Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
“parece ser uma das poucas coisas compartilhadas por pessoas que
raramente lêem uns aos outros”, e em geral, eles não liam seus trabalhos
para aprender sobre a Indonésia ou o Marrocos, mas para obter ideias.
Clifford Geertz, antropólogo norte-americano, colocou em ação, afirmou Adam Kuper, uma
ideias de Max Weber, Talcott Parsons, do filósofo francês Paul Ricoeur e do crítico literário
Kenneth Burke, destacou que a noção de cultura, base da antropologia, deveria ser analisada não
através de uma ciência experimental em busca de leis universais, mas por meio de uma ciência
conceito semiótico. (Thick description, p.5) Deste modo, enquanto para Levi-Strauss a cultura se
apresentava como um código a ser decifrado, derivado, em última instância, de uma estrutura lógica
comum – o espírito humano; Geertz a definiu como uma estrutura de significados, incorporada e
veiculada através de símbolos, entendidos como qualquer objeto, ato, evento, qualidade ou relação
não o estatuto ontológico do comportamento humano, mas o seu significado. O livro Interpretação
das culturas, publicado originalmente em 1973, representa este esforço em defesa de uma
abordagem interpretativa.
cultura e, com ela, a de religião, tema do capítulo “A religião como sistema cultural”, publicado
originalmente em 1965. A preocupação do antropólogo norte-americano com o tema não era nova.
Tendo como foco as sociedades asiáticas e do norte da África, os seus primeiros estudos já se
voltavam para o campo da religião. Publicado na década de 1960, The Religion of Java procurava,
de uma lógica segundo a qual “a sociologia, aliada à psicologia, antropologia, história e estatística,
parecia prestes a salvar o mundo do velho e irracional jugo da religião e do tribalismo” (John
Updike apud Adam Kuper, p. 111). Cabia a estes profissionais remover os obstáculos culturais que
Embora The religion of Java e “Religião como sistema cultural” compartilhem a mesma
preocupação com a religião e, às vezes, o mesmo recorte espacial – Java –, a abordagem não era
políticas e psicológicas para o da compreensão dos significados incorporados nos símbolos. (p.142)
Embora, é importante ressaltar, a primeira dimensão de modo algum esteja ausente. Afinal, como
ele mesmo destacou ao final de “Religião como sistema cultural”, o estudo antropológico da
religião deve ser composto por duas etapas: primeiro, uma análise dos sistemas de significados
incorporados nos símbolos. Segundo, uma análise teórica da ação simbólica de modo a
nos trabalhos antropológicos sobre a religião, Geertz lançou uma nova proposta de análise
antropológica sobre o tema. Em seu entender, a religião deveria ser analisada a partir de sua
dimensão cultural. Noutras palavras, a partir dos seus sistemas de significação. Para Geertz, a
religião é um sistema de símbolos que formula conceitos de uma ordem mais geral e, ao fazê-lo,
estabelece disposições e motivações nos homens. No cerne dessa proposta de análise encontra-se a
lógica do “modelo de” e “modelo para”, essencial para a sua antropologia. O símbolo religioso ao
mesmo tempo descreve uma visão de mundo – é um “modelo de” – e prescreve comportamentos e
um tumulto de eventos não interpretável. Neste contexto, os símbolos são fundamentais como
objetos, atos, acontecimentos, qualidade ou relação que serve de veículo a um significado, a uma
significado, as quais ele mesmo teceu. Eis onde entra a religião. Neste sistema de caos em que os
significados são ou podem vir a serem postos em riscos, a religião, ou melhor, os símbolos
religiosos atuariam como um “modelo de” ao definir uma visão de mundo e descrever determinada
religião, portanto, cumpre a sua função: afirmar algo sobre a realidade, negando que existam
acontecimentos inexplicáveis.
O ritual ocupa, neste processo, um lugar fundamental. É por meio dele, afirma Geertz, que a
experiência religiosa é intensificada; é por meio dele que o “modelo de” e o “modelo para” se
As análises desenvolvidas por Geertz têm sido apropriadas pelos historiadores de diferentes
modos, sobretudo, por aqueles voltados para os campos da história social, cultural e das
mentalidades. Os trabalhos de Natalie Zemon Davis (“The Return of Martin Guerre” – 1983) e
Robert Darnton (O grande massacre dos gatos – 1984) são exemplos desta interlocução. Nestes
casos, o foco concentra-se não propriamente nas análises que o antropólogo norte-americano fez
sobre a religião, mas no novo modelo de trabalho etnográfico que propôs baseado na descrição
compreendidos quando inseridos em seu próprio contexto. Conforme destacou o próprio Darnton, O
grande massacre dos gatos foi uma tentativa de escrever a história numa via etnográfica em busca
do significado. O que, por sua vez, relaciona-se à própria concepção que o historiador tem da
se tivermos em conta o lugar ocupado pela religião, ou melhor, pelo sobrenatural e pelo mágico nas
religião. Embora fale em uma perspectiva religiosa e encare a religião como um sistema, isto não se
desdobra em uma unicidade do fenômeno religioso. Noutras palavras: apesar de lidar com
categorias gerais e absolutas – a religião ou a perspectiva religiosa – tal ênfase não redundou na
construção de um conceito a-histórico e, por isso mesmo, estável e imutável. Muito pelo contrário.
Por trás da utilização de conceitos mais gerais subsiste a preocupação maior com a delimitação de
seus significados. Atento às diversidades das crenças, Geertz destaca a particularidade dos sistemas
religiosos e dos significados que assumem ou podem assumir em cada contexto social. A existência
religiosos não significa que todos os homens são religiosos e nem que o são da mesma forma. Daí a
necessidade de perceber, neste caso por meio da descrição densa, os diferentes significados
percepção de sua diversidade em função dos lugares e tempos, não é uma novidade. Inúmeros
historiadores, muitos dos quais influenciados por Geertz, construíram suas análises com base nessas
diretrizes. Segundo Darnton, os estudos monográficos sobre a feitiçaria se beneficiaram muito desta
Um segundo ponto a ser considerado remonta às noções de “modelo de” e “modelo para”.
Embora tais noções ainda estejam revestidas da velha preocupação parsoniana/weberiana descrita
anteriormente, são categorias de análise úteis para pensar determinados aspectos presentes nas
categorias. Em 1794 foi publicado em Portugal o livro anônimo Medicina Theologica. Apesar de
autorizado pelos órgãos responsáveis pela censura da época, o livro, ao ser lido, causou queixas em
alguns leitores, desencadeando uma investigação policial de que ficou encarregado Pina Manique,
Intendente Geral de Polícia de Lisboa. Para o Intendente o livro era sedicioso e cheirava a francesia.
Donde surge a pergunta: o que uma obra que se chamava Medicina Theologica poderia ter de
sediciosa, a tal ponto que justificava uma investigação policial e queixas por parte de alguns
leitores? Para respondê-la não basta apresentar o argumento do livro, a saber: de que os padres
racional. Isso só desloca o questionamento: afinal, o que um livro que reclamava uma mudança de
postura dos padres em relação ao sacramento da Penitência poderia ter de subversivo socialmente?
O caso não era único. Pela mesma época o dar banquetes de carne em dias proibidos era
considerado um dos indícios de adesão aos princípios franceses. Na devassa sobre a sociedade
literária do Rio de Janeiro (1794) o falar ofensivamente sobre a religião também era indício de
período, o ser adepto das doutrinas francesas passava, entre outros, por uma descaracterização das
Se, como disse Geertz, a religião é, ao mesmo tempo, um modelo de (no sentido oferecer
uma descrição do mundo) e um modelo para (ao prescrever comportamentos e formas de agir sobre
o mesmo mundo), a Medicina Theologica, ao incidir sobre ritos consagrados pela religião católica,
tradicional. O que, por sua vez, possuía implicações mais profundas, se levarmos em consideração o
papel desempenhado pela religião na estruturação da ordem política monárquica. Numa ordem em
que o monarca, afirmando ter recebido o poder diretamente de Deus, dizia-se responsável pela
conservação da pureza do cristianismo, da qual, por sua vez, acreditava depender a estabilidade da
para a compreensão de um caso específico – as confusões geradas por um livro –, o qual não deixa
de guardar relações com um processo histórico mais geral – a efervescência política e doutrinal em
Portugal ao final do século XVIII. Dentro da lógica política que regulava as sociedades
perspectiva religiosa que se queria oficial e institucionalizada – acabava por possuir profundas
A função do ritual na fusão que opera entre as duas categorias é outro ponto fundamental e
que serve de reflexão aos historiadores. Um triplo caminho torna-se possível. Analisar o ritual
institucionalizado; analisar os rituais que não são reconhecidos institucionalmente; ou ainda aqueles
produzidos com o claro intuito de afrontar. Para os rituais não reconhecidos cumpre destacar, por
exemplo, as diferentes dimensões assumidas pela devoção popular, pelo misticismo e pelas práticas
mágicas. Os banquetes de carne dados, em dias proibidos pela Igreja Católica, pelos estudantes de
A relação entre o ritual e o simbolismo – o significado assumido pelos símbolos nos rituais –
é outro caminho possível. De que forma, um mesmo símbolo conhece diferentes apropriações?
Quais são os significados destas apropriações (significados atribuídos pelos agentes das
Em geral, os trabalhos de Geertz, dentre eles “Religião como sistema cultural”, fornecem
aos historiadores ferramentas para pensar e refletir sobre o seu objeto de estudo, mais do que um
Por isso mesmo, é preciso destacar que a pertinência teórica de alguns conceitos e ideias
apresentadas por Geertz não significa a existência de um consenso acerca da validade da teoria
proposta por ele. Se, conforme já foi mencionado, para Darnton, os estudos históricos foram
influenciados positivamente pela nova abordagem antropológica desenvolvida por Geertz, há quem
veja em sua antropologia interpretativa uma mero retorno à tradução humanista de interpretação.
Para Adam Kuper, antropólogo sul-africano, Geertz possui vocação para ensaísta e não para
entender, Geertz não só não discute os critérios para o julgamento de interpretações como
Muitos o criticam por seu repúdio à generalização, pelo foco no particularismo e na fragilidade de
sua análise em termos de síntese. Mesmo a descrição densa possui falhas, uma vez que a
preocupação de Geertz, destaca Biersack, concentra-se nas “teias” e não no “ato de tecer” (p.108).
ferramentas para a reflexão teórica. (p.157-158). Ferramentas, convém destacar, que incidem
mundo caótico, no qual os eventos não só parecem fora do lugar, mas pior, não são interpretáveis;
este não é contemplado por Geertz. Neste caso, impõe-se o auxílio, ou melhor, as ferramentas
teóricas disponibilizadas por outro antropólogo, Marshall Sahlins. Mas isto já seria outra resenha.