Você está na página 1de 23

A CASA E AS SUAS CASAS

Avelino Oliveira*
Paulo Castro Seixas**
Luís Pinto Faria***

RESUMO: Este artigo pretende compilar um breve conjunto de apreciações sobre


a “Casa” enquanto palavra e conceito. Procuramos observar as definições correntes do
espaço de habitação no seu contexto cultural e antropológico, mas também histórico
e disciplinar da arquitetura, viajando a partir da etimologia mas com destino às novas
questões contemporâneas que se colocam perante as teorias do espaço urbano e social.
Este percurso inicia-se nas indagações sobre as primeiras construções humanas e a sua
consolidação como célula primordial do espaço urbano, da cidade, ou seja, como
o espaço de assentamento, de vida, se passou a denominar “Casa”.
PALAVRAS-CHAVE: Casa. Habitação. Residência. Moradia. Cabana primitiva.

* Avelino José Pinto de Oliveira – Arquiteto, Professor da Faculdade de Ciência


e Tecnologia Universidade Fernando Pessoa – Porto – Portugal. Correio electrónico:
avoliv@ufp.edu.pt.
** Paulo Alexandre do Nascimento Castro Seixas Antropólogo, Professor Agregado
do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Universidade Técnica de Lisboa –
Lisboa – Portugal. Correio eletrónico: pseixas@iscsp.utl.pt.
*** Luís Manuel Moreira Pinto de Faria. Arquiteto, Professor Associado da Faculdade
de Ciência e Tecnologia Universidade Fernando Pessoa – Porto – Portugal
Correio eletrónico: lpintof@ufp.edu.pt.
142 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

A CASA INTRODUTÓRIA

O espaço de organização fixa constitui um dos quadros


fundamentais da atividade dos indivíduos e dos grupos. (…)
Os edifícios de construção humana são um exemplo de
organização fixa. Igualmente o seu agrupamento, bem como
o seu modo de partição interna correspondem também a
estruturas características determinadas pela cultura.
A organização das aldeias, das pequenas e grandes cidades e
do campo que as rodeia não é efeito do acaso, mas resultante
de um plano deliberado que varia com a história e a cultura.
(Hall, 1986, p.121)

Este artigo apresenta uma revisão da bibliográfica centrada numa


abordagem analítica da temática teórica da casa. A palavra “casa” é
utilizada propositadamente, pois ela possui um significado lato, cuja
importância, julgamos, é necessária revisitar. O objetivo é, portanto,
realizar uma reflexão que permita uma nova visão, mais contemporânea,
que caracterize a habitação. Por isso, consideramos a casa enquanto
um valor cultural e arquitetónico, e não apenas enquanto um objeto
físico. Este processo implicou uma pesquisa em torno da definição
teórica e conceptual dos conceitos inerentes ao habitat, desde a base
etimológica da palavra até ao seu enquadramento histórico, culminando
na reflexão sobre o seu significado no tempo coevo.
A metodologia adotada construiu-se sobre uma revisão
documental e bibliográfica quem se sustentou cientificamente nas áreas
de Arquitetura, da Antropologia do Espaço e da Sociologia Urbana,
nomeadamente na sua relação com o objeto arquitetónico, o indivíduo
e o espaço urbano, tomando como critério principal a análise das
publicações/documentos de referência que permitissem construir um
quadro teórico consistente. A análise de conteúdo realizada de todo o
material bibliográfico e documental levou também ao reconhecimento
de mapas conceptuais específicos, os quais, depois de estudados,

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 143

possibilitaram a compartimentação da informação em grupos que se


procuraram categorizar. A síntese que estes grupos nos forneceram, e
que apresentamos neste artigo, procuram representar um ponto da
situação atual sobre o tema, de forma a permitir aos investigadores
a observação de novas estratégias em torno do habitat, facilitando o
aprofundamento disciplinar e científico.

A CASA (IN)DEFINIDA

A habitação, tornou-se em muitos momentos da história


moderna, no âmago da investigação desenvolvida no âmbito disciplinar
da arquitetura (Aris, 2000, p. 13), tornando o pensamento em volta
da casa num tema central da produção científica e em particular dos
escritos de arquitetura. Isto acontece porque a temática representa a
essência do seu campo específico, ou seja, a arquitetura e a habitação
sempre trilharam o mesmo caminho, histórico e simbólico. E porque a
casa foi um componente fundamental gerador de urbanidade, pois
representou a transição do nomadismo para a vida sedentária, a criação
de núcleos urbanos e da vida em sociedade. A casa, além de ter sido a
primeira célula da cidade, foi também o primeiro recurso civilizacional
que o homem soube construir.
Na pré-história, no desenvolvimento dos aglomerados
permanentes, os indícios urbanos indicam que o homem ultrapassava
as outras espécies animais pelo respeito que o ser humano revelava
pelos seus mortos (Mumford, 1991, p. 12). Os mortos foram os
primeiros a ter morada permanente, construíam-se marcos, túmulos
aos quais retornavam os vivos em locais demarcados e assinalados.
Assim, e talvez por isso, a história e a arqueologia revelam o fascínio
do homem pelo sonho, mas também sublinham que a casa dos mortos
antecede a casa dos vivos, pois a cidade antes de ser um lugar de residência
fixa era um ponto de encontro onde periodicamente as pessoas

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


144 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

voltavam, como um íman, um local de cerimonial (Idem, p.13-16).


No entanto, uma questão fundamental prevaleceu durante muitos
séculos no centro do debate teórico entre os estudiosos do espaço:
Como seria a primeira casa dos homens?
Qual era aquela habitação que os primeiros homens construíram para
habitarem de forma sedentária, depois de saírem das grutas e das
cavernas? Foi nesta busca em torno das origens que a casa, enquanto
primeira construção do homem, emergiu como um dos temas mais
antigos da pesquisa disciplinar da arquitetura. Esta procura fez-se
através das teses em torno do mito da cabana primogénita, aquele que
era chamado de edifício primeiro, a simbólica casa de Adão e Eva.
A temática promoveu um profundo debate em torno da arquitetura,
nomeadamente após o final da Idade Média.

Fig. 1 – Adão a
proteger-se da chuva segundo
Averlino Filareto.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 145

Julgamos que Rykwert, na sua obra “A Casa de Adão no Paraíso”,


nos elucida sobre as respostas que poderemos encontrar quando inicia
um dos seus capítulos denominado “uma casa para a alma”, com o
seguinte parágrafo:

“(…) A minha tese foi a existência de um interesse constante


pela cabana primitiva. Ao que parece, praticamente todos
os povos de todas as épocas terão mostrado este interesse
e a significação atribuída a esta elaborada figura não parece
que se tenha alterado muito de um lugar para outro, de uma
época para outra. Em minha opinião, esta significação
persistirá no futuro e terá implicações permanentes e
iniludíveis nas relações entre qualquer edifício e o usuário.
(…)” (1999, p. 227).

No fundo, tal como o autor, julgamos que a investigação da casa


primogénita é também um mergulho na história em busca das origens da
arquitetura. Os primeiros teóricos da disciplina, também vulgarmente
designados de tratadistas, afirmavam até ao século XIX que seria na
origem dessa construção original que se descobririam sintetizadas as
regras naturais da arquitetura, a ligação entre a construção natural
e a construção artificial (Escobar, 1991). Cronologicamente, só após a
Idade Média foi evidente o enfoque dado a este tema. Esse interesse
foi animado pela atenção dada à arquitetura clássica, ou melhor, pela
importância que na Renascença a teoria de arquitetura despertou,
nomeadamente quando os intelectuais do Renascimento descobriram
os manuscritos dos “Dez Livros de Arquitetura”, do Engenheiro militar
Romano Marco Vitruvio Polião (Rua, 1998, p. 5-8) e reconheceram
imediatamente o testemunho, provavelmente único, daqueles que se
imaginavam ser os princípios da ciência arquitetónica aplicados pelos
povos da Antiguidade Clássica, nomeadamente Grécia e Roma, aos
seus gloriosos edifícios.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


146 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

Na verdade, estes textos espelhavam os princípios basilares que


Helénicos e Romanos tinham aplicado antes (Escobar: 1991), o que
elevou Vitruvio e os seus escritos teóricos a um patamar que os manuais
técnicos não atingiam, colocando os seus Dez Livros ao nível do discurso
intelectual e filosófico (Hearn, 2006, p. 39). Este facto decorreu da
admiração e do trabalho de continuidade que lhe deram os vários
Tratadistas Italianos1 que com o intuito de recuperar a tradição antiga
(Idem, p. 40), geraram os primeiros movimentos teóricos da arquitetura,
realizando Tratados que delineavam as várias dimensões formais
e tipológicas dos objetos arquitetónicos. E é justamente com Vitruvio
que se produz a designação de uma tal “cabana primitiva”, na qual se
encontrariam as “regras naturais” da construção, demonstrativas da
relação entre a Arquitetura e a Natureza. Seguramente, a ideia do edifício
primogénito não é um original de Vitruvio, como aliás demonstra
Rykwert (1999, p.227), pois está presente nos registos ancestrais
da maior parte das culturas históricas, no entanto, teoricamente, é ele
quem dedica um discurso teórico ao tema, elaborando uma tese
consistente sobre a primeira casa, que o próprio designa de cabana:

Desta forma o fogo deu ocasião aos homens de se juntarem,


de formarem sociedades uns com os outros e de habitarem
no mesmo local; tendo para isso certas disposições
particulares que a natureza nunca atribuiu aos outros animais,

1
Na Idade Média, a tradição Vitruviana perdurara em muitos manuscritos, mas serão os humanistas
renascentistas que se reapropriam do texto de Vitruvio, conferindo aos “Dez Livros” do engenheiro
romano a condição de uma obra que é um modelo exemplar. O trabalho de Vitruvio torna-se,
assim, em Teoria de Arquitetura, matéria de ensino e de utilização para os intervenientes
no processo de edificação. Os arquitetos que contribuíram para esse desiderato forma os
renascentistas italianos Leon Battista Alberti, Francesco di Giorgio Martini e Antonio di Pietro
Averlino, mais tarde complementados na renascença tardia por nomes como Andrea Palladio e
Sebastiano Serlio, e tornaram-se universalmente reconhecidos como os primeiros Tratadistas,
já que foram os veículos de divulgação das regras e dos modelos que Vitruvianos. (Cf. Thoenes,
2003, p. 6-19; Choay, 2007).

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 147

como caminhar direitos e levantados, serem capazes de


conhecer aquilo que é belo e magnífico no universo, e de
poderem fazer com a ajuda das suas mãos e dos seus dedos
todas as coisas com grande facilidade. Começaram então
uns a fazer cabanas com folhas, outros a escavar alijamentos
na montanha, outros imitando o engenho das andorinhas
fazendo com pequenos troncos de árvores e terra gorda
locais onde se pudessem proteger. E cada um tomando em
consideração também a obra do seu vizinho, foi
aperfeiçoando as suas próprias invenções pelas observações
que faziam das de outrem, estabelecendo diariamente
grandes progressos sobre a boa maneira de construir cabanas:
pois os homens que por natureza são obedientes e dispostos
à imitação ao glorificarem-se das suas invenções,
e comunicando uns aos outros todos os dias aquilo que
tinham descoberto para melhor realizarem as Edificações,
exerciam assim o seu espírito, foram formando as suas
opiniões procurando tudo aquilo que poderia contribuir para
este desígnio.

Fig. 2 – Frontespício da capa do


livro Essai sur l’Architecture de
Marc-Antoine Laugier de 1755.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


148 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

A ordem que eles seguiram no início foi de espetar forquilhas


e ramos de árvores e preenchendo-os e tapando-os com
terra gorda de forma a realizarem paredes; construíram
também com pedaços de terra gorda seca, sobre os quais
eram colocadas peças de madeira atravessadas, que depois
eram cobertas com canas e folhas de árvore para se
protegerem do sol e da chuva(…). Ora as primeiras
edificações foram feitas desta maneira, sendo fácil de o supor
por aquilo que ainda hoje podemos ver entre os estrangeiros,
que constroem com estes mesmos materiais, como na Gália,
em Espanha, em Portugal, e na Aquitânia, onde as casas são
cobertas de colmo ou de ripas feitas de carvalho cortado
em forma de telhas. (Vitruvio, Livro II in Rua, 1998, p. 30).

Realizando uma leitura superficial destas referências à cabana primitiva,


podemos ser compelidos a concluir que o autor possui uma visão funcional
do tema, pois considerava este primeiro edifício, a cabana, uma resposta às
necessidades das pessoas que tinham começado a viver em sociedade após
o descobrimento e domínio do fogo (Hearn, 2006, p. 60). Mas também
sublinhava que a construção era uma súmula de aprendizagens empíricas e
evolutivas, melhorando com a experiência de uns e outros.
Efetivamente, julgamos que Vitruvio nunca terá considerado a cabana
primogénita como um modelos de edificação, no entanto, as suas ideias
assentam em pressupostos que impulsionam areprodução, a mimetização, ou
dito de outro modo, a arte da imitação, o que virá a constituir uma base de
trabalho para os teóricos do século XV e XVII que foram partidários e
impulsionadores deste mito. É com eles que o questionamento em torno da
cabana primitiva ganhou a dimensão de um arquétipo (Teyssot, 2010, p. 67-70).
O tema do doméstico entusiasmou sucessivas gerações de construtores
de espaço, desde Vitruvio a Andrea Paladio, Laugier, Quatremere d’Quincy,
Viollet-le-duc, etc. Além destes, podemos ainda observar, num passado mais
recente, arquitetos e teóricos de Arquitetura, dedicados ao estudo da casa e
dos modos de habitar, nomeadamente Le Corbusier, Frank Lloyd Wright,
Adolf Loos, Robert Venturi, Aldo Rossi, entre muitos outros. E seguindo
a mesma linha de pensamento, também não é necessário um exclusivo esforço

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 149

ou uma dedicada averiguação para encontrar textos, ensaios ou outros escritos,


de vários autores fundamentais da filosofia e da história do pensamento do
homem, que se debruçam sobre o tema da casa ou da habitação. Desde
Bachelard, em muitos dos seus textos mas essencialmente na sua incontornável
obra “a Poética do Espaço”, passando pelo sociólogo Pierre Bourdieu, e o seu
conceito de Habitus, passando por Deleuze, Valery, Heidegger, Max Webber,
Walter Benjamim, Debord, Lefèbvre, e muitos mais. Em qualquer um destes
autores alcançamos diferentes vistas sobre o lugar da habitação e sobre
a reflexão em torno da casa. Por essa razão, será difícil definir com nitidez o
conceito da palavra casa, pelo menos aquele que estará agregado ao seu
significado, ou seja, o valor próprio da casa enquanto matéria do pensamento
humano, limitando esta definição a um número restrito de autores ou até,
sendo mais exigente na capacidade de síntese, explicar a casa num parágrafo,
numa frase ou num conjunto de vocábulos. Talvez seja por isso que o
historiador Giedion considere que a evolução da vivenda humana é complicada
e nada clara, embora, como refere o autor, a evolução científica tenha
gradualmente vindo a auxiliar a compreensão e investigação das suas origens
(2004, p. 187).
Considerando a atualidade, julgamos que a noção de casa ganhou uma
complexidade tão ampla, que ninguém consegue ousar uma definição
conceptual sintetizada, no entanto, mesmo perante este obstáculo, decidimos
arriscar e efetivar, neste trabalho, ainda que de forma abreviada, uma sinopse
de algumas ideias que consideramos fundamentais em torno da casa enquanto
palavra e da sua evolução ao longo da história e da civilização.

A CASA ENQUANTO PALAVRA

Nesta curta viagem que pretendemos fazer pelos conceitos de habitar,


procuramos também compreender algumas pegadas históricas deixadas pela
palavra e pela sua significação etimológica, ou seja, o modo como a palavra
chegou até nós, compreendendo as suas origens, as transformações, as suas
variáveis e consequentes mutações. No dicionário de termos de Arte

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


150 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

e Arquitetura, a palavra casa, em português, significa: um edifício para habitação,


uma moradia, uma vivenda ou residência (Silva, Calado, 2005, p. 82). Se abrirmos
o leque de opções e desenvolvermos essa pesquisa pelo conjunto de dicionários
generalistas, encontramos a palavra como sendo o nome genérico dado a
“todas as construções destinadas à habitação”, ou então como a designação de “cada
uma das divisões de uma habitação”. A palavra CASA é ainda referida como
sinónimo de “o local de habitação”, bem como o sinónimo de outras palavras
comummente relacionadas, tais como “domicílio, morada ou lar (Academia de
ciências de Lisboa, 2001, p. 604, 719). Aprofundemos então alguns sinónimos:
A RESIDÊNCIA corresponde ao arquétipo da habitação, termo que
normalmente é utilizado para definir o ato de morar, enquanto a CASA
é entendida como o objeto físico da morada, a MORADIA. No fundo,
dentro do mesmo espaço de significância temos várias palavras, como residência,
moradia e habitação, o que nos leva a questionar a diferença específica entre
residir, morar e habitar. De certo modo, cada uma das palavras possui uma
evolução própria, pelo que justifica-se uma breve incursão pelas raízes do seu
significado original e histórico para nos ajudar a destrinçar os conceitos.
A maioria das palavras reflete a noção de construir, cobrir ou outra característica
de construção, mas algumas derivam de ficar, descansar, estar, etc. (Pina-Cabral,
1991, p. 128). Por exemplo MORAR significava em latim permanecer, como se
depreende da língua francesa demeurer, que possui também a interpretação de
permanência. Demeurer provêm do latim demoror que significava morar, mas
também atrasar-se ou reter-se (Azara, 2005, p. 41). RESIDÊNCIA, ou melhor,
residir, tem origem na palavra do latim resideo que significava assentar-se e
subsistir. Finalmente, habitar deriva do verbo latino habere. Habitare e habere
seriam quase o mesmo pois ambos possuíam a mesma raiz, no entanto, habitus2,
como adjetivo, traduzir-se-ia do latim como, bem assentado, ou como um lugar
onde se está bem. Uma habitação será, portanto, um local que se ocupa
habitualmente, daí que o hábito possua também o significado de costume,
rotina (Idem, p. 42-43).

2
Não confundir com o conceito de Pierre Bourdieu que mais adiante referiremos.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 151

No entanto, no nosso trabalho, julgamos que as definições básicas,


mesmo quando baseadas no confronto do significado dos sinónimos não
serão suficientes para aclarar a definição etimológica que pretendemos.
A perceção da casa como uma palavra que representa o património privado
de um indivíduo ou de uma família não surge diretamente com as construções
que os homens foram desenvolvendo. Este processo de apropriação do espaço
e de afirmação social foi lento e desenvolveu-se a diferentes velocidades durante
a Antiguidade. O período helénico estabelece os modelos da urbanidade e é
com a cidade grega que se consolida a ideia da casa como um lote e um
proprietário. Aliás, a palavra sofre algumas variações e cambiantes devido
à definição imprecisa. Segundo Carnielo Miguel (2001), a palavra casa no latim
significa, “pequena casa rústica de construção rudimentar, tradicionalmente coberta com
colmo” (Academia de Ciências de Lisboa, 2001), desenvolve-se durante o
império romano como sinónimo de cabana, ou de tugúrio (abrigo de
características rurais). Na verdade, a palavra casa emerge contrapondo-se ao
termo domus que indicava a habitação urbana. A etimologia latina original de
casa era casa-ae e significava a vivenda mais antiga dos romanos,
caracterizando-se por cabanas simples de forma redonda, com teto cónico,
comuns na Itália primitiva. A domus é que era, nessa época, a vivenda romana
por excelência (Carnielo Miguel, 2001, p. 149). Segundo Benveniste é a raiz
dem que está na origem de muitos dos nomes para casa pois no grego homérico
dom significa domesticar, (o que dará posteriormente em latim domare e em grego
damaó). E dem significa construir, palavra que o autor atribui a família
(Pina-Cabral, 1991, p. 128-130). E será nesta dissonância entre domínio
e família que a palavra casa historicamente se irá configurar.
Após a queda do império romano, nas cidades europeias da Idade
Média, os templos distinguiam-se pela escala e robustez dos seus edifícios e
passaram assim a receber também o nome de domus, ou seja Casa do Senhor.
Na verdade esta transformação ocorre pela evolução linguística que existiu
numa sociedade onde a religião cristã passou a ser dominante. O monoteísmo
cristão, adorador de um só Deus, transformou a Igreja num local também
designado de “Casa de Deus”, logo “Casa do Senhor”. O papel que a religião
desempenhava na idade média era bem mais relevante do que aquele que
ocorre hoje pois preenchia as atividades da vida humana de uma forma mais
Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013
152 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

constante e generalizada. A Igreja presidia aos principais momentos da vida


do homem ocidental, desde o nascimento, pelo crescimento e até à sua morte
(Oliveira Marques, 2010, p. 185). O espaço da Igreja era também, e em especial
nas cidades, o fulcro das atividades públicas, desde as missas até às festividades
e ações de recreio. Na falta de outros edifícios públicos, servia também de
ponto de reunião e até de recinto de diversões, a Igreja, enquanto edifício,
pertence, portanto, ao domínio da esfera do espaço público (Idem, p. 203).
Como vimos é de domus que provêm a palavra “dominius”, isto porque domínius
era aquele que tinha a propriedade da domus (casa), levou a este sinonismo
latino de domus, dominius e “senhor”. Assim surgiu a expressão “domus domini”
que encontramos amiúde nas igrejas europeias e que significa a casa do dono, do
Senhor da domus, portanto Casa do Senhor. A Domus passou a ser a Igreja “tendo
ao seu redor uma extensão miserável de ”casae”, o que levou a uma mudança de uso
etimológico, Domus passou a ser a morada de Deus e casa a morada humana
(Carnielo Miguel, 2002). Este percurso pela herança linguística romana é
relevante e esclarece como a casa é, na língua portuguesa, uma transmissão
direta do Latim casa, que no seu sentido primário significava uma construção
artificial de origem rural ou rústica, uma estrutura que se constituiu como
abrigo, pouco a pouco, acabou por ocupar o espaço linguístico que na
antiguidade se atribuía a domus. Deste modo, na história da humanidade,
nomeadamente no período pós Idade Média, a definição de casa rapidamente
ultrapassou a origem das suas fronteiras etimológicas, pois a casa enquanto
conceito deixou de ser a coisa, o objeto físico e artificial, para se caracterizar
também como uma construção cultural da sociedade ou como afirma
Fernández de Rota (1998, p. 151) a “casa é entendida como parte integrante da vida
humana e, portanto, contextualizada dentro de um mundo cultural”.
Curiosamente nas línguas de origem anglo-saxónica a separação entre
a casa (estrutura física) e o lar é clara. A palavra house (casa no sentido material)
e home (lugar onde se vive) permitem uma maior distinção que as línguas
latinas não possuem. Aliás a isso se refere Rybczynski (2009, p. 71) quando
indica que os povos do norte da Europa partilham o termo home que significa
casa mas também os seus habitantes, ou seja, home significa a casa e tudo que
existe nela e ao seu redor. Home possui uma componente afetiva que house não

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 153

possui. Em português, o vocábulo mais aproximado é lar, embora com


distinções, porque esta noção de lar, sendo fundamental, tem origem
etimológica na mitologia etrusca, consolidada depois pelos romanos. Lar
representa o fogo sagrado que protege a habitação e é transmitido de geração
em geração3. Assim, torna-se evidente a relação da palavra lar com a lareira.
Era o fogo da lareira que agregava em seu redor todos os elementos da
família. Nas casas ancestrais a lareira era assim a pedra que servia de base ao
lume (lar + eira), logo, o lar transporta um significado muito próprio do fogo
e do calor humano, o que não coincide com o espaço afetivo que é o home
anglo-saxónico. Esta diferenciação entre o Norte da Europa e o Mediterrâneo
ainda hoje é visível, a palavra grega para casa (óðßôé) identifica também o lar,
ou seja significam o mesmo4. E em italiano acontece exatamente o mesmo,
casa é a casa e o lar.
Assim é compreensível que do Latim medieval tenha emergido também
a palavra casal, cujo significado original não representa, como poderíamos
julgar, o par composto por um homem e uma mulher. Casal provém do
Latim casale que significa cabana, choça, choupana e, com o tempo, por extensão
de sentido, passou-se a chamar casal aos que viviam numa mesma casa5; aliás,
em português, mesmo nos nossos dias, a palavra casal contínua ligada a
significados territoriais como o povoado ou a casa rural. Segundo Pina-Cabral,
no Norte de Portugal, nomeadamente na região do Minho, utilizam-se três
palavras para designar a unidade social primária: casa, família e lar. Ressalva o

3
Assim identificamos, Lar, Deus romano de origem etrusca, filho de mercúrio (Deus do
negócio) e de Lara (Deusa do silêncio). O lar encarna a alma dos mortos sob a forma de uma
estatueta pequena que representa um adolescente, protege cada habitação romana e é transmitido
de geração em geração. Aos lares domésticos juntam-se os múltiplos lares públicos, que garantem
a segurança dos caminhos, dos campos, das encruzilhadas e os lares da cidade que são escolhidos
entre os deuses romanos: Jano, Diana e Mercúrio (Schmidt, 1985, p. 168 –184).
4
Em relação a esta questão é interessante observar que a palavra grega para família seja um
composto da palavra casa com estirpe, ou seja, pessoas originárias da mesma casa (Pina-Cabral,
1991, p. 131).
5
Ao contrário do que acontece nas línguas anglo-saxónicas onde por exemplo a denominação
inglesa couple, remonta ao latim copula, o que demonstra uma origem marcadamente mais
vinculado aos aspetos relacionais humanos do que ao espaço físico de convívio.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


154 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

autor que as duas primeiras palavras são utilizadas com maior frequência do
que a ultima. Os camponeses dão mais importância à palavra casa, os burgueses
preferem a palavra família. Antropologicamente são também estas duas palavras
que representam maior conteúdo na descrição aos níveis de organização básica
e social: a casa e a família (Pina-Cabral, 1991, p. 110). Como sabemos, a casa
rural dos camponeses é uma estrutura física e social, não necessariamente
familiar, que vive do sustento das terras, agregando uma comunidade que
partilha o espaço físico. A burguesia, por seu lado, mais urbana, reforçou
declaradamente desde o século XVIII a importância da família nuclear
enquanto estrutura fundamental que habita o espaço residencial. Esta
diferenciação ou aproximação aos conceitos de casa e família revelam-se
também nas leituras etimológicas das palavras que dão significado ao habitat.
Em francês ménage significa a vida doméstica, ou seja, o conjunto dos
trabalhos domésticos, mas também todos os membros de uma família,
incluindo os casais na sua vida em comum. Maison, por seu turno possui a sua
raiz etimológica no Latim mansu, particípio passado de maneo que significa
permanecer. A maison francesa tem origem na casa como um lugar estável, um
lugar de segurança. E desde da Idade Média, o termo parece ser aplicado às
instalações residenciais e aos edifícios para fins agrícolas6.
Em Inglês a palavra house provêm das línguas proto-germânicas, por
isso a palavra é idêntica na língua alemã e até em dinamarquês (haus e hus)
e parece semelhante a outros países do norte da Europa7. No entanto, a palavra
parece possuir uma proveniência difícil de contextualizar pois o termo seria
mais usado como um verbo do que como um nome, ou seja, to house significava
receber ou abrigar alguém. Fora do contexto ocidental as comparações são
mais difíceis de estabelecer. Não só porque a formulação linguística é distinta,
como também pelo facto da estrutura gráfica e gramatical possuir regras
muito diferentes. Apesar disso, sublinhamos alguns exemplos dispersos, desde
logo a palavra faraó que tem origem no egípcio per-aa, que significa Casa Grande,

6
No português ainda encontramos a palavra manso para descrever uma unidade residencial da
estrutura feudal.
7
Em Sueco casa traduz-se por hem, em Holandês por huis, em Islandês por heim e em Norueguês
por hjem.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 155

palavra que designava o palácio. Em árabe a palavra casa é bayt, neste caso
com uma ligação estreita com o significado de família, assinalando até uma
vertente religiosa relevante pois Ahl al-Bayt refere-se no Islão à família do
profeta Maomé. A palavra árabe ahl significa família e bayt casa e esta expressão
significa literalmente aqueles que se reúnem sob o mesmo teto8. No extremo
Oriente Ie é a palavra utilizada para o espaço físico da casa mas é a palavra uchi
que se identifica melhor com o significado de casa familiar, que na cultura
japonesa tem particular importância pois representava (até 1947),
tradicionalmente9, não só a família nuclear, mas também os descendentes e os
ascendentes.
São, como vimos, muitas as palavras que guardam na sua história aspetos
de relevante interesse para o conhecimento d desenvolvimento da habitação
humana. A casa enquanto conceito universal possui várias formas, diferentes
conceitos, articulando-se com os diversos elementos culturais de cada civilização
ou povo. Mas para além do valor implicito nas palavras que os descrevem,
sabemos, tal como refere Rapoport (1969, p. 15) que os edifícios podem ser
estudados de diferentes formas. Podemos observá-los cronologicamente,
mapeando a sua evolução no tempo ou podemos estudá-los a partir de um
ponto de vista específico. No nosso caso, julgamos que este último é o método
mais útil, uma vez que, como vimos, os edifícios primitivos e vernaculares
distinguem-se pela falta de mudança, são, portanto, basicamente não-
cronológicos na sua natureza (Idem). Essas construções também são anônimas,
no sentido de que eles não têm um desenho reconhecido e pouco se sabe
sobre o nome do proprietário ou das circunstâncias específicas de sua
construção, uma vez que são o produto do grupo ao invés do individual
(Ibidem).

8
Embora os diferentes povos muçulmanos atribuam diferente significado e importância ao
termo.
9
Hoje ainda se mantém entre muitas famílias japonesas a ideia da comunidade familiar que
responsabiliza solidariamente o grupo perante a sociedade mais do que as pessoas individualmente.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


156 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

A CASA ENQUANTO NOVO PARADIGMA

Entendemos que hoje refletir e estudar a casa é também estudar uma


dimensão da cidade. Simplesmente porque tal como Aldo Rossi apontou,
a “cidade sempre foi caracterizada amplamente pela residência” (1999, p. 126,127), pois
não conseguiríamos considerar residência como um simples zonamento urbano.
Esta ideia ganha ainda mais sentido quando o autor sublinha que os aspetos
tipológicos que caracterizam a residência, ou seja a habitação, estão estreitamente
vinculados à forma urbana. Na verdade, as críticas pós-modernas e pós-
estruturalistas ao determinismo da arquitetura do movimento moderno,
acabaram por demonstrar as fragilidades do desenho racionalista. Assim, foi
na década de setenta do século XX, período em que foram revisitados e
revalorizados os valores arquitetónicos da história e do seu simbolismo, da
cultura e da arquitetura vernácula que fizeram emergir o contextualismo de
Rossi, a cultura popular de Venturi (1978) ou o historicismo de Krier. Segundo
Hearn (2006, p. 231) estes valores introduziram dinâmicas que levaram a “novos
caminhos no método de desenho”, aliados depois, com a emergência do computador
que assumiu um papel cada vez mais importante no desenho e na produção
arquitetónica. Com as novas tecnologias permitiram-se utilizar sistemas que
entrelaçam diferentes níveis de informação, bases de dados capazes de operar
o projeto do edifício como um ensaio tecnológico. A habitação deixou de ser
um objeto capaz de ser controlado e proposto através de modelos de
produção racionalista, funcional e delimitada pelos conceitos da média
antropométrica, da procura do espaço mínimo essencial para o correto
funcionamento das atividades inerentes ao “habitat”, para passar a ser um
espaço que se deseja inclusivo e compreensivo. Isto significa que a casa dos
nossos dias já não pode continuar a ser desenhada segundo a cartilha do
modulor10. Este neo-tratado em forma de postulado corbusiano definia o valor
10
Entre 1942 e 1948, Le Corbusier desenvolveu um sistema de medição que ficou conhecido
por «Modulor», baseado na razão de ouro e nos números de Fibonacci e usando também as
dimensões médias humanas (dentro das quais considerou os 183 cm como a altura standard, o
Modulor é uma sequência de medidas que Le Corbusier usou para encontrar harmonia nas suas
composições arquitetónicas. O Modulor foi publicado em 1950 e depois do grande sucesso, Le
Corbusier veio a publicar, em 1955, o “Modulor 2”.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 157

médio das medidas do corpo humano para ser pensado de forma a servir
o maior número de cidadãos possível. Só que o desenho de tendência
mecanicista do movimento moderno é agora substituído ou ultrapassado pelo
conceito humanista de desenho amigável e do espaço inclusivo, em especial
nos espaços de habitação. Este facto revela-se na importância que se deu na
última década aos fatores de acessibilidade e mobilidade, nos princípios de
sustentabilidade, ecologia e nos parâmetros de segurança, higiene e salubridade.
Estes são também princípios antropológicos, porque implicam
comportamentos, nomeadamente novos comportamentos, numa sociedade
cada vez mais capaz de fazer viver por mais tempo os seus habitantes. Mas, se
tudo isto transporta a conceção arquitetónica para uma metodologia que trata
o edifício como um objeto, o problema emergente que este trabalho procura
abordar refere-se exatamente a essa dimensão humana que o projeto de
arquitetura deve ter.
Está hoje demasiado banalizada a ideia que a obra de arquitetura
é um produto acabado, um ready-made (herança do movimento moderno), ou
seja, que o trabalho de conceção acaba na inauguração do edifício, restando
para os anos seguintes os processos de manutenção ou em casos mais extremos
de remodelação/transformação, e aí o processo reinicia-se. Acreditamos que
o abandono desta ideia será a charneira que marcará a mudança de paradigma
no trabalho dos arquitetos e das equipas de projeto das casas no futuro – que
é o mesmo que dizer dos edifícios do futuro.
Se observarmos atentamente, alguns dos movimentos político-sociais
já apontam esse caminho. Constatamos, por exemplo, que a regulamentação
contemporânea exige garantias materiais e financeiras a quem constrói. Durante
um período de tempo que varia de pais para país, mas cuja média é os cinco
anos, os promotores asseguram o pleno funcionamento e utilização dos
edifícios, em especial os de habitação. Por outro lado, em países com legislação
construtiva mais avançada, os produtores de espaço têm, desde o final do
século XX, que realizar um dossiê contendo as principais características técnicas
e funcionais do edifício, uma espécie de manual, descriminando materiais e
sistemas construtivos aplicados, planos arquitetónicos e mapas de redes
infraestruturais.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


158 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

É dentro deste enquadramento que consideramos que a problemática


central dos nossos dias consiste em descobrir a fórmula para que a casa, esse
espaço dos nossos sonhos, como diria Bachelard (1957), ou a bolha de
imanência como ditaria Augé (Seixas, 2008) possa recuperar
a convivencialidade. Significa isto, evitar que todas as habitações atuais sejam
um objeto criado utilizando sempre as mesmas ferramentas, pois se assim
for, como assinala Ilich (1973), produzirão constantemente os mesmos efeitos,
criarão casas idênticas, sonhos iguais e os mesmos lugares não-lugares11, como
uma espécie de distopia orwelliana.
Para evitar este cenário é necessário promover e contribuir para o
trabalho dos construtores de espaço. Convêm referir que hoje a ideia da
construção da casa está intrinsecamente ligada à génese das profissões técnicas
e implícita no cerne da atividade profissional dos produtores de espaço, sejam
arquitetos, engenheiros, construtores, desenhadores, técnicos de obras,
trabalhadores da construção civil, promotores, etc. Mas Constatamos que
nos encontramos num espaço-tempo onde se está a operar uma mudança de
paradigma através da introdução de novos fatores tecnológicos (a internet, as
comunicações, os sistemas integrados de controlo de energia e recursos,
a urbanização do mundo rural) e de fatores culturais (as redes sociais, o espaço
virtual, a globalização).
Estamos então perante novas realidades, a casa hoje deseja-se agregadora
e coeva dos princípios basilares da sociedade. Mas as perguntas subsistem:
quais são então os fatores que determinam a escolha e seleção de uma habitação?
E quais são os elementos que os produtores de espaço introduzem para atrair
os utilizadores das casas que criam? Quais são os parâmetros que os
promotores colocam para irem de encontro aos anseios da habitação desejada?

11
O “não-lugar” é um conceito cunhado por Marc Augé (autor, pensador e antropólogo de
nacionalidade francês) para caracterizar um espaço que se revela incapaz de dar forma a qualquer
tipo de identidade. Augé define os lugares enquanto espaços antropológicos, ou seja, espaços
com identidade, com elementos relacionais e com referenciais históricos.
O “não-lugar” será então um lugar que não é relacional, não é identitário e não histórico.
As autoestradas, os aeroportos, as grandes superfícies são exemplos de não-lugares.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013

10
Entre 1942 e 1948, Le Corbusier desenvolveu um sistema de medição que ficou conhecido
por «Modulor», baseado na razão de ouro e nos números de Fibonacci e usando também as
dimensões médias humanas (dentro das quais considerou os 183 cm como a altura standard,
o Modulor é uma sequência de medidas que Le Corbusier usou para encontrar harmonia nas
suas composições arquitetónicas. O Modulor foi publicado em 1950 e depois do grande
sucesso, Le Corbusier veio a publicar, em 1955, o “Modulor 2”.
A casa e as suas casas 159

Qual o tipo de casa que queremos? E qual o método para a encontrarmos,


nomeadamente no seu contexto cultural contemporâneo?
Os antropólogos abordam a temática dessa mudança com um
determinismo empírico que nos obriga a refletir. Rapoport refere na sua obra
Culture, Architecture, and Design, de 2003, que em 1969, na sua primeira obra
House, Form & Culture (já anteriormente citada neste texto), partiu do
pressuposto que o “social” e o “cultural” são categorias distintas e separadas.
Mas hoje reconhece que o “cultural” é um conceito idealizado, e, portanto,
um padrão para as variáveis sociais que são uma manifestação mais concreta
e o fruto da cultura. Entre elas são especialmente importantes as expressões
sociais atuais da cultura, como a família e a estrutura familiar (o parentesco),
as redes sociais, os papéis comunitários, o status, as instituições sociais e similares.
Não só são potencialmente observáveis, como também têm sido amplamente
estudadas, pelo que existem métodos geralmente aceitáveis para estuda-las,
bem como uma vasta literatura em vários campos do saber, como
a antropologia, a sociologia, a psicologia social, etc.
No entanto, a cultura é um invento conceptual teórico imensurável, um
resumo taquigráfico de uma grande variedade de fenómenos urbanos. A cultura
nunca se observará a não ser através dos seus fenómenos humanos e apenas
nas manifestações observáveis (Rapoport, 2003, p. 162). Pierre Bourdieu
reforça exatamente esta ideia quando critica as teorias estruturalistas sobre
cultura, pois este autor, baseando-se no trabalho de campo que realizou na
Argélia12 afirma que o antropólogo é um estranho que parece encarar a
compreensão de uma cultura desconhecida como um exercício de
descodificação, tentando encontrar significados ou sentidos familiares por
detrás de todo um conjunto de costumes aparentemente novos. Como
sabemos, o trabalho de Bourdieu surge a partir de pesquisas de campo, entre
as casas e os comportamentos sociais de camponeses realizadas na Argélia,
que permitiram consolidar a ideia que o comportamento do homem se
estabelece como a necessidade empírica de apreender as relações de afinidade

12
O trabalho no terreno de Bourdieu serviu para que o sociólogo desenvolvesse o seu conceito
“Habitus”, que procura reintroduzir na antropologia estruturalista a capacidade inventiva dos
agentes (Bourdieu, 2002).

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


160 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

entre o comportamento dos agentes e as estruturas e condicionamentos sociais.


Bourdieu concebe um conceito – o habitus – como estando profundamente
enraizado nas divisões sociais, nos esquemas cognitivos e na cultura material.
O autor consegue interpretar a forma como os cidadãos são capazes de
selecionar os bens apropriados para si e para os seus no meio da extraordinária
panóplia disponível. As características dos objetos (nomeadamente as casas)
são vistas como elementos geradores de objetivações pelas quais as pessoas se
procuram diferenciar. Não se trata, portanto, apenas de bens que refletem
distinções, mas antes de representarem, eles próprios um instrumento para
essas distinções (Duarte, 2007, p. 29).
Na atualidade, a casa emerge efetivamente no contexto de novas
realidades. O espaço virtual, os conceitos de inclusão, de sustentabilidade, de
aproveitamento energético, promovem um novo olhar e um modo distinto
de estudar a casa. No fundo uma nova forma de trabalhar a construção das
casas do futuro. A ideia do arquiteto como autor artístico, dos engenheiros
como elementos que materializam e garantem a segurança do processo criativo,
do construtor como elemento obediente na edificação e do habitante como
consumidor final dá lugar a um diferente esquema conceptual, bastante mais
complexo onde todos participam e exigem mutuamente o equilíbrio e
compreendem a sua tarefa e a dos outros. A matriz cientifica foi substituída
pela lógica compreensiva. Do chavão mecanicista da forma/função, evoluímos
para um diferente estádio, mais contemporâneo e cultural, da forma/compreensão.

ABSTRACT: This article aims to collect a brief set of ideas about the House as a word and
as a concept. We try to observe the current definition(s) of the dwelling spaces within
their historical and disciplinary context, travelling from the etymology to the new
up-and-coming issues related to urban space theories. This journey starts in the first quest
about the human constructions and its consolidation as the primary cell of urban
space, and continues travelling through the city fabric, therefore as the settling space, and
finally conceiving the building that was named as a ”House”.
KEYWORDS: House. Housing. Residence. Dwelling. Primitive hut.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 161

BIBLIOGRAFIA

ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA, Dicionário da Língua Portuguesa


Contemporânea, Lisboa, Editorial Verbo, 2001.
ARÍS, C. M., Las formas de la residencia en la ciudad moderna, Barcelona, Ed. UPC,
2000.
AZARA, P., Castillos en el Aire - Mito y Arquitectura en Occidente, Barcelona, ed.
Gustavo Gili., 2005
BOURDIEU, P., Esboço de uma teoria da prática. Precedido de três estudos
de etnologia Kabila, Oeiras, ed. Celta, 2002, 1ª ed. 1972.
CARNIELO MIGUEL, J. M., A Terceira Pele, in Akrópolis, revista de ciências
humanas da Unipar, v. 9, n. 3, Julho/ Setembro, p. 149-1, 2001.
CARNIELO MIGUEL, J. M., Casa e lar: a essência da arquitetura in Arquitextos,
revista Vitruvius, São Paulo, 2002. Disponível em:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.029/746
[Consultado em Dezembro 2009].
CHOAY, F., A Regra e o Modelo, sobre a Teoria da Arquitectura e do Urbanismo,
Portugal, ed. Caleidoscópio, 2007.
DUARTE, A., Novos Consumos e Identidades em Portugal – Uma Perspectiva
Antropológica, Lisboa, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa, Tese de Doutoramento em Antropologia, 2007.
ESCOBAR, J. A., Arquitectura y Naturaleza: el mito de la cabaña primitiva en
la teoría arquitectónica de la ilustración, Gazeta de Antropología, n. 8, Texto
08-19, Universidad de Granada, Espanha, 1991, Disponível em:
http://www.ugr.es/~pwlac/G08_09JuanA_Calatrava_Escobar.html.
Consultado em Janeiro 2010.
FERNÁNDEZ DE ROTA, J. A, Arquitectura, vida y património In Seixas,
P. Et alii (coord.), Cultura e arquitectura: Incursións antropolóxicas no espacio
construído – Actas do seminário Internacional cultura e arquitectura - Universidade
Fernando Pessoa, Porto, ed. Lea, 1998.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


162 Avelino Oliveira, Paulo Castro Seixas e Luís Pinto Faria

GIEDION, S., El presente eterno: Los comienzos de la arquitectura, Madrid, ed.


Alianza forma, 2004, 1ª ed. 1962.
HALL, E., A Dimensão Oculta, Lisboa, ed. Relógio d’Água, 1986, 1ª ed. 1966.
HEARN, F., Ideas que han configurado edificios, Barcelona, ed. Gustavo Gili, 2006,
1ª ed. 2003.
MUMFORD, L., A cidade na história – suas origens, transformações e prespectivas,
S. Paulo, ed.Martins Fontes, 1991, 1ª edição 1961.
OLIVEIRA MARQUES, A. H., A Sociedade Medieval Portuguesa, Aspectos da vida
quotidiana, Lisboa, ed. Esfera dos Livros, 2010.
PINA-CABRAL, J. Os Contextos de Antropologia, Lisboa, ed. Difel, 1991.
RAPOPORT, A., House, forms and Culture, Winscosin, ed. Prentice-Hall inc.,
1969
______ , Cultura, Arquitectura y Diseño, Barcelona, ed. UPC.
RUA, H., Os Dez Livros de Arquitectura de Vitrúvio – corrigidos e traduzidos recentemente
em Português, com notações & figuras, Lisboa, Ed. Departamento de
Engenharia Civil IST, 1ª ed, 1998.
RYBCZYNSKI, W., La Casa: Historia de una Idea, Hondarribia, ed. Nerea,
2009, 1ª ed. 1989.
RYKWERT, J., La Casa de Adán en el Paraíso, Barcelona, ed. Gustavo Gilli,
1999, 1ª ed. 1974.
SEIXAS, P. C, Entre Manchester e Los Angeles - Ilhas e Novos Condomínios no Porto,
Porto, ed. UFP, 2008.
SILVA, J. H. P. & CALADO, M., Dicionário dos termos de Arte e Arquitectura,
Lisboa, ed. Presença, 2005.
TEYSSOT, G., Da Teoria de Arquitectura: Doze Ensaios, Coimbra, ed. 70
e e.d. arq., 2010.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013


A casa e as suas casas 163

THOENES, C., Introdução, In: AA.VV. (2003), Teoria da Arquitectura,


Do Renascimento aos nossos dias, Colónia,ed.Taschen. 2003, p. 8-20.

Créditos:
Todas as figuras apresentadas são desenhos originais ou reproduções livremente desenhadas
pelo autor, que assim procura uma uniformidade gráfica no sentido valorizar o trabalho e a sua
leitura.

Temáticas, Campinas, 21(42): 141-163, ago./dez. 2013

Você também pode gostar