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HERZOG & DE MEURON

Jacques Herzog e Pierre de Meuron irromperam no cenário da arquitetura


contemporânea com uma obra que surpreendeu tanto seus pares quanto
desconhecidos, e que pode ser vista como um delineamento do que seria o seu futuro.
Quando construíram, no fim dos anos 1980, o armazém para a Ricola - que as revistas
de arquitetura logo se apressaram em publicar - transformaram-se subitamente em
arquitetos cuja carreira era preciso acompanhar, e nem haviam ainda completado
quarenta anos de idade. Após se formarem pela ETH (Escola Politécnica) de Zurique,
onde tiveram a ocasião de frequentar um curso ministrado por Aldo Rossi, realizaram
algumas obras pequenas em sua cidade natal, Basiléia, algumas das quais
comentaremos adiante.

O que teria surpreendido os que se renderam ante a rigorosa arquitetura do armazém


para a Ricola? No fim de uma década que contemplara muitos excessos, o que
admirou aos críticos e aos arquitetos foi aquela deliberada contenção formal que
culminava no canônico, categoria que a arquitetura recente parecia haver descartado,
pensando tratar-se de um atributo inalcançável. O armazém para a Ricola, apesar de
suas dimensões reduzidas, era um manifesto. A arquitetura não tinha por que
depender do exterior (função/programa), nem buscar a expressão pessoal
(linguagem/estilo). Deveria ser o resultado formal de sua própria lógica. Assim, na
Ricola, o recinto envolvido pelas paredes é neutro - o mais simples dos retângulos -, ao
mesmo tempo que não há nenhum gesto formal que possa indicar expressão pessoal
na arquitetura. O uso inteligente do material, a madeira laminada, permitiu que na leve
parede fossem introduzidos os componentes formais tradicionais (número, proporção,
ritmo), enquanto a solução do específico, a cornija, admitiu referências à história: certo
sabor arcaico - e ao mesmo tempo moderno - nos invade ao ver aquela pequena,
embora intensa, obra de arquitetura contemporânea. O cansaço produzido pelo pós-
modernismo, com toda a absurda iconografia que tal movimento trouxe consigo,
acabou encontrando o frescor necessário naquela arquitetura suíça que parecia
ignorar as discussões acadêmicas de então, propondo novas metas. A busca da
origem - objetivo que com tanta insistência muitos artistas da segunda metade do
século XX perseguiram, acreditando assim estar em contato com todo um leque de
pensadores, de Nietzsche a Heidegger - aparece como o propósito que inspira e guia
a obra destes arquitetos. Esgotado todo um modo de fazer arquitetura e atingido o fim
da história, o que se manifestara na repetição sem sentido dos estilos, a única
possibilidade seria a volta à origem, recomeçar. Dessa maneira, ao ver estes primeiros
edifícios de Herzog & De Meuron (especialmente o do armazém para a Ricola) não
podemos deixar de pensar em Semper e em um modo de entender o momento inicial
ligado ao impulso dos primeiros construtores. A arquitetura, portanto, como resultado
como estrutura visível de uma construção em que a forma se apresenta como
expressão da lógica. Assim, a vibração da parede do projeto para a Ricola, em que a
densidade dos elementos horizontais se produz segundo critérios simplesmente
gravitacionais, parece algo não muito diverso do que faziam

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os construtores do passado, que colocavam as pedras mais pesadas na base, onde o
muro se encontrava com o chão. Não é, portanto, estranho que, na busca daquilo que
se mantém como matriz, Herzog & De Meuron nos façam voltar a sentir uma emoção
pelo arcaico, conciliando dessa maneira todos aqueles que acreditam que a cultura
necessita de novas bases. A história à qual Foucault se referia como senhora do século
XIX deve ser ignorada. Tal captura do originário leva, por um lado, a simplificar a forma
até extremos onde não possamos mais falar em expressão, e, por outro, a indagar qual
é a natureza dos materiais, qual o seu potencial. O desenvolvimento da carreira de
Herzog & De Meuron parece confirmá-lo. Alguns de seus projetos mais felizes (e penso
naturalmente nas adegas Dominus, em Napa Valley) exploram o potencial formal dos
materiais, sem que tal exploração reivindique a presença da estrutura. Por isso, atrevo
-me a dizer que a sua obra é, em primeiro lugar, uma celebração da matéria, sendo a
forma somente o veículo que a torna possível.

Essa importância dada à matéria, aos materiais e ao modo como se revelam na


construção, por meio da técnica, é responsável pelo esquecimento deliberado da
imagem, pelo abandono consciente de qualquer referência iconográfica. Poderíamos
inclusive falar em oposição aberta e clara a tudo o que implica veleidade estilística.
Para Herzog & De Meuron a arquitetura aparece e se "deposita" em volumes sóbrios e
prismáticos, unidades mínimas de atuação capazes de permitir o trabalho do
arquiteto. Se a arquitetura oferece seu melhor ao fazer com que os materiais consigam
mostrar tudo aquilo de que são capazes, qualquer submissão a uma forma, seja ela
imposta por uma linguagem ou por vontade simbólica, deve ser energicamente
combatida. Pode-se, então, dizer que Herzog & De Meuron ignoram a iconografia,
renunciam à expressão, à comunicação, com o intuito de recuperar para a arquitetura
a gravidade da construção e, consequentemente, uma descoberta prazerosa da
condição substancial dos materiais. Bastaria pensar em projetos como o já
mencionado armazém para a Ricola, a casa de pedra, a torre de sinalização ferroviária
em Basiléia e as adegas Dominus - eu poderia ainda citar muitas outras obras.
Diferentemente do que vimos em alguns projetos de Rem Koolhaas, nos quais
percebemos certa obsessão em encontrar uma forma sintética capaz de atender a
um programa e a um lugar, e em transformá-la em forma simbólica, em ícone com
valor territorial (penso no terminal intermodal de Lille, por exemplo), Herzog & De
Meuron parecem decididos, ao menos em uma fase central de sua carreira, a eliminar
qualquer tentação iconográfica: a imagem não existe. O substancial da arquitetura é
fazer os materiais falarem, e para isso bastam os volumes mais elementares: sobre
eles os arquitetos projetam as malhas e os traçados que possibilitam a construção e
que, em último caso, podem ser considerados como o território onde age a arquitetura.
Somente em alguns projetos mais recentes aparecem referências iconográficas,
apenas para serem negadas. Penso aqui, como deduzirão aqueles já familiarizados
com os trabalhos recentes destes arquitetos, em projetos como a Rudin Haus.

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A negação da iconografia trazia implicitamente a negação de qualquer arquitetura
que pudesse ser interpretada como simples arrebatamento do indivíduo, Por isso, não
encontramos em sua obra "gestos pessoais": a marca do arquiteto não está presente
como naquela que vimos ao falar de Gehry, e as plantas não têm a caligrafia peculiar
de um Siza. Talvez tivessem aprendido com Rossi a estabelecer distâncias entre o
arquiteto e suas obras. O êxito (ou, se quisermos, a sintonia entre Herzog & De Meu- ron
e a sensibilidade dos anos 1990) reside em grande parte nessa evidente renúncia do
indivíduo em manifestar-se nas suas obras. Em tempos de massificação democrática,
a arquitetura deixa de pertencer ao individuo, deixa de ser pessoal, para tornar-se um
simples objeto de reflexão, uma base inócua e inerte para a ação. Algo semelhante ao
que aconteceu no terreno da estética das artes plásticas. Sua arquitetura pretende
atingir o específico a partir do universal: o conhecimento do universal é o que importa.
O armazém para a Ricola é um bom exemplo dessa atitude. O espaço é a
consequência direta de sua construção, Paredes e cobertura, geradas por um simples
retângulo, são os elementos arquitetônicos primários e primordiais. A sofisticada
parede nasce do desejo explícito dos arquitetos de resolver todos os problemas ao
mesmo tempo. A arquitetura, portanto, é vista aqui como expressão sintética dos
problemas gerados pela construção e pelo uso. Luz, isolamento, ordem visual etc.
revelam-se como estímulos e incentivos para o trabalho do arquiteto. O fato de
colocar-se no momento originário da construção resulta naquilo que os antigos
chamavam de arquitetura: a candura ao confrontar uma obra, ao confrontar a
construção, é o que lhes permite descobrir a eficiência dos números, das séries e, em
última instância, dos ritmos. Atuando assim, como construtor disposto a enfrentar uma
realidade não conhecida, o arquiteto descobre o território que definimos como
arquitetura.

Fazer arquitetura implica construir, dar vida aos materiais, que adquirem no construído
seu modo de ser mais autêntico, sua natureza. Hoje Herzog & De Meuron sabem disso:
fazem o possível para que os materiais se expressem como são, e ao fazê-lo
descobrem novas propostas e novas maneiras de usá-los. São os materiais que
possibilitam o surgimento das formas. No projeto para a Ricola, a natureza plana dos
painéis de madeira é responsável pela textura da parede, e é ali que a construção se
revela como forma arquitetada. No projeto da igreja ortodoxa de Zurique antecipa-se o
potencial do vidro tradicional. Na Blauen Haus (casa azul) em Oberwil, Suíça, os blocos
de concreto se transformam ao serem pintados. A construção com painéis requer
divisões, e a elas se deve o caráter, o "desenho" da superfície. Sua sensibilidade para
usar os mate- riais resulta no experimento sofisticado que encontramos na casa de
pedra em Tavole. O papel exercido pelos diferentes materiais concreto, blocos de
concreto, pedra - é crucial para definir a posição das janelas, a conexão do telhado
com os muros etc. Os materiais ajudam a definir a estrutura, apreciável visualmente,
da construção. Daí as juntas terem tanta importância na arquitetura de

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Herzog & De Meuron: o encontro dos elementos básicos, em geral resultantes de um
processo industrial, requer as juntas, e se quisermos explorar a fundo essa arquitetura
devemos prestar atenção nelas.

Este interesse pelos materiais atinge o seu ápice com a invenção deles, e as adegas
Dominus em Napa Valley são um bom exemplo disso. É óbvio que nossos arquitetos
partem da admiração que sentem pelas obras de infraestrutura quando usam os
gabiões para construir as paredes nas adegas californianas. Mas é surpreendente a
experiência de ver esses gabiões do lado de dentro do edifício, com a luz do sol
filtrando-se pelas frestas. Os arquitetos transformaram os gabiões convencionais,
usados nas auto estradas suíças, num material novo e exclusivo: a experiência da
adega Dominus se transforma, assim, em sensação única, que de modo algum pode
ser transferida a outro lugar. A "invenção" do material resolve uma arquitetura
concreta: não será fácil, portanto, extrapolar a invenção a outros lugares.

Diante de algumas dessas experiências talvez pudéssemos falar em arcaísmo,


conceito que não parece afastado nem alheio ao desejo de encontrar as origens aqui
discutido. Digamos que a recompensa a quem adentrar por caminhos tão intrincados
é o reencontro com uma realidade que expressa o desejo de permanência presente
em boa parte da arquitetura primitiva. Nele, a lógica da construção é tão evidente que
se esquece de qualquer tentação de introduzir parâmetros que possam ser
considerados estéticos. Dito de outro modo - e apesar de a arquitetura de Herzog & De
Meuron estar enraizada, como veremos mais tarde, na tradição moderna, seu
compromisso com a construção é tão claro que permite qualificar sua arquitetura
como elementar e primária; daí tais res- sonâncias de arcaísmo. Mas a atração da
dupla pelos materiais é ecumênica: não exclui aqueles produzidos pela indústria.
Assim, ao lado de projetos nos quais os materiais parecem celebrar sua origem
natural, sua procedência telúrica, há muitos outros em que os arquitetos revelam um
interesse em assimilar o artificial, aquilo que um mundo governado pela indústria pode
oferecer. (Entre esses materiais, eles deram atenção especial ao vidro. De fato,
gostaria de enfatizar a inestimável contribuição que Herzog & De Meuron fizeram à
prática profissional com seus projetos e construções em vidro). Seu interesse por
materiais industriais elimina qualquer tentação de associar o arcaísmo que vimos em
sua obra à ideia romântica do "bom selvagem". Muito pelo contrário, na arquitetura de
Herzog & De Meuron há sempre o desejo de esfriar, de apagar o fogo do espontâneo.
muito de acordo com a renúncia ao gesto pessoal de que falamos anteriormente.

Assim, ao contemplar seu trabalho sente-se a presença de uma atitude puritana em


relação à arquitetura que nos remete a um individuo como Mies van der Rohe,
obcecado em mostrar que a realidade - os edifícios que ele construía - não podiam
ser de outro modo. Quando a lógica da construção se converte na materialidade da

1. Recipientes de arame galvanizado ou aço preenchidos com pedras, geralmente usados em


estruturas de escoramento ou contenção. [N.E.]

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arquitetura esse aspecto se torna a condição que governa a obra, a liberdade do
arquiteto, sua capacidade de escolher livremente as formas, começa a ser
questionada. Devemos, contudo, estabelecer uma distinção entre Mies e os arquitetos
suíços, além de situá-los no tempo. Enquanto Mies vivia obcecado em depurar os
meios de construção com os quais trabalhava para estabelecer uma linguagem
universal e absoluta, Herzog & De Meuron parecem satisfazer-se com o específico, o
concreto. Sua arquitetura é uma resposta a situações precisas e bem definidas, às
quais associam um material com significado diverso em cada caso, e o procedimento
alcança seus melhores momentos quando um material é de fato inventado, como nas
adegas Dominus. Porém, os materiais e os meios de construção são manipulados com
o propósito consciente de não cair na armadilha de uma linguagem única e exclusiva.
Algo bem diferente do que acontecia com Mies.

Voltemos, entretanto, ao ponto inicial desta reflexão. O desejo de retorno à origem não
está distante de algumas tendências artísticas recentes, e por isso Herzog & De Meuron
foram apresentados como exemplo do que pode ser uma arquitetura minimalista. Os
artistas que, partindo do que fora chamado de arte conceitual, chegaram à tendência
conhecida como minimalismo enfatizam o valor das formas mais simples e aspiram
manifestar a energia contida em qualquer matéria, abandonando toda alusão tanto à
representação como à expressão pessoal. Desse modo, os minimalistas propõem um
entendimento reflexivo da obra de arte, transferindo ao espectador todo juízo possível e
estabelecendo critérios estéticos semelhantes àqueles usados por Herzog & De Meuron
em sua arquitetura. Os prismas com os quais a dupla inicia suas divagações
arquitetônicas não estão muito afastados das propostas formais de artistas como Carl
Andre ou Donald Judd. A admiração que sempre sentiram por Helmut Federle nos
ajuda a abordar seus gostos e afinidades. Federle não é um minimalista ao pé da letra,
mas seu modo de ocupar o território da tela, que obriga o espectador a sentir-se
incluído naque- le mundo formal absorvente e sóbrio, está muito próximo da maneira
como Herzog & De Meuron usam os materiais, quando os transformam em autênticos
protagonistas de um mundo do qual não é possível nos sentirmos excluídos.

Talvez não possamos traçar um paralelo tão estreito entre Herzog & De Meuron e o
minimalismo como o que levou os críticos a associar Le Corbusier ao cubismo, porém,
devemos reconhecer que poucos arquitetos hoje são tão sensíveis às propostas dos
artistas plásticos como Herzog & De Meuron. Esta pode ser a ocasião para sugerir que,
se alguma ajuda do mundo externo pode ser útil para os arquitetos, as que proveem
das experiências dos artistas plásticos parecem ser as mais adequadas. A relação
entre arquitetura e pintura abriu espaço a um amplo campo crítico, e pensar, portanto,
que essa relação pode ser estendida aos dias de hoje não deixa de ser sedutor, e faz
com que a obra de Herzog & De Meuron adquira um interesse além do estritamente
disciplinar. Sua atitude não é tão frequente, e bastaria pensar na obra do mais
próximo, cronologicamente falando, dos arquitetos que estamos analisando,

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Rem Koolhaas, para avaliar a posição tomada pelos suíços. Embora devamos
estabelecer relações entre a arquitetura de Koolhaas e alguns artistas
contemporâneos (os nomes de Andy Warhol e David Salle vem imediatamente à
memória), o arquiteto holandês nunca declarou diretamente a sua dívida para com
determinada corrente estética, enquanto Herzog & De Meuron aludem frequentemente
à influência recebida pelos estilos plásticos contemporâneos.

Porém, como contraponto obrigatório à importância da atitude estética desses dois


arquitetos, devemos falar sobre o valor que sempre deram ao que podemos chamar
de compromisso profissional - ou, se quiserem, devemos reconhecer o quanto há de
puro pragmatismo em seu trabalho. O fato é que, desde o início de sua carreira, Herzog
& De Meuron se fundamentaram na prática da profissão. Assim, devemos entender a
sua aparição no cenário internacional não como resultado de uma ação proselitista
surgida no meio acadêmico (o caso de Venturi, Eisenman, Rossi), nem da publicação
de um manifesto atraente e provocativo (Koolhaas), mas como o amplo
reconhecimento de uma prática profissional que começou submetida às regras mais
convencionais do jogo. O armazém para a Ricola não é, como veremos, sua primeira
obra. As que a precederam mostravam uma solidez e uma consistência que já
antecipavam a intensidade do que estava por vir. Essa consciência de seu trabalho
como arquitetos praticantes, esse pragmatismo, permite-nos dizer que a obra de
Herzog & De Meuron está fortemente enraizada na sociedade em que vivem, em seu
país, na Suíça. Desde o início, seus projetos refletem alguns dos atributos e virtudes que
acompanharam a arquitetura suíça no passado: respeito pelo lugar, atenção à escala,
rigor e cuidado nos detalhes da construção. A inevitável comparação com a obra dos
outros arquitetos analisados aqui obriga a reforçar em Herzog & De Meuron sua
vontade de respeitar a condição profissional, algo que os distancia das atitudes mais
radicais dos proclamados teóricos (Eisenman, Rossi, Koolhaas), dos que fizeram
provocações sofisticadas (Gehry, Venturi inicial) ou ainda dos que seguiram o
caminho árduo do trabalho profissional para serem reconhecidos (Stirling, Siza).

Parece-me, portanto, haver sentido em incluir Herzog & De Meuron na cadeia


ininterrupta de arquitetos suíços modernos nomes como Karl Moser, Hans Bernoulli ou
O. R. Salvisberg, ou mesmo o heterodoxo e inquietante Hannes Meyer. A medida justa, a
precisão e o rigor são qualidades que nos vêm à mente quando se fala dessa
arquitetura, e não é difícil reconhecê-las nas obras de Herzog & De Meuron. Essas
qualidades acompanham uma abordagem da arquitetura baseada na razão, critério
que, me parece, sempre pautou nossos arquitetos ao estabelecer estratégias para
projetar suas obras. Eles buscam (ou buscavam) o prisma mínimo, capaz de
prescindir de toda referência pessoal, embora isso não fosse obstáculo para que uma
janela se incrustasse primorosamente numa parede de concreto (Antipodes,
residência estudantil em Dijon), ou duas reticulas fossem sobrepostas por meio de
uma deliciosa geometria (edifício de escritórios SUVA, Basiléia). Essa atitude
deliberadamente profissional talvez explique a contínua presença da técnica em seu
trabalho, resultando em

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edifícios tão singulares. Preocupados com outras questões, poucos arquitetos
contemporâneos estão atentos para a importância da incorporação das técnicas na
arquitetura. De fato, Herzog & De Meuron merecem crédito pelo esforço de responder a
um problema tão crucial para a arquitetura hoje como a construção do pano de vidro:
sua contribuição para o desenvolvimento de novas tecnologias do vidro é de grande
valor. E é também esse mesmo pragmatismo profissional que os faz explorar a
arquitetura de conjuntos habitacionais, em que partiram de tipos conhecidos, mas
incorporaram matizes que, em algumas ocasiões, chegaram inclusive a transformá-
los.

Já que insisti no seu compromisso com o país e com a prática profissional, talvez seja
correto estabelecer uma continuidade entre o racionalismo da arquitetura suíça no
período entreguerras e a arquitetura de Herzog & De Meuron. Desse modo,
concluiríamos mais uma vez que, à parte a posição crítica que pode ser tomada ante
os propósitos da arquitetura de vanguarda do entreguerras, eles foram referência
obriga- tória durante toda a segunda metade do século XX.

Há, no entanto, certa contradição entre a atitude que parece advogar pela
redescoberta do elementar que exige profundidade e põe a obra arquitetônica em
evidência - e o profissionalismo, que os leva a aceitar as encomendas mais diversas e
competir no drástico mercado. Dito de outro modo, uma arquitetura com metas tão
ambiciosas dificilmente convive com uma prática profissional sempre disposta a
aceitar as regras do jogo e a entender que a repetição é em certos momentos
inevitável. As obras de Herzog & De Meuron nem sempre atingiram no fim dos anos
1980 e durante os anos 1990 a intensidade que admirávamos em seus primeiros
projetos. Em algumas delas percebemos inclusive influências externas desnecessárias,
que os levaram a compreender os edifícios como máquinas comunicadoras, fazendo-
os, assim, perder aquela condição opaca e hermética que tanto nos seduzia em obras
do primeiro ciclo de sua carreira. Antecipando o que comentaremos nas imagens,
devo dizer que algumas de suas obras, como o edifício SUVA, o centro esportivo
Pfaffenholz, o novo pavilhão industrial da Ricola, a biblioteca da ETS em Eberswalde, os
projetos no campus da Universidade de Paris em Jussieu e o centro cultural em Blois,
nem sempre merecerão uma opinião favorável. Em todas essas obras e projetos, em
que sempre está presente a sua capacidade profissional, o campo de ação do
arquiteto se restringiu ao controle das fachadas, à definição da pele do edifício: os
materiais agora parecem ser usados somente para isso e perdeu-se a condição
estrutural do sólido que tanto nos admirava em seus primeiros trabalhos. Felizmente,
obras como as adegas Dominus são a feliz, felicíssima, exceção, e a elas dedicaremos
atenção especial. Também nos deteremos noutros projetos que, ao buscar novos
rumos, demonstram forte capacidade de autocrítica, como a Rudin Haus, a biblioteca
da BTU Cottbus e o Centro Óscar Domínguez nas Palmas. Todos eles nos levam a
contemplar o futuro da obra de Herzog & De Meuron com o mesmo interesse
despertado pelo começo de sua carreira. Então, passemos, sem mais demora, à
análise de seu trabalho.

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1.5 - Na casa Plywood, de Bottmingen (1984-85), sua primeira obra, Herzog & De
Meuron exploram os aspectos mais elementares da construção. Descobrem que cons
truir implica, em primeiro lugar, a criação de um plano horizontal sobre o qual nos
movimentamos, coberto por outro plano, também horizontal, que nos protege e pro
picia o uso do espaço entre ambos. Como em Mies, a casa de Herzog & De Meuron
pressupõe que erguer um plano horizontal que nos afasta do chão, da terra, é um
gesto inaugural autêntico, o momento definitivo que origina um processo de
construção. A vedação se produz posteriormente, de maneira quase automática. Existe
a obsessão em estabelecer uma distinção clara e fundamental entre o solo e o
construído. Os pai- néis de revestimento e o telhado, bem como a localização do plano
horizontal do teto, transformam-se em elementos-chave da materialidade que
engendra um edificio. Os painéis usados são assim responsáveis pelas aberturas e
portas. O espaço é algo neutro e inerte que se produz de um modo que poderia ser
considerado como automático.

Porém, apesar dessa vontade de obter o genérico, o universal, associando a arqui


tetura da casa a intervenções que qualificamos como "gestos inaugurais", Herzog & De
Meuron são sensíveis às condições específicas presentes em qualquer construção.
Reconhecem assim a presença de uma árvore e permitem que ela gere a inflexão que
dinamiza a arquitetura mas não a ponto de pensar que a casa Plywood deva sua
forma à circunstância. Ninguém consideraria esta casa como a conseqüência daquela
circunstância específica, a árvore. O que importava aos arquitetos era definir a cons
trução, estabelecer um sistema capaz, em último caso, de englobar o específico.
Pensar a obra de Herzog & De Meuron como exemplo de uma arquitetura que parte da
cir- cunstância seria fazer uma interpretação erronea. Muito pelo contrário, é a busca
do universal, do primário, o que parece preocupar os arquitetos desde esses
momentos iniciais de sua carreira.

6.7 - O gosto pela construção mais depurada é percebido nesta obra, o estúdio
fotográ fico em Weil am Rhein (1981-82), onde a arquitetura dá a impressão de querer
encon- trar seu fundamento na função: é possível entender este edificio como uma
gigantes- ca câmera fotográfica, em que as clarabóias fariam o papel do diafragma.
Prestemos atenção à planta e ao cuidadoso exercício de articulação que implica a
passagem da construção existente ao ateliê. Pode-se falar em "puritanismo
funcionalista" ao con templar uma obra como esta.

8.13 - O projeto deste armazém no complexo industrial da Ricola, em Laufen (1986-87).


deu à dupla de arquitetos suíços a oportunidade de elaborar uma proposta radical: a
arquitetura vista como desdobramento visual da construção. Nem a planta, nem o
corte, nem o conceito de espaço são as referências deste trabalho. O que conta é
tornar a construção visível, tangível que, aqui, centra-se no mais simples dos
elementos, a parede.

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1.5 - Casa Plywood Bottmingen, 1984-85

Casa de madeira compensada, Bottmingen

https://www.atlasofplaces.com/architecture/plywood-house/?/Plywood-House-Herzog-de-Meuron

333
6.7 - Estúdio fotográfico,
Weil em Rhein, 1981-82

333
8.13- Armazém para a Escola, Lauren, 1986-87

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O que o arquiteto manipula é a pele do vazio gerado por um retângulo. Conscientes
disso, Herzog & De Meuron, depois de decidirem o sistema de construção painéis de
madeira exploram o modo de gerar uma forma. O volume sóbrio é construído com
base no artificio de evidenciar as juntas dos painéis, revelando-as por meio de peças
horizontais que têm o efeito de dotar as superfícies de números e pro- porções,
parâmetros para o projeto, atributos dos quais a arquitetura sempre se serviu. As
peças horizontais sugerem certa nostalgia pela espessura e envergadura das pare-
des de pedra do passado. A manipulação da forma repetida dos painéis de madeira,
imposta pela construção, cria três intervalos definidos pela largura da faixa trabalhada
em cada um, e o uso de medidas diferentes gera um sentido de ascensão que nos
per- mite falar em ritmo: a construção rigorosa, a mais pura tectônica, leva-nos a
recuperar noções e conceitos que parecem sempre ter estado presentes na
arquitetura.

Uma observação como esta será reforçada ao comprovar que os três intervalos
crescentes, que definiram o ritmo ascendente citado, terminam numa cornija que,
inevitavelmente, nos remete às construções tradicionais de madeira. A exploração de
um possível novo modo de trabalho com os painéis de madeira compensada parece
entrar em conflito com um gesto antigo. A forma do edifício lembra as construções
primitivas de que todas as culturas se valeram para proteger o alimento que, com
tanto esforço, era retirado da terra.

A sofisticada parede que parece ser o objetivo derradeiro deste projeto nasce do
desejo explícito dos arquitetos de resolver todos os problemas ao mesmo tempo. A
construção adquire, assim, um nível de generalidade que a transforma em algo
abstrato, não específico. Gostaria que prestássemos atenção em um detalhe singular:
o canto. Herzog & De Meuron não se emendam; o canto não permite uma análise do
modo como se constrói um sólido. Para eles, está claro que o canto é simplesmente o
encontro de dois planos diferentes: desse modo então se produz o encontro das duas
paredes, e um detalhe bonito e inesperado surge. O imediatismo do gesto nos atrai e
se converte no emblema de todo o procedimento. Porém, na verdade, o gesto não é
fortuito. Se compararmos a solução dada à maquete, no canto sob o beiral, com a que
foi construída mais tarde, veremos como os arquitetos refinaram a solução final do
projeto, Curiosamente, sua busca do elementar, seu desejo de obter como resultado a
construção essencial permitem que apareça o singular, o único, como acontece com
este bonito armazém para a Ricola. Também é importante prestar atenção no espaço
intersticial inquietante produzido entre o armazém e o talude. Deve-se ainda reforçar o
aproveitamento do encontro entre um elemento vulgar uma porta e o episódio que
caracteriza esta obra: a parede de leves painéis de madeira compensada.

14.15 - Na casa de pedra em Tavole (1982-88) o projeto parece centrar-se novamente


na construção da parede. Os autores do projeto voltam a fazer da construção a
substância de sua arquitetura.

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Aqui, ao explorar a alvenaria tratam de uma questão que será recorrente ao longo de
toda sua carreira a relação entre a estrutura e a vedação é a protagonista da obra. A
estrutura é, neste caso, uma reticula de concreto, que garante a construção dos
espaços internos e ajuda também a conferir estabilidade na parede. A vedação é uma
parede de pedra que aparenta ter sido construída em seco, sem rejun- te, uma
técnica existente desde o neolítico. A pedra parece prevalecer, e diríamos que,
antecipando o que se daria em muitas de suas obras futuras, Herzog & De Meuron
conseguem fazer com que entendamos essa arquitetura como elogio do material com
que se trabalha. Com uma atitude que eu me atreveria a qualificar de fenomenológica,
eles nos fazem percebê-la como a mais pura manifestação da pedra. Daí a estrutura
de concreto quase desaparecer nas paredes externas, assumindo um papel duplo,
ambí- guo: por um lado, poderia ser vista como simples união das superficies de
pedra, que dela necessitam por uma questão de estabilidade; por outro, é possível
perceber uma intenção bem diferente ao vê-la transformar numa cruz sutil, senhora do
plano vertical,

os quadrantes que definem a estrutura formal da superficie de pedra. Essa cruz, por
sua vez, nos leva a falar sobre a planta. Estamos diante de uma planta hermética, em
que não há nenhum rastro de movimento nem distinções condicionadas pelo uso -
questões que, em tantas ocasiões, determinam o traçado. A planta hermética é mais
uma prova da intenção, demonstrada pela dupla suíça, de que sua arquitetura adqui-
ra a condição de objeto abstrato: a casa de pedra pode ser vista, portanto, como um
objeto construído silencioso, que oferece poucas pistas sobre suas virtudes
instrumentais.

Como no projeto para a Ricola, ao inserir uma abertura na parede formada pelos
painéis de madeira ou ao receber uma marquise para proteger a área de carga e
des- carga, aqui também há momentos em que se quebram as normas que os
próprios arquitetos parecem impor: as janelas horizontais em extensão observadas no
andar superior são uma prova dessas anomalias, que devemos entender como um
alívio da rigidez produzida pelo cumprimento estrito das normas puritanas. Ou seja, as
ano- malias são, para Herzog & De Meuron, transgressões das normas que ancoram
suas construções no mundo circundante.

16.18 - Embora nos possa parecer uma obra menos radical e de certa maneira
ambigua, este edificio de apartamentos na Hebelstrasse, em Basiléia (1987-88) é, a
meu ver, uma de suas realizações mais auspiciosas. Comecemos prestando atenção
na planta. Nin- guém deverá se surpreender se eu disser que ela segue uma estratégia
inovadora. A ocupação de um pátio interno num terreno que parece ainda manter a
memória da divisão da propriedade medieval fez com que os arquitetos insistissem
numa estrutura longitudinal rente a uma das paredes vizinhas. A planta das casas
respeita essa decisão primeira e primordial. A habitação burguesa, onde prevalece o
cômodo como elemen- to-chave, seja para acolher um uso (sala de jantar, estar) ou
um indivíduo (dormitório),

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14.15 - Casa de Pedra, Tavole 1982-88

16.18 - Edifio de apartamentos na


Hebelstrasse, Basiléia, 1987-88

337
19.21 - Edifício de
apartamentos Schwitter,
Basiléia, 1985-88

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adquire aqui a sua expressão mais direta ao prescindir de qualquer articulação
espacial e conectar os cómodos com o mais simples dos mecanismos, o corredor.
Paralela a ele, uma varanda contínua dá a impressão de insistir na forma elementar da
proposta planimétrica. A planta é lacônica, mínima: ninguém ousaria dizer que a
planta gera a arquitetura. Apenas uma inflexão na fachada introduz o incidente que
entra em conflito dialético com o alinhamento do telhado. Como na casa Plywood, o
edifício na Hebelstrasse reforça o valor estrutural da construção de planos horizontais,
revelados no canto delicado que surge com tanta precisão diante das varandas. A
escolha do material também aqui é crucial: dele resulta não apenas o caráter, mas
também a aparência, a materialidade que dá vida à construção. Assim vemos, então,
como o modo de construir resolve ao mesmo tempo cheios e vazios, painéis e janelas.
Nesse caso, a madeira do tipo mais ligado ao passado, à tradição artesanal é usada
nos pila- res torneados que se transformam em elementos chave iconográficos. A
esses pilares aparentemente ambíguos o edifício de Hebelstrasse deve sua imagem. A
eles também possivelmente se deve tal aspecto arcaico, primário, primitivo e
atemporal, certamente afastado dos estilos e modos que decidimos chamar de
modernos. A casa parece oferecer, como em outras obras de Herzog & De Meuron,
uma lição genérica, universal, de como construir, e é nessa condição genérica que
parece se encontrar com o passado, o que justifica nossa alusão ao arcaísmo. É claro
que esse sabor arcaico é neutralizado pelo modo como se manipula o plano horizontal
superior, o telhado. Os arquitetos usam aqui uma liberdade extrema, afastando-se da
exibição puritana de uma construção imaculada que ocorre no resto da casa. Talvez o
encanto resida nessa incoerência.

19.21 - Nesta obra, revela-se a disponibilidade profissional de Herzog & De Meuron. Não
se trata de um programa sofisticado: é apenas um prédio residencial numa esquina
urbana, o edificio de apartamentos Schwitter, em Basiléia (1985-88), que deve atender
a um setor de mercado mais amplo que o da Hebelstrasse. Como vimos, suas obras
iniciais enfatizavam a construção do plano horizontal. Agora, essa experiência é
retomada e eles concebem o novo edificio como simples sobreposição de planos
horizontais. Mais uma vez, a definição da arquitetura é confiada à vedação, nesse caso
(e antecipando outros projetos que logo veremos) de vidro. Como em Hebelstrasse, o
contraste entre dois perfis os perímetros da varanda e do interior das moradias é o
responsável pela forma do edificio. O encontro de opostos se encarrega daquilo a que
chamamos de "arquitetura". A dialética, pois, é aqui instrumento para que o projeto seja
uma realidade notável: Le Corbusier, entre outros, foi um mestre na manipulação desse
instrumento eficaz de criação de formas arquitetônicas.

22.24 - Aqui está mais um exemplo da versatilidade profissional de Herzog & De


Meuron, como o que acabamos de comentar. Mas, enquanto a planta dos
apartamentos

339
Schwitter pode ser descrita como simplesmente correta, o que ocorre neste outro
edificio de apartamentos em Basiléia (1984-93) é mais sutil e complexo. Na minha
opinião, a planta é a coisa mais certeira deste projeto, e o controle preciso dela nos
diferentes níveis, como bem se vê no corte, gera um espaço público interno
interessante. A presença do edificio na rua é confiada às persianas, que perdem sua
condição de elementos tradicionais por conta do material utilizado na sua confecção,
o ferro fundido. Mas, apesar da boa intenção dos arquitetos ao tentar recuperar o
ornamento, tal licença não ecoa positivamente no design, e não podemos deixar de
lamentar a falta da leveza e eficiência das persianas tradicionais. A independência
diante do contexto não chega a produzir, aqui, algo de valor: o edificio prescinde da
quiçá desejável continuidade entre os edifícios vizinhos, sem adquirir (devido ao
terreno estreito) a presença que teria justificado a descontinuidade.

25.28 - A ideia de modificar formalmente uma planta que parece conhecida e que nos
remete às Siedlungen racionalistas - exercício cuja origem reside nas considerações
tipológicas - levou Herzog & De Meuron a explorar o alcance de seus princípios numa
arquitetura de maior escala. O croqui do projeto do conjunto habitacional na
Pilotengasse de Viena (1987-88/1989-92) - um desenho que pretende ter valor
figurativo e que evoca artistas como Lucio Fontana - mostra como os arquitetos
estavam conscientes do terreno onde atuavam. Sua intervenção usa a geometria, e a
simples ruptura da ordem ortogonal pode exercer uma influência enorme no resultado.
Desse modo, o que estava submetido à tirania da visão perspectiva no traçado
ortogonal originário agora se trans- forma em imagem unitária, quando as casas são
inseridas em um arco, transformando- as em partes que configuram um elemento de
hierarquia superior. Essa leitura possível do conjunto como gesto unitário, que tem
implícita uma omissão da ortogonalidade, faz com que o espaço resista à visão
perspectiva, o que certamente supõe uma mudança substancial em relação aos
modelos em que se inspirou. Herzog & De Meuron expe- rimentam a eficácia, em
termos visuais, de intervenções que poderiamos chamar de "mínimas", aludindo assim
ao território estético no qual eles desejam situar-se.

Ao fazer essas considerações, contudo, gostaria de assinalar a presença sutil de


recortes transversais que introduzem uma rede capilar de caminhos que parece
questionar o gesto decisivo dos traços em forma de arco. Assim, devemos destacar
como um traçado urbano como o da Pilotengasse se dispõe a valorizar os espaços
intersticiais. Pode ser que o espaço intersticial mais potente seja o definido pela
condição convexa da última das fileiras de casas arqueadas ou daquele que recupera
o perímetro do lote: acredito que a imagem corrobore o sentido de tal afirmação.
Porém, além de todas essas reflexões que nos fariam concentrar o interesse no
traçado, Pilotengasse foi também a ocasião para propostas linguísticas sedutoras.
Herzog & De Meuron se detiveram em transformações epiteliais estritamente
linguísticas dos muros, em

340
22.24
edifício de apartamento em
Basiléia, 1984-93

25.28
Conjunto habitacional na
Pilotengasse, Viena, 1987- 341
88/1889-92
29.30
depósiro para locomotivas,
Basiléia, 1989-95

31.34
Igreja ortodoxa (projeto),
Zurique, 1989

342
busca de uma diversidade que fizesse o bairro perder aquela visão utópica de
sociedade futura que animara os construtores das Siedlungen. Talvez devamos
considerar esta experiência arquitetônica como um sintoma da mudança dos tempos,
que fez os ideais socialistas se converterem em um novo credo socialdemocrata.

29.30 - Cronologicamente próximo a Pilotengasse, o depósito para locomotivas em


Basiléia (1989-95) permitiu a Herzog & De Meuron continuarem operando na grande
escala. Série, repetição e continuidade são questões inevitáveis na construção e na
arquitetura. A vontade de associar forma e construção evidencia-se nos elementos
estruturais monumentais com os quais se recolhe a luz na cobertura. Tais volumes
enormes, que parecem querer celebrar a dimensão correspondente à arquitetura das
infraestruturas, resolvem a iluminação da cobertura gigantesca, transformando-se,
assim, em retículas abstratas no espaço que nos permitem, mais uma vez, lembrar os
princípios estéticos nos quais a arquitetura de Herzog & De Meuron se baseia. O
aspecto geral remete à arquitetura das Siedlungen: seja para seres humanos ou
locomotivas, a armazenagem resultaria na mesma forma. Contudo, em claro contraste
com o que acontecia em Viena, aqui já não é necessária a busca da diversidade que
na Pilotengasse fazia as moradias parecerem camufladas, e os arquitetos então se
dedicam à conversão do utilitarismo do espaço em experiência estética (ao menos
para os iniciados).

31.34 - O projeto para uma igreja ortodoxa em Zurique (1989) é, a meu ver, uma de
suas propostas mais bem-sucedidas. Pena que não tenha sido construído!
Comecemos observando com quanta inteligência aproveita-se o desnível existente
entre as ruas para inscrever um diedro. Os dois planos do diedro formam as fachadas
dos serviços auxiliares, enquanto no terceiro o plano horizontal ergue-se o prisma que
define a igreja, apresentada como um sólido liberado de qualquer obrigação com os
alinhamentos do terreno com o qual os arquitetos trabalham. Tal artificio faz com que
a construção pareça desligada, isenta, usufruindo de uma autonomia volumétrica
explorada pelo projeto. Em suas enigmáticas transparências, o sólido austero anuncia
um espaço interno complexo e sugestivo.

A dupla utiliza com talento os espaços estabelecidos entre o sólido translúcido e as


paredes do diedro, que devem ser entendidas como fundo onde se marcam as
arestas definidoras do volume da igreja. Esta se apresenta majestosa, em sua escala
reduzida, a partir do plano inferior, e quase não é vista quando caminhamos pela rua
mais alta. O sólido aparentemente mínimo que acolhe o espaço sacro é construído
com uma parede dupla de vidro que favorece a proposta de uma bela fachada.
Diriamos que a intenção é que a igreja ortodoxa assuma, ao mesmo tempo, a
espessura dos muros românicos e a leve transparência do gótico. Assim, não é difícil
imaginar um interior aéreo, onde os sentimentos religiosos se associam à fantasia de
um espaço arquitetônico

343
que levita. Entretanto, se havíamos mencionado o gótico e o românico ao falar sobre a
construção e o ambiente da igreja, devemos admitir também a presença de certo
bizantinismo, já que as imagens nos vidros remetem inevitavelmente aos mosaicos, e a
verticalidade do espaço lembra as igrejas de Ravenna. Tudo é luz; a matéria se
dissolve na experiência luminosa. Herzog & De Meuron foram um dos primeiros a
descobrir o valor que teria o vidro translúcido para a arquitetura dos anos 1990. A luz
difusa que emana da própria parede seria, sem dúvida, a protagonista dessa
arquitetura. Teria sido o projeto de Koolhaas para a Biblioteca Nacional da França o seu
modelo? As datas permitem que se estabeleça uma relação entre ambos os projetos.

35.36 - A referência a Koolhaas e a uma arquitetura em que prevalece a atividade


parece adequada para falar sobre o centro cultural de Blois, de 1991. Nesse caso, a
coerência da planta não resulta em um volume sedutor: o projeto convencional da
fachada não é compensado pelas mensagens à la Jenny Holzer que os peitoris ativos
das lajes pro- metem. O uso (e abuso, mais tarde) do edificio como emissor de
mensagens fez com que elas perdessem a sua condição de elementos urbanos
provocadores.

37.41 - A conexão entre o minimalismo e a obra de Herzog & De Meuron fica evidente
em obras como a galeria de arte Sammlung Goetz, em Munique (1989-92). Diríamos
que os arquitetos não buscaram nada além de isolar uma porção de espaço abstrato,
puro, para que nele a obra de arte pudesse ser oferecida em todo seu esplendor.
Porém, que aspecto deve ter essa atmosfera, como apresentá-la? Ou, se preferirmos,
como representar um ambiente inerte, neutro, capaz de acolher as artes plásticas do
fim do século xx? Essa questão imediatamente obriga a formular mais uma: que
aspecto terá o sólido que a contiver? Desde o início de sua carreira, Herzog & De
Meuron perseguiram com afinco a meta de transformar o sólido abstrato e genérico
em edificio. Por causa da eterna questão na arquitetura, de ter de pensar o interior e o
exterior ao mesmo tempo, os sólidos mínimos com que eles trabalham não são
volumes maciços impenetráveis. Seus volumes contam com um sistema de vazios que,
neste caso, são criados pela sobreposição de dois pisos quase idênticos, a julgar pelas
dimensões e a posição das janelas, mas que se fragmentam de modo diferente para
definir os espaços ocupados pela coleção Goetz. Mais uma vez contam a proporção, a
medida e a construção da parede, e a presença do arquiteto se reduz à definição
delas. Deve-se ressaltar a presença da janela em extensão (que só pode ser
qualificada como janela por hábito ou costume, pois a intenção dos arquitetos foi
transformar uma porção das paredes que definem o espaço público numa faixa
contínua da qual emana a luz). Tal continuidade da faixa iluminada leva a ignorar

2. Jenny Holzer [1950-), artista conceitual americana conhecida por seus trabalhos com textos impressos em
meios variados e expostos em espaços públicos. [N.B.]

344
35.36
Centro Cultural (projeto),
Blois, 1991

37.41
Sammlung Goetz, Munique,
1989-92

345
42.43
Complexo Museológio (projeto) ,
Munique, 1992

44.45
Edifício de escritórios SUVA, Basiléia,
1988-93
346
o canto, mecanismo que provoca uma alternância inquietante entre vidro e concreto,
mostrando também como se busca, aqui, a expressão da identidade dos materiais
sem atender às funções estruturais que lhes foram designadas.

A planta é, mais uma vez, hermética e opaca, indiferente ao movimento. As passagens


que conectam os espaços são entendidas como perfurações inevitáveis que
possibilitam a movimentação de um espaço ao outro, de um modo não muito
diferente daquele de uma passagem produzida por meio de um diafragma fenômeno
que os físicos chamam de osmose-, ou seja, nada a ver com os corredores
tradicionais. Estamos diante de um corpo arquitetônico que de modo algum podemos
chamar de orgânico. Os cortes esclarecem esse ponto e nos ajudam a apreciar o
modo de utilização do espaço: os mecanismos estão quase sempre mais próximos da
subdivisão que do agrupamento. Mais duas observações. Uma diz respeito à planta:
como acontecia na casa de pedra em Tavole, a divisão dos espaços não é feita por
meio de elementos conhecidos, e procura-se sempre eliminar qualquer referência
possível a eles. Por isso, as paredes que materializam os diversos ambientes (salas)
quase não têm espessura, e não se pode identificar nem montantes nem portas. A
outra nos leva a acentuar o quanto Herzog & De Meuron valorizam o modo como os
materiais se "encontram". Isso lembra um arquiteto que, embora pareça distante
quanto à sensibilidade, no entanto está presente nesse aspecto tão importante: só
poderia estar me referindo ao modo como Louis Kahn usa os materiais.

42.43 - De certo modo, podemos entender esta proposta para um complexo


museológico em Munique, de 1992, como extensão do projeto anterior, portanto, não
nos deteremos muito sobre ele. Destacaremos somente o caráter elementar da planta.
A Pinacoteca de Leo von Klenze, em frente, é um edificio que valoriza os volumes
seguindo crité- rios de composição os quais podemos chamar de clássicos e que
ignora o perímetro do solo onde se assenta. Aqui, ao contrário, Herzog & De Meuron
propuseram um conjunto de edifícios que enfatizam os limites do terreno ocupado e
que descompõem a área segundo uma série de formas retangulares, cuja autonomia
se faz sentir nos espaços intersticiais que, sem dúvida, teriam tido um papel definitivo
na experiência arquitetônica deste projeto, caso tivesse sido construído.

44.45 - O profissionalismo de Herzog & De Meuron se revela mais uma vez neste edifi-
cio de escritórios SUVA, em Basiléia (1988-93). Todo o interesse reside no desenvolvi-
mento da fachada de vidro que agora deve assumir as características exigidas por um
programa convencional. O resultado é um edifício eficiente, no qual a exposição dos
elementos construídos determina o conteúdo estético, que por sua vez se compraz
num minimalismo regido pela submissão obrigatória a certas condições bem defini-
das (isolamento térmico, proteção do sol etc.)

347
46.49 - Herzog & De Meuron voltam a trabalhar, dez anos depois, para a Ricola - o
cliente que permitiu seu reconhecimento em meados dos anos 1980 em um edificio
que desenvolve um programa semelhante: um pavilhão industrial em Mulhouse
(1992-93). Embora haja pontos de contato na atitude em relação ao projeto -
encontramos o mesmo pragmatismo nas plantas e a mesma falta de preconceitos
para introduzir novos usos dos materiais, há mais diferenças. Gostaria de referir-me a
elas: se no primeiro projeto para a Ricola era possível falar em arcaísmo provocativo,
baseando-se na condição da construção como substância da forma, neste segundo
projeto é a exploração do potencial dos materiais e dos procedimentos de
construção convencionais que parecia preocupar os arquitetos. O novo pavilhão
para a Rico- la é usado como laboratório para explorar o quanto a serialização
industrial pode transformar-se em mecanismo que possibilita incorporar novamente
a imagem, a iconografia, à arquitetura. Veremos, então, como um pano de vidro
comum parece adquirir novo status ao incorporar à obra os materiais industriais,
fazendo surgir um componente iconográfico inesperado: os vidros serigrafados
parecem fazer alusão, sem pudor algum, à ornamentação perdida. A repetição
insistente de uma figura (embora plena de ressonâncias arquitetônicas, a palmeta)
nos remete a um artista como Andy Warhol e a uma de suas obsessões, a busca
pela expressão artística na cultura de massa. Teria essa repentina intromissão do
figurativo algo a ver com o aparente interesse dos arquitetos em fazer com que a
arquitetura industrializada não perdesse alguns dos atributos da arquitetura antiga?
Teria sido Warhol a fonte de inspiração para esta proposta? As perguntas ficam no
ar. Digamos, entretanto, que se confia à repetição serigráfica o desejo de que a
arquitetura dê testemunho de uma "vontade artística", embora os arquitetos nada
façam para ocultar a vulgaridade dos sistemas de construção industrializada
utilizados.

50.52 - Novamente um exemplo da capacidade profissional de Herzog & De Meuron.


Projetos como a Antipodes, em Dijon (1990-92), justificam evocar toda aquela
plêiade de esplêndidos arquitetos suíços da primeira metade do século XX:
Salvisberg, Moser e Bernoulli, já mencionados aqui. Porém, ao contrário do que
ocorreu no projeto do SUVA em que prevaleceu a eficiência, eclipsando os êxitos
arquitetônicos -, o de Dijon mostra como a estética minimalista de Herzog & De
Meuron pode alcançar resultados inesperados quando realiza suas metas sem
perder de vista o propósito estético radical. Em Dijon, o encontro radical da estrutura
de concreto com os ele- mentos metálicos das janelas produz uma arquitetura que é
uma clara manifestação do pragmatismo. Ao tornar sua função aparente, essa
residência para estudantes se move entre a arquitetura institucional e a privada,
resultando numa construção eloquente - ninguém duvidaria de que se trata de um
edificio universitário, onde tanto a solidão do indivíduo quanto a plenitude da vida
social se manifestam. E tudo isso em

348
46.49 Pavilhão industrial para a Ricola, Mulhouse-Brunnstatt,
1992-9342.43 Complexo Museológio (projeto) , Munique, 1992

50.52
Antipodes (residência para estudantes) Universidade de Bourgogne, Dijon, 1990-92

349
x

53.54
Biblioteca Para Jussie (projeto),
1993

55.58
Torre de sinalização Basel Badischer Bahnhof, Basiléia,
1994-98

350
um exercício de arquitetura para o qual seus autores parecem ter recorrido apenas à
sintaxe da construção e ao volume de concreto ativado pelas janelas.

53.54 - Não é difícil estabelecer relação imediata entre este projeto apresentado no
concurso de uma biblioteca para Jussieu (1993) e o centro cultural de Blois. Embora a
planta tenha aspectos interessantes - curiosamente apresenta ressonâncias do
palácio Escorial -, não me sinto entusiasmado por essas fachadas excessivas, nas
quais percebemos a influência de um arquiteto cuja obra Herzog & De Meuron
parecem admirar naqueles anos, Rem Koolhaas.

55.58 - Um edifício no qual se localizam os controles de uma estação ferroviária (um


edifício hermético por natureza) é, sem dúvida, uma ocasião perfeita para projetar um
sólido em todo seu esplendor. Herzog & De Meuron assim o entenderam: a torre de
sinalização da Basel Badischer Bahnhof (estação ferroviária de Basiléia), de 1994- 98,
é como um gigantesco artefato que nos lembra daqueles transformadores elétricos
que sempre assustam por suas dimensões colossais. Como eles procederam para
obter um resultado tão potente? Aceitam os dados de partida a volumetria de um
edifício convencional que acolhe os equipamentos ferroviários e o recobrem com uma
pele de cobre: trata-se de uma operação clara de empacotamento; algo semelhante
aos aparelhos eletrodomésticos comuns. A torre de sinalização é, assim, uma
exaltação do cobre. Esse material, geralmente usado para construir coberturas, passa
a ter então identidade própria. Porém, aplicar uma pele de cobre a um sólido não é
uma operação literal, suposta, prevista. Ao contrário, não há precedentes. Herzog & De
Meuron agiram com a mesma sofisticação de sempre, e por isso as lâminas são
produzidas seguindo um esquema em que o paralelismo prevalece, para logo admitir
uma anomalia visual produzida por um desvio sutil. O sólido revestido de barbatanas
de cobre vibra, produzindo uma ilusão óptica que remete aos reflexos de uma seda.
Novamente a estética minimalista possibilita que Herzog & De Meuron explorem novas
aparências dos sólidos construídos, o que os faz abrir uma porta a um território até
então negado, o da iconografia arquitetônica. Sua dívida com o minimalismo
evidencia-se mais uma vez. O sólido que Herzog & De Meuron transformaram em
edifício deseja perder seu caráter como tal e exibir somente a condição material de
um dos elementos da tabela periódica. Poderia a arquitetura revelar os atributos do
cobre? Essa é a tentativa dos dois arquitetos. Infelizmente, ao anoitecer, as lâminas
deixam passar a luz das aberturas convencionais, perdendo-se assim o mistério
daquele sólido enigmático que espera o amanhecer de um novo dia para voltar a ser
o que era. Mas sempre fica viva na nossa retina a força iconográfica daquele volume
inesperado.

351
59.65 - Sem dúvida as adegas Dominus (1995-97) valeriam como justificativa para
afirmar que "o veiculo de expressão da arquitetura são os materiais". O sólido
elementar usado na obra de Herzog & De Meuron, o mais simples dos paralelepipedos,
mais distante que arrogante, mais silencioso que loquaz, é agora uma muralha
ciclópica formada por gabiões de rocha. Como acabamos de ver na torre de
sinalização da estação de Basiléia, esta obra de arquitetura é uma simples exaltação e
celebração da matéria. A matéria, neste caso, prescinde da forma a observação feita
sobre a iconografia na caixa de sinalização não se aplica aqui, o que equivale a dizer
que pode permanecer ausente e muda no meio, distante do contexto. Somente a
matéria permanece, somente ela tem direito à expressão. Assim acontece neste
projeto em que, sem dúvida, a invenção do material é seu traço mais característico.
Para Herzog & De Meuron, como vimos, essa invenção marca o ponto culminante de
sua carreira. À primeira vista, temos a impres- são de deparar-nos com gabiões
comuns, os quais encontramos como elementos opa- cos consolidados em taludes,
nunca como blocos translúcidos, conforme aparecem aqui. Ao intuir essa condição
translúcida dos gabiões, os arquitetos descobriram um novo material e merecem ser
reconhecidos como inventores.

Ao usar um material tão sedutor, será que eles gostariam de recordar o valor da
matéria primária, o solo, para o crescimento da vida? Será que de forma nostálgica
usam as pedras das grutas e cavernas onde nossos antepassados instalaram suas
primei- ras adegas? Pretendem mostrar que o edificio respira, que as pedras contidas,
enjaula- das, garantem uma proteção climática que conserva a presença de um ar
saudável, tão necessário para elaborar um bom vinho? Poderíamos fazer diversas
outras perguntas, mas preferimos que elas se centrem mais nos gabiões e na matéria
contida neles.

Entretanto, reconhecer a importância do material neste projeto não implica ignorar o


valor do diálogo com o meio, que dá sentido à construção - ou seja, a relação com a
paisagem geométrica do vinhedo nas suaves encostas do Napa Valley. O sólido
construí- do não altera a paisagem. O velho caminho que origina o vinhedo o
atravessa, criando um vazio surpreendente onde os conceitos californianos de interior e
exterior se confun- dem. É nesse vazio que pela primeira vez se descobre a
"transparência" literal da parede de pedras enjauladas. As paredes adquirem sua
verdadeira dimensão plástica ao filtrar a luz, produzindo um plano de sombras vivo e
mutante. O edificio, aqui, serve como relógio cósmico, dentro do qual testemunhamos
a passagem do tempo e aprendemos a valorizar o instante. Fica evidente que esta foi
a intenção dos arquitetos quando obser- vamos os gabiões que definem os
corredores, onde são usadas pedras de maior volume para produzir ali o desejado
efeito de luz através e como resultado do jogo de sombras.

Simplificaríamos as coisas se disséssemos que todo o encanto deste projeto reside na


dialética produzida entre o sólido de pedra e a leve estrutura que o define e o pro-
tege. Contudo, é aí que essa arquitetura se esgota e atinge sua plenitude. Herzog & De
Meuron estão bem conscientes disso quando se deleitam no procedimento ao
enfrentar o plano horizontal da mesa de madeira na sala de degustação do vinho, ou
quando nos fazem caminhar pelos corredores, onde a leveza do vidro e o aço aceitam
de bom grado a aleatoriedade das pedras contidas na armação metálica.

352
59.65
Adegas Dominus, Napa Valley,
1995-97

353
66.67 Biblioteca Fachhochschule, Eberswalde, Alemanha, 1994 - 97

68.69 Institut fur Spitalpharmazie - ISP, Basiléia, 1995-98

70.71 Rudin Haus, leymen-HT, Rhin,1996-97

354
66.67 - O sólido que contém o programa da biblioteca da escola técnica de
Eberswalde, na Alemanha (1994-97), não encontra, por sua vez, uma pele tão atraente.
A aleato- riedade tão eficaz, tão bela que encontramos em Dominus se transforma,
agora, numa repetição mecânica de vidros serigrafados, com imagens que
literalmente alu- dem ao livro e à cultura. A radicalidade com que o sólido se define,
seja no encon- tro com o plano horizontal, no último painel que o delineia, seja nas
aberturas que coincidem com a dimensão de um dos painéis, não faz desaparecer
certa sensação de trivialidade, de falta de inspiração, que nos impede de admirar a
biblioteca tanto quanto apreciamos as adegas Dominus. Apesar do radicalismo
pretendido, sente-se a estrutura subjacente de um edificio convencional: por isso,
resistimos em aprovar um projeto que é apenas controle da pele, fundamentalmente
epitelial e que, portanto, não atinge a condição transcendente que nos pareceu
encontrar em outras obras.

68.69 - Poderiamos fazer, ao examinar este projeto do Institut für Spitalpharmazie - ISP
(instituto de farmácia hospitalar) em Basiléia (1995-98), observações semelhantes às
que fizemos acerca das imagens da biblioteca. Somente algumas sutilezas no
deslocamento das aberturas nos fazem prestar maior atenção neste projeto. Diríamos
que o esforço em buscar "peles significantes" para os sólidos chega aqui ao fim, e que
Herzog & De Meuron acabam sentindo que o tema se esgotara: de fato, nos projetos
que veremos a seguir sente se a autocritica à qual aludiamos na introdução destes
comentários.

70.71 - Nesta pequena casa unifamiliar, a Rudin Haus em Leymen, na França (1996-97),
fica evidente que os arquitetos desejam escapar da fórmula. Eles optam pela
"representação canônica de uma casa, pela imagem mais direta e literal do conceito
de casa. Telhado de duas águas, chaminés, janelas, tudo parece servir à imagem
canônica que os residentes de áreas não urbanas têm a respeito de uma casa. A
virada é radical. Se antes Herzog & De Meuron acreditavam que a expressão
arquitetônica estava depositada na matéria, agora parecem interessados em resgatar
a noção de tipo, dando a entender que somente resta a imagem e não a estrutura.
Dessa forma, estamos diante de uma obra em que prevalece uma iconografia
despojada de seus atributos, vazia. Talvez seja pertinente lembrar como Rem Koolhaas
usou o conceito de iconografia no terminal intermodal e no Lille Grand Palais. Para o
arquiteto holandès, ainda era possível encontrar arqui- teturas sintéticas com uma
capacidade figurativa que nos permitia falar novamente em iconografia: em alguns de
seus projetos citados, a forma, responsável pela imagem, inte- grava as funções, dava
resposta às circulações e resolvia a estrutura.

355
Para Herzog & De Meuron, a iconografia só tem sentido neste projeto enquanto
memória. E, ao fazê-la reaparecer diante de nós, é inevitável também que apareça a
dissociação entre forma e conteúdo. Ela se revela em todos os desajustes e anomalias
pelos quais os dois arquitetos parecem congratular-se.

Comparando o primeiro projeto com a obra construída, podemos comprovar o


propósito de Herzog & De Meuron desde o início: apesar das diferenças (chaminés,
coberturas, janelas etc.), são mais importantes as coincidências, que se manifestam
onde possuem mais valor, nos propósitos, nas intenções a ponto de entender os
projetos como idênticos. Mas o que os arquitetos pretendiam dizer? Trata-se
simplesmente de uma referência académica? Pretendiam por acaso ironizar sobre o
modo como as pessoas enxergam a arquitetura? Estaria oculto neste pequeno projeto
o desejo de reconhecer a extinção de todo um modo de fazer arquitetura, aquele que
Rossi pretendera resgatar? Pode ser que os projetos futuros de Herzog & De Meuron
nos deem a resposta adequada a estas perguntas.

72.73 - Nessa busca de novos caminhos, vemos que o prisma perfeito foi
completamente abandonado no novo edificio de escritórios de marketing para a Ricola
(1997-99). A alternativa foi explorar o perímetro criado por uma planta complexa, em
que a obliquidade prevalece e as inflexões são onipresentes. A ortogonalidade é, então,
delibe radamente ignorada, e delega-se ao vidro a tarefa de materializar o sólido
gerador do perímetro. Quem estudar estas imagens perceberá o valor da natureza
refletora do vidro, responsável por esconder de nossa percepção a condição sólida do
edificio. Digamos também que o vidro é manipulado em grandes superfícies que
enfatizam a geometria dos espaços internos e demonstram, à maneira minimalista, a
sobreposição elementar dos dois planos horizontais que configuram o espaço
habitável. O plano da cobertura, por sua vez, estabelece uma dialética imediata e
eficaz com a terminação em balanço que remete às condições iniciais - o contorno
irregular da planta, fazendo multiplicar os reflexos. Dessa forma, o volume se dissolve
ao sobrepor as imagens neste jogo infinito de reflexos, impossibilitando qualquer leitura
que permita entender o edificio como realidade estática. A imagem se multiplica e se
liquefaz, parecendo interessar aos arquitetos não tanto os valores associados a um
mundo de sólidos supostamente impenetráveis, mas aqueles presentes nos espaços
virtuais e atmosféricos usados nos sistemas a vácuo

74.76 - Este abandono dos prismas parece necessariamente levar a um contraponto:


um mundo formal ao qual é inevitável associar a biologia. Um desses casos é o da
biblioteca da BTU Universidade de Cottbus, de 1993. Os arquitetos explicam:

Nossa proposta de concurso se baseava na justaposição de dois volumes retangulares.

356
x

72.73
Edifício de escritório de Marketing para a Ricola,
1997-99

74.76 Biblioteca de BTU - Universidade de Cottbus (projeto), Alemanha, 1993

3
Quando recebemos a encomenda para começar o projeto definitivo, o programa havia
mudado e um dos dois edifícios fora descartado.3.

Seria essa a razão derradeira? Herzog & De Meuron também parecem negá-lo ao
dizer:

Também chegamos à convicção de que a cidade de Cottbus precisava de um novo tipo de


edificio, mais escultórico e com maior caráter de marco, dentro de uma malha urbana tão
genérica como aquela construída no pós-guerra." 4.

A mudança, portanto, não se devia somente a razões funcionais. Provavelmente, os


arquitetos viram ali a ocasião para experimentar novas linguagens. A imagem
mostrando a metamorfose que transforma os prismas originais é tão eloquente que
me exime de qualquer comentário, Finalmente, o perímetro ondulado chega a uma
situação final, como se um sistema de tensões superficiais o tivesse feito alcançar um
equilíbrio.

A ideia de forma aberta parece ser o leitmotiv de um perímetro que contém um


volume capaz de absorver múltiplos usos e divisões. A "pele", o invólucro do sólido, não
parece ser tanto a meta dos arquitetos quanto a investigação formal que leva a
compreender a forma como fronteira de uma rica vida interna, Mesmo assim, é
interessante ver como o pano de vidro deixa à vista um sistema de janelas corridas de
tradição claramente corbusiana. Tudo é contínuo! Projetos como este, que mantém a
contínua exploração linguística de Herzog & De Meuron, fazem-nos aguardar com
muito interesse o futuro desses arquitetos que ainda podem ser considerados jovens.

77.78 - Nesta casa para um colecionador de videoarte, a casa Kramlich, na Califórnia


(1999-2001), Herzog & De Meuron pareciam dispostos a explorar como um padrão de
curvas entrelaçadas se transforma em substância de uma planta, ao estabelecê-la a
partir de um retângulo irregular em que os dois lados maiores são curvas e os dois
menores retas paralelas. Dito de outro modo, Herzog & De Meuron medem a sua
capacidade de transformar qualquer pretexto formal em planta: mais uma vez o
fantasma da forma arbitrária como origem da arquitetura aparece em cena. Porém,
esta planta que permite certa regularidade naqueles cómodos que parecem exigi-la e
permite espaços singulares onde a projeção dos vídeos é necessária - joga tanto com
a cobertura quanto com a planta do térreo, provocando novamente um encontro
dialético entre sistemas formais diversos. Dessa relação intima entre os três níveis
resulta uma série de espaços fluidos e sistemas de vazios, que conferem à casa uma
continuidade que nós, arquitetos do fim do século xx, tivemos a ocasião de aprender

3. J. Herzog: De Meuron, P, "La naturaleza del artificio 1998-2002". El Croquis, 109/110, Madri, p. 310. Id., ibid., p.
210.
4. Id., ibid., p.210.

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tanto na arquitetura de Le Corbusier e de Mies van der Rohe como na de Wright e de
Neutra. Desse modo, a fluidez da planta de acesso contrasta com a estrutura
ortogonal da planta do sótão. Por sua vez, a generosa cobertura insiste na condição
poligonal do perímetro que se evidencia ao encontrar-se com a vedação curvilínea
de dois lados da casa. A casa Kramlich parece, portanto, defender uma arquitetura
fluida, em contínuo movimento, como convém a uma cultura como esta, de fim de
século, na qual prevalece a mudança como norma de vida. As curvas entrelaçadas
parecem estar dispostas a garantir mobilidade permanente, renunciando desse
modo ao paradigma da arquitetura como "imobilidade radical", como desejava
Borchers. Isso bem poderia ser dito sobre algumas das obras de Herzog & De Meuron,
especialmente sobre uma das mais bem-sucedidas, as adegas Dominus no Napa
Valley.

77.78 Casa Kramlich, California, 1999-2001

359
HERZOG & DE MEURON

RESUMO

Herzog & De Meuron:


entre o uniforme e a
nudez, 2001
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