes sinais constituem um caráter do ancestral
rc's de \Tarburg so- ; rrnum, o torcaz) ninguém contestaria, creio, que este seja um caso de re_
raria melancólica - ::essão, e não uma variação nova (...). sem dúvida, é muito surpreendente
nem à insistência, ;;. reapareçam caracteres, depois de haverem desaparecido por um grande
imero de gerações, centenas, talvez. (...) Numa raça que não tenha sido
ia Sassetti (uma fa- ::tzada, mas na qual os dois ancestrais de origem tenham perdido alguns
::.racteres que o ancestral comum possuía, a tendência a haver uma regres-
e:areveu ao irmão
.ìo para esse caráter perdido poderia, segundo tudo o que nos é possível
FJr que todo o seu
ú . não deixava de ':ber, transmitir-se de modo mais ou menos vigoroso durante um número
ois devolvia a uma
-,rmitado de gerações. Quando um caráter perdido reaparece numa raça
:pós grande número de gerações, a hipótese mais provável não é que o in-
E jricas" lscbemen-
:ir'íduo afetado venha subitamente a se assemelhar a um ancestral do qual
'a partir disso, po- s- separa por muitas centenas de gerações, mas que o caráter em questão já
re::atos florentinos
s- encontrasse em estado latente nos indivíduos de cada geração sucessiva e
ir::e. seu poderoso
;:rfim se houvesse desenvolvido sob a influência de condições favoráveis
D .:ri Acaso não foi
;uja natureza desconhecemos.2sT
5 ú'-) Renascimento,
t as lórmulas clássi-
É:r:o" que sobrevi-
ec'i : I ìb

ra::-1s também vêm


B::,itento. Sua aná-
rh..:lar-a de "forma-
t=,;. portanto, não
I ::1tes, o elemento
Ê- :or conseguinte,
norro". Essa seria,
x::lco da evolução.
úa- .t
modelos pos-
itLo;rever a histori-
n;jo por isso. Sua
E -': rnal-estares da
n:--reres perdidos"
lc:;ra biológica do
I

F
:

br, i. a aparição
F;":. das duas fai-

A imagem sobrevivente 73
S exorcismo da Nachleben= Gombrich e panofsky

L::- ie nos interrogar sobre as condições pelas quais, na história da arte,(


nr-; --,-,J63 antiga pode tornar-se capaz de sobreuiuêncìa em alguns casos e de J
-r;: -':titenlo em outros, tentemos situar o próprio destino dessa problemática I
r-i :-::riria da disciplina. -Será--qUç.3 lk3n!-ç!:*--d_..Y.glbqte f.oi compreendida ? '
I -: -:-suns, cerra_lLg111S,r_-P$A.ftfuJLç!ïqaru;:.."çerrame.nt-e 4{o. Vejamos alguns
:r =::::lOS.
,,];ando Julius von Schlosser publicou Histórìa do retrato de cera, em
:
- . -. ficou claro que o vocabulário da sobrevivência tomado
- emprestado de
-','--'r. mas sobretudo de ì7arburg, de quem Schlosser era amigo238 - tinha
::E:til a única via teórica possível para compreender o fenômeno mais estra-
--: da escultura de cera, ou seja, sua longa duração, sua resistência à história
- -; :stilos, sua capacidade de sobreviver sem evoluir
de forma significativa.23e
:i-.'rSSCr compreendia que a história das imagens não tinha nada de "história
::.::ral" e era, sim, uma elaboração, uma "construção metodológica,, lein
^:-;:','tlìsches Prciparat] que escapava às leis do "evolucionismo" banal, o que
-.:i:caria, no fim do livro, sua crítica inapelável às "pretensões teleológicas"
:a ::lo r-asariano.2ao
>;m dúvida, schlosser deixou em estado bruto - mais por modéstia, aliás,
' .;ue por ignorância - certo número de problemas teóricos inerentes âo mo-
-=-,-' da sobrevivência. Mas uma ideia forte começou a ganhar corpo:a-dÊ41ÀR.-í
/ Íll
;; ; ;rte tem h!çJ,ptje.ías-,j.mÃ&eg1.-p-e(..Suq t/ez,..l_ê;y-n ço-.b1eyiu-Qncias que as ..des-_
:=:lt*.ggJ_:{Sam;qas-.d.a.g.sf914 h.4!itua!.das.obrag de arte. Sua permanên- f
--: iem como contrapartida o desprezo que lhes vota uma história "elevada"
-'s ''estilos
artísticos".2iÉ pqf ir^qg q9ç- e.3,1Í_íÍ14
./g.L9yraq9 !9. c-qra, duranre
:,1!gs anoúo_i mais louyad4 p.,qq attrsp_ó.lpges. que por hist-oria.doÍes da.arte,
E provável que Edgar \7ind, na questão dos modelos de rempo, nuncâ
se tenha arriscado a escolhas teóricas tão radicais, tão exploratórias quanto
as de \Tarburg e schlosser. Mas entendeq,!Ìutg-b_g!l,q-u_q-"-palaura sobreuì-
.
t'encia d,evia,ser*usada.-pa;;ïé-;;lã.tíiüá u,"jogi."-]: b-urraÌ, ,.euando

f "Corrente dominante", em inglôs no original. f N.T. I

A rmagem sobrevivente
falamos da 'sobrevivência da Antiguidade"', escfeveu em L934, "entende-
mos por isso que os símbolos criados pelos antigos continuaram a exercef
seu poder sobre sucessivas geraçòes; mas o que entendemos pela palavra
'continuar'?" \lind tratou de apontar que a sobrevivência pressupunha um
conjunto de operações em que entravam em acordo o esquecimento, a trans-
formação do sentido, a lembrança provocada, a recordação inopinada etc.,
devendo essa complexidade lembrar-nos o caráter cwltwral, não natural, da
temporalidade em questão.242'l7ind criticou aí não apenas a "história imanen-
te" de Wôlfflin, mas também a "continuidade histórica" lbistorical continuity)
em geral, que ignora algo de que toda sobrevivência é palco: um jogo de "pau-
sas" e "crises", de "saltos" e "retornos periódicos" lperiodic reuersionsl, de
tudo que forma não uma nalrativâ da história, mas uma meada da memória
lmemory-mnemosynel. Não uma sucessão de fatos artísticos, mâs uma teoria
da complexidade simbólica.2a3
Era impossível ser mais claro quanto à crítica do historicismo contída na
própria hipótese da sobrevivência. Gertrud Bing assinalou muito bem a situa-
ção paradoral de \Tarburg na epistemologia das ciências históricas (creio que
poderíamos tecef um comentário análogo a propósito de Michel Foucault):
por um lado, sucedia-lhe ser incompleto, parcial ou até equivocado quanto a
certos fatos históricos; por outro, sua hipótese sobre a memória - o tipo espe-
cífico de memória que a Nachleben pressupõe - teria modificado em profun-
didade a própria compreensão do que é um fenômeno histórico. Significativa-
-r mente, Gertrud Bing insistiu na maneira pela qual a Nachlehen transfoÍma
todn a nossa ideia de tradição: jánão se trata de um rio contínuo, no qual as
'I da cabeceira para a foz, mas de uma
lcoisas seriam simplesmente transmitidas
I diaÌetica tensa. um drama
encenado entre o curso do rio e seus próprios rede-
Sflalter Benjamin, mais uma vez constatamos, não se afastou mui-
{moinhos.toa
'to dessa maneira de pensar a historicidade.2a5

Mas é preciso dizer que essa lição foi pouco seguida. Muitas vezes, o historia-
dor prefere não correr o risco de se enganar: um fato exato, a seus olhos, vale
bem mais que uma hipótese incerta por natureza. Chamemos isso de modéstia
científica - ou o chamemos de covardia, ou até de preguiça filosófica. Pior que
tudogum ódio positivlsta po{ quglqg.g.r.'ftgo-fil". Em 1970, Gombrich quis
concluir sua biografia com o que chamou de uma "perspectivação" da obra
warburguiana: nela se intui uma estranha vontade de "matar o pai", um dese-
jo certeiro de que o fantasma - como o próprio \Tarburg se definira em 1'924

Georqes Didi-Huberman
t 1934, "entende- -não uoltasse mais. E que, com ele, a sobreuiuência,hípítese "ultrapassada",
ir;aram a exercer deixasse um pouco o seu eterno retorno nas ideias dissimuladas dos histo-
:nL'ìs pela palavra riadores da arte.2a6
ir :iessupunha um Para chegar a esse fim, duas operações terão sido necessárias. A primeira
f
r.:inento, a trans- consistiu em inualidar d estrutura dialética da sobreuiuência, isto é, em negar I
ã,:, rnoprnada etc., que um ritmo duplo. ferto de sobreuiuencias e renascìmcntos. organir"tr. -. I
rJ. rão natural, da tornasse impura, híbrida - qualquer temporalidade das imagens-Jar-u q"rlro, I
r -:istória imanen- Golfbqú*gqlg_ìilg" qry alegq4.g,ue- a Nachleben de 'ï7arburg, afinal de con-
k ,:c,tl continuityf tas, pqdia-rcduz,irs-e- simplesmente à chamada reuìual.za7 A segunda operação
r :::r iogo de "pau- consistiu em inualidar a estruturd anacrônica da sobreuiuência: para isso, bas-
>i:: ,et,ersions], de tou voltar a Springer e re-periodizar a dístínção entre sobrevivência e renasci-
ae.ia da memória mento. Ou seja, reduzi-la, pura e simplesmente, a uma distinção cronológica
s. :ras uma teoria entre Idade Média e Renascimento. Assim, Gombrich acabou distinguindo a
obscura "tenacidade" das sobrevivências medievais e a "flexibilidade" inven-
n::s1i10 contida na tiva das imitações all'antìca, que só um Renascimento digno desse nome po-
,Í --iü bem a situa- deria ter produzido a partir do século XV.248
is;-::cas (creio que Desenredar as metamorfoses da sobrevivência equivaleria, tarefaestafante,
p\l ;hel Foucault): a refazer toda a história da disciplina depois de til/arburg. Assinalemos apenas
t ;ado quanto a os referenciais mais marcantes. No início da década de 1.920, Adolph Golds-
:,r - o tipo espe- chmidt publicou, no primeiro volume das Vortrcige der Bìbliotbek'Warburg,
:.jo em profun- um artigo sobre "A sobrevivência das formas antigas na Idade Média": aten-
: . Significativa- tando de imediato paÍa o paradoxo da Nachleben - absolutamente indicativo
j
-. =,r transforma de uma "vida continuada" f\Yeiterlebenl e de uma "morte continuada" fWei-
:,.;o. no qual as tersterbenf -, Goldschmidt tentou estender à ldade Média o que'l7arburg ha-
-- r. mas de uma via identificado em Botticelli, apontando, em especial, o papel expressivo do
r-. rróprios rede- drapeado na arte bizantina.2ae Vinte anos depois, Jean Seznec viria a invocar a
ã ': afastou mui- "sobrevivência dos deuses antigos" como um âÍgumento de perturbação cro-
nológica, mais uma vez destinada a mostrar, na interferêncìa entre ldade Mé-
dia e Renascimento, a amplitude do campo das sobrevivências:

A tradicional antítese entre Idade Média e Renascimento se atenua a medida (


' ::.s. o historia- que conhecemos melhor um e outro: a primeira afigura-se menos sombria e
f
menos estática, o segundo, menos brilhante e menos súbito. Percebemos.
-:. .-.rs olhos, vale I
sobretudo, que a Antiguidade pagã, longe de "renascer" naltâlia do século
..o de modéstia XV, tinha sobrevivido na cultura e na arte medieval; os próprios deuses nào
i

. .,,:ica. Pior que


ressuscitaram, pois nunca haviam desaparecido da memória e da imagina-
" -ombrich quis ção dos homens (...). A diferença dos estilos também nos impede de perce-
,:;ão" da obra ber essa continuidade da tradição, pois a arte italiana dos séculos XV e XVi
::i", um dese- reveste-se de velhos símbolos de uma belezajovem. Mas a dívida do Renas-
:::::1ira em 1,924 cimento para com a Idade Média está inscrita nos textos. Tentaremos mos-

A imagem sobrevivente 77
trar como, através de quais vicissitudes, transmitiu-se de século para século
a herança mitográfica da Antiguidade e como, no declínio do cinquecento,
os grandes tratados sobre os deuses, nos quais se alimentariam o humanis-
mo e a arte de toda a Europa, continuaram a ser tributários das compilações
da Idade Média, completamente impregnados do espírito desta.250

Mas esse tipo de homenagem à lição warburguiana e à impwreza do tempo


d.as imagens constitui apenas uma minoria, como se há de constatar' Sente-se
por toda parte a vontade de definir uma periodização da bistória da arte que
seja cada vez mais clara e distinta, isto é, esquemática e satisfâtória para o
espírito. Em suma, a operação invalidante que Gombrich exprimia com tanta
clareza seria posta em prática, de maneira mais sub-reptícia, em toda uma sé-
rie de deslocâmentos teóricos pelos quais a Nacbleben foi puxada para esque-
mas temporais - e modelos de determinismo - que sua hipótese tivera a virtu-
ì de de quesrionar. Assim, a sobrevivência foi atraídapara a ideia intemporal de
ou pâra a ideia de ciclos eternos) isso para explicar - com pouco
yJ I arqrétipo. "continuidades" e "variações" pelas quais a história das
| .rforço - a mistura de
é inevitavelmente marcada.251
\i-"g.ttt
?, puxou-se a sobrevivência para o lado mais positivista dos restos mdteriais
'n'ï ì du Antig,ridade, ou da questão mais geral das fontes.2s2 Ela também foi puxa-
' I da para o lado mais "formalista" das in/7wênclas.2s3 Depois, para o lado das
I
tradìções iconográficas2s4 e, em geral, das permanências indiscutíveis em que T

certos gêneros artísticos da Antiguidade se mantiveram até a época moder-


na.255 Tudo isso, por fim, virou pâra o lado das teorias sociais da aceitação,
do
"gosto pelo antigo", da imitação ou da simples "referência" àS "normas esti-
ou empregado como palavlS
! lísticas" da Antiguidade.256-C,-onsiderado of2soleto de sua significação teQrica,,4..
*L

r i,,r I parn todo, os fins, e,


de,qualquer modo, despido
'' ' \ Nachleben warlsurguiana deixg-u-de ser discutida.Isso não significa que tenha
' sido assimilada, muito pelo contrário.-Diríamos, antes, que foi exorcizada pela
própria disciplina que lhe devia o conceito histórico de impureza do tempo -
mas que acalsaria por censurá-lo por isso.

>i- >t >l

O grande padre exorcista do nosso dibuk não foi outro - e acaso poderíamos
duvidar disso? - senão Erwin Panofsky. Ainda que da boca para fora, o pró-
ii- prio Gombrich seria obrigado a admitir: foi principalmente com Panofsky que
uma "perspectivação" da obra warburguiana estabeleceu' para gerações de
historiadores da arte, a invalidação da Ì'lacbleben, seu ritual teórico de exor-
' cismo.257 em 1,92L apenâs quinze anos depois da conferência de \Tarburg
Já -

Georges Didi-Huberman
n:,:' para século ' 'rre "Dürer e a Antiguidade italiana" -, pa4o.fsky puhlicou o artigo iiDürer
lr. uinquecento, =?lnligudâde-eÌássiedl,parecidodemais ío rírLrlo para não rer sido um rival
Éa::: o humanis- {rÌ-ero-2-r::Nele, a problemática da sobreuiuência, apesar de todas as homena-7
d":';ompilações :;:rs de praxe, já cedeu lugar a uma problemática da influência. e a questão do ì
!-..:'r :;tético, ligada como podia estar, em 'süarburg, ao dionisíaco nietzschiano, i
;;deu lugar â uma problemática datipifìcação e do "meio-termo", que ui.ram j
i::t,eza do tempo
cr-::tatar. Sente-se
::oiar algumas referências ao "belo ideal" em Kant e na retórica clássica.2.te j
\o necrológio escrito por Panofsky em 1929, a expressão crucial do Haupt-t
ft. "i,r da arte que
he::.tatória para o
:-'blem de ì7arburg, a expressão Ì,Jachleben der Antike, não aparece uma
::-rica vez: em lugar de toda "sobrevivência", jâ não se trata senão de,,heran-
$::nia com tanta ;z- fErbteil des Altertum.s] e de "história da aceitação" da Anrigu id,ade fRezep-
=r toda uma sé- ::
r-:Ja para esque- 'nsgeschicbte der Antike).260 Depois, unindo esforços com Fritz saxl, que já
:inÌava bìstoricizar o máximo possível - em si, uma tentativa legítima os es-
: :l\'era a Vlftu- -
Jiemas conceituais warburguianos,26l Panofsky publicou em 1933, no boletim
: intemporal de
r:: - com pouco -:;ntífico do Metropolitan Museum de Nova york, um longo artigo sobre ,,A
:::rrologia clássica na arte medieval". Foi sua primeira publicação importante
=n inglês,262 seu visto de entrada paÍa um novo contexto intelectual e institu-
-:stos mdtermxs ;:rrnal que transformaria seu exílio (a fuga da Alemanha nazista) em império
sua incontestável dominação sobre a história da arte no meio universitário).
t-::::'5ém foi puxa-
E possível - e. até certo ponro. pertinente ler esse artigo como um prolon-\
:.rra o lado das -
l\:tlvels em que .;mento dos trabalhos de \ü/arburg sobre a "sobrevivência dos deuses antl- |
: -poca moder- :(ls'': Panofsky e Saxl contentaram-se, aparentemente, em aplicar a ideia da
I

:z .tceitação, do
\:chleben a um campo cronológico em que o próprio warburg nào havia I
::abalhado diretamente. Desde o começo, portanto, reservou-se um lugar prru I
:. "normaS esti-
: --' ;omo palavra - sobrevivência, um lugar que "reprovaria" - porém, parcialmente - o ponto
:-3çao teorlca) â...- -r: r'ista da história vasariana:
.--:lica que tenha os primeiros italianos a escreveÍem sobre a história da arte, como Ghiberti,
'.
=torcìzada pela -\lberti e, sobretudo, Giorgio vasari, pensavam que a arre cÌássica tinha
-:=za do tempo - sido abandonada no início da era cristã e só havia voltado à tona quando,
nos séculos XIV e XV, serviu de base para o que se costuma chamar de
Renascimento. (...) Pensando dessa maneira, tais escritores estavam simul-
taneamente certos e errados. Errados no sentido de que existiam inúmeros
laços entre a Idade Média e o Renascimento (...). As concepções clássicas
i-.so poderíamos persistiram durante toda a Idade Média fclassìcal conceptions suruiued
:::a fora, o pró- throwghout the Middle Agesl: concepções literárias, filosóficas, científicas e
c -:r Panofsky que artísticas. Elas foram de especial importância depois de carlos Magno, em
i ;::a gerações de cujo reinado um reflorescimento clássico lclassical reuìual] foi decidido e
:-órico de exor- implementado em quase todos os campos culturais. Mas esses primeiros
''üíarburg
:-:ìa de autores estavam certos no sentido de que as formas artísticas em que as

A imâgem sobrevivente
concepções clássicas haviam
persistido fpersìsted] duranre
eram totarmente diferentes a Idade Média
de nossas ideias nru"i, ,obr.
ideias que nâo apareceram a Antiguidade,
antes do Renascimento, em
tido ["Renaissance" ìn ìts true seu verdadeiro sen-
sensel d,er"-rr"r.i-.rra-an
bìrth" of antiquìtyl como fenômeno err,igu idade [,,re_
histórico rr.- a.n"ia o fas a weil_cJe_
fined historìcal phenomenonf .263

r Logo se Dressente que essa introdução-no


assunto implica não só um pro-
tt! | lo"ga-.,rro, mas também uma bifurcação ou até uma possíveÌ
ìnuersão d,a
I visâo warburguiana, da qual, no .r,r"nro, panofsky. s""Ì se afirmam ,,segui_
j dores" ffottowersl..2oo o
: enrre sobreuìuencìa e renascìmento. o que
que ã ot.r""r"a"t^ffi;;;;ffi"
,,r" bipolarização
é invert;ão ou ,6nndonado?
I estrutural ou sincrônico, o teor não cronorógico o teor
- e, em síntes e, anacrônico _
I desse ritmo duplo. Desse ponto em d. coisas se separam com mais
dez no valor e ,-ro ,.*po, eras niti-
se 1rr"."jilll-"t
passaaseracatesoriainf eriord"hir,óïï:ï;::,ïï'.'r*^irl^'í!'ní::í,?i:
período de "convenções"
arrísricas, de "d.g..r.r[ã-ilogr.rriu" ,,
degeneration] das normas crássicas fgradwar
e, por fim, d. i"-.rrtauel ,,dissociação,,
entre forma e conreúd.o: "(...)
o espírito.medieval
unidade da forma e do rema fél ínc.apaz de rearizar (...) a
clássicos fìncapabÈ
classical form and classical
subject matterl..zes
] ,"oïìring... the unìty of
O renascimento se tornará _ ou
melho r, voltaráa se to
superior da história da arre que
faz'do eua*rocen." ;;ïË;;:"'r::r:::
período de auge arrísrico,
de autenticidade arqu.orógica
estilística... euase chegaríamos l,]ìrrrrrro, d,e pureza
u dir.f ao rer panoflky.
menro "em seu verdadeiro senrido", s-n"t, que o Renasci_
rico bem definido", teria sido
o-R.rr"r.i-.;;;:.-. ..fenômeno
histó_
o único período que viu nasceï
verdadeiro e "rivre". Livre, um homem
notadamente, dos faráos simbàrico,
venções figurativas: ou das con_

0. temas mitotógicos clássicos que


lj.ïiitijlï:ïï se realizou no Renas_

qu e d ese
"
m
de sua capa proretora
b o. : ;: i: :ï iï:ï: ;:'J# ffïff H",i :,ïï :m.fl
de simbolir_.;;;;;::::ì::t:::
stripped;f h;s protecting couer .r oir'.iï,,):ï;::i:i:r,::,:ï,'ïr1-:,u"*t
Talvez nem todas as tensões
sejam afastadas (panofsky
sentido' a contra-Reforma, e saxr evocam, nesse
or r.iu, o fi* doRenascimento),
te à "harmonia clássica" que mas é unicamen-
se o privilégio de, no tempo do
mento in its true se:se) haver "t.ruri Renasci_
superado as crises artísticas
tempos de sobrevivência e cuÌturais que os
haviam pela falta, p"iuì"i"tiu"...,
"t"rt"do

Georges Didi-Huberman
rc:e a ldade Média il;::i:'': :Denas uma dificuldade conceitual a resolver: o renascimento opu-
t':e a Antiguidade, ltil[ü.-: : . rrer-ivência em dois planos que não podiam se corroborar com
s"u Yerdadeiro sen- -4- -:-=. \ oposição hierárquica nào coincidia fatarmente com a sucessâo
la Àntiguida de l" re- j:rÍ niÌ ,'---=. Panofsky teria encontrado uma solução eficaz ao distinguir duas
ìn:Jo fas a tuell-de- nrFÍrÍ'r*r: :-:;:oriais diferentes na palavra renascimento:
uma ordem sincrônica,

rp-:;a nào só um pro- 'lÌnurl ::r-:-:J.o" que é o Renascìmento. o que se havia chamado de ,.Renas-
t :ossível inuersão da :ïTrrÉ--- :-::olíngio" não passava, païa panofsky, de uma "renovação". só foi
-Ìnrmrr - --:Ì.1
rr :c afirmam "segui- - seu verdadeiro sentido" o Renascimento dos séculos XV e XVI.268
d: uma bipolarização *.r'ul--:. -: s,rbrevivência, ela ficaria à sombra de sua indeterminação relativa.
*- : .:::: de 1944,
u :'iandonado? O teor Panofsky chamou de renascence [renascença], palavra de
l i lrese, anacronìco - ru*-:-r iiiícil para o frances, o que havia designado até então com o termo
ï."ir, . - j,--:
rF::am com mais niti- -,.:'- o sistema se fecharia em 1960 com Renascimento e renascìmen-
liz,:n. A sobreuiuência ï 'r :-- j-:. ocidental,livro saído de conferências proferidas em 1952 e, portan- \
u ta Idade Média um "Ì . - r,l:nenre amadurecido

p: -,gressiva" lgradwal
durante oito anos consecutivos. panofsky reite-
-i- : :: r'eemência que a "renovação" carolíngia e, de modo geral, todos os &l
r:::r-ei "dissociação" T'T' ::::::fs de "proto-humanismo" que a Idade Média havia conhecido nada
a::.2 de realízar (...) a ì----_- -:: -ri
i "renascrmenfos" no sentido estrito: eram
..
apenas renascenÇas, mo_
*i"::lng... the wnìty of rtr-: ' :arciais de "retorno à Antiguidade".270
]-;':r. é c,o,qpreensível que, para resolver o problema fundamental enun-
!:r:nar - a categoria *-;:- :rr início-, ou seja, a relação entÍe continuidade e mudança na história,
e;,Cinquecentoum -l i:. :s-r' tenha instaurado um quadro de interigibilidade parecido,
por sua
c- : rfianto, de pureza :*i:-':lra ternária, com a famosa distinção "semiológica,', enunciada na intro-
c ::rl. que o Renasci- :-:-. -' Jos Ensaios de ìconologid, entre "tema primário',, ..tema convencio-
r- "ienomeno histó- ;:-. ; ':significação intrínseca'.271 por isso uma hierarquia em três termos
h ::.:scer um homem ::.r: a organizar toda a "teoria do tempo histórico" segundo panofsky: no
h: .icos ou das con- ::-;. incontra-se o Renascìmento, cuja inicial maiúscula indica a centralidade
:: :ológica e a dignidade
intemporal. uma dignidade que panofsky qualifica
:'-: ;rpressões quase hegelianas: "autorrealização" r "conscientização", ..inte-
br=:.,:zou no Renas-
[ :-: er olução geral -:.io a realrdade". "fenômeno toral" etc.2 / o Renascimento, para panofsky ï
irr:-:ral, despojado
- 1:sari Íeria razão, portanto, ele que dizia a mesma coisa -, era o desperto,, I
Y--
'..;
natural being " arte para suâ própria consciência, ou seja, para sua própria história . ,uu
I
/: ,:.tlìty).2o" l:':rpria "realização" ou significação ideal. I

I Para antecipar isso, há diferentes "renovações" parciais, ou renascerrrnr, I


i-:rl evoçamì nesse
|c ì:È. na longa duração medieval, abalaram a história das formas como outros
.maséunicamen-
fr :::rtos momentos de redespertar para o classicismo.2T3 por último, existe
o
p :=npo do Renasci- -"ndo de sono do qual se desvinculam todos esses momentos. panofsky hesita
p-- - ;ulturais que os
:-=:ati'a.rot
"n nomeá-lo, em lhe dar um estatuto teórico; mal chega a falar, numa virada
f ;e página, em "período de incuba Ção" .zt+ Mas está claro que não se trata de
t
I
I A rmaqem sobrevivente 81
t
As últimas frases de Renas-
outra coisa senão a sobreuiuêncla warburguiana'
o "fantasma não redimi-
cimento e rendscimezÍos opõem significativamente
ideal, intangível, Pura,
do" dessa sobrevivência à alma enfim ressuscitada -
imortal, onipresente - do classictsmo all'antica:
e procu-
A rdade Média havia deixado insepulta a Antiguidade lunburiedl
rava,alternadamente,fazerrevivereexorcizarseucadáver'ORenascimen-
tochorousobreseutúmuloetentouressuscitar-lheaalma|resttrrectits
soezl].Nummomentoqueoclestinoquistornarfavorável'conseguiufazê-
era tão concreto e' ao
-lo. Por isso o conceito medieval de Antiguidade
incomplete and distorted]'
mesmo tempo, ,a. i^to-pfeto e deturpado [so
que se formou progressivamente ao lon-
ao passo que o conceito moderno'
é grande e coerente' mas' digamos'
go dos últimos três ou quatro 'ét"io"
abstrato|consistentbwt.'.abstracl].Porissoasrenovaçõesmedievaisforam
trans:itórias,enquantooRenascimentofoipermanente'Asalmasressuscita-
dassãointangíveis,mastêmavantâgemdaimortalidadeedaonipresença
s

limm o r t ality an d ctmnip


r e s en c e]'21

É como se nessas frases ouvíssemos o eco


das duas exaltações simétricas -
idealistas,umaeoutra-deumVasarieum\íinckelmann...Morteaosfantas-
maserrantesesobreviventes!Vivamasalmasressuscitadaseimortais!oque
aíseexpressaéumaescolhaestética,comcerteza.Ouumaescolhafantasmá-
nesse momento' num discurso
tica. Nesse sentido, é legítima' Porém aparece'
da arte como ciência obietiva. Teve
da verdade que pretendã frrrrdn, a história
comoefeitoorientarestaúltimaparaoestudode..fenômenoshistóricosbem
e não para o tempo incerto
definidos" lwelt-defined historícàl phenctmendl'
dassobrevivências.Guardouasideiasimortaisejogouforatodososfantas-
um tempo sem impurezas'
mas de imagens. Quis reconhecer no Renascimento
a homogeneidade, a "reintegração"
um período-padrão em que foram legíveis
portanto' à intuição warburguiana
das formas e dos conteúdos' Renunciou'
fundamental.
Veritasfiliatemporis,dizoantigoprovérbio'276Masaquestão'paraohis-
ou tempos' no plural - a verdade
toriador, é saber exatamente de clual tempo -
comeÇou por reconhecer a
é ,,filha,,. como discípulo de \farburg, Panofsky
das imagens: num texto do período
complexidacle do anacronismo do tempo
,,o problema do tempo histórico", não por acaso, ele tomou um
alemão sobre
teórica çlue, na história da
exemplo medievaÌ furn introdurii u dificuldade
arte, é inerente a qualquer modelo de evolução:
senão Reims, com efeito' urm coniunto
de esculturas
Em que outro lugar-.,p"tátulo
proporciona r.r- de tamanha riqueza? Num tecido de infinita

82 Georges Dìdi-Huberman

&
--,::s;encia, é como se víssemos os mais diversos fios ora se entrelaçarem,
ta>::a não redimi- -::ormarem uma trama rigorosa. ora se afastarern. para nào se unirem
- -::;a mais. Por isso só, a diferença de qualidade, em parte consid erável,
f, .:::angível, pura, iá
. -:roíbe supor que tenha havido uma linha evolutiva única. Além disso,
r
I :, ::::.Ì. as diferentes direções estilísticas sempre se desenvolveram no mes-
iÍ:,-::Jl e procu- :: .;rtido, interpenetraram-se igualmente e continuaram a existir umas ao
lL'- Renascimen- -:- ias outras, a despeito de todos os vaivéns entrecruzados. (...) Ao que
b: ,esttrrect ìts ::--:.-. essa infinita variedade de "sistemas de referência" que o historiador
:seguiu fazê- ::: J:ante de si, numa etapa primária, e que constitui um mundo, equivale
; ':lcreto e, ao .r. -:: ceos monstruoso que é, por assim dizer, impossível de ordenar. (...)
:.:-'l distorted], r-:-:.o não nos encontramos então diante de um mundo sem nenhuma ho-
:::rente ao lon- : :rneidade, no qual coabitam sistemas de referências cristalizados, segun-
::as, digamos, : - ,s termos de Simmel, num isolamento "que se basta a si mesmo" e numa
r=:ielais foram ; :,:ularidade irracional ?277
:1:S ressusclta-
-
-: onipresença i -,:tanto, Panofsky realmente começou - com \íarburg - por reconhecer a
-.:::-za do tempo. Mas teria acabado por extirpá-la, resolvê-la, incluila
::j:. -squema ordenado que reatou a ambição estética das eras douradas (o
:.: I'es simétricas - -r.=:::scimento é uma delas), bem como a ambição histórica dos "períodos de
),1 ,rne aos fantas-
:=:,:ência". Esse texto de 1931 termina com a esperança de que uma "crono-
= ::rortais! O que .:r.i" das esculturas de Reims possa um dia esclarecer e hierarquizar a multi-
;'i- ,,Ìha fantasmá- :-,;idade dos sistemas de referência estilísticos.278 É um modo de exprimir um
: . num discurso
:=.ljo do historiador idealista ou positivista: de que os tempos, uma vez anâ-
;-.: objetiva. Teve
-:r.Jos, voltem a se tornar "puros", de que as sobrevivências se eliminem lo-
. :ristóricos bem
iempo incerto -ramente da história, tal como a lia seria eliminada de um bom vinho. Mas
-=:á que isso é sequer possível? Só mesmo vinhos ideais - os vinhos sem sabor
i :-,dos os fantas- -; que podem não ter nenhuma lia, podem ser isentos dessa impureza que, de
::nt ìmpurezas, ;=na maneira, lhes dá estilo e uida.
: *reintegração"
ì - ri arburguiana

:"-:aÌ - a verdade
:" ': reconhecer a
:-xto do período
-. ele tomou um
. na história da

:: esculturas
:: ,, de infinita

A magem sobrevivente
&:nmrht/rches Leben: formas, forças e o inconsciente do tempo

iim T*11*'o a Panofsky, portanto, uma palavra cai no esquecimento: a pala-


ç6 ',---'-,'ierz, "sobrevivência". E com ela, com sua impureza essencial, cai
uut;i
".-;::da palavra nela contida: Leben, a "vida". panofskg não há dúvida, }*.r{"
.i :,*=::do compreender a simples "significação" fmeaning] das imagens.
ffi,;,*: por sua vez, também queria compreende r a "vjda" deras, essa ',for-
--:.-roder"
;ü - - fKraft, Macht) impessoal de que às vezes ele fala, mas que
ü.s;:::::r.amente renuncia a definir. De onde terá extraído esse vocabulário
ïir' r' -;o ariomatizado, mas tão importante? Antes de tudo, de Burckhardt,
-:r :, --:r1 e1e se comp razía em reivindicar a busca - concernente ao papel dos
*:r':::;;1os efêmeros na cultura visual renascentista - de uma ,,verdadeira
;i:,::.::-:Ìr da vida para a arte" fein wabrer übergang aus dem Leben in die
n.:o':-.;'.:-'-!s$_e1-c.qmo-para Burckhardt, a arre nà9 era, para
\7arburg, uma
i .::- -.. qu-e9_!4g*d-g.gpsqg_, g1"q,s sim urna quesrã o uìtal. Tampouco a história
era
: o -= rre uma simples questão cronológica, mas antes um remoinho, um deba-
-: :. -r'ida" na longa duração das culturas.
i'-ira warburg, a história das imagens foi o que já tinha sido para Burckhar-
:: :'-ìrém não foi mais, a partir de Panofsky): uma "questão de vida" e, já que
-.sa ''r'ida" a morte é onipresente, de "sobrevidas", de sobrevivências. o
:-,::ortismo que se expressa aí não tem mais nada a ver com o de um vasari,
- ' :Ìlesmo o de um rwinckelmann. E que a "vida" de que se tÍata não funciona
;:::- o elemento não natural que é exigido, em Burckhardt e ì7arburg, pela
:r:a de cultura; também não funciona sem o elemento de ìmpureza exigido,
':: cada um deles, pela própria ideia de tempo histórico. Esbocemos uma ca-
:-crerização dessa enigmâtica "vida": ela pode ser apreendida, ao que me
:lrece' ao mesmo tempo como um jogo de funções (que exige uma abordagem
-::riropológica), como um jogo de formas (que exige uma abordagem morfoló-
rica) e, por fim, como um jogo de forças (que exige uma abordagem dinâmica
ìru energética).
A "vida" éum jogo de funções por ser a vida de uma cultura.Isso não es-
.apou aos primeiros leitores de Burckhardt, cuja antropologia filosófica era
lida nos termos ainda vagos da "alma" ou do "estado íntimo da consciência
de um povo". Émile Gebhart escreveu em 18g7:

A rmagem sobrevívente 85
É à alma italiana que ele pergunra pelo segredo do Renascimenro.
rror meio
da palavra cultura, quis expressar o estado íntimo da consciência
de um
povo. Para ele, todos os fatos importantes dessa histór:ia
a política, a eru_
-
dição, a arte' a moral, o
prazer, a rerigião, a superstição
ação de algumas forças uiuas (...).zst)
- manifestam a

Sabemos que a Kwburgeschichte de Burckhardt foi revisitada pela história


social,28l assim como a Kulturwissenschaft de rvarburg foi revisitada pela ico_
nologia panofskiana e pela história social da arre; de suas ambiguida,
"lgÀu,
des deixaram de existir (e é bom que seja assim), mas com elas se foram tam-
bém algumas de suas grandes hipóteses teóricas, de suas artìculações
críticas
mais pertinentes. Indiquemos algumas que ì7arburg, de modo
mais ou menos
explícito, viria a retomaÍ por conta própria.
A "vida" como jogo de funções, para Burckhardt, a princípio não é a dos
fatos nem a dos sistemas: é preciso farar da "vida,,e de seu
moyimento con-
creto na cultura porque a história positivista tende a derrubar
tudo, arrastan-
do-o em direção ao enunciado do fato cronorógico, enquanro
a história idea-
lista - a de Hegel, em primeiro lugar tende, por sua ,r),
- f tudo arçar-se
para o enunciado de verdades demasiado abstratas. Em^ambos ^t* os casos,
o
próprio tempo é desencarnado, quando se quer simplificar, isto
é, negar sua
compleridade. A "vida como cultura" seria, diferentemente,
uma articuÌação
crítica destinada a romper o dilema esquemático e, portanto,
trivial da histó-
ria-natureza e da história-ideia:

A história é outra coisa que nào a narur eza


ldie Geschichte ìst aber etwds
dnderes als dìe Natur]; sua maneira de produzir, de fazet
nâscer e perecer,
é diferente. (...) um instinto primordial impele a natureza
a criar de acordo
com uma lógÌca orgânica de infinitas var:iedades de espécies,
que comportam
uma grande similitude de indivíduos. A variedade (no interior
da espécie
humana, é verdade) está longe de ser tão grande na história;
aqui não há
limites claros, mas indivíduos qlÌe se diferenciam, isto é, que
se desenvolvem
ao se opor. A natureza cria de uma vez por todas aÌguns
tipos (invertebrados
e vertebrados. far-ierógamos e criptógamos etc.); num
povo, ao contrário, o
organismo menos representa um tipo do que um produto
em formação. (...)
Renunciamos iguaÌmente a toda sistemática uerzìchten
lwìr ferner auf alres
Systematìschel, não tendo a pretensão de destacar ideias
gerais da história
universal; vamos nos limitar a observar e a estabelecer
cortes nas direções
mais variadas, querendo evitar sobretuc{o a exposição
de uma fiÌosofia da
história. (...) Hegel fala em "metas de sabedoria.,.rrrn"
e erige suas refle-
xões numa teodiceia, alicerçando-se na ideia do eremento
afirmativo que
subordina, domina e suprime o elemento negativo. (...)
ora, não somos

Georges Didi Huberman


;:-renro. Por meio --r;iados nos desígnios da eterna sabedoria. Essa concepção arrojada de um
rr.ciência de um :-:no providencial leva â erros, já que as próprias premissas são inexatas.2s2
: r'olítica, a eru-
.^om essa dupla recusa, Burckhardt entrou na "terceira via" de uma nova
- manifestam a
-:-:'ão da história.28r uma redação cujas escolhas fundamentais ìTarburg
;.-.: efetivamente ampliado: ser filólogo para além dos fatos (porque os fatos
,::-.-da pela história =.=::r primeiro pelas questões fundamentais que põem em prática), ser filóso-
::i isitada pela ico- : :-ìra a1ém dos sistemas (porque as questões fundamentais valem primeiro
i= suas ambiguida- : -: >uas implementações singulares na história). seria esta a "terceira via":
:.,:s se foram tam- :r-:- recusa das teleologias e dos pessimismos absolutos, um reconhecimento,
;-: : : trlações crítìcas :: menos) da "existência" fDasein, Leben] histórica das culturas, isto é, de
oi:, mais ou menos :-: .omplexidade. Burckhardt chegou a dizet que a história autêntica era de-
. --::da tanto pelas "ideias" provenientes de "teorias preconcebidas" quanto

:::ioionãoéados :.,: nrópria "cronologia"... pois a história é esse esforço de conhecimento que
E- :ror.imento con- - . desaloja de nossa incapacidade essencial de "compreender o variado, o
ri'-i: rudo, arrastan- .: :e ntal" funsere'tJnfrihigkeìt des Verstìindnisses für das Bunte, Zufcilligel.2sa
r-:,ahistóriaidea- -\ssim se instaura uma estranha dialética dos tempos, que não necessita do
r --.zer tudo alçar-se - r-n" nem do "mal", nem de "inícios" (a
fonte originár:ia de que tudo deriva-
=::i-os os casos, o :-: nem de "fins" (o sentido da história para o qual tudo convergiria). Não
N.:- ,:io é, negar sua .;essita de nada disso para expressar a compiexidade - a impureza de sua
-
f;. -:Ìna articulação --,rda". Ela é feita de rizomas, repetições, sintomas. A história
local - ou patri-
u: . :rir-ial da histó- -:r.a. olr racial - lhe é estranha, pois ela não contém a ideia das relações e das
*-:<rencas. A história universal já não é seu objeto. Burckhardt renuncia de
.:::emão a procurar uma fórmula geral para o "sistema" de todos esses rizomas.
b:. ::: eber etwas
f:,:::-r e pereCert
os filósofos da história, obrigados a crrar hipóteses sobre as origens, deve-
,ã. ,--:-lr de acordo
riam, por conseguinte, também fazer estimativas sobre o futuro. Em contra-
f,. : ..- aomportam
lartida, podemos prescindir dessas teorias sobre os primórdios, e ninguém
E:: ,: da espécie pode nos exigir um ensino escatológico. (...) os problemas da influência do
úr.; -..qui não há
soÌ e do clima, (...) tratados à guisa de introdução pelos filósofos da história,
E ,. iesenvolvem
não nos dizem respeito; por isso os negligenciaremos por completo, do mes-
p* -r"'ertebrados
mo modo que todas as teorias cósmicas e raciais, a geografia dos três conti-
b- : ;ontrário, o
nentes antigos etc. Em todas as ciências, exceto na história, pode-se começâr
c::.:n-ração. (...)
pelo começo. É q.re as ideias que fazemos do passado, na maior parte do
È '=-,ter auf alles
tempo, são construções do nosso espírito ou sìmples reflexos, como veremos
ig:::. da história
a propósito do Estado. o que é váiido para um povo ou uma raca raramen-
.. ias direções
te o é para outros, e o que acreditamos ser um estado inicial nunca passa de
- : irlosofia da
:. :. SuaS refle- um estágio já muito evoluído. (...) o caráter mais acessível da história local
provém de uma ilusão de óptica, de uma diligência mais acentuada de nossa
parte, que pode ser acompanhada por uma grande cegueira.z85

A imagem sobrevivente 87
Essa reflexão sobre as relações do local e do global não se dava, em Bur-
ckhardt, sem uma reflexão sobre as relações do deuir e da estabìlidade: a
"vida" da história não é apenas um jogo espacial de acontecimentos indivi-
duais e contextuais. É também, com certeza, um iogo do tempo, a dialética do
que se modifica e do que resiste a mudar.2s6 Ser historiador' para Burckhardt,
não significa apenas compor a narrativa das coisas que mudam ao se sucede-
rem: é preciso sobretudo "analisar a influência recíproca' constante e progres-
siva (...) do elemento móvel lBewegtes] nas forças estáveis lStabilesf".287 Nis-
so, a
,,vida" da história realmente decorre de uma morfologia: ela é um iogo
de formas,se entendermos pol "formas" a cristalização sensível de tal dialéti-
ca ou "influência recíProca".

(...) como o tempo sempre arfasta em sua esteira as formas ldie Formen]
que são o esteio da vida espiritual ldas geistige Lebenf, a primeira tarefa do
historiador será separar os dois aspectos) em suma idênticos' das coisas' Ele
mostrará, primeiro, que todas as manifestações do espírito, seia em que
domínio foq têm um lado histórico leine geschichtliche Seitef q.u:e as faz
parecerem passageiras, limitadas e condicionadas por uma realidade que
nos escapa, e, segundo, que todos os eventos têm um lado espiritualfeine
geìstige ieitel pelo qual participam da imortalidade. O espírito é mutável,
mas não é efêmero.288

Foi o campo da cultura que Burckhardt - como historiador e antropólogo, não


como filósofo - visou com a palavra espírìto. Antes, pois, que \Tarburg tivesse
que reivindicar o status de "psico-historiador", Burckhardt 1áhavía pensado
u Krltrrgnrchichte como umâ morfologia, ou até uma estética das "formas
psíquicas,, da cultura. Era uma questão central para todo o seu projeto histó-
.i.o, .1. reconheceu, mas não à moda "romântico-fantasiosa" lnìcbt etwa
romantisch,phantastischl, porém à maneira como se observaria o "maravilho-
so processo da metamorfose de uma crisálid a" fals einem wwndersamen Pro-
zess uon Verpuppungen].28'Por isso Burckhardt pôde encher
seus cadelnos
com todas essas anotações visuais (fig. B): a cultura de uma época situa-se em
suas fontes escritas e nos acontecimentos de sua história, mas também em SeuS
quadros, seus ornamentos arquitetônicos, seus detalhes do vestuário, suas
puisag.rrs remoldadas pelo homem, sua imaginação heráldica, ou em suas fi-
guras mais marginais, como os grotescost por exemplo'2e0
Teve-se uma compfeensãomuito ptecâtía de Burckhardt quando se quis
imputar sua estetização da histórìa a uma ftaqueza epistemológica, a uma

88 Georges Didi-Huberman
.'.'|:'.]w
ã,r se dava, em Bur- . 't
,tr
r Ja estabilidade: a ---------ì-a
' ,1 t
r;:ecimentos indivi- ' i
' -..-
-.... -.);t;
'.1i
...-.,, t.
..,.]. f, fiË
- t :.
É.-Ìpo, a dialética do -r
t-
-
-. 'i;t-.:..,.,
-t!,.-.tJ
4- .t:
qÌ!
.i-o:..*.
.
I
.:.-.1
sp ,:4., ,t;
Ë. v
l:. para Burckhardt, -l+ras '
'l: '';ì:;-
.t:i:.::,'.."' .fo-,
q#
-: - I,
ulam ao se sucede- tt.ú--^t.. a*rj{
;".o+'f;{ -:}.:È'r, ã-
-,SL 'i'
c :lstante e progres-
s St,tbiles]".287 Nis- ,_g_+F-. UÈ
Ì*i*i
j ^.iì*_
i _.-r,;: ela é um jogo ->);::-..E:i
-:ì --l = .r:
#
.$e.ê
:rs:', el de tal dialéti-

=:-; ldie Formen] *ìa".t. :- ;.rt. ':

p:-reira tarefa do
r'. Jas coisas. Ele
ir-:--. seja em que :: : Burckhardt, Escuburas de Munster, c. 1835. Foll-reto de desenhos extraíclo
-i.;,e] que as faz :. ,:: ;oÌeção intitulada Aherthümer. Basileia, Jacob Burckhardt-Archiv. I'oto.
r: :eaÌidade que :: : 3:rckhardt-Archiv.
l' =spiritual leine
s: ::ro é mutável, ,-:::,:-:.de de amante da arte, a uma inconsequência disciplinar do histo-
*r,; - ::':::.J sensu. Burckhardt não estetiza a história corrro quem se deixasse
r:;'j j-- -- : ;ma embriaguez de esquecimento: simplesmente reconhece
- lição
:.::-,:1 - que a articulação temporal da relação entre devir e estabilidade.
Ía- = ].:;l:ìchte e Typus, é uma articwlação formal, a erecução de um ..pro-
r. ---ntropólogo, não '. -: letamorfose de uma crisálida". Assim, há que se "estetizar" necessa-
q-.= \\'arburg tivesse -:r,r: .ì história: a Kubur, segundo Burckhardt, como que ocupa o lugar da
c: '.i havia pensado --; -- - :a história", segundo Hegel.zer
Não há história possível sem uma his-
s;:,:ai das "formas Ì :: :-: culrura, e não há história da cultura sem uma hìstória da arte aberta
c s:u projeto histó- - -:i: râncias antropológicas e morfológicas das imagens.2e2Tarefa que Bur-
r.- sa" lnìcht etwa -i,.-: ::.ertamente deixou em construção. Tarefa que varburg e wôlfflin,
!::ra o "maravilho- ;:. :-*al à sua maneira, quiseram prolongar, se não concluir.
', :,- :,,t d er sdmen Pro-
--. a tarefa do historiador esteja centraÌmente fadada a uma certa mor-
l;:--r seus cadernos ì -:-: necessária - cuja paisagem crítica conviria desenhar, um dia, desde
ìà -:oca situa-se em r-':rri até carlo Ginzburg, por exemplo - é o que explica também o forte
n r :ambém em seus -:- - : '' rsual do
vocabulário teórico burckhardtiano: nele se constata uma recusa
, i vestuário, suas 'i -::r:a. um recuo diante do apriorì de Kant e da "especulação" de Hegel, e
kL;-.-. ou em suas fi- -::-= :eir-indicação simétrica, parâ o historiador, do "olhar", da .,contempla-
-:-',"' ,.\nschauung] ou da "imaginação" lPhantasiel.2e3 para Burckhardt, a
r:: quando se quis : ': 'lia se construía menos como uma narrativa do que como um ',quadro"
n-:oÌógica, a uma --;--;ì: "Imagens, quadros, é isso que desejo" lBilder Tabreaux, das ist's was

A imaqem sobrevivente 89
'Síarburg reto-
ich mochtel, escreveu ele já em L844, n]uma formulação que
mou por conta própria, antes mesmo de pô-la em prática nas pranchas de seu
aÍlas Mnemosyne.2ea Como não ver, entre outfos exemplos possíveis, que o
claro-escuro, mesmo como escolha cromática, exprime uma forma do tempo
em que o presente da história (o de Mantegna, por exemplo) afirma seu
próprio distanciamento arqueológico, seu próprio anacronismo, sua própria
vocação para fazer com que sobrevivam - como fantasmas - as figuras da
Antiguidade?2e5
Portanto, não há história possível sem uma morfologia das "formas do
tempo". Mas o raciocínio ficaria incompleto sem este esclarecimento essencial:
não há morfologia, ou análise das formas, sem uma dinâmica, ou análise das
forças. Omitir isto é reduzir a morfologia - o que vemos com frequência -
ao
estabelecimento de tipologias estéreis. É s,tpot que âs formas são reflexos de

um tempo, quando elas são, ântes, os restos - risíveis ou sublimes - de um


conflito em ação no tempo. Ou seja, de um iogo de forças. Esta seria, portan-
to, a terceira característica da "Yida" segundo Burckhardt: a dinâmica do
,,tipo,,
fTypus] e do "desenvolvimento" fEntwicklung] constitui o "fenômeno
capital" lHauptphiinomen] da história. Trata-se de um fenômeno tensivo e
oscilatório, produtor de complexidades atemoÍizantes:

A ação desse fenômeno capital ldie \xlirkung des Hauptphiinomensl é a


própria vida históric a [das geschicbtlìche Leben], com sua diversidade com-
plexa, seus disfarces, sua liberdade e seu cerceamento; ora ela âssume o
rosto da multidão, ora o do indivíduo; seu humor oscila do otimismo ao
pessimismo; ela cria e destrói os Estados, os cultos, as civilizações; às vezes,
abandonando-se a impulsos e à fantasia, é um grande mistério para si mes-
ma; outras vezes, é sustentada e acompanhada pela simples reflexão, embo-
ra atoÍmentada, em certos dias, por pfessentimentos do que se realizatá
num futuro distante.2e6

Falar de "vida histórica" lgeschichtliches Lebenf, portanto' é procurar


compreender o tempo como um jogo de "forças" fKràfte, Miichtel ou de "po-
tências" lPotenZenf de onde decorrem, esclarece Burckhardt, "todos os tipos
de formas de vida fLebensformen]".ztt Noutro ponto, ele escreve: "Devemos
nos limitar a constataf as diferentes forças fPotenZen) que surgem de maneira
simultânea ou sucessiva, e a descfevê-las objetivamente."2es Mas e uma tarefa
ârdua,porque uma força sempre tende a se esquivâÍ: é difícil constatá-la quan-
do é muito violenta e onipresente, e difícil constatá-la quando é muito virtual
("em potência") e invisível.2ee Essa dupla significação da palavra potência -
força manifesta e força latente - nada tem de anedótica: ela impõe pelo menos

Georges Didi-Huberman
'S7arburg
' i -le reto- ;.'i: - ,rsequências, duas bifurcações que modificam profundamente nossa
n:s pranchas de seu ritr- :::.i de conceber a historicidade.
lc's possíveis, que o -:- ::imeira implica uma dialética do tempo - justamenre a que tentamos
rr-- iorma do tempo ;::-:-jer na ideia de sintoma. Pela leitura de Burckhardt, essa dialética fun-
xe:rplo) afirma seu - :r: : maneira de um debate sempre reiniciado entre "latêncías,, lLatenzenl
Dtr:sÌrÌo, sua própria : " -:-..-s'' lKrisen]. Não há rempo histórico, de fato, sem um jogo de latências:
rr: s - as figuras da j;sconhecemos completamente o que chamamos de forças latentes
[/a-
:: ,"-.:. jirjliel, materiais ou morais, do mundo, e não somos capazes de pres-
p:: das "formas do r:rr-i ls imprevisíveis contágios espirituais que podem transformá-lo subita-
Ir:;lmentO eSSenCial: -:-,:-."'' ' Essa condição, histórica e coleriva, encontra seu correspondente
ir:,--;. ou análise das :'' * *:;o e individual no fato de que "no homem, nunca sucede uma única
c,-:, frequência - ao :r:--;ade estar ativa poÍ vez; todas estão sempre ativas juntas, mesmo que
r::. são reflexos de --':rabalhe mais debilmente que as outras e atue só no inconsciente lim
n .:'5limes - de um ' *"
- i-. :L' s sterzl do indivíduo'.30 I
tr

6; .:a seria, portan- ulra. toda latência procurâ abrir caminho para a superfície dos eventos: a
r::: a dinâmica do '--:rsi fKrìse) denominaria, em Burckhardt, essa maneira particularmente
E-.:-:l-ri o "fenômeno ::J:z que o tempo tem de fazer surgir - pot contrLtempo, por sintoma - sua
i.- .meno tensivo e :- :ria potência. Pelo menos dois capítulos das Consìderações sobre a histórìa
" inteiramente dedicados a essa questão.3'2 E em toda parte impõe-se a ob-
..:-, acão dialética da relação, muito difícil de se analisar, enrre formas fixas e
7:,'.ìttomensl é a : :Jas que as fazem vacilar, ou entre forças dominantes e formas que as fazem
r: ', -rsidade com- ::: a a SSaf:
;c:::la assume o
h : otimismo ao \a história, a queda é sempre preparada por uma desintegração inrerna,
r'-:;,les; aS vezes' "rm esgotamento. Basta então um pequeno abalo externo para que tudo
ir.- - :' para si mes- desmorone. (...) uma crise que exploda por um morivo qualquer beneficia-
b . ,erão, embo- -se do impulso geral desencadeado por numerosas outras causas; nenhuma
b :-- se realízará das testemunhas é capaz de discernir que força acabará levando a melhor.303

i
:l >í >i-

tni-::'ro, é procurar
i-i:";-/:re] ou de "po- -ì prática da história, em Burckhardt, equivale a uma análise não de faros que
fr*:. "todos os tipos se sucedem no tempo, mas de uma espécie de inconsciente do tempoi suas

i,
.,...r-., "Devemos -atências, suas catástrofes. A história warburguiana das imagens parece ha-
b =,:Eem de maneira -,'er extraído as consequências dessa decisão
metodológi ca: {azer da história
p :.irr é uma tarefa lma sintomatologìa ou até u.ma patologia do tempo, a qual seria um erro
|r- ..nrtntá-la quan- reduzirmos a um simples pessimismo moral, ainda que o elemento trágico
F. - muito virtual seia reconhecido nela em toda parte. Foi primeiramente em rermos morfológi-
| .,. ,r'ru potència - cos e dinâmicos que Burckhardt quis falar das "catástrofes" ou das "doenças,'
|a -poe
pelo menos do tempo:
I
I
I A imagem sobrevivente 91

rI
F
ueuraqn;1-tPt6 sa6loag

seg5EuJEJUã ãP OIIUI}UI oJâlunu


tlln"
-JOtsuEJl,, UeodnsssJd ânb ,.sE^ISSãf,ns
ruâ EIJglsIq e reredes'sopo1'rad
Jelplsuol urIS sELu',,apeptuetunq EP saPePI', (otLIlIJ
'oluerul^lo^uâsep nes
uroJ Jeluof, tuâ^uoJ ogu anb erullle IPJsIIìJJng
nas .odruar oudg.rd o erãIe :€rrugrf,uts
ï::ff;,;jr"r:ï::f,ff;:: ,;?"r,
90t <'

ãsso] Elsâ âs otttot'ftanlp't'tt1


sop [Sunlqtnlagl oe5epunral e la.tesuadslPul
anb a o9snlf,uoJ V ''.sãPEPIUI}E
-sogletprclseq âP olerlf, 9 opnl'etlglslt{ €u" .,'ã
run
t;p": J;";ruJ, ,op ""t'9t11t' elad opecreru ossaro'rd" - ^,--^--.-q-^
(pÍ1lr
;;lü,,;tlgarra *r.t rp-"""a opu Ernllnf, EPol âP ^.ffIì
"'o€5€rurot
::*""1tï:'^ï:i^,ï1: se
;.-q";:; " .,ror"1, ,rrr*r1 gt{ ogu,, enb el€}suo: 'rutssyopeu8a;dtut"
çsg'"são5€ZIII^If,
f ^ -'{--.- (nnor
'opeJ
;ry*;;";odso sopol 'sodrual so soPol ap sag5rperr sep --a 6rrtteeu
eP wI
-IUIIÌI oru)ruoP lun oPuas oluof, IEruâPIro €rnllnr
rlr OIUIIII llïl]:::i'-ïÏtI
'seuetn8rnqJE,/r\ c(sEIf,
tog5rpuoo essau ÍotustuoJleuE Op'oe5ep
-uâ^r^âJgos,, sE â]UAluPlarrp edtcalue
rua'odurel 6 'rua;t8e
-lrqlq Ep'eruepasqo eIâPI eP odrual run 9 9Í 'rpreqrylng
o :Elrglsltl €P €f,Ilueu
ioir'rlroj so ze'!'sa1a tuol 'a sotuo\u'ts e-raqr1 odual
ercuanbasuoc epunSes e 'oç5t1 epun8as
-rp e eor8o1o1.rou rua8epJoqe EuIn ap
eerJosessa'oQtualopoustuo'l2ouuoaPza'tnduttpseuadee'rlsuouapog5e
e elun ap no fsaíssnmaqun]
ruâ pJrlgl€Ip e anb'osstp ru91u'reu;t1e ,.et8o1oled"
"',.sâo5eqrnlled"',,sâo5
ep Jelec'I3^EPUI'uI EIJJS E1SII e â
.câluârf,suoJul, uIn t..sâo5eãJ,, t,,seJnldnJ"
-eJuetuJa',,,..sâ1uã]IruJrr- r'ro siercred sao5losge,,
oP solâPotu
...sao5n1o,taJ,, ',,sâsIJ3,, ap rnbe EulluouâP IPJeI{ìrJng anb odrual
JeuJol zEJ os:oluslJlfolslq oP ePun]
so Jeouousep ,-to ,"rr1á,t1nu 'soxalduror
o}uãtuele" op a lsapEtlgl
-o.rd ecrll.rc EuIn oPIZnPo.rd grat
opeluaurlpes ã IEU
,.rrrngrr" sa.rapod,, soP V 'oPEluâIJo a JEãuII anb
EJII91EIP 'saúamafl),.{êÀoru
.o-^rlnlosar anb o^Isuel SIeuI ossef,o.rd run ouIJel asse 'rod JãPUel
-orprsgo sreru
Erun âP ostre'rd eJJS EPUIV
-ue soluJâsrnb es 'urg aodulal oP ElIl?lEiP
're1e1

sessou 'ep
ottïololed ralgler uIn oerâl sog5eraptsuoc
,rrr'lqtsrSoloqlad'f sens a sao5
-rpeu Euel uIâ 'osst io4 '9"' arduras ã 9 ']ot
âlo oulor 1el 'serqo
touetunq Jâs o :oPnlse âlueqlãurâs e es-relsa;d
-Iqure s€ns 'selop sens tuoJ
apodenble^tlJe^ulo}usuleloo]Iunoepruedapotuodoulo]SouJetuol('..)
Ë1roã] :a'tqapu'ml5) sag5eq;nrred sEP
el)u?ll âp r€ur€qtr
'fsepelsadural seP
souerrapodanboeressedtutlueered.sao5ea.rsease:n}dnrse.ept,t.ep
no lercled
s€Jlno se sePol ãP €ãuË]lnulrs og5eluaural 'elualruuelul
e
sEtuloj
og5rosgesPouâulgue;osrodape.(seg5earasoluatutdruor.saoSnlo,teJaSêS
so soureJepnlsa'eprn8as
-uJ) otruglsIg ossero;d oP soperelele solueulÌ^oru
sou (e.rnl1nr e) 1a'Loru o]uêur
rug'[ogr8r1el a opersE] sle^91se sarapod slop
-ãlãop".r,rr*,"1.'t'r'na'selape'trssar8o:rdaã]uPlsuof,'ecoldnar€IJuãnlt
r€sIÌBuE ã^eP roPelJorsq O]
-ur ep esIIEue p -ressed e'red [se5ro; sE s€Pol
.-:.e da in- mações", e portanto, "imperÍeições" - como uma mistura, difícìl de analisar,
:= a do ele- de "destruições" e de algo que convém chamar de "sobrevivências".r07 Bur-
ckhardt toca mais de perto na Nachleben quando rejeita quaÌquer periodìza-
L-.:irico (cri- 'Víarburg
ção hierárquica da história entre barbárìe e ciuilização - tal como se
recusaria, tempos depois, a Íazer uma sepaÍação nítida entre Idade Média e
Renascimento:

(...) não nos é possível começar pela passagem da bdrbárie para d ciuiliza-
ção.Tanto num caso quanto no outro, as ideias são por demais imprecisas.
(...) O emprego dessas palavras, afinal, é uma questão de sentimento pes-
soal: de minha parte, considero barbárie engaiolar pássaros. Desde o come-
ço, conviria deixar de lado alguns usos que remontam à noite dos tempos e
subsistem em estado de fósseis até uma época de alta civilização, por moti-
;!. JUlS€rIf1OS en- vos talvez religiosos ou políticos, como alguns sacrifícios humanos. (...)
hq. nais obsidio- Numerosos elementos culturais, talvez provenientes de algum povo esque-
lrc:res estáveis" cido, continuam a viver inconscientemente llebt auch unbewusst weiterl
lu:::: crítica pro- como uma herança secreta e são transmitidos no próprio sangue da huma-
t0: iesnortear os nidade. Convém sempre levar em conta esse acréscimo inconsciente de pa-
[-. "revoluções", trimônios culturais lunb ewwsstes Awfsummieren uon Kuhurresultaten], tan-
rÈ.*. "fermenta- to nos povos quanto nos indivíduos. Esse crescimento e essa perda lWachsen
E -tnconsciente" nnd Vergehez] obedecem às leis soberanas e insondáveis da vida lhõhere
q::. a dialética em uner gründlich e Le b ens ge s etzel.308

r: . Essa seria a .Weiterleben,


- Na mesma página, Burckhardt usou a palavra que significa
r. -,:fológica e di- -subsistência" e, já então, "sobrevivência". Estava aberto o caminho paÍa se
i-:.r ,rs fantasmas .ompreender o que significava Nachleben - e, com essa "sobrevida", estava
kJ:nte, da hibri- aberto o caminho paÍâ se compreender o tempo como esse jogo impuro) tenso,
tt:s "sobrevivên- ;sse debate de latências e violências que podemos chamar, com Warburg, de
-r-ida" lLeben] das imagens.
u:: lomínio ilimi-
B rovos e todas
,-- S
r{ a a reconhecer
r-étuo "produto
6 ;(lntrastes e das
de aastardia [Bas-
]B:intchtungl dos

roprio tempo, seu


rn"-ém contâr com
mas sim constatar
n::oem "transfor-

A imagem sobrevivente 93

Você também pode gostar