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Universidade 

Federal do Ceará 
Instituto de Cultura e Arte­ICA 
Programa de pós­graduação em Artes­ PpgArtes. 
Projeto de pesquisa definitivo. 
Mateus Vinícius Barros Uchôa. 
 
1.Título 
 Poéticas do (an)arquivamento.  Alegorias do mal de arquivo na arte contemporânea.  
 
2.Objetivos. 
O  projeto  de  pesquisa  pretende  fazer  uma  análise  de  um  conjunto  de  obras  de  arte 
partindo  do  gesto  das  vanguardas até o período do pós­guerra, com a hipótese de apresentar a 
figura  do  arquivo  alegorizada  enquanto  um  dispositivo  epistemológico  para  compreender  e 
‘organizar’  os  fenômenos  que  se  expressam  na  cultura  visual  contemporânea.  No  século XX 
com  a  crise  do  sujeito   moderno  e  do  seu  modelo  representacional  de  conhecimento, 
ocasionada  pela  sucessão  de  catástrofes  históricas  da  Segunda  Guerra  Mundial, 
desencadeou­se  no  campo  do  pensamento  e  da  arte  um  trabalho   de recolecção e reordenação 
dos fragmentos do ‘arquivo central’ da razão ocidental. Sob o signo da Catástrofe, pensadores 
e  artistas  vêm  criando  a  contrapelo,  no recurso à forma da alegoria, contra­estratégias com as 
nomos  ​
ruína  de  arquivonomias  monológicas  e  da  lei­princípio  do  ​ arcôntico  da  razão.  A 
hipótese  a  ser  defendida  é  a  de  que  determinadas  expressões  no  campo  da  arte 
contemporânea  como,  por  exemplo,  as  obras  de  Man  Ray,  Duchamp e Christian Boltanski, e 
dos  artistas  brasileiros  Arthur  Bispo  do  Rosário  e  Rosângela  Rennó,  oferecem  a  imagem  de 
anarquivadores  ​
artistas  como  ​ que  realizam  uma  ‘revolução  arquiviolítica’  ao  procurarem 
formas  de  falseamento  do  arquivo  frente  ao  esvaziamento  de  sentido   da  cultura  e  da 
experiência.  Tal  hipótese  está  ancorada  em  uma  reflexão  que  parte  de  leituras  críticas  de 
Mal  de  Arquivo­  uma  impressão  freudiana  ​
obras  filosóficas  como  ​ de  Jacques  Derrida; 
Origem  do  drama  barroco  alemão  ​
e  ​
Passagens  do  crítico  Walter  Benjamin;  e  de  trabalhos 
Teoria  da  vanguarda  ​
ligados  ao  campo  da  Teoria  da  Arte  como  ​ de  Peter  Burguer;  ​
O  que 
vemos e o que nos olha ​ A imagem sobrevivente ​
e ​ de Geoge Didi­Huberman.  
 
 
 


3. Problematização e justificativa. 
3.1. Arquivo e mal de arquivo. 
A  questão  do  Arquivo  e  da  arquivo­nomia  que  trata  de  sua  organização  é  um  saber 
arquivo  ​
que  remonta  aos  princípios  do  processo  civilizatório,  uma  vez  que  a  palavra  ​ deriva 
Arkheíon  ​
do  grego  ​ que  significa  a  residência  dos  magistrados  de  poder, os ​
Arcontes, onde  se 
guardavam  os  documentos  da  pólis  ateniense.  A  degradação  da  experiência  histórica  no 
século  XX  pelo  acontecimento  catastrófico  da  guerra  mundial,  subverteu  a  ideia  de 
Esclarecimento,  ​
como  triunfo  de  uma  vida  civilizada  e  racional,  apresentando  o  processo 
civilizatório  como  violento,  genocida  e  amante  da  barbárie  como bem salientaram autores da 
Dialética  do  Esclarecimento  ​
Teoria  Crítica  como  Adorno  e  Horkheimer  na  ​ e  Walter 
Benjamin nas suas ​
Teses sobre o conceito de História. 
A  razão  ocidental  e  seu  historicismo  continha  em  si  um  arquivo  central 
constantemente   reorganizado  que  sofreu  inúmero  danos  na  sua  estrutura  pelo  acontecimento 
das  catástrofes.  O  abalo  sofrido  no  arquivo  central  do  Esclarecimento  gerou  um  escoamento 
de  seus  registros  e  discursos  que   imprimiam  um  sentido  à  humanidade  e  seu  devir. No lugar 
de  uma  crença  na  razão  e  seus  regimes  de  verdade,  articularam­se,  cada  vez  mais, modos de 
pensar  que  desconfiam  de  seus  arquivos.  Esse  ‘contra­movimento’ à ação da normal racional 
que  já  vinha se constituindo desde a crítica dos românticos alemães .como os irmãos Schlegel 
e  Novalis,  aparece  como  resposta  aos  excessos  da  razão  esclarecedora  e  sua  tendência   de 
reduzir  tudo  ao  arquivo  do  poder.  A  tarefa  da  arte  neste  cenário  de  perda  passou  ser  a  de 
recolher  os  rastros  dessa  violência  ao  perceber  que  as  ruínas  desse  arquivo  poderiam  ser 
‘lidas’  como  imagens  que  revelam  suas  feridas  e  seus  sintomas.  Neste  processo  de  
‘revolução  arquiviolítica’  o  objeto  artístico  passou  a  ser  objeto­vestígio,  instrumento  de 
reconstrução da experiência histórica.  
Contudo,  segundo  o  que diz o  historiador da  arte  George Didi­Huberman ao longo de 
Sobrevivência  dos  vaga­lumes​
sua  obra  ​ ,  não  há  para  uma  ​
teoria  das  sobrevivências  nem 
destruição  radical,  nem  restauração  completa.  O  campo   da  arte  e  da  imagem  foi  apropriado 
enquanto  instância   de  insurgências  criativas  frente  a  um  horizonte  sem  recursos  da  razão 
teleológica.  A  experiência  histórica  passou  por  um  declínio,  mas  isto  não  implicou  em  seu 
anarquivadora  ​
desaparecimento.   A  dimensão  ​ da  arte  contemporânea,  colecionadora  dos 
fragmentos  da  experiência,  deriva desse movimento de degradação uma forte teoria do tempo 
histórico  concebido  como  um  tempo  simultaneamente  descontínuo  e  marcado  pela 


reencenação  de  imagens  carregadas  da  catástrofe  que  lhes  originou  o  trauma,  assim  como 
bem  atesta  Walter  Benjamin  na  sua  análise  sobre  o  drama  barroco  alemão  e,  mais 
especificamente, na sua nona tese sobre o conceito de história: 
 
Há  um  quadro  de Klee  que  se  chama  Angelus  Novus.  Representa  
um  anjo  que  parece  querer  afastar­se  de  algo  que  ele  encara 
fixamente.  Seus  olhos estão  escancarados, sua boca dilatada, suas 
asas  abertas.  O  anjo  da história  deve  ter  esse  aspecto. Seu  rosto 
está  dirigido  para  o  passado.  Onde  nós  vemos  uma  cadeia  de 
acontecimentos,  ele  vê  uma   catástrofe  única,  que  acumula 
incansavelmente  ruína sobre  ruína  e as dispersa a nossos pés. Ele 
gostaria  de  deter­se  para  acordar  os  mortos  e  juntar  fragmentos. 
Mas  uma  tempestade  sopra  do  paraíso  e  prende­se  em  suas  asas 
com  tanta força  que ele  não  pode mais  fechá­las. Essa tempestade 
o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, 
enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. 
 
 
A  alegoria  que  está  na  base  do  contra­movimento  ​
anarquivista  da  arte 
contemporânea,  seria  a  forma  estética  que  reorganiza  dialeticamente  o  conjunto  de  imagens  
despedaçadas  de um mundo ausente de qualquer significado ontologicamente determinado. A 
desaquirva’  ​
violação  de  contextos  temporais  provocados  na  arte  contemporânea  ‘​ toda  a 
história  da  arte  e  o  princípio  nomológico  de  sua  formatação,  abrindo,  deste   modo,  o  arquivo 
da  arte  para  novas  possibilidades  de  percepção  e  para  uma  nova  forma  visual  de 
conhecimento.  A  partir  desta  tendência  contemporânea  as  artes  apropriam­se,  cada  vez mais,  
da  figura  do  arquivo,  mas,  sob  o  crivo  da  tendência  crítica  do  romantismo  fragmentária  e 
disruptiva,  para  abalar  fronteiras  e  reverter  dicotomias  e  poderes  para  recolecionar  as  ruínas 
de  forma  crítica  em  um  trabalho  incessante  de  recomposição  do  mundo  que  sofre 
decomposições constantemente como um acúmulo de catástrofes1.  
   
  A  hipótese  que  se  sustenta  é  a  de  que  o  artista  contemporâneo  cada  vez  mais  se 
assemelha  à  figura  do  colecionador,  uma  vez  que,  o  ato  de  colecionar,  renova  o  mundo  via 
uma  pequena intervenção nos objetos: a descontextualização do seu ​
valor de  uso.   O artista, a 
exemplo  de  Arthur  Bispo  do  Rosário,  se  comporta  tal  como  um  colecionador  de  imagens,o 

1
 Neste sentido o campo da cultura é visto pelos artistas e pensadores anarquivadores (Aby Warburg, 
Walter Benjamin, Bispo do Rosário, Rosângela Rennó, etc.) como uma “tragédia perpétua”. E em seus 
processos criativos a técnica da montagem ocupa um papel central. 

que  faz  de  Bispo  um  forte  emblema  do  que  é  o  contemporâneo  na  arte  .  Autor  de  várias 
montagens e constelações. o mundo se renova sob a sua poética do colecionismo.  
 
Aqui  temos  um  homem  —  ele  tem de recolher na capital o lixo do 
dia  que  passou.  Tudo  o  que  a  cidade  grande  jogou  fora,  tudo  o 
que  ela   perdeu,  tudo   o  que  desprezou,  tudo   o  que  destruiu,  é 
reunido  e  registrado  por  ele.  Compila  os  anais  da  devassidão,  o 
cafarnaum  da  escória;  separa  as  coisas,   faz  uma  seleção 
inteligente;  procede  como  um  avarento  com  seu  tesouro  e  se 
detém  no  entulho  que,  entre  as  maxilas  da  deusa  indústria,  vai  
adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis. 
 
O  emblemático  ato  do  colecionador  é,  nessa  visão,  destrutivo  e  alegórico.   Sua   ​
arqueologia 
sensível  é  decorrente  do  processo  de  “anarquivação”  do  mundo  e  da  ruptura  com  a 
nomos  ​
lei­princípio,  o  ​ do  arquivo  da  razão.  Deste  modo,  a  póetica  de  Bispo  do  Rosário 
deslouca  ​
os  objetos  do  uso  comum  e  de  seus  regimes  valorativos  e  os  recria  na  arte, 
espectralidade​
contribuindo para a expressão de uma ​  própria desses objetos. 
 
3.2. Mal de de arquivo. Espectralidade e repetição na produção da diferença. 
 
O  pensador  franco­argelino  Jacques  Derrida propõe, sob a perspectiva do pensamento 
da  desconstrução,  o  descentramento  do  conceito  clássico  de  arquivo  para  uma  noção  de 
impressão  freudiana”  ​
arquivo  aberta  e  disseminada,  a  partir  de  sua  “​ quando  interpreta  o 
conceito  de  ​
pulsão  de  morte  como  ​
mal  de  arquivo.    Além  de  evidenciar  a  importância  da 
psicanálise  na  sua  economia  teórica, Derrida, ao questionar o conceito tradicional de arquivo, 
direciona­se  ao  que  é  fundamental  no  campo da história: os seus ​
documentos acertados como 
positividades que atestam o que de fato ocorreu na experiência histórica. 
A  noção  tradicional  de  arquivo  sugere  que  tais  ​
documentos  ou  registros  de  memória 
possam  ser  concebidos  como  verdades  factuais  de  uma  dada  cultura.  Os  arquivos  seriam  os 
monumentos​
seus ​ . No seu trabalho, Derrida apresenta como falácia esta concepção tradicional 
de  arquivo  tomado  enquanto  uma  materialidade  fixa  e  sem  dinâmica,  que  tem  como 
perspectiva  temporal  em  seus  registros  apenas  o  passado.  Passado  este  salvaguardado  da 
contaminação dos traços do presentee do tempo de um “ainda­não”, o porvir. 
Para  o  filósofo  o  engano  está  em  conceber  o  registro  material­temporal  sem  no  que 
entre­tempos.  ​
nele  há  de  lacunar,  de  rasura,  repleto  de  ​ Derrida  reinscreve  no  conceito  de 


esquecimento  ​
arquivo  os  processos  desestabilizadores  dos  efeitos  do  ​ que  atua  como 
desmemória​
,  portanto,  como  um  mal   que  é  imanente  à  própria  lógica  constituinte  da  
arquivo­nomia.  A  ação  deste  ‘esquecimento  ativo’  contamina  o  arquivo  com  a  virtualidade, 
com  as  várias  possibilidades  virtuais  impressas  no  seu  processo  de  abertura,  na  sua 
anarquivação​
. Portanto, este seria essencialmente  lacunar e sintomático. 
Derrida  não  compreende  a  dimensão  arquivística  apenas  como  depósito   inerte,  mas 
sendo  latente  e  dinâmico  em  seus  conteúdos.  Ao  explorar  o  sentido  etimológico  da  palavra 
arkhé​
,  evidencia  com  base  no  discurso  freudiano  sobre  o  inconsciente  o  processo  de 
marca   ​
arquivamento  enquanto  ​ e  ​
impressão.  Daí  porque  o  ensaio  de  Derrida  é subtitutado de 
impressão  freudiana”​
‘​ ,  pois  o  arquivo  como  marca  do  inconsciente  em  Freud  deixa  como 
herança  uma  impressão  a  quem  se  direciona  a  ele.  Na  enunciação  do mal de arquivo, o autor 
não  só  irá  criticar   o   conceito  de  arquivo,  mas  a  própria  noção  de  conceito  enquanto  tal, 
presença​
devedora de uma metafísica da ​ . 
arkhé​
Arquivo,  como  derivação  de  ​ ,  denomina  a  origem, o princípio e a lei das coisas. 
Portanto  arkhé  é  o  princípio  regente  do  logos  e  do  nomos  do  pensamento.  As  impressões  de 
um  arquivo  pressupõem  a  preservação  da  lei­princípio  que  reúne  vários  signos  sobre  um 
mesmo  suporte  articulando­os  numa  unidade,  pois  “num  arquivo  não  deve haver dissociação 
absoluta,  heterogeneidade  ou  segredo  que  viesse  a  separar.  Compartimentar  de  modo 
absoluto”2 .  Numa  palavra,   o   conceito  de  arquivo  organiza,  armazena  dados  e  elementos  de 
modo  logocêntrico  pelo  comando  da  lei­princípio,  da  arkhé.  O  mal  que,  no  movimento  da 
diferença,   lhe  possibilita  a  repetição  na  inscrição  do  esquecimento,  reimprime  lacunas  e 
descontinuidades  na  sua  estrutura  disparando  uma  ‘revolução  arquiviolítica’  decorrente  da 
pulsão de morte​
virtualidade que lhe é acionada pela positivação da sua ​ , o esquecimento. 
Se  não  há  arquivo  sem  o  princípio  do  arconte,  não  há  para  Derrida  arquivo  sem  mal 
de arquivo. De acordo com Joel Birman: 
 
Este,  com  efeito,  não  apenas apagaria  o arquivo constituído na sua 
positividade  patente,  mas  seria,  ainda  e  fundamentalmente,  a 
condição  de  possibilidade  para  que  o  processo   de  arquivamento 
pudesse  continuar  posteriormente  e  ser  então  reiterado ao infinito. 
Seria  a  dimensão  constituinte   do  arquivo que  assim  se  destacaria  
pelo  enunciado  do  mal  de  arquivo.  Portanto,  a  constituição  do 
arquivo  implicaria  necessariamente  o  apagamento  e  o 

2
Mal de arquivo. Uma impressão freudiana, ​
 DERRIDA, Jacques. ​ p.14. 

esquecimento  de  seus  traços,  condição  necessária para sua  própria 
renovação.3 
 
 
  Neste  movimento  de  desconstrução  o  arquivo  não  é  apenas  o  registro  ontológico  e 
nomológico  da  história;  acometido  por  este  mal,  por  uma  pulsão  de  morte  que  apaga 
constantemente   seus traços, seu impulso também é anárquico, anarcôntico.  A pulsão de morte 
enquanto  mal  que  lhe  retira  a  fixidez  é  anarquívica  e  destruidora.  O  arquivo  é  economia  de 
gestão  da  memória,  mas  também  é  o  campo  de  uma  esquecimento  ativo.   Eis  a  força 
differánce  ​
arquiviolítica  da  ​ que  transforma  o  que  é  patente  e  ordenado  em  latente  e  virtual, 
sob  a  forma  do  lapso  e  do  sintoma.  Assim,  a  questão  inerente  ao  arquivo  não  é  apenas  a  de 
um  registro  do  passado  arcaico,  mas  é  também  a  interpretação  espectral  e  virtual  de  um 
porvir,  uma  vez  que  “é  da  estrutura  do  porvir  o  não  poder  se  colocar  senão  acolhendo  a 
repetição  tanto  no  respeito  a  fidelidade  ­  ao  outro  de si mesmo ­ como na  re­posição violenta 
do  um.’’4  Esse  contramovimento  arquiviolítico  é  identificável  nas  produções  de 
determinados  artistas   contemporâneos  como  Bispo  do  Rosário,  Hal Foster, Rosângela Rennó 
e  ​
Christian  Boltanski.  As  artes,  a  partir  da  segunda  metade  do  século  XX  adotam  cada  vez 
mais  a  figura  do  arquivo  de   acordo  com  esta tendência anárquica exposta por Derrida. A arte 
contemporânea  como  campod  e  produção  da  diferença  quer  apropriar­se  do  conceito  de 
arquivo  para  recolecionar  suas  ruínas  e  reordená­las  de  forma  crítica para produzir um efeito 
de renovação destas em seu ato criativo. 

3
Arquivo e mal de arquivo. Uma leitura de Derrida sobre Freud. ​
 BIRMAN, Joel. ​  ​
p. 110​in: Natureza 
Humana 10(1): 105­128, jan.­jun. 2008. 
4
 DERRIDA, Jacques. ​Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. ​ p. 101­102.  

 
 

5
 

5
 ​
BOLTANSKI. Monument to the Lycée Chases. 

6
 

6
 Rosângela Rennó. Projeto Arquivo Universal.1994. 

 
 
 
 
 
3.3. O Contemporâneo e o Alegórico. Gestos intempestivos na história das imagens. 
 
A  relação  entre  pensamento  e  imagem  constitui  um  tema  fundamental  com  o  qual  a 
filosofia  depara­se  desde  seu  início.  Na filosofia contemporânea,  a partir de Nietzsche, temos 
uma  revalorização  da  dimensão  imagética  do  pensamento,  com  sua  racionalidade  específica, 
como  oposição  ao  esvaziamento  matemático­formal  do  discurso  filosófico  moderno.  Tal 
dimensão  imagética   do   pensamento  encontramos  notoriamente  no  esforço  intelectual  do 
filósofo  Walter  Benjamin,   onde  a  reabilitação  da  imagem  não  se  configura  como  mero 
retorno  ao  mito  ou  ilustração  secundária  de  idéias,  mas  como  superação  e  “antídoto”  à  crise 
do pensamento e da experiência no contexto das sociedades técnico­industriais.  
Em  seu  ímpeto  de  construir  categorias  histórico­produtivas  para  uma  historiografia 
crítica  da  modernidade,  Benjamin  recorre  à  noção  de   imagem  (​
Bild),  que  em  sua  exposição 
teórica  apresenta­se,  a  saber,  em  dois  momentos:  a  noção  de  ​ Traumbild​
imagem  onírica  (​ ), 


que  indica  o  estado  da  experiência  social  moderna,  e  ​
imagem  dialética  (​
Dialektisches  Bild), 
caracterizada  por  ser  o  estado  de  suspensão  do  estado  onírico  da   imagem  ao  potencializá­la 
criticamente  no  movimento  dialético  da  crítica  estética  e  filosófica.  A  recontextualização  do 
diferimento  ​
universos  das  imagens  em  um  movimento  de  ​ do seu fluxo habitual, é constituída 
alegoria,  ​
a  partir  do  recurso  à  noção  de  ​ entendida  pelo  autor  ​
como  método  disruptivo   de 
reordenamento  da  imagem  por  uma  nova  perspectiva  materialista​
.  A  compreensão  e  o 
domínio  destas  categorias  na  relação  entre  as  dimensões  estéticas  e  políticas  e  a  experiência 
sensível  que  delas  se  origina,  às   quais  a  determinação  da  consciência  temporal  e  história  se 
alicerça,  se  configura  como  o  centro  da  teoria  crítica  da  arte  tematizada  pelo  filósofo 
berlinense acerca do ​
contemporâneo.  
É  do  ponto  de  vista  da  ​
cesura  e  ​
interrupção  do  fluxo  temporal  linear  das  imagens, 
neste  processo  de  apreensão  do  sentido  da  obra  de  arte  e  do  conhecimento,  que  uma 
formulação  sobre   o   conceito  de  imagem  é  estruturado  em  Walter  Benjamin.  Podemos 
encontrar  ao   longo  de  sua  obra  vários  elementos  que  apontam para  esta nova  configuração 
Passagens  ​
crítica  do  universo  das  imagens.  Na  obra  das  ​ e  na  ​
Origem  do  drama  barroco 
alemão​
,  a  noção  de   ​
cesura  é  apresentada  como  uma  proposta  metodológica  para  uma 
dialética  histórico­cultural  na  qual  Benjamin  se  vê  capaz  de ​
decifrar os fenômenos aparentes 
em  que  as  imagens  do  ​
continuum  da  história  no  momento  de  sua  ​
ruptura  (​
zerspringen) 
,  ​
temporal​ se  tornam   efetivamente  dialéticas,  historicamente  autênticas,  não  ligadas  ao  mito, 
não  arcaicas.  Essa  nova  qualidade  das  imagens  implica  uma  ação  destrutiva  do  tempo  tal 
como  Giorgio  Agamben  apresenta  como  sendo  a  tarefa  do  contemporâneo  e  que  Walter 
Benjamin  nomeia  como  um  tempo  no  “agora  de  sua  recognoscibilidade”,  um  tempo 
jetszeit​
“saturado de agoras” (​ ).  
O  contemporâneo,  nesta  perspectiva,  é  aquele  que  mantém  uma  relação  anacrônica 
com  seu  tempo,  que  está  deslocado  e,  por  tal  razão,  está apto a desdobrar  no  tempo presente 
outros  sentidos.  Neste  movimento,  a  imagem  traz  a  marca  do  pensamento  crítico  de  tais 
autores.  Marca  esta,  que  é  uma  forte  característica  da  estética  barroca  por  seu  método  de 
fragmentação​
 da realidade.  
A  imagem  que   surge  no   campo  visual  da  intuição  alegórica  é  o  
fragmento,  a  ruína.  Sua  beleza  simbólica  se  evapora,  quando  o 
clarão  do  saber  divino  o ilumina.  O  falso  brilho  da  totalidade  se 
extingue.  O  eidos  se  apaga,  o  símile  se   instala,  o  cosmos  que  o 
habita  se  esgota.  Nos  rebus áridos,  que  restam,  jaz  uma intuição, 
acessível  a  quem  rumina  […]  As  alegorias  são   no  reino  do 

10 
pensamento  o  que  as  ruínas  são  no  reino  das  coisas. Daí o  culto 
barroco  das  ruínas.  O  que  jaz  em  ruínas,  o  fragmento 
significativo,  o  estilhaço;  essa  é  a  matéria  mais nobre da criação 
barroca […] A visão completa do novo era a ruína.7 
 
Neste  ponto,  é  necessário  fazer  uma  breve  aproximação  de  Walter  Benjamin  com  os 
Doutrina  das  Cores​
escritos  de  Goethe,  em  especial  a  ​ , onde os resultados desta aproximação 
filosófica  encontram­se  na  obra  ''Ensaios  reunidos:  escritos sobre Goethe'’, que por razões de 
direcionamento   teórico  não  serão  explicitas  a  fundo  no  decorrer  deste  texto.  Numa  palavra, 
Walter  Benjamin  retira  das  reflexões  estéticas  deste   romântico  alemão  variadas  noções  que 
contribuem  para  a   sua  filosofia  da  ​ Schein​
Aparência  (​ )  e  da  História.  Apesar  de,  à  primeira 
vista,  ser  uma  relação  bastante  heterodoxa,  ela  está  em  um  dos  pontos   centrais  do 
empreendimento   filosófico  deste  pensador.  Sabe­se  que  a  parte  mais  “filosófica”da  obra  de 
Naturphilosophie​
Goethe  pertence  ao  gênero  da  ​ ,  uma  característica  própria  do  romantismo 
alemão.  A  investigação  benjaminiana  se  concentra  na   apresentação  do  estudo  específico  do 
Proto­fenômeno  ​
conceito  de  ​ Urphänomen​
(​ )  ou  ​
fenômeno  originário  de  Goethe, onde o autor 
prioriza  uma  Filosofia  da  Natureza  que  rejeita  as  formas  do  cientificismo,  baseada  na 
manifestação  natural  do  fenômeno  cromático  (das  cores)   e  na  percepção  humana;  além  de 
expressar  este  conceito  de  ​
Urphänomen  do  ponto  de  vista  histórico  no  seu  assim  chamado 
Origem​
conceito  de  ​ proto­fenômeno  ​
.  É  a  partir  deste  ponto  de  transposição  da  noção  de   ​ do 
âmbito  da  natureza  para  o  plano  imanente  e  materialista  da  história  que  Walter  Benjamin 
estrutura todo o prefácio da sua obra ​
Origem do drama Barroco Alemão.  
De  fato,  esta  parte  do  exercício  filosófico  de  W.  Benjamin possui uma amplitude que 
nos  é  possível  desenvolver  aqui  apenas  modestamente,  mas  a  relação  entre  este  pensador  do 
século  XX  e  o  poeta  alemão  é  bem mais do que uma livre associação de idéias. A questão do 
conceito  de  Origem  está  amplamente  desenvolvida na obra de Benjamin  em seu livro sobre o 
Passagens.  ​
barroco  e  em   seu  ​ Por  fim,  uma das razões da aproximação de Benjamin a Goethe 
é  que  em  seu  empreendimento  filosófico  está presente uma crítica do mito. A  crítica do mito, 
não  baseada  na  oposição  ​
mito  e  conceito,  mas  entre  ​
mito  e  história    é  o  que  se  evidencia 
como  problema  central  no  qual  o  estudo  do  conceito  goetheano  de  fenômeno  originário 
permitirá a construção de uma crítica imanente do conhecimento histórico e das imagens. 
No   contexto  da  doutrina  das  idéias  de  Benjamin,  o  conceito  de 
origem  caracteriza  aquele  instante  no   tempo,  no  qual  a  idéia 

7
 BENJAMIN, Walter. ​ ​. 352, 354. Trad. Sérgio Paulo Rounaet. Ed. 
Origem do drama barroco alemão. p
Brasiliense. São Paulo, 1984. 
11 
encontra  os  fenômenos.  A questão  nesse  caso  refere­se a como as 
idéias  teriam  sua  origem  na  história  ,  sendo  ao  mesmo  tempo 
atemporais  e  eternas?  Para  se   compreender  esta  complexa 
relação,  deve­se,  em  primeiro  lugar, definir origem e história fora 
de   um  contexto  de   relações  lógico­causais.  Ou  seja,  devemos 
diferenciar  origem  (Ursprung)  da  gênese  ou do  puro  começo  em 
que  algo  foi  criado  (Entstehung),  além  disso  é  preciso 
compreender  a  história  não  como  um desenvolvimento  linear  ou  
como progresso 8 
A  origem  do  drama  barroco  alemão​
Em  ​ ,  o  filósofo  desenvolve   o   seu  conceito  de 
origem  ​Ursprung​
(​ ),  em  diferença  com  o  de  ​
gênese,  precisamente  com  base  no  conceito  de 
Urphänomen  ​
de  Goethe​
.  De  fato,  a partir da apropriação deste  conceito goetheano, Benjamin 
insiste  centralmente   na  possibilidade  de  inscrever  a  verdade   na  ​
descontinuidade  da 
aparência​
.9  A  apropriação  do  conceito  de  fenômeno  originário  tem,  portanto,  um  longo  
alcance  crítico,  pois  permite  ao  autor assumir uma concepção de crítica imanente, isto é, com 
base  nos  próprios  fenômenos  aparentes.  Distanciando­se  da  posição  falaciosa   da  oposição 
metafísica entre essência e ‘fenômenos falsos’10 .  
Numa  visão  crítica  em  torno  da  arte,  o  método  alegórico  difere  de  uma  abordagem 
organicista  da  obra  facultada  pelo  símbolo,  que  delimita  uma  relação  harmônica  do  signo  e 
significado.  É  próprio  da  forma  alegórica  o  processo  de  montagem,  de  fragmentação  e 

8
 ​
Machado, Francisco De Ambrosis Pinheiro. Imanência e História: a crítica do conhecimento em Walter 
Benjamin. Ed. UFMG, Pg. 86.  
9
 ​[...]  os  fenômenos  não  entram  integralmente  no  reino  das  idéias  em   sua  existência  bruta,  empírica,  e 
parcialmente  ilusória,  mas apenas  em  seus  elementos,  que se  salvam.  Eles  são depurados  de  sua falsa unidade, 
para  que  possam  participar,   divididos,   da  unidade  autêntica  da  verdade.  Nessa  divisão,  os  fenômenos  se  
subordinam  aos  conceitos.  São  eles  que  dissolvem  as  coisas  em  seus  elementos  constituitivos.  As  distinções  
conceituais  só  podem  escapar  à  suspeita de serem uma sofística destrutiva se visarem à salvação dos fenômenos 
nas  idéias:  salvar  os  fenômenos de  Platão.  Graças  a  seu papel  mediador,  os conceitos permitem aos fenômenos 
participarem  do  Ser  das  idéias.  Esse  mesmo   papel  mediador  torna­os  aptos   para  outra  tarefa  da  filosofia,  
igualmente  primordial:  a  apresentação  das idéias.  A redenção  dos  fenômenos  por  meio  das  idéias  se  efetua  ao 
mesmo  tempo que a apresentação das  idéias por meio da empiria. Pois elas não se presentam em si mesmas, mas 
unicamente  através  de  um  ordenamento  de  elementos  materiais  no  conceito,  de  uma  configuração  desses 
elementos.” Benjamin, Walter. ​ Origem do drama barroco alemão. ​  pg. 55­56 
10
  Numa   palavra,  a  filosofia  da  imagem  de   Walter  Benjamin  é   o  acontecimento  da  ​ cesura    a  respeito  dos 
binarismos  metafísicos  belo/verdade,  forma/conteúdo,  linguagem/imagem,  sensível/inteligível,  tempo/história. 
A  partir  da  relação   dialética  entre  verdade  e  beleza,  Benjamin   desenvolve   em  sua   crítica  o   conceito  de 
sem­expressão​ ,  elemento que  representa a  superação da perspectiva do símbolo na visão alegórica da  arte, e que 
desfaz  a  falsa  totalidade  da  aparência  para  revelar  um  fragmento  verdadeiro  do  mundo,  pela  obra   de  arte, 
conectando a arte,  enquanto  aparência,  ao campo da verdade revelando­a como  lei essencial para o  pensamento​ . 
Para uma melhor  compreenssão  do  interesse  de  Benjamin  por  Goethe,  ver  o  artigo  de  Maria  Filomena  Molder  
intitulado  “  Método  é  desvio  ­  uma  experiência  de  limiar”,  ​
contido  no  livro ​
Limiares  e  Passagens  em  Walter 
Benjamin.​  Ed. UFMG. 2010. 
 
12 
reordenação  das  ideias  que  forma  uma  constelação  que  rompe  com  contextos  específicos  de 
significação.11 

12
 
O  caráter  de  mobilidade  e  de  intempestividade  próprios  da  alegoria  benjaminiana 
certamente  é  base  para  o  conceito  de  contemporâneo  do  filósofo  italiano Giorgio Agamben, 
pois  o  contemporâneo  seria,   segundo  este  autor,  aquele  (a  figura  do  crítico  alegorista  de 
Benjamin)  que  não  está  em  posição  de  coincidir  com  o  seu  tempo  operando  um  contraste 
inatual.  
Pertence  verdadeiramente  ao  seu  tempo,  é   verdadeiramente 
contemporâneo,  aquele  que  não  coincide  perfeitamente  com este, 
nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, 
inatual;  mas  exatamente  por  isso,  exatamente  atrvés  desse 
deslocamento  e  desse  anacronismo,  ele   é  capaz,  mais  do  que os 
outros, de perceber e apreender seu tempo.13 
 
O  contemporâneo  é  aquele  capaz  de  instaurar   um  anacronismo  e,  por  isto,  está  em 
condição  de  descontextualizar  imagens  de  espaços  e  tempos  heterogêneos  para  atribuir  nelas 
novos  sentidos.  Seria  aquele  capaz  de  ler  o  tempo  presente  como  os  olhos  inatuais  de  um 

11
Atlas  mnemosyne  ​
  O ​ de  Aby Warburg  é  uma outra forma exemplar deste caráter metodológico da alegoria em 
relação  às   expressões  artísticas  da  cultura.   Nas  lâminas  do  atlas   de  Warburg  um   conjunto  de  imagens  estão  
dispostas  de  acordo  com  o  princípio  intempestivo  e  fragmentário  da  montagem,  sobrepondo  num  plano  um 
conjunto  de  tempos  heterogêneos  contido  nas  imagens.   No  exercício  da  montagem,  Waburg  desmantela  a 
dinamogramas ​
história  e  o  tempo  a  fim  de constituir  ​ do  movimento de sobrevivência das  imagens na  cultura, o  
que  está  sintetizado  no  seu  conceito  de   ​ Pathosformel.    Nossa  investigação  de  pesquisa  procurar  pensar  os 
caminhos  teóricos  de  Warburg  e  Benjamin  para  estabelecer  uma  imagem  crítica  da  arte  como  prática 
arqueológica na cultura visual contemporânea.  
12
 Painel de lâminas com fotomontagens do Atlas warburgiano. 
13
 AGAMBEN, Giorgio. ​ O que é o contemporâneo, ​ p.58­59. Trad. Vinicius Honesko. Chapecó, SC. Ed. 
Argos, 2009. 
13 
alegorista.  Na  relação  anacrônica  com  sua  época,  o  contemporâneo­alegorista  é  capaz  de 
apreender  criticamente  o  seu  próprio  tempo  ao  revitalizar  o  objeto  ou  fato  dado  como 
ocorrido,  o  resto  mortificado  da  história,  a  ruína.  No  processo  de  atualização  do  passado  ao 
que  é  cativo  no  presente,  a alegoria tenta suspender as coisas da transitoriedade em virtude da 
perda  de  seu  sentido original. Em contraste à perspectiva organicista do símbolo, que se dá de 
modo  eterno  e  definitivo,  a  visão  de  transitoriedade  das  coisas, como cerne da  concepção de 
alegórico,  imerge  na  duração  e  se  estende  suspendendo  o  curso  linear  dos  acontecimentos 
abrindo  as  estruturas  da   história.   Afirmar  a  condição  do contemporâneo  como intempestivo é 
dizer  que  a  alegoria  jamais  se  encontra  em  repouso. Por se desenvolver em  ​
índices temporais 
heterogêneos,  a   alegoria  se  desloca  desencadeando  todo  um  movimento  de  contraste  ao 
símbolo,  estático  e  idêntico  a  si  mesmo.  O  contemporâneo  fratura o tempo de maneira  que se 
possa  ler  de  modo  original  a  história.  “O  objeto  de uma história ponderada da arte é remontar 
à  sua  origem,  acompanhar  seus  progressos  e  variações  até  sua  perfeição,  e  marcar  sua 
decadência e queda até sua extinção”.14 
Nisto  consiste  o  ciclo  das  alegorias:  recusa  de  uma  essencialização  prematura  das 
imagens,  e  desvio  da  significação  em  direção  ao  indeterminado,  ao  aberto.  Assim,  deriva 
temporal  do  contemporâneo  na  arte  não  desvela  uma  essência   por  trás  da  imagem,  mas 
imagem­fragmento​
apresenta  essa  essência  na  própria  aparência  descontínua  da  ​ .  Walter 
Benjamin elucida a diferença entre símbolo e alegoria da seguinte forma: 
 
Ao  passo  que  no  símbolo,  com  a  transfiguração  do  declínio,  o 
rosto  metamorfoseado  da  natureza  se  revela fugazmente  à  luz  da 
salvação.  a  alegoria   mostra  ao  observador a  facies  hippocratica 
da  história  como proto­paisagem petrificicada.  A história em tudo 
que  nela  é  prematuro,  sofrido  e  malogrado  se  exprime  desde  o 
início  num  rosto  ­  não,  numa  caveira.  E  porque  não  existe,  nela, 
nenhuma  liberdade  simbólica  de  expressão,  nenhuma  harmonia 
clássica  da  forma,  em  suma,  nada  de humano, a caveira exprime, 
não  somente  a  natureza  da  humanidade  em  geral,  no  ponto  mais 
extremo  de   sua  decomposição, sob  a  forma de  um  enigma.  Nisso 
reside  o  cerne  da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, 
da  história  como  história  mundial  do  sofrimento,   significativa 
apenas nos episódios de declínio.15 
 
.  

14
 WARBURG ​ apud ​
DIDI­HUBERMAN. ​ A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos 
fantasmas sengundo Aby Warburg. p. ​18. Rio de Janero: Contraponto, 2013. 
15
Origem do drama barroco alemão​
 BENJAMIN, Walter. ​ , p 343. 
14 
16
 
  A  dissimetria  que  a  atmosfera  do  contemporâneo  causa  na  temporalidade  histórica, 
desconstrói  todos  os  modelos  epistêmicos  tradicionais  da  história  da  arte.  Trata­se  de  um 
modelo  temporal,  ​
“​ no  qual  o  devir  das  formas  devia  ser  analisado  como  um  conjunto  de 
processos  tensivos  ­  tensionados,  por  exemplo, entre vontade de identificação e imposição de 
alteração,  purificação  e  hibridação,  normal  e  patológico,  ordem  e  caos,  traços  de evidência e 
traços  de  irreflexão.”17  Assumir  a  tarefa  de  ser  contemporâneo  é  saber  fixar  o  olhar  sobre  as 
sombras  de  seu  tempo,  sobre  o  seus  ​
fantasmas  para  que  neste  entre­tempo  lacunar,  nesta 
alegoria  dialética  ​
fissura  que  a  ​ diferença  ​
produz,  possa  surgir  a  ​ enquanto  uma  potência  do 
porvir​
.  Ao  passo  que  o  artista  clássico,  o  artista  do  símbolo,  se  depara  com  o  material  ainda 
como  portador  de  significado,  o artista do contemporâneo enfrenta o material  como um signo 
repleto de lugares vazios, sendo o seu gesto o que imprimirá significado à coisa.  
  montada  ​
A  obra  alegórica  já  não  é  produzida  como  um  todo  orgânico,  mas  ​ sobre 
fragmentos,  deste  modo,  seu  caráter  de  montagem  com  base  na  fragmentação  se  revelará, 
para  a  teoria  da  arte,  como  o  gesto  originário  do  procedimento   alegórico.  Delineado  isto,  o 

16
 Montagem alegórica de objetos feita por Bispo do Rosário. 
 DIDI­HUBERMAN, George. ​
17
A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas 
segundo Aby Warburg. ​  25​
p.​ . Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. 
15 
ato  criativo  do  artista  não  concebe  mais  a obra como a totalidade orgânica do símbolo, como 
união  indivisível  de  signo  e  sgnificado,  mas  com  a  forte  presença  de  características  do 
desviante  ​
método  ​ da   alegoria,  que  é  intempestiva  e  anacrônica. O procedimento alegórico de 
anarquivação ​
apropriação   e  montagem  de  fragmentos  em  cena  atesta   a ​ do ​
documento­objeto 
num  movimento  que  oscila,  entre  a  ordem  e  a  desordem  na  reorganização  de  tempos 
anacrônicos  e   não­homogêneos,  para  citar  a  história  de  modo  inédito  no  ato  de  criação.  É 
neste  ponto  que  “​
descobre­se,  então  o  sentido  em  que  os  artistas  contemporâneos  são 
“sábios”  ou  precurssores  de  um  gênero  especial:  recolhem  pedaços  dispersos  do  mundo 
como  o  faria  uma  criança  ou  um  trapeiro  ­  Walter  Benjamin  compararia  estas  duas  figuras 
com  o  autêntico  sábio  materialista.  Fazem  com   que  se  encontrem  coisas  fora  das 
classificações habituais, retiram dessas afinidades um gênero de conhecimento novo, que nos 
abre  os  olhos  sobre  os  aspectos  inadvertidos  do  mundo,  sobre  o  inconsciente  mesmo  de 
nossa visão​
.”18 
 
4. Objetivos. 
 
Apresentar  a  dinâmica  do  arquivo  na  arte  contemporânea  enquanto  uma  forma 
plástico­epistemológica  que  é  comparável  à  constituição  da  alegoria  numa  possível  “poética 
dos  fragmentos”  que  possibilita  pela  arte  uma  visão  crítica  da  experiência  histórica  ao  dar 
legibilidade  ao  que  nela  tem  de  malogrado  e  esquecido.  Dinâmica  que  o  autor  apresentará  a 
partir  de  uma  análise  pormenorizada  de  trabalhos  e  movimentos  artísticos  do  período 
pós­guerra  do  século  XX  tais  como  Christian  Boltanski,  Rosêngela Rennó e Arthur Bispo do 
Rosário.  A pesquisa traz referenciais teóricos do campo da filosofia e da teoria da arte a partir 
das obras de Jacques Derrida, Walter Benjamin, Aby Warburg e George Didi­huberman.   
5. Metodologia. 
A  fase  inicial  da  pesquisa   consistirá  na  leitura  dos  referenciais  teóricos  e 
posteriormente  na  apreensão  crítica  da  poética  dos  artistas  citados.  A  construção 
argumentativa   da  dissertação  se  desdobrará  na  forma   de  uma  desenvolvimento  dialético  que 
justifica  sua  hipótese  central  de  identificação  e  nomeação  do  trabalho  de  remontagem  da 

18
Atlas. como levar o mundo nas costas. ​
 Ibdem. ​ Tradução disponível no sítio eletrônico: 
www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/atlas.html​
. Acesso em 02/07/2015. 
16 
experiência  histórica  por  parte  de  expressões  artísticas  que   procuram  em  suas  poéticas 
positivar o “mal­estar na cultura visual contemporânea”. 
REFERÊNCIAS: 
AGAMBEN,  Giorgio.  ​
O  que  é  o  contemporâneo  e  outros  ensaios.    Trad.  Vinicius  Honesko. 
Chapecó, SC. Ed. Argos, 2009. 

BENJAMIN,  Walter.  O  Conceito  de  Crítica  de  Arte  no  Romantismo  Alemão,  ​ M.  
Seligmann­silva (tradu., pref. e notas). São Paulo: Iluminuras/EDUSP, 1983. 
_________________.  ​ Origem  do  drama  barroco  alemão​ ,  Sérgio  Paulo Rouanet (trad., pref.) 
São Paulo: Brasiliense, 1984. 
_________________.  ​ Obras  escolhidas,  v.  ​ Magia  e  técnica,  arte  e  política,  ​
I,  ​ Sérgio  Paulo 
Rouanet (trad., pref.) São Paulo: Brasiliense, 1985 
________________.    Obras  escolhidas,  v  ​ Rua  de  mão  única​
II,  i  ​ ,  R.R  Torres  F  e  J.C.M 
Barbosa (trad.), São Paulo: Brasiliense, 1987 
_______________.  ​ Obras  escolhidas,  v  III​ ,  ​
Charles  Baudelaire,  um  lírico  no  auge  do 
capitalismo, ​J.C.M 
_______________.   Diário  de  Moscou,  ​ H.  Herbol  (trad.).  São  Paulo:  Companhia das Letras, 
1989. 
_______________.  Passagens.  ​ Willie  Bolle,  Olgária  Chain  Féres  Matos  (org.)  Irene  Aron, 
Cleonice  Paes  Barreto  Mourão.  (trad.)  Belo  Horizonte:  Edtora  UFMG,  São  Paulo:  IMprensa 
Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 
BIRMAN,  J.  Arquivo  e  mal  de  arquivo:  uma  leitura  de  Derrida  sobre  Freud.  Natureza 
Humana, v. 10, n. 1, p. 105­128, jan./jun. 2008 
BÜRGER, Peter. 1993. ​ Teoria da Vanguarda​ . Lisboa: Vega. 
DANTO,  Arthur  C.  2006.  ​ Após  o  Fim  da  Arte:  A  Arte  Contemporânea  e  os  Limites  da 
História​. São Paulo: Odysseus Editora. 
DERRIDA,  Jacques.  O  mal  de   arquivo:  uma  impressão  freudiana.  Rio  de  Janeiro:  Relume 
Dumará, 2001. 130 p. 
DIDI­HUBERMAN,  George.  ​ Atlas.  Como levar o mundo nas  costas.  ​ Tradução disponível no 
sítio eletrônico: ​
www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/atlas.html​

ENWEZOR,  O.  Archive  fever:  uses  of  the  document  in  contemporary  art.  New   York: 
International Center of Photography; GoĴ ingen: Steidl Publishers, 2008 
FOSTER, Hal. An Archival Impulse. October 110 (Fall 2004). Princeton: MIT Press, 2004. 
JIMENEZ,  Rita  de  Cássia  Garcia.  Arthur  Bispo  do  Rosário  no  panorama  da  arte 
contemporânea.  Dissertação  (Mestrado)  –  Universidade  de  São  Paulo.  Programa   de 
Pós­Graduação  Interunidades  em  Estética  e  História  da  Arte.;  orientadora  Kátia  Canton.  ­­ 
São Paulo, 2008​
.  

MURICY,  Kátia,  ​
Alegorias  da  Dialética.  imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de 
Janeiro, NAU editora. 2009. 
Rosângela Rennó​
RENNÓ, Rosângela. 1998. ​ . São Paulo: EDUSP. 
 

17 
O  arquivo  universal  e  outros  arquivos​
________________  2003a.  ​ .  São  Paulo:  Cosac  & 
Naify. 
 
 

18 

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