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1 CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL: O ARCABOUÇO


TEÓRICO DA ANTROPOLOGIA

Dizer que a Antropologia é a ciência que se dedica ao estudo do homem é


reiterar o óbvio. As áreas da Antropologia (Biológica, Arqueologia, Lingüística, Social
e/ou Cultural, entre outras) se ocupam em interpretar a complexidade da existência
humana, sob o enfoque de diferentes aspectos.4 Aqui, nos ateremos mais à
abrangência do plano cultural, tendo em vista a especificidade dos fatores
estudados.

A noção de “cultura” é de extrema importância para a reflexão antropológica,


pois sobre ela foi desenvolvida a compreensão de como a experiência humana é
organizada. Como existem diversas concepções sobre cultura, neste trabalho
optaremos pela matriz epistemológica do antropólogo Clifford Geertz, tendo em vista
a atualidade de seu pensamento no que concerne ao assunto, ressaltando-se
claramente que não possuímos a pretensão de absolutizar o termo.

1.1 TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA: A PERSPECTIVA DE CLIFFORD


GEERTZ

Clifford Geertz (1926-2006), antropólogo norte-americano de notável


influência na segunda metade do século XX, contribuiu para a reconstrução do
conceito “cultura”, para o debate do relativismo cultural, além de ampliar e conectar
suas reflexões a outras áreas, como história, política, direito, artes e literatura. Dessa
forma, promoveu o desenvolvimento da antropologia moderna e o desencadeamento
da antropologia pós-moderna. Sua dimensão hermenêutica rompeu com as
estruturas metodológicas formais de estudo do meio antropológico, ao considerar
que o homem e as relações humanas devem ser interpretados em suas
particularidades culturais, e não sintetizados como se fossem leis gerais em uma
espécie de Código Cultural. Nesse sentido, a abordagem semiótica da cultura revela
que os fenômenos culturais são dotados de um conteúdo simbólico e,
conseqüentemente, carregados de significados passíveis de serem interpretados de
forma inteligível.

A posição por uma teoria interpretativa da cultura é claramente visível nos


argumentos do pensador. O trabalho antropológico é uma interpretação, isto é, uma
leitura do objeto analisado, e não uma “construção de representações impecáveis de
ordem formal”.5 Dito de outro modo, a interpretação cultural, através do instrumento
da prática etnográfica (a descrição densa), somente é possível pela aproximação de
dados concretos. Ela é um ponto de vista articulado pelo próprio observador a partir
da interpretação do(s) observado(s) e, por essa razão, nunca será completa, eis que
apenas o “objeto” de estudo poderia revelar uma interpretação “pura”, já que faz
parte de sua cultura.6 Nesse sentido, o trabalho antropológico é uma interpretação
de uma interpretação. Ao estudar uma comunidade indígena, pode-se dizer que o
antropólogo depende das informações reveladas pelos nativos, seus “informantes”.

4
Para uma noção geral sobre os ramos da Antropologia, consultar: DAMATTA, Roberto.
Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 27-38;
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 16-20.
5
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 13.
6
Ibidem, p. 11.
5

Através dessa coleta de dados, o intérprete busca compreender a trama de


significados. Assim, a interpretação não pode ser vista como uma lei, mas como uma
compreensão de um fato particular, de uma comunidade particular, de uma cultura
particular.7 Seguindo essa linha de raciocínio, o ideal de Geertz pode ser
demonstrado pelo seguinte trecho:

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias


de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas
teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em
busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
8
significado.

Com efeito, tendo em vista a atualidade dessa discussão em relação ao


estudo antropológico, em grande parte deste capítulo, serão apresentadas as idéias
desenvolvidas por Clifford Geertz para uma melhor compreensão da cultura e,
portanto, da diversidade cultural.

1.1.1 Cultura: o conjunto de sistemas de símbolos significantes

Uma das principais preocupações da Antropologia foi – e continua sendo – a


definição do termo “cultura”.9 Tal preocupação deve-se ao fato de que em torno
desse conceito é que se estruturou todo o estudo do homem.

Desde a antigüidade, inúmeros pensadores, tais como Confúcio, Heródoto e


Tácito,10 tentaram explicar a noção de cultura, com o intuito de compreender a
diversidade humana. Entretanto, apenas em 1871 que as idéias foram
sistematizadas, sendo pela primeira vez descrito o conceito científico da palavra,
trabalho realizado pelo inglês Edward Burnett Tylor.11 Após ele, diversos
antropólogos se dedicaram a esse objetivo, cuja pluralidade de enfoques pode ser
analisada nas escolas antropológicas do pensamento.12

Contudo, a maioria das formulações do conceito “cultura”, por serem um tanto


abrangentes, mostrou-se demasiadamente confusa. Segundo Clifford Geertz, as
noções amplas correm o risco de perder seu foco, frustrando o seu próprio sentido.
Conforme o autor, as noções universais perdem sua força. Portanto, percebe-se que
é de suma relevância delimitar e especificar o conceito cultura, a fim de que tal

7
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 11 e 21.
8
Ibidem, p. 4.
9
A opinião de Roque de Barros Laraia sobre o estudo da cultura é que: “provavelmente nunca
terminará, pois uma compreensão exata do próprio conceito de cultura significa a compreensão da
própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana”. (LARAIA, Roque de
Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 63).
10
Ibidem, p. 10-11.
11
Para Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo inglês da corrente Evolucionista, “Cultura ou
Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui
conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos
adquiridos pelo homem na condição de membro de sociedade”. (TYLOR, Edward Burnett. A ciência
da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.
69. Sobre a crítica de Clifford Geertz em relação ao referido autor, consultar p. 3 da obra A
interpretação das culturas).
12
Neste trabalho não se pretende detalhar as diferentes contribuições das escolas antropológicas,
limitaremo-nos em apenas citar as mais conhecidas: Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo,
Estruturalismo, Antropologia Interpretativa, Antropologia Pós-Moderna ou Crítica.
6

noção não perca seu conteúdo, torne-se mais esclarecedora e quiçá mais
poderosa.13 Por essas razões, Clifford Geertz expõe que:

a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de


comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem
sido o caso até agora, mas como um conjunto de controle – planos,
receitas, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam
de “programas”) – para governar o comportamento. [...] O homem é
precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais
mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas
14
culturais, para ordenar seu comportamento.

Diferentemente de Tylor, que define cultura utilizando a enumeração de itens,


como um mero descritivismo – e aqui não desvalorizamos seu mérito, pois foi a partir
de sua construção que o conceito se desenvolveu –, a concepção de Geertz torna-
se mais consistente, pois mesmo subjetivamente, define de forma simples e clara a
expressão “cultura”, sem dissecar as “banalidades empíricas do comportamento”.15
Em suma, para Geertz, o conceito antropológico de cultura pode ser designado
como um conjunto de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais,
construídos historicamente, que orientam o comportamento humano, dando
significado à sua experiência.16

Ao contrário do que é comumente pensada, a cultura não é apenas um


detalhe característico que pode marcar um povo, como se o futebol representasse o
brasileiro, a cuia, o gaúcho, o acarajé, o baiano e assim por diante. Conforme
Geertz, a cultura não é simplesmente um acessório, mas um elemento essencial
para a existência humana.17 Os sistemas de símbolos significantes ou padrões
culturais são, de acordo com o autor, uma espécie de “programa” ou um “gabarito”18,
no qual o homem norteia as suas decisões. Ressalta-se que o homem não é
estritamente determinado por sua cultura, como se fôssemos fadados a viver de
uma só forma. A gama de possibilidades de nossas decisões está inserida em uma
espécie de gabarito cultural. Por essa razão, pode-se dizer, por exemplo, que
preferimos escolher comer churrasco de gado à aranha grelhada.

Para Geertz, “um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser,
finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver
milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”.19
Assim, todas as pessoas são capazes de crescer em qualquer cultura, porém tendo
crescido em uma específica, a ela se adaptará, pois a convivência com os símbolos
correspondentes implica na sua absorção e, por conseguinte, no seu modo de vida.
Conforme Geertz:
É por intermédio dos padrões culturais, amontoados ordenados de símbolos
significativos, que o homem encontra sentido nos acontecimentos através
dos quais ele vive. O estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais
padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos

13
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 3 e 28-31.
14
Ibidem, p. 32-33.
15
Ibidem, p. 33.
16
Ibidem, p. 66 e 135.
17
Ibidem, p. 34.
18
Ibidem, p. 124.
19
Ibidem, p. 33.
7

de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de


20
outra forma seria obscuro.

Portanto, pode-se afirmar que a cultura modela o comportamento humano, na


medida em que fornece símbolos, ou seja, diretrizes abrangentes de conduta e até
mesmo tendências e reflexos sutis, os quais orientam a vida do homem. Sem tais
“códigos”, a vida humana seria vazia de sentidos.

1.1.2 Os elementos simbólicos e seus significados

Como a cultura é um conjunto ordenado de sistemas de símbolos


significantes, entendê-la importa assimilar o que são os símbolos. Já foi dito
anteriormente que os símbolos orientam, coordenam e dão sentido ao
comportamento humano. Mas, o que são eles?

Em linhas gerais, “símbolo” é tudo aquilo que carrega em si um significado.


Da mesma forma que a noção de cultura, o conceito de símbolo precisa ser
delimitado. Geertz o especifica, referindo que:

[...] ele é usado para qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou


relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o
“significado” do símbolo [...] são formulações tangíveis de noções,
abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações
concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças. [...] Os
atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas simbólicas,
são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos como
21
o casamento e tão observáveis como a agricultura.

Os significados, segundo Geertz, “só podem ser ‘armazenados’ através de


símbolos”.22 Estes, por sua vez, podem ser expressos por uma atitude, um objeto
concreto, uma relação ou até mesmo uma abstração. A mão abanando em direção a
alguém que está partindo, o calendário, uma obra de arte, a palavra “amor”, uma
música. Todos eles são símbolos carregados de um significado específico, isto é,
que procuram “dizer algo”. Eis alguns exemplos de Geertz:

O número 6, escrito, imaginado, disposto numa fileira de pedras ou indicado


num programa de computador, é um símbolo. A cruz também é um símbolo,
falado, visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze,
dedilhado quando pendurado em uma corrente, e também é um símbolo a
tela “Guernica” ou o pedaço de pedra chamada “churinga”, a palavra
23
“realidade” ou até mesmo o morfema “ing”.

Logo, os significados da cultura de um povo estão sintetizados e


representados em símbolos, construídos pelo homem para que sua vida tenha
sentido. Ressalta-se que os elementos simbólicos não podem ser confundidos com
os atos, objetos e relações, aos quais o homem atribui os significados. Embora os
primeiros confundam-se com os segundos, isto é, uma cruz simbolize a fé cristã, a
cruz por si só não é a fé cristã, mas um objeto que a exprime a partir de sua
utilização por crentes.
20
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 150.
21
Ibidem, p. 67-68.
22
Ibidem, p. 93.
23
Ibidem, p. 68.
8

A interação de um símbolo com outro, dos símbolos entre si, forma um


conjunto de sistemas de símbolos, os quais regulam e modelam as demais relações
em que o homem está inserido.24

Segundo Geertz, os sistemas de símbolos, ou seja, os padrões culturais


desempenham um papel mútuo: são modelos “da” realidade e modelos “para” a
realidade. No sentido de modelo “da” realidade, as estruturas simbólicas modelam
as relações físicas ou não-simbólicas. No segundo caso, no modelo “para” a
realidade, as estruturas simbólicas é que são adaptadas às relações físicas ou não-
simbólicas. Fazendo-se um paralelo à atividade agrícola, no modelo “da” realidade, o
homem elabora uma teoria sobre as condições climáticas, da acidez do solo, da
necessidade de fertilizantes, etc., a fim de obter uma maior produtividade em sua
plantação. Ao mesmo tempo, no modelo “para” a realidade, essa teoria é modelada
de acordo com o desenvolvimento da referida plantação, isto é, de acordo com os
resultados obtidos com as condições climáticas, da acidez do solo e da qualidade
dos fertilizantes utilizados. Destaca-se que os modelos “da” e “para” a realidade não
possuem um caráter cronológico, como se um precedesse o outro. Ao contrário, a
relação entre “da” e “para” a realidade é mútua, paralela, assim como pode ser
observado em relação ao exemplo da agricultura. Ao mesmo tempo em que o
homem elabora sua teoria agrícola, ele observa a natureza, ou seja, a teoria molda o
físico, bem como a teoria se ajusta ao físico. Desse modo, os símbolos assumem
uma dupla função, qual seja, dar sentido à realidade, modelando-a e, igualmente,
modelando a realidade a eles mesmos.25 Nas palavras de Geertz:

Diferentemente dos genes e outras fontes de informação não-simbólicas, os


quais são apenas modelos para, não modelos de, os padrões culturais têm
um aspecto duplo, intrínseco – eles dão significado, isto é, uma forma
conceptual objetiva, à realidade social e psicológica, modelando-se em
26
conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos.

Apenas o homem possui uma ligação entre os modelos “da” e “para” a


realidade. Isto é, diferentemente dos animais, os homens modelam a realidade e
não apenas adaptam-se a ela. Portanto, a partir das observações do mundo em que
está inserido, o homem procura tirar proveito dessas constatações, possibilitando
desenvolver seu aprendizado.27 É o acúmulo desses aprendizados, ou, nas palavras
de Geertz, do “fundo acumulado de símbolos significantes”28, criado historicamente,
que possibilita ao homem enriquecer sua própria cultura. Nesse sentido, os símbolos
representam a essência do comportamento humano. Os símbolos possuem papel
elementar na vida do homem e, por essa razão, os indivíduos têm uma dependência
tão grande em relação a eles.

1.1.3 Pensamento Humano e Diversidade Cultural

Inúmeras pessoas acreditam que as diferenças culturais entre os seres


humanos são produtos da composição genética. Existem teorias que sustentam que
algumas raças e povos possuem atribuições hereditárias. Pode-se recordar, em

24
CRAIK, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.
25
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.
26
Ibidem, p. 69.
27
Ibidem, p. 70.
28
Ibidem, p. 35.
9

tempos não muito distantes, do nazismo, o qual propunha serem superiores os


indivíduos da raça ariana. Além disso, muitas afirmações como estas se tornaram
populares: “índio é preguiçoso”, “negro de canela fina é mais trabalhador do que o
negro de canela grossa” ou “japoneses são mais inteligentes”.29

Da mesma forma, tal problemática pode ser exemplificada pela notícia


veiculada em uma reportagem do programa Globo Repórter. Nela, os cientistas
demonstram que a característica de infidelidade de homens e mulheres estaria
relacionada a determinados genes, ou seja, pessoas com certos atributos genéticos
estariam mais propensas a trair. Nesse sentido, argumentam os cientistas:

A diferença entre fiéis e infiéis pode ter mesmo relação com os hormônios.
Cientistas suecos e americanos estudaram o comportamento sexual de ratos
que formavam pares e descobriram um gene presente no hormônio
vasopressina que, até então, acreditavam controlar apenas a pressão
sanguínea, mas que pode influenciar também nos relacionamentos. [...]
“No ano passado, um grupo de cientistas publicou o primeiro trabalho em uma
variação desse gene que é relevante para o comportamento dos homens. Os
homens que têm a versão curta do gene tendem a ser mais promíscuos e
mais infiéis, e homens que têm a versão longa do gene tendem a ser mais
monogâmicos e a ficar mais vinculados em casa e a cuidar mais dos filhos”,
explica o geneticista Renato Zamora Flores, da Universidade Federal do Rio
30
Grande do Sul (UFRGS).

Como é de se notar, a discussão do poder dos genes sobre o comportamento


humano é ainda muito polêmica. Negar que a composição genética influencia os
seres humanos soaria irrazoável. Contudo, a Antropologia, através de pesquisas,
desmistifica a concepção de que tão-somente os genes são os elementos essenciais
para a distribuição dos comportamentos. Assim, as diferenças genéticas não
determinariam as diferenças culturais, de modo que, como no exemplo citado,
homens comportar-se-iam diferentemente das mulheres não em razão de seus
hormônios, mas porque a cultura lhes fornece uma gama de possibilidades de
comportamentos e de identificações distintos.31

Por outro lado, há quem pense que a diversidade cultural é resultante da


geografia. O tipo de clima, vegetação e outras condições naturais específicas do
local onde um povo se instalou interfeririam fortemente na vida desse grupo
humano, conduzindo-o de modo peculiar. Até mesmo condicionariam seu progresso.
Essa doutrina surgiu na antigüidade, mas se desenvolveu e tornou-se conhecida no
final do século XIX e início do século XX, sendo refutada por antropólogos como
Franz Boas. Para ele, os fatores geográficos exercem influência limitada sobre as
culturas. Tal doutrina também dificilmente responderia por que alguns povos com

29
Baseado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008, p. 17.
30
REPORTAGEM EXIBIDA no dia 31 de julho de 2009 na rede Globo, às 22h30min. Disponível em:
<http://g1.globo.com/globoreporter/0,,MUL1250884-16619,00-
ESTUDO+DOS+BRASILEIROS+CASADOS+TRAEM.html>. Acesso em: 09 ago. 2009.
31
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008, p. 19-20.
10

condições geográficas muitíssimo semelhantes e até mesmo em distâncias próximas


desenvolveram suas culturas de maneira tão discrepantes.32

Portanto, nem o determinismo biológico, nem o geográfico são suficientes para


justificar a diversidade cultural. Claramente, o homem sofre influência de sua genética e
do meio ambiente onde vive, porém não é determinado por esses aspectos, como se
agisse com um caráter meramente receptivo a eles. Ambos são limitados.33

A perspectiva tradicional sobre a evolução biológica e cultural do homem


refere que primeiramente o homem desenvolveu seu aparato físico para, somente
após a finalização desse estágio, a partir de um “momento mágico”, começar a
produzir e transmitir elementos culturais.34

Em oposição, Geertz afirma que a cultura sempre esteve presente na


evolução do homem, sugerindo “não existir o que chamamos de natureza humana
independente de cultura”.35 Assim, o autor contesta a teoria do “momento mágico”
ou do “ponto crítico”, julgando ser incorreta a tese de que o desenvolvimento total da
biologia humana seria pré-requisito para a capacidade de acumulação cultural.36 De
acordo com Geertz:

E torna-se evidente, de forma ainda mais crucial, que a acumulação cultural


não só já estava encaminhada muito antes de cessar o desenvolvimento
orgânico, mas que tal acumulação certamente desempenhou um papel ativo
moldando os estágios finais desse desenvolvimento [...] a ferramenta de pedra
ou o machado rústico, em cujo rastro parece ter surgido não apenas uma
estatura mais ereta, uma dentição reduzida e uma mão com domínio do
37
polegar, mas a própria extensão do cérebro humano até seu tamanho atual.

Observa o autor, ainda, que não é possível traçar uma linha delimitando o
homem “não-enculturado” do homem “enculturado”38, como se o próprio homem
tivesse subitamente se promovido de “coronel” a “general-de-brigada”39. A evolução
biológica deu-se de forma gradual juntamente com o acúmulo cultural, ambos
influenciando-se mutuamente.40 Dessa forma, a cultura foi ingrediente essencial para

32
Segundo Franz Boas: “As condições ambientais podem estimular as atividades culturais existentes,
mas elas não têm força criativa. O mais fértil solo não cria a agricultura; as águas navegáveis não
criam a navegação; um abundante suprimento de madeira não produz edificações de madeira. Mas
onde quer que exista agricultura, arte da navegação e arquitetura, todas essas atividades serão
estimuladas e parcialmente moldadas segundo as condições geográficas”. Logo adiante o autor
complementa: “Desse modo, é infrutífero tentar explicar a cultura em termos geográficos [...]
Entretanto, as relações espaciais dão apenas a oportunidade para o contato; os processos são
culturais e não podem ser reduzidos a termos geográficos”. (FRANZ, Boas. Antropologia cultural. 3.
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 61-62; BOAS apud LARAIA, Roque de Barros. Cultura:
um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21-23).
33
Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.
24.
34
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 34.
35
Ibidem, p. 35.
36
Ibidem, p. 45 e 60.
37
WASHBURN, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 49.
38
O significado que o autor imprime à palavra “enculturado” refere-se ao homem ser capaz de
produzir e acumular cultura.
39
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 47.
40
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 46-47. Nesse sentido,
observa Laplantine que o inato (biológico) e o adquirido (aspectos culturais) interagem
11

a formação do homem, influenciando até mesmo seu aparato físico, mas


principalmente a organização e refinamento do sistema nervoso central. Ressalta-se
que o homem, nos seus primórdios, não havia ainda desenvolvido uma cultura no
sentido de um conjunto de sistemas de símbolos significantes ordenados, o que não
impede afirmar que já existiam resquícios culturais capazes de orientar o
comportamento humano e, conseqüentemente, torná-lo cada vez mais dependente
deles.41

No exemplo bem formulado de Geertz, sem cultura provavelmente os


personagens da obra de William Golding, “O Senhor das Moscas”, não seriam
selvagens inteligentes, “seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos
instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros
casos psiquiátricos”.42

Por conseguinte, a cultura interferiu e pode-se afirmar que continua


interferindo na evolução da mente humana. Uma constatação recente é a da
provável modificação da percepção cerebral provocada pela revolução dos meios de
comunicação. Os acessos à internet estimulam os circuitos cerebrais e ativam o
córtex pré-frontal, possibilitando aos indivíduos tomarem decisões rápidas diante de
um grande volume de informações complexas.43

Assim, segundo Geertz, como um ser inacabado, o homem é complementado


pela sua cultura, por suas particularidades culturais.44

Um pássaro, após nascer, ensaia seus primeiros vôos incertos, busca seu
alimento, acomoda fios, gravetos e barro para a construção de seu ninho e acasala-
se basicamente através de seus instintos – os comandos de seus genes – e pelos
estímulos externos, os quais ordenam suas ações para desempenhar tais
atividades. O homem, por sua vez, para escolher sua companheira ou seu círculo de
amizades, selecionar o alimento que lhe apetece e construir sua residência
necessita muito mais das chamadas “fontes extrínsecas de informação” do que de
“fontes intrínsecas”.45 As fontes intrínsecas de informação são os nossos genes. Já,
as fontes extrínsecas são os fatores externos ao corpo do ser humano, os quais não
possuem ligação direta com os genes, ou seja, são os padrões culturais.46 O
homem, ao contrário do pássaro e de outros animais, se apóia muito mais em fontes
não genéticas para se desenvolver. Nesse sentido, Geertz aduz que:

Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de
funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o
preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa
47
cultura.

continuadamente. (LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.


17).
41
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 50.
42
Ibidem, p. 35.
43
LUZ, Lia. A internet transforma o seu cérebro. Veja, São Paulo, edição 2125, ano 42, n. 32, p. 96-
99, 12 ago. 2009.
44
GEERTZ, op. cit., p. 36.
45
GALENTER; GERSTENHABER, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: LTC, 2008, p. 121.
46
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36, 68, 121-124.
47
Ibidem, p. 36.
12

[...] Para construir um dique, o castor precisa apenas de um local apropriado


e de materiais adequados – seu modo de agir é modelado por sua fisiologia.
O homem, porém, cujos genes silenciam sobre o assunto das construções,
precisa também de uma concepção do que seja construir um dique, uma
concepção que ele só pode adquirir de uma fonte simbólica – um diagrama,
um livro-texto, uma lição por parte de alguém que já sabe como os diques
são construídos, ou então através da manipulação de elementos gráficos ou
lingüísticos, de forma a atingir ele mesmo uma concepção do que sejam
48
diques e de como construí-los.

A capacidade humana provém da interação das fontes intrínsecas e das


fontes extrínsecas de informação. O aparato genético determina frouxamente o ser
humano, deixando lacunas na experiência humana a serem preenchidas pelos
padrões culturais. Dessa forma, as fontes extrínsecas de informação, isto é, os
sistemas de símbolos significantes, especificam o comportamento humano.49

Não há dúvidas que possuímos a capacidade de sorrir. No entanto, os


sorrisos irônico, envergonhado, constrangido e tímido são essencialmente culturais.
Como o sorriso, outros símbolos são criados pelo homem. A capacidade de criar
símbolos e compreendê-los é que distingue o homem dos animais.50 Além disso, o
ser humano necessita aprender e continuar aprendendo.51

Ora, o pensamento humano não é uma ocorrência enigmática ou misteriosa,


na qual não possamos descrever ou interpretar. Segundo Geertz, o homem pensa,
apoiando-se em símbolos elaborados historicamente por sua cultura, os quais dão
sentido à sua experiência.52 E isto pode ser descrito pela Antropologia. Em
conformidade com Geertz:

Para tomar nossas decisões, precisamos saber como nos sentimos a


respeito das coisas; para saber como nos sentimos a respeito das coisas
53
precisamos de imagens públicas [...] Para obter a informação adicional
necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de
54
fontes culturais – o fundo acumulado de símbolos significantes. Tornar-se
humano é tornar-se individual, e nós nos tornarmos individuais sob a
direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados
historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção
55
às nossas vidas. Os padrões culturais não são gerais, mas específicos.

Assim, a cultura é o ingrediente essencial para a orientação do raciocínio;


como antes referido, é um “gabarito”. Um indivíduo, ao refletir sobre o instituto do
casamento, por exemplo, raciocina de acordo com os padrões de sua cultura, isto é,
na forma como o casamento é realizado. Por esse motivo, muitos ocidentais
estranham o modo como é procedido o casamento muçulmano no Oriente Médio.
De um lado a monogamia, de outro, a poligamia. Seus sistemas ordenados de

48
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.
49
Ibidem, p. 33, 36, 69, 124.
50
Ibidem, p. 48.
51
Ibidem, p. 58.
52
Ibidem, p. 150, 33, 36.
53
Ibidem, p. 59-60.
54
Ibidem, p. 35.
55
Ibidem, p. 37.
13

símbolos são diferentes e, assim, estranhos um ao outro.56 Nesse sentido, nas


simples palavras de Roque de Barros Laraia, percebe-se que “a cultura condiciona a
visão de mundo do homem”.57

Concordando com Gilbert Ryle, Geertz afirma que o pensamento humano é


primeiramente um ato público e secundariamente um ato privado. É basicamente um
ato público, pois os indivíduos manipulam sua experiência a partir dos símbolos e
seus significados, os quais são públicos. É a partir deles que particularmente o
indivíduo constrói seu pensamento e toma suas decisões.58 Conforme Geertz:

os símbolos [...] são construídos historicamente, mantidos socialmente e


59
aplicados individualmente
O sistema nervoso humano depende, inevitavelmente, da acessibilidade a
estruturas simbólicas públicas para construir seus próprios padrões de
atividade autônoma, contínua. Isso, por sua vez, significa que o pensamento
humano é, basicamente, um ato aberto conduzido em termos de materiais
60
objetivos da cultura comum, e só secundariamente um assunto privado.

Portanto, o acesso às estruturas simbólicas permite ao homem guiar seu


pensamento, deliberar sobre as suas ações e determinar a sua própria vida.
Logicamente, por uma cultura abranger uma multiplicidade de padrões culturais, os
indivíduos não participam ou, então, não compreendem todos eles. Ainda assim,
para que sua vida torne-se viável em sociedade, o homem precisa dominar o mínimo
de símbolos significantes, pois são eles que vinculam os indivíduos, tornam possível
a sua existência.61

Igualmente, nesse contexto, cumpre salientar que a cultura é dinâmica. Isto é,


segundo Roque de Barros Laraia, as características culturais não são imutáveis,
mas sofrem alterações dentro da própria cultura, tendo em vista, por exemplo, os
acontecimentos históricos de seu povo e, também, sofrem alterações externas, pela
interação com outros sistemas culturais.62 Diante de um mundo globalizado, torna-se
fácil identificar essas modificações. O Brasil, por exemplo, através do contato com
outras nações, importou palavras tais como “internet”, “hambúrguer”, “buffet”, entre
outras. O indígena utiliza o celular e não deixa de ser índio. Nós aprendemos a falar
francês e comemos sushi e, mesmo assim, não deixamos de ser brasileiros. Enfim,
nenhuma cultura é estática, ela modifica-se ao longo do tempo pelo tráfico de
símbolos significantes.

56
Evidentemente existem muitos casais poligâmicos no Ocidente, como ocorre em algumas regiões
nos Estados Unidos. No entanto, de uma forma geral, a prática mais comum é de que as uniões
entre pessoas sejam monogâmicas. Destaca-se também que a religião exerce grande influência
nesse aspecto.
57
Para outros exemplos sobre como a cultura condiciona a visão de mundo do homem, consultar:
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008, p. 67-74.
58
RYLE, Gilbert, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p.
121, 150-151.
59
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 151.
60
Ibidem, p. 61.
61
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008, p. 82.
62
Ibidem, p. 94-101.
14

Diante do exposto, fica mais claro agora pensar que a diversidade cultural não
é produto dos fatores genéticos ou, então, da localização em que os grupos
humanos se desenvolveram. A diversidade cultural é resultado dos diferentes tipos
de interação do homem com o mundo. As relações específicas de um povo, tendo
em vista sua história, a maneira de como criaram seus símbolos, classificaram seus
elementos e organizaram suas experiências resultaram em conjuntos de sistemas
de símbolos significantes diferenciados.63 Nesse sentido, os homens foram ao
mesmo tempo produtos e produtores de sua cultura e, portanto, essa mútua
interação, através do processo de aprendizagem (por meio da linguagem), tornou
viável a construção de diferentes culturas, as quais projetaram diferentes sentidos à
vida dos seres humanos.

Em suma, na perspectiva de Clifford Geertz, observa-se que a cultura, como


um conjunto ordenado de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais,
construídos historicamente, é elemento essencial para o desenvolvimento do
homem. Ela funciona como uma espécie de “gabarito” ou “programa”, no qual os
indivíduos norteiam suas vidas, fazendo-os capazes de tomar suas próprias
decisões. Dito de outro modo, o homem está atrelado a esta “teia”, pois são os
símbolos e seus respectivos significados que imprimem sentido e razão à sua
própria existência. É por esse motivo que Geertz salienta: “sem os homens
certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito
significativamente, sem cultura não haveria homens”.64 A cultura é fundamental para
a formação do ser humano.

Assim, o que distingue o homem dos animais é a cultura, pois somente ele
tem o poder de criar e assimilar os símbolos. Ademais, o que distingue os homens
entre si não é a sua composição genética ou a geografia, mas sim a diferença da
mútua interação entre os modelos “da” e “para” a realidade que cada povo percebeu
e elaborou de maneira singular. Tal processo possibilitou, portanto, construções
diversificadas de modelos simbólicos, refletindo nas diferentes visões de mundo que
cada cultura possui e orienta seus indivíduos.

1.2 ETNOCENTRISMO

Quando uma cultura se defronta com outra é natural que deste encontro
desperte um estranhamento. Isso porque, como já examinado, cada cultura imprime
e entende de maneira peculiar os significados dos seus símbolos, os quais nem
sempre coincidem com o conteúdo de outros universos simbólicos existentes. Não
obstante, é possível notar que muitas vezes atribuímos os nossos próprios
significados aos símbolos de outras culturas, ou seja, emitimos juízos valorativos a
partir de nossa visão de mundo e nossa experiência em relação à diferentes culturas
(o “outro”). Assim, tal estranhamento traduz nossa dificuldade em pensar o “outro”
em seus próprios valores. Esse fenômeno é explicado por Everardo Rocha do
seguinte modo:

63
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,
1987, p. 24.
64
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36.
15

Etnocentrismo é uma visão do mundo com a qual tomamos nosso próprio


grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos
pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a
existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de
pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza,
65
medo, hostilidade, etc.

Pode-se afirmar que a visão sobre o “outro” a partir das concepções do “eu”
esteve presente em toda a história da humanidade. Esse aspecto pode ser
principalmente verificado na época dos descobrimentos, isto é, quando o
desenvolvimento da navegação permitiu os primeiros contatos entre diferentes
povos. Talvez, esses foram os momentos marcantes para se começar a pensar
sobre a diferença. Referindo-se aos índios do Brasil, o escrivão Pero Vaz de
Caminha descreve ao Rei de Portugal: “Assim, quando o batel chegou à foz do rio
estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que
lhes cobrisse suas vergonhas”.66 Essa, dentre outras passagens, revela a
perplexidade dos portugueses com a imagem dos indígenas; em outras palavras:
como eles não se vestem como nós? Por que não cobrem suas “vergonhas”?67

Pero Vaz de Caminha também escreve a Dom Manuel:

E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua


fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza,
fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual praza Nosso Senhor
que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de boa simplicidade e
68
gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar. E,
portanto, Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar na santa fé católica,
69
deve intervir em sua salvação.

Igualmente, os trechos citados manifestam a visão etnocêntrica do grupo do


“eu” em comparação ao grupo do “outro”. Os portugueses, ao terem a pretensão de
incorporar a fé cristã à cultura indígena, a fim de salvar os “bons selvagens” e torná-
los mais “humanos”, consideraram a sua religião como a única ideal. Nesse sentido,
o etnocentrismo pode ser percebido quando o “eu” eleva a sua visão e as suas
características como superiores, mais corretas e mais naturais. Já o “outro” é visto
como uma expressão do absurdo, do frágil ou do ininteligível.70

O etnocentrismo é um fenômeno que está presente em todas as sociedades e


que pode ser considerado natural, uma vez que ele decorre do choque entre as
culturas, ou seja, da constatação das diferenças.71 Além disso, é um fato natural e/ou
comum, pois a diferença do “outro” parece ameaçar a própria identidade cultural.
Assim, o etnocentrismo até certa medida torna-se necessário, já que ele funciona
como uma espécie de autodefesa ou força capaz de revigorar os elementos culturais

65
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 7.
66
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao rei Dom Manuel. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 9.
67
Eduardo Bueno traz à tona mais registros sobre as impressões entre os indígenas brasileiros e os
navegantes lusos: BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998,
v. 1, p. 94-102.
68
CAMINHA, op. cit., p. 46.
69
Ibidem, p. 47.
70
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.
71
Ibidem, p. 8; LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989, p. 333.
16

de uma coletividade, afirmando e assegurando a identidade de um povo. Diante disso,


apresenta-se o seguinte questionamento: o que seria de uma cultura se os indivíduos
achassem os seus elementos inferiores, abdicando de sua própria identidade para
emergir em outra cultura? Por essa razão, pode-se dizer que o sentimento de
superioridade que caracteriza a visão etnocêntrica, observando-se alguns limites, é
um fator positivo para o desenvolvimento de uma cultura.72

O etnocentrismo pode assumir várias feições, desde formas sutis, como o


estranhamento diante dos diferentes modos de viver e pensar, e também formas
extremas, como a intolerância cultural. Por conseguinte, ele é até certa medida
aceitável, pois sua força pode tornar-se perigosa, sendo utilizada pura e
simplesmente para menosprezar e reprimir o “outro”, negando-lhe condições para
apresentar a si mesmo.73 Em relação à dificuldade dos homens em encarar a
diversidade das culturas, Lévi-Strauss comenta que:

A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes


mesmo da aldeia; a tal ponto, que um grande número de populações ditas
primitivas se autodesignam com um nome que significa “os homens” (ou às
vezes – digamo-lo com mais discrição? – os “bons”, os “excelentes”, os
“completos”), implicando assim que as outras tribos, grupos, ou aldeias não
participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são, quando
muito, compostos de “maus”, de “malvados”, de “macacos da terra” ou de
“ovos de piolho”. Chega-se freqüentemente a privar o estrangeiro deste
74
último grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou uma “aparição”.

O próprio desenvolvimento da ciência antropológica é marcado por idéias de


caráter etnocêntrico. Os pensadores da corrente evolucionista75, fortemente
influenciados pela obra “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, acreditavam
que a diversidade cultural poderia ser explicada em virtude das diferentes posições
que os povos ocupariam nos denominados graus de evolução da humanidade.
Segundo eles, todas as culturas enfrentariam obrigatoriamente três estágios de
desenvolvimento: selvageria, barbárie e civilização. Assim, o parâmetro de
“civilizado” para o pesquisador era, por exemplo, a existência de elementos
tecnológicos em uma cultura. Contudo, o que é tecnologia? O pesquisador baseava-
se na sua noção do que é tecnológico, esquecendo-se que esta sequer existia em
outras culturas. Conforme as críticas dirigidas a essa corrente, o erro do
evolucionismo estaria em comparar e classificar as culturas de acordo com os
critérios da sociedade do pesquisador, ignorando o contexto no qual os elementos
da cultura analisada estariam inseridos. Porém, é de se ressaltar que o mérito do
evolucionismo está em, ao menos, ter se proposto a refletir sobre o “outro”.76

72
SIMON, apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p.
242-243; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.
73
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 14; CUCHE,
Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 48 e 243.
74
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1989, p. 334.
75
Edward Burnett Tylor, James Frazer e Lewis Morgan foram os autores expoentes do Evolucionismo
Cultural.
76
Sobre a corrente evolucionista: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia
Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 89-101; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é
etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 25-36.
17

No plano legislativo brasileiro, igualmente, essas idéias podem ser


observadas. O antigo Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais, criado em 1910 pelo Decreto n° 8.072, por exemplo, tinha
como principal finalidade, apesar de aparentes benefícios, transformar o índio em
um trabalhador rural, a fim de que ele pudesse “progredir” ao estágio “civilizado” da
cultura dominante nacional. Em outras palavras, os indígenas eram considerados
como um atraso ao desenvolvimento. O objetivo do projeto era o de integrar e
assimilar de forma pacífica a cultura indígena pela cultura branca.77

Além disso, até pouco tempo o indígena não era considerado plenamente
capaz para exercer pessoalmente todos os atos da vida civil. O artigo 6° do Código
Civil de 1916 arrolava os indígenas como relativamente capazes, ao lado dos
maiores de 16 e menores de 21 anos e dos pródigos. A imagem do índio “não
civilizado” como um ser infantil, que necessita da tutela do Estado, pode ser notada
no parágrafo único do referido artigo.78
É de se ressaltar também que, ainda hoje, o índio é visto como um
personagem do folclore brasileiro que já deveria ter sumido da história do país.79
Essa posição etnocêntrica em relação às comunidades indígenas pode ser
visualizada através do trecho do antropólogo Julio Cezar Melatti:

Os brancos que vivem próximos das aldeias indígenas dedicam-se à coleta


de borracha ou de castanha, à criação de gado, à agricultura e outras
atividades, segundo as diferentes regiões. Sejam grandes empresários,
trabalhadores rurais, camponeses, ou garimpeiros, estão sempre a disputar
o território dos índios. O látex, a castanha, o pasto natural, a terra boa para
a lavoura, a caça acham-se muitas vezes dentro da área de ação de
sociedades indígenas. [...] os vizinhos das terras dos índios afirmam que
eles são preguiçosos, cruéis, sujos. Ao chamá-los de preguiçosos,
associam a isto a idéia de que os índios não aproveitam bem suas terras,
que estas produziriam muito mais se pertencessem aos brancos; tal
acusação serve também para justificar os salários baixos que dão aos
índios ou em outras regiões onde há excesso de mão-de-obra, para lhes

77
BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de uma
hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em:
<http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/Revista-Eletronica/2007/Dissertacao-de-Mestrado-sobre-
direitos-indigenas>. Acesso em: 15 jul. 2009.
78
O artigo 6° do Código Civil de 1916 dispõe: São in capazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à
maneira de os exercer: I - os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts. 154 a
156); II - os pródigos; III - os silvícolas. Parágrafo único: Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar,
estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à
civilização do País. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm>. Acesso em: 14
set. 2009; BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de
uma hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em:
<http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/Revista-Eletronica/2007/Dissertacao-de-Mestrado-sobre-
direitos-indigenas>. Acesso em: 15 jul. 2009.
79
Em relação à visão sobre os indígenas, destacamos o interessante trecho de Eduardo Viveiros de
Castro: “A impressão que tenho é que o ‘Brasil’ até bem pouco não queria saber de índio, e sempre
morreu de medo de ser associado, ‘lá fora’, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa
há muito tempo e virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios
continuam aí, e vão continuar. E, como vemos, eles começam devagarzinho a ser admitidos no
Brasil oficial-midiático, agora que foram legitimados na metrópole. A Amazônia precisou passar
pela Europa para se tornar visível do litoral do Brasil. Antes assim”. (SZTUTMAN, Renato.
Encontros Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 85).
18

recusar trabalho. Ao chamá-los de cruéis, justificam a crueldade que usam


80
para com eles. Não raro se ouve dizer que o índio deve ser tratado a bala.

A presente passagem demonstra como o grupo do “eu” constrói uma imagem


distorcida do “outro”. Ao considerarmos como critério a nossa sociedade
(desenvolvida, com elevado acúmulo de reservas), concebemos as comunidades
indígenas como atrasadas, projetando, por exemplo, seu tipo de economia (de
subsistência) como sinônimo de miséria e pobreza. Dito de outro modo, esquecemos
o contexto no qual tais comunidades estão inseridas.81

Portanto, diante dos exemplos citados, percebe-se a necessidade de


superação do pensamento etnocêntrico, caso não queiramos cair erros teóricos.
Muito embora seja uma tarefa difícil, ao tentar analisar e compreender o “outro”, é
importante exercitarmos o desprendimento das concepções da nossa própria
cultura, atividade que é possível através da relativização.

1.3 RELATIVISMO CULTURAL

O relativismo cultural é um tema extremamente polêmico e, por essa razão,


não é surpreendente que sobre ele suscitem inúmeras discussões.82

Conforme afirma Denys Cuche, o relativismo cultural é compreendido de três


maneiras distintas: (a) como uma teoria, na qual é sustentado que cada cultura
forma uma entidade separada das demais, cujas conseqüências mais radicais
seriam a impossibilidade de comparação e de diálogo entre as outras culturas; (b)
como um princípio ético, que exige uma absoluta neutralidade e respeito em relação
à diversidade das culturas; (c) como um princípio metodológico, que privilegia uma
abordagem compreensiva da diversidade, tendo-se em vista a análise completa do
sistema simbólico das culturas.83

Embora existam essas três concepções sobre o relativismo cultural, para


Denys Cuche, apenas a última é válida. Isso, porque a primeira noção não pode ser
comprovada cientificamente, ou seja, não é razoável pensar que as diferentes
culturas não podem ser comparadas entre si; e a segunda – da neutralidade ética –,
porque serve, muitas vezes, como uma “máscara do desprezo”.84

Portanto, segundo o autor, o relativismo cultural deve ser considerado como


um princípio metodológico. Nesse sentido:

Recorrer ao relativismo cultural é postular que todo o conjunto cultural tem


uma tendência para a coerência e certa autonomia simbólica que lhe

80
MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 255-256. Neste capítulo da
obra, Melatti expõe também outras visões de como os índios são julgados: do ponto de vista
romântico, da mentalidade estatística, burocrática ou empresarial. (Ibidem, p. 256-261).
81
SAHLINS, apud ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense,
1984, p. 79-80.
82
Cumpre destacar que foi Franz Boas (1858-1942) o responsável pela concepção antropológica do
relativismo cultural. Apesar de não ter cunhado a expressão, em seus textos é notável a idéia de
que as culturas devem ser analisadas em suas particularidades. A primeira pessoa a utilizar a
expressão “relativismo cultural” foi Melville Herskovits nos anos 1930. (CUCHE, Denys. A noção de
cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 44 e 240).
83
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 239-241.
84
Ibidem, p. 239-240.
19

confere seu caráter original singular; e que não se pode analisar um traço
cultural independentemente do sistema cultural ao qual ele pertence e que
lhe dá sentido. Isto quer dizer estudar todas as culturas, quaisquer que
sejam a priori, sem compará-las e ou “medi-las” prematuramente em relação
85
a outras culturas.

Assim, o relativismo cultural não pode estar associado à trivial idéia de que
“tudo é variável” ou “tudo deve ser aceito”, mas a de que os fatores de uma cultura
necessitam ser primeiramente compreendidos em seus próprios termos, ou seja, a
partir da lógica do sistema simbólico dessa mesma cultura e, vale dizer, não a partir
da lógica do sistema do observador.86

Na mesma linha, Everardo Rocha destaca que relativizar é “não transformar a


diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na
dimensão de riqueza por ser diferença”.87 Dessa forma, ao observar o “outro”, as
concepções do grupo do “eu” não podem ser colocadas como o centro de tudo, ou
seja, não podem ser absolutizadas ou universalizadas. Ao contrário, é importante
que o “outro” seja analisado de acordo com os seus elementos, as suas
características e os seus próprios problemas.88 Ademais, ressalta o autor que o
relativismo é um processo complicado, uma vez que devemos perder de vista
nossas “certezas” etnocêntricas. Todavia, a postura relativizadora permite a reflexão
sobre o “outro” e, até mesmo, a transformação da própria sociedade do “eu”.89

Em relação à postura de reflexão sobre o “outro”, Roberto DaMatta refere que


essa atividade consiste basicamente no movimento de “transformar o exótico no
familiar e/ou transformar o familiar em exótico”.90 Eis o processo relativizador.

Na transformação do exótico em familiar, pode-se afirmar que o pesquisador


busca entender o universo de significação do sistema do “outro”, familiarizando-se,
ou seja, conhecendo melhor os aspectos culturais que outrora pareciam exóticos,
incompreensíveis e obscuros. O movimento inverso, a transformação do familiar em
exótico, refere-se ao fato de o pesquisador descobrir o “outro” na sua própria cultura.
Em outras palavras, trata-se de identificar e estranhar os elementos familiares que
estão “petrificados” em nós, ou seja, de realizar um movimento de reflexão sobre
nós mesmos a partir dessa diferença.91 É justamente essa mútua relação entre o
familiar e o exótico que proporciona a reflexão e, por conseguinte, o diálogo.92

85
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 241.
86
Sobre esse aspecto, Roque de Barros Laraia ressalta que cada cultura tem a sua lógica própria. A
transposição da lógica de um sistema cultural para outro caracteriza um ato etnocêntrico. Por essa
razão, um traço cultural deve ser observado em conformidade com a coerência de seu próprio
sistema cultural. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 87 e 91).
87
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 20.
88
Ibidem, p. 46.
89
Ibidem, p. 54, 73 e 93.
90
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,
1987, p. 157.
91
Ibidem, p. 157-158.
92
Ibidem, p. 26-27, 158 e 162.
20

Clifford Geertz, diante desse polêmico tema, assume a posição Anti Anti-
Relativista.93 Esta expressão quer indicar que o autor não possui a pretensão de
defender o relativismo cultural, mas a de atacar o medo infundado que é mantido em
relação a ele. Assim, a dupla negativa [Anti Anti-] refere-se, estritamente, a sua
oposição ao pensamento anti-relativista.94 Tal pensamento, para Geertz, além de
atribuir conseqüências infundadas ao relativismo cultural, como, por exemplo, o
niilismo (“ou tudo ou nada”) e o subjetivismo (“tudo depende da maneira como você
vê as coisas”), dá uma solução errada a este problema antropológico, qual seja, a de
que precisamos encontrar um aspecto (imutável) do ser humano que esteja acima
da cultura, como a moral ou o conhecimento (a Razão), para, só assim, afastar os
supostos fantasmas da abordagem relativista.95 Todavia, mesmo que Geertz rejeite
a posição anti-relativista, ele não quer assumir uma posição relativista como uma
teoria antropológica. Nesse sentido, ele destaca que a inclinação relativista dos
antropológicos recebe impulsos não tanto das teorias construídas a partir dos dados
antropológicos (costumes, vestígios arqueológicos, crânios, léxicos, etc.), mas, sim,
a partir destes mesmos dados.96 Ou seja, o alerta dos relativistas sobre o perigo de
nossas concepções teóricas e atitudes práticas estarem demasiadamente
arraigadas em nossa cultura e, assim, impossibilitarem-nos de entrar em um diálogo
autêntico com outras culturas, não precisa ser erigido ao status de uma teoria,
porque a questão encontra-se em como viver com estes dados antropológicos, que
colocam em questão, constantemente, a cultura na qual advém o antropólogo.97

Logo, retomando a idéia central do presente capítulo, pode-se afirmar que o


relativismo cultural é um princípio metodológico ou, ainda, um exercício no qual se
busca compreender como os povos deram e dão sentidos diversos aos modelos “da”
e “para” a realidade. Relativizar significa abandonar a forma radical da visão
etnocêntrica, na medida em que se busca interpretar a outra cultura a partir de seu
próprio universo de significação.

2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO-


CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

Antes mesmo de adentrarmos na discussão propriamente dita do Projeto de


Lei n° 1.057/2007, objeto deste trabalho, teceremos alguns breves delineamentos
sobre a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem
jurídico-constitucional brasileira, eis que ela está diretamente relacionada à
justificação do referido projeto de lei. Cumpre ressaltar também que não nos
deteremos a examinar a totalidade das normas que estão relacionadas ao problema
proposto em nosso tema, pois isto envolveria uma análise teórico-jurídica muito mais
ampla do que a prevista, como, por exemplo, a análise da relação entre os direitos
previstos em convenções e declarações internacionais e a respectiva abertura
material do catálogo dos direitos fundamentais da Constituição Federal, bem como
as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, limitar-nos-

93
GEERTZ, Clifford. Anti Anti-Relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001, p. 47-67.
94
Ibidem, p. 47.
95
Ibidem, p. 61-63.
96
Ibidem, p. 49.
97
Ibidem, p. 49 e 65.

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