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O Sítio das Drogas | Luís Fernandes
Introdução
p. 21-26
Texte intégral
1 Este livro apresenta um trabalho de etnografia urbana levado a cabo em bairros sociais
da cidade do Porto. O objeto de partida é o fenómeno droga. As drogas, os seus usos e
as reações sociais que originam são, já todas as instâncias que os comentam o
disseram, fenómenos complexos. E toda a noção complexa, sabemo-lo desde
Bachelard, abre-se sobre si própria: os “átomos nocionais” abrir-se-iam às partículas
constituintes. A sua unidade era ilusão. Assim é também com as drogas: de,
chamemos-lhes, átomos nocionais na farmacologia (droga=substância=moléculas), na
clínica (droga=comportamento perturbado), nas disciplinas do social
(droga=desordem da sociedade=desordem da cultura), nos saberes jurídicos
(droga=delinquência) e nos político-económicos (droga=mercado subterrâneo=rotas
internacionais), de átomos nocionais, dizíamos, abrem-se a associações várias. No
limite, rompem fronteiras disciplinares e exigem transdisciplinarização. No nosso
trabalho de investigação vimos o objeto droga abrir-se-nos pelo menos em duas
direções dominantes: a do tema dos bairros sociais e a do tema da insegurança urbana.
2 Ao optarmos por uma postura generativa – deixar que o próprio terreno decidisse das
hipóteses a ir levantando, das práticas a ir conhecendo e dos contextos a ir
caracterizando – abrimo-nos nós próprios a uma série de aspetos do ilusoriamente
unitário fenómeno droga. Tratou-se de procurar fidelidade aos planos de materialidade
do objeto, característica que deve guiar o método etnográfico. O texto testemunhará o
esforço de integrar de um modo inteligível um mosaico de situações e de interações
que fomos vivendo no trabalho quotidiano de observação participante; testemunhará o
esforço de ir caracterizando atores e contextos com quem se foi aprofundando uma
relação.
3 Estamos, portanto, perante um trabalho que procura conhecer desde o interior, a partir
do acesso que tivemos ao ponto de vista dos atores, as práticas sociais em torno das
drogas ilegais, o significado que estas assumem para quem as usa, o que pensam os
utilizadores do “mundo normal”, como interagem com ele, com as forças de controlo
social. Retoma-se, modestamente, a tradição inaugurada pela Escola de Chicago:
estudar um “mundo desviante particular, ligando-o à matriz ecológica em que se
manifesta. A opção pelo trabalho etnográfico teve dois pontos de partida: Um
institucional e um pessoal.
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Here be dragons
8 Detenhamo-nos ainda um momento na opção pela etnografia. Poderíamos desenvolver
uma argumentação teórica que a legitimasse; por exemplo interrogar o porquê da
escassez com que este método é utilizado na psicologia. Não nos antecipemos: é esse,
entre outros, o objetivo da primeira parte. Fique, no entanto, já aqui dito que o recurso
a um método de vocação interdisciplinar se deveu também à insatisfação pessoal com
pontos de vista isolados pelas fronteiras de uma única disciplina – ainda mais no
campo das drogas, objeto que rompe lógicas disciplinares autónomas e exige
transdisciplinarização. A errância pelo terreno exigia ao investigador pelas
características do método, tem uma correspondência na errância por conceitos de
regiões teóricas várias que ajudam a dar um sentido ao dado bruto na trama densa dos
acontecimentos quotidianos de um local. Ao início pensávamos possível recorrer à
psicologia ambiental como organizador teórico. Depressa fomos verificando que
muitos dos conceitos de que se socorre têm genealogias antigas – por exemplo, na
Escola de Chicago – e hibridações várias.
9 Regressemos aos determinantes pessoais de uma escolha. No método etnográfico é
impossível pôr entre parêntesis a pessoa do investigador – é esta a sua força e a sua
fraqueza, No registo de impressões e sentimentos relativo ao primeiro dia de
permanência no bairro social onde iríamos estar vários meses, escrevíamos isto:
“Enquanto me desloco a pé, mochila às costas, em direção ao meu primeiro dia no bairro,
penso na sensação que vivi em 1985, quando me desloquei as primeiras vezes à Ribeira-
Barredo: ir em direção a um sítio onde vai ter de se permanecer, trabalhar sem rede, no
anonimato e sem o estatuto a proteger-nos; adotar a rua como escritório de trabalho,
aceitar a itinerância. E, refleti para mim, é este mais do que um modo de investigação, um
estilo existencial. Gosto de me diluir de encontro à cidade. […] É um estilo existencial
também pelo gosto de nos colocarmos em cheque, desconstruindo a forma de vida e o
habitat que sempre tivemos.”
10 É também um trabalho sobre nós próprios aquilo que se leva a cabo durante o labor
etnográfico. Esta dimensão está bem presente na própria dificuldade em cumprir uma
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decisão tomada ainda longe do cenário concreto do trabalho de campo – quando, ainda
apenas de um modo vago, resolvemos “e se eu fosse viver para lá”?
“Ontem, enquanto arranjava a mochila para vir para o bairro, fui invadido por
desconforto. Parecia-me que estava a despedir-me de alguma coisa. Apetece desistir.
Mas… e o compromisso que já assumi comigo? E a quantidade de gente a quem já
anunciei a ideia? Como voltar atrás com as expectativas criadas?”
12 Vêm, disse-se ainda agora, dos estereótipos. Vêm também do medo que cada um de
nós carrega em relação aos encontros aleatórios da vida. Escolher um trabalho deste
tipo vem talvez também da vontade de enfrentar o nosso medo – antecipar situações
problemáticas, desenvolvendo o engenho de as dominar. Terminava assim as notas
desse dia:
“Às 23 horas estou a entrar em casa. Calmíssimo, o bairro.
Não há carros, há silêncio – só o ladrar dos cães, barulho estranho numa cidade… É isto o
perigoso P. T.? [Iniciais com que designo o bairro.] Ninguém pela rua. Here be dragons,
but they are sleeping. Ou haverá olhinhos nas frinchas das janelas? Vamos lá matar a
hidra de sete cabeças.”
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FERNANDES, Luís. O Sítio das Drogas : Etnografia das Drogas numa Periferia Urbana. Nouvelle
édition [en ligne]. Lisboa : Etnográfica Press, 2021 (généré le 20 février 2024). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/etnograficapress/7245>. ISBN : 979-10-365-6006-4. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.7245.
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