Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Federal do Ceará
Instituto de Cultura e ArteICA
Programa de pósgraduação em Artes PpgArtes.
Projeto de pesquisa definitivo.
Mateus Vinícius Barros Uchôa.
1.Título
Poéticas do (an)arquivamento. Alegorias do mal de arquivo na arte contemporânea.
2.Objetivos.
O projeto de pesquisa pretende fazer uma análise de um conjunto de obras de arte
partindo do gesto das vanguardas até o período do pósguerra, com a hipótese de apresentar a
figura do arquivo alegorizada enquanto um dispositivo epistemológico para compreender e
‘organizar’ os fenômenos que se expressam na cultura visual contemporânea. No século XX
com a crise do sujeito moderno e do seu modelo representacional de conhecimento,
ocasionada pela sucessão de catástrofes históricas da Segunda Guerra Mundial,
desencadeouse no campo do pensamento e da arte um trabalho de recolecção e reordenação
dos fragmentos do ‘arquivo central’ da razão ocidental. Sob o signo da Catástrofe, pensadores
e artistas vêm criando a contrapelo, no recurso à forma da alegoria, contraestratégias com as
nomos
ruína de arquivonomias monológicas e da leiprincípio do arcôntico da razão. A
hipótese a ser defendida é a de que determinadas expressões no campo da arte
contemporânea como, por exemplo, as obras de Man Ray, Duchamp e Christian Boltanski, e
dos artistas brasileiros Arthur Bispo do Rosário e Rosângela Rennó, oferecem a imagem de
anarquivadores
artistas como que realizam uma ‘revolução arquiviolítica’ ao procurarem
formas de falseamento do arquivo frente ao esvaziamento de sentido da cultura e da
experiência. Tal hipótese está ancorada em uma reflexão que parte de leituras críticas de
Mal de Arquivo uma impressão freudiana
obras filosóficas como de Jacques Derrida;
Origem do drama barroco alemão
e
Passagens do crítico Walter Benjamin; e de trabalhos
Teoria da vanguarda
ligados ao campo da Teoria da Arte como de Peter Burguer;
O que
vemos e o que nos olha A imagem sobrevivente
e de Geoge DidiHuberman.
1
3. Problematização e justificativa.
3.1. Arquivo e mal de arquivo.
A questão do Arquivo e da arquivonomia que trata de sua organização é um saber
arquivo
que remonta aos princípios do processo civilizatório, uma vez que a palavra deriva
Arkheíon
do grego que significa a residência dos magistrados de poder, os
Arcontes, onde se
guardavam os documentos da pólis ateniense. A degradação da experiência histórica no
século XX pelo acontecimento catastrófico da guerra mundial, subverteu a ideia de
Esclarecimento,
como triunfo de uma vida civilizada e racional, apresentando o processo
civilizatório como violento, genocida e amante da barbárie como bem salientaram autores da
Dialética do Esclarecimento
Teoria Crítica como Adorno e Horkheimer na e Walter
Benjamin nas suas
Teses sobre o conceito de História.
A razão ocidental e seu historicismo continha em si um arquivo central
constantemente reorganizado que sofreu inúmero danos na sua estrutura pelo acontecimento
das catástrofes. O abalo sofrido no arquivo central do Esclarecimento gerou um escoamento
de seus registros e discursos que imprimiam um sentido à humanidade e seu devir. No lugar
de uma crença na razão e seus regimes de verdade, articularamse, cada vez mais, modos de
pensar que desconfiam de seus arquivos. Esse ‘contramovimento’ à ação da normal racional
que já vinha se constituindo desde a crítica dos românticos alemães .como os irmãos Schlegel
e Novalis, aparece como resposta aos excessos da razão esclarecedora e sua tendência de
reduzir tudo ao arquivo do poder. A tarefa da arte neste cenário de perda passou ser a de
recolher os rastros dessa violência ao perceber que as ruínas desse arquivo poderiam ser
‘lidas’ como imagens que revelam suas feridas e seus sintomas. Neste processo de
‘revolução arquiviolítica’ o objeto artístico passou a ser objetovestígio, instrumento de
reconstrução da experiência histórica.
Contudo, segundo o que diz o historiador da arte George DidiHuberman ao longo de
Sobrevivência dos vagalumes
sua obra , não há para uma
teoria das sobrevivências nem
destruição radical, nem restauração completa. O campo da arte e da imagem foi apropriado
enquanto instância de insurgências criativas frente a um horizonte sem recursos da razão
teleológica. A experiência histórica passou por um declínio, mas isto não implicou em seu
anarquivadora
desaparecimento. A dimensão da arte contemporânea, colecionadora dos
fragmentos da experiência, deriva desse movimento de degradação uma forte teoria do tempo
histórico concebido como um tempo simultaneamente descontínuo e marcado pela
2
reencenação de imagens carregadas da catástrofe que lhes originou o trauma, assim como
bem atesta Walter Benjamin na sua análise sobre o drama barroco alemão e, mais
especificamente, na sua nona tese sobre o conceito de história:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa
um anjo que parece querer afastarse de algo que ele encara
fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas
asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto
está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele
gostaria de deterse para acordar os mortos e juntar fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prendese em suas asas
com tanta força que ele não pode mais fechálas. Essa tempestade
o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas,
enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
A alegoria que está na base do contramovimento
anarquivista da arte
contemporânea, seria a forma estética que reorganiza dialeticamente o conjunto de imagens
despedaçadas de um mundo ausente de qualquer significado ontologicamente determinado. A
desaquirva’
violação de contextos temporais provocados na arte contemporânea ‘ toda a
história da arte e o princípio nomológico de sua formatação, abrindo, deste modo, o arquivo
da arte para novas possibilidades de percepção e para uma nova forma visual de
conhecimento. A partir desta tendência contemporânea as artes apropriamse, cada vez mais,
da figura do arquivo, mas, sob o crivo da tendência crítica do romantismo fragmentária e
disruptiva, para abalar fronteiras e reverter dicotomias e poderes para recolecionar as ruínas
de forma crítica em um trabalho incessante de recomposição do mundo que sofre
decomposições constantemente como um acúmulo de catástrofes1.
A hipótese que se sustenta é a de que o artista contemporâneo cada vez mais se
assemelha à figura do colecionador, uma vez que, o ato de colecionar, renova o mundo via
uma pequena intervenção nos objetos: a descontextualização do seu
valor de uso. O artista, a
exemplo de Arthur Bispo do Rosário, se comporta tal como um colecionador de imagens,o
1
Neste sentido o campo da cultura é visto pelos artistas e pensadores anarquivadores (Aby Warburg,
Walter Benjamin, Bispo do Rosário, Rosângela Rennó, etc.) como uma “tragédia perpétua”. E em seus
processos criativos a técnica da montagem ocupa um papel central.
3
que faz de Bispo um forte emblema do que é o contemporâneo na arte . Autor de várias
montagens e constelações. o mundo se renova sob a sua poética do colecionismo.
Aqui temos um homem — ele tem de recolher na capital o lixo do
dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o
que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é
reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o
cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção
inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se
detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai
adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis.
O emblemático ato do colecionador é, nessa visão, destrutivo e alegórico. Sua
arqueologia
sensível é decorrente do processo de “anarquivação” do mundo e da ruptura com a
nomos
leiprincípio, o do arquivo da razão. Deste modo, a póetica de Bispo do Rosário
deslouca
os objetos do uso comum e de seus regimes valorativos e os recria na arte,
espectralidade
contribuindo para a expressão de uma própria desses objetos.
3.2. Mal de de arquivo. Espectralidade e repetição na produção da diferença.
O pensador francoargelino Jacques Derrida propõe, sob a perspectiva do pensamento
da desconstrução, o descentramento do conceito clássico de arquivo para uma noção de
impressão freudiana”
arquivo aberta e disseminada, a partir de sua “ quando interpreta o
conceito de
pulsão de morte como
mal de arquivo. Além de evidenciar a importância da
psicanálise na sua economia teórica, Derrida, ao questionar o conceito tradicional de arquivo,
direcionase ao que é fundamental no campo da história: os seus
documentos acertados como
positividades que atestam o que de fato ocorreu na experiência histórica.
A noção tradicional de arquivo sugere que tais
documentos ou registros de memória
possam ser concebidos como verdades factuais de uma dada cultura. Os arquivos seriam os
monumentos
seus . No seu trabalho, Derrida apresenta como falácia esta concepção tradicional
de arquivo tomado enquanto uma materialidade fixa e sem dinâmica, que tem como
perspectiva temporal em seus registros apenas o passado. Passado este salvaguardado da
contaminação dos traços do presentee do tempo de um “aindanão”, o porvir.
Para o filósofo o engano está em conceber o registro materialtemporal sem no que
entretempos.
nele há de lacunar, de rasura, repleto de Derrida reinscreve no conceito de
4
esquecimento
arquivo os processos desestabilizadores dos efeitos do que atua como
desmemória
, portanto, como um mal que é imanente à própria lógica constituinte da
arquivonomia. A ação deste ‘esquecimento ativo’ contamina o arquivo com a virtualidade,
com as várias possibilidades virtuais impressas no seu processo de abertura, na sua
anarquivação
. Portanto, este seria essencialmente lacunar e sintomático.
Derrida não compreende a dimensão arquivística apenas como depósito inerte, mas
sendo latente e dinâmico em seus conteúdos. Ao explorar o sentido etimológico da palavra
arkhé
, evidencia com base no discurso freudiano sobre o inconsciente o processo de
marca
arquivamento enquanto e
impressão. Daí porque o ensaio de Derrida é subtitutado de
impressão freudiana”
‘ , pois o arquivo como marca do inconsciente em Freud deixa como
herança uma impressão a quem se direciona a ele. Na enunciação do mal de arquivo, o autor
não só irá criticar o conceito de arquivo, mas a própria noção de conceito enquanto tal,
presença
devedora de uma metafísica da .
arkhé
Arquivo, como derivação de , denomina a origem, o princípio e a lei das coisas.
Portanto arkhé é o princípio regente do logos e do nomos do pensamento. As impressões de
um arquivo pressupõem a preservação da leiprincípio que reúne vários signos sobre um
mesmo suporte articulandoos numa unidade, pois “num arquivo não deve haver dissociação
absoluta, heterogeneidade ou segredo que viesse a separar. Compartimentar de modo
absoluto”2 . Numa palavra, o conceito de arquivo organiza, armazena dados e elementos de
modo logocêntrico pelo comando da leiprincípio, da arkhé. O mal que, no movimento da
diferença, lhe possibilita a repetição na inscrição do esquecimento, reimprime lacunas e
descontinuidades na sua estrutura disparando uma ‘revolução arquiviolítica’ decorrente da
pulsão de morte
virtualidade que lhe é acionada pela positivação da sua , o esquecimento.
Se não há arquivo sem o princípio do arconte, não há para Derrida arquivo sem mal
de arquivo. De acordo com Joel Birman:
Este, com efeito, não apenas apagaria o arquivo constituído na sua
positividade patente, mas seria, ainda e fundamentalmente, a
condição de possibilidade para que o processo de arquivamento
pudesse continuar posteriormente e ser então reiterado ao infinito.
Seria a dimensão constituinte do arquivo que assim se destacaria
pelo enunciado do mal de arquivo. Portanto, a constituição do
arquivo implicaria necessariamente o apagamento e o
2
Mal de arquivo. Uma impressão freudiana,
DERRIDA, Jacques. p.14.
5
esquecimento de seus traços, condição necessária para sua própria
renovação.3
Neste movimento de desconstrução o arquivo não é apenas o registro ontológico e
nomológico da história; acometido por este mal, por uma pulsão de morte que apaga
constantemente seus traços, seu impulso também é anárquico, anarcôntico. A pulsão de morte
enquanto mal que lhe retira a fixidez é anarquívica e destruidora. O arquivo é economia de
gestão da memória, mas também é o campo de uma esquecimento ativo. Eis a força
differánce
arquiviolítica da que transforma o que é patente e ordenado em latente e virtual,
sob a forma do lapso e do sintoma. Assim, a questão inerente ao arquivo não é apenas a de
um registro do passado arcaico, mas é também a interpretação espectral e virtual de um
porvir, uma vez que “é da estrutura do porvir o não poder se colocar senão acolhendo a
repetição tanto no respeito a fidelidade ao outro de si mesmo como na reposição violenta
do um.’’4 Esse contramovimento arquiviolítico é identificável nas produções de
determinados artistas contemporâneos como Bispo do Rosário, Hal Foster, Rosângela Rennó
e
Christian Boltanski. As artes, a partir da segunda metade do século XX adotam cada vez
mais a figura do arquivo de acordo com esta tendência anárquica exposta por Derrida. A arte
contemporânea como campod e produção da diferença quer apropriarse do conceito de
arquivo para recolecionar suas ruínas e reordenálas de forma crítica para produzir um efeito
de renovação destas em seu ato criativo.
3
Arquivo e mal de arquivo. Uma leitura de Derrida sobre Freud.
BIRMAN, Joel.
p. 110in: Natureza
Humana 10(1): 105128, jan.jun. 2008.
4
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. p. 101102.
6
5
5
BOLTANSKI. Monument to the Lycée Chases.
7
6
6
Rosângela Rennó. Projeto Arquivo Universal.1994.
8
3.3. O Contemporâneo e o Alegórico. Gestos intempestivos na história das imagens.
A relação entre pensamento e imagem constitui um tema fundamental com o qual a
filosofia deparase desde seu início. Na filosofia contemporânea, a partir de Nietzsche, temos
uma revalorização da dimensão imagética do pensamento, com sua racionalidade específica,
como oposição ao esvaziamento matemáticoformal do discurso filosófico moderno. Tal
dimensão imagética do pensamento encontramos notoriamente no esforço intelectual do
filósofo Walter Benjamin, onde a reabilitação da imagem não se configura como mero
retorno ao mito ou ilustração secundária de idéias, mas como superação e “antídoto” à crise
do pensamento e da experiência no contexto das sociedades técnicoindustriais.
Em seu ímpeto de construir categorias históricoprodutivas para uma historiografia
crítica da modernidade, Benjamin recorre à noção de imagem (
Bild), que em sua exposição
teórica apresentase, a saber, em dois momentos: a noção de Traumbild
imagem onírica ( ),
9
que indica o estado da experiência social moderna, e
imagem dialética (
Dialektisches Bild),
caracterizada por ser o estado de suspensão do estado onírico da imagem ao potencializála
criticamente no movimento dialético da crítica estética e filosófica. A recontextualização do
diferimento
universos das imagens em um movimento de do seu fluxo habitual, é constituída
alegoria,
a partir do recurso à noção de entendida pelo autor
como método disruptivo de
reordenamento da imagem por uma nova perspectiva materialista
. A compreensão e o
domínio destas categorias na relação entre as dimensões estéticas e políticas e a experiência
sensível que delas se origina, às quais a determinação da consciência temporal e história se
alicerça, se configura como o centro da teoria crítica da arte tematizada pelo filósofo
berlinense acerca do
contemporâneo.
É do ponto de vista da
cesura e
interrupção do fluxo temporal linear das imagens,
neste processo de apreensão do sentido da obra de arte e do conhecimento, que uma
formulação sobre o conceito de imagem é estruturado em Walter Benjamin. Podemos
encontrar ao longo de sua obra vários elementos que apontam para esta nova configuração
Passagens
crítica do universo das imagens. Na obra das e na
Origem do drama barroco
alemão
, a noção de
cesura é apresentada como uma proposta metodológica para uma
dialética históricocultural na qual Benjamin se vê capaz de
decifrar os fenômenos aparentes
em que as imagens do
continuum da história no momento de sua
ruptura (
zerspringen)
,
temporal se tornam efetivamente dialéticas, historicamente autênticas, não ligadas ao mito,
não arcaicas. Essa nova qualidade das imagens implica uma ação destrutiva do tempo tal
como Giorgio Agamben apresenta como sendo a tarefa do contemporâneo e que Walter
Benjamin nomeia como um tempo no “agora de sua recognoscibilidade”, um tempo
jetszeit
“saturado de agoras” ( ).
O contemporâneo, nesta perspectiva, é aquele que mantém uma relação anacrônica
com seu tempo, que está deslocado e, por tal razão, está apto a desdobrar no tempo presente
outros sentidos. Neste movimento, a imagem traz a marca do pensamento crítico de tais
autores. Marca esta, que é uma forte característica da estética barroca por seu método de
fragmentação
da realidade.
A imagem que surge no campo visual da intuição alegórica é o
fragmento, a ruína. Sua beleza simbólica se evapora, quando o
clarão do saber divino o ilumina. O falso brilho da totalidade se
extingue. O eidos se apaga, o símile se instala, o cosmos que o
habita se esgota. Nos rebus áridos, que restam, jaz uma intuição,
acessível a quem rumina […] As alegorias são no reino do
10
pensamento o que as ruínas são no reino das coisas. Daí o culto
barroco das ruínas. O que jaz em ruínas, o fragmento
significativo, o estilhaço; essa é a matéria mais nobre da criação
barroca […] A visão completa do novo era a ruína.7
Neste ponto, é necessário fazer uma breve aproximação de Walter Benjamin com os
Doutrina das Cores
escritos de Goethe, em especial a , onde os resultados desta aproximação
filosófica encontramse na obra ''Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe'’, que por razões de
direcionamento teórico não serão explicitas a fundo no decorrer deste texto. Numa palavra,
Walter Benjamin retira das reflexões estéticas deste romântico alemão variadas noções que
contribuem para a sua filosofia da Schein
Aparência ( ) e da História. Apesar de, à primeira
vista, ser uma relação bastante heterodoxa, ela está em um dos pontos centrais do
empreendimento filosófico deste pensador. Sabese que a parte mais “filosófica”da obra de
Naturphilosophie
Goethe pertence ao gênero da , uma característica própria do romantismo
alemão. A investigação benjaminiana se concentra na apresentação do estudo específico do
Protofenômeno
conceito de Urphänomen
( ) ou
fenômeno originário de Goethe, onde o autor
prioriza uma Filosofia da Natureza que rejeita as formas do cientificismo, baseada na
manifestação natural do fenômeno cromático (das cores) e na percepção humana; além de
expressar este conceito de
Urphänomen do ponto de vista histórico no seu assim chamado
Origem
conceito de protofenômeno
. É a partir deste ponto de transposição da noção de do
âmbito da natureza para o plano imanente e materialista da história que Walter Benjamin
estrutura todo o prefácio da sua obra
Origem do drama Barroco Alemão.
De fato, esta parte do exercício filosófico de W. Benjamin possui uma amplitude que
nos é possível desenvolver aqui apenas modestamente, mas a relação entre este pensador do
século XX e o poeta alemão é bem mais do que uma livre associação de idéias. A questão do
conceito de Origem está amplamente desenvolvida na obra de Benjamin em seu livro sobre o
Passagens.
barroco e em seu Por fim, uma das razões da aproximação de Benjamin a Goethe
é que em seu empreendimento filosófico está presente uma crítica do mito. A crítica do mito,
não baseada na oposição
mito e conceito, mas entre
mito e história é o que se evidencia
como problema central no qual o estudo do conceito goetheano de fenômeno originário
permitirá a construção de uma crítica imanente do conhecimento histórico e das imagens.
No contexto da doutrina das idéias de Benjamin, o conceito de
origem caracteriza aquele instante no tempo, no qual a idéia
7
BENJAMIN, Walter. . 352, 354. Trad. Sérgio Paulo Rounaet. Ed.
Origem do drama barroco alemão. p
Brasiliense. São Paulo, 1984.
11
encontra os fenômenos. A questão nesse caso referese a como as
idéias teriam sua origem na história , sendo ao mesmo tempo
atemporais e eternas? Para se compreender esta complexa
relação, devese, em primeiro lugar, definir origem e história fora
de um contexto de relações lógicocausais. Ou seja, devemos
diferenciar origem (Ursprung) da gênese ou do puro começo em
que algo foi criado (Entstehung), além disso é preciso
compreender a história não como um desenvolvimento linear ou
como progresso 8
A origem do drama barroco alemão
Em , o filósofo desenvolve o seu conceito de
origem Ursprung
( ), em diferença com o de
gênese, precisamente com base no conceito de
Urphänomen
de Goethe
. De fato, a partir da apropriação deste conceito goetheano, Benjamin
insiste centralmente na possibilidade de inscrever a verdade na
descontinuidade da
aparência
.9 A apropriação do conceito de fenômeno originário tem, portanto, um longo
alcance crítico, pois permite ao autor assumir uma concepção de crítica imanente, isto é, com
base nos próprios fenômenos aparentes. Distanciandose da posição falaciosa da oposição
metafísica entre essência e ‘fenômenos falsos’10 .
Numa visão crítica em torno da arte, o método alegórico difere de uma abordagem
organicista da obra facultada pelo símbolo, que delimita uma relação harmônica do signo e
significado. É próprio da forma alegórica o processo de montagem, de fragmentação e
8
Machado, Francisco De Ambrosis Pinheiro. Imanência e História: a crítica do conhecimento em Walter
Benjamin. Ed. UFMG, Pg. 86.
9
[...] os fenômenos não entram integralmente no reino das idéias em sua existência bruta, empírica, e
parcialmente ilusória, mas apenas em seus elementos, que se salvam. Eles são depurados de sua falsa unidade,
para que possam participar, divididos, da unidade autêntica da verdade. Nessa divisão, os fenômenos se
subordinam aos conceitos. São eles que dissolvem as coisas em seus elementos constituitivos. As distinções
conceituais só podem escapar à suspeita de serem uma sofística destrutiva se visarem à salvação dos fenômenos
nas idéias: salvar os fenômenos de Platão. Graças a seu papel mediador, os conceitos permitem aos fenômenos
participarem do Ser das idéias. Esse mesmo papel mediador tornaos aptos para outra tarefa da filosofia,
igualmente primordial: a apresentação das idéias. A redenção dos fenômenos por meio das idéias se efetua ao
mesmo tempo que a apresentação das idéias por meio da empiria. Pois elas não se presentam em si mesmas, mas
unicamente através de um ordenamento de elementos materiais no conceito, de uma configuração desses
elementos.” Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão. pg. 5556
10
Numa palavra, a filosofia da imagem de Walter Benjamin é o acontecimento da cesura a respeito dos
binarismos metafísicos belo/verdade, forma/conteúdo, linguagem/imagem, sensível/inteligível, tempo/história.
A partir da relação dialética entre verdade e beleza, Benjamin desenvolve em sua crítica o conceito de
semexpressão , elemento que representa a superação da perspectiva do símbolo na visão alegórica da arte, e que
desfaz a falsa totalidade da aparência para revelar um fragmento verdadeiro do mundo, pela obra de arte,
conectando a arte, enquanto aparência, ao campo da verdade revelandoa como lei essencial para o pensamento .
Para uma melhor compreenssão do interesse de Benjamin por Goethe, ver o artigo de Maria Filomena Molder
intitulado “ Método é desvio uma experiência de limiar”,
contido no livro
Limiares e Passagens em Walter
Benjamin. Ed. UFMG. 2010.
12
reordenação das ideias que forma uma constelação que rompe com contextos específicos de
significação.11
12
O caráter de mobilidade e de intempestividade próprios da alegoria benjaminiana
certamente é base para o conceito de contemporâneo do filósofo italiano Giorgio Agamben,
pois o contemporâneo seria, segundo este autor, aquele (a figura do crítico alegorista de
Benjamin) que não está em posição de coincidir com o seu tempo operando um contraste
inatual.
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente
contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este,
nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido,
inatual; mas exatamente por isso, exatamente atrvés desse
deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os
outros, de perceber e apreender seu tempo.13
O contemporâneo é aquele capaz de instaurar um anacronismo e, por isto, está em
condição de descontextualizar imagens de espaços e tempos heterogêneos para atribuir nelas
novos sentidos. Seria aquele capaz de ler o tempo presente como os olhos inatuais de um
11
Atlas mnemosyne
O de Aby Warburg é uma outra forma exemplar deste caráter metodológico da alegoria em
relação às expressões artísticas da cultura. Nas lâminas do atlas de Warburg um conjunto de imagens estão
dispostas de acordo com o princípio intempestivo e fragmentário da montagem, sobrepondo num plano um
conjunto de tempos heterogêneos contido nas imagens. No exercício da montagem, Waburg desmantela a
dinamogramas
história e o tempo a fim de constituir do movimento de sobrevivência das imagens na cultura, o
que está sintetizado no seu conceito de Pathosformel. Nossa investigação de pesquisa procurar pensar os
caminhos teóricos de Warburg e Benjamin para estabelecer uma imagem crítica da arte como prática
arqueológica na cultura visual contemporânea.
12
Painel de lâminas com fotomontagens do Atlas warburgiano.
13
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo, p.5859. Trad. Vinicius Honesko. Chapecó, SC. Ed.
Argos, 2009.
13
alegorista. Na relação anacrônica com sua época, o contemporâneoalegorista é capaz de
apreender criticamente o seu próprio tempo ao revitalizar o objeto ou fato dado como
ocorrido, o resto mortificado da história, a ruína. No processo de atualização do passado ao
que é cativo no presente, a alegoria tenta suspender as coisas da transitoriedade em virtude da
perda de seu sentido original. Em contraste à perspectiva organicista do símbolo, que se dá de
modo eterno e definitivo, a visão de transitoriedade das coisas, como cerne da concepção de
alegórico, imerge na duração e se estende suspendendo o curso linear dos acontecimentos
abrindo as estruturas da história. Afirmar a condição do contemporâneo como intempestivo é
dizer que a alegoria jamais se encontra em repouso. Por se desenvolver em
índices temporais
heterogêneos, a alegoria se desloca desencadeando todo um movimento de contraste ao
símbolo, estático e idêntico a si mesmo. O contemporâneo fratura o tempo de maneira que se
possa ler de modo original a história. “O objeto de uma história ponderada da arte é remontar
à sua origem, acompanhar seus progressos e variações até sua perfeição, e marcar sua
decadência e queda até sua extinção”.14
Nisto consiste o ciclo das alegorias: recusa de uma essencialização prematura das
imagens, e desvio da significação em direção ao indeterminado, ao aberto. Assim, deriva
temporal do contemporâneo na arte não desvela uma essência por trás da imagem, mas
imagemfragmento
apresenta essa essência na própria aparência descontínua da . Walter
Benjamin elucida a diferença entre símbolo e alegoria da seguinte forma:
Ao passo que no símbolo, com a transfiguração do declínio, o
rosto metamorfoseado da natureza se revela fugazmente à luz da
salvação. a alegoria mostra ao observador a facies hippocratica
da história como protopaisagem petrificicada. A história em tudo
que nela é prematuro, sofrido e malogrado se exprime desde o
início num rosto não, numa caveira. E porque não existe, nela,
nenhuma liberdade simbólica de expressão, nenhuma harmonia
clássica da forma, em suma, nada de humano, a caveira exprime,
não somente a natureza da humanidade em geral, no ponto mais
extremo de sua decomposição, sob a forma de um enigma. Nisso
reside o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana,
da história como história mundial do sofrimento, significativa
apenas nos episódios de declínio.15
.
14
WARBURG apud
DIDIHUBERMAN. A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos
fantasmas sengundo Aby Warburg. p. 18. Rio de Janero: Contraponto, 2013.
15
Origem do drama barroco alemão
BENJAMIN, Walter. , p 343.
14
16
A dissimetria que a atmosfera do contemporâneo causa na temporalidade histórica,
desconstrói todos os modelos epistêmicos tradicionais da história da arte. Tratase de um
modelo temporal,
“ no qual o devir das formas devia ser analisado como um conjunto de
processos tensivos tensionados, por exemplo, entre vontade de identificação e imposição de
alteração, purificação e hibridação, normal e patológico, ordem e caos, traços de evidência e
traços de irreflexão.”17 Assumir a tarefa de ser contemporâneo é saber fixar o olhar sobre as
sombras de seu tempo, sobre o seus
fantasmas para que neste entretempo lacunar, nesta
alegoria dialética
fissura que a diferença
produz, possa surgir a enquanto uma potência do
porvir
. Ao passo que o artista clássico, o artista do símbolo, se depara com o material ainda
como portador de significado, o artista do contemporâneo enfrenta o material como um signo
repleto de lugares vazios, sendo o seu gesto o que imprimirá significado à coisa.
montada
A obra alegórica já não é produzida como um todo orgânico, mas sobre
fragmentos, deste modo, seu caráter de montagem com base na fragmentação se revelará,
para a teoria da arte, como o gesto originário do procedimento alegórico. Delineado isto, o
16
Montagem alegórica de objetos feita por Bispo do Rosário.
DIDIHUBERMAN, George.
17
A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. 25
p. . Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
15
ato criativo do artista não concebe mais a obra como a totalidade orgânica do símbolo, como
união indivisível de signo e sgnificado, mas com a forte presença de características do
desviante
método da alegoria, que é intempestiva e anacrônica. O procedimento alegórico de
anarquivação
apropriação e montagem de fragmentos em cena atesta a do
documentoobjeto
num movimento que oscila, entre a ordem e a desordem na reorganização de tempos
anacrônicos e nãohomogêneos, para citar a história de modo inédito no ato de criação. É
neste ponto que “
descobrese, então o sentido em que os artistas contemporâneos são
“sábios” ou precurssores de um gênero especial: recolhem pedaços dispersos do mundo
como o faria uma criança ou um trapeiro Walter Benjamin compararia estas duas figuras
com o autêntico sábio materialista. Fazem com que se encontrem coisas fora das
classificações habituais, retiram dessas afinidades um gênero de conhecimento novo, que nos
abre os olhos sobre os aspectos inadvertidos do mundo, sobre o inconsciente mesmo de
nossa visão
.”18
4. Objetivos.
Apresentar a dinâmica do arquivo na arte contemporânea enquanto uma forma
plásticoepistemológica que é comparável à constituição da alegoria numa possível “poética
dos fragmentos” que possibilita pela arte uma visão crítica da experiência histórica ao dar
legibilidade ao que nela tem de malogrado e esquecido. Dinâmica que o autor apresentará a
partir de uma análise pormenorizada de trabalhos e movimentos artísticos do período
pósguerra do século XX tais como Christian Boltanski, Rosêngela Rennó e Arthur Bispo do
Rosário. A pesquisa traz referenciais teóricos do campo da filosofia e da teoria da arte a partir
das obras de Jacques Derrida, Walter Benjamin, Aby Warburg e George Didihuberman.
5. Metodologia.
A fase inicial da pesquisa consistirá na leitura dos referenciais teóricos e
posteriormente na apreensão crítica da poética dos artistas citados. A construção
argumentativa da dissertação se desdobrará na forma de uma desenvolvimento dialético que
justifica sua hipótese central de identificação e nomeação do trabalho de remontagem da
18
Atlas. como levar o mundo nas costas.
Ibdem. Tradução disponível no sítio eletrônico:
www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/atlas.html
. Acesso em 02/07/2015.
16
experiência histórica por parte de expressões artísticas que procuram em suas poéticas
positivar o “malestar na cultura visual contemporânea”.
REFERÊNCIAS:
AGAMBEN, Giorgio.
O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius Honesko.
Chapecó, SC. Ed. Argos, 2009.
BENJAMIN, Walter. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, M.
Seligmannsilva (tradu., pref. e notas). São Paulo: Iluminuras/EDUSP, 1983.
_________________. Origem do drama barroco alemão , Sérgio Paulo Rouanet (trad., pref.)
São Paulo: Brasiliense, 1984.
_________________. Obras escolhidas, v. Magia e técnica, arte e política,
I, Sérgio Paulo
Rouanet (trad., pref.) São Paulo: Brasiliense, 1985
________________. Obras escolhidas, v Rua de mão única
II, i , R.R Torres F e J.C.M
Barbosa (trad.), São Paulo: Brasiliense, 1987
_______________. Obras escolhidas, v III ,
Charles Baudelaire, um lírico no auge do
capitalismo, J.C.M
_______________. Diário de Moscou, H. Herbol (trad.). São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
_______________. Passagens. Willie Bolle, Olgária Chain Féres Matos (org.) Irene Aron,
Cleonice Paes Barreto Mourão. (trad.) Belo Horizonte: Edtora UFMG, São Paulo: IMprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
BIRMAN, J. Arquivo e mal de arquivo: uma leitura de Derrida sobre Freud. Natureza
Humana, v. 10, n. 1, p. 105128, jan./jun. 2008
BÜRGER, Peter. 1993. Teoria da Vanguarda . Lisboa: Vega.
DANTO, Arthur C. 2006. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da
História. São Paulo: Odysseus Editora.
DERRIDA, Jacques. O mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001. 130 p.
DIDIHUBERMAN, George. Atlas. Como levar o mundo nas costas. Tradução disponível no
sítio eletrônico:
www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/atlas.html
.
ENWEZOR, O. Archive fever: uses of the document in contemporary art. New York:
International Center of Photography; GoĴ ingen: Steidl Publishers, 2008
FOSTER, Hal. An Archival Impulse. October 110 (Fall 2004). Princeton: MIT Press, 2004.
JIMENEZ, Rita de Cássia Garcia. Arthur Bispo do Rosário no panorama da arte
contemporânea. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo. Programa de
PósGraduação Interunidades em Estética e História da Arte.; orientadora Kátia Canton.
São Paulo, 2008
.
MURICY, Kátia,
Alegorias da Dialética. imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de
Janeiro, NAU editora. 2009.
Rosângela Rennó
RENNÓ, Rosângela. 1998. . São Paulo: EDUSP.
17
O arquivo universal e outros arquivos
________________ 2003a. . São Paulo: Cosac &
Naify.
18