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2012
III
alunos dos diferentes cursos do IMP. Agradeço-lhes os ensinamentos e a abertura para
a realização desta ou de qualquer outra investigação. Agradeço a toda a equipa que
trabalha no IMP, guardando deles a memória de todo o apoio e da simpatia e boa
disposição com que trabalham todos os dias. Agradeço ainda a todos os professores e
formadores que aí trabalham, trabalharam e que tive oportunidade de conhecer, Bill
Tara, Carlos Campos Ventura, Denny Waxman, Bill Spears e muitos outros.
Uma palavra de agradecimento a José Oliveira, que foi, e continua sendo, um
dos principais impulsionadores da macrobiótica em Braga. Fá-lo de forma discreta
mas eficaz, pois através das suas aulas de yoga tem levado muitos dos seus alunos a
reequacionar opções alimentares. Estou-lhe grata pelo estímulo e pelos ensinamentos.
À Alda Pereira, que me abriu as portas para o universo da cozinha macrobiótica, e que
foi pioneira no ensino da macrobiótica em Braga, devo também um agradecimento
especial.
Estou igualmente grata aos muitos colegas e amigos que conheci no âmbito
desta longa aprendizagem sobre a macrobiótica. Também eles foram companheiros de
percurso, comigo partilhando preocupações e angústias, mas sobretudo bons
momentos.
Aos meus amigos mais próximos, eles sabem quem são, por todo o apoio,
paciência, e encorajamento na realização deste projecto. Espero poder agora dedicar-
lhes mais do meu tempo.
A Luís Cunha, pelo muito que partilhamos, pela leitura atenta deste trabalho,
pelas sugestões, pelo encorajamento e todo o apoio. Este trabalho beneficiou imenso da
sua ajuda. À Lúcia e ao Jaime, que também se dispuseram para essa leitura, e que
contribuíram para que este trabalho se concretizasse. Ao Miguel, pelo apoio técnico, e
por me estar sempre a lembrar que a tese tem ponto final.
Para a minha família dirijo as últimas palavras de agradecimento. Por aceitar a
minha indisponibilidade, por ficar sobrecarregada com tarefas em que eu também
deveria participar, por ser o meu porto seguro.
IV
Resumo
Este trabalho procura contribuir para a identificação dos processos através dos
quais um produto social, a macrobiótica, se transformou numa proposta significativa de
orientação no mundo. Centrando-se na génese e no desenvolvimento deste produto
social, esta investigação presta atenção aos principais agentes envolvidos nesse
processo social e às circunstâncias pessoais, sociais e históricas que levaram à sua
difusão. Assim, centrando-se no fundador da macrobiótica moderna, Georges Ohsawa, e
seguindo a sua trajectória de vida, esta dissertação procurará evidenciar de que forma
uma visão do mundo germinada no Japão e com forte inspiração na tradição filosófica e
religiosa oriental, circula pela Europa e pela América, sendo acolhida e apropriada
como prática e discurso de orientação no mundo. Para evidenciar este processo, far-se-á
referência a circunstâncias históricas e sociais específicas, designadamente as do pós-II
Grande Guerra, procurando-se perceber o ambiente social que permitiu a expansão da
macrobiótica.
Aspectos significativos desse ambiente social são aqueles que se prendem com a
crítica da modernidade, onde se inclui a crítica à ciência e às muitas realizações que
dela decorrem: industrialismo, tecnocracia, materialismo, mas também o florescer de
uma consciência ecológica, a que se juntou a atracção por novas formas de
espiritualidade. Face ao desencantamento do mundo, a macrobiótica surgiu, para muitos
dos que a seguiram, como proposta de reencantamento em torno da qual se
desenvolveram sentimentos de pertença e de afinidade, suportados por redes de
conhecimentos. Dado o espaço de identificação que a macrobiótica proporciona, é usada
a noção de comunidade para pensar os indivíduos que a ela aderem. Comunidade
desterritorializada, transnacional, instável e aberta, mas, ainda assim, espaço de
identificação.
Tendo sempre em conta a especificidade do espaço português, a macrobiótica
será aqui perspectivada como cosmovisão que incorpora um sistema alimentar e um
sistema terapêutico. Sistemas que se entrecruzam, e que nessa articulação são pensados
como alternativa a sistemas alimentares e terapêuticos convencionais.
V
Abstract
This study intends to identify the processes through which a social product,
macrobiotics, was transformed into a significant leadership proposal in the world.
Starting from the genesis and the development of this social product, this work
describes the main agents involved in this social process, as well as the personal, social
and history circumstances that lead to its spread. Therefore, focusing on the founder of
modern macrobiotics, Georges Ohsawa, and following his trajectory of life, this thesis
intend to explain how a vision of the world seeded in Japan, and with a strong oriental
tradition, in philosophical and religious terms, now circulates through Europe and
America, where it is used and regarded as a practice and an orientation discourse in the
world. To highlight this process, we will refer to specific historical and social
circumstances, particularly those following the II World War, trying to perceive the
social environment that enabled the expansion of macrobiotics.
The significant aspects of this social environment are those related with the
critique of modernity, where the critique of science and of its multiple achievements
takes place: industrialism, technocracy, materialism, but also the growing of an
ecological conscience, joined by an attraction for new forms of spiritualism. Facing the
disenchantment of the world, macrobiotics was regarded, for many following it, as a
scheme of re-enchantment within which feelings of belonging and affinity were
developed, mostly supported by knowledge networks. Given the sphere of identification
that macrobiotics provides, it is used a notion of community to think the individuals that
adhere to it. It is a deterritorialized, transnacional, unstable and open community, but,
nevertheless, a space for identification.
Keeping in mind the specificity of the Portuguese society, macrobiotics will be
advocated here as a cosmological vision, incorporating a food system and a healing
system. These two systems interact, and from such interaction they are thought of as an
alternative to orthodox food and healing systems.
VII
INDICE
Agradecimentos
Resumo
Abstract
Introdução 1
IX
2.2 Perspectivar a Alimentação Macrobiótica a Partir dos
Estudos sobre Alimentação 57
2.3 Estudos Sociais Sobre Alimentação em Portugal:
Interpelações a uma Pesquisa Sobre a Macrobiótica 63
2.4 A Macrobiótica Olhada pelas Ciências Sociais 75
2.5 A Macrobiótica Olhada Pelas Ciências da Saúde 79
X
5.1.1 Nas Margens do Poder Biomédico 249
5.1.2 Macrobiótica, Corpo, Saúde e Doença 256
5.1.3 Traçar Fronteiras, Persuadir, Consciencializar 275
5.1.4 O Corpo como Território de Decisões Individuais
Apêndices
Apêndice 1 – Carta de agradecimento do Museu Nacional da História Americana
à família Kushi 335
Apêndice 2 – Tabela de classificação dos alimentos Yin e Yang 337
Apêndice 3 – Glossário 339
Bibliografia 345
Fontes documentais 345
Livros e Artigos 345
Textos referenciados de divulgação da macrobiótica 361
Endereços electrónicos referenciados 363
XI
Índice dos Quadros
XII
Figura 12 – A Espiral da Criação 153
Figura 13 – Os Cinco Elementos 158
Figura 14 – Alimentação Macrobiótica Padrão 234
Figura 15 – Sopa de Miso 243
Figura 16 – Empadão de Millet com Lentilhas 244
Figura 17 – Tarte de Maçã 244
Figura 18 – Exemplo de um Pequeno-almoço Típico 245
XIII
Introdução
INTRODUÇÃO
Francisco e Rita dobraram já os 30 anos, faltando-lhes pouco para chegar aos 40.
Eram bem mais jovens quando se conheceram, nos anos 90, ambos estudantes
universitários, ele frequentando o curso de Medicina Veterinária e ela o de Engenharia
Florestal. Se ele exerce hoje a profissão para que se formou, ela, embora reconheça
importância ao curso que concluiu, nunca retirou dele grande proveito em termos
profissionais. Esta é uma história banal, de dois jovens que se conheceram, se
apaixonaram e se juntaram, apenas interessa neste contexto pelo facto de a macrobiótica
se ter atravessado na vida de ambos com força e impacto suficiente para influenciar a
vida que têm hoje e querem ter no futuro. Rita chegou primeiro. Na verdade, desde
muito cedo, criança ainda, por influência dos pais, eles próprios praticantes durante
algum tempo da alimentação macrobiótica. Em comum com Francisco tinha o interesse
por questões ambientais e o desejo de uma vida em maior contacto com a natureza.
No caso de Rita, o seu interesse pela macrobiótica teve uma expressão prioritária
na alimentação. Foi esse interesse que a levou a frequentar o Curso Curricular de
Macrobiótica no Instituto Macrobiótico de Portugal, e foi a chegada a este lugar que lhe
permitiu aprofundar conhecimentos que lhe permitiram exercer com mais competência a
profissão que entretanto escolhera: cozinheira na área da macrobiótica. Tratou-se de
uma escolha consciente, que se deveu mais à paixão que à formação académica, e que,
por isso mesmo, a disponibilizou a começar por onde pudesse. Fê-lo trabalhando num
restaurante, sempre confeccionando pratos macrobióticos, chegando, mais tarde, à
participação num negócio nesta mesma área. O mesmo espírito de paixão que a levou a
este ramo impeliu-a a abandoná-lo, por entender que dessa forma poderia dar uma
assistência mais adequada aos filhos que entretanto nasceram
Foram dois, esses filhos, um tem neste momento três anos, o outro apenas um.
Nasceram ambos em casa, uma vez mais numa escolha decidida, que visava evitar o que
Francisco e Rita entendiam ser o espaço desumanizado do hospital, a obrigação de
vacinação e outras intervenções abusivas sobre o corpo da mãe e do filho. A ideia de
1
«À Mesa com o Universo»
que agindo dessa forma correria riscos imprevistos esteve sempre acautelada: Rita foi
acompanhada, durante a gravidez, por uma doula, um enfermeiro obstetra, fez análises
ao sangue e duas ecografias. As crianças seguem uma alimentação macrobiótica, mas o
empenhamento dos pais leva-os a fazer algo mais, dispondo-se a educar os filhos em
casa. Argumentam que as instituições de acompanhamento de crianças não se
encontram em conformidade com o que pretendem para os seus filhos, quer do ponto de
vista da sua organização, quer no que diz respeito aos modelos educativos – além das
dificuldades que decorreriam da prática de uma alimentação macrobiótica em tais
instituições. Adeptos da pedagogia Waldorf, criada por Rudolf Steiner (1919), ou seja,
de uma proposta que incide na ideia de um desenvolvimento integrado da criança,
interligando dimensão física, anímica e espiritual, foi Rita quem se disponibilizou para
um acompanhamento a tempo inteiro, abdicando da sua actividade profissional.
Esta família vive hoje num pequeno apartamento, mas em breve ocupará uma
casa que faz parte integrante do desejo de construírem uma vida alternativa às escolhas
mais comuns. Foi, desde logo, um desafio para o arquitecto que a concebeu e para os
trabalhadores que ainda a estão a edificar. Desafio, porque se tratou de explorar novos
materiais e houve, desde o começo, vontade de inovar. Situada em meio rural, ainda que
próxima de uma área urbana, a casa é quase totalmente construída com materiais
naturais (cerca de 95%), procurando ser expressão de respeito pelo ambiente. É com
entusiasmo que falam desta casa quase pronta a estrear, e fazem-no não por vaidade,
mas por acreditarem que precisam daquele espaço para adicionar algo mais a um
projecto de vida alternativa em que acreditam.
A escolha deste caso para abrir um trabalho com a natureza que este tem é uma
opção pouco ortodoxa. A intenção, no entanto, é clara: convocar um exemplo capaz de
ilustrar algumas das questões que serão inevitavelmente abordadas ao estudar a
macrobiótica. Não que as escolhas que Francisco e Rita fizeram e ainda estão fazendo
sejam exclusivas da macrobiótica, mas sem dúvida que encontram nesta prática lugar (e
discurso) de inspiração. Pode dizer-se que este casal foi aqui tomado como um tipo
social – não um tipo ideal, mas uma expressão da realidade, o que significa dizer que
operam apenas com uma parte das possibilidades que a adopção da macrobiótica
comporta. O modo de vida que se subentende a partir da descrição que foi feita é um
modo de vida alternativo, no sentido em que assenta numa procura particular de
harmonia entre o mundo natural e social. Dela faz parte integrante uma alimentação
que dê preferência a alimentos biológicos, que sejam tão pouco refinados e processados
2
Introdução
3
«À Mesa com o Universo»
Tal como foi definida por Michio Kushi, um dos seus principais divulgadores, a
macrobiótica deriva, em termos de designação, dos termos gregos macro, que significa
longo ou grande e bios que significa vida. Para este autor, a macrobiótica significa:
(…) o modo de viver de acordo com a mais ampla das perspectivas, a ordem
infinita do universo, e tem vindo a significar a via da longevidade e
rejuvenescimento (…). A prática da macrobiótica é o entendimento e a aplicação
prática desta ordem ao nosso estilo de vida, incluindo a selecção, preparação e
modo de comer o nosso alimento diário, bem como a orientação da consciência.
(Kushi, 1978: 30-31).
4
Introdução
prática. Veremos também que existem grandes afinidades do ponto de vista sociográfico
entre os consumidores de produtos biológicos e os seguidores da macrobiótica (cf. cap.
4).
Procurarei ainda demonstrar que a macrobiótica contribuiu para transformar o
espaço alimentar (Poulain, 2003), diversificando-o, introduzindo novas concepções
sobre os alimentos e modos de os confeccionar e apresentar. Proporcionou ainda a
familiarização com novos produtos e promoveu o seu consumo. Esta transformação terá
repercussões ao nível da comercialização e distribuição de produtos, conduzindo à
criação de empresas de produção e distribuição de alimentos, como a «Erewhon»,
«Lima» e «Próvida», entre outras, que serão inovadoras, pelo menos relativamente aos
produtos que disponibilizam. Procurarei ainda evidenciar que as modificações que têm
sido introduzidas na construção de pirâmides alimentares revelam uma maior
proximidade em relação à pirâmide alimentar proposta pela macrobiótica do que no
passado. O que, com tal facto, se procurará defender é que houve transformações nas
orientações alimentares que aproximaram o mainstream da macrobiótica, uma prática
marginal, em termos de números de seguidores. A possibilidade de existirem relações
dinâmicas entre diferentes sistemas de conhecimento será assim por mim explorada (cf.
cap. 2)
Uma atenção particular recairá sobre a prática da macrobiótica em Portugal.
Numa primeira fase (cf. cap. 4) procurarei traçar uma história da macrobiótica no nosso
país, focalizando-me no contexto de emergência e nos agentes que iniciaram a
divulgação desta proposta de orientação no mundo, procurando, depois, analisar formas
de expressão da macrobiótica em Portugal, através da Unimave, restaurantes, empresas
de distribuição, experiência nas cantinas universitárias portuguesas, etc. Ainda no
capítulo 4, dedicarei a minha atenção à transmissão de conhecimentos na área da
macrobiótica, centrando-me particularmente na minha própria experiência num curso
nessa área. Esta dimensão será tomada como fundamental, dado ser responsável, em
larga medida, pela circulação de conhecimentos.
No capítulo 5, centrar-me-ei na macrobiótica enquanto sistema terapêutico,
trabalhando sobre as concepções do corpo e da saúde, procurando identificar
argumentos que sustentem diferentes formas de intervenção sobre o corpo. A temática
central desse capítulo será o pluralismo terapêutico e as políticas do corpo. Recolherei
testemunhos de indivíduos que entenderam não seguir inteiramente as orientações
médicas e procuraram soluções alternativas noutros universos terapêuticos. Essa será
5
«À Mesa com o Universo»
uma oportunidade para confrontar diferentes sistemas terapêuticos e observar que tipo
de relações é estabelecido com a biomedicina a partir da macrobiótica. Explorarei, a
partir deste confronto, a noção de articulação e de relação dinâmica entre diferentes
sistemas. Essa será também uma ocasião para me centrar no debate estrutura-agência e
na forma como o corpo é transformado em campo de experimentação. Tornado
regularmente num território de decisões individuais, esse corpo revela agentes que nem
sempre agem de acordo com estruturas hegemónicas, como as relacionadas à
biomedicina, e buscam vias alternativas. Uma busca que nem sempre é bem-sucedida, e
disso será exemplo um processo judicial que analisarei, em que um casal ligado à
macrobiótica é acusado de incompetência parental por não vacinar os filhos e os retirar
da escola, vindo a efectivar-se a retirada dos filhos à tutela dos pais e institucionalização
dos mesmos. Nem sempre o final é feliz, como no caso com que se iniciou esta
introdução. Quando os técnicos do Estado decidem ficar vigilantes sobre modos de vida
alternativos os resultados podem ser desastrosos.
Atravessa este trabalho a consciência da importância de estudar as margens. Delas
vem, frequentemente, a inovação e a experimentação de novas vias sobre o corpo, os
alimentos ou outras materialidades. Permitem o questionamento de formas mais
convencionais e institucionalizadas de acção, sendo um desafio à contraposição entre
modos diferentes de pensar e agir. Percorre ainda este trabalho a clara noção de que a
macrobiótica, como produto social que é, se tem modificado ao longo dos tempos em
função de lugares, intervenientes, processos em jogo e «caminhos multi-direccionais de
circulação do saber» (Bastos, 2011: 31). Desta forma, a macrobiótica deve ser
perspectivada como entidade dinâmica, que influencia outras actividades mas que é
também influenciada por formas de conhecimento específicas, como as que resultam do
conhecimento científico. É, portanto, em estreita articulação com outros fenómenos
sociais que procurarei analisar práticas e representações em torno da macrobiótica.
6
Introdução
acabou por funcionar como estímulo para que encarasse a macrobiótica como campo
possível de pesquisa. No sentido de confirmar esta possibilidade, e também porque me
interessava saber mais sobre a macrobiótica, acolhi a oportunidade de frequentar esse
curso. Pode dizer-se que esta decisão procurava responder tanto a um interesse, ainda
incipiente, por uma possível área de pesquisa, quanto à satisfação de uma curiosidade
algo diletante sobre um entendimento dos alimentos que me parecia algo exótico. Nessa
altura, quando pensava em macrobiótica pensava sobretudo em comida e, confesso, não
pensava em comida saborosa. Intrigava-me o facto de se seguir aquela alimentação e
julgava que deviam existir, seguramente, razões de saúde, ou outras, muito fortes, para
justificar tal opção. Para ser rigorosa, devo dizer que meu contacto inicial com a
macrobiótica havia sido anterior a essa situação; datava, na verdade, dos finais dos anos
1980, da Cantina da Universidade de Lisboa. No entanto, muito embora existisse esse
contacto prévio, o meu conhecimento sobre a macrobiótica era escasso, e essa minha
experiência anterior com a “comida macrobiótica” não havia despertado, na época, um
interesse que motivasse maior aprofundamento. Vários anos seriam volvidos para que a
macrobiótica de novo me interpelasse, agora como potencial objecto de investigação
académica.
Os primeiros passos para o desenvolvimento desta pesquisa começaram assim a
ser dados com o curso de cozinha que efectuei em 2001-02 (108h). A frequência desse
curso proporcionar-me-ia um contacto mais próximo com a visão do mundo proposta
pela macrobiótica e com um conjunto de pessoas que se interessavam sobre esta forma
de entendimento do mundo. Alguns desses contactos vinham já das aulas de yoga - o
que sugeria afinidades entre as duas práticas – noutros casos, os participantes tinham-se
interessado pela macrobiótica ao ponto de terem feito ou procurarem fazer dela
actividade profissional e meio de sobrevivência. O desenvolvimento desta investigação
iniciou-se assim com um processo que viria a ser marcante no decurso de toda a
pesquisa e que foi um processo de aprendizagem e formação na área da macrobiótica. A
opção pela realização desse curso foi por mim pensada como podendo permitir-me
aceder a uma visão distinta e algo distanciada sobre os alimentos, o corpo, a saúde, a
doença, o mundo, e, também, como forma de estabelecer contactos com pessoas que
tinham encontrado na macrobiótica significações expressivas.
Nessa primeira abordagem, não procurei nenhum direccionamento específico, em
termos de investigação, procurando mais estar atenta às questões que podiam ser
suscitadas a partir das minhas observações do que procurar respostas ou processos a
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«À Mesa com o Universo»
8
Introdução
teoria não devia ser vista como orientação clássica a desprezar, nem vista como
impedindo novas perspectivas sobre a realidade, dado ser encarada como estando
sobretudo orientada para apenas encontrar aquilo que se procura. Partir da teoria pode
ser frutuoso quando esta é perspectivada como ponto de partida e de retorno, é esse
exercício que permite validá-la, reelaborá-la ou abandoná-la caso deixe de surgir como
instrumento significativo de interpretação da realidade. Mesmo que a teoria possa ter
uma função de comando numa fase inicial, no final o que deve prevalecer é a relação
dinâmica entre teoria e elementos recolhidos. É esse dinamismo entre aspectos de
natureza empírica e aspectos de natureza teórica que permitirá uma visão mais
esclarecedora sobre aquilo que se pesquisa.
Ainda que procurasse orientar-me no terreno com relativa abertura, evitando
tornar-me refém de alguma teoria em particular, percebi, na prática da investigação, a
impossibilidade de fazer tabula rasa de toda a informação que fui adquirindo, e me
servia, de forma nem sempre consciente, como ferramenta de leitura do terreno. Apesar
de reconhecer no processo de investigação o exercício de uma subjectividade particular,
não é possível ignorar que nessa subjectividade contam aspectos que decorrem da
formação científica. Ainda que estes se combinem com mecanismos de percepção e
intuição que lhe escapam, nada disto significa, porém, uma obliteração da preocupação
com o rigor e com o carácter científico, nem justificam que no resultado do processo de
investigação se fique a saber mais sobre o investigador do que sobre o que foi
pesquisado. No caso concreto deste trabalho e nos elementos que convoco para
desenvolver esta pesquisa, sejam eles a informação obtida a partir de diversos contextos
de observação, da pesquisa documental ou de relatos de diferentes intervenientes nesse
processo, há uma procura de diversificação que visa um conhecimento rigoroso e
aprofundado sobre as práticas em torno da macrobiótica. Se é pela preocupação com o
rigor, sustentação e demonstração que se torna possível distinguir o conhecimento
científico de outros modos de conhecimento, devo dizer que tais critérios foram
seguidos. As inevitáveis lacunas são o terreno fértil para quem quiser acrescentar algo
mais a esta investigação.
“Observar”, “escutar”, “estar com”, tal como proposto por Florence Weber
(2009), foram procedimentos a que procurei recorrer para saber mais sobre as práticas e
representações associadas à macrobiótica. Aquilo de que nos apercebemos quando
observamos e escutamos é quase sempre muito mais do que quando colocamos
questões. Não pretendo com isto dizer que contactos mais orientados, como situações de
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«À Mesa com o Universo»
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Introdução
vê como meio para “ganhar a vida”; do indivíduo que procura seguir com rigor todas as
recomendações ao outro que está sobretudo interessado na dimensão filosófica da
macrobiótica.
Na recolha de elementos para esta pesquisa não foram necessárias grandes
negociações sobre a minha posição no terreno. O contexto de formação ou a minha
presença no Campo de Verão não eram, na verdade, contextos em que pudesse ser vista
como intrusa; era apenas mais alguém que estava interessado pela macrobiótica. Desde
o início deixei claro que me encontrava a desenvolver uma investigação académica
sobre a macrobiótica e fui falando sobre este trabalho com muitos dos meus colegas de
curso, mas não julgo que tenha sido vista como alguém exterior ao grupo. Encontrava-
me ali por razões tão aceitáveis como tantos outros. Por outro lado, também me pareceu
que o trabalho que me encontrava a desenvolver chegava a ser visto como algo que
necessitasse da formação que ali era proporcionada. Beneficiei, portanto, de um estatuto
de paridade no seio do grupo em que me encontrava inserida.
Em qualquer trabalho de investigação é necessário gerir proximidades e
distanciamentos. Por um lado pretende-se a confiança dos interlocutores e a
possibilidade de uma observação mais próxima, e, por outro, procura-se evitar um
envolvimento excessivo, impeditivo do necessário distanciamento para uma observação
mais imparcial. No caso desta investigação, a gestão desta dimensão acabou por ocorrer
mais na fase de reflexão e escrita do que no contexto de interacção. O modo como me
envolvi com muitos dos indivíduos que contactei não foi meramente casual e pontual,
nem intenso num momento para depois se ir esbatendo à medida que me ia distanciando
do trabalho de terreno. Alguns desses indivíduos passaram a fazer parte do meu
universo de relações e houve um significativo envolvimento da minha parte com a
macrobiótica. Contudo, a escrita acabou por ter um papel mediador face a esses mesmos
indivíduos. A atitude reflexiva inerente a esse processo acabou por contribuir para o
desencadear da gestão dessas proximidades e distanciamentos. Sobre o meu
envolvimento com esta pesquisa, devo dizer que numa primeira fase, face até à
novidade da experiência alimentar, eu própria cozinhei e segui uma alimentação
próxima dos princípios defendidos na macrobiótica, todavia, rapidamente passei a fazer
uma selecção de acordo com critérios menos macrobioticamente centrados. Muitas das
aprendizagens que fiz foram relevantes e algumas delas ainda as utilizo na hora de
escolher e preparar alimentos, integrando assim a experiência da observação e do
trabalho de terreno na minha vida.
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«À Mesa com o Universo»
12
Introdução
frequentar um curso de zen shiatsu1, também ele realizado em Braga e frequentado por
alguns dos meus colegas do curso de cozinha. Esse curso organizou-se em dois níveis e
em dois anos distintos. Assim, em 2003-04, de Setembro a Julho, frequentei o nível I,
um curso de 160h, com duas aulas por semana entre as 20h e as 22h. E em 2004-05, o
nível II, entre Outubro e Julho, com uma aula semanal, aos sábados, entre as 14.30 e as
18h, num total de 144 horas.
A frequência deste curso acabou por ocorrer por extensão à frequência do curso de
cozinha macrobiótica, como dizia. Foi aí que tive oportunidade de constatar que a
prática da macrobiótica se relacionava com outras actividades terapêuticas como o
shiatsu, a moxabustão e a massagem Do in2. Na verdade, estas actividades tinham uma
tal inter-relação que surgiam como integrando um mesmo «pacote» de ensinamentos e
de abordagem/intervenção sobre o corpo, sendo que uma formação mais completa na
área da macrobiótica implicava também esse tipo de conhecimentos. Nessa medida,
saber mais sobre shiatsu surgia como possibilidade não apenas de seguir um percurso
que é habitual neste tipo de formações e acompanhar esse processo, mas também como
forma de complementar os conhecimentos adquiridos no curso de cozinha e de aceder a
uma visão sobre o corpo que é vista, afinal, como constituindo um importante suporte às
intervenções sobre o corpo efectuadas a partir da macrobiótica. No decorrer do curso de
cozinha, um dos formadores havia já transmitido algumas noções sobre a energia ki,
sobre shiatsu, e sobre uma visão do corpo a partir dos meridianos, de tal forma que tais
temáticas surgiam como dimensões a aprofundar.
No contexto deste trabalho, não desenvolverei uma análise aprofundada do que aí
se ensinou, apenas farei menção a aspectos que considere relevantes para o
desenvolvimento da argumentação. Importa sublinhar, no entanto, a permeabilidade
entre estes diferentes cursos, e o modo como esse facto favoreceu a minha investigação.
A possibilidade de um contacto mais estreito com aqueles que frequentavam o curso de
shiatsu e que também se encontravam próximos da macrobiótica foi relevante. Por outro
lado, é de assinalar, que alguns dos que desconheciam a macrobiótica, acabaram por vir
a adoptá-la, dado que também a alimentação foi um dos conteúdos abordados no curso
de shiatsu. Como vemos, é possível observar, na verdade, uma relação estreita entre
1
Técnica em que é utilizada sobretudo a pressão dos dedos sobre o corpo para estimular a energia ki, que,
supostamente, circula através de canais específicos ou meridianos. Pode também ser utilizada a palma da
mão, os cotovelos, os joelhos ou os pés, para um diferente tipo de pressão.
2
A moxabustão é uma técnica em que é utilizado o calor, conseguido através da combustão de folhas
secas de artemísia (moxa), sobre os pontos de acupunctura. Tem como finalidade a estimulação da
energia ki. O Do In é uma técnica de auto-massagem que procura igualmente activar a energia ki.
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«À Mesa com o Universo»
estas áreas, sendo que, muito frequentemente, umas implicam as outras. No caso do
curso de shiatsu, pude constatar que havia uma maior presença masculina, ainda que as
mulheres aí fossem predominantes. No capítulo 4 terei oportunidade de apresentar com
maior detalhe dados sociográficos relativos aos formandos com os quais fui
contactando.
Da mesma forma que alguns dos indivíduos que haviam frequentado o curso de
cozinha macrobiótica foram para o curso de shiatsu, também alguns dos que
frequentaram estes cursos ingressaram no Curso Curricular de Macrobiótica no IMP.
Era assim possível observar uma “rede de formação” na qual se moviam diversos dos
indivíduos contactados. Nos anos lectivos 2005-06; 2006-07; 2007-08, frequentei o
curso curricular de Macrobiótica Michio Kushi, um curso organizado em três níveis e
que se destinava a conferir uma formação geral na área da macrobiótica. Este curso foi
leccionado um fim-de-semana por mês, das 10h às 18h ao longo dos três anos. Contou
com a presença de vários formadores, nacionais e estrangeiros, e incidiu em domínios
tidos como fundamentais para que se desenvolvesse uma actividade como conselheiro
ou consultor na área da macrobiótica. Os conteúdos de formação iam dos aspectos
filosóficos contidos na abordagem que a macrobiótica faz do mundo, a classificações
yin e yang, e aulas de cozinha. Pelo meio surgiam ainda aulas de shiatsu, de diagnóstico
visual, de anatomia, de confecção de remédios caseiros, de aplicação da teoria das cinco
transformações na abordagem do corpo…, enfim, o núcleo duro daquilo que são
considerados os ensinamentos básicos para que se possa actuar nesta área. O curso era
frequentado maioritariamente por pessoas que residiam em Lisboa ou arredores, tal
como à frente se poderá constatar, mas também por indivíduos que vinham de outros
pontos do país para frequentar este curso. Uma aluna deslocava-se mensalmente da
Madeira para adquirir essa formação. Havia também estrangeiros a frequentar o curso,
sobretudo no terceiro nível. Nesse ano a presença de espanhóis foi muito significativa.
Neste sentido, o IMP funcionava, e continua a funcionar, como centro de divulgação a
partir do qual se processa a disseminação de conhecimentos nesta área.
Dada a importância do IMP enquanto centro de formação, as minhas observações
acabaram por se centrar de forma particular nesta instituição. Havia várias vantagens
neste tipo de procedimento, por um lado tinha acesso a um conjunto organizado e
sistematizado de conhecimentos que permitiam identificar de forma mais adequada a
macrobiótica e as suas práticas, e, por outro, permitia-me um contacto próximo com
indivíduos para quem a macrobiótica correspondia a uma orientação com algum
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Introdução
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«À Mesa com o Universo»
3
Não analiso essas observações, mas a frequência desses lugares, sobretudo quando acompanhada,
permitiu muitas conversas sobre a prática da macrobiótica e as muitas dificuldades em a cumprir a
“100%”.
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Introdução
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vacinar o filho (decisão que decorrera da ligação à macrobiótica e das objecções que no
seu âmbito são feitas relativamente à vacinação) e, no outro caso, de um processo de
efectiva retirada dos filhos a seus pais por ter havido suspeita de incompetência
parental. Este segundo caso teve também na origem a decisão de não vacinar os filhos
(os pais também estavam ligados à macrobiótica), atitude que, mais tarde, levaria ao
abandono escolar e, posteriormente, à retirada da tutela dos filhos. Não terei
oportunidade, no contexto desta pesquisa, de analisar este caso de forma tão detalhada
como mereceria, mas gostaria de dizer, desde já, o quanto ele é ilustrativo das
consequências inesperadas de tomadas de acção marginais ou minoritárias, facilmente
susceptíveis de levantar suspeitas e desconfianças.
Para a caracterização sociográfica dos indivíduos contactados com ligação à
macrobiótica, recorri, sobretudo, à consulta de arquivos do IMP relativos ao registo dos
alunos. O facto de, na altura da inscrição, ser preenchido um documento de
identificação com algumas questões de ordem pessoal, permitiu uma identificação mais
rigorosa dos mesmos. Dos elementos recolhidos, darei conta mais à frente (cf. cap. 4).
Este conjunto de espaços, que podemos considerar multi-situados, constituíram a
principal fonte de informação para a realização deste trabalho. Muitos dos elementos
que resultaram das observações efectuadas acabaram por não ser directamente
mobilizados para esta pesquisa, dado que não se ligavam, de forma evidente, às linhas
argumentativas com que este trabalho foi sendo construído. Considero, contudo, que
esse não foi um trabalho vão, pois acabou por proporcionar uma visão mais ampla sobre
a prática da macrobiótica, permitindo-me reavaliar as preocupações que orientavam este
trabalho no início, reequacionando-as. Neste sentido, foi pela relação dinâmica entre
teoria e observação/recolha de informação que este trabalho foi sendo (re)pensado e
construído.
18
A escrita que desenha as margens
Capítulo 1
19
«À Mesa com o Universo»
20
A escrita que desenha as margens
sobre o modo como indivíduos que (pelo menos por enquanto) não têm nem agenda
política nem projecto objectivo de transformação da sociedade, acabam por contribuir,
por vezes de forma criativa e inovadora, como procurarei demonstrar, para transformar
a realidade social.
As questões com que iniciei este capítulo surgem agora enquadradas numa
formulação teórica que perspectiva a opção pela macrobiótica como reveladora da
importância dos processos ideológicos, dos discursos, e das crenças, na definição de
práticas alimentares e modos de concepção/ orientação no mundo. Este posicionamento
não significa que vejamos as escolhas alimentares como sendo sempre determinadas por
questões ideológicas. É bem possível seguir orientações alimentares sem prestar atenção
a concepções específicas que supostamente lhe estão por detrás (ao longo deste percurso
tive oportunidade de conhecer pessoas que se encontravam nessa situação), mas adoptá-
las já significa de algum modo um “acto de fé”. Optar pela forma de alimentação
proposta pela macrobiótica significa dar algum suporte aos princípios orientadores que
lhe subjazem, significa reconhecer como válido, pelo menos num determinado
momento, um conjunto de concepções, uma cosmovisão, que, não configurando
exclusivamente uma ideologia alimentar, também pode ser identificado como tal.
Ainda que a macrobiótica defendida e praticada hoje nos muitos centros
macrobióticos da Europa e dos Estados Unidos seja diferente da de Ohsawa (fundador
da macrobiótica moderna), tendo conhecido transformações e adequações aos novos
tempos, ela continua fiel, como procurarei demonstrar, aos princípios basilares criados
pelo seu fundador. O conjunto de concepções e sentidos associados, neste caso, à
comida, surgem assim como extremamente relevantes para compreender as práticas
alimentares. Podem proporcionar uma reavaliação do gosto e das qualidades nutritivas,
uma diferente estética e um novo conjunto de vantagens para a saúde, tal como refere
Scrinis (2007:125).
Adoptar a macrobiótica, significa, quando tal resulta de uma opção livre,
reconhecer um conjunto de orientações como válido. Pode até ser possível que não se
esteja informado sobre os “princípios filosóficos” associados à macrobiótica,
conhecimento que deveria estar subjacente à sua prática, mas quando se fazem escolhas
21
«À Mesa com o Universo»
alimentares orientadas a partir desta proposta, deposita-se valor neste tipo de orientação.
Acredita-se que aquelas escolhas, naquele momento, têm significado. Age-se, assim, em
concordância com um quadro ideológico particular, no sentido de uma visão do mundo
particular, a partir do qual são definidas escolhas alimentares e técnicas específicas de
confecção. Ainda que os indivíduos possam agir de uma forma que nem sempre é
consciencializada como estando enquadrada por uma ideologia, ela parece existir e
orientar parte das suas acções. De acordo com Žižek (1997) estaríamos aí nesse nível
fundamental de uma ideologia que é o de uma fantasia inconsciente que estrutura a
realidade social. Contudo, convém reafirmar, que se a macrobiótica não é sempre um
exercício consciente através do qual se procura colocar em acção uma ideologia, em
algumas ocasiões essa consciência encontra-se presente. Assim, procurarei argumentar
que a compreensão de práticas e concepções ligadas à alimentação macrobiótica exige
um conhecimento mínimo das orientações ideológicas que enquadram essas mesmas
práticas e concepções.
Que condições permitem tornar a macrobiótica numa opção válida? São
diversificadas as razões. Podem resultar da ocorrência de uma doença; de contactos
estabelecidos com círculos de amigos; de leituras feitas sobre esta proposta de
orientação; de uma obsessão com uma alimentação pretensamente saudável; de razões
sociais e filosóficas conectadas com movimentos ambientalistas e de defesa da “comida
saudável”; de desejo de distinção social e de outras razões ainda. Sejam quais forem os
motivos, os indivíduos atribuem sentido a esta proposta e julgam que ela pode ser a
chave para uma vida com maior qualidade (claro que esta é uma apreciação de carácter
subjectivo). A crença depositada por estes indivíduos no valor da macrobiótica leva-os a
integrarem-se em redes de relações sociais associadas à prática macrobiótica e a
procurarem, por vezes, formação específica nesta área. Adoptar uma nova forma de
alimentação não significa sempre alterar de uma forma global o estilo de vida, mas
costuma ser um bom ponto de partida para efectuar uma série de transformações, o que
evidencia a importância dos enquadramentos ideológicos na compreensão das formas de
concepção/acção. Estas mudanças, como veremos, estão longe de ser homogéneas,
podem seguir padrões rígidos numa fase e, noutras, padrões mais brandos, adequando-
se, então, num modo de vida muito menos comprometido com a macrobiótica e mais
desligado do quadro ideológico associado a esta proposta de orientação no mundo.
Usar aqui o conceito de ideologia parece quase um atavismo, dada a utilização
menos recorrente que tem sido feita deste conceito. O facto de ter havido um uso
22
A escrita que desenha as margens
excessivo e talvez abusivo desta categoria cognitiva, de ter havido sobretudo, em certos
casos, uma identificação quase exclusiva da noção de ideologia com orientações
políticas, e, ainda, de as fronteiras entre o que é ideológico e o que não o é se terem
esbatido, terá levado a que esta noção fosse considerada vaga e pouco objectivável,
perdendo assim algum do seu valor analítico (Laclau,1997). Na minha perspectiva, esta
categoria, no seu sentido mais amplo, e que aqui tomo sobretudo como visão do mundo,
continua ainda a ser um recurso com significado, na medida em que constitui um
suporte onde são encontradas orientações que frequentemente condicionam concepções
e acções. Isto não significa que toda a acção seja suportada por esse quadro ideológico,
até porque os indivíduos, com os seus fraccionamentos, se podem auto-referenciar em
diferentes quadros ideológicos. O que pretendo dizer é que a menção a esse conjunto
específico de concepções e de orientações, aqui visto como configurador de uma
ideologia, permite uma análise mais sustentada dos modos de percepcionar e de agir.
Ainda que a adopção desse quadro de referência possa ser parcial, ou não se verificar a
todo o momento, constitui um plano incontornável a partir do qual é gerado sentido e
onde entendo que devemos procurar significados.
Não é tarefa fácil identificar e enumerar sumariamente todos os aspectos que
podem ser vistos como constitutivos de uma ideologia, mas alguma dificuldade de
objectivação também não deve constituir, no meu entender, condição suficiente para
abandonar um recurso no qual reconheço valor heurístico. Na apresentação e
caracterização da macrobiótica a que procederei, procurarei identificar esse sistema de
ideias e de representações, essa visão do mundo em que por diferentes processos
simbólicos, os alimentos e o corpo vão adquirindo significados particulares. Adianto,
desde já, que há um conjunto de características que concorrem para uma
conceptualização do mundo que ajuda a compreender as orientações, escolhas e
decisões adoptadas no âmbito da macrobiótica, a saber: uma visão alternativa do
mundo, com uma visão holística do universo, da vida e do corpo; um desejo de
transformação da vida social; uma visão do mundo como sendo transformação contínua
regida por forças antagónicas e complementares yin/yang; uma cosmovisão em que se
promove a aproximação à natureza e à harmonia do mundo social com o mundo natural;
uma defesa dos produtos biológicos e pouco processados pelo facto de traduzirem uma
energia mais favorável ao desenvolvimento humano; uma crítica à biomedicina e ao
modelo agro-industrial de alimentação; uma crítica à modernidade, ao progresso e ao
23
«À Mesa com o Universo»
industrialismo. 4 Estes são pois alguns dos aspectos que considero mais relevantes na
configuração de uma ideologia orientadora da acção.
O uso que dou à noção de ideologia corresponde,assim, sobretudo à sua acepção
mais neutral e alargada, vai mais de encontro a Karl Mannheim, que a entendia como
visão do mundo, do que a Karl Marx que a tomava como deformação da realidade e
produto da classe dominante. Para Mannheim (Ideologia e Utopia, 1986 [1929]), cada
grupo, com a sua posição social, desenvolveria uma visão sobre o real que seria
expressão dessa mesma posição. Nesse sentido, e na sua acepção, os grupos dominantes
elaborariam sobretudo ideologias de justificação enquanto os grupos dominados
construiriam ideologias utópicas e de contestação. Qualquer estrutura de pensamento
era vista como implicada num processo de ideologização, podendo ser vista como
relativa e como expressão de uma perspectiva particular (cf. Bonte e Izard, 1991). Mais
do que de ideologia deveríamos então falar de ideologias. O plural adquire aqui
particular significado, pois chama a atenção para a dificuldade em reconstituir o todo
social numa ideologia, como se fosse um corpus homogéneo e harmonioso e convoca-
nos a pensar as sociedades como constituídas por diferentes lógicas simbólicas, de
encontro ao proposto por Augé(cf. Bonte e Izard, 1991).
Não pretendendo desenvolver aqui um debate aprofundado sobre o uso da noção
de ideologia, não é esse o objectivo deste trabalho, gostaria de realçar que o sentido que
aqui atribuo a esta categoria contempla essa pluralidade nas formas de concepção e de
orientação. Perspectivo as ideologias como sistemas de ideias e representações onde se
alojam teorias, convicções, crenças, formas de argumentação que condicionam as
formas de acção. As ideologias não estão fora do real (realidade simbolizada,
socialmente construída), são constitutivas desse real, surgem no coração da realidade
social e alimentam-se dele. Desta forma, perspectivo cada indivíduo como podendo
auto-referenciar-se em diferentes quadros ideológicos, de acordo com diferentes
contextos de expressão. Entendo as diferentes formações ideológicas como sendo
mutáveis e não eternas, como não tendo um sentido unívoco, mas sim um carácter
dinâmico, ou seja, como não condicionando apenas a acção mas também se deixando
influenciar por ela. São, para além disto, o resultado de entendimentos e circunstâncias
específicos, passíveis de ser reinterpretadas e recompostas.
4
Agradeço a João Guerra a leitura atenta de uma parte deste trabalho bem como a sua proposta para que
estabelecesse um paralelismo entre o movimento da agricultura biológica e o movimento que leva à
adopção da macrobiótica. Alguns dos aspectos que assinalo são sugestão sua e são efectivamente
reencontráveis no movimento da agricultura biológica (cf. Truninger, 2010)
24
A escrita que desenha as margens
25
«À Mesa com o Universo»
saturadas e, neste caso, especificamente para a manteiga, passando alguns óleos a ser
recomendados como opções “mais saudáveis”. As vantagens que haviam sido atribuídas
à margarina caíram, entretanto, por terra. É que as gorduras hidrogenadas, as gorduras
trans, onde a margarina se inscrevia, passaram a ser vistas como extremamente
prejudiciais para a saúde. Ainda que não contenham colesterol, produzem-no no corpo
quando são ingeridas. Entretanto, em contextos como o português, o Instituto do
Coração, que durante muito tempo recomendou a margarina Becel, deixou de figurar
nas embalagens do produto, mas a marca passou a incluir ómega 3 e ómega 6 para
continuar a justificar a sua importância na prevenção de doenças cardiovasculares.
Exposta a poderosos lobbies e contra lobbies, a comida tem assim sido objecto de
interpretações muito variáveis.
Face a estas inflexões e percursos algo erráticos de certas visões sobre os
alimentos, de que a margarina seria apenas um exemplo, Scrinis (2002:114) critica as
orientações dadas pelos nutricionistas e classifica-as como sendo desorientadoras e
gerando confusão. No seu entender, as categorias nutricionais, enquanto produtos dessa
ideologia alimentar que designa por nutricionismo, não guiariam adequadamente as
pessoas nas suas escolhas alimentares. Mais que isto, esta ideologia estaria a ser
explorada para preparar os consumidores para uma nova vaga de produtos que
permitiriam fazer prosperar a indústria alimentar e farmacêutica: os alimentos
funcionais e os nutracêuticos. Os primeiros são considerados alimentos comuns que
fazem parte das dietas convencionais e em relação aos quais existe evidência científica
de reduzirem os riscos de doença. Encontram-se incluídos na categoria de alimentos
funcionais os alimentos prébioticos e probióticos, caracterizando-se estes últimos por
possuir substâncias biologicamente activas (os prébióticos estimulariam selectivamente
o crescimento das bifidobactérias e os próbióticos conteriam microorganismos
benéficos para a saúde, como por exemplo oLactobacillus acidophillus)5. Quanto aos
nutracêuticos, são alimentos, ou parte de alimentos, vistos como prevenindo ou tratando
doenças. Estes alimentos podem apresentar-se sob a forma de nutrientes ou de alimentos
processados, sendo os suplementos dietéticos um exemplo deste tipo de alimento (cf.
Moraeset al, 2006). De acordo com Scrinis (2002:115), a ideologia subjacente a este
tipo de classificação dos alimentos, o nutricionismo, instrumentalizaria a ideia de que os
alimentos disponíveis podem não ser suficientes para garantir uma nutrição adequada,
5
Note-se como a diversidade de iogurtes aumentou e como a referência a estes aspectos passou a fazer
parte da promoção deste produto.
26
A escrita que desenha as margens
27
«À Mesa com o Universo»
manifestar sobre um assunto que nos é mais imediato, que pode influenciar as nossas
escolhas diárias e, que pode, pela desorientação por vezes gerada, afectar a saúde dos
consumidores.
Qual o interesse desta discussão no contexto deste trabalho? Reside justamente,
como já se antecipou, na possibilidade de podermos ampliar a discussão das orientações
alimentares como orientações ideológicas, ou seja, olharmos para os produtos
resultantes da actividade científica ligada aos estudos dos alimentos, como podendo ser
enquadrados por algum tipo de ideologia, não tomando apenas as orientações
alimentares inscritas numa religião, grupo, ou visão particular do mundo, como
produtos ideológicos. A referência a Scrinis, e à sua visão do nutricionismo como
ideologia alimentar, serve-nos aqui, sobretudo, para salientar como, em diferentes
registos, a importância dos discursos, das concepções, das crenças, influencia a visão do
mundo e as opções tomadas. O nutricionismo como contraponto à macrobiótica adquire
aqui pois particular sentido. A aproximação que estabeleço dos dois fenómenos, ao
inseri-los numa mesma categoria, a de ideologias alimentares, julgo que esbate algum
do distanciamento com que estas orientações poderiam ser pensadas. Certa das
diferenças existentes, pretendo apenas salientar o modo como os discursos que tomamos
como “verdade” acabam por influenciar escolhas e permitem compreender formas de
acção.Tal como as más práticas médicas não têm sido suficientes para abalar a medicina
(veja-se Foucault (2001), quando refere que Illich (1975), no fundo, não questiona a
medicina em si mesma, mas os maus actos médicos), também a investigação científica
de má qualidade não é, evidentemente, suficiente para descredibilizar a actividade
científica no seu todo.
Se os discursos e práticas sobre a alimentação se inserem em ideologias
alimentares isso significa que analisá-los implica sempre uma necessária atitude de
relativismo, no sentido clássico do termo, ou seja, enquanto forma de analisar e de
interpretar que deve levar em consideração contextos particulares de acção, produção e
de enunciação. Integrar o valor da contextualização (no sentido de Bateson, 1987) na
análise de fenómenos sociais surge assim como dimensão fundamental.
Para além deste aspecto, destacamos também a importância da detecção de
configurações sócio-históricas particulares (no sentido de Norbert Elias, 1990) na
interpretação desses mesmos fenómenos, dado que os posicionamentos ideológicos
devem também aí ser integrados. Decorre deste entendimento que o modo como
procurarei analisar neste trabalho as concepções e práticas associadas à macrobiótica
28
A escrita que desenha as margens
procura prestar atenção à emergência do fenómeno e aos contextos que propiciam a sua
divulgação. Talvez um dos contextos propícios a uma maior expressividade da
macrobiótica seja justamente este, o de uma sociedade caracterizada pela abundância
alimentar e que ao mesmo tempo sente insegurança em relação a certos alimentos que
consome, perspectivando-os como consumos de risco. É neste ambiente social que
muitas áreas (nutrição, alguns sectores da produção alimentar, terapêuticas
convencionais e não convencionais) criam necessidades particulares, dirigindo-se a cada
indivíduo como se fosse um doente a tratar e a requerer cuidados específicos. É também
desta forma, ainda que com argumentos peculiares, que, como veremos, os discursos de
divulgação da macrobiótica frequentemente se dirigem aos indivíduos.
6
Sobre as perplexidades da modernidade, ver Bastos (2001), Canclini (1994), Latour (1997).
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7
Corinna Treitel (2009) chama precisamente a atenção para a alimentação “natural” promovida pelo
regime nazi.
30
A escrita que desenha as margens
Muito embora a macrobiótica permaneça fiel aos seus fundamentos, tal não
significa, como se poderá perceber, um qualquer tipo de cristalização. A macrobiótica
tem vindo a conhecer fenómenos de recomposição e de alteração nos seus discursos,
sobretudo nas suas orientações alimentares. A alimentação macrobiótica que se
praticava em Portugal no final da década de 70 era, de acordo com os indivíduos
contactados, “mais rígida”, “mais yang”, por relação com a alimentação que se pratica
actualmente (claro que também aqui encontramos variações, mas o padrão dominante
8
Uso esta noção num sentido que é convergente com a ideia de configuração sócio-histórica particular.
31
«À Mesa com o Universo»
32
A escrita que desenha as margens
9
Pieter Dagnelie; Vergote et al (1990), dão conta de um estudo efectuado na Holanda junto de crianças
oriundas de famílias que haviam adoptado a alimentação macrobiótica. Nesse relevante estudo detectam
atrasos no crescimento dessas crianças, quando comparadas com crianças de famílias que seguem formas
de alimentação mais comuns. Face a estes resultados, e sabendo que tanto professores de macrobiótica
como famílias que seguiam a macrobiótica, dificilmente incluiriam cálcio e vitamina D sintetizados nos
seus consumos, propuseram o consumo de peixes gordos, a inclusão de lacticínios e a redução do
consumo de fibras para potenciar a absorção de cálcio. Os autores deste estudo referem ainda que terão
contactado o “líder dos professores dos princípios da macrobiótica”, Michio Kushi, e que este terá
aceitado os resultados obtidos. Referem ainda que Michio Kushi, através de comunicação pessoal aos
investigadores, terá afirmado incluir o consumo de peixe gordo nas suas recomendações alimentares ao
nível da macrobiótica. Os investigadores agradecem-lhe, de resto, a promessa de adaptar a macrobiótica
aos conselhos dados (cf. Dagnelie; Vergote et al:1990:207). A pirâmide alimentar proposta por Kushi
(1998), traduz alguns destes conselhos, todavia, o consumo de produtos lácteos é relegado para o topo da
pirâmide (consumo mensal, ocasional).
33
«À Mesa com o Universo»
escrevendo ao longo de séculos sobre modos de vida e dietas supostamente saudáveis 10.
Apresentadas assiduamente como condição para a regeneração dos povos, muitas destas
orientações alimentares encontram agora novos argumentos como o da defesa do
ambiente, do desenvolvimento sustentado, da possibilidade de se providenciar comida
para todos e até o argumento do avanço civilizacional que a rejeição do consumo de
carne deveria representar (tal como pude ouvir recentemente numa palestra sobre
macrobiótica). É sobretudo neste argumentário e no modo como ele dialoga com outros
movimentos contemporâneos, como os da contra-cultura, os da defesa da agricultura
biológica ou outros movimentos ambientalistas que procuraremos encontrar algumas
ligações. Argumentos como os apresentados por Peter Singer na obra Libertação
Animal (2008 [1975]) sobre o carácter não ético do consumo de carne, encontram por
vezes ressonâncias na macrobiótica. Este trabalho não se focará essencialmente nestes
aspectos, como disse, e, por conseguinte, não se deve esperar um levantamento
exaustivo destas relações, entendo, todavia, que fazer-lhes referência permitirá situar de
forma mais adequada a macrobiótica no espaço social.
Poderá parecer ambicioso um projecto que procura por um lado caracterizar a
macrobiótica, dar conta de práticas e concepções, caracterizar algumas das redes que a
alimentam e que ainda presta atenção a movimentos com os quais a macrobiótica tem
afinidades. Entendo, todavia, que proceder de outro modo resultaria num truncar deste
projecto numa parte que lhe é essencial e que tem a ver com o modo como a rejeição ou
evitamento de alguns aspectos do modo industrial de produção de comida e do modo
como se encontram organizados outros sectores sociais como a saúde e a educação
dialogam com outras tendências. A contestação/rejeição/evitamento que encontramos na
macrobiótica está longe de se constituir como movimento social organizado, com
actividade política, reitero, mas, no seu relativo silêncio, influencia actividades
comerciais e contribui para o questionamento em torno dos modos de produção
alimentar, sobretudo aqueles que se encontram assentes num modo de produção
industrial. Contribui ainda para repensar certas práticas ao nível dos cuidados de saúde.
10
Vejam-se alguns dos títulos da Biblioteca Vegetariana publicada em Portugal em 1912 pela Sociedade
Vegetariana de Portugal, sediada na altura no Porto: A questão social e a nova Sciência de Curar, por
Angelo Jorge; Dieta frugívora e Renovamento Físico, por Abramowski (trad. de João Volmer); A saúde e
a longevidade, por J. Bastos; O vegetarismo e a moralidade das raças, por Jaime Lima, etc.
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Uma investigadora albanesa, a residir em Londres, relatava-me, com alguma perplexidade, que quando se
encontrava no supermercado com um seu conterrâneo, ficava sempre surpreendida ao olhar para o conteúdo
do carrinho de compras de ambos, pois constatava que eram muito coincidentes.
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Ainda que diversas modalidades terapêuticas sejam hoje reconhecidas em Portugal - homeopatia,
fitoterapia, acupunctura, osteopatia, quiroprática, naturopatia – (Lei 45/2003) não se encontram, por
enquanto, regulamentadas, o que dificulta a sua inserção no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Algumas
seguradoras (em 2006, a AdvanceCare e, em 2011, a Multicare) passaram a proporcionar aos seus
segurados consultas e tratamentos nestas áreas. De acordo com declarações prestadas ao jornal Público
(3/4/11) por Manuel Branco, presidente da assembleia da Federação de Medicinas Não Convencionais,
Portugal teria já 3,5 milhões de consumidores de terapêuticas não convencionais e Portugal estaria “(…) a
seguir o caminho de outros países, em que, antes de o Estado regulamentar o sector, as seguradoras
responderam ao mercado”. Também Pedro Choy, presidente da Associação de Profissionais de
Acupunctura, referia no mesmo jornal que “nos Estados Unidos, as seguradoras tiveram um papel
essencial na regulamentação das medicinas não convencionais”.
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«À Mesa com o Universo»
certas práticas. Por outro lado, a maior ou menor capacidade para acolher a autonomia
dos cidadãos e os seus processos de decisão é algo que necessita de ser discutido e
enquadrado. É claro que este pode ser um ponto de divergência entre interesses
colectivos e interesses individuais. Nem sempre o sentido de responsabilidade em
relação ao grupo é confluente com decisões individuais, mas, em sociedades que se
pretendem plurais e respeitadoras das liberdades individuais, julgo deverem existir
medidas políticas que, após amplo debate e negociação, permitam a expressão dessa
mesma pluralidade.
A análise destas questões remete-nos ainda para diferentes racionalidades
(formas de ver o mundo) que orientam diferentes actores e até para diferentes modelos
de biocomunicabilidade. Este conceito é aqui usado na acepção que lhe é dada por
Briggs e Hallins (2007: 45), ou seja, enquanto actos discursivos e práticas focados nas
questões da saúde e da medicina. De acordo com estes autores, seria possível identificar
três formas de biocomunicabilidade: uma primeira, assente na autoridade biomédica;
uma segunda, onde o paciente é visto como consumidor, e, uma terceira, focalizada na
esfera pública e no activismo em saúde 14. Face a estas diferentes formas de
biocomunicabilidade e demais mecanismos que orientam os processos de escolha e de
decisão, convém referir que, se em relação a alguns indivíduos podemos reconhecer
agencialidade, e orientação numa lógica que não a da submissão a práticas
tendencialmente hegemónicas, noutros, porém, pelo menos em relação a aspectos
relacionados com o cuidado de si, pode ser observada uma atitude passiva, no sentido
de aceitação e não questionamento do tipo de tratamento recomendado. Se esta atitude
pode ser observada em indivíduos que apenas recorrem à medicina convencional,
também pode ser encontrada na macrobiótica, verificando-se, por vezes, uma aceitação
tácita e acrítica dos seus princípios.
Indivíduos diversos, que agem de acordo com conhecimentos, contextos e
circunstâncias específicas, são um desafio para qualquer ciência, sempre disposta a
encontrar, senão leis, pelo menos regularidades, padrões e tendência gerais, a cumprir
essa finalidade que, como referia Foucault (1985), é a de ordenação e classificação de
objectos. Também na macrobiótica encontramos essa diversidade. É certo que é
possível observar tendências preponderantes, mas elas muitas vezes circunscrevem-se a
14
Para estes autores, o neoliberalismo teria modificado o modelo da autoridade biomédica. A introdução
da dimensão- possibilidade de escolha- terá sido relevante (ainda que variável de acordo com os
contextos), devendo-se-lhe acrescentar o modo como a informação é disseminada através de diferentes
cartografias da biocomunicabilidade e apropriada, criando diferentes subjectividades.
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15
Esta dimensão, entre outras, foi sugerida pela discussão empreendida por Anita Hardon (EASA, 2010).
43
«À Mesa com o Universo»
2008), tal como referido por Noémia Lopes (2007), aponta, justamente, para a
necessidade de perspectivar de um outro modo os saberes leigos16.
Convém sublinhar, a este propósito, que, no caso do sistema terapêutico
associado à macrobiótica, é possível observar que os seus discursos se alimentam de
informação proveniente de instâncias que podemos situar na área das Ciências da
Saúde, revelando-se, assim, como área porosa, exposta a influências e contaminações
diversas, daí resultando a sua própria recomposição. Para referir alguma da influência
da macrobiótica na biomedicina seria necessário analisar o próprio sistema biomédico,
pesquisa a que, por limitações óbvias, não procedo. Contudo, outros trabalhos,
permitem referir uma relação dinâmica entre biomedicina e terapêuticas menos
convencionais. Veja-se por exemplo o caso referido por Salkeld (2005) em que médicos
com “formações convencionais” adoptam a linguagem das “medicinas não
convencionais” ao exercerem a sua profissão em quadros que são o da consulta em
“medicinas não convencionais”. Eisenberg e Kaptchuk (2001) chamam mesmo a
atenção para o facto de a interpenetração entre “medicinas complementares” e
“medicina ortodoxa” (talvez devêssemos também acrescentar um s a estes dois termos)
ser tão acentuado, no sentido de integração das primeiras no quadro de funcionamento
da última (ensino nas universidades e disponibilização de consultas, medicamentos e
tratamentos em estabelecimentos onde a “medicina ortodoxa” pode ser preponderante),
que esta integração poderia significar a eliminação do pluralismo terapêutico.
16
Neste contexto, é de sublinhar o esforço empreendido por Noémia Lopes (2007) para distinguir e
relacionar saberes leigos e saberes periciais.
44
A escrita que desenha as margens
macrobiótica. Este estudo, com todas as suas limitações, pode ser assim um contributo
para um conhecimento mais aprofundado deste universo. Ao procurar identificar e
conhecer uma proposta relativamente marginal da sociedade portuguesa, visará um
conhecimento mais sistemático e rigoroso que poderá ser aproveitado por outras áreas
científicas, designadamente as ciências da nutrição, no desenho de projectos de
investigação associados a formas de alimentação menos comuns.Talvez contribua para a
formulação de hipóteses de trabalho capazes de desfazer ou questionar certas assunções
e formas de olhar para a proposta de alimentação que a macrobiótica incorpora, talvez
essas hipóteses permitam refutar de forma consistente algumas das convicções da
macrobiótica.
O lugar deste trabalho, nesse âmbito específico que é o da alimentação, é o de
uma investigação em Antropologia Social sobre concepções, atitudes e formas de
relação com os alimentos. Dado que a macrobiótica extravasa o âmbito da alimentação,
houve necessidade de convocar outras sub-disciplinas que não apenas a Antropologia da
Alimentação. A Antropologia da Saúde e da Doença, a Antropologia do Corpo e
disciplinas como a História e a Sociologia serão, desta forma, referências fundamentais
nesta pesquisa.
45
Perspectivas sobre alimentação
Capítulo 2
47
«À Mesa com o Universo»
48
Perspectivas sobre alimentação
(Frazer, Crawley, Robertson Smith…) que centrou a sua atenção sobretudo em aspectos
rituais, religiosos e sobrenaturais ligados ao consumo de alimentos (análise de tabus,
totemismo, sacrifício, comunhão…) e que se interessou particularmente por descrever e
interpretar proibições e prescrições de alimentos. Interessou a estes investigadores uma
identificação e interpretação de costumes alimentares estranhos, que ajudassem a explicar
a evolução das instituições sociais (Contreras e Gracia, 2005:104). Caracterizados pela
ausência de uma inserção no terreno, estes estudos defendiam, fundamentalmente, uma
perspectiva de evolução linear que desde há muito foi questionada e rebatida nos seus
pressupostos centrais, não se revelando, também por isso, pertinente a sua discussão neste
contexto.
Continuando a seguir uma apresentação apoiada em Contreras e Gracia (2005), um
outro pólo que podemos identificar é o funcionalista, que perspectivou a cultura alimentar
como preenchendo uma função específica, procurando, nessa medida, fixar os rituais e as
crenças a ela associadas em processos sociais mais amplos (Audrey Richards, 1932; 1995
[1939]). Os aspectos simbólicos associados à alimentação foram aqui relegados para
segundo plano, havendo uma focalização sobretudo nas funções sociais que dela
decorriam. Da alimentação sublinhou-se a sua dimensão como necessidade biológica
fundamental, mas foi mostrada, também, como instrumento essencial da socialização dos
indivíduos, imprescindível na perpetuação dos sistemas sociais. Aspectos como a procura,
preparação e consumo alimentares foram vistos como componente central da actividade
quotidiana, tendo de igual forma sido analisados, ainda que em segundo plano, os valores
simbólicos dos alimentos e o modo como estes serviam para evidenciar o estatuto social,
os recursos ambientais mais valorizados e os ciclos temporais. Ainda dentro desta corrente
de pensamento, foi também prestada alguma atenção ao modo como os processos de
produção e distribuição de alimentos se repercutiam na saúde da população – o trabalho de
Richards é, de resto, um bom exemplo de tal preocupação. O que hoje mais sobressai
destas propostas de análise é, talvez, o reconhecimento das influências mútuas entre
biológico e social, sendo de notar, todavia, que, de acordo com a predominância da
perspectiva durkheimiana de que um facto social só pode ser explicado por outro facto
social, esta relação só viria a ser recuperada e repensada dezenas de anos mais tarde (ver
Fischler, 2001 [1990]).
As críticas dirigidas à escola funcionalista são já bem conhecidas: realçou-se a
visão estática que produziu dos sistemas sociais, o facto de estes não serem inscritos na
49
«À Mesa com o Universo»
História, a pretensa objectividade, o facto de não se dar a atenção adequada aos conflitos e
aspectos não funcionais, etc. Apesar de tudo, vale a pena referir que de acordo com autores
como Beardsworth e Keil (1997: 59-60), as interpretações funcionalistas continuam a
permanecer, ainda que apenas de forma implícita, no centro de muitas investigações
actuais. Da minha parte, julgo que continua a ser pertinente a análise dos subsistemas de
produção, distribuição e consumo alimentar e o modo como estes influenciam os sistemas
sociais. Estas dimensões são, de resto, centrais em algumas das propostas de que mais à
frente falarei. De acordo com Contreras e Gracia (2005:115), predomina no panorama
actual uma orientação um pouco difusa, de inspiração funcionalista, que tem servido de
base para uma colaboração entre antropólogos e nutricionistas.
Uma outra vertente dos estudos sobre alimentação apontada por Contreras e Gracia
(2005) é o culturalismo, corrente que, em boa medida, coincidiu temporalmente com o
funcionalismo. Conferindo uma orientação psicológica aos seus estudos, o culturalismo
enfatizou a importância do conhecimento dos hábitos alimentares, e o modo como
diferentes culturas orientam os comportamentos neste âmbito particular. A preocupação
com o combate à fome no mundo foi aí também um elemento presente (Mead, 1997
[1970]). Os trabalhos realizados antes da Segunda Guerra Mundial centram-se em aspectos
como a ansiedade em torno da comida, a abstinência ou as frustrações alimentares (Messer,
1984). Mais tarde, tal como referido por Contreras e Gracia (2005:116), retomou-se a
análise psicológica das motivações dos comportamentos alimentares, procurando-se
observar, por exemplo, o modo como a ansiedade em torno de carências alimentares reais
ou fictícias, ou outros aspectos, podiam afectar a ordem cultural, social e psicológica de
uma sociedade (Shack, 1997 [1969]), Holmberg (1950), Massara (1997 [1989]) O que
interessa reter, a propósito da abordagem culturalista, é o lugar central atribuído à cultura:
é ela que determina diferentes práticas e representações alimentares. De acordo com
Contreras e Gracia (2005:128) durante os anos 1960 e 1970 aspectos como a imbricação de
factores económicos, ecológicos, tecnológicos e sociais, bem como a atenção às
configurações históricas e transformações sociais são menosprezados.
A vertente estruturalista, por seu turno, divulga uma concepção segundo a qual
para se compreender um sistema de alimentação nos devemos centrar nas estruturas
profundas e observar, por exemplo, de que forma o gosto e a definição do que é ou não
comestível se encontra conforme à sociedade e cultura. Evitando qualquer reducionismo
biológico a que a questão da alimentação se pudesse prestar, Lévi-Strauss esforça-se por
50
Perspectivas sobre alimentação
demonstrar que só depois de os alimentos serem reconhecidos pela nossa mente como
comestíveis é que são consumidos, ou seja, são os significados sociais atribuídos aos
alimentos, no quadro de uma taxonomia, que os tornam passíveis de ser ingeridos. Uma
outra proposta estruturalista é a de que devemos considerar os sistemas de alimentação
como sub-sistemas, não sendo possível no interior de cada sub-sistema, analisar os
elementos isoladamente (Lévi-Strauss, 1965,1968; Barthes, 1997 [1961]; Douglas, 1979;
1997 [1975]; Sahlins, 1988 [1976]; Fischler, 2001 [1990]); Bourdieu, 1979).
Nem sempre é fácil “arrumar” autores, todos eles referenciais e que, pelo menos em
alguns casos, se colocam em posições intersticiais e combinam aspectos que parecem
provir de diferentes quadros teóricos. Assim, Sahlins, embora possua referências fortes na
perspectiva estruturalista, amplia-a e dá-lhe novos horizontes, podendo ser remetido para o
culturalismo simbólico. A sua ideia de que a lógica simbólica que orienta a procura de
alimentos é a de que os que são comestíveis são os que se encontram em relação inversa
com a humanidade, quer dizer, quanto mais próximos do homem menos são consumidos,
expressa bem a importância dos aspectos culturais e simbólicos da sua perspectiva de
análise (Sahlins, 1988 [1976]). Douglas, por seu lado, evidencia tanto a influência da
corrente estruturalista francesa como a do estrutural-funcionalismo britânico.
Considerando fundamentais os aspectos biológicos do acto alimentar, esta autora, coloca,
contudo, a ênfase no carácter expressivo e significativo da alimentação (Douglas, 1991
[1966])
Bourdieu, pode, também, ser colocado entre os teóricos estruturalistas e os
materialistas, já que perspectiva o gosto e as preferências alimentares na óptica da
transmissão e da reprodução social. De facto, colocando em causa a ideia de que o gosto
seja uma escolha pessoal, Bourdieu (1979) defende que o gosto e os consumos alimentares
são uma expressão da identidade de classe através da qual se reproduzem distinções
sociais. As mudanças sociais, ligadas por exemplo, à ascensão social, resultam da
apropriação de consumos, práticas e valores das classes sociais dominantes, ou seja, é pela
imitação que se processa a alteração de uma situação social. Contudo, esta imitação nem
sempre dá lugar, de forma imediata, a uma inserção numa nova classe social. Certos
indivíduos ao procurarem mimetizar comportamentos alteram-nos, produzindo realidades
novas, não sendo assim linear a identificação com a classe social com a qual procuram ser
assimilados. A classe social surge em Bourdieu, desta forma, como estrutura relativamente
resistente; encontra-se associada a consumos alimentares e a um sentido do gosto
51
«À Mesa com o Universo»
específicos. Estes aspectos não são meramente individuais, antes resultam de uma
aprendizagem no interior de uma classe social a que não se acede unicamente pela
aquisição de capital económico.
As principais críticas aos trabalhos estruturalistas e que, de resto, também podem
ser dirigidas aos culturalistas, têm a ver com o facto de conferirem prioridade à análise dos
elementos descritivos e estruturais da alimentação e de conferirem uma autonomia
excessiva à razão cultural, sobrepondo-a a fenómenos materiais de ordem biológica,
ecológica ou histórica, negligenciando, dessa forma, o estudo do contexto sócio-económico
e político em que os alimentos são preparados e consumidos, bem como a sua evolução
espacial e temporal (Contreras e Gracia, 2005:127).
Algumas das principais respostas às orientações estruturalistas e culturalistas
podem ser situadas em torno dos trabalhos de Harris (1994 [1985]) e Ross (1980) por um
lado, e os de Goody (1998 [1982]), Mennell (1985), Mintz (1985;1996) e Beardsworth e
Keil (1997) por outro. Harris e Ross costumam ser situados na corrente neo-funcionalista,
na ecologia cultural ou no materialismo cultural. Os seus trabalhos incorporam uma
orientação ecológica e retomam aspectos da perspectiva materialista que haviam sido
redefinidos por Steward (1972 [1955]) e White (2005 [1949]). À premissa de Lévi-Strauss
«bom para pensar, então bom para comer» Harris (1994 [1985]) contrapõe a de «bom para
comer, então bom para pensar», enfatizando a ideia de que a comida tem que satisfazer em
primeiro lugar o estômago e só depois a mente. Ancorando a sua análise na compreensão
dos mecanismos de adaptação ao meio e realçando a importância das infra-estruturas
económicas em detrimento das super-estruturas ideológicas, Harris oferece-nos uma
interpretação da cultura alimentar e das preferências e proibições na qual os pontos de vista
dos actores sociais são ignorados e onde a tónica é colocada em critérios como a
maximização dos recursos disponíveis - é essa, por exemplo, a sua explicação para a
interdição do consumo de carne de vaca na Índia.
Apesar das críticas severas às posições de Harris, apresentadas por autores como
Sahlins ou Douglas, a ecologia cultural e o neo-funcionalismo abriram caminho para os
estudos etno-ecológicos que se desenvolveram entre os anos 70 e 80, de que é exemplo o
trabalho de Rappaport, (2000 [1968], 1979). De acordo com Contreras e Gracia
(2005:135), esses estudos apresentaram novas perspectivas ao defenderem que a
alimentação humana não depende apenas da adaptação aos ecossistemas, mas também das
heranças culturais; das elaborações surgidas mediante o contacto com outras populações;
52
Perspectivas sobre alimentação
dos constrangimentos face a factores externos e, também, traço relevante e que afasta esta
perspectiva dos neo-funcionalistas, do comportamento dos indivíduos enquanto actores
sociais. Estes aspectos implicavam, na verdade, uma nova postura teórica e metodológica,
obrigando a trabalhar com modelos interaccionais e processuais.
Outros autores a que já fiz referência, nomeadamente Goody (1998 [1982]),
Mennell (1985), Mintz (1985; 1996) e Beardsworth e Keil (1997), tecerão também críticas
às perspectivas culturalistas e estruturalistas. Estes autores costumam ser associados às
interpretações materialistas pela importância que atribuem à análise dos contextos
alimentares e pelo destaque que conferem a factores como o espaço, o tempo e a dinâmica
social dos grupos em diferentes quadros sócio-económicos e culturais. Autores como
Contreras e Gracia (2005:136) agrupam-nos sob o termo developmentalism, dada a sua
preocupação fundamental com o estudo do desenvolvimento dos sistemas alimentares.
Realçam, porém, que o developmentalism não é uma perspectiva explícita ou um corpo
teórico homogéneo, é sobretudo uma categoria, de acordo com a qual qualquer tentativa
para compreender as formas culturais e sociais contemporâneas deve ter em consideração a
relação destas com o passado e deve apelar à reconstrução histórica. As transformações
sociais tornam-se desta forma num tema fundamental, a partir do qual se analisarão os
efeitos da globalização, os conflitos, as contradições e as relações de poder em relação à
produção, distribuição e consumo de alimentos.
Goody (1998), que questiona a abordagem de Lévi-Strauss pela ênfase dada à
cultura e pela pouca importância atribuída às relações sociais e às diferenças individuais,
defende que não é possível uma análise da cozinha desvinculada das questões de poder e
de autoridade na esfera económica e que, consequentemente, é necessária uma análise da
estratificação social e divisão sexual do trabalho, dado que estes aspectos influenciam as
práticas alimentares. A sua análise sobre grupos do norte do Gana (Gonja e Lo Dagaa)
levá-lo-ia também a colocar em evidência os efeitos sociais produzidos pelos processos de
mudança que ocorrem a uma escala mais global, designadamente os que têm a ver com a
evolução da ‘alimentação industrial’.
Mennell (1985), desenvolvendo um estudo comparativo sobre a evolução das
cozinhas francesa e inglesa, procurou, também ele, compreender as diferenças e
semelhanças que se foram estabelecendo entre estas cozinhas, bem como entre as classes
sociais. Na sua abordagem aplicou a perspectiva de Elias (1989 [1939]), prestando atenção
a processos históricos e diferentes configurações sociais. Procurou, todavia, ampliar o
53
«À Mesa com o Universo»
trabalho desenvolvido por Elias. A seu ver, Elias centrou-se nas maneiras à mesa, nada nos
dizendo sobre o apetite (distinto da noção de fome em Mennell) como processo
civilizacional. Para Mennell o sentido do gosto, a civilização do apetite, era importante
enquanto processo histórico. Esta civilização do apetite só pôde evidenciar-se numa
situação de segurança alimentar e foi concomitante com o desenvolvimento da sociedade
de corte. Mennell defenderia ainda que uma maior interdependência e equilíbrio de
poderes entre classes sociais proporcionariam um maior equilíbrio na distribuição de
alimentos, facto que, muito embora não fosse linear, contribuiria para uma maior
similaridade entre cozinhas. A resolução da escassez dos alimentos, bem como o maior
equilíbrio na distribuição dos mesmos, seriam, assim, aspectos fundamentais para
compreender o desenvolvimento das cozinhas nacionais.
Para Mintz (1985) a análise do contexto alimentar nas suas diversas vertentes
(histórica, espacial, económica…) é também muito relevante, apontando este autor a
necessidade da elaboração de uma História Social sobre o uso de novos alimentos. O seu
trabalho sobre a produção, comercialização e consumo de açúcar - Sweetness and Power
(1985) – procura demonstrar que o consumo de açúcar pela classe trabalhadora no séc.
XIX não pode ser explicado apenas na óptica da imitação ou do gosto inato pelas
substâncias doces, mas pela interacção entre poderes económicos, políticos, necessidades
nutricionais e significados culturais. Curiosamente, defende Mintz, a suposta preferência
humana pelo doce teria encaixado perfeitamente na expansão do sistema capitalista
industrial. Constatamos que para ele, como para outros, por exemplo Fischler (2001), a
modificação dos hábitos alimentares não tem a ver apenas com um desejo de ascensão
social, pois nem todos os consumos das elites se convertem em desejos para as outras
classes sociais, sendo, ao contrário, realçada a importância das circunstâncias em que um
novo hábito é adquirido.
A análise de Beardsworth e Keil (1997), sobre a pluralidade de menus disponíveis
no sistema alimentar moderno, vai também de encontro à necessidade de contextualização
dos sistemas alimentares. A questão do desenvolvimento de tais sistemas encontra-se,
também aqui, muito presente. Para estes autores, o pluralismo na oferta de possibilidades
de alimentação é o resultado da globalização e da industrialização da produção e da
distribuição. Contrariamente a autores como Fischler (2001) que tendem a identificar a
sociedade actual com a gastro anomia, querendo com isto fazer referência à desagregação
54
Perspectivas sobre alimentação
das referências normativas17, Beardsworth e Keil tendem a ver as tensões existentes como
emergência de uma nova ordem alimentar, mais aberta, flexível e plural.
Também os estudos de género fizeram a sua incursão pela alimentação, sendo
possível identificar um primeiro conjunto de trabalhos que se centrou, sobretudo, nas
questões do poder e no modo como a acção de homens e mulheres, relativamente à
produção, armazenamento e distribuição de alimentos se traduzia em relações de poder.
Tal como referido por Contreras e Gracia (2005:149), um segundo conjunto de trabalhos
interessou-se ainda pela análise do poder subjectivo - Caplan (1997); Counihan (1999);
Orbach (1986) Adams, (2010 [1990]) – tendo-se centrado em torno das diferentes relações
que homens e mulheres mantêm com a comida e no modo como estas se repercutem na
construção das suas identidades de género. Os estudos feministas das últimas décadas
tendem a enfatizar, de resto, que as mulheres não actuam sempre de igual forma e que não
são nem meras receptoras de uma sociedade patriarcal, nem inteiramente manipuladas por
interesses económicos e políticos. Esta visão remete, assim, para o debate estrutura-
agência.
Algumas das tendências mais recentes nos estudos sobre alimentação podem ser
identificadas com o construtivismo social e o pós-estruturalismo (Lupton, 1996;
Hepworth, 1999), o debate estrutura-agência (Germov e Williams, 2004 [1999]) e o
embodyment (Shilling, 2003 [1993]) (ver Contreras e Gracia, 2005). Nestas vertentes
acentuam-se aspectos que julgamos relevantes; a visão da realidade social como
construção social, resultante de discursos e dos significados produzidos por estes; a
necessidade de interpretar os fenómenos mediante a pluralidade de circunstâncias que os
produzem; a ênfase na subjectividade; a procura da conexão entre factores estruturais e
individuais; o entendimento da ordem social e da formação da identidade como sendo cada
vez menos uma questão de classe social; a ênfase nos padrões de consumo como forma de
evidenciar a posição individual e expressar a individualidade; as críticas às teorias da
conspiração dos sistemas capitalistas que manipulam os indivíduos e determinam as suas
formas de expressão; o reconhecimento do papel da acção individual e abandono da ideia
de sujeição a um sistema; a visão dos indivíduos como não sendo nem totalmente
poderosos nem como estando completamente desapossados; o estudo do corpo como lugar
crucial para a compreensão dos processos de identidade e saúde; a rejeição dos
essencialismos e o apelo a conceitos como relativismo, interacção social e processualismo.
17
Um exemplo do que se afirma seria a grande flexibilidade nos horários das refeições.
55
«À Mesa com o Universo»
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Perspectivas sobre alimentação
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«À Mesa com o Universo»
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Perspectivas sobre alimentação
alimentação (cf Lupton, 1996:1), pois a macrobiótica coloca-se num outro plano, o do
desenvolvimento da espiritualidade, já que é dessa forma que é vista por muitos dos
seguidores.
Lupton (1996), ao defender que as escolhas alimentares - e as emoções associadas a
estas - devem ser vistas como o resultado de um processo de construção social, mediado
pela cultura e pela sociedade, contempla uma perspectiva a que considero ser importante
prestar atenção, focalizando-a a partir da macrobiótica. Este modelo alimentar instaura
precisamente uma ruptura com hábitos e tradições associados à alimentação. Quem, por
acaso, conheça a despensa ou cozinha de indivíduos que pratiquem alimentação
macrobiótica, depara-se, inevitavelmente, com um conjunto de ingredientes que são
desconhecidos da maior parte dos portugueses. Não apenas os ingredientes são diversos
como também algumas das técnicas de confecção se afastam dos costumes nacionais. Face
a uma necessária reinvenção do acto alimentar, para a qual os praticantes de alimentação
macrobiótica são convidados, e que evoca outros contextos e outras culturas, como
equacionar, então, a questão da mediação cultural e social? Nancy Chen (2009: 111)
defende a necessária contextualização social e cultural das “dietas” ou dos “regimes
alimentares”, realçando que a simples replicação dessas dietas pela indústria alimentar é
inadequada. Esta posição, concordante com a importância atribuída pela autora à cultura e
aos sistemas de conhecimento na análise dos alimentos, pode ser um bom ponto de partida
para analisar a questão atrás enunciada.
Quando se procura contextualizar a alimentação macrobiótica do ponto de vista das
referências culturais e sociais, ela surge, na verdade, como um objecto ambíguo. Da
mesma forma que as mercadorias têm uma vida social (Appadurai, 1986), também a
macrobiótica, que não deixa de ser um produto possui essa vida. Circulando pelas pessoas
e pelo mundo, foi conhecendo transformações em diferentes contextos culturais e sociais.
Nas palavras de um dos formadores na área da macrobiótica que foram contactados, a
alimentação macrobiótica encontrar-se-ia radicada na alimentação tradicional japonesa,
devendo ser compreendida a partir desse contexto. Sabemos que Ohsawa (fundador da
macrobiótica moderna) reuniu muito conhecimento relativo à alimentação tradicional
japonesa (cf. Koztsh, 1981), mas construiu um sistema de alimentação e um sistema de
pensamento que continha algo de inovador. Influenciado por filosofias orientais, como o
taoismo e o budismo, desenvolveu uma classificação muito pessoal dos alimentos,
servindo-se das categorias tradicionais de yin e de yang. O que sucede é que, embora
59
«À Mesa com o Universo»
baseado na matriz binária (yin/yang) inventada pelos chineses, dá-lhe uma nova vida ao
reinventá-la. Tal como me foi referido numa das aulas do curso curricular Michio Kushi
(IMP), Ohsawa reinterpretara as noções de yin e de yang para as tornar mais
compreensíveis para os ocidentais. Podemos dizer que o sistema de conhecimento que se
encontra por detrás da alimentação macrobiótica tem por referência filosofias orientais,
abarcando particularmente o contexto sino-japonês, mas devemos ter presente que a
remissão para uma tal vastidão torna problemático o uso da ideia de quadro cultural.
De qualquer modo, a forma como a macrobiótica viaja pelo mundo e o facto de ser
provavelmente mais conhecida nas sociedades euro-americanas do que na China ou no
Japão, contribui para a difícil caracterização deste objecto. A sua desterritorialização
confere-lhe, na verdade, características singulares, na medida em que problematizam a sua
contextualização. Não havendo na macrobiótica uma correspondência entre uma forma
cultural específica e um lugar, e, muito menos a ideia de uma relação orgânica entre uma
população, um território e um conjunto organizado de significados, tal como referido por
Hannerz (1998:37), os termos da sua identificação e contextualização necessitam de
procurar outras vias. Se pensarmos a macrobiótica como forma cultural, podemos mesmo
encontrar nela uma boa ilustração para um objecto cultural desterritorializado,
fragmentário, poroso, adaptável a homens e lugares. Não conhece fronteiras, captura
significados de causas ambientalistas, mas também resultados da actividade científica,
transita pelo mundo com o seu conjunto organizado de sentidos, sendo, ainda assim, capaz
de se adaptar em diversos aspectos a sistemas culturais locais e às “suas cozinhas”. Produz
identidade entre os indivíduos que a ela aderem, sendo possível ver nela um espaço de
reconhecimento marcado por uma certa universalidade.
Quando alguém adere à macrobiótica, instaura, como referi, uma certa ruptura com
uma forma de alimentação e com a cultura alimentar em que surge integrado. Até que
ponto substitui a sua cultura alimentar por outra? A sua prática alimentar é uma prática
descontextualizada por relação às práticas predominantes, uma fuga em relação a um tipo
específico de prática cultural e socialmente construída? Como contextualizar a
macrobiótica? Pelo que venho afirmando e pelo que mais à frente se tornará mais explícito,
a perspectiva territorial, no sentido de análise de um fenómeno como sendo relativo a um
território em particular ou a um contexto geográfico e cultural específico, não permite uma
análise consistente sobre a macrobiótica, antes devendo essa contextualização ser
sobretudo procurada num sistema de conhecimentos com o qual diferentes indivíduos se
60
Perspectivas sobre alimentação
18
Cultura alimentar entendida no sentido que lhe é atribuído por Mabel Gracia: «conjunto de actividades
estabelecidas pelos grupos humanos para obter do meio envolvente os alimentos que possibilitam a sua
subsistência, desde a aquisição, produção, distribuição, armazenamento, conservação e preparação dos
alimentos, até ao seu consumo, incluindo aí todos os aspectos simbólicos e materiais que acompanham as
diferentes fases desse processo». (Gracia, 2002:17) [Tradução livre]
61
«À Mesa com o Universo»
associados às prescrições dietéticas, tendo assim havido uma substituição das concepções
moralistas por outras de carácter científico.
Ainda que tal se verifique, convém dizer, a este propósito, que muito embora a
ciência e a biomedicina possam corresponder hoje a formas mais institucionalizadas e
aceites de discursar sobre o corpo, a preocupação com questões de saúde e com a
manutenção de um corpo saudável nunca deixou de estar presente nas diversas orientações
dietéticas que foram produzidas ao longo dos séculos. Se tomarmos como exemplo
específico a alimentação macrobiótica, constataremos que um corpo saudável surge
frequentemente como condição para o “desenvolvimento espiritual”. Em todo o caso, tal
como procurarei demonstrar, alguns dos discursos da área das ciências da saúde, em
particular das ciências da nutrição, invadiram efectivamente os discursos sobre
alimentação e saúde produzidos na macrobiótica, levando a que os alimentos fossem
também aqui classificados em termos nutritivos e em termos de efeitos relativos à saúde.
Verifica-se assim que a macrobiótica não é um sistema fechado, mas antes aberto a
influências diversas. Podemos também dizer que diversos aspectos da sua prática
alimentar, como a valorização dos cereais integrais na alimentação, ou a utilização de
certos ingredientes como o tofu, parecem, em contrapartida, ser cada vez mais
reconhecidos e considerados importantes na alimentação. Atente-se a este propósito, e tal
como poderá ser observado mais à frente, à pirâmide alimentar criada pelo departamento
de nutrição da Universidade de Harvard que inclui, precisamente, cereais integrais e tofu.
O que este processo indicia são relações dinâmicas entre diferentes sistemas de
conhecimento. Os sistemas dominantes “contaminam” os marginais, que, por vezes, para
se afirmarem necessitam de uma linguagem mais próxima da ciência. Contudo, os
dominantes, acabam por ser alterados para formas que permitem algum grau de identidade
com aqueles que são marginais, ainda que tenham de desenvolver um conjunto de
procedimentos específicos para sustentarem as verdades a que chegam.
62
Perspectivas sobre alimentação
2.3 Estudos Sociais sobre Alimentação em Portugal: Interpelações a uma pesquisa sobre
a Macrobiótica
63
«À Mesa com o Universo»
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Perspectivas sobre alimentação
19
As referências que Saramago faz à alimentação dietética são breves e focam-se essencialmente nos
aspectos dietéticos da alimentação muçulmana. Curiosamente, é possível detectar nos aspectos que refere
alguns pontos de contacto com a macrobiótica, como se uma raiz comum assistisse a esses dois sistemas de
interpretação.É bem provável, aliás, que as concepções hipocráticas tivessem influenciado ambos os
sistemas.
65
«À Mesa com o Universo»
associada, surgem assim como elementos simbólicos a partir dos quais é possível
esconjurar a desagregação social e legitimar uma nova configuração social. Neste âmbito, a
dádiva a residentes e forasteiros e as prestações alimentares «(…) ao mesmo tempo que
ligam os homens à divindade, ligam também os homens entre si.» (Leal, 1991: 35).
Surgem como forma particularmente expressiva de os lugares e a freguesia se
apresentarem como «corpo social unificado» (ibid.:41) ou, quando se recusa a prestação de
alimentos, de evidenciarem a sua dissidência e desejo de autonomização. Na análise da
ruptura do vínculo ritual do lugar de Santo Antão, (que se recusou a participar nos festejos
da freguesia a que pertencia - Topo), João Leal evidencia claramente como a quebra de
solidariedade expressa na recusa da participação e da dádiva servem para representar a
tensão social. É de reforçar que a festa e a comida não são, no seu trabalho, o objecto
último de análise, antes são convocadas enquanto instrumentos de análise de fenómenos
mais gerais, facto a que, indubitavelmente, a alimentação se presta.
Maria Manuel Valagão (1990, 2006) tem dirigido a sua pesquisa em torno de
dimensões como a mudança social, a inovação e tradição. O seu trabalho, Práticas
Alimentares Numa Sociedade em Mudança. Estudo de Caso numa Freguesia do Alto-
Douro (1990), é marcante nos estudos sociais sobre alimentação. Neste trabalho procurou
observar de que modo as transformações sócio-económicas da região, observadas nos anos
1980, se repercutiam no sistema e práticas alimentares. Mudança social e continuidade
foram, pois, conceitos chave na sua abordagem. O trabalho de Raquel Moreira tem-se
também centrado no modo como a comida pode reflectir transformações sociais. Na
pesquisa que desenvolve no concelho de Sintra (Moreira, 1995), aborda o modo como as
práticas alimentares e as sociabilidades foram modificadas com o turismo. A sua análise
leva-a a defender a importância de se aliar turismo, gastronomia e agricultura como forma
de projecção local. Os recursos alimentares e a cozinha regional são também por si
analisados na óptica da identidade territorial (Moreira, 2006).
Autores como Vasco Teixeira (1993, 2005), Daniela Araújo (2009) e José Manuel
Sobral (2004), partindo da cozinha regional/local, têm também contribuído para a análise
de processos que permitem um conhecimento mais aprofundado do fenómeno alimentar
em Portugal. Focalizando-se nas práticas alimentares do Fundão, Vasco Teixeira procura
caracterizar e definir os principais traços da cozinha local. Em conjugação com este
aspecto, desenvolve uma etnografia minuciosa do que considera serem os principais
elementos distintivos dos manjares - elementos alimentares, técnicas de preparação e
66
Perspectivas sobre alimentação
20
Trabalhando a partir de histórias de vida e de memórias ligadas à alimentação no concelho de Chaves,
desenvolveu o trabalho: O local e o global na construção de uma paisagem alimentar plural. Das versões
privadas e públicas da cultura alimentar às ativações do património alimentar de Chaves. 2011. Dissertação
de doutoramento a aguardar defesa.
21
Ver Araújo, Daniela. «Das comidas aos lugares». Disponível em
http://www.mapadasideias.pt/?p=919&lang=pt [Acedido em 14.08.11].
22
A Resolução do Conselho de Ministros nº 96/2000, Diário da República, 171, série I-B, de 26/07/2000, pp.
3618-3620, já consagrava a gastronomia nacional como património intangível que cumpria salvaguardar e
promover. Em 24 de Janeiro de 2008 é aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República
n.º 12/2008, a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adoptada na 32.ª Sessão da
Conferência Geral da UNESCO, em Paris, a 17 de Outubro de 2003. A Convenção é ratificada em 2008 pelo
decreto do Presidente da República nº 28/2008, Diário da República,60, série I, 26-03-08, p. 1685. O
Decreto-lei nº139/2009 estabelece o regime jurídico de salvaguarda do património cultural imaterial e
reconhece a sua importância na internacionalização da cultura portuguesa - Diário da República, 113, I série,
15-06-09, pp. 3647-3653.
67
«À Mesa com o Universo»
vendido como representando a essência desse lugar contribuindo para marcar a identidade
local e/ou regional das suas populações, facto que tem sido rentabilizado pela indústria
turística»23. Acrescenta ainda que «Esses processos de ativação do património alimentar
assumem frequentemente uma dimensão de neotribalismos gastronómicos fundados em
afiliações, mais ou menos naturais, das comidas aos lugares e da diferenciação dos últimos
por referência às primeiras» (ibid.). Estas afirmações remetem, sem dúvida, para um
posicionamento problematizante em torno da cozinha regional e para o modo como ela
pode servir interesses locais, nacionais e transnacionais, aspectos através dos quais
estratégias e políticas associadas à comida merecem ser pensadas.
As questões a que acabo de aludir, reenviam-nos para fenómenos como a
regionalização, nacionalização e internacionalização, podendo ser pensadas à luz de
conceitos como relocalização e deslocalização (Poulain, [2002] 2003: 19-29)24. É pela
evocação destes conceitos e pelo reconhecimento da sua presença na culinária e
alimentação portuguesas que José Sobral analisa questões ligadas ao nacionalismo,
cosmopolitismo e estrutura de classes (2007, 2008). Tomando como referência um festival
nacional de gastronomia, onde a cozinha regional se encontra representada (2007) e,
posteriormente, os menus coleccionados pelos escritores Ramalho Ortigão e Carlos
Malheiros Dias (2008), José Sobral analisa diferentes práticas em torno da alimentação na
sociedade portuguesa e o modo como elas se podem prestar a objectivos sociais diversos.
A exaltação da cozinha nacional, do mesmo modo que a internacional, julgo poder ser
entendida no seu trabalho como devendo tomar sempre em consideração os agentes
implicados e os efeitos que estes procuram.
Se a sublimação da cozinha regional é indispensável ao estabelecimento de uma
cozinha nacional - «O nacional é o regional.», observa Sobral (2007:25) a propósito do
XXIV Festival Nacional de Gastronomia de Santarém (Outono de 2004) - o
cosmopolitismo alimentar pode ser uma boa forma de expressar a diferenciação social. A
nação, com a sua cozinha nacional composta a partir das diferentes cozinhas regionais,
projectava-se nesse festival a partir das regiões, afirmando a sua identidade nessa
diversidade. Nessa encenação da nação, palavras e alimentos fundem-se, concorrendo para
23
Ver Araújo, Daniela. «Das comidas aos lugares». Disponível em
http://www.mapadasideias.pt/?p=919&lang=pt [Acedido em 14.08.11].
24
A relocalização remeteria para processos onde o “tradicional” e o “autêntico” são valorizados, e onde o
território, a região, são exaltados enquanto lugares de produção. Por sua vez, a deslocalização remeteria para
um âmbito de circulação mais global e para a industrialização de certos alimentos.
68
Perspectivas sobre alimentação
um objectivo que acaba por conduzir a um duplo efeito: criar particularismos através dos
quais cada região se pode autopromover, e afirmar a identidade nacional pela riqueza da
diversidade apresentada. Sabe-se que nestes processos a incorporação de discursos sobre o
que deve ser uma cozinha regional/nacional (que os livros de cozinha tão bem servem para
codificar) acaba por contribuir para criar a própria realidade. É dessa relação dialéctica
entre palavras e práticas que parece resultar aquilo que se pode designar por cozinha
regional ou nacional. Sobral nota, justamente, duas dinâmicas distintas mas comunicantes
na relação entre nacionalismo e cozinha, por um lado os actos alimentares quotidianos de
produção e consumo, lentamente incorporados, por outro, um conjunto de intervenções
intencionais, pedagógicas, doutrinária e políticas através das quais se procura promover a
cozinha portuguesa (Sobral, 2008:118). Uma cozinha regional ou nacional, tal como é
sugerido por Sobral, é sempre o resultado de circunstâncias históricas, políticas e
económicas particulares, de diversos cruzamentos. É assim que diversos pratos tidos como
nacionais, podem, nos seus aspectos mais estruturantes, ser encontrados noutros contextos.
O cosmopolitismo alimentar, observado em Portugal tanto no séc. XIX como no
séc. XX e XXI, evidenciou um movimento de natureza diferente. Os menus elaborados
entre as elites do séc. XIX e que foram analisados por Sobral, salientam o valor simbólico
atribuído à língua, cultura e comidas francesas, facto evidenciado tanto pelo idioma de
redacção como pela estrutura da refeição apresentada. O cosmopolitismo observado
limitava-se, assim, às classes dominantes e a cozinha constituía, por entre outros, um
importante veículo de diferenciação social; os pobres não tinham acesso a essa cozinha
(Sobral, 2008:103). De um cosmopolitismo alimentar restrito a certos grupos no séc. XIX,
passou-se, nos sécs. XX e XXI, sobretudo a partir da década de 1970, para uma grande
diversificação das propostas culinárias, fruto de diversos fluxos migratórios e de uma
maior abertura de Portugal ao mundo.
Referia Poulain que o que diferencia os cozinheiros franceses de hoje dos seus
predecessores é que deixaram de olhar para as outras tradições culinárias como «sub-
culturas» a civilizar e passaram a vê-las como fonte de inspiração (Poulain, 2003:28), facto
que, seguramente, assinala a maior receptividade a outros produtos e modos de cozinhar.
Numa alusão às transformações observadas no espaço alimentar metropolitano de Lisboa a
partir da década de 70, afirma Sobral: «(…) neste espaço pós-colonial, a diversidade vai
penetrando e, nas mesmas zonas em que se consomem cozidos, caldeiradas e açordas,
comem-se também agora as muambas, as cachupas, o funge.» (Sobral, 2004:85). Para além
69
«À Mesa com o Universo»
do funge, vale a pena acrescentar no contexto desta investigação: come-se também agora o
tofu ou a sopa de miso.
A sopa de miso faz parte, na verdade, desse mesmo processo que é o de abertura a
novos modos de confeccionar e novas concepções sobre a alimentação. Neste sentido, a
noção de cosmopolitismo, no sentido de abertura ao exterior e de recepção de influências
externas, faz também sentido numa investigação sobre a macrobiótica. Como consequência
dessa abertura e do interesse que muitos votaram à macrobiótica, temos hoje um mercado
alimentar muito mais diversificado. De acordo com relatos que me foram feitos, produtos
como as algas e o miso, que hoje podem ser facilmente encontrados em lojas de
“alimentação natural”, terão surgido no espaço comercial sobretudo por solicitação
daqueles que decidiram adoptar a macrobiótica.
Pensar a cozinha macrobiótica por relação à cozinha regional/nacional constitui um
desafio onde não é difícil encontrar categorias oponíveis. Se à primeira associamos
imediatamente o território, a outra surge como objecto desterritorializado, como atrás foi já
sugerido. É certo que remete para o contexto sino-japonês, sendo defendida a sua
inspiração na “cozinha tradicional” japonesa, mas, por outro lado, a macrobiótica tem uma
presença mais expressiva nas sociedades euro-americanas do que no Japão. Se a uma
cozinha associamos um saber local transmitido na família de geração em geração, à
macrobiótica associamos uma aprendizagem que frequentemente é externa ao contexto da
casa e do grupo familiar. Se a uma associamos contextos de sociabilidade que intensificam
laços sociais, na macrobiótica é frequente encontrar casos de conflito familiar devido à
opção por uma forma de comer distinta. Se a uma associamos o excesso alimentar, à outra
associamos mais a frugalidade. Se a uma associamos uma atitude despreocupada em
relação à saúde, à outra associamos uma certa obsessão pelo tema. Com todas estas
diferenças é evidente que a macrobiótica instaura uma ruptura face à cozinha
regional/nacional. Ainda que seja verdade que frequentemente procura adaptar certos
pratos da “cozinha tradicional portuguesa” e dar-lhe um ar mais familiar para despertar
uma maior receptividade, o conjunto de concepções que guia a cozinha macrobiótica é
bastante distinto.
Uma outra dimensão que tem sido desenvolvida a propósito dos estudos sobre
alimentação é a questão da segurança alimentar. É focando um produto regional, o queijo
de Serpa, que Harry West desenvolve a sua pesquisa em torno do debate relativo à
utilização do leite cru. A sua preocupação é dirigida para o debate sobre questões ligadas à
70
Perspectivas sobre alimentação
71
«À Mesa com o Universo»
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Perspectivas sobre alimentação
(conceito que serve de suporte ao desenvolvimento da sua pesquisa) e pela referência que
faz a novas atitudes face aos alimentos, contribui na verdade para reforçar a ideia de que
opções alimentares como a macrobiótica e o vegetarianismo têm vindo a adquirir maior
expressividade.
O trabalho de Mónica Truninger sobre o desenvolvimento da agricultura biológica
em Portugal e sobre o consumo de produtos biológicos, reflecte, também, sobre alguns dos
receios relativos ao panorama alimentar que levam os consumidores a optar pelos
consumos «bio». A sensação de insegurança face ao modelo agro-industrial e motivos
ligados à saúde são alguns dos aspectos identificados para justificar a escolha destes
produtos. Muito embora Monica Truninger note, relativamente ao consumo de produtos
biológicos, que o conceito de saúde pode adquirir diversos significados - desde a segurança
alimentar, conteúdo nutricional dos alimentos, ao bem-estar físico, espiritual e social e até
mesmo do ambiente (Truninger, 2010:73) – transmite-nos a ideia de que evocações desta
natureza costumam ser frequentemente apontadas como razões para consumir «bio». A
aplicação que desenvolve da teoria das convenções para analisar os consumos «bio»,
levam-na a identificar argumentos diversos para justificar este tipo de consumo;
argumentos que nem sempre se encontram de forma isolada, mas antes se entrelaçam e
sobrepõem, conduzindo a justificações plurais para o consumo.
Vários aspectos do trabalho de Truninger convergem para esta pesquisa. Antes de
mais, o facto de diversas justificações para consumir bio poderem ser observadas entre os
seguidores da macrobiótica. A desconfiança face ao sector agro-industrial, a evocação da
maior qualidade nutritiva dos alimentos, as justificações por motivos de saúde (nas suas
diversas cambiantes) e até as razões éticas, ambientais e espirituais são frequentemente
encontradas entre os que optaram pela macrobiótica. As origens do movimento de
agricultura biológica, por serem marcadas, tal como refere Truninger (ibid.), por uma
abordagem ecológica espiritual-cósmica, constituem outro aspecto que permite relacionar
este movimento com a macrobiótica 25. A perspectiva holística, em que corpo, espírito,
ecossistemas naturais e cosmos formam um todo, que marcou inicialmente este
movimento, é também reencontrável na macrobiótica, como teremos oportunidade de
verificar.
25
As origens do movimento da agricultura biológica são situadas por Truninger nos anos 1920. Rudolf
Steiner, filósofo austríaco fundador da corrente filosófica da Antroposofia, ligado ao conceito de agricultura
biodinâmica, terá sido um dos mentores deste movimento (Truninger, 2010:23).
73
«À Mesa com o Universo»
Por outro lado, o facto de a Unimave (União Macrobiótica Vegetariana) 26ter sido, tal como
refere Truninger (2010:106), pioneira na venda de produtos biológicos, permite estabelecer
uma forte relação entre o movimento da agricultura biológica em Portugal e a
macrobiótica. Outras empresas, como a Celeiro-Dieta, a Espiral-Centro de Divulgação de
Alternativas, a Próvida – Produtos Naturais, Lda. e o Instituto Macrobiótico de Portugal,
são também apontadas como tendo estimulado o consumo de produtos biológicos. O facto
de se encontrarem fortemente ligadas à comercialização de produtos alimentares usados
habitualmente na macrobiótica, cria, inequivocamente, uma estreita associação entre o
consumo de bens alimentares biológicos e a prática de uma alimentação macrobiótica. Esta
pesquisa acaba, assim, por se sentir particularmente interpelada pelo trabalho de Truninger,
dado o facto, entre outros, de irmos ao encontro dos mesmos consumidores, ainda que por
vias diversas. Com isto não pretendo dizer, obviamente, que os consumidores de produtos
bio se encontrem sempre ligados à macrobiótica - Truninger demonstra bem que tal não
acontece - o que pretendo sublinhar é que a opção pela macrobiótica inclui,
frequentemente, um privilegiar de consumo de bens alimentares bio.
A presente pesquisa sente-se ainda interpelada pela de Truninger pela menção que a
autora faz à escassez de trabalhos sobre indivíduos com estilos de vida mais alternativos
(Truninger, 2010:66). Face a essa escassez, este trabalho procura ser um contributo no
sentido de melhor conhecer, em Portugal, concepções e práticas ligadas a uma proposta de
orientação no mundo com carácter mais alternativo. Procurarei demonstrar neste trabalho
que a macrobiótica não deve ser perspectivada como “movimento” isolado, mas como
proposta que convoca e dialoga com outros movimentos, sendo o movimento da
agricultura biológica, da «alimentação natural» e da contracultura alguns deles. Julgo que
a articulação da macrobiótica com o movimento da agricultura biológica contribuirá para
esclarecer o modo como práticas marginais e periféricas concorrem para afirmar outras que
são mais valorizadas e vão adquirindo maior centralidade.
Pela apresentação efectuada relativamente a alguns dos trabalhos desenvolvidos na
área da alimentação em Portugal, é possível detectar diversos temas em análise que
interpelam este trabalho e que permitem coloca-lo em diálogo com um conjunto mais vasto
de trabalhos que têm vindo a ser realizados nas ciências sociais sobre alimentação. Dentro
deste campo, duas áreas têm vindo a ganhar particular destaque: uma mais ligada à cozinha
26
Associação surgida no início dos anos 1970. Em páginas subsequentes terei oportunidade de a apresentar
com maior detalhe.
74
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quer à alimentação (cf. Kotzsh, 1981:45). Ohsawa seguirá este movimento e dar-lhe-á
conteúdo, como à frente veremos.
Lau (2000), por sua vez, desenvolvendo um trabalho sobre a macrobiótica na área
dos estudos culturais, procura destacar o modo como um conjunto de práticas corporais
com referências no Oriente se expressa na sociedade americana. Mais especificamente, o
seu livro procura tornar explícita uma tensão que a autora observa: a que existe entre uma
proclamada espiritualidade das práticas alternativas de obtenção de saúde (como as que
analisa: yoga, Tai Chi, aromaterapia e macrobiótica) e o modo como essas práticas se
transformaram em mercadorias na economia de mercado (Lau, 2000:2). Para evidenciar tal
tensão, baseia-se sobretudo em informação retirada da web (sítios e blogues) e textos de
divulgação relativos às referidas práticas corporais. É com estes materiais que procura
observar de que forma é incorporada uma ideologia que, através das práticas físicas, é
transformada em mercadorias corporais. Neste contexto, a macrobiótica é perspectivada
como um dos produtos daquilo que designa como capitalismo new age, ou seja, seguindo
Lau, um conjunto de actividades económicas que tem frequentemente uma inspiração
oriental e onde é evocada a dimensão espiritual da vida humana e promovida uma visão
holística dos fenómenos.
De acordo com Lau, a macrobiótica terá conseguido implantar-se na sociedade
americana em parte porque participava do discurso mainstream relativo à saúde e à dieta,
ou seja, o discurso dos “super alimentos”, dos “super corpos” e do controle do corpo (Lau,
2000:87). O que Lau vê como participando do discurso mainstream, pode, na verdade, ter
sido marginal noutra altura, sendo ainda assim capaz de influenciar esse tipo de discurso.
Considera a autora que muitas dessas práticas, outrora marginais, se começam a deslocar
para o centro e que, pela disponibilidade de tempo e de recursos económicos que
implicam, acabam por ficar disponíveis sobretudo para classes sociais com mais recursos.
Na sua opinião, a tradição americana (transcendentalismo americano do séc. XIX) mais os
regimes dietéticos defendidos no séc. XIX por homens como Kellogg (médico, adventista
do sétimo dia, fundador da companhia Kellog’s) e a exaltação de aspectos como o
individualismo e a autoconfiança terão proporcionado um bom espaço de acolhimento e
desenvolvimento dessas propostas. Por outro lado, a promoção do multiculturalismo e o
fascínio pelo Oriente terão também contribuído, na sua opinião, para a expansão dessas
práticas. Práticas que, através da celebração da natureza e romantização do passado,
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entrevistas semi-estruturadas, a autora conclui que se verifica, entre aqueles que aderem à
macrobiótica, uma reconstrução identitária que resulta do “desejo de ser outra pessoa”
(Gomes, 2003:59), existindo um desenho de um novo projecto identitário que tem reflexos
mesmo ao nível da profissão. Algumas das situações por mim observadas confirmam este
aspecto, pois pude detectar casos em que os indivíduos mudaram para profissões que
entendiam ser mais compatíveis com as suas opções. Não se trata, todavia, de uma regra, já
que em muitos casos observados tais mudanças não se verificavam.
O trabalho de Carla Teixeira (2006) assenta em grande medida num inquérito por
questionário efectuado no IMP (Instituto Macrobiótico de Portugal), através do qual
procura caracterizar aqueles que frequentam o IMP. Partindo da importância das opções
alimentares na definição de um estilo de vida, procura observar os elementos através dos
quais se constrói uma identidade ao nível da macrobiótica. Acaba por concluir que o IMP
surge como uma comunidade imaginada, na medida em que é um local de comunhão,
gerador de sentimento de pertença, de vinculação e onde é intensificada a unidade do
grupo (Teixeira, 2006: 98). Esta visão do IMP como comunidade imaginada parece-me um
pouco excessiva, mais à frente, de acordo com os dados etnográficos que recolhi procurarei
demonstrar porquê.
Muito embora haja escassez de trabalhos sobre a macrobiótica na área das Ciências
Sociais, é possível encontrá-los em maior número nas áreas das Ciências da Saúde e da
Vida. Esses textos estão sobretudo situados no domínio das ciências da saúde e, de uma
maneira geral, julgo que beneficiariam com os contributos resultantes de uma
caracterização e análise sociológica relativa a indivíduos que tivessem adoptado a
macrobiótica. A análise social não deveria, na verdade, ser apartada de outras pesquisas
sobre o corpo e os seus processos. Ainda que não se focalize na ínfima e microscópica
partícula, a investigação social deveria constituir referência para muita da actividade
científica que é desenvolvida. Os estudos sobre os efeitos dos alimentos beneficiarão
sempre do conhecimento das práticas e das histórias de vida associadas a determinadas
opções alimentares.
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Perspectivas sobre alimentação
estão integradas em famílias que seguem esse regime alimentar. Face aos dados
apresentados, recomendam o consumo de peixe gordo e de produtos lácteos (Dagnelie e
Stavaren, 1994).
Em 1997 é publicado um estudo sobre a massa óssea de 195 adolescentes
holandeses, com idades entre 9 e 15 anos, que seguiam uma alimentação macrobiótica, de
tipo vegan e pobre em cálcio e vitamina D, tal como é descrita pelos autores (Parsons et al,
1997). São retomados os estudos que haviam sido publicados 10 anos antes, sobre crianças
que seguiam alimentação macrobiótica e nas quais se descreviam diversas carências, de
acordo com o que atrás referi. A partir desses trabalhos é analisada a situação desses 195
adolescentes em termos de desenvolvimento e conteúdo mineral ósseo (CMO). Concluem
os autores que o CMO total é significativamente mais baixo nos adolescentes que seguem
a macrobiótica do que no grupo de controle, pelo que a adopção desta prática alimentar na
infância influencia negativamente a condição óssea dos adolescentes, defendendo que este
facto poderá fazer aumentar o risco de fracturas numa idade mais avançada. São
observados desvios em relação a esta tendência, mas não são suficientes para inflectir estes
resultados. Referem, por outro lado, e como já havia sido salientado em estudos anteriores,
que o nível educacional dos pais destas crianças é elevado e que neste estudo a condição
socioeconómica das famílias é similar (Parsons et al, 1997:1489), não sendo tal, portanto,
justificativo, dos resultados obtidos.
Um outro estudo (Miller et al, 1991), realizado na Nova Inglaterra (EUA) sobre a
população que seguia a macrobiótica (110 adultos e 42 crianças) confirma a carência de
vitamina B12. Nesse grupo, 51% apresentavam uma baixa concentração de vitamina B12,
sendo que esta era tanto menor quanto maior fosse o tempo de duração da prática de
alimentação macrobiótica. 55% das crianças e 30% dos adultos apresentavam uma
concentração elevada de ácido metilmalónico na urina, o que permitia aferir sobre a
carência de vitamina B12. A pequena estatura e baixo peso relativos constatados nas
crianças, são, aliás, associados à elevada concentração de ácido metilmalónico na urina
(Miller et al, 1991). Podemos pois verificar que algumas das carências observadas nos
estudos desenvolvidos na Holanda continuam a observar-se noutros contextos geográficos.
Deve notar-se que a carência apontada não é exclusiva da “dieta macrobiótica”, ela havia
já sido reportada anteriormente em diversos estudos relativos a vegetarianos. No entanto,
em trabalho publicado em 2007, é referido que o peso e a altura relativos de crianças que
seguiam a macrobiótica eram inferiores aos de crianças vegetarianas (Di Genova,
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27
Referida como dieta macrobiótica-vegetariana preconizada por Mario Pianesi, fundador e presidente da
associação internacional “Un Punto Macrobiótico”, em Itália (Porrata et al.2007).
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Perspectivas sobre alimentação
Medicine with Curative Intent: Macrobiotics and Faith Healing . Um dos objectivos deste
projecto era observar os efeitos da macrobiótica na saúde e prevenção do cancro. A
investigação decorreu entre 2000 e 2002 e centrou-se em entrevistas a seguidores da
macrobiótica. Para além deste aspecto, foi desenvolvido um esforço de caracterização dos
centros de divulgação da macrobiótica existentes nos EUA bem como das lojas de
“produtos naturais” onde poderiam ser encontrados alimentos habitualmente utilizados
nesta área. Um dos sítios de divulgação da macrobiótica - The Rice House -, gerido por
“consultores macrobióticos” radicados em Israel, dá conta, justamente, da investigação
efectuada28.
Em trabalho publicado sobre a relação entre macrobiótica e cancro, no qual alguns
desses investigadores (Teas e Cunningham) participaram (Kushi et al., 2001) faz-se uma
assinalável revisão da investigação desenvolvida sobre esta matéria. Para além desta
revisão, os autores baseiam-se nas respostas a um inquérito que teria sido enviado a 548
indivíduos com cancro que teriam sido observadas entre 1981 e 1984 por Michio Kushi
(consultor de macrobiótica), e ao qual apenas 98 dos inquiridos responderam. Destes
indivíduos, 91% recebia pelo menos um tipo de terapia convencional, como a
quimioterapia, 56% usavam outras terapias não convencionais sem ser a macrobiótica.
61% revelava clara adesão às recomendações macrobióticas;10% uma adesão parcial e 1%
não aderiu. Foram analisadas avaliações subjectivas por parte dos inquiridos, onde uma
parte significativa referia um efeito positivo da macrobiótica no tratamento do cancro,
afirmando uma maior tolerância à quimioterapia e maior bem-estar emocional. Por outro
lado, 90% referia que tinha apoio dos companheiros no seguimento da macrobiótica e 82%
referia que tinham apoio de membros da família. Apenas 25% responderam que os
médicos que os acompanhavam apoiavam a decisão de adoptar a macrobiótica; 19%
referiram a oposição dos seus médicos à adopção da macrobiótica e 50% referiram que os
seus médicos eram indiferentes relativamente a tais práticas (Kushi et al., 2001:3060S)
Para além disto, esta pesquisa permitia concluir que a maior parte das pessoas que
procurava um conselho na área da macrobiótica o fazia após uma consulta com um
28
Ver Macrobiotics research Project
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«À Mesa com o Universo»
terapeuta convencional e que muitas vezes não informava o seu médico sobre a prática da
macrobiótica.
Concluiu-se nesse trabalho que as mulheres que seguiam uma alimentação
macrobiótica tinham um nível de circulação de estrogénios ligeiramente mais baixo, o que
sugeria um risco menos elevado de cancro de mama. Concluíram ainda que existiam
probabilidades de a dieta macrobiótica reduzir o risco de cancro, mas que não dispunham
de bases empíricas cientificamente fundadas que fossem suficientes para recomendar ou
desaconselhar esta dieta, pelo que seria necessário prosseguir com a investigação nesta
área. Rezash (2008), em trabalho posterior, dá-nos também conta da necessidade de uma
investigação mais sistemática para avaliar os riscos e benefícios da macrobiótica na
prevenção e tratamento do cancro, no mesmo sentido se expressando Horowitz (2002).
Apesar de esta necessidade ser apontada, a investigação de Kushi (2001) dá conta
de diversos estudos efectuados sobre o uso da “dieta macrobiótica” e o desenvolvimento de
doenças cardiovasculares. Na perspectiva dos seus autores, tais estudos evidenciam de
forma consistente um menor risco de doenças cardiovasculares na população que seguia a
macrobiótica por relação à generalidade da população. Como justificação para esta
conclusão, era apontada a existência de um nível de colesterol mais baixo. Para além deste
aspecto, também o facto de a tensão arterial ser, em média, mais baixa; de se observarem
níveis mais elevados de antioxidantes no plasma e ainda de o peso dos indivíduos ser
menos elevado, foram igualmente apontados como factores relevantes (Kushi et al., 2001:
3060S)
Uma das razões evocadas pelos autores para desenvolver a investigação acima
mencionada, foi a da existência de relatos de casos de cura de cancro através da
macrobiótica. Um desses casos, frequentemente referido nas sessões de divulgação sobre
macrobiótica, é o «caso Sattilaro». Anthony Sattilaro, ficou conhecido como o médico a
quem, aos 49 anos, foi diagnosticado um cancro na próstata em fase avançada (já com
metástases nos ossos) e que conseguiu vencer adoptando a macrobiótica, tendo ficado
completamente resolvidas as lesões provocadas nos ossos pelas metástases. O seu livro,
Recalled by Life: the Story of my Recovery from Cancer (1984), dá conta do seu processo
de cura e de como foi aconselhado na mudança de alimentação por Waxman (director da
East-West Foundation em Filadélfia) consultor e professor na área da macrobiótica, que
tive oportunidade de conhecer em curso de formação promovido pelo IMP (Instituto
Macrobiótico de Portugal).
86
Perspectivas sobre alimentação
Após um período sem a doença, Sattilaro viria a ter uma recidiva e morrer de
cancro da próstata em 1989. No “meio macrobiótico” a mensagem que foi divulgada foi a
de que “depois de se ter curado terá abandonado a macrobiótica e voltado a criar as
condições para desenvolver, de novo, este tipo de cancro”, mas podemos sempre especular
sobre os motivos que estiveram na origem desta situação. É aliás de realçar que Sattilaro,
pelo menos numa primeira fase, foi submetido a intervenções cirúrgicas e foi medicado,
não sendo possível, portanto, apontar apenas a adopção da macrobiótica no seu processo de
cura. Em todo o caso, a “sua história” foi suficientemente estimulante para incentivar a
pesquisa sobre os efeitos da macrobiótica no cancro, sendo o trabalho que atrás referi, pelo
menos em parte, uma resposta a esse estímulo. O facto de um dos autores deste estudo ser
filho do mais proeminente consultor de macrobiótica actualmente vivo, Michio Kushi, não
deverá ser completamente alheio ao interesse por uma investigação de carácter científico
sobre a relação entre macrobiótica e cancro. Deve ser referido, neste contexto, que ainda
que a prática da macrobiótica possa ter sido importante para superar certas situações de
cancro, mesmo aqueles que dedicaram a sua vida à macrobiótica, como Aveline e Michio
Kushi foram vítimas de cancro, Aveline foi vítima de um cancro no colo do útero, que não
superou, tendo falecido em 2001, e Michio de um cancro do cólon, aparentemente
resolvido através de intervenção cirúrgica.
Um dos aspectos que é referido nesse trabalho (Kushi, Cunningham e outros), é que
a macrobiótica engendra um respeito pela natureza espiritual da existência e que as
modificações no estilo de vida causadas pela adopção da macrobiótica pressupõem uma
participação activa por parte do indivíduo (2001: 3057S). De acordo com os autores, comer
de forma macrobiótica, contribui para desenvolver a agencialidade e o sentimento de
poder, dado que o indivíduo participa activamente no seu tratamento. Esta participação não
se observaria nas formas convencionais de tratamento de cancro, onde o indivíduo se torna
apenas num receptor de uma terapia, vendo-se assim desempoderado (Kushi et al.,
2001:3060S).
Outros trabalhos científicos como o The China Study (Campbell; Campbell, 2006) e
Eat, Drink, and be Healthy (Willett; Skerrett, 2005) devem também ser mencionados.
Muito embora não se debrucem especificamente sobre a macrobiótica, acabaram por se
tornar numa referência importante para diversos professores e consultores de macrobiótica,
e também para muitos dos que praticam este tipo de alimentação. O livro The China Study
é o resultado de uma investigação desenvolvida na China pela Universidade de Cornell e
87
«À Mesa com o Universo»
pela Universidade de Oxford. A escolha deste país ter-se-á devido, em parte, ao facto de
em muitas regiões, sobretudo nas zonas rurais, se praticar uma alimentação com ampla
base vegetariana. Nesta pesquisa, que constitui um estudo epidemiológico, foram
observados 6500 adultos (metade homens/ metade mulheres, com idades entre os 35 e os
64 anos) de 65 zonas rurais e semi-rurais na China. Cada um dos observados permitiu a
recolha de sangue, tendo sido também analisada a urina de metade da amostra. Ao grupo
foi também administrado um questionário sobre o seu estilo de vida e tipo de alimentação.
Para lá da recolha destes elementos, a equipa de investigação fez visitas de três dias a 30%
das famílias, procurando avaliar os seus consumos alimentares. Nesse âmbito, foram
também recolhidas amostras de alimentos nos mercados locais, que procuravam
corresponder àquilo que era considerado representativo da dieta típica de cada região
(Campbell, 2006: 353-354). Um dos principais objectivos do trabalho foi o de avaliar os
efeitos da alimentação sobre a saúde. Ainda que o livro China Study dedique apenas um
capítulo aos resultados específicos obtidos na China, é a partir das conclusões aí
apresentadas que se discutem as doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, vários
tipos de cancro, etc. Através da comparação entre os dados obtidos na China e os
observados no mundo ocidental, sobretudo nos EUA, Campbell disserta sobre a
importância da nutrição no desenvolvimento de inúmeras doenças.
Com base nos dados recolhidos, este autor e a sua equipa, concluíram que uma
alimentação de base vegetariana era mais adequada aos humanos, tendo mesmo defendido
não existir praticamente nenhum nutriente que se encontre nos alimentos de origem animal
que não pudesse ser substituído, de forma vantajosa, por alimentos de origem vegetal. Por
esta razão, uma das grandes linhas de discussão ao longo do trabalho é a de que o consumo
de proteínas animais e gordura animal se encontra relacionado com a maior parte das
doenças crónicas, nomeadamente ao produzirem um significativo aumento do colesterol. A
constatação de um nível de colesterol muito mais baixo entre a população chinesa
observada (média de 127 mg/dl quando a dos americanos era de 215 mg/dl), levou
Campbell a atribuir grande relevância a este aspecto concreto 29.
O trabalho de Campbell foi alvo de forte contestação e a sua visão sobre o efeito
das proteínas e da gordura classificada como excessiva e redutora. Um amplo e
29
Numa das palestras sobre alimentação macrobiótica a que tive oportunidade de assistir (2011) foi referido
que Campbell praticaria uma alimentação próxima da macrobiótica e que, sob seu conselho, Clinton teria
procedido a modificações alimentares para tratar os seus problemas cardiovasculares.
88
Perspectivas sobre alimentação
30
Ver: “Cholesterol-and-health.com, Uncovering the truth about America’s most demonized nutrient”
http://www.cholesterol-and-health.com/index.html [acesso em 4.08.11]. Campbell (2006) refere que o
trabalho de Masterjohn, que escreve neste website, é em parte suportado por produtores de animais e que se
estaria a procurar criar uma agenda para reabilitar o colesterol.
31
Hu, Frank et al. 2001. «Types of Dietary Fat and Risk of Coronary Heart Disease: a critical Review»
Journal of the American College of Nutrition.Vol. 20, 1, 5-19.
89
«À Mesa com o Universo»
alimentação padrão que é preconizado na macrobiótica. Pode pois dizer-se que este estudo
científico surge de alguma forma como a “prova científica” das verdades que a
macrobiótica procura veicular.
O trabalho de Willett e Skerrett (2005), Eat, Drink, and be Healthy, é também uma
referência importante nas sessões de esclarecimento sobre macrobiótica. Willett é um
reputado investigador, ligado à Harvard Medical School, que apresenta um conjunto de
argumentos e de conclusões que vão, de modo idêntico, de encontro a algumas das
concepções sobre saúde e alimentação que são defendidas na macrobiótica. Trata-se de um
trabalho que, por essa razão, é apresentado na macrobiótica como relevante, e cujos
resultados devem ser tomados em consideração. O trabalho de Willett e Skerrett, à
semelhança do que aconteceu com o de Campbell, permitiu a muitos dos seguidores da
macrobiótica olhar para as suas práticas alimentares não como algo marginal e pouco
fundamentado, mas como tendo um elevado valor, susceptível mesmo de adquirir um lugar
central nas práticas alimentares. De alguma forma, os defensores da macrobiótica
encontraram na comunidade científica porta-vozes de incontestável autoridade, por forma a
afirmar que muitas das concepções que defendiam constituíam um caminho a seguir.
Willett e Skerrett centram-se na pirâmide alimentar criada pelo Departamento de
Agricultura dos EUA, 1992-2005 (USDA), e nas outras que foram propostas
posteriormente, para demonstrar que as orientações básicas sobre alimentação se
encontram desactualizadas e que é necessário reconstruir a pirâmide 32. Apresentam em
alternativa a sua própria versão da pirâmide da alimentação, que consideram ser mais
saudável.
32
É de notar que as recomendações da USDA têm sido revistas, sendo possível encontrar no sítio da USDA
12 pirâmides diferentes (MyPyramid), de acordo com necessidades específicas de grávidas, crianças em
idade pré-escolar, para perder peso, etc.
Ver: http://www.choosemyplate.gov/global_nav/MyPyramidAnimationTranscript.pdf [acedido em 7.08.11].
Para Willett, também a “MyPyramid” parecia uma boa ideia, na verdade, não o foi; não faz referência ao
tamanho, no seu entender o elemento mais importante na definição das calorias necessárias. Uma das suas
poucas vantagens é a de acrescentar a importância do exercício e da actividade física (Willett, 2005:20).
90
Perspectivas sobre alimentação
33
Imagem disponível em http://www.everynutrient.com/food-pyramid.html [acedido em 7.8.11] e também
em Willett (2005:17).
34
Imagem disponível em http://www.trustyguides.com/healthy-eating1.html [acedido em 7.8.11] e também
em Willett (2005: 13).
91
«À Mesa com o Universo»
92
Perspectivas sobre alimentação
vegetais e fruta mas evitar as batatas por causa dos níveis de açúcar no sangue e da
insulina; 6) beber álcool com moderação para prevenir doenças do coração e isquemia; 7)
como forma de prevenção tomar suplementos vitamínicos (sobretudo vitaminas B 6 e B12,
ácido fólico e vitamina D), considerados essenciais para prevenir doenças
cardiovasculares, cancro, osteoporose e outras doenças crónicas (cf. Willett, 2005:21-24).
Finalmente se percebe que estas orientações alimentares foram bem recebidas pela
“comunidade macrobiótica” que viu nesta nova pirâmide - que inspirou a pirâmide da
Harvard School - uma maior aproximação à que tinha sido elaborada para a macrobiótica
por Michio Kushi.
93
«À Mesa com o Universo»
35
Imagem disponível em http://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/what-should-you-eat/pyramid-full-
story/index.html [Acedido em 7.8.11].
36
Imagem disponível em http://www.holistic-cooking.co.uk/WhatIsMacrobiotics.htm [Acedido em 7.8.11] e
também em Kushi et al. (2001).
94
Perspectivas sobre alimentação
37
É de notar que a pirâmide proposta por Michio Kushi considera ainda a importância do consumo de
pickles. Não se trata de pickles comuns, como os que habitualmente encontramos em conserva, mas de
vegetais que são habitualmente fermentados em casa (cebolas, couves, rabanetes…) e considerados muito
benéficos nos processos digestivos pela macrobiótica.
38
Por outro lado, o facto de a alimentação macrobiótica ter uma forte inspiração japonesa ajuda também a
explicar este aspecto.
95
«À Mesa com o Universo»
observações desenvolvidas nas ciências da nutrição não deve representar uma qualquer
aproximação entre estas duas formas de abordagem dos alimentos. Para estes autores, o
facto de as ciências da nutrição terem descoberto tardiamente a importância dos cereais
integrais, não deve permitir que se confundam instâncias que são distintas e não partilham
modos de construção do conhecimento similares. É que se as ciências da nutrição assentam
num conjunto de procedimentos que incluem uma metodologia de investigação científica,
esses movimentos surgem a estes autores como visando sobretudo promover uma
ideologia, e como contendo intenções morais, sociais e de pureza ética que são
potencialmente perigosas. Consideram, assim, que para haver uma interacção construtiva
entre estes diferentes domínios é necessário reflectir sobre as suas diferenças em termos de
modo de abordagem39.
A análise desenvolvida por Kaptchuk e Einsenberg, sobre os movimentos de
alimentação saudável nos EUA, conduzem-nos aos fundadores da tradição do
vegetarianismo e dos cereais não processados na América, apontando Sylvester Graham
(1795-1851) e William Alcott (1789-1859) como pioneiros nesse processo. A primeira loja
de “alimentos saudáveis”, a Graham Provision Store, abriria em Boston em 1837. Os
cereais tostados Granula (mais tarde conhecidos por granola) seriam preparados pela
primeira vez em 1863 por James Caleb Jackson (1814-1895). Os autores detectam, desde
logo, nesta primeira fase do movimento, um desejo de expressar sentido e moralidade
através da comida. Aspectos como a abstinência e regramento nos comportamentos
estavam aí implícitos. Elementos da mesma natureza podem ser encontrados num segundo
estádio do movimento, quando a reintrodução dos granola, com John Harvey Kellogg
(1852-1943) e a criação dos Corn Flakes, foram associados a uma relação harmoniosa
entre mente e corpo. Também Bernarr Macfadden (1868-1955) transformou a comida
numa fórmula para a masculinidade, fertilidade e sexualidade - os macfadden’s granola
lançavam a mensagem da purificação do sangue.
39
Referem a este propósito os autores: «As Ciências da Nutrição procuram utilizar as ferramentas científicas
para investigar e esclarecer sobre os efeitos dos alimentos, da dieta e dos suplementos dietéticos. O
movimento da alimentação saudável serve-se livremente (frequentemente de forma selectiva) das discussões
científicas relativas ao impacto da dieta no bem-estar e nos riscos de doença. Contudo, subjacente à sua
abordagem, encontra-se uma agenda social e moral de amplo alcance. Neste movimento, a comida é
impregnada, de forma flexível, de qualidades simbólicas, a que se associam significados e moralidade. A
comida é uma reserva iconográfica para projectos sociais e para a defesa da pureza ética. A dieta constitui
uma forma persuasiva de corporizar propósitos e auto-conhecimento. É fácil e potencialmente perigoso
ignorar esta dimensão da alimentação saudável.» (Kaptchuk e Eisenberg, 1998: 472) [Tradução livre]
96
Perspectivas sobre alimentação
Nos anos 1960 os cereais integrais seriam reintroduzidos, de acordo com Kaptchuk e
Eisenberg, na “onda holística” que explorava o potencial humano. Uma “onda“ de atracção
pelo Oriente, e pela espiritualidade que lhe estava associada, pelo yoga e pela meditação,
teria mesmo conduzido para as margens os movimentos cristãos de defesa da alimentação
saudável. A partir dos anos 1970, os cereais tostados, o arroz integral e a “comida
saudável”, ter-se-ão tornado cada vez mais compatíveis com o mainstream (cf. Ibid.: 472).
Esta perspectiva, algo concordante com a análise de Lau (2000) – que defendia que certas
práticas corporais de inspiração oriental antes tomadas como marginais terão adquirido
uma cada vez maior centralidade nos EUA - reposiciona os movimentos de alimentação
saudável, apresentando-os como estando cada vez mais integrados no sistema.
Kaptchuk e Eisenberg, ainda que apresentem os resultados da investigação
científica como algo que está sempre em transformação, e ainda que não adoptem uma
atitude de arrogância face a outros tipos de conhecimento, defendem que as
recomendações em termos nutritivos devem ser o resultado de investigação básica e não de
filosofias ou políticas sociais. Sendo certo que sugerem uma interpenetração entre estas
diferentes áreas, não deixam, todavia, de contribuir para alguma tensão entre elas. Parece-
me legítimo observar que, ao caracterizarem os movimentos filosóficos e as políticas
sociais como sendo ideologicamente orientados, esquecem que também a prática científica
pode ser ideologicamente orientada. De facto, como atrás referi, o nutricionismo pode
também ser visto como expressão de uma ideologia e instrumento capaz de servir causas
políticas e sociais. Sobressai desta discussão o evidente cruzamento entre informação
oriunda dos movimentos de comida saudável e informação proveniente da investigação
científica. Estas diferentes áreas nem sempre estabelecem diálogos entre si, mas não são
totalmente insensíveis aos argumentos que apresentam, parecendo alimentar-se desses
mesmos debates.
97
«À Mesa com o Universo»
98
Perspectivas sobre alimentação
99
«À Mesa com o Universo»
me especificamente a produtos como o tofu, seitan, miso, etc. É verdade que o consumo
destes produtos está longe de se encontrar generalizado, mas a sua adopção significa, sem
dúvida, inovação relativamente aos consumos “mais tradicionais”. Em alguns casos
podemos dizer que provoca mesmo uma certa erosão naquela que era a forma de
alimentação mais arreigada. Neste contexto, um sistema marginal de alimentação como a
macrobiótica, acaba, por ter alguma influência em formas alimentares mais instituídas,
sendo um dos diversos aspectos que levam à sua transformação. Não se pense contudo que
esta relação é unívoca. A alimentação macrobiótica é também influenciada pelos diferentes
contextos de integração. A tentativa de fazer na macrobiótica certos pratos da cozinha
regional, denuncia também essa permeabilidade aos gostos mais entranhados. É essa
permeabilidade que ajuda a compreender o arroz doce elaborado com bebida de soja e
malte de cevada, as pataniscas de seitan, as fatias douradas sem ovos, etc.
Convém, agora, destacar alguns aspectos que se tornarão importantes no decurso
deste trabalho. Desde logo, e em conexão com o parágrafo anterior, a relação entre
sistemas alimentares marginais e sistemas dominantes, o modo como vão sendo
contaminados uns pelos outros através de relações dinâmicas que vão estabelecendo. Por
outro lado, a comida, e os consumos que em torno dela se observam, como expressão de
subjectividades. A incorporação ideológica que o acto de comer pode envolver, e o modo
como nesse acto se expressa uma visão sobre o corpo e sobre o mundo parece ajustar-se a
uma análise sobre a macrobiótica. O corpo surge aí como forma de concretização de um
projecto individual e, por vezes, até como projecto com desejo de alcance social. A
transformação do corpo num campo de experimentação, frequentemente observada com a
adopção da macrobiótica, constitui uma forma muito particular de expressão de si mesmo,
sendo, em algumas ocasiões, um desafio relativamente a orientações mais
institucionalizadas. Suscita, ainda, um olhar por parte da ciência, que, tal como vimos,
aponta para as deficiências neste tipo de alimentação, embora também lhe reconheça
benefícios. A comunicação entre práticas alimentares ligadas à macrobiótica e discursos
científicos sobre as mesmas julgo que é um factor indispensável para compreender
fenómenos de recomposição e de reorganização de significados, quer na macrobiótica quer
nos discursos científicos.
100
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
Capítulo 3
Muito embora a macrobiótica pareça encontrar uma clara fonte de inspiração nas
filosofias orientais, designadamente no taoismo e no budismo zen, o modo como é
designada remete, dir-se-ia que inesperadamente, para uma raiz grega (macro-grande,
bios-vida). A explicação passa, decerto, pelo facto de o termo macrobios ter sido
introduzido por Heródoto (484?-425 A.C) na sua História para fazer referência aos
etíopes e à sua suposta longevidade. Também Hipócrates (460?-377? A.C) terá utilizado
este termo para se referir a uma vida longa em Dos Ares, Águas e Lugares (cf.Collins et
al, 2001). Aristóteles (384-322 A.C) e Galeno (129-199?) usariam o vocábulo no mesmo
sentido (cf. Wenker, 2008).O termo - macrobiótica - terá sido introduzido e divulgado no
Ocidente por Christoph Von Hufeland (1762-1836), primeiro médico de Frederico
Guilherme III, rei da Prússia, de Goethe e Schiller, que em 1797 escreveria a obra A
macrobiótica ou a arte de prolongar a vida humana40. Mais tarde, Georges Ohsawa
adoptaria este termo para identificar a sua proposta de orientação no mundo.
Von Hufeland acreditava que ainda que o termo da vida pudesse ter um limite
natural, de acordo com as espécies, era possível agir de modo a preservar e prolongar a
vida. A macrobiótica seria, justamente, um programa geral a partir do qual se poderia agir
de forma a estender os anos de vida. Não se dirigia exclusivamente à alimentação, mas
antes a um conjunto de factores (clima, localização geográfica, constituição física,
alimentação, profissão, etc.) que deveriam ser tomados em consideração para se alcançar
uma maior longevidade. Alguns desses factores não podiam ser controlados pela acção
humana, mas o seu conhecimento foi visto como permitindo uma conduta mais avisada
para se alcançar uma idade avançada. Por esta perspectiva se pode constatar, desde já,
que logo nestas formulações sobre o que se entendia ser a macrobiótica, se evidenciava
40
Esta obra surgiu em diferentes edições francesas com título distinto. Foram consultadas duas edições:
Von Hufeland, Christoph. 1833 [1797] L’Art de Prolonger la Vie de l’ Homme. Paris: J. B. Baillière.
Tradução da 2ª edição alemã por Antoine Jourdan. Versão disponível no Google Books:
http://books.google.com/books/about/L_art_de_prolonger_la_vie_humaine.html?id=IKMUAAAAQAAJ
[Acedido em 4-10-11] e Von Hufeland, Christoph. 1871[1797]. L’Art de Prolonger la Vie par la
Macrobiotique. Paris: J. B. Baillière et Fils. Edição revista e acrescentada por Jacques Pellagot.
101
«À Mesa com o Universo»
um programa de vida que extravasava a esfera estritamente alimentar e que não se dirigia
exclusivamente ao corpo físico. Mais do que um simples conjunto de regras dietéticas, a
proposta de Von Hufeland continha preocupações de ordem moral. Entendia o médico de
Goethe que a saúde física se encontrava intimamente ligada à saúde moral, acreditando
na superior missão moral dos homens. A sua proposta buscava, pois, ser bastante mais
que uma mera orientação de ordem dietética. A macrobiótica surgia como conjunto de
orientações práticas que visava manter e aumentar algo através do qual espírito e corpo se
expressavam, a força vital41.
Para Von Hufeland a duração da vida dependia sobretudo da dotação em termos
de força vital, da qualidade dos órgãos e do modo como a força vital era despendida e
restaurada. Se o objectivo da medicina era a saúde, o da macrobiótica era preservar e
aumentar a força vital, de forma a alcançar uma maior longevidade. Neste âmbito, a
medicina deveria ser apenas um meio auxiliar da macrobiótica e não um recurso de uso
banal. Pela importância colocada nos cuidados com a preservação da força vital e com a
manutenção de um corpo saudável, Von Hufeland foi identificado como um dos
precursores da medicina preventiva. No que respeitava a duração da vida, reconhecia que
o desejo de a prolongar constituía uma preocupação de todos os tempos, mas que faltava
a esta arte uma sistematização que lhe permitisse eficácia. A escrita do livro A
macrobiótica ou a arte de prolongar a vida humana, em parte inspirada na obra de
Francis Bacon (1561-1626), Historia Vitae et Mortis, visava justamente suprimir essa
lacuna42.
Interessa no contexto deste trabalho destacar de forma um pouco mais detalhada
alguns aspectos que são considerados relevantes por Von Hufeland como forma de
proporcionar uma maior longevidade, dada a proximidade que encontramos entre a sua
obra e a macrobiótica moderna de Ohsawa. Como foi já referido, o clima constituía um
importante factor a ter em conta, ideia que se conserva também na macrobiótica moderna,
41
Conceito que Von Hufeland identifica como “verdadeiro sopro da divindade”, como força existente nos
organismos vivos que tudo conserva e renova, que tanto existe de forma latente como livre. Quatro agentes
vitais: luz, calor, ar (oxigénio) e água constituíam o seu principal alimento. Manifesta-se de forma diversa
de acordo com os diferentes órgãos do corpo humano, podendo expressar-se nos nervos como sensibilidade
ou nos músculos como irritabilidade. A força vital não seria igual em todos os indivíduos e certas
condições externas poderiam fazê-la aumentar ou diminuir. O trabalho rápido levaria a um maior dispêndio
da força vital e teria como contrapartida a diminuição do tempo de vida (Von Hufeland,1833: 26 e segs).
Este conceito, que viria a ser abandonado pela medicina, é reencontrável na macrobiótica moderna, sendo
por vezes identificado com o ki (Chi), sopro vital dos orientais.
42
Historia Vitae et Mortis, segundo título da Phaenomena universi sive Historia naturalis et experimentalis
ad condendam philosophiam, terceira parte da Instauratio Maga (1620), obra onde Bacon defende o
império do homem sobre a natureza e sobre as coisas. A procura da longevidade pode aí ser vista como
inserindo-se num projecto onde o domínio e controle da vida constituem expressão da realização humana.
102
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
103
«À Mesa com o Universo»
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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
fundamental para nutrir corpo e espírito e assegurar uma vida longa. Uma das primeiras
referências à abstenção de carne como via para desenvolver o espírito, vem-nos de
Pitágoras (580?-495? A.C) que, presumivelmente, sob influência da tradição religiosa e
filosófica indiana, adoptaria na sua escola um regime vegetariano. Se aspectos como a
pureza e contaminação associados ao consumo de carne eram os que mais caracterizavam
a tradição filosófica indiana, em Pitágoras as concepções ligadas à transmigração das
almas constituíam motivo para que se defendesse a abstenção do consumo de animais. O
regime alimentar com ausência de consumo de carne ficaria conhecido durante muito
tempo como dieta pitagórica. Também Hipócrates tomou a alimentação como parte
fundamental do processo de cura. Muitos outros se lhe seguiriam. No século XIX o
número de publicações sobre o vegetarianismo aumentaria enormemente. Em Portugal,
de acordo com as declarações de alguns dos indivíduos entrevistados, a macrobiótica
seria impulsionada precisamente a partir do movimento vegetariano. É pois provável que
noutros países a adesão à macrobiótica tivesse igualmente sido efectuada sobretudo por
indivíduos que já seguiam regimes alimentares mais restritivos. Nesta medida, e tendo
também em consideração o trabalho de Von Hufeland, a macrobiótica de Ohsawa
encontra já um contexto particular de acolhimento. Convém até salientar que, mais do
que contexto de acolhimento, encontra referências e fundamentos com os quais encontra
uma particular afinidade44.
Apesar dos contributos de Von Hufeland e dos paralelismos que possamos
encontrar, a ampla difusão da macrobiótica dar-se-á, como já se foi deixando entender,
com Georges Ohsawa. De acordo com Herman Aihara (um dos discípulos e biógrafos de
Ohsawa), Ohsawa terá conhecido na Alemanha, em 1958, um descendente de Von
Hufeland e terá usado pela primeira vez o termo macrobiótica na sua tradução para
japonês do livro O Homem, esse Desconhecido, de Alexis Carrel. O termo começaria a
ser usado com toda a propriedade em 1960 no livro Macrobótica Zen45. Os princípios
44
De acordo com Wenker (2008), entre os textos e autores que fizeram menção à importância da
alimentação numa vida longa, podem ser referidos os Diálogos de Platão (428/27-348/347 A.C); o Corpus
Hermeticum (100-300 D.C.) atribuído a Hermes Trismegistus; as Enéadas de Plotino (205-270); De
Triplici Vita (De Vita Sana; De Vita Longa; De Vita Coelitus Comparanda) de Marsilio Ficino (1433-
1499) e o Tratado da vida sóbria de Alvise Cornaro (1484-1566). Renascentistas como Giovanni Pico della
Mirandola (1463 –1494), Paracelso (1493-1541), Marco Fabio Calvo (1440-1527), Leonardo da Vinci
(1459-1519) são também considerados como tendo tido preocupações específicas com a dieta alimentar.
Nos séculos XVIII e XIX assiste-se a um aumento significativo de publicações defensoras da abstinência
de carne. Georges Cheyne (1671-1743); Joseph Ritson (1752 –1803); Johnny Appleseed (1774 – 1845);
Percy Bysshe Shelley (1792-1822); Amos Bronson Alcott (1799 - 1888); Gustav Struve (1805 – 1870);
Sylvester Graham (1794-1851) são alguns dos defensores do vegetarianismo.
6 Ver Aihara, Herman «The History of Macrobiotics» in Eden Organic.Disponível em:
http://www.edenfoods.com/articles/view.php?articles_id=66 [Acedido em 10-10-11].
105
«À Mesa com o Universo»
46
Kotzsh (1981; 1985; 1988) desenvolveu um estudo aprofundado da vida e pensamento de Ohsawa. É
também possível encontrar informação relevante nos seguintes endereços electrónicos:
Shurtleff, William; Aoyagi Akiko. 2004. George Ohsawa, The Macrobiotic Movement. A Special Exhibit -
The History of Soy Pioneers Around the World - Unpublished Manuscript. Soyinfo Center, Lafayette,
California. Disponível em:
http://www.soyinfocenter.com/HSS/george_ohsawa_macrobiotics_soyfoods1.php [Acedido em 10-10-11].
ZenMacrobiotics.«A tribute to George Ohsawa».
Disponível em: http://www.zenmacrobiotics.com/ [Acedido em 10-10-11].
Aihara, Herman «The History of Macrobiotics» in Macrobiotic Guide.
Disponível em: http://macrobiotics.co.uk/history.htm [Acedido em 10-10-11].
Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica»in Instituto Macrobiótico de Portugal
Disponível em: http://www.e-macrobiotica.com/artigos_e_multimedia/artigos/diversos/ [Acedido em 21-
11-11].
47
Kotzsch (1985,37) refere o nome de nascimento de Ohsawa como sendo Yukikazu Sakurazawa. Outra
grafia encontrada foi Sakurazawa Nyoiti.
106
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
107
«À Mesa com o Universo»
8 A este propósito, Kotzsch refere situações mais prosaicas, como a de Tomoko Yokoyama que adoptaria o
nome de Aveline para adquirir um título de passagem do Japão para os EUA (Kotzsch, 1988: 164). Após o
casamento com Michio Kushi, passaria a ser conhecida por Aveline Kushi. Sobre a substituição dos nomes
pessoais ver: Shurtleff, William; Aoyagi Akiko. 2004. George Ohsawa, The Macrobiotic Movement. A
Special Exhibit - The History of Soy Pioneers Around the World - Unpublished Manuscript.Soyinfo Center,
Lafayette, California e Kotzsch (1988).
Disponível em: http://www.soyinfocenter.com/HSS/george_ohsawa_macrobiotics_soyfoods1.php [Acedido
em 10-10-11].
108
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
de abertura e ocidentalização que viria a abalar alguns dos sistemas sociais vigentes,
designadamente o sistema terapêutico e o sistema alimentar. É nesse contexto que, a
partir de 1883, o governo passa a proibir a prática de técnicas terapêuticas tradicionais e
estabelece a medicina de bases científicas como modo oficial de tratamento. Na
sequência deste acto, o uso de ervas medicinais, os técnicos de acupunctura, moxabustão
e massagens, passam a ser considerados como baseados em superstições e como não
tendo fundamentos científicos, sendo, com este tipo de justificações, ilegalizadas as suas
práticas. O desaparecimento destas técnicas não terá sido imediato, mas passaram a ter
uma existência subterrânea, da qual só reemergiriam mais tarde.
De acordo com Kotzsch (1981), também no campo da alimentação e da nutrição
terá ocorrido um fenómeno de ocidentalização que viria a desestruturar algumas das
práticas tradicionais. Desta forma, a moderna ciência da nutrição, que se começara a
desenvolver na Europa do século XIX, com o trabalho de químicos como o do alemão
Justus Von Liebig, viria a ter grande peso também no Japão. O governo japonês, desejoso
de aumentar a saúde e vitalidade do povo (e, provavelmente, deslumbrado com a
supremacia tecnológica do Ocidente), terá difundido algumas das concepções ocidentais
sobre alimentação, designadamente as relativas à importância do consumo de carne e de
leite para assegurar um desenvolvimento físico e mental apropriado. A crença de que o
consumo destes alimentos se encontrava associada a uma estatura mais elevada e,
portanto, a uma superioridade física, terá constituído motivo para o incentivo no consumo
destes alimentos.
Nas casas urbanas mais sofisticadas o leite e as tostas terão começado a aparecer
com regularidade, substituindo as bolas de arroz, a sopa de vegetais e o chá. O açúcar
branco terá também aumentado a sua presença nos pratos confeccionados, constituindo o
seu consumo um barómetro de cultura e refinamento. De uma alimentação muito assente
em componentes como o arroz, os feijões de soja (a partir dos quais se fazia miso, tofu e
molho de soja), outras variedades de feijão, algas, peixe fresco e seco, vegetais e frutos
locais, ter-se-ia passado para uma outra onde era incentivado, e visto como condição de
progresso, o consumo de carne, açúcar, leite, manteiga e queijo (produtos cujo consumo
no passado, sobretudo o de produtos lácteos, era pouco comum). Refere Kotzsch
(1981:37), numa aproximação a considerações que por diversas vezes ouvi em sessões de
esclarecimento sobre a macrobiótica, que os japoneses pré-modernos acreditavam que o
consumo de leite faria com que os humanos adquirissem algumas das características das
vacas. É de referir, neste contexto, que nas sessões de macrobiótica uma das razões dadas
109
«À Mesa com o Universo»
para o não consumo de leite prendia-se com o facto de ser considerado um consumo
antinatural (algo próprio dos bezerros e jovens crias), um adulto não só não necessitaria
de consumir leite, como tal consumo revelaria uma “certa imaturidade”.
Face às inovações introduzidas, que colocavam os japoneses entre dois mundos,
um agrícola, de uma ruralidade com vestígios do feudalismo, e outro moderno,
industrializado, urbano e ocidentalizado, a tensão teria levado a um abandono de certas
práticas que importava recuperar e estimular. O movimento shoku-yō surgiu, justamente,
no quadro da recuperação e estímulo da divulgação de certas práticas “tradicionais”,
como as relacionadas com a alimentação e outros cuidados terapêuticos menos
institucionalizados. Ishitsuka, que desde criança sofria de uma crónica infecção de rins,
que se traduzia numa inflamação de pele, sentia que através da medicina
institucionalizada não alcançaria a cura, o que ajuda a compreender o seu empenho na
criação desse movimento e na promoção de uma forma diversa de abordar os problemas
de saúde. Efectivamente, seria através daquilo que kotzsch (1981) designa como
“medicina tradicional oriental” que Ishitsuka viria a resolver os seus problemas de saúde.
Para que melhor se compreenda a acepção deste tipo de “medicina” (a macrobiótica
funda-se nela) vale a pena determo-nos no percurso de Ishitsuka e nas fontes que ele
considerou relevantes para dar conteúdo àquela prática terapêutica.
De forma resumida, pode dizer-se que Ishitsuka provinha de uma família de
samurais e que, tal como Ohsawa, tinha tido uma infância marcada pela pobreza e pela
disciplina. Terá terminado a sua escolaridade formal aos 18 anos e começado a trabalhar
num hospital, iniciando a partir daí uma formação autodidacta. De acordo com Kotzsch
(1981), os seus estudos e a prática no hospital terão permitido que adquirisse o grau e
estatuto de médico. Aos 28 anos assumiria o cargo de médico militar e, nove anos depois,
a liderança da farmácia do exército, posto que terá mantido até 1895. Porém, insatisfeito
com as respostas que a medicina de base científica dava aos seus problemas de saúde,
decide empreender uma pesquisa pelas práticas e textos “tradicionais”.
A sua investigação leva-o a obras como o Nei Jing de Huang Di, também
conhecido como Clássico de Medicina do Imperador Amarelo (aproximadamente 500
anos A.C.), obra que constitui uma compilação da sabedoria médica chinesa da época. Aí
são tratados assuntos como a anatomia humana, tipos e causas de doenças, métodos de
diagnóstico - pelo pulso, cor facial e voz – e de métodos de tratamento (alimentação,
acupunctura, massagens e ervas medicinais). A saúde é apresentada como derivando de
um modo de vida em harmonia com a natureza e a alimentação surge como meio eficaz
110
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
49
A obra Food Governs your Destiny: The Teachings of Namboku Mizuno (Kushi et al.,1991), procura
justamente divulgar o trabalho de Mizuno Namboku enquanto fisionomista e realçar a importância do
diagnóstico visual.
111
«À Mesa com o Universo»
saúde e para uma vida longa seria o controlo dos desejos e o evitamento das sete emoções
extremas (alegria exultante, raiva, preocupação, pensamentos obsessivos, medo, loucura e
surpresa). Daqui resultaria um resguardar da vitalidade. Como vemos, é possível
encontrar aproximações entre estas recomendações e as que atrás foram referidas
relativamente a Von Hufeland, assim se sugerindo um significativo paralelismo entre
concepções defendidas no Ocidente e no Oriente50.
Destes diferentes contributos (Nei Jing, Mizuno Nanboku e Ekken Kaibara),
Ishitsuka registou a importância a atribuir à alimentação, quer como fonte de doenças
quer como fonte de cura. Registou ainda a importância dos cereais e de um modo de vida
em conformidade com as leis da natureza. Foi com esta base que partiu para a pesquisa
em áreas como a Nutrição, Antropologia, Química e História. No exército, Itshisuka terá
observado soldados de diferentes partes do Japão e prisioneiros chineses, fazendo um
registo sistemático dos seus tipos físicos e do tipo de alimentação ingerida em cada
região. Terá ainda usado dados antropológicos em segunda mão, procurando informar-se
sobre os hábitos alimentares dos esquimós, dos chineses do norte da China e dos nativos
de Kamchatka (cf. Kotzsch,1981:46). Serão esses dados que o levarão à definição de um
conjunto de recomendações que entendia permitirem assegurar uma boa saúde. A
constatação de que os monges budistas evitavam o consumo de carne por julgarem que
este alimento não permitia um pleno desenvolvimento espiritual ou que o consumo de
arroz integral tostado, e depois vaporizado, teria sido o principal alimento do povo chinês
no período Han, terão também tido o seu peso na avaliação que fez relativamente a
questões alimentares.
As suas pesquisas na área da Química levam-no a considerar os minerais
fornecidos pela alimentação como o elemento chave para assegurar a longevidade. É esta
constatação que o conduz a uma teoria da fisiologia humana fundada na relação entre
sódio (Na) e potássio (K). Na sua óptica, uma vida longa resultaria de uma relação
adequada entre estes dois elementos (Na-3: K-7), desta relação dependeria a capacidade
do organismo para absorver outros minerais. De acordo com Ishitsuka, esta proporção
entre Na e K encontrava-se sobretudo nos cereais, razão por que estes deviam constituir a
50
No contexto deste trabalho não é possível explorar a hipótese de a medicina tradicional chinesa ter
influenciado a medicina praticada no ocidente. Joseph Needham, sinólogo, autor de Science and
Civilisation in China, defende que a medicina tradicional chinesa faz parte, ainda que de forma
embrionária, do processo civilizacional do Ocidente e que há uma série de coincidências entre esta e o
corpus hippocraticum, designadamente na concepção dualista, na dinâmica dos cinco elementos, na relação
microcosmo – macrocosmos e na interacção entre saúde e ambiente (Needham, Joseph et al. 1996 [1954-
1995]. Science and Civilisation in China.7 Vols. Cambridge.Cambridge University Press).
112
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
base da alimentação humana. A estes dever-se-ia ainda juntar vegetais, feijões, algas,
frutos e pequenas quantidades de alimentos de origem animal, sendo que tanto os frutos
como os vegetais deveriam ser da época. A geografia e o clima, bem como a actividade
física, eram importantes, mas não tanto como a alimentação. As doenças surgiriam de um
desequilíbrio entre sódio e potássio, causado sobretudo por uma dieta inadequada. As
batatas e os lacticínios, pelo seu suposto desequilíbrio entre estes elementos, são
considerados por Ishitzuka como predispondo para a varíola (cf. Kotzsch, 1981:52). Em
1897 seria publicada a sua principal obra - Kagakuteki Shoku-yõ Chõjuron (Teoria
química e nutricional da vida longa), onde procuraria apresentar uma disciplina de
alimentação prática baseada em leis científicas. São as orientações aí apresentadas que
constituirão os alicerces da macrobiótica de Georges Ohsawa.
Para Ishitsuka o efeito da comida era tão poderoso e subtil, que os diferentes tipos
de grão produziam diferentes tipos de desenvolvimento espiritual. As características
físicas, emocionais, psicológicas e espirituais eram por ele entendidas como sendo
determinadas em primeiro lugar pela comida. Se se ingerissem alimentos com uma
relação adequada entre Na/K ter-se-ia uma vida longa, saudável, uma mente feliz e ser-
se-ia naturalmente polido e com sentido de moral. As suas observações levaram-no a
considerar que nas zonas costeiras os habitantes tendiam a ser mais baixos e de cara mais
arredondada, enquanto os das zonas montanhosas seriam mais altos. Atribuía tal facto à
maior abundância de sódio nas zonas costeiras (no solo, no ar e na comida) e de potássio
nas zonas montanhosas (cf. Kotzsch, 1981:56). Estariam igualmente dependentes dessa
relação o peso, o grau de desenvolvimento e maturação (?), longevidade, tipo de voz e de
sonoridade, temperamento, memória, rapidez de pensamento, tipo de resposta emocional,
sentido de negócio, capacidade para guardar um segredo, tranquilidade, força de espírito
e bom coração (ibid.:57). As pessoas com predominância de potássio teriam tendência
para ser mais calmas, sensíveis e espirituais, enquanto as que se caracterizavam por uma
predominância de sódio seriam mais activas e materialistas. O desejo sexual seria nas
primeiras mais constante e perdurável, prolongando-se até uma idade mais avançada,
enquanto nas segundas seria mais esporádico, intenso e de curta duração.
113
«À Mesa com o Universo»
114
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
macrobiótica). Algumas das cartas que recebia no seu consultório vinham-lhe dirigidas da
seguinte forma «Dr. Daikon Radish, Tokio”, «Dr. Miso Soup» ou «Dr. Anti-
Doctor»(Kotzsch, 1981:64). O movimento iniciado por Ishitsuka não morreria consigo,
encontraria seguidores, entre eles, um jovem estudante da Escola Comercial de Quioto,
Nyoiti Sakurazawa (Georges Ohsawa), que se tornaria membro do movimento em 1916.
115
«À Mesa com o Universo»
116
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
homem ocidental, como tendo contribuído para este facto (cf. Kotzsch, 1981:76). A
turbulência económica e social dos anos 20, que terá feito com que muitos japoneses se
dispersassem por diferentes movimentos (marxistas-leninistas, artísticos, místicos, entre
outros), proporcionaria orientações e formas de expressão muito distintas. Aos princípios
hedonistas que observava e que via como decadentes, Ohsawa contraporia a ética samurai
da disciplina. É possível, ainda de acordo com Kotzsch, que Ohsawa se tenha
direccionado para a tradição e tenha radicalizado o seu discurso devido à ameaça do
socialismo e do comunismo.
Kotzsh (1981:79), considera provável que o factor mais importante no
redireccionamento de Ohsawa nos últimos anos da década de 20 tenha sido a filosofia
conservadora e nacionalista do movimento Nippon Shugi. Ainda que tenha surgido como
movimento moderno nos anos 1880, as raízes do Nippon Shugi eram mais remotas.
Pensadores como Kada Azumamaro (1669-1736), Kamo Mabuchi (1697-1769), Motoori
Norinanga (1730-1801) e Hirata Atsutane (1776-1843) contribuíram para esse
movimento, desenvolvendo ideias sobre a singularidade e superioridade dos valores
morais e espirituais dos japoneses. Um pouco ao jeito do que sucedia com os românticos
europeus, tendiam a olhar para um primeiro período da história nacional com profunda
nostalgia. O período em que foi constituída a Man'yōshū (antologia da mais antiga poesia
japonesa, compilada no século VIII) foi visto como período imaculado que antecedeu a
corrupção estrangeira, neste caso a influência chinesa.
No âmbito desse movimento, a cultura ocidental, vista como assente no
materialismo, individualismo, igualitarismo e hedonismo, foi tomada como ameaça
mortal à alma da nação japonesa e à sua sobrevivência. Houve um apelo para uma
restauração de valores, de forma a permitir que o Japão retornasse ao “caminho original”.
Uma das ideias desenvolvidas era a de que o Japão tinha um papel de liderança único na
história mundial e de que deveria ser pioneiro num novo tipo de civilização que juntasse
oriente e ocidente. Esta linha de pensamento rapidamente conduziria ao militarismo e
expansionismo, tendo alguns grupos defendido que era destino do Japão expandir-se
territorialmente para o continente asiático (cf. Kotzsch, 1981:81 e segs). Em 1885, o
Seikyo Sha (sociedade nacionalista) já se havia organizado com o fim de preservar a
“essência nacional” e de se opor às ideias ocidentais. Nas décadas seguintes outros
grupos viriam a promover a necessidade da preservação da “essência nacional”. Ohsawa
esteve distante de uma influência directa destes grupos numa primeira fase, sendo através
do movimento shoku-yō que os encontraria e se deixaria influenciar.
117
«À Mesa com o Universo»
118
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
numa cerimónia xintoísta e são sepultados com uma cerimónia budista. Evocando a
faculdade de síntese como característica japonesa é ainda Ohsawa quem nos refere a
existência entre os japoneses de uma cultura do espírito de síntese que permitiria unificar
domínios como a filosofia, sociologia, ciência, artes e religião… A formação da nação
nipónica seria ela mesma um exemplo de síntese sociológica (Ohsawa, 1973:110).
Uma das primeiras obras de Ohsawa, com significado para a compreensão da
macrobiótica, intitulava-se, justamente, Principe Uniquede La Philosophie et de la
Science d’Extrême-Orient (1973 [1931]). Aí procurou unificar diversos contributos das
religiões e filosofias orientais (Índia e China antigas) com a ciência, de forma a
estabelecer o Princípio Único (princípio que governaria a causalidade de todos os
fenómenos do universo e que se expressaria através da yniologia). A yniologia (análise de
acordo com os princípios yin e yang) seria a filosofia que permitiria integrar e
compreender os diferentes contributos e sabedorias 52.
De acordo com Kotzsch (1981), dois aspectos são importantes para compreender a
receptividade dos japoneses em relação a religiões estrangeiras. Em primeiro lugar, a
recusa da divisão entre sagrado e profano; em segundo, a importância atribuída à vida
prática em detrimento de outras dimensões mais conceptualizadas. Neste âmbito,
subsistiria na religiosidade japonesa um entendimento do cosmos como «continuum
ôntico» (Kotzsch, 1981), em que a natureza é expressão do divino, sem dicotomias entre
sagrado e profano, e onde o Homem é visto como parte integrante da natureza. Daqui
derivariam uma perspectiva optimista sobre a natureza humana; a continuidade entre
domínio material e espiritual; a primazia à experiência directa e ao modo de apreensão
intuitivo e afectivo e, até, a concepção segundo a qual as crenças e comportamentos
religiosos não são mutuamente exclusivos (Kotzsch, 1981: 3-4). À ideia de um sagrado
exterior ao Homem contrapor-se-ia uma visão do sagrado como algo de que o Homem
faz parte e que se encontra perante ele. A religiosidade japonesa estaria, assim, muito
mais focalizada em certas manifestações particulares do divino do que em aspectos
universais e transcendentais, conjugando de forma intensa a experiência religiosa e a
experiência estética. Pronunciando-se sobre o espírito japonês, Ohsawa diria: «A única
coisa que lhe interessava era a vida prática, é pois o pragmatismo que orienta, desde
sempre, o povo nipónico.» (1973:109) [Tradução livre].
52
Ohsawa caracteriza a yniologia do seguinte modo: «A In’yologia é a mais englobante filosofia do
Extremo Oriente. Inclui toda a ciência. Creio que ela facilita aos ocidentais a compreensão do budismo e,
por extensão, toda a filosofia do Extremo Oriente mais profunda, lugar onde a totalidade das ciências
práticas da vida, medicina, biologia, economia, sociologia, por exemplo, se encontram extraordinariamente
sintetizadas de forma harmoniosa (Ohsawa,1973:8).
119
«À Mesa com o Universo»
120
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
53
“Viver em harmonia com a Natureza” é um aspecto incansavelmente repetido por Ohsawa. A poucos
princípios terá sido tão fiel, pelo menos no que é visível na produção escrita.
54
Forma de observação que utilizaria como auxiliar na classificação dos elementos químicos em termos de
yin e de yang. Os elementos que tinham um comprimento de onda em direcção ao vermelho e laranja do
fim do espectro eram relativamente yang (carbono, hidrogénio e sódio estavam nessa categoria), os que se
encontravam próximos do violeta eram mais yin, como o potássio. (cf. Ohsawa, 1973:68).
121
«À Mesa com o Universo»
que a mente ocidental era excessivamente analítica e direccionada, não estando preparada
para compreender a abordagem holística e intuitiva dos orientais. Aparentemente, terá
sido o desejo de divulgar essa visão holística, bem como o de tornar os princípios do
shoku-yō acessíveis e atractivos para os ocidentais, que o terá levado a escrever e publicar
em 1931 o livro Principe Unique. Com este livro, Ohsawa conquistaria uma notoriedade
que até aí não almejara. Consegue melhorar a sua situação financeira e movimentar-se
por alguns dos círculos intelectuais parisienses, conhecendo figuras como Paul Valery,
André Malraux e Lévy-Bruhl55.
O livro Principe Unique constituiu uma oportunidade de divulgar na Europa
alguns dos aspectos de sistemas religiosos e filosóficos orientais (budismo, taoismo,
shintoísmo) e, mais especificamente, permitiu a Ohsawa apresentar os pilares do seu
sistema de pensamento, o Princípio Único, ou Princípio Unificador e a teoria da
yniologia, aspectos a que, de resto, já atrás fiz referência 56. Atento às preocupações de
Lévy-Bruhl, Ohsawa procura também ele fornecer o seu quadro da “mentalidade
primitiva”, considerando que Lévy-Bruhl havia falhado nos seus intentos dada a sua
incompreensão da profunda relação entre domínio material e espiritual. Na sua óptica, a
“mentalidade primitiva” seria caracterizada por uma visão unificadora destes domínios. O
homem era perspectivado como não se encontrando apartado da natureza, mas como
parte integrante da mesma, o mesmo acontecendo em relação à dimensão metafísica. A
compreensão de todos os fenómenos deveria, assim, estar baseada numa relação de
interdependência. Para sublinhar esta relação, Ohsawa evocaria as palavras de Lao Tze:
«O homem (yo) [yang] é alimentado e governado pela Terra (In) [yin]; a Terra é
governada pelo Céu (yo) (Sol); o Céu é governado pelo Tao, e Tao pela Grande Natureza
(Taikyoku)» (Ohsawa, 1973:101) [Tradução livre]. Defendendo a inexistência de uma
separação entre o real e o ilusório, sublinharia que a nossa «consciência» cria a
«realidade» e que a nossa «realidade» depende das funções mentais (cf. Ohsawa,
1973:61).
Procurando sempre destacar a noção de unidade e de interdependência entre os
fenómenos, procuraria evidenciar de que forma religião, filosofia e ciência podiam ser
55
Ainda que numa fase mais avançada da sua vida tivesse mantido um posicionamento anti-intelectual e
anti-académico parece ter havido uma certa sedução por certos círculos intelectuais. Poder-se-á especular
que a ausência de uma formação de nível superior poderá estar na origem do desdém de Ohsawa pelos
meios intelectuais e científicos, mas o certo é que se serviu deles, e dos saberes deles emanados, para
afirmar as suas concepções.
56
Alguns dos formadores na área da macrobiótica preferiram adoptar o termo «Princípio Unificador a
«Princípio Único», por o considerarem mais adequado para expressar a propriedade de síntese e para evitar
a conotação com um certo monolitismo.
122
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
123
«À Mesa com o Universo»
e pela disciplina do corpo que este regime procurava promover. De acordo com Kotzsch
(1981:165), Ohsawa ter-se-ia associado a intelectuais e militares que estudavam a questão
judia, tendo mesmo escrito virulentos ataques anti-semitas, identificando o materialismo
ocidental e o hedonismo com a “ideologia judia”. É, portanto, um posicionamento
radicalista, o que encontramos em Ohsawa, pelo menos nesta fase. Moviam-no ideais de
regeneração do povo e de estabelecimento de uma comunidade pacífica, mesmo que para
tal fossem necessárias medidas mais autoritárias. Diz-nos Kotzsch, que mais do que tratar
de doenças o que interessava verdadeiramente a Ohsawa era criar um movimento
religioso e social que resolvesse os problemas da nação (1981:295).
No decurso da sua vida terá mudado frequentemente de posições, mas uma crença
profunda no poder da comida, forma de expressão do universo, terá estado sempre
presente no seu pensamento. A comida constituiu, no seu caso, uma forma primeira de
expressão de um projecto ideológico. Projecto através do qual as sociedades se deveriam
organizar. A comida pode ser perspectivada, em Ohsawa, como sendo lugar de recepção,
participação e percepção do universo. O alimento, essência concretizada dos ritmos
cósmicos, substância na qual o ambiente surge incorporado, constituía para Ohsawa a
fonte através da qual se transmutava o mundo vegetal em vida humana. Da sua recepção
dependia essa vida e por ela se participava da “ordem do universo”. Pela comida se podia
obter maior discernimento e capacidade de entendimento dessa “ordem”. A ordem de
Ohsawa, claro57.
Em 1937, Ohsawa tornar-se presidente do movimento shoku-yō; promove
publicações e distribuição de comida. Organiza, então, o primeiro congresso nacional do
movimento, que contava, na altura, com cerca de 2500 membros. Dedica-se a consultas
individuais, criando a regra de não ver um paciente mais do que uma vez, e cobrando
valores muito elevados para observar pessoas durante 15m justos. Entendia que a leitura
dos livros publicados no âmbito do movimento shoku-yō seria suficiente para dar
sequência ao tratamento. Após 20 anos de ligação ao movimento, Ohsawa abandona-o, e,
decide devotar-se, por sua conta, a causas políticas e sociais. Em 1940, muda-se para uma
pequena cidade próxima de Quioto, adquire um velho restaurante e aí estabelece, com um
pequeno grupo de discípulos, um centro de pesquisa e de conferências que será
57
Não discuto neste contexto, os pressupostos de Ohsawa, nem enveredo por uma análise crítica da sua
proposta ideológica. Convém destacar, todavia, a partir dos dados que vêem sendo apresentados, a visão
profundamente ideológica que Ohsawa apresenta para a alimentação, fazendo da macrobiótica um projecto
ideológico de reforma da sociedade.
124
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
responsável pela publicação de uma revista. Marcando esta nova fase da sua vida, adopta
a designação Shin Seikatsu Ho (verdadeiro modo de vida) em vez de shoku-yō.
Após a eclosão da II Grande Guerra, sobretudo a partir de 1943, assume uma
posição anti-militarista, discordando, por conseguinte, de uma solução militar para o
Japão. Em alternativa ao confronto entre países, defende a existência de um governo
mundial, sustentado num parlamento, também ele mundial. De acordo com Kotzsch
(1981), terá procurado ser intermediário entre os EUA e o Japão para conseguir a paz.
Com o decorrer do conflito, começa a profetizar a derrota do Japão e o fuzilamento dos
governantes58. Acaba por atrair a atenção das autoridades pelas suas críticas e profecias,
de tal forma que a sua escola e revista são interditadas. Ao mesmo tempo, alguns jornais
começam a referi-lo como charlatão. Ainda de acordo com Kotzsch (1981), será feito
prisioneiro por diversas vezes na sequência destes acontecimentos. O próprio Ohsawa –
alude a este período, referindo ter sido condenado à morte por duas vezes, sendo salvo in
extremis pelo general MacArthur (Lopes, 1978: 22).
Mais tarde, em 1948, em Yokohama, colocaria uma placa identificadora na nova
escola, que entretanto abrira, onde se podia ler «Centro do Governo Mundial». Chama ao
seu centro «Maison Ignoramus» e, como atrás foi referido, atribui nomes ocidentais a
alguns dos seus alunos, procurando transformá-los em cidadãos internacionais. Será
também por esta altura que, de forma mais sistemática, passa a designar o conjunto de
concepções que defendia por macrobiótica.
Desapontado com a fraca adesão dos japoneses à sua proposta, Ohsawa e Lima
(sua mulher) deixam o Japão em 1953. Vivem algum tempo na Índia e, em 1955, seguem
para África para irem ao encontro de Albert Schweitzer, a viver em Lambaréné (no actual
Gabão). Schweitzer, médico-missionário alsaciano a quem foi atribuído o Prémio Nobel
da Paz em 1952 e que fundou, a partir da missão existente nessa localidade, o Hospital de
Lambaréné, era, no entender de Ohsawa, a personalidade adequada para credibilizar a
macrobiótica. A “sensibilidade espiritual” que Ohsawa lhe atribuía, a preocupação com
princípios universalistas e com uma ética comum a todos os homens, e, possivelmente, o
facto de ser vegetariano, terão constituído para Ohsawa factores de aproximação.
Ohsawa adoece durante a sua estada em África: fere-se e tem dificuldade em
cicatrizar as feridas (úlceras tropicais). Schweitzer recomenda-lhe que vá de imediato
para a Europa, mas Ohsawa insiste em se tratar através da macrobiótica. Adopta uma
58
Procurando atribuir-se poderes superiores, obtidos por um profundo conhecimento de yin e de yang,
Ohsawa vangloria-se de ter profetizado (sic) a derrota do Japão, o assassínio de Gandhi, Kennedy…
(Ohsawa in Lopes, 1978:22).
125
«À Mesa com o Universo»
dieta muito restritiva e ingere sal embrulhado em algas 59. Ao fim de duas semanas refere
que as feridas haviam desaparecido. Fica aparentemente curado, mas não consegue
convencer Schweitzer sobre a superioridade do que designava como “medicina
macrobiótica”. Muito embora a escrita do livro La Philosophie de la médecine d'Extrême
Orient, que terminara recentemente, se dirigisse particularmente a Schweitzer, Ohsawa
parece não ter conseguido conquistar este médico para a sua causa. Seguirá para Paris em
1957, onde começará a publicar uma revista mensal Yin – Yang, desenvolvendo, a partir
de então, actividade em diversos países da Europa (Bélgica, Suiça, Alemanha, Suécia,
Itália e Inglaterra), nos quais ministra palestras e promove a macrobiótica. O livro
Macrobiotique Zen surgido em 1960 é o resultado visível desta fase da sua vida.
59
Kushi referiria que teria sido ele e sua mulher a enviarem desde os EUA os alimentos necessários ao
tratamento de Ohsawa.
126
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
França. Haveria poucas quintas de agricultura biológica na Europa, onde o arroz integral
e a sopa de miso não surgissem regularmente na mesa (Kotzsch,1981:308, o que é
indiciador da influência de Ohsawa neste grupo e da profunda conexão entre as
perspectivas deste autor, relativamente à alimentação, e as preocupações dos que, numa
fase inicial, se associaram ao movimento da agricultura biológica. De resto, a ligação
deste movimento a Rudolf Steiner, fundador da corrente filosófica da Antroposofia, (cf.
Truninger, 2010: 23), evidenciava que este grupo tinha um entendimento sobre a comida
que estava longe de se limitar a questões nutritivas e ambientais. Tinha também, pelo
menos num primeiro momento, uma clara dimensão espiritual. Com a passagem de
Ohsawa pela Europa e EUA nos anos 1960, rapidamente começam a aparecer centros
macrobióticos na Bégica, França e EUA. Muitas pessoas começam a devotar-se por
inteiro a negócios relacionados com a produção e distribuição de bens alimentares,
necessários para uma alimentação macrobiótica, bem como à formação. Este último
aspecto seria, aliás, imprescindível para a divulgação da macrobiótica, dada a novidade
do conjunto de conhecimentos (concepções filosóficas, ingredientes, técnicas e estilos
culinários…) associados à macrobiótica. Começam a surgir revistas dedicadas a esta
proposta em francês e em inglês, e os livros de Ohsawa começam a ser traduzidos para
diversos idiomas. Em Portugal, será sobretudo a partir da década de 1970 que começarão
a ser publicados os livros deste autor.
É de referir que o contexto de acolhimento da proposta de Ohsawa nos anos 1960
é-lhe particularmente favorável. Ohsawa representa uma proposta crítica em relação a
diversos aspectos da sociedade ocidental. As suas objecções em relação à ciência (ainda
que tivesse a pretensão de a harmonizar com a sua cosmovisão), ao materialismo e ao
racionalismo, que, em seu entender, impediam o desenvolvimento da intuição e da
sensibilidade espiritual, surgem, para muitos, como proposta alternativa a uma forma
excessivamente racionalizada de explicação do mundo. A ausência de sentido ou de
finalidade para a vida humana, de uma compreensão integrada do universo, ou o
sentimento do absurdo da vida (aspectos que terão sido associados a correntes filosóficas
em voga nos anos 60 e 70, como o existencialismo), terão contribuído para a necessidade
de uma proposta de reencantamento do mundo. Uma visão do universo como sistema
fechado (organizado em sete estádios segundo a proposta de Ohsawa), coerente e
inteligível, com um quadro de valores e de orientações organizado e sintético, como
aquele que a macrobiótica sugeria, encontrou facilmente seguidores. A macrobiótica
surgia assim como uma espécie de saber prático, onde teoria e praxis podiam ser
127
«À Mesa com o Universo»
128
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
outro lado, a leitura atenta de Henry David Thoreau (1817-1862), com o livro referencial
para o movimento ambientalista Walden ou a Vida nos Bosques (1854); o zen
popularizado por Allan Watts (1915-1973); os beatniks, com Kerouac (1922-1969) a
escrever Os Vagabundos do Dharma (1958); o movimento psicadélico iniciado por
Richard Alpert (Ram Dass, n.1931) e Timothy Leary (1920-1996), com as experiências
psicotrópicas e viagens à Índia, representavam a contestação a uma sociedade materialista
e, portanto, pouco centrada na espiritualidade. Representavam a busca de novos
horizontes e sentidos para uma sociedade desencantada, pelo menos em alguns dos seus
segmentos. É pois junto dos simpatizantes destas propostas que Ohsawa encontrará
muitos dos seus seguidores. Outros virão do mainstream, outros ainda virão por razões de
saúde. Aproveitando o boom zen, Ohsawa dará ao seu livro o título Macrobiótica Zen.Em
1960, apresentará uma palestra na Academia Budista de Nova Iorque, indo de encontro a
apelos de seguidores da macrobiótica que já aí existiam. Cultivará, numa fase final da sua
vida, a imagem do homem sábio, um dos últimos filósofos do oriente que iria iluminar o
mundo (cf. Kotzsch, 1981: 238).
129
«À Mesa com o Universo»
60
Para uma informação mais detalhada sobre aspectos relativos à implementação e institucionalização da
macrobiótica, ver sobretudo Kotzsch (1981, 1985, 1988), William Shurtleff com Akiko Aoyagi (2004) e
Kushi (1989). Kotzsch é um dos mais significativos estudiosos da macrobiótica, tendo conciliado uma
consistente análise documental com o contacto directo com algumas das mais proeminentes figuras ligadas
à macrobiótica. Teve oportunidade de viajar pelo Japão e de aí recolher dados e estabelecer contactos com
interlocutores privilegiados ligados à macrobiótica, contribuindo, desta forma, para uma visão mais
aprofundada e global sobre o fenómeno. Este autor realizou trabalho de doutoramento sobre Georges
Ohsawa (Kotzsch, 1981) na área da Religião Comparada (Universidade de Harvard), sendo o seu trabalho
um dos mais citados. Apesar deste importante contributo, verifica-se a necessidade de uma investigação
rigorosa especificamente sobre a história da macrobiótica. O estabelecimento em 1999, no Smithsonian
Institution's National Museum of American History, da colecção da família Kushi de materiais relativos a
macrobiótica (ver apêndice 1), deve constituir uma fonte preciosa para uma análise detalhada sobre a
macrobiótica. Poderá constituir também uma fonte importante para a história das práticas relacionadas com
130
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
as terapêuticas alternativas nos EUA, dado que algumas dessas práticas, como o shiatsu e a moxabustão,
surgem associadas à macrobiótica.
131
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133
«À Mesa com o Universo»
acto de comer num ritual através do qual se convocava a “ordem do universo” para a
mesa. Uma das suas maiores preocupações foi, de acordo com Kotzsch (1981:295), não
tanto a de tratar doenças mas mais a de criar um movimento religioso e social que
contribuísse para a paz mundial.
62
Shurtleff e Aoyagi (2004) referem 32 pessoas e 11 famílias.
63
Dizem-nos Shurtleff e Aoyagy a propósito do exôdo para Chico «Os talentos eram diversos mas poucos
no que respeitava a confecção e distribuição de alimentos: cinco trompetistas profissionais, um pintor, um
escultor, um economista de Harvard, uma estrela de telenovelas e um engenheiro» (2004:7). A base de
recrutamento para a macrobiótica incluía assim um conjunto de indivíduos ligados a profissões que
costumam ser associadas à classe média - média-alta.
134
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
64
Diz-nos Pollan (2009a) que do desejo de uma produção alimentar não contaminada surgiram grupos hoje
expressivos do ponto de vista económico como a empresa «Whole Foods», que terá passado de uma
actividade marginal para uma de maior centralidade, medida pelo volume de negócios. O mesmo não
sucedeu com todos os grupos, tendo alguns permanecido marginais, como os que se encontram em
«People’s Park», que Pollan caracteriza como “(…) parque com lixo espalhado por entre a erva e as
árvores, salpicado com as tendas esfarrapadas de algumas dúzias de sem abrigo. Na sua maioria entre os
135
«À Mesa com o Universo»
cinquenta e os sessenta anos, alguns deles ainda com roupas e penteados ao estilo hippie” (Pollan,
2009a:149).
65
Livro elaborado pelos fundadores da «Chico-san» (Ohsawa Foundation of Chico), como resposta à
necessidade de uma orientação prática na cozinha. Seria reeditado pela George Ohsawa Foundation,
instituição criada na Califórnia por Herman Aihara e Cornellia Aihara. A elaboração deste livro constituiu
uma das primeiras tarefas que os fundadores da «Chico-san» se auto-impuseram, dado o desconhecimento
sobre a macrobiótica e a falta de livros que constituíssem referenciais de orientação. Com as devidas
ressalvas, tendo em consideração o impacte social destes livros, tal como «o livro de cozinha» foi
importante para o “estabelecimento” de uma cozinha nacional (Appadurai, 1988; Sobral, 2008), também
este livro seria uma referência incontornável para a macrobiótica desenvolvida nos EUA.
136
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
Mintz (2008), no conjunto de aspectos que menciona para procurar compreender por que
motivo na Europa e nos EUA nunca se havia antes do século XX fermentado as
leguminosas - técnica que, no caso da soja, permite criar um conjunto assinalável de
derivados (miso, molho de soja, tofu, tempeh [tempe], natto…) - conduz-nos a identificar
o valor vital da soja em alguns países asiáticos (sobretudo China, Japão, Coreia e
Vietname) com motivos de que beneficiariam tanto produtores como consumidores 66. A
soja seria importante para enriquecer os solos e como fonte de energia e de proteínas para
os humanos. É evidente que a questão das proteínas não podia ser colocada numa fase
inicial do consumo da soja, mas face a uma alimentação com uma ampla base vegetal, a
soja constituía, com grande probabilidade, um recurso de ordem energética não
negligenciável. Por outro lado, uma das hipóteses para que a fermentação da soja
ocorresse primeiro na China, e que é sugerida a Mintz por Huang (Mintz, 2008:62),
aponta para uma conjunção favorável, naquele contexto ambiental, entre o tipo de cereais
cultivados (arroz e millet), a utilização do vapor como técnica para cozinhar e a existência
de várias espécies de fungos no ambiente. No ocidente, tais condições não terão sido tão
propícias. Por outro lado, não teria havido necessidade de fermentação das leguminosas,
dado que, ainda que os feijões disponíveis não fossem fáceis digerir, não apresentavam os
problemas de indigestibilidade da soja. A estes aspectos haveria ainda a acrescentar, de
acordo com Mintz (2008), a existência de um momentum cultural específico, na China,
que permitiria a fermentação da soja. Aliás, seriam também outros momenta culturais
particulares que levariam ao sucesso do açúcar e, mais tarde, ao sucesso da soja fora do
contexto asiático.
Desde a domesticação da soja, cerca de 1000 anos A.C., até à sua fermentação,
por volta do ano 900, um longo caminho foi percorrido, favorecendo uma íntima
convivência com um produto de difícil digestão, que tornaria possível a invenção de
diferentes formas de o manipular e de o apresentar. Mais que isto: seria definido através
da fermentação da soja um tipo específico de tempero e de sabor que virá a caracterizar
tanto a cozinha chinesa como a japonesa. O molho de soja impregnaria inúmeros pratos
confeccionados em muitos lugares, tornando-se num dos marcadores mais expressivos
das cozinhas da China e do Japão, podendo ser visto como enquadrando os seus
princípios de condimentação67. Possivelmente porque pouco familiarizados com estes
66
Dos produtos fermentados derivados da soja, só o molho de soja era utilizado na cozinha europeia. O
molho de soja terá entrado na culinária europeia no século XVII (Mintz, 2008:62).
67
A noção de princípios de condimentação (aromas e sabores específicos) é considerada por Contreras e
Gracia (2005: 202), seguindo Elizabeth Rozin e Paul Rozin (1981), como um dos aspectos mais
137
«À Mesa com o Universo»
permanentes (porque mais resistente) e identificador de uma cozinha, algo que pode permanecer durante
séculos enquanto outros componentes desaparecem.
68
A importância da soja em termos nutritivos tem sido amplamente difundida, bem como os seus efeitos
para a saúde. As proteínas presentes na soja transformaram-na num alimento particularmente recomendado
nos regimes vegetarianos e semi-vegetarianos, como forma parcial de substituição dos alimentos de origem
animal. Os benefícios das isoflavonas presentes na soja têm também sido largamente divulgados, sendo
associadas ao combate da osteoporose e desconfortos da menopausa, bem como na prevenção de certos
tipos de cancro. Este alimento surge assim na categoria dos nutracêuticos, ou seja, alimentos com efeitos
medicinais. Curiosamente, o “leite” de soja (bebida de soja), cuja presença é cada vez mais regular nos
supermercados e à mesa, tido por muitos como um substituto saudável ao leite, foi-me apresentado nas
sessões de formação em macrobiótica como um produto “de difícil digestão” e que não deveria ser
consumido diariamente.
138
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
69
Designação que é também uma homenagem a Ohsawa, dado que é igualmente o título de um livro de
Samuel Butler [1872], que era do agrado de Ohsawa.
70
Entretanto a «U.S. Mills, Inc.» foi adquirida em 2009 pela «Attune Foods», empresa do ramo alimentar
dedicada sobretudo à produção de cereais de pequeno-almoço. Este tipo de cereais não é dos produtos mais
recomendados nas sessões de formação sobre macrobiótica, dado o processamento de que são alvo. A
mudança de mãos desta empresa parece estar assim associada a uma estratégia onde a macrobiótica, ainda
que possa ser vista como fazendo parte da História da empresa, tem já um valor residual.
139
«À Mesa com o Universo»
Em 1972 seria criada, em Boston, a «The East West Foundation» (EWF), uma
organização sem fins lucrativos, votada ao ensino da macrobiótica, da medicina oriental e
outras artes tradicionais, presidida por Michio Kushi. Associada a esta organização,
surgiria uma revista com o mesmo nome que se transformaria numa espécie de porta-voz
de estilos de vida alternativos. A EWF acolheria entre 10-12 estudantes que viveriam
com os Kushi. Mais tarde (1978), seria fundado o Instituto Kushi em Boston, que hoje se
encontra sediado nas Berkshires (Becket – MA). Nova Iorque, Massachusetts e Califórnia
seriam assim três pólos importantes no desenvolvimento de práticas relativas à
macrobiótica.
No Reino Unido, só a partir de finais dos anos 1960, com Greg e Craig Sams, se
começaria a promover a macrobiótica. Diz-nos Kotzsch (1988) que a maior receptividade
a este tipo de propostas viria do movimento contracultura, onde se encontrariam
albergadas tendências que viam na macrobiótica uma forma de expressão adequada ao
espírito contestatário. Diz-nos ainda o mesmo autor que, com uma certa falta de
informação sobre o que era realmente a macrobiótica, alguns destes indivíduos juntavam
o arroz integral à marijuana (Kotzsch, 1988:221). A partir de 1975, o casal Kushi
começaria a divulgar a macrobiótica na Europa, apresentando esta proposta como tendo
preocupações ligadas à agricultura, ecologia, saúde, desenvolvimento espiritual e paz
mundial, temas para os quais havia cada vez maior sensibilidade. Diz-nos Kotzsch
(1988:220) que nos anos 80 havia já uma larga e crescente rede de pessoas ligadas à
macrobiótica na Europa. Em 1982 é fundada a Associação Macrobiótica Europeia, com
secretariado em Antuérpia e com organização de congressos anuais 71.
Dos diferentes países da Europa onde a macrobiótica foi introduzida, destaco aqui
apenas a Suécia, país que é apresentado por Roland Keijser (envolvido na macrobiótica)
como estudo de caso (mais à frente analisarei com maior pormenor a situação
portuguesa). Na Suécia, terá havido um intenso debate entre os defensores da
macrobiótica e o movimento vegetariano. De acordo com Roland Keijser, os suecos terão
tido dificuldade em integrar as referências orientais da macrobiótica e viram a proposta
de Ohsawa como um «Ohsawa-ismo», tendo afirmado a “verdadeira macrobiótica” como
sendo a da tradição germânica (a de Von Hufeland,), baseada numa perspectiva
romântica da natureza e na moderna Ciência da Nutrição (cf. Kotzsch, 1988:228).
71
Para uma visão mais completa sobre o desenvolvimento da macrobiótica na Europa veja-se Kotzsch
(1988).
140
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
Deste debate vale a pena destacar o entrosamento que é defendido existir entre
vegetarianismo e macrobiótica, dado que se sugere que é no grupo dos vegetarianos que a
macrobiótica encontrará alguns adeptos. Em Portugal, os depoimentos de diversos
informantes conduzem-me também ao estabelecimento dessa relação e a um
entroncamento da macrobiótica no vegetarianismo. Por outro lado, a importância dada às
Ciências da Nutrição revelava já a importância desta área na estruturação dos discursos
sobre alimentação. Na verdade, serão cada vez mais aspectos ligados às questões
nutricionais e às questões de saúde que estruturarão os discursos sobre alimentação e não
aspectos de ordem ética ou disciplinar, como os que tinham caracterizado algumas das
orientações alimentares dos finais do século XIX. Mesmo na macrobiótica, a referência a
aspectos nutricionais e às vantagens, em termos de saúde e de energia, do consumo de
certos alimentos, passou a ser elemento estruturante dos discursos.
141
«À Mesa com o Universo»
moxabustão. Julgo poder dizer que os dados apresentados apontam uma efectiva
centralidade da macrobiótica, que, de prática marginal, proporcionou, pelos consumos,
alimentares e ao nível dos tratamentos, transformações dos sistemas sociais. Convém
salientar, contudo, que muito embora alguns consumos e algumas práticas possam ter
relação com a macrobiótica, a partir de determinado momento ter-se-ão autonomizado
dessa proposta e seguido um caminho próprio, sendo, frequentemente, ignorada a história
desses processos.
72
Como referido, é nesta obra que Ohsawa começa por expôr o seu pensamento à sociedade europeia. Teve
a sua primeira edição em França, pela J. Vrin, uma respeitada editora de textos filosóficos, continuando
ainda a ser editado.
142
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
73
Ohsawa adoptou a terminologia «Princípio Único», no entanto, como referido, alguns formadores têm
sugerido o conceito de «Princípio Unificador» como sendo mais expressivo daquilo que se procura afirmar,
ou seja, como transmitindo de forma mais adequada a ideia de unidade de todos os fenómenos e de visão
integrada.
74
A origem deste livro é atribuída ao fundador mítico Fu-hsi,(Fou-Hi) apontado como primeiro “sábio”
civilizador da China Antiga. Terá sido ele o inventor dos trigramas e do método de adivinhação que lhes
está implícito, tendo governado mediante a consulta das varinhas de aquileia (cf. Kielce, 1988: 9). Estas
varinhas permitiriam definir os trigramas e hexagramas a partir dos quais se augurava o futuro. O termo I
significaria transformação e king a trama de um tecido ou também “tratado de base”. De acordo com a
tradição chinesa, as origens do I Ching podem ser situadas no terceiro milénio A.C., sendo assim
classificado como um dos livros mais antigos de que há registo (cf. Guita, 2005:26). Este livro terá sido
posteriormente aperfeiçoado com os contributos do rei Wen (1092-1090 A.C), do seu filho, duque de Tcheu
e com Confúcio (séc. V A.C.). A primeira tradução, lacunar, é feita em meados do séc. XIX, tendo surgido
posteriormente, em 1924, uma tradução completa pela mão do missionário Richard Wilhelm, que viria a ser
publicada em inglês em 1951 (cf. Kielce, 1988:17).
143
«À Mesa com o Universo»
dizer, contudo, que Ohsawa os organizou de forma criativa e arrojada. Face à mente
racional, que considerava ser característica do ocidente, arquitectou um sistema de
pensamento que esperava que tornasse possível, aos ocidentais, compreender uma forma
de entendimento do mundo mais intuitiva e dedutiva. De uma forma simples, pretendia
que a partir da apreensão de um princípio universal (lei universal), fosse possível a sua
aplicação em casos particulares (kotzsch, 1988: 54) 75.
Através do «Princípio Único», Ohsawa estabelecia uma visão do universo em que
tudo seria proveniente de uma única fonte (“absoluto”, “infinito”) e participaria da
mesma realidade. A visão do universo é assim uma visão holística, através da qual pode
ser detectada uma relação de interdependência entre todos os fenómenos. Desta forma, a
visão do cosmos sugerida é a de um “continuum ôntico” (Kotzsch, 1981), onde todos os
fenómenos podem ser vistos como expressão do divino e como sendo perpassados pela
mesma energia universal. Este princípio surge, assim, como princípio integrador, capaz
de tudo abarcar. O «Princípio único» encontrar-se-ia por detrás de todos os fenómenos do
universo, expressando-se através da relação dinâmica entre yin e yang (categorias opostas
e complementares). Do seu entendimento resultaria a compreensão da ordem do universo.
O conceito de «Princípio Único» aparece em Ohsawa (1973 [1931]) de forma algo
imprecisa, como «Lei Única», «Tao», «Taikyoku», «Brahman», «Deus», «universo-éter»,
«Absoluto» «Natureza». Uma certa complexidade associada a este conceito tem sido,
possivelmente, o motivo pelo qual, apesar de ser entendido como princípio norteador,
nem sempre lhe ser feita menção quando se introduz a macrobiótica. É o que sucede com
alguns livros que abordam este assunto (cf. Varatojo, 2010), em que se opta por referir
uma energia universal - o Ki (Japão) ou o Chi (China), ou ainda o prana (Índia) -, que
seria a base da criação de tudo o que existe, e que corresponderia a uma energia subtil
que fluiria pelo universo e que poderia também ser reconhecida nas estruturas humanas.
Esta categoria, a de Ki, parece ser menos problemática e de mais fácil assimilação.
Ao «Princípio único», Ohsawa acrescentaria mais tarde os «Sete axiomas da
ordem do universo» ou, como refere Kushi (1978:19), os «Sete Princípios Universais do
Universo Infinito», ou seja
75
É certo que a aplicação deste procedimento sugere também uma lógica científica, o que sugere que
muitos aspectos do pensamento de Ohsawa merecem uma análise detalhada. Contudo, não desenvolverei
no contexto deste trabalho uma análise aprofundada da sua proposta, dos seus excessos e das suas
incongruências, dado que tal não constitui o objectivo desta pesquisa. Esta apresentação, ainda que não seja
totalmente não analítica, visa sobretudo apresentar um quadro orientador a partir do qual se possa
compreender de que modo se arquitectou uma cosmovisão que integra um sistema alimentar e um sistema
terapêutico.
144
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
145
«À Mesa com o Universo»
A representação gráfica das mutações energéticas e das diferentes combinações entre yin
e yang pode ser observada num conhecido hexagrama associado ao Livro das Mutações.
76
Representação gráfica das mutações abordadas no I Ching. Hexagrama onde podemos observar oito
trigramas com as diferentes combinações entre yine yang. Imagem disponível em Miami community
acupuncture http://www.miamicommunityacupuncture.com/blog/balance-method-acupuncture/ [Acedido
em 3-12-11].
146
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
77
Sobre a formação das espirais diz-nos Kushi: «As espirais são inicialmente criadas por uma força
centrípeta yang, da periferia para o centro, no sentido da fisicalização e materialização, e, ao atingir o seu
estado máximo de contracção, esta força centrípeta torna-se no seu oposto, uma força centrífuga, yin, que se
expande a partir do centro de retorno à periferia, tomando um curso de decomposição e desmaterialização.»
(1978:32). Qualquer espiral completa do universo seria uma espiral logarítmica de sete órbitas (1978:34).
147
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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
sessões de formação relativamente a este aspecto é a de que Ohsawa terá feito uma
adaptação da proposta dos chineses relativamente aos conceitos de yin e yang, para que
os ocidentais compreendessem mais facilmente a sua proposta. Assim, órgãos que na
medicina tradicional chinesa são classificados como yang, como o intestino grosso e a
bexiga, na macrobiótica são considerados yin, enquanto que órgãos considerados yin pela
medicina tradicional chinesa, como o fígado, o coração e os rins, são considerados yang
na macrobiótica. Na macrobiótica o princípio de categorização é o de que quanto mais
quente, denso e contraído, mais yang; órgãos ocos são órgãos yin.
As categorias yin e yang são vistas, portanto, como compondo o mundo relativo e
como governando todos os fenómenos “…individuais e colectivos, as partes e o todo, o
passado e o futuro” (Kushi, 1978:21), são categorias opostas, mas complementares. “Elas
constituem o entendimento, o conhecimento mais elevado que a humanidade jamais teve,
e constituem a sabedoria inata, genuína e intuitiva inerente a todos os seres humanos.
Elas são a chave para a realização de todos os sonhos possíveis. Conhecendo-as, seremos
capazes de transformar a doença em saúde, a guerra em paz, os conflitos em harmonia, o
caos em ordem, a miséria em felicidade.” (ibid.:21-22). Assim se afirma a importância da
compreensão destas categorias, elas são um instrumento indispensável para agir sobre os
alimentos, o corpo e a saúde. Na tabela que se segue podem ser observados exemplos de
yin e de yang, tal como apresentados na obra O livro da Macrobiótica (Kushi, 1978).
155
«À Mesa com o Universo»
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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
78
Poderá parecer estranho que se refiram cinco elementos quando apenas conhecemos quatro estações,
mas convém dizer que esta é uma construção simbólica oriental e, tal como me foi referido nas sessões de
formação, os chineses considerariam o final do Verão como correspondendo a uma estação e a uma energia
particular.
157
«À Mesa com o Universo»
79
Fonte: http://www.acupuncturetunbridgewells.co.uk/the-five-elements.htm [acesso 3-12-11]
158
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos
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«À Mesa com o Universo»
Ainda que Ohsawa tivesse defendido o non credo, o certo é que a aceitação da sua
visão do universo assenta, em boa medida, num acto de fé. Por mais interpretações que
possam surgir relativamente ao que deve ser entendido por non credo na macrobiótica,
este princípio parece contraditório. A este propósito podia ler-se nos textos de apoio
distribuídos pelo IMP «Por non-credo entende-se que não se deve adoptar teorias e
concepções sem reflectir e adquirir experiências sobre todas elas, incluindo aquelas aqui
apresentadas». Uma forma suavizada, portanto, de contornar esta questão.
A mensagem de Ohsawa relativamente à vida podia ser também muito cativante.
A sua mensagem é a de optimismo e de que qualquer um se pode tratar. Para ele não
existiam doenças incuráveis, podia era haver falta de discernimento. Vender a vida por
um salário, trabalhando, era, também para ele, um acto de incompreensão da «ordem do
universo», os seus discípulos diriam, no entanto, que era um trabalhador incansável.
Defendia os seus argumentos com convicção e a sua mensagem optimista e de convite à
experimentação terá por certo seduzido muitos. Outros ter-se-ão entusiasmado com o
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A Macrobiótica em Portugal
Capítulo 4
A Macrobiótica em Portugal
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«À Mesa com o Universo»
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A Macrobiótica em Portugal
década de 1960 e o período pré-revolucionário que se viveu desde então até Abril de
1974 evidenciaram claramente não apenas um desejo de mudança social, mas também a
penetração de um ideário favorável a diversos tipos de experimentação social. Ainda
que a macrobiótica tenha surgido em Portugal, no final da década de 60, como um
programa rígido de orientação social, em alguns aspectos conservador - como nas
representações em termos de género, na defesa das hierarquias, na crítica à sujeição ao
hedonismo, materialismo e tecnocracia -, propunha um projecto de transformação
individual e social que não era totalmente incompatível com a efervescência e vontade
de mudança que se vivia no momento. Se, por um lado, a macrobiótica oferecia uma
proposta de disciplina do corpo e da vontade, por outro, prometia um Homem mais
livre, sem doenças, capaz de ousadas realizações e de um nível de consciência, que
representavam, para alguns, não apenas uma espécie de evolução em termos humanos
mas também uma possibilidade de aperfeiçoar os sistemas sociais. Para além destes
aspectos, a macrobiótica surgia aliada à defesa de um modo de produção de alimentos
(modo biológico e de fraco processamento) que entusiasmava pessoas mais sensíveis às
questões ecológicas, e que desejavam também novas formas de intervenção social. Este
período, na sua abertura a novas ideias e experimentações sociais – onde se inclui a
comida, o corpo, os procedimentos de cura e os estilos de vida -, surge assim como
contexto favorável à expansão da macrobiótica.
Os elementos que apresento, seguidamente, estão longe de recriar por inteiro o
processo relativo à emergência e disseminação da macrobiótica em Portugal. Haverá
sempre dados a acrescentar e outros que serão alvo de discussão. Em todo o caso, e
ainda que não constitua objectivo fundamental deste trabalho a apresentação de uma
história da macrobiótica em Portugal, foi empreendido um esforço de contextualização
que julgo que permitirá compreender o modo como foi sendo acolhido e promovido
esse novo produto social que é a macrobiótica.
Os dados em que me baseio, para a apresentação desta breve e possível história
da macrobiótica em Portugal, resultam essencialmente de entrevistas e conversas
estabelecidas com “informantes privilegiados”: ex-dirigentes da Unimave e praticantes
de alimentação macrobiótica de há longa data80. Nesta tarefa de reconstrução de
segmentos de um passado recente, procedo a esse exercício imprescindível que é o
80
Uso a expressão “informantes privilegiados” no seu sentido mais comum, ou seja, refiro-me a
indivíduos que, pelas suas trajectórias pessoais e pelos cargos que ocuparam na direcção de instituições
ligadas à macrobiótica, acabaram por ter um conhecimento profundo da macrobiótica praticada em
Portugal. Refiro-me também a praticantes com um longo convívio com a prática macrobiótica.
165
«À Mesa com o Universo»
cruzamento de dados do terreno. Os elementos que apresento não permitem, só por si,
um cruzamento totalmente satisfatório de informações, mas constituem, ainda assim,
um contributo com algum significado para uma visão mais esclarecida sobre o que foi a
macrobiótica em Portugal.
Os dados recolhidos permitem situar o surgimento da macrobiótica em Portugal,
com actividade visível, nos finais dos anos 60, na cidade de Lisboa. De acordo com
Kotzsch (1985: 225), por volta de 1968, um português, que não identifica, teria
regressado a Portugal, vindo de França, e teria aberto um pequeno restaurante no centro
de Lisboa, onde começara a cozinhar arroz integral com uma pequena quantidade de
vegetais. Esta proposta gastronómica, inspirada na macrobiótica de Ohsawa, terá
decorrido da oportunidade que tivera em França de contactar com a macrobiótica.
Assim, na sequência da inserção deste tipo de pratos nas ementas daquele restaurante,
ter-se-á criado uma clientela com entusiasmo suficiente para organizar uma cooperativa
que viria a constituir em Portugal uma das realizações ligadas à macrobiótica com maior
expressividade: a Unimave (Centro Macrobiótico Vegetariano, S.C.A.R.L). Kotzsch
(1985) associa Jacinto Vieira, que se teria curado de doença grave, à constituição dessa
cooperativa. Ainda a propósito de «começos», Francisco Varatojo aponta o ano de 1975
como data de “começo do movimento macrobiótico”81. Todavia, de acordo com
Kotzsch e alguns dos entrevistados, o início de actividades com ligação à macrobiótica
terá sido anterior a essa data.
Certo é que, numa primeira fase, seria claramente na cidade de Lisboa que se
dinamizariam actividades com vista à divulgação e promoção dos princípios ligados à
macrobiótica. Os restaurantes, a venda de produtos, as palestras, os cursos, as consultas,
a criação de uma cooperativa, são marcos que ocorrem nessa cidade, centro a partir do
qual circularão ideias que defendem que os alimentos afectam a nossa saúde e que a
macrobiótica nos pode levar a uma melhor compreensão e transformação do mundo.
De acordo com dois dos ex-presidentes da Unimave que entrevistei (José
Oliveira e Carlos Campos Ventura82), uma das figuras de referência para compreender o
aparecimento e divulgação da macrobiótica no nosso país foi José Galamba, um dos
primeiros importadores de produtos macrobióticos. José Galamba terá tido problemas
81
Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica
http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].
82
José Oliveira, na casa dos setenta, é actualmente professor de yoga e terapeuta de shiatsu e Campos
Ventura, na casa dos cinquenta, é naturólogo.
166
A Macrobiótica em Portugal
de saúde e, ao tomar contacto com a macrobiótica, em Espanha, acabou por adoptar essa
prática alimentar, promovendo a sua divulgação no nosso país. Nos finais dos anos
1960, princípios dos anos 70, trouxe a Portugal um palestrante espanhol, justamente
com a intenção de dar a conhecer este tipo de alimentação. Francisco Varatojo recorda
que “a primeira palestra sobre macrobiótica em Lisboa foi proferida pelo Dr. Vicente
Ser (…) um discípulo de George Ohsawa” 83. Esta palestra terá sido, segundo Campos
Ventura, muito importante, pois terá gerado um movimento de interesse por esta prática
alimentar. A partir de José Galamba, mas também de Abel Trancoso e outros, ter-se-á
constituído um núcleo de pessoas interessadas pela macrobiótica, que procuraram
informar-se mais com vista a seguir essa orientação alimentar e filosófica. A «Cereália»,
empresa que Galamba criara e se dedicou desde logo à distribuição de produtos
alimentares associados à macrobiótica, viria a permitir que alimentos pouco conhecidos
no nosso país - algas, tamari, miso, ameixa umeboshi, etc. - ficassem disponíveis no
mercado português.
Para José Oliveira (ex-presidente da Unimave), os livros foram também um
elemento de grande relevância na divulgação dos princípios macrobióticos. Recorda que
travou conhecimento com a macrobiótica através de um cartaz que falava da
macrobiótica e de um livro de George Ohsawa, que encontrara num centro de yoga:
Um dia estava em casa do [nome], que dava aulas de yoga em casa, fui lá para
me inscrever no yoga e vi lá um cartaz que falava da macrobiótica. Entretanto,
olhei para o lado e vi que tinha lá um livro do George Ohsawa, peguei no livro
e comecei a ler aquilo. O homem falava no todo… todo à esquerda, todo à
direita, yin/yang, e eu até nem liguei àquilo do yin/yang, mas do todo, o que é
que este gajo quer dizer com o todo? Foi aí que despertei para a macrobiótica.
83
Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica
http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].
84
Kotzsch (1985) não menciona especificamente este restaurante, mas é bem provável que a ele quisesse
aludir quando o referiu como ponto a partir do qual começou a ser divulgada a macrobiótica em Portugal.
167
«À Mesa com o Universo»
[não lhe ocorreu o nome] que todas as sextas-feiras dava uns jantares onde se discutia e
falava da macrobiótica”. O seu proprietário, Abel Trancoso, juntamente com Nogueira e
Gomes Ribeiro (criou a distribuidora Trigrama) viriam a fundar em 1972 a Unimave,
organização que, como já disse, veio a ter um papel decisivo na expansão da
macrobiótica.
Na verdade, faz até sentido ir mais longe e declarar que a História da
Macrobiótica em Portugal só poderá ser compreendida se nos centrarmos na acção da
Unimave. Esta cooperativa dedicou-se desde cedo a várias e importantes actividades:
produção de produtos hortícolas e arroz integral biológicos; serviço de restaurante,
venda de produtos usados na cozinha macrobiótica, cursos de cozinha; apoio alimentar a
iniciados; seminários; colóquios e actividade editorial. Foi a partir da Unimave que se
gerou, como também já referi, um movimento muito expressivo no sentido da
divulgação da macrobiótica.
A ideia da criação da Unimave - uma cooperativa sem fins lucrativos com
propósitos educacionais e culturais, que defendesse a “causa” macrobiótica - terá
surgido ainda em 1971. Segundo Campos Ventura, a Unimave ter-se-á instalado em
Caxias, na R. de S. Paulo, numas instalações que mais tarde terão ficado para a
«Próvida», empresa do mesmo ramo. Seria depois registada notarialmente, e, em
Fevereiro de 1972, abriria a sua sede em Lisboa, na Rua da Boavista. Posteriormente,
nos finais dos anos 70, a Unimave abriria um novo estabelecimento em Lisboa, na Rua
Mouzinho da Silveira, naquela que é apontada como “uma casa excelente”, e onde se
viria a iniciar a importação directa de produtos alimentares. Importavam-se produtos a
granel (sobretudo do Japão e dos EUA), que eram depois embalados e vendidos a
retalho. Mais tarde surge uma nova “filial” em Lisboa, na avenida Barbosa do Bocage
(Campos Ventura refere que terá fechado portas em 1998). Estes três centros
dedicavam-se essencialmente a actividades como a restauração, venda de produtos,
consultas e divulgação através de cursos e palestras. A abertura destes locais evidencia o
interesse suscitado pela macrobiótica a partir dos anos 70.
Foi já no novo século (2001) que a Unimave, que durante 30 anos marcou a
actividade da macrobiótica em Portugal, foi formalmente extinta. É inevitável atentar no
percurso de três décadas desta cooperativa para melhor percebermos o processo da
afirmação da macrobiótica em Portugal. Tendo começado com umas dezenas de sócios,
cada um deles pagando uma quota de cerca de cem escudos, a Unimave viu crescer
rapidamente o número de associados, atingindo os 7000 no início dos anos 1980, um
168
A Macrobiótica em Portugal
dos quais o próprio Michio Kushi, figura cimeira da macrobiótica a nível internacional.
A propósito deste desenvolvimento da cooperativa diz-nos Campos Ventura:
A Unimave cresceu logo muito depressa, começou com umas dezenas largas e
chegou a ter uns 7000 sócios.[Esta adesão]deveu-se ao facto de logo em 74, dois
anos e pouco depois de ter sido criada a Unimave, ter ocorrido o 25 de Abril.
Houve um desbloqueio… politicamente, socialmente… Estas coisas começam a
estar na moda, até porque se integram no espírito da ecologia e de uma
revolução cultural e entre 76 e 80 são os anos de ouro da macrobiótica.
Em 1975 esteve cá o Michio, na Estufa Fria, e acho que a partir daí toda a
gente aderiu às suas ideias. As pessoas discutiam muito, porque eram muito
yang, tinham que discutir umas com as outras, comiam ultra yang, sobretudo
arroz integral, miso, muito sal, pouquíssima fruta, ameixa umeboshi, muitas
algas, muito yang. O Ohsawa continuou a ser uma pessoa muito respeitada, mas
o Michio convenceu-nos a todos, vinha cá uma semana por ano. [Campos
Ventura]
85
Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica
http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].
169
«À Mesa com o Universo»
Esta revolução não terá sido tão autêntica ou pelo menos duradoura, como é
sugerido, mas, efectivamente, parece ter-se gerado a partir dos Estados Unidos e dos
Kushi um movimento cujos ecos serão notados em Portugal86. Alguns portugueses
deslocar-se-ão aos Estados Unidos para fazerem a sua formação na área da
macrobiótica, sendo esse o caso de Francisco Varatojo e Carlos Campos Ventura.
A Unimave, com os seus períodos “de ouro” e de decadência, parece
acompanhar essas movimentações sociais. De uma situação de muito envolvimento e
activismo nos anos 70, passou-se, porém, para um período de esmorecimento
relativamente à defesa da “causa macrobiótica”, sendo sinal deste abatimento o
encerramento dos estabelecimentos geridos pela Unimave.
Na fase de maior dinamismo, entre 1976 e 1980, a Unimave chegou a possuir
um armazém em Odivelas e terrenos em Almoster, onde cultivava, de forma biológica,
arroz integral, grão-de-bico e feijão azuki, entre outros produtos. “O feijão azuki dava-
se lindamente” refere José Oliveira. “O sr. Vitorino e a família é que tratavam dos
terrenos e nós íamos para Almoster aos fins-de-semana trabalhar, descascar e ensacar
arroz. A máquina de descascar arroz avariava-se muitas vezes, já era velha, aquilo era
uma inquietação… trabalhávamos muito”. A produção de arroz integral, alimento de
referência na alimentação macrobiótica, constituía uma actividade inovadora. É ainda
Campos Ventura, ex-presidente da Unimave, que refere “…dantes era proibida a
comercialização do arroz integral. Havia um decreto qualquer que falava disso” 87. Estes
terrenos de Almoster, propriedade da Unimave, e onde se inovava na produção de
produtos agrícolas associados à macrobiótica, acabaram por ser vendidos mais tarde,
numa altura em que a crise já se instalara.
86
Tal como já foi referido anteriormente, e agora relembro de forma sumariada, a partir de 1951, em
Nova Iorque, Michio Kushi e Aveline Kushi começam a trabalhar juntos em prol da macrobiótica, a eles
se juntando, em 1952, Herman Aihara (também discípulo de George Ohsawa). O casal Kushi e o casal
Aihara (Herman Aihara e Cornelia Aihara) serão apontados como os principais dinamizadores da
macrobiótica na costa Leste dos EUA nos anos 50. Posteriormente, em 1961, o casal Aihara muda-se para
a Califórnia, onde funda um centro macrobiótico, e, em 1964, o casal Kushi, insatisfeito com Nova
Iorque, muda-se para Boston, onde funda a East West Foundation, o restaurante Sanae, a primeira
empresa de produtos naturais na América, Erewhon, a revista East West Journal e a distribuidora de
livros Tao Books. Em 1978 é fundado o Instituto Kushi de Boston. Cf. Varatojo, Francisco «História da
Macrobiótica» http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].
87
Este facto aparece também referenciado por Manuel Sá Couto (1946), um diplomado pelo «Macfadden
Institute of Physical Culture» (EUA), que menciona, no conjunto de dados que apresenta sobre nutrição, a
superioridade do arroz integral por relação ao arroz polido e o facto de o arroz integral ser em Portugal
um alimento proibido.
170
A Macrobiótica em Portugal
De acordo com José Oliveira, durante o período em que esteve ligado à direcção
da Unimave havia também uma grande preocupação com a formação dos cozinheiros
que trabalhavam nos restaurantes da cooperativa. Os cozinheiros tinham que estudar
macrobiótica e ter muita sensibilidade para confeccionarem os pratos de acordo com a
pessoa que ia ser servida:
171
«À Mesa com o Universo»
A Unimave foi a grande escola, porque todos os que depois fizeram coisas na
macrobiótica e muitos também fora da macrobiótica, mas nesta base das
naturais, em Portugal, aprenderam na Unimave, porque a Unimave era o
grande centro por onde tudo passava. De facto, foi da Unimave que partiram as
primeiras pessoas para estudar acupunctura nos EUA, foi na Unimave que
nasceu o movimento ecologista, foi na Unimave que houve as primeiras lições
de shiatsu, enfim, passou tudo pela Unimave. Depois essas pessoas fizeram a
sua vida fora da Unimave, mas a Unimave era um centro muito activo onde as
pessoas iam aprender.[Campos Ventura].
172
A Macrobiótica em Portugal
A Próvida foi fundada por duas pessoas que saem da Unimave (…).É hoje a
grande empresa portuguesa de referência na área da alimentação natural. Entre
as empresas que nasceram sob o impulso da macrobiótica temos a Cereália, a
Ignoramus,a Trigrama, Próvida, nascem sob o impulso da macrobiótica. Quem
fundou a Trigrama foi um grande activista na Unimave, foi director da
Unimave, o Gomes Ribeiro, não sei se foi presidente, mas director foi, editou
livros e por aí fora. Foi também ele que fundou o Chakra [restaurante], agora
não se pode dizer que a Trigrama seja uma empresa macrobiótica
(…)comercializa alguma coisa macrobiótica e outras que não são propriamente
macrobióticas, mas é sob o impulso da macrobiótica que esta empresa surge.
173
«À Mesa com o Universo»
Como disse e muito bem, na noite de quinta-feira, dia 23 de Maio de 1974, o Dr.
João Barreto de Atalayão, o Movimento Ecológico existia, existe e existirá,
antes e depois de nós, quer o queiram ou não os seus amigos e inimigos,
reunidos ou não na cooperativa UNIMAVE, a noite de ontem.89
88
Jornalista, defensor da macrobiótica, foi director da Unimave. Divulga na internet uma quantidade
assinalável de textos dedicados à macrobiótica e ao movimento ecológico. Muitos dos seus textos podem
ser encontrados em http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ , uma página que parece ter construído em prol da
“causa ecológica” e também para apresentar contributos para a história do movimento holístico em
Portugal. Muitos dos seus textos podem ainda ser encontrados num blogue de Afonso Cautela editado e
“postado” por Abel Campos Artigot http://www.blogger.com/profile/06626323338418825790 [Acesso
em 22-12-11].
89
Texto disponível em http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ecologiaemdialogo/mep-2.htm [Acesso em
11/12/06], aí se refere “Este texto poderá ter sido lido, (no dia a seguir à reunião da Unimave), em
conferência de imprensa, realizada na Casa da Imprensa, de que existe foto da mesa.
90
Nasce a 25 de Abril de 1974, pelo menos a julgar pela referência que lhe é feita no site Big-Bang. Aí se
diz que o 25 de Abril de 2004, será a data em que se celebrará o 30º aniversário do movimento ecológico
em Portugal http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ecologiaemdialogo/index.htm [consultado em 17/12/06].
174
A Macrobiótica em Portugal
uma “consciência ecológica”, sendo a Unimave uma das sedes de discussão de formas
de intervenção.
Através dos dados recolhidos, apercebemo-nos de que a atmosfera que se vivia
na Unimave naquela época, era muito marcada pelo debate político, com vista a uma
intervenção social. Os debates estavam para lá das estritas preocupações alimentares e
frequentemente davam visibilidade a posições políticas. O projecto de entendimento do
mundo e de mudança social proposto pela macrobiótica, que passava pela alimentação
mas também por muitos outros aspectos, parece ter-se conjugado aí com a vontade de
transformação social, associada a causas políticas tão vivas na altura.
(…) aquilo era complicado, era muito complicado, com pessoas sempre a
digladiarem-se, nessa altura ainda esta muito vivo o espírito da esquerda e da
direita, da extrema esquerda…[Campos Ventura]
Pelo que nos diz Campos Ventura, uma certa proximidade entre vegetarianismo
e macrobiótica terá existido desde o início. Muito embora cada uma destas formas de
alimentação reivindique uma identidade própria, é possível encontrar alguns pontos de
contacto nestas duas formas de alimentação: os produtos animais são evitados (mesmo
na macrobiótica, que diz não proibir nenhum alimento, evitam-se produtos como a carne
ou os derivados do leite, entre outros); a comida é vista como uma via para a saúde e o
desenvolvimento pessoal e social; têm narrativas muito marcadas pela defesa da
175
«À Mesa com o Universo»
Paralelamente à Unimave, embora sem o relevo que esta teve nos finais dos anos
70, surgiram outros projectos ligados à alimentação macrobiótica. Um deles foi o centro
de divulgação e restaurante Chakra, cujo proprietário foi Gomes Ribeiro e, mais tarde
terá surgido o restaurante Biológica:
O Chakra, não sei se ainda existe como restaurante, nasceu como centro de
divulgação, nasceu para aí em 76 (…) Depois do Chacra abriu uma loja onde é
agora o centro comercial Palladium, que era a Biológica e que chegou a ser o
melhor restaurante. O dono era o Gamito, era alentejano, não sei onde está,
telefonou-me há uns tempos, há uns dois anos. Muitas destas pessoas
espalharam-se pelo país, muitas já não estão ligadas à macrobiótica, mas estão
ligadas à agricultura biológica e coisas assim. Desenvolveu-se muito a
naturopatia, a acupunctura… [Campos Ventura]
176
A Macrobiótica em Portugal
Eu estive fora [EUA] entre 80 e 86. Quando saí, a Unimave era uma
organização com uma força tremenda, tinha três casas em Lisboa, era muito
forte. Vim cá em 83, uns dez dias, pouco tempo. Houve aqui um seminário do
Professor Michio e só cá vim de passagem e a Unimave continuava a ser uma
casa forte. [Campos Ventura]
Fazia-se uso do dinheiro que era recebido nas caixas nas despesas correntes, de
maneira que nunca se sabia ao certo quanto entrava e quanto saia, foi preciso
resolver esta situação. Muita gente que estava na macrobiótica não se
preocupava com as contas, foi preciso impor alguma disciplina, teve que se
criar um fundo de maneio para as despesas correntes – “Diziam que eu era
muito yang, mas tinha que ser assim, sem rigor não se chega a lado nenhum. Até
me diziam – Ó Oliveira, não sei o que é que tu lhes fazes, mas quando tu chegas
elas [empregadas] escondem logo os pastéis de nata na gaveta.
Sem apoios bancários, mas com uma gestão que o presidente da altura diz ser de
maior rigor, ter-se-á entrado numa fase de maior facturação da Unimave, que terá
permitido uma maior desafogo financeiro, até pelo menos 1980:
177
«À Mesa com o Universo»
Lembramos ainda:
91
Nomes fictícios. A referência a um dos presos do Linhó deve-se ao facto de ter sido conduzida uma
experiência na área da macrobiótica na cadeia do Linhó, de que mais à frente falarei.
92
A identificação do texto surge da seguinte forma: diário de um consumidor de medicinas – documento
para a história do movimento holístico em Portugal. Pode ser lido em http://pwp.netcabo.pt/big-
bang/ecologiaemdialogo/benvindo.htm [Acesso em 17-12-06].
178
A Macrobiótica em Portugal
Lamentamos que a doença leve pessoas a tão baixo, mas que podemos fazer
além de lamentar e recomendar a dieta standart?93
179
«À Mesa com o Universo»
outros e insinua, num tom algo moralista, a sua falha pelo facto de se encontrarem
doentes:
Procurando responder às queixas, que, pelo que se deixa escrito, têm também a
ver com o tempero da comida, realça-se o facto de nos restaurantes da Unimave a
qualidade não ter a ver com a comida “bem apaladada”. Muito embora um dos
objectivos da cooperativa fosse o de apresentar “refeições mais em conta” (motivo que
talvez ajude a explicar o número de cooperantes), procurava-se assegurar a qualidade
dos produtos usados.
possam ler e subscrever. Por acaso, os assuntos do Pelouro Cultural até são os
que potencialmente interessam aos seis mil sócios que a Cooperativa tem, aos
outros seis mil sócios que poderia ter e, enfim, a todos os milhares que apenas
esperam o minuto feliz de a maravilhosa Macrobiótica lhes bater à porta.
Pensem também nos que ainda não são nossos consócios. Essa é, no médio
prazo, a Grande Aposta desta Direcção, infelizmente travada no passo pelos
que, em vez de usarem a Macrobiótica para salvação das suas almas e exaustão
dos seus Karmas, estão apenas a remeter-se, de novo, para o Inferno das suas
tenebrosas acções.
94
Num dos casos relatados, um dos elementos da direcção apenas terá entrado para a Unimave porque
“andava de olho fisgado numa rapariga que praticava macrobiótica”. Este aparte, relatado em tom jocoso,
ilustra as divergências internas e as críticas relativamente aos praticantes de alimentação macrobiótica.
Como dizem “havia muitas guerras na Unimave” e, como era uma cooperativa, “mandavam todos e não
mandava ninguém” [Campos Ventura], o que terá encaminhado a organização para a crise e posterior
falência.
181
«À Mesa com o Universo»
(…) às tantas entendi que tinha que largar aquilo porque apareceram pessoas
inteligentíssimas e hoje a Unimave não existe, faliu. Entretanto, apareceram
umas pessoas inteligente, uns mestres, uns mestres pop, que já começavam a
aparecer naquela altura,e eu, assim que vi, decidi sair (…) Falava-se muitos de
política e a determinada altura apareceu lá um coronel [Artur do Nascimento
Morais] que começou a fazer macrobiótica e disse que queria ir para presidente
da Unimave. Eu então disse – Está bem, fique já aí! O amigo não perca tempo -
Aquilo deu uma série de voltas e depois acabou. [José Oliveira]
95
Este modelo de cooperativa, sem grande sucesso, viria a ser abandonado. Hoje, o Instituto
Macrobiótico de Portugal parece orientar-se por uma lógica bem diferente. Parece ter hoje uma orientação
mais empresarial e ser hoje um projecto pessoal e familiar centrado em Francisco Varatojo e Eugénia
Varatojo.
182
A Macrobiótica em Portugal
183
«À Mesa com o Universo»
lá ver… isso viu-se logo em 1986… só estavam dez pessoas… Bem… Os sócios
que compareceram à assembleia geral em 1986 foram só dez, quando no papel
eram quase 7000, depois houve umas assembleias gerais que animaram as
coisas, mas a Unimave estava moribunda, nunca mais foi uma coisa muito
participada.
No final eu já estava ligado a uma escola, não estava lá todos os dias, estava lá
só para consultas e cursos e tal, a nível do concreto não estava lá todos os dias,
não havia instalações, não havia nada para investir, a Unimave já só era uma
ideia.
[Campos Ventura]
96
Afonso Cautela http://pwp.netcabo.pt/big-bang/vidanatural/cfv-2.htm [Acedido em 20/12/06]
184
A Macrobiótica em Portugal
Aquilo que Afonso Cautela propõe neste texto de 1997 é um exercício reflexivo
sobre o que não correu bem com a macrobiótica em Portugal. Acusando o “movimento
português” de “seguidismo e uma certa subserviência em relação ao movimento
macrobiótico americano (primeiro), europeu depois e, finalmente, suíço” (ibid.),
considera que uma das razões da falta de vitalidade da macrobiótica em Portugal terá a
ver com o “nosso vício ancestral de nos pormos de cócoras perante o estrangeiro” (ibid.)
e de não sermos capazes de criar uma identidade própria. Julga mesmo que, dada esta
dependência, só é possível compreender as razões que levaram à estagnação da
macrobiótica em Portugal, se se reflectir sobre a dissidência ocorrida entre Kushi e a
Suiça, que liderava o movimento europeu (cf. ibid.).
Procurando identificar alguns dos motivos que levaram à estagnação do
“movimento macrobiótico”, assinala:
Ou ainda:
c) Ignorar o alerta que foi dado, há 15 anos, por Michio, no sentido de religar a
sabedoria taoísta às fontes herméticas e alquímicas de onde ancestralmente
procede. Isto, apesar de Francisco Varatojo, em 1982, ter editado em português
o opúsculo de Michio «Transmutações Atómicas». (ibid.)
185
«À Mesa com o Universo»
Face a estes problemas lança um apelo para que se construa uma identidade
macrobiótica portuguesa, capaz de ultrapassar a crise, que reconheça as especificidades
portuguesas e o “movimento macrobiótico” como:
97
É de notar que nessa época (2006/07), com vista a um possível reconhecimento público, se começaram
a notar alterações na forma de organização dos cursos do Instituto Macrobiótico de Portugal. Foi aí
afirmado que passaria a haver dois tipos de diplomas, uns que atribuiriam competências e onde seria feita
avaliação dos alunos e da formação proporcionada, e outros que não exigiriam avaliação nem
obrigatoriedade de presenças e que se destinariam sobretudo ao “desenvolvimento pessoal”. Pelo que tive
oportunidade de observar nos anos seguintes não parece ter havido um trabalho significativo no sentido
de que a macrobiótica pudesse enquadrar as terapêuticas não convencionais
186
A Macrobiótica em Portugal
98
Afonso Cautela «O caso Satillaro em 3 tempos (1988 e 1992)» http://www.catbox.info/big-
bang/gatodasletras/casulo1/SATILLAR.HTM [Acesso em 20-12-11]
187
«À Mesa com o Universo»
188
A Macrobiótica em Portugal
99
Este estudo realizado na América surge relatado por Clara Soares no artigo «Diz-me o que comes»
Máxima: http://sub.maxima.xl.pt/0604/soc/100.shtml [acesso em 22-12-11]
100
Ver Kushi Institute Newsletter January 2009 http://www.macrobiotic-way.com/tag/study/ [ acesso em
22-12-11]
189
«À Mesa com o Universo»
enfermagem e disse «já não dou mais injecções». Toda a gente ficou pasmada a
olhar para ele, mas não deu mais injecções mesmo. Um dia cheguei ao lar para
me ir encontrar com ele, estava lá uma senhora com alguma idade que andava
de um lado para o outro e que dizia que estava com fome. O Jaime virou-se para
ela e disse-lhe «A senhora não come mais nada! OUVIU! Tem que esperar para
voltar a comer». Depois dizia «Tenho de a tratar assim porque senão vai-se
embora». Um dia chegou a casa (vivia com a mulher e já tinha filhos na
universidade), arrancou o esquentador e tirou a televisão de casa. Tinham todos
que tomar banho de água fria! (Risos) Vendeu o centro de enfermagem, o lar e
também quis vender a casa, mas a mulher opôs-se!
Conheci outro que a praticar macrobiótica foi encontrado morto em casa,
enforcado. Outro foi viver para Viseu e traz a família oprimida.Muitas pessoas
que conheci dos anos 70 e que passaram pela macrobiótica estão agora com
problemas graves de saúde.
101
Uma belga frequentou comigo o primeiro ano do curso de macrobiótica Michio Kushi, porque tinha
boas referências do instituto.
102
Instituto Macrobiótico de Portugal: http://www.e-macrobiotica.com/imp/historia/cf. http://www.e-
macrobiotica.com/centro.php [Acesso em 20-12-11].
190
A Macrobiótica em Portugal
surge, portanto, como modelo a seguir. Entre os “produtos” oferecidos pelo IMP
contam-se os cursos de alimentação e culinária macrobiótica, os cursos curriculares
Michio Kushi, os cursos de shiatsu, de feng- shui, aulas de yoga, tai-chi, chi-
kung,seminários, consultas, venda de alimentos, restauração, etc. Num outro ponto do
trabalho voltaremos a esta instituição.
A par do IMP podemos encontrar outros centros dedicados à divulgação e
promoção da macrobiótica como o Instituto Português do Princípio Unificador,
associado ao restaurante «Tao» em Lisboa. Aí se fazem encontros regulares para
discutir assuntos no âmbito da macrobiótica e se procuram difundir os ensinamentos de
Ohsawa e, de forma especial, os de Kikuchi (discípulo de Ohsawa que prosseguiria o
trabalho do mestre no Brasil). Enquanto o IMP surge particularmente associado à figura
de Kushi, o Instituto Português do Princípio Unificador, coordenado por Rui Rato
evidencia uma maior ligação a Kikuchi, visto como discípulo mais fiel de Ohsawa e
como não promovendo um ensino de forma académica como aquele que é empreendido
por Michio Kushi.
191
«À Mesa com o Universo»
sustentabilidade do projecto, de tal forma que têm vindo a permitir a cada vez mais
gente sobreviver profissionalmente em torno da macrobiótica.
Um outro aspecto importante que se depreende dos dados apresentados é o
carácter internacional da macrobiótica. As redes da macrobiótica são internacionais e
proporcionam contactos intensos e constantes. É comum os principais representantes da
macrobiótica de diversos países conhecerem-se. Convidam-se uns aos outros para
seminários nos centros que dirigem e trocam experiências nesse âmbito. O forte sentido
de unidade que caracteriza esta prática está de acordo com este interconhecimento.
Tudo se passa como se uma corrente de ideias e princípios claros e reconhecidos ligasse
os praticantes, de tal forma que um partidário da macrobiótica em Portugal pode
alimentar-se de forma muito semelhante a um inglês ou americano adepto deste tipo de
alimentação. As receitas e as técnicas culinárias podem ser muito semelhantes, factor
para que contribui fortemente a existência de um conjunto de produtos e ingredientes de
referência.
A macrobiótica coloca a alimentação no centro da procura de uma vida saudável.
Para aqueles que aderem ao movimento, independentemente do grau de adesão, a
macrobiótica define um modelo de relação com o corpo e com o mundo. Em última
instância trata-se de uma questão de poder e de controlo, ou seja, de convicção nas
virtudes de um modo de vida que permite o equilíbrio do corpo e que, simultaneamente,
pelo menos a partir de um certo nível de adesão, permite também a leitura do corpo
alheio, desvendando sinais de saúde ou de doença e prescrevendo como terapia o
reencontro com a vida saudável que a macrobiótica acredita perseguir.
192
A Macrobiótica em Portugal
103
Pode ser encontrada referência a este estudo em: http://www.centrovegetariano.org/Article-451-
Portugal%253A%2B30%2B000%2BVegetarianos.htm [Acesso em 20-12-11].
193
«À Mesa com o Universo»
parecem indiciar um crescente interesse por esta prática, constatação que decorre da
investigação efectuada para este trabalho. Em Braga, nos últimos sete anos, surgiram
dois restaurantes votados à alimentação macrobiótica e à venda de produtos
habitualmente consumidos no interior da prática macrobiótica - o «Centro Macrobiótico
Semente» e o «Alfacinha» - o que faz supor um aumento dos consumos nesta área.
Neste mesmo período, foram surgindo restaurantes a oferecer comida macrobiótica em
localidades próximas de Braga, como Guimarães, Barcelos e Famalicão. Lisboa, ainda
nos anos 1980, foi identificada por Kotzsch (1985) como uma das cidades europeias
com mais oferta de restaurantes macrobióticos. Actualmente, podemos encontrar
restaurantes como o «Espiral», «Tao», «Yin Yang», «Colmeia», «Prazeres Ecológicos»,
«Oriente-Chiado», «Cantina do IMP», «Cantina da Universidade», etc. São espaços
onde pode ser servida uma refeição macrobiótica, ou de inspiração macrobiótica, se se
quiser ser rigoroso.
Face à escassez de dados sobre a adopção da macrobiótica, os elementos que
apresento seguidamente ainda que não permitam uma caracterização rigorosa da
sociedade portuguesa relativamente a esta prática - dado não ter sido adoptada uma
estratégia e um modelo que permitisse a representatividade - tornam possível, pelo
menos, traçar um quadro sociográfico relativo aos alunos que frequentaram os cursos do
Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), na área da macrobiótica, em três anos lectivos
consecutivos: 2005-06; 2006-07 e 2007-2008. É certo que o interesse pela macrobiótica
nem sempre se manifesta na aproximação e interacção com o IMP, mas uma boa parte
da actividade em torno da macrobiótica existente em Portugal situa-se neste instituto, o
que justifica a relevância destes dados. A possibilidade de aceder ao arquivo, com o
registo das fichas de inscrição dos alunos, tornou possível uma informação rigorosa ao
universo de alunos inscritos, possibilitando uma recolha mais sistematizada de dados. O
facto de na ficha de inscrição figurarem questões relativas à idade, à formação e
profissão, bem como questões sobre o interesse pela área da macrobiótica, referência a
doenças existentes, e à utilização de medicamentos, etc., permitiu apresentar um
conjunto de dados que ajudam a melhor definir o conjunto de pessoas que frequenta os
cursos do IMP. Talvez até ajudem a compreender por que motivo o recurso a “estudos
científicos” sobre alimentação e saúde sejam tão recorrentes nas sessões de formação. É
que, antecipo desde já este dado, tendo a maior parte dos participantes uma escolaridade
acima da média, é bem provável que sejam mais facilmente persuadidos com
argumentos afirmados como tendo uma base científica. O facto de haver, por parte de
194
A Macrobiótica em Portugal
alguns formadores, uma preocupação em demonstrar uma boa parte do que divulgam
através do recurso a este tipo de dados, sugere que, pelo menos do ponto de vista
retórico, também lhes atribuem importância.
O IMP organiza-se em torno de um conjunto de actividades que é comum
encontrar junto dos centros de promoção e divulgação da macrobiótica. Pode mesmo
dizer-se que a tipologia desta actividade podia já ser encontrada, em boa parte, nos
centros dirigidos por Ohsawa, no Japão, e, mais tarde, nos que surgiram na Europa e nos
EUA. A formação dada pelos Kushi, nos EUA, constituiu, sem dúvida, uma forte
influência no modo como o IMP se veio a organizar. É de referir, aliás, que o IMP
começou por se designar Instituto Kushi, tendo sido, inicialmente (1984), uma das
delegações do Instituto Kushi de Boston. Se olharmos para a página na internet do IMP
e para a do Kushi Institute nos EUA, encontramos grandes afinidades no tipo de
programas/palestras/conferências/actividades 104.
O IMP, de acordo com a sua página de apresentação na internet, veio sobretudo
colmatar uma lacuna em termos formativos que existia em Portugal na área da
macrobiótica. Assentando a sua actividade formativa sobretudo em cursos anuais (Curso
Curricular de Macrobiótica, Curso Anual de Culinária Macrobiótica, Curso de Feng-
Shui, Curso de Shiatsu e, mais recentemente, em parceria com a Fundación para la
Salud Geoambiental (Madrid), o Curso de Saúde Geoambiental), proporciona
igualmente cursos breves (sobretudo cursos de culinária, em módulos ou intensivos);
seminários, workshops e palestras. Esta instituição procura ainda complementar a sua
actividade com consultas de orientação alimentar e de estilo de vida, de alimentação
para bebés e crianças, e outras, em áreas como o shiatsu, acupunctura, feng shui, etc. A
confecção de refeições, venda de produtos, serviços de culinária ao domicílio,
organização de programas residenciais e campos de verão são ainda outras áreas de
actuação.
Uma situação comum no IMP é os alunos frequentarem um curso e,
posteriormente, ou até em simultâneo, inscreverem-se num outro curso proposto, como
se se tratasse, efectivamente, de uma formação complementar. Na verdade, como já tive
oportunidade de referir, há uma grande afinidade – ou pelo menos um discurso de
afinidade - entre os diferentes tipos de formação que são propostos. Para proceder à
caracterização dos alunos do IMP na área da macrobiótica, centrei-me sobretudo na
104
IMP: http://www.e-macrobiotica.com/imp/ [Acesso 18-12-2011].
Kushi Institute: http://www.kushiinstitute.org/ [Acesso 18-12-2011].
195
«À Mesa com o Universo»
105
Esses cursos encontravam-se organizados em sessões de um fim-de-semana por mês, das 10h às 18h,
entre Outubro e Julho, com preços que em 2005-06 e 2006-07 eram de 1200 € e que em 2007-08 se
situavam nos 1400 €.
196
A Macrobiótica em Portugal
197
«À Mesa com o Universo»
Como é bem visível, a esmagadora maioria (80%) dos interessados nestes cursos
são mulheres. É um dado relevante, já que em estudo anterior sobre os frequentadores
do IMP (Teixeira, 2006), não se detectava uma grande disparidade entre os dois sexos.
O desequilíbrio observado é consistente em qualquer dos três anos observados,
parecendo traduzir uma tendência estrutural. Que motivos levarão as mulheres a
interessar-se mais por estes cursos do que os homens? Uma maior atenção a aspectos
relacionados com o cuidado do corpo, com a saúde, bem como o facto de habitualmente
serem elas as responsáveis pela preparação das refeições pode ajudar a explicar esta
situação. O facto de as mulheres serem geralmente educadas para serem cuidadoras
pode também contribuir para esclarecer esta situação. Uma das mulheres que conheci
nesse curso (reformada, 60 anos) tinha chegado à macrobiótica sobretudo por causa da
filha que tinha uma doença neuromuscular grave (miastenia gravis) e que estava a
reagir bem ao tratamento sugerido pelo consultor de macrobiótica. Aprender a cuidar de
si, ou dos outros, pode pois ser um bom motivo para aprofundar conhecimentos na área
da macrobiótica.
198
A Macrobiótica em Portugal
Cinco alunos não responderam a esta questão, pelo que só foram consideradas
176 respostas. Nos quadros seguintes, quando o número de respostas consideradas não
corresponder a 181, isso significa que não houve resposta às questões em apreço por
parte de alguns alunos, ou as mesmas não foram consideradas válidas, devendo, então,
ser apenas considerado o valor apresentado.
Se atendermos à faixa etária dos alunos, constataremos que é entre os 17 e os 45
anos que a maior parte se situa, sendo a faixa dos 31 aos 35 a mais frequentada, um
período que pode corresponder a uma fase de reequacionamento relativamente a opções
de vida. Verifica-se, ainda assim, alguma dispersão em termos etários, o que faz com
que as aulas sejam espaços onde se cruzam diferentes gerações e diferentes
experiências. Nos casos das pessoas com mais idade, é frequente existirem problemas
de saúde e uma maior preocupação com questões neste âmbito. Pode-se chegar jovem à
macrobiótica, mas esse encontro pode também ocorrer já depois dos 60 anos. Do
mesmo modo, na motivação para a frequência de um curso de macrobiótica, podem
pesar mais razões de relacionamento social e ocupação do tempo do que razões que
remetem estritamente para a proposta macrobiótica.
199
«À Mesa com o Universo»
200
A Macrobiótica em Portugal
Um dos dados mais salientes neste quadro é o número de alunos (124) que reside
em Lisboa (arredores incluídos), facto compreensível dado o funcionamento do IMP em
Lisboa. Se considerarmos, separadamente, cada um dos cursos em análise, verifica-se
que no caso do curso curricular de macrobiótica há mais indivíduos que vêm de outras
regiões do que no caso do Curso de culinária macrobiótica. O interesse por uma
aprendizagem mais aprofundada, de que não podem dispor noutros contextos, pode ser
um dos motivos. Eu própria, bem como alguns dos meus colegas, tivemos oportunidade
de fazer um curso de culinária macrobiótica em Braga, não tendo depois, nesta cidade,
possibilidade de continuar a aprofundar conhecimentos nesta área. O quadro 6 permite
ainda perceber que, fora de Lisboa, é sobretudo a região centro e a região norte que
contribuem com o maior número de alunos. Um certo efeito de “contágio” pode ser
observado relativamente à decisão de frequentar estes cursos. O facto de uma pessoa
decidir frequentar o curso pode constituir incentivo para que outra sua conhecida, o
frequente também. Era comum aproveitar a boleia de alguém conhecido e decidir-se, em
conjunto, sobre o alojamento em Lisboa. A viagem em companhia fazia assim com que
essas viagens fossem menos penosas e onerosas, além de ser, também, uma
oportunidade para partilhar experiências. É de notar ainda, relativamente a este quadro,
a existência de uma pessoa que mensalmente se deslocava do Funchal para Lisboa para
fazer esta formação (professora, 45 anos). Pelo contacto que fui tendo ao longo destes
anos, esta formanda contribuiu de forma significativa para divulgar a macrobiótica na
Madeira. Como vemos, os trânsitos e os fluxos de informação que os acompanham, e
que tão bem tinham caracterizado Ohsawa e discípulos, continuam a verificar-se,
fazendo da macrobiótica um fenómeno transregional e mesmo transnacional.
201
«À Mesa com o Universo»
- - - 11 61 91 5 3 171
6% 36% 53% 3% 2%
202
A Macrobiótica em Portugal
argumentos de natureza científica, como muitos dos que são usados nos cursos de
formação, que parecem confirmar aquilo que se promove, todo o enunciado parece ficar
sólido e consistente, pronto a ser adoptado. Muito do efeito de adesão causado na
macrobiótica, tem assim a ver com a enunciação do discurso e com as lógicas
argumentativas que o sustentam, tal como Foucault (1990 [1971]) referia. Ou então, o
que é outra forma de convergir para um mesmo sentido interpretativo, com um poder
simbólico, tal como Bourdieu (1989) o apresentou, ou seja, uma capacidade de «fazer
crer» e «fazer ver».
Se atendermos à distribuição dos participantes por profissão (é seguida a
classificação portuguesa de profissões – CPP/2010 relativa aos grandes grupos
profissionais) 106, constataremos que elas parecem adequar-se aos níveis de escolaridade
detidos pelos alunos. No número de alunos considerado para apresentar esta distribuição
não foi possível atender ao curso de culinária de 2005-06, dado que na ficha de
inscrição desse ano não figurava nenhum pedido relativo à indicação da profissão, daí o
número de respostas consideradas válidas ser de 138.
106
Ver: Instituto Nacional de Estatística. 2010. Classificação Portuguesa das Profissões 2010. Lisboa:
INE.
203
«À Mesa com o Universo»
Destaca-se neste quadro uma área profissional onde pode ser colocada a maior
parte dos alunos, a dos «Especialistas das Actividades Intelectuais e Científicas», o que
condiz com os níveis de escolaridade apresentados. Em todo o caso, convém dizer que
este grande grupo inclui profissões muito diversas, quer na área intelectual e científica
quer na área artística. Assim, é possível incluir aqui tanto bailarinos, actores e
enfermeiros, como professores e investigadores. Não procedo a uma apresentação
detalhada dos grupos e subgrupos associados aos grandes grupos identificados neste
quadro, dado que tal não me parece um exercício necessário para o desenvolvimento
deste trabalho, mas convém salientar que uma das profissões mais frequentadas neste
conjunto de participantes é a dos professores. Também surgem arquitectos, psicólogos,
204
A Macrobiótica em Portugal
205
«À Mesa com o Universo»
107
Segundo Inquérito Nacional às Representações e Práticas Ambientais dos Portugueses, realizado em
2000 pelo OBSERVA - Observatório de Ambiente e Sociedade. O Observa é um programa de
investigação permanente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, coordenado por
Luísa Schmidt.
206
A Macrobiótica em Portugal
Uma das questões colocada na ficha de inscrição, que tem aqui servido de base
para a apresentação destes elementos, dizia respeito a um aspecto especialmente
pertinente para analisar a adopção da macrobiótica, pois questionava os alunos sobre
problemas de saúde. Sendo veiculada por alguns dos formadores a ideia de que a
207
«À Mesa com o Universo»
Não considero ter problemas específicos mas apenas os gerais e infelizmente tão
comuns da sociedade em que nos inserimos como stress, alergias e outros
potencialmente agravados por uma alimentação menos correcta da minha parte.
(32 anos, sem indicação da profissão).
208
A Macrobiótica em Portugal
Num outro caso, uma senhora respondia que não tomava medicamentos, muito
embora mencionasse alguns problemas de saúde: Um quisto na garganta, ouvidos (ouço
mal de um ouvido), tensão alta, colesterol elevado. (Técnica auxiliar de Serviço Social,
61 anos). A minha percepção relativamente a estas situações é a de que a adesão à
macrobiótica conduz as pessoas a evitarem medicamentos, ainda que em alguns casos
exista uma recomendação médica para que sejam tomados.
Com uma outra questão colocada na ficha procurava aferir-se de que forma se
manifestava o interesse pela macrobiótica. Na resposta a esta questão, os visados
responderam referindo os motivos que os levavam a interessar-se por esta prática.
Assim, de acordo com as respostas dadas, a esta pergunta aberta, foi possível identificar
o seguinte conjunto de significados, por ordem do mais para o menos referido: 1)
Desejo de melhorar os hábitos alimentares e de aprofundar o conhecimento sobre a
alimentação macrobiótica; 2) Interesse pelas filosofias e propostas terapêuticas orientais
bem como por tratamentos naturais; 3) Desenvolvimento pessoal; 4) Razões
profissionais; 5) Razões de saúde; 6) Interesse em mudar o modo de vida. Houve ainda
outros aspectos que foram apontados como razões fortes como a questão da
espiritualidade e a questão ambientalista, mas o número de indivíduos que se
pronunciou sobre estes aspectos foi bem mais reduzido. É de notar que muito embora
tenha procurado aqui individualizar as categorias mencionadas, umas nem sempre
excluem as outras, sendo possível encontrar, numa única resposta, elementos que
podem conduzir a mais de uma categoria. Assim, uma das alunas respondeu:
209
«À Mesa com o Universo»
Ou ainda,
Neste caso, a identificação com uma das categorias é difícil, dado que o que
mais sobressai é a ideia de bem-estar geral. Talvez «Razões de saúde», seja a categoria
mais adequada, mas há na resposta alguma informação que a transcende.
Uma das respostas típicas dadas foi: Pretendo conhecer melhor a macrobiótica e
melhorar substancialmente a minha alimentação tendo conhecimento dos benefícios
que daí podem advir para o meu bem-estar (Enfermeira, 26 anos). Esta resposta dá
conta do desejo de aprofundar uma aprendizagem que se julga que possa vir a ter efeitos
benéficos, quer ao nível da saúde quer a outros níveis, tal como a noção de bem-estar
sugere. As razões de saúde são também evocadas a partir de respostas como: Desde há
um ano e meio que mudei a minha alimentação devido a um problema de saúde, sob
[nome do terapeuta] (economista, 36 anos) ou ainda Há um ano que mudei a
alimentação para a macrobiótica por indicação da minha terapeuta [nome]. Sinto-me
bem e queria aprofundar mais, para além da alimentação. (Professora, 44anos).
O desejo de fazer transformações no modo de vida aparece também explícito em
algumas das respostas, incluindo vários aspectos das outras categorias consideradas:
210
A Macrobiótica em Portugal
211
«À Mesa com o Universo»
Quero tirar todos os níveis, incluindo o nível 4 para que possa ser consultor,
ajudar as pessoas a terem uma vida mais saudável e harmoniosa.(Assistente de
cozinha, 21 anos)
«Sim. Quero abrir um restaurante macrobiótico.» (Jornalista, 33 anos)
212
A Macrobiótica em Portugal
108
Uso o termo saberes sobretudo nesse sentido que evoca pluralidade e menor formalização.
109
Na sua pesquisa pôde identificar três modos distintos de transmissão de conhecimentos: secreto,
pessoal e estandardizado. O modo secreto corresponderia a uma aprendizagem desenvolvida numa prática
privada, sob a orientação de um mestre de qigong (chi kung); o modo pessoal a uma prática colectiva,
mas fora das unidades públicas de trabalho, com um mentor de acumoxa e o modo estandardizado à
aprendizagem nos hospitais, clínicas e colégios. Cada uma destas formas de aprendizagem fê-la sentir-se,
213
«À Mesa com o Universo»
214
A Macrobiótica em Portugal
215
«À Mesa com o Universo»
Apresentação do Curso
216
A Macrobiótica em Portugal
Junho de 2002 e incluía aulas teóricas e práticas (três fins-de-semana com aulas teóricas
e outros seis com aulas práticas). O anúncio do curso fazia-se nestes termos:
A cozinha macrobiótica é uma arte única que não só satisfaz os sentidos mas tem
a capacidade de criar uma vida mais harmoniosa. Não é uma dieta rígida mas
sim uma abordagem flexível e de senso comum, que difere de acordo com o
clima, a idade, sexo, actividade, condição de saúde, estilo e objectivos de vida
[Brochura de divulgação do curso]
Os termos desta apresentação inicial procuravam desde logo criar a ideia de que
este tipo de cozinha se dirigia a qualquer um e podia, de alguma forma, trazer
transformações no modo de vida e torná-la mais aprazível. Por outro lado, procurava-se
desfazer a ideia da macrobiótica como dieta rígida, de forma a desmentir a imagem que,
de um modo geral, se foi criando deste tipo de alimentação. Como contraponto à rigidez
associada à macrobiótica, sublinhava-se a capacidade de dar resposta a diferentes
públicos e necessidades. A mensagem que ficava era, pois, a de uma proposta de
alimentação destinada a melhorar a qualidade de vida, que se dirigia a todos e que
procurava, ao mesmo tempo, ter em consideração especificidades e necessidades
individuais. Mais à frente, na mesma brochura, enunciavam-se algumas das
características da alimentação macrobiótica:
217
«À Mesa com o Universo»
alimentação vegetariano, pelo Código de Manu, na Índia, pelo Nei-Ching,na China, por
Hipócrates (a expressão que lhe é atribuída “faz do alimento o teu medicamento” é
constantemente evocada, bem como a dieta de cevada “que ele aconselhava numa
primeira fase a muitos dos doentes que o procuravam”) ou ainda pela Bíblia, sendo o
Livro de Daniel referido como exemplo da importância dos cereais na alimentação:
“Daniel após 10 dias a comer cereais é colocado na jaula dos leões e estes não o
comem”. A interpretação deste episódio, que fez dos cereais um elemento de
incontestável poder – neste caso poder de sobrevivência no mais imediato sentido da
palavra – é naturalmente discutível, todavia é curioso que numa proposta alimentar
como a macrobiótica, em que são tão fortes as referências sino-japonesas, se utilize o
texto bíblico, referência do mundo ocidental por excelência, para fundamentar uma
prática e atribuir valor a determinados consumos. Evidentemente que podemos ver nesta
utilização de referências tão distintas uma tentativa de divulgar uma proposta de
orientação no mundo que, por meros efeitos retóricos, se tenta ligar a um conjunto de
referências familiares aos potenciais candidatos ao curso – ou pelo menos nas quais
estes reconhecessem uma ligação à sua “cultura”.
Justificando a importância da aprendizagem proporcionada pela frequência do
curso referia-se ainda na mesma brochura:
Neste último trecho são apontadas as razões fundamentais para aderir a este tipo
de cozinha: a degradação ambiental e os estilos de vida pouco saudáveis que, com
frequência, conduziriam a doenças trágicas. Face a um ambiente hostil, que empurraria
a sociedade contemporânea para o abismo, havia uma tábua de salvação, a
macrobiótica, que ajudaria a contrabalançar os efeitos negativos do desenvolvimento.
Esta imagem de um estado civilizacional negativo e até catastrófico é, efectivamente,
muito recorrente no início da formação nesta área. Parece procurar-se fazer um esforço
de consciencialização que leve a que se mude de rumo, começando por optar por um
outro tipo de alimentação. Para além disto verifica-se que, aqui, como em muitas outras
mensagens sobre alimentação (cf Gracia, 2005), há uma visão da alimentação muito
218
A Macrobiótica em Portugal
centrada na saúde, já que o poder dos alimentos se manifesta, em larga medida, nos
benefícios para a saúde que deles decorrem.
É de registar também as características específicas da cozinha macrobiótica que
eram apresentadas nesta ocasião:
Conciliando aspectos que costumam ser explorados por áreas ligadas à nutrição
com outros mais esotéricos, propõe-se juntar na cozinha macrobiótica conceitos como
os de proteínas e vitaminas com os de ki e yin-yang, como se entre eles houvesse uma
homologia indiscutível. Presta-se, assim, atenção a um tipo de linguagem que parece ser
incontornável para falar de alimentação (os hidratos de carbono, minerais, vitaminas,
etc.) e que foi desenvolvido pelas Ciências da Nutrição. Por outro lado, usa-se um
conjunto de termos que dão singularidade à proposta de alimentação macrobiótica e que
a aliam a algo mais do que uma dieta: a uma concepção sobre a natureza do mundo.
Percebe-se aqui, mais uma vez, que o recurso a este tipo de argumentos procura conferir
legitimidade e reconhecimento a esta abordagem, aproximando-a, sem a confundir, de
um discurso científico consagrado na tradição intelectual do Ocidente. A estruturação
do discurso sobre alimentação será assim construída sobretudo por referência a questões
de saúde.
Procurando corresponder às necessidade práticas e imediatas dos praticantes que
pretendessem cozinhar para si e para as suas famílias, o curso propunha também uma
incursão por diferentes sabores e tradições culinárias, referindo-se que “Para além da
cozinha macrobiótica e cozinha tradicional medicinal, as aulas práticas constituem uma
viagem pela verdadeira cozinha tradicional portuguesa e pela cozinha étnica ‘Gourmet’
de outras culturas”. Neste plano, o que aqui se sugere é, então, que uma abordagem
fundada na macrobiótica, além de ser capaz de dar resposta a eventuais problemas de
saúde, consegue ainda integrar princípios de outros tipos de cozinha, possibilitando que
não ocorra uma separação radical entre a cozinha macrobiótica e outras, com as quais os
alunos possam estar mais familiarizados e que sejam mais do seu agrado. Este é um
aspecto significativo, já que no decorrer do curso se sublinharia a importância de se
219
«À Mesa com o Universo»
220
A Macrobiótica em Portugal
221
«À Mesa com o Universo»
As Sessões do Curso
A sessão inaugural do curso foi uma sessão aberta, em que estiveram presentes
cerca de 20 pessoas. Destas só nove viriam a frequentar o curso, as outras, embora
tivessem pago a 1ª sessão, pelo interesse que tinham em ouvir o professor das primeiras
aulas, não prosseguiriam com o curso. É de notar também que algumas dessas pessoas
aproveitavam a presença do professor em causa para fazerem aí mesmo, na casa onde
iria decorrer o curso, consultas de avaliação do estado de saúde e orientação alimentar
Durante as aulas teóricas a professora de cozinha macrobiótica, organizadorado curso,
procedia à confecção dos almoços.
Quanto à proveniência dos participantes, deve dizer-se que era essencialmente
da região norte: Braga, Guimarães, Barcelos, Porto e Famalicão. Das nove pessoas que
viriam a frequentar o curso, a grande maioria eram mulheres, havendo apenas um
homem; apresentavam elevados níveis de escolaridade, pois sete tinham formação ao
nível da licenciatura ou superior, um frequentava o ensino superior e outro, embora
tivesse frequentado este nível de ensino, não chegara a conclui-lo. As áreas de formação
passavam pela Matemática, Engenharia biológica, Engenharia têxtil, Engenharia civil,
Serviço social, Antropologia, Língua e Literatura Modernas e Economia. Em termos
profissionais, dois trabalhavam como engenheiros em empresas da região, um como
assistente social, dois como professores no ensino superior e um no ensino secundário.
As idades estavam compreendidas entre os 21 e os 40 anos, estando a maioria (sete) na
casa dos 35/37 anos. Seis destas pessoas residiam em Braga e as restantes em
Guimarães, Famalicão e Barcelos.
222
A Macrobiótica em Portugal
223
«À Mesa com o Universo»
110
Perspectiva a que já tive oportunidade de fazer referência no capítulo 3, mas a que volto para a
recolocar no contexto específico da formação.
111
Num dos textos de apoio do 1º nível do curso curricular de macrobiótica (2005) no IMP pode ser
encontrada uma visão crítica da ciência actual. Aí se citava e adoptava o texto de uma revista Non Credo
em que se referia: “A actual teoria da criação do universo baseia-se numa interpretação pouco correcta da
espiral logarítmica. Porque as galáxias parecem estar a afastar-se umas das outras a uma velocidade
estonteante, os cientistas desenvolveram a teoria do Big Bang. Hoje em dia, o universo continua a
expandir-se em espiral e não começou com uma violenta explosão. Nem acabará com uma. (…) A luz
também se move em espiral e a sua velocidade varia na razão inversa à sua origem, tendendo, portanto,
para uma velocidade infinita. Num futuro não muito distante, quando a ciência “redescobrir ” o princípio
do Yin e Yang, a estrutura do universo será muito melhor compreendida” (IMP, 2005). Por aqui é possível
discernir uma forma de compreensão dogmática, assente nos princípios de yin e de yang, e crítica
relativamente a outras interpretações.
224
A Macrobiótica em Portugal
112
Num dos Cadernos Macro podemos ver sintetizada esta visão do Universo: “pode-se dizer que o
Absoluto se diferencia em yin e yang, que originam o mundo relativo por meio de um movimento
centrípeto, em espiral, que se materializa gradualmente ao longo de vários níveis de transformação:
energia, partículas subatómicas, matéria inorgânica, vegetais, animais, do qual os seres humanos são o
último resultado” (Varatojo e Romão, 2005a: 22).
225
«À Mesa com o Universo»
capacidade intuitiva. Esta ideia sobre o corpo humano como receptor que precisa de
estar devidamente sintonizado para captar a informação é, aliás, recorrente.
As forças yin e yang são vistas como dando expressão, entre outros aspectos, ao
reino vegetal e ao reino animal. A proposta de evolução biológica apresentada socorre-
se do evolucionismo e da teoria da selecção natural das espécies de Darwin, mas
adequa-a aos princípios de yine yang. A perspectiva sobre a evolução das formas de
vida, tal como é vista na macrobiótica, aponta assim para uma evolução sujeita a
alterações climáticas e que vai do meio aquático (cerca de 2,8 biliões de anos) para o
meio terrestre (cerca de 0,4 biliões de anos), passando primeiro pelos animais
invertebrados, depois vertebrados marinhos, anfíbios, répteis e aves e mamíferos, entre
estes os macacos, e depois o Homem. Paralelamente a este desenvolvimento poder-se-ia
observar a seguinte evolução no plano vegetal: musgos marinhos (algas primitivas),
vegetais marinhos (algas), musgos (ervas primitivas), plantas antigas, plantas modernas,
e plantas herbáceas portadoras de sementes. Os cereais seriam, desta forma, uma das
espécies vegetais mais evoluídas (cf. Kushi, 1978: 44).
Como podemos verificar, esta narrativa sobre as origens é construída a partir de
modelos propostos pela ciência e surge como interpretação dessas mesmas propostas.
No âmbito deste trabalho, não interessa fazer uma análise minuciosa da mesma e
evidenciar os seus pontos menos coincidentes e mais falaciosos, interessa antes reter e
sublinhar a instrumentalização que é feita do conhecimento científico, processo que
permite dar consistência à argumentação usada na macrobiótica. Interessa também reter,
a propósito deste esquema de representação, a percepção que é feita de alimentos como
os cereais. Pelo facto de surgirem como ponto máximo da evolução no mundo vegetal
são objecto de uma permanente valorização. No contexto, é mais um argumento, entre
outros, para justificar que os cereais devam ser privilegiados na alimentação.
A referência aos aspectos acima mencionados contribui também para
desenvolver o tema da interligação de todos os fenómenos de acordo com o paradigma
holístico. O facto de os sete níveis se implicarem uns nos outros serve para acentuar a
ideia de interdependência e para dar a entender a unidade dos fenómenos. A ideia que se
procura transmitir é a de que tudo o que existe tem a mesma origem e, nessa medida,
participa da “Infinidade Una”, relativa ao sétimo nível. Esta mensagem remete para o
«Princípio Unificador», ainda que não tenha havido uma explicitação sobre o mesmo
nessa ocasião. O «Princípio Unificador» manifestar-se-ia, por exemplo, na afirmação de
que “o desejo de paz e felicidade estaria relacionado com a memória de um infinito que
226
A Macrobiótica em Portugal
113
De acordo com Kristofer Schipper (1997) as origens do tauismo [taoismo] são obscuras, dado não se
saber ao certo quem é o fundador, nem em que momento surgiu. Sabe-se, todavia, que o tauismo possui
227
«À Mesa com o Universo»
O tau preside, como dizia, a yin e yang, à formação da Terra e do Céu, não como
duas regiões distintas, mas apenas como duas formas diferentes de a energia cósmica se
expressar 114. Da dinâmica dual e cíclica inerente a yin e yang resultariam as
transformações de toda a criação, sendo que o extremo de uma situação classificada
como yang daria lugar a yin, o mesmo acontecendo a yin na sua fase extrema
(transformação em yang). A noite cerrada daria lugar ao dia, a luz intensa à sombra,
“quando yin atinge o seu apogeu, transforma-se em yang e vice-versa” (Schipper,
1997:511), o que levaria a que a alternância fosse considerada uma das primeiras leis
cósmicas. É de notar, ainda a propósito deste assunto, até para enquadrar alguns
elementos que serão apresentados posteriormente, que a acção de yin e de yang se
estende a cinco planetas (Vénus, Júpiter, Mercúrio, Marte e Saturno), tendo cada um
deles correspondência com cinco agentes – água, fogo, madeira, metal e terra. Estes
cinco agentes, ou níveis de transformação da energia, representariam as cinco fases de
um ciclo percorrido sucessivamente por yin e por yang.
uma significativa tradição escrita e erudita (contando o Cânone Tauista de 1442 mil e quinhentas obras) e
que se afirma como uma religião de salvação individual, o que pode ser um factor que ajuda a explicar o
motivo pelo qual os divulgadores da macrobiótica colocam uma ênfase tão particular na questão da
responsabilidade individual. Centra-se também na imortalidade, mas encara-a como o resultado de uma
ciclicidade cósmica, que conduz à mutação e não ao fenecimento, uma imortalidade que se expressa no
sentido referido por Schipper (1997) de que aquele que segue os ciclos cósmicos se renova como a
natureza. Os primeiros tauistas terão tido como principal ocupação a observação dos fenómenos naturais.
Estudavam os ciclos do céu e da terra e registavam as suas observações de forma a poderem prever o
futuro. No entanto, diz-nos Schipper (1997: 515) “O seu conhecimento da história ensinava-lhes que,
apesar da sua arte, nada era verdadeiramente previsível: as dinastias mudavam, o usurpador de ontem
tornava-se o herói fundador de hoje, a legitimidade «por mandato do Céu» nada tinha de inquebrantável,
os antepassados reais não eram os antepassados do mundo. Compreenderam assim que o homem ocupa
apenas um lugar insignificante num universo em perpétua mutação onde alto e baixo, grande e pequeno,
anterior e posterior, não passam de noções relativas”. Este processo de mudança que estaria na origem de
todas as coisas teria a ver com o tau.
114
Um dos trechos mais citados para falar de yin e de yang pertence ao cap. 42 do Tão Te King onde se
pode ler:
O Tao originou o um.
O um originou o dois.
O dois originou o três.
O três originou todos os seres do mundo. (Lao Tzu, 1997:93).
A interpretação que é considerada mais frequente para estas palavras é a de que Um significa o grande
começo, criado pelo Tau, Dois, o yin e o yang donde tudo procederia, Três, as três energias que
constituiriam o céu, a terra e o Homem e que estariam na origem de todas as formas do mundo (cf. Kielce,
1988:21).
228
A Macrobiótica em Portugal
A água é o yin perfeito, o fogo o yang perfeito; entre os dois situa-se o metal (o
yin nascente e a madeira (o yang nascente). O elemento terra reúne os outros
quatro e serve de fase intermédia entre cada etapa da revolução do ciclo. Os
Cinco Agentes servem também para classificar os pontos cardinais, as cores, as
notas da escala pentatónica, as vísceras, os sabores, etc. (id.)
Alimentação equilibrada
229
«À Mesa com o Universo»
Assim, a artrite reumatóide e também as artroses foram apontadas como tendo como
causa principal o consumo de ovos e de frango. O tomate, pela sua condição ácida
(ácido oxálico), seria também responsabilizado pela criação de situações inflamatórias
que ajudariam a agravar o problema. Desta forma, foram assim sendo apresentados
alguns alimentos cujo consumo era pouco recomendado, dado que estavam associados a
certas doenças. Entram nesta categoria, de modo geral, alimentos como a carne, os ovos,
o leite e derivados, as batatas e as solanáceas em geral (tomates, beringelas…), os
alimentos refinados, o açúcar, frutos tropicais e outros alimentos vegetais de origem
tropical.
Uma alimentação equilibrada, tal como era entendida na macrobiótica, podia ser
orientada através da «Alimentação Macrobiótica Padrão». Esta forma de alimentação
foi divulgada, primeiro, através de uma roda de alimentos que continha uma fatia de 50
a 60% de cereais integrais; 25 a 30% de vegetais; 10 a 15% de leguminosas e algas e 5 a
10% de sementes, óleos e outros condimentos. O peixe foi também referido como
alimento a incluir semanalmente na alimentação. Consumir peixe duas vezes por
semana foi referido como o ideal para assegurar o aporte de determinados nutrientes,
designadamente vitamina B12, que tendia a ser difícil de encontrar numa alimentação
que não incluísse nenhum produto de origem animal. Por outro lado, o peixe, enquanto
fonte de proteínas, era também importante para evitar algum consumo alimentar
deficiente a este nível. Considerou-se, ainda assim, que a falta de proteínas não era um
problema neste tipo de alimentação e que as leguminosas constituíam uma boa fonte
deste tipo de nutrientes. Foi possível observar, efectivamente, uma preocupação em
assinalar fontes de cálcio, ferro, proteínas para que se pudessem identificar alimentos
que permitissem substituir os ovos, a carne e o leite. Foi através da referência a uma
linguagem científica e com argumentos ancorados na saúde que se procurou afirmar a
superioridade deste tipo de alimentação.
Para os que se iniciavam neste tipo de alimentação, havia uma preocupação
visível com o abandono de certo tipo de alimentos, especialmente lácteos. A questão
que mais colocavam era “onde ir buscar o cálcio”. Face a este tipo de interrogações, foi
defendido que “o leite não era sequer a melhor fonte de cálcio”, porque “embora o leite
fosse rico nesta substância, apenas uma pequena parte do cálcio do leite era absorvido
pelo organismo”. Ou seja, o corpo humano teria dificuldade em absorver o cálcio do
leite e, para além disso, havia pessoas que tinham problemas sérios com a digestão deste
230
A Macrobiótica em Portugal
alimento115. Problemas como a osteoporose tinham a ver com a fixação de cálcio, mas a
verdade é que se podia ingerir cálcio sem conseguir assimilá-lo. Aquilo que se passaria
é que muitas pessoas tinham uma alimentação muito rica em proteínas, o que gerava
grande acidez (sobretudo quando a fonte de proteínas era a carne) e tal implicava um
grande desgaste de minerais, designadamente cálcio, para neutralizar a acidez. A
conclusão foi, pois, a de que “quanto mais proteínas ingerimos mais cálcio perdemos”.
Tanto as proteínas como o açúcar, este último também pela condição ácida que gerava,
contribuíam para desmineralizar e descalcificar. Para além de uma diminuição do
consumo de proteínas era indispensável que se fizesse exercício físico para que o cálcio
se fixasse e que houvesse exposição solar para que a vitamina D, que ajuda também a
fixar o cálcio, pudesse ser produzida. Por outro lado, era importante ainda que se
estimulasse a produção de estrogénios, outro factor importante na fixação do cálcio.
Foram depois apontadas fontes de cálcio em que este nutriente era mais bem
absorvido, como os vegetais de cor verde-escura (couves, brócolos, salsa, etc.). A
ocasião prestou-se logo a que também algumas pessoas falassem das suas experiências
com a ingestão de leite e com o seu abandono. Uma senhora referiu como tinha
melhorado muito de uma colite ao deixar de beber leite e adoptar a alimentação
macrobiótica. Para esta senhora, que tinha tido problemas graves durante muito tempo,
a macrobiótica tinha sido “uma verdadeira bênção”. Uma outra referiu como tinha
melhorado de problemas de alergias com a eliminação do leite e outra ainda como tinha
sentido melhoras dos seus problemas hepáticos. Para além de vários problemas que
foram associados ao consumo excessivo de produtos lácteos (sobretudo aumento de
mucosidades, que originavam problemas respiratórios comuns como a asma, rinite
alérgica, etc.; problemas ginecológicos, como corrimento vaginal, alguns tipos de
cancro, como o da mama e o da próstata e o facto de a lactose ser potenciadora de
diabetes, dado ser um açúcar do leite), o leite foi ainda classificado como “comida para
adultos” que “nos deixava agarrados à infância” e que “nos impedia de crescer”. “Já
viram algum animal adulto que continue a beber leite?” é uma questão frequentemente
colocada nos cursos. As considerações relativamente ao consumo de leite
ultrapassavam, assim, os meros aspectos físicos e nutritivos, ligando-se a aspectos
115
Contreras informa-nos sobre a frequência com que se observa esta situação, dizendo que 95% dos
aborígenes americanos e 85% dos árabes apresentam intolerância à lactose (cf. 1993: 19). Neste curso foi
afirmado que 75% da população mundial apresentaria este tipo de intolerância.
231
«À Mesa com o Universo»
232
A Macrobiótica em Portugal
são o resultado de muita discussão e negociação. Assim, a parcela tão importante que é
atribuída aos produtos lácteos na roda dos alimentos seria sobretudo o resultado dos
muitos grupos de pressão formados a partir dos grandes produtores e distribuidores de
lacticínios. O mesmo aconteceria com os produtores de ovos e até com os fabricantes de
embalagens para os acondicionar, pois veriam o seu negócio diminuído com a
diminuição do consumo de ovos. A indústria alimentar, e em especial alguns dos seus
sectores, são assim mostrados como agentes que visam apenas o lucro e que são capazes
de condicionar instrumentos aparentemente tão inócuos e imunes a interesses
particulares como a roda dos alimentos. O clima que se cria é o de uma suspeição
generalizada sobre os interesses da indústria alimentar e até sobre as Ciências da
Nutrição que não estariam defendidas desses mesmos interesses.
O facto de a investigação científica ser financiada e orientada, em termos de
assuntos a pesquisar, por essa mesma indústria, seria, de resto, factor indicativo de uma
certa promiscuidade e parcialidade relativamente aos resultados obtidos. Divulgar ou
não uma roda de alimentos, enquanto medida política, foi também apontado como um
acto sujeito a pressões, discussão e negociação. Na verdade, a fatia a destinar a
determinado tipo de alimentos numa roda ou pirâmide alimentar não é sempre
consensual, havendo a este nível diferentes propostas por parte dos nutricionistas, tal
como já foi explorado no capítulo 2. As alterações que têm vindo a ser feitas à roda ou
pirâmide alimentares revelam-nas como objectos plásticos, dependentes de contextos,
intervenientes, entendimentos, medidas políticas. A sua ductilidade sugere bem que são
objecto de negociação; sugere ainda a possibilidade de serem o resultado de uma
ideologia alimentar específica, empreendida por vezes por nutricionistas e identificada
por Scrinis (2002) como nutricionismo.
Mesmo na macrobiótica pode observar-se que houve reelaborações ao nível da
distribuição gráfica de alimentos, senão vejamos:
233
«À Mesa com o Universo»
De uma roda de alimentos passou-se para uma pirâmide alimentar onde estão
incluídos (numa porção mínima) alimentos como a carne, ovos e produtos lácteos. É
certo que é sugerido que este tipo de consumos seja ocasional e que corresponda a uma
fase de transição, mas eles estão lá, evidenciando uma reorganização em termos
discursivos e algumas cedências face a uma proposta mais ortodoxa que frequentemente
é classificada como rígida 117. Como vemos, estas construções são o resultado de
relações dinâmicas, relações que activam tanto o legado histórico de conhecimentos
relativos à macrobiótica como informações relativas à sua prática. Os diversos
problemas de saúde que caracterizaram alguns dos que seguiram a macrobiótica no
passado (ver capítulo 2) parecem ter ajudado a redefinir a pirâmide macrobiótica. Um
certo paralelismo em relação àquilo que é observado por Cristiana Bastos e Renilda
Barreto, quando afirmam que as substâncias de cura «são também o que delas fazem o
uso, a circulação, o conhecimento localizado, o comércio, as transacções» (2011: 16)
116
Versão portuguesa da pirâmide alimentar elaborada por Michio Kushi e disponibilizada por Lawrence
Kushi et al.(2001). A imagem pode ser encontrada nos cadernos de apoio do Curso Curricular de
Macrobiótica, nível 1, do Intituto Macrobiótico de Portugal (IMP, 2005).
117
Curiosamente, tal como já foi explorado, se compararmos a pirâmide alimentar proposta por Michio
Kushi (2001) com a de Walter Willet (2005) encontraremos significativas coincidências. Na base, uma
parte importante é dedicada aos cereais integrais e para o topo (uso raro) vai a carne.
234
A Macrobiótica em Portugal
pode aqui ser traçado. Os alimentos usados na macrobiótica, tantas vezes afirmados
como «substâncias de cura», surgem reorganizados nesta pirâmide como resposta a
dificuldades sentidas e como adequação a contextos sociais específicos. Os elementos
recolhidos, tal como atrás apontado, sugerem que estas novas orientações alimentares
tiveram em consideração os problemas de saúde sentidos dentro da prática macrobiótica
e as dificuldades de muitos praticantes em fazerem a transição para a alimentação
macrobiótica. Há assim uma relação dinâmica entre orientações e práticas; entre agentes
a quem é reconhecida autoridade para definir um rumo e agentes anónimos que seguem
ou gerem essas orientações de acordo com a sua subjectividade.
Em contraponto a anteriores orientações na macrobiótica surgem propostas mais
abertas e que admitem certos consumos. É defendido que as fases de transição “não
devem ser excessivamente rígidas”, a não ser que haja algum problema de saúde em
particular, pois podem tornar difícil a adopção de uma nova prática alimentar”. Todavia,
o facto de alguns dos que aderem à macrobiótica ingerirem produtos pouco
recomendados neste sistema indigna muitos dos que aderiram à macrobiótica. Referia-
me um dos meus informantes: “dizem que são macrobióticos, mas não passam sem o
cafezinho, o cigarrinho… não sei que raio de macrobiótica é essa” (formador, 64 anos).
Este posicionamento permite ilustrar alguma da diversidade existente relativamente ao
modo como se considera esta prática entre os que a ela aderem.
Para além do leite, a que já fiz referência, outros alimentos foram objecto de
uma atenção especial, designadamente a carne. O consumo de carne é visto, como
referi, como sendo um factor de desmineralização, dado o efeito de acidificação que
provoca no organismo. O desgaste de minerais é visto, então, como a resposta do
organismo a este efeito nefasto. A carne é caracterizada, portanto, como um alimento
pouco adequado para humanos. Para lá das explicações a que aduzi, um outro factor tem
a ver com o facto de o intestino delgado do Homem ser mais longo (6 a 8 metros) do
que o dos carnívoros em geral. Esta característica faria com que a carne tivesse
dificuldade em fazer o trânsito intestinal, já que este, sendo mais demorado, provocaria
maior afluxo de sangue na zona intestinal. Daqui decorreria um efeito de putrefacção da
carne ingerida, sendo esta, justamente, a causa da acidificação. O organismo procuraria
neutralizar esta condição com o desgaste de minerais. Todavia, apesar destas
considerações, defendeu-se que com muita actividade física e em contextos mais frios,
se justificava o consumo de carne.
235
«À Mesa com o Universo»
236
A Macrobiótica em Portugal
concentração, sensação de confusão, etc. Afirmou-se mesmo que “para Kushi estava na
origem da maior parte dos divórcios” . A causa da hipoglicemia tinha a ver com alguns
consumos frequentes. Em primeiro lugar com o consumo de ovos, frango, peru, atum,
marisco e comida tostada (farinhas no forno – bolachas, biscoitos…) e em segundo
lugar com o consumo de açúcares simples (sacarose, chocolate, batatas, álcool …),
alimentos refinados e café. “Comer batatas é como comer açúcar”, foi referido. Na
verdade, o seu índice glicémico é elevado, recomendando Willett e Skerrett (2005) que
não sejam consumidas com regularidade. Contestou-se, também, a altura do dia em que
costuma ser medido o índice glicémico (pela manhã), procurando-se evidenciar que
após o repouso nocturno o nível de açúcares está mais estabilizado, não sendo, por esta
razão, a altura mais adequada para fazer este tipo de observações. Um pouco depois do
almoço seria a altura ideal para medir o índice glicémico, dado que após o almoço os
sintomas de hipoglicemia costumam ser mais elevados. Dado o vasto número de
alimentos envolvidos, compreende-se que a hipoglicemia fosse vista como afectando
um tão vasto número de pessoas. Uma forma de combater a hipoglicemia consistiria em
evitar os alimentos acima referidos e procurar açúcares complexos (polissacarídeos),
que teriam moléculas mais longas, por essa razão se desdobrando mais lentamente,
sendo por isso absorvidos de forma mais gradual, não provocando os altos e baixos
típicos do consumo de hidratos de carbono simples. Resultaria daqui que os cereais
integrais seriam os melhores alimentos para garantir um nível equilibrado de açúcares
no sangue.
Outros alimentos foram também objecto de considerações pouco abonatórias. Os
ovos afectariam muito o pâncreas e os ovários, sendo defendido que o seu consumo
excessivo seria a principal causa de quistos e de cancros nos ovários. O tomate deveria
também ser evitado, neste caso pela sua acidez e pela sua propensão para ampliar
situações inflamatórias, sendo esta recomendação particularmente importante para
pessoas com problemas nas articulações e artrite. O uso de frutos tropicais num clima
não tropical foi também assinalado como podendo enfraquecer as pessoas, dado o seu
carácter yin. A interrogação sobre a origem de todas estas representações não pode
deixar de ser colocada, mas esta é uma questão a que ainda não podemos responder com
rigor. Apenas pode ser apontada a importância dos precursores da macrobiótica e das
suas concepções para esclarecer um pouco mais este aspecto.
A ingestão de cereais integrais deveria então ser privilegiada, devendo ser dada
preferência a cereais em grão como o arroz integral, millet, cevada, aveia, etc. Os
237
«À Mesa com o Universo»
vegetais a consumir deveriam ser variados e no prato devia-se procurar incluir alguns
bem cozinhados e outros apenas escaldados. Os vegetais redondos (abóbora, nabo,
cebola, etc.) seriam também muito adequados para tratar órgãos redondos, enquanto as
raízes fortaleceriam os intestinos e os órgãos reprodutores masculinos. Quanto às algas
a recomendação era que fossem usadas diariamente na alimentação, se bem que em
pequenas quantidades. A alga kombu seria adequada, por exemplo, para ajudar a
eliminar mucosidades causadas por lacticínos, enquanto a alga aramé foi apresentada
como útil para problemas no útero e nos ovários. Quanto às bebidas, recomendava-se
sobretudo o «chá 3 anos» (kukicha, bancha), a que é atribuído o poder de tornar o
sangue mais alcalino. Curiosamente, recomendava-se também que não se usasse
granulado de soja (alimento que resultaria do processamento da soja no fabrico de óleo
de soja), considerado um “assassino pancreático” e recomendava-se também um uso
moderado (não diário) do “leite” de soja, já que este também gerava muitas
mucosidades e era de difícil digestão. O peixe recomendado foi sobretudo o peixe
branco em detrimento do peixe vermelho ou peixe azul.
As recomendações de que damos nota têm um carácter prático, parecendo, por
isso, ir de encontro ao que muitos dos participantes do curso desejavam. De algum
modo, criou-se, inicialmente, a ideia de uma situação de alarme em termos alimentares,
apontando-se algumas das doenças graves com que as pessoas podiam ser confrontadas
e que tinham a ver com alimentação. Depois, tentava oferecer-se uma visão sobre o
mundo dos alimentos para se redesenhar uma visão alternativa que poderia representar
mais saúde e mais qualidade de vida. Desta forma, gerava-se um pouco a ideia de se ter
tido acesso a um tipo de conhecimento que não estaria ao dispor de todos e que
constituiria uma visão à qual chegam apenas os que têm “mais discernimento”. A
alimentação surge, assim, como factor de distinção no plano social (Bourdieu, 1979;
Ossipow, 1997). O facto de os conselhos dados serem também muito de natureza prática
e aparentemente fáceis de concretizar era um aspecto que os praticantes consideravam
como positivo e que justificava o investimento que tinham feito. O conhecimento
apreendido traduzia-se também em self empowerment, dado que as aprendizagens
podiam ter repercussões na vida pessoal e constituir um recurso, não só para fazer frente
a situações de enfermidade, mas também para desenvolver uma atitude de maior
confiança face à vida em geral.
Algumas indicações sobre hábitos alimentares a implementar foram divulgadas.
Eram orientações que não se limitavam aos nutrimentos mas que se estendiam a atitudes
238
A Macrobiótica em Portugal
- Pode comer e beber uma quantidade confortável de acordo com o seu desejo e necessidades
individuais.
- Coma regularmente 2 a 3 vezes por dia, se tiver uma actividade física intensa pode incluir 4
refeições por dia.
- Inclua cereais e produtos à base de cereais em todas as refeições – pequeno-almoço, almoço e
jantar.
- 50% do volume total da sua alimentação diária deve consistir de cereais ou produtos à base de
cereais.
- Inclua pelo menos um acompanhamento de vegetais em cada refeição – pequeno-almoço,
almoço e jantar.
- Coma todos os dias umas duas tigelas de sopa de vegetais temperada com miso, shoyu ou sal
marinho.
- “Snacks” podem ser usados moderadamente, mas não devem substituir uma refeição regular.
- Coma sempre sentado, mesmo que seja um “snack”.
- Evite comer três horas antes de dormir.
- Mastigue muito bem cada garfada – até a comida se liquefazer.
- Cozinhe com amor, cuidado e mente pecífica.
- Tente comer com a família e os amigos.
- Coma com um espírito de gratidão e apreciação pelos outros, pela sociedade, a natureza e o
universo.
239
«À Mesa com o Universo»
118
Leonel Pereira, «As algas marinhas e respectivas utilidades» documento disponível em
http://br.monografias.com/trabalhos913/algas-marinhas-utilidades/algas-marinhas-utilidades.shtmlnível
[Acesso em 12-11-11]
240
A Macrobiótica em Portugal
119
Em Castelo do Neiva, o restaurante-marisqueira - «Augusto» - apresenta algumas sugestões onde se
encontram incluídas algas, promovendo assim um recurso local, estas sugestões são, contudo, tímidas.
241
«À Mesa com o Universo»
entre yin e yang resultaria também uma refeição mais harmoniosa. Devia ser avaliada
adequadamente a situação de cada indivíduo na hora da confecção, pois poderia
necessitar de uma alimentação mais yin ou mais yang de acordo com a sua condição.
Neste contexto foram também ensinadas técnicas de «yanguização» e «yinização» dos
alimentos, ou seja, técnicas através das quais poderíamos atribuir uma qualidade mais
yin ou mais yang a determinados alimentos. Assim, o uso do forno (calor) permitia
«yanguizar» os alimentos enquanto a adição de líquidos aos mesmos os «yinizava». Era
assim possível trabalhar a «energia dos alimentos» e conseguir, quando esse fosse o
objectivo, uma «polaridade» adequada, quer dizer, uma relação equilibrada entre yin e
yang. Aprender a cozinhar de forma verdadeiramente macrobiótica implicava
compreender e aplicar a relação yin-yang, as categorias que designavam todo o mundo
envolvente e através das quais o corpo e as emoções deveriam ser compreendidos. As
situações de doença expressavam-se, também, através de yin e de yang, sendo possível
identificar doenças yin, doenças yang e doenças yin-yang. Um maior esclarecimento
sobre este tipo de classificações ocorreria, contudo, no Curso Curricular de
Macrobiótica.
A este tipo de considerações juntou-se ainda o ensinamento sobre como montar
uma cozinha macrobiótica, fazendo-se referência a ingredientes básicos para temperar
(shoyu, miso, gomásio, óleo de sésamo, azeite, vinagre de ameixa…) e outro tipo de
ingredientes, como a diversidade de cereais, a utensílios específicos (colheres de
madeira, suribachi, faca para vegetais, coador, steamer, escova para limpar vegetais,
prensa para pickles, esteiras de bambu para sushi, panela de pressão…). Insistiu-se
ainda na preferência que deveria ser dada ao fogão a gás em vez de ao fogão eléctrico,
dada a «maior qualidade energética» deste tipo de combustível (presença do fogo) e ao
facto de esta ser transferida para os alimentos cozinhados (uma das minhas colegas no
Curso Curricular de Macrobiótica retiraria a placa para cozinhar em vitrocerâmica da
sua cozinha para a substituir por um fogão a gás). Referia-se ainda a necessidade de
evitar o micro-ondas e outros electrodomésticos, dado que afectariam a qualidade
energética dos alimentos. O alimento surge, assim, não apenas através das suas
qualidades nutritivas mas como tendo uma «carga energética» que se encontra
dependente da forma como é manuseado e até do estado de espírito com que é
cozinhado. Pessoas doentes, deprimidas ou zangadas deviam evitar cozinhar, dado que
transferiam a sua energia para os alimentos. Cozinhar de forma energética implicava
ainda ter atenção ao corte dos vegetais, não apenas para preservar as suas qualidades
242
A Macrobiótica em Portugal
energéticas, mas também para conseguir uma apresentação mais agradável à vista. A
cebola, por exemplo, deveria ser cortada longitudinalmente, de forma a mais facilmente
representar a totalidade daquele alimento e, igualmente, de forma a mais facilmente
preservar a relação yin e yang. Também os estilos culinários (cozedura simples,
cozinhar na pressão, no vapor, vaporização leve, em nishime [cozedura numa menor
quantidade de água], fritar [habitualmente em tempura], assar, tostar, grelhar…) foram
evocados como forma de «energizar» de diferentes modos os alimentos e de lhes
conferir propriedades yin ou yang.
A estrutura de uma refeição macrobiótica completa incluía uma sopa de
vegetais, um prato principal onde estavam incluídos cereais (a principal fonte de
hidratos de carbono na macrobiótica), proteínas (lentilhas, feijão, grão, seitan, tofu…),
vegetais cozidos, escaldados e por vezes crus, algas, e alguns pickles (vegetais
fermentados, tidos como facilitando a digestão). A refeição costuma ser finalizada com
um doce ou fruta. Por vezes é acompanhada por um chá, como o chá 3 anos,
dispensando-se frequentemente, contudo, a ingestão de bebida. Nas imagens seguintes
dou exemplo dos diversos componentes da refeição. Trata-se de uma refeição comum e
há que considerar que este padrão costuma ser alterado em refeições festivas ou noutras
situações.
243
«À Mesa com o Universo»
Para além destes pratos, que são exemplo de uma refeição típica, tal como ela
costuma ser ensinada nos cursos de cozinha macrobiótica, e que tende a ser reproduzida,
244
A Macrobiótica em Portugal
245
«À Mesa com o Universo»
246
A Macrobiótica em Portugal
247
Sistemas terapêuticos em confronto
Capítulo 5
249
«À Mesa com o Universo»
250
Sistemas terapêuticos em confronto
seguem a macrobiótica os conduzem a fazer opções que são distintas das práticas
dominantes. Mais ainda, essas representações levam-nos, frequentemente, a discursos
de contestação em relação a modelos e orientações estabelecidas, muito embora estes
discursos não se expressem, habitualmente, de forma colectiva e organizada. Esses
discursos de questionamento, sobretudo em relação ao sistema alimentar e em relação
ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), associados a práticas alternativas, acabam por
traduzir formas de experienciar o corpo que, argumento, acabam por ter efeitos, ainda
que subtis, ao nível das orientações e forma de organização dominantes.
Destas práticas de fronteira decorre um tipo de consequências cujo efeito não é
perceptível de forma imediata, mas que acaba por gerar transformações não só nas
concepções, mas também nas formas de acção. Explorei em capítulos anteriores
situações que me pareciam revelar este tipo de efeitos, designadamente o contributo da
macrobiótica para a transformação do mercado alimentar nas sociedades euro-
americanas, através do incentivo ao consumo de certos produtos alimentares - sobretudo
cereais integrais, derivados da soja e produtos biológicos. Procurei ainda apontar que
propostas recentes de pirâmides alimentares, apresentadas no campo das Ciências da
Nutrição, sugeriam que havia um efeito de ressonância por relação ao que se defendia
na macrobiótica (ver capítulo 2). Julgo que ao nível dos sistemas de saúde é possível, do
mesmo modo, observar transformações que derivam de uma procura crescente de
cuidados de saúde habitualmente classificados como alternativos. A integração de
medicinas alternativas em centros onde são disponibilizadas especialidades médicas
«clássicas» (Kaptchuk e Eisenberg, 2001; Franco, 2010), bem como a inclusão de
terapêuticas não convencionais no feixe de consultas apoiadas por algumas seguradoras
implicam um conjunto de serviços disponibilizados distinto do de um passado recente.
Considero que este facto é resultante de um conjunto diversificado de processos, entre
os quais saliento a procura, por parte dos consumidores, deste tipo de serviços. Acredito
que esta procura, associada frequentemente a representações sobre o corpo que escapam
a lógicas dominantes, como é o caso da macrobiótica, contribui, ainda que de uma
forma que não é ainda inteiramente perceptível e passível de ser demonstrada, para uma
transformação dos serviços de saúde, tal como foram concebidos num passado recente,
e que, a prazo, implicarão novas conceptualizações sobre a saúde e novos modelos de
organização deste sector.
Neste sentido, a relação entre terapêuticas convencionais e não convencionais
deve ser vista como dinâmica e não apenas como sendo regida por uma lógica de
251
«À Mesa com o Universo»
252
Sistemas terapêuticos em confronto
com efeitos sobre sistemas dominantes, mas através de uma visão relacional e dinâmica,
que nem sempre está claramente estabelecida mas que vai fazendo o seu caminho.
Retornando às palavras de Foucault, e à ideia de apropriação da vida pelo poder,
mote para este capítulo, é necessário dizer que muito embora algumas das terapêuticas
não convencionais estejam a ser integradas em sistemas e modos de funcionamento que
participam daquele que é o modelo preponderante, há outras, como a macrobiótica, que
se têm mantido mais à margem desses processos e que revelam, justamente, um
conjunto de procedimentos menos integrado e que pode ser conflituante com
procedimentos estabelecidos e apoiados pelo Estado. O que procurarei evidenciar ao
longo deste capítulo não serão as transformações específicas nos serviços de saúde, que
podem ser associadas a práticas e concepções sobre o corpo de expressão mais residual,
mas, sobretudo, apresentar uma forma de abordagem do corpo, da saúde e da doença
que, na sua expressão marginal, não corresponde exactamente a uma visão estatizada
sobre o corpo. Tal como procuro argumentar, esta forma de abordagem, juntamente com
outras práticas, contribui para repensar as formas de conceber e organizar os serviços de
saúde.
Os indivíduos que adoptam processos de tratamento no âmbito da macrobiótica
colocam-se em diversas situações à margem dos serviços disponibilizados pelo Estado,
porque não acreditam nos processos terapêuticos propostos e se consideram alertados
para alguns dos perigos que podem correr nesses processos. Assim, tendo em
consideração os seus problemas específicos, procuram solucioná-los por recurso
exclusivo à macrobiótica ou, caso considerem essa opção relevante, em associação com
outras orientações terapêuticas. Estabelecem assim, frequentemente, relações
estratégicas com o SNS, pelo menos nas situações em que o acompanhamento médico
convencional é tido como imprescindível. Neste jogo, entre formas de conceber e
proceder, que por vezes são conflituantes, observa-se frequentemente a dificuldade em
fugir a um modelo estatizado de intervenção sobre o corpo, mas também se revela
agencialidade e tomadas de decisão sobre si que constituem uma renúncia aos serviços
disponibilizados pelo Estado. Envoltos numa teia de relações, que os faz balançar entre
diferentes perspectivas de abordar o corpo, a saúde e a doença, os indivíduos nem
sempre deixam que o seu corpo seja totalmente estatizado, antes mergulham, tanto
quanto possível, numa estratégia de conciliação entre diferentes universos de tratamento
- estratégia essa por vezes sugerida pelo próprio consultor na área da macrobiótica.
Interagem dessa forma com o poder biomédico e procuram manipulá-lo a partir das
253
«À Mesa com o Universo»
margens em que se situam. Estamos, pois, nessa área que é a da interacção das margens
com o centro, aqui representado pelo poder biomédico.
121
O termo paciente pareceu-me desajustado, dado ser característico de uma linguagem utilizada no
âmbito das práticas médicas convencionais, Termos alternativos, como doentes, utentes, clientes, não me
pareceram opções mais adequadas.
254
Sistemas terapêuticos em confronto
255
«À Mesa com o Universo»
122
Esta parte do trabalho foi apresentada no âmbito do seminário de estudos pós-graduados do ICS, em
2008. Beneficiou aí dos comentários de João Guerra.
256
Sistemas terapêuticos em confronto
123
A frequência de um curso de shiatsu (técnica de harmonização da energia ki, também referida qi ou
chi, através de pressão digital ou palma da mão em diferentes pontos dos meridianos) - ao longo de 304h,
entre 2002 e 2004 - decorreu do interesse pela macrobiótica e viria a permitir-me constatar que as
classificações em termos de yin e de yang não são inteiramente concordantes na macrobiótica e em
sistemas que concebem o corpo humano como sendo percorrido por meridianos. Órgãos que na
macrobiótica surgem classificados como yin (por exemplo, intestino grosso e estômago) vêem os
respectivos meridianos ser classificados nesses sistemas como yang. Uma das explicações que me foi
facultada por um dos formadores foi a de que Ohsawa teria modificado estas formas de entendimento
devido ao facto de usar a Terra e não o Sol como sistema de referência para a aplicação dos conceitos de
yin e de yang (!). De qualquer das formas, este problema parece ter sido resolvido na macrobiótica através
da distinção que se efectuou entre estrutura de um órgão e fluxo electromagnético desse órgão (ki) nos
meridianos. Assim, o coração terá uma estrutura yang, mas o respectivo fluxo no meridiano é yin.
257
«À Mesa com o Universo»
como yang, dado que é conotado com maior actividade. Por outro lado, os alimentos, ou
aspectos observados, que são yin ou yang, não são yin e yang exactamente da mesma
forma ou no mesmo grau. O sal, pela forma contraída que apresenta, é yang, mais yang
do que os ovos, que também são muito contraídos, mas estes são mais yang do que a
carne e esta mais yang que o peixe. A água enquanto líquido é yin, mas se estiver
solidificada, ainda que mais fria (aspecto yin), é mais yang, porque mais contraída (ver
tabela de classificação de alimentos no final). Como se pode ver a fronteira entre estas
categorias nem sempre é clara, e a sua aprendizagem implica, como constantemente é
referido em contexto de formação, treino, aprendizagem e desenvolvimento da
capacidade intuitiva. Vemos também aqui que este esquema à primeira vista dualista de
interpretação do mundo oferece muitos cambiantes e gradações, gerando por vezes uma
confortável ductilidade e ambiguidade. Vejamos, de seguida, algumas das concepções
sobre saúde e doença, bem como as respostas específicas dadas no âmbito da
macrobiótica124.
Uma das concepções que vigora entre muitos dos seguidores da macrobiótica
que contactei, e que deriva das sessões de formação a que assistiram, é a de que a saúde
não é um estado mas um processo, um processo que implica atenção contínua e
interacção adequada com o ambiente. “A saúde e a doença são relativas e mudam
constantemente de uma para outra”, foi afirmado por um dos formadores. De acordo
com esta perspectiva, não existe ninguém absolutamente saudável, pois há sempre
necessidade de “fazer certos ajustamentos”. A saúde, entendida como tendo a ver com a
“capacidade de alinhamento” num processo de doença, estaria relacionada, como
referem, “com a capacidade de nos adaptarmos à vida, sem entrarmos em stress e sem
necessitarmos de um grande esforço”. Assim, quanto mais fácil fosse a “adaptação a
condições internas e externas” mais saudáveis seríamos e mais claramente se revelaria o
nosso equilíbrio energético em termos de yin e de yang. Num dos documentos que me
124
Não parto aqui da ideia de que a saúde e a doença sejam factos inteiramente objectivos e constato que
mesmo na macrobiótica por vezes é difícil referir com clareza o que é a saúde. Conforme nota Gadamer, a
saúde é mais “um facto psicológico-moral do que um facto demonstrável pelas ciências
naturais”.(1997:28) e “a doença, a perda do equilíbrio não é apenas um facto médico-biológico, mas
também um processo relacionado com a história da vida do indivíduo e com a sociedade” (op. cit: 48). É
no sentido da afirmação da doença como tendo uma inequívoca dimensão cultural que se expressam
autores como Kleinman (1980) ou Janzen (1982).
258
Sistemas terapêuticos em confronto
foi fornecido no Curso Curricular de Macrobiótica, podia ler-se: a saúde é “um processo
onde é permitida à base biológica da nossa existência um funcionamento com o mínimo
de tensão, permitindo um máximo de exploração e interacção com o mundo à nossa
volta”125.
Em contrapartida, as doenças surgiriam como diminuição nessa capacidade de
interacção. Seriam frequentemente o resultado de um desrespeito pela natureza e
revelariam ausência de sintonia com o meio envolvente. São vistas como “uma
capacidade decrescente de interagir com o ambiente de forma produtiva para o
desenvolvimento do nosso próprio potencial, conduzindo a um isolamento cada vez
maior” (idem). Recomenda-se, no entanto, que não se encare a doença como um
acontecimento inteiramente negativo. Ela pode surgir como oportunidade para “prestar
atenção à alimentação”, “recuperar a harmonia” e promover o “desenvolvimento
pessoal”. Por vezes surge como sinal de que devem ser feitas alterações no estilo de
vida126. Há assim uma visão da doença como experiência transformadora. Foi
justamente nesse sentido que se expressou uma das mulheres que contactei:
Numa outra situação, uma mulher [educadora de infância, 45 anos] com um caso
sério de urticária, mononucleose e outros desarranjos, só ao ter um acidente com um pé,
que a obrigou a ficar em casa, é que começou a constatar que estava a melhorar dos
problemas e que isto se devia ao descanso, pois os seus problemas de saúde pareciam
ter a ver com excesso de actividade. Acontecimentos como estes podem ser relatados
pelos mais diversos tipos de pessoas, facto que não constitui, evidentemente, uma
especificidade dos simpatizantes da macrobiótica. O que interessa salientar é que na
macrobiótica é desenvolvida uma forma de perspectivar estes problemas que salienta a
dimensão de ensinamento que a doença pode ter. Incentiva-se, por isso, aqueles que se
vêem afectados a procurar compreender os sinais que a própria doença lhes envia, sendo
125
Instituto Macrobiótico de Portugal, Textos de Apoio, Curso Curricular de Macrobiótica, Nível 1, 2005.
126
A este propósito, vale a pena referir que alguma literatura costuma ser recomendada para promover
outra forma de ver a realidade. Um dos livros que me foi apontado como significativo para aprender a ver
a doença de outra maneira foi um livro de Dethlefsen e Dahlke, A doença como caminho, Cascais,
Pergaminho, 2002.Texto publicado numa editora que se direcciona para os livros de auto-ajuda e
desenvolvimento pessoal.
259
«À Mesa com o Universo»
que esses sinais assumem muitas vezes a forma de “mensagens espirituais”. Então, é a
visão particular do mundo que a macrobiótica apresenta que ajuda, como referem, a
“abrir os canais de cura”.
Num discurso de demarcação relativamente à medicina convencional foi-me
referido que na macrobiótica podem ser considerados três tipos de medicina: a medicina
superior, que trataria a Humanidade; a medicina média que trataria as causas e a
medicina inferior que trataria os sintomas. A medicina convencional é claramente vista
como procurando, sobretudo, eliminar os sintomas e, nessa medida, qualificada de
inferior, uma vez que não prestaria atenção ao Homem como um todo, antes o dividindo
em partes, esquecendo assim a relação entre diferentes órgãos e entre corpo, mente e
espírito.
Neste âmbito, foi-me referido:
260
Sistemas terapêuticos em confronto
Como vemos aqui, o acesso aos cuidados de saúde prestados pela medicina
convencional, não constitui um interdito. Muitos dos que praticam alimentação
macrobiótica referem que em situações de acidente ou em casos específicos como uma
crise de apendicite, o melhor é recorrer aos hospitais e aos médicos que neles trabalham,
mas em muitos outros casos, e sobretudo em doenças crónicas, considera-se preferível
procurar outro tipo de abordagem. Ou seja, é também pelo quadro de impotência na
medicina convencional face ao tratamento de doenças como as doenças crónicas,
degenerativas e debilitantes que se externalizam estes cuidados de saúde e se admitem
outras vias de tratamento (Clamote, 2006). Defendem os seguidores da macrobiótica
que o que é realmente mais adequado é procurarmos uma alimentação capaz de evitar
muitos problemas. Como se percebe, não há propriamente uma recusa absoluta dos
cuidados de saúde, mas antes um uso selectivo, que evidencia estratégias específicas de
relação com o poder biomédico.
Num quadro como este, facilmente surgem problemas quando necessitam de
recorrer a profissionais ligados às terapêuticas não convencionais e não encontram
127
O Chi-Kung consiste em exercícios e meditação como forma de activar a energia Chi. Apoia-se nos
princípios de yin e de yang.
261
«À Mesa com o Universo»
Salienta-se ainda nas sessões de formação que muito embora os efeitos da transferência
da alimentação para o corpo sejam em alguns casos muito subtis, esses efeitos ocorrem
sempre. Alimentos mais yang produziriam uma energia mais yang (rápida,
concentrada…) e alimentos mais yin produziriam uma energia mais yin (suave,
expansiva…). Neste contexto, defendeu o formador:
128
Como referi, a pirâmide com a dieta alimentar padrão, proposta por Kushi (cf. Varatojo e Romão,
2005b:24) para um clima temperado, inclui diariamente, 40 a 60%, em peso, de cereais integrais; 20 a
30%, em peso, de vegetais (inclui pickles), 5 a 10%, em peso, de leguminosas e derivados, bem como de
algas (devem ser usadas em pequenas quantidades); temperos e condimentos, bem como óleo vegetal.
Semanalmente, e de forma ocasional, podem ser utilizados frutos, sementes, oleaginosas, adoçantes
(nunca açúcar refinado) e peixe. Mensalmente, opcionalmente, ou numa fase de transição de tipo de
alimentação, é admitido, ainda que não incentivado, o consumo de lacticínios, ovos e carne.
262
Sistemas terapêuticos em confronto
Quando as pessoas querem ficar mais concentradas devem comer mais yang,
usar mais miso e arroz integral. Se quiserem ficar mais yin, devem consumir
mais vegetais aéreos e menos raízes. Devem evitar consumir fritos, porque os
fritos, pelo seu tipo de energia, provocam dispersão mental.
Por este tipo de concepções se pode perceber um aspecto fundamental desta proposta de
orientação no mundo, que tem a ver com a compreensão dos alimentos como sendo
fundamentalmente energia, melhor dizendo, uma forma de transformação da energia
disponível no universo (energia ki). Cada alimento tem as suas características próprias
do ponto de vista energético, características que são transferidas para o corpo quando o
alimento é incorporado. Na relação com o mundo e com os outros, cada um libertaria
esse tipo de energia, uma energia que na macrobiótica tem um peso considerável na
compreensão das formas de acção.
É neste quadro que se divulgam as linhas principais para avaliar sobre uma
“condição equilibrada” e que foram definidas por Ohsawa (1976) como as sete
condições da saúde e da felicidade. São elas:1) a ausência de fadiga; 2) bom apetite; 3)
sono profundo; 4) boa memória; 5) bom humor e mente calma, vendo as dificuldades
como desafios; 6) rapidez e dinamismo de raciocínio e de execução; 7) sentido de
justiça. A esta última condição, Ohsawa juntaria, mais tarde, a importância da
honestidade e integridade 129. A gratidão pela vida permeia cada uma destas condições.
Verificamos assim que o entendimento sobre o que é um corpo equilibrado ou saudável
procura ir de encontro ao paradigma holístico que defendem, na medida em que procura
integrar na concepção de saúde critérios abrangentes e relativos ao indivíduo enquanto
todo. Aspectos físicos e avaliações de carácter moralista são assinalados como devendo
pesar na análise sobre o modo como as pessoas se encontram. Alguns dos factores mais
relevantes para garantir a saúde passariam, sublinho uma vez mais, pela alimentação e
estilo de vida, pela actividade física, por uma vida emocional e social equilibrada e pela
auto-reflexão. Este último aspecto é bastante significativo, porque se encontra associado
à ideia de responsabilidade individual. Na macrobiótica é frequentemente reiterada a
ideia de que a doença e a saúde são da responsabilidade de cada indivíduo.
Independentemente do contexto em que viva, do sistema social em que esteja integrado,
o indivíduo é perspectivado como sendo o responsável pelo que lhe sucede. Esta
perspectiva, na medida em que isenta os sistemas sociais de responsabilidades, pode,
129
Dados recolhidos em cursos de formação sobre macrobiótica.
263
«À Mesa com o Universo»
naturalmente, favorecer uma abordagem neoliberal dos serviços públicos de saúde. Mais
adiante retomarei esta questão.
Se os sinais referidos acima servem para avaliar sobre o estado de saúde, outros
podem ser classificados como sintoma de doença e ser apresentados como sequência
comum em situações de enfermidade. Um dos primeiros sintomas apontado é o cansaço
e falta de vitalidade, que afectaria numa primeira fase os intestinos, que ficariam
sobrecarregados, a que se seguiriam os rins, numa fase em que o cansaço se teria
tornado crónico. Um segundo sintoma seriam as dores e falta de flexibilidade, que
revelariam localização de toxinas nas zonas articulares. Neste caso, seriam o fígado e a
vesícula que evidenciariam dificuldades de eliminação. Um terceiro sintoma, revelador
de uma situação mais grave, seria a toxicidade do sangue, frequentemente associada a
problemas de pele (eliminações através da pele). O quarto, corresponderia a tensão e a
libertação emocional. O quinto sinal de doença corresponderia já a desordens
degenerativas e incapacidade do corpo fazer ajustamentos. O sexto nível teria a ver com
a degeneração do sistema nervoso e o sétimo com arrogância e isolamento. Este último
aspecto remete, assim, para a questão da atitude, domínio que é considerado
fundamental no processo de cura. Quando se chega à “arrogância e ao isolamento” isso
significa que a doença não foi uma oportunidade de desenvolvimento pessoal.
Um dos factores que é realçado na macrobiótica como condição de saúde, tem a
ver com o modo como o nosso corpo elimina. Se houver boa eliminação (intestinos que
funcionam bem, ausência de retenção de líquidos, etc.) não se entrará nos três últimos
estádios referidos anteriormente. De acordo com esta perspectiva, as mulheres teriam
uma esperança de vida maior porque eliminavam mais que os homens (a menstruação e
até o facto de “falarem mais que os homens” são apontados como exemplo dessa maior
capacidade de eliminação). Algumas doenças são mesmo vistas como formas
patológicas de eliminação e ajustamento. Diabetes, hipertensão e colesterol elevado,
seriam vistos como manifestações resultantes de dificuldades de eliminação e, numa
primeira fase, poderiam ser classificadas como “doenças de ajustamento”. O sarampo é
também visto como forma de eliminação, “eliminação do yang acumulado durante a
gravidez”! Por esta razão, a vacinação das crianças contra esta doença traduzir-se-ia na
afectação dos processos de eliminação e na fragilização do sistema imunitário. Acredita-
se mesmo que a “medicina moderna” bloqueia os processos de eliminação que estão
264
Sistemas terapêuticos em confronto
ligados às doenças, pois impede que estas se manifestem, contribuindo, dessa forma,
para a referida fragilização do sistema imunitário 130.
Numa das sessões de formação que frequentei, defendeu o formador que as
formas de tratamento deviam ser naturais, pois, de acordo com Hipócrates, “todas as
doenças tinham causas naturais e, por tal razão, a cura também devia ser natural”. O
pressuposto de que se parte é o de que o ser humano, enquanto elemento do mundo
natural, participaria de uma certa ordem e tendência para o equilíbrio, sendo toda a
intervenção médica uma tentativa de restaurar o equilíbrio alterado. Esta concepção
adequa-se à ideia grega de natureza onde o todo é concebido “como uma ordem em que
os processos naturais se repetem e decorrem dentro de ciclos fixos (…) a natureza é
algo que se mantém a si mesma e por si mesma nos seus próprios carris” (Gadamer,
1993: 43), tal como acontece na concepção da natureza associada à teoria das cinco
transformações, e na macrobiótica em geral, a natureza é uma entidade harmoniosa com
a qual os humanos devem estar em consonância, devendo seguir os seus ritmos fixos.
Aprender a observá-los e interpretá-los, procurando uma adequação aos mesmos,
constitui, já por si, um factor de saúde. Associando a macrobiótica a outras propostas no
âmbito da naturopatia, e procedendo-se como se os conselhos a dar tivessem igualmente
relevo na macrobiótica, procurou-se criar a ideia de uma raiz comum nestas formas de
tratamento - concepção que é, de resto, também sugerida por Needham (1996) -, que
permitiria que certos conselhos fossem adoptados por todos e que se misturassem
conhecimentos relativos a diferentes formas de abordagem do corpo. Partindo desta
ideia, o formador referiu aquilo que considerava serem os “pilares da saúde natural” e
que deveriam acompanhar qualquer conselheiro no âmbito da macrobiótica.
Um dos primeiros aspectos referidos recomendava que se prestasse atenção ao
hara (centro físico situado na zona abdominal, imediatamente abaixo do umbigo), pois
era aí que se encontrava a força vital. Uma zona muito tensa ou muito frouxa poderia
denunciar uma condição mais yang ou mais yin. Em segundo lugar, deveria promover-
se um “certo higienismo”. Na medida em que as doenças são consideradas geralmente
como externas, factores como a alimentação, o sítio onde se vive, a casa que se habita, o
exercício físico, a cama onde se dorme, ou o tipo de roupas que se usa, devem ser
130
Num outro trabalho, desenvolvido no âmbito do projecto “A vacinação. Sociedade e administração do
corpo: abordagens antropológicas” PTDC/HAH/71637/2006, coordenado por Manuela Ivone Cunha,
analiso a questão da vacinação entre os que seguem a macrobiótica, procurando aí evidenciar como as
concepções sobre a saúde e doença podem conduzir à recusa da vacinação (Calado, 2011).
265
«À Mesa com o Universo»
considerados factores relevantes. Em terceiro lugar, devia-se ter em conta que “a doença
é geral e não local”:
Nunca afecta somente um órgão ou uma parte do corpo, mas deve ser
relacionada com o todo que é o corpo (se uma borbulha aparece no rosto, deve-
se prestar atenção ao meridiano ou órgão que está representado nessa parte do
rosto 131)”. [Formador na área da naturologia]
Em quarto lugar deveria ver-se qualquer doença como sendo sempre “uma manifestação
de auto-cura” e forma de “controlo dos danos”. “Quando o corpo canaliza para um
determinado lugar um certo número de toxinas, está a impedir que estas causem maiores
danos”. Em quinto lugar, e tal como já referi, a doença deveria ser considerada como
forma de autoconhecimento, “devemos aproveitar cada percalço para nos conhecermos
melhor”. Em sexto lugar foi apontada a importância de “prestar atenção aos principais
canais de eliminação (rins, intestinos, pele e pulmões)”. Em reforço desta ideia apontou-
se o facto de em várias escolas de saúde, de diferentes contextos, se começar sempre
pelos intestinos para observar a condição da pessoa.
É justamente nesse sentido que se expressa Ellen Salkeld (2005), ao desenvolver
análise etnográfica numa clínica de “medicina holística” nos EUA sobre a noção de
risco nos discursos de médicos que aí exerciam132. Ora, para que os intestinos
funcionassem bem era essencial o consumo diário de fibras, sendo ainda conveniente o
uso de produtos fermentados como o miso, shoyu, pickles caseiros, etc. Os rins,
enquanto órgãos de filtragem, são vistos também como importantes canais de
eliminação. A pele e os pulmões, enquanto órgãos de respiração, consideram-se
intimamente ligados. Dada esta ligação, quando se combatem problemas de pele através
do uso de cortisona, em lugar de se permitir que “o lixo absorvido” venha para o
exterior através da pele, estaria a promover-se a sua acumulação nos pulmões. Em
sétimo e último lugar, foi destacada a importância da boa disposição e optimismo na
resolução dos problemas. Como vemos, misturam-se aqui, uma vez mais, aspectos
fisiológicos com outros que têm a ver com questões ambientais, comportamentais e com
131
Remete-se aqui para o diagnóstico visual, tema ensinado nos cursos de formação. O rosto é uma parte
do corpo a partir da qual podem ser observados os principais órgãos do corpo humano.
132
Uma das pacientes que entrevistara relatara-lhe que o médico lhe teria dito que apesar de o sistema
imunitário dizer respeito a todo o corpo, 65% dessa imunidade residiria no intestino. Uma alimentação
inadequada sobrecarregaria as glândulas supra-renais e levaria a uma diminuição da actividade da tiróide.
Quando tal acontecia o fígado começava a libertar toxinas para o corpo em vez de promover a sua
excreção (cf. Salkeld, 2005: 326).
266
Sistemas terapêuticos em confronto
Quando numa mesma família aparece ao longo de várias gerações o mesmo tipo
de doença, tal tem mais a ver com o padrão de alimentação que é mantido de
geração para geração do que com razões de carácter genético. [Formador na
área da macrobiótica]
133
Alguns dos seguidores da macrobiótica, sobretudo formadores, referem que Pasteur, com a sua luta
anti bacteriológica, é exemplo dos “maus caminhos da ciência”, enquanto Claude Bernard, pela atenção
que deu ao «meio interno», ao conjunto físico-químico que banha todos os tecidos do corpo, é visto como
cientista notável a quem não foi dada a visibilidade merecida.
267
«À Mesa com o Universo»
anormal; numa 3ª fase começa a haver eliminação crónica através da pele 134; numa 4ª
fase ocorre acumulação, podendo observar-se gordura em torno de órgãos vitais; numa
5ª fase dá-se o armazenamento; na 6ª fase começa a haver degeneração do sangue e da
linfa e, por fim, na 7ª fase, surgem os tumores. De acordo com o que me foi relatado “a
maioria das pessoas tem uma condição pré-cancerosa”. Torna-se necessário, por isso,
dedicar atenção à alimentação, pois os tumores desenvolver-se-iam sempre num
ambiente de grande acidez e, à partida, tudo o que alcalinizasse mais o sangue
combateria o cancro.135
Outros factores são também referidos como catalisadores do cancro,
designadamente factores ambientais (poluição, radiação, stress) e emocionais, mas
também a utilização de medicamentos e produtos químicos presentes na alimentação 136.
Um tipo de cancro que derivaria, de forma clara, do uso de produtos químicos é o
cancro da bexiga. Um outro exemplo seria o do cancro do pulmão, que surge associado
ao consumo excessivo de carne, conjugado com álcool. A causa principal do cancro do
cólon, por seu turno, seria o consumo de carnes vermelhas.
De acordo com os princípios de yin e de yang, alguns destes cancros são
classificados como yin, outros como yang, outros ainda como sendo simultaneamente
yin e yang. Este tipo de classificação depende da localização do tumor no corpo
(superior/exterior - yin – inferior/interior – yang); tipo de órgão afectado e rapidez de
desenvolvimento. É ainda de acordo com esta classificação que devem ser definidas as
respostas para combater a doença. De uma forma geral, deve-se reduzir o consumo de
gorduras, açúcares e em alguns casos eliminar os óleos. Diversos formadores referiram
ter-se constatado que em indivíduos que tinham cancro, a eliminação de gorduras e
134
A pele não deve estar seca, se o estiver não permite a eliminação. A causa de uma pele seca teria a ver
com o facto de os poros estarem “entupidos com gordura”. A manteiga, o queijo e as natas seriam
exemplos de alimentos responsáveis por esta situação e o uso de cremes ainda ajudaria mais a “entupir os
poros”. A resposta dada para superar este tipo de problemas passa pela restrição relativamente ao
consumo desses alimentos, sendo ainda recomendado que se esfregue a pele com uma toalha quente e
húmida, de forma a abrir os poros e estimular a circulação. Este conselho foi seguido com tanto fervor por
uma senhora que tinha sido aconselhada a este tratamento no âmbito de uma consulta de orientação
alimentar, que a sua pele ficou “em carne viva” de tanto se esfregar.
135
Na macrobiótica defende-se que o sangue deve ser tendencialmente alcalino, devendo haver uma
relação adequada entre sódio e potássio, tal como defendido por um dos precursores da macrobiótica,
Sagen Ishizuka (ver capítulo 2). Uma condição ácida, gerada por alimentos provocadores deste efeito
(carne, açúcar…), constituiria um ambiente propício ao desenvolvimento de doenças. As células
cancerosas são também referidas como consumindo muito açúcar, razão pela qual pessoas que fossem
afectadas por tal doença deveriam suprimir os açúcares simples.
136
Para cada tipo de doença existiria um padrão emocional próprio. Assim, no caso específico do cancro
da mama, o padrão seria “tomar conta dos outros e não tomar conta de si”. A mama, por estar associada à
nutrição, estaria ligada a entrega, surgindo a doença como indício de entrega excessiva.
268
Sistemas terapêuticos em confronto
abaixamento de peso conduziram a uma regressão dos tumores. Julga- se que quando se
diminui significativamente a quantidade de alimentos, as células cancerígenas têm
menos possibilidade de se desenvolver. Este modelo de classificação permite que a cada
tipo de cancro seja recomendada uma dieta específica. Por outro lado, para além dos
cuidados com a alimentação, os indivíduos doentes devem procurar tomar conta de si e
rever situações ligadas ao trabalho e às emoções.
Relativamente a situações de cancro, realça-se que no caso de as pessoas estarem
a fazer tratamentos de quimioterapia/radioterapia ou outros, se procurarem conjugar
uma alimentação adequada com esses tratamentos, os efeitos secundários não serão tão
indesejáveis. A quimioterapia é vista como alterando significativamente a flora
intestinal e como diminuindo o número de glóbulos brancos. Nestes casos poderia ser
recomendada uma maior frescura nos alimentos consumidos, bem como tofu frito, que
“ajudaria a subir os glóbulos brancos”. Já quem tenha cancro dos ossos deverá ter o
cuidado de não se esquecer de consumir um pouco de óleo com vegetais, para ajudar a
fixar os minerais. O caldo de vegetais doces é considerado particularmente
recomendado para situações de quimioterapia e sempre que seja necessário equilibrar os
níveis de açúcar no sangue 137.
Para que melhor se aceda às concepções sobre a saúde/doença e tipo de respostas
encontradas, vale a pena procurar ilustrar essas concepções através de mais um
exemplo, neste caso a abordagem que na macrobiótica se faz da hipoglicemia. Para
além da enorme expressão demográfica que lhe é atribuída - calcula-se que este
problema afecte cerca de 2/3 da população ocidental – a hipoglicemia é relevante pela
seguinte razão “quando os níveis de açúcar baixam, as funções cerebrais tendem a ser
básicas” (Varatojo e Romão, 2006: 19). Os sintomas de hipoglicemia são numerosos:
sonolência, irritabilidade, instabilidade emocional, ansiedade intensa, sono após as
refeições, bocejos, dificuldade de concentração, fome - “pessoas que passam o dia a
depenicar”, “que não conseguem fazer nada pela manhã sem tomar o pequeno-almoço”
- entre outros sintomas. Uma das formas de avaliar esta condição seria observar o tempo
que as pessoas conseguem passar sem ingerir alimentos. Se conseguirem passar muito
tempo sem comer e ainda assim se sentirem com energia e boa disposição, isso é visto
137
O caldo de vegetais doces, um dos remédios caseiros mais recomendados na macrobiótica, terá sido
inventado por Kushi para combater sobretudo a hipoglicemia (níveis crónicos baixos de açúcar no
sangue). Prepara-se cozendo quantidades idênticas de vegetais doces (cebolas, cenouras, couve lombarda
e abóbora) no triplo do volume de água. Após uma cocção de 20m, côa-se o preparado e bebe-se uma
chávena quente ou morna. A frequência com que se bebe este caldo deve depender do estado em que se
encontra a pessoa (ver Varatojo e Romão, 2006: 19-20).
269
«À Mesa com o Universo»
como sinal de que não são hipoglicémicos. Na macrobiótica, esta condição tem um
estatuto intrigante, ela não apenas afectaria a maior parte da população ocidental, como
seria uma das principais causas de divórcio, segundo defendeu Kushi. A culpa ficaria a
dever-se à instabilidade emocional e irritabilidade que a hipoglicemia provoca 138. Um
factor que ajuda a explicar por que razão muitos dos pacientes não têm uma noção clara
do problema teria a ver com a prática frequente de efectuar análises ao sangue em
jejum, ou seja, numa altura em que a energia seria ascendente e os níveis de açúcar se
encontrariam mais altos – deveria ter-se presente que, após o repouso, a energia subiria.
Uma questão que não pode deixar de ser colocada relativamente a estes
entendimentos, tem a ver com os fundamentos e processos de legitimação em que se
apoiam. Dizem-me decorrer de muitos anos de observação e também de estudos
científicos que apoiam estas concepções. Constato que, por uma questão de eficácia
discursiva e de legitimação de uma prática de cura, é feito uso de estudos científicos que
apoiam estas posições. Michio Kushi parece ter constatado, desde muito cedo, a
importância dos estudos científicos como forma de legitimação da macrobiótica fora do
círculo estrito dos seguidores deste tipo de orientação. Numa das suas obras mais
conhecidas - The Book of Macrobiotics (1989) -, procura dar conta, justamente, dos
estudos científicos efectuados que evidenciariam os benefícios da adopção da
macrobiótica, importando aqui dizer que não dá igual destaque àqueles que apontaram
as deficiências, do ponto de vista nutritivo, na adopção desta dieta (ver capítulo 2). Em
contexto de formação, ainda que não seja afirmado, de forma explícita, que o
reconhecimento e legitimação externos da macrobiótica - quer enquanto sistema
alimentar quer enquanto sistema terapêutico – dependem da legitimação de carácter
científico, pressente-se que a recorrência a esse discurso e o seu uso selectivo concorre
para esse efeito que é de busca de legitimação.
A macrobiótica revela-se bem em sintonia com a ambiguidade e com o carácter
interceptivo que caracterizam muitos dos fenómenos e movimentos da
contemporaneidade. Não dispensa o conhecimento científico, mas mantém com ele uma
relação tensa, que incorpora processos de legitimação e de crítica. Se por um lado, se
138
Conferência proferida em Lisboa em 2002.
270
Sistemas terapêuticos em confronto
139
Estudo de grande alcance que foi estabelecido em 1976 por Frank Speizer e em 1989 por Walter
Willett. Resulta de questionários aplicados a mais de 100.000 enfermeiras de diferentes estados dos EUA.
Sublinha-se que se trata de um estudo em que são considerados 12 anos na apresentação dos resultados
140
Trata-se igualmente de um estudo que envolve milhares de americanos.
271
«À Mesa com o Universo»
272
Sistemas terapêuticos em confronto
estações do ano e com os cinco elementos, e que poderia ser direccionada para trabalhar
os órgãos do corpo humano. Os alimentos são assim pensados não apenas a partir das
suas qualidades nutritivas mas também a partir das suas características energéticas,
aspecto que, neste caso, nada tem a ver com calorias 141.
Voltando ao caso da hipoglicemia, ela é apresentada como devendo ser tratada
sobretudo à tarde, altura em que a energia solo, relacionada com o baço e pâncreas,
estaria mais activa. A hipoglicemia é encarada como envolvendo essencialmente o
pâncreas (que segrega insulina e anti-insulina) e o fígado (que acumula açúcar sob a
forma de glicogénio e que o envia para o organismo quando necessário). As causas mais
profundas da hipoglicemia são vistas como derivando do consumo de alimentos como o
frango, os ovos, atum e alimentos fumados. As causas são yang e estes alimentos
provocam uma grande contracção do pâncreas. Já as causas secundárias teriam a ver
com o consumo de açúcar, chocolates, café, álcool, batatas e alimentos refinados.
Segue-se a estes considerandos um conjunto de recomendações para tratar a
hipoglicemia, que passam por evitar os alimentos que a provocam e por fazer refeições
a horas regulares, com cereais integrais e vegetais a todas as refeições. Os alimentos
devem ser soltos e os vegetais levemente cozinhados, de forma a descontrair o pâncreas.
É recomendado o consumo de caldo de vegetais doces, sendo os banhos quentes e as
massagens vistos como ajudando no processo de descontracção, tendo igual relevo uma
atitude perante a vida mais descontraída (emoções ligadas ao território e à
competitividade são associadas à hipoglicemia). Por tudo isto, podemos constatar que o
leque de respostas é amplo. Dirige-se prioritariamente para a alimentação, mas abarca
outros aspectos, procurando encontrar soluções que combinem uma dimensão física,
emocional e espiritual. Em última instância, e uma vez mais, será sempre o indivíduo,
com a sua subjectividade, comportamento e atitude, o responsável pelo estado em que
se encontra.
Distúrbios comuns, como constipações, gripes, estados febris, são tratados na
macrobiótica através de uma prática alimentar comum, como a alimentação
macrobiótica padrão, e ainda com recurso a tratamentos caseiros. A lista dos
tratamentos inclui pratos medicinais, infusões, compressas, banhos, etc142. O que
141
A descrição da teoria das cinco transformações encontra-se na verdade muito simplificada. Muitos
aspectos são aqui omitidos, por não serem tomados como indispensáveis para compreender o tipo de
concepções inerentes à saúde e doença.
142
Mais informação sobre este assunto pode ser vista no livro Remédios Caseiros de Francisco Varatojo e
Pedro Romão (2006)
273
«À Mesa com o Universo»
interessa aqui realçar não é a composição nem a forma específica de cada um destes
tratamentos, mas mais o modo como eles procuram ser uma resposta estruturada a
problemas comuns. Uma resposta através da qual se procura demonstrar que a utilização
de fármacos para este tipo de desequilíbrios é totalmente desnecessária e até
contraproducente “já que, por um lado vai criar obstáculos à regeneração do organismo
e, por outro, expor todo o ambiente sanguíneo e celular a uma série de produtos
químicos raramente destituídos de efeitos colaterais” (Varatojo e Romão, 2006:5). O
que deriva daqui, defendem, é que há uma espécie de camuflagem da doença, cujos
efeitos serão graves, porque não se permitiu ao organismo o desencadeamento de todos
os processos para a resolução do problema, facto a que se atribui notória gravidade.
Consideram ainda os autores que este tipo de abordagem não se limita à medicina
alopática, podendo observar-se noutras “medicinas não convencionais”. Verificamos
assim, uma vez mais, a procura de distanciamento face a outras práticas, acompanhado
da afirmação de um conjunto de técnicas específicas, com uso de produtos bastante
particulares, muitos deles de origem oriental como o shoyu,ameixa umeboshi, tekka, raiz
de lótus, etc.
Muitos outros aspectos poderiam ser aqui referidos para ilustrar formas de
tratamento e concepções sobre a saúde e a doença, mas esse seria, pelo menos nesta
ocasião, um exercício exaustivo e desnecessário. O que pode ser salientado, numa
primeira síntese, relativamente a concepções sobre a saúde, doença e tipos de respostas
encontradas, é que a natureza e a observação dos seus ritmos, constituem, pelo menos
do ponto de vista discursivo, dimensões de importância maior no universo de
significados que caracterizam a macrobiótica. A relevância de conceitos como energia
ou equilíbrio/desequilíbrio para falar de saúde e doença; a visão holística do corpo; a
espiritualidade-religiosidade que impregna as atitudes e posições (muito embora
defendam o non credo e adoptem a máxima “sê o teu próprio mestre”); a enfatização na
questão da responsabilidade individual, das mudanças a efectuar no quotidiano e a
procura de uma identidade específica através da enunciação de critérios de alteridade
relativos a outras práticas, como as que se ligam à biomedicina, são, efectivamente,
pontos essenciais para compreendermos o conjunto de concepções que caracteriza a
macrobiótica.
274
Sistemas terapêuticos em confronto
275
«À Mesa com o Universo»
que frequentei. O mote para a apresentação da aula era dado por um texto atribuído a
Collin Campbell (2006), professor de bioquímica nutricional na universidade de
Cornell, autor frequentemente referido no IMP e a que já fiz referência no cap. 2. Diz-se
nesse texto:
Estamos a levar a nossa juventude para o caminho da doença em idades cada vez
mais jovens. Um terço das crianças neste país [EUA] tem um excesso de peso ou
está em risco de ter excesso de peso. Os nossos miúdos começam a ser vítimas
de um tipo de diabetes que só afectava adultos e agora as crianças tomam mais
medicamentos que nunca.
Estes problemas têm a ver com três actos diários: pequeno-almoço, almoço e
jantar.
Seguia-se a este texto a apresentação de uma sequência histórica de mapas que revelava
a forma assustadora como a obesidade tem aumentado nos EUA. A sequência era na
verdade preocupante, mas, não pretendendo aqui subestimar o problema, importa notar
a eficácia retórica que alcançava. As imagens traduziam o drama social de uma
população decadente, vítima do fast food e incapaz de adoptar “hábitos alimentares
correctos”. Face a estas imagens, a macrobiótica, enquanto via que privilegia a
alimentação, foi apresentada como resposta adequada. Este exemplo, por entre outros
que poderiam ser dados, evidencia o modo como se utiliza informação objectiva sobre
problemas actuais de saúde, de forma a justificar a opção por outros modos de vida e de
alimentação. Há recurso a dados científicos disponíveis, num uso que por vezes é
meramente instrumental, no sentido de reforçar as opções tomadas na macrobiótica 143.
A referência às “epidemias” dos séculos XX e XXI é, sem dúvida, um bom
ponto de partida para evidenciar os riscos da fraca qualidade da “alimentação moderna”,
uma alimentação “subjugada ao sector agro-industrial e aos seus múltiplos interesses
económicos”. Um sector que estaria mais interessado no processamento de produtos e
na sua venda do que com o bem-estar dos consumidores. O apelo ao consumo regular
de leite, por exemplo, seria estimulado pelas empresas produtoras de leite e até a sua
importância na pirâmide ou roda dos alimentos teria sido objecto de negociação com as
empresas leiteiras. A este propósito, foi referido numa das sessões, que anúncios
recentes em que se “incentivavam os alunos do ensino básico a beber leite para
enfrentarem o matulão da turma ao lado” se deviam apenas a uma diminuição das
vendas de leite, daí a agressividade da campanha. Os alimentos excessivamente
143
É esse o caso da referência a cientistas como Campbell (2006) e Walter Willet (2005).
276
Sistemas terapêuticos em confronto
processados, distantes dos cereais integrais que tanto defendem, são também alvo de
crítica e uma manifestação do afastamento relativamente a uma forma de alimentação
mais próxima da natureza. O uso de pesticidas na agricultura, o recurso a antibióticos na
criação de animais, a promoção da utilização de organismos geneticamente modificados
(OGMs), os problemas causados por medicalização desadequada ou excessiva, do
mesmo modo que os que surgiriam na sequência da vacinação, são aspectos evocados,
entre outros, para chamar a atenção para os riscos da nossa sociedade e dramatizar,
assim, a situação actual. Uma dramatização que é necessária para iniciarem um processo
a que chamam “consciencialização” – “para as pessoas mudarem é preciso criar
consciência”, defendem.
Salkeld (2005), na pesquisa que desenvolveu numa clínica de medicina holística
nos EUA, destaca, justamente, o modo como é usada a noção de risco na relação do
médico com o paciente para produzir inflexões nos hábitos alimentares. Uma das
principais preocupações dos médicos consistia, justamente, em alertar os pacientes para
os riscos relativos a certas práticas alimentares. Explorando a noção de risco à luz de
autores como Beck (2008 [1986] e Giddens (1992), o que está em causa é evidenciar o
uso que esses médicos faziam de mensagens mediáticas sobre riscos alimentares (vacas
loucas, mercúrio no peixe…) para persuadirem os pacientes a mudarem de alimentação.
Para esses médicos (formados na medicina convencional, mas especializados em
abordagens holísticas) a alimentação e a digestão eram processos essenciais,
responsáveis por uma grande variedade de doenças, razão pela qual se focavam
sobretudo na alimentação e se esforçavam por informar os pacientes sobre a necessidade
de usar produtos de boa qualidade, confeccionados de forma saudável. O uso de
produtos biológicos, a diminuição do consumo de açúcar, carne e produtos lácteos, era
também aí recomendado, o que acaba por ser coincidente com conselhos dados na
macrobiótica e fazer pensar nas relações dinâmicas que se estabelecem entre diferentes
sistemas terapêuticos.
Salkeld, ao referir que a atenção dos media às crises alimentares e aos estudos
que evidenciam correlações entre alimentação e cancro (ou outras doenças), influencia a
percepção sócio-cultural do risco da classe média americana, procura demonstrar que é
partindo dessa compreensão cultural do risco para a saúde que os “médicos holísticos”
incorporam nos seus discursos a relação entre risco, confiança e responsabilidade
individual no alcance da saúde. Explorando a percepção de risco do cidadão comum da
classe média, esses médicos evocariam nos encontros terapêuticos com os pacientes
277
«À Mesa com o Universo»
144
A ideia de “ambiente desregulado” parece paradoxal. Como agir de acordo com os “ritmos da
natureza”, quando essa natureza parece escapar à ideia de regularidade e de equilíbrio, tal como a
defendiam os gregos e algumas filosofias orientais? A ideia de ausência de regulação surge aqui mais
para alarmar e dramatizar a do que por qualquer outro motivo. Partir do pressuposto da falta de regulação
da natureza seria contrariar os próprios princípios da macrobiótica.
278
Sistemas terapêuticos em confronto
As pessoas têm medo de tudo e mais alguma coisa, não dão passos em frente
porque estão sempre a pensar em eventuais perdas e não encaram a
possibilidade de ganhos. As vidas que têm foram eles que as escolheram, são
responsáveis por isso. [Formador na área da macrobiótica].
O medo é ainda identificado com o tipo de alimentação que as pessoas levam e que faz
com que os rins fiquem sobrecarregados. Ora, na macrobiótica, os rins são identificados
145
Tanto Ohsawa como Kushi (autores de referência na macrobiótica, como foi referido) procuram alertar
para a ideia de que a paz no mundo e a reconstrução da humanidade só seria possível a partir de uma
transformação na alimentação. Aliás, nos textos produzidos por estes autores, avulta a ideia (cf. Kushi,
2000:5) de que esta degradação decorre de uma alimentação desequilibrada. A alimentação macrobiótica
surge, assim, como proposta de regeneração da humanidade. Ela é condição indispensável para um corpo
e uma mente sãos, sem eles não é possível o auto-conhecimento e o aperfeiçoamento individual exigidos
para salvar o planeta.
279
«À Mesa com o Universo»
como órgãos que governam precisamente emoções como o medo. As pessoas não
modificariam os seus hábitos básicos, o seu quotidiano com trabalhos pouco
estimulantes, porque sentiriam “medo de não ter todas as comodidades a que estão
habituadas”. E, no entanto, tudo depende delas, já que são consideradas responsáveis
pelas situações que elas próprias criaram.
O tema da responsabilidade individual é o tema que se segue nessa estratégia
discursiva que procura dar sentido à macrobiótica enquanto proposta a adoptar. A
doença e “aquilo que fazemos com a nossa vida é da nossa inteira responsabilidade,
“nós somos capazes de mudar a nossa vida”, são frases que podem ser ouvidas com
regularidade e que procuram transmitir confiança às pessoas para que iniciem as
mudanças que consideram fundamentais. Trata-se, de alguma forma, de procurar levar
as pessoas a acreditar que têm poder de decisão e que podem ser mais autónomas. Ao
iniciarem a aprendizagem da macrobiótica e adquirirem capacidade de controlar melhor
alguns problemas de saúde, alguns dos que aderiram a este sistema de alimentação
sentem na verdade ser acrescido o seu poder sobre o corpo e sentem-se a “comandar
mais as suas vidas”. Algumas das pessoas que contactei deixaram empregos
razoavelmente remunerados e estáveis para se dedicarem a outras actividades, foi esse o
caso, por exemplo, de uma professora universitária, uma oficial de justiça e uma
professora do ensino básico. Há, efectivamente, uma insistência na ideia de que os
processos individuais são o factor realmente essencial e que são esses que, em última
instância, conduzem à transformação da vida social. Os gestos básicos do dia-a-dia que
constituem o quotidiano, são os que podem transformar o mundo.
Uma outra dimensão fundamental, que suporta uma retórica discursiva de
demarcação face às formas de abordagem do corpo mais convencionais, tem a ver com
as críticas ao serviço nacional de saúde e à biomedicina. Algumas destas críticas foram
já evocadas, até porque a definição de concepções sobre a saúde e doença é apresentada
tendo sempre como contraponto a medicina convencional. Os médicos são, desde logo,
vistos como tendo grandes lacunas na sua formação, dado terem, “quando têm” (diz-me
um dos formadores), um reduzido número de horas de formação sobre nutrição. “Não é
com 30 horas de aulas sobre alimentação num curso de medicina que se conseguem
formar bons médicos”, dizem-me. Tendo em consideração que muitas doenças têm a ver
com problemas alimentares, esta situação é para os seguidores da macrobiótica muito
grave e não abona a favor da ideia de uma formação adequada. Por outro lado, faz parte
da retórica discursiva acusar a medicina convencional de se dirigir pouco para o
280
Sistemas terapêuticos em confronto
paciente enquanto indivíduo e não prestar atenção ao Homem enquanto todo. Como já
vimos, excessiva medicalização, mas também os interesses dos laboratórios que a
sustentam, são alvo de crítica. Os laboratórios incentivariam o crescimento da indústria
de medicamentos ao financiarem pesquisas que teriam na mira a criação de mais
medicamentos. Face a esta agressividade, era pois necessário estar atento, olhando
criticamente os actos médicos e procurando evitar o consumo de produtos químicos.
Resumindo, vemos assim, que noções como risco, medo, responsabilidade
individual e necessidade de autonomia, jogam um papel fundamental numa estratégia
discursiva que procura a consciencialização do ser humano. Só a partir desta
consciencialização parece ser possível, para os que defendem a macrobiótica,
desenvolver a espiritualidade, aspecto de importância maior nesta proposta de
orientação no mundo e que evidencia que esta proposta está longe de ser meramente
uma orientação em termos alimentares. Por outro lado, e voltando à questão do
enquadramento inicial necessário para a apresentação e justificação da macrobiótica
enquanto proposta a seguir, devem ainda ser salientadas as críticas relativamente à
industrialização e suas consequências, ao estado de saúde actual, factor associado aos
cuidados médicos convencionais e indústrias que os suportam. Estes parecem-me ser,
efectivamente, os principais eixos a partir dos quais se sugere a necessidade de um
modo de vida alternativo.
281
«À Mesa com o Universo»
que merecem uma discussão mais aprofundada. O que procurarei fazer, de seguida, é
retomar e apontar alguns desses tópicos de discussão146.
Um dos primeiros aspectos que destaco dessa discussão tem a ver com a relação
entre o Estado e os cuidados de saúde. A utilização da macrobiótica, enquanto sistema
terapêutico, tal como outras terapêuticas não convencionais, revela que o corpo
biológico não é algo que esteja inteiramente sobre a alçada do Estado. Esta situação é
perspectivada como favorável por alguns dos indivíduos que contactei, dado que não
implica controlo e permite uma maior autonomia, embora seja vista também como
gerando algumas dificuldades. Para muitos dos que contactei, a actual política de
Estado, em termos de saúde, ao ignorar formas alternativas de tratamento, não vai de
encontro ao que sentem como necessidade, dado que, na maior parte dos casos, não têm
qualquer tipo de comparticipação nesses gastos.
Os seguidores da macrobiótica fazem, de um modo geral, um consumo restrito,
crítico e selectivo dos cuidados de saúde no SNS. São frequentes os casos de indivíduos
que passam anos sem consultar o médico e, que, quando o fazem, é sobretudo para
realizar análises e exames de rotina de forma a certificarem-se de que não têm qualquer
problema de saúde. Costumam ser também muito resistentes à toma de medicamentos e
até à vacinação.
Em Braga, e no período em que decorreu esta investigação, quatro mulheres com
quem contactei, no âmbito desta pesquisa, optaram por fazer o parto em casa (todas elas
tinham formação de nível superior e profissões concordantes com o grau académico).
Esta é uma solução bastante mais onerosa e geralmente afirmada como arriscada, mas
que essas mulheres, ainda assim, entenderam adequada. Entre os motivos que as
levaram a fazer esta opção destacava-se o desejo de não se submeterem ao ambiente do
hospital, com o receio relativo ao tipo de intervenção que aí pudesse ocorrer - uma
cesariana ou vacinação de recém-nascidos, são alguns dos aspectos assinalados -, bem
como perda de autonomia. Esta prática, a do nascimento em casa, que julgo ter
aumentado em Portugal nos últimos anos, é incentivada no âmbito dos cursos de
formação na área da macrobiótica.
Há assim um conjunto de práticas que vão ficando fora do controle do Estado e
que revelam brechas na ideia da estatização do biológico. Tal não quer dizer, todavia,
pelo menos em relação a estas mulheres, que a sua opção as tenha colocado fora do
146
Não será ainda, seguramente, uma reflexão inteiramente informada e final sobre o que foi apresentado,
mas os elementos iniciais de uma análise mais aprofundada, a fazer noutra ocasião.
282
Sistemas terapêuticos em confronto
poder biomédico. Quem acompanhou esses partos, para além de doulas147, foram
profissionais de saúde, médicos ou enfermeiros obstetras. Convém ainda dizer, em
relação a estas práticas, que há informação que circula no meio sobre experiências
semelhantes, acontecendo ser o mesmo enfermeiro obstetra a seguir estes casos pela
imagem de credibilidade que conseguiu alcançar. É esta confiança que foi adquirindo
que lhe garante o acompanhamento de mais mulheres em situações futuras.
Ainda a propósito de relação estratégica com o poder biomédico, um dos meus
informantes, já na casa dos setenta anos de idade, começou a sentir-se muito cansado e
resolveu consultar o médico para fazer análises. Foi-lhe detectada uma anemia grave e
um nível extremamente baixo de vitamina B12 (problemas que costumam ser associados
a dietas pouco cuidadas, onde não há ingestão de qualquer produto de origem animal), a
tal ponto que a médica que o atendeu, quando tomou conhecimento do resultados dos
exames, lhe telefonou para o internar no hospital para lhe ser feita uma transfusão
sanguínea. Ele, todavia, pediu à médica para não o fazer, e para lhe dar apenas mais um
ou dois dias para começar a resolver o seu problema. A médica acedeu renitentemente,
facto de que este paciente se congratulou, pois entende que a médica foi “muito
compreensiva”. Passou então a dedicar mais atenção á sua doença e às suas refeições,
consultou um naturopata e começou a tomar suplementos alimentares. Ao fim de alguns
dias começou a sentir-se melhor e os níveis de hemoglobina e de B12 ficaram próximos
do normal. No seu entendimento, com o excesso de trabalho e com as mudanças que
tinham ocorrido recentemente na sua vida, não prestara a devida atenção à alimentação
e acabara por se ressentir disso, mas “conseguira safar-se de ir parar ao hospital”.
Declara nem imaginar o que lhe sucederia se tal lhe acontecesse, mas acredita que “seria
uma tragédia”. Já numa fase posterior, e dados os problemas renais com que se ia
confrontando, acabou, contudo, por seguir o tratamento médico que lhe tinha sido
recomendado, procurando sempre ter cuidado com a alimentação.
Estes exemplos revelam a recusa de cuidados médicos ou, pelo menos, o seu uso
selectivo. Estes indivíduos revelam, frequentemente, comportamentos que evidenciam
uma quase ausência de relação com o Estado e os serviços que este disponibiliza em
termos de cuidados de saúde. No caso referido anteriormente, há uma consulta a um
“médico convencional” e depois opta-se pelo naturopata, voltando-se mais tarde ao
147
Mulheres que se especializam no acompanhamento de famílias e na experiência da gravidez, parto e
maternidade. Existe em Portugal uma associação de doulas que promove formação específica nesta
área.Ver: http://www.doulasdeportugal.org/index.php?target=pt/finder&district=&language=&go=Buscar
[Acesso 12-11-11].
283
«À Mesa com o Universo»
“médico convencional” para fazer análises, o que evidencia também uma relação
estratégica com os cuidados de saúde. Neste caso específico, o facto de o naturopata não
poder prescrever a realização de análises, que depois seriam comparticipadas pelo
Estado, poderá ser uma justificação para este tipo de opção. Por outro lado, o susto com
o problema talvez tenha sido tão grande que este indivíduo decidiu continuar a manter
contacto com o “médico convencional”. De qualquer forma, é revelador de que muitos
dos que seguem a macrobiótica nem sempre encontram o enquadramento que
desejariam, nem o tipo de respostas que mais se lhes ajustariam. Existem ainda outras
dificuldades, nomeadamente com aspectos como baixas médicas e comparticipações de
outros produtos de saúde. Esta hegemonia da biomedicina que faz com que os “médicos
convencionais” tenham o monopólio do diagnóstico e da prescrição, pelo menos na
maior parte dos serviços de saúde comparticipados, remete, inevitavelmente, para as
questões do biopoder com que iniciei este capítulo. No entanto, o que encontramos nos
actos acima referidos, não são formas conscientes e activas de resistência à hegemonia
da biomedicina, mas apenas opções relativamente ao que entendem ser a resposta mais
adequada aos seus problemas, opções que revelam a forma estratégica como as margens
podem dialogar com o poder biomédico.
O problema acima evidenciado não pode deixar de ser relacionado com aquilo
que se costuma designar como pluralismo médico. Em Portugal, apesar dos avanços
feitos na criação de legislação sobre terapêuticas não convencionais (Franco, 2010),
estas ainda não se encontram regulamentadas, o que faz com que não haja ainda
enquadramento legal para o seu funcionamento. A regulamentação desta actividade
poderia eventualmente ir de encontro às necessidades daqueles que recorrem a este tipo
de terapêuticas, mas vale a pena ver o que sucedeu noutros países com as “medicinas
não convencionais” para reflectir sobre o tipo de solução que foi adoptada. Em países
como os EUA, onde estas medicinas estão mais bem enquadradas e regulamentadas,
tem-se verificado um interesse crescente pelas “medicinas não convencionais” 148. A
história conflituosa que no passado terá oposto a medicina convencional a outras formas
de medicina parece ter-se atenuado, dando lugar ao início de uma espécie de
reconciliação. Kaptchuk e Eisenberg referem que há um interesse cada vez maior em
integrar este tipo de medicinas nos centros médicos e hospitalares e que mesmo nos
148
Refiro regulamentadas porque pluralismo médico existe desde há muito nos EUA com uma presença
persistente e poderosa, como referem Kaptchuk e Eisenberg (2001), bem como noutros contextos (cf.
Janzen, 1982).
284
Sistemas terapêuticos em confronto
cursos de medicina surgem cada vez mais disciplinas relativas às “medicinas não
convencionais”. Até as farmácias complementam a sua oferta com linhas de produtos
feitos com plantas medicinais, tendo crescido também a investigação nesta área (cf.
Kaptchuk e Eisenberg, 2001: 193).
Esta situação permite reconhecer que as terapêuticas não convencionais se
transformaram num produto económico de elevado interesse e, muito provavelmente
por este motivo, estão a ser integradas em unidades de saúde convencionais, havendo
mesmo situações de partenariado entre a biomedicina e as “medicinas não
convencionais”. É esta situação que leva Kaptchuk e Eisenberg a perguntarem se esta
integração não significará a eliminação do pluralismo médico que tanto é defendido (cf.
2001: 193). É também nesse sentido que se expressa Baer (2003), ao defender que as
medicinas holísticas estão a ser biomedicalizadas e que são os profissionais tradicionais
de saúde que estão a colocar estas medicinas sob a sua alçada. Curiosamente, o texto de
Salkeld (2005) sobre a noção de risco no discurso dos médicos de uma clínica médica
holística, faz pensar o inverso, pois aí, pelo que Salkeld nos refere, os médicos (com
formação na medicina convencional e depois na holística) fazem um tipo de abordagem
que se distancia da medicina convencional. O mais certo é que os fluxos de informação
se façam nos dois sentidos e que haja efectivamente uma relação dinâmica entre eles.
Costumam ser acentuadas, porém, as concepções hegemónicas ligadas à biomedicina,
dada a sua associação com ciência e poder. Ter em consideração o caso dos EUA, entre
outros, pode ser relevante para decidir sobre a regulamentação das terapêuticas não
convencionais no nosso país
Um outro aspecto que gostaria de mencionar a partir dos dados que recolhi,
prende-se com a focalização no corpo e na saúde, como se vivêssemos sob o regime da
“somatocracia”, para usar uma expressão de Foucault (2001: 43) e recuperar um tema
que preocupou Illich (1975). Na verdade, não apenas o Estado evidenciaria a sua
finalidade de cuidar do corpo e nele intervir, mas também os comportamentos
individuais, mesmo os que são relativamente marginais ao Estado, como os que
podemos observar na macrobiótica, se revelariam muito concentrados no corpo e na
qualidade da sua energia. Alguns dos partidários da macrobiótica submetem-se a dietas
purificadoras e a cuidados corporais que são muito exigentes, quer em termos de
disciplina individual quer em termos de tempo disponível para todos esses cuidados,
cientes que estão da importância de tais procedimentos para garantir um corpo saudável.
A dieta número sete, prescrita por Ohsawa, que implica passar dez dias a comer arroz
285
«À Mesa com o Universo»
integral, é um dos exemplos de dietas que alguns indivíduos usam para “limpar o corpo”
e para se “purificarem”. Outros, pelo menos numa fase inicial, despendem uma boa
parte do seu tempo em assuntos que têm a ver com a aquisição de alimentos e com a sua
confecção. A procura dos produtos com a melhor qualidade leva-os, por vezes, a
percorrer diferentes estabelecimentos comerciais até encontrarem o que procuram. Num
dos casos que me foi relatado [estudante, 23 anos], entre a aquisição, a confecção, a
refeição e o arrumar da cozinha, despendiam-se umas cinco ou seis horas por dia.
Noutros casos, é ainda necessário levantarem-se pelas cinco, seis horas da manhã, para
prepararem o almoço que levam para o trabalho. Esta disciplina a que se obrigam
evidencia bem o quanto o corpo e a saúde é importante para eles. Não se trata aqui de
procurar um corpo adequado aos cânones de beleza dominantes, mas mais de estar
saudável, evidenciando o que entendem ser uma boa qualidade do ponto de vista
energético. Tanto num caso como no outro é a focalização no corpo que se afirma como
gesto significativo. Tão significativo que pode ser visto como prejudicial. Verifica-se,
desta forma, uma estruturação dos discursos em torno do corpo (quer no que diz
respeito à alimentação, quer no que diz respeito ao vigor do mesmo), que é sobretudo
colocada em termos de saúde, sendo o Homem perspectivado, sobretudo, como alguém
que tem de prevenir doenças ou que tem doenças a tratar, mesmo na macrobiótica.
É nesse sentido que se expressa Ivan Illich (2005 [1994]). Depois de ter criticado
severamente a medicina, os médicos, o modo como se organizavam e os efeitos dos
actos médicos (Illich, 1975), passa a considerar que o maior agente patogénico da
actualidade é a focalização na saúde, a tal ponto que a busca da saúde se tornou
consubstancial com a experiência do corpo (cf. Illich, 2005: 928). Dito de outra forma, a
sua opinião é que a experiência do corpo e do eu se tornou o resultado das concepções
médicas e dos cuidados de saúde, transformando-se, por isso, de acordo com a
terminologia que usara anteriormente (cf. Illich: 1975), numa doença iatrogénica (cf.
idem: 929). Considera, no entanto, que a influência da medicina institucionalizada já
não tem o poder que tinha anteriormente e que a sua importância relativa no sector da
saúde se encontra em recuo, dando lugar a práticas de autocuidado, juntas com um
entusiasmo ingénuo por tecnologias sofisticadas, fitoterapias e outros149.
149
Como Illich refere: «O recurso exclusivo a técnicas de automedicação, bem como o deslumbramento
naif por toda uma sofisticação tecnológica, tornam o esforço dos médicos e o seu investimento pessoal
num trabalho cada vez mais frustrante. Parece-me que a participação da medicina naquilo que é a busca
patológica da saúde não tem hoje senão um papel menor.» (2005:928). Ou ainda: «Uma mistura confusa
de tecnologia avançada com fitoterapia, de biotecnologia com autocuidado, está actualmente a ser
286
Sistemas terapêuticos em confronto
O facto de uma boa parte das imagens da publicidade evocarem a qualquer título
a saúde, seria apenas mais um exemplo de como o tema se tornou invasivo. A questão
da diminuição da influência da medicina institucionalizada é discutível. No entanto, é
impossível não reconhecer que são múltiplas as mensagens que remetem para a saúde e
para diferentes terapias, ao ponto de o tema se tornar obsessivo. A macrobiótica é
também um exemplo de como o cuidado de si, com alguma autonomia e a procura do
equilíbrio, revelam algo de obsessivo. Do ponto de vista teórico, defende-se na
macrobiótica que se procura tornar o indivíduo mais livre e autónomo. Verifica-se, na
prática, pelo menos em alguns casos, o contrário. Sucede assim com os indivíduos que
evitam viajar por receio de não poderem fazer “refeições equilibradas”, ou que vão
limitando o seu círculo de amigos por não se enquadrarem nos seus padrões de
alimentação. Pode-se sempre argumentar que estes indivíduos ainda não perceberam “o
espírito da macrobiótica”, como por vezes se defende, mas o certo é que se encontra
com alguma frequência, e para lá dos exemplos fornecidos, uma conduta
excessivamente centrada em questões que têm a ver com o corpo, com a saúde e com a
alimentação. A tal ponto que parecem fazer sentido as palavras radicais de Illich «Pela
sua redução à vida, o sujeito é lançado num vazio que o esgota. Para falar de saúde em
1999 (…) é necessário compreendê-la numa liturgia societária ao serviço de um ídolo
que anula o sujeito». 150.
Longe de considerar o corpo como facto natural, independente do contexto
sócio-histórico, como reconhece tê-lo feito (idem: 932), Illich, em Dans le Mirroir du
passé (1994), fazendo eco de Foucault, defende que os corpos nunca existiram senão em
função de um contexto. No caso do “corpo ocidental”, o corpo corresponderia a uma
materialização progressiva do eu, a algo através do qual a pessoa se produz e objectiva.
As pessoas já não se refeririam ao corpo como “o meu corpo”, mas antes como o “corpo
que sou”, facto que via com apreensão e como indicativo de uma matriz epistemológica
em formação, na qual os indivíduos se apreenderiam a si mesmos como elementos de
um programa informático complexo (cf. Illich: 2005: 934). O que neste ponto
preocupava o autor, era a natureza artificial da noção de vida e o esvaziamento da noção
de pessoa associado a um culto compulsivo do corpo.
colocada em acção para representar a realidade, incluindo essa realidade que é o corpo vivido»
(2005:934). [Tradução livre].
150
Illich, Ivan. 1999. “Un Facteur Pathogène Prédominant, l’obsession de la santé parfaite”
http://www.monde-diplomatique.fr/1999/03/ILLICH/11802.html [Acedido em 21-2-08].
287
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151
Tradução livre.
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152
Antes da consulta, pede-se àqueles a que a ela se dirigem que preencham uma ficha onde se pode ler
“os nossos conselhos não são conselhos médicos profissionais. Se procura conselhos médicos, por favor
visite um médico mais apropriado para o seu problema específico”. E ainda “Não prometemos garantir
291
«À Mesa com o Universo»
Por outro lado, o termo “paciente” também não costuma ser utilizado para fazer
referência a este tipo de aconselhamento, dado que sugere sobretudo o acompanhamento
clínico exercido no âmbito da medicina convencional. Termos como utente e cliente
também me pareceram desajustados, dada a habitual remissão do primeiro termo para a
utilização de serviços e, no segundo caso, dada a lógica comercial para que a noção de
cliente remete. Acabei por optar pelo termo “consulente”, dada a sua menor vinculação
às situações que acabei de referir. É certo que o termo é pouco utilizado na linguagem
comum e se adequa a diversos ramos de actividade, não se encontrando particularmente
relacionado com os cuidados de saúde, mas comporta essa dimensão de busca de
conselhos e de orientação que me pareceu justificar o seu uso.
Como venho procurando defender ao longo deste capítulo, os processos
terapêuticos, que decorrem no âmbito da macrobiótica, revelam opções que se
encontram distantes da tutela do Estado e que, por vezes, contrariam orientações dadas
no âmbito da medicina convencional. Estas opções evidenciam que os indivíduos não se
encontram completamente submetidos ao poder biomédico e que tomam decisões em
relação ao seu corpo que não se encontram sob a alçada deste sistema. Como também
venho defendendo, tal não significa que recusem, em todas as ocasiões, as orientações
dadas no âmbito da medicina convencional, antes procurando relacionar-se com ela de
forma estratégica. A necessidade de meios complementares de diagnóstico, que
permitam um acompanhamento mais objectivo de uma determinada situação, ou de
outros apoios facultados pelos Serviço Nacional de Saúde, implicam frequentemente
que os indivíduos se movam entre diferentes sistemas terapêuticos e se relacionem de
forma dinâmica com ambos. É esse o caso de Teresa, espanhola, professora, com cerca
de 50 anos que se debateu com um cancro de mama.
Antes de apresentar o seu caso, impõe-se que refira algo a propósito da sua
nacionalidade. Convém dizer que conheci diversos casos de espanhóis que procuraram
Portugal tanto para obter formação na área da macrobiótica como para virem a consultas
por causa de desordens que os preocupavam. Dizia-se mesmo, em contexto de
formação, que a macrobiótica era das poucas coisas que Portugal exportava para
Espanha e em que estava em verdadeira vantagem relativamente a este país. O facto de
em Portugal existir uma figura carismática associada à macrobiótica, com
nada no que diz respeito à eliminação dos seus problemas, mas, se desejar aprender como apreciar e
beneficiar da Alimentação Macrobiótica, teremos o maior prazer em o(a) assistir”. Sugerindo-se, em
simultâneo os benefícios da macrobiótica afirmava-se aí “A alimentação macrobiótica é um método
alimentar que tem provado ser eficaz na correcção de muitas desordens”.
292
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dia. Segui com a minha determinação e é o que é...é tão importante o processo
prático como o processo interior. Aos poucos, senti que precisava de exames e
que tinha necessidade de suporte médico para ver a evolução, nunca abandonei
o caminho médico oficial. Quando renunciei ao que os médicos me propunham,
tive reacções de grande dramatismo, alguns médicos deram-me um ano e outros
quase me enviaram directamente para o cemitério. Recorri a um centro para ter
ajuda psicológica e algum suporte médico. Uma das primeiras coisas que ouvi
tinha a ver com a soberania em relação à minha saúde, eles aceitaram
acompanhar-me. Disseram-me para voltar dali a uns seis meses para fazer
exames e ver qual era a evolução. Alarguei mais o prazo, não estava preparada
para uma frustração e sentia que tinha havido uma mudança nos nódulos e que
tinham diminuído. Não me importava se eram dois ou três milímetros. Só vim ao
fim de uns oito meses. A radiologista ficou muito surpreendida, pois não
encontrava nada na ecografia. Ao princípio não me felicitou e disse-me que
devia ter feito algo diferente… não sabia se na homeopatia se na macrobiótica.
Disse-lhe que estava a fazer macrobiótica. Disse-me para ir para casa
tranquilamente, que não tinha nada… Disse-me para fazer uma ressonância
magnética e disse-me que, dos sete nódulos, quatro tinham desaparecido, não
havia nenhum rasto, e três tinham diminuído consideravelmente de tamanho.
Saí, pulei, fui para o monte e soltei toda a tensão acumulada
(…) Comparei as ressonâncias de um e outro período e estavam muito
diferentes (…) Em Março passado fiz exames e na ressonância magnética não se
encontrava nada. Os médicos perguntaram-me o que tomava, se era algum
tratamento hormonal e adoptaram uma outra postura comigo.
Necessitei de me agarrar a alguém para seguir este caminho. Acho que a
dieta é fundamental, mas também é necessário ver a enfermidade como o
caminho da salvação. Em um ano vi-me livre de sete nódulos, quando queriam
mastectomizar-me. A componente emocional da enfermidade também é muito
importante.153 [Teresa]
Como vemos, este caso representou uma tomada de decisão difícil. Constituiu
uma desobediência à recomendação que havia sido feita pelo médico. Nestas ocasiões, a
pressão de familiares e amigos sobre estas decisões costumam pesar, dado o receios
relativamente a opções sobre as quais não se encontram informados e cuja eficácia não
se encontra devidamente comprovada. Alguns dos doentes que se vêm nestas
circunstâncias, como Teresa, referem a importância de poderem contar com apoio
médico apesar das suas opções. O que estes indivíduos procuram, e de acordo com a
situação em que se encontram, é uma solução conjugada e consentida entre diferentes
sistemas terapêuticos. Para compreender estas opções tem de ser tomado em
consideração o tipo de representações que estes indivíduos fazem sobre a doença e os
modos de a tratar. Se a tomam como uma aprendizagem espiritual ou um «caminho para
a salvação» e se dão importância ao modo como «sentem» que deve ser feito o processo
153
Tradução livre a partir do castelhano.
294
Sistemas terapêuticos em confronto
terapêutico, as suas opções, mais à margem do poder biomédico, são as únicas a que
podem atribuir um significado positivo, aspecto importante num processo de cura.
Vejamos um outro caso, relatado por uma mulher que frequentou o Curso
Curricular de Macrobiótica do IMP e cuja descrição de uma situação de doença dizia
respeito à sua filha que pretendia ajudar através da macrobiótica
295
«À Mesa com o Universo»
(…) Da parte da família por vezes sinto alguma pressão porque têm receio de
que a situação piore caso não haja intervenção cirúrgica.154
[Marta, espanhola, reformada, 60 anos]
Este caso foi tornado público e aparece contado na primeira pessoa por Raquel,
encontra-se disponível num sítio da internet que entretanto Raquel criou para apresentar
e divulgar a macrobiótica. 155 Não tive oportunidade de a conhecer, mas o seu relato dá
bem conta de uma forma de tratamento em que se procura uma solução que não aquela
inicialmente apontada pelo médico. Face à ausência de efeito de muitos dos
medicamentos que tomara inicialmente e insatisfeita com o diagnóstico dos primeiros
médicos que consultara, procura outros e decide começar a experimentar outras vias,
que não a medicina convencional, com a ajuda da mãe. Esta ajuda seria, na verdade,
preciosa, dado o relato de sucesso que Raquel nos conta. Raquel ainda não resolveu
totalmente o seu problema, mas encontra-se melhor e não retirou o timo. Como ela
própria reconhece, não é um sucesso que apenas se fique a dever à macrobiótica, mas a
uma conjugação de vários contributos que foram importantes: o último médico que
consultou e que a apoiou na sua decisão de continuar a utilizar formas complementares
de tratamento; os fármacos que se encontram disponíveis; a acupunctura; a meditação,
as visualizações positivas; as massagens e as modificações no estilo de vida
(cf.testemunho no referido site). Neste caso, foi através de uma estreita articulação entre
diferentes tipos de tratamento que terá sido desencadeado o processo que a levou a
melhorar a sua condição. É importante notar, tendo em conta a relevância das decisões
individuais, que essa combinação terapêutica foi, em grande medida, definida por ela
com a ajuda de sua mãe. Não se colocando fora da alçada da medicina convencional,
Raquel seleccionou nela aquilo que poderia ser importante para se tratar. A
possibilidade de poder contar com o apoio do médico neste tipo de tratamento foi
fundamental. Como se pode facilmente depreender, esta solução conjugada é onerosa e
exige uma grande disponibilidade em termos de tempo. Recorrer a terapêuticas não
convencionais de forma tão regular como Raquel o fazia não se encontra ao alcance de
todos. Por outro lado, no conjunto de terapêuticas a que recorreu para se tratar, é difícil
perceber o peso específico de cada um destes contributos, mas é destacada de forma
particular a importância da alimentação. Depois de ter sentido uma dificuldade inicial
em alterar a sua alimentação habitual para a alimentação macrobiótica, diz-nos Raquel:
154
Tradução livre a partir do castelhano.
155
Aprendiendo Macrobiótica http://aprendiendo-macrobiotica.blogspot.com/2007/11/presentacin.html
[Acesso em 21-12-11]
296
Sistemas terapêuticos em confronto
O meu corpo tornou-se mais sensível a tudo, comecei a ser mais intuitiva e a
sentir os efeitos energéticos dos alimentos e dos estilos de cozinhar. Que
descoberta incrível! Dou um exemplo: antes de praticar esta dieta nunca comia
raízes de vegetais, quando comecei a sentir os seus efeitos, senti que me
concentrava com mais facilidade, que ficava mais capaz de me organizar e de
me focar em como melhorar a minha saúde, sentia-me mais enraizada na vida e
na natureza. Isto que senti através da minha experiência, li mais tarde em livros
sobre macrobiótica, tinha a ver com as qualidades energéticas das raízes! Sinto
muita gratidão por tudo isto.156
[Raquel, Professora de Informática, 36 anos]
Detecta-se neste relato, como nos anteriores, a importância dada à intuição. Esta é uma
característica a que se dá importância na macrobiótica e que é relacionada com a
natureza espiritual dos humanos. Ser mais intuitivo seria uma forma de evidenciar essa
espiritualidade, sendo esta uma qualidade passível de ser apurada também, por exemplo,
pela alimentação. É ainda dada atenção às qualidades energéticas dos alimentos, uma
energia interpretada de acordo com as categorias yin/yang e com a Teoria dos cinco
elementos. As raízes costumam ser apontadas como contendo uma energia de
concentração dado o facto de se desenvolverem no interior da terra, serem mais
contraídas e, por isso, mais yang. A importância que Raquel atribui à alimentação pode
também ser percebida quando nos diz:
156
Tradução livre.Ver Aprendiendo Macrobiótica
http://aprendiendomacrobiotica.blogspot.com/2009/07/raquel-vida-actual-y-tratamientos.html [Acesso em
21-12-11]
297
«À Mesa com o Universo»
Este caso, que não se reveste da mesma gravidade do anterior, e que se terá resolvido
sem que fosse necessário recorrer a algum apoio no âmbito da biomedicina, exemplifica
o modo como algumas pessoas vão resolvendo os seus problemas através da
macrobiótica. Porém, como já se viu, nem sempre é exclusivamente por esta via que se
encontram as soluções e nem sequer todas as doenças são tratáveis através da
macrobiótica, como Ohsawa chegou a pensar. Ainda assim, há casos efectivos de
pessoas que se curaram através da macrobiótica, muito embora tais casos não pareçam
suficientes para que esta prática seja reconhecida enquanto sistema terapêutico, pelo
menos externamente. Também a forma de apresentação e divulgação da macrobiótica
leva a crer que necessita da legitimação da ciência para adquirir maior reconhecimento.
298
Sistemas terapêuticos em confronto
157
Processo Promoção e Protecção 298/04.5 TMCBR.
158
Abordei noutro lugar a questão da vacinação entre os indivíduos que adoptaram a macrobiótica
(Calado, 2011).
159
É de notar, desde já, que esta acusação parte de argumentos que não correspondem à verdade. Em
Portugal não é obrigatória a vacinação nem a comparência em consultas médicas como forma de
prevenção de doenças. Muito embora, em termos institucionais, se aja em relação à vacinação como se
esta fosse obrigatória, ela não o é efectivamente (cf. Cunha e Durand, 2011).
299
«À Mesa com o Universo»
É bem visível nesta afirmação a forma abusiva como todo o processo foi conduzido,
evidenciando-se claramente que as situações menos integradas podem conhecer
desfechos trágicos. É ainda o relator do exame clínico, numa linguagem que é
claramente a da apropriação da vida pelo Estado, quem escreve:
Seria ainda Fernando que frisaria a forma abusiva como sentira a invasão do estado na
sua vida;
Tirar os meus filhos da Escola foi uma decisão difícil. A pressão é enorme de
todos os lados. Somos discriminados. Isto é uma questão de poder. O Poder tem
sempre razão”.
“A Escola é obrigatória porque é a expressão da vontade do Estado, que, por
sua vez, é a vontade do Povo, quer dizer, da Maioria. Se a Escola não fosse
obrigatória, nada disto tinha acontecido comigo. Mas o Poder está em
discriminar quem não cumpre as normas impostas pela Maioria”. Tirei os meus
filhos da Escola por uma questão ideológica relacionada com as vacinas e a
alimentação, coisa que eu entendo não ser conveniente em termos sociais. Mas
em termos de base, eu até estava certo porque não podem obrigar os meus filhos
a vacinar-se. Eu sigo a Medicina Natural, trabalho com produtos naturais, não
era de esperar que eu aceitasse facilmente uma coisa dessas [sublinhado no
processo] (Processo Judicial: 420)
Como pode ser constatado, se a desobediência à norma foi, em algumas das situações
apresentadas, uma saída feliz para uma situação difícil, neste caso específico, em
virtude de vicissitudes diversas, tal não aconteceu, sendo assim um bom exemplo de
exercício autoritário do poder estatal sobre a vida.
300
Sistemas terapêuticos em confronto
Também neste caso, pelo menos por parte da mãe, houve uma situação de
doença que a conduziu à adopção da macrobiótica:
A macrobiótica começou para mim quando eu era pequena. Por volta dos 6-7
anos foi-me diagnosticada uma epilepsia e a minha mãe, ao fim de muitos
tratamentos sem solução, optou por mudar para uma alimentação macrobiótica
e a partir daí nunca mais tive problema nenhum. A macrobiótica implica não
tomar medicamentos nem fazer vacinas. Não implica não ir à Escola; o
problema é que ir à Escola implica vacinas. [sublinhado pelo relator] Vacinas só
em caso de epidemia ou de risco grave, agora como estão a ser feitas, em bebés,
é que eu não acho correcto. (Processo Judicial: 415)
(…) tudo começou na Tropa (na Marinha), sob a influência de um colega seu
conterrâneo, que lhe pôs nas mãos um livro sobre a Macrobiótica. Aderiu de
imediato àquela filosofia e levou muito à risca os seus ensinamentos, a ponto de
passar dias e dias, durante várias semanas, a comer só arroz. (Processo
Judicial: 414).
Circunstância que terá levado a que apurasse uma sensibilidade e intuição que dantes
não lhe eram conhecidas. Um dos intervenientes neste processo afirma:
(…) [terá] adquirido poderes especiais, pois que, por mais de uma vez, lhe
demonstrou saber de factos pessoais íntimos seus que nunca lhe havia
confidenciado nem tinha possibilidade de saber por meios normais. E que, além
disso, parecia ficar de repente possuidor de conhecimentos e capacidades que
não tinha antes. (Processo judicial: 414)
A menção que é feita a este aspecto merece uma nota, já que, também em relatos
anteriores (Teresa, Marta), e junto de outros indivíduos por mim contactados, é
atribuída importância a “forças ocultas”, “sinais”, “mensagens” “intuições” que
poderiam ser melhor captadas se se apurasse a intuição, sendo esta competência vista
como podendo ser aprimorada com a alimentação. A forma como Fernando é descrito
pelo relator do exame psiquiátrico revela a impressão que o mesmo causou.
301
«À Mesa com o Universo»
302
Sistemas terapêuticos em confronto
160
A possibilidade de observar estas consultas e de estar nelas como assistente decorreu do facto de ter
frequentado o curso curricular de macrobiótica do Instituto Macrobiótico de Portugal.
303
«À Mesa com o Universo»
304
Sistemas terapêuticos em confronto
apresentavam (caso ela tivesse sido detectada) e questões relativas ao estado de saúde.
Para além disso, anotava as recomendações que iam sendo feitas e que no final da
consulta seriam impressas e entregues aos consultados para que estes facilmente
pudessem relembrar as recomendações que lhes eram feitas. Este documento, entregue no
final da consulta, incluía um conjunto de orientações gerais relativas à alimentação e ao
estilo de vida, um conjunto de recomendações específicas, bem como elementos de
contacto do assistente.
Cada uma das consultas foi ocasião para serem trocadas palavras circunstanciais,
mas também para revelar aspectos íntimos da vida pessoal, medos e obsessões de alguns
dos consultados. De intensidade variável do ponto de vista emocional, o encontro
terapêutico procurava conduzir o consulente a uma reflexão sobre o seu modo de vida,
alterações a efectuar e, por vezes, ao encarar da hipótese de definição de novos projectos
de vida. Foi esse o caso de uma jovem mulher, operária numa fábrica de produção de
acessórios para automóveis, onde trabalhava por turnos e que apresentava uma doença
pouco comum (doença de Behçet). O facto de trabalhar com frequência em regime
nocturno e de se obrigar a sucessivos ajustamentos do ponto de vista biológico, de acordo
com a variação de turnos, foi visto como aspecto que não a beneficiava no tratamento da
doença, devendo tal prática ser modificada. O consultor sugeriu-lhe mesmo que mudasse
de profissão, caso não conseguisse um horário de trabalho mais adequado. Confrontados
com doenças de que tinham tido recentemente conhecimento, ou com retrocessos noutras
que procuravam encarar de forma positiva, os consulentes traziam assim para a consulta
alguns dos aspectos mais dramáticos da vida humana, justamente esses que os
confrontam com a doença e por vezes a iminência da morte.
Os dados sociográficos que pude recolher ao longo das 50 consultas resultaram
em grande medida da informação que constava das fichas individuais de consulta.
Algumas ressalvas devem, contudo, ser feitas antes de apresentar esses dados. Alguns
aspectos concretos, como a profissão, nem sempre puderam ser por mim bem
esclarecidos, dado que não estava previsto interagir com o paciente. Por exemplo, nas
situações em que os consultados se apresentavam como reformados, nem sempre
referiam a actividade a que se tinham dedicado, acabando assim por se criar uma certa
homogeneidade neste grupo que, evidentemente, não corresponde à realidade. As
diferenças neste grupo, em termos de pertença social, puderam, todavia, ser detectadas
através da própria situação de interacção ocorrida no consultório. Aspectos como a
verbalização de alguns elementos relativos à actividade profissional, aparência,
305
«À Mesa com o Universo»
4 15 19 11 1 50
É entre os 41 e os 60 anos que se situa a maior parte dos indivíduos (19). Podendo
constatar-se assim que o recurso a este tipo de consulta foi feito sobretudo por pessoas de
meia-idade (essencialmente mulheres). Nestas consultas, como por certo noutras, a idade
é sem dúvida um factor significativo, já que os problemas de saúde tendem, naturalmente,
a agravar-se com os anos, crescendo assim a probabilidade de pessoas com idade superior
a 40 anos acorrerem mais a este tipo de consultas. Convém notar, contudo, que um
número significativo de consultados (15) se situa entre os 21 e 40 anos, o que revela bom
acolhimento desta proposta terapêutica entre camadas mais jovens, sugerindo que o
306
Sistemas terapêuticos em confronto
interesse pela macrobiótica não se verifica apenas entre aqueles que têm mais idade, mas
também entre os mais jovens161.
Relativamente à área de residência dos consultados é de salientar que a maioria
(30) reside em Lisboa e na Grande Lisboa. Tal justificar-se-á pelo facto de o consultório
se situar nesta cidade, pois o critério da proximidade e facilidade de contacto não pode
deixar de ser aqui relevante. O facto de aqui se encontrar mais disponível informação
relativamente ao tipo de abordagem proposto pela macrobiótica é também um aspecto
que julgo ser relevante. Apesar do maior peso nas consultas de indivíduos que residem
em Lisboa ou grande Lisboa, é, ainda assim, significativa a presença no consultório de
pessoas provenientes de outras zonas:
Efectivamente, o peso dos que vêm de outras áreas que não Lisboa ou Grande Lisboa é
relevante – 20 indivíduos. A distribuição dos consulentes pelo resto do país apresenta
alguma expressão na região centro, sobretudo Coimbra e Leiria (12), pouco significado
no Norte (3) e nenhum no sul. Aspecto significativo é o facto de seis dos pacientes
residirem no estrangeiro, dois na Alemanha, um no Brasil e três em Espanha. Os que
residem na Alemanha são portugueses aí a trabalhar, mas, nos outros casos, trata-se
efectivamente de estrangeiros que procuram estas consultas para resolver problemas
pessoais. O facto de serem os espanhóis aqueles que em maior número se apresentaram
nestas consultas, deve-se tanto à proximidade geográfica, com facilidade nas deslocações,
quanto a uma certa falta de oferta de consultas deste tipo em Espanha - pelo menos de
consultas consideradas de qualidade 162. Por outro lado, o facto de haver contactos
frequentes entre as escolas espanholas de macrobiótica e o IMP, facilita este contacto. É
também frequente a deslocação de alguns professores portugueses de macrobiótica a
161
Este dado é, de resto, congruente com dados relativos aos alunos que frequentam os cursos de
macrobiótica no IMP. Também aí é possível observar um significativo número de pessoas com idade
inferior a 30 anos.
162
Pude ouvir esta opinião relativamente às consultas a alguns alunos espanhóis que frequentaram o curso
curricular de macrobiótica em 2008.
307
«À Mesa com o Universo»
Espanha, o que evidencia recepção positiva aos mesmos e, possivelmente, uma menor
expressão da macrobiótica em Espanha por relação a Portugal, pelo menos no que diz
respeito à formação. Os casos de sucesso na superação de certas doenças verificados em
Espanha e que se tornaram conhecidos por aqueles que se interessaram pela macrobiótica,
funcionaram também como estímulo para que outros vissem na macrobiótica uma
possibilidade de resolução dos seus problemas.
Um outro dado a salientar tem a ver com a origem urbana da maioria dos
inquiridos. Apenas dois dos consulentes revelavam relação com o mundo rural e, mesmo
nestes casos, tratava-se de indivíduos que mantinham actividades fora desse contexto163.
Relativamente às profissões dos consulentes é possível observar uma predominância
numa área que inclui as profissões científicas técnicas e artísticas.
163
Refiro-me aqui ao mundo rural num sentido muito tradicional do termo, justamente aquele que tem a
ver com uma ligação forte à agricultura e organização do quotidiano em função das actividades agrícolas.
É evidente que as transformações ocorridas no mundo rural nos últimos tempos desfiguraram
completamente a imagem de dependência da agricultura. Os novos modos de vida nestes contextos
articulam ainda várias actividades, sendo a agricultura uma fonte de rendimentos secundária.
308
Sistemas terapêuticos em confronto
309
«À Mesa com o Universo»
sobretudo, à área dos serviços. O número de reformados é também muito significativo. 164
Entre os 10 reformados que se apresentaram no consultório, pelo menos três haviam
exercido profissões que podemos incluir na categoria 2 (Especialistas das Actividades
Intelectuais e Científicas), designadamente, professora e jornalista, músico e funcionário
de embaixada na área da cultura.
Se para muitos dos que vêm à consulta a macrobiótica já é uma prática conhecida,
vista como podendo proporcionar alguns benefícios em termos de saúde, para outros a
consulta constitui uma revelação relativamente a novos produtos alimentares, receitas e
técnicas para os confeccionar. Dos 50 indivíduos que vieram às consultas, 27 já
conheciam a macrobiótica e tinham tido algum tipo de contacto com esta prática
alimentar, tendo sido de sua própria iniciativa a decisão de recorrer a este tipo de
consulta. Quanto aos restantes (23), ainda assim um valor bastante expressivo, vieram
porque foram aconselhados por pessoa conhecida ou, nos casos de menores, porque
foram trazidos pelos pais. Constata-se, portanto, que é muito significativa a influência de
pessoas próximas na tomada de decisão de recorrer a um consultor na área da
macrobiótica. Este facto não é uma novidade, já que, relativamente a outro tipo de
consultas este tipo de indicação ocorre frequentemente. Julgamos importante sublinhar,
de acordo com estes dados, que o recurso à consulta de macrobiótica é feito por um
número significativo de pessoas com poucos ou nenhuns conhecimentos nesta área. Este
aspecto, tendo em consideração o valor monetário relativamente avultado da consulta
(cerca de 100€ em 2008), evidencia disponibilidade mental para ouvir, e, em alguns
casos, seguir uma proposta terapêutica bem distinta das abordagens mais convencionais.
Das 50 pessoas que vieram à consulta, 21 revelaram ter já muitos conhecimentos
na área da macrobiótica, dado que já seguiam o regime alimentar a ela associado e, em
alguns casos, tinham vindo a consultas anteriores. Outros 17 consulentes revelavam
também alguns conhecimentos na área da macrobiótica, mas desconhecimento
relativamente a certos produtos específicos. Por outro lado, 12 dos consulentes não
tinham qualquer tipo de conhecimento relativamente à macrobiótica, sendo para eles as
indicações dadas no consultório de carácter inteiramente novo.
Os motivos que trouxeram estes indivíduos ao consultório foram extremamente
variados. Dos distúrbios apresentados há a destacar os cancros (curados e sob vigilância
164
Como referi atrás, nem sempre foi possível registar as profissões desempenhadas anteriormente pelas
pessoas deste grupo. Desta forma, as diferenças entre elas foram essencialmente detectadas a partir da
situação de interacção e de verbalizações relativamente a actividades exercidas
310
Sistemas terapêuticos em confronto
Problemas apresentados
Cancros 11
Problemas digestivos 10
Problemas renais e de tensão arterial 6
Cansaço, falta de energia 5
Problemas de ossos e coluna 4
Doenças auto-imunes 3
Peso em excesso 2
Problemas ginecológicos 2
Problemas dermatológicos 1
Problemas de sangue 1
Problemas na tiróide 1
Problemas cardio-vasculares 1
Inespecífica 3
Esta é pois uma primeira caracterização que podemos fazer do conjunto de indivíduos
que se dirigiram a esta consulta e que ajuda a enquadrar os dados relativos ao encontro
entre consultor e consulente.
311
«À Mesa com o Universo»
como ocorria no modelo funcionalista (Bury, 1997), mas como alguém que tem nas suas
próprias mãos o processo de cura e a quem se pede explicitamente uma atitude activa,
uma atitude que pode significar uma mudança no estilo de vida.
O tipo de interacção que ocorre no consultório decorre sobretudo de aspectos
verbais e não-verbais da dimensão comunicacional. A abertura face ao outro, quer da
parte do consultor quer do consulente, parece ser condição indispensável na definição de
um processo de tratamento, um processo que exige alguma negociação e o reequacionar
de diversos aspectos relativos ao estilo de vida. Foi possível detectar que havia por parte
do consultor uma notável capacidade para perceber se as pessoas iriam ou não ser
capazes de introduzir mudanças nas suas vidas. Um exemplo do que se afirma pode ser
dado pelo caso de um homem, próximo da idade de reforma, que viera ao consultório
acompanhado da mulher por motivos que tinham a ver com a pressão arterial. Pelo
diálogo estabelecido e pelo tipo de reacção da mulher face a sugestões nas mudanças
alimentares, facilmente se percebeu que iria ser difícil produzir alterações significativas,
pois era a mulher que iria fazer as compras e cozinhar. A fraca receptividade demonstrada
pela mulher denunciava, desde logo, uma dificuldade acrescida de seguir uma
alimentação de orientação macrobiótica. De acordo com a percepção das circunstâncias
que envolviam diferentes indivíduos, o consultor procurava então adaptar as orientações a
diferentes casos, procurando observar as alterações que as pessoas podiam efectuar. A
ideia de uma alteração radical dos hábitos alimentares nem sempre foi sugerida,
promovendo-se antes uma mudança gradual e que criasse menos ansiedade. Como
vemos, a busca de níveis de entendimento é procurada pelo consultor, mas é necessária
também alguma motivação e receptividade por parte dos consultados. Receptividade para
acolher novas linguagens, novos campos semânticos, e motivação para alterar gestos do
quotidiano.
Dimensão relevante no processo comunicacional é a forma como a palavra é aí
gerida. É possível verificar que nos minutos iniciais é estabelecido um pequeno diálogo
entre consultor e consulente, destinado à apresentação e em que são abordadas questões
do quotidiano que são meramente introdutórias, nada têm a ver com os problemas que
motivaram a consulta (locais de residência, trabalho, eventuais amigos em comum, etc.),
mas que são importantes, na medida em que desencadeiam envolvimento emocional e
aproximam consulente e consultor. O uso da palavra, por não estar ainda centrado em
nenhum dos interlocutores, aumenta a empatia, de tal forma que aquele que acorre à
consulta se sente mais familiarizado, não só com o terapeuta, mas também com o
312
Sistemas terapêuticos em confronto
313
«À Mesa com o Universo»
frequentes os casos de pessoas que não seguem as recomendações que lhes são dadas, tal
como me foi referido pelo consultor, estas são sempre ouvidas com atenção.
O modelo de relação consultor/consulente que aqui se encontra não é um modelo
fundado numa autoridade em termos de conhecimentos científicos; a autoridade do
consultor advém, sobretudo, da sua experiência e dos muitos casos de sucesso no
tratamento de doenças que não foi possível sanar através da medicina convencional. Por
outro lado, neste modelo de relação o consulente não é encarado apenas do ponto de vista
biológico, mas tendo em consideração aspectos psíquicos e sociais. Procura fundar-se na
confiança, franqueza e sinceridade, de forma a criar uma relação mais humanizada do que
aquela que é possível encontrar em muitos consultórios médicos. A relação procurada,
ainda que não seja decalcada de um modelo teórico a seguir, vai assim de encontro a
alguns dos aspectos defendidos por vários autores que aspiram a um modelo do encontro
terapêutico mais humanizado (Cassel,1991; Hahn,1995). Idealmente deve derivar mais de
uma intensa interacção e processo de negociação do que da imposição de um tratamento
(Goffman, 1971). Não sendo autoritária, a relação consultor/consulente identifica-se
pouco, como referi, com o modelo proposto por Parsons (1951), modelo onde o carácter
assimétrico da relação era um dos aspectos mais significativos e estava na base da
obtenção de um consenso capaz de reabilitar o doente para o sistema social. O que
encontramos é uma solução que parece resultar da interacção e da negociação, mas onde
a persuasão e os argumentos utilizados procuram atribuir uma posição de força aos
tratamentos preconizados pela macrobiótica, assentes sobretudo na alimentação, em
detrimento dos tratamentos propostos pela biomedicina que são desvalorizados, ainda que
por vezes sejam considerados inevitáveis. Assim, embora a solução encontrada resulte da
interacção e da negociação, não deixa de salientar, de forma subtil, a autoridade da
proposta macrobiótica em relação a outras formas de tratamento, como se houvesse um
campo ideológico a defender. No aconselhamento não se procura esperançar os pacientes
para o tratamento de doenças que se sabe, à partida, não terem cura. Faz-se referência,
isso sim, a indivíduos com problemas semelhantes que conseguiram melhorar, ou seja,
projectando de forma subtil a possibilidade de cura ao paciente que se encontra no
consultório. De facto, o exemplo de outros casos, tantas vezes evocado, possui um efeito
retórico notável e deixa no paciente a ideia de que se outros se puderam curar, esse pode
também ser o seu caso.
Os indivíduos que aparecem no consultório evidenciam, de uma forma geral,
uma atitude activa no tratamento das suas doenças, não se cingindo apenas às
314
Sistemas terapêuticos em confronto
prescrições médicas que lhe são apresentadas, antes procurando outras soluções.
Tomam o corpo como território para decisões individuais (decisões condicionada,
evidentemente, por informação diversa) e não se satisfazem com a orientação dada pela
medicina convencional. Surgem como agentes que se vêem como responsáveis pela sua
própria saúde, não se sujeitando acriticamente às prescrições médicas. Por vezes
ignoram mesmo essas prescrições médicas ou conjugam-nas com outras vias
terapêuticas que consideram adequadas para resolver os seus problemas.
No consultório, ainda que com frequência sejam desenvolvidas críticas à
biomedicina e às suas propostas mais invasivas, bem como ao recurso excessivo a
medicamentos, são frequentemente levados em conta os meios de diagnóstico a ela
associados, bem como algumas das suas prescrições em termos de tratamento. Verifica-
se uma certa fluidez em termos de abordagem do corpo, que leva a que a biomedicina
possa ser integrada nas respostas dadas pela macrobiótica. O caso de Francisca (nome
fictício), reformada, com 67 anos, é ilustrativo do que se afirma. Conhecia o consultor
desde os seus 40 anos e acreditava nele porque há muitos anos tinha tido problemas de
saúde que não conseguira resolver com a medicina convencional mas que superara com
a ajuda da macrobiótica. Vinha agora ao consultório porque dizia ter uma infecção
pulmonar que não passava, “andando sempre com catarro”. Queixava-se também de
flacidez na pele, dizendo que “a sua pele estava a cair aos bocados”, bem como de
problemas nas suas relações familiares. Pelo que me foi referido pelo consultor,
posteriormente, tratava-se de uma mulher que tinha sido muito atraente e que não estaria
a aceitar bem o envelhecimento. O seu estado era de desequilíbrio, tendo trazido
relatório médico em que era classificada pelo psiquiatra como portadora de doença
bipolar. Não reconhecia, no entanto, a origem psíquica dos seus problemas, centrando-
se no detalhe minucioso de incómodos físicos diversos. A orientação que pretendia era
sobretudo para esses incómodos, não dando importância alguma ao tratamento de
aspectos psicológicos. Foi-lhe então recomendado que seguisse a alimentação
macrobiótica padrão, bem como algumas recomendações específicas, que incluíam
tomar os medicamentos receitados pelo médico e beber um copo de vinho de vez em
quando para descontrair. Como é bom de ver, estas não são as recomendações que mais
esperaríamos num consultor de macrobiótica, mas são um bom exemplo de como se
procuram soluções conjugadas e de que nem sempre são desprezadas as orientações
dadas por médicos convencionais. Para certas situações elas são mesmo a melhor
solução.
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tratamento que o SNS lhe oferece, acredita na possibilidade de vencer a doença através
de outros recursos. Estimulada pelos casos de cura de que ouviu falar a alguns dos
praticantes de macrobiótica e em que não houve recurso a tratamentos como a
radioterapia e a quimioterapia, decide-se por seguir a macrobiótica. A sua opção não é
fácil e refere a dificuldade que sentiu no centro de saúde a que se dirigiu para pedir uma
baixa médica. A doença deixava-a muito debilitada, pelo que não se sentia capaz de
trabalhar e teve, por este motivo, que se dirigir ao centro de saúde para pedir ao seu
médico de família um atestado médico que lhe permitisse faltar ao trabalho e assim
descansar. A sua médica de família acabou por tomar conhecimento dos resultados de
exames que efectuara e ficou alarmada com o facto de Julieta ainda não se encontrar em
tratamento com os resultados que apresentava, tendo mesmo ponderado a possibilidade
de a enviar para o Instituto Português de Oncologia. Considerando uma loucura a
negação do tratamento habitual, contactou mesmo o ex-marido para o colocar a par da
situação, já que era a única pessoa mais próxima de quem tinha o contacto.
Julieta, que não revelara as suas decisões em termos de tratamento, por saber que
não iriam ser bem interpretadas, vira-se assim numa situação em que se sentia alvo de
reprimendas médicas e sem alternativa que lhe permitisse justificar as faltas ao trabalho.
Esta é, pois, uma situação em que a paciente sentiu que havia, por parte do médico, uma
dificuldade em acolher a sua decisão relativa doença, e que, por isso, implicou a
omissão do tipo de tratamento por onde pretendia enveredar. Este caso coloca também
em discussão a questão da soberania sobre o corpo, evidenciando o quanto esta questão
pode ser melindrosa quando atitudes diversas face à doença se confrontam.
Relativamente a este caso, não é possível sequer analisar a reacção do médico face a um
tratamento no âmbito da macrobiótica, porque tal nem chegou a ser revelado, com
receio de que essa via fosse ridicularizada e tida como ineficaz. Conhece-se apenas a
forma alarmada como o médico reagiu face à suposta passividade da paciente perante a
doença. Uma reacção compreensível dado o conhecimento da médica sobre a doença e a
sua possível evolução e dados os imperativos de carácter deontológico que
possivelmente a guiavam.
Uma falta de abertura perante outras vias de tratamento foi assim detectada por
Julieta, que lamenta que apenas os serviços médicos convencionais possam atestar o
estado de doença dos indivíduos. Este facto sugere, na sua opinião, desrespeito por
decisões individuais e beliscaria concepções como as da soberania do indivíduo sobre o
seu corpo. Deparamo-nos aqui com procedimentos específicos, suportados pelo Estado,
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«À Mesa com o Universo»
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de erosão feito em torno daquele que é o sistema hegemónico, e pode constituir, como
tenho vindo a afirmar, um input para a sua transformação.
Julieta seguiu um conjunto de recomendações alimentares que passaram numa
fase inicial, pela supressão de óleo/azeite (é de referir que no caso de cancro de mama e
também de outros tipos de cancro os óleos são vistos como factor de disseminação das
células cancerosas), em busca de um tipo de alimentação que não contribuísse para
nutrir este tipo de células e que reforçasse o sistema imunitário. A perspectiva sobre o
cancro na macrobiótica é a de que é possível diminuir o número de células cancerosas
se forem eliminados os produtos que mais as nutram, como os óleos e o açúcar. Ter
como referência a alimentação padrão macrobiótica é importante, mas mesmo dentro
desta há algumas restrições a fazer, como o consumo de leite de soja ou de tofu,
alimentos associados a uma maior produção de estrogénios, e que são vistos como
alimentos a evitar em casos de cancros sensíveis a estas hormonas.
Desde a última consulta que efectuara, os nódulos que tinha na mama tinham
reduzido para metade. Em contrapartida, apresentava uma ligeira anemia, para o que lhe
foi recomendado soba (massa feita a partir de trigo sarraceno) com shoyu (molho de
soja) e mochi (preparado feito a partir de arroz glutinoso socado). Para equilibrar o baço
foi-lhe ainda recomendado que ingerisse suco de couve e de cenoura. A alimentação
deveria ser, nesta fase, um pouco mais diversificada e elaborada, recorrendo a diferentes
técnicas culinárias. A actividade física e a actividade criativa foram também vistas
como muito importantes na superação da doença. Escutar o corpo e divertir-se, foram
algumas das recomendações feitas. O estado emocional é visto como sendo muito
importante no tratamento das doenças, tendo o consultor “receitado”, neste caso
concreto, que a paciente arranjasse um namorado. A zona do chakra do coração teria,
no seu entender, a ver com os afectos, pelo que era importante resolver problemas a este
nível. O recurso a conceitos ligados a outros sistemas conceptuais que não a
macrobiótica, como o de chakra (vórtice de energia vital), evidencia também a
permeabilidade a outras narrativas e conceptualizações sobre o corpo, ainda que os
elementos estruturadores do discurso sobre o corpo sejam basicamente outros.
Através do caso de Julieta, e também do que considerámos anteriormente, vemos
que a solução para os problemas é concertada e que a macrobiótica não dispensa sempre
os exames médicos. Sempre que estes são apresentados constituem uma importante
indicação para o tratamento a seguir e em alguns casos as pessoas continuam a tomar os
medicamentos que lhes foram receitados, ainda que diminuindo a quantidade dos
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mesmos. Foi esse o caso de uma rapariga de 15 anos, seguida há algum tempo no
consultório e que padecia da doença de Crohn. Embora não tivesse deixado a
medicação, assegurava, ter melhorado imenso com a alimentação macrobiótica.
Também um orquestrador, que tinha tido um aumento brutal do número de plaquetas no
sangue, conseguira a sua diminuição combinando a alimentação macrobiótica com a
medicação. No caso de Joana, 24 anos, professora de dança, a solução proposta seria
mesmo combinar uma prática alimentar macrobiótica com a hemodiálise. Descobrira,
acidentalmente, havia uma semana, que os seus rins não funcionavam bem. Ao medir a
tensão constatou que a mesma estava muito elevada (13/17), tendo-se dirigido para o
hospital, onde a tensão máxima subiria para 19. Ao fazer exames clínicos constatou-se
que os seus rins eram muito pequenos; não se tinham desenvolvido convenientemente,
pelo que teria que fazer hemodiálise até conseguir a doação de um rim. Os pais, que a
acompanhavam na consulta, estavam dispostos a tal, mas estavam também cientes de
que as práticas alimentares eram importantes. A mãe tivera contactos com a
macrobiótica na sua juventude e considerava-a importante no tratamento da filha, que
apenas temia ter que deixar de dançar.
Por estes breves exemplos podemos constatar que em várias situações é
necessária uma solução de conciliação entre diferentes sistemas de cura e que por vezes
não é possível deixar de recorrer às respostas da medicina convencional. Todavia, ainda
que se opte por fazer quimioterapia ou outros tipos de tratamento mais invasivos, a
adopção de uma prática alimentar macrobiótica costuma dar, segundo o consultor, bons
resultados. Foi esse o caso de António, reformado, 68 anos, com um cancro na garganta.
Fez quimioterapia mas também macrobiótica sob influência do filho. Antes de começar
com a alimentação macrobiótica tomava medicamentos para baixar os níveis de
colesterol, para a tensão e para o ácido úrico. Na altura da consulta a que pude assistir,
já não tomava nenhum desses medicamentos e o seu problema de cancro estava a
evoluir de forma muito positiva. Evidentemente que nem todos os casos terão este
sucesso, mas a verdade é que muitos dos que vieram ao consultório, e que seguiram as
orientações que lhes foram dadas, melhoraram bastante. Quanto àqueles que
apresentavam, especificamente, situações de cancro, conseguiram ver baixar de forma
significativa os valores relativos aos indicadores tumorais.
A interpretação que é feita aos resultados obtidos com a macrobiótica depende
muito do tipo de adesão do paciente a esta prática. Se as orientações dadas forem
seguidas com rigor – o que acontece em menos de metade dos casos dos que acorrem ao
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Considerações finais
Considerações Finais
Esta pesquisa procurou dar conta do processo social que levou à criação e
promoção de um produto social que tem vindo a adquirir uma expressividade crescente
na sociedade portuguesa: a macrobiótica. Que processo foi esse que permitiu que um
produto de clara inspiração japonesa transpusesse as fronteiras do lugar onde nasceu e
fosse adoptado e apropriado na Europa e na América, foi um dos aspectos que esta
pesquisa procurou esclarecer. Um dos pontos fundamentais deste trabalho prendeu-se,
assim, com a circulação e difusão de um produto, a macrobiótica, e o modo como ele foi
sendo promovido e incorporado no mundo ocidental - tanto no plano das representações
que o suportam quanto das práticas que gera. Múltiplos agentes concorreram para esse
processo, alguns enquanto ideólogos e divulgadores, outros como seguidores e
consumidores, outros ainda como observadores críticos.
Para que este processo pudesse verificar-se foi essencial a existência de uma
configuração histórica social e económica particular, a do período pós II Grande Guerra,
com o crescimento económico que se verificou por essa altura e com o retorno gradual a
um cosmopolitismo que a Grande Depressão suspendera. A ideologia do progresso, o
industrialismo e o materialismo que então imperavam, provocaram inevitáveis reacções
pessimistas a um modelo de desenvolvimento onde os indivíduos eram sobretudo
pensados a partir do que podiam consumir, onde o pensamento se tinha tornado,
também ele, numa mercadoria, sendo a linguagem perspectivada como mero
instrumento para a sua publicidade, pelo menos assim julgaram autores como
Horkheimer, Adorno e mais tarde Marcuse (cf. Tar, 1977). A reacção ao materialismo e
à tecnocracia, encarnada por alguns dos movimentos de finais dos anos 50, como a
«Beat Generation»; a atracção pelo Oriente e pelas «experiências espirituais», por parte
de alguns intelectuais e escritores, como Kerouac; os movimentos de contracultura que
teriam o seu auge na década de 1960; a consciência ecológica e o desejo de uma vida
em harmonia com a natureza, foram aspectos que contribuíram para a criação de um
ambiente social que favoreceu a introdução e disseminação da macrobiótica.
Nas críticas dirigidas à modernidade, ao progresso e ao industrialismo, aspectos
que tanto se afastavam do «viver em harmonia com a natureza», ia-se desenvolvendo
uma «consciência ecológica» que exigia outros estilos de vida e outros consumos. Neste
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Considerações finais
desregulação ligadas ao sector agro-industrial (cf. Gonçalves, 2007). Ainda que estas
crises específicas não tivessem sido conhecidas por Ohsawa, o fundador da
macrobiótica moderna alertava já para os perigos da industrialização excessiva dos
alimentos e para o modo como estes modificavam as suas qualidades energéticas (em
termos de yin e de yang) nesse processo. Actualmente é também esse espaço alimentar
de produção rápida e excessiva, de elevado processamento e refinamento dos alimentos,
que serve de mote à macrobiótica para desenvolver um discurso sobre o risco de
consumir certos alimentos. Julgo poder dizer-se que a sociedade da abundância
alimentar, com todas as suas vicissitudes e perplexidades, acabou assim por possibilitar
a afirmação da macrobiótica. Os riscos associados ao consumo de alimentos cuja forma
de produção se afastava de uma relação harmoniosa com a natureza, passaram a ser,
desta forma, um bom argumento a partir do qual esta proposta procurou afirmar a sua
visão do mundo e as vantagens de uma alimentação macrobiótica.
Uma cosmovisão particular, como aquela que é proposta pela macrobiótica,
surge impregnada de um conjunto de representações, crenças, ideias e valores que
acabam por orientar as atitudes face aos alimentos e face a um modo de entendimento
do mundo, consubstanciando, dessa forma, um quadro ideológico particular. A análise
das opções feitas no âmbito da prática da macrobiótica, exige, nessa medida, uma
ancoragem nesse recurso orientador das acções que é o fundo ideológico. Dito de outro
modo, é à luz de princípios específicos de orientação que foram divulgados por Ohsawa
e por Kushi, e que têm sido ampliados por diversos formadores no âmbito da
macrobiótica, que devemos procurar compreender práticas e representações. Desta
forma, e tal como foi referido, é compatível com esse quadro ideológico uma visão
holística do universo, em que todos os fenómenos são perspectivados como estando
conectados, afirmando-se um desejo de harmonização entre mundo social e mundo
natural, bem como uma crítica à modernidade, à ciência, ao progresso, à tecnocracia, ao
industrialismo e ao materialismo.
Apesar das incongruências que por vezes possamos observar entre a prática da
macrobiótica e estes princípios, eles são a matriz indispensável a partir do qual devem
ser compreendidas as escolhas em termos alimentares, em termos de cuidados de saúde
e até em termos de estilo de vida. Assim, a opção pelo consumo de produtos alimentares
produzidos em áreas próximas do contexto geográfico em que se reside, próprios da
estação, biológicos e pouco processados, as também por tratamentos supostamente mais
naturais e ainda por formas de viver que se julga serem mais expressivas da
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«À Mesa com o Universo»
“consciência ecológica”, como a decisão de construir uma casa com biomateriais (tal
como sucedeu com um casal com que contactei no âmbito deste projecto), devem ser
observadas à luz desse quadro ideológico particular.
A existência de uma visão do mundo, com um conjunto de princípios
orientadores que são comuns a diferentes sujeitos, facilmente nos conduz à ideia de
grupo, de comunidade ou até «novas tribos» como propõe Maffesoli (2000). As minhas
observações conduziram-me à ideia de que a experiência da macrobiótica cria um certo
nível de identidade entre estes indivíduos e permite a criação de redes, trocas de
conhecimento, grupos de afinidade e de interesses que ajudam a sustentar a própria
prática macrobiótica. Pelo facto de terem referências e experiências comuns, pelo
menos as ligadas a uma prática alimentar, estes indivíduos partilham também diversos
consumos, sendo assim possível detectar identidades a este nível. O mesmo se passa
noutros planos, como a frequência dos mesmos locais para fazer compras, a ida aos
mesmos restaurantes, a palestras, cursos de formação, campos de verão, programas
residenciais e até no mesmo consultório. O facto de ter desenvolvido trabalho de terreno
em Braga e Lisboa permitiu-me detectar a existência de uma rede de conhecimentos
pessoais estabelecida a partir da frequência de lugares como IMP ou aulas de yoga.
Uma rede que é facilmente suportada pela internet e pelos muitos blogues e sítios sobre
a macrobiótica que nela existem. Ainda que a ligação entre alguns dos indivíduos que
frequentaram os cursos do IMP possa ter sido intensa num determinado momento e
posteriormente se tenha diluído, apenas surgindo vagamente através de redes
informáticas, ela permanece como referencial de uma experiência comum que
aproximou indivíduos num determinado momento. Há assim diversos aspectos que
apontam para a ideia de comunidade, uma comunidade porosa, instável e aberta, é certo,
mas ainda assim comunidade.
Um outro elemento que me permite enfatizar a ideia de existência de uma
comunidade decorre ainda da minha experiência num encontro internacional de
professores e profissionais na área da macrobiótica em Novembro de 2008. Esse
encontro decorreria em Lisboa (IMP) ao longo de três intensivos dias e nele se
reuniriam cerca de 30 indivíduos de diversos países europeus e de diferentes estados dos
EUA para discutir “o movimento macrobiótico” e os rumos para a macrobiótica. A
referência regular que nesse encontro se fez ao “movimento macrobiótico”, pressupunha
a interiorização da ideia da existência de uma comunidade macrobiótica. Nesse encontro
foi possível observar entre os participantes o desenvolvimento de projectos
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Considerações finais
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«À Mesa com o Universo»
dos pressupostos em que ela se apoia. Resulta daqui a sugestão de que o “movimento
macrobiótico” é um movimento difuso, aberto, de livre adesão, que permite vários
níveis de participação. Para alguns dos que contactei e que fazem uma análise mais
profunda da questão, sobretudo formadores, a prática de uma alimentação macrobiótica
não é, contudo, suficiente para identificar um indivíduo como seguidor da macrobiótica.
Ao conduzir os indivíduos a novos hábitos alimentares, a macrobiótica contribui
para uma alteração no estilo de vida, tal como defendia Ossipow (1997), sendo essa
alteração particularmente visível nos consumos. Esta circunstância não significa,
contudo, que se observem sempre mudanças radicais. Muitos dos indivíduos por mim
contactados continuam a manter as suas profissões, os seus círculos de amigos e as
formas e ritmos de convívio. As minhas observações ao longo de três anos, enquanto
aluna de um curso de formação na área da macrobiótica, não me permitiram detectar
mudanças radicais generalizadas em termos de modo de vida. A maior parte desses
indivíduos manteve as suas profissões e, nessa medida, podemos dizer que manteve
uma parte significativa do seu modo de vida, dada a actual centralidade do trabalho na
estruturação do quotidiano e dos estilos de vida. Em todo o caso, deve ser salientado
que alguns indivíduos empreenderam mudanças significativas neste campo, tendo-se
concentrado em novas actividades profissionais. Para estes, a macrobiótica constituiu
um estímulo para transformarem as suas vidas e para arriscarem novas soluções, como,
por exemplo, a de iniciarem um negócio na área da macrobiótica. Foi esse o caso do
«Semente de Luz - Centro Macrobiótico de Braga», local onde se preparam refeições
macrobióticas, são dados cursos de cozinha, consultas de orientação alimentar e de
shiatsu. O discurso da responsabilidade individual em relação ao modo de vida que cada
um constrói para si, parece ter tido, junto dos que abraçaram novos projectos, uma
particular ressonância, resultando num poder emancipatório capaz de conduzir a novas
realizações.
Iniciei esta pesquisa sinalizando a importância de estudar as margens e concluo
reafirmando essa importância. O sentido que no decurso deste trabalho atribuí às
margens, foi o de áreas menos representativas da sociedade portuguesa e de expressão
residual. Perspectivei estas áreas considerando-as merecedoras de análise, porque
questionavam sistemas dominantes e ofereciam alternativas existenciais face a práticas
hegemónicas. De que modo se contribuía a partir das margens para uma transformação
na sociedade, foi um dos aspectos que guiou esta pesquisa. Pelo caminho percorrido,
considero ser relevante ter em conta o contributo dado pela macrobiótica para uma
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Considerações finais
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Considerações finais
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Considerações finais
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Apêndices
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Disponível em: http://www.michiokushi.org/honors.php [Acesso em 22-11-2011].
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Apêndices
190
Tabela elaborada a partir de documento similar fornecido no âmbito de um curso de cozinha
promovido pelo Instituto Macrobiótico de Portugal. Os alimentos são apresentados do mais yin para o
mais yang.
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Apêndices
Apêndice 3 - Glossário
Glossário191
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Apêndices
Miso: Pasta produzida com feijão de soja, sal e uma variedade de cereais, fermentada
com uma enzima especial.
Mochi: Um bolo feito a partir de arroz glutinoso socado.
Mugi Cha: Chá de cevada tostada
Mugi Miso: Miso produzido a partir de feijão de soja, cevada, sal e água. É envelhecido
durante 2 a 3 anos, sendo preferível que não seja pasteurizado.
Natto: Feijão de soja fermentado.
Natto Miso: Condimento picante, feito a partir de cevada, miso, malte de cevada e
gengibre.
Nishime: Estilo culinário em que os vegetais são cozinhados bastante tempo no vapor
com kombu e uma pequena quantidade de água.
Nori: Alga que depois de seca e processada se apresenta em folhas largas e finas ou. É
habitualmente utilizada no sushi.
Nuka: Farelo de arroz.
Ohagi: Arroz glutinoso socado e com a forma de bolas, que é envolvido com sementes,
oleaginosas ou condimentos.
Pasta De Umeboshi: Ameixa em pasta, utilizado para cozinhar e para molhos.
Prensa Para Pickles: Pequeno contentor de vidro ou outro material, com uma rosca
ajustável utilizado para fazer pickles ou salada prensada.
Raiz de Lótus: Raiz aquática com propriedades medicinais
Ramen: Massa chinesa
Sal Marinho: Sal produzido a partir de água do mar, rico em oligoelementos. É um sal
integral que não foi refinado e ao qual não foi adicionado qualquer produto químico.
Seitan: Gluten de trigo, cozinhado em água, shoyu; alga kombu e gengibre. É utilizado
como substituto de carne em sopas, pratos de vegetais, de leguminosas e de cereais. É
muito proteico.
Shitake: Um cogumelo japonês que costuma ser usado seco. Tem efeitos medicinais.
Shiso: Folhas das ameixas umeboshi. Podem-se comprar inteiras ou sob a forma de
condimento.
Shio-kombu: Condimento de alga kombu, água, shoyu e gengibre.
Shio-nori: Condimento de alga nori, água, molho de soja e gengibre.
Shoyu: Molho de soja produzido naturalmente, feito com feijão de soja, trigo, água e
sal. Fermentado naturalmente e envelhecido pelo menos 18 meses. Utilizado como
tempero.
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«À Mesa com o Universo»
Soba: Massas japonesas (do tipo da esparguete) feitas a partir de farinha de trigo-
sarraceno e farinha de trigo. C
Somen: Massas japonesas muito finas.
Steamer: Utensílio usado para cozinhar alimentos no vapor ou para aquecer comida já
confeccionada.
Suribachi: Utensílio de cerâmica com ranhuras que serve para esmagar alimentos,
cumprindo uma função idêntica à do almofariz.
Surikoji: Pilão de pedra.
Sushi Mar: Pequena esteira de bambu, utilizada para enrolar sushi e cobrir a comida
para a manter quente.
Tahin: Pasta pasta macia feita a partir de sementes de sésamo cruas e descascadas.
Takuan: Pickle de daikon.
Tamari: Molho de soja tradicional, feito segundo métodos naturais. O tamari original é
preparado durante o processo de fabricão do miso. O líquido que vem à superfície é
chamado de tamari.
Tawashi: Pequena escova utilizada para lavar os vegetais sem lhes estragar a pele.
Tekka: Condimento feito a partir de raízes salteadas e miso.
Tempeh: Produto à base de feijão soja. É tradicional da Indonésia. Feito com feijão de
soja partido, água e uma bactéria especial.
Tofu: Queijo de soja, produzido com feijão de soja, água e nigari (coagulante extraído
do sal marinho) ou sumo de limão.
Tofu Seco: Tofu que foi seco, tem uma cor beige e é muito leve.
Trigo Integral: Cereal em grão utilizado tradicionalmente em muitas partes da Europa.
Trigo Sarraceno: É também conhecido como «Trigo Mouro». Os seus grãos são
parecidos com os dos cereais. É consumido tradicionalmente sob a forma de kasha
(papa usada na cozinha russa ou polaca) ou massa soba no Japão.
Udon: Massa japonesa de trigo
Umeboshi: Pickles de ameixas pequenas salgadas. Tem propriedades medicinas e é
utilizado como tempero e condimento.
Vinagre De Arroz: Um vinagre fermentado naturalmente a partir do arroz integral e
usado como tempero e condimento.
Vinagre De Umeboshi: O liquido onde as umeboshi são envelhecidas.
Wakame: Alga de folhas grandes verdes que se utiliza em sopas, condimentos, saladas,
com vegetais, etc.
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Apêndices
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344
Bibliografia
Fontes e Bibliografia
Fontes Documentais
Arquivos do Instituto Macrobiótico de Portugal
Processo Judicial - Processo Promoção e Protecção 298/04.5 TMCBR.
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