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. 72.

036 M764m
: Montaner, Josep Mana

Título A

'6363 Ac.

a modernidade superada arquitetura, arte e pensamento do século xx

Josep Maria Montaner

Editorial Gustavo Gili, SA


08029 Barcelona Rosselló, 87-89. Te!. 93 322 81 61
A presente edição foi traduzida com a ajuda da Direção Geral dos Livros,
Arquivos e Bibliotecas do Ministério Educação, Cultura e Deporte
da Espanha, no Ano Europeu das Línguas.

Título original:

losep Maria Montaner: La modernidad superada /

Arquitectura arte y pensamiento deI siglo XX

Versão portuguesa: Esther Pereira da Silva, arquiteta


Índice geral
Carlos Gal1ego, jornalista

Revisão técnica por Maria Luiza Tristão Araújo, arquiteta

Desenho da capa de Toni Cabré/Editorial Gustavo Gili, S.A.


Arquitetura e mimese 7
Ilustração da capa: J0rn Utzon, Ópera, Sydney

Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura


moderna 25
Nenhuma parte desta publicação, incluído o da capa,

O racionalismo como método de projeto: progresso e


pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de nenhuma

forma, nem por nenhum meio, seja este clétrico, químico,


cnse 57
mecânico, óptico, de gravação ou de fotocópia, sem a prévia
A expressão na arquitetura posterior ao movimento
autorização escrita por parte editora.

moderno............................................................................ 83
Tipo e estrutura. Eclosão e crise do conceito de tipo­
logia arquitetônica 107
Josep Maria Montaner, 1997

Editorial Gustavo Gili, S.A., Barcelona, 2001


Modernidade, vanguardas e neovanguardas 131
Ilustração da página 7: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Paulo.

Ilustrações das páginas 25 e 90: Fondation Le Corbusier,


O lugar metropolitano da arte 147
Paris (VEGAP)
Além do minimalismo 167
Printed in Spain A beleza da arquitetura ecológica 191
ISBN: 84-252-1895-0

Composição tipográfica: Lozano Faisano, S.L., L'Hospitalet (Barcelona)

Nota bibliográfica geral.................................................. 207


Impressão: Gráficas 92, Rubí (Barcelona)
Índice onomástico 213
Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar
na arquitetura moderna
A sensibilidade em relação ao lugar por parte da arqui­
tetllra contemporânea é um fenômeno recente. De fato, o
n1aior esforço do movimento moderno consistiu em definir
uma nova concepção de espaço utilizando o apoio dos novos
avanços tecnológicos: estruturas de aço e de concreto arma­
do e paredes de vidro. Assim sendo, continuava-se uma con­
cepção platônica e uma tradição matemática de espaço que
reapareceu prin1eiro nos textos de August Schmarzow e
Alois Riegl -em especial, no livro de Riegl, A arte industrial
romana tardia (1901)- e que mais tarde se manifestou em
todo tipo de experiências: na pintura cubista, nas criações e
interpretações de László Moholy-Nagy,l nos n10delos neo­
plasticistas de Theo va11 Doesburg e Gerrit Tl10mas Rietveld,
nos ensaios da Bauhaus, em experimentos c011strutivistas
como os Proun de EI Lissitzky ou os Merzbau de Kurt
Schwitters, e nos protótipos de Mies van der Rohe e Le Cor­
busier. Uma concepção de espaço que é crucial nas interpre­
tações historiográficas relacionadas com o n10vime11to mo­
derno, em autores como Sigfried Giedion e Bruno Zevi.

Le Corbusier, Casa Citrohan. Projeto.


28 ]osep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 29

Esta busca de um espaço moderno, infinito e dinâmico


é visível em distintos precedentes. Na casa-museu de John
ESPAÇO E ANTIESPAÇO Soane em Londres (1792-1837), sua extensa coleção de pin­
turas e esculturas situa-se em um espaço que flui, com ilu­
Exatamente no momento em que Schmarzow define a minação zenital por clarabóias, com salas que surgem detrás
como "a arte do espaço" e Riegl situa como essên­ de salas, escadas que aparecem tangencialmente entre as pa­
cia da arquitetura o conceito de espaço (um conceito que até redes e coleçães de quadros -isto é, janelas simbólicas- que
então não tinha sido utilizado de maneira explícita), este são eliminadas para deixar planos posteriores, como se o es­
mesmo espaço recém descoberto é superado. Riegl apresen­ paço entre as paredes fosse se desfolhando, desvelando e
ta como paradigma o interior delimitado e perfeito do Pan­ emancipando. Nos projetos quadrados e repetitivos de Jean­
teon de Roma. A concepção que desenvolvem as vanguardas, Nicolas-Louis Durand, onde se situavam pilares, paredes e
porém, baseia-se em um espaço livre, fluido, leve, contínuo, demais elementos, também é anunciado este caráter infinito
aberto, infinito, secularizado, transparente, abstrato, indife­ do novo espaço. A percepção do interior do Palácio de
renciado, newtoniano, em total contraposição ao espaço Cristal em Londres (1851) de Joseph Paxton oferecia de for­
dicional que é diferenciado volumetricamente, de forma ma incipiente a visão de um espaço dinâmico e livre, com os
tificável, descontínuo, delimitado, específico, cartesiano e objetos totalmente banhados de luz, onde a fronteira entre
estático. Esta nova modalidade de espaço, alguns a denomi­ o exterior e o interior ficava aberta.
naram "espaço-tempo", em relação à teoria da relatividade de Tudo isso culminará em um passo transcendental na
Albert Einstein e à introdução da variável do movimento, e evolução da arquitetura: a concepção internacional do espaço
outros a qualificaram como "antiespaço" por ter sido gerada conformado sobre um plano horizontal livre e fachada
como contraposição e dissolução do tradicional espaço transparente. O vazio fluido gira em torno aos elementos
fechado, delimitado por paredes. 2 pontuais e verticais dos pilares de concreto armado ou aço e é
Se o espaço tradicional encontra sua máxima expressão dinamizado por planos recortados que não fecham recintos
no mundo unitário do renascimento, no qual não há separa­ octogonais e muitas vezes não chegam até o teto. 3 Todo o
ção analítica entre os elementos do espaço e da forma e a espaço moderno gira em torno de um protagonista estrutural
perspectiva cónica expressa a imagem do homem como cen­ e formal simultaneamente: o pilar. Seja este o pilar de concre­
tro, a revolução copernicana da ciência do século XVII está na to, de seção quadrada e cartesiano de Le Corbusier; o pilar de
origem do antiespaço. Surge quando o espaço começa a concreto, de seção circular e mais sensual do Ministerio de
emancipar-se, quando se converte em independente e relativo Educação e Saúde no Rio de Janeiro, de Lúcio Costa e Oscar
a objetos em movimento dentro de um sistema cósmico Niemeyer; ou os pilares de aço de Mies van der Rohe, nos
infinito. quais a planta em cruz persegue uma solução isotrópica ao
30 ]osep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 31

máximo, assegurando a presença de dois eixos de simetría até lugar e em função do caráter da divindade à qual está dedica­
nos menores detalhes. Este desenho permite a Mies conseguir do. Não é por acaso que nos anos cinqüenta e sessenta, quan­
a máxima leveza e desmaterialização do pilar. 4 do o conceito de lugar passa a ter um papel transcendental na
arquitetura, autores como Denys Lasdun, Vincent Scully ou
Christian N orberg-Schulz revalorizaram o caráter de modelo
do templo grego. 7
II Na arquitetura moderna, desde J. N. L. Durand até
Louis Kahn, passando pelos mestres do movimento moder­
ESPAÇO E LUGAR no e pelos postulados da exposição The International Style
de Philip Johnson e Henry-Russel Hitchcock (1932), a sen­
A concepção de espaço infinito como continuum natu­ sibilidade pelo lugar é irrelevante: todo objeto arquitetônico
ral, receptáculo de todo criado e visível, tem uma raiz ideal surge sobre uma indiscutível autonomia. Denis Diderot ao
platônica. Platão fala do Timeo do chora como o espaço eter­ tratar a relação orgânica entre a pintura e o lugar já destacava
no e indestrutível, abstrato, cósmico, que provém a tudo que que "nossos arquitetos carecem de gênio, desconhecem as
existe de uma posição. Trata-se do terceiro componente idéias acessórias que são despertadas pelo lugar".8 As van­
básico da realidade, junto ao Ser e ao Acontecer. 5 Aristóteles, guardas enfatizam o processo de isolamento dos elementos
ao contrário, identifica em Física o conceito genérico de "es­ fora do seu contexto usual e inclusive um projeto, teorica­
paço" com outro mais empírico e delimitado que é o de "lu­ mente organicista de Le Corbusier, como a Capela de Ron­
gar", utilizando sempre a palavra topos. Ou seja, Aristóteles champ (1950-1955) mantém uma relação genérica e não em­
considera o espaço desde o ponto de vista do lugar. Cada pírica com o contexto. De fato, a metáfora do barco, que
corpo ocupa o seu lugar concreto e o lugar é uma propriedade está presente em boa parte da obra de Le Corbusier, rela­
básica e física dos corpos. Se para Platão "as idéias não estão ciona-se estritamente com a idéia de uma arquitetura autô­
em um lugar", ao contrário, para Aristóteles" o lugar é algo noma, que pode se fundamentar sem nenhuma relação com
diferente dos corpos e todo corpo sensível está em um lugar! o entorno.
.. ./. O lugar de uma coisa é sua forma e limitei .. .1. A forma Os conceitos de espaço e de lugar, portanto, podem ser
é o limite da coisa, enquanto que o lugar é o limite do corpo diferenciados claramente. O primeiro tem uma condição ide­
continente/ .. ./. Assim como o recipiente é um lugar trans­ al, teórica, genérica e indefinida, e o segundo possui um ca­
portável, o lugar é um recipiente não transferível".6 ráter concreto, empírico, existencial, articulado, definido até
Precisamente os templos gregos foram uma manifestação os detalhes. O espaço moderno baseia-se em medidas, posi­
desta capacidade para reconciliar o homem com a natureza, ções e relações: é quantitativo; desdobra-se mediante geome­
outorgando formas distintas em relação ao significado do trias tridimensionais; é abstrato, lógico, científico e matemá­
32 ]osep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 33

tico; é uma construção mental. Ainda que o espaço fique sem­ personagens da arquitetura e do urbanismo modernos como
pre delimitado -como sucede de forma tão perfeita no espa­ Peter Behrens, Hans Poelzig, Le Corbusier, Hermann Jansen
ço tradicional do Panteon de Roma ou no espaço dinâmico e Mies van der Rohe. Ele compaginou sua defesa da arquite­
do Museu Guggenheim de Nova Iorque-, pela sua própria tura das vanguardas com os estudos da arquitetura popular
essência tende a ser infinito e ilimitado. Ao contrário, o lu­ que culminariam no texto A casa popular na Espanha de 1930.
gar é definido por substantivos, pelas qualidades das coisas e Os redatores da revista A C. Documentos de Actividad
dos elementos, pelos valores simbólicos e históricos; é Contemporánea (1931-1937) reivindicaram o funcionalismo
ambiental e está relacionado fenomenologicamente com o estrito, a beleza, simplicidade e harmonia, a ausência de
corpo humano. 9 ornamento falso, a qualidade dos materiais e técnicas constru­
Nas duas primeiras décadas deste século foram estabe­ tivas tradicionais que apresenta a arquitetura popular medi­
lecidos os protótipos deste espaço moderno: as estruturas terrânea, especialmente em Ibiza. Para isso basearam-se nas
Dominó e Citrohan de Le Corbusier e os pavilhões de Mies singulares fotografias de Raoul Hausmann. Aqui, portanto,
van der Rohe. Nos anos trinta, após a eclosão das vanguar­ são propostas importantes correções em relação aos critérios
das, ao contrário, alguns dos mestres -o próprio Le Corbu­ do então recém iniciado movimento moderno.
sier- assim como os membros da seguinte geração -Lúcio
Costa, Ame Jacobsen, Josep Lluís Sert- recorreram às figu­
rações populares e à arquitetura vernacular, tentando apren­
der os detalhes técnicos tradicionais. Frente à uma insipien­ AS PRIMEIRAS PROPOSTAS DE ARQUITETURA

te consciência da insuficiência da linguagem e da tecnologia ADAPTADAS AO LUGAR

moderna, estas referências vernáculas tinham como objetivo


outorgar "carâter" expressivo e "sentido comum" construti­ Sempre é possível encontrar antecedentes distantes. A
vo. No caso de Le Corbusier, é a partir do impacto que lhe estética pitoresca, desenvolvida na Holanda e na Inglaterra,
produz sua primeira viagem à América Latina em 1929 -Bue­ partiu da imitação das pinturas de Claude Le Lorrain e Ni­
nos Aires, São Paulo e Rio de Janeiro- quando começa a colas Poussin e foi materializada tanto em jardins, em man­
considerar o valor da natureza e das características do lugar. sões e em intervenções urbanas do século XVII, quanto na pin­
Em relação à atuação tardia das vanguardas européias tura de Alexander Cozens, John Constable, William Gilpin
que os arquitectos do GATEPAC e do GATCPAC respec­ e Joseph M. William Turner. O picturesque, que surge da
tivamente realizaram na Espanha e Catalunha, também foi mimese das "pinturas" (pictures) de paisagem seria outra das
valorizada a arquitetura popular. Fernando García Mercadal raízes deste incipiente gosto pelo lugar. Segundo a prática do
foi membro fundador do GATEPAC em 1930, e entre 1923 picturesque, inclusive a própria paisagem dos parques é mo­
e 1927 viajou pela Europa visitando e trabalhando ao lado de delada como reprodução de uma pintura que foi elaborada
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anteriormente. É o segundo passo de um processo no qual o pelas casas Usonianas, o espaço moderno que Wright confi­
momento originário já é uma representação. gura não depende de uma concepção racional autônoma e
Foi a cultura do organicismo, desenvolvida na obra de prototípica, senão da experiência visual e corporal de cada
Frank Lloyd Wright e nas propostas dos arquitetos nórdicos usuário habitando os interiores. Wright perseguia um espaço
encabeçados por Alvar Aalto, que introduziu com força de­ moderno que não fosse indiferente ao lugar. 10
finitiva a relação da arquitetura com o lugar. A obra de Aalto também manifesta esta sedução pelo
Integrando os manifestos a favor da arquitetura orgânica mundo da natureza viva como metáfora da arquitetura. Seus
por parte de Louis Henry Sullivan, Wright baseia seus pro­ edifícios adotam formas crescentes que se adaptam ao lugar.
jetos em tramas geométricas e poligonais, relacionando a obra Erik Gunnar Asplund foi um dos primeiros arquitetos que
com o entorno natural, modelando o espaço ao programa desenvolveu uma obra sintética onde a relação com o lugar
funcional e utilizando materiais tradicionais. Para Wright, era essencial. A conciliação que Asplund realiza entre tradi­
autêntico pioneiro na exploração da relação da arquitetura ção clássica e espaço moderno se veicula precisamente atra­
com o lugar, este vínculo desenvolve-se em uma paisagem vés da sensibilidade pelo lugar, integrando os mecanismos da
civilizada pela cultura agrária norte-americana. Trata-se de estética pitoresca. A Capela no bosque (1918-1920) ou Cemi­
uma paisagem baseada no loteamento, na qual não há contra­ tério e Crematório no bosque, em Estocolmo (1935-1940),
dição entre natureza e máquina, ao contrário, a própria natu­ são bons exemplos desta interpretação empírica e delicada da
reza da máquina é orgânica. Esta aliança entre ambas é paisagem nórdica.
pressada pelo desenho artificial dos campos, em uma Será com a corrente do New Empirism nórdico, que
paisagem produtiva onde a máquina e a natureza são aliadas. surgiu nos anos quarenta, quando esta postura de respeito em
Pela mesma razão, as formas abertas, orgânicas e crescentes relação ao lugar -clima, topografia, materiais, paisagem, árvo­
podem ser configuradas através de tramas geométricas e ra­ res- e de insistência nos valores psicológicos da percepção do
cionais. A casa assume a horizontalidade da paisagem em seus entorno será assentada. I!
projetos. Na Casa Kaufmann ou da Cascata (1931-1939), Não podemos esquecer que dentro da arquitetura mo­
grandes plataformas artificiais de concreto em balanço -isto derna existem duas tradições distintas e totalmente opostas a
é, uma solução de alta tecnologia- qualificam e melhoram um respeito da relação entre arquitetura e paisagem: por um lado,
entorno de grande beleza natural. a da cidade-jardim de Ebenezer Howard e as primeiras Sied­
E de fato, no espaço aberto e extenso que Wright desco­ lungen alemãs integradas na paisagem, e por outro, a que
bre mediante a destruição da caixa compartimentada conven­ momentaneamente se impôs e triunfou, representada pelo
cional já está presente a concepção específica de lugar. Na racionalismo, pela nova objetividade e por Le Corbusier em
rápida evolução que vai do Unity Temple no Oak Park, Illi­ seus primeiros projetos urbanísticos. Esta tradição dominante
nois (1904-1907) até a Robie House (1906-1909), passando baseia-se na onipresença da arquitetura e no pouco respeito
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pelas circunstâncias ecológicas. A Carta de Atenas seria a má­ maram-se em paisagens que devem sua imagem caraterística
xima expressão desta corrente racionalista e tecnocrática que à arquitetura e à escultura. O pensamento de Maurice Mer­
serviu de base para o urbanismo especulativo do capitalismo leau-Ponty também encontra repercussão, quando, ao tratar
e para os tecidos residenciais sem atributos que veio a se cha­ da experiência corporal do homem e do espaço existencial,
mar "socialismo real". A recuperação da idéia de lugar tam­ mostra que "a estrutura ponto-horizonte é o fundamento do
bém constituiu uma crítica à maneira como foi elaborada a espaço" e que "a consciência do lugar é sempre uma cons­
cidade contemporânea. E a revalorização da idéia de lugar ciência posicional" .14
estaria estreitamente relacionada com o início da recuperação Precisamente, a idéia de lugar diferencia-se da de espa­
da história e da memória, valores que o espaço do estilo in­ ço pela presença da experiência. Lugar está relacionado com
ternacional -ou amiespaço- rejeitava. o processo fenomenológico da percepção e da experiência do
Uma obra singular como a casa do escritor Curzio Ma­ mundo por parte do corpo humano. Neste sentido, as idéias
laparte em Puma Massul1o, Capri, projetada por Adalberto de Edmund Husserl e Maurice Merleau-Ponty ou as ações
Libera (1938-1940), é um sintoma da evolução da arquitetu­ corporais de Joseph Beuys -como Coyote. I like America and
ra daqueles anos. Trata-se de uma obra radicalmente moder­ America like me ou Difesa de la Natura- constituem referên­
na e autônoma que, simultaneamente, reinterpreta a condição cias básicas do lugar concebido como experiência corporal. I5
irrepetível do lugar. Uma casa que é ao mesmo tempo Nas últimas décadas, a idéia de lugar teve um peso espe­
mirador, teatro, nave e altar; uma obra que evoca o rito e o cífico muito variável e foi interpretada de distintas maneiras.
lugar do sacrifício, que lembra a vizinha Capela de l'Annun­ Em pequena escala, o lugar é entendido como uma qualida­
ziata com sua escalinata de forma quase triangular; que exi­ de do espaço interior que se materializa na forma, textura,
be primitivismo e, outra vez, reflete o precedente do mundo cor, luz natural, objetos e valores simbólicos. Uma qualida­
grego, situando-se como um tholos. A casa permite contem­ de que se manifesta nos interiores das obras de Heinrich Tes­
plar o céu e o mar desde seu terraço, admirar o horizonte, senow e Louis Kahn. Em grande escala, é interpretado como
viver em contato com o infinito. 12 genius loci,16 como capacidade para fazer aflorar as preexistên­
A casa de Curzio Malaparte desvela uma relação ideal cias ambientais, como objetos reunidos no lugar, como arti­
com o universo que décadas mais tarde será recriada nas obras culação das diversas peças urbanas (praça, rua, avenida). Isto
escultóricas de Eduardo Chillida como o Peine deI Viento em é, como paisagem caraterística. Uma ulterior e mais profun­
San Sebastián ou o Elogio deI horizonte em Gijón. Parafrase­ da relação entenderia o conceito de lugar, precisamente, como
ando a Martin Heidegger 13 podemos estabelecer que interven­ a correta relação entre a pequena escala do espaço interior e
ções como a de Malaparte nas rochas de Puma Massullo ou a grande escala da implantação. 17
a de Chillida na costa de San Sebastián convertem um "lugar"
indeterminado em um "lugar" irrepetível e singular. Transfor-
38 Josep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 39

PARADIGMAS DA ARQUITETURA ADAPTADA


-se em uma seção feita de espaços escalonados que se amol­
AO LUGAR
dam às funções do corpo humano.
Fernando Távora (1923) desenvolve em sua obra o sa­
Nas obras de arquitetos da chamada "terceira geração", ber construtivo da arquitetura tradicional portuguesa, suge­
o interesse pela arquitetura vernacular renasce em uníssono rindo uma arquitetura moderna sabiamente adaptada à pai­
a esta sensibilidade pelo lugar. 1s sagem e exultantemente qualificada por objetos artesanais.
Luis Barragán (1902-1988) desenvolveu uma busca do Prova disso são o Parque Municipal da Quinta da Concei­
espaço aprazível que recordava de sua infância nas fazendas de ção, em Matosinhos (1957), ou a casa de veraneio em Ofir
Guadalajara (México). Em sua obra existe uma evidente (1957-1958). Esta nova sensibilidade é o resultado do
fluência mediterrânea, de raiz árabe, aprendida especialmente do sobre a Arquitetura popular em Portugal, que foi publi­
da arquitetura de Marrocos. A influência que o livro Les cado em três volumes em 1961, e no qual Távora intervém
dins enchantés de Ferdinand Bac teve sobre Barragán se com um espírito racionalista e contemporâneo que busca
pressa no tipo de espaço labiríntico e escalonado que ele cria apreender a funcionalidade, a beleza e o saber técnico da ar­
e na constante presença da água e da vegetação em suas obras. quitetura popular, distante de qualquer nostalgia, anacronis­
O catalão José Antonio Coderch (1913-1984) ofereceu mo ou populismo. E isso tem continuação na límpida obra
com sua obra uma síntese de arquitetura tradicional e lingua­ de Alvaro Siza Vieira, tanto em suas primeiras realizações
gem moderna. Sua visão funcionalista e austera o obriga a Restaurante Boa Nova (1958-1964) e as piscinas (1961­
usar formas muitas vezes racionais, outras vezes orgânicas. 1966), ambos em Leça de Palmeira-, quanto em obras recen­
Sua veneração panteísta pelo popular o leva a desenvolver tes tais como a nova Faculdade de Arquitetura no Porto
precedentes da arquitctura vernacular na obra que se integra (1987-1994).
sabiamente no contexto paisagístico e renega a cidade. Veja O dinamarquês J0rn Utzon (1918), em sua busca de uma
como exemplo paradigmático a maneira como projeta a Casa relação arquetípica entre formas do espaço privado e do es­
Ugalde em Caldetas (1952). Uma forma orgânica, como uma paço público através da relação com o lugar, toma referên­
ameba, com ressonâncias surrealistas e formas pertencentes ao cias da arquitetura primitiva. Formas básicas da arquitetura
repertório de Joan Miró, Jean Arp ou Alexander Calder, vai oriental, pré-colombiana e mediterrânea servem de instru­
sendo modelada aos condicionantes específicos do entorno e mento para obras bastante diversificadas em escala e lugar,
do programa. A forma do lote, a topografia, as vistas para o que interpretam perfeitamente o contexto. Empregando um
mar, a orientação, as árvores preexistentes e o programa do­ mecanismo que busca conciliar organicismo, natureza e for­
méstico acabam configurando uma obra inédita, que não é mas crescentes, por um lado, com industrialização e produ­
possível perceber usando critérios estabelecidos de fachada, ção em série, por outro, Utz0n cria desde obras domésticas
ordem e frontalidade. A complexidade do interior manifesta- como sua própria casa em Porto Petro, Maiorca (1971-1972)
40 ]osep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 41

até obras monumentais e representativas como a 6 p era de tempo a arquitetura... O espaço existencial consiste sempre
Sydney na Austrália (1956-1974). em lugares". Norberg-Schulz, utilizando o conceito de espa­
Os jardins e parques de Roberto Burle Marx (Brasil, ço existencial, tentou salvar a tradição do conceito de espaço
1909-1994) constituem a mais genuína aplicação dos princí­ moderno de seu mestre Sigfried Giedion e conciliá-la com a
pios do movimento moderno no projeto da paisagem e, ao nova idéia de lugar. 2o Isto, porém, o levou a negar as experi­
mesmo tempo, também já supõe sua crítica e superação. Burle ências mais contemporâneas e inovadoras.
Marx concilia em seus desenhos tradições opostas: a abstra­ Louis Kahn -Norberg-Schulz comentou insistentemen­
ção geométrica das vanguardas com as formas orgânicas, o te sua sintonia com Heidegger- constitui um caso especial.
rigor racionalista dos projetos com os valores cromáticos e Mesmo recriando a idéia de lugar nos interiores -que ficam
plásticos da vegetação americana, a linguagem internacional totalmente qualificado por meio da luz, dos valores sim­
criada em ambientes tropicais, jardins modernos realizados bólicos, das texturas, das formas, do conforto-, sua arquite­
recuperando plantas tropicais esquecidas. Seu maior objetivo tura, concebida como volumes autônomos, não interpreta o
era integrar os edifícios modernos no ambiente, estabelecendo contexto como fatar diferenciador. Isto é claro, por exemplo,
uma relação direta entre arquitetura e natureza, e adaptar a no Instituto Indiano para a Formação de comandos, em Ah­
proposta dos jardins dentro do grande cenário da paisagem de medabad (1962-1979) que tanto poderia ser un college protó­
costas e montanhas. tipo para Harvard quanto uma obra específica para a Índia.
Em todos estes casos ocorre uma ressonância às concep­ Em muitas ocasiões, para Louis Kahn, Oscar Niemeyer ou
ções de Martin Heidegger. Seus projetos que partiam de uma Roberto Burle Marx, o desafio é a transformação, a criação de
arquitetura baseada na idéia de espaço passam a ser estrutu­ um lugar que não existe, transformar o não-lugar americano
rados com a idéia de lugar. Segundo o texto crucial de Hei­ em lugar. Neste aspecto, sua atitude pode ser relacionada com
degger, Construir, habitar, pensar (1951), "os espaços recebem a metáfora proposta por Heidegger: a ponte que transforma
sua essência não do espaço e sim do lugar / .. ./ os espaços a paisagem, fornecendo um "lugar" que une as duas orlas do
onde se desenvolve a vida são antes de tudo lugares".19 Nova­ rio mas que ao mesmo tempo faz com que uma se contrapo­
mente aflora a influência do pensamento grego e a referência nha à outra. Segundo Heidegger: "o lugar não existia antes da
ao templo dórico. E sem dúvida o pensamento de Heidegger, construção da ponte / .. ./ origina-se somente a partir da pon­
junto com os aportes de Husserl e Merleau-Ponty, foi o mais te" .21 Não responde, portanto, a uma idéia de integração mas
acertado catalisador de toda reflexão contemporânea sobre o de transformação.
conceito de lugar. Foi o próprio Giedion que estabeleceu em seus últimos
Christian N orberg-Schulz, seguidor destas concepções, escritos as duas atitudes que a arquitetura deve assumir em
opõe-se a toda teoria da mobilidade, dos espaços transitóri­ relação à natureza: a do contraste, que foi expressada nas pi­
os, e define que "eliminando o lugar elimina-se ao mesmo râmides e nos templos gregos e que atualmente expressariam
42 ]osep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 43

as pontes de Robert Maillard nas altas montanhas; e a da antiga quinta da casa do pintor e o ateliê de Miró projetados
amalgamação, que encontramos nos templos de pedra na Ín­ precisamente por Josep Lluís Sert. O edifício vai configuran­
dia, nos teatros semicirculares ou na obra de Wright. 22 do ao longo do seu percorrido seus próprios espaços abertos:
os espelhos d'água criam sua própria paisagem e dirigem as
visuais para o mar, à única vista agradável. Inclusive o espa­
ço interior do museu subordina-se totalmente a esta decisão
A RELEVÂNCIA DO LUGAR NA ARQUITETURA
inicial de integrar-se à paisagem.
ATUAL
Moneo gera uma solução tipológica empiricamente ajus­
tada ao lugar, enquanto que Sert aplicou uma tipologia prévia
A capacidade de integração ao lugar varia drasticamen­ e repetível-um fragmento do "museu de crescimento ilimita­
te entre as propostas modernas tardias e as pós-modernas. do" de seu mestre Le Corbusier- utilizando o lugar específico
Isto pode ser demonstrado através de dois exemplos licita­ como uma simples plataforma de
mente comparáveis. Se a Fundação Joan Miró em Barcelona,
de Josep Lluís Sert (1972-1975), despreza e destrói o magní­
fico entorno dos jardins novecentistas que Nicolau Maria Ru­
bió i Tudurí projetou em (seguindo os ensinamen­ III
tos de Jean-Claude Nicolas Forestier), ao contrário, a Funda­
ção Pilar e Joan Miró em Palma de Maiorca, de Rafael Mo­ A DISSOLUÇÂO CONTEMPORÂNEA DO LUGAR:

neo (1987-1992), interpreta e obtém as melhores vantagens da ESPAÇOS MIDlÁTlCOS, NÃO-LUGARES E CIBERESPAÇO

paisagem aberta de Son Abrines, atualmente densamente ocu­


pada e degradada. Ao caos tipológico e morfológico do en­
torno, Moneo responde com um elemento linear e alto para Exatamente quando estava consolidando-se esta celebra­
a biblioteca, a sala de exposições temporais e as áreas de ser­ ção da arquitetura como arte do lugar aflora uma realidade
viços administrativos (que se refere à forma dos apartamen­ totalmente nova em relação ao espaço. Esta situação gera uma
tos do entorno) e um volume em forma de estrela na parte nova sensibilidade, novas capacidades de percepção e novas
inferior, com espelhos d'água em sua cobertura, para as salas teorizações. A idéia de "atopia" que define Peter Eisenman
de exposições representativas (que se relaciona tipologica­ (detrator de qualquer possível relação com o lugar), os pro­
mente com as formas arbitrárias das casas unifamiliares pró­ jetas de Rem Koolhaas (mesclando a energia e o caos dos flu­
ximas). O edifício transforma-se assim em centro ordenador xos urbanos) ou as teorias de Ignasi de Solà-Morales (pro­
do lugar. Moneo é capaz de criar sua própria paisagem: o vi­ pondo novas categorias para uma arquitetura metropolitana
sitante entra pela parte posterior para poder contemplar a baseada em transformações) apontam nesta direção. Os lu­
44 Josep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 45

gares já não são interpretados como recipientes existenciais Este fenômeno teve um claro antecedente no projeto de
permanentes, senão que são entendidos como: intensos focos Robert Venturi para o concurso do National College Hall of
de acontecimentos, concentrações de dinamismo, torrentes de Fame em New Brunswick (1967), com a fachada convertida
fluxos de circulação, cenários de fatos efêmeros, cruzamen­ exclusivamente em cintilante tela eletrônica e com o interior
tos de caminhos, momentos energéticos. 24 definido por elementos midiáticos: rótulos, néons e propa­
Dentro deste panorama de novas realidades espaciais gandas. Um protótipo desta nova arquitetura é a Glass Video
podemos discernir três grupos de fenômenos. Gallery em Groningen, projetada por Bernard Tschumi
Em primeiro lugar, o que podemos denominar espaços (1991) e toda edificada com vidro.
midiáticos, nos quais já não é predominante o espaço físico Em segundo lugar, podemos situar os chamados fenô­
senão que a arquitetura se transformou em um contêiner menos não-lugares, o fenômeno que Marc Augé qualificou
neutro (e inclusive transparente) com sistemas de objetos, como espaço da supermodernidade e do anonimato, defini­
máquinas, imagens e equipamentos que configuram interio­ do pela superabundância e o excesso.26 São espaços relaciona­
res modificáveis e dinâmicos. dos sempre com o transporte rápido, o consumo e lazer que
Um exemplo emblemático são os museus da ciência, os se contrapõem ao conceito de lugar das culturas baseadas em
da técnica e os infantis, nos quais a forma do espaço e a pre­ uma tradição etnológica localizada no tempo e no espaço,
sença da luz natural já não são definidores. Se em museus radicadas na identidade entre cultura e lugar, na noção de per­
contemporâneos, como o Vitra Design Museum projetado manência e unidade.
por Frank Gehry ou o Museu de Arte Moderna de Frank­ Em grandes centros comerciais e hotéis, em estradas,
furt projetado por Hans Hollein, os interiores são compos­ aeroportos e intercambiadores, em meios de transporte rápi­
tos por espaços fluidos, definidos pela luz natural e por do como aviões, as pessoas são obrigadas a transitar com um
objetos reais e originais, os museus midiáticos consistem em cartão de identificação e devem sempre provar a sua inocên­
contêiners que concentram a fascinação e a atenção ao redor cia (provar que não são ladrões, vigaristas ou terroristas). Os
dos focos materializados por luz artificial, informação, expe­ documentos de identificação não são a carteira de identidade
rimentação e interação. Os limites espaciais físicos se tornam e a linguagem humana, mas sim o cartão de embarque, o pas­
imperceptíveis no interior do contêiner em função desta saporte, o cartão de crédito, o localizador, a credencial. São
experiência perceptiva e fenomenológica em torno à área das não-lugares onde o usuário pretende passar o mais rápido
imagens, reproduções, instalações, monitores, dioramas, possível. Estar preso o menor tempo possível no não-lugar
mecanismos e virtualidades. 25 O espaço doméstico e os que leva de um lugar a outro. Nos grandes centros comerci­
lugares de trabalho também podem entrar dentro destas ais, o vazio da praça tradicional como lugar de comunicação
coordenadas do espaço midiático, à base de contêiners e é substituído completamente pelos objetos de consumo no
sistemas de objetos. espaço da competitividade e do anonimato. Nas estradas, fai­
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xas de não-lugares atravessam lugares que são anunciados E em terceiro lugar, temos o espaço virtual ou ciberespa­
porém nunca são visitados, que somente são percebidos ve­ ço. O qual é utilizado por arquitetos, engenheiros, designers,
lozmente. 27 Nos aviões vive-se a experiencia máxima do não­ músicos, etc., para projetar e criar no computador. O que
lugar: desejo de duração mínima, de contato mínimo com a pode conectar distintos espaços de edifícios mediante sis­
realidade de ventos e turbulências. Definitivamente, é uma temas computadorizados sem a necessidade de recorrer aos
queda em uma experiência narcotizante que permite a Paul espaços tradicionais, onde cada atividade tem a sua sala e cada
Virilio anunciar que: "a Ópera de hoje é o Boeing 747, nova compartimento está conectado por elementos de circulação
sala de projeção onde busca-se compensar a monotonia da de pedestres e físicos. Esse lugar impalpável, que é definido
viagem com a atração das imagens, festival das travessias pelos que falam ao telefone ou pelos cibernautas que se mo­
aéreas, desurbanização passageira onde a metrópole dos se­ vem através da infinita rede da internet.
dentários é substituída pelas micrópoles nômades e, a mercê Em dez anos deixamos de falar das qualidades do lugar
desta, o mundo sobrevoado perde todo o interesse, até o e da magia das heterotopias,29 e passamos a aceitar o anoni­
ponto de que o conforto subliminal do avião supersônico mato dos não-lugares, a frieza da realidade virtual, a promessa
impõe sua ocultação total, e talvez exija a extinção das luzes de um ciberespaço que é presente absoluto. Termo que Wi­
e a narcose dos passageiros no futuro ... ".28 Apenas a avaria lliam Gibson inventou na novela Neuromancer (1984), habi­
ou a acidente significam o colapso do não-lugar, o revulsivo tada por seres nômades, cheios de próteses artificiais, que
que conduz do ambiente narcotizante do não-lugar à vivem mal nos hotéis, nas entranhas de redes informáticas tri­
realidade enraizada do lugar. dimensionais e em plataformas espaciais. 30
Os parques temáticos e as rotas reais e virtuais do turis­ Tanto os não-lugares quanto, principalmente, o espaço vir­
mo também geram redes e focos de não-lugares no meio de tual, são apresentados com todo seu caráter sedutor -pela pro­
lugares autênticos. E precisamente, os não-lugares, o contrá­ messa de possibilidades e transformações inimagináveis-, mas
rio da utopia, são sempre o alvo dos atentados terroristas que também com uma quantidade de aspectos ocultos e negativos.
apontam às vítimas anônimas e azaradas que povoam efeme­ Indiscutivelmente, o espaço virtual consiste na mais alta
ramente o não-lugar. Automóveis, ônibus ou aviões são por­ criação da ambição humana, configurando um mundo laico
tadores de explosivos ou sujeitos a seqüestros. totalmente fora das leis da natureza. Se Claude Lévi-Strauss
Segundo Marc Augé, a idéia de sociedade localizada considerou a cidade como máxima criação do homem, ago­
entrou em crise devido à proliferação destes não-lugares ba­ ra podemos apontar ao ciberespaço não apenas como a má­
seados na individualidade solitária, na paisagem e no presente xima criação da inteligência e da ciência mas também da ima­
sem história. De fato, o espaço do viajante é o arquétipo do ginação e da ficção, da capacidade do homem para sonhar e
não-lugar. O espaço do não-lugar não cria identidade nem re­ cnar.
lação, mas solidão e semelhança. No entanto, frente ao otimismo de pessoas como Bill
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Gates, presidente da Microsoft, William Mitchell, autor de pautas de um darwinismo feroz, irá controlar a maior parte
City of bites (1995),31 ou Javier Echavarría, profeta da "Telépo­ das vias de acesso ao trabalho e à riqueza, excluindo aos que
le", autores diversos como Herbert I. Schiller, Micha Bandini não estão capacitados social, económica, intelectual ou fun­
ou Vicente Verdú 32 apontaram algumas das contrapartidas cionalmente para ter fácil acesso ao mundo informático.
ocultas do mundo virtual. Na realidade, trata-se de um "novo Para os mais entusiastas, a conectividade, a telepresença,
mundo" que se constitui como a meta mais alta a ser alcan­ as ágoras eletrónicas, os organismos cibernéticos e as cidades
çada pela sociedade norte-americana. O mito da fronteira e da dos bits estão permitindo a nossa entrada em uma nova era
contínua colonização, que foi o motor dos Estados Unidos, onde os sistemas de telecomunicações, os contatos incorpó­
alcança o seu objetivo mais alto povoando todos os mercados, reos, a imaterialidade, a antiespacialidade e a assincronia vão
todas as redes de intercâmbio de informação, todas as novas a ser as pautas dominantes. Para outros, críticos radicais, pelo
maneiras de relação e todas as mentes. Uma sociedade metro­ contrário, a sociabilidade, os costumes comunitários, o con­
politana que tende a rejeitar os contatos corporais e que se tato humano, a espacialidade física, a estruturação e equilíbrio
baseia na desconfiança, no individualismo utilitarista e no típicos das humanizadas cidades européias, a tolerância para
consumo, conseguiu impor-se. A cultura da comunicação ele­ com os demais, a capacidade de reivindicação, associação e re­
trónica, pensada para tecidos formados por habitações isola­ beldia, são valores imprescindíveis que estão sendo postos em
das, segregadas em periferias suburbanas de baixa densidade, perigo por um novo sistema elitista, individualista, fragmen­
impõe-se sobre outras culturas do espaço urbano tradicional tário e consumista. Em qualquer caso, devem ser desenvolvi­
e da comunicação física. das perspectivas que sejam críticas com a hegemonia da tec­
Evidentemente, a essência da Internet e de outras redes nologia e seus sistemas de dominação.
internacionais de comunicação futuras é seu acesso livre, se­ Diante da perseguição de uma nova realidade baseada
melhante ao que ocorreu ao telefone. É possível incentivar, em arquiteturas nómades,33 espaços midiáticos, não-lugares e
inclusive, que todas as escolas, bibliotecas e instituições pú­ interconexões no ciberespaço, qual é o alcance da crise da
blicas disponham de acesso à Internet. E, de fato, ditas redes idéia já convencional de lugar? A arquitetura como espaço e
cibernéticas podem dar facilidade de trabalho a jovens exper­ a cidade como estrutura articulada serão dissolvidas ou, pelo
tos radicados nas periferias ou podem servir para coordenar contrário, o espaço e o lugar sempre serão necessários
organizações alternativas não-governamentais. Mas, ainda do à sua função de legibilidade e identidade? No futuro, os
que estes novos meios de comunicação possuam uma genuí­ contêiners povoados por sistemas de objetos não configura­
na vocação democrática, não há dúvida de que existe uma re­ rão um espaço mas sim um ambiente midiático; o protagonis­
lação entre riqueza e acesso aos computadores. Em um mo, então, já não será da arquitetura e sim da engenharia e do
neta onde a metade dos habitantes nunca utilizou um desenho industrial. Em qualquer caso, surgiu recentemente a
telefone, está sendo criada uma nova elite que, seguindo as contraposição ao conceito central de lugar, o não-lugar. De
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todas formas, os conceitos e as experiências do espaço e do 3. Veja o conceito de "espaço do estilo internacional" no transcen­
lugar estão em contínua transformação e, inclusive, dissolu­ dental artigo de Colin Rowe, "Neoclassicismo e arquitetura moder­
ção. O lugar e o não-lugar -como o espaço e o antiespaço­ na II" em Manierismo y arquitectura moderna e otros ensayos,
são polaridades extremas. O espaço quase nunca é delimita­ Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 1978.
do perfeitamente, da mesma maneira que o antiespaço, qua­
4. Veja Ignacio Paricio, La construcción de La arquitectura. La com­
se nunca é infinitamente puro. O lugar também nunca poderá
posición. La estructura, Institut de Tecnologia de la Construcció,
ser totalmente eliminado e o não-lugar nunca é fechado radi­
ITEC, Barcelona, 1994.
calmente. Em nossa condição presente, espaços, antiespaços,
lugares e não-lugares entrelaçam-se, complementam-se, inter­ 5. Em relação ao conceito de chora utilizado por Platão, veja
penetram-se e convivem. berto Pérez Gómez, "Chora: the Space of Architectural Represen­
tarion" em Chora, volume I, Mc Gill- Queen's University Press,
Montreal & King, Londres, Buffalo, 1994.

Notas bibliográficas 6. Veja a Física de Aristóteles publicada pelo Editorial Gredos,


Madri, 1995. Consulte as Obras CompLetas, Editorial Aguilar,
1. László Moholy-Nagy, em seu texto crucial A nova visão, edição Madri, 1971 ou leia as edições comentadas como a inglesa: William
em inglês The new vision, Wittenborn-Schultz, Nova Iorque, 1947, Charlton (cd.), Aristotle. Physycs. Books I and I! e Edward Hus­
dirige todo o esforço de abstração da arte à conformação de um sey (ed.) Aristotle. Physics. Books II! and IV, Oxford University
novo espaço: "Um caminho aberto à nova arquitetura foi indicado Press, Oxford, 1970. Veja também o termo "lugar" em José Ferra­
por outro ponto de partida: o interior e o exterior, o superior e o ter Mora, Diccionario de fiLosofía, Ariel, Barcelona, 1994.
inferior, fundem-se em uma só unidade/ .. .I. As aberturas e os
mites, as perfurações e as superfícies móveis, levam a periferia ao 7. Vincent Scul1y desenvolveu o conceito da diversidade de templos
centro e deslocam o centro para fora. Uma flutuante constante, para dóricos segundo os diversos lugares no texto: The Earth, the Tem­
os lados e para cima, radiante, multilateral, anuncia que o homem pLe and the Gods, New Haven, Londres, 1962. Christian Norberg­
se apropriou -até onde a sua capacidade e suas concepções huma­ Schulz trata da relação entre deus grego e lugar no livro Geniusloci.
nas permitir- do imponderável, invisível e, sem dúvida, onipresente Paesaggio, ambiente, architettura, Electa Ed., Milão, 1979.
espaço."
8. Extraído de Denis Diderot, Ensaios sobre pintura, Papirus, Cam­
2. O conceito de antiespaço, que usaremos com freqüência, aparece pinas, 1988.
no artigo de Steven Kent Peterson, "Space and antispace". Harvard
Architectural Review, n.O 1. 9. Esta dualidade entre os conceitos de espaço e lugar é desenvol­
vida por Christian Norberg-Schulz em alguns de seus libros. No
52 ]osep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 53

primeiro texto, [ntenciones en arquitectura, Editorial Gustavo Gili, bre a melhor obra italiana desde 1928 até 1979, ela foi considerada
Barcelona, 1970, critica a Bruno Zevi pelo impreciso e indetermi­ a prImeIra.
nado uso que ele faz da palabra "espaço"; em Esistenza, spazio e
architettetura, Officina Edizioni, Roma, 1975, tenta dar continui­ 13. Estamos nos referindo especialmente ao escrito de Martin Hei­
dade ao conceito moderno de espaço com a inclusão de questiona­ degger, "Costruire, abitare, pensare" em Saggi e discorsi, Mursia,
mentos existenciais. Veja também, por exemplo, como o artigo de Milão, 1976,p.102.
Edson Mahfuz "Do minimalismo e da dispersão como método de
projeto". A U, Arquitetura e Urbanismo, n.O 24, São Paulo, 1989, 14. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, Editora
critica a falta de detalhes arquitetônicos no Memorial da América Martins Fontes, São Paulo, 2001, 3.a edição.
Latina em São Paulo, obra de Oscar Niemeyer. E isto leva o autor
a considerar que é precisamente" a presença de detalhes deste tipo, 15. Maurice Merleau-Ponty, op. cito
conjugada com uma organização clara das partes principais, o que
determina que um espaço possa ser vivido como lugar". 16. A idéia de genius loci está baseada na antiga crença romana de
que todo ser independente tem seu genius ou espírito protetor. Os
1O. Veja H. Allen Brooks, "Wright e a destruição da caixa" em José deuses familiares que habitavam a casa romana eram os lares (espí­
Angel Sanz Esquide (ed.), Frank Lloyd Wright, Editorial Estylos, ritos guardiões da casa), os genius (divindades tutelares do cabeça
Barcelona, 1990. de família) e os penates (divindades protetoras da comida).

11. Sobre o New Empirism, justo no momento de ser detectado, 17. Um texto específico sobre conceito de lugar é o de Juan Luis
veja The Architectural Review, junho de 1947, o editorial dedicado de las Rivas, EI espacio como lugar. Sobre la naturaleza de la forma
a "The New Empirism" e The Architectural Review, janeiro de urbana, Universidade de Valladolid, Valladolid, 1992. Nele, Ribas
1948, o artigo de Eric de Maré "The New Empirism. The antece­ insiste especialmente na grande escala e confunde, várias vezes, es­
dents and origins of sweeden's latest style". tas diversas escalas de interpretação do conceito de lugar.

12. Sobre a casa de Adalberto Libera para Curzio Malaparte em 18. Para mais referências a respeito destes arquitetos, veja Josep
Capri, veja os artigos deJohn Hejduk "Casa come me". Domus, n.o Maria Montaner, Depois do movimento moderno. Arquitetura da
605, Milão, abril de 1980, e de Manfredo Tafuri, "L'ascesi e iI gio­ segunda metade do século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona,
coo 11 metaforico naviglio di Malaparte e Libera a Capri". Gran 2001.
Bazaar, julho-agosto de 1981. Existe, além disso, a monografia de
Marida Talamona, Casa Malaparte, Cooperativa Universitária do 19. Martin Heidegger, op. cito
Politécnico de Milão, Milão, 1990. Paradoxalmente, esta obra foi
esquecida e marginalizada de todas as histórias convencionais da ar­ 20. Como mostramos, Christian Norberg-Schulz desenvolveu es­
quitetura, sendo que em uma recente enquete entre arquitetos so- las idéias em livros como Esistenza, spazio e architettura, Officina
54 ]osep Maria Montaner Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna 55

Edizioni, Roma, 1975; Genius loci. Paesaggio, ambiente e architte­ nencia o producción", em Diferencias. Topografia de la arquitectura
tura, Electa Ed., Milão, 1979, e em seu artigo"Il concerto de luogo". contemporânea, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 1995, e "Presen­
Controspazio, junho de 1969. te y futuros. La arquitectura de las ciudades". VVAA., Presente y
futuros. La arquitectura de las ciudades, UIA 96/Col·legi
21. Martin Heidegger, op. cito d'Arquitectes de Catalunya/Centre de Cultura Contemporànea de
Barcelona/Actar, Barcelona, 1996.
22. Nos referimos ao livro de Sigfried Giedion, Achitecture, you
and me, Oxford University Press, Cambridge, Mass., 1958. Por ou­ 25. Veja J osep Maria Montaner, M useos para el nuevo siglo!M u­
tro lado, a importância outorgada naqueles anos ao caráter ambien­ seums for the N ew Century, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 1995.
tal do lugar também é expressada na cultura italiana pelo conceito
de "preexistências ambientais" estabelecido por Ernesto Nathan 26. Marc Augé, Não-lugares. Introdução a uma antropologia da
a
Rogers em seus editoriais da revista Casabella e aplicado neste caso supermodernidade. Editora Papirus, Campinas, 1994, 1. edição.
ao contexto da cidade histórica européia.
27. Julio Cortázar e Carol Dunlop, no livro Los autonautas de la
23. É conhecida a história do arquiteto Emic Sària visitando a cosmopista, Muchnik Editores, Barcelona, 1983, realizaram a ex­
Josep Lluís Sert no princípio dos anos sessenta, para recolher assi­ periência excepcional de viver durante 30 dias na estrada Paris­
naturas destinadas a salvar uma das obras de Lluís Domenech i Marselha, um não-lugar emblemático que então denominava­
Montaner, a casa Fuster em Barcelona. Sert se negou a apoiá-lo, ex­ -se um no man's land-, como se fosse um lugar para a vida
clamando: "Jovem, quando eu tinha sua idade fazíamos manifestos cotidiana.
para demolir obras como esta, não para conservá-las" e passou a dar
detalhes de como deveria ter sido a demolição. (Citado por Jordi 28. Paul Virilio, Estetique de la disparition. Le Livre de Poche,
Garcés em Quaderns d'arquitectura i urbanisme, n.o 165, Barcelo­ Paris.
na, 1985, p. 167). Neste sentido, as formulações mais radicais do ra­
cionalismo são bastante explícitas a respeito da sua relação com o 29. Veja Michel Foucault, "Espacios otros: utopías y heterotopías".
entorno natural e construído. Hannes Meyer, por exemplo, procla­ Carrer de la Ciutat, n.o 1, Barcelona, janeiro de 1978.
mou que a arquitetura "como obra resultante do pensamento hu­
mano está em contraposição à natureza". (Extraído de Hanno­ 30. William Gibson, N euromancer, Editora Aleph, São Paulo, 1991.
Walker Kraft, Historia de la teoría de la arquitectura, Alianza Mike Davis no livro City of Quartz: Excavating the Future in L. A.
Forma, Madri, 1990.) e em seu panfleto Beyond Blade Runner. Urban Control and the
ecology offrear, Open Magazine, Westfield, New Jersey, 1992, apre­
24. Veja Peter Eisenman, La fine deI c!assico, CLUVA Editrice, Ve­ senta uma interpretação ciberpunk de Los Angeles, dominada pela
neza, 1987; OMA, Rem Koolhaas e Bruce Mau, 5, M, L, XL, 010 ecologia do medo.
Publishers, Roterdã, 1995; Ignasi de Solà-Morales, "Lugar: perma-
56 ]osep Maria Montaner

31. Veja William J. Mitchell, City of Bits. Space, place and the ln­ o racionalismo como método de
fobalm, The MIT Press, Boston, 1995. projeto: progresso e crise
32. Estamos nos referindo a textos como o de Herbert L Shiller,
Aviso para navegantes, Icaria, Barcelona, 1996; Micha Bandini,
"Urbanism and Disurbanism: the impact of Information Tecnolo­
gy on the construction of place", texto inédito da conferência pro­
nunciada no Colegio de Arquitectos de Cataluõa em 1996 e Vicente
Verdú, EI planeta americano, Editorial Anagrama, Barcelona, 1996.

33. Veja o livro de Ronald Christ e Dennis Dollens, Nueva York.


Diseno nómada, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 1993.

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