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construcionismo social:

discurso, prática e produção do conhecimento


Carla Guanaes-Lorenzi
Murilo S. Moscheta
Clarissa M. Corradi-Webster
Laura Vilela e Souza

Rio de Janeiro
2014

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construcionismo social:
discurso, prática e produção do conhecimento
Carla Guanaes-Lorenzi
Murilo S. Moscheta
Clarissa M. Corradi-Webster
Laura Vilela e Souza

Rio de Janeiro
2014

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Copyright © 2014 Instituto Noos

Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume no


todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico,
gravação, fotocópia, distribuição na internet ou outros), sem permissão expressa da
editora.

produção editorial: Anna Carla Ferreira
copidesque: Rodrigo Peixoto
revisão: Carolina Rodrigues
capa: Murilo Moscheta
diagramação e projeto gráfico do miolo: Estúdio 513

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Construcionismo social : discurso, prática e produção de conhecimen-


to / organizadores Carla Guanaes-Lorenzi...[et al.] . -- Rio de Janeiro :
Instituto Noos, 2014.

Outros organizadores: Murilo dos Santos Moscheta, Clarissa Men-


donça Corradi-Webster, Laura Vilela e Souza.
Bibliografia
ISBN 978-85-86132-21-6

1. Construcionismo social 2. Percepção social 3. Psicologia social 4.


Psicoterapia de grupo I. Guanaes-Lorenzi, Carla. II. Moscheta, Murilo
dos Santos. III. Corradi-Webster, Clarissa Mendonça. IV. Souza, Laura
Vilela e.

14-06060 CDD-302

Instituto Noos - Instituto de Pesquisas Sistêmicas


e Desenvolvimento de Redes Sociais
Rua Álvares Borgerth, 27 - Botafogo - 22270-080
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Tel./fax: (21) 2197-1500
www.noos.org.br
noos@noos.org.br

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Agradecimentos

Este livro é o resultado de anos de colaboração e parcerias com outros


pesquisadores, profissionais e alunos que têm acompanhado a nossa
trajetória no campo dos estudos sobre o movimento construcionista so-
cial em ciência. Seus nomes fazem parte das páginas deste livro, direta
(nos capítulos de sua autoria) ou indiretamente (em nossas referências
bibliográficas). A estas pessoas, deixamos registrada nossa imensa gra-
tidão pelo apoio na realização deste projeto.
Agradecemos especialmente aos diálogos que tivemos com os profes-
sores Sheila McNamee, John Shotter e John Willard Lannaman, da Uni-
versidade de New Hampshire (EUA), por seus textos e nossos encontros
presenciais nos últimos dez anos. Este livro compartilha um pouco de
suas ideias e convites para transformação de nossas práticas cotidianas.

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Da mesma maneira, agradecemos à professora Mary Jane Paris Spink,
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), precursora
dos estudos construcionistas sociais no Brasil a quem admiramos por
sua competente produção.
Agradecemos a alguns institutos de formação brasileiros, que têm se
preocupado com o desenvolvimento de práticas transformadoras e com-
prometidas com o empoderamento de indivíduos, famílias e comunida-
des. Neste livro, alguns capítulos se baseiam nas práticas desenvolvidas
pelos institutos Noos (Rio de Janeiro), Familiae (São Paulo e Ribeirão
­Preto), ConversAções (Ribeirão Preto) e Interfaci (São Paulo).
Agradecemos, também, a todos os estudantes que integram, com
seriedade e comprometimento, os nossos fóruns de pesquisa, debate e
formação: LAPEPG-USP (Laboratório de Pesquisa e Estudo em Práticas
Grupais); LePsis-USP (Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicopato-
logia, Drogas e Sociedade); Prosa-UFTM (Laboratório de Investigações
sobre Práticas Dialógicas e Relacionamentos Interpessoais) e Laborató-
rio em Processos Grupais e de Comunicação (UEM). Em especial, agra-
decemos aos estudantes que nos auxiliaram mais diretamente na revisão
dos aspectos formais deste livro: Pedro Pablo Sampaio Martins, Gio-
vanna Cabral Doricci, Maria Lúcia Faturetto, Carla Fernanda Barbosa
Monteiro, Fernanda Elisa Aymoré Ladaga, Mariane Capelato Mello e
Manoela Nunes Ferreira.
Muito obrigado!

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Sumário

Apresentação 11

Parte I. O discurso construcionista social 21

Capítulo 1 | A pós-modernidade e o contexto para 23


a emergência do discurso construcionista social
murilo dos santos moscheta

Capítulo 2 | Discurso construcionista social: 49


uma apresentação possível
laura vilela e souza

Capítulo 3 | Ferramentas teórico-conceituais 73


do discurso construcionista
clarissa mendonça corradi-webster

Capítulo 4 | Construcionismo social: tensões e possibilidades 89


de um movimento em permanente construção
carla guanaes-lorenzi

Capítulo 5 | Construindo conhecimento/construindo 105


investigação: coordenando mundos de pesquisa
sheila mcnamee

Capítulo 6 | Produzir conhecimento não é um ato banal: 133


um olhar (pós-)construcionista sobre ética na pesquisa
mary jane paris spink & peter k. spink

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Parte II. Construcionismo social e práticas profissionais 151
Capítulo 7 | Participação da família no tratamento em saúde 153
mental: histórias sobre diálogo e inclusão
pedro pablo sampaio martins, marcus vinicius dos santos
& carla guanaes-lorenzi

Capítulo 8 | Terapia comunitária como prática coletiva 171


de conversação: construindo possibilidades de trabalho
com sistemas amplos
marilene aparecida grandesso

Capítulo 9 | Construção de uma prática grupal 187


em uma unidade básica de saúde
laura vilela e souza, célia cristina boense oliveira, máira rodrigues
da silva, larissa cristina silveira de andrade & mirian angélica martins

Capítulo 10 | Mulheres em movimento: 217


grupos como dispositivos de ação coletiva
claudia mara pedrosa & jacqueline isaac machado brigagão

Capítulo 11 | Transformando práticas educativas, da palmada 231


ao diálogo: relato de uma experiência em duas
comunidades no Rio de Janeiro
rosana rapizo & carlos eduardo zuma

Capítulo 12 | Práticas narrativas coletivas: o efeito rizomático 249


dos documentos coletivos como contextos de transformação
marilene aparecida grandesso

Capítulo 13 | Diálogo e transformação: estratégias para 265


o trabalho com a diversidade sexual no contexto educacional
murilo dos santos moscheta, jucely cardoso dos santos,
sheila mcnamee & manoel antônio dos santos

Capítulo 14 | Construcionismo social, comunidade 289


e sexualidade: trabalhando com travestis
emerson f. rasera, flavia do bonsucesso teixeira &
rita martins godoy rocha

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Parte III. Construcionismo social e formação 303
profissional
Capítulo 15 | Formação: um processo colaborativo 305
entre formandos e formadores
helena maffei cruz, azair t. vicente & marília de freitas pereira

Capítulo 16 | Formação do mediador de conflitos numa 325


perspectiva construcionista social
marisa japur & cristina márcia caron ruffino

Capítulo 17 | Em busca de uma formação integral e ampliada: 341


construindo práticas colaborativas para o cuidado em saúde
celiane camargo-borges

Capítulo 18 | Há tanta vida lá fora: debatendo a formação 359


e as práticas em psicologia
ana mercês bahia bock

Referências bibliográficas 371


Organizadores 408
Autores 409

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Apresentação

Construirás os labirintos impermanentes


que sucessivamente habitarás.
cecília meireles

Em nossas práticas de ensino e pesquisa, é recorrente a tarefa de apre-


sentarmos aos nossos novos alunos e interlocutores o campo dos es-
tudos construcionistas sociais. Empenhamo-nos na tarefa de sermos
anfitriões no que Cecília Meireles talvez chamaria de labirinto que
escolhemos habitar. Esta apresentação inclui nossa necessidade de si-
tuar aquilo que pensamos e fazemos em uma moldura ampla, capaz de
introduzir desde as premissas de uma nova forma de inteligibilidade
em ciência até suas reverberações potenciais para criação de práticas
profissionais comprometidas com a transformação do mundo social.
Não raro, ao ocuparmos o lugar de anfitriões, somos remetidos à nossa
própria, e em certa medida perpétua, experiência de aproximação deste
labirinto.
Uma das dificuldades que encontramos em nosso contato inicial
com o construcionismo, na década de 1990, foi o acesso à bibliografia
nacional sobre o tema. Muitas das produções existentes sobre o assunto

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– em especial as destinadas à apresentação de questões epistemológicas


que distinguem o construcionismo social de outras formas de inteli-
gibilidade em ciência – encontravam-se em inglês ou espanhol, uma
vez que eram majoritariamente produzidas nos Estados Unidos, Reino
Unido e Espanha. Para além da escassez de materiais em língua portu-
guesa, a diversidade de “construcionismos” e de práticas sustentadas por
seus pressupostos nos diferentes contextos dificultaram a nossa apro-
priação da complexidade desse campo de investigação. Embora quase
vinte anos tenham se passado, esta ainda é uma questão pertinente. Se
no tempo transcorrido mudamos nossos recursos como anfitriões, e por
isso somos mais capazes de acolher os que chegam, também notamos
que as condições da habitação que nos dedicamos a apresentar foram
transformadas. Aos que chegam, apresentamos o construcionismo. Por
meio dos que chegam, “re-conhecemos” o que apresentamos.
Este livro, portanto, foi delineado para aqueles que, recém-chegados
ao campo, necessitam de um conhecimento fundamental para orien-
tar seus movimentos. Ele tem o propósito de contribuir com a difusão
do discurso do construcionismo social no contexto brasileiro e preten-
de abarcar ao menos três aspectos que consideramos centrais no vasto
campo de estudos construcionistas: discurso, prática e produção do co-
nhecimento. Para aqueles com mais tempo de casa, o livro sinaliza os
movimentos atuais nestes três aspectos e ajuda a construir um desenho
de sua configuração no Brasil, desenho que esperamos ser capaz de ins-
pirar possibilidades de desenvolvimento.
Para tanto, produzimos um livro cujo texto é introdutório, permitin-
do que estudantes, profissionais e pessoas interessadas no estudo desse
campo de conhecimento apropriem-se das principais discussões que in-
tegram o corpo dos estudos em construção social. Paralelamente, dedi-
camos grande parte deste livro à apresentação de práticas profissionais
atuais, desenvolvidas em contexto brasileiro, e que ilustram diferen-
tes modos de performar o discurso construcionista social no trabalho
com indivíduos, famílias, grupos, comunidades ou organizações. Deste

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apresentação | 13

modo, o livro pode ser um mapa para quem precisa se localizar, e/ou
um estudo topográfico para quem procura inspiração para a construção
de novas edificações.
Didaticamente, o livro foi organizado em três seções.
A primeira seção, intitulada “O discurso construcionista social”, tem
como objetivo apresentar o construcionismo social como um movi-
mento crítico em ciência; movimento multifacetado que se constitui, de
maneira polissêmica, na interface de diferentes disciplinas e reflexões
sobre a produção do conhecimento científico. Nesta seção, buscamos
apresentar o construcionismo social como uma articulação de posturas
críticas à ciência moderna, a partir da qual emergem modos alternativos
de compreensão sobre ciência, indivíduo, pesquisa e ética.
O primeiro capítulo desta seção busca entrelaçar as transformações
do discurso científico às mudanças no mundo das artes, demonstrando­
como novos padrões e valores são formados ao longo dos séculos. Da
modernidade à pós-modernidade, o autor ilustra como caminhamos
social, cultural e historicamente para o abandono das certezas, o re-
conhecimento da pluralidade e a valorização da diferença, nas artes e
nas ciências. O autor discute, especialmente, como a pós-modernidade
promove a desconfiança em relação ao poder das grandes narrativas ex-
plicativas sobre o mundo – aspecto de central importância e bastante
explorado no presente volume.
O segundo capítulo apresenta uma introdução ao construcionismo
social que possibilita aos leitores compreender seus principais pressu-
postos, sem contudo perder sua complexidade. Valendo-se de muitos
exemplos práticos de nosso cotidiano, a autora discute o papel da lin-
guagem na construção do que vivemos como realidade e a centralidade
dos processos sociais e históricos na legitimação do que entendemos
como bom, útil e verdadeiro. A autora estabelece, ainda, um diálogo
profícuo com as críticas mais comuns ao discurso construcionista so-
cial, esclarecendo as dúvidas mais frequentes no entendimento dessa
nova forma de inteligibilidade.

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O terceiro capítulo tem como objetivo apresentar o modo como o


construcionismo social compreende a linguagem, o discurso e o proces-
so de construção de sentidos sobre o mundo e sobre o si mesmo. A autora
dá especial ênfase à maneira como a linguagem comporta permanências
e irregularidades. O self é discutido neste capítulo como um discurso,
articulando estudos que sugerem uma visão relacional do ser humano
como uma alternativa ao discurso individualista e autocentrado, típico
da ciência psicológica tradicional.
O quarto capítulo propõe uma reflexão sobre algumas tensões que
atravessam o campo de estudos sobre construcionismo social na atua-
lidade, trazendo tanto desafios como possibilidades para novos desen-
volvimentos. Inicialmente, a autora discute como se deu a difusão do
construcionismo social em dois campos distintos: a psicologia social e
a clínica. Em seguida, discute algumas tensões no campo dos estudos
construcionistas, da incoerência de se propor uma única definição a
tensões epistemológicas e conceituais envolvendo questões como ma-
terialidade, corporeidade e poder. A explicitação destas tensões é um
convite a novos desenvolvimentos deste campo de estudos.
O quinto capítulo desta seção retoma as principais ideias construcio-
nistas sociais para discutir de que maneira impactam o modo como con-
duzimos nossas pesquisas. De modo mais abrangente, a autora discute
a diferença entre pesquisa (pautada na visão tradicional ou moderna de
ciência) e investigação (construída como um processo relacional). Fazen-
do uma abordagem relacional à prática científica, a autora apresenta di-
ferentes possibilidades de engajamento com o trabalho de investigação
científica, dando visibilidade para como o mesmo, enquanto prática rela-
cional, torna-se um potente recurso para construção de mundos sociais.
No último capítulo desta seção, para além das ênfases construcio-
nistas no relativismo, antiessencialismo e historicismo, discutidas am-
plamente nos capítulos anteriores, os autores buscam aportes da teo-
ria ator-rede para debater como ontologia, epistemologia e política são
definições plurais. Isso feito, eles analisam criticamente como se deu a

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construção da nossa relação com a “era de normas e códigos” e avançam


na proposição de recursos para agirmos de maneira ética em nossas
pesquisas, assumindo a pesquisa como prática dialógica e social.
Entendemos que os capítulos apresentados na primeira seção cons-
troem o solo sobre o qual se sustentam as diferentes práticas inspiradas
nas proposições construcionistas sociais. Partindo daí para a segunda
seção de nosso livro, denominada “Construcionismo social e práticas
profissionais”, convidamos profissionais e autores brasileiros que têm
se dedicado ao desenvolvimento de novas práticas de intervenção no
mundo social, assumindo os desafios que as propostas construcionistas
sociais trazem para diferentes contextos de atuação. Buscamos, desta
forma, mapear uma pequena parte da diversidade de práticas criativas e
generativas que podem ser desenvolvidas, em diferentes contextos, ten-
do como base as premissas construcionistas sociais. Nesta seção, traze-
mos relatos de práticas desenvolvidas com indivíduos, famílias, grupos
e comunidades, em contextos tão diversos como saúde, clínica e educa-
ção. Esperamos, desse modo, incentivar nossos leitores a perceberem a
aplicabilidade das propostas construcionistas sociais, embora elas não
possam ser tomadas como técnicas simples e descoladas de seu contexto
de criação e desenvolvimento.
Abrimos a seção com o sétimo capítulo, no qual os autores apre-
sentam a orientação construcionista social como favorecedora do de-
senvolvimento de um programa de assistência familiar em um serviço
de semi-internação em saúde mental. O relato do atendimento de um
casal (Chico e Rosa) pretende dar visibilidade para como se deu o uso
de alguns recursos construcionistas sociais para o diálogo, na prática
cotidiana deste serviço. A partir daí, os autores discutem que a inclu-
são de familiares no tratamento de pacientes em saúde mental deve ser
encarada como uma atividade dialógica, que traz como possibilidade a
construção conjunta de novas histórias de vida.
O oitavo capítulo busca apresentar a Terapia Comunitária Integrati-
va e situá-la como uma abordagem dialógica pós-moderna, que articula

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os campos comunitário, colaborativo e narrativo. Assim, a autora dá vi-


sibilidade à potência dessa prática para engendrar processos de trans-
formação de indivíduos, redes e comunidades.
No nono capítulo, as autoras apresentam como o construcionismo
social inspirou a construção de um atendimento grupal a usuários de
uma Unidade Básica de Saúde do interior de Minas Gerais. O relato do
processo de construção desse atendimento mostra como o mesmo foi
desenvolvido de maneira colaborativa, favorecendo a participação dos
usuários na sua construção, legitimação, crítica e reconstrução, borran-
do as fronteiras entre especialistas e comunidade. O texto permite que
sejam discutidos os desafios desse tipo de prática, apontando algumas
de suas potencialidades e possíveis limitações.
O décimo capítulo apresenta a experiência das autoras como facilita-
doras de grupos de mulheres de diferentes classes sociais, mulheres que
enfrentam problemas e obstáculos nos embates cotidianos, no universo
público e privado. Neste capítulo, as autoras situam seu trabalho com
grupos de mulheres como uma ação política e demonstram como as
discussões, as trocas e as aprendizagens, no contexto de grupos, faci-
litam a desconstrução de normas sociais e de repertórios de ação cris-
talizados, permitindo às mulheres participantes a elaboração de novos
modos de pensar sobre si mesmas e de agir no cotidiano.
O décimo primeiro capítulo descreve práticas dialógicas que são de-
senvolvidas em comunidades do Rio de Janeiro, no intuito de transfor-
mar as práticas educativas de crianças e adolescentes, rompendo com a
cultura da violência entre os gêneros e entre gerações.
O décimo segundo capítulo apresenta as contribuições da terapia
narrativa, focalizando especialmente o uso de documentos coletivos
como recurso para promover conexões entre contextos e populações.
Segundo descreve a autora, o uso de documentos coletivos no trabalho
com grupos e comunidades possibilita acessar os efeitos dos traumas,
num plano individual, e também quebrar as amarras do isolamento, em
sua articulação com o coletivo.

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Na sequência, o décimo terceiro capítulo discute o conceito de diálo-


go e comunidade de inteligibilidade como aportes teóricos úteis na cria-
ção de um programa de capacitação para educadores sexuais. Os autores
descrevem como as atividades propostas a partir destes dois conceitos
convidaram os participantes a reconhecer seus próprios valores em re-
lação à sexualidade, abrindo espaço para o reconhecimento apreciativo
da diferença.
Finalizamos esta seção com um capítulo que explora as possibilida-
des de utilização do discurso construcionista social no contexto comu-
nitário. Os autores apresentam o relato de uma prática que vêm sendo
desenvolvida junto a um grupo de travestis, em Uberlândia (MG). Duas
grandes contribuições resultam deste texto: a primeira delas refere-se à
discussão da questão da sexualidade, compreendida no contexto de uma
postura reflexiva e sustentada pelos aportes construcionistas sociais; e a
segunda remete à discussão sobre as potencialidades e os limites de uma
ação na comunidade, que visa à transformação de discursos e práticas
sobre sexualidade e gênero e, especialmente, à desnaturalização da exclu-
são social e da violência que têm acompanhado a experiência de travestis
na sociedade brasileira.
Tendo sido apresentados a uma vasta gama de práticas desenvolvidas
com base nos aportes construcionistas sociais, passamos à dimensão da
formação do profissional para atuação nesta epistemologia. Assim, em
nossa última e terceira seção, intitulada “Construcionismo social e for-
mação profissional”, apresentamos textos que refletem sobre a formação
profissional em diferentes contextos.
O décimo quarto capítulo deste livro apresenta o delineamento de
um curso de formação para terapeutas familiares. Tal curso foi orienta-
do segundo as premissas construcionistas sociais. Para tanto, as autoras
situam o campo de disputas entre escolas e epistemologias em terapia
familiar, discutindo esta escolha por trabalharem com base em uma
dada teoria como postura filosófica. A valorização da aprendizagem pela
prática, a sustentação de espaços menos hierarquizados de conversação

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e o desenvolvimento de processos reflexivos são descritos como esco-


lhas feitas a partir de diálogos que, ao longo do tempo, foram levados a
cabo com profissionais e autores construcionistas sociais. Esses diálogos
tornaram possível aos professores do instituto Familiae sustentar uma
prática dialógica em que formados e formadores se complementam,
transformando-se de modo colaborativo.
O décimo quinto capítulo discute como as autoras puderam cons-
truir uma ação pedagógica junto aos seus alunos na qual, ao mesmo
tempo em que ensinam sobre mediação, performam com eles uma prá-
tica coerente com esses princípios. Fazendo isso, elas situam a prática
de mediação, bem como a prática de ensino, como um jogo relacional,
considerando que os modos de falar constroem formas de vida.
O décimo sexto capítulo situa as recentes mudanças no campo dos
discursos e práticas em saúde, demonstrando como se mostra urgente
a formação de profissionais capacitados para atuarem em uma lógica
menos tecnicista e mais relacional. Inicialmente, a autora apresenta pos-
síveis articulações entre o discurso construcionista social e o Sistema
Único de Saúde, para então sugerir o conceito de responsabilidade re-
lacional e o investimento no diálogo como possíveis articuladores das
práticas desenvolvidas neste contexto.
Finalizamos o livro com um capítulo que traz elementos úteis para
uma revisão histórica crítica e reflexiva sobre a ciência psicológica. A
partir de uma perspectiva sócio-histórica, a autora nos instrumentaliza
para refletirmos sobre como se constituiu, historicamente, o objeto de
investigação da psicologia como um mundo interno, deslocado de um
mundo social, descrito como externo. A problematização do “modo in-
divíduo” e da dicotomização indivíduo-social, interno-externo, é tema
deste capítulo, o que nos incita a analisar os limites e efeitos dessa defi-
nição para as práticas psicológicas.
Esperamos que o traçado que fizemos neste livro seja útil para aco-
lher e inspirar àqueles que desejam se aproximar do construcionismo
social. Que a experiência de conhecer a habitação a qual, no início deste

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texto, chamamos de labirinto seja uma experiência de ampliação acom-


panhada. Falamos então de um labirinto de conversas, feito mais para
encontrar que para perder.
Contudo, se as metáforas de construção que aqui utilizamos produ-
zem o indesejado efeito de sugerir uma solidez estática, precisamos re-
tornar à poeta, que não se esqueceu de qualificar seus labirintos como
impermanentes. Falamos, portanto, de um labirinto feito mais de hori-
zontes que de paredes. Esperamos que, a cada curva-capítulo, o leitor
encontre uma ideia, um autor, uma prática e possibilidades de com eles
avançar. Sendo assim, este livro é também um convite para que, nesses
encontros, redesenhemos os traçados que sucessivamente escolheremos
habitar.

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PARTE I

O discurso construcionista social

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Capítulo 1
A pós-modernidade e o contexto para
a emergência do discurso construcionista social
murilo dos santos moscheta

Prólogo

Para compreender o discurso construcionista social como uma proposta


de nova inteligibilidade em ciência é necessário situá-lo no contexto das
mudanças culturais que possibilitaram sua emergência. De modo geral,
este contexto pode ser identificado como o movimento científico, cultu-
ral e artístico que tem sido chamado de pós-modernidade. O meu objeti-
vo neste capítulo, portanto, é apontar alguns aspectos centrais deste mo-
vimento para auxiliar o leitor a produzir sentido sobre as circunstâncias
históricas e culturais nas quais o discurso construcionista social emerge,
as necessidades e forças que cooperam para esta emergência e com quais
questões e desafios ele dialoga e propõe uma possibilidade de resposta.
Contudo, apresentar um texto introdutório sobre a pós-moder-
nidade é, sem dúvida, um percurso tão fascinante quanto traiçoeiro.­­

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24 | construcionismo social

O principal risco é cair na armadilha de produzir uma apresentação que


defina o que a pós-modernidade tem como uma de suas marcas prin-
cipais: a recusa às explicações e definições totalizantes. A pós-moder-
nidade congrega um feixe de múltiplos discursos próximos e divergen-
tes, com zonas de interseção e oposição, cuja semelhança está no modo
como se reconhecem enquanto possibilidades discursivas em oposição
a narrativas explicativas únicas e absolutas. Assim, a apresentação que
farei aqui está circunscrita ao que entendo ser relevante para o propósi-
to deste livro, e, ao longo do texto, espero sinalizar referências úteis para
o leitor interessado em investir em outros modos de apreensão e descri-
ção da pós-modernidade. O fascínio desta empreitada está em adentrar
um campo de discussões revolucionário que se alimenta de variadas
fontes e que reverbera em múltiplas dimensões da experiência humana:
nas universidades, nos laboratórios de pesquisa, nas galerias de arte, na
arte de rua, na moda, na arquitetura, nas bancas de jornais e revistas,
na televisão, na mídia em geral, no livro que lemos antes de dormir, no
artigo que escrevemos para uma revista científica, na música que ou-
vimos em um encontro romântico, na nossa forma de fazer encontros,
naquilo que chamamos de amor... Em cada cenário e para cada “objeto”
a pós-modernidade tem algo inquietante a dizer. E o contexto no qual
sua potência e prolixidade são mais evidentes talvez seja o campo das
artes. Por isso, é por lá que começamos...

Uma galeria

Imagine que estamos visitando uma galeria de arte com uma exposição
sobre o tema mulheres. O curador preparou uma sala com seis quadros
distribuídos ao longo de quatro paredes brancas e, no centro da sala,
uma escultura. Ao entrar, seguimos em sentido horário e vamos acom-
panhando as obras organizadas em uma linha histórica. A primeira obra
é Mulher com arminho, pintada por Leonardo Da Vinci, no século XV.

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capítulo 1 | 25

Por um momento, observamos a elegância da composição, do uso das


cores, das pinceladas suaves e da construção de uma imagem harmôni-
ca. A julgar por suas roupas e postura, trata-se de uma mulher rica, e o
animal que ela carrega no colo (segundo as explicações do guia que nos
acompanha nesta exposição imaginária) é uma referência simbólica aos
valores morais da dama: integridade, pureza e temperança.
Seguimos para o próximo quadro e nos deparamos com duas mu-
lheres que nos encaram a partir de uma janela no quadro Duas mulheres
na janela, do pintor espanhol Bartolomeu Murillo. No aspecto formal,
vemos um apuro na técnica de registrar sombra e luz. As figuras ga-
nham mais tridimensionalidade, a pintura tem profundidade e ficamos
assombrados com a excelência técnica do pintor, que parece fotografar
com pincéis. No conteúdo, vemos duas mulheres pobres, que nos olham
nos olhos. Quem serão? O que querem de nós? Nosso guia talvez nos
ajudasse revelando que a opção temática do pintor foi orientada pelas
inúmeras dificuldades que assolaram a Espanha no século XVII. Ao
contrário da dama pintada por Da Vinci, as mulheres deste quadro são
provavelmente cortesãs.
Um salto de dois séculos e chegamos ao expressionismo de Picasso,
autor do terceiro quadro desta exposição. As tragédias espanholas tam-
bém são o tema de A mulher chorando. Vemos um rosto dilacerado em
ângulos, sulcado e estilhaçado em quinas retas e afiadas. As pinceladas
grossas já não buscam uma verossimilhança com uma figura de mulher,
mas sobretudo com seu choro e sua dor. O pincel do artista serve ao
ofício de retratar a emoção, e não tanto a cena.
Décadas mais tarde, Gustav Klimt pintaria outra emoção. No qua-
dro seguinte vemos Judith, heroína bíblica que seduz seu inimigo para
depois decapitá-lo. No quadro, ela nos olha altivamente, expressando
em seu rosto os ingredientes de um êxtase: sexo e morte. Judith é car-
nal, sedutora e poderosa. Ela expressa o oposto da “Pin-up” que Roy
Lichenstein pintou na década de 1980. Usando uma técnica que reme-
te às máquinas de impressão em série, o artista retrata o rosto de uma

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mulher com contornos de boneca – a mesma boneca tão popular e que


lota corredores inteiros de lojas de brinquedos. É uma mulher plastifi-
cada pelas idealizações da indústria, do mercado e do consumo. É uma
obra de arte que mimetiza a produção fabril, sem marcas de pincel que
insinuem o movimento humano da mão do artista – como um televisor
em uma linha de montagem ou um desenho que colorimos conforme as
cores indicadas pelos números.
O último quadro desta exposição apresenta uma fotografia de um
perfil feminino de beleza clássica esculpido em mármore. Ao lado, a ar-
tista contemporânea Barbara Krueger colou a frase “Seu olhar me acerta
o rosto”, num estilo inspirado em campanhas publicitárias. A mulher de
Krueger não nos olha, mas também não se cala. Na verdade, esta mulher
denuncia que o nosso olhar faz algo com ela. Na exposição, esta é a pri-
meira obra sobre mulheres composta por uma mulher, e Krueger parece
nos dizer que esse detalhe não é irrelevante.
Finalmente, olhamos para o centro da sala e nos deparamos com
uma pilha retangular de tijolos comuns, algo que sequer reconhecería-
mos como obra de arte se não estivesse dentro da galeria e acompa-
nhado da etiqueta: “Equivalente VIII – 1966 – Carl Andre.” De fato,
quando comparada à maestria dos artistas cujos quadros acabamos de
ver, a obra de Andre parece tão simples que somos tentados a dizer que
qualquer um de nós poderia ter feito aquilo. O que faz disso uma obra
de arte? O que o artista quer dizer com isso? Nosso guia nos ajudaria
dizendo que a obra é considerada um dos marcos da pós-modernidade
nas artes e que sua potência não está no que retrata, mas no que produz,
ou seja, no nosso estranhamento, desconforto e necessidade de “teori-
zar” sobre ela para poder apreciá-la. A obra não se entrega facilmente ao
consumo de nossa apreciação estética, mas convoca nossa capacidade
de pensar sobre ela. Ela é esfinge: “Decifra-me, ou siga em frente.” Bas-
taria que nos perguntássemos o que tal obra nos diz sobre as mulheres
e teríamos garantidas horas de intensa elucubração. Tijolos nunca nos
fizeram pensar tanto.

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capítulo 1 | 27

Desta nossa visita à galeria imaginária, eu gostaria de destacar alguns


pontos que nos servirão como guias para, logo mais, compreender o
movimento de mudança nos modos de pensar e produzir ciência. Para
isso, em minhas pontuações, vou priorizar o eixo histórico da exposi-
ção. Pergunto-nos: que mudanças na escolha temática, no modo de tra-
balho do artista e na relação da obra com o público podemos notar ao
percorrermos a linha do tempo proposta pela exposição?
Em relação à escolha temática, eu gostaria de destacar que a exposi-
ção coloca em evidência diferentes formas de se falar da mulher: como
figura quase-mítica e de valores morais idealizados, como vítima de ma-
zelas sociais, como sedutora poderosa e perigosa, como objeto de con-
sumo, como oprimida pelo (e resistente ao) olhar patriarcal e assim por
diante. Qual obra retrataria de modo mais completo o que entendemos
como mulher? Qual você apontaria como a imagem mais próxima ao
que tomamos como a realidade da mulher? A despeito de suas prefe-
rências pessoais, todos os confrontados a estas perguntas se recusaram
a escolher apenas uma obra. Disseram-me, com frequência, que cada
artista retrata uma mulher diferente, não necessariamente complemen-
tares nem necessariamente excludentes. E todos reconheceram que cada
artista compôs em sua obra uma mulher possível de ser concebida em
certo momento histórico. Em síntese, falamos da multiplicidade do
“tema” e de sua contingência sócio-histórica.
Em segundo lugar, quando olhamos para a mudança no modo de
trabalho dos artistas, identificamos que a preocupação inicial em re-
tratar vai dando lugar à uma intencionalidade de provocar. Da Vinci e
Murillo, por exemplo, produzem imagens que guardam semelhanças ao
que reconhecemos visualmente como mulher. São representações mais
“realistas”, pois traduzem para a imagem os atributos e qualidades visí-
veis de uma mulher: elas têm face, olhos, boca, nariz, seios...
Comprometidos com a verossimilhança de suas representações, os
artistas reduziram suas marcas pessoais na obra. Assim, é preciso ser
um especialista em arte para poder distinguir entre quadros de artistas

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de um mesmo período, como Murillo, Rubens, Rembrandt ou Carava-


ggio ­­(sem recorrer às suas assinaturas, obviamente). Ao contrário, uma
obra de Picasso é muito mais facilmente reconhecida enquanto tal. ­­A
mulher deste artista tem menos semelhança visual com as mulheres que
encontramos todos os dias, e guarda muito mais fidelidade com o que
o artista quis expressar do que com a forma de um rosto de mulher. De
maneira parecida, é justamente o que Krueger e Andre querem dizer
que transforma seus trabalhos em obras de arte. Em síntese, estamos
falando de um deslocamento da arte como representação para a arte
como interrogação/provocação. Ao mesmo tempo, estamos falando de
um processo de secularização da arte. Ela se tornou menos dependen-
te de refinadas capacidades técnicas, duramente treinadas em anos de
prática e formação artística, e mais próxima ao fazer comum de todos.
Afinal, quem não sabe empilhar tijolos? Contudo, seu status de arte de-
penderá, entre outras coisas, do seu poder para gerar discursos sobre
si mesma e do modo como outros discursos e poderes a legitimam en-
quanto arte: para que tijolos sejam arte é preciso que estejam no interior
de uma instituição legitimadora, como um museu ou galeria.
Finalmente, observando o modo como nos relacionamos com as
obras da exposição, notamos que passamos a ser cada vez mais exigidos
em nossa capacidade de dialogar com elas. Dialogar, neste contexto, sig-
nifica ir além da mera apreciação e ser capaz de produzir interrogações,
associações e explicações temporárias para o que vemos, mas também
significa entreter uma postura crítica e desconfiada da sedução estéti-
ca. Aos poucos, nos vemos menos contemplativos e mais participantes,
menos expectadores e mais coautores das obras. Se essas mesmas obras
parecem se tornar cada vez menos completas e autoexplicativas, nós,
complementariamente, nos tornamos cada vez mais responsáveis por
seu sentido.
De que maneira este passeio virtual por uma galeria de arte imagi-
nária pode nos ajudar a compreender as transformações no modo de
conceber ciência? Imaginem um novo passeio, desta vez a uma galeria

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capítulo 1 | 29

de ciências que, por fins didáticos, exibe apenas duas obras: modernida-
de e pós-modernidade. Como vocês poderão ver, a minha apresentação
sobre o movimento entre estes dois discursos científicos ecoará os prin-
cipais aspectos que sinalizei em relação às mudanças no campo artístico.
Tal como fiz com a arte, vou apresentar estes dois discursos em ciência
destacando, especificamente, suas preferências em termos de aborda-
gem dos temas, dos métodos e das formas de relação entre pesquisador,
pesquisa e pesquisados.

Representação, controle e neutralidade

Se a modernidade fosse um quadro, teria sido produzido ao redor do


ano 1500. Certamente, os discursos e condições sociais que favorece-
ram sua emergência já podiam ser vistos antes disso e levaram muitos
anos até que se consolidassem com força suficiente para se estabelece-
rem como o modo hegemônico de produção do conhecimento. Mais
que precisar uma data, o que nos importa é marcar que, por volta do
século XVI, emergem diferenças significativas em relação à cultura e às
condições de vida na Idade Média. Para compreender tais diferenças,
sigo a exposição útil que Ibañez (2002) faz da modernidade ao separar a
dimensão sociológica e discursiva deste período.
Na dimensão sociológica, destaca-se o desenvolvimento de tecno-
logias que impactaram profundamente o modo de vida da época e que
possibilitaram uma nova forma de relação com o conhecimento: da sua
produção, difusão e sentido na vida das pessoas à organização da vida
comum. Considere, por exemplo, o desenvolvimento do aparato que
chamamos de microscópio. Em 1667, utilizando uma versão “moderna”
deste equipamento, o holandês Anton van Leeuwenhoek observou mi-
cro-organismos pela primeira vez, inaugurando um novo campo de ex-
ploração: a microbiologia (EGERTON, 2006). Imagine o impacto que a
invenção deste equipamento e a observação que ele possibilitou tiveram

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no modo de vida daquele período: pela primeira vez era possível ver
e comprovar a existência de seres que, embora muito pequenos, eram
responsáveis pela disseminação de mazelas de proporções catastróficas.
E mais, estes seres não tinham a aparência de anjos ou demônios, não
respondiam à feitiçaria e não obedeciam a leis espirituais. Ao contrário,
eram parte de nosso mundo, respondiam às mesmas leis naturais a que
estávamos submetidos, podiam ser controlados e eliminados e, acima
de tudo, foram descobertos pelo exercício metódico da capacidade hu-
mana de raciocinar. A razão, não a fé, nos recompensava com a liberda-
de e nos prometia o progresso.
Contudo, para o filósofo Pierre Levy, a invenção mais importante,
no que se refere à transformação do modo de pensar da era moderna,
foi a imprensa. Levy (1993) utiliza-se do conceito de tecnologias da in-
teligência para falar das produções tecnológicas que, em cada época,
possibilitaram o desenvolvimento de novas formas de pensar e de se
relacionar com o conhecimento. Assim, na modernidade, o desenvolvi-
mento da imprensa amplia a circulação dos textos e, consequentemente,
as possibilidades de acesso à informação. O conhecimento, registrado
em texto, deixa aos poucos os mosteiros e bibliotecas e passa a inserir-se
nas brechas da vida comum. Mais que isso, o texto que sai da máqui-
na já não guarda a marca da mão humana que o produziu e copiou.­
A autoria fica diluída por trás dos caracteres e páginas reproduzidas em
série. Isto será fundamental para a construção, no plano discursivo da
modernidade, da “ideologia da representação” (IBAÑEZ, 2002), ou seja,
da crença de que um texto (conhecimento) é o retrato objetivo da vida
como ela é, e de que o autor não passa de um sagaz observador.
No discurso da modernidade, a tarefa do pesquisador é a produção
de um retrato verossimilhante do mundo. Essa busca está carregada de
inúmeras pressuposições, das quais destaco quatro. Em primeiro lugar,
ela pressupõe a separação entre o sujeito que conhece e o objeto que é
conhecido. De um lado está o pesquisador, investido de capacidades ra-
cionais que são a chave para a compreensão do mundo (o cogito cartesia-

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capítulo 1 | 31

no). Do outro está o mundo, a vida, os objetos ou, como chamarei daqui
em diante, a realidade. Em segundo lugar, presume-se que essa realidade
tem atributos de: a) exterioridade (é externa ao sujeito que a conhece); b)
independência (existe de modo separado do sujeito); c) precedência (já
existia antes que o sujeito se desse conta dela); d) definição (possui carac-
terísticas estáveis); e e) singularidade (é de um mesmo modo para todos
que a observam) (LAW, 2004). Concebida dessa maneira, a realidade é
um mistério que deve ser revelado pelo pesquisador, e descobrir significa
trazer à luz a verdade de uma realidade. Em terceiro lugar, presume-se
que esse sujeito pode, pelo exercício da razão, conhecer a realidade exa-
tamente como ela é. Para isso, precisará de um método, ou seja, de um
modo controlado de proceder que minimize suas interferências sobre a
realidade e que permita, então, o acesso neutro e imparcial a ela. Final-
mente, uma vez descoberta a realidade, o pesquisador relata o que conhe-
ceu por meio de uma linguagem clara e precisa. A linguagem é o veículo
de transmissão do conhecimento: espelho do mundo, registro da verdade.
É interessante notar que o discurso da ciência moderna, em grande
parte, constrói-se em oposição ao discurso mítico medieval. Um dos
principais alvos da crítica moderna ao conhecimento medieval é sua
sujeição às leis espirituais como núcleos inquestionáveis de uma verdade
supra-humana. Neste sentido, podemos dizer que a ciência moderna
destitui Deus do trono absoluto da verdade. A verdade já não é uma
iluminação, mas uma conquista dos que perseveram no método racional
de investigação. Contudo, ao descrever o método científico como via de
acesso à realidade, e ao situar o conhecimento produzido por ele como
universal, a ciência moderna não deixa o trono vago: ela mesma o ocupa.
A crítica moderna acerca de quem tem acesso à verdade possibilita uma
substituição de juízes, mas sustenta o mesmo jogo: permanece incólume
à ideia de uma verdade única e de uma forma privilegiada de acesso a ela.
Permanece estável a hierarquia entre aqueles que dispõem ou não das vias
de acesso. Permanecem também inquestionados os efeitos de opressão
sobre aqueles que não as dispõem. Seria necessária a emergência de um

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novo discurso em ciência para desfazer o jogo e denunciar que o trono


da verdade criado pela ciência moderna, ao contrário de universal, foi
ocupado apenas pelo homem branco europeu e colonizador.
Para sintetizar, retomemos a nossa visita à galeria de arte. De modo
semelhante aos primeiros artistas, o cientista moderno está preocupado
em produzir uma descrição do mundo, uma representação tal como ele é.­­
Seu modo de trabalho é controlado por um método que visa garantir
sua neutralidade, ou pelo menos garantir que ele não apareça mais que
a obra. Assim como os quadros produzidos pelos primeiros artistas, os
relatos de pesquisa do cientista moderno nos colocam em estado de
contemplação: eles falam de uma verdade que supostamente devemos
reconhecer e assimilar.

Provocação, emergência e implicação

Se a pós-modernidade fosse um quadro, seu ano de produção poderia


ser algo em torno à segunda metade do século XX. Porém, tal como
afirmei anteriormente em relação à modernidade, precisar a data de seu
nascimento é colocar um ponto fixo em algo que pode ser mais bem
compreendido como processo. Contudo, notem a diferença: se ao fa-
lar da modernidade eu me referi a um processo de pelo menos cinco
séculos, que já encontra discursos opostos, ao falar da pós-modernida-
de me refiro a um processo recente, ainda emergente e, portanto, com
contornos muito menos definidos. Daí a multiplicidade de nomes para
caracterizá-lo: pós-modernidade, para Lyotard (1984) e Harvey (1994),
modernidade líquida, para Bauman (2001), e hipermodernidade, para
Lypovetsky (2004), citando apenas alguns. Traçar linhas de aproxima-
ção e diferenciação entre estas múltiplas definições é uma tarefa que
não cabe no escopo deste capítulo. Limito-me a tomar como referência
as considerações de Lyotard (1984) sobre a pós-modernidade e as dos
autores que a ele se aproximam.

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Na definição extremamente simplificada de Lyotard, a pós-moder-


nidade se caracteriza pela incredulidade em relação às metanarrativas,
que são modos de falar sobre algo que legitimam a si mesmos como
válidos, completos e universais. A compreensão marxista, por exem-
plo, pode ser considerada uma metanarrativa. Ela define uma chave
de compreensão (a luta de classes, por exemplo) a partir da qual toda
sociedade capitalista deve ser explicada. E situa o proletariado como
universalmente oprimido e capaz de produzir a revolução que traria
um novo e melhor modo de organização social. No coração de uma
metanarrativa mora a crença otimista de que progredimos ao longo
da história e de que, dadas as condições necessárias (a revolução, por
exemplo), o nosso futuro será melhor que o presente. Fica evidente
que, devido a seu caráter completo e universalizante, as metanarrati-
vas tendem a se instituir como “o melhor modo de pensar” e como
“a compreensão mais verdadeira da realidade”. Elas tendem a produ-
zir consenso e, portanto, invalidam quaisquer outras possibilidades de
compreensão. Para Lyotard, o intelectual pós-moderno tem a tarefa de
resistir às metanarrativas, suspeitar de toda forma de consenso e pro-
curar a multiplicidade de modos inteligíveis de compreensão. Ao con-
trário da ambição moderna em produzir conhecimento cumulativo,
progressivo e consensual, a pós-modernidade almeja a multiplicação e
o que Alvesson e Deetz (2000) chamaram de dissenso. Lembre-se dos
tijolos de Carl Andre e da profusão de teorias explicativas que pro-
movem justamente por resistirem a serem totalmente explicados por
qualquer uma delas.
O discurso da ciência moderna é visto pelos pós-modernos como
uma metanarrativa: presume um modo único e mais verdadeiro de co-
nhecer uma realidade definida como coesa e acessível. A pós-moder-
nidade situa o discurso científico como uma possibilidade discursiva,
como uma forma de narrar que produz efeitos em nosso modo de viver,
e não como um modo privilegiado de se ter acesso à verdade. E isso
acontece porque ela não presume a existência de uma realidade úni-

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ca que vive fora de nossos modos de descrevê-la. Somos convidados


a olhar para as diferentes teorias e formas de compreensão do mundo
como plausíveis e úteis, e passamos a interrogar o modo como nossas
descrições delimitam nossas possibilidades: se os diferentes modos de
caracterização da mulher em nossa galeria de arte são igualmente váli-
dos, as suas implicações são bastante distintas. Se a verdade é destituída
de seu valor universal, se o que temos são versões multiplicadas, não
uma realidade única, resta-nos perguntar: De quem é a voz que conta a
história? Quais são seus interesses? (Quem disse que tijolos são arte?) A
mulher apresentada por Barbara Krueger está explicitamente impregna-
da dos interesses que a artista feminista quer defender e dos efeitos que
almeja produzir. Ela não representa uma realidade, mas busca construí-
-la segundo o modo que lhe interessa. A neutralidade, central à lógica
discursiva da modernidade, cede lugar à implicação. A ciência, como a
arte, é política.
Certamente, a mudança do discurso científico não se deu ao aca-
so. Do mesmo modo que o desenvolvimento da imprensa favoreceu a
consolidação do projeto científico moderno, a emergência da pós-mo-
dernidade também se articula com as inovações no campo tecnológi-
co. Para Levy (1993), o computador é a “tecnologia de inteligência” que
sustenta as transformações no modo de vida pós-moderno que, conse-
quentemente, demandarão a produção de um novo discurso científico.
O computador revoluciona o modo como lidamos com a comunicação,
informação e produção.
No plano da comunicação, ele cria pontes que ultrapassam as barrei-
ras geográficas e colocam em contato grupos e culturas antes incomu-
nicáveis. Assim, torna-se mais evidente a diversidade outrora escondida
nas grandes narrativas dos colonizadores e, ao mesmo tempo, o limite
explicativo destas narrativas. Além disso, ele favorece a dissolução das
barreiras físicas e temporais que antes cooperavam para a construção
de noções de identidades estáveis. Um jovem antes restrito às possibi-
lidades identitárias oferecidas por sua aldeia hoje dialoga (via telefone

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celular, internet etc.) com grupos em praticamente qualquer lugar do


mundo. Na expressão de Gergen (1992), o self tornou-se saturado e as
identidades múltiplas e transitórias.
No plano da informação, o computador expande exponencialmente
a secularização do conhecimento iniciada na modernidade. Ao custo de
um clique, podemos saber sobre o que quisermos. A figura do especia-
lista como detentor do conhecimento começa a erodir, ao mesmo tem-
po em que aumentam nossas suspeitas sobre a validade da informação
e de seu uso.
Finalmente, no plano da produção, o computador inaugura uma
nova lógica no ciclo inovação-produção-consumo. As fábricas se frag-
mentam em unidades de produção espalhadas por todo o globo, com
mercados de consumo potenciais igualmente irrestritos. Os produtos
têm seu tempo de vida cada vez mais encurtados por uma indústria que,
incessantemente, produz a novidade: o novo é descartado em nome do
ainda-mais-novo.
Em tudo isso, o computador produz um novo campo de relações nas
quais o “real” e imediato está intumescido do “virtual”. É neste contexto
que a “ideologia da representação” da modernidade deixa de ser central
e abre espaço a uma lógica científica mais preocupada com a rapidez
com que gera possibilidades de ação (IBAÑEZ, 2002).
O discurso pós-moderno pode ser entendido como operando em
duas frentes. De um lado, é um discurso crítico em relação aos pres-
supostos científicos modernos. Para este discurso, a modernidade ins-
tituiu a razão como um dispositivo que aniquila as diferenças. Como
afirma Ibañez, a razão “ordena, classifica, universaliza, unifica, e para
isso, deve reduzir, expulsar, neutralizar, suprimir as diferenças” (2002, p.
102). Além do mais, as promessas emancipatórias que advinham do uso
da razão e do conhecimento da verdade não foram alcançadas. E, final-
mente, a crença em uma verdade única mostrou-se uma forma sagaz de
instituir os valores de um grupo sobre outros: a neutralidade como o
Cavalo de Troia das ciências.

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De outro lado, porém, o discurso pós-moderno é legitimador. Ele


procura legitimar as diferenças nas nossas possíveis descrições de mun-
do. Ele investe em sustentar espaço para a coexistência de valores e in-
sistirá na produção fragmentária de realidades, sujeitos e verdades (no
plural). Para tanto, precisará procurar sempre pela contextualização his-
tórica e cultural de qualquer afirmação científica e assim defender uma
postura relativista.
Para encerrar esta seção, voltemos à galeria de arte. Tal qual os úl-
timos artistas, o cientista pós-moderno está mais preocupado com o
efeito de sua obra que com aquilo que ela “de fato” representa. Seu mé-
todo de trabalho não segue prescrições controladas e racionalizadas,
mas emerge do diálogo com os contextos de investigação dos quais se
ocupa. E a relação que pretende construir com os participantes de suas
pesquisas e com os leitores de seus artigos tende a entreter espaço para
coautoria, complementação e suplementação. É um pesquisador/artista
que assume seu lugar e interesse, e uma pesquisa/obra que expõe sua
contingência e incompletude.

Notas sobre um percurso inconcluso

Como já disse, o movimento da modernidade à pós-modernidade é


emergente e inconclusivo. Enquanto processo, ele não tem data, ber-
ço ou progenitores específicos. Ao contrário, ele se constrói como um
campo que se alimenta da contribuição de várias disciplinas e que pode
ser situado em diferentes momentos históricos (BUTLER, 2002). Os di-
versos aportes, oriundos de diferentes autores, compõem feixes e forças
que, aos poucos, começam a questionar os pressupostos da moderni-
dade e criam a necessidade e o substrato para a produção de uma nova
inteligibilidade. A noção de inconsciente, postulada por Freud em 1900,
por exemplo, contribui com o questionamento do status apresentado
pela proposta iluminista de um sujeito racional, dono de si e das suas

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vontades. A análise que Marx e, posteriormente, os autores da escola


de Frankfurt fazem sobre a ideologia, a indústria cultural e os proces-
sos de alienação e assujeitamento contribuem com a crítica à máxima
positivista de “ordem e progresso” e produzem nossa desconfiança em
relação aos modos instituídos de viver. Na linguística, as formulações de
Saussure sobre a linguagem como um sistema fechado de regras e sobre
a relação arbitrária entre o significante e o significado operam uma dis-
tinção que, posteriormente, permitirá a autores como Derrida descons-
truir a noção de uma realidade existente fora da linguagem.
Contudo, por mais que as teorias de Freud, Marx e Saussure tenham
desestabilizado certos pressupostos-chave da modernidade e, assim, con-
tribuído com o início da construção de um discurso pós-moderno, suas
proposições sustentam uma ideia de estrutura estável (psicológica, para
Freud; social, para Marx; e linguística, para Saussure). Elas naturalizam
e universalizam esta estrutura, mas também se dedicam a compreender
“o que está por trás”, podendo ser consideradas metanarrativas. Com isto,
quero reforçar meu argumento de que a delimitação do início da pós-
-modernidade e dos seus principais autores é um artifício retórico de
quem conta a história de como passamos de um momento para o outro...
passamos? Gergen (1997), por exemplo, prefere destacar três modalidades
de crítica que contribuem com esta passagem: crítica ideológica, literária
e social. Ibañez (2002) opta por apresentar autores-chave como Saussure,
Foucault e Rorty. A minha opção discursiva é destacar os dois eixos cen-
trais que nos ajudam a entender as mudanças de pensamento que abrem
o caminho da modernidade à pós-modernidade (poder e linguagem), e
nesses caminhos integrarei as contribuições de Gergen e as de Ibañez.

Poder

Para Ibañez (2002), o traçado da genealogia da pós-modernidade passa


inevitavelmente pelas contribuições do filósofo francês Michel Foucault.

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38 | construcionismo social

As inovações de suas formulações e a potência com que atingiram vá-


rios campos do conhecimento a partir da década de 1960 produziram
fissuras no modo tradicional de se fazer ciência e abriram possibilidades
à fundamentação de um discurso pós-moderno. Do conjunto de ideias
e conceitos que este autor investiga, interessa-nos particularmente suas
proposições acerca do poder.
Em primeiro lugar, Foucault não entende o poder como um atributo
ou característica de alguma pessoa ou instituição, mas como um efeito de
discursos. Discurso é entendido como um conjunto de práticas, modos
de falar, metáforas, significados compartilhados, histórias e imagens que
cooperam na determinada construção de um “fato”, “evento” ou “objeto”
(FOUCAULT, 1979). Utilizo as aspas para destacar que, a partir da lógica
foucaultiana, o que tomamos como fato, evento ou objeto é produto do
discurso, não um fenômeno independente do qual o discurso se ocupa.
O discurso, portanto, cria seus “objetos” de uma determinada maneira e
circunscreve um conjunto de relações possíveis com ele. Neste sentido,
na medida em que o discurso regula e dá forma às nossas possibilidades
de viver, ele sustenta as práticas sociais por meio das quais o poder opera.
A inovação da ideia de poder em Foucault está em descrevê-lo de
modo positivo, não apenas repressivo. Para ele, o poder não opera só
nas proibições, cerceamentos e obrigações, mas sobretudo nas incita-
ções, na criação de desejos, expectativas, antecipações e projetos, que,
em última instância, cooperam na criação de um modo “esperado de vi-
ver”. Para Foucault, em resumo, este modo esperado de viver correspon-
de às necessidades de governo de uma determinada época e sociedade,
não ao projeto de uma entidade específica. Para este autor, então, o po-
der é uma “estratégia sem estrategista” que tem por finalidade última a
produção de subjetividades governáveis. Vejamos alguns exemplos.
Os asilos europeus dos séculos XVI e XVII eram locais destinados a
abrigar todos os considerados improdutivos e potencialmente ameaça-
dores à organização da sociedade da época: loucos, doentes, criminosos,
mendigos etc. No século XVIII, a emergência dos valores iluministas

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capítulo 1 | 39

demandou a produção de um novo discurso sobre a loucura para con-


tornar um problema de governo: como justificar o encarceramento de
pessoas por uma sociedade que começava a se organizar em princípios
de liberdade, igualdade e fraternidade, por exemplo? O discurso médi-
co-científico que emerge no século XIX produzirá uma nova inteligibi-
lidade que, entre seus múltiplos efeitos, garantirá a governabilidade dos
loucos. Assim, ao transformar a loucura em doença mental, o discurso
médico-científico garantiu um saber/autoridade sobre o doente mental
que, por sua vez, passou a ser o destinatário das intervenções de cuida-
do justificadas em seu benefício. O poder e o controle não impuseram
leis que forçaram os loucos ao encarceramento, mas operaram por meio
de um discurso que instituiu a internação em hospitais psiquiátricos e
a submissão à figura do médico como um modo justificado de cuidar.
Os efeitos desse discurso reverberaram naqueles que, ao se verem como
desajustados, anormais ou loucos, procuravam sozinhos as alternativas
de tratamento. Mais que proibir, os discursos criam enquadramentos a
partir dos quais as pessoas se enxergam. Mais que restringir, eles esti-
mulam um certo modo de vida.
Uma análise semelhante pode ser feita em relação à sexualidade. No
final do século XIX, quando Kraft-Ebing publicou o livro Psychopatia
Sexualis (1886), ele consolidou um discurso científico sobre a sexuali-
dade que também respondia às necessidades de governança de seu pe-
ríodo. Até então a sexualidade era regulada pelo discurso religioso, mas
a partir da publicação de seu livro começou a ser considerada como um
objeto do pensamento científico moderno. A extensa lista de desvios
e anormalidades sexuais formulada por Kraft-Ebing foi organizada a
partir de uma lógica herdeira dos valores cristãos, mas também infor-
mada pelas teorias da degenerescência e da evolução. Como resultado,
Kraft-Ebing considerou desvio todo comportamento sexual que não se
organizava em direção à reprodução. Ele lançou mão dos termos sa-
dismo, masoquismo, homossexualismo, fetichismo, entre outros, para
falar dessas questões, e situou a masturbação como umas das principais

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ameaças ao desenvolvimento de uma sexualidade sadia. Para Foucault


(1988), a apropriação da sexualidade pelo discurso científico respondeu
à necessidade de garantir a multiplicação da força de trabalho e a do-
cilidade dos corpos, ambos necessários à consolidação das economias
capitalistas de produção (daí a ênfase na procriação). A noção de nor-
malidade sexual, associada à monogamia, conjugalidade e procriação,
foi construída pelo discurso científico da época do mesmo modo que
o discurso atual coopera na construção de uma noção de normalidade
sexual que parece oposta àquela. Se para a sociedade capitalista de pro-
dução a sexualidade ideal deveria ser contida e limitada, para a socie-
dade de consumo parece ser mais interessante uma sexualidade direcio-
nada à procura incessante de prazer. Note-se, portanto, a multiplicação
contemporânea de discursos que constroem uma ideia de normalidade
sexual associada ao alto desempenho, ao prazer intenso e ao aprimora-
mento estético dos corpos.
Como podemos ver nestes dois exemplos, Foucault trata a ciência
como um discurso que participa dos dispositivos de poder e dos modos
de produção de subjetividades. Ao fazer isso, produziu um argumento
contundente contra a suposta neutralidade das ciências e abriu o campo
para inúmeras investigações que buscaram colocar em destaque o modo
como a ciência construiu seus objetos de estudo, os efeitos que ela produ-
ziu e as necessidades às quais atendeu. Os estudos feministas, queer, étni-
co-raciais, pós-colonialistas e pós-estruturalistas que se inspiraram nas
provocações foucaultianas lograram êxito ao salientar o modo como o
discurso científico universalizou uma ideia de humano (e de normalida-
de) baseada nos valores e interesses do homem branco europeu e coloni-
zador. Se, por um lado, as análises de Foucault denunciaram os efeitos de
poder e controle do discurso científico, por outro, a sua concepção de po-
der como força que opera por meio de dispositivos discursivos dispersos
tornou possível que grupos marginalizados pelas descrições científicas
tradicionais pudessem tomar para a si a tarefa de produzir novos discur-
sos com potência de resistência e transformação. Tal brecha inspira artis-

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capítulo 1 | 41

tas pós-modernos como Barbara Krueger e Carl Andre, que buscam com
suas obras, respectivamente, construir o feminino a partir de sua própria
voz e interrogar o poder do discurso instituído pela galeria.
Após Foucault, tornou-se difícil defender a ciência enquanto ofício
neutro, comprometido apenas com a verdade. O campo epistemológico
que se configurou a partir de suas contribuições demandaria discursos
científicos críticos e atentos às suas implicações. Como veremos no pró-
ximo capítulo, estas duas características serão centrais na formulação de
um discurso construcionista social.

Linguagem

A compreensão sobre os efeitos de poder produzidos pelo discurso cien-


tífico cooperou com a desconstrução de alguns pilares do modo mo-
derno de fazer ciência, como as noções de neutralidade e objetividade.
Contudo, a abertura da passagem à pós-modernidade não teria se dado
sem as importantes transformações no modo como a linguagem e a co-
municação são entendidas dentro dos discursos científicos.
Observando o modo como nos comunicamos no dia a dia, notare-
mos que utilizamos a linguagem como se ela fosse uma representação
das coisas do mundo, de nossos pensamentos, emoções e conceitos. Di-
zemos, por exemplo, “a árvore é alta”, “vou te dizer como me sinto”, “na
minha opinião...”, “não era isso o que eu queria dizer” ou “já te falei para
não fazer mais isso”. Ao falarmos assim, estamos utilizando a linguagem
como expressão do que apreendemos do mundo e do que se processa
dentro de nós, ou seja, do que tem lugar no mundo privado de nossas
personalidades, emoções e pensamentos. Comunicar-se, segundo esta
lógica, significa colocar em palavras um pensamento e transmiti-lo por
meio de mensagens. As palavras transportam ou carregam significados
que percorrem o caminho (gráfico, visual e sonoro) entre a mente do
sujeito que diz (enunciador) e a mente do sujeito que escuta (receptor).

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Representação e transmissão: simplificando ao extremo, é deste modo


que a ciência moderna concebe a linguagem.
Num relato científico, por exemplo, o pesquisador utiliza as palavras
para transmitir ao leitor um conjunto de informações. A escolha das pa-
lavras é guiada pela sua clareza, e o estilo da escrita é pautado pela objeti-
vidade. A objetividade é entendida como um modo impessoal, imparcial,
detalhista e exaustivo de se falar sobre algo, para que diferentes pessoas
possam ter o mesmo entendimento do mesmo texto. Se o que mais inte-
ressa em um texto é a informação que ele representa, a tarefa do pesquisa-
dor moderno é escrever de um modo que não atrapalhe esta transmissão,
daí sua preferência em se retirar do texto enquanto autor utilizando frases
impessoais como “os dados revelam”, “pode-se constatar” e “foi observa-
do”. Se a invenção da imprensa apagou com caracteres a caligrafia do au-
tor, como vimos anteriormente, o estilo de escrita da modernidade silen-
ciou a sua voz na impessoalidade. Ambos contribuíram com a construção
de um entendimento da linguagem enquanto representação objetiva.
Uma primeira mudança neste modo de conceber a linguagem foi pro-
vocada pelas contribuições de Ferdinand Saussure e do movimento cha-
mado estruturalista. Saussure (1977) inverteu a lógica moderna segundo
a qual utilizamos as palavras para expressar nossas apreensões do mundo,
emoções e pensamentos. Para ele, a linguagem nos oferece uma estrutura
que determina como podemos apreender o mundo, sentir e pensar.
Para Saussure, a linguagem é um conjunto de signos. Os signos são
formados por palavras (expressões sonoras e gráficas, como cadeira,
árvore e amor, por exemplo) que representam as “coisas do mundo”
(o conceito de cadeira, árvore e amor). As palavras são chamadas de sig-
nificantes, e os conceitos aos quais nos referimos quando utilizamos tais
palavras são chamados de significados. A relação entre os significantes e
os significados é, de acordo com Saussure, arbitrária, ou seja, não existe
nada no conceito de árvore, por exemplo, que exija ser designado pela
palavra árvore. Prova disso é o fato do mesmo conceito poder ser desig-
nado por outras palavras como tree, arbre ou árbol. Até aqui, a propo-

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sição de Saussure parece simples e óbvia. Mas ele segue em frente e diz
que, se as palavras não guardam uma relação necessária com o que re-
presentam, os próprios conceitos tornam-se arbitrários, uma vez que só
podem ser definidos na relação que estabelecem com outros conceitos.
O significado de um conceito não está em si mesmo nem em sua relação
necessária com a “coisa” que representa, mas na relação de diferenciação
que ele estabelece com outros conceitos. Sendo assim, para compreen-
dê-lo, temos que diferenciá-lo dos outros. Nós criamos, por exemplo,
um conceito de cadeira, árvore e amor que possibilita separar cadeiras
de pessoas, árvores de prédios e amor de tristeza. Como tais divisões
são arbitrárias, poderíamos não fazer distinção entre uma árvore e um
prédio se nossa linguagem não constituísse tal divisão. Já que dispomos
de uma linguagem que contém um signo para amor (uma palavra e um
conceito), podemos experimentar o amor. A linguagem não expressa,
mas enquadra e delimita nossa experiência do mundo.
Se os conceitos dos quais dispomos determinam nossas possibilida-
des de apreensão do mundo e se tais conceitos são arbitrários, ou seja,
não guardam nenhuma relação necessária fora do jogo da linguagem,
a ideia de objetividade, enquanto acesso imediato e neutro à realidade,
torna-se sensivelmente problemática. Por isso, Saussure propõe que o
foco da investigação sobre a linguagem não deve estar na correspon-
dência de um dado conceito com uma realidade, mas na relação que
os conceitos estabelecem entre si segundo a estrutura da linguagem. A
linguagem deixa de ser um recurso de representação e transmissão e
passa a ser entendida como estrutura em si. Por um lado, a noção de
estrutura que ele propõe problematiza a ideia de objetividade, mas, por
outro, reforça a noção de estabilidade e universalidade, uma vez que
os signos, após formados, calcificariam-se em sentidos coletivos, am-
plamente compartilhados e razoavelmente imutáveis. Neste sentido, as
ponderações de Saussure sobre a linguagem abriram uma fresta que se-
ria aproveitada por outros autores, como Derrida, para a construção de
um entendimento pós-moderno sobre a linguagem.

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Derrida e outros autores chamados de pós-estruturalistas perceberam


que, embora a descrição da linguagem de Saussure problematizasse a no-
ção de objetividade, ela não problematizava a si mesma enquanto discur-
so objetivo, produzindo uma contradição. Como destaca Gergen (1997):

Se os discursos não são orientados pelos objetos no mundo mas pela


estrutura subjacente, e se as descrições desta estrutura são também for-
muladas na linguagem, então de que modo tais descrições mapeiam a
realidade destas estruturas? Se elas são figuras das estruturas, então a
visão empiricista ou realista da linguagem está correta e as postulações
estruturalistas são limitadas; se elas não são retratos precisos, qual seria
seu status? (p. 39)

Assim, a partir da consideração de que o significado de um conceito é


definido pelo jogo de diferenças que ele estabelece com outros conceitos
dentro das regras da linguagem, Derrida (1967) concebeu a linguagem
como um sistema de diferenças. O significado de uma palavra depende
de sua oposição ou diferença em relação a outras palavras. Portanto, o
que é dito se apresenta (no sentido de estar presente), mas traz consigo
um pano de fundo de ausências, sem o qual não faria sentido. Dizer
branco só faz sentido se imediatamente tivermos como pano de fundo
conceitual a noção de preto ou colorido. Assim, o significado do que é
dito depende do que se apresenta e do que se esconde. Por isso, Derrida
afirma que a produção de sentido é também a produção de ocultamen-
tos e de supressões polarizadas.
Em pouco tempo, isto levou os pensadores pós-modernos a olhar
para as supressões como opressões e a denunciar como nosso modo
habitual de falar tem privilegiado a razão sobre a emoção, a mente sobre
o corpo, a ordem sobre a desordem, o masculino sobre o feminino, o
heterossexual sobre o homossexual, o são sobre o insano, entre outros.
Por que um relato científico escrito em português, por exemplo, utiliza
palavras no gênero masculino como representantes universais? Por que,

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quando não se sabe o gênero de quem escreveu um texto, a forma corre-


ta de escrita deve ser sempre “o autor afirma” e nunca “a autora afirma”?
Para os pós-estruturalistas, compreender o significado de uma pala-
vra é compreender seu jogo de polarização. Contudo, o significado úl-
timo das palavras é “indecidível”, pois ao interrogarmos sobre o signifi-
cado de uma palavra entramos em um oceano infindável, cada vez mais
profundo, com mais e mais palavras, cada uma pedindo outras mais para
ganharem significado. Qualquer noção de objetividade e correspondên-
cia com a realidade torna-se inviável quando não se existe nada fora do
texto. Segundo Derrida, o que temos são traços de significado que nos
dão pistas do uso histórico de um conceito. Contudo, o significado úl-
timo de uma palavra é sempre deslizante e impossível de ser definido.
Assim, ao contrário dos estruturalistas, que procuravam pela estrutura
da linguagem, os pós-estruturalistas olham para o jogo das palavras, para
os sentidos cambiantes que emergem destes jogos e para seus efeitos de
apresentação/ocultamento, valorização/depreciação. Ao mesmo tempo
em que a análise pós-estruturalista afirma que é impossível (e irrelevan-
te) saber o que um autor quis dizer com seu texto, ela nos convidar a falar
perpetuamente sobre os possíveis significados de uma pilha de tijolos em
uma galeria de arte, por exemplo.
Contudo, se a linguagem deixou de ser um recurso para representar
e transmitir informação, para que serve? Retomando a discussão ante-
rior sobre poder, podemos imaginar o papel da linguagem na constru-
ção de nossos modos de viver. Ela não representa algo, ela faz algo. São,
na expressão de Wittgenstein (1953), jogos de linguagem que criam for-
mas de vida. Os conceitos de verdade, objetividade, neutralidade e rea-
lidade são cartas que permitem jogar um determinado jogo científico.
Com elas, podemos fazer e dizer algumas coisas. Em um baralho com
outras cartas, no qual a da verdade fosse substituída pela da inspiração,
por exemplo, outras coisas poderiam ser ditas e feitas. A escrita científi-
ca, por exemplo, seria radicalmente diferente se a carta que tivéssemos
em mãos fosse verdade ou inspiração. Escrever para justificar ou provar

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uma afirmação que pleiteia o status de verdade é radicalmente diferente


de escrever para emocionar e produzir sonhos.
Finalmente, se a verdade (no sentido de correspondência) é depos-
ta de seu lugar de crivo último das afirmações científicas, quais são as
regras que passam a pautar o jogo das ciências? Dito de outra forma, se
nossas proposições científicas não precisam ser necessariamente ava-
liadas segundo seu grau de verdade, de que outras formas poderíamos
considerá-las? Richard Rorty (1992, 2009) propõe que consideremos
sua utilidade e assim reintroduz um sentido histórico e social para prá-
tica científica que a noção de verdade universal desprezara. Se nossos
jogos de linguagem criam formas de vida, quais as possibilidades que
se fecham e que se abrem ao produzirmos determinadas descrições do
mundo? Quem se beneficia com elas? Quem fica silenciado? Desenha-
se assim uma prática científica pragmática, relativista e que toma a lin-
guagem a partir de seus efeitos.

Reflexividade

Certamente, muito mais poderia ser dito sobre a pós-modernidade e o


contexto no qual emerge o discurso construcionista social. Sem dúvi-
da, minha apresentação recorta apenas alguns dos autores e argumentos
que favorecem a criação de uma narrativa, e o meu intuito é situar o
leitor em relação ao que será apresentado nos próximos capítulos. Segu-
ramente, esta narrativa não faz jus à polifonia de discursos sobre a pós-
modernidade, sobretudo às vozes mais críticas e refratárias. Façamos
então o exercício de olhar para este texto como se fosse, ele mesmo, um
dos objetos expostos em nossa galeria imaginária (um exercício que os
pesquisadores pós-modernos gostam de chamar de reflexividade).
Três características merecem destaque. Em primeiro lugar, este texto
é carregado de metáforas, ele fala por imagens, evoca, sugere, compara,
cria relações de semelhança, nexos, oposições, contrastes e linhas de ar-

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gumentação. As metáforas que escolhi permitiram a mim e ao leitor jo-


gar certo jogo de linguagem. Neste jogo, o que tomamos habitualmente
como o modelo tradicional da escrita científica pôde ser evitado, e o tex-
to ganhou por vezes tonalidades mais artísticas. Ele se beneficiou, por-
tanto, da mestiçagem de estilos e da diluição da fronteira entre a escrita
científica e a literária, possibilitadas pela inteligibilidade pós-moderna.
Em segundo lugar, este texto faz questão de apresentar seu contexto,
seja na minha insistência em escrever em primeira pessoa, seja na decla-
ração franca de seu endereçamento, objetivo e intencionalidade, seja na
confissão de suas limitações. Transpira no texto (assim eu espero) um
contorno que o impede de ser tomado como uma descrição universal e
completa. Por último, este texto, cheio de brechas e intenções, não goza
de nenhum privilégio sobre aquilo que o leitor pensa e conhece sobre
a pós-modernidade. Como uma pilha de tijolos ganham status de arte
dentro de um museu, estas palavras ganham status de texto e argumento
por estarem em um livro. Portanto, ele pode (e deve) ser desconstruído.
Em síntese, este texto faz uso do que procura apresentar como carac-
terística da pós-modernidade: o uso da linguagem orientado pelos seus
efeitos, pela contextualização de seus objetivos, da voz de seu autor e das
tramas que cooperam na construção de seu status, e também pela par-
cialidade (ou incompletude) na produção narrativa. Tais características
compõem o cenário cultural no qual emergiram diferentes modos de
pensar e fazer ciência, dentre eles, o construcionismo social, que apre-
sentaremos em detalhes nos próximos capítulos.

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Capítulo 2
Discurso construcionista social:
uma apresentação possível
laura vilela e souza

O meu primeiro cuidado ao apresentar o discurso construcionista so-


cial é pontuar que qualquer definição do que venha a ser considerado
construcionismo social deve levar em conta dois riscos. O primeiro
deles é o risco da reificação de um “algo” que seria “o” construcionis-
mo social. Ou seja, a ideia de que “o construcionismo social” seria uma
realidade em si mesma, independente de nossas formas de descrevê-
-lo. Portanto, poderia ser identificado a partir de suas características,
que seriam relativamente estáveis ao longo do tempo e reconhecíveis
por diferentes pessoas em diferentes espaços sociais. Como veremos
neste capítulo, qualquer tentativa de definição do mundo físico, das
pessoas e até do construcionismo social resulta de um processo de
construção social.
O segundo risco é o da simplificação, que é tomar essa apresentação
como o reflexo da forma como as coisas são, deixando de contextualizá-

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-la e perdendo de vista a legitimidade de tantas outras descrições em um


campo tão plural. Plural porque nele convivem diferentes teóricos que,
em alguns pontos de suas proposições, aproximam-se, mas, em outros,
se afastam. Por essa razão, uma opção é falar em termos de movimento
construcionista social, com ênfase nas mudanças, alterações, fluidez e
diversidade desse campo (BURR, 2003; RASERA; JAPUR, 2005).
Outra opção é falar em movimentos construcionistas sociais, no
plural, considerando-se os diferentes posicionamentos construcionistas
como práticas e conversas variadas, com origens diversificadas (GER-
GEN, 1998). Tal diversidade é destacada quando se entende o movi-
mento ou movimentos construcionistas sociais como diálogos em des-
dobramentos permanentes entre pessoas dotadas de diferentes lógicas,
valores e visões de mundo (GERGEN; GERGEN, 2003). Não só o uso do
termo movimento construcionista social pode ajudar na valorização da
mutabilidade desse campo, mas também a referência a construcionis-
mos sociais, no plural (HOLSTEIN; GIBRIUM, 2008; RASERA; GUA-
NAES; JAPUR, 2004).
Outra forma de se levar em conta a pluralidade de autores do mo-
vimento construcionista social está na tentativa de classificar suas se-
melhanças e diferenças. Uma dessas classificações divide os autores que
teriam algumas características próprias do weak constructionism ou do
strong constructionism (SCHWANDT, 2008) para se referir à postura
mais forte (strong) ou menos radical (weak) na contraposição a um dis-
curso realista. Outra classificação os divide em autores do dark construc-
tionism ou do light constructionism (DANZIGER, 1997). No primeiro
caso, os autores reconheceriam a importância dos aspectos não discur-
sivos, como poder e corpo humano, nas construções relacionais. Para
eles, corpo e poder não são efeitos do uso dos discursos, como os auto-
res do segundo grupo preconizam, mas realidades não discursivas que
devem ser levadas em conta como tal.
Os termos dark ou weak foram criticados por serem pejorativos e
outra classificação foi delineada: o micro social constructionism e o ma-

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cro social constructionism (BURR, 2003). O primeiro tem como foco os


microprocessos de uso da linguagem nas interações entre as pessoas, e o
segundo estuda as estruturas macrolinguísticas. No primeiro grupo, os
principais teóricos são: Kenneth Gergen, John Shotter, Jonathan Potter,
Derek Edwards, Malcolm Ashmore, Margaret Wetherell e Rom Harré,
vários deles também autores da psicologia discursiva. Em comum, esse
grupo tem o entendimento da construção social como trocas interpes-
soais cotidianas. No segundo grupo, os principais representantes são:
Foucault, Parker, Hollway, Burman, Willig e Ussher. Tais autores tam-
bém valorizam a linguagem como construtora de realidades, mas en-
tendem que seu poder construtor é derivado de estruturas sociais ou
materiais. Tais teóricos têm como foco as relações de poder e o estudo
das desigualdades sociais, buscando defender grupos marginalizados
socialmente. Muitos investigadores optam pelo uso combinado das
duas abordagens, micro e macro.
Como vemos, diferentes autores apresentam diferentes construcio-
nismos sociais. Abordarei, neste capítulo, os pressupostos que Kenneth
Gergen aponta como importantes para entender um possível constru-
cionismo social, fazendo uma opção circunscrita em meio a outros ca-
minhos legítimos de introdução a esse discurso.

Em 1985, Gergen escreveu um famoso texto...

Na tentativa de encontrar respostas à crise epistemológica pela qual a


disciplina da psicologia social passava, Gergen escreveu, em 1985, o
artigo “The social constructionist movement in modern psychology”.
Nesse texto, o autor apresenta quatro pressupostos que seriam próprios
de uma investigação construcionista social sobre o mundo e sobre as
pessoas. Em 1994, Gergen escreveu o livro Realities and relationships
e ampliou seus argumentos, acrescentando a descrição de um quinto
pressuposto. São eles:

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1. Os termos por meio dos quais explicamos o mundo e a nós mesmos não
são ditados pelos objetos estipulados por esses relatos.

Tal pressuposto nos informa que nada naquilo que tomamos como
objeto (o mundo físico, as pessoas, os sentimentos, as percepções...) exi-
ge um tipo de descrição específica e rejeita outra.
Para exemplificar, um cientista em um laboratório combina diferen-
tes componentes químicos e observa ao que leva essa combinação. Ao
término do experimento, ele relata o processo à comunidade científica
da forma mais objetiva possível. Ele faz seu relato buscando ser neutro
no uso das palavras. Ou seja, ele não fala dos componentes químicos
em termos de suas preferências pessoais e não conta a história de sua
frustração com relação aos resultados do experimento. Esse cientista
acredita que seus relatórios de pesquisa são capazes de representar os
elementos do mundo externo tal qual eles são, além de acreditar na pos-
sibilidade do relato dos eventos da forma como eles realmente acontece-
ram. Ele acredita na separação entre um sujeito (cientista) e um objeto
(componentes químicos) e na possibilidade de uma descrição desconta-
minada da relação entre os dois.
Outro exemplo: em muitas de nossas trocas cotidianas, lidamos com
o mundo a partir dessa mesma separação, considerando um “dentro de
mim” e um “fora de mim”. Esse “fora de mim” seria a realidade externa,
e a realidade externa se mostraria para cada um de nós por meio de
nossos sentidos, e seria possível, a partir de mim, a descrição de como
as coisas são fora de mim.
Mais um exemplo. Uma moça olha pela janela e diz estar vendo ár-
vores do lado de fora e algumas senhoras caminhando. Conta também
que sente uma leve brisa e os raios do Sol em sua face. Uma forma de
entender essa descrição é tomá-la como a representação de como as coi-
sas realmente são do lado de fora da janela. Nesse caso, a linguagem
estaria servindo para transmitir, a quem interessasse, o cenário visto.
Todavia, alguém familiarizado com as críticas feitas na história da ciên-

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capítulo 2 | 53

cia sobre a influência da subjetividade do observador na descrição de


suas observações pode perguntar: Será que essa descrição dá conta de
todos os detalhes da cena? As características pessoais, o humor da moça
naquele dia e a sua atenção poderiam não ter permitido que, no canto
da cena, ela notasse uma criança agachada brincando de esconde-es-
conde ou que, entre as árvores, subia uma fumaça que poderia indicar
um princípio de incêndio. Se ela fosse do corpo de bombeiros, é possível
que a sua atenção se voltasse automaticamente à fumaça. Se fosse uma
criança também brincando de pique-esconde teria visto rapidamente a
criança agachada. Todavia, ser quem ela é a possibilitou ver as árvores,
as pessoas, sentir a brisa e o início de um dia quente.
Essas ponderações sobre a influência da subjetividade do observa-
dor em seus relatos diferem da postura do cientista no exemplo anterior.
O cientista acredita na possibilidade de alcançar a neutralidade de suas
descrições, agregando valor a elas enquanto reprodutoras fidedignas de
uma realidade externa. Já o relato da moça sobre o que acontece do lado
de fora da janela é questionado por alguém que não acredita na possibi-
lidade de sermos neutros em nossas narrações sobre o mundo. Sendo as-
sim, a nossa subjetividade sempre entraria em cena, influenciando qual-
quer tentativa de conhecimento sobre o que está fora ou dentro de nós.
Comparando esses dois exemplos, percebemos que se modifica o en-
tendimento de como acontece a relação sujeito-objeto, sendo que, no
primeiro exemplo, essa relação poderia acontecer de modo objetivo,
mas no segundo, não. Nos dois casos, porém, sujeito e objeto são vistos
como separados. E se esse não fosse o caso?
É na direção da resposta a essa pergunta que Gergen (1994) nos
convida a ir quando apresenta esse primeiro pressuposto. Poderíamos
afirmar que o que é tomado como objeto nos exemplos anteriormente
citados (o cientista, a moça, os elementos químicos, as árvores) só se
torna objeto porque alguém o reconheceu dessa forma. Sendo assim,­
o cientista participa da construção da realidade dos elementos químicos
e a moça, da construção da realidade das árvores, e das senhoras do lado

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de fora da janela. Não seria possível separar, como uma realidade em si


mesma, o elemento químico do cientista que o reconhece como tal. A
separação sujeito-objeto é posta em xeque.
Neste momento, vou citar o que eu considero uma boa história
para falar dessas diferenças. Ela foi narrada por Walter Anderson, no
livro Reality isn’t what it used to be, de 19901. Aqui, farei uma adap-
tação da história para o cenário brasileiro. Imaginemos um campo
de futebol lotado de torcedores para um jogo entre Palmeiras e São
Paulo. No jogo, acontece um lance que os palmeirenses têm certeza
de se tratar de um legítimo gol. Os são-paulinos gritam de volta, afir-
mando com convicção que se tratou de um impedimento do jogador
do time adversário. Três juízes de futebol são chamados a tomar uma
decisão para que se possa dar continuidade ao jogo. O primeiro juiz
avalia a situação e atesta: “Existem lances válidos (gol) e impedimen-
tos e eu os nomeio tal qual eles são.” Esse juiz pode ser considera-
do um realista. Ele acredita em uma realidade externa que pode ser
descrita da forma como ela é. Um gol é um gol, um impedimento é
um impedimento. As regras do jogo, o tira-teima2 e o rigor em sua
observação garantiriam que sua decisão sobre se foi ou não um gol
é a decisão correta.
O segundo juiz, porém, não concorda com essa certeza do primeiro
profissional. Ele afirma: “Existem lances válidos (gol) e impedimentos e
eu os nomeio tal qual eu os vejo.” Esse homem entende que as caracte-
rísticas pessoais de um juiz podem influenciar sua decisão. E se ele for
palmeirense? Ou são-paulino? E se estiver se sentindo tão pressionado
a acertar que, mesmo olhando o tira-teima, sua visão seja influenciada
por seu estado emocional? E não estamos considerando um juiz mau-

1
Essa história foi citada por Spink e Menegon (1999) ao apresentarem a crítica
construcionista social ao realismo e ao subjetivismo.
2
No futebol, tira-teima é o sistema virtual televisivo que permite gravar e rever
momentos do jogo em câmera lenta para verificar uma jogada que dividiu opiniões.

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capítulo 2 | 55

-caráter, que deliberadamente favoreceria um time prejudicando o ou-


tro. Esse segundo juiz está falando sobre os aspectos subjetivos que não
poderíamos controlar e que nos possibilitariam falar das coisas apenas a
partir de um ponto de vista pessoalizado.
Mas temos o veredicto de um terceiro juiz a considerar. Ele afirma:
“Existem lances válidos (gol) e impedimentos e eles nada são até que eu
os nomeie.” Podemos tratar esse juiz como levando em conta o primei-
ro pressuposto apresentado por Gergen, afirmando que gols ou impe-
dimentos só se tornam realidades porque são construídos dessa forma
nas interações humanas. Ou seja, fora de nosso conhecimento sobre as
regras de futebol, gols e impedimentos poderiam nunca se tornar reais
para nós. Para avançar na compreensão dessa afirmação, passemos ao
segundo pressuposto gergeniano.

2. Os termos e as formas por meio das quais alcançamos o entendimen-


to do mundo e de nós mesmos são artefatos sociais, produtos de trocas
históricas e culturalmente situadas entre as pessoas.

Esse pressuposto indica que não existe um jeito melhor de descrever


as coisas, um jeito correto, porque para descrever algo ou julgar descri-
ções como corretas ou falsas sempre utilizamos parâmetros construídos
em nossas trocas linguísticas. Para avaliar o mundo, não é possível pisar
fora de todas as tradições das quais participamos. As nossas descrições
são produto de nossa imersão nos relacionamentos.
Pensemos nas implicações desse pressuposto. Para tanto, temos o
exemplo da escolha do nome de um bebê. Nada nas características fí-
sicas de um recém-nascido ou em seu comportamento exige que ele
seja chamado de Paula e não de Andreia. A escolha do nome é fruto
das negociações empreendidas em uma dada comunidade em um dado
momento histórico. As preferências de um pai e de uma mãe por um
ou outro nome refletem as histórias culturais aprendidas durante toda
sua vida. Essas histórias falam de como alguns nomes são de pessoas

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socialmente reconhecidas como famosas, outros são de personagens de


TV que eram vilões, mocinhos etc.
Não só nomes de pessoas são convenções sociais, mas qualquer no-
meação de qualquer coisa que vai ser tomada como objeto. Um exemplo
sobre esse aspecto é a questão da homossexualidade. Considerando-se
diferentes momentos históricos, a homossexualidade já foi entendida
como um quadro psiquiátrico a ser tratado, como fruto de componen-
tes genéticos, como estilo de vida ou como característica pessoal. Em
todas essas descrições, o objeto homossexualidade se constrói como um
“algo” que precisa ser compreendido. Nesse processo, torna-se real para
nós, circunscrevendo algumas formas de se pensar a sexualidade e dei-
xando de fora outras descrições possíveis, que poderiam nem tomar a
divisão hetero e homo como necessária.
A forma como descrevemos a nós mesmos também parte de con-
venções sociais. Quando me descrevo como um eu, só o faço porque,
por meio de minhas trocas sociais, tenho conhecimento do discurso do
indivíduo que, tradicionalmente, compõe a ideia de um eu autocontido,
ou seja, de um eu separado de um outro. Por participar dessa tradição,
posso tratar-me como alguém que sofre influência do mundo externo,
mas que é capaz de pensar por si mesmo, de tomar decisões e de agir
no mundo. Nessa lógica discursiva, minhas ações são de minha respon-
sabilidade e meus erros podem ser punidos individualmente. Tratar a
ideia de um eu autocontido como um artefato social é reconhecer que
outras possibilidades de construção identitária são possíveis. Tratarei
das implicações desse pressuposto para construção do eu mais adiante.
Por hora, interessa explorar que, ao entendermos qualquer descrição
sobre o mundo como produto de trocas situadas entre as pessoas, esta-
mos nos posicionando contra verdades absolutas.
No discurso construcionista social, toda verdade é uma verdade
com “v” minúsculo, ou seja, é uma verdade porque alguma comunidade
a legitima como tal, utilizando-se para essa definição parâmetros histó-
rica e culturalmente construídos. Não é possível, por essa razão, falar-

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capítulo 2 | 57

mos em Verdades com “V” maiúsculo, que seriam verdades que não po-
deriam ser contestadas por sua contextualidade, que se sustentariam no
espaço e no tempo independentemente de quem as descreve como tal.
Até as verdades descobertas pelo cientista do exemplo anterior se-
riam, no discurso construcionista social, verdades com “v” minúscu-
lo, uma vez que sua legitimação depende da crença de que o método
científico, com seu rigor, controle de variáveis e capacidade de experi-
mentação, poderia levar à produção de conhecimentos objetivos, ge-
neralizáveis e incontestáveis. No entanto, tal modo de entender o que é
ciência não é a único. Como veremos ao longo deste livro, outros enten-
dimentos convivem com a forma tradicionalmente aprendida do que é
conhecimento científico.
Porém, se as descrições não se sustentam fora dos acordos culturais,
por que temos a impressão de que vários fenômenos permanecem imu-
táveis ao longo do tempo? O próximo pressuposto nos ajuda a respon-
der a essa questão.

3. O grau em que uma dada explicação do mundo ou do eu é sustentada


no tempo não é dependente de sua validade objetiva, mas das vicissitu-
des do processo social.

Se, como argumentado anteriormente, uma descrição não pode se


sustentar por uma adequada relação com um mundo externo inde-
pendente, como poderemos decidir entre diferentes descrições sobre o
mundo? Em outras palavras, se o conceito de objetividade não serve
para validar nossos relatos, se existem várias verdades com “v” minús-
culo que podem ser contraditórias, se não é possível contestá-las a partir
de uma tradição discursiva distinta da que a originou, como se posi-
cionar frente aos acontecimentos? Como fazer escolhas? Como viver
em comunidade sem cair no caos? Como viver em um mundo no qual
qualquer valor moral é tomado como referente a um modo de ser no
mundo contextualizado em sua produção?

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Esses próprios questionamentos só podem ser elaborados porque,


cultural e historicamente, foi construída a importância da descoberta de
verdades objetivas como forma de balizar as ações humanas. Apenas em
uma tradição na qual acordo, consenso e certezas são considerados ne-
cessários para a organização social seria um problema uma vida social
na qual sejam valorizadas múltiplas verdades.
Gergen aponta o conceito de utilidade social como alternativa ao
conceito de objetividade enquanto parâmetro para avaliação das expli-
cações do mundo. As explicações vão sendo negociadas pelas pessoas, e,
ao serem consideradas úteis para dar conta de explicar as coisas, passam
a direcionar práticas e podem ganhar o status de verdadeiras. O concei-
to de utilidade aponta para os processos microssociais de legitimação
das explicações. Para decidir se algo é ou não útil, não basta que uma
pessoa o afirme como tal, é necessário que, coletivamente, acordos se
construam designando tal explicação como importante.
Quando tomo o conceito de objetividade como fundamental para
decidir se uma explicação é verdadeira, tomo a comprovação científica
como o único caminho para relatos acurados sobre o mundo. Outras
explicações, como as do senso comum, místicas ou religiosas, não pode-
riam ser consideradas verdades. Todavia, quando entendo objetividade
como uma construção social, qualquer afirmação, derivada do uso do
método científico tradicional ou de conversas cotidianas entre as pes-
soas, é candidata a ser tomada pelas pessoas como verdades contextuais.
Nessa eleição, os discursos sociais vigentes (como o discurso tradicional
em ciência, que acredita em verdades generalizáveis e conhecimentos
universais, ou o discurso pós-moderno, que critica as generalizações e
universalidades do conhecimento) participam da decisão de destaque
de uma ou outra verdade).
O exemplo de um transtorno alimentar pode ajudar a pensar de que
forma as explicações sobre comportamentos alimentares são construí-
das de maneiras distintas dependendo do momento histórico e das prá-
ticas de cuidado estabelecidas. No século XIX, os médicos William Wi-

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they Gull e Ernest Charles Lasegue escreveram, pela primeira vez, sobre
uma condição psicopatológica batizada de anorexia nervosa. Para esses
médicos, era a descoberta de um novo transtorno mental. Entendida
como uma entidade nosológica, a anorexia nervosa passou a ser com-
preendida pela comunidade científica como um objeto de intervenção
e tratamento. O que aconteceu nesse processo foi a construção de uma
psicopatologia chamada anorexia nervosa.
Participa da construção da explicação desse transtorno alimentar o
discurso biomédico que defende a existência de uma “realidade lá fora”
passível de ser identificada. Tal realidade seria a realidade da anorexia
nervosa.
Mudando o momento histórico, em meados da década de 1980, as fe-
ministas teceram críticas com relação a essa definição da anorexia nervosa.
Tais autoras questionavam que as práticas de medicalização não estavam
nomeando uma condição com existência em si mesma, mas participan-
do da construção dessa condição. Assim, outras formas de descrição do
comportamento alimentar feminino foram sendo delineadas, tais como:
negação da alimentação como resposta à pressão de uma sociedade pa-
triarcal (ORBACH, 1986; CHERNIN, 1986; MACLEOD, 1981); a magre-
za feminina como resistência à submissão das mulheres (BORDO, 1988);
anorexia nervosa3 como fruto de práticas discursivas (HEPWORTH,
1999; MALSON; USSHER, 1996); anorexia nervosa como criação do dis-
curso biomédico (BELL, 2006); e anorexia nervosa como construção so-
cial (DURAN et al., 2000).
Voltemos ao terceiro pressuposto de Gergen para relacioná-lo a esse
exemplo. Segundo o discurso construcionista social, a explicação da
anorexia nervosa é sustentada nas práticas de saúde atuais, pois descre-
ve objetivamente uma realidade psicopatológica. Ela se sustenta porque

3
O uso de maiúsculas e minúsculas, nesse caso, serve para diferenciar o entendi-
mento do discurso biomédico da Anorexia Nervosa como uma entidade e outros
que entendem anorexia nervosa como uma construção social.

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diferentes pessoas se engajam em práticas sociais que garantem o status


de real aos transtornos alimentares. Isso não é o mesmo que afirmar
que existem diferentes formas de nomeação de um mesmo fenômeno,
que seria chamado por alguns de transtorno alimentar e por outros, por
exemplo, de prática discursiva. O que está sendo proposto é justamente
que os processos de nomeação constroem a maneira como esse fenôme-
no será considerado.
Portanto, se uma explicação do mundo só se sustenta pelas trocas
sociais, a linguagem não é a representação da realidade, mas a constru-
tora de realidades sociais. É esse argumento que Gergen elabora em seu
quarto pressuposto.

4. A linguagem deriva seu sentido dos encontros humanos a partir da


maneira que funciona dentro dos padrões de relacionamento.

Tal pressuposto está conectado à forma como o filósofo Wittgenstein


entende a linguagem como derivada de seu uso social. Em seu livro In-
vestigações filosóficas, escrito em 1999, ele aborda a noção da linguagem
como ação, em contraposição ao entendimento da linguagem como
representação. Ele se utiliza do exemplo da construção de uma casa e
aborda a conversa entre um pedreiro e seu ajudante. O pedreiro pede
um tijolo e o ajudante traz um tijolo. O ajudante traz o objeto correto
pelo uso ostensivo da palavra tijolo, ou seja, ao longo de sua vida, sem-
pre que as pessoas falavam de tijolos apontavam para um mesmo objeto,
com formato retangular, cor amarronzada e feito de terra. A enunciação
de uma palavra e sua relação com o que vai ser considerado o “objeto
tijolo” foi assim construída. O mesmo ocorre com a nomeação de todos
os demais objetos.
Nessa perspectiva, a linguagem é ação no mundo. Ao assumirmos
essa dimensão pragmática da linguagem só podemos entender qualquer
termo, palavra, gesto ou expressão a partir dos padrões de relaciona-
mento que lhes deram origem. Wittgenstein chama esses padrões de

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jogos de linguagem. Um exemplo oferecido pelo autor para entender esse


conceito é o exemplo do jogo de xadrez. Afirmações como: “xeque-ma-
te”, “ameacei seu rei”, “sua peça foi capturada”, “o cavalo só pode se mo-
ver em L”, ou “o peão não pode andar para trás” só fazem sentido dentro
do jogo de linguagem do xadrez. Somente por conhecermos as regras
desse jogo garantimos a inteligibilidade de tais afirmações.
Podemos pensar outros exemplos, comuns ao campo psicológico.
Afirmações como “sua recusa evidencia o uso de um mecanismo de de-
fesa”, ou “ele já está condicionado a agir dessa maneira”, ou “ele parece
carecer de habilidades sociais adequadas” só fazem sentido se consi-
derarmos os jogos de linguagem próprios do campo da psicologia. Os
não psicólogos podem considerar essas frases bastante esquisitas e terão
dificuldade de continuar uma conversa que exija um conhecimento an-
terior das teorias psicológicas que sustentam entendimentos específicos
dessas afirmações.
As mudanças sociais sempre produzem novos jogos de linguagem.
Por exemplo, o termo “twitar” só faz sentido para quem está familiriari-
zado aos jogos de linguagem próprios dos participantes das redes sociais
na internet, especificamente para os que conhecem a rede social Twitter.
Fora desses jogos de linguagem a palavra twitar cai no non sense.

5. Avaliar as formas de discurso existentes é avaliar padrões da vida


cultural.

Esse quinto pressuposto aborda uma das implicações de assumirmos


os pressupostos anteriores. Como nos diria Wittgenstein, se não há um
elo que ligue obrigatoriamente as palavras às “coisas” as quais elas se
referem, se são as trocas discursivas que dão esse caráter de “coisa” ao
mundo, às pessoas, aos sentimentos, aos problemas, às soluções, é pos-
sível fazermos a seguinte pergunta: E se essas “coisas” não precisassem
ser da maneira que são? Tomar a linguagem como construtora de rea-
lidades é tornar-se responsável pela avaliação crítica das formas de vida

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que elas constroem. Wittgenstein escreveu que diferentes jogos de lin-


guagem definem diferentes formas de vida, ou seja, rituais específicos de
relacionamento entre as pessoas. No jogo de linguagem do xadrez, por
exemplo, formas de vida nas quais as pessoas se colocam como oponen-
tes umas das outras se configuram. Nos jogos de linguagem no campo
da psicologia, formas de vida nas quais as pessoas contam seus proble-
mas e os psicólogos as interpretam é uma das configurações possíveis.
Tomemos o exemplo da maternidade. Historicamente, diferentes
discursos sobre o papel da mulher no cuidado dos filhos foram sen-
do delineados. Hoje, essas diferenças convivem no discurso do amor
materno, que preconiza a ideia de um amor natural de toda mãe por
seu filho; no discurso da importância da emancipação feminina, que
garante a possibilidade de uma mulher ter filhos e deixar de ser dona de
casa para trabalhar; no discurso da maternidade como opção, que de-
fende que nem toda mulher tem que ter filhos para se sentir realizada
ou feliz; entre outros. Tais discursos podem se complementar ou entrar
em contraposição. Quando os discursos se sustentam na crença em um
real (por exemplo, o amor materno), é mais difícil uma convivência pa-
cífica com discursos que afirmam o contrário. Contudo, quando pensa-
mos nos discursos como produtos das interações humanas, não como
representações do real, podemos avaliá-los a partir da inteligibilidade4
que os originou.
Avaliar as formas de vida construídas nos jogos de linguagem nos
quais participamos é uma ação que nos posiciona como corresponsá-
veis pela manutenção do status quo. Tal posicionamento é chamado por
Gergen de reflexividade crítica, ou seja, a oportunidade de percebermos
nossa participação na manutenção de determinados rituais sociais. Nes-
se posicionamento, como coloca o autor, deveríamos nos questionar so-

4
Gergen (1997) define um núcleo de inteligibilidade como um corpo de propo-
sições teóricas, metateóricas e metodológicas comuns entre os membros de uma
dada comunidade, por exemplo, uma comunidade científica.

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bre quem ganha e quem perde com a continuação desses rituais sociais
ou o que ganhamos ou perdemos ao construir o mundo de uma forma
e não de outra. O principal efeito desse pressuposto está no convite para
questionarmos o que tomamos como óbvio, especialmente nos cenários
relacionais onde conflitos emergem, dificuldades se apresentam e pro-
blemas são reificados.
Isso não quer dizer que, ao assumirmos o caráter construído do mun-
do, precisamos, necessariamente, questionar tudo e todos. Sem nossos
acordos sobre realidades dificilmente conseguiríamos sobreviver no dia
a dia. Precisamos de entendimentos comuns sobre o que significa a luz
vermelha em um semáforo, por exemplo, para que as pessoas consigam
dirigir nas cidades que adotam esse código. O questionamento passa a
valer a pena nas situações em que a nossa avaliação das realidades cons-
truídas é negativa, quando conflitos são identificados, quando grupos
sociais são marginalizados ou quando boas trocas sociais são impedi-
das. Nesses cenários, a reflexividade crítica ajuda na problematização do
que está sendo tomado como óbvio, em um esforço de desfamiliariza-
ção (SPINK; FREZZA, 1999) e de busca de alternativas. Uma ressalva é
importante quanto a esse pressuposto. Qualquer avaliação que façamos
das realidades construídas é também uma construção social. Ou seja,
qualquer parâmetro utilizado para questionar o que está sendo toma-
do como óbvio é contextualmente produzido. Qualquer construção do
bom ou ruim parte sempre de uma tradição discursiva.

Estranhamentos, críticas, dúvidas e curiosidades

Quando, pela primeira vez, apresento esses pressupostos aos meus alu-
nos costumo ouvir alguns estranhamentos, críticas, dúvidas ou curio-
sidades. As colocações de meus alunos são, em muitos momentos, as
mesmas feitas pelos críticos aos teóricos do movimento construcionista
social nas últimas décadas (GERGEN, 1994). A primeira delas:

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1. Eu já ouvi ideias parecidas em outro lugar.

Um movimento em ciência não nasce de uma hora para outra. Ele


vai se constituindo a partir de muitas trocas com discursos, ideias e teo-
rias que já se fazem correntes no uso cotidiano. Além disso, diferentes
movimentos em ciência podem se assemelhar por buscarem responder
às mesmas críticas sociais postas em um mesmo momento histórico.
Sendo assim, é possível fazermos aproximações entre o discurso cons-
trucionista social e outros discursos contemporâneos.
Gergen, em seu livro Realities and relationships (1994), destacou três
movimentos sociais que influenciaram o movimento construcionista
social e que, por essa razão, possuem pontos de aproximação. São eles: a
crítica ideológica, a crítica retórico-literária e a crítica social. Em espe-
cial, essas três críticas têm em comum o questionamento da linguagem
como representação do mundo.
A crítica ideológica problematizou a tradição empirista em ciência, que
entende como possível a neutralidade do pesquisador em seus relatos. Os
críticos ideológicos se esforçaram em apontar, nos textos científicos, os
vieses ideológicos, crenças, valores e preconceitos que estavam sendo to-
mados como descrições neutras de uma realidade. Essa crítica, portan-
to, influenciou o movimento construcionista social na medida em que
chamou atenção para a necessidade de contextualização da produção
científica. Alguns críticos ideológicos, porém, entendem ser possível, a
partir da posição que ocupam, identificar quais são esses vieses e pre-
conceitos, como se pudessem ocupar um lugar privilegiado de análise
dessas produções. Segundo os pressupostos construcionistas sociais, a
própria descrição sobre qual é a crença ou valor defendido em um relato
científico é também uma construção social.
A crítica retórica-literária apontou que os relatos científicos não são
determinados pelos objetos que descrevem, mas pelas convenções lite-
rárias. Ou seja, não seria possível falar de uma realidade em si mesma,
independentemente das construções textuais que as produziriam. A in-

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fluência dessa crítica no movimento construcionista social está no ques-


tionamento da relação de representação entre um objeto e sua descrição.
Essa crítica se afasta dos pressupostos construcionistas sociais na medida
em que toma o texto como um si mesmo, como um existente, e não como
uma produção humana, também passível de contextualização.
A crítica social enfatizou a contingência histórica e cultural do co-
nhecimento científico dado como legítimo e, nesse sentido, influenciou
o movimento construcionista social ao querer entender o contexto cul-
tural em meio ao qual as ideias sobre o mundo se formam. Todavia,
diferentemente dos autores do movimento construcionista social, os
críticos sociais, tais como Max Weber, Max Scheler e Karl Mannheim,
tomam os processos sociais como existentes em si mesmos.

2. Que os fatos sociais são socialmente construídos eu até aceito, mas o


que o discurso construcionista social diz dos fenômenos naturais? Que
eles são socialmente construídos? Isso é difícil de aceitar.

É comum que as pessoas, ao ouvirem pela primeira vez os pressupos-


tos construcionistas, questionem criticamente se os seus autores não es-
tariam negando realidades óbvias como a pobreza, a poluição, o corpo
ou a morte (GERGEN, 2009a; IBÃNEZ, 2001). Ou negando que o Sol se
põe toda noite, que existem as estrelas ou a gravidade... Para esses críticos,
a afirmação de que as realidades são socialmente construídas não daria
conta de explicar tais fenômenos. A resposta a essa indagação está no en-
tendimento da proposta construcionista social. Como nos alerta Gergen
(2009a), é importante percebermos a diferença entre assumir uma postu-
ra relativista com relação à construção de realidades e de afirmarmos que
nada existe. Ao assumirmos que qualquer afirmação sobre a essência das
coisas nasce de acordos relacionais linguísticos não negamos a existência
de um mundo material ou de eventos físicos. O que se está propondo é
olhar tais afirmações não como fundamentalmente reais. No momento
em que começamos a falar do real, entramos no mundo discursivo.

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Com relação a essa crítica, Hacking (1999) problematiza a noção


de construção social propondo não um “construcionismo universal”,
mas o esclarecimento do que está sendo tomado como socialmente
construído. Ele usa, como exemplo, a construção de X, sendo X um fe-
nômeno qualquer. O autor afirma que X é composto em uma comple-
xa matriz de instituições, materiais, procedimentos, ações e discursos.
Chamar todos os elementos dessa matriz de sociais pode se justificar
no fato de que o que interessa para nosso estudo é o sentido de todos
esses elementos para as pessoas, mas a sua materialidade não deve ser
questionada.
O principal a ser considerado é que, ao tomarmos algo como fun-
damentalmente real, fechamos a possibilidade de diálogo com grupos
e tradições que defendem o mundo de forma diferente. Como afirma
Ibãnez (2001), afirmações realistas podem funcionar a favor de formas
de vida produtoras de relação de dominação, uma vez que não levam em
conta o caráter historicamente situado das construções do real. Nesse
sentido, afirmações absolutistas promovem a verdade como indepen-
dente das transformações sociais, portanto imutável e inflexível. Tal
postura, para Ibãnez, impede um compromisso ético e político de as-
sumirmos a responsabilidade pelas nossas afirmações sobre a realidade.

3. “O construcionismo social” afirma que o que tomamos como real é


socialmente construído. E essa afirmação também não é uma constru-
ção social?

Sim. Os próprios pressupostos construcionistas sociais anterior-


mente apresentados são construções sociais e não candidatos à verda-
de última sobre como as coisas são. Portanto, devem ser considerados
dentro de seu contexto histórico e cultural de produção. Além disso,
devem ser constantemente problematizados com relação aos dispositi-
vos literários e retóricos que utilizam, quais valores privilegiam e quais
vozes silenciam.

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Assim, não é possível desmerecer o conhecimento construcionista


social por meio da referência a verdades objetivas ou critérios transcen-
dentais, uma vez que o próprio construcionista não se posiciona como
detentor de verdades universais. A perspectiva construcionista social é
um discurso, e, como tal, oferece algumas opções linguísticas para es-
timular as conversas entre as pessoas. É um convite para uma forma
particular de relacionamento, para uma forma de vida, e sua postura de
não se assumir como “a” verdade abre espaço à emergência de sentidos
alternativos e à discussão de sua funcionalidade nos relacionamentos.
Dessa forma, o convite é para que a crítica possa acontecer não a par-
tir do tradicional jogo de linguagem do cenário acadêmico, no qual uma
teoria tem que estar errada para outra estar correta, mas sim para que seja
uma crítica atenta a se o discurso construcionista social está sendo capaz
de oferecer novos recursos para ação entre as pessoas (GERGEN, 2009a).

4. Assumir o discurso construcionista social me parece favorecer um


relativismo absoluto, onde tudo é possível e justificado.

Afirmar que nossas proposições sobre o mundo são contextuais e


que verdades são construídas não reflete uma falta de preferência por
certos modos de vida ou uma incapacidade de se posicionar. Como co-
loca Ibãnez (2001), um relativista não afirmaria que toda posição é tão
boa como qualquer outra. O que ele propõe é que qualquer posição é
equivalente com relação a sua fundamentação última, que é nula para
todas. É nesse sentido que são consideradas equivalentes. Como alguém
que participa de algumas tradições discursivas específicas, o relativista
terá suas construções de certo e errado, de justo e injusto, de bom ou
ruim. No entanto, ele não toma o critério de fundamentação como base
para essas decisões. Ou seja, o relativista é chamado para o exercício da
autorreflexividade na avaliação de suas escolhas, e inclusive na avaliação
de sua própria posição relativista e nos efeitos de assumir essa postura
no mundo.

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68 | construcionismo social

Uma conversa com um aluno me inspirou o exemplo de um conflito


entre um personagem representando o marxismo e outro as ideias pós-
modernas. Nesse conflito, o primeiro denuncia o segundo como sendo
incapaz de defender o povo das óbvias ações de submissão da classe
dominante. Nesse caso, o que se está tomando como real são as relações
de poder entre uma classe dominante e outra dominada. Nesse cenário,
o personagem pós-moderno, defensor de um relativismo radical, estaria
sendo acusado de não tomar como verdade essas relações e, dessa for-
ma, prejudicar a população por não pensar estratégias de combate a tal
forma de vida.
Eis um exemplo interessante de ser explorado em termos do posicio-
namento relativista radical. Ao tomar as relações de poder como exis-
tentes em si mesmas, o personagem marxista pode propor medidas de
justiça social, mas, ao mesmo tempo, considerar errônea qualquer leitu-
ra que não tome essas relações como verdadeiras. Além disso, a morte
declarada à pós-modernidade e ao relativismo parece ter relação com o
fato de se assumir que o personagem pós-moderno ficaria sempre em
cima do muro, esquivando-se de sua responsabilidade ética e política de
transformação social. Uma resposta possível do personagem pós-mo-
derno poderia ser que ele não considera as ideias marxistas erradas e
dignas de serem abandonadas, mas passíveis de serem consideradas em
termos das práticas que sustenta. Quando deixamos de nos preocupar
com as essências do mundo, passamos a olhar para as teorias huma-
nas como performances possíveis para construção de realidades mais ou
menos adequadas, sendo a avaliação dessa adequação sempre realizada
de forma contextualizada.
Dizer que as realidades são socialmente construídas não é afirmar a
possiblidade de construirmos o mundo e as pessoas da forma como qui-
sermos. Tal possibilidade está circunscrita pelos critérios socialmente
compartilhados de definição dos objetos, realidades e verdades. Depen-
dendo do critério, um recorte do real será feito.

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capítulo 2 | 69

5. Para os psicólogos, não seria uma grande perda o abandono da crença


em uma experiência pessoal?

Muitas teorias psicológicas modernas se sustentam na ideia de sub-


jetividade (GONZÁLEZ REY, 2005). Nesse sentido, é interessante fazer
um resgate histórico para perceber como o discurso da interioridade
ou da subjetividade foi se tornando muito caro à sociedade ocidental,
balizando várias de nossas práticas cotidianas e garantindo a legitimi-
dade de muitas de nossas instituições. Propostas de educação são feitas
pensando-se em mentes individuais que devem ser ensinadas, a demo-
cracia é colocada em prática acreditando-se que decisões podem ser
individuais, a justiça é defendida a partir da ideia da agência pessoal e
da responsabilidade individual pelos comportamentos humanos (GER-
GEN, 2009a). Olhando por uma perspectiva cultural, percebemos que
nem todas as culturas prescindem de uma noção de um eu autoconti-
do, com uma essência universal para compor suas trocas sociais. Tais
investigações históricas e transculturais favorecem com que possamos
tomar a experiência pessoal como um discurso e entender o self como
uma construção social, como é a proposta construcionista social. Dessa
forma, o foco das investigações passa a ser sobre a forma como vocabu-
lários de self sustentam práticas culturais específicas, impedindo outras
formas de construção identitária (GERGEN, 2001).
Por exemplo, quando tomamos o “eu” como autocontido, as relações
humanas passam a ser vistas de forma utilitária. O outro é o meio para
obter a minha realização pessoal. Dizer-se dependente é sinônimo de
fraqueza. O discurso da subjetividade, ao manter a separação eu-outro,
afirma o modelo de relacionamento entre pessoas como de causa e efei-
to. A família moldando a personalidade dos filhos, a escola moldando
as mentes dos alunos, a mídia afetando o comportamento das pessoas.
Essa forma de entendimento leva a sociedade a valorizar formas de ava-
liação individual, com a comparação entre indivíduos inferiores e su-
periores, a competição e o aumento da sensação de fracasso pessoal.

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70 | construcionismo social

Além disso, essa tradição aumenta a culpabilização e punição individual


(GERGEN, 2009a).
O discurso construcionista social incentiva iniciativas teóricas de
produção de sentidos sobre o que é ser alguém que saia de uma pers-
pectiva de isolamento individual para uma perspectiva que valorize os
processos relacionais. Dessa maneira, considera-se que no processo re-
lacional nasce a própria ideia de um “eu” (GERGEN, 2011).
Voltando à questão apontada, o abandono da crença (ou certeza) na
experiência pessoal ou subjetividade não seria uma perda para a prática
psicológica? Eu entendo, e creio não estar sozinha nesse entendimento,
que, ao apostar em uma visão relacional do self, os teóricos do movi-
mento construcionista social não estão sugerindo o abandono da visão
tradicional do eu, da causalidade ou da agência pessoal. Essas concep-
ções não estão sendo julgadas como erradas ou falsas, mas consideradas
a partir de uma perspectiva pragmática, a partir da análise de seus efeitos
nos contextos microssociais de produção de sentidos (GERGEN, 2009a).

Do que ficou e como seguimos

O objetivo principal deste capítulo é oferecer alguns conhecimentos in-


trodutórios no campo das produções construcionistas sociais. Por assu-
mir seu caráter introdutório, não me comprometi com o aprofundamen-
to de alguns pontos abordados que poderiam abrir longas e importantes
conversas. Por exemplo, a exploração das diferenças e aproximações
entre os teóricos do movimento construcionista social, o detalhamento
dos conceitos da filosofia da linguagem que embasam os pressupostos
construcionistas sociais, o resgate histórico das construções sobre self
que sustentam a necessidade de se explicar o ser humano a partir de
um mundo interno, a forma como outros pesquisadores do campo das
ciências humanas apresentam as influências históricas do movimento
construcionista social, entre outros aprofundamentos possíveis.

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capítulo 2 | 71

Ao longo deste livro, o leitor terá oportunidade de ver esses pontos


ampliados. Por enquanto, gostaria que este capítulo funcionasse como
disparador de novos diálogos, especialmente para leitores iniciantes
neste campo. Para tanto, apresento a seguir um quadro com possíveis
fontes complementares de estudo. São endereços da internet com indi-
cações de textos, vídeos e informações que podem ampliar a apresenta-
ção aqui iniciada. Desejo a todos um bom estudo!

Dicas da autora: textos, filmes ou vídeos

• Taos Institute, organização sem fins lucrativos interessada em pro-


mover o discurso construcionista social para promoção de trans-
formações sociais. Em sua página na internet é possível conhecer e
trocar informações com pessoas do mundo inteiro que, de alguma
forma, têm o discurso construcionista social informando suas prá-
ticas. A página traz também informações sobre futuras conferências
e workshops sobre essa temática ao redor do mundo: www.taosins-
titute.net/
• Página de Kenneth Gergen, professor do Swarthmore College, EUA,
onde é possível encontrar a relação de seus livros publicados e links
para acesso e download gratuito de muitos de seus textos: www.
swarthmore.edu/kennethjgergen.xml
• Página de Sheila McNamee, professora de comunicação da Univer-
sidade de New Hampshire, EUA, na qual é possível conhecer a re-
lação de seus livros publicados além de fazer o download gratuito
de muitos de seus textos, alguns em português: http://pubpages.unh.
edu/~smcnamee/
• Para os interessados no campo das práticas terapêuticas, a página de
Harlene Anderson oferece artigos, links para vídeos com palestras
sobre o assunto e divulgação de cursos para capacitação em terapia
colaborativa: http://harleneanderson.org/web/

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72 | construcionismo social

• Como definido pelo autor, a página de John Shotter é um espaço para


conhecer seus mais recentes pensamentos sobre democracias partici-
pativas, entre outros de seus interesses. Shotter é professor emérito da
Universidade de New Hampshire, EUA: www.johnshotter.com/
• No YouTube é possível encontrar vídeos de palestras proferidas por
teóricos construcionistas sociais disponibilizadas em diversas lín-
guas: www.youtube.com

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Capítulo 3
Ferramentas teórico-conceituais
do discurso construcionista
clarissa mendonça corradi-webster

O discurso construcionista social vem sendo compartilhado por vários au-


tores, de diferentes disciplinas (GERGEN; GERGEN, 2003; BURR, 2003).
Chamaremos aqui de discurso construcionista social, não de teoria cons-
trucionista social, seguindo a sugestão de Guanaes (2004) de que a palavra
“teoria” traz a ideia de algo que representa a realidade e que explica, de
modo válido e fidedigno, a natureza do mundo e das pessoas. Como
temos destacado no decorrer deste livro, esta não é uma proposta cons-
trucionista, já que o seu discurso compreende que as teorias são legiti-
madas a partir de um contexto histórico e cultural definido. Assim, ao
chamarmos de discurso construcionista social, convidamos o leitor a
não aceitá-lo como a verdade, mas a tratá-lo como mais um modo de
construir um entendimento sobre o mundo e sobre as pessoas.
De acordo com este discurso, a experiência humana é construída
em um contexto histórico, cultural e linguístico. Algumas ferramentas

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74 | construcionismo social

teórico-conceituais são compartilhadas pelos autores construcionistas e


auxiliam a embasar a compreensão da construção dos sentidos e a refle-
tir sobre as práticas que engendram e são engendradas por tais sentidos.
Neste capítulo, abordaremos o modo como o discurso construcionista
compreende a linguagem, o discurso e o processo de construção de sen-
tidos sobre o mundo e sobre si mesmo.

Linguagem: transformações e regularidades

O discurso construcionista social propõe que, ao afirmarmos algo so-


bre o mundo, estamos construindo esta realidade no mundo e não a
representando. Não há algo dado no mundo que passivamente relata-
mos ao fazermos uma descrição. Mesmo quando pensamos em nossas
experiências pessoais, elas só passam a fazer sentido dentro do discurso.
Isto não significa que não houve um “algo que aconteceu”. Porém, ao
falarmos sobre este “algo que aconteceu”, ao descrevê-lo, já estamos en-
trando no campo da linguagem e do discurso. Desta forma, o discurso
construcionista social é ontologicamente mudo, ou seja, não se preo-
cupa em se aproximar do fenômeno e sim em saber como as pessoas
constroem sentidos sobre ele e quais ações são possibilitadas a partir
destes sentidos (GERGEN, 1999).
Dizer que a linguagem não representa a realidade, mas a constrói, é
considerar a linguagem como uma prática, ou como alguns autores
construcionistas dizem: é considerá-la a partir de suas características
performáticas (SPINK, 2004). Assim, a linguagem é considerada uma
prática social, já que diferentes descrições constroem diferentes reali-
dades, diferentes tipos de ação social. Para o discurso construcionista
social, seu papel é tão central que alguns autores afirmam que a pes-
soa não pode pré-existir à linguagem, já que é na linguagem que ela
é construída (BURR, 2003). Com isso, querem dizer que a linguagem
nos oferece uma forma de estruturar nossas experiências do mundo e

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capítulo 3 | 75

de nós mesmos. Segundo Burr, isto nos leva a duas reflexões: 1. O que
pensamos constituir o ser humano (personalidade, motivações, desejos
e sentimentos) não é intrínseco a ele. São descrições que aparecem nos
relacionamentos, a partir da linguagem, para nos auxiliar a organizar
nossas experiências; 2. Como estas características não são intrínsecas ao
homem, podem ser construídas de modo diferente, ou seja, há possibili-
dades alternativas de construção do self e dos eventos.
Algumas correntes da psicologia tratam a linguagem como algo que
representa o mundo interior do indivíduo, utilizada para traduzir o
que ele é. Para refletirmos sobre esta questão, trago o exemplo de uma
conversa realizada com Miriam (nome fictício), paciente de um ambu-
latório de psiquiatria, que fazia tratamento para dependência de álcool
(CORRADI-WEBSTER, 2009). Na conversa, Miriam se diz ansiosa,
exemplificando que, quando recebia seu pagamento, precisava logo pa-
gar suas dívidas: “Se eu recebia um dinheiro, tinha que pagar no mesmo
dia a pessoa, sabe? Hoje eu sei o que é isso, entende?” Miriam também
poderia ser descrita como responsável, por querer arcar com seus com-
promissos em dia. Ansiosa ou responsável são diferentes formas de des-
crever o modo como alguém se relaciona com determinada situação e
também constroem o indivíduo. Nesta conversa, Miriam também disse
ter ficado muito nervosa na noite anterior à entrevista, justificando que
isto aconteceu por ser uma pessoa muito controladora. Vale destacar
que tais entrevistas fizeram parte da coleta de dados de uma pesquisa de
doutorado e que o convite foi feito, por telefone, para mulheres em trata-
mento ambulatorial psiquiátrico. Miriam não conhecia a entrevistadora
nem a instituição onde a entrevista seria realizada, não compartilhava
dos códigos utilizados em contextos acadêmicos e de pesquisa e estava
sendo convidada a participar do estudo por ter recebido um diagnóstico
de dependência alcoólica e fazer tratamento para redução/cessação do
consumo. Ao final da entrevista, ela relatou sua dificuldade para dormir
na noite anterior, preocupada com sua performance e com a impressão
que causaria. Segundo ela se descreve: “Eu tenho problema com o des-

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76 | construcionismo social

conhecido, meu problema é com o desconhecido, quero ter controle de


tudo. Eu sempre fui assim, uma pessoa que tentou controlar tudo.” Tal
descrição não foi aceita pela pesquisadora, que, em seguida, pontuou:
“Vamos pensar nesta situação, Miriam. É uma situação que dá uma an-
siedade mesmo, não é? Uma pessoa que você nunca viu na vida te liga e
pergunta se você pode vir contar sua vida. Eu acho que é impossível ficar
tranquilo, certo? Pensando bem, é uma situação que causa muita ansie-
dade mesmo.” Neste exemplo, percebe-se uma negociação de sentidos
relacionada à descrição da experiência de Miriam frente à entrevista.
Ela se descreve como controladora enquanto a pesquisadora descreve a
situação de ansiedade como algo normal, considerando, dentre outras
coisas, o desconhecimento que a participante tinha do que aconteceria
nesta entrevista e o temor do julgamento social que acompanha muitas
mulheres com diagnóstico de dependência de substâncias psicoativas.
Com estes exemplos, ilustramos a reflexão de Burr (2003). Segundo
esta autora, o que pensamos constituir o ser humano não é intrínseco a
ele. Diríamos, então, que a linguagem auxilia a construir o indivíduo, não
a representar o que “realmente” se passa com ele. Miriam é ansiosa ou res-
ponsável? É uma pessoa controladora ou seus sentimentos são adequados
à situação? Estes são diferentes modos de descrever as experiências de
Miriam que, mesmo não querendo relatar de modo acertado a realidade,
terão diferentes impactos no modo como nos relacionamos com Miriam
e no modo como ela se relaciona com o mundo e consigo mesma.
Ao considerarmos que não há um modo mais correto de descrever
determinado fenômeno, buscamos conhecer o impacto das diferentes
descrições e, como nos aponta Burr, também oferecer alternativas de
construção deste fenômeno. Tomarei como exemplo o discurso médico
da adesão ao tratamento. Em muitos contextos de saúde, os indivíduos
são descritos como resistentes ao tratamento. Ao dizer que alguém é
resistente à determinada intervenção convida-se a olhar para caracterís-
ticas intrínsecas à pessoa. Entretanto, Camargo-Borges e Japur (2008)
entrevistaram mulheres que relataram não usar o medicamento pres-

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capítulo 3 | 77

crito, pois não foram bem atendidas pelo médico. As autoras relatam
que estas são pessoas geralmente descritas pelas equipes de saúde como
irresponsáveis com a saúde ou ignorantes, precisando ser educadas e
gerenciadas pelo serviço. Entretanto, nas entrevistas, elas também re-
latam não usar o medicamento como modo de se protegerem de uma
prescrição que foi percebida como tendo sido realizada sem uma boa
avaliação. Assim, estas mulheres poderiam ser descritas como pessoas
que se preocupam com a própria saúde e que praticam o autocuidado
ao não usarem medicamentos prescritos de modo não adequado. Neste
exemplo, percebe-se como certa descrição pode construir estas mulhe-
res como irresponsáveis com a saúde enquanto outra as constrói como
preocupadas consigo mesmas. Segundo nossa compreensão de lingua-
gem, nenhuma destas descrições é mais verdadeira que a outra, mas elas
convidam a diferentes práticas sociais. Se privilegiarmos as descrições
da primeira situação, ampliamos as ações de educação em saúde e de
monitoramento, buscando oferecer informações a estas mulheres, lem-
brando-as continuamente de suas responsabilidades. Se considerarmos
a segunda situação, podemos refletir sobre a postura profissional do mé-
dico, sobre as dificuldades da equipe para construir um vínculo com o
paciente e conversar com ele sobre suas queixas e terapêutica, e também
podemos avaliar o processo e a organização do trabalho nos serviços de
saúde, que muitas vezes não possibilitam contato maior dos profissio-
nais com os pacientes.
O discurso construcionista valoriza a função performática da lingua-
gem como produtora de descrições identitárias e de modos de ação so-
bre determinadas situações. Considerando que não há uma “verdade” ou
uma forma correta de descrever os eventos, as pesquisas orientadas pelo
discurso construcionista buscam diferentes formas de descrever os fenô-
menos, visando ampliar as reflexões sobre eles e as possibilidades de ação.
Voltando à entrevista de Miriam, ela se diz sem forças para lutar contra a
vontade de beber, apontada por ela como o inimigo mais difícil de ven-
cer. (“O único inimigo que eu aceito é este. É tão difícil lutar contra ele.”)

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78 | construcionismo social

Na análise da entrevista, aponto as situações em que ela relata não beber,


como durante o dia ou quando tem um compromisso familiar importan-
te. Fazendo isso, tento ampliar o modo como as experiências de Miriam
são descritas, construindo-a como alguém que consegue deixar de beber
em situações nas quais tem compromissos com outros, como no traba-
lho ou com familiares. Em um relato de pesquisa, ao ampliar a descrição
de Miriam para além de “mulher que não controla o modo como bebe”,
considerando-a como “mulher que não bebe quando se sente compro-
missada com outras pessoas”, quero convidar o leitor a considerar que, na
clínica, é importante estar atento aos relatos de momentos de controle so-
bre o comportamento de beber, buscando ampliar tais relatos e fortalecer
os usuários. Pretendo também tirar o foco do comportamento de beber
e colocá-lo na importância dada por Miriam a seus compromissos com
outras pessoas, sugerindo que tais situações poderiam ser mais explora-
das. Compreender a linguagem como uma prática social é buscar novas
formas de olhar para o relato dos usuários e de descrevê-los, compreen-
dendo que, com isto, criamos novas formas de se relacionar com eles.
Na visão tradicional de ciência, compreende-se que a mudança ocor-
re na natureza e que a linguagem a expressa, ou seja, que a ciência deve
tentar se aproximar o máximo possível da realidade e descrevê-la, com-
preendê-la, testá-la. Por outro lado, pesquisadores que baseiam seus
trabalhos no discurso construcionista social compreendem que a lin-
guagem pode provocar as mudanças. Questiona-se a neutralidade do
pesquisador e a busca pela objetividade, e considera-se que a pesquisa
também é um recurso linguístico que constrói realidades. O pesquisa-
dor está, a todo momento, fazendo escolhas que constroem uma deter-
minada visão do objeto. Ele escolhe as bases de dados de artigos que
utilizará para fazer uma revisão da literatura. Quando buscar pesquisar
algo relacionado ao consumo de drogas, por exemplo, e o faz em uma
base de dados médica (como Pubmed), tem uma revisão que aborda o
tema sob determinado prisma. Caso faça a busca em uma base de dados
das ciências humanas, como a Project MUSE, o objeto será construído

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capítulo 3 | 79

de outra maneira. Assim, os autores com quem dialoga ao fazer uma


revisão de literatura direcionarão o modo como construirá suas pergun-
tas de pesquisa e seu objeto de estudo. Em revisão de literatura sobre o
consumo de bebidas alcoólicas por mulheres, apontei uma tendência a
descrevê-las como vitimizadas pela vida, estigmatizadas pelo consumo,
criticadas por familiares e amigos e envergonhadas, construindo, deste
modo, o objeto “mulheres que consomem bebidas alcoólicas” (CORRA-
DI-WEBSTER, 2009). O motivo da literatura trazer apenas estas descri-
ções pode estar conectado ao fato de os estudos privilegiarem a inclusão
de mulheres que tiveram o consumo de bebidas alcoólicas construído
em seus relacionamentos como um problema. Os estudos, em geral,
selecionam mulheres em tratamento nos serviços especializados para
o manejo de problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas,
em grupos de autoajuda, ambulatórios psiquiátricos, hospitais gerais e
equipamentos de serviço social. São mulheres que merecem atenção,
já que relatam sofrimento e, muitas vezes, desejam mudanças. Entre-
tanto, chamei a atenção para o fato de que esta não é a única maneira
de descrever mulheres que consomem bebidas alcoólicas, havendo uma
tendência dos pesquisadores do campo de estudos de álcool e outras
drogas de abordarem a questão sempre como problema. Kuhn (1978),
ao tratar sobre os paradigmas científicos, apontou que as diferentes prá-
ticas científicas oferecem modelos que são disseminados e criam formas
particulares de tradições na pesquisa científica. Desta forma, ao assumir
determinado paradigma, o pesquisador se torna membro de uma co-
munidade científica em particular, que terá critérios estabelecidos para
a escolha das questões de pesquisa, para o processo de investigação des-
tas questões e para a forma como elas serão respondidas.
Utilizando novamente o campo de estudos de álcool e outras drogas
para ilustrar tais reflexões, observamos que são raras as questões de pes-
quisa que buscam conhecer possíveis benefícios advindos do consumo
de drogas consideradas recreativas. Dentro do paradigma adotado por
nossa comunidade científica, as pesquisas relacionadas ao uso de drogas

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80 | construcionismo social

concentram-se, predominantemente, em conhecer os prejuízos causa-


dos e em como prevenir e tratar o consumo e tais prejuízos.
Neste campo, Nutt (2009) aponta a dificuldade de se obter financia-
mentos para estudos que sugerem que determinada substância também
pode trazer benefícios, ou não causar tantos prejuízos como os preconi-
zados. Sem financiamento, tais estudos não podem ser realizados, e a im-
pressão passada ao público em geral é que todo e qualquer consumo é pro-
blemático. Falar sobre neutralidade em pesquisa, portanto, é uma falácia.
Não sendo possível garantir a neutralidade e a objetividade, e to-
mando por base que com a linguagem constroem-se realidades, os pes-
quisadores que se baseiam no discurso construcionista social procuram
estar atentos às suas escolhas e tentam fazê-las considerando o modo
como gostariam de construir seu objeto de estudo. Assim, a postura de
neutralidade dá lugar à postura do engajamento, pois, ao considerar que
o conhecimento que produz não é neutro, o pesquisador se compromete
com o que quer produzir.
Entretanto, é importante destacar que tais construções não ocorrem
de modo livre. Elas são circunscritas a um contexto histórico, cultural e
social e precisam ser legitimadas pelo meio. Assim, algumas descrições
serão mais legitimadas que outras pelos processos sociais, sendo estas
consideradas “a verdade”.
Nesta direção, destacamos que, apesar de a linguagem proporcionar
mudanças, ela também está institucionalizada através dos discursos. Os
discursos são um conjunto de significados, metáforas, representações,
imagens, histórias e afirmações que produzem a versão particular de
um objeto (POTTER; WETHERELL, 1987). É a linguagem vista a par-
tir das regularidades (SPINK, 2004). Utilizamos diversos discursos para
produzir inteligibilidades sobre as coisas, sendo que, ao redor de um ob-
jeto, há uma variedade diferente de discursos, e cada um deles nos conta
uma história diferente do objeto em questão. Eles não estão disponíveis
igualitariamente, havendo discursos mais hegemônicos ou unitários,
que assumem o status de fato e são considerados verdade, ou seja, são

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capítulo 3 | 81

descrições acertadas sobre o objeto. Utilizando o discurso médico para


compreender o consumo compulsivo de drogas, poderíamos considerá-
-lo um transtorno psiquiátrico, reflexo de múltiplos fatores biopsicosso-
ciais. Considerando o discurso do materialismo histórico dialético, en-
tretanto, poderíamos considerar o consumo compulsivo de drogas um
fenômeno influenciado pelo modo como a sociedade está organizada a
partir do capitalismo, que coloca a droga como uma mercadoria, asso-
ciada a interesses econômicos e políticos, sendo seu consumo altamente
estimulado. Diferentes discursos levam a diferentes construções do ob-
jeto, e estas diferentes construções levarão a diferentes ações/práticas.
Destaca-se, também, que cada discurso pretende representar a realidade
e clama para si o status de verdade.
Quando analisamos os discursos utilizados por uma pessoa para
construir sentidos sobre algo, em vez de falarmos sobre as opiniões ou
atitudes desta pessoa sobre tal objeto, estamos considerando que sua
fala não representa o que está dentro dela ou o que ela realmente pensa.
Segundo Burr (2003), quando queremos conhecer as opiniões e atitu-
des, estamos buscando acessar o mundo privado da pessoa, porém, ao
discutirmos os discursos utilizados pela pessoa, estamos considerando
que tais sentidos não refletem sua experiência privada, e sim sua cultura
discursiva. Os discursos seriam então o pano de fundo conceitual no
qual baseamos nossas afirmativas e sentidos, com os quais compreen-
demos o mundo e nossas experiências e construímos nossas práticas.
Foucault (2002) afirma que “os discursos são práticas que formam os
objetos sobre os quais falam” (p. 56), destacando que os discursos não
representam o objeto, mas formam tais objetos.
Como já discutido, alguns discursos são mais legitimados do que ou-
tros, e, por isso, algumas versões do mundo ganham mais credibilidade
que outras, convidando a algumas práticas e excluindo outras. Os discur-
sos, portanto, têm relação próxima com o conhecimento e com o poder.
No exemplo dado anteriormente sobre discursos relativos ao consumo
compulsivo de drogas, se utilizarmos o discurso médico que o descreve

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82 | construcionismo social

como um transtorno mental, estamos colocando nas mãos de profissionais


de saúde a responsabilidade de lidar com a questão, construindo equipa-
mentos de saúde que ofereçam tratamento para a problemática e organi-
zando a rede assistencial a partir desta compreensão. Percebe-se a relação
intrínseca entre discurso e poder. Burr (2003), ao discutir as concepções
foucaultianas de discurso, chama a atenção para o fato de que definir o
mundo ou a pessoa de determinada maneira (convidando a determinadas
práticas a partir destas descrições) é um exercício de poder.
Os discursos legitimam estruturas sociais e institucionais, ao mesmo
tempo em que estas estruturas suportam e validam os discursos. Eles
são práticas sociais e sua análise deve destacar seus efeitos e a manei-
ra como tais efeitos constroem o objeto e os modos de se relacionar
com ele, a fim de despertar uma atitude crítica sobre o tema estudado
(IÑIGUEZ, 2004). Não há discursos verdadeiros ou falsos, mas busca-se
compreender como, historicamente, efeitos de verdade são produzidos
no interior dos discursos (FOUCAULT, 2004).
Compreende-se, também, que os modos como as pessoas se apre-
sentam e como agem no mundo estão relacionados aos discursos utili-
zados. O discurso médico da dependência de drogas como doença pode
ser usado como um exemplo aqui. Ele nos disponibiliza a descrição do
indivíduo como “paciente” e não como “sem-vergonha”, descrição que é
construída pelo discurso da dependência como problema moral. Com
o discurso médico da dependência como doença, uma das possibilida-
des de ação disponibilizada é a procura por tratamento, algo que não
ocorreria com o uso do discurso da dependência como problema moral.

O si mesmo: construção relacional e discursiva

Com os exemplos trabalhados anteriormente, percebemos que a lin-


guagem também constrói modos de descrever o indivíduo, tendo um
impacto no que será tomado como sua subjetividade. O discurso cons-

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capítulo 3 | 83

trucionista social não considera que temos uma personalidade central,


nuclear e coerente, mas nos desafia a pensar em como ficariam as ca-
racterísticas que identificamos nas pessoas, como timidez, avareza, ge-
nerosidade e inveja, caso estas pessoas não estivessem em uma relação.
Os autores construcionistas propõem que tais características não são
intrínsecas às pessoas, mas construídas nos relacionamentos, com o uso
da linguagem.
A fim de construir uma inteligibilidade a respeito do si mesmo,
Langenhove e Harré (1999) propuseram a “teoria do posicionamento”.
Ela foi descrita como sendo dinâmica, diferente do conceito estático de
“papéis”. De acordo com esta teoria, as pessoas usam posições fluidas
para lidarem com as situações sociais. As posições podem aparecer na-
turalmente em um contexto conversacional ou serem dirigidas por dis-
cursos dominantes, que pré-estabelecem algum tipo de relação. Uma
posição assumida inicialmente pode ser mudada durante a relação/diá-
logo. Quando duas pessoas estão em relação, elas posicionam o outro
ao mesmo tempo em que se posicionam e são posicionadas. Trata-se de
um movimento dinâmico, na maioria das vezes não intencional.
Nestes jogos de posicionamentos, criam-se e restringem-se possi-
bilidades, ampliando ou não as possíveis descrições de si (OLIVEIRA;
GUANAES; COSTA, 2004). Quando a pessoa se engaja em uma relação,
ela traz, de suas histórias prévias, posições já assumidas, convidando o
interlocutor a sustentá-las. Caso isto ocorra, colaborará para o senti-
mento de continuidade do ser.
Sendo assim, o conceito de pessoa parte da noção de relação, ou seja,
ser alguém é negociado a todo momento na interação com outros, em
um jogo de posicionamentos com seus interlocutores. Tais posiciona-
mentos dependerão dos discursos utilizados nos diálogos, que disponi-
bilizam e restringem modos de ser.
Como os outros são múltiplos, múltiplas são as experiências que com-
põem seu mundo social e múltiplas são as posições que ocupa nos diferen-
tes contextos, frente aos diferentes interlocutores e com o uso de diferentes

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84 | construcionismo social

discursos. Assim sendo, podemos dizer que a pessoa é múltipla e, devido


à construção cultural de unicidade e permanência do self, temos este sen-
timento de identidade, de ser único (ROSSETI-FERREIRA; AMORIM;
SILVA, 2004).
Para discorrer sobre a teoria do posicionamento, vamos voltar ao
exemplo dado anteriormente, em que Miriam descreve-se como con-
troladora por ter se sentido ansiosa com a situação da entrevista. A par-
tir disso, podemos dizer que Miriam se posiciona como “controladora”,
mas tal posicionamento não é aceito pela pesquisadora, que diz à entre-
vistada que a ansiedade é comum em uma situação desconhecida como
aquela entrevista. A pesquisadora posiciona Miriam como uma “pes-
soa com emoções normais”. Percebe-se que há uma negociação entre
as duas, e que os diferentes posicionamentos estão contribuindo para
diferentes descrições feitas por Miriam sobre si mesma, impactando,
portanto, em sua subjetividade.
As possibilidades de construção do “si mesmo” também são circuns-
critas ao contexto e devem ser legitimadas por ele. Voltando ao exemplo
de Miriam, apesar de ela descrever diferentes situações em que não bebe
e mostrar que preserva seus vínculos com o trabalho, família e amigos,
é posicionada por profissionais e familiares como dependente de álcool,
já que consome bebidas alcoólicas todos os dias. Ao analisar a conversa
com Miriam, eu me perguntei: Seria possível trazer ao centro da conver-
sa as posições que ficam à margem, construindo diferentes descrições?
Que outros discursos poderiam ser usados para valorizar posiciona-
mentos que a construiriam como uma mulher forte, com recursos, com
possibilidades de empreender mudanças? Para Avdi (2005), o discurso
médico-psiquiátrico afunila os repertórios de narrativas disponíveis,
deixando pouco espaço para outras construções. A autora coloca que
este vem sendo construído historicamente como um discurso hege-
mônico, que funciona de modo a determinar critérios de normalidade,
definir posições de sujeito assimétricas para os que estão implicados no
encontro clínico e definir o que é um conhecimento válido, quem tem

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capítulo 3 | 85

acesso a ele, além de como este conhecimento deve ser comunicado e


mostrado (AVID, 2005). Vemos que os discursos impactam na constru-
ção da subjetividade e que os mais hegemônicos terão mais chances de
construí-la e de circunscrever modos de se relacionar.
Para nos auxiliar nesta discussão, trago o exemplo da entrevista que
realizei com Ana, de 54 anos, que fazia tratamento para o consumo de
bebidas alcoólicas em um hospital (CORRADI-WEBSTER, 2009). Ela
dizia perceber os grupos para alcóolatras como espaços onde os partici-
pantes eram convidados a falar apenas sobre seus problemas com a be-
bida, sobre como se sentiam frágeis frente a tais problemas e sobre suas
consequências. Participar destes grupos a deixava triste, sentindo-se
culpada e sem forças para fazer mudanças, de modo que a não partici-
pação era construída por ela como uma forma de se sentir melhor, com
mais condições de agenciamento. Descrever Ana como uma paciente
que não adere ao tratamento ou como uma mulher que vem buscando
espaços onde se sente bem possibilita diferentes construções narrativas
a seu respeito. E estas diferentes construções convidam a algumas posi-
ções. No primeiro caso, Ana está posicionada como paciente, surgindo,
portanto, uma relação assimétrica, na qual é uma pessoa com alguma
fragilidade que deve receber cuidados profissionais. Ela também está
posicionada como um caso sem sucesso, pois não segue as orientações
médicas. Tais descrições são geralmente seguidas por “paciente resis-
tente” e “paciente que nega os problemas”, posicionando os profissionais
como experts, como quem sabe o que é melhor para ela, como quem
têm as orientações certas para sua vida. Ela precisa ser convencida a
participar, e os profissionais devem apontar inclusive o modo como vem
resistindo a isto. No segundo caso, Ana está como mulher que avalia
e discrimina os espaços em que se sente bem, que sabe se cuidar. Aos
profissionais, abre-se a possibilidade de escutá-la, de pensar se há pos-
sibilidades de trabalho em conjunto, de conversar sobre quais seriam.
Ana é posicionada como alguém que tem agenciamento, o tratamento
deve ser pensado de acordo com isto e os profissionais são posicionados

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86 | construcionismo social

como pessoas que podem auxiliá-la a selecionar, construir e participar


de espaços em que se sente bem.
Outro exemplo interessante sobre a linguagem impactando na cons-
trução de si ao possibilitar algumas posições e limitar outras é destacado
por Phillipe Borgouis (2000). No seu trabalho com redução de danos
para usuários de drogas, um conhecido exemplo é o da substituição da
heroína pela metadona. Segundo o autor, alguns estudos indicam que a
metadona causa mais dependência e efeitos adversos do que a heroína,
mas a primeira é tratada como eficiente medicamento para a dependên-
cia da segunda, uma droga ilegal. Borgouis (2000) nos chama a atenção
para como estas construções impactam nas posições de sujeito possí-
veis. Ao ser tratada como droga ilícita, a heroína é comercializada por
traficantes, enquanto a metadona, ao ser tratada como medicamento, é
distribuída por serviços de saúde. Dessa maneira, o “drogado” é descri-
to como “paciente” e a “dependência” é descrita como “tratamento”. Tal
negociação de sentidos nos leva a descrever o usuário de heroína como
criminoso, antissocial e drogado, criando possibilidades para que aja
como tal. Por outro lado, o usuário de metadona é descrito como pa-
ciente e cidadão disciplinado, a caminho da recuperação, criando possi-
bilidades para que também aja como tal.
Os exemplos aqui descritos buscam ilustrar como a subjetividade e o
self são também construídos pela linguagem em nossos relacionamen-
tos, estando, entretanto, circunscritos a posições disponibilizadas pelos
discursos sociais mais hegemônicos.

Construindo sentidos sobre o mundo e sobre o si mesmo

Neste capítulo, buscamos apresentar algumas ferramentas teórico-con-


ceituais utilizadas pelo discurso construcionista social, destacando a
compreensão da linguagem e do discurso, e discutindo o impacto destes
na compreensão do mundo e do si mesmo. Com o uso da linguagem,

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capítulo 3 | 87

podemos construir diferentes versões do mundo e das pessoas, mas es-


tas construções serão sempre delineadas pelo contexto cultural discursi-
vo e pelas posições de sujeito disponibilizadas por tal contexto nos jogos
de posicionamento estabelecidos nas relações.
O pesquisador que trabalha alinhado ao discurso construcionista
social parte do pressuposto de que suas perguntas de pesquisa são in-
fluenciadas pelo contexto discursivo e que suas investigações ajudarão
a construir o objeto de determinada maneira. Portanto, em vez de bus-
car a conquista da neutralidade, ele procura, por meio de uma postura
reflexiva, compreender como suas escolhas interferem na construção
do objeto e tenta se engajar em ampliar os modos de descrição destes,
considerando que estas convidarão a algumas práticas em detrimento
de outras.

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Capítulo 4
Construcionismo social: tensões e possibilidades
de um movimento em permanente construção
carla guanaes-lorenzi

Ventana sobre la utopia


Ella está en el horizonte — dice Fernando Birri. — Me acerco dos pasos,
ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos
más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la
utopía? Para eso sirve: para caminar.
eduardo galeano, 1993/2001, p. 230

Os capítulos anteriores buscaram apresentar o discurso construcionista


social, situando inicialmente a crise da modernidade e suas implicações
para a construção de uma nova visão de ciência; sua origem, pressu-
postos e implicações; e ferramentas teórico-conceituais úteis para a
construção de uma nova orientação em relação à construção do conhe-
cimento. Vistos em conjunto, tais capítulos permitem compreender o
alinhamento do discurso construcionista com as discussões que emer-
gem na pós-modernidade e também as suas especificidades, sobretudo
no que se refere à sua natureza reflexiva, pautada na explicitação da rela-
ção entre produção de conhecimento e configuração de mundos sociais.
Partindo da ideia de que o discurso construcionista social está ga-
nhando legitimidade e visibilidade na comunidade acadêmica e na pro-
fissional (RASERA, GUANAES-LORENZI, 2013), neste capítulo quero
refletir sobre algumas tensões que atravessam esse campo de estudos na
atualidade, trazendo desafios e possibilidades para novos desenvolvi-

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90 | construcionismo social

mentos. Espero, fazendo isso, contribuir com a construção de uma visão


dinâmica de construcionismo social, em que este possa ser compreendi-
do não como um modelo explicativo (ou “ponto final” na corrida cien-
tífica pela verdade), mas como um discurso em movimento e, portanto,
em permanente construção.

Da negação à legitimidade: o movimento construcionista


social nas ciências humanas e sociais

Como apresentado detalhadamente no segundo capítulo deste livro,


data de 1985 a publicação do artigo “The Social Constructionist Move-
ment in Modern Psychology”, de autoria de Kenneth Gergen, associa-
do à inauguração do movimento construcionista social na psicologia.
No artigo, Gergen (1985) retoma um amplo conjunto de contribuições
advindas de diferentes campos de conhecimento (filosofia, psicologia,
sociologia, antropologia, entre outros) e de correntes críticas à visão
moderna de ciência, articulando-o na apresentação de uma nova for-
ma de inteligibilidade. Intitulada “construcionismo social”, esta aparece
organizada em torno de pressupostos básicos, que afirmam a centra-
lidade da linguagem, do relacionamento humano e dos processos so-
ciais, históricos e culturais na construção do conhecimento que temos
do mundo e de nós mesmos. Articulados, tais pressupostos sustentam a
tese de que a linguagem constrói mundos sociais e, portanto, destacam
a importância da investigação do processo de produção de significados
nas relações humanas.
Muito se deu desde a primeira proposta de uma investigação constru-
cionista social em ciência. Por um lado, no diálogo com outras visões de
ciência e de mundo, tal proposta foi amplamente criticada, acusada
de negar a realidade do mundo físico e material, de incorrer no relati-
vismo cultural e moral, de negar outros modos de linguagem para além
do discurso, e de ignorar a corporeidade e a subjetividade (Cromby,

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capítulo 4 | 91

Nightingale, 1999; Gergen, 1997). Por outro lado, no diálogo


com perspectivas críticas à visão moderna de ciência, tal proposta foi
acolhida como uma alternativa potente para a produção de novas for-
mas de relacionamento social, inaugurando um diálogo intenso e pro-
dutivo acerca do próprio construcionismo social e de suas implicações
teóricas e práticas (Gergen, Mcnamee, Barret, 2001). Tanto o
seu impacto negativo (sua negação e crítica) como positivo (seu acolhi-
mento e legitimação) permitiram a expansão do movimento constru-
cionista social, tendo como marca grande polissemia e heterogeneidade
(Danzinger, 1997).
Como tem sido estudado por Rasera e Guanaes-Lorenzi (2013), na
área específica da psicologia, a expansão do movimento construcionista
social se deu de modo paralelo em dois campos historicamente consti-
tuídos como distintos: a psicologia social e a psicologia clínica (sobretu-
do a terapia familiar).
No campo da psicologia social, este movimento veio atravessado
claramente pela crítica ao status quo, problematizando a naturalização
de realidades socialmente construídas como verdades essenciais e uni-
versais – aspecto que, para Ian Hacking (1999), normalmente define a
tese de autores que se dizem construcionistas sociais acerca de “X”1. Nas
palavras do autor:

O trabalho sobre construção social é crítico do status quo. Construcio-


nistas sociais acerca de X tendem a assegurar que:
(1) X pode não ter existido ou não precisa existir do modo como é. X,
ou X como é no presente, não é determinado pela natureza das coisas.
Ele não é inevitável.
Muito frequentemente, eles vão além e insistem que:
(2) X é ruim da maneira como é;

1
O X, para Hacking (1999), refere-se ao que (objetos, ideias e “palavras elevadas”,
como realidade, fatos e verdades) é dito como sendo socialmente construído.

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(3) Nós poderíamos estar muito melhor se X deixasse de existir ou, pelo
menos, se fosse radicalmente transformado (Hacking, 1999, p. 6).

Com base nessa tese, Hacking (1999) analisa os diferentes graus de


compromisso dos autores construcionistas em relação aos aspectos (1), (2)
e (3), apontando a diversidade de propostas que derivam desses três níveis
de comprometimento. Enquanto, para alguns, explicitar a natureza social-
mente construída de uma concepção tida e vivida como inevitável (o que
marcaria um construcionismo “histórico” ou “irônico”) parece suficiente
para a explicitação de uma posição construcionista, para outros, essa pos-
tura é efetivamente garantida pela busca ativa de mudança e transforma-
ção social (o que marcaria um construcionismo “revolucionário”).
Não intenciono, neste texto, tomar a análise de Hacking (1999)
como recurso para diferenciar e analisar as produções construcio-
nistas em psicologia social segundo os seus graus de compromisso,
apenas chamar a atenção para a diversidade de maneiras como elas
podem ter se efetivado nesse campo. Nesse sentido, a influência das
ideias construcionistas sociais no campo da psicologia social é notó-
ria. No contexto internacional, algumas produções são representati-
vas do movimento, aproximando o discurso construcionista social
de uma psicologia social crítica (Ibãnez, 2001; Gergen, 1997;
Parker, 1998) e problematizando posições mais essencialistas acer-
ca de realidades psicológicas e sociais, como, por exemplo, no campo
dos estudos do self (Davis; HarrÉ, 1998; Gergen, 2009; Ger-
gen, Gergen, 1988; Gergen, 1991; HarrÉ, 1998; Sampson,
1993; Shotter, 1989;), da memória (Shotter, 1990), da emoção
(HarrÉ, 1986) e da saúde mental (Gergen, 1997; McNamee,
2002). No contexto brasileiro, a influência construcionista social se
faz presente tanto na articulação de novos modos de pensar a produ-
ção do conhecimento científico (Spink et al., 1999) como em textos
que explicitam processos de construção social do conhecimento sobre
X, incentivando a transformação social. Apenas como exemplo, des-

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capítulo 4 | 93

tacam-se textos sobre questões de gênero ou sexualidade (Borges;


Spink, 2009; Moscheta, 2011; Pedrosa, 2009; Pedrosa;
Spink, 2011), sobre maternidade (Moreira; Rasera, 2010), so-
bre anorexia nervosa (SOUZA, 2011), sobre o uso do tabaco (Spink,
2010), álcool e drogas (Corradi-Webster, 2009).
No campo da psicologia clínica, a influência do movimento constru-
cionista social também tem se dado de maneira expressiva. Publicado
nos Estados Unidos em 1990, e no Brasil em 1998, o livro de Sheila Mc-
Namee e Kenneth Gergen, Terapia como construção social, exerceu uma
importante função, acolhendo sob um mesmo “guarda-chuva” práticas
desenvolvidas por autores de diferentes lugares do mundo e que tinham
em comum algumas características significadas como “sensibilidades”
construcionistas (Rasera; Guanaes-Lorenzi, 2013). Assim, o
construcionismo avançou para o campo da clínica, emprestando a este
uma nova roupagem, dada pela incorporação da crítica da construção
social (McNamee; Gergen, 1998).
Se, como afirma Hacking (1999), o trabalho sobre construção social
se mostra crítico do status quo, questionando a inevitabilidade de nos-
sas construções sobre a realidade social e psicológica, a incorporação
da crítica construcionista no campo clínico levou ao questionamento
de alguns cânones clássicos da psicoterapia (Hoffman, 1998). Dessa
maneira, descrições amplamente aceitas nessa comunidade sobre pro-
blemas de self, tratamento, mudança ou cura, e, especialmente, do lugar
do terapeuta “especialista” no processo, são postas em questionamento.
Em paralelo, alternativas de práticas terapêuticas, com indivíduos ou
famílias, sustentadas sobre diferentes bases epistemológicas, ganharam
evidência, tais como os Processos Reflexivos (Andersen, 1999), a Te-
rapia Narrativa (White; Epston, 1990), a Abordagem Colaborativa
(Anderson, 1997; Anderson; Golishian, 1998) e a Terapia So-
cial (Holzman, 2009; Newman, 1994). Ao levarem os questiona-
mentos críticos para o setting terapêutico, os limites entre a crítica social
e a prática clínica perderam muito de sua nitidez.

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94 | construcionismo social

Se, por um lado, o livro organizado por McNamee e Gergen (1998)


pode ser considerado como “articulador” de um movimento que já vi-
nha se constituindo no campo das psicoterapias em função de influên-
cias diversas2, a sua divulgação em âmbito internacional3 explicita cer-
ta importância no reconhecimento de algumas propostas terapêuticas
como “formas (construcionistas) de prática” – trazendo, com isto, as
vantagens e os riscos dessa prática discursiva.
A partir de então, outras práticas passaram a ser nomeadas como
“construcionistas”, contribuindo com o fortalecimento desse campo,
que foi muito além da terapia individual ou familiar. A extensão das
ideias construcionistas para o trabalho com grupos (Guanaes, 2006;
Guanaes; Mattos, 2008; Rasera; Japur, 2007), comunidades
ou redes de relações (Browne; Japin, 2002; Denborow, 2008;
Grandesso, 2009; Herzig; Chasin, 2006; Seikulla et al.,
1995; SluZki, 1999) é exemplo de ampliação dos diálogos construcio-
nistas, assim como todos os exemplos de práticas profissionais descritas
na segunda seção deste livro. Nestes casos, a adoção de uma sensibili-
dade construcionista social permitiu o delineamento de ações compro-
metidas com a análise crítica e reflexiva de seus efeitos na construção de
formas de vida.

2
Conforme apresentam McNamee & Gergen (1990), alguns movimentos críticos
anteriores podem ser identificados no contexto clínico, entre os quais se destacam:
a) críticas aos vieses ideológicos nas práticas em saúde mental; b) críticas advindas
de perspectivas sistêmicas; c) advento da psicologia comunitária com destaque ao
contexto sociocultural; d) reflexões de autoras feministas sobre aspectos opressivos
presentes nas práticas de saúde mental, privilegiando hierarquias, práticas de cul-
pabilização e de patologização individual; e) contribuições da hermenêutica, que
problematizavam a concepção de neutralidade do terapeuta, convidando-o a reco-
nhecer seus próprios preconceitos; f) proposições construtivistas centrais à proble-
matização sobre a separação sujeito/objeto, conhecedor/conhecido.
3
Além de sua versão original em inglês, publicada nos Estados Unidos, o livro foi
traduzido para outros idiomas, e publicado em outros cinco países: Coreia, Japão,
Espanha, Brasil e Itália.

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capítulo 4 | 95

Assim, o movimento construcionista expandiu-se e ganhou legitimi-


dade, diluindo alguns questionamentos e acentuando outros. Talvez em
função de sua própria heterogeneidade, os diálogos em torno de seus
pressupostos seguiram alimentando um campo de debates e tensões,
entre os próprios autores construcionistas ou entre estes e a comunida-
de científica mais ampla.

Debates e tensões em torno do discurso construcionista

Uma primeira tensão no campo dos estudos construcionistas refere-se


ao risco de uma definição única de construcionismo social, o que con-
tradiz a própria lógica de seu nascimento como um movimento polissê-
mico, híbrido e interdisciplinar (Gergen, 1985). A palavra “movimen-
to” pressupõe dinamismo, pluralidade e heterogeneidade – justificativa
para a existência de tantos construcionismos (Danzinger, 1997). No
entanto, a definição de pressupostos básicos de uma investigação cons-
trucionista social também parece ter sustentado, paradoxalmente, o en-
tendimento de que se trata de uma nova teoria explicativa do mundo.
Sendo assim, portanto, seria a busca por uma verdade última sobre a
natureza (discursiva e relacional) do mundo que nos cerca.
Esse tipo de entendimento levou Gergen (2011) a escrever, recente-
mente, um breve texto: “Why I am not a social constructionist” [“Por-
que não sou um construcionista social”]. Nesse texto, o autor retoma o
enfoque metateórico das análises construcionistas, ressaltando o risco
de se tomar o construcionismo como um sistema único de crença, fi-
liado a um discurso de verdade que se opõe aos demais por se afirmar
mais real ou verdadeiro. Nas palavras de Gergen (2011), as ideias cons-
trucionistas sugerem importantes reflexões acerca das implicações das
diferentes perspectivas teóricas (incluindo o próprio construcionismo)
para nossas vidas conjuntas: Como um dado sistema de ideias contri-
bui para o bem-estar humano? A quem ele beneficia e prejudica? Ele

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96 | construcionismo social

conduz a mais liberdade ou dominação? Como tais questões são atra-


vessadas por valores, as oposições radicais entre realismo, empirismo,
cognitismo, construcionismo, entre outras, devem ser vistas com sus-
peita. Com frequência, discursos oposicionistas têm como forte marca
a intolerância à diferença.
Acredito que todo esforço de definição traz limitações, pois tende
a restringir a polissemia em prol de uma aparente uniformidade. Por
outro lado, também pode favorecer a articulação de ideias em torno a
sensibilidades comuns, permitindo emergir um novo núcleo de inte-
ligibilidade (Gergen, 1997). Cabe-nos, então, superar o limite que
nos é dado pelo sufixo “ismo”, que nos distancia da crítica potente da
“construção social” e reduz a fluidez de um movimento livre das amar-
ras de um enquadre teórico com fronteiras precisamente estabelecidas.
No entanto, apenas a análise do uso das ideias construcionistas sociais
nas práticas discursivas poderá revelar como este tem se dado no coti-
diano de nossas relações acadêmicas e profissionais – se como dogma
ou como ferramenta para construção de diálogos generativos.
De certa forma, essa tensão se articula à outra, relativa à compreen-
são do construcionismo ora como teoria, ora como metateoria. Em re-
lação a este aspecto, em texto anterior, discuti a necessidade de se partir
de uma reflexão acerca de nosso entendimento de teoria (Guanaes,
2006). Num enquadre moderno, as teorias são tidas como representa-
ções da realidade, explicações válidas e confiáveis sobre a natureza do
mundo, das coisas e das pessoas. Nesse sentido, as teorias adquirem o
status de representação do real, tendo o poder de nos dizer “o que as
coisas são”. Alinhada às discussões que emergem na pós-modernida-
de sobre a ciência, a crítica construcionista social, de maneira distinta,
entende que as teorias não “representam” a verdade sobre o mundo e as
coisas, pois são construções sociais. Elas também constituem “discur-
sos”, legitimados pelas comunidades linguísticas em função de proces-
sos sociais de negociação. Como aponta Gergen (1997), vivemos em um
mundo em que nossas definições sobre o que as coisas são emergem em

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capítulo 4 | 97

contextos de relação, através de nossa participação em práticas discur-


sivas. Nesse plano de análise, o construcionismo social se desloca para
um plano metateórico, tendo como objeto de investigação o processo
de produção do conhecimento4. Por outro lado, é certamente possível
identificar no discurso construcionista um conjunto de ferramentas crí-
ticas que contribuem com a construção de certo entendimento sobre o
mundo e as pessoas. Porém, como afirma Shotter (1993), tais ferramen-
tas não se encontram ordenadas, guardadas em uma caixa à espera de
serem usadas. Elas aparecem em lugares variados, no exercício de cada
autor ao escolher suas referências e influências, perceber relações, dia-
logar com outros autores e textos5.
Como alternativa ao debate sobre o construcionismo como teoria
ou metateoria, McNamee (2004), baseada em Anderson (1997), propõe
que o construcionismo seja compreendido como uma postura filosófica,
um modo de nos relacionarmos com as pessoas e com o mundo ao nos-
so redor. Tal postura implica a adoção de uma posição reflexiva acerca
de nossas construções sociais, que analisa os efeitos que os discursos
têm na configuração de práticas sociais e na construção de selves, e no
abandono de explicações universalmente válidas sobre as pessoas e seus
relacionamentos sociais.
Acompanha tal discussão uma terceira tensão, que se refere ao posi-
cionamento construcionista em relação às questões ontológicas. Embora
inicialmente Gergen (1997) tenha afirmado ser o construcionismo social
“ontologicamente mudo” – afirmação que originou grande polêmica e
muitas incompreensões em relação às proposições construcionistas –,
Shotter (2011) analisou criticamente alguns textos do autor, concluin-

4
Tal dimensão foi explorada nos dois primeiros capítulos deste livro e será discuti-
da também no capítulo seguinte, sobre construcionismo social e prática de pesqui-
sa, escrito por Sheila McNamee.
5
O terceiro capítulo deste livro buscou apresentar algumas destas possíveis ferra-
mentas, articulando-se à reflexão de investigação proposta por Sheila McNamee,
no quinto capítulo.

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98 | construcionismo social

do que é possível reconhecer em sua obra a afirmação de uma ontologia


relacional. Segundo Shotter (2011), prevalece no discurso construcionis-
ta social de Gergen (1997, 2009) o entendimento de que a origem do
conhecimento se dá no processo de intercâmbio social, isto é, no per-
manente e complexo processo de interação das pessoas com o mundo e
seus arredores.
No entanto, este tipo de argumentação nem sempre satisfaz aos au-
tores que insistem em afirmar a corporeidade, a materialidade e o poder
como realidades dadas e inquestionáveis (Cromby; Nightingale,
1999). Estaria o construcionismo negando a realidade material do cor-
po ou centrando-se fundamentalmente em um mundo linguístico, sem
contemplar a complexidade das relações humanas para além daquilo que
é possível de ser dito ou significado? Estaria o construcionismo se es-
quecendo das relações de poder, encarnadas em nossas relações sociais,
que criam limites para as possibilidades das pessoas se constituírem e
serem constituídas de determinadas formas? Estaria o construcionismo
negando a materialidade que nos atravessa (das novas tecnologias, da
natureza, dos objetos que nos cercam, por exemplo) e que circunscreve
as possibilidades de nos relacionarmos com os nossos arredores? De
certo modo, tais questões surgem como formas de apontar os riscos de
um “reducionismo linguístico” e impulsionam novas elaborações teóri-
cas e conceituais nesse campo, favorecendo seu desenvolvimento.
Como forma de elaboração da questão ontológica, Shotter (2011)
propõe um deslocamento da ênfase preliminar dada à linguagem nos
estudos construcionistas para os relacionamentos, descritos agora como
um fluxo constante, complexo e turbulento:

Considere, por assim dizer, um carvalho nascendo de sua semente.


A semente, como tal, dá uma contribuição mínima para a substância
material do carvalho ou para a energia necessária para fazê-lo crescer.
Os materiais necessários vêm do ar, da água e do solo, enquanto a ener-
gia vem do sol. Isto tudo se move nos arredores da semente, claramente,

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capítulo 4 | 99

de um modo não muito organizado. Mas como um sistema aberto e


vivo, capaz de “absorver” aspectos selecionados desses materiais, uma
“confluência” no interior do fruto trabalha para entrelaçar as correntes
de material energizado fluindo através dele para produzir o carvalho,
que amadurece, produz sementes, morre e eventualmente se decompõe
para retornar suas substâncias materiais de volta para o fluxo não orga-
nizado de matéria inanimada de onde ele e elas vieram.

Onde, então, está a vida do carvalho? Está dentro da própria árvore?


Não. Está nas relações em desenvolvimento da árvore de carvalho com
seus arredores. De modo similar acontece conosco. (...) Apesar de ain-
da ser tão fácil para nós, em nossas formas separatistas, cartesianas de
pensamento, pensar a nós mesmos como vivendo em um mundo equi-
pado com coisas já existentes, porque, para repetir, elas frequentemente
“imitam a imobilidade tão bem que nós as tratamos como uma coisa em
vez de um processo... o ser humano é uma passagem” (Bergson, 1911, p.
134-135). Mas, se nossa atividade viva é verdadeiramente determinada
por aquilo que ainda não foi alcançado, mas que é de fato antecipado
(como sendo ao menos possível) no fluxo dos eventos que já ocorrem,
então nós devemos contemplar a possibilidade de um mundo que é
ainda vir a ser, um mundo no qual as muitas e diferentes correntes, de
diferentes atividades, entrelaçam-se, tornam-se emaranhadas umas às
outras, e então, algumas vezes, separadas, um mundo turbulento, ainda
-não-estabelecido, dialogicamente estruturado, um mundo ainda-em-
construção.

Como resultado, todo o campo de investigação psicológica deve assu-


mir um novo trajeto – especialmente se for para assumir a responsabili-
dade relacional para a criação prática de mundos que sustentam, em vez
de meramente explorar o fluxo relacional dentro do qual as confluências
responsáveis por sua emergência ocorrem. Nós devemos conduzir nos-
sas investigações do interior do centro dos processos turbulentos em

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100 | construcionismo social

fluxo, dentro dos quais as únicas estabilidades disponíveis para nós são
(....) estabilidades dinâmicas, dependentes para sua existência de sua
imersão dentro do contínuo fluxo de atividade relacional em seus ar-
redores (p. 140).

Essa problematização da retórica binária (mente/corpo, razão/emo-


ção, indivíduo/social) que, por muito tempo, foi dominante no pensa-
mento científico traz inesgotáveis possibilidades para reflexão sobre qual
deve ser o objeto de investigação das ciências humanas e sociais. Ao mes-
mo tempo, eleger como objeto de reflexão a complexidade de nossos re-
lacionamentos (com as pessoas, objetos e arredores) implica assumir que
qualquer conhecimento produzido sobre as pessoas, o mundo e as coisas
lança apenas um “pequeno feixe de luz na escuridão”... O que iluminar,
por que, como e para que devem ainda ser as questões fundamentais que
orientam nossas pesquisas e práticas cotidianas.

Possibilidades para novos desenvolvimentos

Como bem assinala Iñiguez (2005), é inegável o impacto que as propos-


tas construcionistas tiveram no campo das ciências humanas e sociais
nas décadas de 1980 e 1990, contribuindo para que muitas pessoas que
se sentiam tolhidas pelo projeto positivista de ciência encontrassem es-
paço para suas produções. No entanto, segundo o autor, passados mais
de vinte anos, é fundamental rever as contribuições desse campo, per-
mitindo que o mesmo não se reifique e se institucionalize, assim sendo
tomado pelo dogmatismo que um dia buscou questionar e combater.
Dessa maneira, o autor busca reconhecer algumas “heranças” impor-
tantes deixadas pelo movimento construcionista social, como o histo-
ricismo (ou constatação da natureza histórica do conhecimento) e sua
ênfase hermenêutica (ou caráter interpretativo do ser humano). Ao
mesmo tempo, o autor reconhece um momento “pós-construcionista”,

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capítulo 4 | 101

que se define pela emergência de outras ideias, teorias e conceitos que


hoje agregam novas possibilidades de desenvolvimento ao campo das
ciências humanas e sociais. Entre estes novos desenvolvimentos, o autor
valoriza especialmente as contribuições da teoria ator-rede, de Bruno
Latour, as contribuições da epistemologia feminista e o conceito de per-
formatividade, elaborado por Judith Butler.
Diferentemente de Iñiguez (2005), discutirei alguns desenvolvimen-
tos possíveis no interior do próprio discurso construcionista, através da
ampliação de algumas de suas ênfases. Tal escolha não se coloca em
oposição à proposta do autor, mas sim de modo complementar, como
forma de valorizar alguns elementos que considero centrais às investi-
gações construcionistas, e que, embora presentes em algumas propostas
nesse campo, podem ser ainda mais bem desenvolvidas e exploradas.
Dentre as possibilidades que surgem com a maior legitimidade do
movimento construcionista social nas ciências humanas e sociais, destaco
primeiramente o fortalecimento do movimento crítico e reflexivo acer-
ca do conhecimento científico, a partir do reconhecimento dos valores
e posicionamentos que necessariamente o atravessam. Uma vez que não
existem um dizer e um fazer neutros, é importante que os pesquisadores e
profissionais mantenham-se reflexivos sobre que práticas o conhecimen-
to que produzem sustentam, e sobre quem ganha e quem perde com as
mesmas. Uma vez que estamos permanentemente inseridos em um fluxo
contínuo de interação e diálogo, situados em um determinado tempo his-
tórico, sempre poderemos refletir sobre a maneira como temos construí-
do o mundo em que vivemos. Manter a crítica reflexiva é um importante
recurso para seguir investindo na construção de um mundo “melhor”.
É importante considerar, no entanto, que tal crítica se estende inclusive
àquilo que socialmente consideramos como melhor, haja vista que uma
das distinções do discurso construcionista social em relação ao discurso
moderno é sua recusa em assumir uma definição única e estável acerca
do bom, justo e verdadeiro, o que sustentaria sua validade local e sua uti-
lidade sócio-histórica.

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102 | construcionismo social

Em segundo lugar, a expansão do movimento construcionista nos in-


centiva a borrar os limites entre as áreas de conhecimento, valorizando a
interdisciplinaridade como recurso para o entendimento dos processos
de produção do conhecimento. Isto porque as análises construcionistas
geralmente explicitam a complexidade que atravessa a constituição dos
fenômenos psicológicos e sociais, o que exige do pesquisador o trânsi-
to por diferentes disciplinas: filosofia, história, antropologia, arte, para
além de conhecimentos específicos da temática em questão. Concorda-
mos com Spink (2010) que a produção de conhecimento envolve domí-
nios de saber teóricos e técnicos, como erudição. Nas palavras da auto-
ra, “é impossível aprisionar questionamentos e respostas decorrentes de
teoria e prática dentro de limites definidos; o conhecimento é fluido e
ultrapassa fronteiras artificiais” (p. 42).
Em terceiro lugar, reconheço que o discurso construcionista social
traz para o campo das investigações científicas um enfoque “aprecia-
tivo”, que se sustenta na crítica às consequências culturais que a hege-
monia do discurso do déficit, fruto do discurso individualista, gerou
em nossa sociedade. Autores como Gergen (1999), McNamee (2002) e
Cooperrider e Whitney (2005) analisam que nossas práticas profissio-
nais (em contextos clínicos, educacionais, organizacionais ou mesmo
científicos) têm sustentado, frequentemente, a lógica de que precisamos
“descobrir” as causas dos problemas, a partir do que desenvolvemos
diagnósticos detalhados que nos permitem, então, propor um determi-
nado tratamento ou solução para o problema. Tal forma de pensar se
baseia em uma perspectiva determinista, causal e linear que, embora
pertinente em muitas situações, mostra-se insuficiente para dar conta
de muitas questões de nosso cotidiano.
O enfoque apreciativo propõe uma inversão nessa lógica determinis-
ta de investigação, diagnóstico e solução de problemas. Se entendermos
que a maneira como nos posicionamos em uma prática ou investigação
influencia diretamente na realidade que construímos com as pessoas,
perguntar e investigar problemas geralmente contribui para a valoriza-

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capítulo 4 | 103

ção de uma cultura de déficit, em detrimento de uma cultura de recur-


sos e potenciais. Nesta perspectiva, explorar ativamente as narrativas de
recursos, potencialidades e sucesso de indivíduos, grupos e comunida-
des é um posicionamento ético e político, que ilumina aspectos frequen-
temente pouco explorados em nossa sociedade e permite flexibilizar as
metanarrativas, desnaturalizando-as.
Por último, entendo que a expansão do movimento construcionista
social vêm alimentar a esperança na criação de relações mais participa-
tivas, democráticas e corresponsáveis, favoráveis ao desenvolvimento de
um senso de comunidade, importante à vida em sociedade. Sobre este
aspecto, em entrevista realizada por ocasião de sua visita ao Brasil, em
2012, John Shotter retoma de modo bastante reflexivo o que significou,
para ele, empenhar-se no desenvolvimento das ideias construcionistas
sociais ao longo de sua trajetória acadêmica. Segundo o autor, seu com-
promisso sempre foi contribuir com a construção de uma democracia
participativa, isto é, com a construção de um mundo em que as pessoas
tenham vez e voz (Guanaes-Lorenzi et al., 2013). Entendo que este
deva ser também o compromisso dos que se dizem sensíveis, de alguma
forma, à crítica construcionista a uma ciência supostamente neutra e
asséptica.
Para finalizar, acredito que a ampliação de uma consciência cons-
trucionista social entre pesquisadores e profissionais no contexto das
ciências humanas e sociais constitui-se um ganho importante, que abriu
caminho para novos e importantes desenvolvimentos. Para onde va-
mos, a partir de agora? Acredito que uma resposta possível para esse
questionamento seja, simplesmente, que devemos persistir no caminho
reflexivo, abertos a novas análises e a novos discursos, tolerantes às di-
ferenças e às incertezas que nos encontrarão pelo caminho. Manter-se
aberto à diferença e à diversidade não significa um relativismo absoluto
e sem critérios. Significa, ao contrário, empregarmos a análise das con-
sequências que nossas construções sociais acarretam para nossas vidas
não como um simples exercício abstrato e retórico, mas como um recur-

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104 | construcionismo social

so para compreensão de nossa própria vida, das nossas próprias práti-


cas e pesquisas, no cotidiano. Evitar explicar, julgar, condenar e concluir
rápido demais é posicionar a ciência como produto humano – passível
de acertos e erros que, muitas vezes, só se tornam visíveis no curso da
história.
Como parte da história, o construcionismo social não pode ser en-
tendido como “o ponto final”. Como disse Eduardo Galeano refletindo
sobre a utopia, acredito que o discurso construcionista social nos auxilia
a fazer o caminhar, o próprio objeto a se conhecer. Pela valorização da
reflexão crítica sobre o próprio processo de produção do conhecimento,
outras tensões, desafios e desenvolvimentos sempre nos encontrarão.

Dicas da autora: textos, filmes ou vídeos

• Vídeo: A palestra intitulada “Os perigos de uma única história”, pro-


ferida pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie, é um ótimo
exemplo das posturas críticas, reflexivas e apreciativas enfatizadas
pelo discurso construcionista social. Nesta palestra, a autora retoma
fragmentos de sua própria vida, analisando-os criticamente, e ilus-
trando como estereótipos sobre pessoas e grupos culturais caracte-
rizam-se como narrativas únicas, que limitam as possibilidades de
compreendermos suas vidas de uma maneira mais legítima e abran-
gente. Disponível em: www.ted.com/talks/lang/pt/chimamanda
_adichie_the_danger_of_a_single_story.html.

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Capítulo 5
Construindo conhecimento/construindo
investigação: coordenando mundos de pesquisa
sheila mcnamee

tradução | pedro pablo sampaio martins


revisão | carla guanaes-lorenzi

Este capítulo é um convite para enxergar a pesquisa como um processo


relacional. O foco em processos relacionais é a marca de uma orientação
construcionista, na qual há um deslocamento do exame de entidades (se-
jam elas indivíduos, grupos, organizações, matéria) para observar o que
chamamos de linguagem ou práticas linguísticas. Para o construcionista,
a linguagem não é simplesmente uma ferramenta ou veículo utilizado
para transmitir ou trocar informações sobre a realidade (ao que se pode
referir como uma visão representacional da realidade). Em vez disso, a
linguagem é vista como construindo a realidade. O que fazemos juntos
produz os nossos mundos sociais. Esta é uma distinção importante por
muitas razões, mas, à luz do presente capítulo, ela é significativa porque
convida a uma desconstrução de nossa visão comum de pesquisa.
Em geral, associa-se pesquisa à descoberta. Aqueles que se engajam
em pesquisas estão curiosos por descobrir como entender o mundo “tal

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106 | construcionismo social

como ele realmente é”, e querem descobrir “conhecimento novo” sobre o


mundo. Entretanto, se nossa visão for construcionista relacional, a “coi-
sa” (ou entidade) que estamos examinando são os processos interativos,
das pessoas entre si mesmas e também com seus ambientes. Estamos
curiosos sobre quais tipos de mundos se tornam possíveis a partir de
formas específicas de interação, conversação e ação. Assim, o foco em
processos relacionais que constroem nossos mundos é entendido como
algo muito diferente do foco em descobrir como o mundo é.
Meu esforço neste capítulo está em ilustrar como a natureza cons-
titutiva da linguagem não diminui ou enfraquece a ideia de pesquisa.
Admitir que nosso conhecimento de mundo é construído em proces-
sos sociais, tal como a construção social admite, levanta duas questões
importantes. Primeiro, esta postura filosófica nos convida a enxergar a
pesquisa de um modo que difere de nossas formas comumente aceitas
de entender pesquisa. Segundo, novas formas de engajar-se em pesquisa
se abrem, e a própria produção de conhecimento é reformulada. Uma
vez que os construcionistas dão precedência à natureza constitutiva de
toda investigação, nós somos convidados a explorar quais tipos de mun-
do estamos criando, bem como quais tipos de conhecimentos e enten-
dimentos estão sendo produzidos quando nos engajamos em qualquer
processo de investigação.
Nos capítulos anteriores, diversas elaborações de como as ideias
construcionistas são colocadas em prática foram discutidas. A primeira
e a segunda seção deste volume continuam o tema na medida em que
a investigação (de outro modo conhecida como pesquisa) e a produção
de conhecimento também são vistas como formas de prática relacional
dentro de uma sensibilidade construcionista. Tem havido uma grande
quantidade de debates a respeito de como é uma pesquisa construcio-
nista, como ela é conduzida, que métodos podem ser empregados e o
que a análise implica para a interação social. Neste capítulo, meu obje-
tivo é esclarecer aos leitores algumas concepções errôneas que muitos
têm sobre pesquisa e produção de conhecimento quando aplicadas à

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capítulo 5 | 107

construção social. Minha expectativa é ilustrar que os argumentos divi-


sores que emergiram ao redor destes tópicos não são coerentes a partir
de uma orientação construcionista. Ao contrário disso, espero oferecer
entendimentos alternativos – relacionais – de pesquisa e produção de
conhecimento.

As questões divisoras

Nosso entendimento sobre o que conta como pesquisa é muito frequen-


temente concebido de dentro do discurso da ciência. O que é conheci-
do como método científico nasce do que se acredita serem observações
objetivas e controladas, feitas por pesquisadores habilidosos (frequen-
temente chamados de “cientistas”), que empregam métodos confiáveis
e verificáveis para explorar algum fenômeno e revelar conhecimentos
novos sobre o mesmo. Sobre as bases deste novo conhecimento, há a
crença de que o progresso é alcançado. A suposição tradicional é que a
pesquisa produz conhecimento, fatos e evidências sobre o mundo como
ele é. A esta visão de pesquisa (como esforço científico), Woolgar (1996)
se refere como a Visão Recebida da Ciência (VRC)1. Basicamente, esta é
a visão de pesquisa comumente adotada pelas pessoas, mas, como mui-
tos argumentam (LATOUR; WOOLGAR, 1979), não é a visão comu-
mente compartilhada pelos cientistas!
Os cientistas admitem a natureza confusa da vida no laboratório (ou
no campo). Eles reconhecem que suas pesquisas emergem de dentro
de comunidades científicas específicas, ou de dentro daquilo a que ou-
tros se referem como comunidades de prática (LAVE; WENGER, 1991).

1
N.T.: O termo usado por Woolgar (19996) é “Received View of Science” (RVS).
Mantivemos a tradução próxima ao original, por entendermos que a expres-
são usada permite compreender que o autor refere-se à visão tradicionalmente
transmitida de ciência nas gerações.

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108 | construcionismo social

A este respeito, a visão geral do que constitui ciência (e pesquisa) – aqui


referida como a visão recebida de ciência – e as práticas reais de cien-
tistas e sua descrição do que eles fazem, estão em desencontro. Na co-
munidade científica, há o reconhecimento de que aquilo que vem a ser
chamado de pesquisa depende da comunidade onde se atua.
Esta noção se ajusta bem a noções construcionistas nas quais a pes-
quisa é vista como uma “forma de vida” praticada dentro de diferentes
“jogos de linguagem” (WITTGENSTEIN, 1953). Assim, o que comu-
mente entendemos como a tradição de pesquisa (isto é, a ciência social
pós-positivista) é, na verdade, uma forma valiosa de pesquisa – mas não
a única. Há outros jogos de linguagem a serem explorados. A constru-
ção social é um deles.

A linguagem da pesquisa: o que conta?

Em uma tentativa de criar conexões entre diferentes conceituações e en-


tendimentos de pesquisa, Raboin, Uhlig e McNamee (2012) sugerem
examinar o que nós chamamos de “mundos de pesquisa”. Um mundo
de pesquisa envolve “as complexas interdependências que apoiam e dão
rigor acadêmico a abordagens particulares para a pesquisa” (p. 1). Mun-
dos de pesquisa são constituídos por

qualquer forma distinta de entender e conduzir pesquisa, incluindo seus


propósitos, práticas e convenções de rigor únicos – junto às crenças,
suposições e padrões das profissões e comunidades de conhecimento
nas quais estão situados... Um mundo de pesquisa é um contexto com-
preensivo que guia, apoia, financia, conduz e avalia a pesquisa de certas
maneiras. Um mundo de pesquisa sustenta e mantém uma abordagem
específica para a pesquisa baseada em suposições centrais sobre a natu-
reza da realidade (ontologia), formas de conhecimento (epistemologia)
e formas de conduzir pesquisa baseadas nestes entendimentos (metodo-

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capítulo 5 | 109

logia). O que é aceitável em cada mundo é construído e sustentado por


muitas partes interessadas (p. 1).

Pode ser útil entendermos diferenças sobre o que conta como pesqui-
sa por meio do entendimento destes diferentes mundos. Raboin, Uhlig e
McNamee propõem três diferentes mundos de pesquisa: o diagnóstico
(quantitativo), o interpretativo (qualitativo) e o relacional (orientado
para o processo).

quadro 1
Entendendo consistência e inconsistência entre mundos de pesquisa

MÉTODO CIENTÍFICO ENTENDAMOS TRANSFORMEMOS


Quantitativo tradicional Qualitativo JUNTOS
diagnóstico tradicional Construcionista
Prática baseada interpretativo relacional
em evidência
Provar Entender Mudar
Observar Descrever/interpretar Cocriar
Pesquisador/sujeito Pesquisador/participantes Copesquisadores
Verdadeiro ou falso Sentidos situados Produzir novos sentidos
Verdade passível de Conhecimento
descoberta e mecanismos contextualizado e Produzir novas realidades
de causa/efeito múltiplas realidades
Autêntico para os
Estatisticamente válido Localmente útil/generativo
participantes
Local e histórico,
Generalizável e replicável Possivelmente transferível
coevolução
Descobrir a verdade Expandir insight Gerar possibilidades

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110 | construcionismo social

O importante nesta conceituação de mundos de pesquisa é o entendi-


mento de que cada um deles é construído. Isto é, cada um destes mundos
de pesquisa é o produto de negociações históricas e comunitariamente
situadas. Cada mundo de pesquisa é internamente coerente, ao mesmo
tempo em que potencialmente (e com maior frequência) incoerente a
partir do ponto de vista dos dois outros mundos de pesquisa.
A partir de uma postura construcionista relacional, reconhecemos
que as pessoas coordenam suas atividades com outros e com o ambiente
– os mundos de pesquisa também são mundos de ações coordenadas.
As simples coordenações (por exemplo, observar e medir, no mundo
de pesquisa tradicional; interpretar, no mundo de pesquisa qualitati-
vo; e colaborar na construção de entendimento, no mundo de pesquisa
relacional) rapidamente emergem como formas padronizadas de ação
dentro de uma comunidade de pesquisa. Por exemplo, a importância de
ambientes controlados e os meios pelos quais tal controle é garantido
constituem padrões naturalizados no mundo de pesquisa quantitativo.
Tais padrões, por sua vez, geram normas e expectativas que os partici-
pantes utilizam para avaliar suas próprias ações e as dos outros. Então,
por exemplo, não é esperado que pesquisadores que habitam o mundo
de pesquisa quantitativo tradicional relatem seus resultados de pesqui-
sa em termos emocionais. Ao contrário, espera-se que eles apresentem
seus dados e resultados como medidas objetivas “daquilo que existe”.
Essas práticas avaliativas e normativas são carregadas para futuras inte-
rações, nas quais serão confirmadas e sustentadas, desafiadas ou trans-
formadas. Assim, a partir do processo muito simples de coordenação,
desenvolvemos normas, valores e padrões de influência locais e cultu-
rais que, por sua vez, servem como justificativas do “senso comum” para
coordenações futuras. Este processo pode ser resumido como se segue.

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capítulo 5 | 111

Figura 1
A construção de visões de mundo

É importante notar aqui que este processo está acontecendo toda vez
que pesquisadores se engajam uns com os outros e com o mundo. As-
sim, o potencial para construir uma multiplicidade de visões de mundo
é vasto. Com cada construção de uma visão de mundo, estamos cons-
truindo uma ontologia (o que é) e uma epistemologia (como podemos
conhecer o que existe) locais. Assim, também estamos construindo uma
ordem moral que implica no que é considerado bom e no que não é.
Consequentemente, há um desafio de coordenações entre estes diferen-
tes mundos de pesquisa. Como podemos ver, é impossível, nesta orien-
tação, esperar que pudesse haver uma maneira unificada de entender e
conduzir pesquisa. Dentro deste mundo, os padrões de ação são sensí-
veis; tentar entender um mundo de pesquisa utilizando os critérios de
avaliação do que “faz sentido” em outro diferente rende, na melhor das
hipóteses, um debate sobre o que é certo e errado e, na pior, a desquali-
ficação de formas inteiras de prática.

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112 | construcionismo social

Mundo de pesquisa quantitativo

Figura 2
Mundo de pesquisa qualitativo

Contudo, para o construcionista, há uma premissa essencial que ofe-


rece alguns entendimentos matizados sobre como podemos começar a
coordenar mundos de pesquisa diversos e concorrentes. No diagrama
acima, podemos ver que o mundo de pesquisa quantitativo e o qualita-
tivo são completamente coerentes internamente, mas que não há ponto
de conexão entre eles. É claro que não é exatamente assim. Na verdade,
muitas pesquisas qualitativas compartilham com o mundo de pesqui-
sa quantitativo várias das mesmas premissas a respeito de objetividade,
validade e confiabilidade. Entretanto, para os objetivos da ilustração, eu
posicionei esses dois mundos de pesquisa em estranhamento um com o
outro (e eles, frequentemente, podem se estranhar).
Em uma orientação construcionista, a possibilidade de construir
novos entendimentos, crenças, valores e realidades está sempre presen-
te. Cada vez que nos engajamos com outros e com o nosso ambiente,
a possibilidade de criar sentidos novos e, assim, visões de mundo novas,
está sempre presente. O interessante sobre isto é que, em grande medida,

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capítulo 5 | 113

não somos conscientes de quão persistentemente trabalhamos para man-


ter o senso de uma visão de mundo sólida, estável e contínua. Sem a nossa
participação nesses mundos de pesquisa, eles não persistiriam. Somos nós
quem mantemos essas realidades, essas normas. Mesmo quando resisti-
mos, por exemplo, à pesquisa quantitativa, mantemos a hegemonia deste
mundo de pesquisa em nossos próprios atos de resistência (FOUCAULT,
1972; 1976), em nossas tentativas de construir mundos de pesquisa alter-
nativos. Além disso, uma vez que a possibilidade de criar formas de ação,
padrões e expectativas, sistemas de crenças e valores alternativos está
sempre presente, a ilustração seguinte é uma representação mais útil da
diversidade de visões de mundo (mesmo em pesquisa) que são possíveis.

Figura 3
A complexidade e diversidade das visões de mundo
 

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114 | construcionismo social

O mundo de pesquisa construcionista relacional aprecia essa diver-


sidade e evita as tentativas de decidir entre um mundo de pesquisa e o
outro, de qualquer maneira universal. Pode haver, contudo, momentos
situados específicos em que um mundo de pesquisa faz mais sentido
que o outro. É possível chegar a esta decisão prestando-se atenção ao
contexto local.
Como podemos ver, a orientação construcionista cria um mundo
de pesquisa onde a apreciação, a curiosidade e o reconhecimento de
mundos de pesquisa alternativos (neste caso, quantitativos e qualita-
tivos) são centrais. Dito isto, pode ser mais útil ajustar a descrição de
mundos de pesquisa oferecida acima. Em lugar de observar três visões
de mundo distintas (e mutuamente exclusivas), a postura construcio-
nista se posiciona em um plano discursivo inteiramente diferente, por
assim dizer. Eu hesito aqui, pois quero evitar empregar uma metáfo-
ra de níveis, implicando – como esta metáfora faz – uma hierarquia
de conhecimento. As ideias construcionistas não ficam em posições
superiores ou inferiores em relação aos mundos de pesquisa aceitos,
quantitativos ou qualitativos. A orientação relacional de pesquisa e de
prática construcionista (como os capítulos deste livro ilustram) nos
convida a uma conversa inteiramente diferente. Esta conversa não é
sobre certo ou errado, bom ou ruim, verdadeiro ou falso, evidência ou
opinião. É uma conversa centrada na investigação reflexiva. Como tal,
ela nos convida a considerar quais comunidades linguísticas estão fa-
lando e quais estão silenciadas. Ela nos convida a explorar como somos
parte de todos os aspectos do processo de pesquisa (ou de qualquer
prática). O intrigante sobre isto é que ser parte também se evidencia
em nossa habilidade de construir o processo de pesquisa tradicional e
objetivo. Ofereço a seguinte imagem como substituição ao Quadro 1
com uma forte ressalva, reconhecendo que qualquer representação
destas ideias complexas é potencialmente enganosa.

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capítulo 5 | 115

Figura 4
Mundos de pesquisa em interseção

No mundo de pesquisa quantitativo, o ímpeto está em aprender o


que acontece “para a maioria das pessoas, na maior parte do tempo”
por meio de dados agregados, de forma que esses resultados possam
informar o trabalho de profissionais com clientes, o de educadores com
estudantes, de líderes organizacionais com eleitores e assim por diante.
Trata-se de uma prática alinhada com o mundo de pesquisa diagnóstico
na medida em que se busca a “causa” do problema para que “práticas
melhores” e “medidas eficazes” possam ser utilizadas.
No mundo de pesquisa qualitativo, enfrentamos uma confusão inte-
ressante. Porque a pesquisa qualitativa não é tipicamente associada ao
rigor e à facticidade da pesquisa quantitativa (isto é, na pesquisa quan-
titativa há a citação frequente – e muitas vezes completamente errônea
– da frase “os números não mentem jamais”), ela é frequentemente as-

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116 | construcionismo social

sociada com o construcionismo e outras abordagens para a investigação


(IVERSEN, 2000). Tal associação pode ser capturada em um comentário
deste tipo: “Porque a interpretação e o contexto são importantes, méto-
dos qualitativos devem ser utilizados por pesquisadores construcionis-
tas.” Entretanto, a contagem (o uso de dados quantitativos) é também
um ato interpretativo. Não há nada inerente aos métodos qualitativos
que os alinhariam exclusivamente à investigação construcionista. Além
disso, muitas ilustrações de pesquisa qualitativa estão tão focadas em
“descobrir a verdade” quanto pesquisas com dados quantitativos.
Quando métodos qualitativos são associados a formas de investiga-
ção construcionista, podemos supor que o argumento construcionista
não foi entendido, já que não há método construcionista per se. A cons-
trução social é uma postura filosófica. Como tal, ela marca uma mudan-
ça de orientação no mundo. Esta mudança pode ser resumida de muitas
maneiras, mas nos limitemos a dizer que há uma mudança de foco de
indivíduos autocontidos e racionais em direção a processos interativos
(isto é, o que as pessoas fazem juntas e o que estes “fazeres” produzem).
Assim, para o construcionista, o “fazer” de pesquisa pode ter várias for-
mas. Cada uma, como mencionado anteriormente, é um jogo de lin-
guagem diferente. Diferentes jogos de linguagem constroem diferentes
entendimentos de mundo. Determinar qual é certo e qual é errado (uma
pergunta moderna) é substituído por “qual é o mais generativo?” Quais
processos de investigação nos ajudarão a conhecer “como caminhamos
juntos”, parafraseando Wittgenstein (1953).
Para pesquisadores e profissionais construcionistas, a pesquisa/
investigação não é uma questão “dicotômica” (“uma coisa ou outra”).
Em outras palavras, não há maneira de conversar sobre pesquisa, ou de
conduzi-la, que esteja fora dos limites de alguma comunidade linguís-
tica específica. Isto não significa sugerir que “qualquer coisa passa”. Há
normas e realidades colaborativamente construídas dentro de comuni-
dades (Figura 1). Identificar essas realidades localmente criadas como
ordens morais nos ajuda a reconhecer as maneiras pelas quais normas e

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capítulo 5 | 117

expectativas mantêm uma comunidade discursiva unida; não se é livre


para agir de qualquer maneira. Entretanto, uma vez que saímos de uma
dada comunidade, as mesmas normas e crenças podem certamente ser
desafiadas. Além disso, é importante notar que todos habitamos múlti-
plas comunidades discursivas.

Mudando discursos de pesquisa

Para articular mais profundamente a importante diferença de uma filo-


sofia construcionista social, é útil entender três mudanças significativas
entre um mundo de pesquisa moderno (mundo de pesquisa científi-
co, quantitativo/qualitativo) e um mundo de pesquisa construcionista.
A primeira é uma mudança de uma racionalidade individual para uma
racionalidade compartilhada. A racionalidade não é mais vista como uma
propriedade cognitiva de um indivíduo, mas como uma performance
local-cultural. Ser “racional” é participar em alguma tradição local, re-
construindo a própria identidade como membro de uma comunidade
específica ao fazê-lo. Racionalidade é um processo relacional. A minha
expectativa é que as figuras 1, 2 e 3 ajudem a tornar este processo claro.
A segunda mudança é a passagem do método empírico à construção
social. Esta mudança reflete o amplo reconhecimento de que não temos
meios para entender o mundo independentemente de nossas formas de
conversar, de nossas teorias e dos métodos informados por estas. Aqui,
a noção de que as perguntas que fazemos produzem as respostas que re-
cebemos é central. Método e conceitos, crenças e entendimentos fazem
sentido em relação a alguma tradição mais ampla (teoria, perspectiva ou
inteligibilidade). Então, por exemplo, a forma como conduzimos nossa
investigação (métodos, procedimentos e análise), a forma como conver-
samos e escrevemos sobre ela (utilizando, por exemplo, a linguagem de
variáveis, observações e dados), ambos refletem uma tradição específi-
ca, bem como a constituem (WOOLGAR, 1996).

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118 | construcionismo social

O terceiro tema se refere à visão diferente de linguagem. Diferen-


temente da visão realista ou moderna de linguagem como representa-
cional, o construcionista vê a linguagem como ação social e, portanto,
como constituindo nosso mundo. A linguagem não simplesmente des-
creve o que “já está” no mundo, ela é uma forma de ação. Nesta visão,
engajar-se em ciência é participar de práticas baseadas em comunida-
des específicas. Contudo, como eu argumentei, há diferentes formas
de fazer ciência e todas estão ligadas a uma racionalidade localmente
coordenada.

Pesquisa relacional

Um foco relacional (tal como definido aqui) não somente inclui mudan-
ças de premissas, mas também de perguntas e interesses. Uma questão
central se refere aos tipos de realidade dos quais somos parte e para
cuja construção contribuímos em nossa pesquisa. A que tipo de mun-
do convidamos uns aos outros quando agimos como se fosse possível
representar a única forma como as coisas realmente são? Em contraste,
a que tipo de mundo convidamos uns aos outros quando presumimos
que as realidades são coconstruções baseadas em comunidades locais,
históricas e culturais? Ambos os tipos de investigação constroem rea-
lidades locais e comuns, mas muito diferentes: uma realidade onde há
especialistas e não especialistas versus uma realidade onde há domínios
de especialidades múltiplos e, talvez, conflituosos.
As mudanças relacionais que esbocei oferecem a possibilidade de
engajar outras pessoas (teóricos, profissionais, pesquisadores e também
atores sociais) em atividades que aumentem nossos recursos para a vida
social. O interesse está na própria prática de um mundo de pesquisa
construcionista, na medida em que ele pode abrir diferentes possibili-
dades, como uma performance que literalmente coloca em ação e, por-
tanto, disponibiliza, novos recursos relacionais.

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capítulo 5 | 119

Ao nomear estes diferentes mundos de pesquisa, a expectativa é ge-


rar tanto curiosidade quanto respeito pelos diferentes entendimentos
criados por cada mundo acerca do que conta como pesquisa. Tal ex-
pectativa é diferente da prática mais comum de debater qual orientação
para a pesquisa é a mais acurada, fidedigna ou autêntica. Além disso,
emprestar a ideia de mundos de pesquisa pode ajudar a dissipar o mito
que muitos têm sobre a pesquisa construcionista: muitos (tipicamente
os novatos em uma filosofia construcionista ou os que a criticam in-
genuamente) presumem que adotar uma orientação construcionista
relacional requer rejeitar as normas da pesquisa em ciência social (tipi-
ficada nos dois mundos de pesquisa, quantitativo e qualitativo). Minha
expectativa é encorajar um entendimento mais matizado e complexo de
como “dados” e “evidências” produzidos (seja no mundo de pesquisa
quantitativo seja no qualitativo) podem ser entendidos diferentemente
em um mundo de pesquisa relacional e vice-versa.
Adotar o mundo de pesquisa construcionista relacional requer ex-
plorar formas de “evidência” coerentes com uma sensibilidade pós-mo-
derna. Isto se alinha aos recentes convites por múltiplas formas de des-
crição (MCNAMEE; HOSKING, 2012; MCNAMEE, 2010) nos quais
a diversidade de ordens morais pode ser explorada. Outros defende-
ram a necessidade de criar uma “descrição densa” (RYLE, 1949), que
vá além da observação do comportamento, para um entendimento da
pesquisa como uma prática contextualizada e situada que cria sentidos
e importância para o que é descrito (GEERTZ, 1973). Em outra ocasião
(MCNAMEE, 2000), sugeri que focalizar a atenção não apenas no que
é descrito, mas também em como o descrevemos, traz o desafio de que
a validade é uma questão de política de pesquisa (da retórica a partir
da qual ela é construída). Devemos perguntar: a partir das normas de
quem a validade é determinada? A quem é concedido o direito de no-
mear o que é válido ou não? Os resultados de uma pesquisa são conside-
rados válidos quando a teoria e as hipóteses do pesquisador são susten-
tadas? Quando os resultados de uma pesquisa “soam verdadeiros” para

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os profissionais e sua experiência? Ou quando os participantes de pes-


quisa (por exemplo, clientes em terapia ou consultoria, estudantes em
contextos educacionais, pacientes em serviços de saúde) reconhecem a
utilidade de certas formas de prática? Não afirmaríamos nenhuma des-
sas opções em detrimento das outras. Em vez disso, os construcionistas
estão interessados na construção colaborativa da validade entre todas as
partes interessadas.
Abandonar a abordagem moderna (ciência) não seria algo nem
construcionista nem prudente. Ao rejeitar o empirismo de uma ma-
neira totalizante, estaríamos rejeitando um enquadre discursivo a fa-
vor de outro, o que seria próximo a dizer que o construcionismo é a
nova “Verdade” – uma afirmação que nenhum construcionista gos-
taria de fazer. Se de fato posicionarmos a construção social em um
nível paradigmático de abstração – uma visão de mundo definida, em
parte, por sua aceitação da multiplicidade –, então falharíamos em
alcançar nossos próprios critérios definidores. Por que descartar uma
forma de conversar sobre o mundo, particularmente quando se trata
de uma forma na qual tantas pessoas se engajam (aqui, estou falando
sobre o modernismo)? Também não é prudente descartar, sem refle-
xão, qualquer posição discursiva específica. O desafio e o potencial da
construção social é seu foco em coordenar a multiplicidade de formas
de se estar no mundo e de se falar sobre ele.
Na seção a seguir, ofereço uma breve ilustração do que vejo como a
separação atual entre os diferentes mundos de pesquisa acima descritos.
Especificamente, a dominação atual de práticas baseadas em evidências
na maioria dos campos profissionais (da saúde à educação e excelência
organizacional) serve como um bom exemplo dos problemas que sur-
gem quando mundos de pesquisa são vistos como concorrentes, exigin-
do uma determinação de certo/errado. O construcionista (o que opera
num mundo de pesquisa relacional) pergunta: O que conta como evidên-
cia e para quem? Como isto pode ser útil para profissionais? Como os estu-
dos de caso de profissionais podem informar pesquisas empíricas futuras?

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capítulo 5 | 121

Idealmente, enquanto os profissionais são guiados pelos resultados


de estudos científicos sobre o que funciona ou não, eles aprendem de
formas matizadas, caso a caso, como a aplicação de certas práticas ajuda
ou atrapalha a vida social. Tais “dados”, por sua vez, voltam para os pes-
quisadores para maiores investigações acerca do efeito, em larga escala,
de formas alternativas de prática, e/ou acerca das anomalias que sur-
giram em casos específicos. Este foco na relação circular e mútua, seja
entre estudos com grandes amostras ou entre casos únicos, destaca o
foco construcionista em processos relacionais. Infelizmente, na prática,
nosso entendimento do que constitui uma pesquisa está amplamente
focado em apenas um lado deste relacionamento: como estudos com
“amostras numerosas” determinam práticas locais de forma que elas
possam ser eficientes e efetivas.

Indo além de um mundo de pesquisa dicotômico:


o caso da prática baseada em evidência

Muitas carreiras foram construídas sobre o debate a respeito da dis-


tinção e da importância da pesquisa moderna versus pós-moderna,
e sobre como estas tradições influenciam a prática profissional. Cada
abordagem tem seu mérito, mas, como todas as coisas, este mérito é
contextualmente definido. A partir de uma visão de mundo moderna,
o esforço da prática profissional está em objetivamente distinguir um
problema e oferecer a solução ou tratamento “corretos”, com base na
tradição da ciência social positivista. Em uma visão de mundo pós-
moderna, um profissional examina como sentidos e entendimentos são
alcançados em interação com clientes, desejando a criação colaborativa
de um entendimento mais útil e generativo, tanto para o cliente como
para o profissional.
As posições das orientações modernas e pós-modernas são mais
complicadas pela errônea associação de métodos quantitativos à mo-

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dernidade e métodos qualitativos à pós-modernidade, como mencionado


anteriormente. Tal distinção é uma simplificação extrema e grosseira
da filosofia e da prática pós-modernas. Como sabemos, abordagens
pós-modernas defendem uma mudança de foco do indivíduo auto-
contido para práticas de linguagem (isto é, atividades corporificadas)
de pessoas em relacionamento. Para este propósito, reconhecemos que
métodos quantitativos e qualitativos nada mais são do que “jogos de
linguagem” diferentes (WITTGENSTEIN, 1953) e que nenhum é mais
ou menos apropriado para qualquer análise, para além de um con-
texto específico. Em outras palavras, números e dados agregados po-
dem ser tão interessantes e úteis como estudos de caso qualitativos.
Assim, não é inteiramente garantido que os pesquisadores pós-mo-
dernos sejam contrários à prática baseada em evidências (PBE). Os
profissionais reagem contra a ideia de que pesquisa descorporificada
sobre uma prática específica e unicamente corporificada (por exemplo,
terapia, tratamento em saúde, educação, liderança efetiva) possa ditar
como alguém deve se engajar com clientes específicos em atividades
contextualmente situadas.
Montgomery (2006), discorrendo sobre o uso de Medicina Baseada
em Evidências (MBE), aponta para a relação que se pretende como mu-
tuamente informativa entre pesquisa e prática.

[...] a variação do caso único é o ponto de partida para o projeto de MBE.


Por mais valiosos que os estudos epidemiológicos sejam, a informação
agregada constitui conhecimento generalizado que deve ser aplicado a
um paciente em particular. Ele pode ser mais novo que os grupos estu-
dados – ou mais atlético ou vegetariano; ele pode ser de um grupo étnico
diferente ou ter um nascimento tardio, ou um pai com a mesma doença.
Como e em que grau os estudos se aplicam em diferentes circunstâncias
são, em si mesmas, ocasiões para o contar de histórias clínicas, mesmo
entre clínicos que conhecem as probabilidades anteriores para a análise
Bayesiana de todas as doenças em sua especialidade. Os autores da Medi-

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cina Baseada em Evidências sabem disso. Eles advertem os clínicos para


começarem com o questionamento sobre um de seus pacientes, pesquisá-
-lo tão bem quanto os estudos atuais permitirem, não apenas como uma
forma de decidir o que deveria ser recomendado para o paciente, mas
também para testar e melhorar seu julgamento clínico. A partir destes
casos em particular virão ideias para uma maior investigação epidemio-
lógica e clínica (MONTGOMERY, 2006, p. 129-130).

As implicações da disparidade entre a PBE conceituada e a praticada


colocaram muitos profissionais pós-modernos em oposição ao mundo
de pesquisa, números e evidência. Em vez de repelir essa comunidade
em que se insere a PBE, a hegemonia global desta prática deveria nos
convidar a perguntar: Como a pesquisa poderia ser útil para a minha
prática profissional? Fazer essa pergunta é assumir o relacionamento
mutuamente informativo entre pesquisa e encontros situados. Mas, pri-
meiro, devemos direcionar nossa atenção à evidência, uma vez que ela
é a peça central da prática profissional institucionalmente sancionada
e esta é mais frequentemente vista como emergindo a partir de mun-
dos de pesquisa tradicionais. Para este fim, aqueles que se posicionam
dentro de um mundo de pesquisa relacional frequentemente se sentem
convidados a um debate dicotômico sobre o lugar da PBE e seu privilé-
gio institucional.

O que conta como evidência?

O que conta como evidência, e em quais circunstâncias, é um tópico


para o qual os construcionistas são sensíveis. O sucesso em um rela-
cionamento profissional nem sempre oferece práticas úteis em outro.
Queremos nos engajar em práticas profissionais simplesmente porque
“estudos mostraram”, por exemplo, que a terapia cognitivo-comporta-
mental (TCC) é mais efetiva do que a psicologia analítica ao trabalhar

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com indivíduos? Ou será que preferiríamos explorar como o uso de di-


ferentes discursos (isto é, modelos) pode criar a possibilidade de trans-
formação terapêutica? A mudança, aqui, está em deixar de oferecer o
selo de aprovação a um tipo de prática (isto é, financiamento na forma
de cobertura de seguros, subsídios governamentais, vales institucionais
etc.), passando a oferecer o selo de aprovação à abertura da possibili-
dade de conversas colaborativas com clientes sobre o que está ou não
funcionando em seus engajamentos com profissionais.
O que conta como evidência de prática bem-sucedida variará, de-
pendendo do mundo de pesquisa que se habita. No mundo de pesquisa
diagnóstico, a significância estatística de práticas testadas serve como
evidência. No mundo de pesquisa interpretativo, os autorrelatos de
clientes/participantes servem como evidência. Entretanto, no mundo
de pesquisa construcionista relacional, a criação de novas formas de
entendimento que permitam às pessoas (clientes/participantes) supe-
rarem problemas identificados serve como evidência. Aqui, não é su-
ficiente relatar que a prática profissional está funcionando (mundo de
pesquisa interpretativo). Em vez disso, é o reconhecimento e a criação
de novas formas de prática para os clientes, membros de comunidades,
pesquisadores/profissionais e todos os participantes, que sinaliza práti-
cas efetivas.
Uma vez que pesquisadores e participantes (profissionais e clien-
tes) habitam diferentes mundos de pesquisa, rever a pesquisa como um
processo de construção social exige que encontremos formas de entrar
em conversas curiosas com aqueles que habitam mundos de pesquisa
diferentes. Se os que habitam o mundo quantitativo, de diagnóstico e
descoberta veem a evidência como fato, não como alternativa à prática,
então nossas tentativas de coordenar mundos de pesquisa divergentes
exigem respeito e curiosidade para com esta forma de entendimento. Se
aqueles que habitam um mundo de pesquisa construcionista relacional
negarem o entendimento baseado-em-fatos, oriundos de resultados que
aqueles que vivem em um mundo de pesquisa tradicional adotam, en-

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tão a construção relacional como uma visão de mundo não se mostrará


diferente da visão de mundo tradicional da pesquisa quantitativa.

Dissipando mitos comuns sobre pesquisa

Eu gostaria de fechar este capítulo destacando aquilo a que me refiro


como mitos comuns sobre pesquisa, aqui discutidos. Primeiro, há o
mito de que a pesquisa se trata de descoberta. Como vimos, a própria
ideia de descoberta é moldada pelo mundo de pesquisa do qual um pes-
quisador é parte. Se um pesquisador adota uma postura distanciadora
e diagnóstica, a linguagem da descoberta é plausível. Se, contudo, um
pesquisador adota uma postura colaborativa e participativa, a lingua-
gem da descoberta é incoerente. A construção de possibilidades de ação
e de novas formas de entendimento são produtos da mutualidade do
processo de investigação.
O segundo mito foca na sugestão de que, com os métodos corre-
tos, podemos descobrir a natureza do mundo social. É claro que este
mito não é inteiramente distinto do primeiro; ele simplesmente estende
a ideia de descoberta para a seleção do método apropriado. A Visão
Recebida de Ciência (mundo de pesquisa quantitativo e grande parte do
mundo de pesquisa qualitativo) presume justamente isto (ou seja, que a
natureza do mundo social é passível de descoberta com os métodos cor-
retos), e que descoberta produz conhecimento, avanço e soluções para
problemas. Entretanto, quando habitamos o mundo de pesquisa rela-
cional, começamos com a suposição de que a natureza do mundo social
pode ser definida e entendida de forma múltipla. Cada entendimento
oferece formas alternativas de conhecer e de agir. Em outras palavras,
enquanto uma resposta/resultado pode ser mais aceitável ou atraente
para um grupo situado em um contexto específico, aquela mesma res-
posta/resultado pode não ser aceitável ou atraente (ou mesmo factível)
para um grupo localizado diferentemente.

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O terceiro mito sugere que profissionais não são pesquisadores e que


pesquisadores não são profissionais. Este é provavelmente o mito mais
significativo para os leitores deste capítulo, simplesmente porque permi-
te a qualquer leitor reconhecer sua prática como um projeto de pesquisa
legítimo e potencialmente útil. Quando pensamos em uma divisão dura
entre pesquisa e prática, há uma tendência a evitar o emprego de recur-
sos práticos que sejam mais úteis e familiares a nós. Especificamente, a
VRC nos leva a imaginar ambientes hermeticamente controlados, ins-
trumentos de pesquisa projetados de modo avançado e – provavelmente,
embora infelizmente – relações estéreis e distantes entre o pesquisador e
aqueles que participam no processo de pesquisa. Contudo, quando ima-
ginamos esta visão de pesquisa, perdemos justamente as oportunidades
que poderiam gerar transformações humanas significativas.
Um de meus ex-alunos de doutorado, Murilo Moscheta, escreveu
sobre os efeitos debilitantes destes mitos. Murilo estava interessado em
entender como profissionais de saúde entendem e trabalham com pa-
cientes LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros). Ele cuidadosa-
mente planejou sua pesquisa para incluir (1) um convite aberto aos pro-
fissionais para participarem de seu projeto, (2) entrevistas individuais
com aqueles que se dispusessem voluntariamente a participar, de forma
que ele pudesse ter uma ideia de seus desafios em trabalhar com pacien-
tes LGBT antes de juntar o grupo, e (3) uma série de diálogos abertos
com os participantes.
Tudo estava correndo relativamente bem em sua pesquisa até que
algo completamente inesperado (e surpreendentemente desconcertante
para ele) emergiu. Murilo sentiu que sua pesquisa era um desastre àque-
le ponto, até que ele decidiu encarar o evento inesperado como uma
possibilidade para refletir sobre o próprio tema de sua pesquisa (inclu-
são no trabalho de profissionais de saúde com clientes LGBT) e para
desenvolver novas práticas investigativas. A partir daí, ele refletiu sobre
essa experiência de pesquisa e destacou o potencial transformativo do
(como ele descreveu) seu encontro com o “inesperado”.

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capítulo 5 | 127

Eu acredito que, até aquele momento, grande parte do meu treinamen-


to como pesquisador tinha sido baseado em uma clara divisão entre
certo e errado. A tradição na qual fui treinado enfatizava que um bom
pesquisador seria capaz de, cuidadosamente, planejar como a pesquisa
deveria acontecer e antecipar possíveis problemas, a fim de tomar pre-
cauções adequadas. Para investigadores oniscientes como eu, dúvidas
e surpresas eram problemas a se evitar, resolver ou consertar. Método
era uma forma de assegurar que tudo fluiria como planejado. Acima de
tudo, pesquisar tratava-se de controlar. E, por mais assustadora que essa
posição semelhante a Deus pudesse ser, era também sedutora, uma vez
que acenava para a possibilidade de passar a fazer parte de um grupo
selecionado e socialmente apreciado.

Então, não é surpreendente que eu me sentisse arrasado quando algo


inesperado aconteceu durante a minha pesquisa. Eu estava lutando para
fazer tudo corretamente e, uma vez que esta perspectiva em pesquisa
é tão amplamente reconhecida, os participantes também estavam es-
perando que eu tomasse “todas as decisões ‘corretas’.” Portanto, eu pri-
meiramente entendi o inesperado como um sinal de falha pessoal. Em
meus esforços pela perfeição, minha falha foi depois transformada na
falha da assistente de enfermagem enquanto eu tentava me justificar
acusando-a de perturbar minha pesquisa. Então, minha primeira lição
nesta experiência foi me dar conta de que a culpa é o jogo padrão em um
modelo certo/errado de responsabilidade individual. Infelizmente, este
é o jogo que tão comumente me impedia de entender com generosidade
o inesperado e aprender com ele. Uma vez que o fiz, a possibilidade de
escapar do jogo da culpa me permitiu reconsiderar a pesquisa em dois
aspectos importantes.

Primeiro, eu me reconectei com o elemento básico da pesquisa. Para


alguns pesquisadores, a pesquisa trata de descobrir o que é novo, en-
quanto, para outros, ela pode tratar mais de criar algo novo. Entretanto,

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em todo caso, parece que a pesquisa é um processo por meio do qual


nós, de alguma forma, criamos as condições nas quais todos podemos
estar em contato com a novidade. Então, para que antecipar e controlar
tudo? Quanto espaço sobra para “o original” se estivermos obcecados
com predições? Eu me dei conta de que dar boas-vindas ao inesperado
pode ser uma forma de aprender sobre aquilo que estava procurando
sem saber. Parafraseando T. S. Eliot, a pesquisa pode se ocupar de des-
cobrir o que eu estava procurando e conhecê-lo pela primeira vez. Mais
importante, esta perspectiva me liberou de saber tudo e encorajou mui-
ta exploração. O jogo de culpa deu espaço para a curiosidade lúdica,
o questionamento generoso e a cooperação animadora. Pesquisar foi
elevado de volta àquilo que era quando eu me interessei por esta ativi-
dade pela primeira vez: uma aventura cheia de surpresas para um garoto
brincando com insetos e lentes no jardim.

Segundo, eu aprendi que o método é uma bússola, não um mapa. Eu es-


tava acostumado à ideia comumente aceita na qual se entende o método
como um processo. Entretanto, a forma como eu estava abraçando este
processo estava transformando-o em um produto. Eu havia planejado
entrevistas, preparado participantes e planejado um grupo de diálogo. E
tudo isto foi uma ferramenta que eu queria aplicar ao meu contexto de
pesquisa. Entretanto, se o método é verdadeiramente um processo, ele
é sempre uma resposta ao que quer que esteja emergindo na pesquisa.
Então, o aspecto mais importante do método, para mim, não é o que eu
planejo fazer ou as ferramentas que eu quero usar, mas como eu respon-
do ao que emergir a partir deles. Como um viajante com uma bússola,
eu posso me mover em uma direção. Mas, para chegar lá, eu preciso
estar atento e responsivo aos sinais que encontrar no meu caminho.

Como eu chego ao meu objetivo é mais uma questão de como eu in-


terajo com a bússola e com os sinais do que uma questão de seguir o
caminho correto. Obviamente, isto não exclui preparação e planejamen-

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capítulo 5 | 129

to, uma vez que ainda faço bastante isso antes de entrar em qualquer
campo de pesquisa ou de começar qualquer viagem. Entretanto, isso me
permite ser responsivo ao caráter sempre emergente da tarefa de pes-
quisar. Além disso, considero a importância ética de convidar os partici-
pantes não apenas para colaborar com o que eu proponho, mas também
para se engajar na construção coletiva de um processo de pesquisa. Eu
havia escutado que pesquisadores sociais frequentemente dizem que es-
tão abertos para aprender com os participantes. Assim como eu, quando
comecei minha pesquisa. Entretanto, a colaboração que eu estava espe-
rando era restrita ao conteúdo da minha pesquisa. Presumi que cabia a
mim, o pesquisador, decidir sobre os processos e demonstrar maestria
de estratégias metodológicas e analíticas. O evento foi constrangedor
porque sugeria que eu podia não saber como conduzir o processo de
pesquisa. Entretanto, foi exatamente porque eu não sabia que os partici-
pantes puderam se sentir convidados a colaborar. As relações de poder
foram transformadas e a autoria pôde ser democratizada (MOSCHETA,
comunicação pessoal, 25 de julho de 2011).

Na história atraente de Murilo, vemos sua metamorfose de um pro-


fissional tentando se tornar um pesquisador “legítimo” em um profis-
sional confiando em seu modo familiar de prática (isto é, atento à natu-
reza em desdobramento e emergente da interação) como uma legítima
forma de pesquisa.
É importante que nos lembremos continuamente que nós fazemos
as escolhas sobre a investigação – nós decidimos o que estudar e como.
Estas escolhas podem certamente ser consideradas “certas” ou “erradas”
em contextos particulares. Entretanto, dentro de um mundo de pesquisa
construcionista, nenhuma escolha é certa ou errada em última análise,
em um sentido universal. Para este fim, práticas de pesquisa, análises e
resultados, dentro de qualquer mundo de pesquisa, podem ser úteis. As
perguntas críticas a serem colocadas são: com quais comunidades esta-
mos conversando, e a partir de quais valores e de quem queremos atuar?

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Isto levanta a questão da objetividade – uma vaca sagrada nos mun-


dos de pesquisa tradicionais quantitativo e qualitativo. Objetividade é
uma construção retórica. Gergen (1994) aponta que o uso de “dispositi-
vos de distensão, meios de linguagem para localizar objetos distantes de
nossa experiência privada (...) o, aquele, aqueles ou isso (...) em contraste
a descritores personalizados (...) ‘minha visão’, ‘minha percepção’, ‘meu
senso de’” (p. 173-174) servem para criar retoricamente o senso de obje-
tividade. Assim, devemos nos perguntar: os valores de quem estão sendo
promovidos como “ausência de valores”?
Em vez de operar em condições controladas, o construcionista aceita
a qualidade relacional do contexto de pesquisa, dando origem a prá-
ticas como investigação colaborativa (HOLSTEIN; GUBRIUM, 2008;
GEHART; TARRAGONA; BAVA, 2007; LATHER; SMITHIES, 1997),
pesquisa-ação (MCNIFF; WHITEHEAD, 2006; REASON; BRADBURY,
2001; REASON, 1998) e processos de diálogo (SEIKKULA; ARNKIL,
2006; GERGEN; MCNAMEE; BARRET, 2001; CHASIN; HERZIG,
1992). Ao enxergar a pesquisa como um processo relacional de criar
sentidos e entendimentos colaborativamente, tornamo-nos atentos a
como todas as explicações são simultaneamente descrições de eventos e
parte do evento em si mesmo, devido à natureza construtiva da conver-
sa/interação. Como mencionado anteriormente, as perguntas que faze-
mos produzem suas respostas. Podemos escolher entrar na linguagem
da objetividade – o que é sempre uma opção. Uma vez que o fazemos,
devemos perguntar quais valores, posturas políticas e relações estão (si-
lenciosamente) ganhando autoridade e quais estão sendo caladas. Eu
não estou sugerindo que esta seja uma questão de certo ou errado, estou
simplesmente insistindo que perguntemos. Nenhuma pesquisa pode
ou oferecerá o resultado definitivo. Todo conhecimento é provisório e
contestável (por alguma outra comunidade linguística). Todas as expli-
cações são local, histórica e culturalmente específicas. A pergunta mais
importante dentre todos os mundos de pesquisa é: de que maneiras esta
investigação é útil? Ela gera novas formas de entendimento e, portanto,

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novas formas de “caminharmos juntos”? Mais importante, devemos nos


lembrar que a própria pesquisa é uma prática – uma forma de prática
profissional, por assim dizer. Assim, essa divisão pesquisa/profissional
não é, de forma alguma, uma divisão, mas uma questão de entrar em
comunidades discursivas diversas.

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Capítulo 6
Produzir conhecimento não é um ato banal: um olhar
(pós)-construcionista sobre ética na pesquisa
mary jane paris spink
peter k. spink

Introdução

Em 1996, após ampla consulta pública, o Conselho Nacional de Saú-
de aprovou as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa En-
volvendo Seres Humanos, por meio da Resolução 196. Tendo por fun-
damento os princípios de bioética referendados por duas declarações
internacionais, a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, e a De-
claração de Helsinque, aprovada em 1964 e revisada periodicamente,
tal resolução criou o sistema de Conselhos Institucionais de Ética em
Pesquisa que, atualmente, zela pelas boas práticas em pesquisa, sobretu-
do no que diz respeito àqueles que, de forma voluntária e com plena au-
tonomia, dela participam. Mas não apenas a proteção aos participantes
vem sendo foco de preocupações e debates. Diante das muitas mazelas
nas fases posteriores de pesquisa, nos diferentes “interstícios da produ-

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134 | construcionismo social

ção de conhecimentos” que envolvem a análise e divulgação dos resul-


tados, as associações e agências de fomento internacionais e nacionais
têm se manifestado sobre o que vem sendo convencionado como boas
práticas em pesquisa.
O Relatório da Comissão Especial de Integridade de Pesquisa do
CNPq, divulgado em 07/10/2011, é um exemplo atual do esforço de mo-
ralização das práticas científicas. Tal comissão havia sido instituída em
maio do mesmo ano, com a missão de propor recomendações de modo
a garantir a ética na pesquisa. O relatório divulgado pelo presidente do
CNPq (CNPq, 2011) recomendou duas linhas de ação, uma com foco
preventivo e pedagógico, a outra com ações de desestímulo à má condu-
ta, incluindo medidas de natureza punitiva. Também com base em suas
recomendações, o Conselho Deliberativo do CNPq criou, em dezembro
do mesmo ano, a Comissão Permanente de Integridade Científica.
O momento atual, repleto de códigos, normas, comitês de pesquisa
e recomendações sobre melhores práticas, sugere um consenso sobre o
que se entende por procedimentos éticos em pesquisa. Por outro lado,
as discussões e preocupações insinuam que não é tão simples assim
(SPINK, 2000; SPINK; ALVES, 2011). Afinal, o que é ciência? O que
é produzir conhecimento? Como devemos agir quando embarcamos
nessas atividades? E ainda, mais importante para o objetivo deste ca-
pítulo, qual a contribuição que um olhar (pós-)construcionista pode
suscitar?
O que seria esse olhar (pós-)construcionista? A postura construcio-
nista é assim resumida por Lupicinio Iñiguez:

Poderíamos dizer que os elementos que definem uma posição constru-


cionista são: antiessencialismo (as pessoas e o mundo social são o reul-
tado, o produto, de processos sociais específicos); relativismo (a “Realida-
de” não existe independentemente do conhecimento que produzimos
sobre ela ou com independência de quaisquer descrições que fazemos
dela); o questionamento das verdades geralmente aceitas (o contínuo

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capítulo 6 | 135

questionamento da “verdade”, pondo em dúvida sistematicamente o


modo como aprendemos a ver o mundo e a nós mesmos); a deter-
minação cultural e histórica do conhecimento e o papel conferido à
linguagem na construção social (a realidade se constrói socialmente e
os instrumentos com os quais se constrói são discursivos) (IÑIGUEZ,
2005, p. 2).

Tais pressupostos ontológicos, epistemológicos e políticos são bas-


tante conhecidos. Porém, argumentamos que, para lidar com os dilemas
éticos contemporâneos, é necessário ampliar esse olhar construcionista
e acrescentar contribuições de autores da Teoria Ator Rede. Nessa pos-
tura (pós-)construcionista, para além do relativismo, antiessencialismo
e historicismo, propomos, em sintonia com Annemarie Mol (1999), que
a ontologia, a epistemologia e a política sejam empregadas no plural. Ou
seja, as linhas históricas, que demarcam a emergência de problemáticas
e a definição de soluções, não se apagam com o passar dos anos. Con-
vivem, criando tensões e conflitos, gerando multiplicidade de versões
sobre os fatos do mundo. Se ontologias e epistemologias são plurais,
então, a responsabilidade pela opção está posta. As opções têm efeitos e
implicações. Elas são, portanto, políticas.
Que contribuições pode trazer essa postura (pós-)construcionista?
Propomos que são, pelo menos, de dois tipos: ajudar a entender como
chegamos à era dos códigos e às tensões aí geradas; e ajudar a desen-
volver uma postura crítica em relação à produção de conhecimentos.
Em resumo, oferecer insumos sobre como agir de maneira ética quando
pesquisamos.

Como chegamos aqui

A ética, o debate sobre como a vida deve ser vivida, é uma noção social
e, como tal, sua presença constante no nosso dia a dia, e atualmente no

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136 | construcionismo social

nosso cotidiano científico, aponta simultaneamente para duas conclu-


sões. Primeiro, sugere que construir a vida coletiva não é nem nunca foi
um processo automático; segundo, enuncia que temos e continuamos a
ter dúvidas sobre qual deveria ser nossa conduta em relação ao outro. Se
tais questionamentos já eram evidentes entre os primeiro filósofos, con-
forme podemos verificar nos diálogos de Platão, não é surpresa desco-
brir que se estendeu à nossa relação com o conhecimento. Por exemplo,
há 25 séculos, os jovens aprendizes gregos da arte da medicina faziam
um juramento (o de Hipócrates) que, entre outros elementos, explicita-
va os limites do exercício profissional, a responsabilidade com seus pa-
cientes e o silêncio em relação àquilo que era observado na vida do lar.
Nos séculos XVII e XVIII, com a chegada das ciências como hoje
as conhecemos, os pesquisadores se preocupavam muito mais com a
importância dos fatos em relação aos perigos das opiniões do que em
especificar como os estudos deveriam ser conduzidos. Além disso, a
seriedade na produção de conhecimentos era considerada um atributo
pessoal e uma extensão da ética da vida em geral. A própria expressão
escolhida para servir de lema para a recém-criada Sociedade Real, na
Inglaterra, em 1660 (nullius in verba, ou seja, “não se contente com a pa-
lavra de ninguém”, ou mais precisamente, “apenas os fatos interessam”),
deixa muito clara a crença nos valores empíricos e na importância da
evidência. O que se esperava de um cavalheiro era que ele relatasse com
fidelidade e fidedignidade as observações feitas. Assim, os dilemas e pe-
sadelos noturnos de Darwin, no século XIX, não tinham relação com
suas observações e conclusões, mas com as implicações de sua teoria.
Seria impossível apontar para este ou aquele acontecimento como
sendo propulsor de mudança quanto à reflexão ética sobre a produção
de conhecimentos, porquanto não se escreve a história social das ideias
em capítulos sequenciais. Há, sim, fios parciais que se entrecruzam em
momentos específicos, cujas implicações são vistas ex-pós-facto ou são
reconfiguradas como antecedentes importantes – como, por exemplo, o
constante (ab)uso das experiências da confederação grega como justi-

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ficativa para a inevitabilidade da democracia ocidental. No caso da éti-


ca científica, o exemplo central usado nos livros didáticos se refere aos
eventos da Segunda Guerra Mundial na Europa e no Japão, mas suas
origens datam de quase 400 anos antes da guerra.
Vale lembrar que, durante trinta anos, de 1618 a 1648, os diferen-
tes reinados da Europa se digladiaram na guerra mais longa da história
ocidental. Populações de regiões inteiras foram dizimadas; lutas pelo
poder local cruzaram com agendas dinásticas que, por sua vez, se fize-
ram presentes em conflitos entre a Igreja Católica – fiel à sua posição
medieval de um reinado cristão único – e as jovens igrejas protestantes
dos reinados do norte (Suécia, Alemanha, Países Baixos). No tratado
de paz assinado em Vestefália, foram codificados e aceitos os princípios
que formataram a ordem mundial (na perspectiva ocidental) nos 400
anos seguintes. Os quatro princípios básicos eram: territorialidade, so-
berania, autonomia e legalidade. Como resultado, foram reconhecidos
os limites e fronteiras territoriais de cada Estado, seu povo como unida-
de política, sua autoridade legal soberana, assim como sua autonomia
interna e diplomática. As leis internacionais foram reconhecidas apenas
na medida em que cada Estado-Nação aceitasse reconhecer seu alcan-
ce – caso contrário, seus efeitos seriam nulos. Apesar de os resultados
terem indignado profundamente o Papa Inocêncio X, o Tratado de Ves-
tefália permitiu o crescimento e fortalecimento dos países e, posterior-
mente, uma organização mundial com base em Estados-Nação.
Foi com tal arcabouço descentralizado, limitado e autônomo que,
400 anos mais tarde, os países aliados – e especificamente os Estados
Unidos, Reino Unido e a Rússia – tentaram lidar com as atrocidades co-
metidas durante a Segunda Guerra. Como responder à situação, quando
a resposta do acusado era que seguia as leis de seu país e, portanto, não
fazia nada de errado? E ainda afirmava que seu comportamento era cor-
reto, uma vez que era sua obrigação seguir ordens.
Tal como a paz de Vestefália havia sido utilizada como marco his-
tórico simbólico da instauração dos Estados-Nação (simbólico porque

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138 | construcionismo social

as ideias que se concretizaram no documento de paz circulavam ante-


riormente), os julgamentos de Nuremberg, realizados de 1946 a 1949,
e os de Tóquio, efetivados de 1946 a 1948, que tiveram como foco di-
ferentes grupos profissionais (militares, políticos, médicos e juízes), se
transformaram no marco simbólico de um novo conceito social: o dos
crimes contra a humanidade. Aqui, não há dúvida de que a tradição de
jurisprudência anglo-saxã de debater e criar precedentes a partir da ar-
gumentação na sala de tribunal foi relevante na construção social desse
novo terreno, porque, conforme mencionamos, não havia nenhum có-
digo formal anterior. Inclusive, é importante salientar que os diferentes
e assim chamados códigos e princípios de Nuremberg não são produtos
de um comitê constitucional, mas, em grande parte, a consolidação pós-
julgamento de princípios desenvolvidos durante quase cinco anos de ar-
gumentos e contra-argumentos filosóficos e morais, entre advogados e
juízes, em ações individuais específicas. Para nossa reflexão sobre ética
em pesquisa, foram fundamentais os processos contra os médicos, por
terem usados prisioneiros de guerra e cidadãos de países ocupados em
experimentos, sem o seu consentimento (GUILHEM; DINIZ, 2008).
Durante esse processo, em discussões paralelas e em espaços diplo-
máticos distintos, estava em curso uma inflexão crucial na ordem diplo-
mática mundial. Em princípio, nunca mais um país poderia pleitear sua
soberania e arguir a legalidade de suas instituições para justificar ações
que feriam as obrigações mínimas devidas a cada membro de uma nova
coletividade universal: a humanidade.
Simultaneamente aos julgamentos de Nuremberg e Tóquio, os di-
plomatas dos países líderes dessa nova ordem pós-guerra iniciaram a
construção de novas instituições internacionais, entre as quais a Organi-
zação das Nações Unidas (1945). Em 1947, a partir de solicitação desse
novo organismo e sob a presidência de Eleanor Roosevelt, esposa do
recém-falecido presidente norte-americano F. D. Roosevelt, homens e
mulheres de culturas, filosofias, posições políticas e religiosas distintas,
do mundo inteiro, se reuniram, aproveitando o que depois seria identi-

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capítulo 6 | 139

ficado como uma curtíssima janela de oportunidade antes do início da


Guerra Fria, para demonstrar que pessoas com pontos de vista muito
diversos podiam concordar com um conjunto mínimo de caracterís-
ticas da vida decente (GLENDON, 2001). A seguinte citação do diário
de Eleanor Roosevelt sobre a primeira reunião da comissão serve como
exemplo dessa diversidade e também da competência dialógica como
prática humana:

O dr. Chang era um pluralista e sustentou de maneira encantadora a


proposta de que há mais de um tipo de realidade última. A Declaração,
disse ele, deveria refletir mais do que simplesmente ideias ocidentais e o
dr. Humphrey teria que ser eclético em sua abordagem. Seu comentário,
embora dirigido ao dr. Humphrey, era de fato endereçado ao dr. Ma-
lik, que aproveitou a deixa expondo, longamente, a filosofia de Tomas
Aquino. O dr. Humphrey aderiu entusiasticamente à discussão, e eu me
lembro que em algum momento o dr. Chang sugeriu que o Secretariado
poderia bem dedicar alguns meses ao estudo dos fundamentos do Con-
fucionismo! (ONU, 2012).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi assinada em 1948


marcando, simbolicamente, o fim de uma transição que passou pela car-
ta de direitos dos Britânicos (1689), pela Declaração de Independência
dos Estados Unidos (1776) e pela Declaração Francesa dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789). Durante anos, seu alcance prático ficou
reduzido aos eventos internacionais e, até pelo menos 25 anos atrás, o
terreno dos direitos permaneceu majoritariamente no espaço da lite-
ratura jurídica. De maneira semelhante, os princípios que regeram os
processos de Nuremberg, embora registrados formalmente, foram con-
siderados desnecessários em um mundo democrático e civilizado, espe-
cialmente em relação às questões médicas.
No caso específico da América Latina, foi durante as diferentes tran-
sições democráticas dos períodos pós-militares que a expressão “cida-

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140 | construcionismo social

dão de direitos” passou a fazer parte da linguagem cotidiana e começou


a ser empregada, posteriormente, em relação à pesquisa em medicina
e, mais recentemente, no que se refere à experimentação científica de
maneira geral.
No final do século XX, gradativamente, o tema dos direitos passou
a fazer parte da discussão sobre desenvolvimento econômico e social
(NELSON; DORSEY, 2008), entrecruzando-se em termos práticos, não
somente em relação aos direitos humanos, como no caso da pobreza,
mas também em termos das relações entre os países ricos e aqueles em
várias fases de desenvolvimento. Questões como acesso a remédios, en-
saios clínicos, uso de conhecimentos indígenas e patentes medicinais
ficaram muito visíveis – para o público geral – especialmente em tor-
no à epidemia de HIV/Aids. Também se começou a reconhecer que os
países desenvolvidos não eram imunes aos questionamentos éticos e ti-
nham esqueletos guardados (às vezes literalmente!) nos seus armários
científicos (GUILHEM; DINIZ, 2008; VIEIRA; HOSSNE, 1998). Cada
vez mais se colocou em dúvida a capacidade da chamada comunidade
científica de se autorregular, e novos mecanismos de governança, que
incluiriam o controle externo, passaram a ser necessários.
Sem ser assim nomeada, a regulação que a comunidade científica
exerceu sobre seus próprios pares (a autorregulação coletiva) havia sido
o método básico da ética investigativa, pelo menos desde o Juramento
de Hipócrates. Por muitos séculos, a comunidade científica foi bem exí-
gua. Durante o período medieval, a despeito de modos de comunicação
bastante precários, os intelectuais e os pesquisadores se mantinham em
contato por meio de cartas, mensageiros e viagens (BURKE, 2003). No
século XVIII, as reuniões científicas cabiam em salas de aula, e as foto-
grafias dos encontros acadêmicos do início do século XX mostram, no
máximo, trinta a quarenta homens e mulheres dispostos em duas ou três
fileiras. Ainda na década de 1950, o número de pessoas que entrava na
universidade era pequeno em relação às profissões técnicas, e poucas
aceitavam o árduo caminho em direção ao doutoramento, feito de ma-

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neira artesanal. Hoje, os números retratam outro cenário: uma explosão


de campos novos, uma ampliação de campos existentes, centros de in-
vestigação, o crescente uso de conhecimentos derivados de pesquisas na
implementação de políticas públicas, um mercado de ideias que atrai
interesses comerciais e pressões competitivas para publicação, carrei-
ra e fundos de financiamento. Uma explosão numérica e de interesses
tão discrepantes que, mesmo buscando se manter fiel aos princípios da
autorregulação e das tradições humanistas da ética coletiva, torna-se
quase impossível evitar a presença de práticas como plágio e autoplágio,
falta de cuidado com os dados colhidos, desrespeito para com as pes-
soas envolvidas nas investigações e até aceitação passiva de práticas que
chegam muito perto daquelas tornadas visíveis nos tribunais reunidos
entre 1946 e 1949. Outros mecanismos de governança coletiva, como
a linguagem dos códigos e das boas práticas, se tornaram necessários.
A questão é saber de que mecanismos precisamos e como devem ser
desenvolvidos.
Na psicologia social (pós-)construcionista, estamos longe do foco
principal dessas preocupações em termos de ética de pesquisa. Não nos
engajamos em experimentos, não buscamos modificar comportamen-
tos, respeitamos as pessoas com as quais conversamos ou sobre as quais
lemos em documentos e relatórios, e as que incluímos como coautores
implícitos ou explícitos de nossos estudos. Frequentemente, também fo-
calizamos temas que buscam reconhecer e melhorar as práticas públicas
em relação aos direitos. Sem dúvida, a maioria de nossos estudos estaria
inserida na categoria de risco mínimo, semelhante aos já existentes na
vida cotidiana em sociedade (GUILHEM; DINIZ, 2008) e, empregando
as técnicas qualitativas, fazemos muito mais uso de consentimentos li-
vres e esclarecidos orais, garantindo (quando faz sentido) o anonimato
dos registros ou sua aprovação explícita. Nossa preocupação frequente
é com a compreensão do que está ocorrendo, não com a previsão do
que virá a acontecer. Além disso, conversamos muito mais com nossos
colegas das ciências humanas do que das exatas e somos os primeiros a

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142 | construcionismo social

reconhecer os limites de nossas reflexões. Entretanto, fazemos parte da


comunidade de disciplinas acadêmicas e não podemos fugir das ques-
tões em tela.
Exemplificando: até que ponto a situação atual na qual a psicologia
social e as demais ciências sociais estão cada vez mais subordinadas a
um modelo único do fazer científico (materializados nas categorias dos
formulários para os comitês de ética) não evoca – guardadas as devidas
proporções – a situação enfrentada pelos diferentes reinados europeus
do início do século XVII? Por outro lado, e constatando o problema da
hegemonia dos comitês biomédicos no campo da pesquisa com seres
humanos, como garantir uma autonomia responsável que, ao mesmo
tempo, respeite esse ente coletivo, a humanidade? É lícito, quando hoje
reuniões científicas contam com mais de cinco mil participantes, dei-
xar que cada disciplina determine o que é eticamente digno e correto?
Quais são os limites da solidariedade coletiva?

Implicações para a pesquisa

Os códigos e comitês – construídos em boa fé por pessoas que em nada


diferem dos autores e leitores desta coletânea – zelam para que sejam
seguidas boas práticas em pesquisa em dois aspectos complementares:
no que diz respeito à conduta em relação aos participantes da pesquisa,
e quanto aos interstícios da produção de conhecimento.

A pesquisa como prática dialógica: a relação entre


pesquisadores e participantes

Na história recente da produção de conhecimentos, o primeiro aspecto


– a conduta em relação aos participantes – foi o motor da elaboração dos
vários códigos referidos anteriormente e tem por foco os quatro princí-

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pios da bioética: a autonomia dos participantes, por meio da utilização


de termos de consentimento livre e esclarecido; a ponderação entre ris-
cos e benefícios, buscando o máximo de beneficência; a garantia de que
danos previsíveis sejam evitados (a não maleficência); e a relevância so-
cial pautada na justiça e equidade. É uma estratégia de proteção contra o
potencial invasivo – física ou moralmente – da ciência, em sua vertente
experimental (como nos ensaios clínicos) ou interpretativa (como nos
estudos que colocam os participantes em situações de vulnerabilidade
psicológica).
Como qualquer sistema de proteção, funciona com base em antepa-
ros: informar sobre objetivos e riscos potenciais; e cuidar daqueles que
estão em situação de vulnerabilidade. Contudo, em uma perspectiva
dialógica, não basta apenas fazer uso de anteparos. A pesquisa é uma
prática social, necessariamente interativa, e, como tal, face a face ou me-
diada por instrumentos como questionários, tem efeitos na produção de
sentidos (SPINK, 2000). Entretanto, esses efeitos não ocorrem em uma
única direção. É comum encontrarmos reflexões sobre ética em pesqui-
sas qualitativas nas quais a atenção se volta aos possíveis efeitos de senti-
dos para os participantes. Porém, numa postura dialógica, sentidos são
coconstruídos; estão inseridos em correntes de interanimação dialógica
que extrapolam a situação de pesquisa propriamente dita, tornando pre-
sentes outras vozes, com base na elaboração de memórias sobre eventos
vividos ou mesmo sobre regras de sociabilidade.
Esta vertente dialógica – que poderíamos chamar de ética da inter-
subjetividade – é uma ação política. Requer retomar a noção de cuidado,
para que possamos fortalecer aquilo que, para nós, em psicologia social,
é fundamental; não mais unidirecional no sentido de “cuidar do outro”,
mas como espaços de reflexão que propiciem o fortalecimento das ha-
bilidades de cuidarmos de nós mesmos (coletivos) em termos de uma
política de existência.

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144 | construcionismo social

A pesquisa como prática social: os interstícios


da produção de conhecimentos

O segundo aspecto, cada vez mais evidente nas reflexões contemporâneas


sobre boas práticas em ciência, refere-se aos interstícios da produção de
conhecimentos. São questões relacionadas aos resultados de pesquisas e
à sua veiculação pública. Trata de questões de falsificação de dados, de
parcelamento de pesquisas para fins de incremento de produtividade e
das várias formas de plágio.
Tais questões não são necessariamente recentes. Há exemplos va-
riados ocorridos em um passado nem sempre longínquo: o homem de
Piltdown é um deles. Piltdown, em Sussex, Inglaterra, é um sítio arqueo-
lógico no qual, entre 1908 e 1912, foram encontrados fósseis de huma-
nos, macacos e outros mamíferos. Entre os fósseis, foi localizado um
que, supostamente, seria um ancestral da espécie humana, pois tinha
o crânio humano e um maxilar de macaco. Esse hipotético ancestral
recebeu o nome de Eoanthropus dawsoni, em honra a Charles Dawson,
o paleontólogo que o descobriu. A fraude só foi exposta em 1953, e o
caso suscitou acirrados debates, uns voltados à crítica ao evolucionismo,
outros tendo por foco a falibilidade da ciência. O paleontólogo Stephen
Jay Gould (1989) dedicou um capítulo de seu livro O polegar do panda
ao caso Piltdown, apontando algumas razões para que tal fraude tenha
sido possível, entre elas: a reputação dos cientistas que descobriram o
fóssil, o pouco acesso ao fóssil para análise criteriosa e a inexistência, na
época, de técnicas de análise como a de datação de carbono radioativo.
O plágio também tem longa história. Gustav Le Bon é conhecido
por suas reflexões sobre psicologia das multidões, publicadas em livro,
em 1895. A despeito de sua considerável influência em autores que se
dedicaram a estudar o comportamento das massas, suas ideias não eram
inovadoras, porquanto foram encontradas em outros autores da época.
Um deles, em particular, o criminalista italiano Scipio Sighele, o acu-
sou publicamente de plágio. Dinâmicas contemporâneas, entre elas a

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capítulo 6 | 145

pressão para publicar, subsumida, na frase publish or perish (publicar ou


morrer) como precondição para credenciamento na pós-graduação e,
sobretudo, para conseguir aprovação de projetos em agências de fomen-
to, tornaram o problema mais grave. Aqui também emergem estraté-
gias de anteparo, a exemplo da avaliação por pares, do desenvolvimento
de softwares que detectam plágio e das punições no caso de detecção.
É igualmente emblemático o caso de um psicólogo social holandês.
Diederik Stapel era professor de psicologia social na Universidade
de Tilburg, na Holanda. Em outubro de 2011, descobriu-se que grande
parte de seus experimentos haviam sido falsificados e os dados, usados
em publicações próprias, em outras em que havia sido coautor e em 14
das 21 teses de doutorado por ele supervisionadas. Sua longa carreira
de fraude foi mantida em sigilo porque Stapel não permitia a seus cola-
boradores e alunos realizar experimentos, apenas analisar dados por ele
fornecidos. Sua justificativa foi de que não podia suportar a pressão para
pontuar, publicar e destacar-se (ALDHOUS, 2011).
Nessa segunda vertente, da conduta na produção de conhecimentos,
o que está em pauta é o solo cultural em que somos socializados a fazer
ciência. Porém, também nesse caso, não se trata da ética prescritiva dos
códigos e dos mecanismos de controle. Poderíamos pensá-la no sentido
foucaultiano de uma política da existência intrinsecamente associada ao
cuidado de si.
Michel Foucault foi buscar na Antiguidade as bases históricas do
cuidado de si, bases que o permitiram discorrer sobre a “ética do cui-
dado de si” na contemporaneidade. O autor analisa o tema em vários
textos e, sobretudo, no curso ministrado no Collège de France em 1981-
1982 sobre a hermenêutica do sujeito (FOUCAULT, 2006a). Dentre as
razões pelas quais o imperativo grego “cuida-te a ti mesmo” se desfaz ou
vira sombra na filosofia ocidental, daremos ênfase à sua reinterpretação
como prática ensimesmada, como amor a si mesmo. Ou seja, perde-se
justamente a conexão ética que, na Grécia antiga, situava conhecimento
de si como modo de se conduzir perante os outros.

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146 | construcionismo social

Em entrevista concedida por Foucault a Becker, Fornet-Betancourt


e Gomez-Müller, em janeiro de 1984, um diálogo ilustra o que estamos
propondo ao situar a ética na pesquisa como política de existência rela-
cionada ao cuidado de si.

– O cuidado de si, como o senhor disse, é, de certa maneira, o cuidado dos


outros. Nesse sentido, o cuidado de si também é sempre ético, ético em si
mesmo.
– Para os gregos, não é por ser cuidado dos outros que ele é ético.
O cuidado de si é ético em si mesmo; mas implica relações complexas
com os outros, uma vez que esse êthos da liberdade é também uma ma-
neira de cuidar dos outros; por isso é importante, para um homem livre
que se conduz adequadamente, saber governar sua mulher, seus filhos,
sua casa. Nisso também reside a arte de governar. O êthos também im-
plica uma relação com os outros, já que o cuidado de si permite ocupar
na cidade, na comunidade ou nas relações interindividuais o lugar con-
veniente – seja para exercer uma magistratura ou para manter relações
de amizade. Além disso, o cuidado de si implica também a relação com
um outro, uma vez que, para cuidar bem de si, é preciso ouvir as lições
de um mestre. Precisa-se de um guia, de um conselheiro, de um amigo, de
alguém que lhe diga a verdade. Assim, o problema das relações com os
outros está presente ao longo desse desenvolvimento do cuidado de si.
(FOUCAULT, 2006b, p. 270-271).

Em suma, os códigos e comitês são, simultaneamente, verdades e


prescrições que fornecem regras de conduta. “Cuidar de si é se munir
dessas verdades: nesse caso, a ética se liga ao jogo da verdade” (FOU-
CAULT, 2006b, p. 269).

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Conclusões, ou melhor, atando alguns fios


de uma trama complexa

Na postura (pós-)construcionista, ética é um cenário de complexida-


des onde se mesclam diversas versões, todas historicamente construí-
das. Como pesquisadores do presente, não são as tramas históricas que
constituem nosso foco de ação, e sim sua concomitância no “aqui-e-a-
gora”. Trabalhamos ética como uma multiplicidade de versões, ora em
competição, ora em tensão, mas que também podem estar obliteradas
pela necessidade de respostas prontas às demandas do cotidiano de pes-
quisa. Se há multiplicidade, há opções. Por exemplo, podemos fugir da
dialogicidade ao optar por ferramentas de investigação que nos isolam
da subjetividade explícita dos participantes – assim, os efeitos de senti-
do de nossas perguntas e provocações ficam distantes de nossos olhos.
Podemos, igualmente, resistir às tentações da produtividade e zelar para
que nossas palavras não se transformem em autoplágios, repetidas ad
infinitum em publicações, disfarçadas às vezes por veiculação em dis-
tintos países.
Se, como propõe Annemarie Mol (1999), versões distintas criam rea-
lidades distintas, temos também que analisá-las por seus efeitos políticos.
O que queremos dizer com isso? Nesse cenário complexo de pes-
quisa, temos opções que nos levam a nos afiliarmos às tradições mais
experimentais ou às tradições mais interpretativas da pesquisa qualitati-
va. Essa é uma opção epistemológica que, obviamente, terá implicações
no modo de conduzir a investigação, abrindo, mais ou menos, o flanco
da dialogia. Porém, nada ocorrerá se não formos instigados por uma
pergunta. E, nesse afã de concluir o capítulo, é a formulação de nossa
pergunta de pesquisa que nos abrirá o horizonte político. Por que afinal
queremos fazer esta pesquisa? Qual sua relevância para fazer aflorar o
mundo que nos parece eticamente desejável?
Talvez seja este o maior desafio que enfrentamos: aceitar que o co-
nhecimento não é um caminho intuitivo, que avança por conta própria

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148 | construcionismo social

e de maneira inevitável, motivado pela curiosidade humana. Temas de


investigação não fazem fila democrática para serem estudados. Somos
nós que lhes damos vida ao formularmos nossas perguntas. Ou seja, as
escolhas que fazemos de temas e as questões que lhes dão forma são, em
última instância, opções políticas. Em termos (pós-)construcionistas,
sabemos que, frequentemente, o que nos distingue como pesquisadores
não é tanto a aceitação de algo como temporário e fruto de sua época,
mas o questionamento sobre se isso é problemático ou não, de que ma-
neira e por quê.

Dicas dos autores: textos, filmes ou vídeos

Sugestões de filmes e documentários sobre ética em pesquisa:


• O jardineiro fiel, lançado em 2005, trata de ensaios clínicos de no-
vos medicamentos realizados no Quênia. É um filme de suspense,
baseado em roteiro de John Le Carré, e que contou com a direção
de Fernando Meirelles e a participação de Ralph Fiennes e Rachel
Weisz. Trata do caso de Justin (Ralph Fiennes), diplomata britânico
cuja esposa é assassinada. Após o crime, Justin descobre que a esposa
estava envolvida em uma investigação sigilosa sobre uma conspira-
ção internacional, envolvendo governos e multinacionais do setor
farmacêutico, para a realização de testes de medicamentos em seres
humanos. O filme retrata os abusos cometidos por esses governos e
empresas em países pobres, nos quais não há legislação para pesqui-
sas realizadas em seres humanos e/ou onde grassa tal nível de cor-
rupção que as normas, nacionais ou internacionais, são facilmente
burladas.
• O estudo da prisão simulada (EUA), realizado por Philip Zimbardo,
em 1971, possibilita refletir sobre ética na definição de objetivos de
pesquisas e na sua condução. O objetivo, no caso, era entender os
efeitos psicológicos de estar na posição de guarda e/ou encarcerado

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capítulo 6 | 149

numa prisão. A pesquisa foi realizada com 24 estudantes aleatoria-


mente alocados a uma ou outra posição. Os participantes aceitaram
os papéis com uma força que extrapolou as expectativas do próprio
Zimbardo. O experimento foi filmado e algumas cenas estão dispo-
níveis na internet. O estudo foi parcialmente replicado, em 2012, por
Alex Haslam e Steve Reicher, psicólogos das universidades de Exeter
e Saint Andrew, na Inglaterra, com apoio da BBC, que produziu o
documentário intitulado The Experiment [A experiência], também
disponível na internet. O novo estudo é interessante por ter resul-
tados bem diferentes dos de Zimbardo e por propiciar apreender o
papel da liderança na emergência de comportamentos tirânicos.
• Milgram e o estudo da obediência. Trata-se de uma série de pesquisas
conduzidas em 1961, por Stanley Milgram, na Universidade de Yale,
EUA. O objetivo era compreender em que medida os participantes
obedeciam às ordens de uma figura de autoridade, mesmo quan-
do os efeitos de suas ações estavam em conflito com suas posturas
morais. Neste caso, as ordens referiam-se à punição, por meio de
choques cada vez mais intensos, a um suposto “sujeito” cuja tarefa
era memorizar palavras aleatórias. O experimento foi reproduzido
recentemente pela BBC, como parte do documentário How violent
are you? [Quão violento é você?], veiculado em 2009. Também foi
replicado na França, no documentário Le jeu de la mort [O jogo da
morte], veiculado em 2010. Nessa ocasião, o experimento foi inseri-
do no contexto de um piloto para um programa sobre jogos na tele-
visão. Ambos os documentários estão disponíveis na internet.

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PARTE II

Construcionismo social e práticas profissionais

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Capítulo 7
Participação da família no tratamento em saúde
mental: histórias sobre diálogo e inclusão
pedro pablo sampaio martins
marcus vinicius dos santos
carla guanaes-lorenzi

Os cientistas dizem que os humanos são feitos


de átomos, mas a mim um passarinho contou
que somos feitos de histórias.
eduardo galeano

Há algumas décadas, práticas em saúde mental ao redor do mundo têm


sido informadas por noções de construção social (SEIKKULA et al.,
2006; SEIKKULA; ARNKIL; ERIKSSON, 2003; ANDERSEN, 1999; DE
SHAZER, 1994; WHITE; EPSTON, 1990). Tais práticas não dizem res-
peito a fórmulas prontas ou receitas ideais de “aplicação” de conceitos
e técnicas construcionistas. Pelo contrário, uma orientação construcio-
nista social nos informa sobre uma postura reflexiva de construção de
práticas, que privilegia um foco no contínuo processo por meio do qual
determinadas maneiras de estar em relação podem ser parte da criação
de diferentes mundos sociais.
Uma das principais características do movimento construcionista é a
ênfase na linguagem, no contexto sócio-histórico e no processo intera-
tivo que permitem o reconhecimento e a valorização de múltiplas des-
crições de si, que variam de acordo com o contexto e com as particula-

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154 | construcionismo social

ridades de cada interação. Para os autores construcionistas, a dinâmica


da construção de si pode ser compreendida na trama de processos con-
versacionais, através dos quais determinadas versões de si são trazidas
para a coordenação, sendo ativamente negociadas e transformadas na
relação colaborativa entre as pessoas. Com tal entendimento, o presente
capítulo tem por finalidade apresentar e discutir como uma orientação
construcionista social tem nos ajudado no entendimento e desenvol-
vimento de um programa de assistência familiar em um hospital-dia
de psiquiatria que tem como objetivo oferecer tratamento, em regime
de semi-internação, a pacientes acometidos por graves sofrimentos psí-
quicos. Argumentaremos que a inclusão de familiares no tratamento de
pacientes na saúde mental pode ser encarada como uma atividade dia-
lógica, que abre possibilidades à construção conjunta de novas histórias
que moldam a vida das pessoas.

Família como objeto de atenção em saúde mental

Em um primeiro nível de análise, as ideias construcionistas sociais nos


convidam a explorar o processo histórico envolvido na produção da
descrição da família como um objeto importante de atenção em saúde
mental. Assim, retomando brevemente o contexto histórico do surgi-
mento do campo da saúde mental, o fenômeno da “loucura” sempre
existiu, assim como o lugar para se tratar dos chamados loucos: templos,
domicílios e demais instituições, como asilos. Nesses locais, o “louco”
era isolado e segregado junto a outras pessoas marginalizadas, não exis-
tindo uma separação nem um local específico para o seu isolamento.
Foi a partir do século XVIII que a experiência nomeada de “loucura”
começou a ser tratada como doença, surgindo a psiquiatria como es-
pecialidade médica e as instituições psiquiátricas propriamente ditas,
como locais específicos para o tratamento do fenômeno da “loucura”.
Dentro dessa nova concepção da loucura, o tratamento do doente men-

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tal passou a se basear em sua reclusão e isolamento, sendo o mesmo


tido como ameaça à sociedade (FOUCAULT, 1978). Neste modelo,
preconizava-se o afastamento do doente de seus vínculos, já que a rea-
prendizagem social viria pela dedicação integral e submissão às regras
e rotinas da instituição manicomial (COSTA-ROSA, 2000). A família é
vista como um sistema doente, fragilizado, sendo parcialmente culpa-
bilizada pela doença de seu parente. Em prol da recuperação, o doente
deveria ser afastado do convívio com a família, pois somente assim seria
possível resgatar o indivíduo e restabelecer sua razão desviada pelos ví-
cios oriundos da situação da doença mental (SARACENO, 2001). Nesse
sentido, a partir da emergência desse discurso médico/psiquiátrico clás-
sico, a responsabilidade do cuidado do doente mental passou a ser do
especialista e de centros especializados de tratamento, sem a inclusão da
família como parceira no processo de cuidado.
Este papel da família no tratamento do doente mental começou a
se modificar a partir de meados do século XX, com o movimento da
Reforma Psiquiátrica. Podemos entendê-la como um movimento que
vai muito além da reformulação do modelo de assistência em saúde
mental. Trata-se de um questionamento e de uma mudança dos para-
digmas da psiquiatria clássica e, de maneira mais ampla, uma revisão
dos discursos sobre a loucura predominantes em nossa sociedade. Nas
palavras de Delgado (1992, p. 29), “embora trazendo exigências po-
líticas, administrativas, técnicas e também teóricas bastante novas, a
reforma insiste num argumento originário: os direitos do doente men-
tal, sua cidadania”.
Segundo Gonçalves e Sena (2001), a reforma psiquiátrica exigiu um
deslocamento das práticas de psiquiatria às práticas de cuidado realiza-
das na comunidade, deixando nas mãos da família um papel central no
cuidado dos usuários de serviços da saúde mental. Se, por um lado, os
familiares passaram a ser oficialmente encarados como “parceiros do
tratamento” nos novos ambientes de atendimento (BRASIL, 2005), por
outro, diversas críticas surgiram, apontando para como a desinstitucio-

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156 | construcionismo social

nalização simplesmente colocou para as famílias a responsabilidade de


cuidar dos seus parentes com transtornos mentais sem que o Estado
houvesse criado recursos efetivos de assistência a elas (CAVALHERI,
2010; COLVERO; IDE; ROLIM, 2004; GONÇALVES; SENA, 2001).
Tais críticas, que aparecem sistematicamente na literatura sobre a refor-
ma psiquiátrica, denunciam a devolução da enfermidade para a família.
Neste sentido, a preocupação dos estudiosos tem sido em pensar
como a família pode ser incluída, cuidada e tratada no interior dos
serviços para que possa ter suas capacidades ampliadas, e não se torne
simplesmente um “bode expiatório” no qual se possa localizar a respon-
sabilidade pela pessoa em sofrimento emocional (PINHO; HERNÁN-
DEZ; KANTORSKI, 2010; GONÇALVES; SENA, 2001). Inseridos neste
contexto e pensando tanto o cuidado à família como seus processos de
inclusão no tratamento, consideramos, a seguir, algumas contribuições
construcionistas sociais que têm nos ajudado na construção de um pro-
grama de assistência a famílias em saúde mental.

Construcionismo, narrativas, famílias e inclusão:


que história é essa?

Algumas perspectivas construcionistas focalizam o modo como as pes-


soas vivem por meio de histórias (WHITE; EPSTON, 1990). Tais ex-
plicações se constroem sobre metáforas textuais e argumentam que as
experiências vividas precisam ser “historiadas”, ou seja, contadas em
histórias, para que possam fazer sentido. Trata-se de uma verdadeira in-
versão na lógica tradicional de entendimento do “contar histórias”. Tra-
dicionalmente, entende-se que primeiro as pessoas vivem, depois con-
tam determinadas histórias sobre a vida. Boas histórias, neste sentido,
seriam aquelas que melhor refletissem a realidade dos eventos, ou seja,
narrativas fidedignas aos fatos. Este tipo de entendimento compartilha
de uma tradição dualista, que separa o mundo entre sujeitos e objetos

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e coloca a representação como função das histórias. Por outro lado, as


perspectivas narrativas de construção social entendem histórias em seu
caráter performático. Isso quer dizer que as histórias são compreendi-
das como constitutivas da vida das pessoas. Ao contar histórias sobre si
mesmas e sobre o mundo, as pessoas estão produzindo narrativas que
organizam suas vidas. Segundo tal perspectiva, o que é visto como “fato”
só se torna possível diante de seu posicionamento em uma história, pas-
sível de ser legitimada relacionalmente.
De acordo com Schram (2006), qualquer investigador interessado no
trabalho com narrativas compartilha de algumas premissas. Tais investiga-
dores entendem que as pessoas criam histórias de suas experiências para
construírem sentido e contextualizarem suas vidas. Contar histórias é en-
carado como um processo natural, óbvio e autêntico na vidas da pessoas.
Estas narrativas são sequenciais e podem ser reais ou imaginadas, mas a
forma como são contadas influencia a vida de quem as conta. Por fim, as
histórias precisam de uma voz: elas são sempre contadas por alguém.
No contexto da saúde, entendemos que o adoecimento mental grave
demanda por histórias (FRANK, 2005). Estas histórias têm um caráter
pessoal, na medida em que são contadas por meio de corpos feridos e
doentes. Entretanto, são também sociais. Em primeiro lugar, as pessoas
não contam histórias sozinhas, uma vez que a própria forma da história
é moldada por estruturas narrativas, metáforas e padrões culturalmen-
te compartilhados, que informam como uma narrativa apropriada de
doença pode ou não ser contada. Além disso, histórias são sociais porque
são sempre contadas para alguém, presente ou imaginado. Isto confere às
histórias um caráter dialógico, no sentido colocado pelo filósofo Mikhail
Bakhtin (1981). Sampson (1993, p. 106, tradução livre) explica:

Endereçamos nossos próprios atos em antecipação às respostas de ou-


tros reais com quem estamos presentemente envolvidos; outros imagina-
dos, incluindo personagens de nosso próprio passado e narrativas cul-
turais; outros históricos; e o outro generalizado, tipicamente carregado

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nas formas de linguagem pelas quais uma dada comunidade organiza as


percepções e entendimentos de seus membros, que aprendemos a em-
pregar na reflexão de nós para nós mesmos.

De interesse especial para White e Epston (1990) é a discussão so-


bre narrativas e poder. Os autores diferenciam experiência vivida de
experiência narrada, afirmando que esta jamais consegue dar conta da
abrangência daquela. A seleção do que será narrado, portanto, envolve
um processo no qual muito da experiência vivida é deixado de fora das
histórias contadas. Isso acontece especialmente quando determinados
aspectos da experiência não se encaixam na narrativa dominante de
uma pessoa. Constituídas em relação a discursos sobre o que é certo,
bom, moral e verdadeiro, narrativas dominantes são construídas e man-
tidas em um nível local, ao mesmo tempo em que constituem e respon-
dem a esses discursos unitários de “verdade”.
Considerando essas histórias em seu caráter performático, entende-
mos que narrativas sobre si mesmo e sobre o mundo geram efeitos prag-
máticos importantes para a vida das pessoas. Assim, cada narrativa abre
possibilidades de ação sobre o mundo, ao mesmo tempo em que impede
ou dificulta outras. Segundo Frank (1995), em um cenário de saúde pro-
duzido pelo período histórico Moderno, a narrativa médica é tomada
como a verdadeira e se torna critério de julgamento da veracidade e
utilidade de qualquer outra descrição. A sensibilidade pós-moderna te-
ria início com o reconhecimento da importância de diferentes histórias
envolvidas na experiência de adoecimento, para além da narrativa mé-
dica. Uma vez que nenhuma história é necessariamente a única – pois
contá-las envolve um processo compartilhado de seleção de aspectos a
serem narrados –, podemos sempre nos perguntar: Que vozes se calam
quando a história é contada de uma determinada maneira? Que aspec-
tos da experiência vivida deixam de ser narrados? Que ações se tornam
restritas ou impossibilitadas? Como poderíamos contar essa história de
formas diferentes?

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capítulo 7 | 159

Para trazer este entendimento ao contexto do atendimento às famílias


em um hospital-dia psiquiátrico, comecemos considerando que, em uma
cultura que valoriza a família como espaço privilegiado de cuidado em
geral, e diante do adoecimento mental em específico, podemos imaginar
como os familiares são parte importante da construção destas narrativas
de doença. Mas não se trata apenas da demanda de uma narrativa para
o doente. Aos familiares, também é colocado o desafio de historiar sua
própria experiência de vida através do adoecimento do outro.
Partindo deste entendimento, podemos encarar o convite para a fa-
mília participar do tratamento como a abertura de uma possibilidade
de construção conjunta dessas histórias. Como vimos, as histórias não
são criadas por pessoas isoladas, mas emergem em linguagem a partir
das diferentes relações em que as pessoas se engajam. Tais considera-
ções convidam a uma redescrição dos diversos espaços disponibilizados
para a participação da família nos tratamentos em saúde mental como
espaços relacionais e conversacionais.
Observando o entendimento de que as pessoas vivem suas vidas por
meio de histórias e de como essas histórias são construídas, como pode-
mos entender a inclusão de familiares no tratamento em saúde mental?
Como este conhecimento pode nos ajudar a dar sentido a práticas já
existentes? Como ele pode ser útil na reformulação e continuação destas
práticas? Para pensar tais questões, apresentamos a seguir o contexto de
um hospital-dia psiquiátrico e do programa de assistência às famílias
que nele vêm sendo construído.

O hospital-dia psiquiátrico (HD)

O hospital-dia psiquiátrico (HD) é uma instituição pública, vinculada a


um hospital universitário, que se insere na rede pública de atendimento
à saúde mental, contando com dezesseis vagas para pacientes psiquiá-
tricos em regime de semi-internação. Os pacientes permanecem no HD

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durante o dia, de segunda a sexta-feira, retornando ao ambiente familiar


durante as noites e finais de semana. Esta instituição conta com uma
equipe interdisciplinar composta por médicos psiquiatras, enfermeiros,
auxiliares de enfermagem, assistente social, terapeuta ocupacional, psi-
cólogo e educador físico. Os seus usuários são indivíduos acometidos
por graves sofrimentos psíquicos (em sua maioria com diagnósticos de
transtornos psiquiátricos graves) e seus familiares. Também são ofere-
cidas diversas atividades terapêuticas a pacientes que já não estão mais
internados e a indivíduos da comunidade, o que amplia o número de
pessoas que se beneficiam dos serviços oferecidos pelo HD.
Tais atividades terapêuticas são pensadas como uma modalidade de
atendimento alternativo ao modelo hospitalocêntrico da psiquiatria clássi-
ca, marcado pela internação integral e afastamento do paciente de seu con-
texto de vida. Portanto, há uma ênfase nos aspectos psicossociais do pacien-
te e uma busca pelo resgate das capacidades de contratualidade social dos
indivíduos atendidos, considerando que uma das características da vivência
de uma doença mental é a sua estigmatização, tanto pelo seu quadro sinto-
mático e/ou pelos discursos a ela atrelados, implicando um marcado prejuí-
zo na rede social e na inserção de tais indivíduos na sociedade (GERGEN;
GERGEN, 2010; GERGEN; MCNAMEE, 2000). A partir desse modelo, a
inclusão dos familiares no tratamento é um dos focos desta instituição.

O programa de assistência familiar do hospital-dia (HD)

Os esforços da equipe profissional do HD estão cada vez mais direcio-


nados à busca de recursos para um trabalho mais colaborativo junto
às famílias, de tal forma que a família passe de coadjuvante do trata-
mento à protagonista do mesmo. Essa busca resultou na aproximação
do HD com as contribuições do movimento construcionista social em
psicologia (GUANAES-LORENZI et al., 2012). Assim, a “inclusão” dos
familiares no tratamento passa a ser entendida como “inclusão no diá-

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logo”, na medida em que, para além de convidar a família e trazê-la para


o tratamento, o investimento passa a ser no processo de conversação
e no quão generativas e inclusivas de diversas vozes (incluindo a dos
próprios familiares) esses diálogos podem ser. Transposta ao contexto
do serviço de atendimento às famílias no HD, esta noção nos informa
que um diálogo sobre sintomas médicos, diagnósticos e tratamento far-
macológico pode ser útil e necessário, mas certamente não é o único
diálogo possível e importante para essas pessoas nesse momento.
Partindo desta compreensão, buscamos no HD a construção de um
programa de assistência familiar que supere a lógica biomédica (centra-
da no discurso médico e na doença), fomentando a revisão constante,
por parte da equipe, de seus conceitos e posicionamentos, com vistas
à construção de uma prática centrada no diálogo e na maior horizon-
talização das relações. Assim, recursos advindos de diversas propostas
construcionistas sociais passam a integrar o setting terapêutico como
opções discursivas (MCNAMEE, 2004), ou seja, como possibilidades de
engajamento para a conversa que podem favorecer a investigação sobre
que tipos de vida social são possibilitadas quando um modo de falar é
empregado, e não outro. É o caso, por exemplo, do uso de equipes refle-
xivas (ANDERSEN, 1999) nos atendimentos em terapia familiar. Enca-
rada como um recurso para o desenvolvimento do diálogo terapêutico, a
equipe reflexiva pode favorecer a inclusão de outras vozes na construção
das histórias contadas sobre e com as famílias em tratamento.
Com a noção de inclusão no diálogo, passamos da ideia de um (ou
mais) profissional(is) falando para familiares e pacientes sobre a verda-
de única dos fatos (da doença mental) à ideia de familiares, profissionais
e pacientes engajados em situações compartilhadas de diálogo e cons-
trução de histórias sobre suas vidas, seus relacionamentos, sua relação
com “a doença”, e também sobre saúde, recursos e superação.
Para ilustrar os aspectos citados apresentamos, a seguir, a nossa ver-
são de um atendimento familiar, realizado no HD e influenciado por
esses novos posicionamentos.

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Chico e Rosa: emprestando nomes à doença

Chico e Rosa são um casal. Chico tem 55 anos e está afastado do


trabalho de vigilante noturno, com sintomas depressivos e ansiosos
graves, em semi-internação no HD, tendo passado anteriormente por
vários outros serviços psiquiátricos. Rosa, 58 anos, esposa e acom-
panhante de Chico durante sua internação, também apresenta uma
história de doença psiquiátrica, tendo passado por várias internações
por conta de um quadro depressivo grave. Os dois estão casados há
aproximadamente vinte anos, e, para ambos, este é o segundo casamen-
to. Tanto Chico como Rosa têm filhos de seus casamentos anteriores,
com os quais mantêm um contato distante, não tendo filhos do atual
casamento. Ambos relatam uma história marcada por separações, pri-
vações materiais e emocionais, além de situações de abuso e exploração.
A rede social deste casal é descrita pelos mesmos como restrita, sendo
que ambos referem não ter amigos e manter um relacionamento fami-
liar conturbado e distante. Rosa diz, em diversos momentos, que Chico
é “meu tudo e eu sou o tudo dele (...) depois que a gente casou virou um
corpo só”. E tal fala é legitimada por Chico. A relação foi descrita por um
membro da equipe do HD como “são eles contra o mundo”. Ressaltando
a importância de sua inclusão desde o início da inserção de Chico no
serviço, Rosa foi convidada a participar do tratamento. Ela aceitou o
convite, inserindo-se nos espaços que a ela foram oferecidos. No início,
a relação de Chico e Rosa com a equipe foi marcada por algo descrito
pela equipe do HD como “desconfiança de ambos os lados”. Por conta
de sua longa história de passagens por serviços psiquiátricos, o casal
era conhecido, de outros contextos, por profissionais do HD, profissio-
nais que traziam descrições de ambos carregadas de nomeações como
resistentes, rígidos e impermeáveis a qualquer abordagem terapêutica,
ignorantes e “xucros”, além de afirmarem que muitas vezes era difícil
diferenciar quem era o paciente, se Chico ou Rosa. Vale ressaltar que
Chico tem uma forma de expressão verbal marcada por um linguajar

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característico das zonas rurais onde viveu, o que muitas vezes era inter-
pretado por alguns profissionais como limitações de caráter cognitivo,
chegando a se cogitar a hipótese diagnóstica de uma deficiência mental.
Rosa também guarda uma descrição negativa de seu contato com os ser-
viços de psiquiatria, e disse ter sofrido muito em suas internações. Além
disso, ela relatou um tumor há aproximadamente três anos, dizendo que
o mesmo só foi diagnosticado após muita insistência de sua parte para
que exames fossem realizados. Por conta disso, Rosa costumava atribuir
os sintomas do seu marido a um suposto tumor, o que ocasionou várias
discussões com os psiquiatras do serviço, pois ela pedia insistentemen-
te que exames fossem feitos. Tais pedidos sempre foram negados, con-
siderando que, do ponto de vista médico-clínico, não existia qualquer
evidência que corroborasse tal hipótese. Este acontecimento favoreceu
a construção de uma relação entre o casal e a instituição marcada pela
tensão. Eram frequentes, no discurso do casal, principalmente no de
Rosa, críticas ao posicionamento dos médicos em geral, especialmente à
falta de escuta e de atenção, muitas vezes atribuídas por Rosa à sua pre-
cária condição financeira. Por parte da equipe, o caso de Chico e Rosa
foi discutido em diversos espaços, questionando-se inclusive a possibi-
lidade de alta devido à dificuldade de comunicação com ambos. Nesse
contexto, foi oferecido ao casal um espaço de terapia familiar, onde eles
foram atendidos por uma dupla de terapeutas de diferentes especialida-
des (uma assistente social e uma enfermeira).
Destacamos aqui o terceiro atendimento realizado ao casal, que pa-
rece ter sido o início de uma significativa transformação da sua relação
com a equipe e com a instituição. Este atendimento foi realizado com
a presença da equipe reflexiva, composta por um psicólogo e dois re-
sidentes psiquiatras. O início do atendimento foi marcado por críticas
agressivas e repetitivas de Chico, mas principalmente de Rosa, aos pro-
fissionais da instituição, principalmente à figura do médico residente
responsável pelo caso de Chico (que não estava presente no atendimen-
to). Rosa também pediu insistentemente que uma maior atenção fosse

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dada à saúde de seu marido, com destaque para a questão do suposto


tumor que ela acreditava ser o responsável pelo seu sofrimento. Parali-
sados com o conteúdo e tom emocional da conversa até então desen-
volvida, os terapeutas convidaram a equipe reflexiva para apresentarem
suas reflexões.
A fala de um dos membros da equipe reflexiva pretendia ressaltar o
quanto Rosa luta pelo melhor atendimento ao marido e se preocupa com
ele, demonstrando muita força nessa luta, sendo Rosa denominada pelo
membro da equipe reflexiva como “pequena guerreira”. Na mesma fala,
foi questionado se o papel constante de “guerreira” não era muito can-
sativo, pois até os “guerreiros” precisam de cuidado e descanso. O outro
membro da equipe reflexiva disse também perceber esse cuidado de Rosa
com Chico, e questionou se ela não estaria, como uma forma de cuidado,
emprestando o nome que conhece (tumor) ao sofrimento de Chico.
Tais falas repercutiram intensamente em Rosa, que, no retorno do
sistema terapêutico disse, aos prantos, ter sentido que os profissionais
conseguiram enxergar “dentro de mim”, pois se sentia compreendida e
acolhida. Este acontecimento deu um novo rumo ao atendimento, pois
foi possível construir um diálogo com base em recursos e potenciali-
dades, tentando enxergar os possíveis usos dos mesmos. A partir daí,
uma gradativa e significativa mudança foi ocorrendo na relação entre a
equipe do HD e o casal. Podemos supor que, no encontro, um convite
foi feito pelos profissionais, um convite para um diálogo com a “Rosa
guerreira”, cansada de brigar e carente de compreensão. O que era visto
pela equipe como um obstáculo ao tratamento (a insistência de Rosa
para que Chico fosse cuidado) encontrou novas descrições, nas quais a
insistência passou a ser vista como determinação em busca de cuidado,
permitindo um novo posicionamento na relação, tanto dos profissionais
quanto do casal. Rosa pôde falar de seus medos e angústias, pedir ajuda
e perceber que, por mais que compartilhassem angústias, o sofrimento
de Chico era diferente do seu. Construiu-se uma nova forma de relacio-
namento entre o casal e a equipe, e, nesse novo contexto relacional, o

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“tumor” foi sendo gradativamente substituído por uma relação colabo-


rativa de coautoria no tratamento, com um diálogo aberto e construtivo.

Histórias contadas em conjunto: participação da família


como inclusão na conversa

A ilustração clínica do caso de Chico e Rosa nos oferece uma pequena di-
mensão do potencial dos recursos de uma orientação construcionista so-
cial para a prática clínica com famílias. A postura construcionista convida
à novidade: de olhares, de descrições da realidade, de posicionamentos
e de novas formas de se relacionar. Nesse caso específico, após o atendi-
mento, foi significativo como o casal mencionado passou a se relacionar
de outra forma com a equipe e com a instituição. Isto foi percebido e rela-
tado por vários profissionais do HD, possibilitando a abertura necessária
para o diálogo e inclusão do casal como coconstrutores do tratamento.
Para fins didáticos, buscamos, a seguir, destacar alguns pontos da
mudança paradigmática proposta pelo modelo, considerando sua espe-
cificidade narrativa e ilustrando-os com o relato de caso apresentado.

A inclusão na conversa

Quem é o cliente? Quem decide o nome da doença? A quem cabe con-


tar a história de quem? O caso de Chico e Rosa ilustra algumas des-
sas tensões envolvidas no tratamento em saúde mental, mas também a
contribuição que uma postura construcionista social pode trazer para
pensá-las. Em uma situação marcada por um relacionamento turbu-
lento entre o casal e a equipe do hospital, que chegou a considerar a
alta pela dificuldade de comunicação, como podemos entender o que
pareceu um ponto de virada no atendimento, que foi a intervenção dos
membros da equipe reflexiva? Entendida sob uma ótica construcionista,

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166 | construcionismo social

esta intervenção se construiu como importante a partir de um investi-


mento dos profissionais do HD em manter a conversa fluindo: o convite
para uma nova tentativa de relacionamento, que foi o início das sessões
de terapia familiar. Neste contexto, quando Rosa descreve que a equipe
reflexiva tinha enxergado dentro dela, percebemos como uma narrati-
va dominante sobre quem era Rosa – nomeada pela equipe como ten-
do um discurso resistente, impermeável e ignorante – deixava de fora
outros aspectos de sua experiência vivida: de uma esposa cuidadora e
guerreira, de uma usuária dos serviços de saúde outrora negligenciada e
de alguém que também precisa de cuidados.
Isso significa que o convite à inclusão do familiar no tratamento é
mais do que apenas inseri-lo em diferentes modalidades terapêuticas
de atendimento: é promover também uma inclusão em espaços con-
versacionais que permitam a construção e reconstrução de histórias di-
ferentes, histórias que favoreçam o bem-estar daqueles em situação de
cuidado. Com essa inclusão no diálogo, as perguntas sobre quem é o
paciente e que histórias são essas se respondem colaborativamente, em
ação-conjunta entre os interlocutores. Isto tanto favorece como deman-
da uma horizontalização das relações entre profissionais e usuários do
serviço, promovendo a valorização e legitimação de diferentes discur-
sos, com suas especialidades e especificidades.

O convite à polifonia

Outro aspecto relevante sobre a construção de histórias dos familiares


em tratamento está no convite à polifonia, ou seja, à multiplicidade de
vozes. No exemplo de Chico e Rosa, observamos como diversas vozes
são incluídas na construção de uma história diferente para o casal e seu
tratamento: a história de uma Rosa guerreira, que queria emprestar o
nome de sua doença ao marido, só pôde ser contada em conjunto: ela se
construiu entre o investimento anterior dos profissionais do HD neste

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caso, a fala da equipe reflexiva, a resposta emocionada de Rosa, a cor-


roboração de Chico e o continuado esforço compartilhado de todas as
partes que puderam, então, manter um tipo de relação caracterizada pelo
cuidado. Assim, essa nova história é uma realização conjunta, não per-
tencendo a qualquer um dos participantes isolados. Isto se caracteriza
como uma mudança importante de como a história do casal poderia ter
sido contada: de duas pessoas que se descreviam como isoladas do resto
do mundo, a narrativa que se construiu acabou por incluir muitas outras
vozes, além das de Rosa e Chico, como as dos terapeutas, da equipe re-
flexiva, dos outros profissionais do HD – pessoas advindas de diversas
especialidades, profissionais com variadas visões e descrições da reali-
dade – e de familiares de outros pacientes do hospital. As vozes de todas
essas pessoas são valorizadas pela diferença, não pela busca do consenso.

O desafio às narrativas dominantes

Contar novas histórias significa incluir novos aspectos, ampliar histó-


rias antigas e até mesmo mudá-las. Com isto, narrativas dominantes e
opressoras podem ser desafiadas, trazendo novas possibilidades de ação
para quem se encontrava paralisado por elas. Em um nível, tais narrati-
vas se referem às descrições de si dos pacientes e familiares. No caso de
Chico, é interessante notar que, a partir de diferentes descrições cons-
truídas durante o tratamento, ele vem sendo comumente denominado
pela equipe como “Chico, o contador de histórias”, o que legitima sua
forma peculiar de contar histórias, que podem agora ser contadas e ou-
vidas dentro de toda sua riqueza de significados. Rosa também passou a
ser nomeada de outra forma (pequena guerreira), deixando de ser vista
como um obstáculo ao tratamento de Chico e se tornando tanto uma
parceira neste tratamento como alguém que também é cuidada. O casal,
antes identificado com a imagem de “eles contra o mundo”, passou a ser
visto como uma dupla de aventureiros com muita história a contar.

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168 | construcionismo social

Em outro nível, o desafio às narrativas dominantes contribui para


o questionamento de discursos sociais opressores e construtores de es-
tigmas. Considerando o caso apresentado, por exemplo, o olhar para
este casal era marcado por uma estigmatização permeada por diver-
sos diagnósticos. Neste caso, uma postura construcionista nos levaria
a questionar os efeitos de viver com uma narrativa de doença mental
em uma sociedade ainda permeada por preconceitos sobre tais descri-
ções. Alguns desses efeitos, como percebido no início do tratamento de
Chico, tratam da ênfase aos limites e déficits do paciente, em histórias
que limitam significativamente as possibilidades de vir-a-ser do indiví-
duo nomeado como doente mental. Desafiar esta narrativa dominante
– não a considerando verdadeira ou falsa, mas uma dentre outras pos-
sibilidades – pode ser uma maneira de deslocar do indivíduo isolado a
responsabilidade pelas implicações de uma dada descrição, refletindo
sobre as consequências do que é viver sob tal influência, e como essas
descrições são construídas em práticas relacionais, dentro de uma ideia
de responsabilidade relacional (MCNAMEE; GERGEN, 1998). Apenas
para ilustrar, no caso de Rosa, por exemplo, poderíamos questionar o
que significa ser mulher em um contexto de cuidado: que discursos so-
ciais informam que cabe à figura feminina esta função? Como isto está
presente na vida do casal mediante o aparecimento da doença? Como
isto perpassa os discursos da equipe do HD? Nenhuma descrição deve-
ria ser aceita como certa a priori.

Os recursos para a conversa



Por fim, gostaríamos de propor que adotar uma orientação construcio-
nista social para a inclusão da família no tratamento em saúde mental
significa também adotar uma postura de irreverência terapêutica (MC-
NAMEE, 2004; CECCHIN; LANE; RAY, 1992). Irreverência, neste caso,
significa misturar as coisas, o velho e o novo, não tendo que nos prender

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a um modelo teórico específico que enquadre pacientes e familiares na-


quilo que, como profissionais, consideramos que seja uma conversa – e
uma realidade – universalmente desejável. Neste sentido, reposiciona-
mos diversas teorias como recursos conversacionais e maneiras de nos
engajarmos e nos posicionarmos numa conversa, convidando o outro a
se engajar e se posicionar também.
Tomemos o caso de Rosa e o suposto tumor de Chico como exem-
plos. Enquanto a equipe se envolvia em uma conversa que buscava
definir a verdade dos fatos (“Não há indicativos médicos-clínicos da
existência de um tumor” versus “Comigo também não havia, mas ainda
assim o tumor estava lá”), o relacionamento não progredia e não permi-
tia a construção de uma realidade compartilhada de cuidado satisfató-
ria para ninguém. Entretanto, no atendimento com a equipe reflexiva,
os terapeutas foram responsivos à descrição trazida por Rosa – não a
considerando ontologicamente, mas entendendo que seria uma conver-
sa importante para aquele setting terapêutico. Ao utilizarem-na como
recurso para a conversa, convidaram Chico e Rosa para um jogo inte-
rativo que acabou por produzir resultados importantes à continuidade
do tratamento.
Nenhuma conversa é necessariamente descartada, mas podemos
nos perguntar: como determinado recurso conversacional pode ser útil
para a construção de uma boa história? Fazemos parte da construção de
quais realidades ao nos engajarmos em determinados tipos de conversa?
Que efeitos pragmáticos essas conversas produzem? A palavra-chave
neste contexto é “utilidade”.

Considerações finais

Começamos com a premissa de que as pessoas “historiam” suas expe-


riências e que tais histórias são constitutivas da vida dessas pessoas. En-
tendemos também que a construção dessas narrativas não é individual,

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170 | construcionismo social

mas compartilha um caráter intrinsecamente dialógico. Vimos ainda


que o adoecimento demanda histórias que ajudem o doente a (re)esta-
belecer algum senso de onde está na vida e para onde deve seguir. Sob
tal perspectiva, consideramos então a inclusão de familiares no trata-
mento como uma inclusão no diálogo, que convida à participação de
diferentes vozes na construção de diferentes histórias e que ajuda a de-
safiar narrativas dominantes e opressoras por meio do uso de diferentes
recursos para a conversa. Neste sentido, gostaríamos de terminar com
duas considerações sobre esta proposta.
Em primeiro lugar, lembremo-nos que nem toda história é igual-
mente válida, sendo preciso considerar, dentre outras questões: a for-
ma como as histórias são negociadas e sustentadas entre as pessoas, no
cenário do tratamento; a maneira como essas histórias se ajustam às
descrições atuais, por meio das quais as pessoas já vivem; e como elas
poderão ser transpostas para o contexto da vida cotidiana dos pacientes
e familiares, longe do HD, onde foram produzidas. Tudo isso deve ser
levado em consideração para que, como profissionais, evitemos abstra-
ções teóricas que obscureçam a concretude de vida das famílias à nossa
frente (LANNAMANN, 1988).
Além disso, devemos nos lembrar que o entendimento da participa-
ção do familiar como inclusão no diálogo é apenas uma das formas de
dar sentido a este processo, congruente com uma série de explicações e
premissas referenciadas por um discurso construcionista social. Assim
sendo, buscamos evitar esta descrição como única ou totalizante, em
um contínuo convite ao diálogo para que diferentes práticas e discipli-
nas participem da construção do programa de atendimento às famílias.
Como privilegiar essa contínua construção? Continuemos a conversa.

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Capítulo 8
Terapia comunitária como prática coletiva de
conversação: construindo possibilidades
de trabalho com sistemas amplos
marilene grandesso

Não há ignorantes nem sábios absolutos: há homens


que em comunhão buscam saber mais.
freire, 1983, p. 95

Este capítulo propõe apresentar uma prática coletiva, a Terapia Comu-


nitária Integrativa (TCI), como uma abordagem dialógica pós-moder-
na. Baseada na descrição da prática, conforme proposta por Adalberto
Barreto (2005), procuro ressaltar minha compreensão a partir de minha
formação como terapeuta colaborativa e narrativa, propondo-me a de-
senvolver o diálogo decorrente de um encontro possível entre o comu-
nitário, o colaborativo e o narrativo. Pretendo enfatizar que a TCI, ao
promover um contexto conversacional informado pelo construcionis-
mo social, entretece alternativas ampliadas de contextos de transforma-
ção, sob o guarda-chuva paradigmático da pós-modernidade, através
do compartilhamento de experiências e da construção conjunta de sig-
nificados preferidos. Assim, conforme entendo essa prática de conver-
sação, o fio condutor que entretece discursivamente este artigo é o cons-
trucionismo social.

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172 | construcionismo social

Terapia Comunitária: uma proposta brasileira para


fortalecimento de indivíduos, redes e comunidades

A abordagem que apresento aqui foi criada e desenvolvida por Adalber-


to de Paula Barreto, psiquiatra, teólogo e antropólogo cearense, a partir
dos trabalhos de seu irmão Airton Barreto com direitos humanos na
comunidade de Pirambu, Fortaleza, Ceará. Iniciada nos meados da dé-
cada de 1980, esta prática se espalhou por todo o Brasil, alguns países da
América Latina, Europa e África. Conhecida por Terapia Comunitária
Integrativa (TCI), a abordagem se apresenta como uma proposta para
lidar com o sofrimento humano a partir dos recursos e competências
das pessoas, comunidades e redes. Partindo de uma visão da pessoa
como autora de suas próprias histórias e naturalmente resiliente, capaz de
aprender com suas próprias adversidades e incorporar recursos a partir
de sua dimensão criativa, Adalberto Barreto propôs uma metodologia
transversal aos contextos, viável com grandes grupos e possível de ser
realizada em espaços públicos, nos lugares em que as pessoas vivem e
frequentam (Barreto, 2008, 2007; Grandesso, 2005). A referên-
cia à palavra integrativa qualifica essa abordagem como uma proposta
inclusiva, onde o coro polissêmico harmoniza as vozes vindas de dis-
tintas culturas, níveis socioeconômicos, origens étnicas e preferências
no campo das crenças e posicionamentos no mundo. Apresentando-se
como um antídoto contra o isolamento em que pessoas em sofrimento
constante tendem a se colocar, a TCI acredita e recorre à construção de
um espaço coletivo em que conexões rizomáticas tecem, na linguagem
e de forma colaborativa, novas significados e possibilidades onde antes
nada disso parecia existir.

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capítulo 8 | 173

A prática da TCI: fundamentos e metodologia

A comunidade age onde a família e as políticas sociais falham.


camarotti, freire & barreto, 2011, p. 18

A viabilidade dessa prática para tão distintos contextos e idiossincráti-


cas comunidades, no meu entender, decorre da forma como foi organi-
zada em etapas, que não apenas garante a completude de cada encontro
enquanto uma forma de conversação, como também a possibilidade
de seu manejo dada a simplicidade de sua estruturação. Poucas são as
suas exigências, do ponto de vista de contexto. Deselitizada, como uma
prática mambembe que vai onde o povo vive, a TCI permite que a co-
munidade, literalmente, seja a anfitriã e o terapeuta, um hóspede con-
vidado à sua casa (Grandesso, no prelo). Isso exige do terapeuta um
respeito e cuidado zeloso para adentrar a casa alheia e, ao mesmo tem-
po, suscita no terapeuta o seu lado anfitrião, preparando sua casa para
receber, como hóspedes, a comunidade. Assim, compreendida através
da metáfora do hóspede e do anfitrião, a TCI pode ser realizada como
uma terapia colaborativa de parceria conversacional, conforme Harlene
Anderson (2007a, 2007b) caracteriza as práticas colaborativas. O im-
portante é receber de forma hospitaleira, acomodando bem as pessoas,
para que possam estar olhos nos olhos, estabelecendo possibilidades de
escuta generosa para que cada um possa ser visto e reconhecido pelo
seu nome. As etapas facilitam a organização da conversa de tal forma
que sua sequencialidade, independentemente do conteúdo e do número
de participantes presentes, possa se iniciar, desenvolver e chegar a uma
finalização significativa, possível de ser interrompida sem perda de sua
dimensão compreensiva, como uma narrativa bem formada (Gergen,
1996) no que se refere à sequencialidade e sentido. Isso constrói um
recurso terapêutico que abre espaço a que as pessoas participem, sem
importar se podem ou não seguir com o grupo em outros encontros.
O fluxo móvel da organização do grupo comunitário amplia a susten-

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174 | construcionismo social

tabilidade dessa prática, uma vez que o espaço se mantém aberto para
novos participantes, seguindo adiante independentemente da flutuação
e rotatividade das pessoas.
No seu conjunto, as cinco etapas propostas para a TCI têm por obje-
tivo organizar uma conversação propositada, favorecendo uma rede de
trocas de experiências em torno a significados compartilhados, a partir de
temas propostos e escolhidos pela comunidade, valorizando o conheci-
mento local e o saber insider. Cada pessoa é considerada uma especialista
na sua vivência, da qual o terapeuta é um aprendiz (Barreto, 2008;
Anderson, 1997; 2005; 2007). Assim, adotando uma atitude de não
saber, o terapeuta comunitário coloca-se como um especialista na organi-
zação do processo, o que envolve cuidar da participação coletiva e facilitar
a conversação para que possa atender aos propósitos da abordagem.
A conversação que vai sendo construída em cada uma das etapas da
TCI favorece um campo de sentido organizado, como uma unidade dis-
cursiva em que pessoas individuais formam um sistema linguístico em
torno de significados comuns (Anderson; Goolishian, 1988).
Isto atende tanto à singularidade de cada participante, falando do lugar
da experiência vivida, como autor de sua história, como à dimensão co-
letiva de participante de uma coletividade que acolhe e legitima.
Adalberto Barreto (2005) propôs cinco etapas para a TCI, e eu as
descrevo a seguir:

1. Acolhimento

Nesta etapa, o terapeuta comunitário, como facilitador da conversação


do grupo, propõe-se a receber as pessoas como um bom anfitrião, cri­
ando uma atmosfera de confiança para que elas possam se descontrair,
desenvolver confiança e participar, em um contexto que propicie segu-
rança. Este momento é de crucial importância para a formação de vín-
culos entre os participantes e para o compartilhamento de experiências

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capítulo 8 | 175

pessoais, tão difícil muitas vezes, em contextos públicos e diante de es-


tranhos. Se possível, as pessoas são convidadas a se colocar em círculo e
os terapeutas (em geral, uma dupla) se apresentam. Quando o grupo é
pequeno, pode-se fazer algum tipo de apresentação individualizada dos
participantes, dizendo o nome e de onde vêm. Caso contrário, cada vez
que uma pessoa fala, o terapeuta solicita que diga seu nome, promoven-
do a visibilidade de cada pessoa diante da comunidade. Uma canção de
boas-vindas pode ajudar a começar a construir um clima de descontra-
ção e confiança. A música favorece um primeiro momento de espaço
coletivo que costumamos seguir com um convite para celebrar algum
acontecimento importante para as pessoas. E tal acontecimento pode
ser um aniversário de vida ou de morte, um nascimento, a conquista de
um emprego, um tempo livre da droga, a recuperação de uma doença,
enfim, motivos que sinalizam a vida, as conquistas, as competências e
que, ditos na frente da comunidade, ganham visibilidade e legitimação.
Esta prática pode ser compreendida como uma cerimônia de definição,
conforme descrita por Michael White (Grandesso, 2011; White,
2004, 2007). Derivada da antropologia cultural, a partir do trabalho da
antropóloga Barbara Meyerhof, a cerimônia de definição apresenta-se
como uma prática coletiva em que a comunidade reconhece e legiti-
ma as realizações de cada pessoa presente, favorecendo a construção
de identidades preferidas a partir do acolhimento coletivo. Verbalizar
uma realização pessoal, diante de uma comunidade apreciativa, permite
transformar o comum em exótico, além de, pela função performativa da
linguagem, construir como realidades admiráveis o que naturalmente,
de tão familiar, não teria notoriedade alguma. Tal prática contribui para
novas versões de si mesmos como identidades competentes, além de
favorecer uma ontologia da esperança (Grandesso, no prelo).
Ainda nesta etapa o terapeuta comunitário apresenta a TCI como
uma prática de conversação organizada por algumas regras que têm por
objetivo ajudar a construir um clima de confiança e, ao mesmo tempo,
um contexto de diálogo. E tais regras são: fazer silêncio, falar na primeira

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176 | construcionismo social

pessoa, do lugar da experiência vivida; não dar conselhos, fazer discur-


sos, interpretar nem julgar a experiência do outro; respeitar a história de
cada pessoa. Além dessas regras organizadoras da conversação coletiva,
o terapeuta ressalta que, se no decorrer da conversa, algum participante
se lembrar de uma música, poesia, dito popular ou piada que tenha a ver
com o que está sendo falado, poderá apresentar para o grupo. Tais são
as regras comumente oferecidas, mas a comunidade poderá propor ou-
tras, caso sinta necessidade. Antes de mudar para a próxima etapa, que
convidará a compartilhar experiências, nem sempre fáceis de serem co-
locadas públicas, costuma-se realizar alguma dinâmica interativa para
descontrair o grupo. Uma brincadeira, uma pequena dança ou alguma
música com certa performance prestam-se para esse fim.

2. Escolha do tema

Esta etapa estabelece as bases para favorecer que a comunidade se or-


ganize como um sistema linguístico, coordenando as pessoas em torno
de significados compartilhados. Baseada no pensamento de Paulo Freire
(1983; 1989), o terapeuta convida os presentes a apresentarem um tema
sobre o qual gostariam de falar. Os temas, apresentados sucintamente
pelas pessoas, são portas de entrada possíveis para a reflexão e partilha
de experiências entre os participantes. O terapeuta deixa claro que esse é
um espaço público, portanto, sem qualquer compromisso de confiden-
cialidade. Assim, a pessoa responsabiliza-se pelo nível de exposição que
deseja fazer e em preservar temas que sejam para ela de foro privado.
Antes de se fazer a votação, que elegerá o tema do dia, o terapeuta certi-
fica-se de sua compreensão em relação ao que cada pessoa apresentou,
fazendo um pequeno editorial do que ouviu e solicitando a cada pessoa
proponente que lhe confirme o entendimento da questão por ela pro-
posta. Trata-se de um ritual dialógico para gerar compreensão comparti-
lhada diante de todos os presentes. Depois disso, o terapeuta pergunta à

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capítulo 8 | 177

comunidade em geral quem gostaria de dizer qual dos temas foi mais sig-
nificativo para si. Tal momento, conhecido entre os terapeutas comunitá-
rios como identificação, envolve perguntar aos participantes o porquê de
terem sido tocados por aquele tema em específico. Além dessa partilha
ajudar o terapeuta comunitário a compreender o tecido que constrói os
significados preferidos pela comunidade presente, ela possibilita que as
pessoas ainda indecisas possam se conectar com algum tema a partir da
escuta das identificações das outras pessoas. Somente após ouvir alguns
depoimentos de identificação com os temas apresentados, o terapeuta
procede à votação. O que pretendemos é que as pessoas escolham o tema
a partir de suas ressonâncias. Temas não são considerados problemas,
mas campos de sentido para conversações reflexivas que favorecerão re-
lações significativas entre os presentes, organizando-se como sistemas
linguísticos (Anderson; Goolishian, 1988).
E a escolha do tema leva à votação. Cada pessoa é convidada a esco-
lher um tema e votar em apenas um. O ritual de votação permite o com-
prometimento coletivo com a conversa que será organizada a seguir,
numa dimensão de responsabilidade compartilhada. O terapeuta, neste
momento, agradece a todos os participantes que propuseram temas e
abre espaço para que essas pessoas o procurem, no final da roda de TCI,
caso haja algum desconforto sobre o qual gostariam de falar. Contudo,
a experiência de mais de dez anos neste trabalho tem mostrado que, in-
dependentemente de qual tenha sido a porta de entrada, a conversa que
se organiza nas etapas subsequentes acaba favorecendo um acolhimento
coletivo, mesmo para os que não tiveram seus temas escolhidos.

3. Contextualização

Esta etapa se inicia solicitando à pessoa que teve seu tema escolhido que
compartilhe com o grupo o que tem vivido em relação ao dilema que a
está preocupando. Num primeiro momento, procedemos a uma escuta

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178 | construcionismo social

aberta para o que a pessoa considera importante contar à comunidade


sobre sua história. Essa pessoa narra nos seus termos e no seu ritmo, e a
postura do terapeuta, que é um terapeuta colaborativo, é a de uma escuta
generosa, ou seja, ele deve ouvir para compreender. A seguir, abre-se um
espaço para perguntas que possam ajudar a compreender o significado
dessa vivência para a pessoa: por que e como isso é um problema para ela?
Como esta situação está afetando sua visão de si mesma, suas relações,
suas perspectivas de futuro? Como sua vida está sendo restringida por
esta situação? A comunidade presente é convidada a fazer perguntas e o
terapeuta cuida do processo de conversação, sempre tentando manter os
propósitos da TCI e os acordos norteadores dos limites da conversa, colo-
cados pelas regras acordadas. Portanto, cumpre ressaltar que, como a TCI
não pretende resolver problemas, as perguntas são dirigidas para a busca
da compreensão do significado da situação-problema para a pessoa que
a propôs, para suas relações e perspectivas de futuro. Tal compreensão
ajuda o terapeuta a formular uma questão reflexiva que será oferecida à
comunidade – ou mote, como é conhecida pelos terapeutas comunitários.
O mote cumpre duas funções básicas: levantar possibilidades de en-
frentamento da situação dilemática vivida pelo protagonista da histó-
ria escolhida, sem que isso se dê de forma pedagógica ou instrutiva,
e ao mesmo tempo ressaltar histórias de competências e aprendizados
da comunidade presente. Numa das rodas de TCI que realizamos pelo
Interfaci, foi escolhido pela comunidade o tema levantado por uma mãe
que se dizia sem esperanças por conta da “recaída” de seu filho, que es-
tava livre das drogas e trabalhando havia algum tempo. Como ele tinha
faltado um dia ao trabalho e desaparecido, para ela, o filho voltara ao
“fundo do poço”. O mote proposto pelo terapeuta que conduzia a sessão
foi: “Quem já se viu numa recaída, andando na direção contrária aos
seus objetivos? E como fez para reencontrar seu caminho, na direção de
seus propósitos?” A apresentação do mote finaliza esta etapa, o que se
dá também com um agradecimento à pessoa que protagonizou a con-
versação, tirando-a do centro da conversa, para que o que se apresente

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capítulo 8 | 179

a seguir não seja dirigido a ela em particular, mas funcione como um


intercâmbio de experiências coletivas.

4. Problematização

Esta etapa é iniciada pela apresentação do mote, convidando todos os


presentes a se conectarem com a pergunta-mote, refletirem sobre a ex-
periência vivida e apresentarem suas formas de fazer frente à questão
proposta. Portanto, nesta etapa, são favorecidas narrativas de vivên-
cias de competências, de aprendizados e de valores, tendo cada pes-
soa como autora de suas histórias preferidas. A comunidade presente,
colocada como testemunha de histórias de superação e de realizações,
funciona como uma espécie de rede de testemunhas externas, conforme
destacado pelas práticas narrativas. Ou seja, dada a escuta acolhedora,
a pessoa que narra sua história de competência pode ser reconhecida,
apreciada e legitimada pela comunidade presente, favorecendo narrati-
vas de identidade preferidas. Este também é um contexto que pode ser
compreendido como a “cerimônia de definição” a que me referi ante-
riormente. Ao narrar como desenvolveu saídas exitosas para um dilema
em sua vida, a pessoa dá visibilidade para o outro e principalmente para
si mesma, revelando fragmentos da sua vida que poderiam permanecer
como histórias subjugadas, não historiadas nas narrativas dominantes.
O terapeuta, durante esta fase, funciona como uma espécie de farolei-
ro que (com perguntas sobre como a pessoa conseguiu o que conseguiu,
ou, o que a ajudou a dar conta de, o que aprendeu por ter vivido o que
viveu) ilumina um território do mar de experiências vividas, para que a
pessoa verbalize histórias de competência e desenvolvimentos aprecia-
dos. Esta etapa, em geral a mais longa do processo (30 a 40 minutos),
constrói uma atmosfera de empoderamento coletivo, tecida pelo efeito
rizomático que decorre do ouvir histórias. Ao entrar em contato com a
história de competência do outro, cada pessoa pode ser despertada para

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180 | construcionismo social

as suas próprias vivências de competências, muitas vezes não nomea-


das como tal até aquele momento. O mesmo se passa com a pessoa que
ofereceu o tema para conversação. No exemplo mencionado, a mãe que
apresentou o tema escolhido pôde receber um menu de possibilidades
de enfrentamento vindas da comunidade, possibilidades estas que tal-
vez lhe sugiram alternativas e ferramentas possíveis para sua condição.
Portanto, essa maneira de ampliar possibilidades vem de forma não pe-
dagógica, instrutiva ou hierárquica, decorrendo da condição generativa
propiciada pelo ouvir histórias, numa escuta dialógica que convida ao
diálogo interno de cada envolvido. Um aspecto importante dessa forma
de conversação vem, portanto, de sua organização horizontal. Cada pes-
soa é valorizada na sua singularidade e, ao mesmo tempo, as histórias da
comunidade favorecem uma identidade coletiva para o grupo presente,
que pode ser documentada numa produção escrita, dando permanência
ao que foi vivido na roda do dia. Metáforas organizadoras das estra-
tégias de enfrentamento, aprendizados e descobertas podem favorecer
essa narrativa no coletivo. “A ‘mesa de banquete’, onde cada pessoa ofe-
rece sua contribuição, a ‘cesta’ de descobertas ou aprendizados, ou algu-
ma outra possibilidade, ajudam a construir esse sentido de ‘comunitas’,
envolvendo não somente um reconhecimento do sofrimento comparti-
lhado, mas das habilidades, conhecimentos, valores e histórias de resis-
tência e sustentação” (Denborough, 2008, p. 41).

5. Ritual de encerramento

Esta etapa, apoiada na proposta freiriana de uma metodologia susten-


tada pela ação-reflexão-ação, favorece a construção de novas realidades
possíveis ao convidar os participantes para processar, e também colocar
em linguagem, a experiência vivida durante a roda de TCI. Em geral,
pedimos que os participantes formem um círculo, com as mãos nos
ombros ou na cintura uns dos outros, às vezes com os pés se tocando

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capítulo 8 | 181

lateralmente, construindo uma atmosfera de proximidade e aconche-


go. Obviamente, esta formação depende das particularidades de cada
comunidade, de suas possibilidades e limitações. Muitas vezes, confor-
me sugerido por Adalberto Barreto, costumamos propor um pequeno
balanceio do qual podemos refletir sobre os “balanços da vida”, para os
quais a presença do outro ajuda a manter um equilíbrio. Poder valorizar
a presença do outro e das redes de pertença para os ventos, vendavais,
tempestades e tsunamis da vida ajuda a dar visibilidade à importância
das relações e do pertencimento. Da mesma forma, poder ter presen-
te uma comunidade de reconhecimento e legitimação das conquistas e
mudanças almejadas favorece o fortalecimento de identidades, em que
pessoas aparecem como agentes e mais empoderadas.
Nesta etapa, de acordo com seus propósitos, o terapeuta faz uma pe-
quena reflexão sobre o que viveu na roda do dia, o que despertou sua
atenção, como foi tocado e movido pelo que vivenciou ali. Costumamos
fazer também um comentário apreciativo sobre a fala de um(a) partici-
pante em especial, voltando a agradecer a contribuição da pessoa que
teve seu tema escolhido pela possibilidade de reflexão que propiciou aos
outros. É comum, nas práticas narrativas coletivas, deixar em evidência
como a experiência de um pode contribuir para a vida de outras pes-
soas. Para colocar no centro dessa conversação as pessoas que comparti-
lharam suas histórias, muitas vezes costumamos pedir aos que narraram
suas histórias que formem outro círculo, no centro da roda. Obviamen-
te, esses são exemplos de possibilidades de organização do espaço, uma
vez que cada TCI é única e conta com a criatividade do terapeuta e da
ação conjunta dos participantes presentes.
Os propósitos das conversações desta etapa, cumpre ressaltar, en-
volvem convidar as pessoas a refletir sobre o que viveram na TCI do
dia, além de colocarem seu diálogo interno em linguagem manifesta.
Alguma pergunta generativa (O que você aprendeu na roda de hoje?;
O que mais tocou... descobriu... aprendeu?; O que admirou na história
do outro?; O que está levando da TCI de hoje?) convida as pessoas a

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182 | construcionismo social

construírem novas realidades possíveis, ao colocar em linguagem o que


viveram. Tornando público seus diálogos internos, cada pessoa pode ser
legitimada pela comunidade presente, configurada como testemunhas
externas que acolhem e legitimam cada pessoa na sua singularidade e
na comunidade, como contexto de pertença. Terminamos esta fase com
alguma música sugerida pela comunidade ou proposta pelo terapeuta,
favorecendo uma despedida calorosa e afetiva. As pessoas costumam se
abraçar e formar pequenos subgrupos espontâneos, ligados por alguma
afinidade descoberta na roda do dia ou movidos pelo desejo de compar-
tilhar ou dizer algo especificamente para algum dos participantes.
Um terapeuta comunitário que tenha formação em práticas de tera-
pia narrativa pode aproveitar o início do ritual de encerramento para
compartilhar um documento construído durante a TCI, documento
que descreve a experiência do dia desde o seu início, não como uma ata
de reunião, mas como uma concretização da experiência significativa
vivida através da palavra escrita. Geralmente, a comunidade presente é
contextualizada, suas celebrações descritas, o tema escolhido é apresen-
tado, contextualizado e problematizado, as estratégias de enfrentamen-
to narradas na voz coletiva e, por fim, tais experiências são conectadas
com as de outras pessoas ou comunidades. Um exemplo desse tipo de
documento pode ser encontrado em Grandesso (2011, pp. 217-219).

Considerações finais: um recorte construcionista


social para a TCI

Quando conheci a proposta de Adalberto Barreto, em 2002, trazia como


referência os organizadores construcionistas sociais (Gergen, 1994),
os princípios e as sensibilidades das práticas colaborativas (Ander-
son; Goolishian, 1988; Anderson, 1997) e as conversações or-
ganizadas pelas práticas narrativas (White; Epston, 1993; White,
1994 ). Como terapeuta conversacional que compreendia a importância

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capítulo 8 | 183

do diálogo como contexto para a transformação, o primeiro momen-


to de tensão que vivi, do ponto de vista epistemológico, dizia respeito
à questão: pode uma conversação organizada em etapas, como a TCI,
ser considerada dialógica? Se o diálogo se organiza a partir da própria
conversação, como compreender a dialogicidade de uma conversação
estruturada em etapas? Para responder a essas perguntas, precisei re-
ver meus entendimentos possíveis e tornar pública minha prática en-
quanto terapeuta comunitária para minha comunidade de referência
construcionista social de terapeutas colaborativos e terapeutas narra-
tivos. Eis o que venho fazendo desde então. Na conferência organizada
pelo Taos Institute, em Cancun, no ano 2010, apresentei a TCI à luz do
construcionismo social para terapeutas colaborativos. Na Conferência
Internacional de Práticas Narrativas, em Salvador, em 2011, levei a TCI
para uma comunidade predominantemente narrativa. E no Congresso
Brasileiro de Terapia Comunitária, em Santos, também em 2011, apre-
sentei, para terapeutas comunitários, a narrativa e a colaborativa num
diálogo produtivo com a TCI. O trânsito harmonioso entre essas três
abordagens tem convidado a um diálogo produtivo e enriquecedor, a
TCI oferecendo uma metodologia para trabalhos com grandes grupos e
comunidades, a terapia colaborativa harmonizando a postura filosófica
que desenvolve uma forma de “estar com” pessoas e as práticas narra-
tivas oferecendo ferramentas conversacionais para organizar conversa-
ções dialógicas e transformadoras.
Enquanto prática comunitária de conversação, entendo a TCI orga-
nizada pelas ênfases teórico-epistemológicas do construcionismo so-
cial. Diferentemente das terapias tradicionais, quando o terapeuta assu-
me a postura de especialista no que se refere ao diagnóstico e à direção
da mudança pretendida, a TCI, enquanto uma prática pós-moderna,
tem no terapeuta comunitário um especialista em organizar processos
conversacionais, criando contextos que possibilitem diálogos transfor-
madores. Numa aproximação da prática da TCI do discurso construcio-
nista social, alguns aspectos podem ser ressaltados:

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184 | construcionismo social

• seu foco no significado das vivências, não em déficits ou problemas;


• seu foco na construção conjunta dos entendimentos e na valorização
do saber local;
• seu foco nos relacionamentos, incentivado pela escuta generosa e
pela prática da hospitalidade, pelo cuidado com as regras organiza-
doras das relações e pautado pela responsabilidade relacional (Mc-
Namee; Gergen, 1999);
• sua sensibilidade aos valores que reconhecem e legitimam cada pes-
soa como única na sua singularidade, e a comunidade como contex-
to de construção de possibilidades de viver em condições de equida-
de e respeito pelas diferenças;
• seu convite às múltiplas vozes vindas do lugar da experiência vivida,
num coro construído pela polifonia da coletividade presente;
• sua ênfase na polivocalidade, uma vez que cada pessoa é considerada
um expert na sua vivência, e o reconhecimento dos valores culturais
que constroem diferentes significados presentes nas músicas, costu-
mes e distintos jogos de linguagem;
• seu foco no momento interativo, na ação conjunta construída pelo
convite para que os participantes apresentem seus propósitos para
a conversação do dia; para que escolham, de acordo com suas pre-
ferências, o tema organizador da conversação reflexiva da roda de
conversa; e para que compartilhem suas histórias, teçam e ofereçam
suas reflexões;
• sua atenção às potencialidades pelo reconhecimento do saber adqui-
rido a partir do vivido e do aprendizado convidado pela busca de
histórias de competências e superações.

Portanto, antes de se apresentar como um impeditivo para uma con-


versação dialógica, a conversação que a TCI organiza em etapas favore-
ce uma atitude apreciativa de valorização de competências e saberes, e
também de poder realizar, como uma narrativa coletiva bem formada, o
multiverso de experiências vividas. Acolher a comunidade, abrir espaço

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capítulo 8 | 185

à construção da agenda do dia para a conversação, sempre a partir do


tema escolhido pelos presentes, conectar-se com a experiência do outro,
que constrói uma ponte com a própria experiência, revisitar histórias de
competências, colocar em linguagem o diálogo interno construído por
processos reflexivos, tudo isso torna essa proposta de TCI viável, com
pequenos e grandes grupos, de distintos contextos e diferentes culturas.
Daí o entusiasmo por essa prática que, a cada encontro, nos convida a
reconhecer e legitimar a força do coletivo nas transformações de pes-
soas, relações e contextos.

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Capítulo 9
Construção de uma prática grupal
em uma unidade básica de saúde
laura vilela e souza
célia cristina boense oliveira
máira rodrigues da silva
larissa cristina silveira de andrade
mirian angélica martins

Segundo Dimenstein (1998), a entrada dos psicólogos no campo da


assistência pública em saúde, na década de 1970, foi marcada por um
tempo de importantes mudanças nas políticas públicas de saúde e de
crise econômica no país, com a diminuição do campo de trabalho
dos psicólogos em consultórios particulares. Nesse momento histó-
rico, acordos de órgãos internacionais definiram novos rumos para
o cuidado em saúde. De forma especial, os documentos da Decla-
ração de Alma-Ata (1978) e a Carta de Ottawa (1986) redefiniram o
conceito de saúde e a organização dos níveis de assistência em saúde
e seus propósitos. Na década de 1990, aprovou-se, no Brasil, a Lei
8.080/1990 que propôs o Sistema Único de Saúde (SUS), e foram
delineados três níveis de atenção: primário, secundário e terciário.­
A atenção primária à saúde (APS) foi definida como a porta de en-
trada dos usuários no sistema de saúde, oferecendo estratégias de

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188 | construcionismo social

promoção de saúde em contato constante com a comunidade local


(ANDRADE; SIMON, 2009).
O SUS tem como alguns dos princípios norteadores de sua filosofia
a saúde como direito de todos e dever do Estado, a universalidade e
equidade a todos os níveis de atenção em saúde, a superação da dico-
tomia entre prevenção e assistência, a integralidade na assistência de
todo usuário, a gratuidade dos serviços, a descentralização dos serviços
e a participação comunitária nas decisões em saúde dos municípios por
meio dos conselhos de saúde (CARVALHO, 1993).
O início do trabalho dos psicólogos na APS foi marcado por críticas
quanto à priorização da oferta de atendimento no formato de psico-
terapia individual, com pouco ou nenhum foco em práticas coletivas,
na construção de redes sociais ou no empoderamento comunitário. A
formação em psicologia que, por muitos anos, orientou-se pela pre-
paração de um profissional liberal que trabalharia apenas em consul-
tório particular foi, na última década do século XX, pouco capaz de
instrumentalizar os psicólogos para o trabalho em instituições públicas
de saúde (BOARINI; BORGES, 2009; DIMENSTEIN, 1998; DIMENS-
TEIN, 2001). As consequências desse déficit ainda podem ser vistas
nas dificuldades enfrentadas por psicólogos que atuam no âmbito da
APS pelo nosso país, profissionais que vão para o trabalho no campo
da saúde pública sem um posicionamento crítico, sem a devida con-
textualização histórica de sua prática e com um olhar reducionista em
saúde, um olhar que prioriza o modelo saúde-doença como base para a
organização dos atendimentos (ANDRADE; SIMON, 2009; ONOCKO-
CAMPOS et al., 2012; SPINK, 2010).
Sobre a prática grupal na APS, um estudo conduzido pelo Conselho
Federal de Psicologia (2010) em todo país mostrou que os profissionais
que trabalham nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) sentem que há
pouca valorização de seu trabalho. Os psicólogos mencionaram a difi-
culdade em superar a tradição de medicalização da saúde, a dificuldade
nas condições de trabalho, com poucos ou nenhum local para realizar

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capítulo 9 | 189

atendimento em grupo, parcos recursos materiais, além da falta de in-


centivo à capacitação (CFP, 2010). Ainda assim, os profissionais entre-
vistados avaliaram positivamente a oferta de práticas grupais nesse con-
texto, em especial por sua capacidade de promoção do envolvimento
entre profissionais e usuários.
Ferreira Neto e Kind (2011), em uma pesquisa sobre atendimen-
to em grupo e promoção de saúde, apontaram que as práticas grupais
mais bem avaliadas por seus coordenadores e participantes eram as
construídas de maneira singular, a partir das necessidades apontadas
pelos usuários, e as referências teóricas ou técnicas ficavam em segundo
plano. Esses pesquisadores apontam como importante questão sobre o
fazer grupal na APS a possibilidade de os coordenadores não tomarem
essa estratégia como espaço de controle da vida dos usuários, impondo
práticas em saúde. Esse é, segundo tais pesquisadores, o dilema vivido
pelos profissionais da saúde, ou seja, evitar o abuso da autoridade do co-
nhecimento técnico frente ao saber popular. Esses autores apontam que
os coordenadores de práticas grupais na APS ainda se defrontam com
a desafio de garantir a efetiva participação popular na construção do
espaço de atendimento, uma vez que a assimetria entre os lugares ocu-
pados por profissional e usuário, além da dependência do saber técnico,
muitas vezes impedem que essa participação se efetive.
Tradicionalmente, a disciplina dinâmica de grupo buscou reconhe-
cer as características de funcionamentos das práticas grupais na tenta-
tiva de garantir um conhecimento especializado, que pudesse predizer
uma boa composição grupal, um bom preparo dos participantes para a
prática grupal e uma forma ótima de coordenação grupal para o cum-
primento dos objetivos previamente estipulados (FUHRIMAN; BUR-
LINGAME, 1994; KAPLAN; SADOCK, 1996). Nessa tradição, grupo
é tomado como tendo uma essência estável ao longo do tempo, com
características universais, que poderiam ser identificadas em qualquer
grupo empreendido. Nesse cenário, o profissional, detentor do conhe-
cimento científico, é o especialista sobre o que é e como deve funcionar­

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190 | construcionismo social

“o grupo”. Cabe a ele as decisões sobre quem deve participar de um de-


terminado “grupo”, qual deve ser essa participação, como “o grupo” deve
ser delineado e quais critérios devem ser considerados para a avaliação
de sua eficácia (BARROS, 2007).
O discurso construcionista social nos convida a pensar práticas gru-
pais como construções sociais (RASERA; JAPUR, 2001), ou seja, como
sendo constituídas nas diferentes formas de defini-las, em constante
mutação a partir das práticas discursivas que as performatizam. Nessa
perspectiva, uma prática grupal não precisa ser definida a priori pelo
conhecimento especializado, mas pode ser formatada a partir das nego-
ciações das demandas de profissionais e participantes envolvidos, consi-
derando-se cada prática grupal como única. Enfatizamos a negociação
para ressaltar a participação comunitária nas decisões da prática grupal
que será composta, e ao mesmo tempo por entendermos que o pro-
fissional ocupa um lugar de poder/saber que deve ser constantemente
considerado na composição de uma prática coconstruída. Ou seja, de-
vemos levar em conta que, culturalmente, o lugar do profissional como
detentor das respostas e dos caminhos sobre o que deve ser feito com
relação à saúde de outrem ainda é muito valorizado. Então, convidar
os participantes de uma prática grupal a compor um atendimento que
melhor possa responder às suas demandas é reconhecer o lugar de onde,
culturalmente, o profissional está posicionado pelo usuário. Entende-
mos que o discurso construcionista social disponibiliza algumas ações
que podem ajudar na busca por relações menos hierarquizadas entre
profissional e usuário, com a valorização dos saberes de ambos.
Inspiradas por esse discurso e sensíveis aos desafios da prática pro-
fissional do psicólogo na APS, objetivamos, neste capítulo, apresentar
nossa prática profissional na construção de um espaço de atendimento
grupal aos usuários de uma UBS, em uma cidade do interior de Minas
Gerais. Esperamos que esse relato possa inspirar recursos para ações em
saúde marcadas pelo compromisso com práticas colaborativas, ou seja,
práticas em saúde que sejam abertas à participação intensa dos usuários

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capítulo 9 | 191

na sua construção, legitimação, crítica e reconstrução, que promovam o


diálogo entre as necessidades em saúde da comunidade local e as ver-
dades científicas sobre o ser saudável, que borrem as fronteiras entre
especialistas e leigos e que promovam o aprendizado mútuo entre pro-
fissional e usuário.
Para tal apresentação, percorreremos o seguinte caminho: primeiro,
contaremos um pouco sobre quem somos e como nos constituímos en-
quanto equipe de trabalho; em segundo lugar, apresentaremos os apor-
tes filosóficos e teóricos que nos inspiraram na construção dessa prática
grupal; e em terceiro apresentaremos, resumidamente, a estrutura e o
conteúdo dos encontros realizados com os(as) usuários(as) nesse aten-
dimento em grupo; isso feito, traremos nossas principais reflexões sobre
o trabalho realizado.

Universidade e UBS: a construção de uma parceria

Este trabalho surgiu da intersecção de algumas necessidades. A profes-


sora Laura precisava abrir um novo espaço de estágio em saúde coletiva
para sua turma de alunos de psicologia. A psicóloga Célia, por sua vez,
precisava lidar com uma enorme fila de espera por atendimento psico-
lógico na UBS em que trabalha. Para Laura, o estágio deveria ser com-
posto como um espaço de trabalho conjunto universidade/equipe de
profissionais da UBS e deveria fugir do jogo de posicionamento comum
nessa parceria, que é o de professores/alunos universitários como pos-
suidores do saber-fazer e de profissionais da saúde como receptores do
conhecimento que a universidade é capaz de ensinar. Célia também não
enxergava utilidade nesse formato relacional, e ainda que estivesse aber-
ta ao aprendizado conjunto, muito tinha a oferecer com relação a seus
anos de experiência de trabalho em saúde pública. Ela compartilhou,
sobretudo, a sua percepção de como o trabalho do psicólogo na APS é
vivido como uma luta diária, sempre com um sentimento de impotência

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192 | construcionismo social

frente à necessidade de abrir novos espaços e formas de atendimentos


mais eficazes.
Desse encontro nasceu a proposta da criação de um espaço de
atendimento grupal aos usuários que estavam na fila de espera para
atendimento psicológico. Desde o início, o convite foi para que Lau-
ra, Célia e as estagiárias, Larissa, Máira e Miriam, trabalhassem juntas.
Convite aceito, cada uma fez seus pedidos sobre como gostariam de
estar nessa relação, o que precisariam para sentirem-se à vontade nesse
trabalho e o que poderiam oferecer para seu sucesso. Ficou definido,
nessas conversas, que era importante para a equipe que, primeiro, pu-
dessem estudar sobre psicologia e APS, promoção de saúde, a pers-
pectiva construcionista social (adotada pela professora Laura em sua
prática profissional) e prática grupal. Dado o ineditismo da oferta desse
modelo de intervenção na instituição e a valorização da participação
da psicóloga do serviço nesse processo, para que ela pudesse estender a
prática para outros contextos de seu trabalho, ficou definido que todos
estariam presentes nos encontros grupais e que fariam rodízio em suas
funções a partir das necessidades e possibilidades de cada uma, em
cada encontro.
O passo seguinte foi o delineamento de como esse trabalho em gru-
po poderia ser construído. O discurso construcionista social, como re-
ferencial metateórico, inspirou tal construção.

Recursos para o trabalho realizado com grupos

Para responder à demanda por maior preparo profissional para traba-


lhar na APS, alguns autores propõem a consolidação de fundamentos
teóricos que sustentem as práticas psicológicas empreendidas nesse ní-
vel de assistência em saúde, para que seja possível lidar com as diferentes
realidades sociais de nosso país (BRIGAGÃO; NASCIMENTO; SPINK,
2011; PAIVA; RONZANI, 2009). Tal consolidação deveria acontecer em

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capítulo 9 | 193

diálogo com os pressupostos do SUS, que propõem a APS como um


conjunto de ações que visam práticas democráticas e participativas, di-
rigidas à territórios delimitados, com o privilégio de proximidade com a
população local e com a importância do vínculo estabelecido entre pro-
fissional e usuário (BRASIL, 2006). Concordando com Camargo-Borges
(2007), entendemos que a interlocução entre o discurso construcionista
social e a APS pode favorecer a proposição de ações em saúde em con-
sonância com os princípios do SUS. Em especial, essa autora mencio-
na a possibilidade de tal discurso inspirar práticas dialógicas em saúde,
com espaço para a valorização de diferentes saberes, foco no processo
relacional e no fazer conjunto.
Diferentes definições de diálogo são oferecidas por diferentes teóri-
cos. Neste trabalho, tomamos diálogo como uma modalidade específica
de conversa entre as pessoas. Ou seja, diálogo como um qualificador das
comunicações humanas. Pearce e Pearce (2003) diferenciam diálogo de
formas não dialógicas ou monológicas de comunicação. Em uma co-
municação monológica é preciso que alguém esteja certo e há confron-
tação. Já uma comunicação dialógica se dá quando é possível sustentar
o interesse pela lógica alheia, com escuta mútua e perguntas curiosas,
feitas com o intuito genuíno de ampliar a compreensão sobre a opinião
do outro. Uma pessoa pode manter a própria posição sobre o tema en-
quanto abre espaço para ouvir a posição do outro, em um movimento
de tensão, dada à diferença que aparece, mas também de possibilidade de
surgimento do novo, justamente pela escuta desse diferente. Os autores
ressaltam que, nesse tipo de comunicação, os interlocutores são capazes
de manter um duplo foco: no conteúdo da conversa e em como estamos
conversando, ou seja, o foco é no “como” da conversa, ou seja, nos pro-
cessos conversacionais por meio dos quais identidades, possibilidades
de relacionamentos, valores, crenças e objetivos conjuntos são construí-
dos. Portanto, o diálogo não é algo que acontece tão facilmente e de
forma espontânea nas conversas entre pessoas, necessitando de alguém
que o prepare e o conduza.

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194 | construcionismo social

Considerando-se o contexto das práticas em saúde, algumas posturas,


recursos e ferramentas podem colaborar para a proposição de espaços
grupais dialógicos, com o coordenador do trabalho em grupo propondo,
de maneira ativa, um formato grupal que convide à construção conjun-
ta, à curiosidade mútua e à exploração positiva das diferenças (JAPUR;
RUFFINO; COSTA, 2011). A equipe do Instituto ConversAções, de
Ribeirão Preto, inspirada no discurso construcionista social, especial-
mente nas conversas colaborativas de Harlene Anderson (ANDERSON,
2009), na proposta da investigação apreciativa de David Cooperrider
(COOPERRIDER; WHITNEY, 2005) e na teoria do posicionamento de
Harré (HARRÉ; VAN LANGENHOVE, 1999), desenvolveu para seu
Curso de Capacitação em Mediação de Conflitos e Facilitação de Diá-
logos algumas estratégias dialógicas que consideramos úteis na prática
grupal que realizamos. São elas: (a) sessões preparatórias para o atendi-
mento em grupo, (b) construção do contexto conversacional, (c) postu-
ra apreciativa, (d) equipe reflexiva e (e) o uso da cadeira vazia. Descre-
vemos, a seguir, cada uma delas.
A criação do contexto conversacional é o momento de negociação
entre coordenadores e participantes sobre “que prática grupal quere-
mos” (JAPUR; RUFFINO; COSTA, 2011; VICENTE et al., no prelo).
É o momento de todos falarem e serem ouvidos naquilo que consideram
importante, para se sentirem confortáveis nos encontros grupais e para
entenderem que o processo está sendo válido. Na proposta de Japur,
Ruffino e Costa (2011), a criação do contexto conversacional envolve a
definição conjunta sobre o “para que” se quer estar junto, “como” se quer
estar junto, “o que” se quer fazer junto e “quem” estará junto.
As sessões preparatórias para o atendimento em grupo, propostas
por Rasera e Japur (2006) são o momento dos usuários se correspon-
sabilizarem pelo sucesso ou fracasso do atendimento em grupo, uma
vez que é possível que se converse sobre suas expectativas para o aten-
dimento e sobre de que forma coordenadores e participantes poderão
cuidar para que elas possam ser atendidas. O processo de composição

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capítulo 9 | 195

grupal, portanto, não é definido antes dos encontros grupais acontece-


rem, mas é fruto desse momento de negociação e coresponsabilização
coordenador-participante.
A postura apreciativa refere-se ao entendimento construcionista so-
cial do self como produzido na conversação, não como uma entidade
estável ao longo do tempo (GUANAES; JAPUR, 2003). Sendo assim, o
espaço grupal é rico na multiplicidade de versões de self possíveis para
os participantes (RASERA; JAPUR, 2001), sendo que a opção pelas
descrições de si apreciativas (em vez de descrições de si problemáticas)
pode ser um caminho de exploração de recursos para coconstrução da
saúde.
A equipe reflexiva proposta por Andersen (1999) é a composição de
pessoas, em geral profissionais que trabalham com os coordenadores,
que ficam como observadores silentes fora do círculo grupal e, quan-
do requisitados pelos coordenadores, conversam entre si, tendo como
plateia os participantes do atendimento em grupo e a coordenação. Em
suas falas, as pessoas da equipe reflexiva oferecem descrições sobre o
que está sendo conversado no encontro grupal, tentando ampliar as
possibilidades de entendimentos e produzindo novos sentidos que po-
dem ser úteis para a continuação da conversa.
A cadeira vazia, diferentemente da proposta psicodramática, con-
siste em deixar uma cadeira vazia no encontro grupal para que al-
gum dos membros da equipe reflexiva possa se sentar, caso sinta ser
importante conversar com os coordenadores da prática grupal sobre
como a conversa está acontecendo. A coordenação pode se beneficiar
da cadeira vazia na medida em que alguém que está fora do círculo de
conversa pode colaborar, destacando possíveis impasses de condução
do trabalho em grupo e dando sugestões de como lidar com eles, ou
também lembrando a coordenação de algo que possa ter sido esque-
cido com relação aos combinados dos encontros etc. Para os partici-
pantes, ouvir a conversa entre a pessoa que ocupou a cadeira vazia e a
coordenação é a possibilidade de ter modelos de condução de atendi-

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196 | construcionismo social

mentos nos quais há espaço para esquecimentos, incertezas, dúvidas,


mudanças, reformulações de combinados e trocas entre profissionais,
ou seja, de romper com a ideia do profissional como aquele que possui
todas as verdades e certezas.
A seguir, apresentamos o uso que fizemos desses recursos em nosso
trabalho na UBS.

Construindo uma prática grupal: os encontros realizados

Nosso objetivo com a proposição da prática grupal era de, em um pri-


meiro momento, oferecer um espaço de acolhimento das demandas,
considerando-se que: (a) as pessoas em uma fila de espera para atendi-
mento psicológico provavelmente têm demandas em saúde que querem
apresentar aos profissionais, (b) o espaço grupal poderia ser profícuo em
termos da riqueza de trocas entre os usuários, (c) o espaço grupal po-
deria ser um meio de exploração de recursos para construção de formas
de vida mais condizentes com os desejos e expectativas dos usuários,
(d) o espaço grupal poderia, ele mesmo, ser espaço de negociação sobre
o “quem”, “para que” e “como” daquele grupo. Ou seja, não tínhamos
decidido a priori se aquele seria um grupo de promoção de saúde, te-
rapêutico, de orientação, de lazer etc. Essa possibilidade de coconstruir
os objetivos do grupo era um dos elementos direcionadores na busca
por uma prática responsiva às demandas locais dos usuários convida-
dos a participarem do atendimento. Ao longo dos encontros, pudemos
identificar momentos nos quais esse grupo tomou uma conotação mais
terapêutica, outros em que se beneficiou de orientações diretas, outros
em que funcionou como um grupo de trabalho, e assim por diante.
Para o convite dos participantes, fizemos o levantamento dos pron-
tuários das pessoas que estavam na fila de espera para o atendimento
psicológico na UBS. Essa lista era apenas para o atendimento de adultos.
Muitas pessoas estavam aguardando atendimento havia algum tempo, e

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capítulo 9 | 197

consideramos importante retomar o contato para saber se ainda tinham


interesse em serem atendidas na instituição. Respeitando a ordem de
inscrição para o atendimento, entramos em contato com várias pessoas,
até o momento em que reunimos dez que mantinham interesse nisso.
O número foi definido em função do espaço disponível para realizar o
atendimento em grupo na instituição. Essas pessoas foram convidadas
a virem ao serviço e foram recebidas pelas estagiárias, que conversaram
individualmente com cada uma delas sobre a proposta de atendimento
grupal.
Não consideramos, nessa composição grupal, a diferenciação das
queixas apresentadas pelos usuários em seu acolhimento na instituição.
Optamos por considerar que o “eu” de cada participante que viria para
o grupo poderia ser o “eu-com problema” ou o “eu-em-sofrimento”, mas
entendendo self como construção social, como apontado anteriormente
(GUANAES; JAPUR, 2003), consideramos a oportunidade de que ou-
tros “eus” também pudessem participar desse grupo, como o “eu-que-
sofre, mas que dá conta de enfrentar vários desafios na vida” ou o “eu-
que-tem-problema, mas que tem vários recursos para solucioná-los”.
Sendo assim, diferentemente da literatura tradicional na área, que apre-
senta formas de se encontrar melhores composições grupais a partir da
consideração da psicopatologia ou da queixa do usuário (SALVENDY,
1996), não tomamos esses diagnósticos ou queixas como verdades sobre
quem eram essas pessoas, mas como versões identitárias que poderiam
ou não ser trazidas para as conversas grupais.
Nas conversas de preparação para os encontros, tentamos deixar os
usuários confortáveis propondo um diálogo que abarcasse os seguintes
aspectos: (a) como cada um entendia a proposta de um atendimento
em grupo, (b) se já havia participado de alguma prática grupal anterior-
mente, e como havia sido, (c) se não havia participado, como imaginava
que seria, (d) caso a pessoa não se mostrasse interessada nesse tipo de
atendimento, entender o que poderia, no futuro, aumentar seu interesse
para participação nessa modalidade de atendimento, (e) como imagina-

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198 | construcionismo social

va que seria sua participação no atendimento em grupo, (f) qual seria


seu maior desafio nessa participação e o que os demais participantes
e coordenadores poderiam fazer para ajudar na superação desses de-
safios, e (g) no que imaginava que a participação no atendimento em
grupo poderia ajudá-lo. Buscamos, com essas perguntas, como men-
cionado por Rasera e Japur (2001), antecipar possíveis ressalvas que os
participantes poderiam ter quanto à participação grupal, levando em
conta a tradição de desqualificação dessa prática em comparação com
o atendimento individualizado. Além disso, tomamos essas conversas
como oportunidade de conhecer de que forma os participantes enten-
diam que o atendimento grupal lhes poderia ser útil, levando isso em
consideração para o delineamento dos encontros grupais.
Todos os participantes aceitaram vir ao primeiro encontro do aten-
dimento em grupo que, de acordo com as possibilidades da institui-
ção e das pessoas da equipe de trabalho, foi proposto com uma hora
e meia de duração, semanalmente. Considerando-se o semestre letivo
do curso de psicologia, a prática grupal foi proposta em dez encontros.
Na primeira sessão, apenas oito pessoas compareceram. Nos dois en-
contros seguintes, essas pessoas voltaram, mas algumas verbalizaram a
impossibilidade de continuar, por razões pessoais ou indisponibilidade
de horário. A partir do terceiro encontro, cinco pessoas permaneceram
assíduas até o final do processo. Dessas cinco, quatro eram mulheres e
um era homem, com idades entre 30 e 65 anos.
Consideramos importante entender a não adesão de três dos oito
participantes que vieram no primeiro encontro a partir da consideração
de que o processo de negociação do “como”, “para que” e “para quem”
da prática grupal e os aspectos inegociáveis dessa prática, como seu dia,
horário, local, periodicidade e seus coordenadores, circunscrevem limi-
tes para a prática grupal que não necessariamente atendem às deman-
das de todas as pessoas convidadas. Entendemos que a assiduidade das
cinco pessoas mostrou sua concordância com um formato e objetivos
grupais específicos.

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capítulo 9 | 199

A equipe de trabalho organizou-se em dois coordenadores e três pes-


soas na equipe reflexiva. Em um primeiro momento, a equipe definiu
que seria importante que a professora Laura ocupasse o lugar de um dos
coordenadores, sendo que as estagiárias e a psicóloga do serviço fariam
um rodízio na cocoordenação dos encontros. Essa escolha se deu por se
considerar que a professora tinha maior intimidade com a forma de tra-
balho que estava sendo proposta. Todavia, nos encontros seguintes, as
estagiárias e a psicóloga Célia sentiram-se à vontade para fazer um ro-
dízio na função de coordenação dos encontros grupais, sendo que Lau-
ra ocupou, até o final do processo, um posto na equipe reflexiva. Após
alguns encontros, optou-se por acrescentar a “cadeira vazia” no atendi-
mento, sendo que qualquer pessoa da equipe reflexiva poderia entrar no
círculo para conversar com os coordenadores. Tal decisão tinha relação
com o atendimento ser também um campo de aprendizagem para to-
dos, em especial para as estagiárias.
Quanto à estrutura de cada encontro, no primeiro realizamos a apre-
sentação de todos os membros da equipe e afirmamos a importância de
cada um dentro do trabalho em grupo, inclusive da equipe reflexiva, e
de que forma ela faria parte dos encontros. Pedimos que os participan-
tes falassem seus nomes. Em seguida, realizamos a primeira parte da
construção do contexto conversacional, ou seja, a definição do “como e
por que queremos estar aqui”. Foram levantados os pedidos dos partici-
pantes, buscando entender o que precisaria acontecer para que o aten-
dimento valesse a pena e para que as pessoas se sentissem motivadas a
continuar. Posteriormente, fez-se o questionamento acerca das ofertas
de cada um para colaborar na construção desse processo almejado.
Alguns pedidos realizados foram de que se pudesse buscar um copo
de água quando alguém se sentisse em pânico, de que alguém da equi-
pe pudesse ligar caso uma pessoa faltasse, animando-a a voltar, de que
todos pudessem ser francos em suas falas, de que os encontros fossem
descontraídos e de que o atendimento fosse avaliado e repensado cons-
tantemente.

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200 | construcionismo social

Durante a apresentação dos participantes, evitamos explorar histó-


rias de problemas (relatos de angústias, sensação de pânico, sentimentos
de tristeza). Afirmamos que, neste primeiro momento, tais histórias não
seriam aprofundadas, mas que nos próximos encontros haveria espa-
ço para conversar sobre elas. Essa forma de coordenar a prática grupal
tinha relação com a postura por nós adotada, em diálogo com os men-
cionados téoricos construcionistas sociais, de posicionar o coordenador
como especialista do processo da conversa, ou seja, propondo um jeito
de conversar com a intencionalidade de produção de realidades especí-
ficas. Ou seja, para lidarmos com a predominância de descrições de si
problemáticas no campo do atendimento psicológico e com a tradição
moderna que toma o self como uma essência pouco mutável ao longo do
tempo, buscamos evitar a legitimação de descrições de si problemáticas.
Claro que não era proibido falar de problemas nos encontros, mas nós
entendíamos que descrições de si como pessoas capazes de lidar com es-
ses problemas poderiam ser exploradas anteriormente. Tal intenciona-
lidade foi explicitada aos participantes, lembrando que as pessoas vêm
para o atendimento com o modelo culturalmente legitimado no qual o
usuário deve contar seus problemas para o psicólogo.
No segundo encontro, optou-se pela realização de uma atividade que
priorizasse uma definição de “eu” apreciativa dos participantes. Essa ati-
vidade respondia ao momento da definição do “quem” participa dessa
prática grupal, parte da construção do contexto conversacional. A ativi-
dade caracterizou-se pela narração de um episódio difícil passado por
cada um deles, mas que foi passível de superação. A partir daí, realizou-
se a escrita, nos crachás de cada participante, de um adjetivo que iden-
tificasse a característica pessoal que teria permitido tal superação. Os
participantes resgataram bonitas histórias de superação, especialmente
com a retomada de momentos anteriores da vida nos quais se sentiam
bem consigo mesmos e estavam felizes e realizados.
Ao término desse encontro, uma das participantes relatou um epi-
sódio bastante difícil de sua vida, impactando todos os participantes.

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capítulo 9 | 201

Por essa razão, no terceiro encontro, optamos por uma atividade que
elencasse as estratégias concretas para a resolução de problemas que os
participantes já utilizavam em suas vidas. A pessoa que estava com a
aflitiva situação de vida não foi nesse dia e, em contato telefônico poste-
rior, disse preferir não voltar aos encontros em grupo. Antes de iniciar
a atividade programada pela equipe para esse encontro, questionamos
se eles ficaram com a mesma impressão que nós sobre o encontro an-
terior. Todos concordaram. Feito isso, explicamos que, como cada um
dos presentes tinha passado por lugares de desamparo, para aquele dia
pensamos em como, a partir de seus recursos, eles poderiam sair desses
lugares, caso fosse necessário. Pedimos que cada participante comentas-
se sobre uma situação difícil que estava passando e sobre como ele acre-
ditava que poderia superá-la. Posteriormente, abrimos para que todos
participantes ajudassem na coconstrução de resoluções.
As situações difíceis relatadas foram: o parar de fumar, as debilidades
físicas, a culpabilização pelos erros na educação dos filhos e ansiedade
constante. Pensamos juntos em como eles poderiam superar essas di-
ficuldades e algumas estratégias foram mencionadas: manter a calma,
frequentar lugares nos quais não há fumantes, fazer atividades manuais
para distração, rezar, conversar com o marido, ter paciência, fazer exer-
cícios, entre outros.
O quarto encontro contemplou mais um momento da construção
do contexto conversacional, com a decisão sobre “o que queremos con-
versar aqui”. Convidamos os participantes a elencarem os temas que
seriam discutidos nos próximos encontros, até o final do atendimento
em grupo. Os participantes elencaram poucos temas e o fizeram com
certa dificuldade. Na medida em que os coordenadores foram exploran-
do as falas dos participantes, quatro temas foram elencados. A ordem
dos temas a serem discutidos a cada encontro também foi decidida em
conjunto. A percepção dos participantes de que algumas pessoas esta-
vam mais ansiosas e com maior necessidade de falarem das questões
que as desafiavam naquele momento fez com que fosse dada prioridade

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202 | construcionismo social

aos temas de interesse dessas pessoas. Ficou como função da equipe es-
truturar esses encontros temáticos de forma que pudessem ajudar essas
pessoas, mas também serem úteis a todos os demais participantes. Os
temas elencados foram: os limites nas relações e consigo mesmo, como
educar os filhos, ansiedade e solidão/medo, nessa ordem. Além da de-
finição dos temas, também estava aberta para negociação a dinâmica
desses encontros, com a possibilidade de alguns grupos terem objetivo
de um grupo terapêutico, de orientação, entre outros tipos.
O convite para os usuários participarem da decisão do que seria tra-
balhado no atendimento grupal possibilitou a oferta de os participantes
trazerem material para esses encontros. Sobre limites na educação dos
filhos, por exemplo, uma participante se ofereceu para procurar infor-
mações na internet, outra se ofereceu para ler um livro sobre a questão
e resumi-lo aos demais participantes.
Seguindo a ordem temática definida, no quinto encontro falou-se so-
bre os limites que precisamos colocar no relacionamento com familiares,
com amigos e no trabalho. O pedido da equipe era de que alguém se vo-
luntariasse a contar uma situação-problema que estivesse vivendo com
relação a esse tema. Utilizamos a técnica do “como se” (Anderson, 2009).
Nela, você pede para uma pessoa voluntária identificar uma situação-di-
lema que gostaria de compartilhar com o grupo e descrever quais são as
pessoas envolvidas na situação. Antes dessa pessoa contar sua história, os
coordenadores pedem que cada pessoa da audiência decida a partir de
qual lugar gostaria de ouvir aquela história, ou seja, se gostariam de ouvir
a situação a partir do lugar de um dos envolvidos. Por exemplo, se a situa-
ção é um conflito entre mãe e filha, pedimos que cada pessoa da audiência
decida se vai ouvir a história “como se” fosse a filha ou a mãe. Esse posi-
cionamento faz com que se possa ouvir a situação-dilema a partir de uma
nova perspectiva, sensível a como cada pessoa envolvida age ou reage.
Após a história ser contada, o coordenador pede para audiência com-
partilhar suas reflexões a partir de seu lugar de escuta, ou seja, falando do
lugar de filha ou de mãe, considerando-se o exemplo anterior. Essa forma

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capítulo 9 | 203

de fala oferece à pessoa que contou a situação-problema outras possíveis


formas de encarar a questão. Em seguida, abre-se a conversa para que os
participantes possam discutir sobre os efeitos de olharmos para as dificul-
dades que temos em nossos relacionamentos a partir de outros lugares e
lógicas. A participante que relatou sua história nesse encontro afirmou ter
sido uma oportunidade de enxergar a situação-problema de forma bas-
tante distinta da que estava encarando, inspirando-a a novas formas de
ação nesses relacionamentos.
Para o sexto encontro, com o tema “Educação dos filhos”, o pedido
dos participantes era para que fosse um momento de atividades mais
didáticas, com a oferta de informações sobre como criar os filhos. Le-
vamos um conteúdo mais estruturado, com a apresentação de como
alguns autores da área compõem certas orientações sobre como criar
filhos. Em seguida, colocamos essas orientações para serem problema-
tizadas por todos, questionando se eles concordavam, se tinham as pró-
prias regras que funcionavam e como era ouvir de alguém de fora sobre
como criar seus filhos. Os participantes falaram de suas experiências de
sucesso na criação dos filhos e de como, em alguns momentos, as regras
ditadas pelos especialistas não ajudam, mas em outros contextos são
saídas encontradas para situações difíceis.
O sétimo encontro tinha como tema a ansiedade. Optamos por falar
do tema a partir de um posicionamento específico dos participantes:
como pessoas criativas na hora de lidar com situações difíceis, o que
já sabíamos que eles eram por conta dos encontros anteriores. Ou seja,
nosso objetivo era convidá-los para falar de ansiedade a partir da posi-
ção de pessoas capazes de superar desafios. A atividade proposta para
esse dia teve início com a apresentação da cena de um filme no qual um
homem acorda dentro de uma caixa, enterrado sob a terra. A cena cau-
sou impacto em todos os participantes, que começaram a falar o quanto
ela representava a forma como se sentiam em muitos momentos. Tais
conversas foram a oportunidade para que uma das usuárias afirmasse
que quase não fora ao atendimento em grupo naquele dia, tamanha era

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204 | construcionismo social

a sensação de desesperança que vivia. Nesse momento, a coordenação


se voltou à exploração dessa fala e foi possível um diálogo no qual a
participante conseguiu compreender melhor o que a deixava daquela
maneira, pois a princípio estava tomando seu desânimo como uma ca-
racterística de sua personalidade e, na conversa, passou a relacionar sua
dor com um episódio acontecido em sua família, o que fez com que ela
pensasse em possíveis alternativas para lidar com o problema.
O oitavo encontro tinha como tema a solidão e medo. Pensamos um
exercício no qual se destacou, com traços de giz, um pedaço do chão
para delimitá-lo como uma ilha na qual todos participantes se encontra-
vam isolados. A proposta era que eles, juntos, encontrassem estratégias
para sair da ilha. A equipe reflexiva considerou esse encontro muito rico
pela possibilidade de algumas pessoas, ao se colocarem nessa situação
como desistentes, perceberem nos demais integrantes uma fonte de
apoio. Alguns participantes reconheceram que, em muitos momentos
de sua vida, não são capazes de perceber as saídas ou aproveitar as opor-
tunidades para seguir em direção à realização de seus sonhos.
No nono encontro, uma das participantes contou que ficou sabendo
que passaria por um tratamento sério de saúde. A coordenação fez, en-
tão, um paralelo do tema do encontro anterior, solidão e medo, relem-
brando como os participantes puderam perceber o benefício de passar
por uma situação difícil juntos, com a possibilidade dessa participante
se sentir acompanhada por todos os participantes no momento de vida
que vivenciaria. A atividade proposta para esse dia tinha como objetivo
instrumentalizar os participantes para lidarem com o término do aten-
dimento em grupo. Foi pedido que cada um escrevesse em um papel os
três maiores desejos que tinham para sua vida, desejos que gostariam
de ver realizados a curto prazo. Em seguida, pediu-se que apontassem o
que precisariam fazer para que tais desejos fossem realizados e o que as
pessoas ao seu redor precisariam fazer para essa realização. Nessa con-
versa, foi possível dialogar sobre a realização de desejos não como algo
que independe de mim, mas como algo do qual eu participo.

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capítulo 9 | 205

O último encontro teve como objetivo a avaliação de todos os ante-


riores. Em especial, foi a oportunidade para pensar que, se fosse possível
a continuação do processo no semestre letivo seguinte, de que forma
cada participante gostaria de se colocar futuramente no atendimento
em grupo. A questão a ser respondida pelos usuários foi: que “eu” che-
gou para o trabalho em grupo (o “eu” deprimido, o “eu” sem esperan-
ça...)? E que “eu” gostariam que viesse para um futuro atendimento do
mesmo tipo? Nesse momento, foi feita uma retrospectiva sobre como
cada um chegou ao atendimento e como saíam dele. Eis algumas decla-
rações: “Nunca vou esquecer do buraco (cena do trailer), sempre vou
lembrar que posso sair dele”, “Cheguei achando que estava tomando as
decisões erradas, hoje sei que todos temos problemas”, “Pena que ficarei
sem vocês, minha zona de conforto”, “Para mim valeu, mas curar, não
curei”, “Aqui temos pessoas com problemas maiores, e ver isso foi bom”,
“Aprendi a falar abertamente com as pessoas”, “Cheguei vazia, num ema-
ranhado de problemas, mas junto ao grupo fico com bons pensamentos,
sei que tem gente comigo, me dando força para superar a crise”, “Ainda
tenho crises, mas foi bom. Queria saber se vocês (equipe) não poderiam
ir na casa da gente”, “Ainda não voltei ao estado ideal que queria, mas
voltei a cantar no banheiro, estou me esforçando”. Todos mencionam
que gostariam de continuar sendo atendidos.

Reflexões, aberturas e circunscritores

Apresentamos algumas reflexões sobre o atendimento realizado, bus-


cando ressaltar as aberturas dessa proposta, considerando-se especial-
mente o discurso tradicional em saúde, que posiciona hierarquicamente
profissionais e usuário, e a necessidade de exploração de alternativas,
assumindo alguns circunscritores desse trabalho. Decidimos organizar
nossas reflexões a partir de dois eixos: (1) Como avaliamos nosso tra-
balho conjunto e (2) como avaliamos o trabalho em grupo realizado.

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206 | construcionismo social

Trazemos aqui as diferentes vozes da equipe de trabalho, a partir de seus


lugares de estagiárias, professora e psicóloga da UBS:

Como avaliamos nosso trabalho conjunto

Após meses de atividades e encontros semanais, propusemos uma


conversa reflexiva sobre nossa experiência na UBS, no último encon-
tro da equipe de trabalho. Ao realizarmos esse exercício reflexivo, con-
seguimos repensar de maneira crítica nossa atuação durante o per-
curso. Conversando sobre as expectativas da coordenação no início
das atividades, ficou claro que apresentávamos concepções diferentes
sobre a atividade em grupo, e permeava em nossas conversas o receio
de não conseguirmos contemplar tantas necessidades: a das estudan-
tes, da orientadora de estágio, da psicóloga do serviço e dos usuários
envolvidos.

Mirian: Eu estava pessimista, achando que não daria certo, pois, quando
fiz grupo em outra unidade [de saúde], não deu certo. Aí cheguei falan-
do nisso. Até antes de começar, eu não estava gostando muito. Mas de-
pois das entrevistas com o pessoal [participantes do trabalho em grupo]
eu fiquei mais animada. E comecei a pensar que poderia ser diferente.
E no final, agora, acho que foi um aprendizado bom, um aprendizado
grande. A gente entendeu bem a finalização [do atendimento em grupo]
e acho que pretendo trabalhar com isso.

Máira: Eu cheguei aqui quase igual a Mirian. Nunca pensei em estágios


de grupos, porque a única vez que a gente tentou não deu certo. Mas
com as leituras eu fui me animando. Achei muito legal a teoria do cons-
trucionismo em si. Aí já foi chamando a atenção.

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capítulo 9 | 207

Larissa: Gostei da prática mesmo, e do apoio de vocês, pois sabia que a


cadeira vazia estava ali e que as meninas [estagiárias] estavam comigo.
Gostei muito.

Célia: Quando você [Laura] veio falar comigo e fez a proposta, eu aceitei
e pensei comigo: “Tô ficando louca, né?” Mais uma coisa para eu me
enfiar. Mas falei: “Eu acho que a gente tem que ir para o novo, o serviço
precisa.” E gostei do jeito que você [Laura] colocou a proposta, achei
você com bom senso, séria, e isso fez com que eu aceitasse. Aí, a gen-
te lendo [os textos prévios ao início dos encontros grupais], eu pensei:
“Esse treco é legal.” “Essa coisa é interessante.” Eu comecei tranquila,
pois já tenho uma experiência com grupo grande, de muito tempo. Eu
atendia no consultório apenas, mas recebi o convite para grupos e ado-
rei. E esse grupo agora não foi diferente. Acho que descobri potências
dentro de mim, e eu acho que foi o grupo, vocês [estagiárias], que fize-
ram acontecer. Eu fiquei encantada com a capacidade de vocês, pois não
é fácil achar estudantes com o nível de vocês. Com a maturidade, sensi-
bilidade, carinho, compromisso. Eu não me senti em nenhum momento
criticada, porque a gente comete erros, mas a gente formou uma equipe
mesmo. Eu fiquei muito à vontade e vinha com muito prazer trabalhar.

Laura: Eu, desde o começo, tinha muito claro que só faria esse grupo se
fosse para fazer junto, fazer com quem estivesse na UBS, com as alunas.
Quero que a equipe de profissionais sinta que o pouco que eu possa es-
tar junto eu estarei. (...) Foi muito leve o trabalho por ser em equipe, es-
tar com a Célia foi significativo por ser legitimada na UBS, pela possibi-
lidade do intercâmbio, coube psicanálise, coube construcionismo social.

Para as estagiárias, existia o receio pela falta de prática e pelas expe-


riências anteriores, que não foram muito positivas em relação ao trabalho
em grupo em certas UBS. Para a profissional da UBS, o receio advinha
da indisponibilidade de tempo e da necessidade de aprender mais sobre

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208 | construcionismo social

intervenção grupal. Para a professora, o receio era de não ter o apoio


necessário das instituições universitária e de saúde. Porém, onde existe o
receio, existe a possibilidade do cuidado. E o cuidado pôde ser presencia-
do durante toda a estruturação do estágio, do início dos estudos ao con-
tato com os usuários. Uma equipe afinada conseguiu perceber melhor as
demandas dos usuários e, a partir delas, os aspectos importantes a serem
abordados. Um cuidado que refletiu positivamente nos encontros.
As falas das estagiárias sobre a inicial falta de motivação para o tra-
balho com grupos na APS encontra eco na literatura da área, apontada
no início deste trabalho. Em nosso caso, o êxito com o atendimento, a
presença da supervisora de estágio e da psicóloga do serviço nos en-
contros, a adesão do participante, construída nas sessões preparatórias
para os encontros grupais, o trabalho em equipe, as novidades trazidas
pela perspectiva construcionista social, o compromisso das estagiárias
e a seriedade da proposta do estágio foram elementos que ajudaram no
interesse destas pessoas frente à proposta de cuidado em saúde e na sua
aposta como forma válida de intervenção psicológica nesse campo.
Em especial, a forma de estruturação do trabalho conjunto permitiu
que profissionais com distintas formações (supervisora do estágio e psi-
cóloga do serviço) pudessem propor juntas os encontros grupais, sem a
competição de saberes. A proposta dos processos reflexivos (Andersen,
1999) inspira essa possibilidade de, diferentemente da lógica científica
moderna de procura de verdades finais sobre os eventos do mundo, in-
centivo à multiplicidade e convivência de interpretações.
A diferença dos lugares sociais ocupados por profissionais e estagiá-
rios poderia ter levado a um jogo de posicionamento de especialistas
e aprendizes, sem a flexibilidade de troca entre as posições. Porém, o
rodízio de funções e o contrato inicial da equipe, no qual todos des-
tacaram suas habilidades e também suas dificuldades, promoveram o
dinamismo nesses posicionamentos, gerando aprendizagem para todos
os envolvidos.

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capítulo 9 | 209

Como avaliamos a prática grupal realizada

Os membros da equipe realizaram uma conversa avaliativa sobre o pro-


cesso realizado:

Mirian: No início, como a gente não conhecia os participantes, tenta-


mos fazer coisas que fossem mais explicativas, né? E depois eles entra-
ram. (...) Explicar a cadeira vazia, a equipe reflexiva, que eu achei que
eles poderiam ficar persecutórios, mas não ficaram. Então acho que eles
[participantes] também já tinham alguma coisa, já estavam dispostos.

Máira: Achei as sessões preparatórias muito legais, precisa mesmo delas.


Porque eu acho que poderia haver pessoas que não dariam certo no gru-
po. Para cada grupo eu acho que tem que ter um tipo de gente. Por isso
acho que o grupo deu certo, os que ficaram fizeram o grupo dar certo.
Na entrevista, a gente percebia quem viria e ficaria apenas um encontro.
(...) Nunca pensei que um grupo pudesse funcionar sem terapias indi-
viduais. Eles se ajudarem, achei muito legal. Eles crescerem juntos. E o
jeito que consideravam o grupo, como grupo família, achei muito bom.

Célia: A gente pôde acolhê-los [os participantes] em cada momento que


cada um estava. A dona Felícia é uma pessoa que está pronta para fa-
zer análise, o Romário saiu com essa portinha aberta. (...) A Karen está
ainda na casinha dela, olhando a janelinha e pensando se sai ou não.
Enfim, cada um com sua cara. Agora, a única coisa que eu acho que a
gente precisa pensar é o número de sessões. Eu acho que a gente precisa
passar talvez para vinte, para não deixar algumas pessoas sem aproveitar
o que poderiam aproveitar.

Laura: Foi um grupo de muitas experimentações. O que mais me chama


atenção nessa experiência é a questão contextual. Pensar: “Quem é a
estagiária que está comigo?”, “Quem é a psicóloga do local que vai estar

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210 | construcionismo social

junto?”, “Que UBS é essa?”, “Quem são esses participantes?”. Eu lembro


que vocês me perguntavam: “Mas é um grupo do quê?”, e eu falava: “Não
sei, o grupo ainda não começou” [risos]. E eu acho que é uma resposta
desafiadora se a gente tem a ideia de que as coisas têm que estar prontas,
mas parece que foi o que permitiu que a gente pudesse ser levado para
o que eles [participantes] estavam precisando. Pensar em cada grupo:
“O que vamos fazer no próximo encontro, pensando o que aconteceu
hoje?” Então eu gosto dessa ideia do contextual, de saber que grupo a
gente tem. Sempre aberto à negociação, eu penso.

Larissa: Eles queriam ouvir da gente o que a gente achava, uma devoluti-
va. Talvez, em outros grupos, a gente possa responder mais a isso. Isso me
chama muito atenção, que para cada grupo podemos mudar como vai ser.

Na fala de Mirian, destacou-se a importância do atendimento em


grupo ter começado de forma explicativa, ou seja, com os coordena-
dores dando direcionamentos aos participantes e, posteriormente, com
os usuários sendo mais ativos na sua participação, ao entenderem a
proposta do trabalho em grupo. O posicionamento dos coordenadores
como especialistas do processo foi legitimado pelos participantes. Toda-
via, ficamos nos perguntando em que medida poderíamos investir em
práticas em saúde nas quais os usuários participassem não apenas da
definição do conteúdo do trabalho em grupo, mas também de seu pro-
cesso. Tal reflexão vai ao encontro da proposta de Ferreira Neto e Kind
(2011) de se pensar de que forma a efetiva participação popular pode
acontecer nesses contextos. Retomando a definição de Pearce e Pearce
(2003), de diálogo como algo que não acontece espontaneamente entre
as pessoas, precisando de alguém que conduza a conversa, ficamos com
a pergunta sobre em que medida essa definição circunscreve algumas
possibilidades para coconstrução da saúde a partir de moralidades pró-
prias das comunidades discursivas das quais os psicólogos participam.
O que seria caracterizado como uma boa conversa para os participan-

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capítulo 9 | 211

tes? Conversas dialógicas também devem ser avaliadas a partir de sua


utilidade contextual.
Os encontros grupais mantiveram como setting a sala para atendi-
mento em grupo da UBS. Ficamos curiosas sobre outras possibilidades
que poderiam se abrir em trabalhos de grupos futuros, com os encon-
tros podendo acontecer fora da instituição. A sugestão de uma das par-
ticipantes de se poderíamos ir à casa deles deve ser ouvida como uma
oportunidade de pensarmos os limites de nossas atuações e as teorias
que as sustentam.
A narrativa de Mirian de que aqueles eram participantes especiais,
isto é, que se encaixaram de forma harmônica na proposta que tínhamos
para a prática grupal, pode ser também entendida a partir da noção de
grupo como construção social (RASERA & JAPUR, 2006), ou seja, como
definido a partir dos contextos discursivos das pessoas envolvidas em
sua construção. Nesse sentido, podemos pensar o contrário, que a prática
grupal construída por todos os envolvidos atendeu de forma harmônica
seus participantes. Caso contrário, o atendimento de grupo seria sempre
previamente estruturado e tentaríamos a sorte ao convidar os usuários
para ver se eles se adaptam à proposta. Ao assumirmos que não há uma
melhor forma de atendimento previamente definida podemos aumentar
a chance de adesão dos participantes justamente ao tentar negociar for-
mas de prática grupal que possam atender seus interesses.
Ao mesmo tempo, a modalidade de atendimento grupal convida ao
compromisso do grupo de atender não a demandas individuais, mas
coletivas, posicionando os usuários como corresponsáveis pela cons-
trução da saúde de sua comunidade, em uma proposta de envolvimen-
to coletivo que se alinha à filosofia do SUS (BRASIL, 2006). Nossa esco-
lha pelo atendimento em grupo, como mencionado, relacionou-se com
nossa aposta nesse espaço como promotor de trocas e multiplicação
de sentidos sobre o que é saúde, além de nossa aposta na construção de
redes sociais de apoio e de entendimento do bem-estar individual como
responsabilidade relacional.

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212 | construcionismo social

Cabe aqui uma reflexão sobre a crítica que tem sido realizada na
literatura da área quanto ao predomínio das práticas psicoterapêuticas
realizadas por psicólogos na APS. Como afirma Dimenstein (2001),
a principal crítica a esse predomínio deriva do fato dos profissionais,
muitas vezes, recorrerem ao atendimento psicoterápico por não terem
arcabouço teórico e técnico para sustentar práticas distintas. Todavia,
a autora menciona a importância dos psicólogos na APS se sentirem
livres para construir seus próprios referenciais de atendimento, proble-
matizando a aplicação das teorias e técnicas tradicionais nesse contexto
de atuação, focando prioritariamente nas demandas locais. Concorda-
mos com a autora e adicionamos à sua colocação que, se a demanda
por psicoterapia for uma demanda possível de ser posta em conversa
e atendida, ela também pode fazer parte do atendimento ao usuário,
sendo, nesse caso, não uma imposição ou o resultado da falta de outras
opções, mas uma escolha consciente em meio a outras possibilidades
que também podem ser exploradas.
Os usuários avaliaram que a participação no atendimento foi váli-
da, com recebimento de apoio entre os participantes, ainda que alguns
tenham dito que a sua participação não foi capaz de evitar os sintomas
das psicopatologias com as quais haviam sido diagnosticados e com as
quais, em muitos momentos, eles se reconheciam. O discurso biomédi-
co, nesse sentido, tem o peso na definição dos objetivos do tratamento.
Tal aspecto chama a atenção dos coordenadores de práticas grupais à
tensão entre a importância de se combater os efeitos estigmatizantes que
o diagnóstico de uma psicopatologia pode acarretar e a necessidade do
usuário de dar um nome ao que o angustia ou perturba.
A impotência que o usuário pode sentir frente ao diagnóstico psi-
cológico, uma vez que sua problemática se torna objeto de especiali-
dade profissional, pode impulsionar o pedido dos usuários por formas
de atendimentos nas quais o profissional oriente o que ele deve fazer.
Os psicólogos devem estar atentos para esses efeitos na proposta de um
tratamento coconstruído, com relações horizontalizadas profissional-­

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capítulo 9 | 213

-­ usuário. A tradição em saúde, que posiciona o usuário como receptor de


cuidado, pode estar relacionada à dificuldade dos usuários aqui apresen-
tados em definir os temas a serem conversados nos encontros grupais.
Com relação à necessidade de superação do binômio saúde-doença
nas práticas em saúde (ANDRADE; SIMON, 2009; ONOCKO-CAM-
POS et al., 2012; SPINK, 2010), entendemos que, em muitos momentos,
o foco no positivo, na melhora ou no recurso pode ser tomado como
apenas a antítese do foco na doença, no problema ou na psicopatolo-
gia, mantendo como parâmetro esse mesmo binômio. Ou seja, tomamos
como desafio a construção de práticas em saúde que possam assumir ou-
tros parâmetros de definição de uma boa forma de se viver (MOL, 2010).
Entendemos que a construção do contexto conversacional foi fun-
damental para o posicionamento dos participantes como pessoas com
capacidade de lidar com suas dificuldades e encontrar saídas conjunta-
mente. Além disso, o contrato inicial estabelecido entre os participan-
tes e a equipe de trabalho favoreceu um clima de respeito e segurança
no atendimento em grupo, o que nos parece ter ajudado na adesão dos
usuários ao trabalho realizado. Ainda assim, duas pessoas convidadas
a participar não compareceram às sessões, o que nos mantêm interes-
sadas em entender de que outras formas os profissionais da UBS pode-
riam acessar essas pessoas e coconstruir o cuidado.
Como Célia apontou em sua fala, a prática grupal que construímos
se beneficiaria de um maior número de encontros, sendo que, como
mencionado anteriormente, a definição da quantidade de encontros foi
definida não em função da necessidade dos participantes e coordenado-
res, mas dos limites que a própria parceria universidade/UBS delimita.
Entendemos que os aspectos inegociáveis na construção de um espaço
de atendimento, como limites de espaço, de tempo e de pessoal para
conduzir encontros grupais, devem ser expostos aos usuários não como
imposições, mas como circunstâncias contextuais, passíveis de gerar
posicionamentos políticos e éticos na constante busca de aprimoramen-
to das possibilidades de atuação em saúde.

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214 | construcionismo social

Um dos pontos mais valorizados pela coordenação dessa prática gru-


pal foi o fato de poder sustentar na UBS um grupo cujo objetivo não foi
previamente definido, podendo ser negociado com seus participantes.
Entendemos que tal forma de trabalho relaciona-se a uma postura ética
na qual diferentes verdades sobre uma “boa saúde” são valorizadas. Tal
postura construcionista social se aproxima da demanda por um aten-
dimento em saúde no qual a autoridade do conhecimento técnico não
seja imposta (CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005). Essa forma de
trabalhar contrasta com a literatura na área de dinâmica de grupo que
alerta que, sem a finalidade “do grupo” pré-estabelecida, não é possível
compor e/ou organizar uma prática grupal (SALVENDY, 2003). Apostar
em uma prática colaborativa é apostar no que de surpreendente, ines-
perado e novo pode aparecer na parceria profissional-usuário. Sabemos
que tal abertura para o trabalho conjunto poderia ter sido ainda maior
e que outras explorações são possíveis para a coconstrução da prática
profissional do psicólogo na APS. Esperamos, portanto, que este capí-
tulo possa inspirar os leitores a explorar novas definições do que vai ser
tomado como “grupo”, “seu” objetivo, “sua” composição, “seu” formato,
“seu” parâmetro avaliativo, “seu” início e “seu” término.
No intuito de expandir esta conversa, apresentamos, em seguida, al-
gumas fontes complementares de informações sobre o assunto que con-
sideramos férteis em nosso trabalho. Boa leitura!

Dicas das autoras: textos, filmes ou vídeos

• No site do Taos Institute (www.taosinstitute.net), é possível encon-


trar textos de diferentes autores construcionistas sociais que pesqui-
sam ou atuam no tema da atenção à saúde, com download gratuito
ou link de acesso a seus textos.
• No site do Instituto ConversAções (www.conversacoes.com.br), é
possível encontrar a oferta de cursos de formação que têm como

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capítulo 9 | 215

base o uso de estratégias e recursos dialógicos que podem ser utiliza-


dos nas práticas no campo da saúde.
• No YouTube (www.youtube.com), é possível acessar vídeos de en-
trevistas com o psicólogo finlandês Jaakko Seikkula, conhecido
mundialmente por seu trabalho em saúde mental com a criação dos
Diálogos Abertos na construção colaborativa de assistência, em ca-
sos de diagnóstico de psicose.
• A tese de doutorado da professora da NHTV, da Breda University of
Applied Science, Celiane Camargo-Borges, que teve como tema “O cons­­-
trucionismo social no contexto da estratégia Saúde da Família: articu-
lando saberes e práticas”, pode ser acessada no site: www.teses.usp.br
• Outras fontes de leitura sobre o tema, com acesso online e gratuito,
podem ser encontradas no site da biblioteca Scielo (www.scielo.br):
• BUGARELLI, A. F.; PINTO, I. C.; GUANAES-LORENZI, C.;
VILLA, T. C. S.; MESTRINER, S. F.; SILVA, R. C. Atenção primá-
ria à saúde e a construção de sentidos para a saúde bucal: leitura
construcionista social sobre discursos de idosos. Ciência e saúde
coletiva, Rio de Janeiro, v.1, n. 5, p. 2053-2062. 2012.
• CAMARGO-BORGES, C.; CARDOSO, C. L. A psicologia e a es-
tratégia Saúde da Família: compondo saberes e fazeres. Psicologia
& Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 26-32, 2005.
• GUANAES, C.; JAPUR, M. Construcionismo social e metapsi-
cologia: um diálogo sobre o conceito de self. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, v. 19, n. 2, p. 135-143, 2003.
• GUANAES, C.; MATTOS, A. T. R. Contribuições do movimento
construcionista social para o trabalho com famílias na estraté-
gia Saúde da Família. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4,
p.1005-1017, 2011.
• SOUZA, L. V.; SANTOS, M. A.; CORRADI-WEBSTER, C. M.;
GUANAES, C.; MOSCHETA, M. S. Social construction and heal-
th: an interview with Sheila McNamee. Universitas Psychologica,
Bogotá, v. 9, n. 2, p. 574-584, 2010.

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216 | construcionismo social

• SPINK, M. J. P. Sobre a possibilidade de conciliação do ideal da


integralidade nos cuidados à saúde e a cacofonia da demanda.
Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 1, p.18-27, 2007.

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Capítulo 10
Mulheres em movimento: grupos como
dispositivos de ação coletiva
claudia m. pedrosa
jacqueline i. m. brigagão

Força para fazer do nosso gesto


um gesto só de muitos gestos
e a energia coletiva que isso representa.
paulo leminski

Escrever sobre práticas profissionais a partir de uma perspectiva cons-


trucionista é tarefa complexa e desafiadora. Isso por que há de se bus-
car, por meio da escrita, traduzir os movimentos, as interlocuções e os
múltiplos gestos que tal perspectiva nos possibilita reconhecer como
constitutivos das práticas. Assim, a escrita deve possibilitar comparti-
lhar/construir/transformar, necessita deliberadamente da interlocução
e depende dos sentidos produzidos pelos leitores para concretizar os
sentidos que pretende veicular. Nas palavras de Bakhtin (1976, p. 12):
“O discurso verbal é o esqueleto que só toma forma viva no processo da
percepção criativa e, consequentemente, só no processo da comunica-
ção social viva.”
Utilizar a perspectiva construcionista para orientar as práticas gru-
pais implica pensar o grupo como espaço privilegiado para proble-
matizar e desconstruir repertórios que circulam em nossa sociedade.

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218 | construcionismo social

Possibilita, também, questionar os diferentes posicionamentos das/dos


participantes e facilita a assunção de novas posições. Spink e Frezza
(2000, p. 32) explicam essa perspectiva do seguinte modo:

A pesquisa construcionista é, portanto, um convite a examinar essas


convenções e entendê-las como regras socialmente construídas e his-
toricamente localizadas. É um convite a aguçar a nossa imaginação e a
participar ativamente dos processos de transformação social. Impõe-se,
em contrapartida, a necessidade de explicitação de nossas posições: não
a escolha arbitrária entre opções tidas como equivalentes, mas a opção
refletida a partir de nossos posicionamentos políticos e éticos (Spink;
Frezza, 2000, p. 32).

Desse modo, é fundamental explicitar os posicionamentos políticos


e éticos. Sob tal perspectiva, queremos iniciar explicando que vamos
discutir os grupos de mulheres a partir de um posicionamento femi-
nista que reconhece os grupos como espaços para o fortalecimento e
empoderamento das mulheres.
Temos trabalhado como facilitadoras de grupos de mulheres de di-
ferentes classes sociais que enfrentam problemas e obstáculos nos em-
bates cotidianos, tanto no universo público (trabalho, inserção nas po-
líticas públicas etc.) como no privado (família, casa e saúde). Ou seja,
trata-se de explicitar a perspectiva que adotamos e situar os conheci-
mentos produzidos. Haraway (1995, p. 30), discutindo a produção de
conhecimentos situados, afirma:

Estou argumentando a favor de políticas e epistemologias de alocação, po-


sicionamento e situação, nas quais parcialidade e não universalidade são
a condição de ser ouvido nas propostas a fazer de conhecimento racional.
São propostas a respeito da vida das pessoas; a visão desde um corpo, sem-
pre um corpo complexo, contraditório, estruturante e estruturado, versus
a visão de cima, de lugar nenhum, do simplismo (Haraway, 1995, p. 30).

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capítulo 10 | 219

Assim, fica evidente, desde o princípio, que não acreditamos em neu-


tralidade. Sempre que falamos (nos relacionamos ou escrevemos), o faze-
mos a partir de um determinado ponto de vista. Assumir e explicitar, de
partida, um posicionamento permite que sejamos mais objetivas e rigo-
rosas.
As feministas, desde o início do movimento, têm trabalhado com
grupos de reflexão como estratégia de desconstrução dos papéis histori-
camente atribuídos às mulheres. Para Vance (1995, p. 11):

As discussões em grupos de conscientização deixavam claro que o que


parecia ser um corpo naturalmente marcado pelo gênero era, na ver-
dade, um produto mediado socialmente em alto grau: a feminilidade e
os atrativos sexuais eram alcançados por uma persistente socialização
com respeito aos padrões de beleza, maquiagem e linguagem corporal
(Vance, 1995, p. 11).

À medida que as acadêmicas do movimento feminista desenvolve-


ram suas pesquisas e descreveram a importância das relações de gêne-
ro e os modos como elas são construídas no cotidiano, possibilitaram
que a discussão avançasse para o questionamento e a desconstrução
dessas relações e das ações que elas engendram. Desse modo, a leitu-
ra de que as relações de gênero atravessam todas as relações sociais
é uma contribuição fundamental para que se desenvolvam estratégias
para superar as desigualdades sociais. Vale lembrar que, à medida que
os estudos avançam, os conceitos vão sendo ampliados. Teóricas como
Judith Butler e Linda Nicholson, da denominada “terceira onda do fe-
minismo”, problematizaram a leitura sobre gênero calcado na diferença
entre os sexos. Elas têm afirmado que tais relações constituem o sexo
e atuam em um regime social normativo de uma heterossexualidade
compulsória para as mulheres (Pedro, 2005). Nesse sentido, Reynolds e
Wetherell (2003), em sua pesquisa sobre discursos e identidade de mu-
lheres solteiras, ampliam a discussão afirmando que, além da natura-

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220 | construcionismo social

lização da heterossexualidade para as mulheres, circulam também em


nossa sociedade repertórios sobre a obrigatoriedade de se estabelecer
relações de longo prazo com homens, casamento ou similares, sendo a
condição de solteira, muitas vezes, associada a repertórios de fracasso
ou ineficiência em conseguir um parceiro.
Em nossas práticas, têm sido possível observar como as discussões,
as trocas e as aprendizagens, no contexto dos grupos, facilitam a des-
construção de repertórios e normas sociais de ação cristalizados, além
de permitir às participantes a elaboração de novos modos de pensar
sobre si mesmas e de agir no cotidiano.
A seguir, vamos utilizar relatos de nossos diários de campo sobre
dois grupos de mulheres dos quais já participamos/facilitamos/super-
visionamos para demonstrar como, em nossas práticas, os grupos têm
possibilitado que as mulheres assumam novas posições nas suas múlti-
plas relações sociais.

Os grupos como dispositivos de ação coletiva


das mulheres

A perspectiva crítica de psicologia social com a qual trabalhamos re-


conhece a centralidade do cotidiano, ou seja, das ações e das relações
que as pessoas estabelecem diariamente e dos diversos grupos de que
somos parte. Porém, neste texto, nosso foco não são esses grupos aos
quais nos associamos no cotidiano e que também têm potencial para
engendrar ações coletivas. São, sim, os grupos formados com objeti-
vos específicos, como os de discussão sobre direitos sexuais e repro-
dutivos, de geração de renda, de mulheres artesãs. Em todos eles é
possível observar que a participação e as novas relações possibilitam
o empoderamento das participantes em alguns aspectos e ampliam
as possibilidades de transformação das relações que estabelecem no
dia a dia.

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capítulo 10 | 221

Compreendemos empoderamento como processo, ou seja, é por


meio das relações grupais que as pessoas empoderam-se entre si e dão
conta de suas habilidades e capacidades para produzir novos modos de
ação no mundo (Friedmann, 1996; Romano, 2002; Wallerstein, 2006).
Assim, fica evidente que o empoderamento é um processo relacional in-
trinsecamente associado às possibilidades do grupo de acolher, compar-
tilhar e produzir novos sentidos às experiências dos participantes. Nesse
contexto, o papel das/dos profissionais que atuam nesses grupos não é
o de coordenar, dirigir ou impor ideologias ou comportamentos; pelo
contrário, é o de facilitar as relações e os processos de empoderamento.
As reuniões grupais possibilitam às participantes espaços para re-
criarem a si próprias. À medida que interagem, falam, ouvem, dançam
e trabalham juntas, vão inventando novas formas de viver e de se po-
sicionarem no mundo. Ou seja, nas relações interpessoais com outras
mulheres vão conhecendo e construindo novas possibilidades de ação.
O trecho a seguir foi retirado do diário de campo de uma psicóloga
que coordenou um grupo criado no espaço de um serviço de saúde
público. Esse grupo foi instalado em uma unidade básica de saúde, no
interior do estado de São Paulo, no ano de 2007. O seu objetivo era aco-
lher, prioritariamente, as usuárias da UBS e do Programa de Saúde da
Família. O grupo era aberto e não exigia encaminhamento. Na unidade
havia cartazes/convites com indicação de local, data e horários em que
os encontros aconteciam. Os profissionais que atendiam na unidade,
quando entendiam que as usuárias poderiam se beneficiar dos encon-
tros, em geral as encaminhavam para o grupo, iniciado com oito mulhe-
res e gradativamente ampliado, atingindo a média de 20 participantes.
As idades das mulheres variavam entre 35 e 67 anos. Havia brancas, ne-
gras e pardas, moradoras de áreas urbana e rural, com diferentes níveis
de escolaridade. Era permitida a presença das crianças que acompanha-
vam as mulheres. No canto da sala havia uma brinquedoteca, na qual
as próprias crianças se organizavam nas brincadeiras e as mais velhas
cuidavam das mais novas.

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222 | construcionismo social

No início dos encontros, a psicóloga geralmente convidava as mulhe-


res a se apresentarem e escolherem um tema para a conversa; explicava
a duração do grupo e apresentava a brinquedoteca às crianças. À medi-
da que o grupo se consolidou não era mais necessária a intervenção da
psicóloga: as mulheres, em geral, já chegavam trazendo algum assunto e
começavam a falar. Quando chegava uma nova participante, as integran-
tes mais antigas se revezavam na tarefa de apresentar o grupo. Dentre os
diferentes assuntos tratados no início, as questões mais instigantes acaba-
vam encontrando eco em todas as participantes. Ao longo das conversas,
a psicóloga assumia o papel de problematizadora das questões. No final
de cada encontro buscava-se gerar encaminhamentos com o objetivo de
fortalecer o controle social e disseminar os espaços e canais de partici-
pação popular. Ao final de todas as reuniões, a psicóloga registrava no
diário do grupo o nome das participantes, os temas discutidos, os pontos
de divergência e convergência e os encaminhamentos.
O trecho a seguir ilustra os diálogos e interações que nos ajudam a
pensar nas múltiplas trocas que o grupo possibilita e nas ações que essas
engendram:

Joana, uma mulher branca de 41 anos, moradora da zona urbana, ma-


nifestou, no momento da escolha do tema, que queria falar sobre como
os profissionais da saúde não tinham consideração pelos “pacientes”. Sua
mágoa era pela seguinte situação: ela havia sido encaminhada para fazer
um exame num hospital que ficava distante 40 quilômetros daquela cida-
de e era referência da Secretaria Municipal de Saúde, por isso, todos que
precisavam de exames de média e alta complexidade eram encaminha-
dos para lá. No momento em que foi pegar a autorização, a funcionária
local explicou que ela deveria fazer jejum total de 12 horas. No dia do
exame, ela seguiu a orientação, esperou mais cinco horas no hospital e,
“quase desmaiando”, foi realizar o exame e, então, durante sua realiza-
ção a enfermeira explicou que o procedimento não exigia jejum. Depois
desse relato, muitos outros semelhantes foram surgindo, numa avalan-

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capítulo 10 | 223

che de descontentamento. As falhas, negligências, violências e omissões


eram listadas numa lousa. A cada experiência contada, as mulheres eram
convidadas pela facilitadora a explicitarem como seria uma versão digna
de atendimento para cada caso. Nessa reunião, havia 20 participantes e
foram anotadas 16 vivências consideradas ruins. As mulheres negras ou
pardas descreviam atendimentos rápidos, consultas breves, nas quais a/o
profissional de saúde nem sequer fazia exame clínico. A incompreensão
com a orientação que era feita para condutas terapêuticas era outra quei-
xa apresentada pelas mulheres, que também reclamavam do tempo de
espera para atendimento e de como percebiam que eram trapaceadas na
ordem de entrada – usuárias “bem vestidas ou parentes e amigas das fun-
cionárias” tinham privilégios. Uma participante negra contou que um
médico, hostilmente, disse que “se na próxima consulta eu não tomasse
banho e viesse cheirosa, ele não me atenderia mais, e ainda ameaçou: vou
te mandar embora, se da porta eu sentir o cheiro”. As mulheres, iradas,
perguntaram se ela não foi reclamar com o chefe dele, e ela respondeu
que não foi porque estava “acostumada com os maus-tratos”.

O encaminhamento do grupo ao final da reunião foi que, na próxima,


escreveríamos uma carta para o secretário municipal de saúde, denun-
ciando o descaso e pedindo providências.

Relendo o diário desse grupo, nota-se que, ao longo do tempo, as


mulheres se mostraram revoltadas com o que escutavam, tanto que le-
vavam isso para fora do grupo, e com indignação, como no relato de
uma participante: “Quando contei pra minha vizinha o que o médico
tinha feito com a dona Maria, ela disse que já escutou outras pessoas fa-
lando mal deste médico.” O que antes era uma experiência individual de
dor e humilhação passa, no compartilhamento social, a ser um exemplo
de resistência e revolta. O que era “costume” – ser discriminada, enxota-
da e preterida – toma proporção de negação: “não vou aceitar isso”, “não
quero isso pra meus filhos, ser preto não é ser sujo”.

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224 | construcionismo social

Esses trechos do diário do grupo ilustram como as mulheres, quan-


do conseguem compartilhar no espaço do grupo experiências que as
humilham e excluem, conseguem acionar inúmeras estratégias, inclu-
sive um posicionamento político e a articulação de ações coletivas. Es-
cutar a discriminação racial do outro faz com que todas pensem nas
discriminações que já sofreram, de forma explícita ou velada, e, de certo
modo, mobiliza as participantes a encontrarem uma forma de reagir e
fazerem algo diante da humilhação sofrida.
Observa-se um duplo movimento que o grupo possibilita e refor-
ça: uma indignação e uma transformação pessoal das participantes. Ao
mesmo tempo, há uma busca de ação coletiva que alimenta a esperança
de um mundo melhor, e o grupo pode ajudar a transformar o mundo.
Trata-se de reconhecer e questionar as assimetrias de poder vivenciadas
no cotidiano, de revoltar-se contra essa estrutura e de buscar novos mo-
dos de relação.
Os grupos também se constituem para muitas participantes como um
espaço de compartilhamento de modos de vida diferentes e como cada
uma consegue lidar com as limitações impostas pela sociedade.
A seguir, vamos apresentar o excerto de um grupo no qual as parti-
cipantes discutem as dificuldades enfrentadas no exercício da materni-
dade em uma sociedade desigual. Esse grupo acontecia em um espaço
comunitário, chamado de Casa, no bairro de Ermelino Matarazzo, na
zona leste da cidade de São Paulo. Era coordenado por duas professoras
e três alunas da Escola de Obstetrícia da Universidade de São Paulo. As
participantes eram jovens que viviam no bairro, com idades entre 12
e 28 anos. No início do grupo, foram enviados convites para algumas
mulheres que tinham cadastro na casa, outras eram convidadas quan-
do vinham participar de certos grupos, ou, ainda, como era um espaço
aberto, vinham por indicação das amigas.
O grupo tinha em média oito participantes, entre brancas, negras e
pardas. A maioria das mulheres tinha filhos/as pequenos/as ou estava
grávida. No início, o grupo confeccionava bijuterias enquanto conver-

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capítulo 10 | 225

sava. Mais tarde, passou a confeccionar também peças de biscuit. Esse


grupo funcionou uma vez por semana, durante dois anos, sempre no
mesmo dia da semana, horário e lugar, o que fez com que se tornasse um
“local de referência” para as participantes. As que arrumaram trabalho
ou mudaram de bairro, de vez em quando, visitavam o grupo para ma-
tar as saudades ou contar alguma novidade. O trecho a seguir, retirado
do diário do grupo, possibilita visualizar as dificuldades e os conflitos
compartilhados no grupo:

Melissa tem 18 anos, uma filha de dois, e vive com seu companheiro na
casa dos sogros. Ela frequenta o grupo há oito meses. Quando as parti-
cipantes começaram a falar sobre a escola e as relações com as amigas,
ela relatou porque abandonou a escola: “Eu estava grávida, tinha sono,
moleza, sem falar que pensava que quando a minha barriga crescesse
todo mundo ia falar de mim. Então decidi parar.” Deise, outra parti-
cipante, contou sua experiência: “Pois eu não. Quando fiquei grávida,
contei para uma professora que foi muito legal e me disse que não era
para parar de estudar, que eu tinha direito à licença-maternidade e que
se não estivesse bem podia falar para a coordenadora que ela me ajuda-
ria. Foi legal, não parei de estudar, passei de ano e, agora, já vou acabar
o ensino médio.” Luciana, que também não havia desistido de estudar,
falou que também ficou grávida durante o período da escola e foi diver-
tido; passou a ganhar mais atenção de todos: “As outras meninas todas
vinham falar comigo sobre o bebê, ficavam passando a mão na minha
barriga e, quando o nenê mexia, era a atração da classe.” Safira descre-
veu que a sua situação não foi positiva: “Pois comigo foi horrível. Quan-
do a minha barriga começou a crescer começaram a dizer que eu estava
gorda e estranha e uma ‘insuportável’ (garota) falou: ‘Aposto que está
grávida, as tão quietinhas são as mais terríveis.’ Eu também parei de es-
tudar e me arrependo hoje, porque era boa aluna e tudo, mas fiquei com
vergonha.” Melissa, que observava a fala das meninas, desabafou: “Eu
não, nunca fui boa aluna nem gostei de escola, sempre ganhava bronca

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porque falava muito e ficava fazendo piada. O difícil é que agora a Gabi
já tem um ano e o único trabalho que consigo é de empregada domés-
tica ou de babá. Agora não acho justo deixar a Gabi com minha sogra
para ir cuidar de filho dos outros.” Uma das professoras perguntou so-
bre que mudanças a paternidade trouxe para a vida dos companheiros.
Todas riram e Deise disse: “Espero que ele tenha tomado juízo e parado
de sair com umas ‘zinhas’ aí.” Todas riram de novo e Melissa completou:
“O meu está se esforçando pra não faltar nada (...), mas eu queria muito
trabalhar.” Uma aluna questionou: “E as creches, você já pensou nisso?”
Todas falaram que é muito difícil conseguir vagas na creche e que esse é
um processo demorado.

É interessante observar, no relato das participantes do grupo, que


nem sempre a instituição escolar está preparada para estimular e apoiar
as adolescentes grávidas na continuidade de seu projeto educacional.
Ou seja, elas nem sempre são acolhidas e enfrentam muitas dificuldades
para conseguir creches. Apesar dos avanços e conquistas para a popu-
lação feminina em seus direitos civis, ainda são visíveis e presentes as
limitações e desigualdades sociais imputadas às mulheres, principal-
mente as pobres. Situações como a de “ter um filho” são vivenciadas
com forte diferença pelos homens e pelas mulheres jovens de famílias
de baixa renda. Na maioria das vezes, a maternidade representa para a
mulher um fator a mais para que ela fique restrita ao universo domésti-
co (Heilborn et al., 2002).
Problematizar, no espaço dos grupos, as atividades históricas e cul-
turalmente atribuídas às mulheres na divisão sexual do trabalho não é
uma tarefa fácil, mas possibilita a reflexão sobre os papéis assumidos e
pode facilitar a emergência de outros modos de relacionamento.
Tanto no grupo de jovens mulheres do bairro de Emerlino Mataraz-
zo, na capital paulista, como no do interior de São Paulo notava-se que,
quando as participantes conviviam com o pai de seus filhos na mesma
residência, raramente existia o compartilhamento do cuidado dos filhos

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capítulo 10 | 227

e da casa. Quando a questão era colocada em evidência, surgiam falas


marcadas por certa “introjeção” da responsabilidade. Vejamos alguns
exemplos:

Cuidar de criança não é fácil, e para ele é mais difícil ainda. (Ele) passa
o dia no trânsito de São Paulo, ele é motoboy, e chega em casa acabado.
Vai ter condições de cuidar da criança?

O João, quando cozinha, faz tanta bagunça que acho melhor ele ficar
longe da cozinha.

Parece haver uma naturalização dos papéis tradicionais nos discur-


sos das mulheres.
Também temos observado que, sem escolaridade, profissionalização
e tempo disponível para permanecerem no mercado de trabalho, as mu-
lheres se inserem em trabalhos precários, com baixa remuneração, con-
dições insalubres e sem proteção social (registro profissional, por exem-
plo). Em 2010, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), das mulheres inseridas no mercado de trabalho, 17% estavam
no trabalho doméstico remunerado, o que representa em torno de sete
milhões de pessoas, das quais 61% são mulheres negras. Além disso,
em 2009, o ganho médio dessa categoria era de apenas 83% do salário
mínimo e somente 1,7 milhão (26,3%) tinham carteira de trabalho assi-
nada. Assim, ocupações como diarista, manicure e vendedora em do-
micílio de produtos de catálogos são considerados trabalhos precários,
aos quais as mulheres, em sua maioria, se submetem pois lhes permitem
conciliar o tempo do trabalho externo com suas responsabilidades fa-
miliares. Isso significa que, ao retornarem para suas casas, elas assumem
a tripla jornada. Um bom exemplo é o relato de uma participante do
grupo de Ermelino Matarazzo, ao retornar ao grupo após um período
de ausência:

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228 | construcionismo social

“Passei para conversar um pouco, estou sentindo falta de vir, mas con-
segui duas casas que estou indo ‘faxinar’.” Todas comemoram e ela com-
plementa: “Não sei se estou tão feliz assim, o trabalho é duro, as casas
são bagunçadas e ganho 50 reais; nem comida a mulher me dá. Tem dia
que passo com o pão que levei na bolsa. Depois ainda passo na minha
irmã para pegar o Guilherme (filho). Em troca dela ter olhado ele pra
mim, eu passo a roupa dela. Às vezes é tanta coisa que não dá pra passar
tudo no final do dia, aí volto depois. ‘Ceis’ estão vendo que até emagreci?
É tanta coisa, e ainda tem na casa da gente o serviço que acumula.”

Em grupo, problematizar e traduzir os dilemas vivenciados pelas mu-


lheres em uma sociedade desigual possibilita compartilhar e desconstruir
as múltiplas dimensões que as relações de gênero assumem no cotidiano.
Questionar as normas instituídas e reproduzidas no espaço da casa, que
criam desigualdades e mantêm privilégios aos homens, é um momento in-
tensamente vivenciado no contexto do grupo e faz com que algumas mu-
lheres afirmem: “Isso não é uma sina, um destino traçado na minha casa, na
minha vida. Eu posso fazer diferente.” Ou então: “Se minha mãe quer viver
assim, paciência. Eu não quero, me revolta, quero mudar de vida.”
Nesses momentos, nós, as facilitadoras, temos um papel fundamen-
tal de acolher, apoiar e pensar, com as mulheres, outras relações de gê-
nero possíveis. Muitas vezes usamos filmes, histórias e “causos”, que se
tornam referências para pensar outras possibilidades de relações entre
as pessoas.

Considerações finais

Nesses anos de trabalho com grupos em instituições, em comunidades e


nos coletivos de que participamos, aprendemos que compartilhar histó-
rias em grupos é colocar em movimento noções, conceitos e repertórios

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historicamente construídos. É também uma grande oportunidade para


a construção de novos repertórios e novos modos de ver o mundo.
A perspectiva construcionista feminista tem nos possibilitado usar
a reflexividade como uma estratégia que permite avaliar constantemen-
te as nossas posições e os nossos modos de agir e intervir nos grupos,
bem como a respeitar a alteridade e as escolhas das mulheres. Ou seja,
o/a facilitador/a do grupo tem um papel reflexivo que deve ser pauta-
do na ética e no comprometimento com a transformação social. Nesse
processo, um aspecto fundamental é o reconhecimento de que não há
conceitos universais capazes de ser aplicados a todas as mulheres, e que
as necessidades e as ações são diferentes para os diversos grupos. Como
afirma Nicholson (2000, p. 106):

Talvez seja hora de assumirmos explicitamente que nossas propostas


sobre as “mulheres” não são baseadas numa realidade dada qualquer,
mas que elas surgem de nossos lugares na história e na cultura; são atos
políticos que refletem os contextos dos quais nos emergimos e os futu-
ros que gostaríamos de ver.

Assim, no contexto dos grupos, ao problematizarmos noções que


muitas vezes são tidas como naturais e inquestionáveis, algumas trans-
formações vão ocorrendo e ampliam-se as possibilidades de as mulhe-
res assumirem novas posições no cotidiano.

Dicas das autoras: textos, filmes ou vídeos

• Leituras
• BRIGAGÃO, J. I. M. Uma leitura das práticas em psicologia social
no campo da saúde em uma perspectiva construcionista. FER-
MENTUM: Revista Venezolana de Antropologia y Sociologia, Mé-
rida, VE, v. 17, p. 617-625, 2007.

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230 | construcionismo social

• HARAWAY, D. Ciencia, cyborgs y mujeres. La reinvención de la


naturaleza. Manuel Talens. Madri: Ediciones Cátedra, 1995.
• SPINK, M. J. Psicologia social e saúde: trabalhando com a com-
plexidade. Quaderns de Psicologia, Barcelona, v. 10, n. 1, 2010.

• Filmes
• A fonte das mulheres (Radu Mihaileanu, França, 2012)
O filme mostra as dificuldades enfrentadas pelas mulheres em
um vilarejo islâmico situado entre o Norte da África e o Oriente
Médio e as estratégias que, juntas, elas desenvolvem para melho-
rar suas vidas e fazer com que os homens mudem algumas de
suas atitudes.
• As irmãs de Maria Madalena (Peter Mullan, Irlanda, 2002)
Baseado em histórias reais, retrata a vida de três mulheres que, ví-
timas de preconceitos e injustiças, são enviadas a uma lavanderia
religiosa, onde sofrem os mais diversos tipos de violência. O filme
mostra como o desejo feminino tem sido visto e tratado. Esse tipo
de lavanderia existiu até a década de 1990.
• Histórias cruzadas (Tate Taylor, EUA/Índia/Emirados Árabes
Unidos, 2011)
O foco central do filme são as histórias de discriminação racial
que as empregadas domésticas negras sofriam na década de 1960,
no estado do Mississipi (EUA). As limitações e normas sociais
impostas a todas as mulheres nesse contexto também são eviden-
ciadas ao longo da trama.

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Capítulo 11
Transformando práticas educativas, da palmada
ao diálogo: relato de uma experiência em duas
comunidades no Rio de Janeiro
rosana rapizo
carlos eduardo zuma

Breve apresentação e objetivos do capítulo

O castigo corporal ou físico utilizado como meio para educar crianças


é um dos costumes mais difundidos em todo o mundo. Em muitos paí-
ses, é legalmente permitido nas escolas, e, na maioria deles, nas famílias
(UNICEF, 2006). No entanto, de alguns anos para cá, uma mudança de
costumes está em curso. Teorias psicológicas e diferentes educadores
vêm questionando essa prática e apontando seus danos (DESCARTES,
2012; SANTINI; WILLIAMS, 2011; UNICEF, 2006; GUERRA, 1998;
entre outros). O assunto tem sido também foco de muitos estudos e pes-
quisas que demonstram não haver benefícios para a educação da criança
o fato de ela receber castigos corporais. Ao contrário, eles apontam para
as diferentes marcas que uma pessoa provavelmente carregará ao longo
da vida por ter sido submetida a essa forma de disciplina (DURRANT;

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ENSOM, 2004). Em um âmbito ainda maior, esse comportamento vem


sendo reconhecido como violência por entidades internacionais mul-
tilaterais voltadas aos direitos humanos, transformando-o na violência
mais comum envidada contra crianças e adolescentes em todo o mun-
do. No contexto escolar, essa mudança é mais perceptível, pois hoje a to-
lerância dos pais quanto ao uso de castigos físicos em seus filhos nas es-
colas é quase nula, ao contrário de algumas gerações anteriores, quando
era comum um professor utilizar a palmatória ou mandar que a criança
punida ajoelhasse em caroços de milho.
Assumindo que esse é um caminho desejável, como contribuir para
um processo de transformação das formas de educar as crianças? Que
práticas sociais podemos propor para participar dessa transformação de
forma coerente com nossas crenças?
Há alguns anos, na cidade do Rio de Janeiro, o Instituto Noos, uma
organização da sociedade civil sem fins lucrativos, vem realizando di-
ferentes práticas sociais que, em sua articulação, pretendem contribuir
para a promoção de relações mais equitativas entre os gêneros e as ge-
rações. Tais práticas estão baseadas em uma visão de mundo sistêmica
e na perspectiva do construcionismo social. Algumas dessas práticas
estão diretamente relacionadas com a questão dos castigos físicos como
forma de educar.
Neste capítulo, relatamos uma experiência em que o Instituto Noos
vem atuando em relação a esse tema em duas comunidades do Rio de
Janeiro, em um projeto onde se articulam várias práticas realizadas pela
instituição, com base nas ideias sobre construção de diálogos. Mais do
que discorrer sobre cada prática em si, este capítulo pretende discutir a
articulação de diversas práticas consideradas dialógicas como um ca-
minho para a construção de conversações que gerem transformações
sociais no âmbito das práticas educativas de crianças e adolescentes.
Para tal, situaremos o contexto de nossa prática, apresentando os con-
ceitos que usaremos e descrevendo o projeto. Por ainda estar no cur-
so de sua execução e não termos como antever seus desdobramentos,

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não teremos como discutir seus resultados. No entanto, acreditamos


que apresentar o projeto e as ideias que o fundamentam contribui para
uma ampliação das ideias sobre as práticas sociais inspiradas em apor-
tes construcionistas. Dentre vários autores, de várias formulações de
construcionismo possíveis, consideramos úteis para nossa discussão as
versões mais conhecidas como dialógicas e apoiamos nossa argumenta-
ção especialmente no trabalho de John Shotter (1993; 1996) e Edward
Sampson (1993).

Introdução... ou situando-nos no contexto de nossa prática

Nosso entendimento de self, identidade e subjetividade tem sido espe-


cialmente desafiado pela crítica pós-moderna (GERGEN, 1994). Na
atualidade, muitos autores atribuem à modernidade uma visão mono-
lógica do self, autocontido e interiorizado, e se movem para um enten-
dimento relacional da pessoa, do self e da construção do que chama-
mos identidade (SHOTTER, 1996; GERGEN, 1994; SAMPSON, 1993;
SHOTTER, 1993, entre outros). A visão construcionista social sugere
que toda nossa experiência e entendimento são mediados pela lingua-
gem, cultura e época em que vivemos. Qualquer significado e valor es-
tão associados a um modo de vida temporal e historicamente situado.
O diálogo, a troca e a interação linguística são condições para a cons-
trução do mundo e de si (GERGEN; GERGEN, 2010). Assim, o foco
dos pensadores nessa área se volta para o que acontece entre as pessoas,
não mais apenas ao que acontece dentro das pessoas. Inclusive o que
consideramos ser “uma pessoa” é fruto de conversações e negociações
de sentido em um determinado contexto. Dentro dessa visão, alguns
autores utilizam as metáforas da conversação e do diálogo para pensar
sobre a interação, comunicação e construção de realidades entre as pes-
soas. Tais visões têm sido conhecidas como dialógicas e conversacionais
(SAMPSON, 1993; SHOTTER, 1993, entre outros).

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Dessa forma, os significados de gênero, paternidade, maternidade e


educação variam no tempo, nas classes sociais e em diferentes contex-
tos. Não são estáticos, são dinâmicos e com inúmeras variações. Não são
únicos nem universais e podem ter diversas interpretações, ainda que
em contextos semelhantes ou em um mesmo contexto.

Novos valores ganham destaque nas relações


familiares contemporâneas

Em coerência com as mudanças sociais, a família ocidental urbana tam-


bém adotou novos hábitos quanto à educação das crianças. Há um declí-
nio das formas mais autoritárias de criação dos filhos e uma maior psi-
cologização da educação e das relações afetivas da família. Atualmente,
as relações entre pais e filhos tendem a ser menos calcadas na disciplina
e no controle e mais em um modelo dinâmico, que promove habilidades
e recursos diferentes nas crianças em face de novos e demandantes desa-
fios contemporâneos. Segundo Sousa e Ramires (2006), tais mudanças
na família têm dois aspectos básicos: um aspecto ideológico, no sentido
de um ideal democrático ou igualitário das relações, e um aspecto estru-
tural, que diz respeito ao aparecimento ou saída da clandestinidade de
vários arranjos familiares.
Esse processo de democratização das relações familiares emergiu
nas últimas décadas. Um de seus aspectos são as mudanças na cultura
da parentalidade. Entende-se por parentalidade o relativo a pai e mãe
ou a outros cuidadores da criança, especificamente no que diz respeito
às expectativas culturais e sociais de que eles facilitem o crescimento e
desenvolvimento das crianças nos aspectos físico, psicológico e social.
Os contornos da parentalidade mudaram drasticamente de duas ge-
rações para cá. Se na modernidade a família nuclear tomou para si o
cuidado dos filhos, com a mulher no papel de principal articuladora
desta função, na pós-modernidade, os grupos de pares, os outros espa-

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ços frequentados por adolescentes e mesmo crianças, a tecnologia e o


acesso à informação modificam a feição da socialização dos filhos nas
famílias. Os laços que unem as gerações são perturbados de forma dife-
rente pela autonomia crescente dos filhos e pelas turbulências maiores
ou menores desta independência. Por outro lado, as relações entre pais
e filhos neste modelo se baseiam no afeto e são fundamentadas na com-
preensão e empatia, com menos valorização da hierarquia. Em lugar da
disciplina e repressão, a família ganha espaço para reflexão e diálogo
(FUKS, 2006). Com isso, alguns autores enxergam uma crise de autori-
dade na família enquanto outros veem a oportunidade de que a família
seja menos opressora para os jovens do que na década de 1960 (COSTA,
2006; FUKS, 2006).
Não podemos esquecer que estilos comunicacionais são “algo mais
que formas de expressão, sua função organizadora/construtora produz
mundos relacionais nos quais se condensam valores e crenças, visões de
mundo etc.” (FUKS, 2006, p. 135). Portanto, as novas formas de comu-
nicação familiar criam outras relações e maneiras de concebê-las. Ao
mesmo tempo novos formatos nas relações demandam outras formas
de comunicação. Enquanto relações mais tradicionais requerem mo-
dos mais padronizados de comunicação, os arranjos mais modernos e
pós-modernos de família requerem a criação e prática de diferentes ma-
neiras de comunicação. A afetividade e a intimidade, conjugadas com
mais ou menos tensão a valores ligados à individualidade e autonomia,
são primordiais para o entendimento das relações familiares em nossos
tempos. O valor do olhar, do contato físico, de ter espaços privados para
si e com outros escolhidos, é expressão desejável do relacionamento
contemporâneo, que legitima um mundo relacional empático e basea-
do no pressuposto da compreensão mútua (FUKS, 2006). Desta forma,
o diálogo, a possibilidade de compartilhar sentimentos e pensamentos
ganha destaque como expressão de amor e intimidade. São maneiras
de interagir relativamente novas e que tornam necessário o desenvol-
vimento de novas habilidades para as relações mais íntimas. A intimi-

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dade, a afinidade e o diálogo como valores não estão restritos apenas à


família, mas sim presentes no mundo social mais amplo.
Os diferentes estilos parentais estão de acordo com os contextos cul-
turais onde são constituídos, reforçados e transformados (DESCARTES,
2012). Ao longo do tempo, as práticas ligadas à parentalidade e seus
valores fizeram parte de settings prático-morais diferentes, para usar a
terminologia de Shotter (1993). Assim, por exemplo, quando a econo-
mia estava baseada na agricultura, a parentalidade era uma atividade
conjunta de toda a família. Pais e mães cuidavam das crianças porque
todos trabalhavam em casa, assim como outros parentes como os avós,
os filhos mais velhos etc. Durante a Revolução Industrial, os homens
foram afastados de seus filhos, já que iam para o trabalho fora de casa e
deixavam suas esposas encarregadas dos cuidados com as crianças. Nes-
te arranjo, os homens tornaram-se os provedores econômicos e as mães
tornaram-se responsáveis pelo desenvolvimento educacional, moral e
espiritual das crianças (ZINN; EITZEN; WELLS, 2010). Segundo Costa
(2006), aqui no Brasil, a chegada do movimento higienista e a medicali-
zação dos cuidados com as crianças reforçaram o lugar da mulher como
cuidadora dos filhos enquanto o homem se manteve como provedor e
disciplinador. As mulheres começaram a assumir o centro da vida fa-
miliar. A educação das crianças envolvia o aprendizado da submissão à
autoridade. Os saberes médicos, sociais, psicológicos e legais, entre ou-
tros, constroem as noções de saúde, cuidado, maus-tratos, maus-tratos
na infância, disfunção e transgressão.
Atualmente, passamos de uma concepção da infância em que a
criança é um objeto passivo à que a considera sujeito ativo e com di-
reitos. Considera-se que seu desenvolvimento é parte de um processo
relacional e afetivo em que os pais são figuras centrais. Práticas que, em
outros momentos, foram consideradas eficazes para o desenvolvimento
das crianças, hoje podem ser consideradas negligência e maus-tratos.
Da mesma maneira, os diferentes padrões e estilos de práticas de cria-
ção dos filhos, e também o que é percebido como bom cuidado, podem

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ser considerados diferentemente, inclusive por aqueles que as sofrem.


Assim, formas de relação pais-filhos podem ter consequências diversas
para as crianças em cada cultura. Por exemplo, em pesquisas relatadas
por Descartes (2012), estilos parentais mais autoritários são percebidos
como cuidado e aceitação entre crianças da Ásia, mas vistos como nega-
tivos e humilhantes entre crianças europeias e americanas.
Atualmente, nas sociedades ocidentais e urbanas também se obser-
va, a partir de fatores como a entrada maciça da mulher no mercado de
trabalho, as diferentes possibilidades de posicionamentos quanto ao gê-
nero, orientação sexual e formato de famílias, novas feições da materni-
dade, da paternidade e dos valores ligados à parentalidade. Os homens
desejam se aproximar dos filhos mais afetivamente do que como disci-
plinadores, e um maior número de casais homoafetivos levanta ques-
tões sobre o significado de termos como pai e mãe ligados a um casal
heterossexual. Sem falar na transformação que as altas taxas de divórcio
trouxeram para a relação entre a conjugalidade e a parentalidade.
Com o passar do tempo, todos os aspectos da infância mudaram
dramaticamente. Métodos de criação e educação, a duração da escola,
a natureza das brincadeiras, a participação no trabalho, os pontos de
fronteira entre a adolescência, idade adulta e infância, a relação entre
pais e filhos, irmãos e irmãs, família extensa etc.
Apontamos isso, com o evidente prejuízo em que todas as generali-
zações podem incorrer, para ilustrar que tudo o que muitas vezes consi-
deramos natural e inevitável pode ser diferente e transformar-se através
da história e da singularidade dos contextos locais.

Breve reflexão sobre a relevância do tema

A transformação das práticas educativas, no sentido de questionar as


práticas de castigos físicos e humilhantes contra crianças e adolescentes
e fomentar as práticas dialógicas, faz parte de uma reflexão mais ampla

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em vários setores da sociedade e que toca questões como as definições


de violência e direitos.
A violência é uma linguagem para a expressão de conflitos, de poder,
mas também de comunicação de toda qualidade de afetos. A percepção
e definição do que é violência, do que é tolerável ou não dentro de uma
relação, é bastante diferente para as pessoas que aprenderam a viver em
contextos em que as manifestações de cuidado, preocupação, medo e
amor podem ser violentas (RAPIZO, 2003).
A violência também é aceita socialmente em muitas situações para
a resolução de conflitos, sejam eles das crianças na escola, em que o
pequeno deve aprender a se defender, seja nos confrontos pessoais e ins-
titucionais em que a violência não é um recurso descartado, seja como a
palmada educativa dos pais, que não costumam considerar tal ato como
violência. As formas possíveis de resolver ou prevenir a violência tam-
bém são socialmente construídas, como os modelos jurídicos-morais.
Desta forma, pensamos a violência não como algo invasor a ser ex-
tirpado, mas como algo que é criado conjuntamente, legitimado em
muitos espaços, quando não valorizado e encarnado em nossas mi-
cropráticas cotidianas de forma invisível (natural). Assim, fenômenos
comunicacionais nos levam, todos, a aceitar e legitimar práticas que,
em alguns contextos ou de acordo com determinadas justificativas, são
consideradas violentas, e, em outros momentos ou sob outra racionali-
dade, não. Por exemplo, podemos considerar, como vemos em muitas
famílias, que castigos físicos educativos não são considerados violência.
Os castigos físicos são vistos até hoje, por muitos pais, como um mal ne-
cessário, já que eles não enxergam alternativa para que a criança atenda
a uma ordem ou realize determinada tarefa. Ou, em outro aspecto, eles
não se sentem pessoas diminuídas pelo fato de terem sofrido castigos
físicos de seus pais ou levado algumas palmadas e, por isso, não consi-
deram que o mesmo tratamento possa ser nocivo para seus filhos. Pode-
mos também, seguindo Sampson (1993), pensar que a violência, com o
privilégio e as formas de exercer poder nas sociedades ocidentais, tem a

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ver com uma visão monológica do mundo e do self em que alguns têm o
poder de determinar a identidade de outros ou, de acordo com Pakman
(1995), determinar o que é a realidade para todos.
Alinhando-nos às definições dialógicas e conversacionais do self
(SHOTTER, 1996; SAMPSON, 1993; SHOTTER, 1993) e da realidade
como construção, pensando em um setting prático-moral, derivado da
ação conjunta (SHOTTER, 1993), foi uma consequência lógica traçar-
mos um caminho pelas práticas que promovem o diálogo, que procu-
ram a transformação social através da conversação e que tentam pro-
mover uma visão relacional da vida humana, em que a alteridade é a
fonte de nossa riqueza. Dessa forma, nos seus 18 anos de existência,
o Instituto Noos tem atuado no sentido de identificar, acolher, testar,
aprimorar e disseminar diferentes métodos para a criação de contextos
colaborativos que promovam o diálogo e possibilitem a reconstrução de
significados, na busca pela transformação do que é sentido como sofri-
mento ou vivido como conflito. Chamamos de práticas sociais ao con-
junto desses diferentes métodos que visam, neste caso, a construção de
espaços dialógicos e conversacionais que promovam o questionamento
e a transformação de ações consideradas abusivas e violentas nas rela-
ções humanas, especialmente as relações familiares e íntimas.

Descrição da(s) prática(s) desenvolvida(s)

As práticas sociais que são (ou já foram) utilizadas pelo Noos, buscando
a construção de contextos de diálogo e conversação em relação às práti-
cas educativas nas famílias, incluem: terapia de família, grupos reflexi-
vos com pais, mães e responsáveis por crianças e adolescentes, oficinas
de sensibilização, produção de materiais (como folderes, cartazes, fil-
mes, vídeos de animação, cartilhas e fotonovelas) utilizados como apoio
nas ações de sensibilização e na escuta qualificada à distância de crian-
ças e adolescentes, utilizando o telefone e a internet, por meio de chats

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e troca de e-mails (serviço 123Alô!). Há também o nosso envolvimento


na campanha “Não bata, eduque”, uma tentativa de alcance mais amplo
e de ação de incidência política, na pressão pela mudança do Estatuto da
Criança e do Adolescente, para marcar o direito que elas têm de serem
educadas sem o uso dos castigos físicos e humilhantes, e não só por par-
te de seus pais, mas de qualquer encarregado de sua educação, como os
profissionais de escolas e abrigos.
Para o escopo deste capítulo, pretendemos relatar uma experiência
que reflete a diversidade de possibilidades de uso do diálogo como fer-
ramenta de transformação e sua articulação e coordenação em um úni-
co projeto, intitulado Reunindo e articulando recursos em duas “comu-
nidades pacificadas” do Rio de Janeiro. Ele é realizado nas dependências
das duas unidades da Casa da Arte de Educar (CAE), situadas em duas
comunidades da zona norte da cidade: a comunidade de Mangueira e
a de Macacos. Ambas estão localizadas em morros e abrigam mais de
15 mil habitantes cada uma. O projeto surge no encontro de interes-
ses de três instituições: Casa da Arte de Educar, Instituto Noos e Chil-
dhood Brasil, que têm em comum a promoção e a defesa dos direitos da
criança e do adolescente. Cada uma contribuiu, a partir de suas áreas
de atuação e experiência, para a idealização e concepção das ações do
projeto e sua realização. Seus objetivos privilegiam a prevenção da vio-
lência contra crianças e adolescentes, especialmente a violência sexual
e o apoio às crianças e suas famílias, a partir da articulação de diversos
conhecimentos e práticas em contextos diversos da comunidade e do
trabalho em rede. O projeto teve início em fevereiro de 2012, com previ-
são de término em dezembro do mesmo ano. A Casa da Arte de Educar
trabalha com a educação integral de crianças, alunas da rede municipal
de ensino, em escolas que atendem a população dessas duas comuni-
dades e que frequentam a CAE nos horários alternados ao da escola.
Lá recebem reforço escolar, além da oportunidade de participarem de
atividades artísticas e culturais.

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capítulo 11 | 241

No que tange à participação do Instituto Noos no projeto, ela se dá


nos seguintes âmbitos e públicos-alvo:
• com a equipe da Casa da Arte de Educar, constituída por professores,
coordenadores de atividades, coordenador pedagógico e assistente
social, contribuindo para sua formação continuada, especialmen-
te na área de prevenção de violência intrafamiliar e de gênero, no
trabalho em redes e com redes, e na promoção dos direitos de seus
integrantes, e com alunos da Casa Arte de Educar e suas famílias,
nas duas comunidades, através de ações como a terapia de família e
participação em suas rodas de conversa;
• participação em encontros de redes que atuam nas duas comunida-
des, visando o fortalecimento de tais redes para melhor atuação em
relação às situações identificadas de violação de direitos. Nos encon-
tros, estão presentes os representantes ou membros das entidades
que compõem as redes locais de promoção e defesa dos direitos da
criança e do adolescente, o que inclui professores, funcionários ou
gestores das escolas públicas de referência das duas comunidades.

Além disso, está entre os objetivos do projeto a construção de conhe-


cimento a partir de todas as ações, visando a disseminação desse tipo de
prática articulada.
Para alcançar estes objetivos, o Noos propôs e realiza nas comunida-
des as seguintes ações:
• participação nas rodas de conversa já realizadas nas duas unidades
da CAE: no sentido de ampliar os recursos dos professores para li-
dar com o tema da violência intrafamiliar e de gênero, no seu trato
cotidiano com as crianças e adolescentes. As rodas de conversa são
encontros específicos para a reflexão coletiva sobre conflitos cotidia-
nos, como instrumento de ampliação de recursos para lidar com a
diferença e para a dissolução pacífica de conflitos. É um espaço já
utilizado nas unidades da CAE para conversas entre os alunos, entre
alunos e professores e entre pais e professores. Propomos a partici-

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pação de um profissional integrante da equipe do Noos em algumas


rodas de conversa, atuando como cofacilitador junto ao professor;
• oficinas de sensibilização: são encontros específicos para trabalhar-
mos amplamente os temas em questão, com exposição de informa-
ções, troca de impressões e experiências, reflexões e levantamento
de possibilidades de ação desde o lugar de cada ator envolvido. São
facilitadas por profissionais da equipe do Noos e oferecidas aos di-
ferentes segmentos do público-alvo deste projeto: pais, alunos ou
professores. Podem ser abordados os temas diretamente ligados à
violência ou temas complementares, como a reflexão sobre gênero,
por exemplo. Os temas podem ser sugeridos pela equipe do Noos,
pela equipe da CAE, pelos pais, pelos alunos ou emergir em algum
dos encontros;
• atendimento de famílias: para situações já identificadas de violência
contra crianças e outras a serem identificadas nos meses subsequen-
tes ao início do projeto, foram mobilizadas duas equipes de tera-
peutas de família com possibilidade de oferecer até três horários de
atendimentos quinzenais, por comunidade. Serão reservados, a cada
família, entre oito e dez encontros quinzenais para seu atendimento
específico. No total, estima-se o atendimento de dez a doze famílias
durante a execução do projeto. Este atendimento pressupõe a dispo-
nibilidade da família, ou parte significativa dela, para comparecer
aos encontros previamente agendados;
• rodas de TCI (Terapia Comunitária Integrativa): para as duas casas
serão oferecidas, quinzenalmente, a realização de rodas de Terapia
Comunitária Integrativa (BARRETO, 2005) abertas aos frequenta-
dores em geral das duas casas, equipe, alunos e familiares. As rodas
de TCI são um espaço de escuta, reflexão e troca na busca de solu-
ções para conflitos pessoais e familiares trazidos por seus partici-
pantes. Funcionam como um grupo de ajuda mútua, onde os par-
ticipantes são incentivados pelo terapeuta a partilhar com o grupo
alguma questão ou dificuldade que estejam vivendo. Um dos dilemas

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capítulo 11 | 243

apresentados é escolhido pelo grupo para ser trabalhado na roda. Os


demais integrantes fazem perguntas ou compartilham uma situação
semelhante pela qual passaram e a solução encontrada;
• monitoramento das redes por localidade: previmos a participação
do coordenador deste projeto em todos os encontros realizados nas
duas redes, podendo inclusive tomar a iniciativa de promovê-los
quando considerar útil para o aumento da fluidez das conversações
e articulações necessárias entre os participantes do projeto e a arti-
culação das ações. O produto desta atividade será um relatório que
consolide e sistematize as informações coletadas, obtendo assim um
mapeamento de cada rede local, retratando o estado atual da fluidez
de intercâmbio entre seus componentes e dos serviços que estão, ou
não, disponibilizados.

Uma das oficinas de sensibilização realizadas, por exemplo, teve


como tema as redes sociais. Dado o isolamento social observado em
muitas famílias que vivem situação de violência em suas relações e o po-
tencial de recursos que podem ser mobilizados quando contamos com
nossas redes, o tema foi sugerido pela equipe do Noos para ser trabalha-
do com a equipe de professores da CAE. Inicialmente, foi proposto que
cada integrante da oficina construísse seu mapa de rede pessoal, como
sugerido por Sluzki (1997), e respondesse com o nome de uma pessoa
com quem conta, em uma lista de situações cotidianas para as quais
comumente precisamos de ajuda. Em seguida, abriu-se a conversa para
troca de impressões e reflexões. Em um terceiro momento, as equipes
das duas unidades da CAE foram separadas para que cada uma fizesse o
mapa de rede da sua unidade. Com que outras instituições cada unidade
da CAE conta? Como classificar cada uma dessas instituições? Como é a
relação com cada membro identificado da rede? É fluida, é difícil e con-
flituosa ou está interrompida? Novamente, abriu-se um espaço para tro-
ca de ideias. Em seguida, foram oferecidos alguns conceitos sobre redes
sociais, características e o uso dessa metáfora para descrever relações,

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tanto pessoais como institucionais. Por último, novamente, foi aberto


um espaço de conversa e reflexão sobre a diferença no nosso pensar
sobre o cotidiano, com a incorporação dessa metáfora.
Os atendimentos às famílias e as rodas de TCI foram pensados como
campus avançado de prática, integrados à Escola de Práticas Sociais Sis-
têmicas do Noos. Assim, serão os alunos aqueles que estarão em campo
nessas atividades, com um supervisor membro do corpo docente da es-
cola. Desta forma, o projeto também faz parte da prática dos profissio-
nais em formação na escola, o que tem promovido aos alunos e docentes
da formação maior integração com os projetos da instituição e gerado
conversas entre as várias equipes em torno do projeto, seus dilemas, su-
cessos e possíveis desdobramentos.
O projeto, ainda em andamento, com as dificuldades e o aprendiza-
do que traz, é uma primeira e riquíssima experiência de articulação das
várias práticas do Instituto Noos, incluindo a formação de profissionais
em uma ação integrada. Passados ainda poucos meses do início de sua
execução, está-se lidando com os passos necessários para a articulação
das equipes. Foi dado início ao atendimento das famílias, das crianças
previamente identificadas como tendo sofrido algum tipo de violência
por parte dos seus familiares e às rodas de Terapia Comunitária nas
duas casas, tendo os pais como o público que mais frequenta as rodas.
Em contrapartida ao que foi previsto e que se tem conseguido imple-
mentar, a equipe vai encarando expectativas que ainda não tinham sido
explicitadas, a partir de pequenas frustrações sentidas e compartilha-
das. Curiosamente, talvez como uma resposta do próprio processo às
frustrações sentidas, criou-se, na prática, um espaço de conversação
amplo, não previsto no projeto, entre os componentes das duas equipes,
da Casa da Arte e do Noos, com a realização de uma reunião que, se
pretende, seja mensal.

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capítulo 11 | 245

Da palmada ao diálogo: desafios da/na prática

Todas as práticas que fazem parte do projeto em questão têm em co-


mum a ideia de promover conversas transformativas ou de promover
a construção de novos sentidos e formas de viver através do diálogo.
Mais especificamente, essas conversas dialógicas têm a intenção de atuar
junto às práticas educativas de crianças e adolescentes, em coerência
com a visão atual de que a palmada poderia ser substituída pelo diá-
logo. Como tais práticas fazem parte de um contexto mais amplo, que
inclui a violência intrafamiliar de forma geral, este tema também está
contemplado em várias atividades do projeto. Além disso, a articulação
entre instituições, práticas e públicos diversos resulta em uma participa-
ção política, não no sentido partidário, mas com uma direção, parte de
uma escolha ética, de formas de relação e convivência que consideramos
mais desejáveis.
No entanto, nos últimos anos, a palavra diálogo vem sendo banaliza-
da e usada com definições vagas e gerais, e parece ter se tornado sinôni-
mo de quase todo contato humano. Stewart e Zediker (2000) apontam
para isso e propõem uma diferenciação entre duas formas de entender
o diálogo. Como uma descrição de “um aspecto pervasivo e definidor
da humanidade (...) notadamente o aspecto irredutivelmente relacional
ou interacional de toda construção de significado humana” (p. 224) ou
“como um ideal a ser alcançado ou um objetivo a ser atingido” (p. 226),
ou como resultado de escolhas éticas, ou seja, apontando para o aspec-
to prescritivo do diálogo. Uma conversação com diálogo é diferencia-
da pela indagação compartilhada, ação coordenada de continuamente
responder a e interagir com, de trocar e discutir ideias, opiniões, vieses,
memórias, observações, sentimentos, emoções etc. (SHOTTER, 1993).
Esses aspectos ou maneiras de se referir ou pensar sobre o diálogo não
são excludentes e, em muitos autores, ambos estão presentes. Tais au-
tores pensam de que forma podem promover e propor conversações
que tenham formas dialógicas e facilitem mudanças em um mundo so-

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246 | construcionismo social

cial que vive em permanente tensão entre o monológico e o dialógico


(SAMPSON, 1993).
Como afirma Shotter (1993), diálogos não são algo que você pode
entrar e sair, porque a vida, ela mesma, é dialógica. Para ele “viver sig-
nifica participar de diálogo: fazer perguntas, prestar atenção, responder,
concordar e assim por diante” (SHOTTER, 1983, p. 62).
Cada conversa está sempre embutida em incontáveis outras con-
versas passadas e futuras, torna-se parte delas, será influenciada por
elas e as influenciará – nenhuma conversa é um evento isolado. Cada
conversação tem propósito, expectativas e intenções para os quais to-
dos os participantes contribuem. Cada conversa emitida externamente
entre participantes envolve conversas internas e silenciosas nos ouvintes
(ANDERSEN, 1996).
Os diálogos, no entanto, não são fluidos e harmônicos, mas repletos
de dilemas, tensões, bifurcações. Mais do que entendimento, lidamos
com acordos de coordenação mútua construídos em settings prático-
morais. Mais do que o consenso, o contexto dialógico busca encontrar
caminhos que sustentem a multiplicidade, ou que criem futuros possí-
veis para se viver juntos (MCNAMEE; SHOTTER, 2004; SHOTTER,
2003). Dessa forma, acreditamos estar exercendo nossa responsabilida-
de relacional (MCNAMEE; GERGEN, 1999) ou responsividade (MC-
NAMEE; SHOTTER, 2004; SHOTTER, 1993), que significa estar atento
ao processo de relacionar-se com os outros. Seja no escopo das con-
versações de um casal com um terapeuta ou participando de encontros
com representantes da comunidade em um trabalho de articulação de
rede, a intenção é tanto a participação como a veiculação de uma manei-
ra de compreender a “natureza humana” como dialógica (SAMPSON,
1993). Essa escolha se dá não por referências externas ou alegadamente
científicas, mas por considerarmos que criamos, assim, mundos mais
desejáveis para se viver. É, portanto, uma escolha ética. As práticas pre-
sentes no projeto usam ferramentas diferentes com o objetivo comum
de criar e participar de conversações como espaços dialógicos. Propõe

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capítulo 11 | 247

a participação em conversas já em curso nas comunidades, como tam-


bém convidam a novos espaços, como a terapia de família ou a terapia
comunitária integrativa, que pretendem criar espaços de conversação
dialógica específicas para determinadas situações.

Considerações finais

O espaço dialógico é crítico para o desenvolvimento de um processo


gerador que promova ideias e ações fluidas e mutáveis. Para Shotter
(1993), é um espaço no qual a pessoa pode se sentir livre para percorrer
uma ampla variedade de possibilidades. Esta não é uma tarefa simples.
Ao contrário, é nosso principal desafio. A atuação em diversas instân-
cias sociais expressa nossa crença na complexidade das questões com
as quais lidamos e de que nossa participação nestes diversos contextos
contribui, ou tem a intenção de contribuir, para mudanças, e não só no
microcosmo das relações familiares, mas também no macrocosmo onde
encontramos crenças arraigadas e formas de conversar estabilizadas e
naturalizadas. Na perspectiva de Bakhtin (1986), estamos lidando com
gêneros de fala e linguagens sociais.
Segundo Shotter (1993), “nossas formas de conversar nos movem de/
em nossas posições, mais do que nos trazem novas ideias” (p. 41). Pelas
perguntas do terapeuta, de uma dinâmica de um facilitador ou de levan-
tar questões e propor alternativas em um espaço mais amplo das redes
locais, usamos formas diferentes de participar e convidar as pessoas a
participarem de diálogos e estamos engajados em sustentar uma conver-
sação onde as diversas vozes possam ser ouvidas. Estamos envolvidos em
uma prática na qual a escuta mútua das vozes e sua diversidade possam
gerar novas ações e novas formas de convivência nas comunidades que
fazem parte do projeto. Observamos, por exemplo, que há uma “rever-
beração” no Noos, e que, em uma espécie de “efeito cascata”, as conversas
no projeto geram novas conversas dentro da instituição.

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248 | construcionismo social

Segundo Sampson (1993), “um diálogo genuíno requer que existam


duas presenças separadas, cada uma vinda de sua própria posição, ex-
pressando e agindo sua particular especificidade” (p. 15). O autor con-
sidera que o diálogo é uma “genuína transformação revolucionária nas
relações de poder e privilégio que ainda marcam a civilização ocidental”
e requer que as pessoas “reconheçam o entrelaçamento de suas vidas” e
sua interdependência (p. 174). Um diálogo em que cada participante se
beneficia do encontro com o outro requer um contexto democrático e
igualitário. E uma sociedade democrática é aquela na qual especialistas e
não especialistas podem contribuir de igual forma para o entendimento.
Sabemos que esse é um ideal a ser seguido, e ainda distante em muitos
dos contextos onde participamos de conversações. Porém, considera-
mos que é parte da responsabilidade de nossa prática e em nossas vidas
cotidianas participarmos na direção da realização desses ideais. Nossa
prática não é nem pretende ser neutra, mas situada local e historica-
mente. Pretende contribuir para a transformação social em direções às
quais, acreditamos, promovam uma visão relacional do humano e, com
isso, possibilidades de convivência mais responsivas e colaborativas.

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Capítulo 12
Práticas narrativas coletivas: o efeito rizomático
dos documentos coletivos como contextos
de transformação
marilene aparecida grandesso

Se quer ir rápido, vá sozinho, se quer ir


mais longe, vá junto.
anônimo

Uma das coisas que mais me fascinam e enchem de esperança no trabalho


realizado nos contextos comunitários é a rizomática propagação de trans-
formações por territórios inimagináveis, tecidos pela força do coletivo. Essa
foi a fonte de inspiração para o título deste capítulo. Pretendo desenvolvê-
-lo apresentando sucintamente a terapia narrativa nos seus fundamentos e
práticas e, mais especificamente, o uso de documentos coletivos como um
recurso que promove conexões entre contextos e populações que, de outra
forma, não teriam desenvolvido espaços de trocas colaborativas.

Terapia narrativa: fundamentos teórico-metodológicos

Originalmente associada aos nomes de Michael White e David Epston


(WHITE, EPSTON, 1990), a terapia narrativa e as diversas práticas que

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250 | construcionismo social

a definem são desenvolvidas há mais de vinte anos, em distintos con-


textos, e com as mais variadas populações. White (1995), a propósito
de seu trabalho, perguntou-se se seria melhor definido como uma vi-
são de mundo do que como uma forma específica de prática. Segundo
ele, compreender a terapia narrativa como mais uma abordagem prá-
tica não seria suficiente. Indo além desse entendimento, ele conjectu-
rou outras possibilidades: “uma epistemologia, uma filosofia, um com-
promisso pessoal, um política, uma ética, uma prática, uma vida” (p.
37). Qualquer que seja nossa compreensão, contudo, a terapia narrativa
pode ser considerada uma virada paradigmática que organizou uma
prática discursiva e ações derivadas, tendo como metáforas norteadoras
do trabalho clínico os conceitos de “narrativa” e de “construção social”
(FREEDMAN; COMBS, 1996).
Uma vez que as metáforas que um terapeuta usa têm implicações di-
retas e não triviais sobre a prática que realiza (GRANDESSO, 1997), im-
porta refletir sobre ambas: teorias e prática. Ao colocar no centro a ideia
de narrativa, um terapeuta está assumindo o compromisso de ouvir, de
forma especial, as histórias que as pessoas trazem quando o procuram.
Seus pressupostos são que as histórias organizam a experiência e têm
efeitos reais sobre as vidas das pessoas, na maneira de compreenderem
a si próprias, suas relações e perspectivas de futuro. Está assumindo,
também, que vivemos nossas vidas através de histórias, e que estas não
foram construídas no isolamento, mas no contexto das relações, tendo
como vozes canônicas os discursos dominantes e valores culturais que
participam da construção de versões dominantes sobre as vidas e sobre
o que entendemos como bom e bem. As histórias apresentam, portanto,
corolários morais e éticos, não apenas construindo o sentido da existên-
cia e de sua continuidade, mas também definindo quem somos, numa
espécie de sentido de coerência da identidade. Junto à ideia de narrativa,
a metáfora da construção social vem oferecer um referencial compreen-
sivo complementar ao colocar a ênfase sobre os relacionamentos e a
construção social das realidades vividas. Assim, considerando as narra-

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capítulo 12 | 251

tivas como construção social, estamos ressaltando as histórias culturais


das quais as pessoas emprestam sentido aos seus projetos, constroem a
si próprias e ao seu entorno, organizam seus posicionamentos, enfim,
assumem um protagonismo do qual não são os exclusivos autores origi-
nais (WINSLADE; MONK, 2008).
Independentemente de estar associada ao pós-estruturalismo, ao
descontrucionismo, ao giro interpretativo e à nova hermenêutica, a
terapia narrativa pode ser compreendida como um conjunto de práti-
cas orientadas pelo pensamento pós-moderno, uma vez que tem como
pressupostos básicos a natureza construída da realidade, a função gene-
rativa da linguagem, a impossibilidade de um conhecimento objetivo e
isento de valores e o foco no significado (GRANDESSO, 2009). Um dos
aspectos notáveis dessa prática de terapia, no meu entender, é a amplitu-
de dos interlocutores que vêm construindo um contexto dialógico para
ampliar possibilidades de entendimento teórico e derivação de práticas
de ação. Muito além do mundo psi e do conceito de sistemas, as práti-
cas narrativas dialogam com antropólogos, sociólogos, filósofos, psicó-
logos sociais e do desenvolvimento, rompendo barreiras disciplinares,
favorecendo a ampliação dos contextos de construção de sentido e de
possibilidades de ação. Bateson, Foucault, Derrida, Gaston Bachelard,
Bruner, Vygotsky, Geertz e Barbara Myerhoff são alguns dos principais
parceiros de diálogo dos quais Michael White pode se valer para organi-
zar seus mapas de práticas narrativas (GRANDESSO, 2011a). Reconhe-
cendo a complexidade da existência, Michael White ressalta que a vida
é multi-historiada, várias linhas de história correndo juntas num fluxo
de ideias e significados. Da mesma forma, por mais que uma história
possa ser completa, a experiência é muito mais rica do que as narrativas
que a organizam e sempre haverá eventos e fragmentos de vida não his-
toriados, seguindo como linhas possíveis de histórias subordinadas, de
modo que uma história sempre está aberta a revisões (BRUNER, 1986;
WHITE, 2007). Isto nos convida a uma dupla escuta, abrindo as pala-
vras através de perguntas para novas possibilidades de significação e

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252 | construcionismo social

de reautoria das histórias sobre a vida, identidades e relações. Eis o que


passo a brevemente considerar.

Terapia narrativa: afinal, que prática é essa?

Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta,


tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada.
 walter benjamin

Independentemente da razão pela qual uma pessoa, uma família, um


casal, uma organização ou uma comunidade busque por terapia, o te-
rapeuta narrativo procura acolhê-la e ouvi-la na linguagem da pessoa e
nos seus próprios termos, negociando um entendimento de responsa-
bilidade compartilhada. Que histórias as pessoas envolvidas em terapia
trazem sobre sua vida no que se refere aos dilemas, problemas, pertur-
bações para os quais procura assistência? De acordo com os pressupos-
tos narrativos, os problemas são manifestos nas histórias dominantes
que organizam estreitas possibilidades existenciais, contribuindo para
uma visão da vida e de si mesmo de forma fixa e absoluta. Quando uma
pessoa vive um problema, acaba experimentando um sentido empobre-
cido de si mesma, tendendo a considerar-se não competente para ações
efetivas, vitimizando-se ou culpabilizando-se pelos próprios infortú-
nios. Assim, suas histórias sobre os problemas tornam-se dominantes,
perdem a memória e a visibilidade de sua vinculação a determinados
contextos, bem como o entendimento de que foram coautoriadas no
mundo das relações. Inspirado pelo seu diálogo com Foucault, especial-
mente sobre as tecnologias do poder constitutivo, Michael White tende
a considerar os problemas como opressores do self, das relações e das
perspectivas de futuro. Assim, a abordagem narrativa para a terapia tem
como propósito libertar as pessoas da influência dessas histórias estrei-
tas e limitantes, desconstruindo as definições negativas de identidade

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capítulo 12 | 253

em que as pessoas se apresentam desempoderadas, sem perspectivas


esperançosas para um futuro melhor. Como toda história se apresenta
como um universo em aberto para ser recriada, o terapeuta narrativo
trabalha a serviço da reautoria, de tal forma que cada pessoa em terapia
possa desenvolver linhas de histórias alternativas ao debruçar-se sobre
relatos de experiência não presentes na narrativa dominante. Revisitar
os cenários da ação (as sequências de eventos no tempo) e refletir sobre
cenários da identidade, envolvendo valores, aprendizados, propósitos
na vida e compreensões intencionais da pessoa, convidam ao novo e
surpreendente (BRUNER, 1986). Como Proust, as perguntas do tera-
peuta presentes nas suas ferramentas conversacionais convidam as pes-
soas que o procuram a visitar os velhos lugares e percorrê-los como se
os estivesse vendo pela primeira vez. Assim, a terapia narrativa está a
serviço de reescrever, de forma “rica”, histórias alternativas com detalha-
mento sobre acontecimentos, motivações, crenças, propósitos, aprendi-
zados e valores. O relato de novas histórias, entrelaçadas com linhas de
histórias subordinadas sobre as vidas das pessoas, contribuem, assim,
para uma nova visão de si mesmas e da vida.
Como o foco deste capítulo são as práticas narrativas coletivas, não
vou entrar na descrição das práticas conversacionais e dos mapas nar-
rativos pelos quais Michael White sistematiza e apresenta sua prática.
O último livro de Michael White (2007) apresenta de forma detalha-
da e convidativa todas essas práticas como contextos conversacionais.
Sucintamente falando, destaco o que caracteriza fundamentalmente a
abordagem do ponto de vista das ferramentas conversacionais:
• conversações de externalização: formas especiais de usar a lingua-
gem, favorecendo desconstruir as práticas internalizadas que defi-
nem as identidades das pessoas de forma essencialista, permitindo
a compreensão dos problemas como construídos nos contextos de
vida, com a participação de determinadas audiências. Tais conversa-
ções favorecem a compreensão de que os problemas são os proble-
mas e as pessoas são as pessoas;

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254 | construcionismo social

• conversações de reautoria: partindo dos acontecimentos singulares


que contradizem as histórias dominantes saturadas de problemas,
esse contexto conversacional tece os fios entre os cenários da ação e da
identidade (WHITE, 2007), convidando a pessoa no centro da terapia
a revisitar os contextos de sua vida e também os significados preferi-
dos no campo de valores, aprendizados, propósitos e compreensões
intencionais, na construção de histórias mais ricas e libertadoras;
• conversações de reassociação ou remembrança: apoiam-se na im-
portância de ressaltar as contribuições dos outros significativos nas
histórias de valor de cada pessoa. É como se a pessoa em terapia
revisse o quadro de membros do clube de sua vida, legitimando os
pertencimentos significativos e permitindo-lhe traçar as linhas de
histórias subordinadas que vinculam sua nova narrativa aos mo-
mentos vividos e aos outros significativos do seu passado e, ao mes-
mo tempo, projetando um futuro possível e mais rico;
• a prática das cerimônias de definição: inspirada no trabalho da an-
tropóloga Barbara Myerhoff, ressaltam a importância das audiências
como legitimadoras de versões preferidas de histórias de identidade;
• o envolvimento de testemunhas externas como parte dos processos re-
flexivos de outros significativos na construção de histórias mais ricas;
• as conversações que ressaltam acontecimentos singulares, convidan-
do o terapeuta a despertar sua sensibilidade para a poética do encon-
tro terapêutico;
• as conversações que constroem andaimes, uma forma criativa de en-
tretecer teoria e prática, inspirada nas ideias de Vygotsky, ressaltan-
do a importância do outro na formação de novos conceitos e dando
destaque a valores preferidos;
• o conceito do ausente, mas implícito: marcando a presença das ideias
de Derrida, Michael White considera que todo o dito remete a um
não dito, convidando a uma dupla escuta. O que se faz presente de
forma implícita na experiência narrada, especialmente no que se re-
fere a valores e significados?

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capítulo 12 | 255

Tais recursos conversacionais foram organizados por Michael White


nos mapas narrativos que ele publicou no ano anterior à sua morte. An-
tes de se prestarem a fórmulas pré-estabelecidas a serem seguidas pelo
terapeuta, apresentam-se como um convite para sua criatividade, numa
instigadora viagem do conhecido e familiar ao possível de conhecer nos
mundos fascinantes das vidas de cada um. Transversais aos contextos e po-
pulações, as práticas narrativas criam uma possibilidade de trabalho com
as mais distintas situações de vida, pessoas e populações. De acordo
com os propósitos deste capítulo, passo a considerar, de forma sucinta,
as práticas narrativas coletivas, para depois apresentar o uso dos docu-
mentos coletivos nos contextos de terapia e trabalho em comunidades.

Práticas narrativas coletivas

Um dos mais tocantes desafios de nossos tempos diz respeito a como


trabalhar a favor de uma transformação social que crie condições de
relações mais humanitárias, em larga escala. Como uma resposta ao
que Paulo Freire nomeou de “fatalismo neoliberal”, Denborough (2008)
elencou uma série de metodologias adequadas para contextos grupais e
comunitários, muitas delas especialmente oportunas para momentos de
grandes dificuldades. Desenvolvidas de forma consistente com os prin-
cípios e práticas narrativas, essas metodologias têm a grande vantagem
de poderem ser realizadas por qualquer pessoa, em contextos do coti-
diano e do comum, para além dos espaços privativos dos consultórios,
e organizadas por metáforas das mais simples formas de vida e cultu-
ra popular. O que vou apresentar a seguir segue a sistematização feita
por Denborough (2008). Minha escolha por fazer este recorte veio do
reconhecimento da importância dessas práticas como inspiradoras de
outras ações possíveis, além de seu alcance na construção de cenários
que favoreçam transformações coletivas. Oriundas dos mais distintos
lugares do mundo, elas têm em comum a crença difundida por White

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256 | construcionismo social

(2006) de que as pessoas não são sujeitos passivos dos traumas e dificul-
dades que viveram. Denborough (2008) considera que sempre existem
pessoas da comunidade que reagem às mais desafiadoras situações, de
seu jeito, por seus próprios conhecimentos, na busca de fazer frente aos
efeitos de adversidades que ameaçam suas vidas. Uma situação parado-
xal que ele destaca é que, ao enfrentar sua dificuldade num contexto co-
letivo, uma pessoa, mesmo se sentindo vitimada pela situação e experi-
mentando sofrimento, pode não apenas contribuir à sua sobrevivência,
mas também à vida de seus semelhantes. Para ele, quando uma pessoa
pode compreender sua contribuição à vida de outras pessoas, ela passa
a experimentar um efeito transformador sobre sua própria condição.
É como se o seu sofrimento não tivesse sido em vão.
Alguns princípios têm norteado o trabalho narrativo com situações
traumáticas, conforme apresento a seguir (DENBOROUGH, 2008):

1. Atentar às duplas narrativas das histórias de sofrimento: a história do-


minante da experiência vivida e seus efeitos sobre a pessoa e a história
subordinada de sobrevivência, aprendizado e valores. Quando uma pes-
soa relata sua história da vivência de um trauma, sua narrativa geralmen-
te descreve detalhes alarmantes da situação que a vitimou. Contudo, se
esta pessoa está ali narrando, certamente desenvolveu formas de enfren-
tamento e de autoproteção para não sucumbir à situação. White (2004)
ressalta a importância de se atentar para a linha de história de superação
que o relato dominante geralmente apresenta, mas não de forma necessa-
riamente explícita. Presente nas histórias de sofrimento, de forma ausente
mas implícita, podemos compreender as histórias dos aprendizados e va-
lores adquiridos no enfrentamento das adversidades a partir da escuta de
histórias subordinadas aos relatos de dor. Isto é o que pude testemunhar
num pequeno contato com vítimas de violência política na Colômbia.
Muitas delas mutiladas, com a vida de pessoas queridas precoce e violen-
tamente ceifada, essas pessoas apresentavam suas histórias de dor mas,
nos contextos da terapia comunitária em que estávamos, puderam resga-

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capítulo 12 | 257

tar histórias de superação e de sobrevivência. Narrativas denunciando os


abusos e atos de vandalismo contra o ser humano também eram relatos
heroicos de alguém que sobreviveu e seguiu adiante. Como conseguiu? O
que o ajudou? O que aprendeu? Quem ou o que contribuiu para que isso
fosse possível? Perguntas como essas, convidando histórias sobre com-
petências e empoderamento, também fazem parte da prática da Terapia
Comunitária Integrativa ao promover a partilha de experiências de num
contexto coletivo (BARRETO, 2005, 2008).
2. Reconhecer os efeitos reais das situações alarmantes, legitimando a
dor e o sofrimento vividos.
3. Fazer conexões entre a experiência singular do indivíduo ou da co-
munidade com algum contexto coletivo mais amplo e distinto.
4. Construir caminhos possíveis para que a experiência dos que viven-
ciaram situações traumáticas possa contribuir para outras pessoas.

Tais princípios são apoiados pela compreensão de que os problemas


desafiadores decorrentes de violência contra uma pessoa não são apenas
dessa pessoa, mas formam parte de uma problemática social mais am-
pla. Portanto, condições singulares de ações do indivíduo, conectadas a
ações coletivas, podem fazer frente a problemas sociais. Nesse sentido,
em vez de a pessoa narrar sua história traumática para o terapeuta, atra-
vés do terapeuta ela narra sua história para pessoas que estão passando
ou já passaram pela mesma dificuldade, numa tentativa de poder con-
tribuir de alguma forma. Como isto pode ser feito? Além da criativida-
de do terapeuta para ousar e promover contextos generativos diante de
audiências acolhedoras, uma das possibilidades nas quais temos traba-
lhado tem sido a elaboração de documentos coletivos que apresentam
relatos de experiências vividas e compartilham estratégias para fazer
frente aos desafios da vida e que podem ser compartilhados com ou-
tras comunidades que passam por desafios semelhantes (GRANDES-
SO, 2011b). Embora muitas práticas já sejam conhecidas, especialmente
por aqueles que trabalham com grupos e comunidades, elegi apresentar

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258 | construcionismo social

neste capítulo os documentos coletivos, dado o alcance de suas possibi-


lidades práticas de uso e também o seu poder agregador frente aos que
entram em contato com tais documentos fora dos espaços em que foram
elaborados.

O documento coletivo

Os documentos terapêuticos apresentados por Michael White e Da-


vid Epston, desde a publicação de Narrative means to therapeutic ends
(1990), têm feito parte de muitos trabalhos de terapeutas narrativos. Na
forma de cartas, memorandos, certificados, declaração de tomada de
posição, documento de identidade, pequenos livros, poemas, listas, não
importa a forma, seu uso tem sido associado a benefícios para todos os
envolvidos no processo terapêutico (WHITE; EPSTON, 1990; WHITE,
1995; DENBOROUGH, 2008). Da mesma maneira, idos os tempos em
que receber uma carta levava um infinidade, podemos hoje fazer circu-
lar esses documentos por meios instantâneos como blogs, sites e outros
caminhos eletrônicos. O que vou apresentar a seguir ilustra como o uso
de material escrito pode ser uma ferramenta útil para transformações
coletivas, indo muito além do contexto no qual foi gerado.
Originalmente desenvolvidos como resposta aos traumas coletivos,
tais como desastres, genocídios, violências políticas e outras catástro-
fes que afetam as comunidades, os documentos coletivos se apresentam
como um recurso que permite fazer frente ao isolamento em que pes-
soas que passaram por situações desse tipo acabam caindo. De acordo
com Denborough (2008), um dos pontos mais importantes deste re-
curso está justamente em cumprir essa dupla função: acessar os efeitos
dos traumas e, ao mesmo tempo, quebrar as amarras do isolamento.
A força desses documentos decorre do uso da voz coletiva na transmis-
são de histórias que constroem um coro comum em que uma identidade
coletiva pode ser fortalecida, além das identidades individuais presentes

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capítulo 12 | 259

através das histórias narradas. Poder colocar em evidência numa nar-


rativa coletiva as habilidades e conhecimentos que pessoas que passa-
ram por situações desafiadoras desenvolveram permite construir uma
narrativa de esperança e empoderamento para outras populações com
desafios semelhantes. Um aspecto importante dessa metodologia é que
ela pode ser iniciada com pequenos grupos, de duas a três pessoas, que
enfrentam experiências e demandas semelhantes, e esse grupo pode
crescer à medida que os escritos são socializados. Outro aspecto im-
portante é que essas pessoas não precisam estar envolvidas num mesmo
espaço físico de terapia. O terapeuta, através de suas perguntas focadas
em possibilidades, pode ajudar as pessoas a construírem um fio que tece
juntas histórias de habilidades e conhecimentos, conforme visita dife-
rentes relatos de experiências vividas. Da mesma forma, a elaboração
do documento também pode se dar como um processo, ao longo de um
tempo de trabalho, podendo contar com o terapeuta e as pessoas envol-
vidas no processo de terapia.
O material narrativo para a escritura do documento, conforme
Denborough (2008) ressalta, começa com uma introdução que organi-
za uma história de identidade coletiva, como se as pessoas envolvidas
se apresentassem em resposta a uma pergunta: Quem somos nós neste
momento de nossas vidas? Esse relato é organizado pelo significado co-
mum para a situação vivida. Por exemplo, “somos uma grupo de mu-
lheres comprometidas com a segurança de nossos filhos adolescentes
vivendo em tempos de insegurança e violência”. Uma descrição de como
os participantes da terapia vêm sendo afetados pela situação descrita
constrói uma trama narrativa com espaço para o comum e o singular
das vivências das pessoas. Essa trama favorece conexões não apenas
entre os presentes, mas também com futuros leitores do documento.
Expressões como “alguns de nós”, “todos nós”, “uma de nós se emocio-
nou ao relatar como tem sofrido por esperar seu filho no meio da noi-
te, sem conseguir dormir até que ele chegue” permitem fazer presentes
vozes individuais num coro coletivo organizado pelo “nós”. Descrições

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260 | construcionismo social

dessa natureza constroem a sequencialidade narrativa para apresentar um


levantamento de habilidades, conhecimentos e valores individuais pelos
quais as pessoas envolvidas têm recorrido para responder ao desafio ou ad-
versidade presente. A história das habilidades e descobertas favorece uma
narrativa que permite conectar esses recursos com as histórias vividas e
também traçar um paralelo com as tradições coletivas e a cultura. Como a
força desses documentos decorre da ressonância que provoca nas pessoas
que contribuíram à sua elaboração, Denborough (2008) recomenda que
se atente para as palavras, metáforas e imagens sugeridas pelos relatos das
pessoas que participam do trabalho. Palavras e frases que vêm carregadas
de emoção, que evoquem algum sentido, como as que sugerem cheiros,
sons, cenários e texturas, podem ser as portas de entrada para uma es-
critura mais rica de significados e de maior impacto. Da mesma forma,
tais narrativas abrem possiblidades rizomáticas para que os leitores do
documento se sintam parte, como se pudessem coautoriá-lo, agregando
seus relatos pessoais.
A estrutura do documento envolve algumas considerações úteis,
destacadas por Denborough (2008, p. 37 e seguintes), que aqui apre-
sento, embora mais a título de ilustração do que de um modelo a ser
seguido indiscriminadamente:
• parágrafo introdutório escrito na voz coletiva e deixando explícito a
quem o documento pode interessar. A narrativa busca sempre uma
dupla inserção: a dos que contribuíram para sua elaboração e das
pessoas que vivem situações semelhantes;
• como se trata de um documento coletivo é importante que ele con-
temple as vozes individuais e as coletivas. Denborough sugere que
se comece com a voz coletiva (nós, alguns de nós, muitos de nós),
depois incluindo relatos de histórias na voz individual (um de nós;
uma mulher que) e terminando com a voz coletiva;
• as habilidades presentes nas formas de enfrentamento das adversida-
des, relatadas pelas pessoas envolvidas, podem ser colocadas como
subtítulos. Transformadas em temas da narrativa, elas são nomeadas e

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capítulo 12 | 261

ilustradas com uma história que explicite como foram úteis, como se
tornaram relevantes para a pessoa ou grupo e como tais habilidades/
temas estão relacionados às vivências coletivas da família, comunida-
de e cultura;
• o corpo do documento é construído com relatos ricamente descritos
das habilidades e conhecimentos adquiridos nos contextos em ques-
tão. Portanto, não se trata de uma listagem ou categorização que,
embora possam ser úteis, perdem na sua condição de despertar res-
sonâncias nos ouvintes;
• no conteúdo do documento e na forma de narrar, uma diversida-
de de experiências é contemplada. Assim, a pessoa que ouve ou lê
o documento pode ter pontos de identificação, como também ver
ampliadas as alternativas de enfrentamento possível para a situação
adversa em questão;
• o processo de escritura do documento envolve um engajamento da
coletividade no levantamento de temas e histórias, além da habili-
dade de um organizador desse material, como editor de texto. Feita
a primeira elaboração, o texto pode ser submetido à apreciação dos
que contribuíram com suas histórias e sugestões, e, a partir daí, fi-
nalizado;
• um aspecto importante, pensando nas pessoas que contribuíram
para a elaboração do documento, envolve promover um ritual para
a sua leitura frente à comunidade envolvida. Nessa hora, o re-narrar
das histórias de habilidades envolvidas no fazer frente às adversida-
des em questão contribui para um sentido de comunitas, conceito
que Denborough (2008) toma emprestado de Victor Turner para re-
ferir-se a um sentido de unidade compartilhada;
• a finalização do processo envolve o encontro de um espaço para com-
partilhamento. Para isso, o terapeuta e o grupo envolvido buscam
uma audiência para quem esse documento poderia ser útil, oferecen-
do um contexto de reconhecimento e legitimação. Isto pode aconte-
cer envolvendo uma troca aberta entre dois grupos que vivem a mes-

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262 | construcionismo social

ma problemática (MÜLLER, 2012), com a publicação em um site ou


por outra forma específica para o contexto em questão. No trabalho
de Müller, por exemplo, um documento realizado por um grupo
de homens institucionalizados envolvidos com álcool, moradores
da cidade de Vitória (ES), foi enviado a um grupo de homens, tam-
bém envolvidos com o uso abusivo de álcool, na Austrália. A ida e
vinda de documentos entre os dois grupos não somente favoreceu
um sentido de identidade coletiva para ambos, como ressaltou as
contribuições que um grupo ofereceu ao outro.

Reflexões finais

Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo.


 Não posso lhe abrir outro mundo de imagens, 
além daquele que há em sua própria alma.
Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade,
o impulso, a chave.
Eu o ajudarei a tornar visível o seu
próprio mundo, e isso é tudo.
hermann hesse

Em relações construídas nas emoções de aceitação e amor, quando um


problema afeta uma pessoa, todos os que estão envolvidos com ela so-
frem. Nenhum de nós, humanos, sobrevive no isolamento. Dessa manei-
ra, os problemas de uma pessoa são também coletivos, pois fazem parte
de uma questão social. As práticas narrativas coletivas, reconhecendo
o comunal que existe em cada um de nós, convida-nos a uma polifonia
de vozes, ecoando além das distâncias de tempo e espaço. Viajando por
entre tramas narrativas, podemos resgatar vozes das ancestralidades, da
multicultura, vozes que constroem os tempos, projetando futuros pos-
síveis. Acima de tudo, são vozes tecidas na esperança de que viver com

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capítulo 12 | 263

dignidade é possível e que cada ação situada importa para compor o


presente e projetar o futuro.
Nessa perspectiva, um recurso de conversação e práticas dela deriva-
das constroem cenários criativos, convidando à surpresa e à emoção, não
só em relação ao outro, mas consigo mesmo, ao ouvir e ver reconhecida
sua voz singular. A “Árvore da vida”, o “Time da vida”, a “Pipa da vida”, que
David Denborough (2008) nos apresentou, a “Despensa da vida” (NO-
VIS; ABDALLA, 2013) e a “Música da vida” (MÜLLER, 2013), estas duas
últimas práticas narrativas coletivas desenvolvidas no Brasil, são algumas
das formas criativas para se lidar com situações desalentadoras e para fa-
vorecer a construção de novas possibilidades. Para terapeutas pós-mo-
dernos, recursos instrumentais não se apresentam como técnicas a serem
usadas de forma impessoal e objetiva. Diferentemente disso, eles nascem
da criatividade e entusiasmo do terapeuta, em construção conjunta com
a comunidade presente. Como cada pessoa e as comunidades que elas
vivem são um universo de possibilidades, os caminhos possíveis são mui-
tos. Cabe a cada um de nós, terapeutas, ousar e tornar públicas nossas
descobertas.

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Capítulo 13
Diálogo e transformação: estratégias para o trabalho
com a diversidade sexual no contexto educacional*
murilo dos santos moscheta
jucely cardoso dos santos
sheila mcnamee
manoel antônio dos santos

Educação, em uma perspectiva pós-moderna, é um ato revolucionário.


Ela supera a mera inculcação de ideias estabelecidas e a reprodução de
normas sociais. Ela constitui um processo generativo no qual o conhe-
cimento é construído, não apenas assimilado. Mais que o entendimento
sobre o mundo no qual vivemos, ela demanda um engajamento criativo
na transformação social. A educação pós-moderna busca criar práticas
por meio das quais as pessoas se tornem autores de suas histórias, de-
senvolvam relações de reciprocidade e realizem atos de transformação
(FREIRE, 1979). Em um mundo permeado de desigualdades de gênero
e discriminação sexual, este tipo de educação é também um ato de resis-
tência. Para Dinis (2008, p. 490):

*Este texto foi originalmente publicado em inglês no periódico Educar em revista,


número 39, em 2011. Os autores agradecem ao corpo editorial da revista pela auto-
rização para a publicação desta tradução.

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266 | construcionismo social

Um exercício de resistência exigiria ver-se de novos modos, dizer-se de


novas maneiras, experimentar-se de novas formas, estranhar a imagem
refletida no espelho que recorta nossas infinitas possibilidades, recusar
toda miragem de identidade que nos torna limitados. Ensaiar formas
curriculares que possam convidar à produção de novas formas de sub-
jetividade, de novas estéticas da existência, desconstruir criativamente
as fronteiras sexuais e de gênero.

Assim, a aprendizagem é algo que professores criam com seus alunos


e, ao fazerem isto, ambos são transformados. Falar da transformação
do professor pode parecer problemático e radical em um mundo que
parece dominado pelas pedagogias tradicionais e modernistas. Persiste
um debate sobre os limites do público e do privado, um debate sobre se e
quanto dos valores pessoais do professor deve ter espaço na sala de aula.
Além disso, convivemos com a controvérsia sobre técnicas pedagógicas
sustentadas na tradicionalmente valorizada postura de “neutralidade e
objetividade” do educador (ROHDEN, 2009). No campo da educação
sexual, o medo da exposição pessoal e o domínio do discurso da to-
lerância fazem desta postura neutra e aparentemente objetiva do pro-
fessor a atitude padrão (JARDIM; BRÊTAS, 2006). Entretanto, as pers-
pectivas biologicistas e objetivas da sexualidade tendem a naturalizar e
essencializar formas de vida produzidas culturalmente, e o discurso da
tolerância tende a contribuir com a manutenção do status quo, não com
sua transformação. Ambos cooperam com a reprodução de um sistema
que historicamente privilegia as identidades heterossexuais.
Neste contexto, como poderíamos pensar o processo de transforma-
ção que está em jogo quando professores e alunos conversam sobre se-
xualidade? Qual seria o aparato teórico que nos ajudaria a entender este
processo e, assim, capacitar-nos a estar conscientemente engajados em
práticas educativas transformadoras?
Este capítulo é uma tentativa de responder a tais questões. Inicial-
mente, criaremos o contexto desta discussão fazendo uma breve revi-

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capítulo 13 | 267

são sobre a educação sexual no Brasil. Posteriormente, utilizaremos os


conceitos de diálogo e comunidades de inteligibilidades para apresentar
uma possibilidade de entendimento da educação enquanto processo
transformativo. Finalmente, discutiremos alguns recursos para a ação
que estes conceitos inspiraram na medida em que foram utilizados na
criação de um programa de treinamento para educadores sexuais. En-
tendemos que uma educação sexual verdadeiramente transformadora
acontece quando um professor dispõe-se a estar relacionalmente enga-
jado com seus alunos. Para tanto, o professor necessita problematizar
seus próprios valores e conceitos sobre sexualidade.
O que aqui chamamos de educação transformadora sustenta-se nas
ideias construcionistas sociais, segundo as quais o aprendizado é en-
tendido como uma aquisição relacional (GERGEN, 2009; MCNAMEE;
GERGEN, 1978). Isto significa dizer que a educação, a partir de uma
perspectiva construcionista social, deve ser entendida como um proces-
so criativo no qual educadores e alunos participam de uma relação que
colaborativamente produz (e não transmite) sentido. Tal perspectiva
está alinhada às ideias de Paulo Freire e a sua distinção entre educação
bancária e educação libertadora (FREIRE, 2001).
Uma das implicações importantes desta perspectiva é que ela re-
quer que façamos uma substituição da ênfase tradicional nos indiví-
duos e suas motivações internas, intenções e percepções pela ênfase nas
ações coordenadas entre as pessoas. O processo de ensinar e a relação
de aprendizagem passam a ser o foco de trabalho prioritário. Para os
construcionistas, informações abstratas não podem ser transmitidas
ou internalizadas. Ao contrário, aquilo que tomamos como sendo uma
“informação” (por exemplo, o conhecimento e o sentido sobre algo) é
relacionalmente formado na medida em que as pessoas coordenam suas
ações para produzir sentidos profundamente conectados com suas his-
tórias. Portanto, o conhecimento não pode ser meramente acumulado
na mente de alguém, ele é gerado nas ações das pessoas que se relacio-
nam umas com as outras. Uma vez que este processo educativo trans-

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268 | construcionismo social

cende o envolvimento cognitivo de seus participantes, preferimos falar


dele como um processo transformativo e não conscientizador.

Educação sexual no Brasil

A educação sexual foi formalmente incluída nos currículos na década


de 1960, embora já se constituísse oficialmente como área de preocu-
pação da educação antes disso. Em 1971, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira definiu a necessidade de se promover programas de
saúde nas escolas. Nestes programas, a sexualidade costumava apare-
cer reduzida às discussões sobre gravidez na adolescência e controle de
doenças sexualmente transmissíveis. A ênfase em saúde foi ampliada a
partir de 1992, na medida em que a prevenção ao vírus HIV tornou-se
uma das principais preocupações da saúde pública e muitos esforços
foram mobilizados para o controle da epidemia de Aids (SILVA; NETO,
2006). Neste período, a sexualidade era discutida no contexto escolar
com ênfase nos seus efeitos negativos (ou potencialmente negativos)
sobre a vida dos estudantes. Era algo a ser prevenido ou controlado.
Uma perspectiva mais positiva só foi desenvolvida no final da década de
1990, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
(SILVA; CARVALHO, 2005). Neste documento, a educação sexual é in-
cluída como um tema inderdisciplinar que deve ser discutido a partir de
diferentes perspectivas: o corpo como matriz da sexualidade, relações
de gênero, prevenção de HIV/Aids. Embora os PCN representem um
avanço, na medida em que inclui oficialmente uma discussão ampliada
da sexualidade nos currículos, eles têm sido criticados por sua falta de
sensibilidade aos aspectos culturais e históricos, uma vez que a sexuali-
dade permanece definida sobretudo como uma dimensão essencializa-
da e biológica da vida humana (ALTMAN, 2001).
Esta ênfase nos aspectos biológicos da sexualidade tem suas reverbe-
rações na experiência dos professores em sala de aula. Sem treinamento

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capítulo 13 | 269

adequado, os professores tendem a reduzir a sexualidade aos seus aspectos


biológicos, tentando criar um terreno ilusoriamente seguro no qual eles
poderiam se sentir mais confortáveis para falar a partir de uma perspec-
tiva supostamente neutra e objetiva (BARCELOS, 1996; SILVA; CARVA-
LHO, 2005). Assim, professores tendem a preferir explicar as mudanças
físicas que ocorrem na adolescência, gravidez, prevenção de DST a discu-
tir os aspectos históricos e culturais da sexualidade. (JARDIM; BRÊTAS,
2006). Quando a discussão objetiva não é suficiente (por diversas razões),
e os professores são forçados a ir além dos aspectos biológicos, a discussão
é geralmente pobre e não difere muito das ideias de senso comum satu-
radas de estigmas e preconceitos (SILVA; NETO, 2006). As dificuldades
parecem ainda maiores quando os professores tentam abordar expressões
não normativas de sexualidade, como a homossexualidade e a transexua-
lidade, devido à predominância de noções cristalizadas e essencializadas
de identidade na educação (DINIS, 2006). A homossexualidade é, de cer-
ta forma, ignorada nas discussões de sala de aula e o silêncio acerca das
expressões não normativas de sexualidade refletem a falta de preparação
dos professores. Tal invisibilidade também espelha a persistência de uma
pedagogia retrógrada nos contextos escolares (FURLANI, 2007).
Por outro lado, desde a década de 1960, as normas e os valores so-
ciais têm sido radicalmente transformados e a estrutura social patriar-
cal vem sendo progressivamente desmantelada. O movimento feminis-
ta desempenhou papel importante em desafiar a estrutura centrada no
homem, estrutura que produziu demasiada desigualdade de gênero. A
epidemia de Aids motivou a organização de diversas iniciativas de defe-
sa de direitos de lésbicas, gays, bissexuais e trangêneros (LGBT) que, por
sua vez, ampliaram a discussão social sobre as diversas configurações
da sexualidade. Na virada do século, a mídia popular tornou-se repleta
de debates sobre o “casamento gay”, adoção por casais homossexuais
e criminalização da homofobia. Intimidade, relacionamento, família e
identidade foram todos ressignificados e, embora seja difícil defini-la, a
contemporaneidade tem sido descrita por seus atributos plurais, mutá-

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270 | construcionismo social

veis e até mesmo líquidos (BAUMAN, 2010; GIDDENS, 1992; VAITS-


MAN, 1994).
A despeito das tentativas da escola em ignorá-la, a diversidade sexual
tem estado cada vez mais presente na vida dos alunos: eles têm amigos ou
vizinhos gays, têm lido os jornais, revistas e até mesmo participado de pa-
radas e marchas de defesa de direitos LGBT, que mobilizam três milhões
de pessoas. Alguns estão se assumindo como gays, lésbicas ou transgêne-
ros nas escolas, alguns talvez tenham pais gays ou lésbicas, outros já foram
ridicularizados ou já sofreram algum tipo de pressão durante o recreio ou
foram violentamente agredidos na esquina da escola, e outros, ainda, talvez
tenham sido admirados por seus colegas como radicais, “fashion” ou “ma-
neiros”. Os professores, que são de outra geração, parecem se sentir despre-
parados e desconfortáveis para discutir essas questões em sala de aula.
Assim, embora os PCN tenham incluído oficialmente a sexualidade
como um tema importante a ser discutido em sala de aula, ainda care-
cemos da criação de um contexto escolar no qual a sexualidade possa
ser discutida de modo positivo, não discriminatório e histórica e cultu-
ralmente sensível. Como o próprio documento enfatiza, os professores
não devem estar sozinhos nesta tarefa, eles devem contar com o apoio
de palestras, discussões de grupo, leituras e supervisão que os ajudariam
a desenvolver uma postura ética e ampliariam o entendimento de seus
próprios valores e limites (SILVA; NETO, 2006).
Como poderiam os professores desenvolver uma prática de educação
sexual sensível às mudanças de valores sociais contemporâneas? Como
poderiam fazer isso sem cair na armadilha de uma educação sexual mo-
ralizante e prescritiva? Como poderiam evitar esta armadilha sem recor-
rer ao modelo pretensiosamente neutro da biologia ou ao estéril discurso
da tolerância? Como poderiam criar uma abordagem da educação sexual
sensível, não discriminatória e ao mesmo tempo transformativa?
Como já afirmamos, parece que as respostas mais comuns a essas
perguntas estão baseadas na pressuposição de que os valores pessoais
devem ser deixados do lado de fora da sala de aula e de que a educação

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capítulo 13 | 271

sexual deve ser um processo neutro e tecnologicamente orientado. O


resultado habitual é a proposição de uma educação sexual baseada na
transmissão de informações, na qual a sexualidade é com frequência
desconectada da vida. Educadores e alunos não são convidados à arti-
cular tais informações com suas experiências e valores pessoais. Neste
contexto informativo, fica minimizada a possibilidade de conflito entre
diferentes conjuntos de crenças e valores sobre a sexualidade. Contudo,
uma vez que a sexualidade torna-se distante da vida, o crescimento pes-
soal e a mudança social são também minimizados.
Nossa experiência em pesquisas colaborativas e no desenvolvimen-
to de programas de treinamento para educadores em sexualidade nos
levou a uma posição diferente. Sustentados pelas proposições constru-
cionistas sociais (GERGEN, 2009; MCNAMEE; GERGEN, 1998), ado-
tamos um entendimento relacional no qual a educação sexual é vista
como conectada à vida de alunos e professores e, portanto, não pode
ser neutra. Compartilhamos esta visão de educação com Lave e Wenger
(1991), que argumentam que o aprendizado não deve ser visto como a
transmissão de informações, mas como um processo de construção de
conhecimento (e valores) em comunidades específicas. Os valores são
importantes para nós, uma vez que eles desempenham um papel crucial
na construção das regulações do modo como a sexualidade é e pode
ser vivida. Entendemos que, apesar da inegável dimensão biológica da
sexualidade, seus aspectos mais importantes estão no modo como ela
é descrita, narrada e organizada no seio de interações sempre permea-
das por valores social e culturalmente construídos. Tal entendimento
permite-nos considerar a sexualidade em seus sentidos culturais e mu-
táveis, evitando uma aproximação essencializante e estática. Afirmar
que a sexualidade é social, cultural e historicamente produzida significa
dizer que ela não é um fenômeno estável que pode ser simplesmente
apresentado e discutido em sala de aula. Ela é também produzida neste
cenário, nas interações e descrições que permeiam as relações em sala
de aula. Assim, o próprio tema da educação sexual (sexualidade) não

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272 | construcionismo social

pode ser adequadamente abordado se sua apresentação negligenciar os


elementos envolvidos em sua produção e regulação.
Portanto, para incluir na educação sexual os valores socialmente cons-
truídos, os educadores devem desenvolver uma melhor compreensão do
processo que gera, mantém e transforma tais valores. Valores são, eles
mesmos, um derivado histórico e cultural das relações humanas; eles
emergem de nossas interações no mundo social. Atualmente, uma miría-
de de comunidades coexistem e geram valores diferentes e frequentemen-
te incomensuráveis. Tais valores são inteligíveis para suas comunidades
de origem ou, como preferimos chamar, para suas comunidades de inte-
ligibilidades.

Coordenando diferentes inteligibilidades e produzindo


engajamento relacional

Com tantas visões distintas sobre sexualidade – cada uma sensível ao seu
próprio contexto de produção –, a educação só pode acontecer quando
o educador for capaz de reconhecer os valores e crenças diferentes (às
vezes incomensuráveis) e garantir que cada um deles tenha possibilida-
de de ser expresso e ouvido. Isto requer que o educador esteja engajado
na relação e seja capaz de reconhecer o modo como os valores (crenças
e sentidos) são colaborativamente produzidos nas relações.
A criação de valores e crenças emerge de um processo de coordena-
ção. Podemos pensar, por exemplo, no primeiro encontro entre um pro-
fessor e um aluno. Quando o professor entra em uma sala para aplicar
uma prova, ambos, professor e aluno, sabem que o foco daquela conver-
sa será as habilidades acadêmicas do aluno: o professor faz perguntas e
o aluno responde. A partir desta coordenação, padrões e rituais rapida-
mente são formados (ritualização). Algumas relações professor-aluno
podem solicitar que o aluno contribua com a discussão de um determi-
nado tópico. Em geral, o aluno experiente antecipa que será interrogado

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capítulo 13 | 273

e solicitado a contribuir. Este ritual gera um senso de padrão e expec-


tativas que utilizamos para avaliar tanto nossas ações quanto as ações
dos outros (padronização). Assim, se o professor não pergunta pelas
ideias do aluno, o aluno pode se sentir desconsiderado ou desrespeita-
do. De modo semelhante, se o aluno falha em responder às perguntas
do professor, este pode sentir que as expectativas para a aula não foram
cumpridas. Uma vez que estes modos de interação padronizados estão
em ação, vemos a geração de valores e crenças mais amplos (realida-
des sociais). Ou seja, ficamos com um conjunto de pressuposições não
questionadas sobre, neste caso, “como uma aula deve acontecer”. Cren-
ças e valores são, por sua vez, a base a partir da qual novas coordenações
podem emergir. Este processo foi descrito no Capítulo 5 deste livro e
pode ser ilustrado pelo seguinte diagrama:

COORDENAÇÃO
Pessoas coordenam suas ações em RITUALIZAÇÃO
conjunto (coordenações são Estas coordenações tornam-se
culturais, históricas e relacionais) rapidamente ritualizadas

CRENÇAS E VALORES PADRONIZAÇÃO


Padrões e expectativas geram Padrões e expectativas
valores e crenças: realidades emergem dos ritos

Podemos utilizar este modelo para discutir a produção e reprodução


dos valores sobre as performances da masculinidade e da feminilidade
entre os alunos, por exemplo. Imagine uma aluna que é ridicularizada

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274 | construcionismo social

por seus colegas de classe por ser “excessivamente sexualizada”. Sua per-
formance de gênero rompe com a expectativa que esta comunidade pro-
duziu acerca de como uma garota deve se comportar, e é apenas a partir
dos padrões desta comunidade de inteligibilidade que seu comporta-
mento pode ser considerado excessivamente sexualizado. Podemos dizer
que este grupo de alunos, no passado, coordenou suas ações enquanto
garotos e garotas de tal modo que a performance de masculinidade e
feminilidade tornou-se ritualizada. Na medida em que esses rituais se
tornam padrões, o grupo passou a esperar que todos os alunos se com-
portassem como eles. Suas performances coordenadas tornaram-se va-
lores que lhes representam como alguém deve ser. A garota chamada de
“excessivamente sexual” é alguém que coordenou sua performance de
gênero a partir de outra comunidade de inteligibilidade (oura escola, fa-
mília, vizinhos) na qual sua performance não é “excessivamente sexual”
ou na qual ser “excessivamente sexual” é valorizado, não uma caracterís-
tica problemática.
Outro exemplo pode ser a pressuposição compulsória de que todos
os alunos (e professores) são heterossexuais. Tal pressuposição repre-
senta a expectativa de que alunos e professores sejam heterossexuais.
E de onde vem esta expectativa? Ela foi produzida em coordenações an-
teriores (de coordenações em pequenos grupos, como a família, a coor-
denações maiores, como as produzidas nas imagens da mídia) que defi-
nem que um homem deve se sentir atraído por uma mulher e vice-versa.
E quais são os efeitos destas expectativas? Elas geram valores e crenças
de que este é o modo que as pessoas devem ser, criando, portanto, o
contexto para coordenações que reproduzirão os valores que estão em
sua matriz (na medida em que o círculo do diagrama anterior se auto-
-alimenta). Uma vez que a heterossexualidade é antecipada, com fre-
quência as imagens de casais de homens e mulheres homossexuais não
são apresentadas em livros didáticos, por exemplo. Conversas, exemplos
e piadas são feitos com a pressuposição (expectativa) que todos na sala
de aula são heterossexuais. Rapidamente, a noção de que todos devem

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capítulo 13 | 275

ser heterossexuais (valor) pode se estabelecer, e com ela a ideia de que


ser diferente é anormal ou errado.
Entender a matriz contextual e relacional dos valores cria condições
para o educador abordar a educação de modo sensível e humano. O
educador pode reconhecer seus valores e os valores dos alunos como
produções coerentes com determinados contextos relacionais. O desafio
que emerge desta percepção não se refere a produzir um consenso de
valores, seja por persuasão, imposição ou disciplina, mas sim de explo-
rar a diversidade. A diversidade, quando tomada em um contexto rela-
cional, cria um terreno fértil para o crescimento e mudança por meio
do diálogo.
O uso que fazemos do termo diálogo é bastante específico. Primeiro,
entendemos que diálogo é um ato responsivo (BAKHTIN, 1982). Ele
está focado no ato da comunicação, em como as pessoas falam (e agem)
“em resposta” umas às outras, e em como estas respostas se influenciam
mutuamente.
Segundo, o diálogo reconhece a diversidade de valores e crenças que
as pessoas trazem para a conversa (PENMAN, 2000). Neste sentido, o
diálogo é radicalmente diferente do debate, no qual a comunicação tem
o objetivo de persuadir o outro ou de defender um determinado con-
junto de crenças. No diálogo, as ideias são apresentadas a partir de sua
ancoragem nas experiências pessoais. Busca-se evitar que as pessoas fa-
lem a partir de posições abstratas (“isto é certo” ou “isto é errado”). Ao
contrário, procura-se criar um espaço no qual os participantes possam
produzir sentido sobre as diferentes comunidades de inteligibilidade
a partir das quais eles falam. Em vez de atacar ou defender ideias, os
participantes tornam-se curiosamente envolvidos em um processo de
produção de sentidos. Assim, o diálogo é marcado por uma abertura à
diversidade de entendimentos que derivam das múltiplas coordenações
de cada um dos participantes.
Terceiro, diálogo é um processo sem um fim definido, na medida
em que os sentidos que emergem dele mudam constantemente e não

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276 | construcionismo social

apresentam um direcionamento pré-definido. Em outras palavras, o


diálogo não se centra em um conteúdo ou técnica em particular. Assim,
nenhum sentido ou conversa é completamente finalizado. Sentidos que
emergem de determinadas interações estão permanentemente abertos a
futuras suplementações e a construções de novos entendimentos.
Julia Woods (2003), a partir da obra de Bakhtin (1982), enfatiza
que responsividade é o aspecto central das interações dialógicas. Para
ela, a responsividade “emerge e se torna possível por modos de falar e
pensar que permitem a transformação de como alguém vê a si-mes-
mo, os outros e o mundo em que vive” (p. xvi). Se somos responsivos
aos outros – especialmente aos outros que têm visões diferentes das
nossas –, tornamo-nos abertos à reflexão crítica sobre nossas próprias
crenças e compromissos. No caso do trabalho que desenvolvemos, as
visões diferentes referem-se ao modo como as identidades sexuais são
descritas como “certas” ou “erradas”.
Assim, uma aproximação dialógica do campo da diversidade sexual
requer uma mudança de foco do conteúdo daquilo que as pessoas estão
fazendo e dizendo (como presente no modelo de transmissão de infor-
mações) para o foco nos processos relacionais e em como as ações de
cada pessoa convidam os outros a relações e rituais particulares (explo-
rando, por exemplo, como diferentes valores e crenças sobre a sexuali-
dade emergiram). Isto não significa dizer que o conteúdo não seja im-
portante; claro que é – especialmente no contexto das políticas públicas
e da educação. Entretanto, o foco dialógico que propomos aqui encora-
ja-nos a fazer uma pausa nesta ênfase no conteúdo. Quando enfatiza-
mos o processo, tentamos ficar atentos aos modos como construímos
contextos conversacionais nos quais as pessoas podem falar de formas
diferentes sobre os mesmos (e as vezes repetidos) assuntos.
Isto significa que nossa primeira tarefa é explorar formas de criar
contextos (físicos e relacionais) que convidem aos participantes a falar
de modo diferente sobre um tema, neste caso, a sexualidade. Acredita-
mos que os conceitos de comunidade de inteligibilidade e diálogo, tal

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capítulo 13 | 277

como formulados previamente, podem nos ajudar a desenvolver um


modelo de educação sexual no qual os valores não precisam ser negados
ou oprimidos. Eles podem ser reconhecidos como parte das interações
humanas e assim, na medida em que são dialogicamente articulados,
podemos ampliar as possibilidades de pensar a sexualidade em sua com-
plexidade. Em outras palavras, acreditamos que uma aproximação dia-
lógica do tema da educação sexual pode gerar um contexto apreciativo
e respeitoso; um contexto que permita a coexistência de diversas visões
acerca da sexualidade.

Recursos em ação

Os conceitos de comunidades de inteligibilidades e diálogo sustenta-


ram nossos trabalhos com grupos em diferentes contextos. Os recursos
que eles oferecem ao desenvolvimento de práticas mais inclusivas em
relação aos pacientes LGBT no contexto da atenção à saúde foram mais
extensamente discutidos em Moscheta e Santos (2010), Moscheta, Mc-
Namee e Santos (2010) e Moscheta (2011). Neste capítulo, nosso obje-
tivo é discutir as contribuições destes conceitos no desenvolvimento de
programas de capacitação para educadores que possam promover prá-
ticas inclusivas em relação aos alunos LGBT no contexto educacional.
Para isso, apresentaremos uma série de atividades que utilizamos em
um de nossos projetos para ilustrar como tais conceitos influenciaram
nosso modo de trabalho. Não pretendemos oferecer uma apresentação
detalhada do programa, tampouco uma avaliação de seus resultados. O
programa é apresentado aqui para ilustrar a teoria e exemplificar como
enfrentamos o desafio de traduzi-la em uma prática. Esperamos que a
discussão inspire o leitor a buscar suas próprias formas de responder a
este desafio. Ao final, apresentaremos um quadro com todas as ativida-
des empreendidas (Quadro 1) e outro que sintetiza os princípios que
utilizamos como guias no planejamento das atividades, além de uma

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278 | construcionismo social

lista de perguntas que podem ser úteis para aqueles que queriam de-
senvolver seus próprios programas de educação sexual a partir de uma
perspectiva construcionista social (Quadro 2).
As atividades que apresentaremos são parte de um projeto que teve
seu início no momento em que a prefeitura municipal de uma pequena
cidade do interior paulista nos convidou a desenvolver e implementar
um programa breve de capacitação em educação sexual para os profes-
sores locais. Segundo a proposta, os professores do ensino fundamental
e médio seriam convidados para um programa de dez horas de duração.
O programa seria oferecido no horário de trabalho dos professores, mas
a participação seria voluntária. A expectativa era de que o programa co-
brisse temas amplos em sexualidade, com especial atenção à homofobia
e às manifestações de sexualidade não heterossexuais.
Ao planejar o programa, tomamos como objetivo produzir um enga-
jamento dos professores em um processo reflexivo no qual eles pudessem
simultaneamente avaliar, refletir e amplificar os sentidos construídos
sobre a sexualidade. Avaliação, reflexão e mudança não são processos
separados, uma vez que o último é um componente inevitável das in-
terações dialógicas, tal como as definimos anteriormente. Para nós, os
recursos para o trabalho com sexualidade são desenvolvidos quando os
educadores se envolvem em uma exploração de seus próprios valores
e avançam na compreensão da relatividade desta construção. Quando
educadores são capazes de entender seus valores como construções con-
textuais, eles se tornam mais capazes de compreender valores distintos
a partir de suas próprias inteligibilidades e, assim, podem produzir res-
postas de modo mais flexível e sensível – ou seja, para além da divisão
polarizada de certo e errado.
O programa consistiu em uma conferência de duas horas, além de
duas oficinas de quatro horas cada. Cinquenta educadores participaram
da conferência, planejada para motivar a participação nas oficinas. A
conferência apresentou a sexualidade como uma construção histórica
e contextualizada e convidou os educadores a pensar em suas histórias

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capítulo 13 | 279

pessoais e memórias. Ao final, foi apresentada uma síntese dos desafios


que os educadores enfrentam ao lidar com a sexualidade no contexto
escolar, o que serviu de convite para a continuação da discussão nas
duas oficinas seguintes.
Dentre os cinquenta participantes da conferência, quarenta (dividi-
dos em dois grupos) decidiram participar das oficinas. As oficinas ocor-
reram em dois dias e horários diferentes, de modo a acomodar profes-
sores dos períodos matutino e vespertino.
As atividades das oficinas foram organizadas em três eixos. No pri-
meiro tínhamos o objetivo de estimular a conversa entre os participan-
tes sobre suas percepções acerca da sexualidade e como elas haviam sido
construídas dentro de suas histórias de vida. O principal foco deste gru-
po de atividades era gerar um entendimento ampliado de como os sen-
tidos sobre a sexualidade de cada pessoa são formados nas suas histórias
e em redes únicas de relações. Assim, estimulamos a apresentação de
histórias pessoais dos educadores sobre como eles foram educados em
relação à sexualidade, articulando estas histórias com os valores sociais
que regulam a expressão da sexualidade em nossa sociedade.
A primeira atividade proposta teve o objetivo de favorecer o envol-
vimento dos participantes no processo. Inicialmente, pedimos que cada
participante escrevesse em um papel colorido suas preocupações e per-
guntas sobre educação sexual. As cores dos papéis eram indicativas do
nível de dificuldade que eles experimentavam em relação à questão (ver-
de/pouco, amarelo/um pouco, vermelho/muito). Esta estratégia permi-
tiu que pudéssemos discutir as questões propostas de forma anônima.
Após a discussão, organizamos uma atividade na qual pequenos grupos
montaram um pôster a partir de diferentes recursos gráficos (colagem,
desenho etc.) que expressasse alguns sentidos sobre a sexualidade.
Estas duas atividades foram desenvolvidas a partir de nosso entendi-
mento de que, quando pessoas se reúnem para um diálogo, elas falam a
partir de uma posição específica em uma rede de relacionamentos que
contribui com seus pensamentos, sentimentos e sentidos acerca da se-

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280 | construcionismo social

xualidade (BECKER et al., 1996). Assim, se os participantes querem fazer


sentido uns para os outros, eles precisam tornar clara as suas posições.
As atividades nos ajudaram a aferir como ser responsivo às necessidades
dos participantes e como criar um contexto seguro para a conversa. Em
segundo lugar, estas atividades convidaram os participantes a apresen-
tar seus questionamentos e preocupações e, em seguida, a organizá-los
em uma imagem que expressasse alguns sentidos sobre a sexualidade.
Queríamos que eles fizessem isso, pois entendemos que permitiria ao
grupo acessar as comunidades de inteligibilidade a partir das quais os
participantes produziam sentido sobre a sexualidade. Dessa maneira,
os participantes foram contextualizados. Eles ofereceram histórias que
nos permitiam visualizar como seus valores foram construídos. Inician-
do a oficina desta maneira nós buscávamos criar o contexto no qual
seria possível evitar a fala a partir de posições abstratas (por exemplo,
é errado ser homossexual) e o debate que habitualmente decorre deste
modo de falar. Ideias podem ser debatidas, e elas facilmente criam pola-
rizações e favorecem conversas com objetivo de persuadir ou defender
(MCNAMEE, 2007a; SAMPSOM, 2008; STEWARD; ZEDIKER, 2002).
Em vez de ideias, convidamos os participantes a compartilhar suas his-
tórias e estimulamos sua curiosidade sobre as histórias contadas. Assim,
em ambas atividades, não tentamos responder às perguntas que foram
feitas, mas criamos um contexto para o grupo explorar tais questões e
criar conexões com suas experiências dentro e fora da sala de aula.
Acreditamos numa diferença significativa entre iniciar uma oficina
solicitando questões dos participantes e, por exemplo, solicitando opi-
niões sobre um determinado tema. Uma vez que estamos interessados
no processo relacional, questionamo-nos constantemente que efeito as
nossas perguntas podem produzir. Especificamente, quando pedimos
ao grupo que apresente suas questões, nós os convidamos a olhar para
o que eles querem saber. Ao contrário, quando pedimos suas opiniões,
nós os convidamos a expressar aquilo que já sabem. Se questões podem
criar um espaço para curiosidade e para o início de uma busca conjunta,

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capítulo 13 | 281

opiniões podem facilmente ser apresentadas como perspectivas isoladas


que podem ser avaliadas ou defendidas.
Tais atividades têm o potencial de gerar uma descrição complexa,
histórica e contextualmente situada da sexualidade, pois estão baseadas
em histórias pessoais. Os participantes podem ver como suas histórias
ajudam a construir o que eles chamam de sexualidade. Uma vez que as
atividades acontecem em grupo, eles podem também conhecer a varie-
dade de entendimentos sobre o mesmo tema. Além do mais, elas con-
vidam os participantes a refletir sobre como seus valores e sua própria
educação sexual influenciam o modo como eles trabalham com educa-
ção sexual.
O segundo eixo temático foi centrado na tarefa de oferecer algumas
informações sobre os diferentes componentes da sexualidade, como ela
é categorizada pelos discursos sociais e como estes discursos operam de
modo a estimular ou discriminar diferentes expressões de sexualida-
de. Aproveitando o contexto criado pelas atividades anteriores, no qual
os participantes puderam situar a sexualidade enquanto uma produção
contextualizada, o conjunto de atividades desenvolvidas no segundo
eixo convidou-os a produzir uma definição de sexualidade e a refletir
sobre suas diferentes dimensões, tais como corpo, emoção, papéis de
gênero, desejos e identidade sexual.
Quando a discussão sobre a identidade sexual é precedida pela apre-
ciação de como a sexualidade e os valores dependem de construções
históricas, torna-se mais fácil promover uma reflexão na qual as cate-
gorias de identidade sexual sejam tomadas como produções artificiais.
Com frequência, o próximo passo neste processo de desconstrução das
categorias de identidade sexual é a reflexão sobre o modo arbitrário
como uma categoria foi socialmente valorizada em detrimento de ou-
tras, e seus efeitos de opressão e estigma. Quando os educadores estão
familiarizados com estas categorias enquanto construções sociais, eles
também podem entendê-las como descrições estratégicas para a mu-
dança social (Foucault, 1979).

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282 | construcionismo social

Como nossa experiência tem nos mostrado, o poder do diálogo resi-


de em seu potencial de gerar novas descrições sobre experiências repe-
tidamente descritas da mesma forma. Na medida em que tais descrições
saturadas mudam, abre-se um novo campo de entendimento e novas
relações e recursos podem emergir (MCNAMEE, 2007b; MCNAMEE;
GERGEN, 1998). Um modo de promover tal transformação é convidan-
do as pessoas a falar sobre uma situação que evoque emoções menos
intensas e menos saturadas de valores e julgamentos. Este foi o nosso
objetivo quando convidamos os participantes para uma atividade na
qual eles tinham que identificar sua “estação do ano” favorita enquanto
ouviam As quatro estações de Vivaldi. Criamos um contexto no qual
eles podiam falar sobre suas preferências, como as identificavam, o que
acreditavam que havia contribuído para sua constituição, entre outras
coisas. Posteriormente, pedimos ao grupo que discutisse identidades
sexuais utilizando as ideias geradas na reflexão sobre a preferência pelas
estações de Vivaldi. O uso da metáfora da estação do ano pôde ajudar
os participantes a discutir as identidades sexuais em termos de suas pre-
ferências, enfatizando como tais preferências são um produto de múl-
tiplos determinantes e como suas características são fluidas e interde-
pendentes. Deste modo, evitamos a reprodução de uma hierarquização
das categorias de identidade sexual. A metáfora das quatro estações nos
ofereceu um modelo positivo para falar da diferença, no qual as prefe-
rências não precisam ser avaliadas (como certas ou erradas, normais
ou anormais), mas podem ser apreciadas como uma diversidade que
enriquece a experiência humana no mundo.
A partir daí, pudemos encaminhar o trabalho com o grupo na dire-
ção de suas preocupações mais práticas, que compuseram o terceiro eixo
da intervenção. Nas duas atividades que se seguiram, apresentamos as
regulações legais para o trabalho com a diversidade sexual na escola tal
como definidas pelos PCNH. Uma vez que as atividades anteriores ha-
viam favorecido a criação de um contexto dialógico, pudemos estimular
os participantes a se relacionarem com as informações, levantando dile-

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capítulo 13 | 283

mas e produzindo exercícios de reflexão crítica. Sem um contexto dialó-


gico no qual os participantes possam se relacionar pessoalmente com as
informações, a apresentação de diretrizes e parâmetros raramente seria
recebida de modo crítico e reflexivo. É esta diferença que qualifica a
educação como um processo conjunto criativo e transformativo.
Finalmente, dividimos o grupo em dois subgrupos e pedimos que
encenassem duas situações dilemáticas que eles pudessem retomar da
sua experiência como educadores. Eles foram desafiados a criar dife-
rentes finais para os dilemas. Novamente, buscamos produzir um en-
tendimento da sexualidade complexo e multidimensional, que não per-
mitisse uma única resposta padrão. Os participantes foram convidados
a produzir respostas sensíveis às diferentes inteligibilidades presentes
em cada situação e, ao mesmo tempo, foram estimulados a pensar nelas
não como a resposta correta, mas como possibilidades com implicações
específicas. Parece-nos que uma das vantagens da perspectiva relacional
e centrada no processo que utilizamos é a possibilidade de que a própria
abordagem se torne um recurso para os educadores. O foco relacional
permite ao educador considerar suas respostas aos alunos para além de
seu conteúdo (bom/mau; certo/errado) e convida-os a considerar as im-
plicações pragmáticas de diferentes perspectivas.

Possibilidades

Este texto é uma tentativa de articular uma orientação teórica (constru-


cionismo social) com o campo da educação, especificamente na prepa-
ração de educadores para o trabalho com a sexualidade.
É necessário enfatizar que não estamos apresentando uma técnica.
Entendemos que as técnicas são estratégias pré-definidas aplicadas em
determinados contextos e situações. Sendo pré-definidas, elas não podem
ser responsivas aos participantes do momento interativo. Além do mais,
concordamos com a crítica de Paulo Freire sobre o uso de técnicas

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284 | construcionismo social

pedagógicas como uma forma de reduzir e desumanizar as relações


(FREIRE, 1979). O que oferecemos aqui é um modelo, definido como um
conjunto de “recursos para ação” que podem servir de inspiração. Tais
recursos são constantemente colocados em ação em resposta às demandas
contextuais e relacionais, o que significa que o uso de um recurso nunca
se dá da mesma forma. Esta diferença é crucial pois o que apresentamos
aqui é, sobretudo, um esforço de articulação de um modelo educacional
focado no processo, não no conteúdo.
Acreditamos que a educação sobre diversidade sexual deve superar
o discurso essencializante da biologia e da pressuposição irrefletida e
compulsória de que a heterossexualidade é a norma. Para fazer isso,
devemos explorar os entendimentos dos valores e crenças que servem
como ímpeto às nossas ações no mundo. Uma forma de fazer isso é por
meio da criação de contextos nos quais os valores e crenças de diferentes
comunidades de inteligibilidade podem ser dialogicamente conhecidos.
Esperamos que as ideias que aqui apresentamos possam inspirar outros
estudos e programas de treinamento comprometidos com a diversidade
e com a promoção de uma educação sexual inclusiva e transformadora.

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capítulo 13 | 285

quadro 1
Descrição das atividades e seus objetivos, utilizadas
no programa de capacitação em educação sexual

Atividade Descrição Objetivos


s Levantar informações para
Em papéis coloridos (verde,
o planejamento da oficina
amarelo e vermelho), os
s Gerar uma imagem da
participantes escrevem suas
complexidade do tema
Semáforo questões sobre sexualidade
s Criar um contexto no qual os
conforme o nível de dificuldade
participantes possam se sentir
(fácil, mediano e difícil,
motivados e pessoalmente
respectivamente)
envolvidos
s Criar um contexto para
Divididos em grupos de quatro
a apresentação pessoal dos
pessoas, os participantes criam
participantes sobre seus
um painel sobre sexualidade
valores e crenças em relação
utilizando colagens, canetas
Colagem à sexualidade
coloridas e giz. Cada subgrupo
s Estimular uma conversa na
apresenta seu painel tentando
qual os determinantes sociais,
verbalizar o que pretendiam
culturais e históricos da
expressar na imagem
sexualidade estejam presentes
Os participantes são estimulados
a discutir e tentar gerar uma
definição de sexualidade. Os s Gerar um entendimento
coordenadores motivam os multidimensional e sensível
O que é
participantes a pensar nos sobre a sexualidade e questionar
sexualidade?
determinantes biológicos e as descrições essencializantes
psicológicos, papéis de gênero, e naturalizantes
performances de gênero, desejos
e identidades sexuais

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286 | construcionismo social

Ao som de As quatro estações, de s Discutir sobre as categorias


Vivaldi, os participantes andam de identidade sexual de um
pela sala e tentam identificar qual modo não saturado pelos valores
é sua parte favorita do concerto. tradicionalmente associados a
Posteriormente, eles se reúnem elas
em quatro pequenos grupos, s Permitir aos participantes
Quatro de acordo com sua estação experimentar um modelo
estações preferida, e discutem porque se que os ajude a considerar a
sentem mais identificados com complexidade das identidades
determinada estação. A discussão sexuais e evitar a tradicional
é apresentada a todo o grupo e hierarquização dessas categorias
os participantes são convidados a s Criar um contexto para uma
relacionar as ideias geradas com conversa na qual a diversidade é
as preferências sexuais apreciada e não julgada
Apresentação e discussão das s Encorajar os participantes a
Conversando diretrizes que regulamentam o desenvolver práticas educativas
sobre trabalho de orientação sexual nas não discriminatórias, protetivas
discriminação escolas, discriminação de gênero e situadas em um contexto legal,
e homofobia cultural e social ampliado
Apresentação do vídeo produzido
pelo Ministério da Saúde e
Coordenação Nacional DST/
s Discutir a diversidade sexual
Vídeo: Aids em 2002 sobre o tema
nas escolas, articulando-a com
“Em que time “Diversidade sexual na escola”.
a experiência e as histórias dos
ele joga?” Após o vídeo, os participantes
professores
são convidados a compartilhar
suas próprias experiências como
educadores

Divididos em dois subgrupos,


s Produzir um entendimento
os participantes dramatizam
complexo e multidimensional
situações dilemáticas que vivem
da sexualidade
no trabalho. Posteriormente, os
s Favorecer a criação de
Dramatização grupos são convidados a criar
respostas sensíveis a diferentes
diferentes finais para as histórias
inteligibilidades
baseados no que aprenderam
s Estimular respostas orientadas
durante a oficina e a refletir sobre
para o processo
suas possíveis implicações

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capítulo 13 | 287

quadro 2
Eixos, princípios e questões que podem ser utilizadas para orientar
o planejamento de programas de capacitação em educação sexual

Eixo Princípios Questões


s As condições físicas e materiais do espaço
nos permitem ter um ambiente seguro,
confortável e acolhedor?
s Diálogo não
é debate s O convite para o diálogo gera uma
s Histórias são apreciação pelas contribuições dos próprios
mais relevantes participantes?
que opiniões
Criação de s A atividade inicial convida os participantes
s Reconhecer
um contexto a estar plenamente (e não apenas
e legitimar
dialógico cognitivamente) envolvidos na conversa?
as diferentes
comunidades de s As atividades convidam os participantes
inteligibilidade a contar suas histórias em vez de dar suas
dos opiniões?
participantes
s As atividades permitem aos participantes
reconhecer os diferentes contextos e
comunidades de onde vêm?
s As atividades permitem aos participantes
falar da sexualidade enquanto construções
s Apreço pela históricas e sociais?
diferença
s As atividades convidam os participantes
s Curiosidade a criticamente avaliar os efeitos da
e exploração categorização da sexualidade?
Sexualidade: em vez de
s As atividades convidam os participantes
procura de explicações
a gerar novas metáforas para falar da
definições definitivas
sexualidade?
s Procura por
s As metáforas geradas produzem aberturas
formas de falar
para formas inéditas de falar da sexualidade?
novas e não
saturadas s As atividades favorecem uma postura
apreciativa em relação à diferença? Elas
evitam julgamento e avaliação?

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288 | construcionismo social

s Informações s As atividades apresentam informações


devem ser de um modo que estimula a reflexão,
contextualizadas o engajamento pessoal e a articulação
contextual?
s Exploração
das s As atividades promovem conexões entre
Preocupações possibilidades as informações e as experiências dos
práticas em detrimento participantes?
das definições s As atividades permitem que os participantes
de certo/errado pensem em suas respostas como
s Atenção aos possibilidades em vez de certo/errado?
efeitos e às s As atividades convidam os participantes a
repercussões considerar as implicações de suas respostas?

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Capítulo 14
Construcionismo social, comunidade e sexualidade:
trabalhando com travestis
emerson f. rasera
flavia do bonsucesso teixeira
rita martins godoy rocha 1

O construcionismo social, como um conjunto de orientadores para a


prática psicológica, tem ganhado visibilidade no contexto brasileiro
por meio de diferentes propostas, especialmente no campo da inter-
venção terapêutica. Podemos reconhecer, e com facilidade, as marcas
construcionistas na abordagem colaborativa (ANDERSON, 1997), nos
processos reflexivos (ANDERSEN, 1999), na terapia narrativa (WHITE,
2007), nos quais há uma visão não essencialista sobre a construção dos
problemas, uma ênfase no processo conversacional de transformação
desses e na postura curiosa e não prescritiva do profissional.

1
Agradecemos a todas as travestis as histórias e momentos compartilhados; a Ste-
fania, Lorena, Guilherme e Maria Carolina, estagiários-parceiros do projeto; e ao
apoio da Faculdade de Medicina, Instituto de Psicologia, Pró-reitoria de Exten-
são da Universidade Federal de Uberlândia, Ministério da Educação (PROEXT) e
CNPQ.

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290 | construcionismo social

Contudo, as contribuições construcionistas ao trabalho comunitário


têm recebido menor atenção. Apesar de podermos identificar algumas
experiências associadas ao discurso construcionista, tais como a do Pro-
jeto de Conversações Públicas (HERZIG; CHASIN, 2006), a do Imagi-
ne Chicago (BROWNE; JAIN, 2002), a da Terapia Social (HOLZMAN;
MENDES, 2003), bem como releituras construcionistas da terapia co-
munitária no contexto nacional (GRANDESSO, 2009), elas parecem ser
menos difundidas entre os psicólogos brasileiros.
Buscando explorar as possibilidades de utilização do discurso cons-
trucionista social no contexto comunitário, apresentaremos um relato
de nosso trabalho junto a um grupo de travestis. Esperamos poder refle-
tir sobre modos de construção de contextos de mudança comunitária a
partir de uma perspectiva construcionista social, por meio da descrição
das ações realizadas em um programa destinado a essa população, e da
análise dos desafios e dos recursos utilizados.
Visando alcançar tal objetivo, apresentaremos o contexto de nossa
atuação e suas demandas, a inspiração teórico-metodológica que nos
orienta, as respostas que inventamos para as questões trazidas pela nossa
relação com essa comunidade, e uma reflexão sobre os desafios enfrenta-
dos e sobre a utilidade do discurso construcionista para a nossa prática.

Trabalhando com a comunidade travesti

Nossa relação com a comunidade travesti se dá por meio de um progra-


ma de extensão universitária destinado a essa população, o “Em Cima
do Salto: saúde, educação e cidadania”, desenvolvido pela Universidade
Federal de Uberlândia. Este programa foi criado em 2006, sendo com-
posto por três projetos: “Conhecer para (trans)formar”, voltado a ações
de educação em saúde e mobilização social; “Há vidas nas calçadas”, de
prevenção em saúde nos locais de prostituição, e “Ambulatório de saúde
das travestis”, para assistência médica e psicológica. A equipe é composta

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capítulo 14 | 291

por antropóloga, psicólogos, médicos e estudantes de medicina e psicolo-


gia. Considerando os limites de espaço e o objetivo do capítulo, focaliza-
remos nossa apresentação nas atividades desenvolvidas junto ao projeto
“Conhecer para (trans)formar”, coordenado pelo primeiro autor do texto.
Atualmente, o programa atende um público de aproximadamente
120 travestis e transexuais. Elas2 são, em sua maioria, jovens provenientes
de camadas populares e têm os corpos moldados, seja pela ingestão
de hormônios, aplicação de silicone industrial ou uso de próteses de
silicone. Trazem no corpo um questionamento às normas de gênero,
desafiando os marcadores da diferença diante dos quais, muitas vezes,
experimentam situações de exclusão em diversos contextos da vida
social, seja da família, escola, trabalho e, até mesmo, do livre trânsito
pela cidade.
Elas são, em sua quase totalidade, profissionais do sexo e vivem
conjuntamente em pensões de travestis. Tal contexto de convivência
combina uma rotina de muita proximidade entre elas com uma relação
hierárquica com as donas de pensão. Além disso, suas interações estão
pautadas pelas convenções do mercado do sexo, na qual a competição
pelos clientes se faz presente. Essa forma de organizar o cotidiano gera
tanto relações de apoio e suporte como tensões e disputas.
Considerando o forte fluxo migratório característico da vivência
travesti no Brasil, elas são oriundas de diferentes regiões do país e per-
manecem na cidade, em sua maioria, por pouco tempo. É um modo de
viver de quem está sempre em trânsito, e que “se cruza” em diferentes
cidades, criando um tipo especial de conexão entre elas, marcada tanto
pela intensidade como pela fugacidade.3

2
Chamá-las no feminino é um ato político de reconhecimento do direito de serem
tratadas com a identidade de gênero assumida por elas.
3
A situação de deslocamento e de sociabilidade experienciada pelas travestis de
Uberlândia tem várias semelhanças com a enfrentada por travestis em outras cida-
des do Brasil. Para os interessados nessa temática, sugerimos a leitura de Benedetti
(2005), Peres (2005), Kulik (2008), Teixeira (2008), Pelucio (2009) e Rocha (2011).

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292 | construcionismo social

Esses modos de organizar a vida das travestis constituem um caráter


especialmente desafiador para o trabalho comunitário, seja pelo forte es-
tigma compartilhado por elas, pelo tipo de convivência cotidiana, pelo
trabalho no mercado do sexo e pelas formas peculiares de se relaciona-
rem, que criam um contexto de falta de reconhecimento e de mudança
constante do grupo. É a partir desse entendimento sobre a comunidade
travesti que buscamos criar um projeto comunitário com o objetivo de
promover a organização das travestis enquanto grupo para que busquem
uma melhor qualidade de vida e o respeito aos seus direitos.

O construcionismo social como inspiração


teórico-metodológica

O construcionismo social propicia e exige que repensemos tanto o


modo de entendermos as travestis quanto a prática profissional na co-
munidade. Esse duplo exercício nos incentiva a considerar seriamente o
convite construcionista e a reconhecer as implicações éticas e políticas
do nosso fazer. Ele promove a coerência de nossa ação profissional e
questiona a possibilidade de uma “prática construcionista” com sujeitos
e problemas “naturais” já dados, não construídos.

Tornando-se travesti

Falar das travestis a partir de uma perspectiva construcionista é, pri-


meiramente, reconhecer a construção social da sexualidade, comba-
tendo leituras individualizantes, essencialistas e psicopatológicas do
sexo, em geral, e da experiência travesti, especificamente. Infelizmen-
te, a literatura psi, muitas vezes, se junta ao coro dos promotores do
“bom sexo” a partir de um viés claramente normativo da sexualidade,
sustentando como saudável o sexo heterossexual, procriativo, privado,

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capítulo 14 | 293

monogâmico e não comercial, e desconfiando de outras expressões da


sexualidade.
Assumir uma perspectiva construcionista da sexualidade implica
uma série de posicionamentos do profissional: é questionar o discurso
da norma e afimar o caráter construído e não natural do sexo (VANCE,
1995); é resgatar as diferentes possibilidades de vivência da sexualida-
de em outros tempos históricos e lugares (LAQUEUR, 2001); é con-
siderar que a sociedade identifica e nomeia sensações, desejos, atos e
identidades, que passam a ser considerados como sexuais; é conceber
que não temos uma verdadeira e única identidade sexual interna e que
a expressamos no cotidiano, mas, ao contrário, que realizamos uma
performance de gênero/sexo que nos possibilita ser reconhecidos como
pertencendo a um gênero/sexo específico (BUTLER, 2003); é lembrar
que as categorias sexuais como homossexual, heterossexual ou bissexual
têm uma história muito recente e que servem para produzir hierarquias
sociais (FOUCAULT, 1977); é analisar quem ganha e quem perde com
determinadas descrições sobre as formas de viver a sexualidade.
Além desses posicionamentos sobre a construção da sexualidade, bus-
car um olhar construcionista sobre as travestis implica compreender sua
inserção social no contexto brasileiro. Uma breve análise sobre a situação
vivida por elas aponta para um acúmulo de desigualdade que as coloca em
posição de vulnerabilidade. Somando-se ao estranhamento social advindo
do questionamento travesti sobre as normas de gênero/sexo, o exercício da
prostituição as lança ainda mais para as margens da vida social, expondo-as
a momentos de intensa discriminação e violência (CARRARA; VIANNA,
2006). Tal situação se torna mais complexa à medida que identificamos
que, entre os diferentes grupos do movimentos LGBT, o das travestis ainda
encontra muitos desafios para sua efetiva articulação. Assim, a despeito
de algumas iniciativas governamentais recentes de combate à homofobia
e busca de uma atenção em saúde integral a essa população (CONSELHO
NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO, 2004; MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2010), a resposta social ainda é muito tímida.

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294 | construcionismo social

Esses breves apontamentos sobre a construção social da sexualidade e


o lugar social das travestis nos permitem considerar a dimensão política
dos discursos sobre si e destacar a relevância do trabalho comunitário,
criando condições para a necessária construção da possibilidade de coe-
xistir (GERGEN, 1998).

Inventando a prática comunitária

A construção dessa prática foi pautada por inspirações construcionistas


sobre a forma de se relacionar com o outro, em qualquer modalidade de
interação profissional, bem como sobre o trabalho em grupo.
No que se refere à relação com o outro, buscamos assumir uma postura
filosófica (ANDERSON, 1997), que nos orientou nos diferentes momen-
tos de interação com as travestis, em vez de nos munirmos de técnicas
específicas. Tal postura foi pautada por algumas ênfases construcionistas
para a prática (GERGEN; WARHUS, 2001); que fizeram com que nossa
ação fosse marcada pela investigação dos significados atribuídos pelas tra-
vestis ao seu modo de viver; pela valorização dos seus conhecimentos na
coconstrução das intervenções, num esforço de compartilhar e se corres-
ponsabilizar pelo projeto; pela compreensão da rede de relacionamentos
em que estão inseridas e que circunscreve suas possibilidades existenciais;
pelo reconhecimento da polivocalidade constituinte das descrições sobre
ser travestis, o que torna essa uma experiência múltipla; pela aposta na
potencialidade e nos recursos do grupo; por uma tentativa de criar ações
voltadas à realidade cotidiana do grupo; e por uma sensibilidade aos valo-
res e ao compromisso com o direito delas serem quem preferem ser.
Em relação ao trabalho de grupo, este foi tomado como prática dis-
cursiva, como uma forma de construir a realidade por meio da lingua-
gem (RASERA; JAPUR, 2007). Nosso foco voltou-se, então, para as for-
mas do grupo conversar e de como determinadas interações facilitavam
ou obstruíam a ação coletiva. O papel do coordenador do grupo era de

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capítulo 14 | 295

facilitar essas conversas, estimulando a abertura ao outro, a curiosidade


respeitosa, a reflexão conjunta e a tomada de decisão, num exercício
constante de construção de uma responsabilidade relacional (MCNA-
MEE; GERGEN, 1999). Havia um convite à liberdade e criatividade
para planejarmos diferentes tipos de atividades, conforme julgássemos
adequado para o momento e para o objetivo que nos propunhamos.

As in(ter)venções na comunidade: organizando e interagindo

A partir dessa postura construcionista e de nosso entendimento do tra-


balho em grupo, nossa ação com a comunidade travesti envolvia tanto
uma forma de organizar as atividades como um modo de interagir nas
atividades. O processo de construção das ações foi sendo inventado ao
longo de nossa história com as travestis, tendo diferentes configurações.
A seguir, apresentamos o modo que temos trabalhado recentemente.

Organizando as atividades

As atividades que realizamos se dividem em oficinas, circulação pela


cidade e mobilização social. Essa diversidade de tipos de atividades
responde a necessidades variadas e busca alcançar diferentes objetivos.
É na necessária articulação entre elas que acreditamos ser possível tra-
duzir de forma mais significativa as propostas construcionistas no con-
texto comunitário, pois envolve as relações das travestis entre si e com a
sociedade e sustenta uma visão multifacetada de mudança.
As oficinas são encontros realizados em uma sala da universidade, no
qual são debatidos assuntos escolhidos pelas travestis,4 de questões de

4
Recentemente, os encontros também têm sido realizados nas pensões de travestis.
Assim, o esforço de abertura da universidade às travestis se junta com uma maior
presença da universidade no contexto cotidiano delas.

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saúde (hormônios, drogas e prevenção a Aids) a aspectos da convivên-


cia (religião, prostituição, violência e ser travesti). Eles podem consistir
de conversas pouco estruturadas ao uso de filmes, exercícios vivenciais,
palestras e confecção de objetos. Consideramos que esta atividade per-
mite que se desenvolva o exercício do diálogo. Entendemos o diálogo
como uma forma particular de conversar que envolve a capacidade de
falar e ouvir, intercaladamente, com interesse e respeito pela opinião do
outro, de forma a gerar o mútuo entendimento. Buscamos construir um
ambiente no qual sejam enfatizadas as relações do grupo consigo mes-
mo, permitindo gerar o reconhecimento delas como um grupo e que
seja possível coordenar ações comuns.
A circulação pela cidade envolve visitas a parques, shoppings, cine-
mas, museus e pontos turísticos. Tais ações são realizadas durante o dia,
em locais públicos, de grande movimento. Elas permitem, por um lado,
oportunidades de lazer, ao qual as travestis têm pouco acesso numa ro-
tina de trabalho diário muitas vezes sem folgas semanais. Porém, mais
importante que isso, possibilitam que as travestis e a população da cida-
de experimentem dividir espaços comuns nos quais as travestis tipica-
mente não circulam. Por meio dessa ação, esboça-se um exercício inicial
de afirmação do direito a ir e vir e de produção de uma visibilidade que
questiona a naturalidade da exclusão, seja entre as travestis ou entre a
população.
A mobilização social está relacionada ao estímulo e suporte para o
desenvolvimento de ações coletivas voltadas à participação política das
travestis. Tais ações envolvem a discussão e preparação para participa-
ção em encontros de travestis (encontros nacionais e regionais de tra-
vestis); a definição, o planejamento e organização de eventos (encontro
regional de travestis e transexuais, reuniões entre autoridades policiais,
de saúde, de assistência e as travestis), bem como de campanhas com
diferentes objetivos (Dia da Visibilidade Trans, Campanha pelo Uso do
Nome Social no SUS). O suporte a essas ações se dá especialmente pelo
diálogo, questionamento e oferta de informações, buscando condições

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capítulo 14 | 297

para que elas sejam autoras no processo de decisão sobre as prioridades


e os rumos a serem seguidos. A mobilização social consiste num exercí-
cio da cidadania participativa para que as travestis possam se perceber
como sujeitos de direitos e ativamente participar de discussões e ações
para que se faça cumpri-los.5

Interagindo nas atividades

As ênfases construcionistas para a prática profissional, tipicamente


oriundas do contexto clínico, podem ser muito úteis para o cuidado
das relações no grupo no contexto comunitário. Na tentativa de ilustrar
como essa postura é buscada em todos os momentos, apresentaremos o
processo ocorrido na construção da oficina sobre violência. Tal oficina
não foi planejada, tendo um caráter inusitado, espontâneo e que respon-
dia a uma questão emergente vivida pelo grupo.
Durante a semana daquele encontro, uma das travestis mais ativas
no grupo havia sofrido uma grave agressão que a deixou hospitalizada.
Sabíamos do ocorrido e já tínhamos ido visitá-la no hospital. Quando as
outras travestis vieram para o nosso encontro marcado, uma delas tocou
no assunto. Perguntamos se queriam conversar sobre isso. O grupo se
dividiu entre querer falar e evitar o assunto. Contudo, havia uma ambi-
guidade que buscamos entender. Ao buscar entender melhor os motivos
para falar ou não, ouvimos que algumas não queriam pensar em um
assunto tão triste, e outras achavam que conversar não resolveria nada,
pois isso era parte da vida delas.
Preocupados em pensar sobre como era viver a partir dessa perspec-
tiva e buscando respeitar os limites expressos por algumas participantes,
propusemos que começássemos a conversar de forma exploratória. As-

5
De forma autônoma, as travestis passaram a se organizar formalmente por meio
de uma organização não-governamental, da qual o programa virou parceiro.

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298 | construcionismo social

sim, em vez de focarmos explicitamente na situação vivida pela parti-


cipante que não estava presente, e buscando abrir espaço para histórias
que não reproduzissem a sensação de impotência trazida pelo grupo,
pedimos que elas nos contassem sobre situações em que estavam em pe-
rigo e escaparam. Em resposta a essa pergunta, surgiram várias histórias
nas quais as travestis suspeitaram das ações de potenciais agressores e
inventaram saídas. Contavam como iam aprendendo a lidar com essas
situações. Buscando ampliar estas histórias, perguntamos sobre que di-
cas de segurança dariam para uma nova travesti. Rapidamente, várias
delas deram sugestões sobre como se comportar na rua e na situação de
trabalho. Afirmavam que assumir tais posturas faziam delas boas pro-
fissionais. Passamos a discutir, então, o que seria uma boa profissional.
Nessa conversa, pudemos refletir sobre as diversas fontes e formas de
violência que vivem, bem como os riscos que assumem e os recursos
para lidar com elas. Ao final da conversa, se propuseram a fazer um
panfleto com todas as dicas levantadas para distribuir entre todas as
travestis da cidade.
Nessa oficina, a partir do que fomos conversando, nos pautávamos
por alguns orientadores que apontavam os deslocamentos necessários
para a construção de uma nova posição do grupo frente ao tema da
violência. Assim, acreditávamos que era necessário sair de uma posição
de vítima rumo à construção de um projeto comum, na tentativa de
produzir uma ação transformadora. Entendíamos também que o foco
da conversa não deveria ser o indivíduo, ou seja, as características e
circunstâncias particulares daquela travesti agredida, mas algo que re-
metesse à dimensão relacional da situação de vida compartilhada por
elas. Além disso, buscamos não enfatizar as conversas sobre as falhas, as
culpas, as dificuldades e a impotência, mas explorar, destacar e enfatizar
a potencialidade de mudança a partir dos recursos das travestis. Esses
orientadores supunham que privilegiássemos não apenas o conheci-
mento profissional, mas os múltiplos conhecimentos expressos pelas
travestis, na criação de uma parceria entre todos nós.

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capítulo 14 | 299

Os desafios

Por meio das atividades realizadas e da postura assumida, tem sido


possível sustentar a relação com as travestis, num processo de mu-
dança que envolve diferentes aspectos de suas vidas. Contudo, esse
trabalho apresenta desafios que exigem nossa criatividade, reflexão
e, por vezes, reconhecimento dos limites de nossa ação. Dentre eles,
destacamos o instável sentido de grupo e a naturalização da exclusão
social e da violência.
A instabilidade do grupo se dá tanto pelo fluxo migratório das tra-
vestis, que inviabiliza a permanência de longo prazo e faz o grupo sem-
pre ter novos membros, como pela competição entre os investimentos
nos projetos pessoais, como o de transformação do corpo travesti, e a
construção de ações voltadas ao bem comum, que questiona priorida-
des e ameaça a coesão e o desenvolvimento do grupo.
A naturalização da exclusão social e da violência pode ser percebida
tanto pelas formas de se relacionar entre as travestis como delas com a
sociedade. A sociedade discrimina e elas se sentem discriminadas, de tal
forma que, por vezes, julgam que não devem estar ou participar de situa-
ções e eventos da vida cotidiana de uma cidade. Da mesma forma, a alta
frequência e a intensidade da violência a que estão submetidas e a baixa
proteção que possuem a tornam um aspecto esperado, uma parte da “vida
travesti”. Essa naturalização reverbera em ações de precaução, mas tam-
bém em posturas violentas no cotidiano.
Trata-se de desafios resultantes do modo de inserção das travestis
na sociedade brasileira, cuja mudança envolveria uma reflexão radical
sobre os sentidos de ser travesti. Em uma perspectiva construcionista,
nossa ação é circunscrita pelas características históricas dos sistemas de
significação. Nesse sentido, é necessária uma mudança de múltiplas di-
mensões, envolvendo de uma revisão do sistema de gênero-sexo à trans-
formação das condições sociais, visando a construção de uma efetiva
democracia brasileira.

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300 | construcionismo social

Os recursos construcionistas para o trabalho


comunitário com as travestis

Por meio dessa experiência, das propostas criadas e dos desafios enfren-
tados, pudemos fazer um exercício de aproximação do discurso constru-
cionista às práticas na comunidade. Para além da postura profissional e
do entendimento do grupo, no campo comunitário, o construcionismo
favoreceu um olhar que combinava uma inteligibilidade relacional com
uma sensibilidade cultural.
Esse olhar permitiu que desenvolvêssemos orientadores específicos
para o trabalho com as travestis, quais sejam:
a) desconstruir e questionar a patologização da experiência tra-
vesti: pautado na afirmação da construção social da sexualidade,
o ser travesti foi entendido como um modo de vida cultural, cuja
existência não era vista como problemática, necessitando de aju-
da ou solução;
b) criar conexões entre e com as travestis: o foco do trabalho
comunitário se deu na busca de fortalecimento e ampliação das
relações vividas pelas travestis, seja com outras travestis, com a
polícia e com os serviços sociais e de saúde da cidade;
c) sustentar várias possibilidades de ser travesti: a equipe reco-
nhecia o direito à prostituição e a legitimidade das decisões da
travestis sobre os modos preferíveis de viver, ao mesmo tempo
que estimulava uma sociabilidade para além do mercado sexual,
em direção a outras possibilidades de se relacionar como grupo,
estar na cidade e ser travesti;
d) abrir-se às várias formas de mudança: considerando os modos
particulares de comunicação das travestis, buscamos nos atentar
para os diferentes indicadores de mudança no grupo, que não
passavam necessariamente pela produção de discursos organiza-
dos, mas envolviam a construção de uma ética de cuidado de si
e do outro.

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capítulo 14 | 301

Tais implicações apontam que a aproximação com o construcionismo


se deu por certos recortes privilegiados mais úteis às questões trazidas
pelo trabalho com as travestis. Não se trata, assim, de uma ampla e pro-
funda reflexão teórico-metodológica, mas de um exercício inicial que es-
pera por novos desenvolvimentos. Nesse sentido, reconhecemos também
que, ao descrever esse modo de trabalhar, propomos uma forma especí-
fica de entender o construcionismo. Ele não se refere a uma tradução ne-
cessária do construcionismo para o contexto comunitário, mas da forma
local e pessoal em que o construcionismo se mostrou útil para nós.
Acreditamos, contudo, que tal relato mostra a possibilidade de apro-
ximação do construcionismo social à comunidade. Esperamos que ele
sirva para ampliar o imaginário das práticas construcionistas e enrique-
cer o próprio discurso contrucionista, ampliando fronteiras, questio-
nando limites e apontando o desenvolvimento de respostas aos impas-
ses trazidos por essa aproximação.

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PARTE III

Construcionismo social e formação profissional

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Capítulo 15
Formação: um processo colaborativo
entre formandos e formadores
helena maffei cruz
azair t. vicente
marília de freitas pereira

Quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado


forma-se e forma ao ser formado.
paulo freire

Neste capítulo, apresentamos ao leitor um curso de formação de tera-


peutas familiares sob uma perspectiva construcionista social. Descre-
vemos a construção do nosso percurso como formadoras de terapeutas
familiares e refletimos sobre quais características do curso apresentado
possibilitam sua descrição como construcionista social.
Para tanto, trataremos primeiramente dos principais organizadores
dos cursos de terapia familiar no Brasil, para depois descrevermos o per-
curso que nos permite assimilar o pensamento sistêmico (BATESON,
1991) como metáfora da noção de família como sistema gerador de sig-
nificados – uma construção linguística (ANDERSON; GOOLISHIAN,
1988), apresentando os principais aportes teóricos e metodológicos que
informam nossa proposta de formação. Em seguida, descreveremos os
pressupostos das nossas práticas, a forma como o curso se desenvolve,
além das ampliações possíveis e dos limites.

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306 | construcionismo social

A formação em terapia familiar no Brasil:


entre escolas e epistemologias

A década de 1980 é apontada, por autores que historiam o movimento


no Brasil, como muito significativa. Terapeutas que iniciaram esse tipo
de atendimento, em geral formados no exterior, formalizaram espaços de
discussão de ideias e questões sobre uma prática ainda nova, cujos fun-
damentos provinham das orientações de seus iniciadores, incluindo con-
ceitos de psicodinâmica, da teoria geral dos sistemas, da cibernética e da
comunicação (HINTZ; SOUZA 2009).
Segundo Ferro-Bucher (1989), no Brasil, as instituições de formação
em terapia familiar constituíram-se por meio da integração de diversas
teorias, apresentando aos alunos escolas internacionalmente reconhe-
cidas. A autora aponta a coexistência confortável de formadores com
um “ecletismo teórico”, com baixa preocupação em definir quais as con-
tribuições específicas de cada teoria para a terapia familiar no Brasil.
Observamos que o artigo em questão foi escrito numa década em que o
movimento da terapia familiar começava a ter voz. Assim, é importante
apontar que esse ecletismo teórico inicial abriu as portas para autores
representativos de diferentes escolas em terapia familiar e para a tradu-
ção de seus livros, proporcionando um leque de escolhas para alunos e
formadores em um processo democrático de aprendizado.
Féres-Carneiro (1996, p. 53-54), historiando os principais enfoques
da terapia familiar sistêmica a partir dos anos 1950, afirma que:

A partir do enfoque sistêmico, várias escolas de terapia familiar se de-


senvolveram, entre elas a Escola Estrutural, a Estratégica, a de Milão e,
mais recentemente, a Escola Construtivista. [...] No final da década de
70, utilizando os conceitos da cibernética de segunda ordem e de sua
aplicação aos sistemas sociais, surge a Escola Construtivista.

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capítulo 15 | 307

O que a autora nomeia como Escola Construtivista agrega terapeu-


tas influenciados pelas ideias sobre sistemas autônomos (MATURA-
NA, 1990), como podemos ver na mudança proposta por Gianfranco
Cecchin e Luigi Boscolo. Esses psiquiatras de Milão iniciaram suas
atividades como terapeutas familiares em um movimento de mudança
epistemológica, abandonando as premissas da psicanálise em sua prá-
tica no tratamento de casos graves de crianças e adolescentes (como
anorexia e outros problemas classificados como psicose), e adotando
o pensamento sistêmico. Eles criaram um modelo de terapia familiar
com suas colegas, também psiquiatras, Mara Selvini Palazzoli e Giuliana
Prata (PALAZZOLI et al., 1988), conhecido como Terapia Sistêmica de
Milão. Alguns anos mais tarde, essa prática se expandiu pela Europa e
EUA através de cursos ministrados por seus fundadores, e Cecchin e
Boscolo fizeram outra importante mudança epistemológica questionan-
do a separação entre o sistema familiar/observado e o terapeuta/obser-
vador (CECCHIN, 1989). Tais terapias são conhecidas como “terapias
de segunda ordem” (HOFFMAN, 1985), informadas pela metáfora da
cibernética de segunda ordem ou cibernética dos sistemas observantes
(Von FOERSTER, 1991).
Acreditamos ser relevante discriminar uma abordagem terapêutica,
eventualmente nomeada por seus criadores ou seguidores como “escola”,
de perspectivas geradas por concepções sobre a construção do conhe-
cimento, como são os construtivismos e construcionismos1, posições
filosóficas que propõem uma leitura crítica dos discursos sobre família,
terapia e problema, geradoras das práticas reflexivas, das terapias narra-
tiva e colaborativa, poucas vezes descritas como “escolas”.
Iniciamos a primeira turma do curso de formação de terapeutas fa-
miliares, no que se tornaria o Instituto Familiae, em São Paulo, em 1991.

1
Para uma leitura mais detalhada dos conceitos e diferenças descritos como cons-
trutivismos e construcionismos, sugerimos os textos de Grandesso (2000) e Rasera
e Japur (2007).

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308 | construcionismo social

Propondo um relato reflexivo sobre que características do curso te-


cemos e retecemos ano a ano (e que possibilitam sua descrição como
construcionista social), pretendemos deixar claro que, em nossa com-
preensão, uma questão precede a integração ou transgressão de teorias,
que é a questão sobre o que entendemos por “teoria”. Sob a perspectiva
pós-moderna, teorias são discursos que ganham seu estatuto por acordos
realizados entre membros de uma dada comunidade, legitimados no lu-
gar de cientistas. Isso não significa que sejam melhores por serem verda-
deiras, pois é impossível comprovar quão bem retratam a realidade, senão
através de outro discurso sobre “realidade”. As teorias, então, passam a ser
entendidas como discursos que justificam toda e qualquer prática. A op-
ção por um determinado discurso teórico como organizador da prática é
uma postura filosófica (ANDERSEN, 1991; ANDERSON, 2011a, 2011b).
O construcionismo social, como teoria sobre teorias ou como postu-
ra filosófica (ANDERSON, 2011a, 2011b), não se ocupa de práticas es-
pecíficas e, portanto, não oferece modelos ou técnicas para se trabalhar
no campo das psicoterapias. Assim, o nosso percurso constituiu-se na
busca de premissas orientadoras e de ferramentas clínicas úteis para a
formação na prática escolhida: terapia familiar.
A nomeação de Curso de Formação, em psicologia, insere-se na
tradição da formação de psicanalistas, que compreende o estudo das
teorias psicanalíticas, da prática do aluno como psicanalista e da sua
análise pessoal.
Em artigo que trata da interdisciplinaridade na “formação” dos te-
rapeutas familiares, Osório (2008) discute “formação” como conceito
equivocado. Ele considera o termo inadequado, do ponto de vista sis-
têmico, por sugerir que o conhecimento é transmitido linearmente de
professor para aluno. Osório problematiza também outro termo consa-
grado na área: supervisão.
Rosas e Rapizo (2011), em artigo sobre a formação de terapeutas e
construcionismo social, discutem a manutenção dos termos formação
e supervisão, embora impregnados por concepções hierárquicas, “não

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capítulo 15 | 309

coerentes com a visão colaborativa e dialógica do aprender, por fazerem


parte da tradição discursiva neste campo” (p. 54).
Em nossos cursos de Formação de Terapeutas de Família e Casal,
mantivemos a palavra “formação”, mas enfatizamos os processos relacio-
nais e discursivos que constituem esse processo. Entretanto, abolimos a
palavra supervisão pela conotação do saber superior, do “super-olhar” do
supervisor, e adotamos a palavra interlocução (MOREIRA et al., 2002).
A interlocução teoria-prática é um processo constante de diálogo, tanto
professor-alunos quanto alunos-alunos, sobre como as teorias, sendo vo-
zes que nos habitam, estão implícitas na nossa prática. As vozes não são
apenas as dos mestres escolhidos, mas também outras tantas presentes
em nossos repertórios interpretativos (MEDRADO, 1998), que incluem
nossas relações afetivas familiares e com outros significativos.

Aportes teóricos e metodológicos que informam


nossa proposta de formação

Olhando retrospectivamente para a história do grupo2 que iniciaria o


curso de formação de terapeutas familiares, encontramos uma caracte-
rística que seria nossa marca: ao tomar contato com novas maneiras de
fazer terapia, procuramos imediatamente praticar o que estudávamos.
Nossa imersão nessa orientação deu-se em um curso3 que fizemos jun-
tas, em agosto de 1989, começando pelo workshop inicial, “Laboratorio
de Investigación acerca de la Familia de Origen del Terapeuta (FOT)”, em
que uma forma diferente de escuta (não interpretativa) de nossas histórias

2
O grupo iniciante do Instituto Familiae era composto por Azair Vicente, psiquia-
tra, e Helena Maffei Cruz, Marília de Freitas Pereira, Neyde Bittencourt de Araujo,
Rose Riskalah Nahas e Vania Curi Yazbek, psicólogas.
3
Referimo-nos ao II Curso de Verão de Terapia Familiar Sistêmica, oferecido em
agosto de 1989, em Tepoztlán, México, pelo Instituto Latino Americano de Terapia
Familiar (Ilef), coordenado por Estela Troya e Ignatio Maldonado.

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310 | construcionismo social

familiares revelou-se ampliadora, pela investigação curiosa de aspectos


até então pouco enfatizados nas narrativas de cada participante sobre sua
família de origem. Foi uma experiência de reconstrução de significados
que ampliou narrativas sobre as nossas famílias de origem e, portanto,
sobre nós mesmas.
A marca constante do curso foi a de aprendermos primeiro com
a prática. As premissas e os conceitos do que era realizado eram no-
meados em seguida. Essa forma generosa dos mestres abrirem a porta
e permitir que sentássemos “na sala de atendimento” configurava uma
mudança nas relações de ensino-aprendizagem tradicionais, para outras
mais democráticas.
O Congresso Nacional de Terapia Familiar, realizado no Chile, em
1990, comemorava o fim da ditadura militar no país. Celebrar a demo-
cracia implicava, naquele contexto, perceber como, em nossas ações,
também podemos ser autoritários ao supor que sabemos como as pes-
soas que nos procuram devem viver suas vidas.
Nesse ambiente, conhecemos modos inusitados de conversação:
Carlos Sluzki (1992) buscava ativamente construir novas histórias com
os elementos que a família lhe apresentava, introduzindo outras ênfa-
ses, ampliando um detalhe, iluminando outros aspectos. Mony Elkain
(1989) questionava nossas preferências por um aspecto ou outro da his-
tória que o cliente trazia. Intersecções e Ressonâncias apareciam como
novas metáforas para voltar à sempre presente questão da (im)possibi-
lidade do terapeuta ser neutro. Humberto Maturana (1990) revolucio-
nava o conceito tradicional de conhecimento, implicando aquele que
conhece no ato de conhecer, enfatizando que o conhecimento não é pu-
ramente racional, pois todo ato de distinção parte de uma emoção e que
a chamada objetividade deve ser posta entre parêntesis.
No mesmo ano, enquanto fazíamos um curso no Instituto de Terapia
Familiar do Rio de Janeiro, entramos em contato com a Escola de Milão
(PALAZZOLI et al., 1988) e com as ideias de Bateson (1991). Parte dos
pressupostos da escola de Milão, como a crítica às linguagens que afir-

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capítulo 15 | 311

mam como “as pessoas são” e a proposta de uma compreensão contex-


tual e relacional, vinha ao encontro de nossas buscas, ao mesmo tempo
em que o formato da sessão (que era interrompida em certo ponto com
a retirada dos terapeutas que vinham entrevistando a família, para uma
conversa privada com os colegas “atrás do espelho”) e, principalmente,
o emprego de prescrições à família eram por demais alheios a nossas
práticas até então.
Sem o saber, estávamos mais propensas a trilhar o caminho de Cec-
chin e Boscolo (1980, 1989) quando deixaram de lado intervenções pa-
radoxais4 em busca da criação de sistemas terapêuticos abertos a todas
as vozes presentes, a todas as hipóteses inferidas das conversas possi-
bilitadas por perguntas que, de organizadoras das sessões, passavam a
ferramentas linguísticas úteis.
Ao iniciarmos, em 1991, a primeira turma de formação, não sabía-
mos muito bem qual seria o percurso, mas queríamos levá-la a questio-
nar o que Bateson (1991) nomeava de “princípios dormitivos”, explica-
ções que embotam a curiosidade e impedem o avanço da compreensão.
Se quiséssemos escolher uma palavra-chave para sua obra, seria relação.

A aprendizagem dos contextos da vida não deve ser examinada interna-


mente, mas como uma relação entre dois seres. A relação não é interior
à pessoa. Não tem sentido falar de “dependência”, “agressividade”, “or-
gulho” etc.; todas essas palavras têm sua raiz no que ocorre entre pes-
soas, não em algo presumidamente situado dentro de uma pessoa. [...]
Somente aferrando-nos rigorosamente à primazia da relação podemos
evitar as explicações dormitivas (BATESON, 2001, p. 118-9).

4
O grupo de Milão iniciou seu trabalho com famílias sob as premissas de Jay Haley
sobre a comunicação paradoxal característica das famílias com um membro esqui-
zofrênico que eles observavam. Desenvolveram um modelo de atendimento que in-
cluía uma intervenção paradoxal à família, para forçá-la a questionar seus padrões
comunicacionais. Descrevem seu percurso teórico e prático no livro Paradoxo e
contraparadoxo (PALAZZOLI et al., 1988).

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312 | construcionismo social

Pensar sistemicamente era pensar relacionalmente, portanto, um pré-


requisito para pensarmos “família”.
Marcelo Pakman (1991) mostrou-nos a cibernética como uma epis-
temologia ao introduzir cada capítulo do livro Sementes da cibernética,
de Heins Von Foerster (1991), aproximando-os com vocabulários mais
familiares a nós terapeutas. Pakman considera que essa epistemologia
oferece os fundamentos para uma teoria do observador que influencia
profundamente o campo da terapia, perguntando: “Que problema po-
deria ser mais central ao terapeuta do que o de ser, ao mesmo tempo,
participante e observador?” [...] Von Foerster define claramente como
tal teoria do observador teria que ser necessariamente uma teoria social
e linguística” (p. 83). Tais discussões sobre teorias facilitaram o nosso
encontro com o que veio em seguida.
Assim, em um workshop organizado pelo Instituto Interfás, em Bue-
nos Aires, em 1993, Kenneth Gergen nos apresentou os pressupostos do
construcionismo social. Resumindo em suas palavras:

O que pensamos ser conhecimento do mundo e do eu tem sua origem


nos relacionamentos humanos. O que pensamos ser verdadeiro ou falso,
objetivo ou subjetivo, científico, em oposição a irracional, é criado por
grupos de pessoas histórica e culturalmente situados. [...] As explica-
ções e descrições do mundo são formadas dentro da linguagem, do que
Wittgenstein denomina jogos de linguagem (GERGEN, 2009, p. 11-13).

Sob tais premissas, “realidade” é sempre um acordo linguístico his-


tórico e sociocultural. Algo dessas ideias dialogava com o que vínha-
mos desenvolvendo, mas a ideia de “múltiplos selves” ou self narrativo
era muito diferente da premissa de self como uma unidade, conceito
da psicologia moderna incorporada em nossas práticas e na linguagem
cotidiana.
Não sabemos se e como teríamos possibilidade de pôr em prática
esses pressupostos teóricos se não tivéssemos tido o privilégio de conhe-

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capítulo 15 | 313

cer Tom Andersen, logo após o encontro com Gergen. Esse encontro
tornou-se a bússola para os rumos do Familiae. O caminho, as propos-
tas e a maneira de Tom estar conosco e com as pessoas que atendeu na-
quele encontro ficaram indeléveis em nossos olhos, ouvidos e corações.
Além do que aprendemos, sentimo-nos legitimadas em nossa dificul-
dade com os modelos de terapia familiar até então oferecidos. Descobri-
mos que nossa busca e nossos desconfortos eram semelhantes aos dele e
de sua equipe na Universidade de Tromso, na Noruega, que introduziram
uma nova maneira de atender famílias denominada Processos Reflexivos.
Tom Andersen (1991) não considera o desenvolvimento de con-
versas terapêuticas reflexivas como uma nova criação intelectual (uma
teoria), mas como fruto de seu mal-estar com a prática então realizada
com as famílias pela sua equipe, no começo dos anos 1980. Em suas
palavras: “O que estávamos fazendo era dizer para elas como deveriam
viver suas vidas. E me perguntei: É assim que eu quero viver minha vida
profissional?”
A resposta veio com uma nova maneira de trabalhar, denominada
Equipe Reflexiva, depois renomeada como Processos Reflexivos (1991)
pela variedade de formatos em que pode acontecer, sendo a Equipe
Reflexiva apenas um deles. A principal mudança desse processo foi a
passagem de uma relação hierárquica, com predominância da voz do
profissional, para o que chamaram de relação heterárquica, ou em ter-
mos correntes, democrática ou igualitária, onde a voz do cliente é de
igual valor.

O processo da equipe reflexiva compreende o deslocamento entre falar


e escutar. O falar a outros pode ser descrito como uma “conversação
exterior”. Enquanto escutamos aos outros falarem mantemos conosco
uma “conversação interna”. Essa alternância permite que um tema em
pauta passe por perspectivas de várias conversações interiores e exte-
riores. Essas diferentes maneiras de entender uma questão podem criar
novas descrições sobre ela. (ANDERSEN, 2005, p. 47)

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A adoção de processos reflexivos não apenas nos atendimentos, mas


nas avaliações, nas conversas entre dois professores em aula, nas consul-
torias e nas interlocuções clínicas tornou-se a principal marca de nossas
atividades na coordenação dos cursos de formação de terapeutas fami-
liares (CRUZ, 2007).
Nesse caminho, outras ferramentas linguísticas têm estado presen-
tes. Anderson e Goolishian (1988), ao abandonarem a metáfora ciber-
nética por considerá-la limitante e mecanicista, conceituaram os siste-
mas humanos como geradores de linguagem e significado, afastando-se
das noções modernistas de objetividade e narrativa universal.
Sua prática é orientada por uma concepção de problema como aqui-
lo que é assim descrito pelo cliente, não como uma definição a priori de
alguma teoria do terapeuta; pelo uso da linguagem do cliente, não do
jargão profissional. Esses autores apresentam a posição de “não saber”
como a postura desejável de um terapeuta que entende a terapia como
uma conversa colaborativa na qual “o cliente é o especialista” (ANDER-
SON; GOOLISHIAN, 1993) – afirmação em que “especialista” significa
conhecedor de sua própria vida e história, assim como de suas tentativas
de solucionar problemas.
Tal perspectiva encoraja relacionamentos colaborativos de terapeu-
ta-cliente menos hierárquicos e autoritários, gera práticas que respei-
tam os significados construídos pelo cliente em seus relacionamentos
prévios, informadas pela compreensão de que o conhecimento é sem-
pre construído e negociado em relações, e propõe uma relação em que
novos significados podem redescrever situações antes nomeadas como
problemáticas, dissolvendo o que era “problema”.
“Não saber” é um conceito enganadoramente fácil. Ensiná-lo é im-
possível. Vivê-lo com nossos alunos é o nosso desafio como formadores
(CRUZ, 2011).
Semelhante compreensão da linguagem como geradora, ampliadora
ou limitadora de possibilidades de ação é encontrada na chamada abor-
dagem narrativa, desenvolvida por Michael White e David Epston (1990).

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capítulo 15 | 315

Esses autores descrevem como as pessoas dão sentido a suas vidas organi-
zando a experiência em sequências temporais, narrativas que proporcio-
nam senso de continuidade e sentido. O seu trabalho terapêutico parte da
premissa de que a experiência é sempre mais rica do que o relato, e que
a exploração de aspectos não relatados, como exceções a modos usuais
de agir, desafia descrições empobrecedoras de si mesmo, sancionadas so-
cialmente. Utilizando a ferramenta linguística que denominaram “exter-
nalização do problema”, os autores propõem separar a maneira de agir
narrada pelo cliente como “modos de ser” (como por exemplo, tímido,
autoritário), para assim explorar em que situações a timidez ou o autori-
tarismo surgem, quem colabora para isso, quem ajuda a que estejam sob
controle. Eles constroem, conjuntamente com seus clientes, narrativas al-
ternativas a partir de exceções, resultados únicos que permitem à pessoa
desafiar a narrativa dominante, ampliando suas possibilidades de ação.
A sua prática tem um sentido político mais claro, atenta aos discursos
dominantes que afirmam o que é verdadeiro, permitido etc.

Como fazemos

A partir das ideias que descrevemos acima, da nossa prática como te-
rapeutas e do entendimento do conhecimento como algo que construí-
mos na linguagem e na interação com outros, pensamos a formação
do terapeuta como um processo dialógico – um espaço conversacional
onde professores e alunos “fazem coisas juntos” – um contexto colabo-
rativo de aprendizagem (MCNAMEE, 2006).
Privilegiamos, como organizador de nossas ações, a construção de
contextos facilitadores de conversas colaborativas (ANDERSON, 2011a,
2011b) que favorecerão a negociação de significados de aprendizagem,
terapia, família, casal, relação, diálogo, ética, responsabilidade etc.
Os ingredientes propiciadores destas conversas são inspirados nos
trabalhos de Tom Andersen. Para favorecer o desenvolvimento da ca-

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316 | construcionismo social

pacidade reflexiva, entendida como um perguntar-se sobre suas crenças


e emoções que emergem nas conversações com o outro, convidamos os
alunos a:
• agir como coautores desse contexto de conversação, procurando ge-
rar uma postura colaborativa, mais comprometida, autônoma e res-
ponsável;
• escutar as diferentes vozes, possibilitando a cada participante (re)
conhecer suas crenças e significados como possíveis recursos para
a construção de novas descrições e ações, mais úteis na sua prática;
• privilegiar o uso de uma linguagem baseada nas habilidades e com-
petências, não nas carências, o que constitui uma ação com força
suficiente para transformar um contexto;
• reconhecer e se apropriar de suas habilidades e recursos.

Nosso público

O curso é oferecido a profissionais da área da saúde e educação que


exercem atividades nas quais as relações familiares estão presentes.
Aqui, o significado de família é um sistema cuidador, como profissio-
nais de abrigos e hospitais, não apenas a família biológica.

Seleção como escolha mútua

A seleção é feita por uma entrevista, entendida como uma oportunidade


de conversa entre a nossa proposta e o interesse, a expectativa e a disponi-
bilidade do candidato. Apresentamos a perspectiva teórica e as condições
de prática supervisionada, duração, carga horária, horários e instrumen-
tos de avaliação do aluno e do curso. Também é enfatizada a nossa expec-
tativa em relação à participação e compromisso do aluno com o curso.
Por outro lado, convidamos o aluno a falar sobre seu percurso profissional

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capítulo 15 | 317

e que questões ou desafios da sua prática geraram/estimularam a procura


pelo curso. Desta forma, buscamos propiciar uma escolha de mão dupla,
favorecedora de uma posição de autoria e compromisso.

O curso

O curso dura quatro anos e está constituído por aulas teóricas, grupos
autogeridos, atendimentos na clínica social do instituto e interlocução
desta prática. A introdução do aluno neste novo paradigma é feita com
a ajuda de nossos parceiros teóricos, apresentados nas aulas ao mesmo
tempo em que se desenvolvem as conversas entre professores e alunos.
É esta produção relacional de cada turma que informa a escolha do tex-
to, em uma estrutura teórica e com autores que norteiam o percurso
da formação. Os textos são considerados parceiros conversacionais que
ampliam o entendimento de cada um sobre suas práticas (PEREIRA;
RIGHETTI, 2009). Compartilhamos com Paulo Freire (1996) a ideia de
que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades
para a sua própria produção ou a sua construção”.
Esse caminho e a escolha dos teóricos parceiros têm sido construí-
dos ano a ano, como resultado da nossa prática e da reflexão sobre ela.
Além dos autores construcionistas, textos de sociólogos, antropólogos,
psiquiatras e outros cientistas sociais são apresentados para a discussão
da construção social da família, infância, adolescência, doença mental,
e outros temas que se apresentam na clínica, como divórcio, adoção,
doença crônica e morte na família. Dialogamos com autores da área da
terapia familiar com outras orientações, pois as famílias que nos procu-
ram trazem suas histórias permeadas de vocabulários presentes na so-
ciedade em geral e nos discursos das diferentes áreas do conhecimento,
especialmente medicina, educação e psicologia. A pergunta orientadora
para essas leituras é: qual a utilidade desse discurso e que ferramentas
conversacionais ele oferece?

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O diálogo com o discurso diagnóstico da psiquiatria requer espe-


cial cuidado para não cairmos em postura incoerente com o próprio
discurso construcionista e negarmos ou desqualificarmos saberes legi-
timados socialmente e potencialmente úteis. É diferente a posição de
um psiquiatra que colabora com seu paciente e a família buscando en-
contrar alívio para sintomas causadores de grande sofrimento por algo
nomeado por ele como esquizofrenia, daquela que nós, terapeutas fami-
liares, podemos inadvertidamente ocupar frente a um “esquizofrênico”,
tomando a doença pela pessoa. O discurso do diagnóstico psiquiátrico
transforma-se em “discurso do déficit” (GERGEN, 1996), dependendo
do seu uso.
A organização dessas conversas, em geral, segue um formato costu-
meiro nas atividades do Familiae:
• momento individual: cada um faz suas reflexões sobre a leitura e esco-
lhe as questões e comentários sobre ideias e conceitos que gostaria de
compartilhar com o grupo. Falar sobre como foi afetado pela leitura e
como o texto conversa com sua prática clínica amplia as conversações;
• momento nós: em pequenos grupos, os alunos compartilham suas re-
flexões e nomeiam as dúvidas e comentários que gostariam de relatar
a todos. O relato é feito por alguém escolhido pelo pequeno grupo;
• momento todos: é o momento de compartilhar impressões, afetações,
comentários, dúvidas e entendimentos. Os professores compartilham
sua compreensão das ideias e conceitos do texto e falam da sua utilida-
de como referência ou ferramenta para a prática clínica.

Dessas conversas, costuma surgir a indicação de leituras comple-
mentares que ajudam ou ampliam o entendimento das ideias discutidas
na aula.
Um dos recursos que usamos na criação de formatos conversacio-
nais, e que tem se mostrado útil, é a escolha de trabalho em dupla
de professores nas salas de aula e nas demais atividades, sempre que
possível. Tal escolha baseia-se na crença da construção relacional do

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capítulo 15 | 319

conhecimento, oferecendo aos alunos a possibilidade de participar de


diálogos onde as diferenças são negociadas e propiciadoras de novas
reflexões e conhecimentos. Assim, tanto a preparação da aula (que in-
clui a escolha de texto, exercícios, trabalhos e formato da conversa a
serem propostos) como o diálogo e/ou reflexão da dupla (sobre ideias,
caminhos e dúvidas) na presença dos alunos favorecem o enriqueci-
mento e ampliação de possibilidades de entendimentos. A responsa-
bilidade pelo resultado desta prática não é dos professores nem dos
alunos isoladamente, mas do que aconteceu entre eles, do que cons-
truíram juntos. Nas palavras de Sheila McNamee:

Em vez de colocar meu foco sobre o conteúdo dos meus cursos, estou
agora mais centrada na construção de um senso de comunidade na mi-
nha sala de aula. Eu entro em cada curso perguntando como os alunos e
eu vamos nos “conectar” para que juntos possamos criar um sentido de
aprendizagem, geração de conhecimento, e de transformação pessoal e
social (MCNAMEE, 2006, p. 9).

Grupos autogeridos

Em 2005, participamos de um processo de colaboração entre profissio-


nais do norte da Europa e da América do Sul, coordenado por Tom
Andersen, em um programa educacional de geração de redes e relações
colaborativas (ANDERSEN; GARCIA, 2007).
Nesse programa, a proposta era que os alunos se reunissem em três
encontros sem a presença dos professores – grupos autogeridos (GA) –
e em um encontro com os professores. A partir de então, temos adotado
os grupos autogeridos como uma experiência importante na criação de
uma comunidade colaborativa de aprendizagem (PEREIRA; RIGHETTI;
IRANI, no prelo). Pensamos que as palavras de uma aluna podem des-
crever melhor esta importante ferramenta:

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320 | construcionismo social

A experiência do grupo autogerido foi fundamental para a construção


de um ambiente de trabalho colaborativo em todas as demais atividades
que participei durante o curso [...] Mas, na ordem de importância, surge
em primeiro plano o desenvolvimento de uma vivência de espaço de-
mocrático e acolhedor, onde saberes e fazeres de cada participante são
validados e as discordâncias e diferenças tratadas com respeito e cuida-
do (CRUZ, 2011, p. 80).

Os GA possibilitam a transformação da relação habitualmente hierár-


quica entre professores e alunos em relações heterárquicas e colaborativas.
Parafraseando Anderson e Goolishian (2007), o aluno e sua prática são
os especialistas, e nós, professores, somos interlocutores participantes do
processo de aprendizado. Entendemos a proposta dos grupos autogeridos
como favorecedora na constituição de sujeitos responsáveis pelas deman-
das e desafios do seu processo (PEREIRA; RIGHETTI; IRANI, no prelo).

Prática clínica e interlocução

A prática clínica do curso compreende três tipos de atendimentos:


• atendimento feito pelos alunos em sala de aula;
• atendimento feito pelos alunos no GA;
• atendimento feito pelos alunos na clínica do Familiae.

O atendimento feito pelos alunos acontece durante o período de


aula, em subgrupos que constituem equipes terapêuticas, composta por
dois terapeutas de campo e dois ou três terapeutas na equipe reflexiva
(ER). Participa deste atendimento a docente responsável pela interlo-
cução dos atendimentos nessa equipe, podendo participar da ER ou na
posição de participante silenciosa.
Outro formato é o atendimento feito pelos alunos nos GA: dois alu-
nos atendem como terapeutas de campo enquanto os outros membros

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capítulo 15 | 321

do grupo assistem. Após o atendimento, todos realizam uma conversa


reflexiva sobre como o atendimento afetou cada um e, a partir da iden-
tificação de como foi tocado, que contribuições pensam que é útil ofere-
cer para esta equipe de atendimento.
Outra possibilidade de prática clínica é o atendimento de famílias ou
casais inscritos na Clínica Social do Instituto. Tal atendimento costuma
ser feito por uma dupla de alunos, em horários a combinar.
A interlocução clínica após o atendimento tem como proposta refle-
tir sobre os vocabulários presentes na relação terapeuta/cliente, os sig-
nificados que podem ter sido coconstruídos nessa relação, as afetações
e consequentes ações dos terapeutas e as possíveis consequências dessas
ações e seus significados, entendendo-as como possíveis convites que
podem abrir ou fechar possibilidades de formas de vida.

Workshop Família de Origem do Terapeuta (FOT)



É uma vivência grupal que possibilita a construção conjunta de visões
alternativas da história familiar. Enfatizando a dimensão interpretativa
das narrativas sobre nossas vidas, esse trabalho é proposto como uma
possibilidade de reescritura da história familiar e da autobiografia. Tal
workshop faz parte do programa curricular do curso por ser outra ativi-
dade que consideramos como teoria em ação.

Avaliação

O processo de avaliação é realizado em um contexto de transparência


respeitosa entre professor e aluno. Para isso contamos com:
a) conversas em sala de aula, com a proposta de avaliação do
aproveitamento, participação e compromisso do aluno, assim
como do desempenho dos professores e do desenvolvimento do

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322 | construcionismo social

curso. Para esta conversa avaliativa usamos como recurso o Ca-


derno de Viagem (YAZBEK, 1996), um convite aos alunos para
fazerem um diário da viagem após cada reunião, com o registro
de suas afetações, aprendizados, dúvidas, satisfações e insatisfa-
ções na relação com o curso;
b) discussão dos textos e atendimentos com interlocução, espaços
úteis para o acompanhamento do processo de aprendizagem de
cada aluno;
c) trabalhos escritos ao final de cada módulo, entendidos como
oportunidades de o aluno realizar um diálogo da sua prática com
o que aprendeu nesse período;
d) trabalho de Conclusão do Curso (TCC), que acreditamos ser a
finalização de um percurso onde cada um já elegeu, nas palavras
de Michael White (2007), “suas histórias preferidas sobre terapia
e de sua vida como terapeuta”. Nesta perspectiva, o Trabalho de
Conclusão (TCC) é a narrativa de um momento de sua prática,
articulada com os discursos teóricos aprendidos no percurso.

A apresentação do TCC, que marca o final do curso, é uma atividade


pública à qual os alunos de todos os anos comparecem, além dos convi-
dados da rede dos formandos. Podemos dizer que se assemelha a uma
Cerimônia de Definição (WHITE, 2007) em que os até então alunos
tornam-se colegas de seus até então professores. Ao apresentarem, em
seus próprios termos, aos olhos da comunidade de convidados para essa
ocasião, como se apropriaram do repertório teórico e das experiências
clínicas que constituíram seu curso de formação, sua identidade de tera-
peutas familiares é autenticada por várias comunidades de pertinência:
familiares e amigos, novos colegas da área e aspirantes à mesma posição.
É um dia de aprendizado, que fecha o ciclo da comunidade de apren-
dizado iniciada na primeira entrevista, quando o candidato a aluno es-
colheu ser nosso aluno e nós, candidatos a professores, escolhemos ser
seus professores.

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capítulo 15 | 323

O depoimento de uma aluna pode ser um complemento deste pro-


cesso dialógico:
Essas posturas respeitosas de se orientar no mundo me fazem pensar o
quanto preciso do outro para criar/aprender algo. Hoje, me vejo num
exercício de aprender a ser espontânea. Nas palavras de Harlene Ander-
son: “Ninguém pode ensinar ninguém a ser espontâneo, mas eu posso
me responsabilizar de criar com o outro um contexto onde as pessoas
possam pensar mais livremente.” Eu escolho me responsabilizar pela
criação desse contexto hoje na minha vida! (CRUZ, 2011, p. 82).

Ao finalizarmos este texto sobre a formação como um processo que


inclui formador e formandos, acreditamos tê-la apresentado como uma
prática articulada com o discurso construcionista social. Nossa expe-
riência tem apontado para a utilidade dessa prática em contextos mais
amplos, como em cursos de capacitação para trabalhadores em saúde
mental, educação e desenvolvimento de comunidades, que convivem
com famílias como clientes, não necessariamente na situação de terapia.
Por outro lado, encontramos limites para essa proposta na relação com
instituições cuja orientação teórica não admite alternativas à verdade de
seus pressupostos. Tais situações nos ensinaram a procurar, em primei-
ro lugar, significados comuns para o que está sendo buscado: capacita-
ção, terapia ou outro tipo de conversação.

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Capítulo 16
Formação do mediador de conflitos numa
perspectiva construcionista social
marisa japur
cristina márcia caron ruffino

O objetivo deste capítulo é oferecer ao diálogo uma descrição das prá-


ticas de formação que desenvolvemos no ConversAções, Instituto de
Mediação de Conflitos e Facilitação de Diálogos. Trabalhamos como
mediadoras inspiradas na perspectiva construcionista social e nosso
grande desafio, como formadoras de mediadores, é propor uma prática
pedagógica coerente com tal perspectiva.
Este texto é um convite a uma reflexão sobre as possibilidades e limites
que construímos nas relações com nossos alunos, e destes com o conhe-
cimento sobre a mediação de conflitos, quando assim nos posicionamos.
Descreveremos brevemente o que estamos chamando de uma prática em
mediação de inspiração construcionista social para problematizarmos as
implicações dessa proposição na formação de mediadores. Temos nos
proposto a pensar nossas práticas pedagógicas e de mediação de confli-
tos como jogos relacionais, concebendo a linguagem como prática social.

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326 | construcionismo social

Mais precisamente, nos colocamos no contexto das interações face a face,


com nossos alunos ou com nossos mediados, entendendo a linguagem
como uma forma de ação no mundo, que provoca efeitos como qualquer
outra ação social. Temos nos sentido convidadas a uma reflexão constante
sobre a possibilidade de nos engajarmos com cada um dos nossos alunos
na construção de conhecimentos teóricos e práticos sobre a mediação de
conflitos sem lhes prescrever, como apontou McNamee (2004), “a forma
de ser” construcionista social. É a tal reflexão que convidamos também
cada um dos nossos interlocutores-leitores deste texto.

A prática da mediação de conflitos como jogo relacional

Vários são os modelos teórico-práticos de mediação desenvolvidos e


utilizados ao redor do mundo. Comum a todos é a compreensão de que
a mediação é um método consensual e voluntário de solução de con-
flitos especialmente indicado para as situações em que as pessoas que-
rem ou precisam manter relações continuadas no tempo, apesar de seus
desentendimentos atuais, uma vez que visa que as mesmas sejam auto-
ras de decisões mutuamente satisfatórias para solucionar seus conflitos.
Esses diversos modelos mantêm entre si importantes distinções relati-
vas: (a) aos seus pressupostos em relação à linguagem; (b) ao modo de
compreender o conflito e, portanto, a relação entre os mediados; (c) aos
diferentes papéis do mediador e assim a relação mediador-mediados; e
(d) aos diferentes critérios para considerar o que é uma mediação bem-
sucedida.
Para nós, falar em mediação de inspiração construcionista social é
pensar sua prática como um jogo relacional, não propor um modelo em
oposição a outros descritos na literatura. Isso traz uma distinção impor-
tante em relação aos diferentes modelos no que diz respeito ao paradig-
ma de linguagem que utilizamos para compreender o que fazemos en-
quanto conversamos com nossos mediados. Pensamos o falar como um

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capítulo 16 | 327

jogo relacional nos conectando com a ideia de que fazemos coisas com
palavras (AUSTIN, 1990) e que vivemos imersos em jogos de linguagem,
cada um com suas regras, convenções e finalidades próprias, e com eles
conformamos nossas formas de vida, como aponta Wittgenstein (1995).
Para esse autor, pensar a linguagem apenas em sua função representa-
cional (dos fatos) e expressiva (daquilo que está dentro de nós) é uma
generalização indevida, provocada pelo equívoco de se tomar um jogo
de linguagem particular como paradigma de todos os demais.
Trabalhamos, então, numa perspectiva da linguagem em uso com
foco na interanimação dialógica entre os interlocutores (BAKHTIN,
1995) e na dinâmica dos jogos de posicionamentos (HARRÉ; VAN LAN-
GENHOVE, 1999), no aqui-agora das interações face a face. Buscamos,
no entanto, não perder de vista também a linguagem enquanto discurso
(produções com graus de formalização mais ou menos estáveis) ao pen-
sá-la como prática inscrita em uma dimensão histórica (SPINK, 1999)
que conforma jogos relacionais possíveis (inteligíveis) em condições
sempre locais e situadas.
Assim, a partir de uma perspectiva construcionista social, temos
descrito a mediação como jogo relacional que tem como pressupostos:
(a) a comunicação como processo relacional e situado de produção de
sentidos; (b) a linguagem como ação conjunta com poder de construir
pessoas e relações; (c) a concepção de conflitos e impasses como coor-
denação da ação comunicativa entre as pessoas; (d) e a compreensão dos
(des) entendimentos como produção relacional, o que implica pensá-los
como coconstruídos (e dissolvidos) na linguagem, pelo modo como as
pessoas conversam entre si.
Disso deriva nossa descrição da mediação como uma prática que
tem como objetivo a criação e sustentação de uma relação colaborativa
entre o que se propõe como mediador e as pessoas que o procuram,
para, a partir deste, coconstruir entre elas (mediados) um novo jogo
relacional que lhes ofereça a possibilidade de alternativas de entendi-
mentos e de decisões compartilhadas.

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328 | construcionismo social

Dessa nossa perspectiva conversacional, falar do mediador é falar da


nossa constituição como tal em cada relação situada e específica, à medida
que coconstruímos com as pessoas que nos procuram um jogo relacional
que lhes propicie o lugar de mediados. Ou seja, estamos afirmando que a
mediação não é um jogo relacional que está garantido a priori (por sermos
capacitados como mediadores e porque alguém nos procura como tal).
Entendemos, então, que o mediador se constitui relacionalmente à
medida que opera na coconstrução de um contexto conversacional co-
laborativo, introduzindo um modo de conversar que contribui para a
mudança na maneira como os mediados conversam entre si, recuperan-
do a possibilidade de diálogo entre eles.
Tal descrição da prática da mediação se sustenta na compreensão
dos processos discursivos de construção de identidade, como proposto
na teoria do posicionamento (HARRÉ, 1989; HARRÉ; VAN LANGE-
NHOVE, 1991, 1999). Constituímos versões identitárias de nós mes-
mos à medida que construímos nossas relações com as pessoas, e isso se
dá na linguagem. Ao falar, realizamos ações assumindo para nós mes-
mos uma determinada posição e, simultaneamente, implicamos o outro
em uma posição complementar à nossa. Tal implicação é tanto para o
outro para quem falamos, como para o outro de quem falamos. As po-
sições referem-se, então, aos lugares que assumimos e atribuímos ao(s)
outro(s) em nossas conversações; são ações que negociamos em nossas
interações. Ou seja, dependendo do como falamos, fazemos convites
para alguns modos de interação e não outros. Dessa ideia de jogo rela-
cional derivam importantes consequências: (a) que a conversa é coor-
denação de ações; (b) e que a conversa é eminentemente imprevisível e
com potencial de promover mudanças.
Tal qual um enunciado (GERGEN, 1999), a posição não carrega
significado em si. Ela tem seu sentido construído nas interações, no
relacionamento com os outros com quem construímos nossa história
conversacional. É a isso que chamamos de coordenação de ações. Con-
forme Harré e Van Langenhove (1999), a linha de história refere-se ao

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capítulo 16 | 329

conjunto de significados associados às posições negociadas pelas pes-


soas envolvidas na conversa. Somente através delas podemos definir o
sentido de uma posição em um determinado contexto interativo.
Assim, ao falarmos, agimos a partir de determinada posição, trazen-
do para a situação presente nossa história conversacional particular, que
é a história de alguém envolvido em múltiplos posicionamentos e enga-
jado em diferentes formas de discursos. As posições ganham diferentes
sentidos em cada interação situada, em relação às histórias conversa-
cionais em que são inseridas, envolvendo tanto a sequência de coisas já
ditas em outros relacionamentos, e também em conversas anteriores en-
tre estas mesmas pessoas, quanto o desenvolvimento da conversa atual
entre elas em um dado momento interativo específico (GUANAES; JA-
PUR, 2008). Tal conjunto complexo de possibilidades é o que permite
que versões identitárias diferentes emirjam pela proposição, aceitação
ou rejeição das posições oferecidas na conversa.
Múltiplas vozes participam dos momentos interativos em que são
negociados sentidos sobre as posições, sobre quem somos, o que esta-
mos fazendo e para onde seguiremos. Entendemos que cada pessoa tem
a possibilidade de inúmeras versões identitárias que são constituídas
pelas narrativas que ela própria conta sobre si mesma e pelas narrati-
vas dos outros sobre ela. O que vai acontecer na conversa depende dos
posicionamentos serem ou não aceitos pelo outro interlocutor, e é nesse
sentido que entendemos a conversa como ação coordenada.
Com essa perspectiva, linguagem não se restringe a uma rede de sig-
nificações e, consequentemente, em nossa prática de mediação, não fo-
camos apenas o processo de produção de sentidos, mas também aquilo
que com ela efetivamos enquanto jogo relacional. Como afirma Ottoni
(2002, p. 137): “O que vai importar não é o que o enunciado ou as pala-
vras significam, mas as circunstâncias de sua enunciação, a força que ela
tem e o efeito que ela provoca.” Ao considerar a força dos enunciados e
os efeitos que provocam estamos pensando no equilíbrio de poder entre
os mediados e na dominância de alguns discursos sobre outros (SPINK,

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330 | construcionismo social

1999), quando se trata de negociar diferenças nas interações face a face


nas conversas em mediação.
A segunda consequência importante decorrente do conceito de jogos re-
lacionais é a de que a conversa é imprevisível e sempre carrega um potencial
para a mudança. Ao iniciar uma conversa, uma pessoa adota uma posição
em função de seus interesses e história conversacional, mas isto não define
o desenvolvimento futuro da conversa em curso. As posições que as pessoas
ocupam nas conversas podem mudar, e é esse jogo de posicionamento que
constitui as relações que as pessoas estabelecem entre si. Na medida em
que novas posições são negociadas, produzimos novos entendimentos. Esse
caráter dinâmico e relacional de qualquer conversação é que determina sua
imprevisibilidade e ao mesmo tempo lhes dá o poder de mudar as relações.
Independentemente de termos ou não a intenção, estamos ativamen-
te e em todos os momentos construindo jogos relacionais, e com isso
criando nossas próprias realidades, enquanto conversamos. Estamos
sempre em processo de negociação e de ressignificação das histórias
que narramos. Algumas terão efeito gerador sobre nosso presente e fu-
turo enquanto outras terão efeito restritivo na geração de alternativas.
A partir dessa compreensão, propomos que as conversas em mediação
possibilitam que os mediados, com posicionamentos intencionais do
mediador, sejam convidados a novos jogos relacionais entre eles.
Para nós, a perspectiva relacional do como nos construímos como
pessoas em nossas conversas com outros tem profundas implicações na
forma como concebemos, não só a prática de mediação, mas também
a relação pedagógica: professor e aluno se constroem reciprocamente no
decorrer das conversações no processo de capacitação.

Prática pedagógica como jogo relacional

Entendendo que o mediador, de forma ativa e intencionalmente, na sua


função mediadora, convida a jogos relacionais que favorecem a cons-

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capítulo 16 | 331

trução de contextos conversacionais para possibilitar aos mediados uma


conversa colaborativa, criativa e corresponsável, temos buscado desen-
volver uma proposta de formação que seja coerente a esse entendimen-
to, à semelhança do que propõe Morrison (1997).
A prática pedagógica instrutiva ou informacional, com a qual estamos
bem familiarizados, não parece ser um bom modelo para a aprendizagem
que queremos produzir. Contudo, muitos dos nossos alunos nos chegam
com essa expectativa e sabemos que será necessário negociar o entendimento
que trazem sobre formação com o que propomos para que possamos,
juntos, construir um contexto de aprendizagem útil. Assim, nossa primeira
tarefa conjunta com cada grupo de alunos é promover uma coordenação
que possibilite a criação de jogos relacionais que propiciem a construção
conjunta do conhecimento, onde as regras básicas são: inclusão, colabora-
ção e respeito.
Com a perspectiva construcionista entendemos que é fundamental
estar aberto a construir conjuntamente futuros viáveis, por meio do diá-
logo (GERGEN, 1999), e não que nos limitemos a considerar as possi-
bilidades de futuro em termos de pontos de partida fixos, entendidos
aqui como as expectativas com as quais os alunos chegam. Assim, dizer
que muitos alunos chegam com uma expectativa de ensino instrutivo
não define o como seguiremos, mas nos desafia a incluir esta maneira
de conceber ensino-aprendizagem como um modo possível, a fim de
que, dialogando nessa diferença, possamos construir juntos um modo
específico de ensinar-aprender com cada grupo.
Tal como a relação mediador-mediados, a relação ensino-aprendiza-
gem não é um jogo relacional que está garantido a priori. Ao se situarem
reciprocamente nos lugares de professor e aluno, supomos que (a) aque-
le que se coloca como aluno tem a intenção de conhecer e desenvolver
habilidades e competências que reconhece ainda não dispor e as deseja;
enquanto (b) aquele que se coloca como professor tem a intenção de dis-
ponibilizar seu conhecimento, suas habilidades e sua competência para
os que as desejam e (c) ambos se predispõem a coordenar ações que pos-

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332 | construcionismo social

sibilitem tal propósito. No entanto, essas intenções não garantem, por si


só, que conseguiremos, quer como professores, quer como alunos, pro-
duzir um jogo relacional de ensino-aprendizagem fértil.
Olhando para a perspectiva do professor, só nos constituimos como
professor que ensina em cada relação, situada e específica, ao mesmo
tempo em que pudermos coconstruir com o aluno um jogo pedagógi-
co que lhe propicie um lugar ativo e criativo de aprendiz. O professor
que ensina, assim o faz à medida que opera na construção conjunta de
um contexto conversacional colaborativo, introduzindo, coordenando
e sustentando um jogo relacional que contribui para a construção de
novos sentidos entre ele e os aprendizes.
No nosso entendimento, capacitar alguém para realizar competente-
mente a função de mediador envolve oferecer e negociar nas interações
face a face com os alunos, ou seja, um conhecimento teórico-técnico
acerca da mediação de conflitos; a compreensão de uma abordagem fi-
losófica a partir da qual nos posicionamos para fazer da forma como a
fazemos; e um conjunto de recursos e posturas conversacionais para o
desenvolvimento de suas habilidades relacionais, que inclui o conheci-
mento do si-mesmo-em-relação.
Nesse sentido, para nós, tão importante quanto os conteúdos sobre me-
diação a serem ensinados e aprendidos, é o espaço conversacional que cons-
truímos e que possibilita refletir sobre a relação que estabelecemos e nego-
ciamos em nossas práticas conversacionais, pois entendemos ser esta a mais
desafiadora aprendizagem para a construção do profissional mediador.
A abordagem que tem se mostrado útil para os nossos propósitos e
coerente com nossos princípios é fortemente inspirada pela aprendiza-
gem colaborativa, como proposta por Anderson e Swin (1995), Ander-
son (1999, 2011) e Anderson e London (2012).
Ela se baseia numa abordagem relacional não hierárquica, na inte-
ração de ensino-aprendizagem, na qual cada participante contribui para
a produção de novos aprendizados e conhecimentos, bem como para a
sua integração e aplicação, compartilhando a responsabilidade por tal

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capítulo 16 | 333

produção. Tanto o conteúdo oferecido é transformado no processo de


significação, como o modo de ensinar-aprender das pessoas envolvidas
e, finalmente, as próprias pessoas envolvidas também se transformam
na medida em que se engajam em novas relações.
Como este não é um contexto habitual de formação, é necessário
investir na construção de relações que o possibilitem, o que requer
construir um entendimento compartilhado do como vamos trabalhar
juntos e, para que isto se efetive, o que dependerá de cada um. Portan-
to, trabalhamos cuidadosamente a construção do contexto conversacio-
nal do grupo na busca de um clima de confiança mútua, de coopera-
ção e de corresponsabilidade. Entendemos que um clima assim não
ocorre porque alguém o instituiu como tal, mas apenas quando todos
os envolvidos assim o identificam, reconhecem e descrevem. É neces-
sário estruturar um modo de conversar para que todos tenham voz,
todos possam ser ouvidos e ouvir a si mesmos. Entendemos que as
condições para que isso ocorra, com os alunos sentindo-se convidados
a oferecer o melhor de si como aprendizes, tem que ser primeiramente
oferecidas por nós como docentes e operamos ativamente nessa cons-
trução. Na medida em que todas as vozes estejam presentes, podemos
desenhar, com os alunos, novas estruturas que emirjam como desejá-
veis a cada momento. Assim, usamos nosso saber-fazer para definir o
onde é desejável chegar, mas o como chegar será construído em parce-
ria com cada grupo de alunos.
No nosso entendimento, ensinar em uma perspectiva construcionis-
ta social implica em, ativamente, propor jogos relacionais que tomam
as diferenças (quer sejam de conhecimento, de entendimentos ou de
recursos) como matéria-prima para o nosso fazer conjunto. Portanto,
coordenar as diferenças de experiências e conhecimentos prévios, de
ritmos, de necessidade de fala ou possibilidade de escuta de cada um
dos alunos, faz parte do nosso fazer em sala de aula.
De nossa perspectiva da linguagem como ação, com poder consti-
tutivo do quem somos, entendemos que o como nos relacionamos com

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334 | construcionismo social

os outros na sala de aula, coordenando entendimentos e coconstruindo


significados, não só conta de nós como aprendizes ou professores, mas
também cria possibilidades do quem somos, à medida que oferece opor-
tunidade de construirmos uma realidade relacional na qual nos exerci-
tamos em habilidades preciosas à mediação. Buscamos que cada aluno
participe na sua versão de aprendiz que melhor o represente naquele
momento enquanto vamos, como docentes, experimentando versões
diversas da posição de ensinante. Como em uma dança, vamos alter-
nando as posições conforme o ritmo e os passos dados pelo par que se
forma a cada momento interativo.
Dessa forma, os recursos conversacionais que oferecemos aos alunos
como futuros mediadores são os mesmos recursos que, como docentes,
utilizamos no esforço de convidá-los para um jogo colaborativo. Cada
um destes recursos objetiva contribuir na cocriação e manutenção de um
contexto conversacional inclusivo, onde as versões mais empoderadas e
responsáveis de cada um se sintam convidadas a participar, pois entende-
mos ser este o principal componente do nosso trabalho com os mediados.
Para possibilitar que este contexto conversacional inclusivo e colabo-
rativo aconteça, ativamente nos posicionamos com a intenção de propor
aos nossos alunos certos jogos relacionais ao longo do processo de ca-
pacitação. Como a própria noção de posição comporta, nossa intencio-
nalidade não garante os jogos que serão coconstruídos. Assim sendo, as
posições que ativamente assumimos são convites que fazemos para de-
terminadas formas de interação que consideramos muito importantes
no desenvolvimento das habilidades do mediador. Apenas para indicar
algumas dessas posições, descreveremos brevemente as posturas de não
saber, inclusiva, de multiparcialidade, apreciativa e reflexiva.
Postura de não saber: inspirada nas proposições de Anderson e
Goolishian, com essa postura buscamos promover um jogo relacional de
curiosidade. Como docentes, nos colocamos na posição de quem pre-
cisa ser informado e estar aberto para aprender de cada aluno o como
ele aprende. Partimos, assim, do pressuposto que sabemos o que ensi-

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capítulo 16 | 335

nar, sabemos onde é desejável chegar, mas sempre nos colocamos com
curiosidade em relação às particularidades de cada novo aluno, para
construir com ele o como chegar lá, apesar de já sabermos como outros
alunos chegaram anteriormente. Fundamental, aqui, é que acreditamos
que, no papel de professor, temos que estar dispostos a ocupar a posição
de aprendiz do aluno que, ao aprender, nos ensina o que ele precisa para
dar o melhor de si. Por outro lado, para que possa aprender, o aluno
precisa ensinar para o professor sobre si mesmo, sobre os seus recursos
e o seu conhecimento prévio. Só podemos ensinar quando nos dedica-
mos a aprender sobre o outro, quando permitimos que cada aluno nos
conte suas conversas internas (ANDERSEN, 1991), o que lhes permi-
te significar os conteúdos que disponibilizamos, ao mesmo tempo em
que lhes contamos o que entendemos sobre seu significar. Para que esse
processo se realize, é necessário escutá-lo com curiosidade, convidan-
do-o a escutar a si mesmo. Em nossa experiência, mostrar-se curioso
em relação ao outro desperta uma atitude recíproca de curiosidade. Os
alunos costumam posicionar-se também com curiosidade em relação a
si mesmos como aprendizes, em relação a nós como docentes e em rela-
ção aos colegas, o que favorece a construção do grupo de aprendizagem
como um espaço de contínuo exercício de escuta curiosa – ferramenta
fundamental para o mediador de conflitos.
Postura inclusiva: trata-se de operar no sentido contrário à lógica
excludente e dualista, bem como em oposição à lógica da necessidade
de unanimidade para a coordenação das ações entre as pessoas. Com
essa postura, possibilitamos espaço igual às vozes de cada um dos par-
ticipantes do grupo de aprendizagem, e, com isso, buscamos promover
a equilização do poder, convidando nossos alunos ao exercício de um
jogo relacional de empoderamento mútuo. Para tanto, saímos de uma po-
sição relacional hierárquica, convidando ativamente nossos alunos a se
corresponsabilizarem por seu próprio processo de aprendizagem, assu-
mindo tal processo como uma meta pessoal a ser alcançada com a nossa
ajuda e fomentando a autoria de cada um pelo que produzimos juntos.

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336 | construcionismo social

Ao trazermos esta postura para a relação pedagógica, ajudamos os alu-


nos a identificarem seus interesses, a fazerem pedidos que os atendam,
a reconhecerem os obstáculos e recursos necessários para superá-los,
colocando-os numa posição proativa em relação à sua própria aprendi-
zagem. Em nossa experiência, ao saírem de uma posição de submissão
em relação ao nosso saber-fazer de mediadoras, os alunos reconhecem
a aprendizagem como uma atividade que fazemos com o outro; ou seja,
uma atividade que implica estar num dispositivo relacional que lhes
possibilita regular a si-mesmo-na-relação-com-o-outro, assim como na
prática da mediação. Isso nos possibilita a coconstrução do grupo como
um espaço de contínua aprendizagem sobre o como vamos em busca dos
interesses de cada um, tal como na mediação ajudaremos os mediados a
saírem de suas posições cristalizadas para conversarem a partir do lugar
de seus interesses.
Postura de multiparcialidade: considerando a heterogeneidade dos
nossos grupos de aprendizagem, formados por alunos com diferen-
tes profissões de origem, imersos em diferentes contextos profissionais
e, consequentemente, com diferentes histórias conversacionais, temos
como pressuposto que tal heterogeneidade propiciará diferentes estilos
na prática da mediação. Assim, além de cultivarmos com o grupo uma
escuta curiosa e inclusiva das múltiplas narrativas, atribuímos igual im-
portância a essa diversidade e com essa postura cultivamos ativamente a
construção de um entendimento da diferença como verdades possíveis a
partir da perspectiva de cada um. Nos contextos de ensino-aprendizagem,
tal postura possibilita, preserva e fomenta a elasticidade dos sentidos dos
conteúdos de aprendizagem, de modo que alunos e professores possam
experimentar articulá-los, ao escutarem aos colegas e a si mesmos nas
articulações que fazem com seus próprios saberes. Assim, o contexto de
aprendizagem propicia aberturas para novos entendimentos e novas per-
guntas. Fomentamos essa postura ao estimular nossos alunos a pensar a
prática da mediação não como um fato em si mesmo, o que nos possibi-
lita considerar a realidade de cada um dos nossos alunos ao construírem

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capítulo 16 | 337

suas possibilidades como mediadores. Com isso, coconstruimos o pró-


prio grupo de aprendizagem como um espaço propício ao exercício de
um jogo relacional de legitimação das diferenças, considerando ser essa
uma habilidade fundamental para o mediador, já que qualquer processo
de gestão de conflitos implicará trabalhar com as diferenças, não só entre
os mediados, mas das nossas diferenças como mediadores em relação às
escolhas que eles farão.
Postura apreciativa: com essa postura, inspirada em Cooperrider,
Whitney & Stavros (2003), ativamente focamos nosso olhar nos recur-
sos que cada aluno dispõe, qualificando-os positivamente. Essa conota-
ção positiva do que cada um traz para o grupo de aprendizagem, pela
criação de um espaço em que todas as vozes são igualmente valorizadas,
contribui ao reconhecimento e legitimação dos múltiplos saberes e fa-
zeres que se tornam disponíveis ao enriquecimento de todos, a serviço
do interesse comum dos alunos de se capacitarem como mediadores.
Com o sentimento de pertencimento que tal postura gera, o próprio
aluno pode reconhecer seus espaços da falta, sem desqualificar-se e/ou
ser desqualificado frente aos colegas e professores, o que contribui com
narrativas positivas de si mesmo como aprendiz. Isso possibilita a cons-
trução do grupo de aprendizagem como um espaço fértil para o exercí-
cio contínuo de um jogo relacional apreciativo que fomenta a colabora-
ção e corresponsabilidade na utilização de todos os recursos disponíveis
e na produção de uma aprendizagem sustentável de um fazer multidis-
ciplinar, como a mediação de conflitos.
Postura reflexiva: assumimos uma postura reflexiva com nossos alu-
nos, dando-lhes a conhecer nossas próprias conversas internas, enquan-
to mantemos nossa conversa externa com eles (ANDERSEN, 1991).
Buscamos propiciar-lhes a aprendizagem do recurso às conversas inter-
nas enquanto vamos, alternadamente, em uma conversa, ocupando os
lugares de fala e de escuta numa conversa externa. Convidamos, então,
ativamente ao contínuo exercício de reflexão sobre o “como estou na
conversa”: Minha fala atende a que necessidade? No que ela contribui

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338 | construcionismo social

com o grupo? Que efeitos espero produzir com ela? Da mesma forma,
convidamos a prestarem atenção ao seu lugar de escuta: O que acontece
comigo enquanto ouço? O que faço com o que essa minha escuta provo-
ca em mim? É útil comunicar esse “como me sinto” diante do que ouço?
Se positivo, como comunico o que se passa comigo enquanto ouço? Para
isso, estruturamos atividades que lhes propiciam o reconhecimento e a
nomeação dos recursos que dispõem, além do reconhecimento e da no-
meação daquilo que precisam desenvolver para trazerem estes recursos
como possibilidade de si mesmos numa relação. Isto promove progres-
sivamente a construção do grupo de aprendizagem como um espaço
de investigação reflexiva sobre o si-mesmo-em-relação e possibilita um
jogo relacional de confiança, o que consideramos uma habilidade essen-
cial do mediador para um exercício responsável e ético de seu fazer.
Cabe-nos ainda assinalar que, no contínuo fluxo interativo com nos-
sos alunos, assim como em todas as relações humanas, muitos jogos
relacionais podem acontecer. Da mesma forma que os convidamos in-
tencionalmente para determinados jogos, somos por eles convidadas a
tantos outros. Alguns deles aceitamos, outros não. Nossa ênfase na in-
tencionalidade dos jogos que aqui descrevemos é por entendermos que
serão estes os jogos relacionais úteis a serem performados pelos futuros
mediadores em suas práticas. Ou seja, performamos mediação, ao ensi-
nar mediação.

Finalizando

Como é de se esperar, diante de uma mesma posição que assumimos


frente a um grupo de alunos, cada um deles poderá significar diferen-
temente a posição em que se sente implicado, e é essa diversidade ex-
plicitada e posta em diálogo que consiste, em nosso entendimento, a
mais fértil possibilidade de aprendizagem do fazer do mediador. Assim,
nosso esforço de nomear alguns jogos relacionais e descrevê-los longe

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capítulo 16 | 339

está da proposição de técnicas que possam ser apreendidas fora de re-


lações específicas e situadas. Ou seja, não há uma forma específica de
mostrar-se curioso, de empoderar o outro, de legitimar as diferenças,
de ser apreciativo ou digno de confiança. Essas nomeações referem-se,
antes de tudo, aos efeitos que buscamos produzir ao nos posicionarmos
de determinadas formas, mas cujo significado só se alcança pela ação
do outro (alunos) enquanto nos relacionamos. Possibilitando essa expe-
rimentação e nomeação das múltiplas experiências vamos construindo,
com nossos alunos, o entendimento da conversa como imprevisibilidade
e possibilidade de mudança. Estar numa conversa com habilidade para
navegar nessa imprevisibilidade e com recursos para utilizar todo seu
potencial para promover mudanças nos jogos relacionais constitui, no
nosso entendimento, o cerne da capacitação de mediadores de conflitos.
Para finalizar, queremos considerar que, quando nos propomos a for-
mar mediadores baseadas em uma perspectiva construcionista social, não
o fazemos porque acreditamos ser esta a melhor forma de compreender e
fazer mediação, mas porque estamos profundamente comprometidas em
refletir com nossos alunos sobre os efeitos que os modos de descrever me-
diação, conflito e o fazer do mediador afetam as possibilidades de relação
que criamos a partir dessas descrições. Além disso, não estamos buscan-
do a verdadeira prática de mediação como algo absoluto e universal, mas
dialogando com as tradições e entendimentos locais e práticas situadas,
buscando manter a abertura necessária para que nossos alunos exercitem
a flexibilidade e se responsabilizem pelas opções que fazem nos jogos rela-
cionais com que exercem suas atividades profissionais e vivem suas vidas.
De acordo com McNamee (2004), o construcionismo social, longe
de ser uma teoria que nos dita técnicas ou métodos, nos convida, tanto
no nível teórico como no das práticas cotidianas, a estarmos atentos
aos significados e aos jogos relacionais que estabelecemos com quem
interagimos. Assim, ao pensarmos a relação de ensino-aprendizagem,
ele nos incentiva a refletir sobre práticas relacionais que facilitam o en-
gajamento dos alunos em diálogos produtivos e em posições que lhes

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340 | construcionismo social

permitam experimentar diferentes possibilidades de si, em vez de pres-


crever intervenções.
É deste lugar que temos refletido sobre nosso fazer pedagógico e
apresentamos aqui o que, até então, temos desenvolvido, esperando que
isto possa contribuir com o diálogo sobre o desafio da formação de me-
diadores a partir de uma perspectiva construcionista social. Esperamos
ter oferecido visibilidade ao que entendemos ser uma prática pedagógi-
ca coerente com os princípios e valores do que nos propomos a ensinar
quando buscamos construir uma relação professor-aluno isomórfica à
relação mediador-mediado que esperamos que nossos alunos sejam ca-
pazes de construir em suas práticas como mediadores.

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Capítulo 17
Em busca de uma formação integral e ampliada:
construindo práticas colaborativas para
o cuidado em saúde
celiane camargo-borges

A saúde na contemporaneidade e a conformação


de novos saberes

As transformações no perfil da saúde no Brasil e no mundo, decorrente


de mudanças sociais, econômicas, demográficas e tecnológicas, vêm de-
mandando novas formas de compreender e tratar as questões de saúde/
doença. As mudanças se dão na estrutura etária da população, nas suas
características epidemiológicas e comportamentais, trazendo novos
modos no lidar e interagir com o sistema de saúde e seus profissionais.
Um exemplo importante destas mudanças é a forte influência da
revolução tecnológica, que vem reconfigurando a forma como as pes-
soas se conectam, buscam informações e interagem. Mais do que ter
acesso digital aos seus protocolos, multiplicam-se pelo mundo ex-
periências nas quais os pacientes interagem online com outros pa-

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342 | construcionismo social

cientes, criam seus próprios blogs compartilhando suas vivências na


saúde, inclusive recomendando médicos, hospitais e medicamentos
(Hurley; Smith, 2007; Tunick; Mednick, 2008; Madeira,
2006). Ainda que a troca de sugestões sobre tratamentos entre pa-
cientes no campo virtual seja uma questão controversa e que merece
ser discutida, é indiscutível a transformação que este tipo de prática
introduz em um contexto que se construiu, historicamente, a partir
da centralização do poder e do conhecimento na figura do especia-
lista. As novas práticas parecem sinalizar a emergência de uma “nova
geração” de pacientes, ativos e participativos diante de outras possi-
bilidades de entendimento e cuidado em saúde/doença, que vão além
da recomendação médica e da prescrição. A verdade é que o paciente
do século XXI se transformou muito mais rápido que os profissionais
de saúde, que ainda enfrentam o desafio de sair do lugar hierárquico
do especialista para se relacionar, de forma mais igualitária e contex-
tual, com seus pacientes.
Este capítulo não visa focar especificamente nas consequências que
a revolução tecnológica tem trazido para as formas concretas de agir na
saúde, mas sim enfatizar que tais desenvolvimentos têm transformado
as formas comportamentais e de ação na sociedade e na saúde, afetando
diretamente as relações entre profissionais de saúde e pacientes. O que
foi, por muito tempo, uma relação hierárquica, centralizadora e dicotô-
mica, entre um profissional munido de saberes técnico/científico e pa-
cientes passivos e obedientes, transforma-se em uma situação em que
pacientes encontram facilmente uma multiplicidade de discursos sobre
um mesmo tema, uma pluralidade nas formas de se tratar, recursos di-
versos e, principalmente, facilidade em interagir com outros pacientes
que passam pela mesma situação. Estas novas formas de lidar com as
questões saúde/doença clamam uma reconfiguração das relações em
saúde, principalmente entre profissional e paciente. No entanto, o pro-
fissional vindo de uma formação mais tecnicista enfrenta dificuldades
em se adaptar a tais transformações.

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capítulo 17 | 343

Assim, faz-se necessário não somente uma reorganização das práti-


cas de saúde, mas também um investimento na formação de seus pro-
fissionais, com a oferta de recursos interventivos, condizentes com este
novo contexto que se apresenta, contribuindo com a construção de no-
vas relações com a população.
No entanto, a oferta de uma nova inteligibilidade, mais relacional, a
um campo de conhecimentos e práticas tradicionalmente mais tecnicis-
ta, fundamentado em relações predominantemente hierárquicas e com
foco individualista, configura-se como grande desafio (Fortuna et
al., 2012).
Este capítulo abraça tal desafio e, nesta direção, traz reflexões cons-
trucionistas sociais associadas ao sistema de saúde brasileiro e suas prá-
ticas, propondo a conformação de novos saberes que possam contribuir
na formação de profissionais de saúde mais bem capacitados para atuar
neste contexto tão complexo.
O discurso construcionista social faz parte do movimento pós-mo-
derno, propondo um discurso menos objetivista e mais polissêmico da
realidade, incentivando a promoção da alteridade e da multiplicidade
(Gergen, 2009). Tal discurso, articulado à saúde, contribui com a
produção de conhecimento dentro de uma nova lógica, composta por
saberes e práticas que se propõem mais plurais, interativas e contextuais
(Camargo-Borges; Mishima, 2009).
Primeiramente, será feita uma descrição do construcionismo so-
cial articulado ao Sistema de Saúde Brasileiro, num esforço de evi-
denciar a relevância da aproximação entre estes dois discursos. Poste-
riormente, serão apresentados dois recursos construcionistas sociais,
como ilustração da sua possível contribuição para a formação de um
profissional de saúde preparado para lidar com tais transformações
em sua prática cotidiana. O capítulo é concluído alinhavando as ideias
apresentadas e mostrando as implicações da aproximação construcio-
nista social na saúde, principalmente no que diz respeito à formação
do profissional.

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344 | construcionismo social

Os princípios e diretrizes do sistema de saúde e o


construcionismo social: possíveis interlocuções

Desde que nos tornamos um sistema único de saúde (Brasil, 1990), o


acesso à saúde se tornou universal, e esta foi legitimada como um bem
inalienável, ou seja, um direito advindo da condição de sermos cidadãos
brasileiros.
Os princípios deste sistema, que se caracterizam pela universalida-
de, equidade e integralidade, regem o direito ao acesso de todo cidadão
à saúde, como também regem a igualdade, levando em conta as dife-
renças de necessidades da população. Tais diferenças devem ser con-
sideradas e receber tratamento igualitário e integral (Santos, 2007).
Os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) são governados pelas
diretrizes organizativas de descentralização, regionalização, hierarqui-
zação e participação social, que viabilizam a operação das suas ações
e serviços. A descentralização, que diz respeito à gestão única em cada
esfera de governo, garante maior poder das instâncias descentralizadas
sobre a tomada de decisão. Ela transfere poder e recursos para pontos
mais próximos das pessoas que necessitam atenção à saúde, permitindo
maior participação social na definição de prioridades e também a regio-
nalização, que trata da distribuição dos serviços em uma determinada
região, opção que leva em conta a oferta de serviços e a população a ser
atendida (Silva; Pinheiro; Machado, 2003).
A partir dessa conquista, gerou-se uma demanda de reorganização
e de desenvolvimento de práticas mais aproximativas na saúde. Um
exemplo é a diretriz da integralidade, que amplia o entendimento de
atenção integral em saúde, e que diz respeito à integralidade das ações
e serviços de saúde, mas também à integralidade das pessoas. Ela traz
como proposta tanto a integração de ações preventivas e curativas como
a integração da atenção a indivíduos e comunidades. A partir desta di-
retriz, a reorganização do modelo assistencial ganha outros olhos, onde
os níveis de atenção à saúde devem estar articulados e onde a atenção

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capítulo 17 | 345

primária se reconfigura como estratégia de criação de vínculo e acolhi-


mento no sistema. Assim, o compromisso deste sistema para com seus
cidadãos é o de construção de uma atenção à saúde integralizada, incen-
tivando a participação de todos os envolvidos.
Contudo, apesar de tantos avanços estruturais e organizativos, para
que tais práticas possam efetivamente acontecer é necessária uma trans-
formação no coração do sistema: nos profissionais de saúde. A formação
de profissionais de saúde preparados para atuar de forma mais integral,
interativa e complexa torna-se fundamental na lida de uma diversidade
de demandas e desejos, na construção de um caminho mais coletivo e
participativo em saúde (Fortuna et al., 2011).
Proponho a aproximação do discurso construcionista social às novas
propostas de atenção à saúde, por apostar que a articulação entre estes
dois discursos pode contribuir com a produção de conhecimento em
saúde e a conformação de novas práticas.
O sistema de saúde brasileiro, principalmente se focarmos no nível
de Atenção Primária à Saúde (APS), tem privilegiado o processo de tra-
balho na produção do cuidado, na capacitação e valorização do traba-
lho em equipe, sempre enfatizando um olhar integral às questões de
saúde/doença (Brasil, 2006). A APS tem como um de seus principais
objetivos coordenar a interlocução entre os níveis de atenção à saúde,
garantindo a integralidade e a longitudinalidade da assistência. Assim,
embasa-se em uma perspectiva mais processual, levando em conta o
acompanhamento contínuo do usuário e sua família, bem como a cons-
trução do vínculo para que tal relação se sustente e se prolongue no
tempo. Para o alcance desses objetivos, a APS deve estar diretamente
conectada com uma prática mais relacional e corresponsável em saúde
(Starfield, 2001).
Os pressupostos construcionistas sociais ressoam com este modo de
organização do trabalho à medida que toma os processos relacionais
como ponto central de sua teoria (Gergen, 2009), ou seja, as inte-
rações como produtoras dos sentidos das coisas, do mundo e, conse-

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346 | construcionismo social

quentemente, das ações a se realizar. Para o construcionismo social, a


construção de sentidos e a geração de ações se dão nos processos inte-
rativos conversacionais, e a sustentação de tais ações geradas ocorre nas
práticas sociais cotidianas (Gergen, 1999). Portanto, o entendimento
que existe entre as pessoas, as possibilidades de permanência ou ruptu-
ra das relações, bem como de certas práticas e ações, dependem desses
processos interativos, dessas práticas sociais. Dessa maneira, o discurso
construcionista social se faz coerente com as propostas de saúde neste
âmbito, podendo oferecer embasamento teórico e prático quanto a sua
postura sensível à interação entre os atores sociais e ao contexto inter-
ventivo, podendo ser um importante recurso analítico para a compreen-
são de como tem se dado a micropolítica do trabalho.
Outro ponto de interseção é o esforço em organizar o sistema de saúde
em ações contínuas e, principalmente dentro da APS, ações permanentes
que se constroem in loco, na medida em que se conhece o território a se
intervir. Tal postura interventiva é partilhada e sustentada teoricamente
pelo construcionismo social, que apreende o mundo num permanente
dinamismo de construção e reconstrução de sentidos, que nos antecede
e nos transpõe. Para o construcionismo social, as pessoas estão imer-
sas numa rede de sentidos num processo contínuo de enfrentamento,
negociação, legitimação e transformação. Tal caráter permanente e pro-
cessual, mais do que a busca por um produto único e final, pode ser um
recurso teórico importante para justificar e dar sentido ao processo con-
tínuo das ações em saúde, mas do que o foco em intervenções pontuais.
Outro grande objetivo da APS na geração do cuidado em saúde é a
produção do vínculo da equipe com as famílias a serem acompanhadas
no território. Para que isso ocorra, a organização do trabalho realça o
acolhimento, a longitudinalidade, a integralidade e a interação como
peças-chave para este alcance (Brasil, 2006). Tais diretrizes operacio-
nais de intervenção, usuário-centradas, demandam práticas em saúde
a serem construídas em parceria profissional-usuário e de acordo com
suas necessidades, havendo de se considerar sua subjetividade e ofere-

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capítulo 17 | 347

cendo apoio contínuo durante todo o seu processo de atendimento na


saúde (Franco; Merhy, 2003).
A epistemologia dialógica do construcionismo social se interessa
pela criação de práticas conversacionais que possam construir caminhos
possíveis para que as pessoas sigam juntas. Interessa-se pela utilização
de um discurso não persuasivo, mas que possa ser compartilhado, para
que não se encerrem as conversas, mas se abram novas possibilidades
inclusivas para estas (McNamee, 2003). Nesse sentido, pode ser útil
para pensar discursos na saúde que propiciem a construção de espaços
facilitadores para o acolhimento e, consequentemente, a construção do
vínculo e da longitudinalidade na saúde.
Mesmo se pensarmos nas políticas organizativas do SUS, como a
proposta de descentralização e democratização do sistema, encontrare-
mos pontos de sustentação no discurso construcionista social. Segun-
do Mendes (2002), a proposta de democratização propõe um modelo
de atenção que não seja piramidal, mas uma rede horizontal integrada,
com pontos de atenção à saúde que interagem entre si sem, contudo, se
hierarquizarem. A proposta construcionista social apoia e incentiva a
criação de espaços mais democráticos de convivência, em que a alteri-
dade não seja tomada hierarquicamente, mas que possa se horizontali-
zar e ser compartilhada em suas diferenças.
Por fim, a interlocução destes dois discursos traz para este cenário a
relevância de pensar a formação do profissional de saúde para atuar nesta
perspectiva apresentada. Por ser o construcionismo social uma teoria sen-
sível ao processo de se relacionar e suas implicações, vai ao encontro do
desafio do sistema de saúde brasileiro que se esforça em transformar seu
discurso inclusivo, participativo e integral em ações concretas, podendo
contribuir com a construção de um modelo de atenção focado no cuidado
à pessoa. Desta forma, atenção especial tem se dado na geração de interlo-
cuções entre profissionais de saúde e comunidade, na reflexão de trabalhos
que propiciem conversas mais igualitárias, que promovam maior intera-
ção e menor hierarquia entre profissionais-usuários, ampliando possibi-

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348 | construcionismo social

lidades de ação e propiciando intervenções mais efetivas (McNamee;


Gergen, 1999).
Ao aproximarmos os pressupostos filosóficos do construcionismo
social com as diretrizes do nosso sistema de saúde e, especialmente,
com as práticas da APS, pudemos observar que estes estão inseridos em
discursos que valorizam a localidade, o contexto e os saberes que daí
se constroem. Também notamos que se inscrevem e se legitimam em
ideias e práticas interativas, coletivas e participativas.

Apostando na formação do profissional de saúde:


a responsabilidade relacional e o diálogo

Desde a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), políticas pú-


blicas para formação e desenvolvimento de recursos humanos têm se tor-
nado foco prioritário na agenda governamental, objetivando a geração
de ações mais condizentes com a organização do sistema atual (Brasil,
2005). Dentre as várias iniciativas, a Educação Permanente em Saúde
(EPS) tem sido a estratégia privilegiada para a formação do profissional.
A política da educação permanente visa, primeiramente, o desenvolvi-
mento de práticas pedagógicas para a qualificação dos trabalhadores de
saúde gerando, consequentemente, uma reorganização dos serviços de
saúde. Diferenciando-se da educação continuada, que engloba sobre-
tudo atividades de ensino com finalidades mais restritas de atualização
e aquisição de novas informações, a educação permanente em saúde
tem como eixo orientador a transformação do processo de trabalho
(Brasil, 2005). Assim, a EPS toma o trabalho para além de sua dimen-
são instrumental e técnica, caracterizando a formação do profissional
de saúde como um processo educacional contínuo, com intervenções
que devem ser contextualizadas e capazes de mobilizar conhecimentos,
tecnologias, valores e afetos que operam dentro de uma dada estrutura
organizacional, composta de uma rede de relações formais e informais.

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capítulo 17 | 349

A proposta da EPS, portanto, demanda uma metodologia mais flexível


e mobilizadora para promoção de práticas de saúde condizentes com tal
pressuposto epistemológico.
Vários autores, no entanto, apontam dificuldades na promoção de
práticas pedagógicas que vão além da informação técnico-científica, exa-
tamente por haver uma cultura extremamente tecnicista e hierarquica-
mente rígida que dificulta um olhar apreciativo sobre as multiplicidades
e os microespaços das relações nas práticas de saúde (Fortuna et al.
2011; Neves; Heckert, 2010; Merhy, 2000).
Este capítulo convida e argumenta pela inclusão de outros saberes na
formação do profissional, apontando a necessidade de uma formação
mais ampla e complexa, capacitando-o para lidar com uma perspectiva
integral em saúde. Ofereceremos aqui dois recursos construcionistas re-
lacionais que podem auxiliar a construção de novas práticas em saúde. A
oferta é de um saber mais focado nos microespaços de produção da saú-
de, ou seja, nas interações que se dão no cotidiano das práticas de saúde,
nos encontros entre os atores sociais envolvidos. Este é um aspecto muito
pouco explorado na formação do profissional de saúde, mas fundamental
para a emergência de uma saúde mais inclusiva, participativa e integral.
A aposta aqui é que o profissional de saúde, com uma formação mais
ampla e holística, está munido de múltiplos recursos que podem ser
utilizados nas mais diversas situações. A inclusão do construcionismo
social como suporte teórico e prático nesta formação possibilita tam-
bém o desenvolvimento de habilidades para lidar com tecnologias que
sejam mais relacionais.
Nesta direção, dois recursos construcionistas sociais serão apresenta-
dos: a Responsabilidade Relacional e a Teoria Conversacional do Diálogo.

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350 | construcionismo social

Responsabilidade Relacional: promovendo


a corresponsabilidade na saúde

A Responsabilidade Relacional (RR) é um conceito e uma ferramen-


ta interventiva do construcionismo social. Como conceito, foca-se nos
processos interativos humanos como produtores e legitimadores das
construções de sentidos e moralidade, gerando ações no mundo. Tais
ações são resultado desta produção coletiva da interação humana, ha-
vendo uma relacionalidade nesta produção e, portanto, uma responsa-
bilidade coletiva pela construção das coisas e do mundo (McNamee;
Gergen, 1999). Trata-se de um entendimento epistemológico da
construção relacional das coisas do mundo, legitimando e dando su-
porte aos pressupostos construcionistas sociais. Enquanto ferramenta
interventiva, a RR reflete sobre as atividades e intervenções profissio-
nais como um imbricado processo de construção coletiva e, desta for-
ma, convida os participantes a ativamente se tornarem protagonistas
desta construção. Especificamente na saúde, a RR pode contribuir com
o entendimento do conceito de cuidado em saúde como um imbrica-
do processo de construção coletiva, trazendo a corresponsabilidade na
saúde. Compreender o cuidado em saúde como uma construção inter-
dependente pode favorecer a instauração de ações coordenadas entre
equipe e usuário numa prática mais interativa, sendo mais coletiva e
participativa, gerando responsabilização conjunta nas ações desenvol-
vidas (Camargo-Borges; Mishima; McNamee, 2008). Na RR,
o processo de se relacionar é entendido como tendo potência transfor-
madora, por isso o esforço em dar visibilidade a ele e investir na prática
cotidiana das relações.
Apesar de não haver técnicas específicas que garantam o alcance da RR,
algumas posturas podem gerar uma relação mais horizontalizada, próxi-
ma e produtiva entre trabalhador de saúde/usuário, promovendo ações
mais interativas e relacionalmente responsáveis. Por exemplo, adotar uma
postura mais responsiva e curiosa, reconhecendo a importância do outro

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capítulo 17 | 351

na construção da relação terapêutica e na negociação das ações em saúde a


se adotar, investe o usuário de saber. Tendo o usuário voz ativa nas decisões
a serem tomadas, este se torna participante e responsável na história a ser
construída e legitimada. Tal convite ao envolvimento do outro no tópico,
investindo-o de poder de voz e decisão, gera profunda implicação ao pro-
jeto em saúde a ser desenvolvido. Um exemplo que traz uma ilustração
interessante da RR em ação é o relato de um momento interativo entre pro-
fissional de saúde e usuário, num grupo de conversação em saúde, material
de uma pesquisa de doutorado (Camargo-Borges, 2007). Trata-se de
um grupo comunitário, desenvolvido em um Núcleo de Saúde da Família,
que se reunia semanalmente para discutir questões diversas em saúde. Em
um determinado encontro grupal, uma farmacêutica foi convidada para
esclarecer algumas questões relacionadas aos medicamentos que os parti-
cipantes utilizavam. A partir do relato de remédios caseiros que uma parti-
cipante estava utilizando, e que trouxe para o grupo, a farmacêutica, tendo
uma postura respeitosa, responsiva e curiosa, possibilitou a construção da
RR no grupo. Em vez de trazer a priori seu conhecimento técnico e cientí-
fico, a farmacêutica incentivou a participante a contar sua história e a razão
pela qual preferia o remédio caseiro, e se mostrou genuinamente curiosa
a respeito da manufatura do remédio. A sua postura curiosa permitiu que
a participante se sentisse reconhecida e legitimada em sua ação, ao mes-
mo tempo em que abriu a oportunidade da farmacêutica inserir compo-
nentes nesta estória, dados relacionados aos seus conhecimentos e, desta
forma, mostrando inter-relações com a medicina alopática. Tal interação
legitimou uma diversidade de vozes sobre o tema, outras racionalidades,
promovendo um engajamento dos participantes e uma consciência da
importância deste tópico, gerando a responsabilidade relacional na esco-
lha futura dos medicamentos. Tanto a participante quanto a farmacêutica
articularam ativamente seus saberes, compreendendo a complexidade do
tema discutido, e se comprometeram com a tarefa de negociação entre os
conhecimentos apresentados: os comunitários locais e os medicamentos
disponíveis no centro de saúde.

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352 | construcionismo social

A responsividade e a inclusão geradas nesta conversa criaram um


senso de responsabilidade na relação entre a farmacêutica, a participan-
te e o grupo. Estando implicados na relação, houve um respeito maior
e um cuidado na sua preservação, gerando maior comprometimento e
corresponsabilidade.
Como visto, a Responsabilidade Relacional, como uma perspecti-
va dialógica na produção do saber e das ações, pode ser compreendida
como um conceito e como uma ferramenta prática, dando sustentação
e legitimidade à compreensão da importância do relacionamento dia-
lógico e da interação na saúde. Pode contribuir também com a desna-
turalização das relações hierárquicas e objetificadas que desarticulam a
vivência dos envolvidos e seu senso de responsabilidade nas decisões.
Dessa maneira, possibilita uma atenção à importância da relação traba-
lhador de saúde/usuário na geração de sentidos sobre o processo saúde/
doença, na construção da aliança terapêutica, na adesão às interven-
ções, na criação de práticas mais colaborativas e na criação desse senso
de corresponsabilidade.
O uso da RR por parte dos profissionais de saúde significa desen-
volver uma análise situacional mais relacional, levando em conta o en-
tendimento de saúde do paciente com a saúde local e de como os atores
envolvidos estão implicados nessa realidade específica. Abre também a
possibilidade do profissional pensar decisões que possam ser tomadas
conjuntamente, construindo uma intervenção que surja das necessida-
des coletivas em que todos possam se responsabilizar por ela e pelas
consequências deste trabalho.

O diálogo: democratizando o saber em saúde

Apesar de o SUS ter em seus princípios e diretrizes formas mais integrais


e contextuais de atenção à saúde, com grande ênfase no planejamento as-
cendente, ou seja, na construção coletiva das ações em contexto (Brasil,

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capítulo 17 | 353

1997), a tradicional hierarquia e o tecnicismo da saúde muitas vezes im-


pedem que tais princípios se concretizem. Tal forma de lidar com saúde
acaba por tornar trabalhadores de saúde e comunidade isolados em seus
saberes, dificultando o entendimento mútuo, o respeito e a interação.
A perspectiva construcionista social transforma tal dicotomia de sa-
beres em dialética, num convite a aproximar e harmonizar saberes mui-
tas vezes tão distantes e até mesmo opostos. Harmonizando opostos,
valoriza e aprecia a diversidade de saberes existente, usando-a a favor
do encontro/tratamento com o usuário/paciente. Nesta perspectiva, o
diálogo torna-se um recurso importante na promoção desta dialética
de saberes, facilitando a interlocução das necessidades de saúde em sua
pluralidade. Assim, há diversas versões de necessidade, característica de
um contexto particular, vivenciada e compartilhada por pessoas que
coordenam suas práticas discursivas e constroem seus significados. Tais
versões podem ser discutidas, refletidas e negociadas em diálogos.
Diálogo aqui é entendido como processos interativos dinâmicos que
ocorrem nas conversações, sendo que o foco está no potencial das múltiplas
perspectivas trazidas para a conversa, que podem ser refletidas e articuladas,
ampliando possibilidades de ação (Camargo-Borges, 2012). De acordo
com Stewart e Zediker (2002), é parte inerente do diálogo a tensionalidade
entre as múltiplas perspectivas e posturas que trazemos para a conversa. Se-
gundo os autores, a comunicação dialógica faz um exercício constante de tra-
zer as próprias ideias para o campo da conversação, ao mesmo tempo em que
se criam aberturas para outras perspectivas e racionalidades. A metáfora da
tensionalidade trazida pelos autores ilustra a postura comunicativa do diálogo
na interação e construção de sentidos.
Segundo a aproximação construcionista social, o diálogo convida à
diversidade, em que diferentes formas de se entender e se tomar uma
realidade são sempre bem-vindas. Diferente do debate e da persuasão,
em que sempre há uma disputa pelo melhor argumento e/ou pelo con-
vencimento do outro, no diálogo o interesse reside na conformação de
formas profícuas de conectar os participantes.

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354 | construcionismo social

O diálogo na saúde pode favorecer a abertura de espaços conversacio-


nais nos quais se produza uma legitimação das crenças e valores dos usuários
como uma versão também possível e verdadeira da situação a ser discutida e
enfrentada. Dessa maneira, com suas versões de saúde legitimadas, usuários
também se tornam especialistas do que vivenciam em suas vidas.
Qual a implicação de se tomar o usuário como especialista na saúde? Qual
a implicação de um diálogo de especialistas, em que cada um traz seus saberes
específicos e suas vivências peculiares?
À medida que os sentidos de saúde/doença são tomados como um
imbricado processo de construção social, com uma pluralidade de vozes
participando nesta construção, e não somente como resultado de uma
descoberta científica em que somente um “saber” é privilegiado, a de-
mocratização da saúde estará acontecendo. Assim, a diversidade pode
ser legitimada, negociando ações criadas num espaço mais horizonta-
lizado, dando oportunidade para que outros saberes componham uma
nova realidade social, possibilitando uma saúde mais integral, efetiva e
condizente com as necessidades locais. Voltando ao exemplo do grupo
de conversação em saúde, vemos que o diálogo surgiu entre os partici-
pantes quando a conversa se desenvolveu em torno da diversidade de
valores e entendimentos em relação aos medicamentos a se tomar. A
tensionalidade em relação aos diferentes interesses e crenças permeou a
história. O assunto trazido pela participante (remédios caseiros) foi no
entanto acolhido e aceito, mesmo com a formação técnica e a responsa-
bilidade da farmacêutica em prover orientação ao grupo. Com uma pos-
tura aberta e curiosa sobre o assunto, a história da senhora em questão
se desenvolveu, ampliando inclusive para histórias de outros participan-
tes, que se sentiram à vontade e motivados a dividir suas experiências
com remédios caseiros. A tensionalidade criada entre o conhecimento
técnico e o senso comum desdobrou inúmeras conversas no grupo so-
bre a interface plantas, frutas e manufatura de remédios. O grupo dei-
xou de ser um espaço de orientação de medicamentos e se transformou
num espaço em que o diálogo não apenas aproximou o grupo, o usuário

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capítulo 17 | 355

e a profissional de saúde, mas também promoveu uma abertura a outra


lógica e a construção de novas possibilidades a partir daí.
Neste exemplo, a farmacêutica não abriu mão de seu papel de pro-
fissional de saúde, mas aceitou tal tensionalidade, ampliando as possi-
bilidades de entendimento e de ação através da geração do diálogo no
grupo. Posteriormente, ela explorou com os participantes aspectos me-
dicinais de tais remédios caseiros, trazendo para a conversa proprieda-
des curativas de algumas plantas e frutas, e também contribuindo para a
construção de projetos em saúde entre profissionais de saúde e usuários.
O construcionismo social aposta neste diálogo para a geração de maior
proximidade entre trabalhadores de saúde e usuários, promovendo a
construção coletiva da saúde.
O conceito de RR e diálogo aqui apresentado é tomado como uma
opção discursiva e interventiva profícua, que pode auxiliar o profissio-
nal de saúde na direção dessas propostas de mudança, contribuindo
para a promoção e sustentação de práticas mais dialógicas na saúde.

Conclusão

O esforço teórico empreendido neste capítulo foi o de oferecer a episte-


mologia relacional do construcionismo social como útil para fortalecer
os princípios filosóficos e organizativos do sistema de saúde brasilei-
ro, especificamente articulando à formação do profissional da saúde.
A aposta de articulação está na crença da fertilidade desta para a
realização da proposta de ampliação dos discursos de saúde, con-
tribuindo com novas formas de pensar e assim operacionalizar as
práticas em saúde.
Compartilhando da premissa da construção relacional do significa-
do, o presente capítulo chama atenção a este processo de se relacionar,
propondo uma definição mais dialógica de aproximação e interação
na saúde. Como exemplos de ferramentas teórico/prática com suporte

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356 | construcionismo social

construcionista social, dois recursos relacionais foram oferecidos como


potentes para contribuir com a formação do profissional de saúde: a
Responsabilidade Relacional e o diálogo.
Enfatizando o “como se conversa”, a RR e o diálogo oferecem uma
postura responsiva de interação e posicionamento que convida a aber-
turas e aproximações, potencializando a democratização da saúde e a
corresponsabilidade entre seus atores sociais.
Os recursos oferecidos neste capítulo podem ser apropriados pelo
profissional de saúde para conformação de práticas mais colaborativas,
mais integradas e integrais, facilitando a coordenação das ações, pro-
movendo uma sensibilidade ao processo de se relacionar, mas também
favorecendo outras leituras da realidade que se apresenta quando o en-
contro trabalhador de saúde/usuário se dá, enriquecendo tal relação e,
consequentemente, enriquecendo o projeto terapêutico individual e co-
letivo a ser adotado.
É importante deixar claro, no entanto, que não há um modelo, uma
receita para conduzir o diálogo e a RR, mas alguns recursos e posturas
que favorecem a construção de práticas relacionalmente mais corres-
ponsáveis e dialógicas que podem favorecer o engajamento, a participa-
ção e, consequentemente, a ampliação das possibilidades de lidar com as
questões de saúde/doença (Camargo-Borges; Mishima, 2009).
Pela utilização de tais recursos relacionais promovem-se espaços
conversacionais diferenciados entre trabalhadores de saúde e usuários
do sistema. Um contexto relacional diferenciado constrói relaciona-
mentos diferenciados. Transformando relacionamentos, modificamos o
processo de produção e oferta de cuidados, estando os atores mais im-
plicados e participativos neste processo, tornando-se relacionalmente
responsáveis (McNamee; Gergen, 1999).
A interlocução construcionismo social, sistema de saúde e formação
profissional apresentada neste capítulo objetivou contribuir com a pro-
dução de conhecimento na área, assim como argumentar a necessidade
de uma formação profissional mais ampliada, que se produza múltiplas

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capítulo 17 | 357

versões possíveis de cuidado em saúde e que gere a democratização na


saúde e sua corresponsabilização.
Reconhecer e investir nesta necessidade é tomar usuários e profis-
sionais de saúde como protagonistas na construção de ações em saúde,
numa posição ativa e responsável pela forma e andamento que as ações
em saúde vão tomando. É promover espaços para que diferentes formas
de compreender, cuidar e manter a saúde tenham voz e visibilidade, ge-
rando novas formas de interagir em saúde.

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Capítulo 18
Há tanta vida lá fora: debatendo a formação
e as práticas em psicologia1
ana mercês bahia bock

O tema deste capítulo é construído por estudantes em sua Semana de


Psicologia. Provocativo e interessante, ao meu ver, se relaciona direta-
mente à realização da II Mostra Nacional de Práticas em Psicologia, no
Anhembi, em São Paulo, que reuniu, nos três dias de evento, mais de 20
mil pessoas/profissionais em psicologia. O evento tem como objetivo
expor práticas em psicologia, permitindo um debate sobre elas e um
conhecimento maior das configurações da profissão. Além disso, se re-
laciona com o tema da formação, cujo meu interesse como professora
há quase quarenta anos é grande. Aqui, no entanto, a ênfase pretendida

1
Este texto é uma adaptação de palestra realizada em 28 de outubro de 2012, no
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto. Achei
interessante manter o título provocativo que os alunos deram à mesa da qual par-
ticipei.

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360 | construcionismo social

será sobre a “vida lá fora”, considerada, por mim, um aspecto funda-


mental na reflexão e construção de uma psicologia crítica.
Poderíamos dizer que a temática é: a relação do mundo psicológico
ou da subjetividade (a vida lá dentro) com a vida social (a vida lá fora).
Em meu doutorado (Bock, 1999), já distante no tempo, mas ainda
atual em minhas reflexões, pesquisei como os psicólogos (da cidade
de São Paulo) compreendiam e significavam o fenômeno psicológi-
co. Encontrei muitas definições e muitas palavras para caracterizar
o fenômeno em questão. Eu perguntava: o que é o fenômeno psi-
cológico? Cito algumas das palavras que apareceram nas respostas:
acontecimentos organísmicos, manifestações do aparelho psíquico,
individualidade, algo que ocorre na relação e é o que somos, con-
flitos pulsionais, confusão mental, manifestação do homem, pensar,
sentir o mundo, o homem e sua relação com o meio, consciência,
saber-se indivíduo, o que se mostra, subjetividade, funções egóicas,
existência intersubjetiva, experiências, vivências, loucura, distúrbio,
o próprio homem, evento estruturante do homem, comportamento,
engrenagem de emoção, motivação, habilidades e potencialidades,
experiências emocionais, psique, pensamento, sensação, emoção e
expressão, entendimento de si e do mundo, manifestação da vida
mental, tudo o que é percebido pelos sentidos, consciente e incons-
ciente (Bock, 1999).
Os psicólogos, quando convocados a definir o fenômeno psicológico,
não se referem à “vida lá fora”; ao contrário, se referem apenas a expe-
riências, estruturas, funções, processos que são vistos como “internos”.
A visão do psicológico, que alimentamos e desenvolvemos em nos-
sas teorias e em nosso trabalho em psicologia, se evidenciava como uma
concepção baseada no conceito liberal de humano:

O homem está concebido com base na ideia de natureza humana; um


homem apriorístico, que tem seu desenvolvimento previsto pela sua
própria condição de homem. Este desenvolvimento pode ser facilitado

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capítulo 18 | 361

ou dificultado pelo meio externo, social e cultural. Um homem livre,


dotado de potencialidades (Bock, 1999, p. 169).

Com isso, afirmo que a concepção hegemônica de humano, na psi-
cologia, o afirma como natural e universal; pensa o ser como dotado de
forças capazes de garantir um processo de individuação; capaz de garan-
tir o desenvolvimento. Minha afirmação, na conclusão do trabalho, era
e é de que a psicologia entende o humano como dotado de forças que
o movimentam; que garantem seu desenvolvimento e transformação.
Há algo em nós, apriorístico, que se atualizará, transformando nossas
potencialidades em capacidade e habilidades humanas. Estas dádivas
nos são dadas pela espécie.
Tal visão resulta em concepções de mundo psíquico como algo para
além de nós; para além de nossas vidas em sociedade.
Duas consequências importantes foram e devem ser apontadas:
1) A ideia de eu verdadeiro;
2)A relação com a sociedade e a cultura.

A ideia de “eu verdadeiro” é bastante importante para compreen-


dermos o que resultou destas noções. Os psicólogos demonstraram, em
suas respostas, conceberem o fenômeno psicológico como algo em nós,
que contém uma verdade sobre o eu. O fenômeno é identificado com a
noção de eu e se o fenômeno é natural e universal, o eu é o que se con-
figura como individual.

Um aspecto que chama a atenção na visão de homem é a existência de


um “eu verdadeiro” que habita o indivíduo; um eu cheio de potenciali-
dades, de habilidades, que com certeza estão referenciadas na ideia de
natureza humana, e que não se manifestam de imediato. Esse “eu” deve-
rá, no decorrer da vida, dependendo das experiências vividas, realizar-
se, presentificar-se, atualizar-se. As condições sociais são aqui impediti-
vas dessa tarefa (Bock, 1999, p.176).

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362 | construcionismo social

Com isso, estou querendo apresentar a ideia de que a visão de fe-


nômenos psicológicos, na psicologia, está baseada na dicotomia, que
caracteriza o pensamento moderno entre externo-interno, indivíduo-
coletivo, subjetividade-objetividade.
A ciência moderna, ao se pretender neutra e objetiva, reconheceu
estes dois âmbitos: a objetividade e a subjetividade, e se propôs a, por
meio de método rigoroso, conhecer o mundo de modo absolutamente
objetivo. Procurou, com seu método, afastar as possibilidades de con-
taminação subjetiva. “Produzir conhecimento científico era manter-se,
como sujeito, externo ao objeto a ser investigado, fosse qual fosse esse
objeto” (Gonçalves; Bock, 2003, p. 42).
Retomando, para esclarecer: o sujeito que hoje somos e conhecemos
nem sempre existiu. Ele é invenção/construção da modernidade. Houve,
a partir do desenvolvimento de novas forças produtivas capitalistas, o
surgimento de novas relações sociais de produção entre a burguesia e o
proletariado. Este contexto histórico produz o liberalismo, que pensa o
homem como racional, individual e natural. As razões destes pensamen-
tos estão na materialidade da vida e das formas de produzir a sobrevi-
vência a partir da chamada revolução burguesa. A burguesia precisou
“libertar” o homem que o feudalismo prendeu. Era preciso acreditar na
possibilidade de se mudar de lugar social, pois era a forma com que a
burguesia pretendia disputar o poder político que ainda não possuía.
A ideia revolucionária de que os humanos são e devem ser livres possi-
bilitava a ascensão da burguesia e novas relações de trabalho: os homens
são livres para vender sua força de trabalho. O homem livre é, portan-
to, um sujeito individual. Cada um deverá ser livre, e a todos deverão
ser oferecidas oportunidades para seu desenvolvimento. Cabe ainda, a
cada um, como sujeito livre, aproveitar ou não as oportunidades. Por-
tanto, os resultados do desenvolvimento de cada um serão relacionados
diretamente aos esforços empreendidos nesta tarefa. A razão é soberana
e natural. A ideia revolucionária de que, através da razão, os humanos
podem encontrar a verdade, fragiliza as verdades até então estabelecidas.

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capítulo 18 | 363

A razão se concretizará na ciência. Livres, racionais, individuais eram as


novas condições para a constituição dos humanos a partir da revolução
burguesa. O humano é libertado! Sujeito e objeto passam a ser vistos
como independentes e exteriores um ao outro. A ciência moderna busca,
então, a verdade objetiva. Mas como fazer? Diferentes métodos se suce-
dem sem um acordo sobre se o conhecimento tem origem na realidade,
apreendida pelo homem por meio dos órgãos do sentido (empirismo),
ou se tem origem nas ideias presentes no homem, ser racional (raciona-
lismo). Os fenômenos ficam naturalizados pois, sendo vistos como inde-
pendentes um do outro, são vistos como autônomos. O homem autôno-
mo/independente é o homem do capitalismo! E a natureza, que também
é autônoma/independente, é a natureza do capitalismo, que precisa ser
explorada como fonte de matéria-prima.
A psicologia se deparou com uma questão: produzir conhecimento
era manter-se, como sujeito, externo ao objeto a ser investigado. A psi-
cologia se propôs como uma ciência objetiva da subjetividade. Guiada
por essa perspectiva objetivista, a psicologia manteve a dicotomia básica:
subjetividade x objetividade. Tal perspectiva levou a visões naturalizantes
e a-históricas da subjetividade e da relação indivíduo-sociedade. Neste
ponto, a ideia de verdadeiro eu e a desvalorização da sociedade encon-
tram suas razões de ser. Produziu-se uma psicologia marcada pela opo-
sição entre teorias objetivistas (ambiente, sociedade, fatores biológicos e
comportamento) e subjetivistas (mente, emoção, consciência e incons-
ciente). São teorias que absolutizam a objetividade ou a subjetividade, na-
turalizando o humano, pois as relações foram cortadas e apenas um dos
campos explica a realidade.
Assim, a dicotomia foi instalada e se desenvolveu no pensamento
moderno, trazendo qualidades e possibilidades para o avanço do conhe-
cimento, mas, ao mesmo tempo, suas próprias limitações.

A afirmação dos dois elementos, o objetivo e o subjetivo, como expres-


são de experiências historicamente constituídas, cada uma com sua im-

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portância, representou um avanço na compreensão do homem sobre si


mesmo, sobre o mundo que o cerca e sobre a possibilidade de conhe-
cer e agir sobre esse mundo. [...] Entretanto […] a não compreensão da
unidade contraditória entre as duas experiências implicou limites para
esse conhecimento e essa compreensão do homem, com consequências
presentes até hoje (Gonçalves, 2011, p. 43).

O interessante de tudo isto, no campo da psicologia, é que o “mundo


lá fora” ficou pouco pensado por ela. A sociedade, a vida coletiva, as
instituições e a cultura foram e são pensadas como exterioridades que
nada têm a ver com o mundo psíquico. Assim, o mundo psíquico existe
em si e o mundo social também. A “vida lá fora” entra na psicologia ape-
nas como um lugar de estimulações capazes de auxiliar no processo de
desenvolvimento das potencialidades ou de impedir seu pleno desen-
volvimento. Entenda-se aqui um dos grandes problemas deste pensa-
mento: o humano tem sua natureza, e se o “mundo lá fora” lhe propiciar
bons estímulos, se dará o desenvolvimento pleno do que é potencial.
Quando tal desenvolvimento não acontece, duas hipóteses surgem de
imediato: não foram oferecidas as estimulações adequadas ou o sujeito
não as aproveitou como deveria.
O psicólogo aparece, então, como o dono de técnicas e conhecimen-
tos capazes de acompanhar, avaliar e consertar o desenvolvimento do
humano. Os psicólogos consertam o que se desencaminha do natural-
mente previsto.
E volto à minha tese de doutorado:

A prática profissional é apresentada, na maioria absoluta das respostas,


como uma prática técnica, isto é, uma prática que contém um saber
(métodos, técnicas e teorias) que auxilia o desenvolvimento do homem.
Auxilia a retomada de um “caminho desviado”, auxilia a redução do so-
frimento, o autoconhecimento necessário para o equilíbrio e a adapta-
ção ao meio social. […] As finalidades estão ligadas apenas ao indivíduo

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capítulo 18 | 365

e a um movimento que lhe é próprio, natural, e que deve ser conservado


ou reconduzido (Bock, 1999, p. 177).

O mundo interno (psicológico) e o mundo externo (social) passam a


ser tomados como duas realidades distintas, sem relação de constituição,
de gênese. Passam a ser vistos como exteriores um ao outro. As análises
sociológicas e econômicas, por exemplo, não sentem necessidade de falar
do mundo psicológico; e as análises psicológicas não sentem necessidade
de considerar a realidade social. A realidade social vai ser pensada por
uma área específica da psicologia, a psicologia social, que tomará a pre-
sença dos outros como algo que “pode” modificar nossos comportamen-
tos ou nossa subjetividade. A psicologia será dividida, desde Wundt, em
duas: uma profunda e outra social.
Wundt sofre as influências do século XIX e suas ambiguidades: apo-
geu e primeiras crises do capitalismo, subjetividade privatizada e sua
crise, positivismo e materialismo dialético, monismo e dualismo, entre
outras. Refletindo várias dessas questões, podemos dizer que Wundt,
na verdade, funda duas psicologias. Uma delas é a psicologia experi-
mental, objetiva, que procura explicar a unidade mente-corpo (tentativa
de monismo) e também descrever o “funcionamento” da subjetividade
de forma objetiva. A outra é a psicologia social, uma tentativa de recu-
perar a subjetividade que a psicologia experimental jamais conseguiria
alcançar. Wundt propõe a psicologia social como usuária de métodos
de comparação entre diferentes culturas e seus produtos, como forma
de conhecer os processos superiores da mente ou, em outras palavras,
a subjetividade complexa (Gonçalves, 2011, p. 45).
A vida foi então localizada “lá fora”, pois a vida “aqui dentro” ficou
tomada como vida psíquica. Enclausuramos o fenômeno psicológico; o
separamos do que chamamos objetividade; e criamos recursos para co-
nhecer, controlar, remediar ou curar o que chamamos de subjetividade.
Sennett (1988) nos diz:

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O eu de cada pessoa tornou-se o seu próprio fardo; conhecer-se a si


mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual
se conhece o mundo. E precisamente porque estamos tão absortos em
nós mesmos, é-nos extremamente difícil chegar a um princípio privado,
dar qualquer explicação clara para nós mesmos ou para os outros daqui-
lo que são as nossas personalidades. A razão está em que, quanto mais
privatizada é a psique, menos estimulada ela será e tanto mais nos será
difícil sentir ou exprimir sentimentos (Sennett, 1988, p. 16).

A psicologia, quando enfatiza este distanciamento e trabalha na pri-


vatização da psique, contribui para um estranhamento do sujeito em
relação a si próprio. E o pior é que ela se apresenta como a salvadora,
que possui os conhecimentos e as técnicas para resolver esta questão.
A psicologia tem, com seu pensamento hegemônico, contribuído para
aprofundar nossa alienação.
Assim, penso que poderíamos exagerar ainda utilizando um recurso
dicotômico: se temos que localizar a vida, não se tenha dúvida, ela está
lá fora. Lá fora onde está a produção da riqueza e a constituição das clas-
ses sociais; lá fora onde está a cultura, expressão do desenvolvimento da
humanidade; lá fora onde estão os outros e as relações que nos consti-
tuem; lá fora onde está a desigualdade social, o preconceito, a exclusão;
lá fora onde está a criatividade e a beleza da construção humana; lá fora
onde, com certeza, estamos todos nós.
Nosso desafio, neste sentido, é superar a dicotomia que dividiu a rea-
lidade em sujeito x objeto; psicológico x social; individual x coletivo;
subjetividade x objetividade. A perspectiva que nos permite tal supera-
ção é a perspectiva histórica, que enxerga a realidade como em perma-
nente construção e transformação; que privilegia a ideia de processo e de
relações; que não absolutiza nenhum aspecto, mas entende a realidade
como multideterminada. Tal perspectiva nos permite encarar o fenô-
meno psicológico e o sujeito de outra maneira, diversa da perspectiva
naturalizadora e universalizante do liberalismo. “Todos os fenômenos

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capítulo 18 | 367

humanos são produzidos no processo histórico de constituição da vida


social. Esta vida social se constitui na materialidade das relações entre
os homens e entre os homens e a natureza, para a produção de sua exis-
tência (Gonçalves; Bock, 2009, p. 138).”
Tais pressupostos vêm do materialismo histórico e dialético, que
afirma a objetividade e a subjetividade como unidade de contrários, em
movimento permanente de transformação. Sujeito e objeto estão vistos
em relação, em uma relação que transforma a ambos.
O chamado mundo externo (lá fora) é um mundo construído pela
atividade humana, pelo trabalho. Nesse mundo, os objetos materiais ou
ideais construídos são carregados de humanidade. É um mundo huma-
nizado. Nele, nada é estranho ao homem, pois este coloca no mundo
sua energia, seu trabalho, seus projetos. Neste trabalho de transformar
o mundo, os humanos também se transformam. A subjetividade (lá
dentro) é um dos âmbitos deste processo, corresponde a ele. Dentro e
fora se tornam modos de nos referirmos aos âmbitos do processo e à
natureza dos resultados de tudo isto. São resultados materiais visíveis;
são resultados ideais ou afetivos, que podem se expressar, mas são car-
regados pelos humanos no que chamamos de subjetividade. No en-
tanto, é preciso compreender que a subjetividade não está dentro. Ela
se movimenta do sujeito para o mundo e deste para o sujeito, em um
movimento permanente.
Destaque-se que, ao privilegiar as relações entre os âmbitos da rea-
lidade, a perspectiva teórica crítica deixa de absolutizar. E volto mais
uma vez ao meu doutorado. Dei a ele o título de “As aventuras do Barão
de Munchhausen na psicologia”. O barão, um personagem de histórias
infantis alemãs, conta que, com seu cavalo, caiu em um pântano. Afun-
dando, teve uma ideia brilhante que o salvou: puxou o corpo para cima
pelos próprios cabelos. Eis a imagem perfeita da absolutização: o sujeito
dotado da capacidade de se autoproduzir e desenvolver. É assim que
a psicologia tem enxergado os sujeitos e a subjetividade, deixando de
enxergar, de considerar, de incluir em suas análises a relação destes su-

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jeitos e suas subjetividades com seu entorno, com a realidade material e


social onde se inserem e se constituem.
Não estamos falando de influência, pois esta a psicologia já reco-
nheceu em muitas de suas teorias liberais. O que estamos frisando é
a constituição mútua, a partir da relação que se estabelece. O humano
transforma o mundo e, ao fazer isto, transforma a si próprio.
Para terminar, toco rapidamente em dois assuntos: formação e prática.
Prática: primeiro, as concepções naturalizadoras do humano impli-
cam uma prática curativa. Segundo, as concepções críticas e históricas
começam a apontar claramente outra possibilidade de fazer psicologia.
A II Mostra nos trouxe um conjunto de quatro mil trabalhos onde os
psicólogos estão em lugares os mais distintos, atuando junto a sujeitos
os mais diversos, utilizando práticas inovadoras e, acima de tudo, preo-
cupados com a construção de uma sociedade digna e com os direitos
humanos. Mas por que isto nos indica algo novo? Porque os psicólogos
demonstram estar relacionando saúde psicológica e condições de vida
com direitos humanos, com políticas públicas, com cuidados do Estado.
Enfim, a psicologia parece ter se voltado para a vida. São atuações em
aldeias, em comunidades, em quilombos, em instituições de saúde, de
educação e de trabalho. As populações são de crianças, idosos, jovens,
pacientes terminais, loucos, mulheres, jovens grávidas, pacientes de ci-
rurgia bariátrica, negros, comunidades, trabalhadores, enfim, a psicolo-
gia da II Mostra fala brasileiro. Está conectada com a vida “lá fora”.
E a formação. Acredito que o movimento dos cursos de psicologia
para mudarem seus currículos e responderem às diretrizes curriculares
foi bastante importante e permitiu avanços. Porém, na II Mostra, perce-
bi que os cursos ainda não se ligaram fortemente à realidade brasileira.
Ainda não falamos ou falamos pouco de negros e das questões subjeti-
vas que envolvem sua participação social. Falamos pouco de índio. Será
que nossas teorias servem para compreender a subjetividade indígena?
O que sabemos sobre a dimensão subjetiva da desigualdade social que
marca nosso país e nossa gente? O que sabemos das relações entre clas-

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ses sociais e das questões subjetivas aí implicadas? O que sabemos da


“vida lá fora”?
A formação em psicologia precisa avançar. Nossas pesquisas preci-
sam estar linkadas com a “vida lá fora”. Para isto, precisamos fazer a
crítica às visões dicotômicas, superando-as, e afirmar visões históricas
que nos permitam pensar a vida e falar dela a partir da psicologia. Que-
remos falar da vida vivida, e ela acontece ao mesmo tempo e em um
mesmo processo, dentro e fora. Ela é movimento permanente.

Nada do que foi será


de novo do jeito que já foi um dia
tudo passa
tudo sempre passará

E a ciência não tem o direito de paralisá-la.

Tudo que se vê não é


igual ao que a gente
viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo
no mundo

Ela é totalidade em movimento de “fora pra dentro” e “de dentro pra fora”.

e
Não adianta fugir
nem mentir
pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre!2

2
Os trechos em itálico são da poesia de Lulu Santos e Nelson Motta “Como uma onda”.

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Organizadores

carla guanaes-lorenzi | Psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela


USP-Ribeirão Preto. É professora do Departamento de Psicologia da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP, atuando nos cursos de
Graduação e de Pós-Graduação em Psicologia. Coordenadora do Lapepg-
-USP (Laboratório de Pesquisa e Estudo em Práticas Grupais) e do Grupo de
Pesquisa Psicologia, Saúde e Construcionismo Social (CNPq). Membro asso-
ciado do Taos Institute. Contato: carlaguanaes@gmail.com ou carlaguanaes@
ffclrp.usp.br

murilo dos santos moscheta | Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia


pela USP-Ribeirão Preto. É professor do Departamento de Psicologia da Uni-
versidade Estatual de Maringá (UEM), atuando nos cursos de Graduação e de
Pós-Graduação em Psicologia. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Proces-
sos Grupais e de Comunicação (CNPq). Membro associado do Taos Institute.
Contato: murilomoscheta@me.com

clarissa mendonça corradi-webster | Psicóloga, mestre em Saúde


na Comunidade e doutora em Psicologia, ambos pela USP-Ribeirão Preto. É
professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Ribeirão Preto-USP, atuando nos cursos de Graduação e de Pós-
Graduação em Psicologia. Coordenadora do LePsis – Laboratório de Ensino e
Pesquisa em Psicopatologia, Drogas e Sociedade (CNPq). Membro associado
do Taos Institute. Contato: clarissac@usp.br

laura vilela e souza | Psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela


USP-Ribeirão Preto. É professora do Departamento de Psicologia da Universi-
dade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), atuando no curso de Graduação
em Psicologia. Coordenadora do Prosa – Laboratório de Investigações sobre
Práticas Dialógicas e Relacionamentos Interpessoais (CNPq). Membro asso-
ciado do Taos Institute. Contato: lauravilelasouza@gmail.com

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Autores

ana mercês bahia bock | Professora titular do Departamento de Psico-


logia Social da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP e do-
cente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da PUC-SP.
Coordenadora do grupo de pesquisa Dimensão Subjetiva da Desigualdade
Social: suas Diversas Expressões. Contato: anabbock@gmail.com

azair t. vicente | Médica psiquiatra, terapeuta individual e familiar, sócia


fundadora, docente e supervisora do Instituto Familiae, São Paulo.
Contato: azair.brasil@gmail.com

carlos eduardo zuma | Psicólogo, terapeuta de família, especialista em


Gestão de Iniciativas Sociais/LTDS/Coppe/UFRJ e Sesi/DN, membro funda-
dor e do conselho gestor do Instituto Noos. Contato: carloszuma@noos.org.br

célia cristina boense oliveira | Psicóloga com especialização em Saúde


Mental e em teoria psicanalítica. Experiência de trabalho com vários tipos de
atendimentos grupais na atenção primária. Contato: celiaboense@netsite.com.br

celiane camargo-borges | Psicóloga, mestre em Psicologia pela USP-Ri-


beirão Preto, doutora em Saúde Pública pela USP-Ribeirão Preto. Professora
e coordenadora de Pesquisa da NHTV Breda University of Applied Sciences,
Holanda. Contato: celianeborges@gmail.com

claudia mara pedrosa | Psicóloga pela USP-Ribeirão Preto, mestre em


Psicologia Social pela PUC-SP e doutora em Saúde Pública na área de con-
centração Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da FSP/USP. Atualmente é con-
sultora técnica do Ministério da Saúde, na Secretaria de Gestão do Trabalho e
Educação em Saúde (SGTES). Contato: pedrosaclaudia@gmail.com

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410 | construcionismo social

cristina márcia caron ruffino | Pedagoga, doutora em Psicologia,


terapeuta familiar e mediadora de conflitos. Sócia fundadora e docente do
ConversAções – (Instituto de Mediação de Conflitos e Facilitação de Diálo-
gos). Contato: crisruffino@gmail.com

emerson f. rasera | Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela USP


Ribeirão Preto. Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Uberlândia. Pós-doutor pela University of New
Hampshire (EUA). Membro associado do Taos Institute. Pesquisador CNPq e
Fapemig. Contato: emersonrasera@gmail.com

flávia do bonsucesso teixeira | Doutora em Ciências Sociais pela


Unicamp e docente do Curso de Medicina da Universidade Federal de Uber-
lândia. Participante do grupo de pesquisa do Núcleo de Pesquisa NEPHISPO/
UFU. Contato: flavia@famed.ufu.br

helena maffei-cruz | Psicóloga, mestre pela PUC-SP, terapeuta familiar,


sócia fundadora, docente e supervisora do Instituto Familiae, São Paulo.
Contato: helenamcruz@uol.com.br

jacqueline isaac machado brigagão | Doutora em Psicologia pela


USP e docente do Curso de Obstetrícia da USP. Contato: jac@usp.br

jucely cardoso dos santos | Psicóloga da Apae-Moc. Formada pela


UFSJ, foi coordenadora do Grupo da Diversidade Sexual, promovido pelo
Videverso – (Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual).
Contato: jucelycard@gmail.com

larissa cristina silveira de andrade | Psicóloga pela Universidade Fe-


deral do Triângulo Mineiro (UFTM). Contato: andrade.larissa@hotmail.com

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autores | 411

máira rodrigues da silva | Psicóloga pela Universidade Federal do


Triângulo Mineiro (UFTM). Contato: r_maira@yahoo.com.br

manoel antônio dos santos | Professor associado 3 do Programa de


Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto-USP. Livre-docente pela USP e Coordenador do Laboratório de
Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS) e do Videverso – (Grupo
de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual). Contato: masantos@ffclrp.usp.br

marcus vinicius dos santos | Psicólogo pela Faculdade de Filosofia,


Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP e psicólogo contratado do Hospital –
Dia Psiquiátrico, do Hospital das Clínicas da FMRP-USP. Contato:
mvs_psicousp@hotmail.com

marilene aparecida grandesso | Psicóloga e doutora em Psicologia.


Coordenadora do Interfaci (Instituto de Terapia de Família, Casal e Indiví-
duo). Coordenadora do Certificado Internacional de Práticas Colaborativas.
Professora e supervisora do Nufac-PUC-SP. Contato: interfaci@yahoo.com

marília de freitas pereira | Psicóloga, psicoterapeuta individual de


famílias e grupos, sócia fundadora e docente do Instituto Familiae, São Paulo.
Contato: pereiramariliaf@gmail.com

marisa japur | Psicóloga, doutora em Psicologia, facilitadora de grupos e


equipes, mediadora de conflitos e docente aposentada pela FFCLRP/USP. Só-
cia fundadora e docente do ConversAções – (Instituto de Mediação de Confli-
tos e Facilitação de Diálogos). Contato: marisa@conversacoes.com.br

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412 | construcionismo social

mary jane paris spink | Doutora em Psicologia Social, professora titular


do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo, bolsista produtividade do CNPq, nível 1A e coor-
denadora do Grupo de Pesquisa Imaginário e Práticas Sociais, CNPq.
Contato: pssocial@pucsp.br

mirian angélica martins | Psicóloga formada pela Universidade Federal


do Triângulo Mineiro (UFTM). Contato: martins_mirian@yahoo.com.br

pedro pablo sampaio martins | Psicólogo pela Universidade Federal de


Uberlândia. Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Membro
do grupo de Pesquisa “Psicologia, Saúde e Construcionismo Social” (CNPq).
Contato: pedropablomartins@gmail.com

peter k. spink | Doutor em Psicologia Organizacional pela Universidade de


Londres (Birkbeck College). Professor titular e membro do Centro de Estudos
de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas – São Pau-
lo. Contato: pkspink@gmail.com

rita martins godoy rocha | Docente do curso de Psicologia do Centro


Universitário de Araraquara/Uniara. Doutoranda em Psicologia pela USP.
Contato: ritamgr@yahoo.com.br

rosana lázaro rapizo | Psicóloga, terapeuta de família, doutora em Psi-


cologia Social pela Uerj, membro do Conselho Gestor do Instituto Noos.
Contato: rosanarapizo@gmail.com

sheila mcnamee | Doutora em Comunicação e professora titular do Depar-


tamento de Comunicação do Horton Social Science Center da University of
New Hampshire. Membro fundadora do Taos Institute.
Contato: sheila.mcnamee@unh.edu

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