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D553i Didi-Huberman,Georges,1953-
A imagem sobrevivente : história da arte e tempo dos fantasmas se
gundo Aby \üíarburg / Georges Didi-Huberman ; tradução Vera Ribtiro.
- Rio de Janeiro : Contraponto, 2013.
506 p. : il. :24,7 cm (ArteFíssil ; 5)
A imagem sobrevivente 73
1. Giorgio vasari, prancha clo frontispício
de Le uìte de, piìr eccellettti
pìttorì, scurtorì e archìtettorì, Frorença,
1-56g. Xilogravura (cìetalhe).
11 Georges Didi-Huberman
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À maioria dos comentarisras mosrrou-se
sensír-er âo aspecto metódico
doutrinaÌ dessa consrituição. ou
v/inckelman,, rrnaou uï"ïirtóri"
nos pelo que descobriu do da arre me_
que peÌo que consrruiu.
É insuficien te fazercom que
se sucedam o 'v'inckermann
"crítico esrérico,, das
das obras gregas e o winckelmann ,,hisroriado Reflexà), ,ob* a imitação
os antigos:e não há dúvida
,,, a'u-ullraria da arte entre
de que a "crise estética,, do
IÌuminismo entrou
na maneira .o-o .È teve
de recolher ,.u _"t.riul
:ï;tïr"ru arqueológico
16 Georges Didi-Hubermarr
[- irìetódico ou >l >l )f
!r'-: da arte me-
t.ls livros, muitas vezes, são dedicados aos mortos.
:l::zer com que Inicialmente, ìTinckelmann
,::-,e J imitação ;.dicou sua Histórìa da arte à arte antiga, pois, a seu ver, fazia muito tempo
6 :J arte entre r,i- a aÍte antiga havia morrido. Do mesmo modo, dedicou seu livro ao tem-
L:]smo entrou :,-,. pois, a seu ver, o historiador era aquele que caminhava no tempo das coi-
a- ::queológico .,:r passadas, isto é, das coisas falecidas. ora, o que acontece no outro extre-
:.:Ì do livro, após algumas centenas de páginas em que a arÍe antiga nos é
:- -=:remorada, reconstruída no sentido psíquico
i= :l.o ltgado a - do termo -, reposta numa
r :e uma histó- uma espécie de fecho do circuito depressivo num sentimento de
.--'-rrativa?
E::: Jizer apenas :-:da irreparável e numa suspeita terrível: será què isso cuja história acaba de
a : ;onstitutivâ. .=: contada não resulta, simplesmente, de uma ilusão fantasiosa, pela qual esse
t:;;-ar-ç fundou a
..:iimento ou a própria perda correm o risco de nos haver enganado?
c: reio de uma Embora, ao refletir sobre a clestruição da arte, eu tenha sentido o mesmo
:";: e tecida por :esprazer que experimentaria um homem que, ao escÍever a história de seu
l o;iais são aba- :aís. se visse obrigado a descrever o panorama de sua ruína após havê-la
e .:-rciativa his- :rsremunhado, não pude me impedir de acompanhar o destino das obras da
r - -, acreditaria, -\ntrguidade até onde minha vista pôde alcançar. Assim, uma amante em
r"'. le seus pró- :ranros fica parada à beira-mar e acompanha com os olhos a embarcação
r:-:.-:iente. :--re the arrebata o amante, sem esperança de revê-lo: em sua ilusão,
ela crê
-:-.-rficiente ou :inda discernir na vela que se afasra a imagem do objeto amado
fdas Bitd
:::le" tão dife- -i.s Gelìebten].Tal como essa amante, já não possuímos, por assim dizer,
r-:.::aditória: de -:não a sombra do objeto de nossos anseios
fschattenriss (...) unserer \x/ün-
:r.:r;a histórica, -':i:e], mas a perda dele aumenta nossos desejos, e contemplamos suas có-
c::aria tornan- :'-as lKopienl com mais arenção do que faríamos com os originais
lurbit-
,;:i.1. se estivessem em nosso poder.
:- nenos é sen- euanto a isso, muitas vezes ficamos na
.:ruação dos que, convencidos da eristência de fantasmas
I :-:e concepção fGespensterl,
.:raqinam ver alguma coisa onde não há nada lwo nichts ist].ta
i*:-':ia ela admi-
l ::duo, porque P.rgina atemorizante - sua beleza e sua poesia atemorizam e radical. Se
-
-':'ria da arre recomeça nessa página, ela se define como tendo a
.-:ico elemento
por objeto
c :á história da -* ,,,bjeto decaído, desaparecido, enterrado. A arte antiga - a arte absolu-
p.l;ada - e sem ..::r-rte bela - reluz, pois, em seu primeiro historiador moderno por uma
r -rma filosofia -=rsencia categórica".15
os próprios gregos, ao menos na suposição de \)7in,
:i: rdentificar de -::.:rann, nunca fizeram a história "viva" de sua arte. Essa história começa,
r::iham juntos. ::- :-i. sua primeira necessidade, no exato momento em que seu objeto é pen-
i:;-:.:ória coloca- : -:- r coÌr1o objeto morto. Tal história será
vivida, poÍtanto, como um trabalho
'Fsra história da : -:ro tHìstória da drte entre os antìgos, trabalho do luto da arte antiga) e
r'':'gico preseÍva, -:':.\'ocação sem esperança da coisa perdida. Insistimos desde logo neste
: :-:,-r: os fantasmas de que rüinckelmann fala jamais serão ,,convocados,, ou
A imagem sobrevivente I7
út&,
mesmo "invocados" como forças - - atuantes. Não serão o equivalente
ainda
a "nada" existente ou atual lnichts lsl]. Representam apenas nossa ilusão de
óptica, o tempo vivenciado de nosso luto. Sua existência (ainda que espectlal),
sua sobrevivência ou sua reaparição simplesmente não serão contempladas.
Assim seria, pois, o historiador moderno: alguém que evoca o passado e se
entristece com sua perda definitiva. Não acredita em fantasmas (em breve, no
correr do século XIX, já não acreditará senão em "fatos"). É pessimista e usa
com frequência a palavra [Jntergang, que significa declínio ou decadência. De
fato, toda a sua iniciativa parece organizar-se segundo o esquema temporal de
grandeZa e decadêncìa.16 Com ceÍteza) seria preciso ressituar a empreitada win-
ckelmanniana no contexto de um "pessimismo histórico" característico do sé-
culo XVI[.17 Ou destacar até que ponto as ideias de \Tinckelmann podem haver
inspirado, no domínio estético, inúmeros escritos nostálgicos sobre a "decadên-
cia da arte" ou o "vandalismo revolucionário" ligado às sucessivas destruições
de obras-primas da Antiguidade.ls O modelo temporal grandeza e decadêncìa
revelou-se tão pregnante, que ainda informaria a definição da história da arte tal
como podemos encontrá-la, por exemplo, na Real-Encyclopcidie de Brockhaus:
"A história da arte é a representação da origem, do desenvolvimento, da gran-
deza e da decadência das belas-artes."re \Tinckelmann não dissera outra coisa:
18 Georges Didi-Huberman
Ê :quivalente -\ outra face dessa configuração teórica é mais conhecida: é um modelo
p ..-.- ilusão de :-ietl e, mais particularmente, metafísico. Ele se entende muito bem, portanto,
1.,-.; -spectral)' -om a "ausência" categórica de seu objeto: pensemos na célebre formulação
nr:.rp1adas. :; Sólon - o to ti en einai citado por Aristóteles - que postula a morte prévia
t :,ìssâdo e se :-:qr-rilo de que se quer enunciar a verdade, ou melhor, a "quididade".22 Nesse
s .:: breve, no .-nrido, poderíamos dizer que o desaparecimento da arte antiga funda o dis-
pr'..,rtSta e USa -.:rso histórico que fala de sua quididade última. Segundo'l7inckelmann, por-
Lc-- -..jência. De '-r-llto, a história da arte nào se contenta em descrever, classificar e datar. Ali
r- .-;rporai de rde Quatremère de Quincy fala de um simples movimento de retorno "da
'l7inckelmann
cr,: =it;rda win- -.rá1ise para a síntese" radicalizaria sua posição, ele mesmo, do
E:::.i:ico do sé- :-,nro de vista filosófico: a história da arte fdìe Gèschichte der Kunst] deve ser
s:. : ,Jem haver -s;rira a fim de que seja explicitada a essência da arte fdas'Wesen der Kunst],
È:. ,: "decadên-
-\ história da arte entre os antigos, que ofereço ao público, não é uma sim-
ú,' Jestruições lÌes narrativa cronológica das revoìuções por que ela passou. Tomo a pala-
w : .iecadência i ra "história" IGeschichte] na significação mais extensa que há na língua
k - -: da arte tal :rega, sendo meu objetivo oferecer o resumo de um sistema fLebrgebìiude]
b := Brockhaus: Je arte. (...) A história da arte fdie Geschìchte der Kwnst], no sentido mais
k.::,r. da gran- :srrito, é a história do destino que ela vivenciou em relação às diferentes
::: ltra coisa: ;ircr-rnstâncias das épocas, principalmente entre os gregos e os romanos.
\este livro, porém, eu me propus como objetivo sobretudo discutir a pró-
n :em [Ur-
-',:rinde- :ria essência da arte fdas 'Vlesen der Kwnstf .23
FÉ.
[c,-.ra [Fal/]
-\o ier esse texto, compreende-se que a historicidade da arte, tal como con-
,.:plada por'Winckelmann, não emerja exatamente, como é comum supor-se,
E* : :lis tipos de -j; um compromisso que permitiria o historiador encontrar um campo no
p;. - ;'llarmente, .:.rìor ou à margem da norma".za Falar dessa maneira é dar um crédito ex-
!r: ::: e ntendida ::>silo ao lugar do discurso histórico como tal. É imaginar que uma história
3:;'::,tg também :. Si tori-Ìe normativa ao sair dela mesma, ao forçar sua neutralidade filosófica
r-:::,--,"-Nofu,n: -:.:rural", ao trair, em suma, sua modéstia "natural", diante de puros e sim-
E :.*iro dist4nte :--' fatos da observação. É desconhecer que a norma é interna à própria nar-
D. :-.:s também a :.:',-a. ou à mais simples descrição ou menção de um fenômeno que o histo-
!Ê: : l) manual de ',-:-:or considere digno de ser preservado. A narrativa histórica, nem é preciso
r ;:--l de dezem- : :.:. é sempre precedida, condicionada por uma norma teórica sobre a "es-
*=.:,-Jos sobre a .-:-Jìa" de seu objeto. A história da arte é condicionada, portanto, pela normrr
!j J -ìncepção da ..:..ic,1 na qual se decidem os "bons objetos" de sua narrativa, esses "belos
t,. ie classifica- :'-:os" cuja reunião formará, no final, algo como uma essência da arte.
m ï- ]m esquema \_jnçkelnann:em-.tazão,.-pc.rrfanto,-em*reivindica-r.sua..história corro um
It ::;línio, nasci- -:-ì!qrta" [-LehrcpbritldçJ,'t19 sçttt,td-g
-fllqsófiço e doutrinal da palalrra. Em
:::.:-s drfçqeqlg-1r.suâ .emp1e-1ça.{4 !+Z çço. às de um Montesqqieu, um Vico, um
A Ìmagem sobrevivente 79
&
Gibbon ou um Condillac.25 Essa condição da história winckelmanniana, aliás,
ÌJïãfffirnffi tónhecida no século XVIII: Herder escreveu que "\linckel-
mann, com toda a cetteza) propôs esse sistema lLehrgebriwde] grandioso, ver-
dadeiro, eterno" como a empreitada quase platônica de uma "análise referente
ao geral, à essência dabeleza".26 Como pensador da historicidade, Herder não
tardou a indagar: "Será esse o objetivo da história? O objetivo de uma história
I da arte? Não haverá outras formas possíveis de história?" Mâs ele reconheceu
I d. bo- grado a necessidade de uma história da arte que, além das coleções
I hìstóricas de Plínio, Pausânias ou Filóstrato, tivesse fundamentação teórica: o
de sistema histórico'27
\ or. .1. chamou, acompanhando winckelmann,
Ou de "construção ideal".28 Ideal no sentido-'de ter sido inicialmente con-
cebida para se harmonizar com o princípio metafísico por excelência, com o
id.eal de beleZa,essa "essêncía da atte" que os grandes artistas da Antiguidade
souberam pôr em ptâtrca. O "belo ideal", como se sabe, constitui o ponto
cardinal de todo o sistema histórico winckelmanniano, bem como da estética
neoclássica em geral.2e Ele fornece a essência e' poftanto' a norma. A história
da arte é apenas a história de seu desenvolvimento e de seu declínio. Ele pare-
ce confirmar a filiação secular do pensamento estético à corrente filosófica do
idealismo.3o
A palavra "ideal" sugere que a essência - aqui, a essência da arte - é um
modelo; um modelo a alcançarrconforme o "imperativo categórico" dabeleza
clássica; um modelo, porém, dado como inatingíuel como tal. É muito signifi-
cativo que o capítulo dedicado por ìTinckelmann à "essência da arte" seja
mais consagrado aos desvios que nosso espírito tem que fazer para se recordar
dabeleza ideal das estátuâs gÍegas:
como o primeiro capítulo deste livro é apenas uma introdução, passo ago-
ra, depois destas observações preliminares, à própria essência da arte. (...)
Tfanspofto-me em espírito, portanto, para o estádio de Olímpia. Lá diviso
as estátuas de atletas de todas as idades, caffos de bronze com dois e quatro
cavalos, encimados pela imagem do vencedor. Lá meus olhos são atingidos
por uma multidão de obras-primas! Quantas vezes minha imaginação não
se entrega a esse sonho prazeroso? (...) Que me seja permitido fazer essa
viagem imaginária à Élida, não como uma simples imagem poética, mas
como uma contemplação real dos objetos. E, de fato, esta ficção adquire
uma espécie de realidade quando represenro para mim mesmo, como exis-
tentes, as estátuas e os quadros cujas descrições os antigos nos deixaram.3l
Georges Didi-Huberman
narniana, aliás, de uma contemplação dos objetos reais. Estes desapareceram, foram substitu-
r; re "Winckel- ídos por cópias mais tardias. Restam apenas as mediações do espírito, em
g:andioso, ver- busca desse ponto fora do tempo que é o ideaÌ. E, no entanto, a mais necessá-
m.:,ise referente ria dessas mediações - a que é reconstituição textual, restauração ideal será
-
d.. Herder não realmente denominada bistória da arte. uma história da arte que é serva da
d; uma história Ideia, apresentada como a descrição das transformações. grandezas e decadên-
l e-; reconheceu cias da normd da arte: "natüreza bela", "contorno nobre", ,,arquétipo espi-
ir las coleções ritual" no desenho dos corpos femininos, drapejados eregantes, e por aí vai.32
ta;ão teórica: o -\ História da arte entre os antigos se tece, evidentemente, com constantes
tt -::r.t.)- apelos de retorno à estética proposta, uns dez anos antes, nas Reflexões sobre
i'--:-iimente con- a ìmitação das obras gregas.
c-=ncia, com o
d:. -\ntiguidade
n.*rui o ponto
D='r da estética
r::a. ^\ história
ci-:::o. Ele pare-
rr- :ilosófica do
por princípio do "bom gosto" lder gwte Geschmackl, rejeição absoluta de
rir erte-éum "qualquer deformação do corpo", numa passagem espantosa das Reflexões
õr::,r" dabeleza em que ele expressa seu horror às "doenças venéreas e
[ao] raquitismo decor-
:t ::.uito rente delas", esses males que ele supunha desconhecidos dos gregos antigos.33
srgnrtr-
ia ia arte" seja como se essas coisas estivessem ligadas por uma obscura patologia comum,
Fa:: se recordar winckelmann exprime com igual radicalismo sua rejeição d.o páthos, essa
doença da alma que deforma os corpos e, portânto, estraga o ideal, que pres-
supõe a calma da grandeza e da nobreza de espírito:
b- :asso ago-
r ;: arte. (...) Quanto mais calma é a postura do corpo, mais ela é capaz de exprimir o
p-:. Lá diviso verdadeiro caráter da alma: em todas as posições que se afastam muito do
i::s e quatro repouso a alma não se acha no estado que lhe é próprio, mas se encontra
s,:. , atingidos num esrado de violência e coerçào. Nesses estados de paixão violenta ela se
cc:ação não reconhece mais facilmente, mas, em contrapartida, é no estado de repouso
ii - :azer essa e harmonia que ela é grande e nobre.ra
p,,:rica, mas
k;ìo adquire
o que fora proposto nas Reflexões como um postulado geral seria recon-
p.:omo exis- duzido, na Histórìa da arte, para o plano específico da arte grega. L,m vez
de
r i.iraram.31 dízet "é preciso" (ponto de vista da norma), \Tinckelmann contenta-se desde
então em escrever que os gregos "tinham o costume de',. o ponto de vista
é
* .ie uma "con- "histórico", por certo. Mas é a mesma essência que se exprime, ou, eu deveria
re:ir não através dizer, que se declara nele:
A imagem sobrevivente 21
Numenoutrosentido,aexpressãomudaostraçosdorostoeadisposição
a beleza' Ora'
do corpo; altera, por conseguinte, as formas que constituem
esta
quant; maior é essa alteração, mais ela é prejudicial à beleza. Segundo
como uma das máximas fun-
consideração, tinha-se o costume de observar,
às figuras, por-
damentais da arte, a imposição de uma postura tranquila
que, segundo a opinião de Platão, o repouso da alma era
visto como um
que a tranquilidade é
estado intermediário enrre o prazü e a dor. Por isso é
a experiência
a situação mais conveniente à beleza, tal como o é ao mar:
que os homens mais belos têm. comumente' as maneiras
mai\ suaves
mostra
e o melhor carâter. (...) Além disso, a serenidade
no homem e nos animais é
e as qualidacles
um estado que nos permite examinar e conhecer a,natLlreza
e do mar quando a
deles: é por isso que só descobrimos o fundo dos rios
portanto, que é
ágrra estã calma e sem agitação. Decorre desta observação'
essência mesma
,ã-.rr,. na calma que o artista pode conseguir transmitir a
>l >l :l
Georges Didi-Huberman
; r disposição tário. Que nó de problemas essa Hìstórìa da arte entre os antìgos continua a
: beleza. Ora, nos oferecer?
l. Segundo esta Trata-se de um nó tríplice, um nó três vezes atado, que o próprio título de
; rárimas fun- Winckelmann induz e impõe: nó da hìstória (como podemos consrruí-la, escre-
!- iiguras, por- vê-la?), nó da arte (como podemos distingui-la, olhá-la?) e nó da Antiguidade
,"':sto como um icomo podemos rememorá-la, restabelecê-la?). O "sistema" de \üTinckelmann
::,..nquilidade é decerto não é filosófico no sentido estrito e, por conseguinte, não pode iden-
': -: erperiência riiicar-se com algo como uma construção dialerica. Mas existe uma noção
I:S MAiS SUAVCS capital, uma palavra que mantém unidas as três laçadas do nó. Palavra mági-
. ros animais é ca, de certo modo: resolve todas as contradições, ou melhor, faz com que
; -..s qualidades passem despercebid"LE*g_p,*Jgft-a*11yjta.ççyo,,*Ela constitui a mola rrìesrra, a
:lar quando a
dobradiça, o eiro graças ao qual todas as diferenças se unem, todos os abis-
:. :t.rnto, que é
mos são transpostos.
..s;ncia mesma
Na conclusão de seu livro, citada acima,36 ril/ir-rckelmann pareceu cavar um
abismo: abismo depressivo, ligado à perda da arte anriga e ao rerorno impos- Lf)
sír,el desse "objeto amado", abismo separando o luto do desejo l'Wunschl, sG
abismo separando os "originais" lUrbilder] da estatuária grega e suas "có-
i :mos a nal.lJreza pias" romanas lKopìen]. Mas, em outros pontos de sua obra - a começar pelas
r-rresentado pela Reflexões, é claro -, a imitação lança uma ponte sobre esses abismos. A imita-
J
r*
r:,r elabora-se um ção dos antigos, praticada pelo artista neociássico, tem por virtude reanimar ;-
o desejo para além do luto. Cria um vínculo entre o original e a cópia, de tal Ì
l:tlr: toda vez que
sorte que o ìdeal, a "essência da arte", pode como que reviver, atravessar o -à
ii.a;1o não tarda a
ti
te mpo. É graças à imitação que a "ausência categórica" da arte grega, segundo
. r,ntra os simples
ir expressão de Alex Potts, torna-se capaz de um renascimento, ou até de uma
rl'I
| :.-ìra de embasar
"presença intensa".37
; a história como
:nasubjetivação Pois é justamente de presença e presente que se trata: o presente da imita-
-l::pia" - não para ção faz "reviver uma origem perdida"i8 e, desse modo, restabelece na origem
Winckelmann- uma presença ativa, atual. Isso só se revela possível porque o objeto da imita-
;-,r
;io l-iistórico é in-- ção não é um objeto, e sim o próprio ideal. Ali onde a verrente depressiva da
história winckelmanniana fazia da arte grega um objeto de luto, impossível de
::. de Quincy, e se atingir - "já não possuímos, por assim dizer, senão a sombra do objeto de
:-. no sentido mo- nossos anseios"'ie -, uma vertente maníaca, se me atrevo a dizê-lo, fará dessa
:: '? Será que o so- arte um ideal a cal)tur(ü, o imperativo categórico da "essência da arte", o
'z.l o microscópio único capaz de permitir a imitação dos antìgos.Imitação, como bem sabemos,
:rálises espectro- é um conceito altamente paradoxal. Mas seu paradoxo é justâmente o que
..:t;os? O estatuto permitiu a Winckelmann a famosa pirueta: "Para nós, o único meio de nos
.rlido, que já não tornarmos grandes, e, se possível, inimitáveis, é imitar os antigos."a0
:-.-- mundo de pen- Foi uma façanha considerável, e suas consequências também o seriam. To-
i= que se é dePosi- Jaram na própria estrurura. na arquitetura remporal de toda essa iniciariva: a
A imagem sobrevivente 23
história da arte construída por's7inckelmann acabaria reduzindo o tempo nd-
tural da veriinderung ao tempo ideal da -wesen der Kwnst. Foi um modo de
possibilitar a coexistência do esquema "vida e morte", ,,grand,eza e decadên-
ciâ", com o projeto intelectual de um "renascimento" ou uma restauração
"neoclássicos " . ,I,nsistimos-no-elem,erete,-cruciakles..-**Írrço-hercú1eo : a imita=^.
_9ão s6
permitia espç reryascimento imitapdo o ideal. não reconhecer aí,
.Ç_omo
reconfiguradas, mas renovadas, as três "palavras mágicas,' fundamentais do
idealismo vasariano?a1 como não reconhecer, na redução do tempo natural ao
tempo ideal, o que cria a própria ambivalência do conceito humanista de imi-
tação? Por outro lado, teria sido possível a imitação moderna dos antigos inl-
mitáueìs sem o meio-termo que constituí, para o próprio rü/inckelmann, a imi-
tação renascentìsta - por Rafael, em primeiro lugar - desses mesmos antigos?
oque era nó (a solução se atrapalha) torna-se então fechamento (a solução
se impõe). o nó da Antiguidade se desfaz ao setrazeÍ de volta uma noção de
ideal; o nó da arte se desfaz ao se resgarar umâ ideia de imitação; o nó da his-
tória se desfaz ao se resgatar uma ideia de Renascimento. Assim já fora cons-
truída a história humanista de Vasari. Assim recomeçou a história neoclássica
de Y/inckelmann. Mas refaçamos a pergunta de Herder: .,será esse o objetivo
da história? o objetivo de uma história da arre? Não haverá outras formas
possíveis de história? "a2
Precisemos os desafios atuais da pergunta, diante de uma herança winckel-
manniana tão unanimemente reivindicada. primeiro, quanto à .,análise dos
tempos": não haveria um tempo das imagens que não fosse ,.vida e morte"
nem "grandeza e decadência", tampouco esse "Renascimento" ideal cujos
valores de uso os historiadores não param de transform ar para seus próprios
fins? Não haveria Dm tempo para os fantasmas, uma reaparição das imagens,
uma "sobrevivência" fNachleben] que não estiyesse submetida ao modelo de
transmissão pressuposto pela "imitação" lNachahmung]das obras antigas por
obras mais recentes? Não haveria um tempo pdra a memória das imagens
-
um obscuro jogo entre o recalcado e seu eterno retorno - que não fosse o
proposto por essa história da arte, por essa narrativa? E, quanto à arte em si:
não haveria um "coÍpo" de imagens que escapasse às classificações instaura-
das no século xvIII? Não haveria um tipo de semelhança que não fosse o
imposto pela "imitação do ideal", com a rejeição do páthos que ela pressupõe
em ìil/inckelmann? Não haveria um tempo pard os sintomas na história das
imagens da arte? Terá essa história realmente "nascido" algum dia?
24 Georges Didi-Huberman
o tempo na- Warburg, nosso fantasma
um modo de
e decadên-
restauração
u.i+wita--
reconhecer aí,
mentais do
natwral ao um século e meio depois 's7inckelmann
de compor sua monum ental História
ista de imi- da arte entre os antigos, Aby varburg publicou, não em Dresden, mas em
antrgos tnx- Hamburgo, um texto minúsculo - na verdade, o resumo de uma conferência
nn, a imi- em cinco páginas e meia - sobre "Dürer e a Antigúdade it?lianala3 A imagem
antigos? que abria esse texto não era a de uma ressurreição .tirta,
to (a solução -r"o em Vasari
(fig. 1), nem a de uma glória olímpica, como em \Tinckelmann (fig. 2), mas a
uma noção de de um despedaçamento humano, passional, violento, cristalizado em seu mo-
o nó da his- mento de intensidade física (fig. 3).
já fora cons- A dissimetria entre esses momentos do pensamento sobre a história, a arte
ia neoclássica e a Antiguidade parece bastante radical. Em sçJr
çexto_c,IrËtq; qlre ocupa menos
esse o objetivo espaço que uma úntca vida de vasari -, tal como em toda a sua obra publicada
outras formas - que ocupa menos espaço do que a simples História da arte _. de-
a winckel-
à 'análise dos
ida e morte" warburg substituiu o modelo natural dos ciclos de "vida e morte,,, ,,grandezal
" ideal cujos e decadência", poÍ um modelo decididamente não natural e simbólico- u^ *n- |
seus propnos delo cubwral da história, no qual os rempos jâ não eram calcados em estágios 14
das imagens, biomórficos, mas se exprimiam por estratos, blocos híbridos, rizomas, .orrrol"-
\
|
ao modelo de xidades específicas, retornos frequentemente inesperados e obfetivos ,.-or.
I
antigas por frustrados. warburg substituiu o modelo ideal das "renâscenças,,, das ,.bàrrJ
das imagens - imitações" e das "serenas belezas" antigas por um modelo
fantasmalda história,
não fosse o no qual os tempos já não se calcavam na transmissão acadêmica dos saberes,
à arte em si: mas se exprimiam por obsessões, "sobrevivências", remanências, reaparições
das
lnstaurâ' formas. ou seja, por não-saberes, por irreflexões, por inconscientes do tempo.
não fosse o Em última análise, o modelo fantasmal de que falo era um modelo psíquico,
no
ela pressupõe sentido de que o ponto de vista do psíquico não seria um retoÍno ao ponto
de
na história das vista do ideal, mas a própriapossibilidade de sua decomposição teórica. Trarava-
>
dia? -se' pois, de um modelo sìntomal,no qual o devir das formas
devia ser analisado \
como um conjunto de processos tensivos - tensionados, por exemplo, entre
I
vontade de identificação e imposição de alteração, purificação e hibridaçào.
I
normal e patológico, ordem e caos, traços de evidência e traços de irreflexão.
I
A imagem sobrevìvente 25
tural da \-erJndenotg ao tempo ideal da Yesen Jer }i*,:*.r- F--r*;;; ;
possibilitar a coeristência do esquema *vida e morrÈ . -gran'leza e decadên-
cia", com o projeto intelecrual de um "renascimenro ou uma resrauracào
"neoclássicos". Insisti taj*út*--
sÇ O_;erylti? ql,t_q ren_asçimento imital{q_p=1454.9o^o não reconhecer aí,
t!2
reconfiguradas, mas renovadas, as três "palavras mágicas" fundamentais do
idealismo vasariano?a1 Como não reconheceÍ, na redução do tempo natural ao
tempo ideal, o que cria a própria ambivalência do conceito humanista de imi-
tação? Por outro lado, teria sido possível a imitação moderna dos antigos ini-
'Winckelmann,
mìtáueìs sem o meio-termo que constitu\ para o próprio a imi-
tação renascentista - por Rafael, em primeiro lugar - desses mesmos antigos?
O que era nó (a solução se atrapalha) torna-se então fechamento (a solução
se impõe). O nó da Antiguidade se desfaz ao se trazeÍ de volta uma noção de
ideal; o nó da arte se desfaz ao se ÍesgataÍ uma ideia de imitação; o nó da his-
tória se desfaz ao se resgatar uma ideia de Renascimento. Assim já fora cons-
truída a história humanista de Vasari. Assim recomeçou a história neoclássica
de ìlinckelmann. Mas refaçamos a pergunta de Herder: "Será esse o objetivo
da história? O objetivo de uma história da arte? Não haverá outras formas
possíveis de história?"a2
Precisemos os desafios atuais da pergunta, diante de uma herança winckel-
manniana tão unanimemente reivindicada. Primeiro, quanto à "análise dos
tempos": não haveria um tempo das imagens que não fosse "vida e morte"
nem "grandeza e decadência", tampouco esse "Renascimento" ideal cujos
valores de uso os historiadores não param de transformaf para seus próprios
fins? Não haveria um tempo para os fantasmas, uma reaparição das imagens,
uma "sobrevivência" [Nacbleben] que não estivesse submetida ao modelo de
.transmissão pressuposto pela "imitação" fNachahmwng] das obras antigas por
obras mais recentes? Não haveria um tempo para d memória das imagens -
um obscuro jogo entre o recalcado e seu eterno retorno - que não fosse o
proposto por essa história da arte, por essa narrativa? E, quanto à arte em si:
não haveria um "corpo" de imagens que escapâsse às classificações instaura-
das no século XVIII? Não haveria um tipo de semelhança que não fosse o
imposto pela "imitação do ideal", com a rejeição do páthos que ela pressupõe
em \X/inckelmann? Não haveria um tempo para os sìntomas na história das
imagens da arte? Terá essa história realmente "nascido" algum dia?
z4 Georges Didi-Huberman
h o tempo na- Warburg, nosso fantasma
i um modo de
Éa e decadên-
n restauração
slieo: a imita=.
rr;onhecer aí,
rdamentais do
ry natwral ao L rn século e meio depois de ìTinckelmann compor sua monum ental História
:a;rista de imi- Jt erte entre os antigos, Aby 's7arburg publicou, não em Dresden, mas em
h anrigos lttl- Hamburgo, um texto minúsculo - na verdade, o resumo de uma conferência
rJnann, a imi- em cinco páginas e meia - sobre "Dürer e a Antiguiclade.igrliSrra*1, e imagem
tu:os antigos? que abria esse texto não era a de uma ressurreição cristã, como em Vasari
lnto a solução tig. 1), nem a de uma glória olímpica, como em \Tinckelmann (fig. 2), mas a
nrna noção de de um despedaçamento humano, passional, violento, cristalizado em seu mo-
b: o nó da his- mento de intensidade física (fig. 3).
I iá fora cons- A dissimetria entre esses momentos do pensamento sobre a história, a arte
ria neoclássica e a Antiguidade parece basrante radical.lmSçUlgXle*grUrc"_gue ocupa menos
cssc o objetivo espaço que uma úníca Vida de vasari -, tal como em toda a sua obra publicada
ourras formas - que ocupa menos espaço do que a simples Hìstória da arte -, \xhrhulg .'dg_ _-
cgmlgl3$g9g:lglg-:gb:rg)rtctqmenl-e t.o_dg.s os_mgdgl_o; epistêmicos em uso
nanca rvinckel- na hiqtória da arte vasariana e winckelmanniana. Desconstruiu, por conseguin-
_ 4--%
à -análise dos te, o que a atual história da arte ainda toma por seu momenro iniciático.
bida e morte" 'warburg
substituiu o modelo natural dos ciclos de "vida e morte", "grandezal
n- rdeal cujos e decadência", por um modelo decididamente não natural e simbólico, u^ *o-
I
r seus próprios delo cwltural da história, no qual os rempos jâ não eram calcados em esrágios [í üt
o das imagens, biomórficos, mas se exprimiam por esrraros. blocos híbridos. rizomas, .o-pl.-
|
t ao modelo de ridades específicas, retornos frequentemente inesperados e objetivos ,.-p.. I
râs antigas por trustrados. warburg substituiu o modelo ideal das "renâscenças", das ,,boasJ
das imagens - imitações" e dâs "serenas belezas" antigas por um modelo
fantasmal da história,
re não fosse o no qual os tempos já não se calcavam na transmissão acadêmica dos saberes,
m à arte em si: mas se exprimiam por obsessões, "sobrevivências", remanências, reaparições das
rções instaura- formas. ou seja, por não-saberes, por irreflexões, por inconscientes do tempo.
ue não fosse o Em última análise, o modelo fantasmal de que falo era om modelo psíquìco, no
r ela pressupõe sentido de que o ponto de vista do psíquico não seria um Íetorno ao ponto de
na história das vista do ideal, mas a própria possibilidade de sua decomposição reórica. Tratava-
1
Ldia? -se, pois, de um modelo sintomal,no qual o devir das formas devia ser analisado
\
como um coniunto de processos tensivos - tensionados, por exemplo, entre
I
vontade de identificação e imposição de alteração, purificação e hibridação,
I
normal e patológico, ordem e caos, traços de evidência e traços de irreflexào.
I
A imagem sobrevivente
..,.;-"*.ç*;é;*i*È@iieic&#ea;*,*.- -... .
3. Albrecht Dúrer, Á morte de Orfeu,7494. Tinta sobre papel' Hirn'rburgo, Kr'rnsthalle.
Foto: Instituto \íarbr-rrg.
Tudo isso fala de forma muito abrupta e muito sucinta' admito. Será preci-
so toÍnar a partir do começo para construir essa hipótese de leitura. Mas uma
coisa era preciso dizer de imediato: c,gILYhJ.h*rS,S.:dgi-q.d..erte e a ideia de
história pasq3rar_n-.p-gr.uma reviravolta decisiva,. Depois dele, 1á não estanl-os
dietete*d.airu,Sgery,.ç-.lliqnte do tempo, como antes. Todavia, a história da atte
com ele não "começa", no sentido de uma refundação sistemática que talvez
tivéssemos o direito de esperar. Com ele, a história da arte se inquieta sem
cessar, a história dd arte se perturba, o que é um modo de dizer, se nos lem-
it_:* Warburg, nosso fantasmâ: em algum lugar dentro de nós, mas em nós ina-
Gl,' preensível, desconhecido. Quando ele morreu, em 1929, os necrológios que
-s lhe foram dedicados - na pena de eruditos prestigiosos como Erwin Panofsky
ou Ernst Cassirer - manifestaram o grande respeito devido aos ancestrais im-
portantes.45 Ele foi reconhecido como o pai fundador de uma disciplina consi-
derável, a iconologia, mâs sua obra logo se apagaria por trás do trabalho tão
mais claro e distinto, tão mais sistemático e tranquilizador de Panofsky.a6
,rd Desde então, rü/arburg vagueia pela história da arte como faria um ancestral
inconfessável - sem que jamais se diga o que não conviria confessar ou o que
conviri a renegar nele -.,_g41_pa i f anra smá tiçSj**gmJgg:* *
Por que fantasmático? Primeiro porque não sabemos por onde segurá-lo.
Em seu necrológio sobre ì7arburg, Giorgio Pasquali escÍeveu, em 1930, que o
historiador, durante a vida, " jâ desaparecia atrás da instituição que havia cria-
do" em Hamburgo, a famosa Kulturwissenschaftliche Bibliothek \7arburg,
Será preci- que, depois de seu exílio, precipitado pela ameaça nazista, pôde sobreviver e
'a.Mas uma reviver em Londre s. " @ora o ur"" o qrle, {o{a".\ïaaçburgï .,E$ns t.
"
A imagem sobrevivente
ldad-ç*-dç,"Var-burg;18 Essa decisão não deixou de ter uma "elaboração" meio
desencarnada de uma obra em que a dimensão do pátbos, ou até do patológi-
co, revela-se essencial, tanto no plano dos objetos estudados quanto no do
olhar voltado para eles. E_dggt _Yi.n-4,:,{l-1.t.:o" severamente essa remontag-e-m
pudlCa, essa.edulcoração que Gombúehf.ez:ae.não se separa um homem deseu
páthos - de suas empatias, suas patologias -, não se separa Nietzsche dqSU,"
loucura nem'üTarburg dessas perdas de si que o deixaram por quase cinco anos
entle ol mulqs de .um hospital psiquiátric.o. O perigo simétrico existe' é claro:
o de negligenciar a obra construída em prol de um fascínio duvidoso por um
destino digno de um romance noir.s0
Outra causa desse caráter fantasmático prende-se a nossa impossibilidade,
ainda hoje, de distinguir os limites exatos da obra warburguiana. Como um
corpo espectral, essa obra continua sem contornos definíveis: ainda não en-
controu seu corpus. Ela assombra cada livro da biblioteca - e até cada inter-
valo entre os livros, em razão da famosa "lei da boa vizinhança" que ìTarburg
havia instituído em sua classificaçãos1 -, mas"-acima de tude,-lpanifesta-se !p
imenso labi5lp-qo-.do.s. panuscrilqs .a'!nda inéditos, as anotações, esboços, esqge-- -
mas, diáriog-q cgt{q_sp.9g_{ênci4 que \Tarburg mantinha incansavelmente, sem
jogar nada.fo.ra,-ç qqe os.editores.até hoje não souberam reunir de maneira-
ponderada, a tal ponto é desnorteante o seu aspecto "caleidoscópico".52 Na
ignorância de tal massa de texros - alguns dos quais tinham um propósito
explícito de fundação, como os Grundlegende Brwchstücke zu einer monisti-
schen Kunstspsychologie, de 1888-1905. e os Allgemeine Ideen de 1927 -,
todas as nossas reflexões sobre \Tarburg ficam presas a uma certa indecisão.
Escrever hoje sobre essa obra é aceitar que nossas próprias hipóteses de leitura
ï sejam um dia modificadas ou questionadas por uma parte inesperada desse
corpus flutwante.
I
Porém, isso não é tudo. O aspecto fantasmático desse pensamento prende-
-se a uma terceira razão, ainda mais fundamental: uma razão de estilo, não de
época. Ler V"afbutg.apiesenta a dificu'ldade de"ver se mesclarem o rìtmo-da-
mais extenuante ou mais inesperada erudição * como a entrada em cena, em
meio a uma análise dos afrescos renâscentistas do palácio Schifanoia, em.Fer .
rara, de um astrólogo árabe do século IX, Albumasars3 - e o ritmo quase
baudelairiano dos foguetes; ideias que se fundem, pensamentos inseguros,
aforismos, permutações das palavras,-experime41a.ção de conceitos... tudo que
Çg-pbfch considera a conta certa para aborrecer o "leitor moderno", eu4n-d-o
é precisamente a modernidade de Warburg que já se assinala nesse traço.5a
28 Georoes Didi"Huberman
hboração" meio Oe q!dç. d_e*_qgg.lfff:":.,{e gue tempo nos f1l4 esse fanrasma? Seu vocabulário
raté do patológi- USbgellglled".T9lle.l1q&ql91{o lgmantismo alemão e de Carlyle. do posi_
6 quanto no do tivismo e
91j1,!,9,q9fia,l!9qgsgnjana.. Ele manifesra, em momenros alrernados, a
hEa remonta€ç-m - preocupação meticulosa com o detalhe histórico e o sopro inseguro da inspi-
n homem deseu ração profética. o próprio warburg falava de seu estilo como sendo uma
[-ieusche dç.SU? "sopa de enguias" lAalsupensti/]:55 imaginemos uma massa de corpos serpe-
guase cinco anos antes, reptilianos, em algum lugar entre as perigosas circunvoluç óes do Lao-
m eriste, é claro: coonte - que obsedaram warburg durante a vida inteira, não menos que as
trridoso por um serpentes postas na boca pelos índios que ele também estudou (fig. 37) e a
-
massa informe, sem pé nem cabeça, de um pensamento sempre avesso a se
rimpossibilidade, "coÍtar", isto é, a definir para si mesmo um comeÇo e um fim.
F".ra. Como um Acrescentemos a isso que o próprio vocabulário de's7arburg parece fadado
È ainda não en- à condição de espectro: Gombrich observou que as palavras mais impofiantes
ic até cada inter- desse léxico - como bewegtes Leben, pathosformel, Nachleben
I - eÍam difíceis
h- qu.'sflarburg de transpor para o inglês.56 Seria mais conveniente dizer que a história da arte
butrif. tra-sg-.gg*_-. anglo-saxônica do após-guerra, essa história da arte que tinha uma enorme dí-
f,-erboços, esqgg; vida para com os imigrantes alemães,s7 exerceu sobre si mesma um trabalho de
içavelmente, se-g[ renúncia à língua filosófica alemã. Fantasma não redimido de cerra tradição fi-
Lrnir de maneira lológica e filosófica, \xl'arburg vagou poÍ uma época ambígua e inapreensível: de
lot:óoico".t2 Na um lado, ele nos fala a partìr de wm passado que os "progressos da disciplina,,
F
ts r- propósito parecem haver tornado obsoleto. Em especial, é característico que o vocabulário
iB einer monisti- da Nachleben - a "sobrevivência", esse conceito crucial de toda a empreitada
peen de 1927 -, warburguiana - tenha caído completamente em desuso e não tenha sido objeto,
1."n" indecisão. quando porventura é citado, de nenhuma crítica epistemológica consequente.
lóteses de leitura Por outro lado, a obra warburguiana pode ser lida como um texto proféti-
hcperada desse co e, mais exatamente, como a profecia de um saber por yir. Robert Klein, em
1'964, escreveu sobre \Tarburg: "[Ele] criou uma disciplina que, ao contrário
Sarnento prende- de tantas outrâs, existe, mas nâo tem nome."58 Retomando essa fórmula, Gior-
lde estilo, não de gio Agamben mostÍou como a "ciência" visada por essa obra estava ,,não
kem o ritr.ne-d+ ainda funda da" - traço que designa menos uma falha da racionalidade que a
lda em cenar,.gm_ ambição considerável e o valor perturbador dessa ideia das imagens.5e war-
[tanoia, em*Eçt;- b.*g dizia a seu próprio respeito que ele menos fora feito para existir do que
b o ritrn-o quase . para "persistir [eu dírìa insìstir] como uma bela lembrança,,.60 É bem esse
o
Fnros inseguroso t9I4S-ú p-alu-*r""LIaa.blelrcn;esssterrno, do.Ílpós-vivet::r umõ õ.p"sraã-ôl
tulg que
ii!tos-,.. ... q",.__:3-9"
P_nta
de sgbreviver' Num dad.o rnome'r+t.g-,. seu.Íetornp- -em nossa me-
[terno", quada mõii-a róina.-se a própria urgência, a urgên-cia anacronica dq q.qe Nietzsche
ilesse tlê.Çg,54 cllamq u de. in atr+al. o v.intemp estiu,a - *.,
.
Assim seria \Tarburg nos dias atuais: um sobrevivente urgente para a his-
t6ria da arte. Nosso dìbuk. o fanrasma da nossa disciplina, falando-nos a
A imagem sobrevivente
um tempo de seu (nosso) passado e de seu (nosso) futuro. Questão passada:
devemos alegrar-nos com o trabalho filológico que, sobretudo na Alemanha'
prende-se há alguns anos à obra de ì7arburg.61 Questão futura: as coisas são
mais delicadas, evidentemente - uma vez reconhecido o valor de "impulso" da
obra warbu tguiana,6z as leituras põem-se a divergir. Não apenas a heran-
ça do "método warburguiano" tem sido questionada desde os primeiros mo-
mentos de sua colocação em prâtica,63 como também a atual multiplicação
de referências a esse suposto "método" proporciona uma verdadeira vertigem.
tWarburg torna-se superespectral no exato momento em que cada um começa
a invocá-lo como o santo protetor das mais diversas escolhas teóricas: santo
pÍotetor da história das mentalidades, da história social da arte e da micro-
-história;6a santo pÍotetor da hermenêutica165 santo protetor de um suposto
antiformalismol66 santo protetor de um chamado "pós-modernismo retromo-
derno"167 santo protetor da New Art History, ou até grande aliado da ctítica
feminista...68
Georges Didi-Huberman
);:stão passada: As formas sobrevivem: a história se abre
lc ra Àlemanha,
rr:: as coisas são
d. "impuiso" da
e:-nAS a heran-
u= :iimeiros mo-
ra- nultiplicação
ü:::ra \rertigem. ,-'i ;erto é que, como escreveu Ernst Gombrich - mas como pôde ele não se
c;:l um começa .-::ir r-isado por sua própria frase? -, "o [atual] fascínio exercido pela herança
rs :;óricas: santo :. \Tarburg também pode ser visto como sintoma de certa insatisfação" com
a:-- e da micro- :. :ristória da arte tal como é praticada desde o fim da Segunda Guerra Mun-
Í:a um suposto :--:.i." Em sua época, o próprio Warburg havia manifestado esse tipo de insa-
Í:_:s:iìo retromo- ::.lação, outÍa maneira de expressar uma exigência ainda não elaborada. Em
a-,:io da crítica -:!8. quando tinha apenas 22. anos, ele já fustigava, em seu diário íntimo, a
::srória da arte para "pessoas cultas", a história da arte "estetizante" dos que
ì- .ontentavam em avaliar as obras figurativas em termos de beleza; já então
---,r.ì\'ocava para uma Kunstwissenschaft, uma "ciência da arte" específica, e
-scre\-eu que, um dia, seria tão inútil falar em imagens quanto é inútil para um
:--ro médico tecer comentários sobre uma sintomatologia.T0
foi também por "aversão à história da arte estetizante" liisthetisìerende
E
{trrtstgeschichte] que's7arburg se lembrou de haver partido subitamente, em
i91.3, para as serras do Novo México.71 Ao longo de toda a vida, ele exigiria
io saber sobre as imagens um questionamento muito mais radical do que toda
: "curiosidade voraz" dos atribuicionistas - como Morelli, Venturi, Berenson
-. os quais qualificou de "admiradores profissionais"l do mesmo modo, erigi-
ria muito mais que o vago esterismo dos discípuÌos (quando vulgares, isto é,
rurgueses) de Ruskin ou ìTalter Pater, ou até de Burckhardt ou Nietzsche;
assim, evocou com sarcasmo em seus cadernos de notas o "turista super-ho-(
mem em férias de Páscoa", que vai visitar Florença "com o Zaratustra no \
bolso do casaco".72
-i
\ü/arburg pôs em prática um constante
-=le3 fqlp,g:g.la essa insatisÍação,
Jeslocamenro -"ããóiõôuinèiïtõ nó fênôâr, ïôi foritòs clê vistâ filosóficos; nos
.ampos de saber:. noi períodos histórjcos. nas hierarquias culturais. nos lugares
eeográficos. Ora. esse próprio deslocamento conrinuou a fazer dele um fantas-
:Tai..9f--,1Y3--ç,tgçg:.ç.-h9j9 P11.1-d-9-q-9-9.-!.yl,9a \)7-ar!urg foi s fogo'fátuo, ou
'
_m-el-11..91,*g.4trauessct pdredes da história da arte- Já então, seu deslocamenro
púry a_!!stó11a- dg- e{tg - paÍ-a. 4. e"I_UdiçAq.ç-4ç imageng e,m geral - resultara de
.g1.pjoçes!9.c1-ít!9.-o_'e-5-n.relação ao espaço familiar: um mal-esrar na burguesia
negociante e na ortodoxia judaica.ls.Mas sobretudo seu deslocamento atraués
A imagem sobrevivente 31
da história da arte, em sua orla e mais além, criaria na própria disciplina um
violento processo crítico, uma crise e uma verdadeira desconstrução das fron-
teiras disciplinares.
Esse processo já se faz sentir nas escolhas do jovem ì7arburg, suas escolhas
de estudante entre 1BB6 e 1888. Ele seguiu os ensinamentos de arqueólogos
clássicos - em todos os sentidos do termo -, como Reinhard Kekulé von Stra-
donitz (em cujas aulas descobriu a estética do Laocoonte efez, em 1887, sua
primeiríssima análise de uma Pathosformel) ou Adolf Michaelis (com quem
estudou os frisos do Partenon).7a Foi aluno de CarlJusti, que o iniciou na filo-
sofia clássica e em'sfinckelmann, assim como em Velásquez e na pintura fla-
menga. Em contrapartida, entusiasmou-se com a filologia "antropológica" de
Hermann Usener, com todos os problemas filosóficos, etnográficos, psicológi-
cos e históricos que ela arrastava em sua esteira. Depois, nas conferências de
Karl Lamprecht sobre a história vista como uma "psicologia social", ele en-
controu alguns fundamentos de sua futura metodologia.Ts
)i
1 Do lado do Renascimento, os ensinamentos de Riehl e Thode - que fizera do
b]' 'desenvolvimento artístico italiano uma consequência do espírito franciscano,
!relegando ao segundo plano o retorno da Antiguidade pagã - mais serviram de
!contraponto.T6 Porém, Hubert Janitschek o fez compreender a importância das
teorias da arte - a de Dante, a de Alberti -, bem como o papel das práticas so-
ciaìs ligadas a qualquer produção {igurativa.77 Quanto a August Schmarsow, ele
simplesmente iniciou tü/arburg no terreno florentino, se assim posso dizer: foi
in loco que o jovem historiador cursou seus estudos sobre Donatello, Botticelli
ou a relação entre o gótico e o Íenascentista na Florença do Quattrocento, te-
mas que hoje reconhecemos, todos eles, como eminentemente warburguianos.T8
é!É-q1d-iSSq, $ç_h11arsow def endia url'a Kun stw i s s e n s c h aft decididamente
aberta às questões antropológicas e psicológicas. Elaborou um conceito espe-
cífico da comunicação visual e da "informação" [Verstiindigungl, mas sobre-
tudo compreendeu o papel fundamental do que era chamado, na época, de
"linguagem dos gestos": retomando, para além de Lessing, a problemática
expressiva do l"aocoonle, tentou elaborar uma teoria da empatia corporal das
imagens, tudo isso enunciado a partir do binômio da "mímica" fMimik] e da
"plástica" lPlastik].'1e Nessas condições, ficaremos menos admirados de ver o
jovem \üTarburg passar da antiga Psicomaquia païa a leitura de \ü/undt, e de
Botticelli para cursos de medicina, ou até para um curso sobre as probabilida-
des, no qual, em 1891, ele fez uma exposição sobre "Os fundamentos lógicos
dos jogos de azar".8o
Mais do que um saber em formação, foi antes um saber em mouimento qLte
aos poucos se constituiu, pela ação - aparentemente errática - de todos esses
32 Georges Didi-Huberman
r:i.:. disciplina um :::,ccamenros metodológicog.
lb;-çdg*e**1_Qíe r -W=a rburg f azia parte de uma
c,:,ttção das fron- r:::;ão prestigiosa de historiadoies;;;;; (Emile M"1". ,rur..u em 1862;
-: 'ph Goidschmidt, em 1863; Heinrich \7ôlfflin, em 1864; Bernard Beren-
f,::. suas escolhas : . irrÌ 1865; Julius von schlosser, em 1g66; Max J. Friedlànder, em 1867;
e :r arqueólogos ''i
'relm vôge, em 1B68 etc.) -, mas sua posição epìstêmìcae institucional o
K-kulé von Stra- - ----r;ia em termos ahsolutos. Em I904, quando se aproximava dos quaren_
:;r. em 1887, sua :: -:-: rs. ele foi reprovado mais uma vez no exame para um cargo de professor
u..ls (com quem :: ;,r'|nn; semilúcido, semiangustiado, ele havia escrito em 1897: .,Decidi de
'- :niciou na filo- -.:: -''-z por todas que não fui feito para ser priuatdozenrr."sl Depois disso,
: - ra pintura fla- -'- a declinar de propostas de cátedras em Breslau e Halle e,
em geral, de
r::,,rp6lfgi.u" 6. : ---. ;-lier cargo público, recusando-se, por exenrplo, a representar
a delegação
:::,cos, psicológi- : -:,r- no congresso Internacional de Roma (1912), do qual tinha sido um dos
s :rnferências de - ' . .:ii'os promotores. Ele viria a permanecer como pesquisador priuado -
ã >'lçi21", ele en- .--=. :endo-se a expressão em todos os sentidos possíveis um pesquisador
-,
:- :róprio projeto, a "ciência sem nome", não podia satisfazer-se com fe-
i' - que {tzera do ---::-ntos disciplinares e ourros arranjos acadêmicos.
í:-,:: franciscano, -- ', essa, pois, a insatisfação iniciai: a terrìtorialização do saber sobre as
':-.:: ír-(. Em 1912, ao concluir
=-.rs serviram de sua comunicação no congresso de Roma sobre
r :::rortância das : :::ri.rs astrológicos dos afrescos de Francesco del cossa, em Ferrara, \(/ar-
i- ::-s prátìcas so- -
--: :ieiteou - segundo seus próprios ter:mos - uma .,abertura,, da disciplina:
s::;hmarsow, ele
.-, , arnscar aqlri esta tentativa parcial e provisória, minha intenção
a : ,,sso dizer: foi foi plei,
-:-1: LÌm alargamento metódico das fronteiras cle nossa ciência d,a
n.:.ilo. Botticelli .. :. ; i :
arte leine
o d i s ch e G r eze r w e ìt e r u n g u n s e r e t. Kunstwìs
s ens ch aftl (...7.s)
Q-.rrocento, te-
n--::3urguianos.78 :-:ia correto, porém muito incompreto, compreender esse preito como uma
f -;cididanente :'' :.ncia de "interdisciplinaridade" ou como a ampliação filosófica de um
r, :rnceito espe- : --'] de vista sobre a imagem, para além dos pr:oblemas factuais e estilísticos
ls.':_a-. mas sobre- - --- r historiador da arte tradicional formula a si mesmo. É fato que a vontade
d-.:ra época, de :: -'rarburg sempre foi conciliar a preocupãÇão fitológica (donde a prudência
;: :roblemática : : .omperência que ela pressupõe) com a preocupdção
fitosófìca (donde o
e::-: corporal das : r- -j ou mesmo a impertinência que ela supõe). porém há mais do que isso:
a
;;* \íìmìkl e da : '- -:.cia warburguiana quanto à história da arte dec.rre de
uma postura
r:-:-:.dos de ver o :-*:io precisa a respeito de cada um desses dois termos, ,.arte', e.,história,,.
r :. \\-undt, e de \bqrg,-cre!g, sgntia.se insatisfeito com â terrítonarização do saber sobre
r -:s probabilida- --: --I. agens porque tinha certeza de duas coisas, pelo menos. primeiro,
não fi-
ú.:.:entos lógicos -:-r'os dìante da iruagem como diante de algo cujas fronteiras exatas não po-
-::]os tïaçar. o conl'unto das coordenadas
positivas - autor, data, técnica,
z -,:,l'imento que -: 'rosrafia etc. - não basta, evidentemente. uma imagem, toda imagem, re-
r - ;: todos esses .--;.r dos movimentos provisoriamente sedimentados ou cristalizados
nela.
A rmagem sobrevivente 33
Esses t-,..,Crr,-infi1to9 a âtíãves3a1ll rle ic;ra
a fora. e eedã ciuaì tem'urna lraìetória
l:is'rorica. airtropoìí15';ic:r, psir:o1ó3'ica - clue ì-nilrte e'1e ionge e Ço1-Ìtiíxrla aléiÌì
-
ntt]t?1''t!iíl É,!1el"ge{lco oriCïinâmiC-lr"
iiela. Ì:ies nos obrigirln a pensá-la COnIO L1Í-1ì
airrd:r cir,.e e1e seia clper:ítico em sua estr-tltLìr:l'
para a histór'ia cla arte, clue
ol-r.,,. lsso iraz 111-ì-ì11 er,.nseqr.iência íi-lnciamental
rì seti "pleito":
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dceisãu. iie sailer utt 5r:ìJ, 11trÌ1ír rlLìcotrì'r'' cie Iernpo' cìe anciiltncnto'
-.
;l' )! )l'
b.:.rqs. A conse- : J-mos dizer fantasmal,no sentido de que nela o arquivo é considerado.r-'
lÈ ,lreiras" não é -.:s:rqio material do rumor dos mortos:
Yhü*ggSç1gy"S_U-*ç1Uç-' pê-r.a ,el,eo.co:1.
D.-:; erprime sua ,,-_i9=.*qg_ç,:tL'q._r"4çjfgg"ln$*dçgfi.id*o-g=", trarava-se de "resgarar o timbre
-=.t-_rgzçg1;1gu_dÍgqls *lden unhorbarei ittààtt-ïïi""ãiì-xtai'g1aLr)b" z,,rr-
E:i; rtaa,é.p !"9.!y_-
Fs- fonto, através .::,:en) - vozes dos desaparecidos, mas vozes deitadas, ainda redobradas na
fu:::npestiva, ina- ::-:ira simpies ou nas construções particulares de um diário íntimo do Quat-
pp: :ria teoria da
. ::,'Jinro! exumado do Archiuio.s5
Li.::.nava a uma -\s próprias imagens, nessa óptica de retorno de fantasmas, viriam a ser/
i :,:'ideradas como aquilo que sobrevive de uma dinâmica e uma sedimenta-) eflz-
;:,' antropológicas tornadas parciais, virtuais, por terem sido, em larga medi- I
-:. destruídas pelo tempo. A imagem - a começar por aqueler r.trnto, d.f
-::.rueiros florentinos. que warhurg interrogava com particular fervor d.- j
-
':::r ser considerada, portanto, numa primeira aproximação, o que sobreuìuel
:, :ríttJ população cle fantasma.s. Fantasmas cujos traços mal sao visíveis. po-i
:.::r se disseminam por toda paÍte: num horóscopo da data do nascimento,
:-j]la carta comercial, numa guirlanda de flores (justamente aquela de que
: Je "atravessaf '..::rlandaio tirou seu apelido), no detalhe de uma moda do vestuário, uma
:--.'-,a de cinto, uma circunvolução particular de um coque feminino...
: -:;achapante, a Essa disseminação antropológica Íequer, evidentemente, que se multipli-
(
= :-rda de
crítica J*-m os pontos de vista, as abordagens, as competências. Em Hamburgo, a \
::s pelas quais .::-rressionante Kulturwissenschaftliche Bibliothek ìTarburg é que viria a as- ,-ç1
.- j uma vez) per- .*rir o encargo - infinitamente paciente, sempre ampliada e novamente em c:
::nSamentO, de iras - desse deslocamento epistemológico. lmaginada por 's7arburg desde ;-. !.
.>s9 e erguida entre 1900 e 1906, essa biblioteca consriruìu uma espécie de -i-
::rs 171ãgnum em qüe seu autor, embora secundado por Fritz saxl, provavel- r't
.F\
::rirre se perdia tanto quanto construía seu "espaço de pensamenÍo" fDenl<es- H
-;:t'rtf .N6 &lggS-s_p-?ço riz-gmá1ico que, em L929, abarcava 65 mil volumes
-,
:-::essário, retar- -: :isiória da arte como disciplina acadêmica foi posta à prova de uma deso-
ç:=cisou levar um lìtaçao organizada:.rn rodô, os ponros em que harìa fronteiras enrre disci-
:-orificadoras e _: r n a s, a b- j b] i 9 1 e c 1.. p r o-c-=u.{4 y a e s q.4 b e 1.ç
çe r- I ig q ç õ e ç .8
7
;n tipo inédito \Ias esse espaço ainda era a workìng library de uma "ciência sem nome":
:: e revolveu os ::51ioteca de trabalho, porranro, mas rambém biblioteca em trabalho. Biblio-
*
I
teca que Fritz Saxl disse muito bem ser, antes de qualquer outra coisa, um es-
paço de questões, um lugar para documentar problemas, uma rede complexa
em cujo "âpíce" - fato extremamente significativo para o nosso propósito -
encontravâ-se a qwestão do tempo e da história: "Trata-se de uma biblioteca
de questões, e seu carâter específico consiste justamente em que sua classifica-
ção obriga a entrar nos problemas. No âpice lan der Spìtzel da biblioteca en-
contra-se a seção de filosofia da história."88
Salvatore Settis, num artigo admirável, reconstituiu os modelos práticos
dessa biblioteca - â começar pela biblioteca universit âria de Estrasburgo, onde
'Warburg fora estudante
-, bem como o contexto teórico dos debates sobre a
classificação do saber no fim do século XIX. Em especial, ele retraçou as me-
tamorfoses de um questionamento incessante dos pefculsos e "locais" da bi-
blioteca, em função da maneira como eram experimentados por'Warburg os
problemas fundamentais assinalados pof expressões cruciais' tais como Nacb-
leben der Antike (sobrevivência da Antiguidade), AusdrwcË (expressão) ou
Mnemosyne.se
Compreendemos melhor em que sentido uma biblioteca assim concebida
podia produzir efeitos de deslocamento. Uma atitude heurística - isto é' uma
experiência de pensamento não precedida pelo axioma de seu resultado - guia-
va o trabalho incessante de sua recomposição. Como organízar a interdiscipli-
naridade? Isso pressupunha, mais uma vez, a difícil conjunção das engrena-
gens filológicas com os grãos de areia filosóficos. Pressupunha a implantação
de uma verdadeira arqweologia dos saberes ligados ao que hoje chamamos de
"ciências humanas", uma arqueologia teórica, jâ centtada na dupla questão
das formas e dos símbolos.eo
Mas, ao mesmo tempo, impunha-se a espécie de situação dporéticd gerada
por tal iniciativa. A princípio, essa tinha sido uma empreitada de um homem
só e de um único universo de questões: é muito estranho - ainda hoje se pode
'Warburg,
senti-lo nas prateleiras do Instituto em Londres - usar um instru-
mento de trabalho que leva a tal ponto a maïca dos dedos de seu constfutor.
Se a biblioteca de'Síarburg resiste tão bem ao tempo, é porque os fantasmas
das perguntas formuladas por ele não encontraram conclusão nem lepouso.
Ernst Cassirer escreveu, em seu elogio fúnebre ao historiador' uma página
magnífica sobre o carâter aurático de uma biblioteca ao mesmo tempo tão
pafticulff e tão aberta, "habitada" por "configurações espirituais originais",
como se exprimiu Cassirer, das quais parecia emergiÍ' espectral e ainda "sem
nome", uma possível arqweologia da cubwra.el }/ras é inegável que essâ estra-
nhezatraz algo como um estigma da aporia:'Warburg multiplicou as ligações
entre os saberes, ou seia, entre as respostas possíveis à sobredeterminação in-
36 Georges Did!-Huberman
ÈX$.f r{rr;;cìr I
ulra colsa, um es- sana das imagens - e, nessa multiplicação, é provável que tenha sonhado não
n: rede complexa escolher, adiar, não cortar nada, investir o tempo para levar tudo em conside-
nc)sso propósito - ração: loucura. como se orientar num nó de problemas? como se orientar na
de uma biblioteca "sopa de enguias" do determinismo das imagens?
qLe sua classifica- Há outra maneira de formular a pergunta, de deslocar as coisas. outro
I ca biblioteca en- estiÌo, outro andamento. É perder, ou melhor, fingir que se está perdendo tem,
:o. É agir de forma oblíqua, por impulso . É bifwrcar de repenre. Não adiar
n:odelos práticos rrais nada. Ir direto ao encontro das diferenças. É partir para o campo. Não
E.:rasburgo, onde que o Archìuio ou a biblioteca sejam puras abstrações, não-terrenos: ao con-
rs Jebates sobre a :rário, esses reservatórios de saber e civilização reúnem grande número de es-
Ie retraçou as me- :ratos, dos quais é possível seguir, justamente - de um arquivo a outro, de um
s ; "locais" da bi- .ampo de saber a ourro -, os mouimentos do terreno_. Mas__biíurcar é outra
n lor-Warburg os ;orsa: é mouer-se em direção q::o terrgno, ir ao local, aceitar a experiência
perlencla exls-
exi
l :ars como Nach- =nci1l4"r p_glgUtttas -quealguém formula a si rnesmo.
ct erpressão) ou Trata-se, na verdade, de experimentar em si um deslocamento do ponto de
7
'.-ista: desloc ar a própria posição de sujeito, a fim de poder oferecer meios para
) LL{
r :ssim concebida leslocar a definição do objeto. Para sua viagem ao Novo México, N7arburg f -
b::;.r - isto é, uma rnr-ocou razões que ele mesmo qualificou de "românticas" lder.wille zwmt
u :e sultado - guia- Rontantischen], acima de tudo um intenso sentimento em relação à inanidade
b;: a interdiscipli- da civilização moderna ldie Leerheit der Ziuilisation] que ele observou na
ncão das engrenâ- ;osta leste dos Estados unidos, durante uma viagem com a família; mas ele
ú: a implantação :ambém evocou razões propriamente "científicas" fzur'\YissenschaftlJlsadag
hc,;e chamamos de i;qa fl-4v,er-g4o à h_ist-órla da arte esrerizanre" e à sua busca de uma 'iciência da
na dupla questão arr9" lKunltwissenscbaftl que se abrisse para o campo simbólico .- ou, ceme
cle dizia então, cultural - em geral lKuburwissenschaftl.ez
o -;üorética gerada Embora a "viagem indígena" de \Tarburg tenha sido estudada com frequên-
ria de um homem cia,e3 a questão de saber o que ele buscou nela, exâtamente
- e o que encontrou
airda hoje se pode -. permanece até certo ponto em suspenso. Se concordarmos em reconhecer a
- Ì-rsar um instru- :mportância metodológica de tal deslocamento - para além das palestras per-
ie seu construtor. llexas, às vezes chocadas, que fariam dele o ato puramente negativo e desloca-
rcue os fantâsmas io de um historiador da arte em plena crise moral -, precisaremos nos pergun-
rsi.o nem repouso. tar que tipo de objeto tü/arburg terá encontrado durante essa viagem: que tipo
iaJor. uma página de objeto propício para deslocar o obleto "arte" contido na própria expressão
n=smo tempo tão ''história da arte". Perguntemos, simetricamente, que
tipo de tempo.ü/arburg
ú-r:ruais originais", :erá experimentado por lá que fosse propício para deslocar a "hìstórìa", tal
mraì e ainda "sem como esta costuma ser entendida na expressão "história da arte,, .
ir-el que essa estra- Que tipo de objeto, entã9? \x/arburg encon_trou nesse campo de experiência?
tiplicou as ligações \igumá êoisa que, provavelmente, ainda permanecia - era o ano de lB95
- {.LL
redeterminação in- €,q,g-i!+_dg.'A_lgo que era imagem.mas também ato (corporal, social) e símbo-
A imagem sobrevivente 37
/o (psíquico, cuftural). lJma "sopa de enguias" teórica, em suma. Um amon-
toado àe serpentes - o mesmo que fervilhava como ato no ritual de Oraibi, o
mesmo que dardejaya como símbolo em relâmpagos celestes (fig. 37 e 73-76),
o mesmo, ainda, que atravessava como imagem a visão de estalactites reptilia-
nas do Novo México, ou as espifais de um retábulo barroco diante do qual
fezaYãm alguns índios em Acoma.ea
O problema suscitado por essa "concreção" de atos, imagens e símbolos
não é saber se \íarburg buscava uma paridade ou uma disparidade em relação
a seus objetos de trabalho ocidentais, florentinos, renascentistas. Será que ele
estava lá para estabelecer uma analogia com o Renascimento' com suaS festast
suâs representações de Apolo e da serpente PítOn, seus elementos dionisíacos e
pagãos, como pensâ Peter Burke?e5 Ou estafia Iâ para experimentar uma com-
pleta inversão do ponto de vista ocidental e clássico, como pensa Sigrid'líei-
gel?e6 A Íesposta deveria ser dialética: efa na "incorporação visível da estra-
nheza", segundo a expressão de Alessandro Dal Lago,eT que'Síarburg buscava,
com certeza, uma base não comum e arquetípica) mas dìferencial e comparati-
ua comas polaridades manifestadas, segundo ele, por todo fenômeno cultural.
Mas por que esse objeto era propício para deslocar o obieto " drte" tradicio-
nalmente visado pela disciplina da história da arte? Por não ser um objeto, jus-
tamente, e Sim um complexo - ou um amontoado, um conglomerado, um ri-
zomã - de relações. Foi essa, sem dúvida, a razão principal do compromisso
apaixonado que ìíarburg manifestou, durante toda a vida, com as questões
antropológicas. Ancorar as imagens e as obras de arte no campo das questões
antropológicas foi uma primeira maneira de deslocar, mas também de orientar
a história da arte para seus próprios "problemas fundamentais". Como histo-
riador,'Warburg - à semelhança de Burckhardt, antes dele - recusou-se a colocar
esses problemas no plano dos fundamentos, como teriam feito Kant ou Hegel.
Enunciar os "problemas fundamentais" não era procular extrair a lei geral ou
a essência de uma faculdade humana (produzir imagens) ou de um campo do
ïrl saber (a história das artes visuais). Era multiplicar as singularidades pertinentes,
era, em suma, ampliar o campo fenomênico de uma disciplina até então fixada
em seus objetos - desprezando as relações instauradas por esses objetos, ou
pelas quais eles eram instaurados - como um fetichista em seus sapatos.
Georqes Didi-Huberman
si-:e. Um amon- ì::::re parte, continuavam no não pensado da discipiinaJg-lg,_v_a:gqj-q_lA"r-g:
ir-:. de Oraibi, o à qrt-1er4a.,ç,çm?-le-x.idade das relações e detçr-miqaçÕe-s - ou lnelhoÍ,
.r --.r.- liì- e- -) -/\
/J-/O))
-:-..;l
. - ; : -i1tqlmin-dçQg;. dç q.pg ês lmagenq .se- constituíam, lgm como de refor-
-
f;-=;rites reptilia- - - -rr .1 especificidade das r:elações e do trabalho formal de que as imagens
c ::.ìnte do qual :::::.onst_itu_tives. É perfeitamente estúpido - e feito com bastante frequência
- : \.er em ìTarburg um pesquisador de "fatos" históricos e "conteúdos"
It:::1s e símbolos : ::, riógicos, um suposto antiformalista, incapaz de difer:enciar a imagem em
tz;-;;: em relação ::r: e a obra-prima singular. O que ele tentou - e o projeto Íinal, Mnemoqtne. Ì
k:.. Será que ele ::-s:a-o de forma evidente - foi, antes) recolocdr o problema do estilo,
"tt"\l;.t
f : ,:lì suas festas, :: ,blema de arranjos e eficácias formais, sempre conjugando o estudo filoló- Ì/*"
h . :ionisíacos e -:.-rr do caso singular com a abordagem antropológica das relações que tor- ii' {"!1
tse --.-: Ltnla com- r:rl essas singularidades operatórias, em termos históricos e culturais.et j
'!íei-
!r .: Sierid 1gU,4 -nççe9sári-S 9m l-ivf9,inleilg p4.ra avaliar com precisão o que Warburg t
-'
-. ', lÌ da estra- :.ira podido encontra{, na antropologia de sua época - um campo vasto, con-
-:rnente a estudos especializados de tipo etnográfico, bem como a grandes
.rstemas de inspiração filosófica -,eu€ se prestasse a transformar sua atitucle
-.:.r cultural. -: historiad.o-t.da 4f!ç," Fm especial, seria preciso reconstituir o considerável
" rradicio- nrpacto do pensamento de Hermann Usener, cujas aulas V/arburg frequentou
-.-..
-rn Bonn, entre-l 886 e.l 887, e cujo projeto de uma "morfologia das ideias
:eligiosas" imprimiu marcas profundas na metodologia warburguiana.r00 F,le
- :::promisso rar-ia abordado os mitos da Antiguidade, tal corno \Tarburg iogo viria a f azet
: -:-s questões .om os afrescos do Renascimento; ligava a investigação filológica - detalhes,
:-:.) questões e specificidades, singularidades - aos problemas mais fundamentais da psicolo-
. i: orientar qia e da antropologia; ao estuda! por exemplo, as formas da métrica grega, ele
*.':r,,o histo- o iazia para pensá-la como um sintoma de cultura global; buscava Íemanes-
--.. : colocar cências até na núsica medieval; tentava, reciprocamente, abordar cls atcls de fé
::r. .tll Hegel. em geral como formas das quais era sempre necessário, em cada caso específi-
,: ..: ,4eral ou co, tornar-se o filólogo.ror
-:: ::n-rpo dct Tarnbém poderíamos buscar os empréstimos que \X/arburg tomou da antro-
:: :::linentes, pologia das imagens - uma antropologia muito gerai - tentada por Vilhelm
: ::::-ì-O iixada Wundt em sua gigantesca Võll<erpsychologie.l0) Ou então segr-rir as pegadas
': l'ÈfOS, Oü das referências warburguianas a Lucien Lévv-Bruhl, ao serem evocadas a "lei
.:::'S. de participação", a "sobrevivência dos mortos" ou a ideia de causalidade na
"mentalidade primitiva".'ot-V"g -o-qpe i-r-npo-rta".çsçfu=re. c-çr.p{o é apenas o quç
Wa_rburg deve à antropologia de sua época. Também é preciso fazer a perguq-
ta utversa: o. que a antropologia em geral e a antropologìa histórìca etn pant-
- -: história crlar-devem a Lrma abordagem desse tipo? .
: ì:11 ponto Por diversas razões - razões antes de tudo históricas, sem dúvida, ligadas
.ì . JUe) em aos longos anos dos dois conflitos mundiaisl0a -, a escola francesa deu mostras
A imagem sobrevivente
de um desconhecimento especial dessa
tradição alemã' Hermann Usener - que
permaneceu ignorado por Jean-
Mauss, no entanto, lia com muita atenção1"t -
a \larburg' ele foi negligencia-
-pierre Vernant ou Marcel Detienne.r06 Quanto
positivistas, como também pelos que
do não apenas pelos historiadores da arte
pelos melhores da escola dos Aru-
eram receptivos ao estruturalismol0T ou até
nales.Assim,JacquesLeGoffatribuiugenerosamenteaMarcBlochaexclusi- que
..fundação da antropologia histórica; além disso, observando
vidade da
que uma dezena de páginas -
Os reis tdumaturgos não comportavam mais ..a reno-
..dossiê iconográfico,', ele concluiu que
bem pouco analíticas - de um
da pesquisa histórica atual"'108
vação da história da arte é uma das prioridades
de perspectiva' Sua maneira
Reler Warburg atualmente exige uma inversào
da arte, de abrì-la, teve como
muito particular e radical de praticar a hlstória que
perguntas da antropologia histórica - a
efeito, ao que me parece' tefazer as
g.t..khu.dt e Hermann usener -, a partir de
ele herdou, em especial, de Jacob
das imagens. Não cabe à histó-
um ponro de vista r.l"tiuo à eficácia simbólica
..renoVAr-Se" com baSe em "rÌOvas" questões' fOrmuiadas pela diS-
ria da arte
cipÌinahistórica,arespeitodoimaginário;109cabeàprópriadisciplinahistóri-
que, ,ro- dud,, momento de sua história,
o "pensamento-piloto"'
ca reconhecer
sobre os poderes da imagem'
a ,,novidade", veio de uma reflexão específica
Para\Tarburg,defato,aimagemconstituíaum..fenômenoantropológico
particularmente significativas do
total", uma cristali zação err*u Ã'ldt"sação
de sua história' É isso que é
que era uma "cultu ra" lKultutrl num -o-t"'o
que twarburg prezava de uma "for-
preciso compreender, deìmediato, "u ideia
mythenbildende Kraft im Bildl'n, E foi por
ça mitopoética da iÁagem" ldie
"disciplinar" ao orientar seus
irro q,r" .1. não vivenciou nenhuma contradição
,.fãr-.,1u, patéticas,, do Renascimento - as Pathosformeln,
estudos para as
a fórmulas visuais da
intensificados nâ representação pelo recurso
esses gestos
as mímicas sociais, a coreografia'
Antiguidade clássica -, para pesquisas sobre
amodanovestuário,-n,.o,'d.'tasfestivasouoscódigosdecumprimentos
e saudaçòes.ìrl
d'o agir global dos membros
Em suma, a imagem não devia ser dissocia da
de uma época. Tampouco, é claro,
de uma sociedade. ú.- do saber prôpno
invenção warburguiana, que foi
do crer:aí reside outro elemento essencial da
da eficâcia mágica - bem
abrir a história da arte para o "continente negro"
como litúrgica, jurídica ou política - das
imagens:
é'
(...) uma das verdadeiras tarefas da história da arte lKunstgeschichte)
comefeito,fazerentrarnoquradrodeumestudohistóricoaprofundado
da literatura cle propagan-
essas criações saídas das regiões mal esclarecidas
Georges Didi-Huberman
n;nn Usener - que -. :,:,iírico-religiosa; na verdade, essa é a única maneira de captar em toda
8noÍado por Jean- : : ': -\rensão uma das questões mais importantes da pesquisa científica
ele foi negligencia- -- ::- as civiÌizações e os estilos leine der Hauptfrdgen der stìlerforschenden
ta:rrbém pelos que : .,,::r,.1'ìssenschaft] (...), e de tentar oferecer-lhe uma resposta.rr2
cia escola dos An-
rc Bloch a exclusi- ,-.-s]izame-nrc do vocabulário é significativo: passamos de uma história
r. observando que {__{as tsq
s.
t!lt!.!g-l pgt?_1à!,1.A".-ç-retcia da cult-ura [Kz burwissenschaft], a
ze:ra de páginas - -t5r:-ç:ry9.!ç_mB.o,-abre e.ç-ampp dos objetos e encerra o enunciado dos
riliu que "a reno- ::-:-::las fundamentais. A Kunstgeschicbte relata, por exemplo, que um gê-7
h:srórica âtual".1o8 ìe:, ljs belas-artes chamado "retrato" surgiu no Renascimento graças à vi \
snla. Sua maneira :: :.: :lmanista do indivíduo e ao progresso das técnicas mimeticas;
'Warburg -at n i
A,-rri-lA, teve cOmO -i -.--;,-;i i*s,ssnschaft de contará outra história, de acordo com o rem-
-., 1,..{,1
ialstórica-aque :h- :-ll mais complexo de um novo cruzamento - um entrelaçamento, uma
s€:ler -, a partir de ; -:,i"'ïerrninação - entre a magia antiga e pagã (remanescências da imago
, \ão cabe à histó- :--,::ra. a liturgia medieval e cristã (prática de ex-votos sob a forma de efí
rn:uladas pela dis- .:5 = dados artísticos e intelectuais próprios do Quattrocento; com isso, o
r crsciplina históri- :::::.,-r se transfigurará aos nossos olhos, tornando-se o suporte antropológico
nsamento-piloto", jr' -rrâ "força mitopoética" da qual a história da arte vasariana se mostrara
bres da imagem. :a::22 de dar conta.113
eno antropológico ,is.im. a Kunstwissenschaft, "ciência da arte" ardentemente desejada por '
te significativas do â.::;rg nos anos da juventude, assumiu a forma de um questionamento es-
rória. É isso que é :e:,t:;o sobre as imagens no quadro - inespecífico, aberto a perder de vista -
z:r'a de uma "for- -: -::a Kttlturwissenschaft.lla Era necessáÃo abrir o campo dos objetos passí-
Blld),tro E foi por ,:-. ie interessar ao historiador da arte na medida em que a obra de arte já
r- ao orientar seus --:. - ;ra vista como um objeto encerrado em sua própria história, mas como o
as Pathosformeln, :'-::o de encontro dinâmico - ìTalter Benjamin acabaria falando em fwlgura-
órmulas visuais da ; - - de instâncias históricas heterogêneas e sobredeterminada,s--Ela_Qç_u=a{!lgo
iais. a coreografia, gfue'a-çonc-eilo warburg ui a sa de Ku bw r w i s s e-n s c h a,fr, E d g a r \X/in d
ie cumprimentos =55gêls
:-:cl=qu-.g!re--"toda tentatiya-.de.desvincular 4 imagem.finclusive artística] de
s;r-Cç-o!-ç"*o1n.a r-elieJagç.g-pg-q-si?: g.çq!q9.g-_o drama, é como retirar-lhe seu
ot'aÌ dos membros :
;5io :al.gge ll i febloodl'. "' -Çonrfariando qualquer ideia de uma história
ampouco, é claro, -:-:;rn-oma das imagens - o que não significa que se devam ignorar as especrfi-
burguiana, que foi : ::ç!-e_5*formais -,. a Kultu.rluìsçenscbaft de \Tarburg acabou, portanro, pe!
Ícia mágica - bem ;!'JeJet+tPo"dessa-história..Ao mandar gravar em letras maiúsculas a palavra
i:.gr correspondente a memória [Mnemosyne] no alto da porta de sua biblio-
:=;a. \x/arburg indicou ao visitante que ele estava entrando no território de
t,<tseschichte] é, : t.:ro tempo.
:o aprofundado
ra de propagan-
I
rts
Nachleben, ou a antropologia do tempo: Warburg com Tylor
A rmagem sobrevivente 43
Gombrich, por exemplo, afirmou que a "ciência da cultura" reivindicada por
Tylor não poderia ser bem vista por um cliscípulo de Burckhardt que se preo-
cupava, acima de tudo, com a arte italiana...120 No entanto, essa "ciência da
cultura" lscience of cwhure] imperou na abertura de um livro a tal ponto capi-
tal - Cultura primìtiua, publicado em Londres em 1871 - que a etnologia, no
fim do século XIX, acabou sendo comumente chamada de "a ciência do Sr.
f)'Ior".121 A notoriedade de um livro, mesmo imenso, como neste caso, decerto
44 Georges Dìdi-Huberman
- :::','indicada por
h.:Jl que se preo-
!- :iì.ì "ciência da
c . :al ponto capi-
tr: : -tnologia, no
: -. ;rência do Sr.
tr:::: aaso) deCertO
i= ; lntatO entle a
k: :..ide, sobretu-
?:; . --'tttropologia,
r--, :osição - da
i- ::riicaLI - entre
k -:,-mporalidade 4. Pontas de flechas de obsidiana. México, pré-históna. Segundo E. B. Tylor,
() Anahtrac, Londres, 1861, p. 96.
S;'':: da história,
u-::ecidos novos
Í. : : :Lla VeZ, ten- ,Vas a palavra havia surgido em sua pena, como que espontaneamente,
ic. rr..ou por afir- :rum outro contexto, numa outra temporalidade de experiência: num desloca-
ú:_ -.-" lscience of ',:t'nto. M_aiq pre-çisamente, numa viagem ao México. Entre março e lunho de
rï, . :,-e esse desen- ,:-í6, Tylor.havia cruzado o México a.cavalc, íeito observações e tomado
ü:,., ;om base no :::lhares dg no1as, ?ublicgu em 1861 o diário dessa viagem-- sua versão do_s
4' : mpreender o -'-,'s/es
trópicos.-r.no qual entraram em cena, alternadamente, cemo que para
r: ".: ,-ogia: s--rpresa dele mesmo, mosquiros e piratas, aligátores e padres missionários,
::-riico de escravos e vestígios astecas, igrejas barrocas e costumes indígenas,
tr: -: ..-:() intelec-
:::mores de terra e uso de armas de fogo, normas de etiqueta à mesa e manei-
ne .:-, :aZef SUaS
::s de fazer contas, objetos de museu e combates de rua...126 Anahuac e um7
b- - -:-;,; relicsl e
,:o iarcinanre, porque assistimos ao assomhro contínuo do autor: assombro I
,-:e a ideia de que uma mesma experiência, em um mesmo local e.r- -.r-o iü{.
L : ;o da inatua' :1 rmento, pudesse veicular esse nó de anacronistnos, essa mistura de coisas j
b -;-;.:-., o não pen: ::.sadas e coisas presentes. Assim, as festas da Semana Santa no México atu-^l
:- za\-am comemorações heterogêneas, semicristãs e semipagãs; o mercado
FJ ,J,rs sobreuì-
rc" ::1".1 prtmxttl)d) -:-:íqena de Grande aÍualizava um sistema de numeração que Tylor acreditava
i- --.-rro da cultu- : ..: só poderia encontrar nos manuscritos pré-colombianos; e os oÍnamentos
:=- - pediam que : ,ì antigos facões sacrificiais aproximavam-se dos encontrados nas esporas
n- ..rta um nó de - . L'Jqueros mexicanos...l']? (fig. 4-5).
r. -= movimentos Diante de tudo isso, Tylor teria descoberto a extrema variedade e a vertigi-
s:,,:, cavado por '.a complexidade dos fatos culturais (o que também se sente ao percorrer
[ :::::1,ÌtOS tempo- - :-:zer), mas" ter-iaì€.u"almente desco.berto algo .ainda mais perturbador (que
&:-::13 uma parte .1.a sentimos ao ler Frazer): a ação
uertiginosa do tempo na atualidade, na
-.-:reúiciel'presente de uma dada cultura. Essa vertigem se expressa, inicial-
A imagem sobrevivente 47
â.
ë )l )l >i-
48 Georges Didì-Huberman
,#
l
H
Li-nsáve1 intro- rrrg, como sabemos, interessava-se peÌos vestígios da Antiguidade clássica:
n-:r:e a designar -''estígios que não eram
redutíveis à existência objetal de restos mareriais, mas
:rnda assim subsistiam nas formas, nos estilos, nos comportamentos, na psi-
êr::as em Cultura ;ire. Podemos compreender facilmente seu interesse pelas suruìua/s de Tylor.
r'::,riogia e a todas
in primeiro lugar, elas designavam uma realidade negatiua - justamente aque-
e ;:- \;tcbleben der
-: que aparece numa cultura como um refugo, algo fora de época ou fora de
*srr (os bòti {Iorentinos, por exemplo, testemunhavam, no século XV, uma
u:---iacões astroló-
::árica já isolada do presente e das preocupações "modernas" que fundaram
Í.i-.rho Lutero?r3't
ic : :a1ha na cons- : erte renascentista). Em segundo lugar, as sobrevivências, segundo Tylor, de-
rrqnavam uma realìdade mascarada: algo persistia e atestava um estado desa-
n:.;:O que, A Cada
:-:recido da sociedade, porém sua própria persistência era acompânhada de
t-;: : tbreuiuências.
ln" ::-.-,s'' ltrìuial de-
:na modificação essencial - mudança de estatuto, mudança de significação
iizer que o arco e a flecha das guerras antigas sobreviveram como brinquedos
r::, .lntoma, o que
r-= :::significância. -:fantis é dizer, evidentemente, que seu stdtus e sua significação se modifica-
::n completamente).
ft:-.' ..otivas, Tylor \isso, a análise das sobrevivências se evidencia como a análise de manifes-
b'. :oder dos sig-
:-:;ões sintomais e fantasmais. Elas designam uma realìdade de ìntrusão, aind,a
]-: -\pressivOS do
::: :-r- "linguagem :;e tênue ou até insensível, e por isso designam também uma realìdade espec-
' ---iÌ a sobrevivência astrológica apareceria çomo um "fantasma" no discurso
f, \nies de War- l- Lutero, um fantasma cuja eficáciawarburg podia reconhecer através de sua
k ..::oma - absur-
:rrruÍeza de intruso e de intrusão - de sintoma - na argumentação lógica do
3- :-s tempos ver-
::eqador da Reforma.ra, Não é de admirar que a fortuna crítica d.as suruiuals
f . 'le ira de ouvir
:-"orianas tenha concernido. inicialmente, aos fenomenos da fé: esse conceito
,
,. ;:contraria no campo da história das religiões as suas mais numerosas aplica-
:-='es'rr1 Alguns estudos arqueológicos de longa duração, antecipando-se ao
:,:e André Leroi-Gourhan viria a chamar de "estereótipos técnicos',, teriam
.-:.rido, ainda assim, abordar a história dos objetos sob o ângulo da suruìual.1a2
A imagem sobrevivente
H
lesti nos do evolucionismo: heterocronias
:,..:,ffi
tQs, isso seja
i**p,::*,,,':1,*:. iïjd:.tf:i;iï:ï que' na falta de.arquivos.escri_
difícit.de
";;;ï;"ï:11'"
a"n"""à"r';J"
ìnteraçào' ou nó'
de
i,:,;,ï::::,,Ï iu "-;;;ü;;
,,,ïi,ï.:;ff ;:i'ilïíïï;ï'ï::'Ïï#::#ïÏ;:ï:'ff Íï,:i$Í;
';í2',:":"^,#,'f
iË: j.:ï':r*f
expÌicativa"
i'f 'Wf
,"fiii::i:;:l*:
enrre magia ;-;-."r,0:-"t -a hipotese];ïï:: ;ït"il::n;:
que teria sido seguìda
maìs racion"l,
moral' mais "evoluída", o.r, "rrr"r-u
-rït"o' da segunda,
Mauss ru.bénttt em ,;;":r;;""'ação
i;.ïïdï:: " o * .,,ï,,. " "
a,l, ;
mar",.,ì., "
de ,rìrììpir*,o.
:ï:il
:ïi::u:'
Esre reva nâo :l_*iil;'.;:;;;"ï;::l,ïi:::ff-
mas a sua tt.guçao u
dos m.,àero, o"
orr" ,t-iil:ïrïrtt-plificaçâo
a'i'"u"
dn"ï0",
d" "
: I'iq,;:;?:#:;,:'#,'J:';,:"';:
:ipercepçâo analógìca. e
'ì-ï"ï,,,,,-o
o chamariz
.uÌtu_
quando r"ru",","ínaa euando ,, ,.,n.,ïrdilha;;;;;r";:;ïïï1:#l:
por cima.
poral. e claro or* ot'*:1:
que a suruì-urìr';::;^ï:i,
suruìuql torna-se
o.ll^":."t uma sisnificaçao
gerar e arem_
i"g;." ì,ì';.:Jï; uma
,mirificatur, in-., "ïj,ãcuro epísremo_
lletada
. ,,"ì";;;;ïi:ï*J"iï:il::1 '"u""
*^iì",riìlu ouo. ser inrer-
-
í'- :'- .ncìa às próprias -" ::: :ie de analogias substancializadas) de pseudomorfismos de uso uni-
':^ : -- ',-)ra. é o próprio Tylor quem vai buscar seus vestígios. O arco e a flecha
, " : :::m uma "espécie", como dizia Tylor, num linguajar calcado no elo
'. -'s homens mais
' : , ja reprodução, porque, "entre dois utensílios idênticos, ou entre dois
':::-.saeasobre-
. -: - ' s diferentes, mas de forma tão próxima quanto possível, existe e existirá
: : -: s. ìtt'
,r - : -: '-::-ia descontinuidade radical, que provém do fato de que um não saiu
::,- '. 1s" têm história - -: . nlas cada um deles brotou de um sistema de representâÇãs".r-;o
a: :\Dressão "povos ,, ,:-:e de passagem que ìlarburg teria subscrito essa primeira afirmação
r: : -.:Ìnto pode ser a :- ::::rr: tratava-se de colocar a organização dos símbolos na posição de
lç -. dift"rsas", como r -:-:".:-:- iundadora do mundo empírico.
b- :. arquivos escri-
-_- , Srr4uss deu um passo supleÌrìentar - e menos prudente - ao dizer que
ì- ;: remporalidades : :::* jos provenientes de uma problemática das sobrevivências "não nos
:-.: --r. o uso das szr- : - : rrr nada sobre os processos (...) inconscientes traduzidos em experiências
&:: r,JS modelos do , r::-::s'1, o que ele mesmo invalidou, algumas páginas adiante, ao reservar
r .ìco como uma ,.:. i',ior um lugar quase fundador na avaliação da "natureza inconsciente
: , :.::omenos coletivos".l't1.,Mas Tylor, a seu ver, continuaria a ser aquele que
err :=sponde que "a :::: --:-ra uÌrÌa etnologia desprovida de qualquer preocupação histórica: bas-
':^:" :- uma COnfUSãO - ,.- rr citar uma breve passagem de Researcbes into the Early History of
r ,-:;,ì-o da segunda, .",:<:,td fPesquisas sobre a história primitiva da humanidade] (.1865), sem
:----;i prestar atenção ao título do livro, e sobretudo sem reconhecer que, seis
iA. : ::: .1 OUtfa aÍma- , . depois, Tylor desenvolvera, em Cubura primitìua, uma reflexão sobre a
u": : ,Jeríamos cha- ,:,-,rrcidade das sociedades prin-ritivas que, decididamente, Lévi-Strauss que-
= :-,os do tempo, - . -.-rrrbuir unicamente a Franz Boas.r-t2 Em 1952, o autor da Antropologia
n-' : -r-rsmo da cultu- ...-:titrral viria a enunciar sobre a historicidade "fora do alcance" dos povos
Er: -- :,,-nsrituído pela : :ritivos uma tese que foi uma paráfrase totâlmente inconsciente das passa-
q :----Jomorfismos, :-::s tllorianas citadas acima.l-s r
fu..::-:, geral e atem- Tudo isso deixa inalterada a questão de fundo: ainda se trata de saber o que
rr-:. :;ulo epistemo- .3nifica "sobrevivência". E, para começar, trata-se de saber em que esse con-
Ei-: rode ser inter- :-iro decorre ou não da doutrina evolucionistâ - em que sentido e para que
br r -,t de \7arburg, ::opósitos. Quando, no sétimo capítulo de seu livro Pesquisas sobre a história
E -: trÌ\âr tOdOs oS :,rntìtìua da bumaniddde, dedicado ao "Desenvolvimento e declínio da civili-
üsr : :- .:lle os fios ihe ilção", Tylor colore seu texto com referências a Darwin, o propósito é clara-
Ei:' ,ì -. tudo isso :Ìlente polêmico: nesse moflÌento, ele precisa jogar a evolução humana contra
E': :.::.,1111ãl, decidi- : destinação divina, ou seja, A origem das espécies conrra a própria Bíblia.15a
rs _'. Precisa reabilitar a "teoria do desenvolvimento" e o ponto de vista da espécie
k;" : ,logid estrutu- .ontra as teorias religiosas da degenerescência e da visão do pecado original.r-t5
rs- . lais parcial e, Impõe-se um esclarecimento suplementar: no momento em que Tylor entra
FÉ .: i- má-fé. Lévi- nesse jogo de referências, o vocabulário da suruiual ainda não foi elaborado.
F-:-srlo e sua utili- -\'Íesmo que o debate sobre a evolução constitua seu horizonte epistemológico
)l >l :l
54 Georges Didi-Huberman
i *, 'do cÌaramente :.- :orais manifestadas, por exemplo, por um fóssil, um embrião ou um órgão
t,- ---1nto a seleção :-;:n-Ìentar.161 Patrick Tort, por outro lado, mostrou que era abusivo identifi-
::": :ittest], garan- ,.: : filosofia de Herbert Spencer - essa que vem espontaneamente à lembran- \
' I
!, ,: . t. i't- :.s espécies vivas como sujeitas a variação; a primeira é uma doutrina, ou âté
:la ideologia do sentido da história, cujas conclusões - disseminadas nas
.:sses dirigentes e nos meios industriais do século XIX * se opõem, em muiros
::ectos, às da Orìgem das espécies.162
c. .-. de desorien- O pivô do mal-entendido provém justamente da ideia de sobrevivência.
r-,,,- ::ìeologia em >,rmente na quinta edição de seu livro Darwin fez intervir a expressão spence-
c ..-,.-Jo mais ori- ::-:na "sobrevivência do mais apto" fsuruiual of tbe fìttestl; os epistemólogos
ç": :-'no tal. Sem_ :- hoje só veem confusão teórica na associação dessas duas palavras (que
E :: )iognóstico. Ti 1oq como vimos, dissociou criteriosamente). Falar dessa maneira, com efei-
k:- -:,r tão pouco :,:,. é reduzir a seleção à sobrevivência: os mais aptos, os mais fortes sobrevi-
'. -m
i:. : " seivagens" aos outros e se multiplicam. A ideia de que essa lei possa concernir ao J
r. . cegenerados rundo histórico ou cultural é de Spencer, não de Darwin, que via na civiliza-,
u-- : .:lro de vista ;ão, antes, uma forma de nos opormos à seleção natural - de nos "desadap, {(
'
siE - --: node ter-se :.lrmos".r63 Nesse sentido, \üTarburg foi darwinista, sem dúvida, mas não evo-l
:;ionista no sentido spenceriano.
Nele, a Nachleben só tem sentido ao tornnr complexo o tempo histórico, ao
reconhecer no mundo da cultura temporalidades específicas, não naturais. Ba-(
:e ar uma história da arte na " seleção natural" - por elimin"çã" ;.;t; J., ì l" t'+
estilos mais fracos, vindo essa eliminação a dar ao futuro sua perfectibilidade
e . à história, sua teleologia * é, com ceÍÍeza) algo diametralmente oposto ao seu
momento em que talvez não fosse esperada, tendo sobrevivido, por conseguin-
te, no limbo ainda mal definido de uma "memória coletiva". Nada está mais '
:l >i- >i-
I
l:ìstória -
modelos narrativos, modelos de continuidade temporal, modelos de I
:ssunção objetiva -, dirigindo-se aos poucos para uma teoria da memória das i
:-: de um siste- iormas - uma teoria feita de saltos e latências, de sobrevivências e anacronis,
'-:i lela simples mos, de quereres e inconscientes -, Aby.ü/arburg efetuou uma ruptura decisiva
.om as próprias ideias de "progresso" e "desenvolvimento" históricos.
I Ora, essa Jogou
.r o evolucionismo contra ele mesmo. Desconstruiu-o pelo simples reconheci-
mento desses fenômenos de sobrevivência, dos casos de Nachleben que agora
::: ,rt-tntento dct precisamos tentar retomar em sua elaboração específica.
. ' rbrevivência.
:: do símbolo"
: - : DOe em COn-
.:,iia ensinada
A imagem sobrevivente 57
ie,rascimento e impureza do tempo: Warburg com Burckhardt
JacobBurckhardt,pioneiroexemplar|uorbìldlìcherPfadfinder],abriupara
a ciência o domínio da cultura do Renascim ento lKwltur
der Renaissance] e
como rirano
o dominou com seu gênio, porém nunca pensou em explorar
Georges Dìdi-Huberman
&
'B-
ne m sealp{e ç_x_!stlf a" Í:, -;:: a região [Land] que acabara de descobrir; ao contrário, sua abnega-
i. entrar no Renasci- '' ;:=nrífica fwissenschaftliche Selbstuerleugnwng] foi tal que, em vez de
irnento - era também !:=: : : o problema da história da civllização preservando sua unidad e [Eìn-
0 estì1o e os desafios ::::.::):<eitl, tão sedutora no plano da arte, ele o dividiu em várias partes
n:::-:iemente não relacionadas lin mehrere ìiusserlich unzusammenhiin-
;ujas célebres foÍmu- :i::. Teìlef, a fim de explorar e descrever cada uma delas com soberana
lnte histórica e inter- .:::_:iade. Em A cultura do Renascimento, ele expôs primeiro a psicologia
) homem", "advento :', social, sem consideÍar as artes plásticas; depois, em Cicerone,
-orr-íduo
o à Antiguidade con- -,:-:-:rrou-se em propor uma "iniciação ao prazer das obras de arte". (...)
, relativizar o que tais - - -.;ios da personalidade superior de Jacob Burckhardt, nem por isso de-
,::- -'t hesitar em avançar pelo caminho que ele nos apontou.183
siár'e1: quando'Síar-
: de Bonn, é provável :"- -'caminho" era de uma exigência metodológica
fBahn) extremamente
3nascimento "moder- :r,-:,, :; sustentar. Mas teria colocado a "abnegação" de \Tarburg - sua
et:ção de uma moral ib' --.;: :nleugnung, como escreveu nessa pâssagem - à altura da que ele reco-
freler do que aos doi! rl::;:-em Burckhardt. Trata-se de uma atitude quase estoica. Por um lado,
!çs a suas collsequên: :::--:. ;ue reconhecer a unidade lEinheìtlichkeitl de toda cultura, sua organi-
r -\ polêmica, suspei- : -':-:undamental. Mas, por outro, o sujeito se recusa a declará-la, a defi-
ãc, do Renascimento ri* .;- : Íer a pretensão de apreendê-la como tal: deixa as coisas em seu estado
ic,,,. de suas ambições :r :--^':são ou de "desmontagem" fZerlegung]. Como Burckhardt, ìíarburg
a- toda a questão da *:.::- se recusou a fe_glr,3-g--gpga-s-!ntqs_ç,__o_"q.u_e.
*:.::- fechar uma sínt era _u-qr mqdp, de, scÍ\pt9 ddiar
lihardt. - TênÌ^ ,l-g*g-q"!,çlql$
_:_fenro_+_g-q"!çl
- ^^-^1,,:- ^ ffi^'-^h+^ L^^^l;^-^ l^ q^^L^-
ometto h ege,[1a 1 9 d-o r)^.- :^^^
b s o I uto. P or i s s o
g_b-er a^L^^1,.-^
-_g -m .
e irs escritos "moder- : ::-;:so Ìevar a "abnegação", ou a modéstia epistemológíca, até o reconhe,
Liiãnte. Não vemos o ------
rc Schrìften, ao passo :.,:r;r ;om singularidades, como escreveu Warburg muito bem, na mesma
fe.:': Basta um único ::i-:r. iogando com o paradoxo de uma "história sintética", mas feita de
lE i902 sobre o retra- --::jos particulares", ou seja, de estudos de caso não hierarquizados:
gafia franciscana - a
1"l=smo após sua morte, esse especialista [Burckhardt], esse erudito genial,
n Giotto na igreja cle
::arece-nos como um investigador incansável; em suas Contribuições pdrd
qu- rorna ainda mais
;,:istórìa da arte na Itália, abriu mais um terceiro caminho empírico para
\-a terdade, Warburg
-::-Jer a uma história sintética da civilização fsynthetische Kwbwrgeschich-
ça,l antropológica do ::-: não recuou diante da tarefa de estudar cada obra de arte em particular
qiima proposto por '-j-is
eìnzelne Kunstwerkl em sua relação direta com o ambiente de sua
R-,l mesmo texto co-
.:oca, para apreender como "causalidades" as exigências intelectuais e
a :ela autoridade de
::iticas da vida real fdas wirklìche Lebenf.t}a
Também ì7ôlfflin - o outro grande "reinventor" da história da arte no sé-
l:,:Jer), abriu para :' r \X - admirava em Burckhardt o mestre que foi capaz de construir uma
'i,:. Renaissancef -::stória sistemática" em que o "sistema" nunca foi definido, isto fechado,
e é,
Pl,:':ar como tirano s:iematizado, simplificado. Em Burckhardt, a "sensibilidade à obra indivi-
A imagem sobrêvivente 61
dual" sempre veio em primeiro plano, deixando toda conclusão em aberto.lss
Ora, ninguém melhor do que S7arburg para executar - se é que o verbo con-
vém aqui - essa tarefa paradoxal, que em seu texto é bem expressa pelo verbo
zerlegen, "decompor". No campo da história da arte, ninguém terá ousado
tão bem quanto ele viajar por essa análìse infinita das singularidades, à qual a
falta de fechamento destas fazia passar, abusivamente, por "imperfeita" ou
"inacabada".
A modéstia e a abnegação exibidas por \X/arburg diante do "monumento"
histórico erigido por Burckhardt não são fingidas nem protocolares.r36 Mas
isso não significa que a relação entre as duas obras seja de pura filiação: em
suas anotações pessoais,'líarburg mostrou-se comumente mais crítico, mais
propício ao debate e à oposição.r87 Também é preciso dizer que o vocabulário
fundamental de \Tarburg - o da Nacbleben, o das Pathosformeln ou da teoria
da "expressão" fAusdruck] - não Íaz parÍe dos temas conceituais próprios de
Burckhardt. Por outro lado, não podemos nos impedir de achar que os famo-
sos NolizËa sten de 'ü/arburg- seus fichários de cartões multicores - são como
que a encarnação volumétrica dos Materialen qae Burckhardt havia reunido
com vistas à redação de uma Hìstórìa da arte do Renascimento, sempïe pen-
dente, jamais publicada (fig.6-7). De qualquer modo, vale a pena identificar
o que, no grande historiador basileense, pode ter servido às intuições e cons-
truções do jovem Warburg.
62 Georges Didi-Huberman
&
ri.rsão em aberto.lss
È . que o verbo con-
E io "monumento"
pr-,:ocolares.l86 Mas
te rura filiação: em
E :rais crítico, mais
tÍ .--le o vocabulário
íon,:eln ou da teoria
Er::lais próprios de :. Jacob Burckhardt, esboço do projeto Kunst der Renaissance, 10 de agost<r
ìã..:ar que os famo- :. 1Si8. Tinta sobre papel. Basileia, Jacob Burckhardt-Archiv. Foto: Jacob
ì:::ck hardt-Archiv.
d:;,:res - são como
la:;r havia reunido
)nz':lo^ sempre pen-
È . rena identificar
;ãs -rruições e cons-
:- -,rentino signifi-
It93 (no estudo
-;-ito criado por
:.,rto na Itá\ia.188
s contidos nesse
-::rento "genial"l
:,rrdinariamente -. Abv Warburg,Notizkiisten. Londres, Instituto Síarburg. Foto: Instituto
:::bmeter à obje- \\ãrbur:g.
u . Renascimento,
L-;e pendentemen- >; é fato que existe um mito do Renascimento, tal mito é intrínseco à pró-
:.: -ultura renascentista * e coube a Burckhardt analisá-lo como tal. O ..de-
::o" esmagador
';;:-;,1içimsnto do indivíduo" decorre, provavelmente, de uma estÍutura míti-
. com sua obra- ;- ,rÌÌ. pelo menos, de uma estrutura ideológica e política.1e2 Nem por isso
p.raduzinda.. :.-\üLl de produzir efeitos de conhecimento e de estilo, efeitos de verdade e de
:--i:,:rria: se o "indivíduo" é um mito do Renascimento, pelo menos gerou essas
A imagem sobrevivente 63
realidades fascinantes que são os retratos florentinos do Quattrocento. Foi
exatamente daí que ìTarburg partiu: analisar um mito, decompô-lo em seus
efeitos estéticos, era ao mesmo tempo aquilatar sua fecundidade (como "ciên-
cia do concreto") e desconstruí-lo (como conjunto de fantasias).
A análise burckhardtiana, portanto, não interessava a Warburg por algu-
mas generalidades, das quais o Renascimento, como cultura ou como período,
pudesse sair totalmente puro e conceitualmente "armado", como Atena emer-
gindo da cabeça de Zeus. Burckhardt havia de fato reconhecido um "desen-
volvimento do indivíduo" na Itália renascentista, mas esse "desenvolvimento"
encontrava sua estranha conclusão numa análìse dos sintomas e chistes, das
paródias e difamações - outros tantos obstáculos a um modelo trivialmente
evolucionista - dos quais o indivíduo, desde Franco Sacchetti até Aretino, teria
sido uma vítima incessante; assim, Burckhardt falou do "desenvolvimento do
indivíduo" não como o puro progresso de uma emancipação) mas também
como um desenuoluimento de sua pró1tria peruersidade.le3
Podemos tirar dessa análise duas interpretações muito diferentes. A primei-
ra é moralista: segue o modelo "grandeza e decadência" dos pessimismos do
século XVI[.1e4 Lança uma ponte - legítima - entre Burckhardt e Schopen-
hauer.1e5 Mas, enfatizando a temática do declínio, acaba vendo em Burckhardt
apenas um ideólogo saudosista, um antidemocrata precursoÍ do Kuhurpessi-
mismus à moda de Spengler, ou até um zelador das "revoluções conservadoras"
que, na Alemanha, prepararam o advento do nazismo.le6 A outra interpretação
é estrutural: liga-se mais a identificar os modos de funcionamento da história
do que os jwlgamentos sobre a história. Tem a vantagem - que \7arbuÍg paÍece
haver compreendido perfeitamente - de ser dialética e, por isso, epistemologi-
camente fecunda. Quando Burckhardt condenou a "cultura moderna" e sua
incapacidade de "compreender a Antiguidade",ttt não proferiu propriamente
um julgamento "reacionário", mas pôs o dedo, de forma crítica, no problema
mais geral da relação entre uma cultura e sua memóri4;g.qla.cultura euç*Le-Ç-al.
*c;l sua própria memória, suas próprias sobrevivências, está tão fadada à impo-
lQ11q1q
quanto Lrma cultura imobilizada na perpétua comemoração de seu pas.
sado.'líalter Benjamin, ao que me parece, pensava da mesma maneira.res
O "desenvolvimento do indivíduo" no RenascimenÍo trazia em si, por-
tanto, o desenuoluimento de seus sintomas, suas peÍversidades, suas negati-
vidades. O que concluir dessa proposição? Uma visão moralista falaria em
"declínio", em nome de uma pateza que não se sabe muito bem se deveria ser
situada, como em'Winckelmann, na época do simples "milagre grego". Uma
visão estrutural compreenderia que o tempo - qualquer tempo de que se trate,
o da Antiguidade ou o do Renascimento - é impuro. Foi a partir de tal inter-
64 Georges Didi-Huberman
t&
Q,:::rocento. Foi , :'::-ão. creio, que todo o trabaÌho de \üTarburg pôde começar, utilizando o
E,:::o-1o em seus :-:. aas análises de Burckhardt, podia construir uma noção incisiva dessa
H::- como "ciên- --:-.:.za do tempo: construir, em surrÌa, a base teórica da "sobrevivência".
IL.: .
:r:r, se deveria ser : ':: --','rte do que ele chamou de "retomada" do passado antigo e o tempo-
1r : grego". ljma ' ': j-,, dos "restos vitais" ltebensfr)bige Restel que tinham permanecido
, J- que se trate, .i-:-r::. em certo sentido eficazes, bem no âmago da "longa interrupção" que
: '-::r de tal inter- .-r:r'era não percebidos.2's A Antiguidade não é um "puro objeto do
A imagem sobrevìvente
é um grande movimento de
tempo" que retorne tal e qual, ao ser convocada:
que atravessa todas as camadas
terrenos, uma vibração ""du, uma harmonia
históricas e todos os níveis da cultura:
povos cuia vida se prolongou
A história do mundo antigo, pelo menos a dos
que ainda ouvimos ressoar' inces-
na nossa, é como .r- uaoidt f""dn*tt'tnl
humanos'206
santemente' através da massa dos conhecimentos
espanto por encontrarmos na pena
Consequentementet será menor o nosso
aos olhos dos de-
de Burckhardt uma p-,Ço'içao tão radical- e escandalosa'
esta: "O Renascimento não criou
votos estéticos do Renascimento - quanto
eigener organischer (...) stli].'].? Que
nenhum estilo orgânico próprio,' lkrein
é impuro' tanto em seus esti-
quer dizer isso? Quer di'e' qot o Renascimento
los artísticos quanto ,-t"'"-io'ulidade
complexa de suas idas e vindas entre o
presente vivo e n nntig.tiduit
N{.9 p-o-{çmos-imaginar' no--s-éçnl-o '
"-t-otada' (em busca da unidade de 1-egp9)
XIX, uma crítica mais aguda do historicismo
rlq çst"tiçisqg. km,bllsca da un.ida-de 'estilo)-''108
de
" se cansaria de aprofundar e de
O Renascim.rr,o ã i-pt"o' \Tarburg nunca
de NacD leben e Pathosformel -
construir - graçâs no, .án..itos específicos
essaobservação.oRenascimentoéimpuro:talseria'ta|vez,seulimiteares-
o que \íarburg
peito de qualquer ideal, e tal era, porém, sua uitalidade'Foi
de elementos heterogêneos" [Ml-
escreveu, exatamente em 1920: a "mistura
scbung heterogener Elemente] deu nome
ao que havia de "vital" lso lebens-
,,cultura do Renascimenr.o" lKultwr der Renaissancel'2oe Ele no-
kriiftig] na
Isso implicava
meou o carâter "híbrido" do estil0 florentino fMischstill'}1o
"compromissos", de tal sorte que a
uma constante dialética de "tensões" e
culturarenascentistaacabariaporseapresentar,aosolhosdohistoriador,
como um verdadeiro "organismo enigmático":
de conceber a vida lLebensanschawung]
Quando maneiras contraditórias morrais e
lìrrç"In os membros isolados da sociedade em enfrentamentos
irresistivelmente, o declí.
inspiram ,..1., .,-u pnirão unilateral, elas causam'
níolVerfalt]dasociedade;noentanto'aomesmotempo'sãoforças[Kràfte]
quefavorecemodesabrochardamaiselevadacivilização(...).Nesseterreno
cresceaflordacuÌturadoRenascimentoflorentino.Asqualidadestotalmen-
teheterogêneas|heterogeneEigenschaften]doidealistamedievalecristão,
e platonizante, pof um lado, e
cavalheiresco . ,o-ânti".o, o., ài.tdn clássico
para o mundo externo'
do pragmático mercador etrusco, pagão e voltado
poroutro,impregnamohomemdaFlorençadosMedicieneleseunempara
formarumorganismoenigmático|einriitselhafterorganismus],dotadode 1 1
porém harmoniosa'2
uma energia v rtal lL eb en siner giel primária'
Georges Didi-Huberman
iJe movimento de Lebensfiihíge Reste: a sobrevivência anacroniza a história
l iodas as camadas
rJ.: se prolongou
t,s ressoar, inces-
r lundo externo, - : -ì ì conexos. Esse pr:oblema foi o que preocupou Aby V/arburg desde a
:
A imagem sobrevivente 67
ladas não eram, pafa ele, uma questão apenas artística e literária. O Renas-
cimento não evocou em seu espírito Somente a ideia de um estilo' mas tam-
bém e principalmente a ideia de uma culturdi o problema da sobrevivência
e do renascimento do antigo era um probìema tanto religioso e social quân-
to arfístico.21a
Georges Dìdi-Huberman
[:.rária. O Renas- j;:-:r-.nro. A Nachleberz de ìTarburg era um conceito estrutural. Dizia
4 ":-
"Mir
r:-- =stilo, mâs tam-
lËyü*rr :::.:r' ao Renascimento quanto à Idade Média: "Cada_período.renr-o
a :: sobrevivência S,'gru";-==:;: da Àntiguidade- que-mer.ecell"ljede Zeìt hat die Renaìssance der
f,-.,:, e social quan- tunÌiïri1 r
- j s:-: t'erdìentl, ,esçfç__v.ç_u.^110 Mas poderia ter afirmado, simetricamen_
t* iir --:.:eríodo tinha as sobrevivências que merecia, ou melhor, que lhe
flirLrn -:r:::::ias e) em certo sentido, que lhe eram estilisticamente subjacentes.
[].rr uma obsessão:
Pa:rì sobre a "sobre-
h"=-'s. dos saberes as-
ie::. Os volumes de Ì n -i-- j --, -: -ia segundo ìTarburg não nos oferece nenhuma possibilidade de
b-r ;rtre 1923 e 1932 a:rr'rrr .- ::: : história: impõe uma desorientação temível para qualquer veleida-
p ..rbre Dürer como ln".;---::t1i! outro tempo. Assim, desorienta, abre, torna mais complexa a
ür :t Heilmut Ritter rüi:i: :: \'r;'r prÌav-!-a, 9]a,a-augçtefllza-,rmpõe o paradoxo de que as coisas
n: - sa conferência de trï.i.r :::i:S às vezes vè.mdepoìs das coìsas menos antigas; assim, a astrologia
r _....^ - a mârs remota que existe encontrou um valor de uso na
ü --:' _:-Jrano
-:rsaio de Adolph -
p' :: Idade Média" m. : -, .éculo xY depois de ter sido suplantada e tornada obsoleta pelas
iÈ ,r esforço biblio- ;r.x-* .:,,:s qrega, árabe e medieval.22l Esse únic-o-e19mp1o, longamente desen-
r: : edição de dois i j :- -1r' \ï/41bgrg, mostra como a sobrevivência desnorteia a histórìa,I I ett
ú; :: -\ntiguidade.216 - - :=j: período é tecido por seu próprio nó de antiguidades, anacronis- I
r-,:.sicismo de \7in- 1'r: {. ::-:illtes e propensões para o futuro. I
üg- Jade lAhertuml ,- ::-c o saber medieval sobreviveu em Leonardo da Vinci? por que o
rsr: iio XIX?217 Ernst r r - : !-:inrrional sobreviveu ao Renascimento clássicoìJádizj3Àlrjk_ls!*q,".
i:::::er - o primeiro U'-;-\Jé{i4-çra l'ainda mais difícil {e matar por já estar morta há múto
[r--:::. publicado em -r:'-::' - ::. \ão as coisas mortas há muito tempo, com
efeito, que assombram
:\1=:ia" [Das Ì'{ach- - - --: rrr eficácia - da maneira mais perigosa - a nossa memória: quando faz
fÊì::r1 em que Sprin- a:'- I . ',s.opo, a dona de casa de hoje continua a manipular os nomes de deu-
m.,:r de expressão", ":': :r-r-loS. nos quais, supõe-se, ninguém mais crê. A sobrevivência, portanto,
!r.'--.- : ;'-: . )::stórid - o que era a vontade de \Tarburg quando ele falava de uma
);::-;iso de toda a li- '--:: ::.1 da arte no sentido mais amplo" fwohl zum Beobacbtungsgebiet der
pa- \las esse conhe- ", :-.;a'--.dlichte imweitesten sinne]: uma história da arte aberta para os pro-
Ít::l-nle a diferença : ::--.:r anrropológicos da superstição, da transmissão das crenças.22' uma 7
tr :. J,ue, sob diversas : :' :i-r da arte informada pela "psicologia da cultura,' pela qual Warbrrrg
J
F =*- podia a sobre- - :--:.-]ra a se apaixonar junto a Hermann Usener e Karl Lamprecht. )
!; :n precedido, ou -'r: medida mesma em qlÌe amplia o campo de seus objetos, de suas aborda-
'F :-;ssíuel de super- :=:.. ie seus modelos temporais, a sobrevivêncía torna complexa a hìstória: li-
pd- >:ringer simplifi- :r::: jma espécie de "margem de indeterminação" na correlação histórica dos
ts;:rdade "diminuí- :=: renos. o depois quase se liberta do antes, quando se une ao "antes do
t;::,iade "triunfal" ::,:.! fantasmático que sobrevive: como na obra de Rembrandt, qualificada
A imâqem sobrevivente 69
por'ï7'arburg de "mais antiga e mais clássica" mais ovidiana,
- em suma - que
a de alguém como Antonio Tempesta, que a precedeu na história.22a
A forma
quase se liberta do conteúdo, como nos afrescos de Ferrara,
nos quais a estrutu-
ra renascentista - a posição recíproca das figuras, a própria referência astrológi_
ca - coexiste com uma iconografía ainda medieval, heráldica e cavalheiresca.225
tgqst4tar isso é nos rendermos à evidência de que as ideias dç g lgdkgg
lryt.a;gì5qão têm uma i.-ptà"iàià" ui.Àorirrnr., rào históricas (I_ft,{-e_M(
.ç[4, -Rena-scimento), mas são também anacrônicas (Renascime nto d.a_Idade
Média, Idade Média do Renascimento); são feitas de processos conscien{es_e
pfpcessos de esquecimentos e redescobertas, de inibições_e.d_q_s-
_inconscientes,
.truiçòes, de assimilações e inversòes de sentido, de sublrmações e alterações
termos que se encontram todos no próprio ì7arburg.16 Bastará o d"rlo.à-.rr-
-
to da perspecriva, no qual se dìaletjza omsdeLo histórico do renascimgr_tq g_g-
qp--delo a,n-Q-ç{ô-nico d.a sobreuiuêrtcìa,.para que a própria ideia
de uma ,r"rrr-
missão no tempo se torne problemática. Ainda mais que essa complexidade,
para \X/arburg, não deixava de ter uma referência obstinada com
uma dntro_
pologia apoiada nas questões conjuntas da crença, da alienação,
do saber - e
da imagem, é claro:
Georges Didi-Huberman
fara. em suma - que
L h:stória.22a A forma *- :;:=:,rdade, que o espírito do honorável historiador em quem esse tempo
L l,ls quais a estrutu- 'lc :=:1.:;...'' Com isso, a grandeza de um artista ou de uma obra de arte era 1
I re:erência astrológi- ':;-:-::-;ida por ÏTarburg - ao contrário do que quer nos fazer crer a leitura I
t: : cavalheiresca.225 '..: . r:ica muito comum da obra dele - conforme sua capacidade de resisten- '{
ii;.ias de 1y_qlliçgo e ;u; : -!se espírito, a esse "tempo de época".228
f
iriricas (Ift-dq MÇ :: segun-do lugar, a sobrevivência anacroniza o passado: se o Renascimen- i
F.*:menro da,-Jdade l: -:- :ealisado por Warburg como um "tempo irlpuro", é também porque o.
E-iios conscientes-e, :ri,::;i,l em qì'e.ele..convoçeu suas "forças vivas" - a Antiguidade clássica *
r- :; inibições -e.{g_q- _l;._=.1!ra_C.41 qi n4da {e um-a origem absoluta. P_or conseguinte, a origem for-
$i -'es e alteraçõ.e_s..- :=- ;--r mesma, uma temporalidade impura de hibridações e sedimentações, de
F=:á o deslocamen- :i:::nsões e perversões: nos ciclos pictóricos do palácio Schifanoia, o que
ft" :enascime9_to*,e o i, :::i-ir-e é um modelo oriental da astrologia em que as formas gregas, mais
1Ë-,a de uma trans- ;::ias. 1á haviam conhecido um longo processo de alteração. A partir do
F€-{>: complexidade, :-: - rìeoto em que o historiador da arte corre o risco de reconhecer as longas
ld: ;om vma antro- :::=çoes que estão em ação nos monumentos artísticos do Renascimento - foi
pc.;ão. do saber - e :.:,:Ìl que Warburg apresentou em conjunto uma obra de Rafael e o arco de
i -,-::srantino, em Roma, separados um do outro por 1.200 anos22e -,_ç!gç-qrre
jJgé.$, ryu!ç_o- -lggicamente, o risco do anacronisrno: chamamos a isso uma
! - ..1.r,t'erschol-
inicial- ::;isão de reconhecer o anacronismo atuante na própria evolução histórica.
ft.:.'=rt, E que a sobrevivência realmente abre uma brecha nos modelos usuais da
f : rhecimentos
-
=,',rlução. Neles detecta paradoxos, ironias do destino e mudanças não retilí-
L: 'r:orfico e de :-as. Ela anacroniza o futwro, ao mesmo tempo em que é reconhecida por
J: :.,,rtorphisti- Tarburg como uma "Íorça formadora païa a emergência dos estilos" [a/s
! ,-. r1., ras [Bli -
,::ibìldende Macht].230 Que Lutero e Melâncton revelem interesse pelas "so-
| :.:uiJo de que ::er-ivências de práticas misteriosas da religiosidade pagã" fan den fortleben-
k, . J- arouivos ;en mysterìòsen Praktiken beidnìscher Religiositiit], eis aí algo que, com cer-
Jt-,.. d. p.r.rn- :eza. "parece muito paradoxal para nossa concepção retilínea da história"
h ..'. moderno. qeradlinig denkende Geschicbtsawffassung].231 Mas vejamos o que justificava
J *.-.o positivo,
k -..,ì". Ihul.tt ,- rÌenamente a reivindicação de tü/arburg de um modelo do tempo específico
t_'
re --j5 ì. reÌÌglosas
lara a história das imagens: o que ele chamava, como vimos, de uma pesquisa
de "sua prôpria teoria da evolução" lìhre eigene Entwicklungslehrel.232
fl -=,r,."cias sem
-----^--r-.,.. - t,:-
aú ---!utu<ur Lt Dls-
Eis-nos um pouco mais bem armados para compreender os paradoxos de uma
E':.*t:l*; história das imagens concebida como uma história de fantasma.s - sobrevivên-
L ..'n,"r rr.r"* ," cias, latências e aparições misturadas com o desenvolvimento mais manifesto
esra frase de dos períodos e estilos. uma das formulações mais impressionantes de \Var-
A imagem sobreviventê 71
[""
burg, datada d,e 1928, um ano antes de sua morte' terá sido definir a história
das imagens que ele praticava como uma "história de fantasmas paÍa gente
gfande', lGespenstergeschichte für ganz Erwachsene].233 Mas de quem, de
tü/arburg so-
onde e de quando são esses fantasmas? Os admiráveis textos de
bre o retrato - sua mescla de precisão arqueológica e empatia melancólica -
induzem prontamente à ideia de que esses fantasmâs concernem à insistência,
72 Georges Didi-Huberman
o definir a história r-:s negras sobre as asas, dos flancos brancos com uma barra na extremidâ-
[asmas para gente :- da cauda, cujas penas são, junto da base, externamente debruadas de
\Ias de quem, de ::anco. Como estes diferentes sinais constituem um caráter do ancestral
rc's de \Tarburg so- ; rrnum, o torcaz) ninguém contestaria, creio, que este seja um caso de re_
raria melancólica - ::essão, e não uma variação nova (...). sem dúvida, é muito surpreendente
nem à insistência, ;;. reapareçam caracteres, depois de haverem desaparecido por um grande
imero de gerações, centenas, talvez. (...) Numa raça que não tenha sido
ia Sassetti (uma fa- ::tzada, mas na qual os dois ancestrais de origem tenham perdido alguns
::.racteres que o ancestral comum possuía, a tendência a haver uma regres-
e:areveu ao irmão
.ìo para esse caráter perdido poderia, segundo tudo o que nos é possível
FJr que todo o seu
ú . não deixava de ':ber, transmitir-se de modo mais ou menos vigoroso durante um número
ois devolvia a uma
-,rmitado de gerações. Quando um caráter perdido reaparece numa raça
:pós grande número de gerações, a hipótese mais provável não é que o in-
E jricas" lscbemen-
:ir'íduo afetado venha subitamente a se assemelhar a um ancestral do qual
'a partir disso, po- s- separa por muitas centenas de gerações, mas que o caráter em questão já
re::atos florentinos
s- encontrasse em estado latente nos indivíduos de cada geração sucessiva e
ir::e. seu poderoso
;:rfim se houvesse desenvolvido sob a influência de condições favoráveis
D .:ri Acaso não foi
;uja natureza desconhecemos.2sT
5 ú'-) Renascimento,
t as lórmulas clássi-
É:r:o" que sobrevi-
ec'i : I ìb
F
:
br, i. a aparição
F;":. das duas fai-
A imagem sobrevivente 73
S exorcismo da Nachleben= Gombrich e panofsky
A rmagem sobrevivente
falamos da 'sobrevivência da Antiguidade"', escfeveu em L934, "entende-
mos por isso que os símbolos criados pelos antigos continuaram a exercef
seu poder sobre sucessivas geraçòes; mas o que entendemos pela palavra
'continuar'?" \lind tratou de apontar que a sobrevivência pressupunha um
conjunto de operações em que entravam em acordo o esquecimento, a trans-
formação do sentido, a lembrança provocada, a recordação inopinada etc.,
devendo essa complexidade lembrar-nos o caráter cwltwral, não natural, da
temporalidade em questão.242'l7ind criticou aí não apenas a "história imanen-
te" de Wôlfflin, mas também a "continuidade histórica" lbistorical continuity)
em geral, que ignora algo de que toda sobrevivência é palco: um jogo de "pau-
sas" e "crises", de "saltos" e "retornos periódicos" lperiodic reuersionsl, de
tudo que forma não uma nalrativâ da história, mas uma meada da memória
lmemory-mnemosynel. Não uma sucessão de fatos artísticos, mâs uma teoria
da complexidade simbólica.2a3
Era impossível ser mais claro quanto à crítica do historicismo contída na
própria hipótese da sobrevivência. Gertrud Bing assinalou muito bem a situa-
ção paradoral de \Tarburg na epistemologia das ciências históricas (creio que
poderíamos tecef um comentário análogo a propósito de Michel Foucault):
por um lado, sucedia-lhe ser incompleto, parcial ou até equivocado quanto a
certos fatos históricos; por outro, sua hipótese sobre a memória - o tipo espe-
cífico de memória que a Nachleben pressupõe - teria modificado em profun-
didade a própria compreensão do que é um fenômeno histórico. Significativa-
-r mente, Gertrud Bing insistiu na maneira pela qual a Nachlehen transfoÍma
todn a nossa ideia de tradição: jánão se trata de um rio contínuo, no qual as
'I da cabeceira para a foz, mas de uma
lcoisas seriam simplesmente transmitidas
I diaÌetica tensa. um drama
encenado entre o curso do rio e seus próprios rede-
Sflalter Benjamin, mais uma vez constatamos, não se afastou mui-
{moinhos.toa
'to dessa maneira de pensar a historicidade.2a5
Mas é preciso dizer que essa lição foi pouco seguida. Muitas vezes, o historia-
dor prefere não correr o risco de se enganar: um fato exato, a seus olhos, vale
bem mais que uma hipótese incerta por natureza. Chamemos isso de modéstia
científica - ou o chamemos de covardia, ou até de preguiça filosófica. Pior que
tudogum ódio positivlsta po{ quglqg.g.r.'ftgo-fil". Em 1970, Gombrich quis
concluir sua biografia com o que chamou de uma "perspectivação" da obra
warburguiana: nela se intui uma estranha vontade de "matar o pai", um dese-
jo certeiro de que o fantasma - como o próprio \Tarburg se definira em 1'924
Georqes Didi-Huberman
t 1934, "entende- -não uoltasse mais. E que, com ele, a sobreuiuência,hípítese "ultrapassada",
ir;aram a exercer deixasse um pouco o seu eterno retorno nas ideias dissimuladas dos histo-
:nL'ìs pela palavra riadores da arte.2a6
ir :iessupunha um Para chegar a esse fim, duas operações terão sido necessárias. A primeira
f
r.:inento, a trans- consistiu em inualidar d estrutura dialética da sobreuiuência, isto é, em negar I
ã,:, rnoprnada etc., que um ritmo duplo. ferto de sobreuiuencias e renascìmcntos. organir"tr. -. I
rJ. rão natural, da tornasse impura, híbrida - qualquer temporalidade das imagens-Jar-u q"rlro, I
r -:istória imanen- Golfbqú*gqlg_ìilg" qry alegq4.g,ue- a Nachleben de 'ï7arburg, afinal de con-
k ,:c,tl continuityf tas, pqdia-rcduz,irs-e- simplesmente à chamada reuìual.za7 A segunda operação
r :::r iogo de "pau- consistiu em inualidar a estruturd anacrônica da sobreuiuência: para isso, bas-
>i:: ,et,ersions], de tou voltar a Springer e re-periodizar a dístínção entre sobrevivência e renasci-
ae.ia da memória mento. Ou seja, reduzi-la, pura e simplesmente, a uma distinção cronológica
s. :ras uma teoria entre Idade Média e Renascimento. Assim, Gombrich acabou distinguindo a
obscura "tenacidade" das sobrevivências medievais e a "flexibilidade" inven-
n::s1i10 contida na tiva das imitações all'antìca, que só um Renascimento digno desse nome po-
,Í --iü bem a situa- deria ter produzido a partir do século XV.248
is;-::cas (creio que Desenredar as metamorfoses da sobrevivência equivaleria, tarefaestafante,
p\l ;hel Foucault): a refazer toda a história da disciplina depois de til/arburg. Assinalemos apenas
t ;ado quanto a os referenciais mais marcantes. No início da década de 1.920, Adolph Golds-
:,r - o tipo espe- chmidt publicou, no primeiro volume das Vortrcige der Bìbliotbek'Warburg,
:.jo em profun- um artigo sobre "A sobrevivência das formas antigas na Idade Média": aten-
: . Significativa- tando de imediato paÍa o paradoxo da Nachleben - absolutamente indicativo
j
-. =,r transforma de uma "vida continuada" f\Yeiterlebenl e de uma "morte continuada" fWei-
:,.;o. no qual as tersterbenf -, Goldschmidt tentou estender à ldade Média o que'l7arburg ha-
-- r. mas de uma via identificado em Botticelli, apontando, em especial, o papel expressivo do
r-. rróprios rede- drapeado na arte bizantina.2ae Vinte anos depois, Jean Seznec viria a invocar a
ã ': afastou mui- "sobrevivência dos deuses antigos" como um âÍgumento de perturbação cro-
nológica, mais uma vez destinada a mostrar, na interferêncìa entre ldade Mé-
dia e Renascimento, a amplitude do campo das sobrevivências:
A imagem sobrevivente 77
trar como, através de quais vicissitudes, transmitiu-se de século para século
a herança mitográfica da Antiguidade e como, no declínio do cinquecento,
os grandes tratados sobre os deuses, nos quais se alimentariam o humanis-
mo e a arte de toda a Europa, continuaram a ser tributários das compilações
da Idade Média, completamente impregnados do espírito desta.250
O grande padre exorcista do nosso dibuk não foi outro - e acaso poderíamos
duvidar disso? - senão Erwin Panofsky. Ainda que da boca para fora, o pró-
ii- prio Gombrich seria obrigado a admitir: foi principalmente com Panofsky que
uma "perspectivação" da obra warburguiana estabeleceu' para gerações de
historiadores da arte, a invalidação da Ì'lacbleben, seu ritual teórico de exor-
' cismo.257 em 1,92L apenâs quinze anos depois da conferência de \Tarburg
Já -
Georges Didi-Huberman
n:,:' para século ' 'rre "Dürer e a Antiguidade italiana" -, pa4o.fsky puhlicou o artigo iiDürer
lr. uinquecento, =?lnligudâde-eÌássiedl,parecidodemais ío rírLrlo para não rer sido um rival
Éa::: o humanis- {rÌ-ero-2-r::Nele, a problemática da sobreuiuência, apesar de todas as homena-7
d":';ompilações :;:rs de praxe, já cedeu lugar a uma problemática da influência. e a questão do ì
!-..:'r :;tético, ligada como podia estar, em 'süarburg, ao dionisíaco nietzschiano, i
;;deu lugar â uma problemática datipifìcação e do "meio-termo", que ui.ram j
i::t,eza do tempo
cr-::tatar. Sente-se
::oiar algumas referências ao "belo ideal" em Kant e na retórica clássica.2.te j
\o necrológio escrito por Panofsky em 1929, a expressão crucial do Haupt-t
ft. "i,r da arte que
he::.tatória para o
:-'blem de ì7arburg, a expressão Ì,Jachleben der Antike, não aparece uma
::-rica vez: em lugar de toda "sobrevivência", jâ não se trata senão de,,heran-
$::nia com tanta ;z- fErbteil des Altertum.s] e de "história da aceitação" da Anrigu id,ade fRezep-
=r toda uma sé- ::
r-:Ja para esque- 'nsgeschicbte der Antike).260 Depois, unindo esforços com Fritz saxl, que já
:inÌava bìstoricizar o máximo possível - em si, uma tentativa legítima os es-
: :l\'era a Vlftu- -
Jiemas conceituais warburguianos,26l Panofsky publicou em 1933, no boletim
: intemporal de
r:: - com pouco -:;ntífico do Metropolitan Museum de Nova york, um longo artigo sobre ,,A
:::rrologia clássica na arte medieval". Foi sua primeira publicação importante
=n inglês,262 seu visto de entrada paÍa um novo contexto intelectual e institu-
-:stos mdtermxs ;:rrnal que transformaria seu exílio (a fuga da Alemanha nazista) em império
sua incontestável dominação sobre a história da arte no meio universitário).
t-::::'5ém foi puxa-
E possível - e. até certo ponro. pertinente ler esse artigo como um prolon-\
:.rra o lado das -
l\:tlvels em que .;mento dos trabalhos de \ü/arburg sobre a "sobrevivência dos deuses antl- |
: -poca moder- :(ls'': Panofsky e Saxl contentaram-se, aparentemente, em aplicar a ideia da
I
:z .tceitação, do
\:chleben a um campo cronológico em que o próprio warburg nào havia I
::abalhado diretamente. Desde o começo, portanto, reservou-se um lugar prru I
:. "normaS esti-
: --' ;omo palavra - sobrevivência, um lugar que "reprovaria" - porém, parcialmente - o ponto
:-3çao teorlca) â...- -r: r'ista da história vasariana:
.--:lica que tenha os primeiros italianos a escreveÍem sobre a história da arte, como Ghiberti,
'.
=torcìzada pela -\lberti e, sobretudo, Giorgio vasari, pensavam que a arre cÌássica tinha
-:=za do tempo - sido abandonada no início da era cristã e só havia voltado à tona quando,
nos séculos XIV e XV, serviu de base para o que se costuma chamar de
Renascimento. (...) Pensando dessa maneira, tais escritores estavam simul-
taneamente certos e errados. Errados no sentido de que existiam inúmeros
laços entre a Idade Média e o Renascimento (...). As concepções clássicas
i-.so poderíamos persistiram durante toda a Idade Média fclassìcal conceptions suruiued
:::a fora, o pró- throwghout the Middle Agesl: concepções literárias, filosóficas, científicas e
c -:r Panofsky que artísticas. Elas foram de especial importância depois de carlos Magno, em
i ;::a gerações de cujo reinado um reflorescimento clássico lclassical reuìual] foi decidido e
:-órico de exor- implementado em quase todos os campos culturais. Mas esses primeiros
''üíarburg
:-:ìa de autores estavam certos no sentido de que as formas artísticas em que as
A imâgem sobrevivente
concepções clássicas haviam
persistido fpersìsted] duranre
eram totarmente diferentes a Idade Média
de nossas ideias nru"i, ,obr.
ideias que nâo apareceram a Antiguidade,
antes do Renascimento, em
tido ["Renaissance" ìn ìts true seu verdadeiro sen-
sensel d,er"-rr"r.i-.rra-an
bìrth" of antiquìtyl como fenômeno err,igu idade [,,re_
histórico rr.- a.n"ia o fas a weil_cJe_
fined historìcal phenomenonf .263
qu e d ese
"
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de sua capa proretora
b o. : ;: i: :ï iï:ï: ;:'J# ffïff H",i :,ïï :m.fl
de simbolir_.;;;;;::::ì::t:::
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Talvez nem todas as tensões
sejam afastadas (panofsky
sentido' a contra-Reforma, e saxr evocam, nesse
or r.iu, o fi* doRenascimento),
te à "harmonia clássica" que mas é unicamen-
se o privilégio de, no tempo do
mento in its true se:se) haver "t.ruri Renasci_
superado as crises artísticas
tempos de sobrevivência e cuÌturais que os
haviam pela falta, p"iuì"i"tiu"...,
"t"rt"do
Georges Didi-Huberman
rc:e a ldade Média il;::i:'': :Denas uma dificuldade conceitual a resolver: o renascimento opu-
t':e a Antiguidade, ltil[ü.-: : . rrer-ivência em dois planos que não podiam se corroborar com
s"u Yerdadeiro sen- -4- -:-=. \ oposição hierárquica nào coincidia fatarmente com a sucessâo
la Àntiguida de l" re- j:rÍ niÌ ,'---=. Panofsky teria encontrado uma solução eficaz ao distinguir duas
ìn:Jo fas a tuell-de- nrFÍrÍ'r*r: :-:;:oriais diferentes na palavra renascimento:
uma ordem sincrônica,
rp-:;a nào só um pro- 'lÌnurl ::r-:-:J.o" que é o Renascìmento. o que se havia chamado de ,.Renas-
t :ossível inuersão da :ïTrrÉ--- :-::olíngio" não passava, païa panofsky, de uma "renovação". só foi
-Ìnrmrr - --:Ì.1
rr :c afirmam "segui- - seu verdadeiro sentido" o Renascimento dos séculos XV e XVI.268
d: uma bipolarização *.r'ul--:. -: s,rbrevivência, ela ficaria à sombra de sua indeterminação relativa.
*- : .:::: de 1944,
u :'iandonado? O teor Panofsky chamou de renascence [renascença], palavra de
l i lrese, anacronìco - ru*-:-r iiiícil para o frances, o que havia designado até então com o termo
ï."ir, . - j,--:
rF::am com mais niti- -,.:'- o sistema se fecharia em 1960 com Renascimento e renascìmen-
liz,:n. A sobreuiuência ï 'r :-- j-:. ocidental,livro saído de conferências proferidas em 1952 e, portan- \
u ta Idade Média um "Ì . - r,l:nenre amadurecido
p: -,gressiva" lgradwal
durante oito anos consecutivos. panofsky reite-
-i- : :: r'eemência que a "renovação" carolíngia e, de modo geral, todos os &l
r:::r-ei "dissociação" T'T' ::::::fs de "proto-humanismo" que a Idade Média havia conhecido nada
a::.2 de realízar (...) a ì----_- -:: -ri
i "renascrmenfos" no sentido estrito: eram
..
apenas renascenÇas, mo_
*i"::lng... the wnìty of rtr-: ' :arciais de "retorno à Antiguidade".270
]-;':r. é c,o,qpreensível que, para resolver o problema fundamental enun-
!:r:nar - a categoria *-;:- :rr início-, ou seja, a relação entÍe continuidade e mudança na história,
e;,Cinquecentoum -l i:. :s-r' tenha instaurado um quadro de interigibilidade parecido,
por sua
c- : rfianto, de pureza :*i:-':lra ternária, com a famosa distinção "semiológica,', enunciada na intro-
c ::rl. que o Renasci- :-:-. -' Jos Ensaios de ìconologid, entre "tema primário',, ..tema convencio-
r- "ienomeno histó- ;:-. ; ':significação intrínseca'.271 por isso uma hierarquia em três termos
h ::.:scer um homem ::.r: a organizar toda a "teoria do tempo histórico" segundo panofsky: no
h: .icos ou das con- ::-;. incontra-se o Renascìmento, cuja inicial maiúscula indica a centralidade
:: :ológica e a dignidade
intemporal. uma dignidade que panofsky qualifica
:'-: ;rpressões quase hegelianas: "autorrealização" r "conscientização", ..inte-
br=:.,:zou no Renas-
[ :-: er olução geral -:.io a realrdade". "fenômeno toral" etc.2 / o Renascimento, para panofsky ï
irr:-:ral, despojado
- 1:sari Íeria razão, portanto, ele que dizia a mesma coisa -, era o desperto,, I
Y--
'..;
natural being " arte para suâ própria consciência, ou seja, para sua própria história . ,uu
I
/: ,:.tlìty).2o" l:':rpria "realização" ou significação ideal. I
82 Georges Dìdi-Huberman
&
--,::s;encia, é como se víssemos os mais diversos fios ora se entrelaçarem,
ta>::a não redimi- -::ormarem uma trama rigorosa. ora se afastarern. para nào se unirem
- -::;a mais. Por isso só, a diferença de qualidade, em parte consid erável,
f, .:::angível, pura, iá
. -:roíbe supor que tenha havido uma linha evolutiva única. Além disso,
r
I :, ::::.Ì. as diferentes direções estilísticas sempre se desenvolveram no mes-
iÍ:,-::Jl e procu- :: .;rtido, interpenetraram-se igualmente e continuaram a existir umas ao
lL'- Renascimen- -:- ias outras, a despeito de todos os vaivéns entrecruzados. (...) Ao que
b: ,esttrrect ìts ::--:.-. essa infinita variedade de "sistemas de referência" que o historiador
:seguiu fazê- ::: J:ante de si, numa etapa primária, e que constitui um mundo, equivale
; ':lcreto e, ao .r. -:: ceos monstruoso que é, por assim dizer, impossível de ordenar. (...)
:.:-'l distorted], r-:-:.o não nos encontramos então diante de um mundo sem nenhuma ho-
:::rente ao lon- : :rneidade, no qual coabitam sistemas de referências cristalizados, segun-
::as, digamos, : - ,s termos de Simmel, num isolamento "que se basta a si mesmo" e numa
r=:ielais foram ; :,:ularidade irracional ?277
:1:S ressusclta-
-
-: onipresença i -,:tanto, Panofsky realmente começou - com \íarburg - por reconhecer a
-.:::-za do tempo. Mas teria acabado por extirpá-la, resolvê-la, incluila
::j:. -squema ordenado que reatou a ambição estética das eras douradas (o
:.: I'es simétricas - -r.=:::scimento é uma delas), bem como a ambição histórica dos "períodos de
),1 ,rne aos fantas-
:=:,:ência". Esse texto de 1931 termina com a esperança de que uma "crono-
= ::rortais! O que .:r.i" das esculturas de Reims possa um dia esclarecer e hierarquizar a multi-
;'i- ,,Ìha fantasmá- :-,;idade dos sistemas de referência estilísticos.278 É um modo de exprimir um
: . num discurso
:=.ljo do historiador idealista ou positivista: de que os tempos, uma vez anâ-
;-.: objetiva. Teve
-:r.Jos, voltem a se tornar "puros", de que as sobrevivências se eliminem lo-
. :ristóricos bem
iempo incerto -ramente da história, tal como a lia seria eliminada de um bom vinho. Mas
-=:á que isso é sequer possível? Só mesmo vinhos ideais - os vinhos sem sabor
i :-,dos os fantas- -; que podem não ter nenhuma lia, podem ser isentos dessa impureza que, de
::nt ìmpurezas, ;=na maneira, lhes dá estilo e uida.
: *reintegração"
ì - ri arburguiana
:"-:aÌ - a verdade
:" ': reconhecer a
:-xto do período
-. ele tomou um
. na história da
:: esculturas
:: ,, de infinita
A magem sobrevivente
&:nmrht/rches Leben: formas, forças e o inconsciente do tempo
A rmagem sobrevívente 85
É à alma italiana que ele pergunra pelo segredo do Renascimenro.
rror meio
da palavra cultura, quis expressar o estado íntimo da consciência
de um
povo. Para ele, todos os fatos importantes dessa histór:ia
a política, a eru_
-
dição, a arte' a moral, o
prazer, a rerigião, a superstição
ação de algumas forças uiuas (...).zst)
- manifestam a
:::ioionãoéados :.,: nrópria "cronologia"... pois a história é esse esforço de conhecimento que
E- :ror.imento con- - . desaloja de nossa incapacidade essencial de "compreender o variado, o
ri'-i: rudo, arrastan- .: :e ntal" funsere'tJnfrihigkeìt des Verstìindnisses für das Bunte, Zufcilligel.2sa
r-:,ahistóriaidea- -\ssim se instaura uma estranha dialética dos tempos, que não necessita do
r --.zer tudo alçar-se - r-n" nem do "mal", nem de "inícios" (a
fonte originár:ia de que tudo deriva-
=::i-os os casos, o :-: nem de "fins" (o sentido da história para o qual tudo convergiria). Não
N.:- ,:io é, negar sua .;essita de nada disso para expressar a compiexidade - a impureza de sua
-
f;. -:Ìna articulação --,rda". Ela é feita de rizomas, repetições, sintomas. A história
local - ou patri-
u: . :rir-ial da histó- -:r.a. olr racial - lhe é estranha, pois ela não contém a ideia das relações e das
*-:<rencas. A história universal já não é seu objeto. Burckhardt renuncia de
.:::emão a procurar uma fórmula geral para o "sistema" de todos esses rizomas.
b:. ::: eber etwas
f:,:::-r e pereCert
os filósofos da história, obrigados a crrar hipóteses sobre as origens, deve-
,ã. ,--:-lr de acordo
riam, por conseguinte, também fazer estimativas sobre o futuro. Em contra-
f,. : ..- aomportam
lartida, podemos prescindir dessas teorias sobre os primórdios, e ninguém
E:: ,: da espécie pode nos exigir um ensino escatológico. (...) os problemas da influência do
úr.; -..qui não há
soÌ e do clima, (...) tratados à guisa de introdução pelos filósofos da história,
E ,. iesenvolvem
não nos dizem respeito; por isso os negligenciaremos por completo, do mes-
p* -r"'ertebrados
mo modo que todas as teorias cósmicas e raciais, a geografia dos três conti-
b- : ;ontrário, o
nentes antigos etc. Em todas as ciências, exceto na história, pode-se começâr
c::.:n-ração. (...)
pelo começo. É q.re as ideias que fazemos do passado, na maior parte do
È '=-,ter auf alles
tempo, são construções do nosso espírito ou sìmples reflexos, como veremos
ig:::. da história
a propósito do Estado. o que é váiido para um povo ou uma raca raramen-
.. ias direções
te o é para outros, e o que acreditamos ser um estado inicial nunca passa de
- : irlosofia da
:. :. SuaS refle- um estágio já muito evoluído. (...) o caráter mais acessível da história local
provém de uma ilusão de óptica, de uma diligência mais acentuada de nossa
parte, que pode ser acompanhada por uma grande cegueira.z85
A imagem sobrevivente 87
Essa reflexão sobre as relações do local e do global não se dava, em Bur-
ckhardt, sem uma reflexão sobre as relações do deuir e da estabìlidade: a
"vida" da história não é apenas um jogo espacial de acontecimentos indivi-
duais e contextuais. É também, com certeza, um iogo do tempo, a dialética do
que se modifica e do que resiste a mudar.2s6 Ser historiador' para Burckhardt,
não significa apenas compor a narrativa das coisas que mudam ao se sucede-
rem: é preciso sobretudo "analisar a influência recíproca' constante e progres-
siva (...) do elemento móvel lBewegtes] nas forças estáveis lStabilesf".287 Nis-
so, a
,,vida" da história realmente decorre de uma morfologia: ela é um iogo
de formas,se entendermos pol "formas" a cristalização sensível de tal dialéti-
ca ou "influência recíProca".
(...) como o tempo sempre arfasta em sua esteira as formas ldie Formen]
que são o esteio da vida espiritual ldas geistige Lebenf, a primeira tarefa do
historiador será separar os dois aspectos) em suma idênticos' das coisas' Ele
mostrará, primeiro, que todas as manifestações do espírito, seia em que
domínio foq têm um lado histórico leine geschichtliche Seitef q.u:e as faz
parecerem passageiras, limitadas e condicionadas por uma realidade que
nos escapa, e, segundo, que todos os eventos têm um lado espiritualfeine
geìstige ieitel pelo qual participam da imortalidade. O espírito é mutável,
mas não é efêmero.288
88 Georges Didi-Huberman
.'.'|:'.]w
ã,r se dava, em Bur- . 't
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r Ja estabilidade: a ---------ì-a
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r;:ecimentos indivi- ' i
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l:. para Burckhardt, -l+ras '
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i _.-r,;: ela é um jogo ->);::-..E:i
-:ì --l = .r:
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:rs:', el de tal dialéti-
p:-reira tarefa do
r'. Jas coisas. Ele
ir-:--. seja em que :: : Burckhardt, Escuburas de Munster, c. 1835. Foll-reto de desenhos extraíclo
-i.;,e] que as faz :. ,:: ;oÌeção intitulada Aherthümer. Basileia, Jacob Burckhardt-Archiv. I'oto.
r: :eaÌidade que :: : 3:rckhardt-Archiv.
l' =spiritual leine
s: ::ro é mutável, ,-:::,:-:.de de amante da arte, a uma inconsequência disciplinar do histo-
*r,; - ::':::.J sensu. Burckhardt não estetiza a história corrro quem se deixasse
r:;'j j-- -- : ;ma embriaguez de esquecimento: simplesmente reconhece
- lição
:.::-,:1 - que a articulação temporal da relação entre devir e estabilidade.
Ía- = ].:;l:ìchte e Typus, é uma articwlação formal, a erecução de um ..pro-
r. ---ntropólogo, não '. -: letamorfose de uma crisálida". Assim, há que se "estetizar" necessa-
q-.= \\'arburg tivesse -:r,r: .ì história: a Kubur, segundo Burckhardt, como que ocupa o lugar da
c: '.i havia pensado --; -- - :a história", segundo Hegel.zer
Não há história possível sem uma his-
s;:,:ai das "formas Ì :: :-: culrura, e não há história da cultura sem uma hìstória da arte aberta
c s:u projeto histó- - -:i: râncias antropológicas e morfológicas das imagens.2e2Tarefa que Bur-
r.- sa" lnìcht etwa -i,.-: ::.ertamente deixou em construção. Tarefa que varburg e wôlfflin,
!::ra o "maravilho- ;:. :-*al à sua maneira, quiseram prolongar, se não concluir.
', :,- :,,t d er sdmen Pro-
--. a tarefa do historiador esteja centraÌmente fadada a uma certa mor-
l;:--r seus cadernos ì -:-: necessária - cuja paisagem crítica conviria desenhar, um dia, desde
ìà -:oca situa-se em r-':rri até carlo Ginzburg, por exemplo - é o que explica também o forte
n r :ambém em seus -:- - : '' rsual do
vocabulário teórico burckhardtiano: nele se constata uma recusa
, i vestuário, suas 'i -::r:a. um recuo diante do apriorì de Kant e da "especulação" de Hegel, e
kL;-.-. ou em suas fi- -::-= :eir-indicação simétrica, parâ o historiador, do "olhar", da .,contempla-
-:-',"' ,.\nschauung] ou da "imaginação" lPhantasiel.2e3 para Burckhardt, a
r:: quando se quis : ': 'lia se construía menos como uma narrativa do que como um ',quadro"
n-:oÌógica, a uma --;--;ì: "Imagens, quadros, é isso que desejo" lBilder Tabreaux, das ist's was
A imaqem sobrevivente 89
'Síarburg reto-
ich mochtel, escreveu ele já em L844, n]uma formulação que
mou por conta própria, antes mesmo de pô-la em prática nas pranchas de seu
aÍlas Mnemosyne.2ea Como não ver, entre outfos exemplos possíveis, que o
claro-escuro, mesmo como escolha cromática, exprime uma forma do tempo
em que o presente da história (o de Mantegna, por exemplo) afirma seu
próprio distanciamento arqueológico, seu próprio anacronismo, sua própria
vocação para fazer com que sobrevivam - como fantasmas - as figuras da
Antiguidade?2e5
Portanto, não há história possível sem uma morfologia das "formas do
tempo". Mas o raciocínio ficaria incompleto sem este esclarecimento essencial:
não há morfologia, ou análise das formas, sem uma dinâmica, ou análise das
forças. Omitir isto é reduzir a morfologia - o que vemos com frequência -
ao
estabelecimento de tipologias estéreis. É s,tpot que âs formas são reflexos de
Georges Didi-Huberman
'S7arburg
' i -le reto- ;.'i: - ,rsequências, duas bifurcações que modificam profundamente nossa
n:s pranchas de seu ritr- :::.i de conceber a historicidade.
lc's possíveis, que o -:- ::imeira implica uma dialética do tempo - justamenre a que tentamos
rr-- iorma do tempo ;::-:-jer na ideia de sintoma. Pela leitura de Burckhardt, essa dialética fun-
xe:rplo) afirma seu - :r: : maneira de um debate sempre reiniciado entre "latêncías,, lLatenzenl
Dtr:sÌrÌo, sua própria : " -:-..-s'' lKrisen]. Não há rempo histórico, de fato, sem um jogo de latências:
rr: s - as figuras da j;sconhecemos completamente o que chamamos de forças latentes
[/a-
:: ,"-.:. jirjliel, materiais ou morais, do mundo, e não somos capazes de pres-
p:: das "formas do r:rr-i ls imprevisíveis contágios espirituais que podem transformá-lo subita-
Ir:;lmentO eSSenCial: -:-,:-."'' ' Essa condição, histórica e coleriva, encontra seu correspondente
ir:,--;. ou análise das :'' * *:;o e individual no fato de que "no homem, nunca sucede uma única
c,-:, frequência - ao :r:--;ade estar ativa poÍ vez; todas estão sempre ativas juntas, mesmo que
r::. são reflexos de --':rabalhe mais debilmente que as outras e atue só no inconsciente lim
n .:'5limes - de um ' *"
- i-. :L' s sterzl do indivíduo'.30 I
tr
6; .:a seria, portan- ulra. toda latência procurâ abrir caminho para a superfície dos eventos: a
r::: a dinâmica do '--:rsi fKrìse) denominaria, em Burckhardt, essa maneira particularmente
E-.:-:l-ri o "fenômeno ::J:z que o tempo tem de fazer surgir - pot contrLtempo, por sintoma - sua
i.- .meno tensivo e :- :ria potência. Pelo menos dois capítulos das Consìderações sobre a histórìa
" inteiramente dedicados a essa questão.3'2 E em toda parte impõe-se a ob-
..:-, acão dialética da relação, muito difícil de se analisar, enrre formas fixas e
7:,'.ìttomensl é a : :Jas que as fazem vacilar, ou entre forças dominantes e formas que as fazem
r: ', -rsidade com- ::: a a SSaf:
;c:::la assume o
h : otimismo ao \a história, a queda é sempre preparada por uma desintegração inrerna,
r'-:;,les; aS vezes' "rm esgotamento. Basta então um pequeno abalo externo para que tudo
ir.- - :' para si mes- desmorone. (...) uma crise que exploda por um morivo qualquer beneficia-
b . ,erão, embo- -se do impulso geral desencadeado por numerosas outras causas; nenhuma
b :-- se realízará das testemunhas é capaz de discernir que força acabará levando a melhor.303
i
:l >í >i-
tni-::'ro, é procurar
i-i:";-/:re] ou de "po- -ì prática da história, em Burckhardt, equivale a uma análise não de faros que
fr*:. "todos os tipos se sucedem no tempo, mas de uma espécie de inconsciente do tempoi suas
i,
.,...r-., "Devemos -atências, suas catástrofes. A história warburguiana das imagens parece ha-
b =,:Eem de maneira -,'er extraído as consequências dessa decisão
metodológi ca: {azer da história
p :.irr é uma tarefa lma sintomatologìa ou até u.ma patologia do tempo, a qual seria um erro
|r- ..nrtntá-la quan- reduzirmos a um simples pessimismo moral, ainda que o elemento trágico
F. - muito virtual seia reconhecido nela em toda parte. Foi primeiramente em rermos morfológi-
| .,. ,r'ru potència - cos e dinâmicos que Burckhardt quis falar das "catástrofes" ou das "doenças,'
|a -poe
pelo menos do tempo:
I
I
I A imagem sobrevivente 91
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sou (e.rnl1nr e) 1a'Loru o]uêur
rug'[ogr8r1el a opersE] sle^91se sarapod slop
-ãlãop".r,rr*,"1.'t'r'na'selape'trssar8o:rdaã]uPlsuof,'ecoldnar€IJuãnlt
r€sIÌBuE ã^eP roPelJorsq O]
-ur ep esIIEue p -ressed e'red [se5ro; sE s€Pol
.-:.e da in- mações", e portanto, "imperÍeições" - como uma mistura, difícìl de analisar,
:= a do ele- de "destruições" e de algo que convém chamar de "sobrevivências".r07 Bur-
ckhardt toca mais de perto na Nachleben quando rejeita quaÌquer periodìza-
L-.:irico (cri- 'Víarburg
ção hierárquica da história entre barbárìe e ciuilização - tal como se
recusaria, tempos depois, a Íazer uma sepaÍação nítida entre Idade Média e
Renascimento:
(...) não nos é possível começar pela passagem da bdrbárie para d ciuiliza-
ção.Tanto num caso quanto no outro, as ideias são por demais imprecisas.
(...) O emprego dessas palavras, afinal, é uma questão de sentimento pes-
soal: de minha parte, considero barbárie engaiolar pássaros. Desde o come-
ço, conviria deixar de lado alguns usos que remontam à noite dos tempos e
subsistem em estado de fósseis até uma época de alta civilização, por moti-
;!. JUlS€rIf1OS en- vos talvez religiosos ou políticos, como alguns sacrifícios humanos. (...)
hq. nais obsidio- Numerosos elementos culturais, talvez provenientes de algum povo esque-
lrc:res estáveis" cido, continuam a viver inconscientemente llebt auch unbewusst weiterl
lu:::: crítica pro- como uma herança secreta e são transmitidos no próprio sangue da huma-
t0: iesnortear os nidade. Convém sempre levar em conta esse acréscimo inconsciente de pa-
[-. "revoluções", trimônios culturais lunb ewwsstes Awfsummieren uon Kuhurresultaten], tan-
rÈ.*. "fermenta- to nos povos quanto nos indivíduos. Esse crescimento e essa perda lWachsen
E -tnconsciente" nnd Vergehez] obedecem às leis soberanas e insondáveis da vida lhõhere
q::. a dialética em uner gründlich e Le b ens ge s etzel.308
A imagem sobrevivente 93