Você está na página 1de 36
A PRAIA: espaco de socialidade Quilémetros de praia despercebida A freqiiéncia em massa a praia atlintica para o banho de mar, ao longo dos 8 mil quilémetros do litoral brasileiro, é de proporgdes a merecer a atengio dos cientistas sociais Esse movimento desloca milhdes de pessoas das cidades litorineas e de regides vizinhas ao tempo em que atrai turistas de outros paises; estes vém ao Brasil em parte motivados pelas caracteristicas dessas praias. A anélise dessa atividade, entretanto, deve comegar — como aqui se tenta — por uma breve sécio-histéria de movimentos precedentes. Como o cotidiano com o tempo se faz historia, a meméria faz a dimensio temporal dos dados sociais e culturais. Nao hé presente sem passado, donde o imperativo de considerar os fa- tos sempre como desdobramentos de realidades anteriores, sem o que ¢ incompreensivel © atual. O diacrénico compée o sincrénico, a justificar que a ciéncia do social tenha a perspectiva da continua mudanga do humano. Por isso, a abordagem cientifica lucra em objetividade e explicidade quando incorpora nalguma medida o histérico paralelamente a0 estético, a0 postico, como reveladores do concreto. O “meu tempo” dé, assim, sentido a0 hoje, ao factual, ao atual. “A humanidade sé compreende o novo quando este herda muito do antigo”, diz um filésofo inglés.” Lembro a praia como descoberta, enquanto sitio de acio coletiva multitudinaria e especifica para os brasileiros, de menos de um século, de cerca de setenta anos, como adiante se vera. Antes do “banho salgado” ou “banho de mar”, a diversao e 0 exercicio em grupo, fugindo da rotina diéria, se faziam no picnic, excursio de familia, de parentela ou de amigos, colegas ou vizinhos a algum lugar aprazivel nos arredores ou arrabaldes Thales de Azevedo 28 das cidades, ficil de alcangar pelos meios contemporineos de transporte. Reuniam-se em idades, poucas dezenas de individuos dos dois sexos, homogéneos em stats, as em local aberto, acessivel, sombreado por arvores ou beira-mar. Uma atividade caracteri ticamente campestre que podia realizar-se, também, em jardins e parques puiblicos, em torno de uma érea limitada de terreno marcada por uma esteira ou pela vegetagio rasteira, para conversar, cantarolar, comer e beber, entre o nascer e o pér-do-sol. Era motivado pelo interesse de “Variar” do ramerrio cotidiano, pelo desejo de isolamento e afastamento do quadro urbano ordindrio para dissipar no convivio de algumas horas a canseira e a mesmice da vida habitual de trabalho, uma versio ou extensdo dos encontros na sala de visitas ou de jantar em menor formalidade, porém, guardando bastante daqueles no vestuirio, mais leve embora, no comportamento, no estilo de etiqueta, na declamagao, no aos domingos canto, no dedilhar de instrumentos musicais. E: reunides ocasionais, ou dias santos, mais no tempo seco do que no periodo chuvoso, davam lugar a contatos primérios, proximos, porém recatados e respeitosos, de pessoas que se conheciam ou se queriam conhecer, dando ensejo a flertes ¢ namoros, a aproximagoes familiais e vicinais, aacertos profissionais, acima de tudo ao relaxamento de tensdes no ambiente trangiiilizante do que se chamava “o mato”, isto é, as matas ou florestas ralas, destituidas de animais daninhos ou outros riscos. Uma modalidade de picnics veio a ser os passeios de recreio, as excursdes mais longe em trens, vaporesinhos costeiros nas enseadas, 6nibus € auto- méveis, em grupos maiores, em geral com a venda de passagens a estranhos que, ja naqueles veiculos e particularmente nos sitios de destino, se segregavam segundo seus relacionamentos, empreendimentos com organizagio comercial, abrangendo grupos muito maiores e heterogéneos. Rumavam igualmente para florestas e praias e, pelo mimero € diferenciagio de seus componentes, mais tendentes a provocarem estra- nheza, as vezes choque ou conflito com moradores de localidades visitadas na con- corréncia de urbanitas e ruralistas. A diversao ini iculos iava-se jé nos mencionados v s. Nos dois casos, os participantes podiam levar, quando muito, alimentos secos, sanduiches, com danga, miisica de pequenas charangas ou bandas, brincadeiras vai bolos ou se abastecerem nos locais de destino. Desses encontros, as revistas noticios “mundanas e sociais”, nos anos imediatamente posteriores 4 I Guerra, faziam registro em grupos fotogrificos tomados por suas Kodaks, anchutz ou “instantineas”, ¢ em cronicas de jornalistas ¢ cronistas especializados que num daqueles periddicos se O Cotidiano e seus Ritos 31 intitulavam, durante alguns dois decénios, de /epagdes ou, como explicam os di meiras méquinas fotogréficas portiteis se registravam cenas do footing, do passeio das damas ¢ mocinhas da “sociedade” pela Avenida Beira-Mar aberta no periodo de narios, comentirios jocosos, pilhérias e cagoadas. Também com aquelas pri modernizagao da Capital Federal de entio, nos primeiros anos do século XX, bem como a saida das missas-das-onze horas nas igrejas mais freqiientadas pela burguesia, 0 corso dos automéveis no carnaval... O pintor francés Edouard Manet celebrizou o pic-nic no quadro de 1863 Le dejéuner sur Vherbe, em que o modelo ainda desnudo, num intervalo de sua pose, faz leve refeiggo no chao de uma clareira de floresta, na companhia do autor ¢ de seu amigo. Quando folheamos uma publicagao periddica do comego do século XX, como Kosmos, a afamada revista “artistica, cientifica ¢ literdria” de prestigio, em cujas paginas colaboravam assiduamente literatos, historiadores, poetas, pintores, caricaturistas, intelec- tuais de varia categoria, verificamos que as cenas escolhidas pelos redatores ¢ obtidas ou encomendadas aos fot6grafos, uma vez ou outra aos desenhistas, c+am as florestas, as quedas d’4gua, as cachoeiras, as cascatas, os lagos, os agudes. A figura humana é secundaria nessas paisagens: aparecem, entretanto, nas vistas do Jardim Botinico, das Paineiras e do Silvestre, de Paquet, do Saco de Sio Francisco, da Ilha do Governador, nos instan- tineos de manifestagdes politicas, de festas e banquetes, de cerim6nias religiosas. A ilha de Paquet, tio procurada mais tarde pela beleza de suas praias, em 1904, é caracterizada naquela revista carioca pela “festa das drvores” ali celebrada e pela Pedra da Moreninha. Na exaltagio de nossa natureza pelo conde de Afonso Celso no livro Por gue me ufano de meu pais, de 1900, que teve pelo menos trinta edigdes e foi adotado nas escolas, nos quartéis, nas repartigGes, nas associacdes civicas como a biblia da mistica patristica, 0 que se projeta como motivo de orgulho para os brasileiros sao as florestas virgens, o rio Amazonas, a Serra dos Orgios, as ilhas, “o firmamento guarnecido de sereno e purissimo azul”, além das riquezas do subsolo e a amenidade do clima sem terremotos, tufées, bor- rascas, vuledes, tudo a compor o quadro elegiaco para a felicidade a bondade do nosso povo. Nessas paginas a bata do Rio de Janeiro é pintada, junto com Niterdi, numa imensa bacia em anfiteatro tendo no centro “graciosa multidio de ilhas” e nas margens, colinas cobertas de matas, 0 mar alto, as fortalezas, “um horizonte infinito”, um panorama surpreendente com picos e montes ¢ uma muralha de serranias. Nem uma palavra para Thales de Azevedo 32 as praias em torno das quais as duas cidades se haviam implantado. © que a descrigdo mostra € que a orla marinha nio contava para 0 embevecimento, a vida € o proveito da gente. Velha era essa cegueira. Fazendo o elogio da bafa da Guanabara, em 1903, Damas- ceno Vieira transcreve trechos de viajantes célebres, Ferdinand Denis em Le Brésil, Auguste de Saint Hilaire em Voyage au Brésil, Charles Darwin em Voyage d'un naturaliste e Paul Gaffarel na Histoire du Brésil francais, em que nenhum desses escritores, encantados com a beleza da regio, se refere As suas praias. Somente Darwin afirma que durante sua demora no Rio habitou uma pequena casa de campo na enseada de Botafogo, sem aludir 4 praia.’ Curioso que em 1927, quando esteve no Rio e hospedou-se no Hotel Copacabana Palace, o jurista espanhou Luis Jimenez de Asua, admira-se das vilas, chalets e palacetes do bairro, da Avenida Atlintica, “um dos maiores encantos do Rio” e do contorno da bafa com 0 Pio de Agticar, o Corcovado, e Serra da Tijuca, a Cascatinha, a Mesa do Imperador, a Gavea, que descreve como “paisagem superlativamente atrativa ao entardecer”, lugares aos quais o levaram seus colegas. Nem uma palavra sobre a praia que avistaria daquele hotel.’ E que aquela praia estaria ainda “quase deserta”, como a viu Paul Morand trés anos depois. Nao que fosse desprezivel ou ignorada, nas suspeita, temida por sua conspiragao com © mar contra 0 homem. Diz Camara Cascudo que nio encontrou nunca documentagio dores popular sobre a tradigao do mar na crendice popular e que o mesmo viu entre pes porque se acredita que “o mar é um ser com vontades, manias, gostos ¢ simpatias ripidas ou de prolongacio suspeita”. Além disto 0 mar se irrita “porque nao foi batizado e é pagio”. ‘Tem mais pudor que Poseidon ou Netuno. E mais, “praia em que mulher toma banho no tem peixe, O mar é sagrado”, Kis alguns dos motivos pelos quais o mare a praia eram evitados subconscientemente. Vé cantar na praia, ou Vé a praia ou Morrer na praia’ sio pragas aos insistentes, aos pedinchées importunos, aos cantores desafinados, aos de conversa mole, explica 0 mestre folclorista, porque ¢ uma inutilidade o canto as ondas, indiferente e anulador do esforgo vocal como jé dizia, ha mais de quatro séculos, Gil Vicente, pela boca da Velha irritada com a odiosa serenata de um pobre escudeiro.” Cabe aqui observar que a percepgio do meio natural, com quaisquer elementos que compreenda e abranja, é uma primacial exigéncia, uma imperativa necessidade da existéncia humana, porém, o homem s6 se faz ou completa ¢ realiza na ¢ com a natureza, donde lembrar Bidney que tanto 0s artefatos quanto os socifatos ea cultura tém como O Cotidiano e seus Ritos 33 constitutivos imediatos, essenciais, a natureza sentida e percebida.’ Defrontamo-nos a esta altura com um problema sociocultural, o da captacio e percepgio do meio geogrifico: a eminente socidloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, numa anélise de conceitos pro~ postos por Gurvitch anos atrés, mostra que percebemos a paisagem quando esta é humanizada, nao cruamente natural, fisica, mas tocada pelo homem ou mesmo af presente vivendo e agindo.’ Nos casos a que nos referimos atris, a praia nao é sequer percebida como paisagem, dado que tinha reduzido significado humano. Seria apenas o inevitivel caminho do pescador para o mar, do puxador da rede e do lancador da tarrafa, do canoeiro e do jangadeiro para o embarque em suas naus. Talvez. nada para o citadino, o urbano. Poucos a conheciam realmente. Na imaginacio dos urbanitas, particularmente dos sofisticados intelectuais isolados em suas torres-de-marfim, em seus saldes, seria, quando muito, moldura inerte, alva fimbria da terra, arremate do espago visivel de longe. Poucos a conheciam, um destes para exemplificar, o romancista baiano Xavier Marques, morador de Ttaparica, a grande ilha, freqiientador das praias do Recéncavo, autor de diversas “novelas praieiras” de fins do século XIX, nas quais desenha vividos quadros da vida e da faina dos pescadores, de seus amores e idifios, de suas lutas ¢ alegrias, a mostrar a intensidade da agio e da existéncia ao mesmo tempo sofrida, herdica e poética daquela gente simples. E 0 que significava para esta 0 meio, 0 chao movedigo, banhado pelas ondas, 0 solo fofo de que dependia. " “Quem vem pra beira do mar” e para quem “ doce morrer no mar”, na suave poesia cantada por Dorival Caymmi, séo os pescadores, os jangadeiros, os canoeiros ¢ suas mulheres ¢ filhas, para a pescaria, os presentes a Mae- d’igua, os dois-de-fevereiro... (ver Caymmi, Som Imagem Magia, Fundacio Emilio Odebrecht, 1986). Para o pescador, a praia é um lugar de trabalho arduo, de preparagio para a pesca, de reparo das embarcacoes ¢ das redes, um lugar de convivio com iguais, caminho para o mar em que penetra para alcangar a canoa e a jangada e para lancar a rede, a tarrafa, munzud, a armadilha de peixes, e para armar a camboa. Molha-se nessa Agua, mergulha as vezes, por necessidade mas pouco por divertimento. De fato, marinheiro, pescador, tripulante de navio muitas vezes nao sabe nadar nem se banha no mar. Isto é coisa de gente da cidade. Thales de Azevedo 34 Banho salgado e passeio na praia como remédios A busca de repouso, da cura orgiinica e psicolégica, da variagio e do convivio insipido no dia-a-dia eram procurados pelos estamentos superiores da sociedade, pelos profissionais € altos funcionérios puiblicos, no veraneio em povoagées afistadas dos “centros”, das cidades maiores, durante 0 periodo de férias escolares prolongadas por cerca de trés meses de dezembro a fevereiro. As sugestdes para tais movimentos — que desencadearam mais adiante 0 turismo interno e externo—vinham particularmente da Europa, onde se freqiientavam os lugares- de-montanha e as estacdes-de~dguas minerais ¢ termais, os Alpes, os Pirineus, Vichy, Evian na Franga, Baden-Baden na Alemanha, Montecatini na Itilia. Os menos abastados gozavam do “clima europeu” ou “clima de montanha”, sobretudo nas proximidades do Rio de Janeiro, em Friburgo, Itatiaia em Petrépolis onde o Imperador Pedro II construiu um palicio para seu veraneio ¢ os presidentes da Reptiblica vieram a fazer outro tanto, arrastando a corte e familias dos estratos superiores a garden-parties, a bailes, a torneios esportivos, passeios e picnics que foram temas de romances, por exemplo, de Afrinio Peixoto’ e de matéria para cronistas, reporteres e fotdgrafos. Para férias e a cura de doengas do estmago, da pele, dos nervos, o reumatismo, a asma, ia-se, por perfodos de cerca de trés semanas cada vez, sob prescrigao médica muitas vezes, is fontes de Caxambu, Cambuquira, Lambari, Pogos de Caldas ou fazia-se 0 “circuito das 4guas” e ai banhar- se, tomar duchas, beber as 4guas minerais e termais. Muito dessa presenga destinava-se a jogar nos cassinos, a dancar nos bailes dos hotéis e a “ver e ser visto”, como exigéncia da aquisigéo e exibigdo de status.” O deslocamento para tais localidades era facilitado pelas estradas-de-ferro cuja cons- trugio teve inicio, na segunda metade do século passado, ligando o Rio de Janeiro e Sto Paulo a Minas Gerais e ao interior do pais para 0 escoamento da produgio agricola, es- pecialmente do café, da pecudria, da mineragdo, da madeira. Assim, hoje o turismo, esse “ito moderno” se encarado do ponto de vista antropolégico, muito deve as redes ferrovidrias e rodovidrias. ” Imemorial em todo o mundo, o banho salgado ou banho-de-mar e o passeio a beira- mar foram praticados no Brasil desde muito. Gregério de Mattos Guerra, no século XVI, conta em uma de suas décimas a excursio que fizera com amigos a praia do Rio O Cotidiano e seus Ritos 35 Vermelho, na cidade do Salvador: no caminho parou no sitio da capela de Sio Gongalo, que esti documentada em desenho de Ourler, almocou sopa de leite, repolho ensopado e no de azeite, com pratos de arroz de leite, finalmente, “sesteamos no areal/onde o mar por mazumbaia/refrescando estava a praia/com borrifos de cristal;/a onda piramidal/que nos ares se desata,/descaindo em grios de nata/pedia por bom conselho,/que em vez de rio Vermelho/Ihe chamassem rio da Prata”. Quando o sol ia descendo “por graus, ou degraus no céu e a todos nos pareceu 0 irmo-nos acolhendo”, prenderam os rocins, em que haviam montado, os selaram e enfrearam, voltando A cidade." F. possivel que nao se banhasse, mas apreciou os ares ¢ a beleza do mar, como fariam outros baianos & época. A freqiiéncia da praia era individual ou em pequenos grupos discretos, evitando um pouco serem vistos ou se exporem ao olhar de estranhos e desconhecidos. O banho considerava-se conveniente para a satide, para o tratamento da clorose ou anemia das devido & riqueza da dgua marinha em iodo e outros jovens e alguns outros males principios minerais. Antiquissima essa crenga em Galieno, Asclepiades, Celso (autor), Aristéfanes, que recomendavam a agua salgada para curara epilepsia, a paralisia, até a cegueira, utilizando jé, sem 0 saber, 0 iodo, 0 cloro, 0 potissio, o enxofre, 0 s6dio, 0 manganés. Inauguravam a terapéutica balnedria, em que confiavam Hipécrates ¢ outros do seu remoto tempo, dizendo Celso que o sal seria bom para o homem; o ar salino ressucitaria os mortos, ¢ 0 imperador romano Augusto, curado do reumatismo articular, iniciou a moda dos banhos na costa de Ostia, a cinco léguas de Roma. Naquela época também se pensava que bronzear a pele na praia fazia bem a savide (Paul Morand, Bains de mer bains de réve, Lausanne 1960). Relata o historiador Pedro Calmon a respeito do principe regente de Portugal, dom Joio VI, corrido de Lisboa pelas tropas de se lhe alterou deveras uma vez Napoledo, em 1808, easilado no Brasil, que “a satide s no Rio de Janeiro. Mordeu-o um carrapato em Santa Cruz, a inflamagio lhe causou febre e piorou de tal sorte do hereditério incomodo das pernas que a corte receou complicacées funestas. Sarou lentamente. Aconselharam-Ihe banhos salgados. Decerto Ihe lembraram a receita que certo médico russo dera a Catarina II, cujos tornozelos inchados € disformes foram tratados por algum tempo com agua do mar. Mandou fazer na praia do Caju um grande caixio de madeira. Metia-se nele, uns tureos de navio arrivam-no na maré e, assim, sem perigo, vigiado pelo médico e pelos lacaios, tomava um banho salutar, Fez-lhe bem. Foi o tempo em que substituiu a sege por uma Thales de Azevedo 36 vasta cadeirinha carregada as costas por 12 negros descalgos, vestidos de seda carmezim, nos topes das barretimas escudo real (...). A moda espalhou-se. Moda dos banhos salgados ¢ das cadeiras de arruar que, em 1808, os costumes ingleses, com as carruagens ¢ os cavalos de raga, tinham banido das ruas urbanas com o lixo e 0 bodum da colénia”."* D. Carlota Joaquina, esposa de dom Joao, passou (do Pago de Sio Cristévao) para o sitio de Botafogo a tomar ares e banhos” de que nao participavam seu filho, o futuro imperador Pedro I; ali permanecia cerca de um més. A capital da antiga colonia portuguesa modernizava-se com a presenca da corte: “a preferéncia dos moradores que desertavam os antigos bairros, cujas ruas apertadas, mais barulhentas e incémodas se tornaram ainda, desde que por elas foi permitido vender, recaiu primeiro sobre 0 Catete e as lindas praias que capricho-samente se desenrolam desde a Lapa até a enseada de Botafogo. Nelas se localizaram os banhos de mar”.”” O tratamento de doengas por aquele meio dava lugar A valorizagio de casas & venda nas imediagées da praia em muitas cidades e ao antincio de hospitais e casas-de-satide que ofereciam aquela terapia. Num jornal baiano, avisava-se, em 1857, da venda de uma casa “perto da pancada do mar”, de outras “a dois passos do banho salgado”, terrenos “em posigdo muito aprecidvel pelo continuado fresco que ali reina, como pela proximidade dos banhos salgados” e até uma conveniente para colégio ou casa-de-satide. Na verdade, esse género de estabelecimento instalava-se, as vezes, em locais na vizinhanca do mar, como o do Dr. Augusto Vilaga na ilha de Itaparica e 0 do Dr: Adriano Alves de Lima Gordilho que, em 1861, além dos banhos frios de choque, os de bareges ¢ os de vapor, oferecia banhos salgados, “o que — rezava 0 antincio no Jornal da Bahia — torna titi ao 18 , escrofulosas, escorbtiticas, nervosas, etc”, reumatismo, a paralisia, as moléstias sifilitic ‘Também a cura do béri-béri, uma polineurite endémica, produzindo anemia, edemas € paresia das pernas, doenga de enigmatica etiologia para os médicos dos fins do século XIX a anos vinte do XX, fazia-se em hospitais civis e militares com banhos de mar, antes que se descobrisse a deficiéncia vitaminica que a explica.” Ainda nos anos 1920, 0 Doutor Prof. Pirajé da Silva, em suas notas a Meméria Histérica, de Bernardino Fereira Nébrega sobre as vit6rias dos itaparicanos na campanha da independéncia (publicada em 1923), dedica um capitulo ao exame das conservacGes do médico Silva Lima nos anos 1860 e tantos no tratamento do béri-béri em Itaparica, citando-o a dizer que “Itaparica é, pois, sem contestacao, excelente refiigio para O Cotidiano e seus Ritos 37 sanatorium contra o béri-béri, para as pessoas que nao podem emigrar para a Europa ou para o Sul do império e, como tal, deve merecer a confianga da classe médica também a atencio do governo provincial, que pode facilitar aos doentes pobres este beneficio” (p. XXXT a XXVD) Aida A maré, como entio se dizia, , se dava bem cedo, de madrugadinha, as vezes de manhizinha, ao nascer do sol, por uma ou duas horas se tanto, enquanto 0 mar estava descansado e nao houvesse o inconveniente de queimar a pele alva das mocinhas e das senhoras. Estas cobriam-se pudicamente com uma “roupa-de-banho”, imitada de Ostende na Bélgica, de Deawville, Biarritz, Trouville na Franca, de li grossa, pesada, abaeta, em geral azul-marinho com debruns de soutache branco, uma calca fofa ajustada no tornozelo, um amplo casaco descendo até o joelho e mangas compridas ou pelo me- nos ao cotovelo; na cabega, um gorro do mesmo tecido e acabamento. Nos pés, um sapato raso de lona com sola de corda trancada, o peixe-gelado, como protec contra ostras, pedras, cacos de vidro, lama dos mangues. Os homens vestiam jé uma calga cortada ao joelho e camisa de malha ou uma pega inteiriga deste estofo, desenhada com riscas horizontais. Antes de langar-se na égua, as pessoas benziam-se, fazendo o sinal- da-cruz no rosto com a mio direita molhada no salso elemento, preocupagio contra os perigos, tio temidos, do mar. A safda-de-banho, roupio de pano esponjoso de cor clara, cobria 0 corpo das mulheres na caminhada entre a maré e a terra-firme. Mesmo os homens fugiam de ser vistos. Num conto publicado em 1904 na revista Kosmos, um jovem sai da 4gua correndo para “fugir’ curiosidade maldizente dos espectadores ociosos”. Veste-se e vai ao encontro de uma senhorita que por ali expde-se, em traje de passcio, sentada numa cadeira de vime “ao lado da mama radiosa, nessa roda de imbecis que povoam a praia quase deserta com as figuras obesas...”. As praias assim freqiientadas eram, até comecos do século XX, as das bafas e mares interiores, no Rio as de Santa Luzia, Boqueirio do Passeio, Botafogo, do mesmo modo noutras partes do litoral, até perto dos anos 1920; por aquela altura, as praias de mar alto eram lugares para passeio ¢ gozo da brisa marinha como mostram fotografias nos periddicos.” A autora do texto de 80 anos de moda no Brasil transcreve 0 depoimento de uma habituée da praia carioca nos anos 1920: “para as ‘roupas de banho de mar’, definigio adequada para os trajes usados nas praias, exigia-se calgdo bufante até o joelho, casaco até a altura dos quadris, saia até 0 joelho, touca franzida e sapatos de tecido com sola de corda, ou inteiros de borracha, Thales de Azevedo 38 amarrados no tornozelo e, em alguns casos, acompanhados de meia 3/4 preta de algodao. O tecido era a sarja, uma vez que a intencio era a de nao deixar ver as formas do corpo. A evolugao sé acontece em meados da década. E explica: “amos muito & praia de Copacabana, ¢ eu € minha irma gémea (...) usamos, em 1924, os primeiros maids de malha de la do Rio de Janeiro. Foi o maior frisson, e alguns rapazes vinham de longe s6 para nos ver. O meu era vermelho 0 de Claude era verde. Tinham decote redondo ¢ iam até o meio da coxa, Costumévamos levar vitrola para a praia e isso era outro escandalo”. (Silvana Gontijo, 80 anos de moda no Brasil, Ed. Nova Fronteira, s/d) E continuava: “Além dos banhos de mar, eram freqiientes os passeios de bicicleta em Paqueté, e algumas mulheres mais avangadas comegavam a dirigir automéveis (...). A alta sociedade passava o verdio em Petrépolis, numa féerie de acontecimentos sociais” Os banhos batidos A importagio de automéveis franceses, norte-americanos, alemies ¢ a extensiio das linhas de bondes-elétricos levam, no Rio de Janeiro, as praias oceinicas do Leme, Copacabana, Ipanema, mais tarde Leblon e adiante, facilitando 0 acessoa antigas fazendas que se vio loteando para moradas e casas de veraneio. O mar nao é mais contemplado da Avenida Central, da balaustrada do Flamengo, de Botafogo, mas buscado com avidez no litoral aberto para os “banhos batidos” no mar agitado e perigoso. Os que passeavam ou faziam picnics no Alto da Boa Vista, em Santa Tereza, em Cas ea residir nos novos bairros. Deflagra-se intenso proceso sociodemogrifico e urbanistico dura tendem a veranear com 0 deslocamento de populagdes, a mudanga de fungSes dos bairros tradicionais, 0 surgimento de negécios industriais de hotelaria, de abastecimento alimentar, de diver= timentos ¢ turismo, produz-se a projeco internacional desses lugares como sucedew no México a Acapulco, no Chile a Vila del Mar, no Uruguai a Punta del Este, a tiltima com a contribuigdo de brasileiros que ali adquirem propriedades enquanto, mais tarde, encorajados pela desvalorizacio de moeda brasileira, argentinos, uruguaios e outros compram moradas em praias do Brasil. Nestas, por sua vez, crescem e modificam-se localidades caracterizadas pela presenga de banhistas; toda essa corrida atinge também as margens de rios, de acudes, de represas, de lagoas ¢ lagunas. Promovem-se “banhos a fantasia”, réplicas do carnaval para atrair mais gente e para animar os freqiientadores. © Cotidiano e seus Ritos 39 Essa brincadeira era, muitas vezes, improvisada ao término de um bal masgué em sales, hotéis, clubes, situados em lugares préximos ao mar. E, por motivagées idénticas, constroem-se avenidas nas quais se instalam servigos de vigilincia e salvamento, o famoso Posto 6, de Copacabana, é um destes, ¢ armam-se barracas para a venda de bebidas, alimentos, coco verde, sorvetes. A cidade invade 0 campo, o urbano sucede ao rural representado pelas fazendas, pelas rogas, pelas povoagées de pescadores. © trabalho investido sob a forma de morada e de freqiiéncia humana confere outra utilidade a terra. A taxa de utilidade, antes interessando de modo particular a poucos, passa a ser de necessidade nova para muitos. Esse é 0 principal efeito do movimento naquela diregao € para aquele objetivo. Mas ¢ importante notar que se formam novos hibitos, assumem- se outros interesses, criam-se diferentes necessidades até entio praticamente inexistentes ou limitadas a poucos individuos. O modo de fazer contato com a 4gua marinha no é mais 0 mesmo, exige titicas inesperadas, e toda presenga no terreno conquistado vem a ganhar contornos diversos. A ida a praia enseja simplesmente andar na areia fofa ou timida, ardente ou fria, deitar-se na mesma, molhar os pés na esteira espumosa das ondas ou mergulhar, boiar, nadar de um modo especial, surpreendente e problemitico para muitos. Adensa-se rapidamente o ntimero dos presentes e muda de composicio, tornando-se mais heterogéneo, enquanto mudam os horirios e a permanéncia se vai prolongando ja sem 0 temor da solina e da canicula; a estada mais demorada, abrangendo periodos de refeigdes, exige levar alguma comida ou consumir a que se vende na rea junto com as bebidas. Um novo objetivo tem essa presenga, o de queimar-se ao sol abrasador no verio, principalmente para as mulheres que adquirem o habito de bronzear a pele naturalmente ou com auxilio de logdes ¢ dleos de produgio industrial. Jé nao se levam em conta poderes terapéuticos da gua do mar, quando muito acreditando-se que a exposicdo ao sol fixa vitaminas benéficas ao organismo. E quanto mais epiderme se expée aos raios ultravioletas do sol e a égua, melhor para satide e a beleza do corpo. Esses propésitos exigem traje mais adequado, isto é, mais sumario, mais leve, melhor ajustado ao corpo, também, para 0 contato com as ondas. Cerca de 1910 ou pouco mais adiante, aquelas vestes jd so mais sumérias e abertas, desnudando 20 menos, pernas ¢ bragos e tornando-se menos refolhudas e pesadas. Essa é uma das mudangas das normas vitorianas até entio vigentes que Gilberto Freyre ¢ Gilda de Melo e Souza mostram como perturbadoras da tradigio e da ética dominante. Thales de Azevedo 40 Roupa de banho e saia-calgao A revista Careta, secundando outros érgaos da imprensa, ridiculariza a preocupacio das autoridades cariocas com essa invasio de moldes ¢ modos liberais, estampando caricatura de um casal mergulhado no mar com indumentiria do difrio, saia e blusa, calca e palet6. Os jornais e revistas exibem instantineos de mulheres em trajes de banho cada vez mais ousados, que 0 comércio oferece em antincios ilustrados com figuras da moda emergente. Ea época em que reaparece na Europa a jupe culotte que, j4 em 1857, aparecia como objeto de troga numa revista do Teatro Sao Joao, na Bahia: ai apresentava~ se uma farsa intitulada “A saia-balio e o colarinho de papelo” por uma companhia dra~ matica portuguesa.” A acio, dizia a propaganda, passava-se em Lisboa, “na atualidade”, A saia-calgio, imitada dos amplos calgdes das tureas, reaparece na Europa, encontrando resisténcia e oposigao, vaiada em Paris como registra Le Matin, em 1911, e tratada na imprensa com sarcasmo. O jornal parisiense comenta maliciosamente: “A pemna se adivinha, E todo mundo sabe...”. Realmente, a perna, antes encoberta pela saia rodada, longa, desenha- se ainda que apenas esbogada no novo vestuério—causando escindalo, tanto pelas sugestdes - 2s eréticas quanto pela semelhanga com o vestuério masculino. Anovidade dos maiés e biquit Um semanério carioca observa, em 1916, “que nas praias se vio amontoando, nas tépidas manhas”, bandos joviais de nadadoras, “encantadas sereias” de corpos palpitantes. Na delicia da hora matutina, no “quadro maravilhoso da mais linda abra da terra se tem —com tal espetéculo — a exata nocao da obra transformadora de que foi cenério o solo social do Brasil”, numa linguagem, a do cronista, que o socidlogo subscreveria. As mudangas sociais e éticas, como é sabido, no se processam suméria e repentinamente. Num editorial de 1917, a Bahia ilustrada, sob o titulo “O que nao possuimos, praia de banho”, lamentava: “Cidade maritima, com trezentas mil almas e uma fortuna global consideravel, a Bahia nao logrou ainda uma praia de banho”. Nao havia “sequer barracas de aluguel para mudanga das vestes apropriadas, aprovisionamento de aparelhos de natagdo e salvamento, zonas delimitadas em anteparo e resguardo contra os pegos traigoeiros e as iras stibitas do oceano, profissionais banhistas e quanto ainda se faca O Cotidiano e seus Ritos 43 mister, Aos que vao aos banhos para tratamento ou receio, falta-lhes tudo”, E “o maiillat em plena rua escandaliza sempre”. Projetos de cinco lustros antes havia filhado, Ainda nas anos 1920, a Selera, do Rio, estampava fotografias de grupos de banhistas em Ostende, na Bélgica, com o velho roupio que ocultava todo o corpo, e cenas de Copacabana como lugar de passeio. As novidades espantavam a uns e deliciavam a outros, mais rae ra ae . progressistas.”” Na raiz desses sucessos estava o irresistivel processo de modernizacio, de rejeigio da “situagio colonial”, que, na ordem arquitet6nica e urbanistica se realizava nas reformas do Rio de Janeiro desde pelo menos 1902, de Belo Horizonte, lo Recife, de Florianépolis, de Salvador, de Belém e outras capitais, e que se verificava no plano das idéias e dos valores, como assinala a socidloga Maria Tsaura Pereira de Queiroz, em anlises sobre diversos aspectos do processo, como a educagio, os divertimentos tais quais 0 camaval, a religiio, os mitos ¢ interpretagdes da realidade, como a sociedade brasileira vinha sendo afetada na época.”’ Era o “calafrio do progresso”, a “faina sanea- dor”, ‘0 alvido demolidor” iconoclasta a que atribui Fernando da Rocha Peres as derrubadas de velhos monumentos na referida quadra,” perturbagdes que se acentuariam na crise que desencadeou a I Guerra e se prolongou no espago para a II. Entre nés, as melindrosas, para agradarem e atrairem 0s almofadinhas e se mostrarem ’ altura dos tempos, libertam-se das saias arrastando no cho, dos espartilhos, dos corpinhos, das gargantilhas e golas altas. Os decotes se ampliam ou seguem a tradigéo das damas da corte no exibirem opuléncias do busto. O que as distingue ¢ a exibigio do desenho do corpo jé sem a abun- dancia de panos das mangas, das saias, das ancas, sem os babados, as caudas, os compli- cados penteados. Mostram-se as costas, as axilas, as vezes as coxas, sugerem-se as nidegas 15 isto que se vai refletir mais audaz na roupa de banho. Deponta o maillot colado a pele, revelando as curvas anat6micas, facilitando os movimentos para o mergulho e 0 contato erctico com a dgua. E tormando possivel a mensuragio dos quadris, do busto, das nalgas da coxa nos concursos para a escolha de Miss Universo que uma fibrica de vestes, a dos maids Catalina, promove em nivel internacional. Nao é somente fisica a alteragio, porém moral, afrouxando-se a exibigio do corpo todo sem muitas restrigées, rompendo com 0 ia e afetando os modos de andar, de costumeito recato, com o acanhamento, com a pudi sentar, de deitar, de mexer-se nas areias da praia, sitio privilegiado para tais gestos. Os figurinos europeus e nacionais ¢ os modelos importados introduzem inovages nas copacabanas de todo o litoral. I; quando o namoro & antiga comeca a experimentar Thales de Azevedo 44 modernizagdes com os novos hibitos: aqueles passeios nas avenidas e os bondes facilitam a troca de olhares e de sinais entre os apaixonados. ” Valea pena trans-crever o poema andmimo que a Revista A Lanterna, do Rio, estampa na seccdo Hontem e Hoje, em abril de 1926: O namoro antigamente Era austero, simples, liso; Ele, exquivo, reverent, Era um rapax de jutzo. Ela, timida, medrosa, A muito pouco arviscava: Um sorviso, alguma rosa, E raro um beijo trocava... Hoje, ndo! Ea confusao, A danca lasciva, O cinema no escuro... Em vex de esquiva, A moca é saliente; Eo pretendente Deolhar impuro E atrevido, E sabido. O namore, por fim, Caminha assim, assim, E nem sempre termina Na Pretoria, Mas na grande folia Dos banhos de mar: Ela éa ondina, O Cotidiano e seus Ritos as: Ele, 0 tritao E vao se banhar A bux do luar:. A admiracio, a surpresa diante desse processo cambiante e imprevisto retrata-se num registro da revista O Cruzeir, em novembro de 1965: Nenhum fato, nenhuma transformagdo nos usos e costumes desta cidade (0 Rio de Janeiro) de 400 anos passaram despercebides ao lipis dos humoristas do trago. Entre os hiibitos ad- quirides pelos cariocas é de ressaltarese 0 que passou a ser usado hd menos de um século — 0 Janko de mar; cuja indumentiria sofreria radical modificagda com o carver dos tempos, ndo Jonge estando, talve, do modelo jé hoje adotado nas praias de Pampelone, em Saint- Tropes, enjos banhistas se apresentavam “vestidos” tal como chegaram ao mundo. Apro~ ximamo-nos imperceptivelmente daquela spiritual “boutade” da criada de quarto de Mine. Du Barry, quando afirmava que “rien n’abille aussi bien que le nu”. As esplendorosas carioquinhas de hoje e os guapos jovens que desfrutam do privilégio de ter sua disposigdo tao belas praias, nao fizem a menor idéia do que foram os banhos de mar na segunda metade do século XIX e os meados do século pas- sado, quando suas vovozinhas, metidas em pitorescas roupas, desafiavam, como entio se dizia, 0 ‘salso elemento’. O redator do popular magazine passa a documentar o que afirma Luis Edmundo, 0 memorialista de ‘O Rio de Janeiro do meu tempo? jd escrevera que 0 banho de max; nessa época, ainda ndo eva recreia e sim receita de médico. O Bogueirao do Passeto eva, assim, um pequeno hospital. No comego do século a terapéutica i depois dessa usava ¢ abusava dos banhos de mar: Mas jé as sete da manha a praiazinha ia s zendo vazia, pois senhora de qualidade nunca aparecia para banhal hora, que era a das cocottes e da rapaziada bulhenta, O sol era considerada um tervivel inimigo, pois acreditavam nossos antepassados que 0 encontro dele com a dgua somente maleficios trazia @ satide Thales de Azevedo 46 Aflora ai o problema dos costumes, da moralidade, das regras de pudor e recato, de tamanha significagdo numa pritica ao ar livre no que entio se diria “em trajes menores”, que condicionavam 0 vestudrio feminino: E havia o pudor: Uma irrefredvel e avassaladora pudibonderie vitoriana obrigava mossas danhistas a se cobrirem dos pés & cabeca, envoltas em amplas roupas de sarja ou dspera baeta que deveriam ser das mais encorpadas, nao permitinds, quando mothaclas, deixar perceber; nem de eve, algum precioso recorte de anatomia. Jocosos agueles figurinos constituides par longs calgae presos aos tornozelos e encimados por blusies do mesmo tecido, além das toucas de aleado com fran- ‘ido d Maria Antonieta, ou entdo, altissimas chapelies de palha, quase a encabrir a rasta. Os pés caleados por sapatos de lona e sola de corda, eram amarrados & mada romana e se, por acaso, 0 cadargo desatava-se, sua reposigza despertava 0 abvoraco concupiscente dos mirones masculinos, ¢ cafiarem nervosamente as guias ponteagudas dos bigodes. Percebe-se, pela linguagem e pelos conceitos, que o redator é um saudoso observador dos “velhos tempos”, de algum modo convertido As esquisitas modernidades: ‘Alim de tao desconfortante ¢ misteriosa indumeméria, ainda se usavam amplos roupies, apresentando assim nossas praias 0 aspecto de um enorme povoada muculmano & para mais caracterizé-lo, havia ainda a figura solicta e vigilante de retinas mucamas. Figura indispensével eva ado banhista profisional, formando uma equipe de musculosos por ngueses, italianase turcos, gene deconfianca, a quem eva dado, na maioria dos casas priv Uegio de levarem as sinhazinhas ao colo para entrarem na dgua, 0 que provocava natural inveja aos “jacarés” da praia. Ao aspecto caricato das roupas aliava-se a uniformidade de tom, que era necessariamente 0 aziil-marinho, sempre enfeitado com galoes brancas, pala e gravata a lembrarem os uniformes dos marnjos. Sobreo contraste existente da moda feminina nas praias ea usada nos teatros e sales de baile, cabe aqui a abservagio de que, nestes, pontificavam os mais exuberantes decotes, reveladares de carnagies que nem sempre se acomiadassam comportadamente em seus endlucras, Seguem-se comentirios do tema —a moda — que, por sua vez, tém sido objeto de and~ lises tedricas, como as de A. Kroeber, nos Estados Unidos e de Diatahy de Menezes, no Brasil,” tentando explicar seus percursos ¢ alteragdes a0 longo dos tempos. O Cotidiano e seus Ritos 49 Como o cariiter da moda se subordina ao tempo e ao grau de deformagao que ela impie especialmente a silhueta fominina, aqui também podemos observar as modificagies na indumentévia praiana dos “marmanjos” . Estes passaram da voupa de banho colante, geralmente de vaias horizontais e que iam até a barviga da perna até ao sumarissimo caleado, em emulagao generosa aos biquinis das encantadoras banhistas de hoje. Retoma o autoras consideracées sobre o registro dessas mudangas pelos caricaturistas mais famosos do comeco deste século e do anterior. Julgamos ter sido a primeira caricatura, cronologicamente, a aparecida no “Arleguim” em seu niimero 32, ano I, de 8 de dezembro de 1867, assinada por V Mola em desenho litogréfico cobrindo toda a pagina, sob 0 titulo “A Estagio dos Bankos”. Nela apresentamse as mais variadas toilettes para 0 veriia de 1868, ¢ hd a seguinte legenda: “Hé para todos os gastos, desde a pessoa que quer é mostrar muito até a que quer ficar incégnita, desde a mais nutrida «até ad mais canico...” Em marco do ano seguinte, no dia 22, no seu n. 45, 0 Bata-clan, revista satirica e que era publicada em francés edirigida por Charles Berry e tinha como seu principal ilustrador Joseph Mill, apresenta outra change deliciosa. A caricatura, em que aparecem duas banhistas, ndo é porém de autoria deste, mas provavelmente tirada de uma gravura de Gavarni ou de Reaumont provavelmente a seguinte legenda: Vous vous portez bien? Pas mal et vous? Moi, je crains @’étre enrhumée, je sens que jai les pieds mouillés. A pastida para o banho de mar era um episbdio quase épico como retratou em O Mosquito de 26 de dezembro de 1869, nos moldes de nassas atuais hisériasem quadrinhos,o caricaturista brasileiro Faria (Céndido Aragonés). A impagével segiténcia teve seu término apresentado no netmero seguinte da revista. Eo relato minucioso dos percalgos de uma burguesa familia carioca, desde 0 acordar eos subsegitentes preparativas de acomodagdo da grei, até a plena refiega dentro d'égua, Na Vida Fluminense, ano 5, n. 217 de 24 de foverviro de 1872, em pdgina dupla, hdé uma série de flagrantes da maior comicidade, ndo assinada, mas que tanto pode ser de Agostini como de Pereira Net, ilustradores da revista, O desenho, porém, deixa trair uma nitida influéncia do trago de Daumir ou de Cham, e trata os bankas como panacéia infalfvel. Na Semana Ilustrada, em 1874, Henrique Fleuiss, que era seu divetor-fandador-e principal desenhista, aproveitando uma frase de Agassis,apresenta uma visio panoramica do banho no Bogueeirao do Passeio. E ainda Faria, jé entdo possuidor de um trago mais seguro, em outra Thales de Azevedo 50 publicagao do género, A Comédia Populas, no miimero do Natal de 1877, quem focaliza os sreceios de uma banhista envolta des pés cabega num costume impermedsel, ao d aumidade lhe faria mal @ satide Também sob 0 titulo No Boqueirie, 0 Binéculo, outra revista satirica de grande obrir que popularidade, em outubro de 1881, em pdgina dupla, apresenta um magnifico desenho néo assinado, mas cujo trago denuncia 0 caricaturista Belmivo. Bem singular & 0 fato de wm dos nossos mais ferteis desenhistas, Angelo Agostini em sua famosa e prestigiosa Revista Ilustrada, sé se ter ocupado de tao deliciosos temas apenas uma ver, no ‘fait divers’ de uma de suas composigaes de pagina dupla da referida revista. Sait no suplemento do n. 424, de 31 de dezembro de 1885, isto é 21 anos apés 0 apare- cimento daquela publicagio. Outra nao menos importante revista, a Vida Fluminense, jd em plena Repiblica, em 19 de dezembro de 1889, sob 0 titulo “Eco do Bagueiriio”, ira de autoria de seu principal desenhista, Teixeira da Rocha, com a chancela do grande gravador Dacar: apresentava, na sua capa, wma Abs acima citados, devemos acrescentar-a triadeestupenda dos caricaturisias Raul, Kalixto J. Carlos, sempre atentos ao tema de que ora nos ocupamos. O mesma pode ser dito dos demais artistas que passaram pela nossa imprensa, inclusive, Alfiedo Storni que, sob 0 pseudinimo de Bluff apresentou em niimero do “Filhote” (da Careta) um flagrante dos anios de mar na praia do Flamengo. AJ. Carlos, porém, coube 0 mérito indlscuttoel da fixagia premunitiria do biguini em nossas praias e se viva fosse 0 saudoso mestre da caricatura brasileira, certamente seria o primeira a retratar o préximo... no-quine. Na rememoragio do tema pelo traco espiritual dos nossos desenhistas, podemos observar quao distante estamos hoje do extinto Bogueirao do Passein, com sua ponte e, sob ela, suas cordas, béias, argolas de frre, correntes e um mundo de supasta seguranga & aventura de um banho de mas: Nao faltava nem a musculasa presenca dos banhistas profissionais, nem «sta fauna prodigiasa a transpirar satide, sedenta de ar puro e luz:na variada gama de elas carnagées a se movimentarem, hoje, desenvoltas nas alvissimas arvias do Castelinko, Um autor de guia turistico norte-americano, a propésito, anota mais recentemente que mais atraentes e curiosos para o turista do que a geracio hippie do Rio e de Sa0 Paulo so, em Ipanema e no Castelinho, “os mais sumérios biquinis que se possa imaginar”, portados virtualmente por cada menina carioca, as tangas, que se langaram em 1974 nos paises de O Cotidiano e seus Ritos sl lingua inglesa com sirings, a sugeri 0 nosso “fio dental”, jé imaginado representado em uma tela de 1957 pelo nosso genial pintor Carybé. Curioso é que aquelas meninas riem dos pudicos modelos americanos de mais, pensando talvez que a moda de hoje seja perene ¢ nova. " Ora, aos quatro séculos da era cristi jd se usava na Sicilia um “duas pegas igualzinho . Mas a moda, motivada por interesses de fibricas de tecidos e por caprichos de costureiros influentes, muda o rumo dos habitos. A revista Téja, em novembro de 1987, noticia que “os biquinis voltam ao passado, aumentam de tamanho sem deixar de valorizar 0 corpo feminino”. aos do nosso tempo, a julgar por desenho em mosaico da época (MORAND, op. cit. Agora, a moda descobre os maids ¢ biquinis. E os descobre para cobrir apreciiveis porgdes da anatomia feminina. Depois da tanga, do topless e do fio dental, no veio a se- gliéncia légica da nudez total, Sem muito barulho, comegam a chegar as praias ¢ piscinas brasileiras biquinis e maids inspirados em modelos dos anos 50, Eles abusam dos babados, bolinhas, listras e adotam as barbatanas como suporte para os sutiis meia-taga. Nas verses mais radicalmente saudosistas, os biquinis viram calgées, os sutias, mini-espartilhos ¢ os maids, calants de sdbrios decotes e muito estilo.” E explica como tais transformagées sio desencadeadas € produzidas pelo jogo, niio percebido pelas banhistas, de vantagens procuradas por inchistrias que mobilizam os estiistas e acionam a publicidade. Invengao do séeulo passado — quando as estradas de ferro chegaram ao litoral, permnitindo as forias na praia as roupas de banho tiveram a sua mudanca mais abruptas no final dos anos 40, quando surxgin o biquini. Ele sé veio a sofier uma alteragao forte na década de 70, com o surgimento, no Brasil, da tanga. Esta, por sua vex, dew lugar para o fio dental —que éuma espécie de contramoda: néio permite variagoes, nao valoriza estampas ¢ tecidos ecomo queesconde a roupa para enfatizar totalmente o corpo (..). Por enguanto, os modelos mais tradicionaisestdo reservados para os dias de pouco sok, os fins de tarde on alcos a beira da piscina — ocasiées em que a.finalidade néo é ganhar bronze, mas esbanjar requinte. Banho de mar e mudanga social Mostrar corpo, fazer trejeitos intencionais, sentar e deitar de modos provocantes sio expresses da ética desencadeada pelo banho de mar que rompe com o tradicional resguardo Thales de Azevedo 52 do corpo feminino as vistas e afagos dos namorados e & exibigéo dos seus contomos aos famintos de sexo e cobigosos do erotismo, dando lugar, como noutras partes, a casos de masturbagio de marmanjos diante de mulheres assim descompostas e provocantes. Revela igualmente as alteracdes que experimenta a moral burguesa: a freqiiéncia & praia é um dos exercicios das classes médias, a que tem acesso marginal a camada popular Outro cronista, na provincia’ confessava, em 1930, sua estranheza diante das novi- dades de entio, em juizos e palavras que traduzem ao mesmo tempo o encantamento € certa censura do que ocorria: O banho de mar na Barra, aguela hora, dava a Bahia fulgeracées momentineas de terra civilizada, de terra que veste maillote anda de automével, uma Copacabanazinha ainda um tanto medrosa, a temer talvex.a eterna vigilancia do forte de Santa Maria, mas que jd pie & vela bons dois palmos de perna suprajoelhal. O bamho ali é sempre deliciosa, tonificante, rejuvenescedor, nao 36 pelas suas qualidades terapéuticas, mas, principalmente pelas extraterapéuticas, ndo sé pelas suas qualidades maritimas, mas especialmente pelas maritais. Naquele domingo Id estdvamos — eu eo meu amigo conselheiro Alvares — a esperar a onda quando um grito, um borborinho sibito nos atraiu a um ponto onde come- gavam a aglomerar-se banhistas. Nao fora nada; quase nada. O Juca, a poucos metros da praia, fazia 0 banho com a respectiva menina, havia jé duas horas, quando repentinamente, uma dor aguda o fez gritar: Caimbra. A permanéncia prolongada provo- cara-a, Felizmente, um grupo de mocoilas, que, perto se bankavam, 0 acudiu de pronto, levando-o até a praia. Nada mais. Um acidente aquatico sem nenhuma importancia. Uma céimbra répida. O que, porém, me encabulou, por nao lhe atinar com a explicagao, Soi a Marietta — uma das que 0 foram salvar; pegando-o por bragos ¢ pernas — ao passar pornds, ter exclamado para a companheira, sublinhando as palavras: — Mas que bruta caimbra, a do Juca!” A malicia do cronista, os detalhes de observagio, os reparos sobre o traje € os gestos das banhistas, tudo evidencia a perturbacao que a mudanga e costumes introduzia. Os espeticulos daraclan, continuadores mais afoitos do cancan, ensinam provocantes trejeitos. © maié vem a constranger as mais “modernas”, desinibidas, emancipadas, adeptas jé da estética que Maffesoli viria a designar de orgisstica, pelo dominio do presente O Cotidiano e seus Ritos 53 e do prazer, pelo caniter dionisiaco ¢ hedonista. " Reduzem a cabertura do corpo, primeiro as partes pudendas classicas, os seios e a bacia, e aparecem de biquini, langado por ocasiéo das explosces atémicas dos franceses no atol daquele nome, O duas-pecas — que Gettlio aponta a Oswaldo Aranha, numa charge do Careta, como representativo do voto secreto em 1930 — reduz-se, ainda, na tanga que se contrai no fio dental, tiltima restrigdo ao “opless e a0 nudismo inteiro que tém limitada aceitagio. Nao é arbitriria essa restrigio, dado que, para ser aceitivel num lugar piblico, como a que estamos examinando, é pre-ciso obedecer a um minimo de regras: uma dessas é de que se apresente com determinada aparéncia corpérea, nao mostrando os éngios sexuais, por exemplo; outra, a de que nao perturbe os circunstantes com muido excessivo da fila, de gritos, de ridios, de instrumentos musicais e no ameace com correrias desordenadas as dreas ocupadas pelos vizinhos.” A mais recente liberalidade é mostra desimpedida da nédega, do bum-bum, que se faz. nas posturas, nos movimentos e na exposigio em deciibito ventral descansando ou dormindo, atrativo para muitos, foco para as objetivas dos fotdgrafos, dos cineastas e dos repérteres da tevé. © império do narcisismo sob © particular aspecto sexual daf abre rotas, no Brasil, para os bailes do carnaval, nos quais, como observa Roberto DaMata, acrescenta-se a possibilidade — que a praia raramente oferece — do contato fisico hetero ¢ homosexual.” Toda uma moralidade que quebra 0 escripulo antigo de pais, de maridos, de amantes, de noivos e namorados, agora acessfveis a oferecerem o corpo de suas mulheres ao olhar de quem quer que seja. ‘Também os homens encurtam os calgées na sunga. Essas vestes ¢ es-ses habitos e condutas se reproduzem nas piscinas instaladas nas casas, nos prédios de a-partamentos, nas dachas perto das praias, em que se pratica a imersio na massa Kquida como no mar, gozando a caricia da agua, a temperatura diversa do meio fluido e a ocasiio para encontros, aproximacdes e toques nem sempre casuais. A praia é também palco para realizacio pessoal burguesa, para a recusa da pecha de retrégrado, de atrasado, de moralista, de velho, por meio da mencionada indumentiria. Aparecer ali e andar por suas imediagGes e pelas ruas nessa aparéncia serve para demonstrar modernidade, satide, juventude. Nao € somente espaco para tais espeticulos, encenados deliberadamente por uns e apreciados cobigosamente por outros, para o sacrificio de posturas, obrigadas para queimara pele em beneficio da satide ou da beleza, para tocara linfa marinha, exercitar-se na natagio, no suf, no mergulho, ou para simplesmente fruir a brisa marinha: para uma porgio considerivel, quase paraa totalidade, é um lugar para repouso eisolamento © Cotidiano e seus Ritos Ss a liberagdo das praias, produzindo uma “heterogeneidade de grupos em convivio”, observa a socidloga Carmen Cinira Macedo. A invasio de farofeiros, da “turma do isopor”, como também das classes médias e de “outros”, coment, resulta na democratizagio do espaco tradicionalmente exclusivo do topo da hierarquia social. Esse lugar do lidico e do trabalho, desde que ai muitos ganham a vida, deixa de ser apenas um lugar de lazer, de exibigiio dos corpos, de paquera, de descanso, “uma praia sossegada” em que se relaxam as tenses da cidade. Essa quebra do sossego e da privaticidade é que explica, a0 menos em parte, a in- cessante procura de novas paias. A socidloga conclui Assim, se para os mais pobres, a oportunidade de ir praia vista como um ganko, uma festa e, fundamentalmente, um direito, algo que tem aver com a idéia de uma sociedade democrética, para os mais abastadas a impressio éoutra. As pessoas sentem-se invadidas, tendo que ceder “suas” praias para pessoas estranhas, tendo que aceitar a convivéncia tida por desagradével, com gente desagradével, que polti a praia por néo saber usd-la adequadamente, ¢ que, ainda por cima, polui a praia visualmente, por estarem aquém do padrita de beleza estética que é habitual “entre pessoas de fino trato”. (“O contexto cultural do vero”, FoLiia DE S. Pavto, Folhetim, 4.5.86). Outras fungées da praia ‘As fungées saciais desenvolvidas nesse espago nao se limitam ao hidico e ao orginico. Salo, estidio, arena, a praia pode dar-se como templo destinado & comunicacio com e ao culto do preternatural. Na Coroa Vermelha, em que desembarcou na altura de Porto Seguro, em 1500, Pedro Alvares Cabral, o comandante da frota que descobriu o Brasil, rendeu gracas a Deus peloachamento da Terra de Santa Cruz, promovendo uma procissao entre o mar ¢ a terra firme com seus grumetes ¢ marinheiros e com os frades que levava para a India. Plantou af, como sinal da posse lusitana, um cruzeiro de madeira da mata litorinea, a sombra do qual frei Henrique de Coimbra celebrou a histérica primeira missa, que se recorda no quadro célebre de Vitor Meireles. E vem a propésito a consa- gragio das “margens do Ipiranga”, um cérrego, como o lugar em que ecoou o grito de Independéncia ou Morte, em 1822, que se fixou na pintura de Pedro Américo. Numa praia, Rodolfo Amoedo representow O siltimo tamoi, 0 famoso chefe ind igena, lembrando Thales de Azevedo 54 mas um gindsio, uma cancha aberta, gratuita, para o esporte. Os que nio apenas fazem 0 repouso ¢ o isolamento na imobilidade, nos grupos de conversa, na contemplagio do am- biente ¢ do horizonte, ha a possibilidade do movimento fisico niio impedido por ninguém, caminhando, saltando, correndo, praticando gindstica, participando de peladas ¢ partidas de diversos jogos. Essas priticas fatigantes e suarentas porém divertidas, em grupos ocasionais ou costumeiros, em equipes fortuitas ou permanentes séo mais para brincar, encher o tempo, mexer nos miisculos, gastar as gorduras = exigéncia do emagrecimento estético -, abrir 0 apetite, queimar a pele, compsem o complexo do banho de mar, ainda quando realizem disputas e competigGes em que se ganha reputagio ou se consagram times. Para a maioria é preparagio para o mergulho e outros jogos dentro do mar. Nesse terreno se realiza toda uma multitudindria convivencia ticita, “sozinhos juntos” como diz Edgerton — alone together — encapstilados na drea que dominam e tém como inviolével em separacdo nio envolvimento, consistindo em se verem, em verificarem que freqiientam. os mesmos lugares, em pelejarem pela ocupagio das mesmas éreas, como indices de classe, de status € identidade social, como evidéncias de poder; para milhares é oportunidade para associagao © para contatos em unidades parcelares de parentes, de amigos e colegas, de vizinhos, oc: problematicos no distio. Assim, simples acenos, ligeiros apertos de mios ou abragos, dedos- de-prosa, inesperados ou planejados encontros, tudo no que Bourdieu considera, antes do mais, como inversio do cotidiano, desdobramento da experiéncia habitual." Favorece toda essa ordem de relagées a permanéncia simultinea por horas, ultrapassando a manha, afastado 0 receio do sol alto, comendo ¢ bebendo. Favorece a vendedores ambulantes, a comerciantes estabelecidos na orla, que se aprimora para servigos de vigilincia e socorro e para assisténcia aos banhistas, automobilistas, comerciantes. Além daqueles relacionamentos, podem observar-se discriminagées ¢ segregagdes etno-econdmicas. Vi, pela primeira vez, em comegos de 1941, uma “playa de negritos” em Carrasco, nos arredores de Montevidéu: 0 fendmeno ocorre no Brasil com os pretos, 0s pobres, os moradores de favelas ¢ invasoes da proximidade de determinadas praias ¢ com os firofeiros, os banhistas que chegam em grupos, quase sempre de énibus, levando farnéis ou merendas ~ supostamente com bastante farinha de mandioca—com que poluem os trechos ocupados ¢ incomodam os freqiientadores com seus estilos de brincadeira. Isolam-se igualmente os banhistas procedentes de regides diferentes, os turistas de toda procedéncia, estranhos aos locais, principalmente os estrangeiros, Algumas dessas praias vém a ser dominadas por esses invasores (vejam-se os casos de Porto Seguro na Bahia, de Camboriu em Santa Catarina, e muito mais), Isso traz Thales de Azevedo 56 as arcias de Tperoig, nas quais José de Anchieta desenhara seu poema De Beata Virgine (1563). O Hino Nacional, por sua vez, proclama que o Brasil, florio da América, fulgura “aosom do mare luz do céu profuzndo”, iluminado ao sol do Nove Mundo. Encontram- Seem tais celebragdes as misticas eivicas religiosas. So tradicionais no pais as procissGes maritimas em honra do Senhor dos Navegantes, ao Senhor do Bonfim, de Sao Sebastiio ¢ véros santos, atraindo multidées a pontos do litoral de onde partem com imagens, estundartes, velas, flores ¢ outros simbolos. Aglomeracio idéntica acontece com adeptos do candomblé ¢ curiosos por ocasiio da partida de embarcagies, em 2 de fevereiro, dia de Nossa Senhora das Candeias, com presentes para Temanjé, a Mae-’égua, A Umbanda retine seus participantes & ceriménia, marcada por pontos riscados na areia ¢ velas acesas, para celebrar a passagem do ano & meia-noite. Igrejas evangélicas levam seus catectimenos ¢ convertidos ao mar para o batismo de imersio como se fora o rio Jordao. A esses grupos imitam esotéricos, Hare Krishnas e outros, para saudar o nascer do sol em datas sacras de seus calendérios. Por seu turno, 0 banho-de-mar tem certo caniter de rito que se cumpre periodicamente com sentido consagratério de identidades socie- tiria e cultural pelo imperativo da atragio e fascinagio ¢ do medo da agua. A imersio nesse fluido, que se concretiza para milhares e milhares em nossas praias, é uma das manifestagées do velho culto das aguas ~ epifanias aquticas que reverenciam essa ma- ‘riz universal ¢ tem seu maior mistério nos oceanos. Todas essas manifestaces, ainda quando nao explicitamente misticas, efetivam-se em momentos propicios com elabo- radas liturgizs de cinticos, desfles, oferendas, indumentirias e gestos que emprestam Fangio simbolica 2o sitio, de que o banho é uma parte. Sio rtos de totalidade, indispen- siveis ~ como jd vimos ser o banho-de-mar — para comprovar a plena identificagio com determinados estados sociais."” A repetigio, cada domingo ou feriado, cada oportunidade, dé 20 gesto um sentido como que sagrado como algo de ritual € misterioso, de mimético enquanto representacao observivel, porém mais como metético, isto é, de realizagio da personalidade, indepen- dente da finalidade terapéutica ou Itidica.”” Na verdade, a ida ¢ permanéncia na praia fem para muitos o cunho de obrigacio a que nao se deve faltar. E este problema, isto é, suas motivacGes e modos de realizacao, as titicas de ubicagao no espago, a conduta durante 4 estada, os relacionamentos com o ambiente ¢ com os demais humanos, os sentimentos experimentados de prazer, de repouso, de integracio no conjunto dos pre-sentes costumeiros ouadventcios, os riscos einconvenientes sofridos, toda essa variegada gama de fendmenos, © Cotidiano e seus Ritos 7 que este esbogo de sdcio-histéria visa apontar para a verificagio empirica em relagio ao Brasil. Existem, ademais, questdes tedricas levantadas pela fenomenologia que carecem de comprovagio e também de levantamento, tendo em conta que o genericamente denominado banho de mar tem a ver com a vida urbana ¢ seus percalgos com a modemidade ¢ com a economia. A “cultura da praia” € uma realidade a ser esquadrinhada com perspicécia da sua relevincia para milhdes de brasileiros Uma “cultura da praia” Na verdade, os brasileiros tm mais do que um verdadeiro culto da praia, fazendo da mesma pontos focais de sua existéncia, quer vivam na proximidade das mesmas ou no interior do pais, uma auténtica cultura da praia:'Toda a vida gira, para muita gente, em torno da praia como uma obrigagao, um alivio dos aborrecimentos, mais que isto, um indispensivel, insubstituivel alivio das ansiedades cotidianas. Outro escriba afirma que © brasileiro se furta a tudo que é chato, a pontualidade, o formalismo, a deferéncia ou ceriménia. “Vai & praia. Seri para nadar? Nao, 0 nado exige continuidade, seriedade, trabalho”, O articulista, julgando A sua maneira européia a nossa gente, prossegue em seu discurso: “Ora, quem vai a praia para trabalhar? Ele (o brasileiro) prefere brincar com as ondas. Cansa-se correndo (desde que um americano, Cooper, Ihe deu a idéia) para atingir uma satide fisica pela qual se preocupa”.”” A praia produz uma cultura, um modo de viver, mesmo uma ética pelos quais muitos pautam a existéncia e as cidades costeiras orientam seu crescimento. Estas se prolongam ¢ desenvolvem predominantemente em tal sentido e fazem sua propaganda turistica, enquanto as administragGes municipais, 4 custa de dispendiosos investimentos, capricham em modernizar e tornar mais atraentes as suas orlas, para que as populagdes proprias e os turistas sejam induzidos a freqiientar esses logradouros e af consumirem 0 que se oferece a venda e ao uso, dando acrescida renda aos municipios. E mais: antigos vilarejos de pes cadores e lavradores so suplantados por esses freqiientadores, formando movi-mentadas cidades balnedrias. Vejam-se os casos de Guarujé, junto a Santos, da Barra da Tijuca, no Rio, de Atalaia, em Aracaju ¢ varios outros. Isso que os psicanalistas atribuiriam a uma vontade da volta ao ventre matemno ¢ a imersio pré-natal no liquido amnistico, dé lugar a que 0s clubes sociais das cidades interioranas rasguem piscinas em seus terrenos ou se ins Thales de Azevedo 58 Pelas talem, junto com iate-clubes como os maritimos, a beira de rios, lagoas, repres as pousadas, mesmas raz6es e estimulos, incentivados pelos planos urbanisticos, os hotéis, ‘0s apart-hatéis, os restaurantes de mais alta classe constroem-se e se instalam nos bairros daquele modo expandidos e melhorados. Hé cidades em que os estabelecimentos comer- ciais, sobretudo os hotéis, daquela categoria, existem hoje unicamente em tais éreas, sendo que os tiltimos se recomendam pelo qualificativo de Praia Hotel de tal ow qual nome. O grosso do trifego de veiculos de passageiros e até de carga flui nessa diregio e sentido, estendendo-se as estradas e as avenidas para ali. Tado a eriar novas fontes de renda para os municipios, os quais comecam a tentar o loteamento das praias a empresas que af cos, divertimentos que também rendem aos avidos cofres estabelegam negécios, serv piiblicos. Essa ocupagio privada de “terrenos de marinha” imita o que ocorre nas praias norte-americanas ¢ nalgumas européias, inftingindo — por incrivel iniciativa de poderes piiblicos ~a lei que dita como puiblicos e de uso das populagdes a faixa de 33 metros a con- tar, para a terra, do limite da maré média de 1831. Por ser de todos, essa é uma terra de ninguém, um “lugar comum”, canta Gilberto Gil, ¢ sua ocupagio, sem autorizagio e loteamentos excepcional da Marinha, é um abuso que comegam a praticar hotéi pilitando o acesso as implantados a beira-mar, dificultando e, as vezes, impos Em suma, a “cultura da praia” contrasta com a tradicional cultura burguesa, crista, reverte praias. ma-nifesta em comedimento, em “pureza” de sentido, em contengio do gesto. dionisfaca sobre esta, influenciando-a e, em certa medida, subvertendo seu sistema de valores, sua ética, seus gostos e apetites; altera a libido ¢ exalta o que tem de anima, na conceituagio de Jung, seus modos de sentir 0 corpo.”” Nessa renovada relagio do corpo com 0 meio natural e humano da sociedade da praia, em uma revoluciondria ecologia ¢ assungdo de papéis, diversas das rotineiras no trabalho € no convivio habitual, fiz-se um poderoso desencadeador de mudangas. Ainda aqui, uma ligio de Gilberto Freyre quando mostra como as modificagées no talhe € no modo de portar o vestudrio e as alteragdes na postura corpérea tém fungio naquele processo de mudangas.’ Finalmente, realiza a transicio mais flagrante entre a casa e a rua, entre o privado e o piblico, propiciando a exposigio do mais intima, o corpo da mulher e até certo ponto o do homem quase inteiramente desnudo, mostrando no gesto, na postura, na atitude provocante, convidativa, na entrega ao olhar ¢, as vezes, a0 contato sensual,” num estilo revoluciondrio de socialidade universal no Brasil. que da substincia e é vivido na praia enquanto espago de socialidade é o que © Cotidiano e seus Ritos 59 Maffesoli chama de “comunhio de emogées ¢ sensagdes”” que se experimenta ali no estar-junto diverso do cotidiano habitual do trabalho, do exercicio dos papéis conven- um como dia-a-dia alternativo do invariado social e cionai , das relagdes formais. ecolégico buscado intencionalmente para quebrar a rotina. Thales de Azevedo 60 Notas 1 John P. Dolan no preficio a Crucial problems of modern philosophy, D.J.B. Hawkins, U. of Notre Dame Press, 1962. 2 Ver a revista Fon-Fon do Rio de Janeiro que, nos anos 1920 e 1930, manteve com destaque a seccio intitulada Tizpagées. E outras como Carvta, Selecta, O Malho, Kosmos. 3 Sobre o footing, as saidas de missas, o passeio em redor das pracas nos domingos como oportunidades para a escolha de candidatos ao casamento, ver As regras do namoro & antiga, de Thales de Azevedo, Ed. Atica, Sao Paulo, 1986. P. 23 et seq. 4 Damasceno Vieira, Memdérias historicas brasileiras, 1600-1 837, Bahia, 1903, Oficina dos Dois Mundos, TL, p. XI. 5 Luis Jumenez de Asua, Un Viaje al Brasil. Impresiones de um conferenciante seguidas de um estudio sobre ell derecho penal brasileiio, Madrid, 1929, Ed. Reus S/S. 6 “Morrer na praia” significa fracassar, atrasar-se, perder-se (...) E nesse sentido que um articulista ‘examina os desequilibrios de nosso desenvolvimento na drea tecnolégica, cf. Mauro Porto, “Queimar tapas para ndo morrer na praia”, Jornal do Brasil, Rio, 6.6.1982 7 Luis da Camara Cascudo, Diciondria do falclore brasileira, Rio de Janeiro, 1977, MEC, verbete “mar”, p. 382 € Locucées tradicionais do Brasil, 2 ed., Revista Rio, 1977, verbete “ VA cantar na praia”, p. 150, MEC. O Cotidiano e seus Ritos 61 8 David Bidney, Theoretical Anthropology, New York, 1953, Columbia University Press, p. 130, 224. 9 Maria Isaura Pereira de Queiroz, “Le paysan brésilien traditionel et a perception des étendues”, in Perspectives de la sociologie contemporaine. Hommage a Georges Gurvitch. Paris, Presses Universitaires de France. 10 Xavier Marques, Praiciras. Jane ¢ Joel. A noiva do golfinho. O arpoador. Maria Rosa (Coletanea de contos). Bahia, s/d, Edico GRD da cidade do Salvador, Bahia. 11 A pesquisadora da UFRGS, Carmen Silvia Rial ouviu de um informante nailha de S. Catarina: “Quando eu me criei aqui, ndo se falava em praia, Praia nio existia. Quer dizer, existia praia mas para nds era praia de pescar. Nao de tomar banho. A primeira familia que veio morar aqui, os Arianos, comegaram a tomar banho. As mulheres nao passavam ali sozinhas, com medo dessa fa- milia, porque diziam que ela atacava a gente. Quer dizer, eles que andavam tomando banho. Pra passarali, s6 com trés ou ou quatro pessoas”. Nota cedida pela autora, de monografia em preparo “Mar-de-dentro: a transformagio do espaco social na Lagoa da Concei¢ao”. Sobre cos-tumes Praiciros, ver Ponta Verde: romance de costa do litoral nordestino, Recife 1974, por Alves da Mota; Waldemar de Oliveira, Mundo Submerso (Memérias), 3a. ed., Recife, 1985. 12 Um desses romances ¢ Esfinge (1911), com varias edigdes, contribuindo para o renome do autor. 13 “Nas mais famosas fontes surgiram, no decorrer dos séculos (desde os romanos) balnedrios de prestigio internacional. De modo especial Baden-Baden, Wiesbaden, Wilbad ¢ Bad Homburg Von de Héne desenvolveram-se em pontos de encontro da elite internacional, cuja divisa era “ver € ser visto”. No entanto, as curas com bebidas ¢ banhos ja sao ha muito tempo mais simbolos de classe para alguns milhares, o mesmo verificando-se no Brasil. Ver Irene Mayer-List e Sylvester ‘Wonler, “Agua é vida”, Scala,4/jul.-ago., 1987. 14 Ver sobre o assunto diversos ensaios em Societés, Révue des Sciences Humaines et Sociales, n.8, avril 1986, v.2, n.2, Paris. 15 Ver Obras completas de Gregério de Mattos, “Décimas”, III vol., p. 583-589, edicéo Janaina, organizada por James Amado, 1968. 16 Pedro Calmon, O rei do Brasil, Rio, 1935, p,.227-228. E bem possivel que o principe tentasse no Rio o que vira na Inglaterra, em Brighton, a cidade de veraneio da corte e da aristocracia Thales de Azevedo 62 britinicas. Ali, na costa sul do pais, era costume na 2* metade do século XVIII tomar o banho de mar em chariots, verdadeiras maquinas de banhos, cabanas sobre rodas puxadas para dentro d’gua por cavalos, das quais o banhista podia mergulhar sem o aborrecimento de uma longa camminhada; os mais timidos eram ajudados pelos dippers, os mergulhadores, que eram pescadores ou suas vigorosas mulheres que os arrastavam ¢ jogavam négua. Essas carrocinhas levavam tudo 0 necessirio durante 0 banho, toalhas € mais pertences, cf. Eric Underwood, Brighton, London (1978), E.T. Batsford Ltd (o volume tem vi iasilustragdes a respeito), p. 65, 97. 17 Oliveira Lima, Dom Jodo VI no Brasit, 1° vol., Rio, 2a. ed., 1945, p. 231. 18 Os médicos ingleses recomendavam mergulhar e beber a dgua do marem lugares longe da for de rios — naturalmente pela contaminacio dos esgotos ~ para varias doengas, principalmente para a s our island, and in the cure of which our tuberculose ~ “the consumption which greatly al physicians find the greatest difficulty”, citado de uma tese aprovada pela Universidade de Oxford em 1750, ef. Underwood, p. 64. 19 Amincios no Didrio da Bahia e no Diério de Noticias nos anos de 1857 ¢ 1858; quanto aquela casa-de-satide, ver Pierre Verger, Fluxo ¢ efluxo de escravo entre 0 golfo de Benin e a Bahia de Tados os Santos: dos culos XVII ¢ X#X. Trad. de Tasso Gadzanis. S40 Paulo, Corrupio, 1987; p. 493. 20 Tomas Lopes, em artigo na Kasmas de 1906, diz. que em Biarritz, na costa da Franga, via-se “o mundo feminino, envolto em amplos roupées, sob a concentragio dos binéculos e das instantaneas, atravessa a praia ¢ vai mergulhar os corpos n’dgua com curtos frémitos de prazer. Rodrigo Otivio Filho em fim de 1913 langa sua “Cangao do mar”: passeio ao longo dessa linda praia/nervos doentes, com a vista inquieta.../tendo esta a alma vadia que desmaia/nas emogdes sensiveis de um poeta./Segue avistando pescadores, navios, a renda fina destas éguas/espalhando- se em ondas nas areias” enquanto uma grande tristeza o empalma; finalmente, “a tarde morre aos poucos na surdina/ na marcha lenta de uma caravela.../E. eu parto; entio, guardando na retina/a alvadia miragem de uma vela” 21 Para a questio dessa alteragio de uso do espaco, ver “O espaco como produto social”, RM. Prosperi meyer, in A Juta pelo espaco, Texts de soctologia urbana, Eva Alterman Blay, org., 1978. Petr6polis, Vozes. 22 Ver Gilberto Freyre, Modos de homens & modas de mulher, 1987. Rio de Janeiro, Record; Gilda de Melo ¢ Souza, O espirito das roupas. A moda no século dezenor, 1987, Sto Paulo, Companhia das Letras. O Cotidiano e seus Ritos 63 23 Diério da Bahia, 7.10.1857, pag. de avisos e amincios. 24 Um cotidiano brasileira, 0 Jornal de Noticias, da Bahia, em 1 de abril de 1911, abre suas colunas sisudas ¢ circunspectas para o seguinte comentirio, que vale a pena transcrever como evidéncia das smbora pelas idéias vigentes: “A. saia-calgo. Seu aparecimento na Bahia”, seguindo-se o texto: “ tradig6es do seu espirito conservadore pela virtude da sua prudéncia, a Bahia nao seja das primeiras a praticarem, imediatamente, as inovagdes de qualquer espécie, era de esperar, entretanto que a moda da saia-caleio se no demorasse em aparecer nas nossas ruas. Hi muitos anos o mundo se no sente abalado por um acontecimento de tamanho ruido, de escindalo tamanho, como esse da jupe culote, corrida em Paris, vaiada em Madrid, pateada em Lisboa, perseguida no Rio, aplaudida em Sio Paulo, em toda a parte o assunto do dia... e principalmente da noite nas conversas da familia, a preocupacio de povos e governos, aqueles a entenderem que a mulher esti se masculinizando muito, estes a temerem que dessa invasio de atribuigdes de um sexo pelo outro resultem alteragdes, de ordem a pora ordem alterada. O grande fato, porém, é que a Bahia ansiava por vera saia-caleao em pano e em pessoa. Teve hoje esse prazere, felizmente, para honra de nossa cultura, sem demonstracoes de assovio, na doutrina de que cada qual pode sair a rua vestido como entender, contanto que... saia vestido, Entremos a descrever o sensacional aparecimento, ‘és elegantes senhoras, em quem para la tarde na encantarem a formosura natural dispensa os ornamentos da moda, subiam cerca de 1 Rua Chile (O jornal envia a pagina de telegramas para a continuacao da noticia, mas ali diz que, sendo aquele um dia de mentiras, a nota nfo continuaria; mas nas edigdes de 3. 4 registra a simpatia com que duas senhoras passaram pela cidade, a bordo de um navio, rumo ao Pari, recebidas com curiosidade, mas com simpatia, naquele traje). 25 NoJornal de Noticias, da Bahia, publica-se naqueles dias uma declaragio de javens de que “ndo nos casaremos com as mocas que usarem saia-calgio”. O poeta humorista Lulu Parola (pseud6nimo de Alofsio de Carvalho, em sua coluna “Cantando ¢ rindo”, a propésito de coisas da politica nacional, escreve: “Segunda vez, agora, que no Rio,/De onde partem as modas do pais /teve a /Que é um dos predicados varonis.../Estou vendo das vaias 0 arrepio.../ saia-calgao longo assovi E assim se fez — para imitar Paris /onde a vaia de Auteuil é de um feitio/que matara de nojo o rei Luiz../Seja li porque for, e onde houver,/entre os homens nio pode ter guarida/o animal que vaia uma mulher../Sao mais graves ainda as da Avenidal/Sao no Brasi ‘como esté a politica metidal...cf. Jornal de Noticias, Bahia, 18.3.1911. Dois dias apos E aposto o que quiser/em volta ao tema, aludindo a importacio da saia-calgio da Tarquia 26 Vale a pena transcrever comentrios criticas da imprensa, principalmente tratando de periéclicos que se pretendiam modernos ¢ atuais — anos depois, sobre as mudancas de costumes ¢ de moral Thales de Azevedo 64 que se expressavam no banho de mar. Na Revista da Semana, em 10.9.1927, sob o titulo “As sereias ando-se cada vez cariocas”, lia-se: “A estagio caminha para o apogeu. As praias povoam-se, a mais, ea gente fica a pensar em que, se era mentira a existéncia das sereias, ela ¢ hoje uma grande verdade, pelo menos nas praias cariocas... As do Rio tém, por via de regra, uma excentri-cidade, que 6 de resto, comum em praias de banko: s6 aparecem pela manhi ow ao creptisculo, E nao falta quem vi surpreendé-las, quem vi admiré-las, quem vé fazer conjecturas sobre a verdade ea mentira das sereias, Os fotdgrafos, porém, nio se contentam com a ventura do olhar embevecido; vao mais longe: apertam as méquinas e, num gesto de excéntrica avareza, recolhem toda a beleza estonteante das praias, Das praias, é um modo de dizer: daquelas que dio as praias toda a grandeza e esplendor. Aqui damos a tiltima série, colhida especialmente para a Revista da Semana..E.— digam agora — existem ou nio as sereias?” Este texto tio rico de observacées completa-se numa pigina do mensitio A Larva, de Salvador, 5.5.1930: “O bank momentineas de terra civlizada, de terra que veste mailloreanda de automével, uma Copacabanazinka, -de-mar, na Barra, aquela hora, dava a Bahia fulguragdes ainda um tanto medrosa, a temer talvez a eterna vigilancia do forte de Santa Marta, mas que ja pe A vela bons dois palmos de perna suprajoelham. Obanho ali é sempre delicioso, tonificante, rejuvenescedor. Nao sé pelas qualidades terapéuticas, ‘mas principalmente pelas extraterapéuticas, nfo s6 pelas qualidades maritimas, mas especialmente pelas maritais(...)”. Outro texto a revelar as modificagdes no modo de ver aquele exereicio como as atitudes em relagio a freqiientacio do aludido espaco. 27 Ver seus ensaios “Miti messianici ¢ transformazione della societé tradizionale in Brasile”, in Annali della Fondazione Luigi Funaudi, Torino, V.IV, 1970; “Educagéo como uma forma de colonialismo” Créncia ¢ Cultura, V.28(12), 1972 (6); “No Brasil, baile de carnaval: espelho meu, existird no mundo festa mais louca do que eu?”, Ciéncia ¢ Cultura, 38(s), 1986. 28 Fernando da Rocha Peres, Meméria da Sé, 1974, Salvador, Ed. Macunaima, p. 36. Ver, em relacio as motivagies psicossociolégicas da moda, “Psicossociologia da Moda”, de Eduardo Diatay B. de Menezes. Revista Vozes, Ano 66, n. 3, abril 972. 29 Ver Thales de Azevedo, As regras do namoro & antiga, Sa0 Paulo, 1986, Ed. Atica, cap. IIT, “Tra- dicio e modernizacio”, p. 8+ ss. Acompanhem-se as mudancas ¢ a “modernizagio” das maneiras de vivera praia em 80 anos de moda no Brasil, p. 44, 59, 74s. 30 “Os psicanalistas que se tém dedicado ao assunto sugeriram que uma das principais fungGes da moda ¢ ensejar, sobretudo a mulher, uma via sublimada para as tendéncias epressivas¢ exibi O Cotidiano e seus Ritos 65 «que sio mais espontineas durante a infincia, e posteriormente reprimidas”, diz E. Diatay B. de Menezes. 31 Fador’s Brazil, created by Eugene Fodor, Robert Fisher; Leslie Brown Editors, David McKay Co, Inc., p. 66). Com relagio aos maiés norte-americanos, € verdade que ainda em 1988, sio muito pudicos em comparacio com os brasileiros, particularmente do molde “fio dental”, Vejam- se, por ex., 0s catilogos dos fabricantes de Kiz, ou Land’s End, anunciados nos periddicos mais sofisticados dos Estados Unidos. 32 Conselheiro Pinto, “No Banho”. A Liza, Salvador, 5/5/1930. 33 Além dos figurinos publicados no pais, que Gilberto Freyre e Gilda de Melo e Sousa indicam em livros indispensiveis para entender 0 que se passava desde o século passado, ver José Carlos Durand, Moda, Luxo e Economia. Sao Paulo, 1988, Edit. Babel Cultural. Este autor examina particularmente os problemas econdmicos da adogio de modelos, padrées, tipos de tecido, marcas de fibrricas, acompanhando as modas € suas oscilagées ¢ caprichos no jogo com os interesses comerciais. Muito influentes no Brasil, sobre a moda, foram oJornal da Familia eA Estagdo. Para este ensaio consultei, notando, por sinal, a diminuta atengio aos trajes de banho: Maria Luz Morales, La Moda. Siglo XX ~ 1900-1920, 1947, Bs. Aires, Barcelona, Salvat 8; Le Costume, XVUU e., XVII ¢; sitcles francais vu par les artistes, 1949, Paris, Art er Style (preface de Francois Boucher; M. Leloir, Histoire du Costume de P’Antiquité a 1949, Paris, Ernst & Cie.; Bruhn-Tilke, Historia del Traje em Imdgenes, 1966, Barcelona, Editorial Gustavo Gili S.A. Emma Calderini, 17 Costume Popolare in Italia, 1934, Milano, Sperling e Kupfer. 34 Michel Maffesoli, O paradigma estético (A sociologia como arte), Revista do Patriminio Histbrico ¢ Antistico Nacional, n° 21/1986; Roberto Motta, Orgia ¢ Sociedade I ¢ II, Panorama Literério, Diario de Pernambuco, 11 ¢ 18.11.1983, Recife. 35 Para questdes teéricas relativas a tais regras, ver Erving Goffman, Behavior in public places. Notes on the social organization of gatherings. 1963, New York-London, Macmillan Publishers, p. 198 ss. 36 Roberto DaMatta, Carnavais, malandros ¢ herdis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 1979. Rio de Janeiro, Zahar Editores, p. 91, 109¢ ss. 37 Os complexos aspectos do narcisismo podem seguir-se com Christopher Lasch, em The culture of narcissinn. American life in an age of diminishing expectations. 1979, New York, Warner Books, Inc. (Um desses aspectos € essa admiragao por si mesmo, inclusive do ponto de vista corpéreo, p. 71 ¢ ss). Thales de Azevedo 66 38 Robert B. Edgerton, Alone together. Social onder on na urban beach. 1979, Berveley: Los Angeles, London, U. of California Press, passim. 39 Edgerton, op. cir, p. 198. 40 “Gostos de classe ¢ estilos de vida”, reproduzindo em Pierre Bourdieu, Sociologia, por Renato Ortiz, 1983, Si0 Paulo, Atica Edit., p. 82 ss. Na Construcao simbélica de praia-e-verdo, as dis- incias ¢ divergéncias de classes, de razdo cultural, sio um determinante de constrangimentos ¢ de novas tentativas de segregacio pelos que se sentem incomodados com a invasio dos “diferentes”, como C. Cinira mostra em seu artigo (loc. cit). 41 Todo um comeércio de venda de comidas ¢ bebidas, de aluguel de cadeiras dobradigas, de tendas ¢ chapéus-de-sol verifica-se nas praias, em instalagdes permanentes ou improvisadas no ‘momento. Na praia de Jaué, no litoral baiano, alguns quilémetros ao norte do Aeroporto Dois de Julho, numa extensio de 1 km, instalaram-se hé virios anos em cariter permanente, nada menos de setenta barracas toscas de madeira e palha, com mesas e bancos, para a preparacio de alimentos (caranguejo, mariscos, ostras, comidas tipicas da regido) e bebidas: cervejas, refrigerantes, cachaca, aperitivos etc, de que se abastecem os banhistas sobretudo nos sibados e domingos. Cada barraca, situada a dez ou 15m de distancia das vizinhas, pertence e é explorada em geral por uma familia de modestos cam poneses da redondeza, nalguns casos apoiados por politicos e por “comunidades de base”. Este comércio é parte do extraordindrio complexo comercial de barracas que se armam € removem de um bairro para outro da cidade do Salvador no periodo de festas de fim de ano. 42 Mircea Eliade, Tratado de historia de las relgiones, 1974, Madrid, Ediciones Cristandad, Tomo 1, cap. V. “Las aguas ¥ el simbolismo acuatico”. 43 Johan Huizinga. Homo ludens. A study of the play element in culture. 1955. Boston, The Beacon Press. B15. 44 Os brasileiros iniciam sua vida de praia muito cede. Nao é estanhével ver criancinhas pequenininhas dentro de bergos de ime desmanchando-se ao sol junto de suas mamies de biguini. Quando crescem e jé andam, em geral, sdo acompanhadas por wma ama gue as seguem ¢ muitas vezes molham seus uniformes quando tim de os apanhar dentro da dgua. Uma wea gue sia capazes de dispensar suas empregadas vi Praia com seus amiguinhos. Os meninas aprendem a jogar futebol ou fazer 0 surf, enquanto as meninas Srincam com bonecas. Mais adiante, essas mesmas criancas faxem seus deveres na praia, apreciam a ‘misica rock na praia, encontram com as namoradas na praia e quando completam o ciclo traxern seus fi- Whinkos & praia. Quase tudo se passa ali. De manhasinha, ceda, podern se ver velhinkos ainda tentando O Cotidiano e seus Ritos 67 smanter-se jovens dando um mergulho ou fazendo 0 cooper: Os jovens exercitam-se ali. Os wagabundos swrinam ali. Os lardpios roubam e os politicos vio até fazer suas campanhas. Muitos negécios sto fechados ali também. Muitas veses um executivo desabusado, que no quer se dar ao incomodo de vestir uma camisa ‘ebotar uma gravata, diré a um cliente para encontré-lo na praia, O cliente também apareceré de calgao ‘em vez de tormo e de Irazer sua pasta. Apesar da areia, das moscas e do barulho do povo que fala alt, eles conseguem acertar seus negocios. O publicista continua falando do que se vende na praia, da miisica que se toca, dos esportes que se praticam, dos que furtam roupas, reldgios, j6ias deixados ao acaso. Anota ainda que a noite as praias adquirem outra fisionomia. Mesmo sendo permitido nadar, comeca a pescaria. Quando o sol se deita, ‘os pescadores langam suas linhas e anzéis, prosttutas se oferecem, apaixonados sentam-se ¢ conversam, ‘mocinhas lindas passeiam, as barracas recebem mercadorias e as domésticas fazem sexo. As duas da manhi, o movimento cessa ea praia experimenta um primeiro sossego. Quando muito uns favelados ‘do dormir em suas areias, conclui, cf. Fodor, op. cit. 45 Charles Vanhecke. Brési/. Paris. 1876. Editions du Seuil, p. 121. 46 Anima seria o que existe de feminino e, em algum sentido, ibidinoso, sensual, na personalidade, cf. Carl G. Jung. Man and his symbols, 1971, A Laurel Edition. 47 Gilberto Freyre. “Moral ¢ mudanga social”. Ciéncia e Trépico V. 12, n. 1. Janjjun. Editora Massangana, Recife, 1984. 48 Roberto DaMatta, em A casaea rua. Espago. Cidadania, mulher. S40 Paulo, 1985. Ed. Brasiliense, ‘enfatiza o contraste entre os “tempos mais internos , da casa e da familia”, habitualmente nos sébados ‘€ nos domingos, ¢ os “tempos externos, marcados pelo trabalho” dos “dias comuns da semana”, p. 31. A praia inverte esse esquema; por sua vez, leva ao extremo a oposicio entre o jardim e a praca como os lugares do “privado e do piiblico”, cf Nelson Saldanha, “O jardim ¢ a praca sobre o lado ‘privado’¢ 0 lado ‘piiblico’ da vida social e hst6rica”. Ciéncia e Trapico. Vo 11. m.1 janfjun, 1983. 49 Michel Maffesoli. A Conguista do Presente. Rio, 1984.

Você também pode gostar