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20/02/24, 19:32 O Sítio das Drogas - Introdução - Etnográfica Press

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Etnográfica
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O Sítio das Drogas | Luís Fernandes

Introdução
p. 21-26

Texte intégral
1 Este livro apresenta um trabalho de etnografia urbana levado a cabo em bairros sociais
da cidade do Porto. O objeto de partida é o fenómeno droga. As drogas, os seus usos e
as reações sociais que originam são, já todas as instâncias que os comentam o
disseram, fenómenos complexos. E toda a noção complexa, sabemo-lo desde
Bachelard, abre-se sobre si própria: os “átomos nocionais” abrir-se-iam às partículas
constituintes. A sua unidade era ilusão. Assim é também com as drogas: de,
chamemos-lhes, átomos nocionais na farmacologia (droga=substância=moléculas), na
clínica (droga=comportamento perturbado), nas disciplinas do social
(droga=desordem da sociedade=desordem da cultura), nos saberes jurídicos
(droga=delinquência) e nos político-económicos (droga=mercado subterrâneo=rotas
internacionais), de átomos nocionais, dizíamos, abrem-se a associações várias. No
limite, rompem fronteiras disciplinares e exigem transdisciplinarização. No nosso
trabalho de investigação vimos o objeto droga abrir-se-nos pelo menos em duas
direções dominantes: a do tema dos bairros sociais e a do tema da insegurança urbana.
2 Ao optarmos por uma postura generativa – deixar que o próprio terreno decidisse das
hipóteses a ir levantando, das práticas a ir conhecendo e dos contextos a ir
caracterizando – abrimo-nos nós próprios a uma série de aspetos do ilusoriamente
unitário fenómeno droga. Tratou-se de procurar fidelidade aos planos de materialidade
do objeto, característica que deve guiar o método etnográfico. O texto testemunhará o
esforço de integrar de um modo inteligível um mosaico de situações e de interações
que fomos vivendo no trabalho quotidiano de observação participante; testemunhará o
esforço de ir caracterizando atores e contextos com quem se foi aprofundando uma
relação.
3 Estamos, portanto, perante um trabalho que procura conhecer desde o interior, a partir
do acesso que tivemos ao ponto de vista dos atores, as práticas sociais em torno das
drogas ilegais, o significado que estas assumem para quem as usa, o que pensam os
utilizadores do “mundo normal”, como interagem com ele, com as forças de controlo
social. Retoma-se, modestamente, a tradição inaugurada pela Escola de Chicago:
estudar um “mundo desviante particular, ligando-o à matriz ecológica em que se
manifesta. A opção pelo trabalho etnográfico teve dois pontos de partida: Um
institucional e um pessoal.
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4 Institucional: dar continuidade às pesquisas de carácter eco-social que, desde 1985,


são uma das linhas do Centro de Ciências do Comportamento Desviante da FPCE-UP.
Ao longo da primeira parte legitimaremos a pertinência das monografias etnográficas
quando queremos conhecer fenómenos que, pela sua condição criminalizada, de
exclusão ou de margem social, têm pouca visibilidade ou se não deixam captar para
além dos pontos inevitáveis de entrada em contacto com o mundo – aceitemos por
agora a dicotomia – da normalidade.
5 É também a mais indicada quando o contexto faz parte das incógnitas a ter em conta.
Ou, dito de outro modo, quando se coloca a questão do “porquê aqui?”, como se
organizam os territórios psicotrópicos da cidade? Podemos descrever as regularidades
socioambientais e físico-ambientais de áreas que o discurso coletivo estigmatiza como
“os bairros das drogas”?
6 Pessoal: condição primeira para se realizar um estudo de etnografia urbana: gostar da
cidade. Gostar, talvez, duma cidade. Ter hábitos pedestres, palmilhar as ruas, sentar-se
nos cafés, frequentar os diversos espaços. Ir para além das ruas da baixa, inquietar-se
com as zonas mais obscuras, com os lugares menos acessíveis. Se é um estudo sobre
comportamentos desviantes, ir ao encontro de sítios ameaçadores no imaginário
coletivo.
7 “Here be dragons”, lia-se nos mapas antigos, assinalando deste modo as zonas que
ainda não tinham sido navegadas. Segundo Damer (citado por Taylor, 1987), as partes
que nas cidades atuais são evitadas nos percursos do cidadão médio, os sítios de má
fama, seriam também nos nossos mapas cognitivos lugares com o rótulo Here be
dragons à entrada. Pois bem: também nós sentimos o peso deste estereótipo. E, já que
os bairros sociais ou se habitam ou se evitam, decidimos, num dado momento do
projeto etnográfico, habitá-los para evitar evitá-los.

Here be dragons
8 Detenhamo-nos ainda um momento na opção pela etnografia. Poderíamos desenvolver
uma argumentação teórica que a legitimasse; por exemplo interrogar o porquê da
escassez com que este método é utilizado na psicologia. Não nos antecipemos: é esse,
entre outros, o objetivo da primeira parte. Fique, no entanto, já aqui dito que o recurso
a um método de vocação interdisciplinar se deveu também à insatisfação pessoal com
pontos de vista isolados pelas fronteiras de uma única disciplina – ainda mais no
campo das drogas, objeto que rompe lógicas disciplinares autónomas e exige
transdisciplinarização. A errância pelo terreno exigia ao investigador pelas
características do método, tem uma correspondência na errância por conceitos de
regiões teóricas várias que ajudam a dar um sentido ao dado bruto na trama densa dos
acontecimentos quotidianos de um local. Ao início pensávamos possível recorrer à
psicologia ambiental como organizador teórico. Depressa fomos verificando que
muitos dos conceitos de que se socorre têm genealogias antigas – por exemplo, na
Escola de Chicago – e hibridações várias.
9 Regressemos aos determinantes pessoais de uma escolha. No método etnográfico é
impossível pôr entre parêntesis a pessoa do investigador – é esta a sua força e a sua
fraqueza, No registo de impressões e sentimentos relativo ao primeiro dia de
permanência no bairro social onde iríamos estar vários meses, escrevíamos isto:
“Enquanto me desloco a pé, mochila às costas, em direção ao meu primeiro dia no bairro,
penso na sensação que vivi em 1985, quando me desloquei as primeiras vezes à Ribeira-
Barredo: ir em direção a um sítio onde vai ter de se permanecer, trabalhar sem rede, no
anonimato e sem o estatuto a proteger-nos; adotar a rua como escritório de trabalho,
aceitar a itinerância. E, refleti para mim, é este mais do que um modo de investigação, um
estilo existencial. Gosto de me diluir de encontro à cidade. […] É um estilo existencial
também pelo gosto de nos colocarmos em cheque, desconstruindo a forma de vida e o
habitat que sempre tivemos.”

10 É também um trabalho sobre nós próprios aquilo que se leva a cabo durante o labor
etnográfico. Esta dimensão está bem presente na própria dificuldade em cumprir uma

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decisão tomada ainda longe do cenário concreto do trabalho de campo – quando, ainda
apenas de um modo vago, resolvemos “e se eu fosse viver para lá”?
“Ontem, enquanto arranjava a mochila para vir para o bairro, fui invadido por
desconforto. Parecia-me que estava a despedir-me de alguma coisa. Apetece desistir.
Mas… e o compromisso que já assumi comigo? E a quantidade de gente a quem já
anunciei a ideia? Como voltar atrás com as expectativas criadas?”

11 Houve, portanto, a tentação de matar o trabalho ainda antes de nascer. Houve a


tentação de dar ouvidos a alguns comentários do tipo “vê lá no que te vais meter”,
“ainda morres”… Qualquer uma das pessoas que assim falavam não conhecia os bairros
do “mundo da droga” senão pelas imagens dos meios de comunicação de massas –
revelavam a força dos estereótipos e mostravam-me, involuntariamente, a necessidade
de os analisar, primeiro, e confrontar, depois. Nas notas de impressões e sentimentos
do primeiro dia como residente do bairro pode ler-se:
“Este lugar parece-me acolhedor e nada ameaçador. Here be dragons? Não se veem. Pelo
menos pela rua. […] Têm-me assomado ultimamente à cabeça hipotéticos encontros
ocasionais que possa ter na minha nova vida aqui. Encontros ameaçadores que me
coloquem em situações a que não sei responder. […] Sei donde me vêm estes
pensamentos recorrentes.”

12 Vêm, disse-se ainda agora, dos estereótipos. Vêm também do medo que cada um de
nós carrega em relação aos encontros aleatórios da vida. Escolher um trabalho deste
tipo vem talvez também da vontade de enfrentar o nosso medo – antecipar situações
problemáticas, desenvolvendo o engenho de as dominar. Terminava assim as notas
desse dia:
“Às 23 horas estou a entrar em casa. Calmíssimo, o bairro.
Não há carros, há silêncio – só o ladrar dos cães, barulho estranho numa cidade… É isto o
perigoso P. T.? [Iniciais com que designo o bairro.] Ninguém pela rua. Here be dragons,
but they are sleeping. Ou haverá olhinhos nas frinchas das janelas? Vamos lá matar a
hidra de sete cabeças.”

13 A estadia, ao longo de muitas horas vividas nesse e noutros bairros contíguos,


encarregar-se-ia de matar a hidra. Afinal vivia apenas dentro de nós. Não se trata de,
no lugar do estereótipo negativo, romantizar a experiência de terreno e tornar a linha
descontínua das periferias urbanas num horizonte de gente que precisasse da nossa
voz para provar a sua inocência. Trata-se apenas de naturalizar lugares e atores:
devolver-lhes um estatuto mais perto da vida do que aquele que os transforma nos
protagonistas mediáticos da desordem urbana. Se tivermos conseguido fidelidade, no
registo empírico, a esta vida diária, teremos cumprido o principal requisito duma boa
monografia etnográfica. Se assim for, virá ao de cima aquilo que talvez mais importe
reter na compreensão dos comportamentos desviantes: que não são, a maior parte das
vezes, excrescência, excecionalidade, rutura ou fenda brusca no pano de fundo da
normalidade.
14 O Sítio das Drogas divide-se em duas partes. A primeira é essencialmente teórico-
metodológica, e a segunda ocupa-se da monografia sobre os bairros “das drogas”.
15 Eis o programa. Dê-se início à festa – inspiramo-nos em Agostinho da Silva, quando,
nos seus “dispersos” recomendava que olhássemos o palácio do saber como se ele fosse
festa, e não como se nós fôssemos o boi.

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Référence électronique du chapitre


FERNANDES, Luís. Introdução In : O Sítio das Drogas : Etnografia das Drogas numa Periferia
Urbana [en ligne]. Lisboa : Etnográfica Press, 2021 (généré le 20 février 2024). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/etnograficapress/7272>. ISBN : 979-10-365-6006-4. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.7272.

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FERNANDES, Luís. O Sítio das Drogas : Etnografia das Drogas numa Periferia Urbana. Nouvelle
édition [en ligne]. Lisboa : Etnográfica Press, 2021 (généré le 20 février 2024). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/etnograficapress/7245>. ISBN : 979-10-365-6006-4. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.7245.
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O Sítio das Drogas


Etnografia das Drogas numa Periferia Urbana
Luís Fernandes

Ce livre est cité par


Neves, Tiago. (2003) Etnografias Urbanas. DOI: 10.4000/books.etnograficapress.374
Cordeiro, Graça Índias. (2003) Etnografias Urbanas. DOI: 10.4000/books.etnograficapress.362
Cunha, Manuela Ivone. (2002) Entre o Bairro e a Prisão. DOI:
10.4000/books.etnograficapress.491
Costa, António Firmino da. (2003) Etnografias Urbanas. DOI:
10.4000/books.etnograficapress.379
Romaní, Oriol. (2021) O Sítio das Drogas. DOI: 10.4000/books.etnograficapress.7265
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