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“Ler Geertz”, observou Ronald Walter, ao escrever sobre historiadores,

“parece ser uma das poucas coisas compartilhadas por pessoas que
raramente lêem uns aos outros”, e em geral, eles não liam seus trabalhos
para aprender sobre a Indonésia ou o Marrocos, mas para obter ideias.

Adam Kuper. Cultura. A visão dos Antropólogos, p. 156.

Clifford Geertz, antropólogo norte-americano, colocou em ação, afirmou Adam Kuper, uma

nova ideia de cultura. Reagindo à antropologia estruturalista de Levi-Strauss, Geertz é considerado

o principal representante e mesmo o fundador da antropologia interpretativa. Influenciado pelas

ideias de Max Weber, Talcott Parsons, do filósofo francês Paul Ricoeur e do crítico literário

Kenneth Burke, destacou que a noção de cultura, base da antropologia, deveria ser analisada não

através de uma ciência experimental em busca de leis universais, mas por meio de uma ciência

interpretativa em busca de significados. À concepção positiva de cultura, Geertz sobrepôs um

conceito semiótico. (Thick description, p.5) Deste modo, enquanto para Levi-Strauss a cultura se

apresentava como um código a ser decifrado, derivado, em última instância, de uma estrutura lógica

comum – o espírito humano; Geertz a definiu como uma estrutura de significados, incorporada e

veiculada através de símbolos, entendidos como qualquer objeto, ato, evento, qualidade ou relação

que serve de veículo a um conceito/significado. Ao antropólogo, afirmava, importa compreender

não o estatuto ontológico do comportamento humano, mas o seu significado. O livro Interpretação

das culturas, publicado originalmente em 1973, representa este esforço em defesa de uma

abordagem interpretativa.

A antropologia interpretativa proposta por Geertz elevou ao primeiro plano a noção de

cultura e, com ela, a de religião, tema do capítulo “A religião como sistema cultural”, publicado

originalmente em 1965. A preocupação do antropólogo norte-americano com o tema não era nova.

Tendo como foco as sociedades asiáticas e do norte da África, os seus primeiros estudos já se

voltavam para o campo da religião. Publicado na década de 1960, The Religion of Java procurava,

na esteira do projeto parsoniano/weberiano, compreender o papel das ideias religiosas no

desenvolvimento político e econômico da região. Inseridos no pós II Guerra Mundial e no contexto


de independência das colônias asiáticas e africanas, os primeiros estudos de Geertz traziam a marca

de uma lógica segundo a qual “a sociologia, aliada à psicologia, antropologia, história e estatística,

parecia prestes a salvar o mundo do velho e irracional jugo da religião e do tribalismo” (John

Updike apud Adam Kuper, p. 111). Cabia a estes profissionais remover os obstáculos culturais que

“impediam” a realização do progresso.

Embora The religion of Java e “Religião como sistema cultural” compartilhem a mesma

preocupação com a religião e, às vezes, o mesmo recorte espacial – Java –, a abordagem não era

plenamente a mesma. Deslocou se do behaviorismo do primeiro para a interpretação no segundo; da

preocupação prioritária acerca do relacionamento entre os sistemas simbólicos e as estruturas

políticas e psicológicas para o da compreensão dos significados incorporados nos símbolos. (p.142)

Embora, é importante ressaltar, a primeira dimensão de modo algum esteja ausente. Afinal, como

ele mesmo destacou ao final de “Religião como sistema cultural”, o estudo antropológico da

religião deve ser composto por duas etapas: primeiro, uma análise dos sistemas de significados

incorporados nos símbolos. Segundo, uma análise teórica da ação simbólica de modo a

compreender o relacionamento entre os sistemas de significados e os processos sócio-estruturais e

psicológicos mais amplos (ver p.142)

Sendo assim, reagindo à estagnação e ao academicismo que, segundo ele, predominavam

nos trabalhos antropológicos sobre a religião, Geertz lançou uma nova proposta de análise

antropológica sobre o tema. Em seu entender, a religião deveria ser analisada a partir de sua

dimensão cultural. Noutras palavras, a partir dos seus sistemas de significação. Para Geertz, a

religião é um sistema de símbolos que formula conceitos de uma ordem mais geral e, ao fazê-lo,

estabelece disposições e motivações nos homens. No cerne dessa proposta de análise encontra-se a

lógica do “modelo de” e “modelo para”, essencial para a sua antropologia. O símbolo religioso ao

mesmo tempo descreve uma visão de mundo – é um “modelo de” – e prescreve comportamentos e

atitudes relacionados a esta descrição – e neste sentido, é um “modelo para”.


O universo, explica Geertz, está além do controle do homem. O homem tem medo do caos,

um tumulto de eventos não interpretável. Neste contexto, os símbolos são fundamentais como

objetos, atos, acontecimentos, qualidade ou relação que serve de veículo a um significado, a uma

mensagem. O homem apreende o mundo social simbolicamente; encontra-se suspenso em teias de

significado, as quais ele mesmo teceu. Eis onde entra a religião. Neste sistema de caos em que os

significados são ou podem vir a serem postos em riscos, a religião, ou melhor, os símbolos

religiosos atuariam como um “modelo de” ao definir uma visão de mundo e descrever determinada

realidade e um “modelo para” ao induzir um conjunto de disposições e motivações, um ethos. A

religião, portanto, cumpre a sua função: afirmar algo sobre a realidade, negando que existam

acontecimentos inexplicáveis.

O ritual ocupa, neste processo, um lugar fundamental. É por meio dele, afirma Geertz, que a

experiência religiosa é intensificada; é por meio dele que o “modelo de” e o “modelo para” se

integram, ou seja, que o modelo de realidade e o ethos demonstram a sua fusão.

As análises desenvolvidas por Geertz têm sido apropriadas pelos historiadores de diferentes

modos, sobretudo, por aqueles voltados para os campos da história social, cultural e das

mentalidades. Os trabalhos de Natalie Zemon Davis (“The Return of Martin Guerre” – 1983) e

Robert Darnton (O grande massacre dos gatos – 1984) são exemplos desta interlocução. Nestes

casos, o foco concentra-se não propriamente nas análises que o antropólogo norte-americano fez

sobre a religião, mas no novo modelo de trabalho etnográfico que propôs baseado na descrição

densa: modelo de descrição atento à existência de uma estrutura de significados estabelecida

socialmente, na qual diferentes significados estão sobrepostos, os quais só podem ser

compreendidos quando inseridos em seu próprio contexto. Conforme destacou o próprio Darnton, O

grande massacre dos gatos foi uma tentativa de escrever a história numa via etnográfica em busca

do significado. O que, por sua vez, relaciona-se à própria concepção que o historiador tem da

história como uma ciência interpretativa.


Descrição densa à parte, a análise apresentada por Geertz em “Religião como sistema

cultural” proporciona importantes reflexões teóricas ao historiador da Europa moderna. Sobretudo

se tivermos em conta o lugar ocupado pela religião, ou melhor, pelo sobrenatural e pelo mágico nas

configurações políticas e sociais à época.

Um primeiro ponto de interlocução pode ser buscado na análise do próprio conceito de

religião. Embora fale em uma perspectiva religiosa e encare a religião como um sistema, isto não se

desdobra em uma unicidade do fenômeno religioso. Noutras palavras: apesar de lidar com

categorias gerais e absolutas – a religião ou a perspectiva religiosa – tal ênfase não redundou na

construção de um conceito a-histórico e, por isso mesmo, estável e imutável. Muito pelo contrário.

Por trás da utilização de conceitos mais gerais subsiste a preocupação maior com a delimitação de

seus significados. Atento às diversidades das crenças, Geertz destaca a particularidade dos sistemas

religiosos e dos significados que assumem ou podem assumir em cada contexto social. A existência

de padrões culturais religiosos, ou seja, de sistemas simbólicos religiosos e de significação

religiosos não significa que todos os homens são religiosos e nem que o são da mesma forma. Daí a

necessidade de perceber, neste caso por meio da descrição densa, os diferentes significados

veiculados nas ações e as tensões decorrentes deste processo.

Atualmente a discussão em torno do caráter social dos significados, assim como a

percepção de sua diversidade em função dos lugares e tempos, não é uma novidade. Inúmeros

historiadores, muitos dos quais influenciados por Geertz, construíram suas análises com base nessas

diretrizes. Segundo Darnton, os estudos monográficos sobre a feitiçaria se beneficiaram muito desta

aproximação com a antropologia interpretativa.

Um segundo ponto a ser considerado remonta às noções de “modelo de” e “modelo para”.

Embora tais noções ainda estejam revestidas da velha preocupação parsoniana/weberiana descrita

anteriormente, são categorias de análise úteis para pensar determinados aspectos presentes nas

sociedades europeias modernas. Um exemplo prático de possibilidade de aplicação destas

categorias. Em 1794 foi publicado em Portugal o livro anônimo Medicina Theologica. Apesar de
autorizado pelos órgãos responsáveis pela censura da época, o livro, ao ser lido, causou queixas em

alguns leitores, desencadeando uma investigação policial de que ficou encarregado Pina Manique,

Intendente Geral de Polícia de Lisboa. Para o Intendente o livro era sedicioso e cheirava a francesia.

Donde surge a pergunta: o que uma obra que se chamava Medicina Theologica poderia ter de

sediciosa, a tal ponto que justificava uma investigação policial e queixas por parte de alguns

leitores? Para respondê-la não basta apresentar o argumento do livro, a saber: de que os padres

confessores deveriam administrar o sacramento da Penitência com base na medicina científica e

racional. Isso só desloca o questionamento: afinal, o que um livro que reclamava uma mudança de

postura dos padres em relação ao sacramento da Penitência poderia ter de subversivo socialmente?

O caso não era único. Pela mesma época o dar banquetes de carne em dias proibidos era

considerado um dos indícios de adesão aos princípios franceses. Na devassa sobre a sociedade

literária do Rio de Janeiro (1794) o falar ofensivamente sobre a religião também era indício de

indivíduos afeiçoados aos princípios franceses. Para as autoridades régias e eclesiásticas do

período, o ser adepto das doutrinas francesas passava, entre outros, por uma descaracterização das

práticas e dos ritos religiosos.

Se, como disse Geertz, a religião é, ao mesmo tempo, um modelo de (no sentido oferecer

uma descrição do mundo) e um modelo para (ao prescrever comportamentos e formas de agir sobre

o mesmo mundo), a Medicina Theologica, ao incidir sobre ritos consagrados pela religião católica,

acabava implicando em uma desarticulação de alguns aspectos constitutivos da visão católica

tradicional. O que, por sua vez, possuía implicações mais profundas, se levarmos em consideração o

papel desempenhado pela religião na estruturação da ordem política monárquica. Numa ordem em

que o monarca, afirmando ter recebido o poder diretamente de Deus, dizia-se responsável pela

conservação da pureza do cristianismo, da qual, por sua vez, acreditava depender a estabilidade da

sociedade e do império, criticar a religião era minar um de seus pilares.1

1 Edital de 24 de Setembro de 1770...; Edital de 5 de Dezembro de 1775...; Lei de 17 de Dezembro de 1794...;


Alvará de 30 de Julho de 1795...
As categorias “modelo de” e “modelo para” forneceram importantes instrumentos analíticos

para a compreensão de um caso específico – as confusões geradas por um livro –, o qual não deixa

de guardar relações com um processo histórico mais geral – a efervescência política e doutrinal em

Portugal ao final do século XVIII. Dentro da lógica política que regulava as sociedades

monárquicas europeias, a desarticulação da perspectiva religiosa – ou melhor, de determinada

perspectiva religiosa que se queria oficial e institucionalizada – acabava por possuir profundas

implicações políticas e sociais.

A função do ritual na fusão que opera entre as duas categorias é outro ponto fundamental e

que serve de reflexão aos historiadores. Um triplo caminho torna-se possível. Analisar o ritual

institucionalizado; analisar os rituais que não são reconhecidos institucionalmente; ou ainda aqueles

produzidos com o claro intuito de afrontar. Para os rituais não reconhecidos cumpre destacar, por

exemplo, as diferentes dimensões assumidas pela devoção popular, pelo misticismo e pelas práticas

mágicas. Os banquetes de carne dados, em dias proibidos pela Igreja Católica, pelos estudantes de

Coimbra ao final do XVIII remetem ao último ponto.

A relação entre o ritual e o simbolismo – o significado assumido pelos símbolos nos rituais –

é outro caminho possível. De que forma, um mesmo símbolo conhece diferentes apropriações?

Quais são os significados destas apropriações (significados atribuídos pelos agentes das

apropriações e significados atribuídos pelos demais agentes sociais)?

Em geral, os trabalhos de Geertz, dentre eles “Religião como sistema cultural”, fornecem

aos historiadores ferramentas para pensar e refletir sobre o seu objeto de estudo, mais do que um

conhecimento específico sobre determinadas sociedades asiáticas ou africanas. Ferramentas nem

sempre exploradas e aprofundas pelo antropólogo norte-americano.

Por isso mesmo, é preciso destacar que a pertinência teórica de alguns conceitos e ideias

apresentadas por Geertz não significa a existência de um consenso acerca da validade da teoria

proposta por ele. Se, conforme já foi mencionado, para Darnton, os estudos históricos foram

influenciados positivamente pela nova abordagem antropológica desenvolvida por Geertz, há quem
veja em sua antropologia interpretativa uma mero retorno à tradução humanista de interpretação.

Para Adam Kuper, antropólogo sul-africano, Geertz possui vocação para ensaísta e não para

construtor de sistemas. Além de apresentar imprecisões na análise, para Kuper, o método

interpretativo e o modelo de descrição densa propostos possuem falhas e incoerências. Em seu

entender, Geertz não só não discute os critérios para o julgamento de interpretações como

transformou se, ao longo de sua carreira, em um “idealista extremo”. (p.158-159)

Aletta Biersack, ao analisar as interlocuções entre Geertz e a história, também destaca as

imprecisões metodológicas do antropólogo norte-americano e de sua “guinada interpretativa”.

Muitos o criticam por seu repúdio à generalização, pelo foco no particularismo e na fragilidade de

sua análise em termos de síntese. Mesmo a descrição densa possui falhas, uma vez que a

preocupação de Geertz, destaca Biersack, concentra-se nas “teias” e não no “ato de tecer” (p.108).

Idealismos e imprecisões metodológicas à parte, o próprio Kuper reconhece a contribuição

dos trabalhos de Geertz ao aprimorar a definição de cultura e ao disponibilizar aos historiadores

ferramentas para a reflexão teórica. (p.157-158). Ferramentas, convém destacar, que incidem

principalmente sobre um mundo “estável” e em equilíbrio. Um mundo com significado e

interpretável, seja a partir da perspectiva religiosa, seja a partir do senso-comum ou da ideologia. O

mundo caótico, no qual os eventos não só parecem fora do lugar, mas pior, não são interpretáveis;

este não é contemplado por Geertz. Neste caso, impõe-se o auxílio, ou melhor, as ferramentas

teóricas disponibilizadas por outro antropólogo, Marshall Sahlins. Mas isto já seria outra resenha.

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