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Para Bill Hillier, mestre, mentor, amigo

Ninguém nunca viu um lugar vazio. Quando alguém olha, já não está vazio
– o que olha, o olhar e o lugar são um mesmo. Sem alguém não há olhar
nem tampouco lugar.

Juan José Saer1

1
SAER, Juan José. Ninguém Nada Nunca. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Sumário

Apresentação..................................
Prefácio...........................................
Prolegômenos .................................
Praças e largos................................
Natural x construído......................
Atributos da pele............................
... outra vez feto.................................
Epílogo..........................................
APRESENTAÇÃO

Este livro inaugura as atividades da FRBH Edições e simultaneamente sua Coleção


Bolso. Constituída como pessoa jurídica de um microempreendedor individual, a editora
visa divulgar trabalhos no âmbito da cultura em geral, e mais especificamente reflexões so-
bre configuração arquitetônica em qualquer escala, do espaço doméstico ao metropolitano.
Este é o eixo das investigações do grupo de pesquisa que coordeno – o Dimensões morfológi-
cas do processo de urbanização, registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa no Brasil, do
CNPq. A motivação inicial foi criar um veículo para a divulgação da produção intelectual
do grupo – dissertações, teses, comunicações a congressos, ensaios diversos. Entretanto,
nosso grupo está articulado a vários outros com objetivos similares no Brasil e no exterior –
a editora será também um veículo à sua disposição. Esperamos ser honrados com sua de-
manda! Com isto ampliamos o leque, ainda restrito, de meios para divulgação da pesquisa
em arquitetura, que rapidamente se consolida como disciplina científica.
O formato bolso visa disponibilizar produção bibliográfica a baixo custo, benefici-
ando pesquisadores, docentes e alunos de arquitetura ou áreas afins, e o público em geral
interessado na nossa temática. São livros de pequenas dimensões, em preto e branco e papel
econômico, mas com boa qualidade gráfica e um design que marca a identidade visual da
editora. Além disso, os livros articulam-se a meios como a internet: criamos uma página –
http://www.fredericodeholanda.com.br e
http://www.flickr.com/photos/fredericodeholanda – cujo conteúdo complementará o das
publicações impressas mediante ilustrações a cores e de maiores dimensões, animações, fil-
mes, apresentações sonorizadas etc. A página já tem links para livros antes publicados ou
organizados por nós – mais ainda o será com os da nova editora.
O presente texto foi escrito como um capítulo do livro O arquiteto Oscar Niemeyer,
organizado por Sylvia Ficher e Andrey Schlee2. Sou grato à permissão dos organizadores
para publicá-lo independentemente no formato de livro, antes de seu aparecimento na cole-
tânea a que pertencerá. Por maior disponibilidade de espaço, esta versão foi expandida e
acrescida de muitas ilustrações. Visando um público leitor mais amplo e nossa articulação
com grupos de pesquisa no exterior, é apresentado em edição bilíngue português/inglês (a
tradução para o inglês, inclusive da epígrafe de Juan José Saer e dos poemas de João Cabral
de Melo Neto| foi feita por Mark David Ridd, a quem sou eternamente grato). Isso amplia-
rá as condições para a troca de ideias, num intercâmbio que, confiamos, a todos beneficiará.

Brasília, 2 de outubro de 2010.

Frederico de Holanda

2
FICHER, Sylvia, SCHLEE, Andrey (orgs.). O arquiteto Oscar Niemeyer. Empresa das artes (no prelo).
AR LUZ RAZÃO CERTA

Salvo engano, Stamo Papadaki é o autor da primeira monografia publicada sobre a obra de
Oscar Niemeyer levada ao público internacional, alguns anos após a edição do clássico Bra-
zil Builds,3 responsável por revelar para o mundo as espantosas realizações da arquitetura
moderna brasileira. Na introdução do seu The work of Oscar Niemeyer, o primeiro de três
livros dedicados ao arquiteto,4 Papadki ecoa o que a historiografia nacional já cristalizara
como os fatores da emergência daquele magnífico conjunto arquitetônico:

O modo como Niemeyer aborda o projeto foi condicionado pelos vestígios do


barroco colonial e pelos aspectos climáticos e físicos de seu país. O Barroco
Luxuriante de Portugal, nascido dentre contornos austeros ibéricos, nunca te-
ve abrigo tão apropriado quanto o cenário tropical e subtropical de muitas
partes do Brasil. Por outro lado, umidade e altas temperaturas forçam um uso
generoso do espaço e da paisagem que, variando de fantástica a magnificente,
fazem obrigatória sua incorporação ao partido arquitetônico. Assim vemos
nos edifícios de Niemeyer vistas cuidadosamente selecionadas e emolduradas,
brisas aprisionadas e canalizadas, espaços com seus próprios horizontes interi-
ores, proporcionando ao habitante mais que um mínimo de ambiente “sufici-
ente” para viver. […] E suas linhas curvas, inspiradas no barroco, tornadas re-
alidades estruturais mediante a ossatura do concreto armado, amalgam-se às
sinuosidades dos pequenos vales aluviais e às formações de altos montes que
os emolduram. (PAPADAKI, 1950: pp. i-j) [minha tradução]

O clima e a paisagem tropicais, o barroco de origem ibérica e as linhas sinuosas em


concreto armado conjugados em uma unidade inédita são destacados por Papadaki, como
os elementos geradores e caracterizadores da obra do arquiteto. Não deixa de escapar ao seu
olhar crítico, no entanto, alguns aspectos das edificações até então realizadas que a impreg-

3
GOODWIN, P. L. Brazil Builds: architecture new and old, 1652-1942, Fotografias de G. E. Kidder
Smith. New York: The museum of Modern Art, 1943, 190 p.
4
Stamo Papadaki é o autor de três monografias sobre o arquiteto: PAPADAKI, S. The work of Oscar
Niemeyer. New York: Reinhold Publishing Corporation, 1950, p. 220; PAPADAKI, S. Oscar Niemeyer:
works in progress. New York: Reinhold, 1956. 192p.; PAPADAKI, S. Oscar Niemeyer. New York:
George Braziller, 1960. 127p.
nam de uma qualidade particular ao atender às demandas funcionais do programa: “Nie-
meyer sabe conceber e justificar o espaço empírico que cria distâncias, perspectivas, ilhas de
repouso, necessárias às relações naturais entre pessoas sob o mesmo teto.” Há em Papadaki a
sensibilidade para perceber a habilidade de Niemeyer para lidar com a matéria prima da
arquitetura – o espaço, e conformá-lo para garantir, em condições diversas, a interação entre
pessoas.
Em De vidro e concreto, Frederico de Holanda se debruça sobre o espaço das arquite-
turas de Niemeyer. O autor nos apresenta uma análise acerca da relação entre espaço interi-
or e espaço exterior – melhor, uma crítica acerca do gesto manipulador do envelope arquite-
tônico. Longe de querer abarcar a grandeza e complexidade de uma obra em pleno desen-
volvimento, o estudo crítico é precioso por revelar a sabedoria do arquiteto ao lidar com a
função precípua da arquitetura – constituir ambientes para o usufruto do homem. Revela,
também, que obras recentes são menos eficientes na promoção de uma intensa e permanen-
te mistura de corpos e desejos no contexto das cidades contemporâneas.
Segundo Hillier,5 ocupação e movimento são as funções genéricas do espaço arqui-
tetônico. Toda parcela de espaço permite que o ocupemos para o desenvolvimento de ativi-
dades as mais diversas, bem como para o deslocamento dos nossos corpos. A ocupação e o
movimento são condições necessárias para a construção da relação entre pessoas – estar pre-
sente no mesmo espaço ou estabelecer contato visual em um mesmo ambiente ou em ambi-
entes distintos são condições mediadas pelas características materiais e espaciais da arquite-
tura. Copresença e cociência são, portanto, mecanismos socioespaciais fundamentais para a
estruturação do nosso cotidiano.
A relação entre os espaços livres e contínuos, que definem os espaços urbanos por
excelência, e os espaços fechados e descontínuos, que compõem as edificações, constitui, em
certa medida, o grau de copresença e cociência das áreas públicas e, por consequência, as
maneiras como movimento e ocupação se manifestam nas nossas cidades. Cada edificação é
responsável, por meio do seu envelope, por constituir as relações de acesso e visão entre as
duas esferas – a pública e a privada –independentemente das atividades que abriguem ou
dos atributos simbólicos que a elas tenham sido atribuídos. Portanto, todas as arquiteturas

5
HILLIER, B. Space is the machine: a configurational theory of architecture. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996.
desempenham o mesmo papel, independente de seus valores – como bem ou signo, nos
dizeres do autor.
Ao olhar para a obra de Oscar Niemeyer sob tal enfoque, Holanda questiona em
que medida suas edificações contribuem para a caracterização dos espaços urbanos nos quais
estão inseridos. Essa, digamos, dessacralização (ou desmistificação) de obras emblemáticas
da arquitetura do século XX, como o Ministério da Educação e Saúde Pública, renomeado
como Palácio Gustavo Capanema, no Rio e Janeiro, o conjunto da Pampulha, em Belo
Horizonte, o Parque do Ibirabuera, em São Paulo, e a Catedral de Brasília, na capital fede-
ral, para citar apenas algumas obras analisadas pelo autor, permite a construção de um arca-
bouço reflexivo para além das curvas, das massas, do barroco e dos trópicos ensolarados.6
Se a arte de projetar é a arte de ordenar a vida humana, Holanda nos mostra como
Niemeyer vai, em sua longa carreira, constituindo ambientes urbanos cada vez mais moder-
nos, segundo um progressivo enclausuramento dos ambientes interiores e uma distribuição
de portas e janelas que minimizam a possibilidade de copresença e cociência nas cidades que
abrigam suas obras. Se a obra de Niemeyer desenvolve-se de uma “arquitetura como cons-
truir portas, de abrir; ou como construir o aberto”, para uma arquitetura que “renegou dar
a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, êle foi amurando opacos de fechar; onde vi-
dro, concreto; até refechar o homem”, segundo o lamento concreto de João Cabral de Melo
Neto, as consequências dessa transição para as cidades que as abrigam são (e serão) significa-
tivas. Os efeitos desse construir fechado, desse separar corpos, desse esvaziar vazios – princi-
palmente os urbanos – são percebidos por urbanitas de ontem e de hoje em seus cotidianos
progressivamente mais fechados, separados e vazios. O próprio Holanda nos descreveu,
preciosamente, a emergência de uma faceta particular do urbanismo moderno em seu texto
clássico A determinação negativa do movimento moderno.7 No contexto descrito, a obra de
Oscar Niemeyer não é excepcional. Pelo contrário, como tantas outras, contribui modesta-
mente – pois a emergência se dá pela promoção não coordenada de diversas ações singulares
– para a consolidação de uma forma particular de cidade.

6
A referida, digamos, moldura crítica é estimulada pelo próprio arquiteto: “Não é o ângulo reto que me
atrai nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a
curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no
corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein” (NIEME-
YER, Oscar. Minha arquitetura – 1937-2005. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005, p. 339.)
7
Ver HOLANDA, F. (org.). Arquitetura & urbanidade. São Paulo: Pro Editores, 2003.
No alvorecer do século XXI e do centenário do maior arquiteto brasileiro do século
passado, e quiçá deste, o desejo de edificar uma obra com sua assinatura é um desejo de
políticos interessados em consagrar uma marca pessoal para o futuro; de intelectuais apreci-
adores das manifestações tardias do nosso modernismo sedutor; de cidadãos comuns de
todo o mundo, pois suas obras sempre serão objetos do interesse das hordas cada vez maio-
res de turistas – afinal vivemos a era dos movimentos temporários e da economia do ócio e
do espetáculo. Afinal, para atender ao receituário dos empreendimentos renovadores de
paisagens urbanas faz-se necessária a presença de obra magnífica de autor magistral.
Para todos esses interessados em adquirir uma peça da grife ON, recomenda-se a lei-
tura atenta dos argumentos e análises que Frederico de Holanda nos apresenta. Espera-se
com isso que as próximas encomendas cheguem à emblemática cobertura da Avenida Atlân-
tica, no Rio de Janeiro, com algumas recomendações: queremos o Oscar urbanista arquite-
to, aquele que tão sabiamente nos contemplou com obras que prezavam pela plena intera-
ção entre espaços – os do interior e os do exterior, sejam eles das paisagens naturais ou das
urbanizadas – e promoviam o atrito desejável entre os belos corpos dos cidadãos do mundo.
Vida longa para o Oscar Niemeyer urbanista, “quando é mais arquiteto”!
Vida longa para a pena arguta e precisa de Frederico de Holanda!
Vida longa para nossas arquiteturas e cidades plenas de “ar luz razão certa”!

Recife, 26 de novembro de 2010.

Luiz Amorim8

8
Professor Associado II da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador I do CNPq.
OSCAR NIEMEYER: DE VIDRO E CONCRETO

Fábula de um arquiteto

A arquitetura como construir portas,


de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e tecto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2.

Até que, tantos livres o amedrontando,


renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, êle foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

João Cabral de Melo Neto 9

Prolegômenos

O texto trata das relações espaço interno x espaço externo na arquitetura de Oscar
Niemeyer. Como o arquiteto trata as relações? É possível identificar uma maneira dominan-
te? Houve transformações no aspecto ao longo do tempo? Que implicações podemos inferir
desta faceta do seu trabalho?10
Decerto há muitas formas de tratar as questões, a depender dos conceitos adotados.
No que se segue, estão explicitadas preliminarmente as ideias teóricas que subjazem o exame
subsequente das obras, ideias retomadas e desenvolvidas ao longo do texto. Indico os aspec-
tos a considerar, explico as razões da escolha, sugiro o que podemos ganhar com esse ferra-
mental analítico.
As noções de espaço interno e de espaço externo estão na base do gesto artefatual
arquitetônico elementar: delimitação de uma porção do espaço, retirado do espaço da natu-
reza em geral, por meio de um “filtro” – invólucro formado por piso, paredes, teto, elemen-

9
MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas (1940-1965), p. 20-21. Mantive a ortografia do origi-
nal.
10
A pesquisa que embasa o ensaio teve o suporte de Bolsa de Produtividade em Pesquisa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ, conferida ao autor.
tos diversos (como as superfícies curvas em concreto de Niemeyer), ou até por simples ve-
dação de quaisquer materiais à entrada de uma gruta. O invólucro filtra atributos do espaço
natural, cria espaço transformado, adequado a fins práticos (arquitetura como valor de uso
material, como bem) e expressivos (arquitetura como valor de uso ideal, como signo)11. As
expressões – bem e signo – sintetizam as duas maneiras mais amplas pelas quais a arquitetura
desempenha seu papel12.
A arquitetura como artefato implica os elementos: 1) invólucro ou a “pele” do espa-
ço, que por meio de fechamentos ou aberturas, opacidades ou transparências, define 2) es-
paço interno, de atributos determinados pela natureza da pele (luz, ruídos, temperatura,
aromas, diversas possibilidades de movimento e visibilidade), distinto do 3) espaço externo
com o qual o espaço interno se relaciona em função dos atributos da pele (vazamentos ou
transparências quaisquer)13. Muitas são as soluções que articulam espaço externo e espaço
interno através da pele; mas uma sintaxe parcimoniosa subjaz a essa articulação, redutível a
duas maneiras de variabilidade, ou categorias analíticas: 1) fechamento/abertura ao movi-
mento das pessoas e 2) opacidade/transparência à visão. A primeira – fechamento/abertura
– refere-se à relação física entre lugares, à possibilidade de movermo-nos diretamente entre
dentro e fora; é um aspecto essencialmente prático, instrumental, de acessibilidade, que
constitui a arquitetura como bem. (“Fechamento” é utilizado lato sensu: inexistência de por-
tas a vazar fachadas ou quaisquer artifícios a afastarem interior de exterior – escadarias que
levam ao piano nobile,14 espelhos d’água que cercam prédios, fossos, diferenças de nível ven-
cidas por rampas etc.) A segunda – opacidade/transparência – refere-se à percepção visual
entre dentro e fora, à possibilidade de termos ciência do que está do outro lado de um plano
11
O “signo” surge quando há um esforço investido no artefato, para além do estritamente utilitário. (Não
há cultura que se satisfaça em tratar os artefatos – quaisquer que sejam – apenas como objetos úteis.) Na
arquitetura, edifícios ou conjuntos edificados deixam de ser exclusivamente abrigos contra os elementos
da natureza, ou construções organizadas em função das atividades a que servem, para tornarem-se lingua-
gem que representam valores coletivos, sinais pelos quais a cultura reconhece a si própria, objetos que
visam a beleza. (PULS, Maurício. Arquitetura e filosofia, p. 27-28.)
12
Noutra oportunidade desdobrei os “aspectos de desempenho” da arquitetura em oito categorias: funcio-
nais, bioclimáticos, econômicos, sociológicos, topoceptivos, afetivos, simbólicos e estéticos. Os quatro
primeiros constituem o desempenho da arquitetura como bem e os quatro últimos como signo, embora
essas fronteiras não sejam absolutas. Os “aspectos de desempenho” subjazem a análise realizada aqui,
mas vêm para o primeiro plano os atributos da obra, que podem incidir, como geralmente o fazem, em
vários tipos de desempenho. (Para as definições dos aspectos ver HOLANDA, Frederico de. “Arquitetura
sociológica”; “topoceptivo” é neologismo criado por KOHLSDORF, Maria E. A Apreensão da Forma da
Cidade, e diz respeito às questões de orientabilidade e identidade visual em arquitetura.)
13
A idéia inspira-se na definição de “célula elementar” de Hillier & Hanson, embora não coincida intei-
ramente com ela (HILLIER, Bill, HANSON, Julienne. The Social Logic of Space).
14
O primeiro pavimento a partir do qual se localizam as funções “nobres” de edifícios públicos ou resi-
dências senhoriais – casas de engenho no nordeste brasileiro, sedes de fazendas do café, villas aristocráti-
cas italianas etc. No térreo estão serviços de apoio, dependências de empregados etc.
ou barreira qualquer, à faculdade de vermos através da pele; é um aspecto essencialmente
expressivo, que constitui a arquitetura como signo15. A pele, simples ou elaborada, é mani-
pulada para que tenhamos mais ou menos facilidade para passar entre dentro e fora, mais
ou menos condições de ver entre interior e exterior. É tudo, para o que nos interessa aqui.
De um campo de variabilidade assaz singelo brotam incontáveis soluções arquitetônicas,
como na literatura são ilimitadas as possibilidades de emprego do finito léxico.
Situações-limite exemplificam a tipologia. As Grandes Pirâmides de Gisé ilustram
polos extremos de ambas as maneiras de variabilidade: massas totalmente opacas e volumes
totalmente fechados, cuja acessibilidade ao interior (túmulo) está bem acima do nível do
solo, mascarada pela utilização do mesmo material do invólucro (pedra) para vedar a aber-
tura. Opacidade e fechamento são maximizados (obras mais recentes de Niemeyer ilustrarão
algo muito próximo do tipo). O contrário está, por exemplo, no Parque do Flamengo, de
Burle Marx, descontadas, para efeito de raciocínio, as barreiras do sistema viário expresso.
É, sim, um espaço transformado por filtros/peles a definirem múltiplos lugares no parque,
todos radicalmente abertos e transparentes entre si; elementos minerais (pisos duros, areia,
seixos) e vegetais (forrações, vegetação arbustiva ou arbórea) qualificam distintivamente os
vários pontos. Os invólucros são mínimos, mas reais. Num parque urbano não há paredes
nem teto, é o polo oposto pela transparência e abertura maximizadas. (Em intensidade bem
mais reduzida, que guardam contudo similaridades com o parque urbano, estão as super-
quadras brasilienses – não é por acaso que Lucio Costa denomina seu projeto “cidade par-
que”.) Entretanto, o lugar é artefatual, há modificações de luz e sombra, temperatura, vento
e ruído, manipulados para proporcionar determinados efeitos práticos ou expressivos, pou-
co importando se os elementos são emprestados à natureza. Vegetação e equipamentos dis-
persos funcionam como filtros a distinguir lugares: embora possa me mover (abertura ma-
ximizada) e ver (transparência maximizada) em quase todas as direções, há sítios mais ou
menos acessíveis, mais ou menos visíveis, distinções resultantes das peles entre eles. A dife-
renciação, além de favorecer a percepção de um todo estruturado e a conseqüente formação
de uma imagem forte em nossa mente, faculta a escolha por alguns sítios para permanecer,

15
“Essencialmente”, num caso e noutro, porque a maneira de variabilidade “fechamento/abertura” tam-
bém pode constituir a natureza do signo (como num castelo do vale do Loire), e a maneira “opacida-
de/transparência” também pode ser instrumental, como no caso da vigilância no “panóptico” de Jeremy
Bentham (estudado em FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – nascimento da prisão).
ou por certos caminhos a percorrer, por mais confortáveis, sensorialmente estimulantes,
belos, ou simplesmente por melhor corresponderem a nossas preferências individuais.
Entre os extremos, mui variado é o repertório, a constituir realidades culturais diver-
sas ou visões de mundo do artista16. Na “Casa de Vidro”, Philip Johnson maximiza a trans-
parência do espaço doméstico para o exterior e cria uma luz genérica, “plana”, dentro da
casa. Richard Meyer faz parecido na Casa Douglas. Para contrastar, essa luminosidade é
impensável na morada japonesa – o jogo entre opacidade e transparência e as esquadrias
com papel translúcido proporcionam mediação sutil entre dentro e fora, permitem elabora-
das diferenciações de luz e sombra, facultam “tépido aconchego” 17. (Decerto a Casa Dou-
glas, de Meyer, possibilita muitos afetos, mas “aconchego” entra na lista?...) Richard Neutra
define planos virtuais pelas esbeltas colunas e pérgulas em “pernas de aranha”, cria espaços
de transição entre interior e exterior onde luz, temperatura e ruído não são nem os de den-
tro nem os de fora. Luiz Barragán combina abertura e opacidade: portas abrem direto para a
rua, mas suas casas são feitas de pesados muros de alvenaria, a iluminação dos cômodos é
frequentemente zenital ou indireta, o oposto da arquitetura “desmaterializada” de Neutra.
O casario de uma cidade vernácula brasileira (Pirenópolis, GO, por exemplo – Fig. 1)18
combina a transparência das janelas para a calçada, que permite mútua visibilidade entre
morador e passante (facultando descontraída conversa, quem sabe dissimulado namoro),
com o estímulo à visita, pelas portas quase sempre abertas dos vestíbulos. Na marquise do
Parque Ibirapuera (Fig. 2), Niemeyer realiza espaço um pouco mais filtrado que o do Par-
que do Flamengo, de Burle Marx: além do piso mineral e da vegetação por onde a marquise
serpenteia a conectar os edifícios, há o teto, que qualifica outra luz e outra temperatura. Os
muxarabis da arquitetura colonial brasileira facultam duplicidade de olhares – os de dentro
vêem os de fora mas a recíproca não é verdadeira. Os maias da América pré-Colombo cons-
troem pirâmides (são eventualmente túmulos) com templos no topo (Fig. 3); as escadarias
nos flancos das pirâmides são artifícios que se interpõem entre a entrada do templo (espaço
sagrado) e o espaço do entorno (lugar público), afastando dentro de fora. Não é outra a
16
P.ex., na escala dos conjuntos edificados (aldeias, vilas, cidades, metrópoles), há relações entre fecha-
mento/abertura e desigualdade social (HOLANDA, Frederico de. O espaço de exceção).
17
“... sensação de tépido aconchego (...) nós, os japoneses, sentimos desassossego diante de objetos cinti-
lantes...” (TANIZAKI, Junichiro. Em louvor da sombra.).
18
As ilustrações do livro estão disponíveis em cores e maiores dimensões em
http://www.fredericodeholanda.com.br. Para outras publicações sobre a obra de Oscar Niemeyer com
boas ilustrações a cores, ver por exemplo: ANDREAS, Paul, FLAGGE, Ingeborg. Oscar Niemeyer – a
legend of modernism; NIEMEYER, Oscar. Minha arquitetura – 1937-2005.
função das escadarias à frente de palácios e casas-grandes e do piano nobile que lhes corres-
ponde: artifícios de separação, todavia mais amenos (Fig. 4). Também não é outra a função
de cercas ou muros que envolvem sucessivamente espaços mais reclusos de edifícios ou áreas
urbanas, como no Palácio de Versalhes ou na Pequim Clássica. Nesta, muralhas concêntri-
cas definiam, à vez, Cidade Externa, Cidade Interna, Cidade Imperial, Cidade Proibida
(Fig. 5). Uma época pode distinguir-se da anterior pela estratégia de opacidade ou fecha-
mento que adota: a cidade moderna difere da pré-moderna pela proliferação de muros cegos
– opacos e fechados. Os espaços especializados “de passagem” das vias expressas por onde
circula ininterrupto o fluxo motorizado e para onde nenhum edifício abre, contrastam com
espaços de permanência contidos nas ruas tradicionais. E não se diga, como Le Corbusier,
que a cidade moderna emula Veneza, na separação de ruas para pedestres e vias aquáticas
para gôndolas e vapores: umas e outras são intensa e continuamente “alimentadas” por por-
tas e janelas, o que não acontece no urbanismo moderno.

Fig. 1. Abertura e transparência em casario de Pirenópolis (GO, Brasil).19

19
O livro impresso é em preto e branco. As fotos em cores aproveitam a possibilidade desta mídia.
Fig. 2. Marquise do Parque Ibirapuera, São Paulo.

Fig. 3. Pirâmide maia, Tikal, Guatemala.

Fig. 4. Engenho Poço Comprido (PE, Brasil), Casa Grande e capela.


Fig. 5. Pequim. Cidade Imperial. Muralha e fosso.

Os exemplos ilustram as categorias analíticas utilizadas no texto (fechamen-


to/abertura, opacidade/transparência) e os atributos pelos quais se realizam (acesso por mo-
numentais escadarias ou portas diretas para a rua, peles de vidro transparente ou paredões
opacos etc.). Apenas descrevi um campo de variabilidade, não entrei no mérito destes ou
daqueles índices de fechamento/abertura ou opacidade/transparência. Isso é feito no corpo
do ensaio: razões práticas ou expressivas, que embasam a avaliação positiva ou negativa dos
atributos, são explicitadas. A análise das obras não é extensiva, antes recai sobre os atributos
mais responsáveis por sua qualidade ou por seus problemas, do ponto de vista do texto –
relações espaço interno x espaço externo.
Retomemos as questões iniciais: a arquitetura de Oscar Niemeyer explora consisten-
temente um determinado intervalo da variação possível entre fechamento/abertura e opaci-
dade/transparência? Variações detectáveis estão relacionadas com uma fase da obra, a temas
arquitetônicos, ao entorno construído ou natural, a outros aspectos? Como as escolhas do
arquiteto afetam as pessoas nos vários aspectos de desempenho de sua arquitetura, práticos
(arquitetura como bem) ou expressivos (arquitetura como signo)? Para responder as pergun-
tas, não haverá uma varredura abrangente nem particularmente cronológica da vasta obra
de Niemeyer. Elejo temas que me parecem os mais pertinentes. Enfatizo obras que conheço
in loco. Também, e como deve ser uma análise objetiva da realidade, enfoco a obra, não os
discursos que o arquiteto, ou outros, fazem sobre ela (discursos são referidos apenas para
ilustrar circunstâncias interessantes do projeto).

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