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Universidade de Lisboa

Instituto de Ciências Sociais

«À Mesa com o Universo»


A Proposta Macrobiótica de Experiência do
Mundo

Virgínia Maria dos Santos Henriques Calado

Orientação: Professora Doutora Cristiana Bastos


Doutoramento em Ciências Sociais
Especialidade: Antropologia Social e Cultural

2012

Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia


SFRH/BD/2926 /2006, financiada no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio,
comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por Fundos Nacionais do MCTES
Agradecimentos

A conclusão de um projecto tão envolvente, denso e absorvente, como o é uma


dissertação de doutoramento, não apaga, antes torna mais evidente, a certeza de que
tal percurso envolveu e implicou muitas pessoas. Se o seu autor é um só, o caminho que
fez, fê-lo acompanhado, e a nota de agradecimento que aqui se deixa é apenas uma
forma menor de expressar a gratidão por uma companhia e amparo sem os quais não
teria sido possível chegar ao final do caminho.
Um agradecimento especial é devido a Cristiana Bastos, que aceitou orientar
este trabalho e que, com a sabedoria de quem já acompanhou muitos processos
semelhantes, sempre teve uma palavra de estímulo para que ele se realizasse.
Agradeço-lhe a liberdade com que me deixou escolher e traçar rumos, um bem precioso
nos tempos que correm. Ainda que fosse sinalizando caminhos possíveis e sempre se
dispusesse a debater aspectos desta investigação, sempre me permitiu autonomia na
pesquisa. Agradeço-lhe a leitura atenta dos meus textos, a orientação, o encorajamento
e a rapidez com que, nos momentos finais, analisou aspectos deste trabalho.
Agradeço a Goretti Matias as palavras de estímulo e alento, o apoio
institucional e os conselhos sábios de quem já assistiu ao processo de conclusão de
muitas teses de doutoramento. Estou grata, também, a João Guerra, que no âmbito do
seminário de estudos pós-graduados do ICS fez uma leitura crítica de parte deste
trabalho, contributo de que esta dissertação veio a beneficiar
Para a realização deste trabalho, contribuiu, sem dúvida, o apoio da Fundação
para a Ciência e Tecnologia, através da atribuição de uma bolsa de doutoramento. Sem
este apoio dificilmente teria sido possível uma dedicação exclusiva à realização desta
pesquisa. Agradeço também ao Instituto Piaget a libertação de tarefas lectivas para
que pudesse dedicar-me à investigação. Agradeço, igualmente, ao Instituto de Ciências
Sociais o acolhimento deste projecto, a supervisão, subsídio atribuído, e demais apoio
institucional para que ele se realizasse, quer através dos Serviços de documentação,
quer através da Comissão de Estudos Pós-Graduados.
Agradeço a Francisco Varatojo e Eugénia Varatojo que, enquanto responsáveis
pelo Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), nunca colocaram quaisquer obstáculos
à realização deste trabalho, facilitando o acesso aos arquivos relativos a registos de

III
alunos dos diferentes cursos do IMP. Agradeço-lhes os ensinamentos e a abertura para
a realização desta ou de qualquer outra investigação. Agradeço a toda a equipa que
trabalha no IMP, guardando deles a memória de todo o apoio e da simpatia e boa
disposição com que trabalham todos os dias. Agradeço ainda a todos os professores e
formadores que aí trabalham, trabalharam e que tive oportunidade de conhecer, Bill
Tara, Carlos Campos Ventura, Denny Waxman, Bill Spears e muitos outros.
Uma palavra de agradecimento a José Oliveira, que foi, e continua sendo, um
dos principais impulsionadores da macrobiótica em Braga. Fá-lo de forma discreta
mas eficaz, pois através das suas aulas de yoga tem levado muitos dos seus alunos a
reequacionar opções alimentares. Estou-lhe grata pelo estímulo e pelos ensinamentos.
À Alda Pereira, que me abriu as portas para o universo da cozinha macrobiótica, e que
foi pioneira no ensino da macrobiótica em Braga, devo também um agradecimento
especial.
Estou igualmente grata aos muitos colegas e amigos que conheci no âmbito
desta longa aprendizagem sobre a macrobiótica. Também eles foram companheiros de
percurso, comigo partilhando preocupações e angústias, mas sobretudo bons
momentos.
Aos meus amigos mais próximos, eles sabem quem são, por todo o apoio,
paciência, e encorajamento na realização deste projecto. Espero poder agora dedicar-
lhes mais do meu tempo.
A Luís Cunha, pelo muito que partilhamos, pela leitura atenta deste trabalho,
pelas sugestões, pelo encorajamento e todo o apoio. Este trabalho beneficiou imenso da
sua ajuda. À Lúcia e ao Jaime, que também se dispuseram para essa leitura, e que
contribuíram para que este trabalho se concretizasse. Ao Miguel, pelo apoio técnico, e
por me estar sempre a lembrar que a tese tem ponto final.
Para a minha família dirijo as últimas palavras de agradecimento. Por aceitar a
minha indisponibilidade, por ficar sobrecarregada com tarefas em que eu também
deveria participar, por ser o meu porto seguro.

IV
Resumo

Este trabalho procura contribuir para a identificação dos processos através dos
quais um produto social, a macrobiótica, se transformou numa proposta significativa de
orientação no mundo. Centrando-se na génese e no desenvolvimento deste produto
social, esta investigação presta atenção aos principais agentes envolvidos nesse
processo social e às circunstâncias pessoais, sociais e históricas que levaram à sua
difusão. Assim, centrando-se no fundador da macrobiótica moderna, Georges Ohsawa, e
seguindo a sua trajectória de vida, esta dissertação procurará evidenciar de que forma
uma visão do mundo germinada no Japão e com forte inspiração na tradição filosófica e
religiosa oriental, circula pela Europa e pela América, sendo acolhida e apropriada
como prática e discurso de orientação no mundo. Para evidenciar este processo, far-se-á
referência a circunstâncias históricas e sociais específicas, designadamente as do pós-II
Grande Guerra, procurando-se perceber o ambiente social que permitiu a expansão da
macrobiótica.
Aspectos significativos desse ambiente social são aqueles que se prendem com a
crítica da modernidade, onde se inclui a crítica à ciência e às muitas realizações que
dela decorrem: industrialismo, tecnocracia, materialismo, mas também o florescer de
uma consciência ecológica, a que se juntou a atracção por novas formas de
espiritualidade. Face ao desencantamento do mundo, a macrobiótica surgiu, para muitos
dos que a seguiram, como proposta de reencantamento em torno da qual se
desenvolveram sentimentos de pertença e de afinidade, suportados por redes de
conhecimentos. Dado o espaço de identificação que a macrobiótica proporciona, é usada
a noção de comunidade para pensar os indivíduos que a ela aderem. Comunidade
desterritorializada, transnacional, instável e aberta, mas, ainda assim, espaço de
identificação.
Tendo sempre em conta a especificidade do espaço português, a macrobiótica
será aqui perspectivada como cosmovisão que incorpora um sistema alimentar e um
sistema terapêutico. Sistemas que se entrecruzam, e que nessa articulação são pensados
como alternativa a sistemas alimentares e terapêuticos convencionais.

Palavras-chave: Macrobiótica, Alimentação, Saúde, Doença, Sistemas Terapêuticos


não Convencionais

V
Abstract

This study intends to identify the processes through which a social product,
macrobiotics, was transformed into a significant leadership proposal in the world.
Starting from the genesis and the development of this social product, this work
describes the main agents involved in this social process, as well as the personal, social
and history circumstances that lead to its spread. Therefore, focusing on the founder of
modern macrobiotics, Georges Ohsawa, and following his trajectory of life, this thesis
intend to explain how a vision of the world seeded in Japan, and with a strong oriental
tradition, in philosophical and religious terms, now circulates through Europe and
America, where it is used and regarded as a practice and an orientation discourse in the
world. To highlight this process, we will refer to specific historical and social
circumstances, particularly those following the II World War, trying to perceive the
social environment that enabled the expansion of macrobiotics.
The significant aspects of this social environment are those related with the
critique of modernity, where the critique of science and of its multiple achievements
takes place: industrialism, technocracy, materialism, but also the growing of an
ecological conscience, joined by an attraction for new forms of spiritualism. Facing the
disenchantment of the world, macrobiotics was regarded, for many following it, as a
scheme of re-enchantment within which feelings of belonging and affinity were
developed, mostly supported by knowledge networks. Given the sphere of identification
that macrobiotics provides, it is used a notion of community to think the individuals that
adhere to it. It is a deterritorialized, transnacional, unstable and open community, but,
nevertheless, a space for identification.
Keeping in mind the specificity of the Portuguese society, macrobiotics will be
advocated here as a cosmological vision, incorporating a food system and a healing
system. These two systems interact, and from such interaction they are thought of as an
alternative to orthodox food and healing systems.

Keywords: Macrobiotics, Food, Health, Illness, Complementary Alternative Medicine


(CAM)

VII
INDICE

Agradecimentos
Resumo
Abstract

Introdução 1

1. A Escrita que Desenha as Margens 19

1.1 Escrever sobre as margens 19


1.2 Ideologia, Ideologias Alimentares 21
1.3 Macrobiótica e Nutricionismo 25
1.4 Singularidades da Macrobiótica 29
1.5 O Tempo, esse Grande Escultor:
Dinamismo, Contaminação, Plasticidade, Recomposição 31
1.6 Saberes Quotidianos, Transformações, Manipulações, Articulações 35
1.7 A Macrobiótica, Sistema Terapêutico 39
1.8 Cruzamentos Disciplinares: a Escrita que Transcende as Margens 44

2 Perspectivas sobre Alimentação 47

2.1 Antropologia da Alimentação:


Estradas, Caminhos e Encruzilhadas Para Uma Investigação 47

IX
2.2 Perspectivar a Alimentação Macrobiótica a Partir dos
Estudos sobre Alimentação 57
2.3 Estudos Sociais Sobre Alimentação em Portugal:
Interpelações a uma Pesquisa Sobre a Macrobiótica 63
2.4 A Macrobiótica Olhada pelas Ciências Sociais 75
2.5 A Macrobiótica Olhada Pelas Ciências da Saúde 79

3 A Macrobiótica: Trajectos e Trânsitos de um sistema


de conhecimento 101

3.1 Em busca das Origens: Percursos e Sentidos da Macrobiótica 101


3.2 Ohsawa, Fundador da Moderna Macrobiótica 106
3.3 Da Macrobiótica ao Movimento Shoku-yō: Percursos e Precursores 108
3.4 Do Movimento Shoku-yō à Macrobiótica: Aspirações Universalistas 121
3.5 Trânsitos da Macrobiótica pelo Mundo 126
3.6 A Macrobiótica: Princípios e Categorias para Ler o Mundo 142

4 A Macrobiótica em Portugal 163

4.1 A Macrobiótica em Portugal: Condições de Emergência e Divulgação 163


4.2 Retrato em números: para uma Sociografia da Macrobiótica 193
4.3 Ensino e Aprendizagem da Macrobiótica:
Modos de Transmissão de Conhecimentos 213

5 Sistemas Terapêuticos em Confronto: Práticas


Marginais e Sistemas Dominantes 249

5.1 A Macrobiótica: um Sistema Terapêutico 249

X
5.1.1 Nas Margens do Poder Biomédico 249
5.1.2 Macrobiótica, Corpo, Saúde e Doença 256
5.1.3 Traçar Fronteiras, Persuadir, Consciencializar 275
5.1.4 O Corpo como Território de Decisões Individuais

5.2 Macrobiótica e Biomedicina: Intersecção e Confronto 290

5.2.1 Da Biomedicina à Macrobiótica: Experiências e Narrativas 290


5.2.2 No consultório: Cruzamentos entre Sistemas Terapêuticos 303

Considerações Finais 323

Apêndices
Apêndice 1 – Carta de agradecimento do Museu Nacional da História Americana
à família Kushi 335
Apêndice 2 – Tabela de classificação dos alimentos Yin e Yang 337
Apêndice 3 – Glossário 339

Bibliografia 345
Fontes documentais 345
Livros e Artigos 345
Textos referenciados de divulgação da macrobiótica 361
Endereços electrónicos referenciados 363

XI
Índice dos Quadros

Quadro 1 – Níveis de Discernimento e de Consciência 154


Quadro 2 – Exemplos de Yin e de Yang 158
Quadro 3 – As Cinco Transformações 159
Quadro 4 – Distribuição dos Participantes pelos Cursos 197
Quadro 5 – Distribuição Segundo o Sexo dos Participantes 198
Quadro 6 - Distribuição Segundo a Idade dos Participantes 198
Quadro 7 - Distribuição Segundo o Estado Civil dos Participantes 199
Quadro 8 - Distribuição Segundo a Naturalidade dos Participantes 200
Quadro 9 - Distribuição Segundo o Local de Residência dos Participantes 201
Quadro 10 - Distribuição Segundo a Escolaridade dos Participantes 202
Quadro 11 - Distribuição Segundo a Profissão dos Participantes 204
Quadro 12 – Distribuição Etária 306
Quadro 13 – Distribuição de Acordo com a Residência 307
Quadro 14 – Distribuição Segundo a Profissão 309
Quadro 15 – Problemas de Saúde 311

Índice das Figuras

Figura 1 – Pirâmide Original da USDA 91


Figura 2 – Pirâmide de Willett e Skerrett 91
Figura 3 – The Healthy Eating Pyramid 94
Figura 4 – Pirâmide Macrobiótica de Michio Kushi 94
Figura 5 – Ba Gua do I Ching 146
Figura 6 – A Espiral da Evolução 147
Figura 7 – Desenvolvimento Humano em Espiral: de embrião a adulto 148
Figura 8 – O Ciclo Vega/Estrela Polar 149
Figura 9 – Espiral da História 150
Figura 10 – A Espiral dos Elementos 151
Figura 11 – A Ordem do Universo 152

XII
Figura 12 – A Espiral da Criação 153
Figura 13 – Os Cinco Elementos 158
Figura 14 – Alimentação Macrobiótica Padrão 234
Figura 15 – Sopa de Miso 243
Figura 16 – Empadão de Millet com Lentilhas 244
Figura 17 – Tarte de Maçã 244
Figura 18 – Exemplo de um Pequeno-almoço Típico 245

XIII
Introdução

INTRODUÇÃO

Francisco e Rita dobraram já os 30 anos, faltando-lhes pouco para chegar aos 40.
Eram bem mais jovens quando se conheceram, nos anos 90, ambos estudantes
universitários, ele frequentando o curso de Medicina Veterinária e ela o de Engenharia
Florestal. Se ele exerce hoje a profissão para que se formou, ela, embora reconheça
importância ao curso que concluiu, nunca retirou dele grande proveito em termos
profissionais. Esta é uma história banal, de dois jovens que se conheceram, se
apaixonaram e se juntaram, apenas interessa neste contexto pelo facto de a macrobiótica
se ter atravessado na vida de ambos com força e impacto suficiente para influenciar a
vida que têm hoje e querem ter no futuro. Rita chegou primeiro. Na verdade, desde
muito cedo, criança ainda, por influência dos pais, eles próprios praticantes durante
algum tempo da alimentação macrobiótica. Em comum com Francisco tinha o interesse
por questões ambientais e o desejo de uma vida em maior contacto com a natureza.
No caso de Rita, o seu interesse pela macrobiótica teve uma expressão prioritária
na alimentação. Foi esse interesse que a levou a frequentar o Curso Curricular de
Macrobiótica no Instituto Macrobiótico de Portugal, e foi a chegada a este lugar que lhe
permitiu aprofundar conhecimentos que lhe permitiram exercer com mais competência a
profissão que entretanto escolhera: cozinheira na área da macrobiótica. Tratou-se de
uma escolha consciente, que se deveu mais à paixão que à formação académica, e que,
por isso mesmo, a disponibilizou a começar por onde pudesse. Fê-lo trabalhando num
restaurante, sempre confeccionando pratos macrobióticos, chegando, mais tarde, à
participação num negócio nesta mesma área. O mesmo espírito de paixão que a levou a
este ramo impeliu-a a abandoná-lo, por entender que dessa forma poderia dar uma
assistência mais adequada aos filhos que entretanto nasceram
Foram dois, esses filhos, um tem neste momento três anos, o outro apenas um.
Nasceram ambos em casa, uma vez mais numa escolha decidida, que visava evitar o que
Francisco e Rita entendiam ser o espaço desumanizado do hospital, a obrigação de
vacinação e outras intervenções abusivas sobre o corpo da mãe e do filho. A ideia de

1
«À Mesa com o Universo»

que agindo dessa forma correria riscos imprevistos esteve sempre acautelada: Rita foi
acompanhada, durante a gravidez, por uma doula, um enfermeiro obstetra, fez análises
ao sangue e duas ecografias. As crianças seguem uma alimentação macrobiótica, mas o
empenhamento dos pais leva-os a fazer algo mais, dispondo-se a educar os filhos em
casa. Argumentam que as instituições de acompanhamento de crianças não se
encontram em conformidade com o que pretendem para os seus filhos, quer do ponto de
vista da sua organização, quer no que diz respeito aos modelos educativos – além das
dificuldades que decorreriam da prática de uma alimentação macrobiótica em tais
instituições. Adeptos da pedagogia Waldorf, criada por Rudolf Steiner (1919), ou seja,
de uma proposta que incide na ideia de um desenvolvimento integrado da criança,
interligando dimensão física, anímica e espiritual, foi Rita quem se disponibilizou para
um acompanhamento a tempo inteiro, abdicando da sua actividade profissional.
Esta família vive hoje num pequeno apartamento, mas em breve ocupará uma
casa que faz parte integrante do desejo de construírem uma vida alternativa às escolhas
mais comuns. Foi, desde logo, um desafio para o arquitecto que a concebeu e para os
trabalhadores que ainda a estão a edificar. Desafio, porque se tratou de explorar novos
materiais e houve, desde o começo, vontade de inovar. Situada em meio rural, ainda que
próxima de uma área urbana, a casa é quase totalmente construída com materiais
naturais (cerca de 95%), procurando ser expressão de respeito pelo ambiente. É com
entusiasmo que falam desta casa quase pronta a estrear, e fazem-no não por vaidade,
mas por acreditarem que precisam daquele espaço para adicionar algo mais a um
projecto de vida alternativa em que acreditam.
A escolha deste caso para abrir um trabalho com a natureza que este tem é uma
opção pouco ortodoxa. A intenção, no entanto, é clara: convocar um exemplo capaz de
ilustrar algumas das questões que serão inevitavelmente abordadas ao estudar a
macrobiótica. Não que as escolhas que Francisco e Rita fizeram e ainda estão fazendo
sejam exclusivas da macrobiótica, mas sem dúvida que encontram nesta prática lugar (e
discurso) de inspiração. Pode dizer-se que este casal foi aqui tomado como um tipo
social – não um tipo ideal, mas uma expressão da realidade, o que significa dizer que
operam apenas com uma parte das possibilidades que a adopção da macrobiótica
comporta. O modo de vida que se subentende a partir da descrição que foi feita é um
modo de vida alternativo, no sentido em que assenta numa procura particular de
harmonia entre o mundo natural e social. Dela faz parte integrante uma alimentação
que dê preferência a alimentos biológicos, que sejam tão pouco refinados e processados

2
Introdução

quanto possível. Faz também parte a escolha de cuidados de saúde pouco


“medicalizados”, contestando práticas massificadas como a vacinação e desejando que
as mulheres se centrem na maternidade. Importa notar, desde já, que estas são
orientações e condições dificilmente observáveis em classes sociais desfavorecidas.
Convém também dizer que algumas destas escolhas não podem ser generalizadas a
todos aqueles que têm a macrobiótica como referencial de orientação para as suas
acções, muito embora constituam um conjunto expressivo de aspectos que são
valorizados nessa proposta de orientação no mundo e que são entendidos como
promovendo um maior equilíbrio individual, familiar, social e ambiental.
Os temas que procurarei explorar neste trabalho inspiram-se neste e noutros casos.
Mais especificamente, têm a ver com o modo como a macrobiótica se foi constituindo
como proposta significativa de orientação no mundo e com o sistema de concepções,
valores, ideias, representações e práticas que a caracterizam. Dito de outro modo,
analisarei o processo social através do qual um produto social, a macrobiótica, foi
sendo divulgado e apropriado nas sociedades euro-americanas, incidindo a minha
atenção na sociedade portuguesa em particular. Tratar-se-á, aqui, de procurar identificar
de que forma a macrobiótica, um produto de inspiração japonesa, é difundido e
apropriado na Europa e na América.
Seguindo os múltiplos trânsitos da macrobiótica, procurarei evidenciar o quanto
ela é um produto cosmopolita. Viaja pelo mundo com os seus promotores/divulgadores,
e coloca em circulação ideias, saberes, significados, cosmovisões. Promove a
comercialização de utensílios e alimentos, sabores e aromas, alguns com origem em
contextos orientais como o Japão, mas que à medida que vão sendo transaccionados e
apropriados tomam inevitavelmente novas formas, adquirindo algo dos lugares e das
culturas que os integram. Encontramos a macrobiótica em Nova Iorque, Tóquio, Paris,
Londres ou Lisboa. Sabemos que, do ponto de vista alimentar, pode apresentar algumas
variações, de acordo com o lugar onde a comida é confeccionada e o envolvimento de
quem a prepara, mas ainda assim a nossa imaginação não escapa a uma mistura de
ingredientes e um estilo de confecção concordante com a matriz que foi desenhando
essa prática alimentar. Uma matriz que une indivíduos de muitos lugares do mundo, que
os coloca em conexão através de novas redes de comunicação e que nos faz pensar
numa comunidade desterritorializada e transnacional (Dietz, 2007). A macrobiótica
tem esse estatuto, o de ser um sistema de conhecimento e de representações

3
«À Mesa com o Universo»

transnacional, em torno do qual se desenvolvem processos de identificação, processos


fluídos, instáveis e difusos.

Tal como foi definida por Michio Kushi, um dos seus principais divulgadores, a
macrobiótica deriva, em termos de designação, dos termos gregos macro, que significa
longo ou grande e bios que significa vida. Para este autor, a macrobiótica significa:

(…) o modo de viver de acordo com a mais ampla das perspectivas, a ordem
infinita do universo, e tem vindo a significar a via da longevidade e
rejuvenescimento (…). A prática da macrobiótica é o entendimento e a aplicação
prática desta ordem ao nosso estilo de vida, incluindo a selecção, preparação e
modo de comer o nosso alimento diário, bem como a orientação da consciência.
(Kushi, 1978: 30-31).

Nesta citação encontramos os eixos fundamentais a partir dos quais a


macrobiótica deve ser perspectivada, como cosmovisão, com um conjunto de princípios
de entendimento do universo e como aplicação prática desses mesmos princípios. Neste
âmbito, a questão alimentar é apenas um aspecto, ainda que de relevo, da aplicação
prática de uma visão do mundo. Neste sentido, procurarei dar conta ao longo do trabalho
de um processo que conduz à divulgação e adopção dessa visão, perspectivando-o como
um processo de reencantamento do mundo face a uma sociedade desencantada.
Este processo mobilizou diversos agentes e encontrou contextos históricos de
desenvolvimento que não serão por mim esquecidos. Procurarei, assim, prestar atenção
ao trajecto de Georges Ohsawa (fundador da macrobiótica moderna) e às circunstâncias
histórico-sociais que o conduziram à defesa e criação de um conjunto de princípios
fundados na filosofia e religião orientais e na “alimentação tradicional” japonesa. Por
outro lado, prestarei também atenção às condições de acolhimento na Europa e nos
EUA para propostas como a macrobiótica. Procurarei demonstrar que a rejeição do
materialismo, industrialismo e tecnocracia, configuraram movimentos sociais que foram
favoráveis à ideia de uma “alimentação saudável” e à expansão da macrobiótica.
Veremos ainda que a macrobiótica intercepta outros movimentos, designadamente
o movimento da agricultura biológica, do vegetarianismo e outros movimentos
ambientalistas, dialoga com eles e expande-se a partir deles. Em Portugal, a
macrobiótica começou por ser acolhida sobretudo por vegetarianos, ou seja, por
indivíduos que já faziam escolhas alimentares distantes das convencionais, e que,
provavelmente por este motivo, demonstraram receptividade relativamente a esta

4
Introdução

prática. Veremos também que existem grandes afinidades do ponto de vista sociográfico
entre os consumidores de produtos biológicos e os seguidores da macrobiótica (cf. cap.
4).
Procurarei ainda demonstrar que a macrobiótica contribuiu para transformar o
espaço alimentar (Poulain, 2003), diversificando-o, introduzindo novas concepções
sobre os alimentos e modos de os confeccionar e apresentar. Proporcionou ainda a
familiarização com novos produtos e promoveu o seu consumo. Esta transformação terá
repercussões ao nível da comercialização e distribuição de produtos, conduzindo à
criação de empresas de produção e distribuição de alimentos, como a «Erewhon»,
«Lima» e «Próvida», entre outras, que serão inovadoras, pelo menos relativamente aos
produtos que disponibilizam. Procurarei ainda evidenciar que as modificações que têm
sido introduzidas na construção de pirâmides alimentares revelam uma maior
proximidade em relação à pirâmide alimentar proposta pela macrobiótica do que no
passado. O que, com tal facto, se procurará defender é que houve transformações nas
orientações alimentares que aproximaram o mainstream da macrobiótica, uma prática
marginal, em termos de números de seguidores. A possibilidade de existirem relações
dinâmicas entre diferentes sistemas de conhecimento será assim por mim explorada (cf.
cap. 2)
Uma atenção particular recairá sobre a prática da macrobiótica em Portugal.
Numa primeira fase (cf. cap. 4) procurarei traçar uma história da macrobiótica no nosso
país, focalizando-me no contexto de emergência e nos agentes que iniciaram a
divulgação desta proposta de orientação no mundo, procurando, depois, analisar formas
de expressão da macrobiótica em Portugal, através da Unimave, restaurantes, empresas
de distribuição, experiência nas cantinas universitárias portuguesas, etc. Ainda no
capítulo 4, dedicarei a minha atenção à transmissão de conhecimentos na área da
macrobiótica, centrando-me particularmente na minha própria experiência num curso
nessa área. Esta dimensão será tomada como fundamental, dado ser responsável, em
larga medida, pela circulação de conhecimentos.
No capítulo 5, centrar-me-ei na macrobiótica enquanto sistema terapêutico,
trabalhando sobre as concepções do corpo e da saúde, procurando identificar
argumentos que sustentem diferentes formas de intervenção sobre o corpo. A temática
central desse capítulo será o pluralismo terapêutico e as políticas do corpo. Recolherei
testemunhos de indivíduos que entenderam não seguir inteiramente as orientações
médicas e procuraram soluções alternativas noutros universos terapêuticos. Essa será

5
«À Mesa com o Universo»

uma oportunidade para confrontar diferentes sistemas terapêuticos e observar que tipo
de relações é estabelecido com a biomedicina a partir da macrobiótica. Explorarei, a
partir deste confronto, a noção de articulação e de relação dinâmica entre diferentes
sistemas. Essa será também uma ocasião para me centrar no debate estrutura-agência e
na forma como o corpo é transformado em campo de experimentação. Tornado
regularmente num território de decisões individuais, esse corpo revela agentes que nem
sempre agem de acordo com estruturas hegemónicas, como as relacionadas à
biomedicina, e buscam vias alternativas. Uma busca que nem sempre é bem-sucedida, e
disso será exemplo um processo judicial que analisarei, em que um casal ligado à
macrobiótica é acusado de incompetência parental por não vacinar os filhos e os retirar
da escola, vindo a efectivar-se a retirada dos filhos à tutela dos pais e institucionalização
dos mesmos. Nem sempre o final é feliz, como no caso com que se iniciou esta
introdução. Quando os técnicos do Estado decidem ficar vigilantes sobre modos de vida
alternativos os resultados podem ser desastrosos.
Atravessa este trabalho a consciência da importância de estudar as margens. Delas
vem, frequentemente, a inovação e a experimentação de novas vias sobre o corpo, os
alimentos ou outras materialidades. Permitem o questionamento de formas mais
convencionais e institucionalizadas de acção, sendo um desafio à contraposição entre
modos diferentes de pensar e agir. Percorre ainda este trabalho a clara noção de que a
macrobiótica, como produto social que é, se tem modificado ao longo dos tempos em
função de lugares, intervenientes, processos em jogo e «caminhos multi-direccionais de
circulação do saber» (Bastos, 2011: 31). Desta forma, a macrobiótica deve ser
perspectivada como entidade dinâmica, que influencia outras actividades mas que é
também influenciada por formas de conhecimento específicas, como as que resultam do
conhecimento científico. É, portanto, em estreita articulação com outros fenómenos
sociais que procurarei analisar práticas e representações em torno da macrobiótica.

A recolha de elementos para esta pesquisa estendeu-se no tempo muito mais do


que aquilo que é comum neste tipo de investigações. O meu interesse pela macrobiótica
remonta a 2001, quando, a partir das aulas de yoga que na altura frequentava, tive
conhecimento de um curso de cozinha macrobiótica que iria decorrer em Braga. Dada a
atracção que sentia pela alimentação enquanto domínio de investigação, este facto

6
Introdução

acabou por funcionar como estímulo para que encarasse a macrobiótica como campo
possível de pesquisa. No sentido de confirmar esta possibilidade, e também porque me
interessava saber mais sobre a macrobiótica, acolhi a oportunidade de frequentar esse
curso. Pode dizer-se que esta decisão procurava responder tanto a um interesse, ainda
incipiente, por uma possível área de pesquisa, quanto à satisfação de uma curiosidade
algo diletante sobre um entendimento dos alimentos que me parecia algo exótico. Nessa
altura, quando pensava em macrobiótica pensava sobretudo em comida e, confesso, não
pensava em comida saborosa. Intrigava-me o facto de se seguir aquela alimentação e
julgava que deviam existir, seguramente, razões de saúde, ou outras, muito fortes, para
justificar tal opção. Para ser rigorosa, devo dizer que meu contacto inicial com a
macrobiótica havia sido anterior a essa situação; datava, na verdade, dos finais dos anos
1980, da Cantina da Universidade de Lisboa. No entanto, muito embora existisse esse
contacto prévio, o meu conhecimento sobre a macrobiótica era escasso, e essa minha
experiência anterior com a “comida macrobiótica” não havia despertado, na época, um
interesse que motivasse maior aprofundamento. Vários anos seriam volvidos para que a
macrobiótica de novo me interpelasse, agora como potencial objecto de investigação
académica.
Os primeiros passos para o desenvolvimento desta pesquisa começaram assim a
ser dados com o curso de cozinha que efectuei em 2001-02 (108h). A frequência desse
curso proporcionar-me-ia um contacto mais próximo com a visão do mundo proposta
pela macrobiótica e com um conjunto de pessoas que se interessavam sobre esta forma
de entendimento do mundo. Alguns desses contactos vinham já das aulas de yoga - o
que sugeria afinidades entre as duas práticas – noutros casos, os participantes tinham-se
interessado pela macrobiótica ao ponto de terem feito ou procurarem fazer dela
actividade profissional e meio de sobrevivência. O desenvolvimento desta investigação
iniciou-se assim com um processo que viria a ser marcante no decurso de toda a
pesquisa e que foi um processo de aprendizagem e formação na área da macrobiótica. A
opção pela realização desse curso foi por mim pensada como podendo permitir-me
aceder a uma visão distinta e algo distanciada sobre os alimentos, o corpo, a saúde, a
doença, o mundo, e, também, como forma de estabelecer contactos com pessoas que
tinham encontrado na macrobiótica significações expressivas.
Nessa primeira abordagem, não procurei nenhum direccionamento específico, em
termos de investigação, procurando mais estar atenta às questões que podiam ser
suscitadas a partir das minhas observações do que procurar respostas ou processos a

7
«À Mesa com o Universo»

partir de teorias ou questões previamente estabelecidas. Levando em consideração o


posicionamento de Barth (2000) a propósito da investigação social, com a ênfase que
este autor colocava na observação das situações de interacção e no facto de a teoria
dever ser erigida a partir das observações, parti para o terreno com abertura para, através
da observação de discursos e práticas sociais, identificar processos a partir dos quais
podia analisar o que observava. Procurava, dessa forma, evitar a armadilha das pré-
noções, ou seja, ir à procura de elementos que legitimassem formulações teóricas, ou
apenas confirmar o que sabia ou julgava saber. Neste sentido, o meu posicionamento
inicial foi muito mais o de «observar» e «ouvir o terreno», do que «fazê-lo falar» a
partir de questões ou olhares previamente estabelecidos (Weber, 2009). Acreditando que
na pesquisa social, mais importante do que adoptar uma orientação clássica, e usar a
teoria como «função de comando» (Almeida e Pinto, 1986) era desenvolver uma
investigação que, através da observação das práticas sociais e das situações de
interacção, me permitisse a interpelação de quadros teóricos existentes ou, caso
necessário, a construção de outros, procedi a uma recolha de informação mais intensiva
e extensiva do que orientada por perguntas específicas e problemáticas claras e bem
delimitadas. Existia, evidentemente, uma preocupação em conhecer melhor aquele
universo e as razões que levavam a que as pessoas se interessassem pela macrobiótica,
mas tal estava equacionado de forma vaga. Com este tipo de atitude face à pesquisa,
procurei encontrar contextos de observação diversos, a partir dos quais pudesse observar
recorrências, processos, elementos sinalizadores, que pudessem reconduzir-me à teoria
social. Julgando que a «realidade» (dimensão socialmente construída) não deveria ser
tomada como uma adequação à teoria, optei pois por «deixar o terreno falar». Esta
decisão não implicava, de forma alguma, desdém pela teoria, tratava-se sobretudo de
procurar que ela fosse consequência da observação empírica e não uma força de
comando.
Este modo de proceder, a ressoar algo da grounded theory, ainda que nunca
tivesse sido meu propósito aplicá-la, esteve longe de ser uma opção que tivesse intenção
de manter no decurso de toda a pesquisa. Logo me dei conta de que sem a convocação
de questões teóricas o terreno podia ficar mudo, num silêncio perturbador. Pode dizer-se
que isto conduziu à reformulação da minha postura inicial: mais do que evitar a teoria, a
atitude que se me afigurava como mais prudente era assim a de a convocar, mas com
inteira disponibilidade para alterar perspectivas e rever, quando necessário, eventuais
enquadramentos. Acabei por considerar que a questão da «função de comando» da

8
Introdução

teoria não devia ser vista como orientação clássica a desprezar, nem vista como
impedindo novas perspectivas sobre a realidade, dado ser encarada como estando
sobretudo orientada para apenas encontrar aquilo que se procura. Partir da teoria pode
ser frutuoso quando esta é perspectivada como ponto de partida e de retorno, é esse
exercício que permite validá-la, reelaborá-la ou abandoná-la caso deixe de surgir como
instrumento significativo de interpretação da realidade. Mesmo que a teoria possa ter
uma função de comando numa fase inicial, no final o que deve prevalecer é a relação
dinâmica entre teoria e elementos recolhidos. É esse dinamismo entre aspectos de
natureza empírica e aspectos de natureza teórica que permitirá uma visão mais
esclarecedora sobre aquilo que se pesquisa.
Ainda que procurasse orientar-me no terreno com relativa abertura, evitando
tornar-me refém de alguma teoria em particular, percebi, na prática da investigação, a
impossibilidade de fazer tabula rasa de toda a informação que fui adquirindo, e me
servia, de forma nem sempre consciente, como ferramenta de leitura do terreno. Apesar
de reconhecer no processo de investigação o exercício de uma subjectividade particular,
não é possível ignorar que nessa subjectividade contam aspectos que decorrem da
formação científica. Ainda que estes se combinem com mecanismos de percepção e
intuição que lhe escapam, nada disto significa, porém, uma obliteração da preocupação
com o rigor e com o carácter científico, nem justificam que no resultado do processo de
investigação se fique a saber mais sobre o investigador do que sobre o que foi
pesquisado. No caso concreto deste trabalho e nos elementos que convoco para
desenvolver esta pesquisa, sejam eles a informação obtida a partir de diversos contextos
de observação, da pesquisa documental ou de relatos de diferentes intervenientes nesse
processo, há uma procura de diversificação que visa um conhecimento rigoroso e
aprofundado sobre as práticas em torno da macrobiótica. Se é pela preocupação com o
rigor, sustentação e demonstração que se torna possível distinguir o conhecimento
científico de outros modos de conhecimento, devo dizer que tais critérios foram
seguidos. As inevitáveis lacunas são o terreno fértil para quem quiser acrescentar algo
mais a esta investigação.
“Observar”, “escutar”, “estar com”, tal como proposto por Florence Weber
(2009), foram procedimentos a que procurei recorrer para saber mais sobre as práticas e
representações associadas à macrobiótica. Aquilo de que nos apercebemos quando
observamos e escutamos é quase sempre muito mais do que quando colocamos
questões. Não pretendo com isto dizer que contactos mais orientados, como situações de

9
«À Mesa com o Universo»

entrevista ou conversas estabelecidas a partir de um guião, não sejam úteis, também a


eles recorri, mas há efectivamente uma riqueza narrativa particular numa situação
menos encenada e em que nos podemos colocar como meros observadores ou
intervenientes em processos em que não somos considerados elementos externos. A
abordagem etnográfica, pelo seu olhar mais continuado e mais próximo, permite, na
verdade, encontrar relações e desvendar mecanismos que outras metodologias de
recolha de informação nem sempre permitem encontrar. Um trabalho de terreno
intensivo e menos orientado tem sobre outras técnicas a vantagem de poder mais
facilmente aceder a dimensões e relações de que nunca se poderia suspeitar com o uso
de instrumentos como o inquérito por questionário. O facto de nem todos os fenómenos
terem a mesma visibilidade social e de alguns não se revelarem de forma clara e oficial,
torna este tipo de abordagem particularmente eficaz no conhecimento de certas
dinâmicas sociais. Efectivamente, e usando esta pesquisa como ponto de referência,
apenas a participação nestes cursos de formação permitiu apreender estratégias
discursivas de divulgação que, frequentemente, convocavam a biomedicina e as
Ciências da Nutrição, e em que estas não surgem apenas como referente de alteridade.
Algumas das questões centrais deste trabalho acabaram por advir, efectivamente,
da realização do trabalho de terreno. Por exemplo, apenas com o decorrer do tempo, a
importância da formação e a questão da relação dinâmica entre discursos associados à
macrobiótica e discursos ligados às ciências da nutrição e biomedicina, se tornariam
dimensões prementes na investigação. Seria também pelo contacto com indivíduos
ligados à macrobiótica, e com a formação específica nesta área, que me aperceberia da
existência de diferentes modos de praticar a macrobiótica: alguns, mais conservadores, e
também mais afastados da formação, sustentando-se numa leitura restrita dos
ensinamentos de Ohsawa, e outra, mais actualizada, onde a alimentação não era seguida
de forma tão rígida e onde as modificações alimentares iam sendo feitas de forma
gradual. Seria também através do contacto com os meus colegas que me pude aperceber
que a prática da macrobiótica pode ser muito diferenciada de acordo com os indivíduos
implicados e com a situação em que se encontram – por exemplo, indivíduos com
problemas de saúde específicos podem estar mais dispostos a fazer grandes
transformações alimentares e a seguir regimes mais estritos.
A diversidade de contextos de recolha de dados para esta pesquisa foi fazendo
com que múltiplas vozes se cruzassem, do formando ao formador; do vendedor ao
praticante; do indivíduo que adopta a macrobiótica por razões de saúde ao outro que a

10
Introdução

vê como meio para “ganhar a vida”; do indivíduo que procura seguir com rigor todas as
recomendações ao outro que está sobretudo interessado na dimensão filosófica da
macrobiótica.
Na recolha de elementos para esta pesquisa não foram necessárias grandes
negociações sobre a minha posição no terreno. O contexto de formação ou a minha
presença no Campo de Verão não eram, na verdade, contextos em que pudesse ser vista
como intrusa; era apenas mais alguém que estava interessado pela macrobiótica. Desde
o início deixei claro que me encontrava a desenvolver uma investigação académica
sobre a macrobiótica e fui falando sobre este trabalho com muitos dos meus colegas de
curso, mas não julgo que tenha sido vista como alguém exterior ao grupo. Encontrava-
me ali por razões tão aceitáveis como tantos outros. Por outro lado, também me pareceu
que o trabalho que me encontrava a desenvolver chegava a ser visto como algo que
necessitasse da formação que ali era proporcionada. Beneficiei, portanto, de um estatuto
de paridade no seio do grupo em que me encontrava inserida.
Em qualquer trabalho de investigação é necessário gerir proximidades e
distanciamentos. Por um lado pretende-se a confiança dos interlocutores e a
possibilidade de uma observação mais próxima, e, por outro, procura-se evitar um
envolvimento excessivo, impeditivo do necessário distanciamento para uma observação
mais imparcial. No caso desta investigação, a gestão desta dimensão acabou por ocorrer
mais na fase de reflexão e escrita do que no contexto de interacção. O modo como me
envolvi com muitos dos indivíduos que contactei não foi meramente casual e pontual,
nem intenso num momento para depois se ir esbatendo à medida que me ia distanciando
do trabalho de terreno. Alguns desses indivíduos passaram a fazer parte do meu
universo de relações e houve um significativo envolvimento da minha parte com a
macrobiótica. Contudo, a escrita acabou por ter um papel mediador face a esses mesmos
indivíduos. A atitude reflexiva inerente a esse processo acabou por contribuir para o
desencadear da gestão dessas proximidades e distanciamentos. Sobre o meu
envolvimento com esta pesquisa, devo dizer que numa primeira fase, face até à
novidade da experiência alimentar, eu própria cozinhei e segui uma alimentação
próxima dos princípios defendidos na macrobiótica, todavia, rapidamente passei a fazer
uma selecção de acordo com critérios menos macrobioticamente centrados. Muitas das
aprendizagens que fiz foram relevantes e algumas delas ainda as utilizo na hora de
escolher e preparar alimentos, integrando assim a experiência da observação e do
trabalho de terreno na minha vida.

11
«À Mesa com o Universo»

A abordagem adoptada neste trabalho foi uma abordagem qualitativa e intensiva,


característica da abordagem etnográfica. A recolha de elementos a partir dos quais foi
elaborado este trabalho ocorreu em diversos espaços de observação, estando, contudo,
particularmente enquadrada nas sessões de formação na área da macrobiótica e naqueles
que frequentaram essas sessões. Houve também contactos e entrevistas em
profundidade com indivíduos que se encontravam desligados desses contextos, mas foi
sobretudo no âmbito que referi que a informação foi recolhida. A pesquisa teve início
em 2001, mas a recolha mais intensiva de elementos ocorreu entre 2005 e 2009, altura
em que esta pesquisa passou a estar institucionalmente enquadrada e, também, altura em
que iniciei uma recolha mais sistematizada de dados a partir do Instituto Macrobiótico
de Portugal (IMP).
Lisboa e Braga foram os contextos geográficos escolhidos para a realização deste
trabalho. Tal opção, no caso de Braga, deveu-se mais à circunstância de morar nesta
cidade, tendo sido um critério diferente que me levou a escolher Lisboa. Na verdade, o
facto de o IMP se encontrar sediado nesta cidade, e de ser a partir desta instituição que
se estrutura muita da actividade desenvolvida em Portugal na área da macrobiótica,
tornou Lisboa num contexto incontornável nesta análise. Devo realçar, aliás, que o
curso de cozinha macrobiótica que frequentei em Braga conferia diplomas certificados
pelo IMP. Tratou-se, portanto, de uma actividade que era uma extensão daquilo que se
fazia em Lisboa, tendo também a formadora realizado a sua aprendizagem no IMP. Esta
circunstância acabou por ganhar relevo com o decurso da investigação e com a
avaliação do modo como foi sendo divulgada a macrobiótica na Europa e nos EUA. Um
processo de disseminação, que, como veremos, foi ocorrendo em diferentes contextos,
de forma relativamente isolada, ainda que sustentado por uma rede, e que rapidamente
se foi expandindo. Também Braga surge nesse processo, tendo nascido, a partir dessa
actividade, novos cursos de cozinha, dinamizados por indivíduos que entretanto conheci
nesse curso. O mesmo movimento levou ao surgimento de dois restaurantes a partir das
actividades iniciais, assemelhando-se a um efeito de contaminação.
Após a frequência do curso de cozinha em 2001-02 - curso que decorreu entre
Outubro e Julho - um fim-de-semana por mês entre as 10h e as 18h - e seguindo a
trajectória de muitos dos que se começam a interessar por estas áreas, acabei por

12
Introdução

frequentar um curso de zen shiatsu1, também ele realizado em Braga e frequentado por
alguns dos meus colegas do curso de cozinha. Esse curso organizou-se em dois níveis e
em dois anos distintos. Assim, em 2003-04, de Setembro a Julho, frequentei o nível I,
um curso de 160h, com duas aulas por semana entre as 20h e as 22h. E em 2004-05, o
nível II, entre Outubro e Julho, com uma aula semanal, aos sábados, entre as 14.30 e as
18h, num total de 144 horas.
A frequência deste curso acabou por ocorrer por extensão à frequência do curso de
cozinha macrobiótica, como dizia. Foi aí que tive oportunidade de constatar que a
prática da macrobiótica se relacionava com outras actividades terapêuticas como o
shiatsu, a moxabustão e a massagem Do in2. Na verdade, estas actividades tinham uma
tal inter-relação que surgiam como integrando um mesmo «pacote» de ensinamentos e
de abordagem/intervenção sobre o corpo, sendo que uma formação mais completa na
área da macrobiótica implicava também esse tipo de conhecimentos. Nessa medida,
saber mais sobre shiatsu surgia como possibilidade não apenas de seguir um percurso
que é habitual neste tipo de formações e acompanhar esse processo, mas também como
forma de complementar os conhecimentos adquiridos no curso de cozinha e de aceder a
uma visão sobre o corpo que é vista, afinal, como constituindo um importante suporte às
intervenções sobre o corpo efectuadas a partir da macrobiótica. No decorrer do curso de
cozinha, um dos formadores havia já transmitido algumas noções sobre a energia ki,
sobre shiatsu, e sobre uma visão do corpo a partir dos meridianos, de tal forma que tais
temáticas surgiam como dimensões a aprofundar.
No contexto deste trabalho, não desenvolverei uma análise aprofundada do que aí
se ensinou, apenas farei menção a aspectos que considere relevantes para o
desenvolvimento da argumentação. Importa sublinhar, no entanto, a permeabilidade
entre estes diferentes cursos, e o modo como esse facto favoreceu a minha investigação.
A possibilidade de um contacto mais estreito com aqueles que frequentavam o curso de
shiatsu e que também se encontravam próximos da macrobiótica foi relevante. Por outro
lado, é de assinalar, que alguns dos que desconheciam a macrobiótica, acabaram por vir
a adoptá-la, dado que também a alimentação foi um dos conteúdos abordados no curso
de shiatsu. Como vemos, é possível observar, na verdade, uma relação estreita entre

1
Técnica em que é utilizada sobretudo a pressão dos dedos sobre o corpo para estimular a energia ki, que,
supostamente, circula através de canais específicos ou meridianos. Pode também ser utilizada a palma da
mão, os cotovelos, os joelhos ou os pés, para um diferente tipo de pressão.
2
A moxabustão é uma técnica em que é utilizado o calor, conseguido através da combustão de folhas
secas de artemísia (moxa), sobre os pontos de acupunctura. Tem como finalidade a estimulação da
energia ki. O Do In é uma técnica de auto-massagem que procura igualmente activar a energia ki.

13
«À Mesa com o Universo»

estas áreas, sendo que, muito frequentemente, umas implicam as outras. No caso do
curso de shiatsu, pude constatar que havia uma maior presença masculina, ainda que as
mulheres aí fossem predominantes. No capítulo 4 terei oportunidade de apresentar com
maior detalhe dados sociográficos relativos aos formandos com os quais fui
contactando.
Da mesma forma que alguns dos indivíduos que haviam frequentado o curso de
cozinha macrobiótica foram para o curso de shiatsu, também alguns dos que
frequentaram estes cursos ingressaram no Curso Curricular de Macrobiótica no IMP.
Era assim possível observar uma “rede de formação” na qual se moviam diversos dos
indivíduos contactados. Nos anos lectivos 2005-06; 2006-07; 2007-08, frequentei o
curso curricular de Macrobiótica Michio Kushi, um curso organizado em três níveis e
que se destinava a conferir uma formação geral na área da macrobiótica. Este curso foi
leccionado um fim-de-semana por mês, das 10h às 18h ao longo dos três anos. Contou
com a presença de vários formadores, nacionais e estrangeiros, e incidiu em domínios
tidos como fundamentais para que se desenvolvesse uma actividade como conselheiro
ou consultor na área da macrobiótica. Os conteúdos de formação iam dos aspectos
filosóficos contidos na abordagem que a macrobiótica faz do mundo, a classificações
yin e yang, e aulas de cozinha. Pelo meio surgiam ainda aulas de shiatsu, de diagnóstico
visual, de anatomia, de confecção de remédios caseiros, de aplicação da teoria das cinco
transformações na abordagem do corpo…, enfim, o núcleo duro daquilo que são
considerados os ensinamentos básicos para que se possa actuar nesta área. O curso era
frequentado maioritariamente por pessoas que residiam em Lisboa ou arredores, tal
como à frente se poderá constatar, mas também por indivíduos que vinham de outros
pontos do país para frequentar este curso. Uma aluna deslocava-se mensalmente da
Madeira para adquirir essa formação. Havia também estrangeiros a frequentar o curso,
sobretudo no terceiro nível. Nesse ano a presença de espanhóis foi muito significativa.
Neste sentido, o IMP funcionava, e continua a funcionar, como centro de divulgação a
partir do qual se processa a disseminação de conhecimentos nesta área.
Dada a importância do IMP enquanto centro de formação, as minhas observações
acabaram por se centrar de forma particular nesta instituição. Havia várias vantagens
neste tipo de procedimento, por um lado tinha acesso a um conjunto organizado e
sistematizado de conhecimentos que permitiam identificar de forma mais adequada a
macrobiótica e as suas práticas, e, por outro, permitia-me um contacto próximo com
indivíduos para quem a macrobiótica correspondia a uma orientação com algum

14
Introdução

significado. Se havia pessoas que já praticavam a macrobiótica há algum tempo, outras


havia que se mostravam pouco informadas sobre tal prática. Os contactos que estabeleci
não se limitaram, como disse, às pessoas que fui conhecendo no contexto desses cursos,
mas a maior parte esteve ligada a eles.
Em concomitância com os cursos que fui frequentando, fui assistindo a palestras e
conferências sobre esta temática, tendo tido oportunidade de assistir a duas conferências
de Michio Kushi em Lisboa, uma ainda em Novembro de 2002 e outra em Dezembro de
2005. Ao mesmo tempo ia descobrindo lugares de abastecimento e de consumo
(sobretudo lojas e restaurantes) que sustentavam a prática macrobiótica, quer em Braga,
quer em Lisboa. Tive ainda a oportunidade de participar em diversos Programas
Residenciais (programas de formação organizados habitualmente em quintas, onde se
promove o ensino e troca de aprendizagens num ambiente mais próximo e informal) que
surgiam integrados nos cursos de formação e que eram também uma oportunidade para
estabelecer contacto com alunos de outros anos e, até, com indivíduos que não se
encontravam ligados ao IMP enquanto alunos, mas que tinham afinidade com algumas
das pessoas que aí se encontravam e com o tipo de práticas proporcionado pelo instituto.
Esses momentos correspondiam a períodos de formação intensiva em que num ambiente
de maior proximidade e cumplicidade era promovida a aprendizagem. Esses
residenciais funcionaram em quintas situadas nos arredores de Lisboa.
A centralidade do IMP (mesmo em termos de localização, em plena Baixa-
Chiado), reconhecida fora do país (nesse sentido se pronunciaram alguns dos
formadores estrangeiros que contactei), viria ainda a proporcionar a realização de
seminários internacionais com professores e profissionais na área da macrobiótica. Estes
momentos foram importantes para compreender as ligações internacionais que existem
entre os muitos centros de macrobiótica que se encontram espalhados pelo mundo e
faziam pensar na existência de uma comunidade transnacional. Esses momentos
constituíram ainda possibilidades de reflexão sobre o “movimento macrobiótico” e
rumo que este deveria seguir. O facto de o director do IMP ter feito a sua formação nos
EUA e manter contacto com muitos desses centros, também contribuiu, certamente,
para essa maior internacionalização do IMP.
Para além do IMP que, dentro da macrobiótica, se situa numa linha muito próxima
da de Michio Kushi, procurei ainda prestar atenção a alguns outros centros de
divulgação, tendo tido alguns contactos com o responsável pelo Centro Europeu do
Princípio Unificador, centro associado ao restaurante «Tao» em Lisboa, também ele

15
«À Mesa com o Universo»

dedicado à divulgação da macrobiótica. Esse contacto destinou-se essencialmente a


observar continuidades e divergências relativamente ao IMP, dado que esse centro se
situava como estando mais próximo de Tomio Kikuchi, discípulo de Ohsawa que a
partir do Brasil divulgaria a macrobiótica, do que de Michio Kushi. O responsável pelo
Centro Europeu do Princípio Unificador, reivindicava, de facto, ainda uma maior
proximidade em relação a Ohsawa do que a Michio Kushi. Muito embora tenha acabado
por não me centrar, no decurso deste trabalho, na análise de eventuais divergências e
rivalidades entre estes dois centros existentes em Lisboa, ficou claro que representavam
formas de actuação independentes, surgindo como evidente que o IMP constituía, de
entre ambos, o pólo de atracção mais significativo. O contacto com o Centro Europeu
do Princípio Unificador, viria, contudo, a permitir que assistisse a uma conferência em
Lisboa de Tomio Kikuchi quando este, em 2009, se deslocou a Lisboa.
O Espaço para refeições do IMP, os restaurantes «Tao», «Espiral», «Yin-yang»,
«Colmeia», «Cantina da Universidade de Lisboa», restaurantes «Semente» e
«Alfacinha» em Braga, foram lugares por onde me movi, sozinha ou acompanhada por
colegas, procurando familiaridade com estes contextos, de forma a observar de que
modo estava a ser posta em prática a cozinha macrobiótica 3. Os contactos foram tão
numerosos ao longo destes anos que não os indico de forma absoluta, embora calcule ter
contactado cerca de uma centena de indivíduos. Estes contactos tiveram, evidentemente,
graus de intensidade muito diferente, em alguns casos resumindo-se a encontros
rápidos, ou mesmo a um único encontro, com uma entrevista relativamente formal,
enquanto noutros houve um contacto muito mais continuado. Em termos gerais, vale
dizer que os meus colegas dos diferentes cursos, bem como os respectivos formadores,
tiveram um peso bastante maior no contributo que deram para a realização deste
trabalho.
Para além dos restaurantes, os espaços de venda de bens alimentares, bem como
de outros produtos associados à macrobiótica, foram também lugares que frequentei e
onde acompanhei alguns dos meus colegas. Lugares de venda de produtos biológicos
como o «Mercado do Príncipe Real», a «Biocoop» ou a «Miosótis», em Lisboa, ou a
«Biobrássica», em Braga, foram também lugares que frequentei como consumidora e
onde pude estabelecer contactos, quer com vendedores quer com outros consumidores.

3
Não analiso essas observações, mas a frequência desses lugares, sobretudo quando acompanhada,
permitiu muitas conversas sobre a prática da macrobiótica e as muitas dificuldades em a cumprir a
“100%”.

16
Introdução

A estes espaços há ainda a acrescentar outros idênticos, como as lojas «Celeiro» e


«Jardim Verde», o espaço de vendas do IMP, e outros associados ao funcionamento de
alguns dos restaurantes que referi.
Sabendo que um dos principais pontos de encontro e de convívio de alguns dos
que seguem a macrobiótica, ou têm alguma afinidade com esta prática, são os Campos
de Verão passei também uma parte do mês de Agosto de 2008 no Monte Mariposa
(Tavira - Algarve) onde costumam ser feitos estes encontros. Também aí tive
oportunidade de um contacto mais próximo com certos indivíduos, numa situação de
maior informalidade. Alguns estrangeiros participavam nesse Campo de Verão, que
pode ser descrito como um espaço e lugar polivalente, onde se podia desfrutar de
comida macrobiótica, ter aulas de cozinha, ouvir palestras sobre temas ligados à
macrobiótica, fazer aulas de yoga ou outra modalidade com afinidade com a
macrobiótica, ir à praia, fazer uma consulta de orientação alimentar ou algum tipo de
massagem, em suma, um lugar que proporcionava umas férias activas e onde várias
pessoas se reencontravam todos os anos. Para alguns participantes tratava-se de um
primeiro contacto com a macrobiótica e em alguns casos esse contacto veio a despertar
um maior interesse por esta área, conduzindo à realização de cursos de formação.
Uma outra parte importante deste trabalho viria a desenvolver-se em contexto de
consultório de orientação alimentar/social na área da macrobiótica. Aqui o contexto
seria um contexto clássico de interacção entre consultor e consulente, em que sob
pretexto de uma doença, ou algum tipo de queixa, era desenvolvido um diagnóstico e
apresentado um processo de cuidados e tratamento. Tratava-se aqui, sobretudo, de pôr
em prática a vertente de orientação alimentar da macrobiótica e também a sua dimensão
terapêutica, de acordo com a sua representação específica sobre o corpo e a saúde. Os
processos de tratamento incidiam, como veremos, sobretudo em questões alimentares.
Neste espaço fui assistente do consultor, cabendo-me sobretudo as funções de
observação e de anotação das recomendações alimentares que eram dadas no final da
consulta aos consulentes. Procedi ao registo de 50 situações de consulta, a elas
retornarei numa fase mais avançada deste trabalho (capítulo 5).
A acrescentar a esta diversidade de contextos de recolha de informação, devo
ainda referir que, no decurso desta pesquisa, foram analisados dois processos judiciais,
existindo, em ambos, uma intervenção do Estado motivada por decisões que
implicavam a macrobiótica. Num dos casos, tratava-se de um processo que tinha sido
iniciado por se suspeitar de negligência parental, dado que os pais tinham decidido não

17
«À Mesa com o Universo»

vacinar o filho (decisão que decorrera da ligação à macrobiótica e das objecções que no
seu âmbito são feitas relativamente à vacinação) e, no outro caso, de um processo de
efectiva retirada dos filhos a seus pais por ter havido suspeita de incompetência
parental. Este segundo caso teve também na origem a decisão de não vacinar os filhos
(os pais também estavam ligados à macrobiótica), atitude que, mais tarde, levaria ao
abandono escolar e, posteriormente, à retirada da tutela dos filhos. Não terei
oportunidade, no contexto desta pesquisa, de analisar este caso de forma tão detalhada
como mereceria, mas gostaria de dizer, desde já, o quanto ele é ilustrativo das
consequências inesperadas de tomadas de acção marginais ou minoritárias, facilmente
susceptíveis de levantar suspeitas e desconfianças.
Para a caracterização sociográfica dos indivíduos contactados com ligação à
macrobiótica, recorri, sobretudo, à consulta de arquivos do IMP relativos ao registo dos
alunos. O facto de, na altura da inscrição, ser preenchido um documento de
identificação com algumas questões de ordem pessoal, permitiu uma identificação mais
rigorosa dos mesmos. Dos elementos recolhidos, darei conta mais à frente (cf. cap. 4).
Este conjunto de espaços, que podemos considerar multi-situados, constituíram a
principal fonte de informação para a realização deste trabalho. Muitos dos elementos
que resultaram das observações efectuadas acabaram por não ser directamente
mobilizados para esta pesquisa, dado que não se ligavam, de forma evidente, às linhas
argumentativas com que este trabalho foi sendo construído. Considero, contudo, que
esse não foi um trabalho vão, pois acabou por proporcionar uma visão mais ampla sobre
a prática da macrobiótica, permitindo-me reavaliar as preocupações que orientavam este
trabalho no início, reequacionando-as. Neste sentido, foi pela relação dinâmica entre
teoria e observação/recolha de informação que este trabalho foi sendo (re)pensado e
construído.

18
A escrita que desenha as margens

Capítulo 1

A Escrita que Desenha as Margens

1.1 Escrever sobre as margens

Que lugar ocupa hoje a macrobiótica em Portugal? Quais as suas características?


Que razões levam à sua adopção? Que efeitos práticos resultam da adopção da
macrobiótica? Estas questões constituíram inicialmente o ponto de partida de uma
pesquisa que se estende há já uma década. O tempo entretanto decorrido permitiu
reformular estas questões e levantar outras, que foram surgindo como mais pertinentes
ou mais susceptíveis de análise em termos científicos. É certo que estas preocupações
começaram por não estar enquadradas institucionalmente; tal não invalidou, contudo,
que sobre elas não tivesse decorrido o tempo suficiente para irem sendo reformuladas
ou abandonadas mediante as observações que ia efectuando e os dados que ia
recolhendo.
Aprendi neste processo que a macrobiótica extravasa claramente esse domínio
específico que é o de concepções e práticas ligadas exclusivamente à alimentação. A
macrobiótica integra, como veremos, um conjunto de aspectos que constituem uma base
de orientação no mundo que está muito para lá da dimensão alimentar. No entanto, o
certo é que a macrobiótica é sobretudo conhecida pela sua referência à alimentação, o
que, de algum modo, faz com que, também neste trabalho, a macrobiótica seja
perspectivada com particular preponderância a partir das questões alimentares. Estas
questões, tão propícias a serem pensadas enquanto fenómenos sociais totais,
convocando frequentemente diversas dimensões da vida social, permitem compreender
que a partir delas se tenha pretendido poder aceder à complexidade da vida social no seu
todo. A via que aqui proponho não tem essa pretensão. O que procurarei fazer será
trazer mais conhecimento sobre uma proposta de orientação no mundo que tem adeptos
em Portugal e, reflectindo sobre ela, observar de que modo alguns sectores da vida
social, sobretudo os que se ligam à alimentação e saúde, acabam por ser particularmente
interrogados, questionados e produzidos. Haverá neste trabalho uma preocupação em
procurar situar, compreender e interpretar escolhas, posições, e, nessa medida, é desde

19
«À Mesa com o Universo»

já assumido um posicionamento mais compreensivo do que explicativo (com as


implicações de ordem metodológica que daqui decorrem) na análise social.
Fazendo uso das categorias analíticas consideradas mais adequadas, procurarei
demonstrar, através dos elementos recolhidos, sobretudo em Braga e Lisboa, e durante o
período de 2001 a 2008, como certas práticas situadas nas margens podem conduzir a
um questionamento de formas predominantes de acção, podendo mesmo ser capazes de
influenciar, ainda que de forma subtil, contextos que extravasam a estrita esfera da
macrobiótica. Muito embora os meus primeiros contactos com a macrobiótica possam
ser situados nos anos 80, inicialmente na cantina da universidade e posteriormente junto
de conhecidos, o meu interesse pela macrobiótica enquanto área de pesquisa surgiu a
partir da frequência de um centro de yoga no final dos anos 90, em Braga. Desde esse
período, através da frequência de palestras, cursos de cozinha macrobiótica, curso
curricular Michio Kushi no Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), curso de Shiatsu,
participação em residenciais de formação, campos de férias organizados no âmbito das
actividades ligadas à macrobiótica e assistência em consultas de orientação alimentar
macrobiótica, tenho mantido um contacto estreito com indivíduos ligados à
macrobiótica
Desenvolver um trabalho sobre a macrobiótica significa desenvolver um
trabalho sobre as margens, no sentido de dissertar sobre um conjunto de opções que são
divergentes em relação a práticas e concepções dominantes observáveis em Portugal.
Nesta medida, é possível observar, na macrobiótica, discursos orientadores que são
frequentemente discursos de contestação em relação a algumas das formas de
organização dominantes das sociedades euro-americanas. Estas formas de contestação
não estão habitualmente consubstanciadas em movimentos organizados, nem se dirigem
a todos os aspectos da vida social, mas, na medida em que questionam aspectos de uma
ordem dominante e obedecem a uma lógica que, pelo menos em termos alimentares e ao
nível dos cuidados de saúde, é discordante das lógicas preponderantes, podem ser vistas
como formas de resistência. Talvez mais que isto até, como formas de erosão dos
próprios sistemas dominantes, como inputpara a sua reconfiguração. Não se trata
sempre de uma resistência activa, mas, como referi, mais essa resistência subtil que se
expressa ao nível das opções feitas em termos de consumos e que contribui para a
transformação de mercados e formas de acção. Realizar um trabalho sobre a
macrobiótica significa, pois, teorizar sobre as margens, sobre formas de resistência,
sobre hegemonias, mas também sobre modos de adequação. Significa também reflectir

20
A escrita que desenha as margens

sobre o modo como indivíduos que (pelo menos por enquanto) não têm nem agenda
política nem projecto objectivo de transformação da sociedade, acabam por contribuir,
por vezes de forma criativa e inovadora, como procurarei demonstrar, para transformar
a realidade social.

1.2 Ideologia, Ideologias Alimentares

As questões com que iniciei este capítulo surgem agora enquadradas numa
formulação teórica que perspectiva a opção pela macrobiótica como reveladora da
importância dos processos ideológicos, dos discursos, e das crenças, na definição de
práticas alimentares e modos de concepção/ orientação no mundo. Este posicionamento
não significa que vejamos as escolhas alimentares como sendo sempre determinadas por
questões ideológicas. É bem possível seguir orientações alimentares sem prestar atenção
a concepções específicas que supostamente lhe estão por detrás (ao longo deste percurso
tive oportunidade de conhecer pessoas que se encontravam nessa situação), mas adoptá-
las já significa de algum modo um “acto de fé”. Optar pela forma de alimentação
proposta pela macrobiótica significa dar algum suporte aos princípios orientadores que
lhe subjazem, significa reconhecer como válido, pelo menos num determinado
momento, um conjunto de concepções, uma cosmovisão, que, não configurando
exclusivamente uma ideologia alimentar, também pode ser identificado como tal.
Ainda que a macrobiótica defendida e praticada hoje nos muitos centros
macrobióticos da Europa e dos Estados Unidos seja diferente da de Ohsawa (fundador
da macrobiótica moderna), tendo conhecido transformações e adequações aos novos
tempos, ela continua fiel, como procurarei demonstrar, aos princípios basilares criados
pelo seu fundador. O conjunto de concepções e sentidos associados, neste caso, à
comida, surgem assim como extremamente relevantes para compreender as práticas
alimentares. Podem proporcionar uma reavaliação do gosto e das qualidades nutritivas,
uma diferente estética e um novo conjunto de vantagens para a saúde, tal como refere
Scrinis (2007:125).
Adoptar a macrobiótica, significa, quando tal resulta de uma opção livre,
reconhecer um conjunto de orientações como válido. Pode até ser possível que não se
esteja informado sobre os “princípios filosóficos” associados à macrobiótica,
conhecimento que deveria estar subjacente à sua prática, mas quando se fazem escolhas

21
«À Mesa com o Universo»

alimentares orientadas a partir desta proposta, deposita-se valor neste tipo de orientação.
Acredita-se que aquelas escolhas, naquele momento, têm significado. Age-se, assim, em
concordância com um quadro ideológico particular, no sentido de uma visão do mundo
particular, a partir do qual são definidas escolhas alimentares e técnicas específicas de
confecção. Ainda que os indivíduos possam agir de uma forma que nem sempre é
consciencializada como estando enquadrada por uma ideologia, ela parece existir e
orientar parte das suas acções. De acordo com Žižek (1997) estaríamos aí nesse nível
fundamental de uma ideologia que é o de uma fantasia inconsciente que estrutura a
realidade social. Contudo, convém reafirmar, que se a macrobiótica não é sempre um
exercício consciente através do qual se procura colocar em acção uma ideologia, em
algumas ocasiões essa consciência encontra-se presente. Assim, procurarei argumentar
que a compreensão de práticas e concepções ligadas à alimentação macrobiótica exige
um conhecimento mínimo das orientações ideológicas que enquadram essas mesmas
práticas e concepções.
Que condições permitem tornar a macrobiótica numa opção válida? São
diversificadas as razões. Podem resultar da ocorrência de uma doença; de contactos
estabelecidos com círculos de amigos; de leituras feitas sobre esta proposta de
orientação; de uma obsessão com uma alimentação pretensamente saudável; de razões
sociais e filosóficas conectadas com movimentos ambientalistas e de defesa da “comida
saudável”; de desejo de distinção social e de outras razões ainda. Sejam quais forem os
motivos, os indivíduos atribuem sentido a esta proposta e julgam que ela pode ser a
chave para uma vida com maior qualidade (claro que esta é uma apreciação de carácter
subjectivo). A crença depositada por estes indivíduos no valor da macrobiótica leva-os a
integrarem-se em redes de relações sociais associadas à prática macrobiótica e a
procurarem, por vezes, formação específica nesta área. Adoptar uma nova forma de
alimentação não significa sempre alterar de uma forma global o estilo de vida, mas
costuma ser um bom ponto de partida para efectuar uma série de transformações, o que
evidencia a importância dos enquadramentos ideológicos na compreensão das formas de
concepção/acção. Estas mudanças, como veremos, estão longe de ser homogéneas,
podem seguir padrões rígidos numa fase e, noutras, padrões mais brandos, adequando-
se, então, num modo de vida muito menos comprometido com a macrobiótica e mais
desligado do quadro ideológico associado a esta proposta de orientação no mundo.
Usar aqui o conceito de ideologia parece quase um atavismo, dada a utilização
menos recorrente que tem sido feita deste conceito. O facto de ter havido um uso

22
A escrita que desenha as margens

excessivo e talvez abusivo desta categoria cognitiva, de ter havido sobretudo, em certos
casos, uma identificação quase exclusiva da noção de ideologia com orientações
políticas, e, ainda, de as fronteiras entre o que é ideológico e o que não o é se terem
esbatido, terá levado a que esta noção fosse considerada vaga e pouco objectivável,
perdendo assim algum do seu valor analítico (Laclau,1997). Na minha perspectiva, esta
categoria, no seu sentido mais amplo, e que aqui tomo sobretudo como visão do mundo,
continua ainda a ser um recurso com significado, na medida em que constitui um
suporte onde são encontradas orientações que frequentemente condicionam concepções
e acções. Isto não significa que toda a acção seja suportada por esse quadro ideológico,
até porque os indivíduos, com os seus fraccionamentos, se podem auto-referenciar em
diferentes quadros ideológicos. O que pretendo dizer é que a menção a esse conjunto
específico de concepções e de orientações, aqui visto como configurador de uma
ideologia, permite uma análise mais sustentada dos modos de percepcionar e de agir.
Ainda que a adopção desse quadro de referência possa ser parcial, ou não se verificar a
todo o momento, constitui um plano incontornável a partir do qual é gerado sentido e
onde entendo que devemos procurar significados.
Não é tarefa fácil identificar e enumerar sumariamente todos os aspectos que
podem ser vistos como constitutivos de uma ideologia, mas alguma dificuldade de
objectivação também não deve constituir, no meu entender, condição suficiente para
abandonar um recurso no qual reconheço valor heurístico. Na apresentação e
caracterização da macrobiótica a que procederei, procurarei identificar esse sistema de
ideias e de representações, essa visão do mundo em que por diferentes processos
simbólicos, os alimentos e o corpo vão adquirindo significados particulares. Adianto,
desde já, que há um conjunto de características que concorrem para uma
conceptualização do mundo que ajuda a compreender as orientações, escolhas e
decisões adoptadas no âmbito da macrobiótica, a saber: uma visão alternativa do
mundo, com uma visão holística do universo, da vida e do corpo; um desejo de
transformação da vida social; uma visão do mundo como sendo transformação contínua
regida por forças antagónicas e complementares yin/yang; uma cosmovisão em que se
promove a aproximação à natureza e à harmonia do mundo social com o mundo natural;
uma defesa dos produtos biológicos e pouco processados pelo facto de traduzirem uma
energia mais favorável ao desenvolvimento humano; uma crítica à biomedicina e ao
modelo agro-industrial de alimentação; uma crítica à modernidade, ao progresso e ao

23
«À Mesa com o Universo»

industrialismo. 4 Estes são pois alguns dos aspectos que considero mais relevantes na
configuração de uma ideologia orientadora da acção.
O uso que dou à noção de ideologia corresponde,assim, sobretudo à sua acepção
mais neutral e alargada, vai mais de encontro a Karl Mannheim, que a entendia como
visão do mundo, do que a Karl Marx que a tomava como deformação da realidade e
produto da classe dominante. Para Mannheim (Ideologia e Utopia, 1986 [1929]), cada
grupo, com a sua posição social, desenvolveria uma visão sobre o real que seria
expressão dessa mesma posição. Nesse sentido, e na sua acepção, os grupos dominantes
elaborariam sobretudo ideologias de justificação enquanto os grupos dominados
construiriam ideologias utópicas e de contestação. Qualquer estrutura de pensamento
era vista como implicada num processo de ideologização, podendo ser vista como
relativa e como expressão de uma perspectiva particular (cf. Bonte e Izard, 1991). Mais
do que de ideologia deveríamos então falar de ideologias. O plural adquire aqui
particular significado, pois chama a atenção para a dificuldade em reconstituir o todo
social numa ideologia, como se fosse um corpus homogéneo e harmonioso e convoca-
nos a pensar as sociedades como constituídas por diferentes lógicas simbólicas, de
encontro ao proposto por Augé(cf. Bonte e Izard, 1991).
Não pretendendo desenvolver aqui um debate aprofundado sobre o uso da noção
de ideologia, não é esse o objectivo deste trabalho, gostaria de realçar que o sentido que
aqui atribuo a esta categoria contempla essa pluralidade nas formas de concepção e de
orientação. Perspectivo as ideologias como sistemas de ideias e representações onde se
alojam teorias, convicções, crenças, formas de argumentação que condicionam as
formas de acção. As ideologias não estão fora do real (realidade simbolizada,
socialmente construída), são constitutivas desse real, surgem no coração da realidade
social e alimentam-se dele. Desta forma, perspectivo cada indivíduo como podendo
auto-referenciar-se em diferentes quadros ideológicos, de acordo com diferentes
contextos de expressão. Entendo as diferentes formações ideológicas como sendo
mutáveis e não eternas, como não tendo um sentido unívoco, mas sim um carácter
dinâmico, ou seja, como não condicionando apenas a acção mas também se deixando
influenciar por ela. São, para além disto, o resultado de entendimentos e circunstâncias
específicos, passíveis de ser reinterpretadas e recompostas.

4
Agradeço a João Guerra a leitura atenta de uma parte deste trabalho bem como a sua proposta para que
estabelecesse um paralelismo entre o movimento da agricultura biológica e o movimento que leva à
adopção da macrobiótica. Alguns dos aspectos que assinalo são sugestão sua e são efectivamente
reencontráveis no movimento da agricultura biológica (cf. Truninger, 2010)

24
A escrita que desenha as margens

1.3 Macrobiótica e Nutricionismo

O esclarecimento desta posição impunha-se para que pudesse analisar e discutir


as escolhas alimentares enquanto escolhas suportadas por uma ideologia, ou seja, por
quadros específicos de representação. Por outro lado, perspectivar as escolhas
alimentares na macrobiótica como devendo ser ideologicamente referenciadas, permite
explorar, no contexto deste trabalho, uma contraposição que me parece pertinente,
justamente a que confronta macrobiótica e nutricionismo. Considero que o confronto
entre as orientações alimentares implicadas em registos tão distintos como a
macrobiótica e o nutricionismo, permitirá estabelecer com maior clareza o quanto as
crenças e convicções orientam a acção.
A abordagem do nutricionismo como ideologia alimentar tem vindo a ser
desenvolvida porGyorgy Scrinis (2002). Com este termo, Scrinis remete para uma
forma de concepção, descrição e análise dos alimentos que se encontra referenciada nas
Ciências da Nutrição (espaço de confluência de diversas áreas científicas) e que
constitui, no seu entender, uma forma de ideologia alimentar, dado o valor supremo
atribuído aos nutrimentos (Scrinis: 2002, 2007). Na acepção deste autor, o “paradigma
nutricionista”, suportado por cientistas, dietistas, autoridades de saúde e indústria
alimentar, terá conduzido a uma visão da comida em que esta é praticamente reduzida
às suas qualidades nutritivas e à relação que estas podem ter com um corpo saudável.
Este tipo de paradigma, que, de acordo com o autor, tem condicionado toda a indústria
alimentar e o modo como nos alimentamos actualmente, é apresentado como algo que
deve ser questionado e desmistificado, sob pena de estarmos a reduzir a comida apenas
a nutrientes. Fazendo referência ao modo um pouco errático como foram sendo
considerados certos alimentos pelas ciências da nutrição, procura evidenciar o quanto
esta orientação alimentar tem de ideológico.
No seu célebre artigo “Sorry, Marge” (2002), Scrinis utiliza o exemplo da
margarina para demonstrar de que forma um produto inventado no final do século XIX,
como alternativa menos dispendiosa à manteiga, foi tomado pelos nutricionistas, nos
anos 60 e 70 do séc. XX, como superior à manteiga, do ponto de vista nutritivo. A
importância que a partir dos anos 1950 e 1960 se atribuiria ao colesterol no
desenvolvimento de doenças cardiovasculares não seria nada benéfica para as gorduras

25
«À Mesa com o Universo»

saturadas e, neste caso, especificamente para a manteiga, passando alguns óleos a ser
recomendados como opções “mais saudáveis”. As vantagens que haviam sido atribuídas
à margarina caíram, entretanto, por terra. É que as gorduras hidrogenadas, as gorduras
trans, onde a margarina se inscrevia, passaram a ser vistas como extremamente
prejudiciais para a saúde. Ainda que não contenham colesterol, produzem-no no corpo
quando são ingeridas. Entretanto, em contextos como o português, o Instituto do
Coração, que durante muito tempo recomendou a margarina Becel, deixou de figurar
nas embalagens do produto, mas a marca passou a incluir ómega 3 e ómega 6 para
continuar a justificar a sua importância na prevenção de doenças cardiovasculares.
Exposta a poderosos lobbies e contra lobbies, a comida tem assim sido objecto de
interpretações muito variáveis.
Face a estas inflexões e percursos algo erráticos de certas visões sobre os
alimentos, de que a margarina seria apenas um exemplo, Scrinis (2002:114) critica as
orientações dadas pelos nutricionistas e classifica-as como sendo desorientadoras e
gerando confusão. No seu entender, as categorias nutricionais, enquanto produtos dessa
ideologia alimentar que designa por nutricionismo, não guiariam adequadamente as
pessoas nas suas escolhas alimentares. Mais que isto, esta ideologia estaria a ser
explorada para preparar os consumidores para uma nova vaga de produtos que
permitiriam fazer prosperar a indústria alimentar e farmacêutica: os alimentos
funcionais e os nutracêuticos. Os primeiros são considerados alimentos comuns que
fazem parte das dietas convencionais e em relação aos quais existe evidência científica
de reduzirem os riscos de doença. Encontram-se incluídos na categoria de alimentos
funcionais os alimentos prébioticos e probióticos, caracterizando-se estes últimos por
possuir substâncias biologicamente activas (os prébióticos estimulariam selectivamente
o crescimento das bifidobactérias e os próbióticos conteriam microorganismos
benéficos para a saúde, como por exemplo oLactobacillus acidophillus)5. Quanto aos
nutracêuticos, são alimentos, ou parte de alimentos, vistos como prevenindo ou tratando
doenças. Estes alimentos podem apresentar-se sob a forma de nutrientes ou de alimentos
processados, sendo os suplementos dietéticos um exemplo deste tipo de alimento (cf.
Moraeset al, 2006). De acordo com Scrinis (2002:115), a ideologia subjacente a este
tipo de classificação dos alimentos, o nutricionismo, instrumentalizaria a ideia de que os
alimentos disponíveis podem não ser suficientes para garantir uma nutrição adequada,

5
Note-se como a diversidade de iogurtes aumentou e como a referência a estes aspectos passou a fazer
parte da promoção deste produto.

26
A escrita que desenha as margens

olhando para a população como se estivesse sempre necessitada de cuidados


terapêuticos
Outros autores, como Pollan (2009a, 2009b) e Nestle (2002, 2006) têm vindo a
dar algum suporte a estas posições, chamando a atenção para o modo como a indústria
alimentar se vai aproveitando das “verdades” apresentadas pelo nutricionistas e como as
decisões políticas vão indo de encontro aos interesses da indústria agro-alimentar e de
certa actividade científica por ela apoiada. Não é objectivo deste trabalho esmiuçar estes
jogos, redes, negociações, que tão bem evidenciam o quanto a alimentação pode
obedecer a orientações ideológicas e inscrever-se numa actividade política, tomamos
apenas a posição de Scrinis para pensar, ao longo deste trabalho, as orientações
alimentares, mesmo as mais cientificamente fundadas, enquanto orientações
ideológicas. O facto de diversos autores (Pollan,2009a; 2009b; Nestle, 2002; 2006;
Scrinis, 2002; 2007, entre outros) questionarem uma certa actividade científica ligada às
Ciências da Nutrição e de sobre ela reflectirem, contribui, na verdade para uma
“dessacralização” de uma visão sobre a comida suportada por áreas científicas ligadas à
nutrição.
É certo que aquilo que Scrinis observa e critica nas Ciências da Nutrição, o facto
de se irem transmitindo mensagens que são contrárias ao que se defendia anteriormente
e de tal gerar alguma confusão, pode ser observado noutras áreas científicas. Aquilo
com que Scrinis parece não se conformar, não sendo apenas isto, é, afinal, a
provisoriedade do conhecimento e o facto de na arena científica nem sempre existir
consenso relativamente a certos assuntos. Nada que se adscreva apenas às Ciências da
Nutrição. O seu mérito é sobretudo o de interrogar o produto de uma certa actividade
científica, que, fora dos limites da academia, tinha pouco espaço de discussão, e de
evidenciar o quanto esta ideologia se encontra económica e politicamente implicada.
Para além disso, convida-nos, como foi referido, a pensar a comida como mais do que
um conjunto de nutrientes, facto para que, aliás, outras disciplinas (História,
Antropologia, Sociologia, Economia, etc.), com os seus estudos específicos, têm
contribuído. A visão truncada que as Ciências da Nutrição nos propõem também não é,
na verdade, uma especificidade desta área. Que a indústria alimentar explore
intensamente a dimensão que tem a ver com a composição nutritiva, tal como Scrinis
argumenta, que se foque nas questões da saúde e que contemporize com a ideia de uma
sociedade medicalizada, deve ser, provavelmente, uma forma de defender os seus
interesses. O que torna as críticas de Scrinis mais perturbadoras é, talvez, o facto de se

27
«À Mesa com o Universo»

manifestar sobre um assunto que nos é mais imediato, que pode influenciar as nossas
escolhas diárias e, que pode, pela desorientação por vezes gerada, afectar a saúde dos
consumidores.
Qual o interesse desta discussão no contexto deste trabalho? Reside justamente,
como já se antecipou, na possibilidade de podermos ampliar a discussão das orientações
alimentares como orientações ideológicas, ou seja, olharmos para os produtos
resultantes da actividade científica ligada aos estudos dos alimentos, como podendo ser
enquadrados por algum tipo de ideologia, não tomando apenas as orientações
alimentares inscritas numa religião, grupo, ou visão particular do mundo, como
produtos ideológicos. A referência a Scrinis, e à sua visão do nutricionismo como
ideologia alimentar, serve-nos aqui, sobretudo, para salientar como, em diferentes
registos, a importância dos discursos, das concepções, das crenças, influencia a visão do
mundo e as opções tomadas. O nutricionismo como contraponto à macrobiótica adquire
aqui pois particular sentido. A aproximação que estabeleço dos dois fenómenos, ao
inseri-los numa mesma categoria, a de ideologias alimentares, julgo que esbate algum
do distanciamento com que estas orientações poderiam ser pensadas. Certa das
diferenças existentes, pretendo apenas salientar o modo como os discursos que tomamos
como “verdade” acabam por influenciar escolhas e permitem compreender formas de
acção.Tal como as más práticas médicas não têm sido suficientes para abalar a medicina
(veja-se Foucault (2001), quando refere que Illich (1975), no fundo, não questiona a
medicina em si mesma, mas os maus actos médicos), também a investigação científica
de má qualidade não é, evidentemente, suficiente para descredibilizar a actividade
científica no seu todo.
Se os discursos e práticas sobre a alimentação se inserem em ideologias
alimentares isso significa que analisá-los implica sempre uma necessária atitude de
relativismo, no sentido clássico do termo, ou seja, enquanto forma de analisar e de
interpretar que deve levar em consideração contextos particulares de acção, produção e
de enunciação. Integrar o valor da contextualização (no sentido de Bateson, 1987) na
análise de fenómenos sociais surge assim como dimensão fundamental.
Para além deste aspecto, destacamos também a importância da detecção de
configurações sócio-históricas particulares (no sentido de Norbert Elias, 1990) na
interpretação desses mesmos fenómenos, dado que os posicionamentos ideológicos
devem também aí ser integrados. Decorre deste entendimento que o modo como
procurarei analisar neste trabalho as concepções e práticas associadas à macrobiótica

28
A escrita que desenha as margens

procura prestar atenção à emergência do fenómeno e aos contextos que propiciam a sua
divulgação. Talvez um dos contextos propícios a uma maior expressividade da
macrobiótica seja justamente este, o de uma sociedade caracterizada pela abundância
alimentar e que ao mesmo tempo sente insegurança em relação a certos alimentos que
consome, perspectivando-os como consumos de risco. É neste ambiente social que
muitas áreas (nutrição, alguns sectores da produção alimentar, terapêuticas
convencionais e não convencionais) criam necessidades particulares, dirigindo-se a cada
indivíduo como se fosse um doente a tratar e a requerer cuidados específicos. É também
desta forma, ainda que com argumentos peculiares, que, como veremos, os discursos de
divulgação da macrobiótica frequentemente se dirigem aos indivíduos.

1.4 Singularidades da Macrobiótica

O conjunto de princípios orientadores que encontramos na macrobiótica é em


muitos aspectos assimilável a uma formulação religiosa. Muito embora se defenda o
non credo como princípio orientador, a explicação do mundo e do universo, assente na
matriz dualista de yin e de yang, é frequentemente uma explicação de carácter
dogmático. Muitos dos que aderem à macrobiótica distanciam-se assim de matrizes
científicas de interpretação do mundo, chegando a revelar desprezo pela actividade
científica. Contrariando algumas das formulações associadas à modernidade, aqueles
que seguem a macrobiótica revelam um conjunto de atitudes que evidenciam uma quase
necessidade de reencantamento do mundo (no sentido weberiano do termo).
Paradoxalmente, como teremos oportunidade de verificar, e sobretudo ao nível da
divulgação e promoção da macrobiótica, recorre-se com frequência a linguagem
“científica” para sustentar de forma mais categórica algumas convicções. É desta forma
observável uma amálgama entre elementos que nos fomos habituando a perspectivar
como característicos da pré-modernidade e da modernidade, sendo esta uma das vias
através da qual é sugerido o carácter híbrido e interceptivo da macrobiótica6.
Tal como noutras narrativas religiosas, a cosmovisão associada à macrobiótica
oferece-nos uma narrativa integradora, uma “história dos começos” organizadora do
caos. Oferece-nos ainda uma visão sobre o espírito humano e aquilo que referem ser a

6
Sobre as perplexidades da modernidade, ver Bastos (2001), Canclini (1994), Latour (1997).

29
«À Mesa com o Universo»

“sua busca de absoluto”. A proposta de Ohsawa relativamente à macrobiótica evidencia


claramente, como veremos, essa dimensão espiritual e religiosa. Para aquele que é
considerado o fundador da macrobiótica, comer era um acto sagrado, uma convocação
do universo, uma forma de integração e comunhão com esse mesmo universo. No seu
entendimento, a comida era de tal forma importante que estava na origem do próprio
espírito (cf. Kotzsch, 1981). Toda a proposta macrobiótica se encontra pois, como
procurarei esclarecer, profundamente impregnada por uma dimensão mística e
espiritual. Negar tais aspectos seria descaracterizar a macrobiótica.A compreensão da
recomendação deste ou daquele alimento, das técnicas de confecção e composição dos
pratos, assenta, sublinho, numa visão particular do mundo, cujos fundamentos, criados e
recriados por Ohsawa, possuem essa essência mística.
A actividade de Ohsawa enquanto promotor e divulgador da macrobiótica foi
notável. Crente na absoluta importância da alimentação, construiu a partir do Shoku-yo
(movimento de defesa da importância de uma alimentação simples, inspirado naquilo
que se classificava como alimentação tradicional japonesa) as bases da macrobiótica. O
seu trabalho é em grande medida um trabalho de continuidade em relação ao que o
fundador deste movimento, Ishitsuka Sagen (precursor da macrobiótica), havia iniciado
no final do séc. XIX. O edifício teórico em que se encontra sustentada a macrobiótica
evidencia um sincretismo assinalável e, de certa forma, como procurarei evidenciar, o
intento de Ohsawa em construir uma ponte entre o Ocidente e o Oriente foi conseguido.
Analisando o trabalho sobre Ohsawa que Kotzsh (1981) nos propõe encontramos
um homem profundamente implicado do ponto de vista político e social, um homem
afectado por uma configuração sócio-histórica particular, a do Japão na primeira metade
do séc. XX, que, com o seu envolvimento nas guerras e com o sentimento de nação com
missão imperialista, exaltara a superioridade da nação japonesa. Kotzsh refere, em
relação a Ohsawa, pelo menos durante algum tempo, uma proximidade com a ideologia
nazi. O ideário relacionado com a defesa da natureza, trabalho do corpo e disciplina,
construção do homem perfeito por certo não lhe eram estranhos 7. A defesa que faz de
um modo de alimentação mais simples e mais vinculado àquilo que supostamente seria
a alimentação tradicional japonesa revela não só o desejo de recuperação do passado
mas também o desejo de evidenciar a degradação da sociedade causada pela importação
de hábitos que teriam conduzido a uma certa degeneração nacional.

7
Corinna Treitel (2009) chama precisamente a atenção para a alimentação “natural” promovida pelo
regime nazi.

30
A escrita que desenha as margens

Como se pode ir antevendo, as posições de Ohsawa sobre a macrobiótica estão


muito marcadas do ponto de vista ideológico e resultam, em larga medida, das suas
próprias concepções e do modo como as organizou. Este facto não deve ser esquecido
numa investigação sobre a macrobiótica, deve sempre fazer-nos reflectir sobre o
carácter humano destas construções e sobre o modo como experiências individuais se
procuram tornar em experiências colectivas. A aura mística presente nestes discursos,
longe de ser vista como algo exterior ao homem, como algo que deve ser aceite sem
questionamento, deve ser vista como extensão desse humano, ser contextualizado,
matéria onde o “espírito do tempo” se inscreve 8.
Aquilo que aqui se sugere é que também a macrobiótica deve ser pensada nessa
dimensão, a de invenção humana, ou seja, de construção ideológica que o tempo (outros
homens) foi recompondo e reactualizando, fazendo dela um fenómeno híbrido, aberto a
contaminações e influências diversas. É evidente que a relativa consagração de uma
proposta como a macrobiótica não se faz sem que haja casos bem-sucedidos entre
aqueles que decidiram enveredar pela macrobiótica, e, também é certo que muitos são
os ensinamentos nesta área que não são negligenciáveis. Tal não constitui, porém,
motivo para descurarmos essa dimensão de invenção e recriação presente na
macrobiótica, essa capacidade para se ir adequando a novos tempos e ir integrando
aspectos dos discursos relativos a movimentos com os quais tem algumas afinidades
como os que se ligam ao vegetarianismo, à agricultura biológica, ao ambientalismo, etc.

1.5 O Tempo, esse Grande Escultor: Dinamismo, Contaminação, Plasticidade


Recomposição

Muito embora a macrobiótica permaneça fiel aos seus fundamentos, tal não
significa, como se poderá perceber, um qualquer tipo de cristalização. A macrobiótica
tem vindo a conhecer fenómenos de recomposição e de alteração nos seus discursos,
sobretudo nas suas orientações alimentares. A alimentação macrobiótica que se
praticava em Portugal no final da década de 70 era, de acordo com os indivíduos
contactados, “mais rígida”, “mais yang”, por relação com a alimentação que se pratica
actualmente (claro que também aqui encontramos variações, mas o padrão dominante

8
Uso esta noção num sentido que é convergente com a ideia de configuração sócio-histórica particular.

31
«À Mesa com o Universo»

que é percebido, é esse). Esta condição, a da recomposição, ou seja, a capacidade de ir


integrando nova informação e novos elementos, abandonando outros, evidencia também
essa capacidade de adequação aos novos tempos e contextos, o que, naturalmente,
constitui uma condição de sobrevivência.
Uma das formas de olhar para esse trabalho de recomposição, que pressupõe
dinamismo, contaminação e plasticidade, consiste em prestar atenção a discursos e
práticas no interior da macrobiótica. Se no passado era possível encontrar nos textos de
Ohsawa um dicurso de certezas relativo a alimentação, sendo esta encarada como fonte
de todas as doenças, e a macrobiótica perspectivada como capaz de as curar a todas, tal
já não sucede hoje nas sessões de formação. Se no passado a dimensão emocional da
doença não era muito relevante, nos discursos que encontrei, em cursos de formação,
esta temática passou a ser significativa. Se no passado se promoviam mudanças radicais
e imediatas de alimentação, actualmente os formadores aconselham a que seja feita uma
mudança gradual de alimentação e a que se evite a sensação de privação em relação a
certos alimentos. Se no passado se promoveu uma alimentação sem qualquer tipo de
alimento de origem animal, hoje tal não é aconselhado nos cursos de formação. As
deficiências do ponto de vista nutritivo que foram apontadas à alimentação
macrobiótica, parecem, na verdade, ter contribuído para uma reflexão sobre as práticas
alimentares propostas, conduzindo assim,no interior da macrobiótica, à recomposição de
discursos sobre a alimentação.
O facto de diversos trabalhos científicos (Dagnelie, 1989,1990,1994; Genova et
al: 2007; Miller et al, 1991; Parsons, et al. 1997; Schneede et al. 1994;Stavern et
al,1988),terem alertado para um atraso no desenvolvimento de crianças alimentadas de
forma macrobiótica e de ter sido constatada nas populações estudadas a carência de
vitamina B12, vitamina D e de cálcio terá levado a repensar, no próprio meio
macrobiótico, o conjunto de alimentos aconselhados. Não foi apenas a roda de
alimentos ou pirâmide alimentar emitida pelas organizações ligadas à alimentação que
conheceu transformações, também na macrobiótica houve necessidade de criar uma
pirâmide alimentar mais adequada aos tempos actuais. O consumo de peixe é hoje
defendido na macrobiótica como devendo fazer parte da dieta semanal, pelo menos em
duas refeições, como forma de contribuir para que não haja deficiências nutritivas. Por
outro lado, a insistência na necessidade de consumir leguminosas para assegurar um
consumo adequado de proteínas tem também sido reiterado. Estes fenómenos de
recomposição devem-se a fluxos de ordem diversa, que, naturalmente, vão variando de

32
A escrita que desenha as margens

acordo com os tempos. Derivam de configurações sócio-históricas particulares, de


argumentos, ideias-força, que vão surgindo em todas as épocas.
Na macrobiótica, ainda que se manifeste algum desdém pela actividade
científica, a verdade é que não ser sensível aos argumentos apresentados em estudos
considerados rigorosos, realizados junto de crianças para avaliar a sua condição física,
acabaria por resultar numa maior dificuldade em afirmar as vantagens da macrobiótica 9.
Não só a macrobiótica vai procedendo a uma recomposição do seu discurso, de acordo
com informações e descobertas recentes, como, também, no modo como evoca o
passado, “a tradição”, evidencia essa capacidade de apropriação e de reactualização do
seu discurso. A invocação do passado e da tradição serve frequentemente para dar
espessura e densidade às posições defendidas. O passado, tanto pode surgir na sua aura
mítica, de “saber que se perde nos tempos” e que importa recuperar, como pode surgir
como prova do tempo a evidenciar a eficácia de determinadas práticas.
Naquilo que a macrobiótica vai recuperando do passado podemos ainda observar
conexões, contaminações, a partir de correntes diversas que advogaram a defesa de
modos de vida saudável. Alguns aspectos da tradição hipocrática, como a importância
dada à alimentação, ao contexto ambiental e factores climáticos; do naturismo, como a
procura de harmonização com o “mundo natural”; e do vegetarianismo, como a
preferência por alimentos de origem vegetal, encontram ressonância na macrobiótica.
No decurso deste trabalho não explorarei particularmente estes aspectos (tal seria, só
por si, projecto para uma outra tese), tal não invalida que não surjam algumas remissões
que procurem dar conta da continuidade de certos argumentos ou da sua reconfiguração
à luz de enquadramentos operados na macrobiótica. Ainda que não proceda a um
exercício de análise histórica de diferentes “modas alimentares”, convém todavia
salientar que a macrobiótica deve ser inserida nessa vasta literatura que se foi

9
Pieter Dagnelie; Vergote et al (1990), dão conta de um estudo efectuado na Holanda junto de crianças
oriundas de famílias que haviam adoptado a alimentação macrobiótica. Nesse relevante estudo detectam
atrasos no crescimento dessas crianças, quando comparadas com crianças de famílias que seguem formas
de alimentação mais comuns. Face a estes resultados, e sabendo que tanto professores de macrobiótica
como famílias que seguiam a macrobiótica, dificilmente incluiriam cálcio e vitamina D sintetizados nos
seus consumos, propuseram o consumo de peixes gordos, a inclusão de lacticínios e a redução do
consumo de fibras para potenciar a absorção de cálcio. Os autores deste estudo referem ainda que terão
contactado o “líder dos professores dos princípios da macrobiótica”, Michio Kushi, e que este terá
aceitado os resultados obtidos. Referem ainda que Michio Kushi, através de comunicação pessoal aos
investigadores, terá afirmado incluir o consumo de peixe gordo nas suas recomendações alimentares ao
nível da macrobiótica. Os investigadores agradecem-lhe, de resto, a promessa de adaptar a macrobiótica
aos conselhos dados (cf. Dagnelie; Vergote et al:1990:207). A pirâmide alimentar proposta por Kushi
(1998), traduz alguns destes conselhos, todavia, o consumo de produtos lácteos é relegado para o topo da
pirâmide (consumo mensal, ocasional).

33
«À Mesa com o Universo»

escrevendo ao longo de séculos sobre modos de vida e dietas supostamente saudáveis 10.
Apresentadas assiduamente como condição para a regeneração dos povos, muitas destas
orientações alimentares encontram agora novos argumentos como o da defesa do
ambiente, do desenvolvimento sustentado, da possibilidade de se providenciar comida
para todos e até o argumento do avanço civilizacional que a rejeição do consumo de
carne deveria representar (tal como pude ouvir recentemente numa palestra sobre
macrobiótica). É sobretudo neste argumentário e no modo como ele dialoga com outros
movimentos contemporâneos, como os da contra-cultura, os da defesa da agricultura
biológica ou outros movimentos ambientalistas que procuraremos encontrar algumas
ligações. Argumentos como os apresentados por Peter Singer na obra Libertação
Animal (2008 [1975]) sobre o carácter não ético do consumo de carne, encontram por
vezes ressonâncias na macrobiótica. Este trabalho não se focará essencialmente nestes
aspectos, como disse, e, por conseguinte, não se deve esperar um levantamento
exaustivo destas relações, entendo, todavia, que fazer-lhes referência permitirá situar de
forma mais adequada a macrobiótica no espaço social.
Poderá parecer ambicioso um projecto que procura por um lado caracterizar a
macrobiótica, dar conta de práticas e concepções, caracterizar algumas das redes que a
alimentam e que ainda presta atenção a movimentos com os quais a macrobiótica tem
afinidades. Entendo, todavia, que proceder de outro modo resultaria num truncar deste
projecto numa parte que lhe é essencial e que tem a ver com o modo como a rejeição ou
evitamento de alguns aspectos do modo industrial de produção de comida e do modo
como se encontram organizados outros sectores sociais como a saúde e a educação
dialogam com outras tendências. A contestação/rejeição/evitamento que encontramos na
macrobiótica está longe de se constituir como movimento social organizado, com
actividade política, reitero, mas, no seu relativo silêncio, influencia actividades
comerciais e contribui para o questionamento em torno dos modos de produção
alimentar, sobretudo aqueles que se encontram assentes num modo de produção
industrial. Contribui ainda para repensar certas práticas ao nível dos cuidados de saúde.

10
Vejam-se alguns dos títulos da Biblioteca Vegetariana publicada em Portugal em 1912 pela Sociedade
Vegetariana de Portugal, sediada na altura no Porto: A questão social e a nova Sciência de Curar, por
Angelo Jorge; Dieta frugívora e Renovamento Físico, por Abramowski (trad. de João Volmer); A saúde e
a longevidade, por J. Bastos; O vegetarismo e a moralidade das raças, por Jaime Lima, etc.

34
A escrita que desenha as margens

1.6 Quotidianos Saberes,Transformações, Manipulações, Articulações

O termo resistência surgirá ao longo deste trabalho nesse sentido que é o de


protecção, mas também de uma certa contestação/evitamento/ rejeição face a
determinadas práticas, sem que tal implique, como referi, uma forma de activismo clara
e deliberada (muito embora, em certos momentos, tal possa ocorrer). Convém também
referir que estas formas de resistência se enquadram em discursos que são críticos
relativamente a certas práticas alimentares e cuidados de saúde, sobretudo aquelas
práticas alimentares que resultam de um excessivo processamento dos alimentos e
aqueles cuidados de saúde que não perspectivam o corpo de forma holística e que se
encontram muito assentes na administração de medicamentos. Nesta medida, esses
discursos apelam a mudanças de atitude que, em meu ver, configuram formas de
resistência face a práticas dominantes. Com isto, não pretendo dizer que estas atitudes
sejam declaradamente, e conscientemente, uma forma de oposição às políticas
instituídas, aquilo que acontece é que, no decurso de tais formas de acção, há
concepções e procedimentos que são questionados, acabando tal por contribuir para uma
certa erosão de sistemas que são dominantes. Estes processos, como Foucault
demonstrou, são por vezes subtis e desencadeiam-se sem que haja sempre uma clara
consciencialização dos indivíduos relativamente ao tipo de relações em que estão
implicados. Essa oposição pode ocorrer num contexto em que aquele que contribui para
a erosão do sistema não tem sempre o propósito de o contestar de forma evidente.
Colocar a questão nestes termos pode permitir “desocultar” relações, que, não sendo
exclusivamente relações de poder, também o são. Permite ainda detectar formas de
erosão que podem, efectivamente, vir a alterar relações sociais.
Na formulação teórica que orienta este trabalho as noções de poder e de
empowerment articulam também alguns dos aspectos que analisaremos a propósito da
macrobiótica11. Estes conceitos não são, seguramente, conceitos originais, mas são
certamente conceitos estruturantes que ajudaram a compreender lógicas sociais e
individuais de acção e que também aqui, na macrobiótica, me parecem instrumentos
conceptuais úteis para compreender opções e estratégias. A concepção de poder a que
aqui faço referência, de inspiração foucaultiana, não se prende apenas com aspectos
11
Muito embora a noção de empowerment possa ser entendida como noção excessivamente vulgarizada e
instrumentalizada (cf. Cunha e Durand: 2011), o certo é que ela me parece traduzir, melhor do que
qualquer outra, a incorporação de conhecimentos, traduzíveis num acréscimo de competências, numa
maior autonomia e confiança, que acabam por ter repercussões no modo como os indivíduos agem e
interagem.

35
«À Mesa com o Universo»

institucionais, formas hierárquicas ou relações de dominação e sujeição, tem também a


ver com conhecimento/informação que são percebidos como fonte de poder e que
permitem um saber acrescido capaz de gerar distinção sobre os demais. Um saber que,
de uma forma geral, se nos afigura como permitindo uma maior agencialidade na
condução de destinos individuais, na medida em que permite aos seguidores da
macrobiótica verem-se como detendo um conhecimento sobre o corpo e sobre os
alimentos que os singulariza e a que nem todos têm acesso. É esse mesmo saber/poder
que lhes permite frequentemente dispensar os cuidados do Serviço Nacional de Saúde
(SNS) e encarar processos de tratamento que, por vezes, estão quase exclusivamente
centrados em aspectos alimentares. Trata-se aqui de um saber/poder que, nessa medida,
é emancipatório, dado que confere maior autonomia e pode dispensar os cuidados
médicos. O domínio específico de conhecimentos veiculado através da macrobiótica
tem assim uma dimensão de empowerment, reconhecível na prática quotidiana daqueles
que seguem a macrobiótica, e, na medida em que esse conhecimento resulta de uma
aprendizagem específica a que nem todos puderam aceder, proporciona ainda, e numa
acepção bourdieuniana, distinção social.
Não pretendendo com isto dizer que a opção pela macrobiótica acompanha
sempre uma vontade de distinção social, deve ser sublinhado que esta acaba por
ocorrer, na medida em que conduz a um conjunto de opções que em muito singularizam
um modo de vida.Tive oportunidade de me confrontar com diversos casos em que era
possível observar algum distanciamento relativamente àqueles que se alimentavam de
uma forma mais comum. A crença de que o tipo de alimentação proporcionado pela
macrobiótica conduz a uma vida mais saudável e a um maior conhecimento do corpo é
uma ideia sempre presente.
Deve ser ainda realçado que diversos estudos têm revelado os hábitos
alimentares como sendo dos mais permanentes. Por este motivo, uma alteração a este
nível é sempre portadora de mudanças significativas. Quando se mudam
substancialmente as práticas alimentares, costumam observar-se, na verdade, alterações
nos modos de vida. Tal não significa que ocorra sempre uma alteração radical, mas há
transformações que são significativas. Os hábitos alimentares, sendo dos mais
arreigados, são aqueles que podem ser observados por mais tempo nas comunidades
imigradas. Perduram durante mais tempo que a utilização, no seio familiar, da língua em
que o grupo se expressava antes da imigração (veja-se Calvo,1982, e a defesa que este

36
A escrita que desenha as margens

autor faz da ideia de continuum alimentar)12. Também para Bourdieu os gostos


alimentares são os aspectos que mais perduram face ao afastamento do contexto em que
se cresceu e são dos que mais inspiram nostalgia (Bourdieu, 1979: 85). David Sutton
(2001), salienta também a importância do papel da memória na evocação de sabores.
Face a hábitos tão profundamente enraizados, como o são os hábitos alimentares, a
adesão à macrobiótica costuma proporcionar, na verdade, uma experiência de re-
invenção do quotidiano alimentar, desde a aquisição dos alimentos à sua confecção e
ingestão, o que, só por esta via, a da alimentação, acaba por se traduzir em alterações no
modo de vida.
Conhecimento/saber, introdução numa lógica que se acredita dotada de
virtualidades e que exige do indivíduo um controle de certos desejos, designadamente
os relacionadas com hábitos e gostos alimentares, bem como uma disciplina para que
nem todos estão preparados, eis pois ingredientes preciosos que assistem a uma vontade
de autonomia e que permitem uma maior sensação de controlo do corpo. Na verdade, a
macrobiótica, com o seu conjunto de concepções específicas, leva o indivíduo a
direccionar-se para o seu corpo, codifica esse corpo, ensinando a observá-lo e a cuidá-
lo. Produz uma espécie de gramática do corpo a partir da qual se constroem linguagens
e narrativas específicas, modos de agir sobre o corpo, tornando-o, por vezes, num
campo de experimentação. O corpo que encontramos na macrobiótica é um corpo
frequentemente aberto a experiências radicais, onde a comida, ou ausência dela, surgem,
por vezes, como forma de libertação ou de aprisionamento. Lido em termos de yin e de
yang e disponível para o ensaio de preparados específicos ou confecções alimentares
que seguem a lógica dualista de yin/yang, este corpo é, em certa medida, um corpo que
pode sujeitar-se a trabalho e disciplina e que pode ser preparado para uma ascese auto-
transformadora.
A ideia da dieta alimentar como forma de disciplina e controle do corpo é vista
por Bryan Turner (1982) como indispensável à compreensão do processo de
racionalização dos comportamentos observados no ocidente. Uma vida sóbria, com
exercício e alimentação regrada, tal como a defendida por Alvise Cornaro (1558),
Leonard Lessius (1634), George Cheyne (1733) evidenciariam, segundo este autor, um
ascetismo no espírito da medicina bem sugestivo de uma “afinidade electiva” entre

12
Uma investigadora albanesa, a residir em Londres, relatava-me, com alguma perplexidade, que quando se
encontrava no supermercado com um seu conterrâneo, ficava sempre surpreendida ao olhar para o conteúdo
do carrinho de compras de ambos, pois constatava que eram muito coincidentes.

37
«À Mesa com o Universo»

regimes dietéticos e desenvolvimento do capitalismo (cf. Turner,1982:27). Na verdade,


trata-se aqui de, através de uma observação dos regimes dietéticos, dar substância à
conhecida perspectiva de Weber (1983) defendida em A ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo. A ascese alimentar seria apenas mais uma dimensão de uma moral
disciplinadora e anti-hedonista, um correlato de uma moral de salvação onde a privação
e o trabalho abnegado constituíriam meios para chegar a Deus. Se a disciplina e controle
do corpo através de regimes dietéticos podem ser vistos como indispensáveis à
compreensão do processo de racionalização dos comportamentos observados no
Ocidente, tal como é pretendido por Turner, no caso da macrobiótica, a investida
disciplinar sobre o corpo traduz um repensar desse corpo que não julgo ser confluente
com o processo de racionalização do Ocidente. É certo que este processo é de âmbito
demasiado vasto, tanto podendo remeter para aspectos como a maximização do lucro e
desenvolvimento do capitalismo, como para a secularização das sociedades. De
qualquer dos modos, a macrobiótica ao questionar tão amiudadamente o Ocidente e a
sua matriz tecnológica e científica, parece afastar-se, enquanto “regime dietético”
(também incorpora este aspecto) do processo de racionalização dos comportamentos e
desenvolvimento do capitalismo referidos por Turner. Desta discussão fica sobretudo
visível a importância que as concepções sobre alimentação e a adesão a um conjunto de
princípios alimentares acabam por deter na compreensão de certas formas de acção.
A comida assume na macrobiótica um valor de transformação que procurarei
não esquecer. Pela comida o indivíduo é perspectivado como podendo curar-se, adquirir
maior equilíbrio energético e conseguir uma relação mais harmoniosa com o universo.
A comida surge como condição de desenvolvimento da sua “espiritualidade” e da sua
“capacidade de discernimento”. Para além da transformação individual que os alimentos
podem proporcionar, a sua adopção não se esgota, evidentemente, nessa dimensão
individual, acaba por afectar outras esferas da vida social, podendo contribuir para a
inovação e criatividade social. Novos alimentos, novas técnicas de confecção, novos
mercados e novos espaços comerciais são produtos que, em alguns casos, em Portugal,
derivam da adopção da macrobiótica como sistema de referência e orientação no
mundo. Muito embora venha a desenvolver um pouco mais esta dimensão, no âmbito
deste trabalho, e por razões que se prendem com uma necessária delimitação, não me
centrarei numa análise aprofundada destes produtos e das relações que em torno deles se
geram, centrar-me-ei mais nos discursos que procuram induzir essa transformação
individual e no modo como esses mesmos discursos são acolhidos, levando a

38
A escrita que desenha as margens

transformações no quotidiano, cenário que conduz inevitavelmente a transformações na


vida social.

1.7 A Macrobiótica, Sistema Terapêutico

Analisar a macrobiótica sem a perspectivar como sistema terapêutico seria uma


quase impossibilidade, dado que o próprio desenho das refeições, os seus ingredientes e
modo como são preparados seguem frequentemente preocupações de ordem terapêutica.
Um dos motivos pelos quais é seguida é justamente por prometer mais saúde e bem-
estar. Uma das dimensões deste trabalho incorporará assim a análise da macrobiótica
enquanto sistema terapêutico, procurando evidenciar concepções sobre saúde e doença,
formas de diagnóstico e de tratamento e percursos de tratamento na área da
macrobiótica. Abordar a macrobiótica enquanto sistema terapêutico significa trazer para
o debate a questão do pluralismo médico, ou, de forma mais rigorosa, do pluralismo
terapêutico. Não sendo um fenómeno novo, julgo não errar ao afirmar que a diversidade
de terapias propostas hoje em Portugal é mais expressiva do que nunca, tal como
acontece noutros países (cf. Eisenberg e Kaptchuk; 2001; Franco, 2010)13.
Muito embora a macrobiótica não tenha sido reconhecida em Portugal como
terapêutica não convencional (foi-me comunicado por consultores nesta área não ter
havido vontade e investimento claro nesse sentido) a opção por tratamentos através da
macrobiótica coloca problemas que têm sido comuns à adopção de outras possibilidades
de tratamento entretanto reconhecidas. Desde logo, a dificuldade em obter
comparticipações do estado, seguradoras e outros sistemas de assistência, nas
consultas/tratamentos efectuados, o que constitui frequentemente um factor dissuasor.
Por outro lado, foi-me também assinalada a dificuldade em conjugar, quando
necessário, formas de tratamento não convencionais com a medicina convencional. A

13
Ainda que diversas modalidades terapêuticas sejam hoje reconhecidas em Portugal - homeopatia,
fitoterapia, acupunctura, osteopatia, quiroprática, naturopatia – (Lei 45/2003) não se encontram, por
enquanto, regulamentadas, o que dificulta a sua inserção no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Algumas
seguradoras (em 2006, a AdvanceCare e, em 2011, a Multicare) passaram a proporcionar aos seus
segurados consultas e tratamentos nestas áreas. De acordo com declarações prestadas ao jornal Público
(3/4/11) por Manuel Branco, presidente da assembleia da Federação de Medicinas Não Convencionais,
Portugal teria já 3,5 milhões de consumidores de terapêuticas não convencionais e Portugal estaria “(…) a
seguir o caminho de outros países, em que, antes de o Estado regulamentar o sector, as seguradoras
responderam ao mercado”. Também Pedro Choy, presidente da Associação de Profissionais de
Acupunctura, referia no mesmo jornal que “nos Estados Unidos, as seguradoras tiveram um papel
essencial na regulamentação das medicinas não convencionais”.

39
«À Mesa com o Universo»

articulação e permanência em sistemas distintos nem sempre são facilitadas, dada a


fraca receptividade que por vezes é encontrada relativamente a outros modos de
tratamento (tal verifica-se tanto na macrobiótica como nas consultas médicas mais
convencionais), verificando-se até a ocultação do facto de se estar a recorrer a outra
terapêutica. Vista como pouco receptiva a integrar outras modalidades de tratamento, à
medicina convencional são por vezes ocultados, como referi, outros percursos de
tratamento. Recorre-se frequentemente ao SNS para obter um primeiro diagnóstico,
meios complementares de diagnóstico ou outras formalidades de natureza burocrática.
Encontramos aqui, desde logo, questões que se prendem com o modo como as margens
interagem com o poder biomédico e o manipulam, e, também, com o modo como esse
poder trabalha nas margens ou com as margens. No caso deste trabalho, prestarei
sobretudo atenção ao modo como, a partir das margens, se trabalha com o poder
biomédico.
A situação atrás enunciada evidencia indivíduos que, de acordo com a
informação detida e com as circunstâncias específicas em que se encontram, se
movimentam entre diferentes sistemas, procurando as soluções que julgam mais
adequadas para os seus problemas. Claro que é possível observar indivíduos com
atitudes passivas ou que consideram que não devem sair da medicina convencional. No
caso dos que seguem a macrobiótica, também os há, que, pelas suas razões/convicções
específicas, dificilmente recorreriam à medicina convencional, mas essa, como
procurarei demonstrar, não é, na macrobiótica, a regra para casos sentidos como graves.
Há situações que são compreendidas como exigindo o recurso a outro tipo de serviços e
de tratamentos. Nenhum dos consultores de macrobiótica com que tive oportunidade de
contactar aconselharia a que, após um acidente de viação, se recorresse exclusivamente
à macrobiótica.
Optar por um tratamento na macrobiótica não significa, pois, na maior parte dos
casos, excluir outras possibilidades de tratamento. Junto daqueles que recorreram à
macrobiótica por motivo de doença, esta possibilidade terapêutica, surge,
frequentemente, apenas como mais uma dimensão do tratamento, por entre outras. Em
diversos casos é mais uma via que experimentam. Pode surgir quando o Serviço
Nacional de Saúde já não oferece respostas adequadas. Contudo, quando se pratica
macrobiótica com grande convicção, experimentam-se em primeiro lugar as soluções
dadas no interior desta proposta para os problemas apresentados e só depois se
procuram caminhos complementares. Em alguns casos chega-se até a confiar

40
A escrita que desenha as margens

excessivamente nas virtualidades da macrobiótica. Foi-me relatado um caso de criança


com queimaduras muito graves que os pais não quiseram hospitalizar, decidindo fazer o
tratamento em casa com aplicação regular de tofu frio. O caso teve um desenlace feliz,
mas tal poderia não ter ocorrido.
Os problemas enunciados remetem-nos para algumas questões que têm sido
debatidas nas ciências sociais e que podem ajudar a clarificar as observações efectuadas.
Uma delas prende-se com a necessidade de perspectivar estas questões no âmbito das
políticas do corpo e os sujeitos destes processos como cidadãos e sujeitos políticos (cf.
Cunha e Durand: 2011; Faizang, 2011). Sylvie Fainzang (2011), ainda que num registo
diferente, o da automedicação, perspectiva-a como um acto político, na medida em que
evidencia um exercício de autonomia e uma ruptura da dependência face à autoridade
médica. Neste sentido, também a adopção de terapêuticas não convencionais poderia ser
vista como instaurando uma disrupção face à medicina convencional. Sendo certo que
tal pode ocorrer na macrobiótica, convém também referir que é possível, em certos
casos, observar articulação entre diferentes sistemas, sendo integrada, como procurarei
demonstrar, informação resultante dos percursos na medicina convencional nas
prescrições feitas em consultório de orientação macrobiótica. Mesmo no caso da
automedicação, Noémia Lopes (2007) destaca, não tanto uma ruptura, mas mais uma
“crescente interdependência entre universos leigos e periciais” (Lopes, 2007: 137). A
noção de hegemonia dinâmica apontada por Mónica Saavedra (2011) em relação à
vacinação - “processo permanentemente recriado, envolvendo ideias, discursos, práticas
e experiências de agentes heterogéneos, de poder desigual, em interacção” (Saavedra,
2011:137) - julgo que contribui para a compreensão de opções como a automedicação
ou as terapêuticas não convencionais, na medida em que atende ao dinamismo destes
processos e às circunstâncias específicas que condicionam a acção.
Neste trabalho não explorarei eventuais transformações ao nível das práticas
hegemónicas; situar-me-ei, essencialmente, como referi, no modo como formas
marginais se situam face a essas práticas. Considero, todavia, que aí, também, a noção
de prática dinâmica, pode ser relevante, dado que do que aqui se trata também é de
compreender que tipo de articulações e dinamismos podem ser estabelecidos a partir da
macrobiótica com práticas tidas como hegemónicas. Todas estas questões têm uma
dimensão política iniludível e convém, pois, colocá-las nesses termos.
Na verdade, muito das dificuldades encontradas têm a ver com o modo como o
sistema de saúde se encontra organizado e com o reconhecimento e regulamentação de

41
«À Mesa com o Universo»

certas práticas. Por outro lado, a maior ou menor capacidade para acolher a autonomia
dos cidadãos e os seus processos de decisão é algo que necessita de ser discutido e
enquadrado. É claro que este pode ser um ponto de divergência entre interesses
colectivos e interesses individuais. Nem sempre o sentido de responsabilidade em
relação ao grupo é confluente com decisões individuais, mas, em sociedades que se
pretendem plurais e respeitadoras das liberdades individuais, julgo deverem existir
medidas políticas que, após amplo debate e negociação, permitam a expressão dessa
mesma pluralidade.
A análise destas questões remete-nos ainda para diferentes racionalidades
(formas de ver o mundo) que orientam diferentes actores e até para diferentes modelos
de biocomunicabilidade. Este conceito é aqui usado na acepção que lhe é dada por
Briggs e Hallins (2007: 45), ou seja, enquanto actos discursivos e práticas focados nas
questões da saúde e da medicina. De acordo com estes autores, seria possível identificar
três formas de biocomunicabilidade: uma primeira, assente na autoridade biomédica;
uma segunda, onde o paciente é visto como consumidor, e, uma terceira, focalizada na
esfera pública e no activismo em saúde 14. Face a estas diferentes formas de
biocomunicabilidade e demais mecanismos que orientam os processos de escolha e de
decisão, convém referir que, se em relação a alguns indivíduos podemos reconhecer
agencialidade, e orientação numa lógica que não a da submissão a práticas
tendencialmente hegemónicas, noutros, porém, pelo menos em relação a aspectos
relacionados com o cuidado de si, pode ser observada uma atitude passiva, no sentido
de aceitação e não questionamento do tipo de tratamento recomendado. Se esta atitude
pode ser observada em indivíduos que apenas recorrem à medicina convencional,
também pode ser encontrada na macrobiótica, verificando-se, por vezes, uma aceitação
tácita e acrítica dos seus princípios.
Indivíduos diversos, que agem de acordo com conhecimentos, contextos e
circunstâncias específicas, são um desafio para qualquer ciência, sempre disposta a
encontrar, senão leis, pelo menos regularidades, padrões e tendência gerais, a cumprir
essa finalidade que, como referia Foucault (1985), é a de ordenação e classificação de
objectos. Também na macrobiótica encontramos essa diversidade. É certo que é
possível observar tendências preponderantes, mas elas muitas vezes circunscrevem-se a

14
Para estes autores, o neoliberalismo teria modificado o modelo da autoridade biomédica. A introdução
da dimensão- possibilidade de escolha- terá sido relevante (ainda que variável de acordo com os
contextos), devendo-se-lhe acrescentar o modo como a informação é disseminada através de diferentes
cartografias da biocomunicabilidade e apropriada, criando diferentes subjectividades.

42
A escrita que desenha as margens

unidades temporais e contextuais muito específicas. O facto de este trabalho se ter


alongado mais tempo do que o inicialmente previsto permitiu-me observar situações de
indivíduos, que, da prática fervorosa, passavam a um reavaliar das suas concepções e
práticas, afastando-se da macrobiótica. É certo que inflexões, mudanças de rumo, de
acordo com novas orientações, são processos comuns, no caso da macrobiótica como
noutras situações. Encontra-se, pois, muita da actividade científica condenada a captar o
instante. Em todo o caso, são os diferentes instantes que permitem detectar indivíduos
ideologicamente orientados, indivíduos nem sempre congruentes, por vezes ambíguos e
também multi-referenciais, no sentido de agirem por referência a orientações, contextos
e situações de acordo com diferentes quadros de interacção social. Conceitos que
permitam capturar estes processos sociais são hoje, pois, de grande relevância.
Uma outra dimensão que a incursão pela macrobiótica enquanto sistema
terapêutico permite colocar é a questão da eficácia, questão que procurarei não esquecer
no âmbito deste trabalho 15. Como pode ser avaliada a eficácia deste tipo de práticas?
Pelo sucesso nos tratamentos? Como medir esse sucesso? Será necessária uma
teorização sobre esta eficácia para mobilizar os agentes, implicados na macrobiótica e
que dão consultas nesta área, para a questão do reconhecimento deste sistema
terapêutico? De que forma a eficácia é explicada? Através dos dados por mim
recolhidos, enquanto aluna de um curso de macrobiótica e como assistente em consultas
de orientação macrobiótica, procurarei explorar esta dimensão, prestando atenção a
discursos e narrativas explicativas apresentadas.
Como classificar a macrobiótica enquanto prática terapêutica? Fará parte do que
se costuma designar por práticas leigas de saúde? Esta questão, coloca, evidentemente,
problemas de reconhecimento e de classificação. É que, ainda que muito distante da
biomedicina, a macrobiótica construiu, em termos terapêuticos, um conjunto
relativamente articulado de conhecimentos (por certo questionáveis, como muitos
outros) cuja aplicação exige aprendizagem e treino; formou pessoas que se
especializaram nesta área e que fizeram dela profissão. Será o distanciamento em
relação a um conhecimento mais técnico e cientificamente fundado, motivo para
identificar estas práticas como leigas? Como classificar a categoria cognitiva: leigo? A
noção de disseminação dos sistemas periciais no quotidiano (Giddens, 1992; Beck,

15
Esta dimensão, entre outras, foi sugerida pela discussão empreendida por Anita Hardon (EASA, 2010).

43
«À Mesa com o Universo»

2008), tal como referido por Noémia Lopes (2007), aponta, justamente, para a
necessidade de perspectivar de um outro modo os saberes leigos16.
Convém sublinhar, a este propósito, que, no caso do sistema terapêutico
associado à macrobiótica, é possível observar que os seus discursos se alimentam de
informação proveniente de instâncias que podemos situar na área das Ciências da
Saúde, revelando-se, assim, como área porosa, exposta a influências e contaminações
diversas, daí resultando a sua própria recomposição. Para referir alguma da influência
da macrobiótica na biomedicina seria necessário analisar o próprio sistema biomédico,
pesquisa a que, por limitações óbvias, não procedo. Contudo, outros trabalhos,
permitem referir uma relação dinâmica entre biomedicina e terapêuticas menos
convencionais. Veja-se por exemplo o caso referido por Salkeld (2005) em que médicos
com “formações convencionais” adoptam a linguagem das “medicinas não
convencionais” ao exercerem a sua profissão em quadros que são o da consulta em
“medicinas não convencionais”. Eisenberg e Kaptchuk (2001) chamam mesmo a
atenção para o facto de a interpenetração entre “medicinas complementares” e
“medicina ortodoxa” (talvez devêssemos também acrescentar um s a estes dois termos)
ser tão acentuado, no sentido de integração das primeiras no quadro de funcionamento
da última (ensino nas universidades e disponibilização de consultas, medicamentos e
tratamentos em estabelecimentos onde a “medicina ortodoxa” pode ser preponderante),
que esta integração poderia significar a eliminação do pluralismo terapêutico.

1.8 Cruzamentos Disciplinares: a Escrita que Transcende as Margens

Na pesquisa efectuada sobre estudos científicos realizados sobre a macrobiótica,


constatámos que a maior parte deles se situava nessa vasta área que é a das Ciências da
Saúde. As abordagens situavam-se sobretudo em questões como a relação entre o
tratamento do cancro e a dieta macrobiótica, bem como com aspectos nutricionais
ligados à componente alimentar desta proposta. Pude constatar que, muito embora se
procure caracterizar a macrobiótica através de discursos produzidos por autores de
referência na macrobiótica e tenham sido, por vezes, entrevistados consultores nesta
área, parece haver lacunas na caracterização das práticas e discursos associados à

16
Neste contexto, é de sublinhar o esforço empreendido por Noémia Lopes (2007) para distinguir e
relacionar saberes leigos e saberes periciais.

44
A escrita que desenha as margens

macrobiótica. Este estudo, com todas as suas limitações, pode ser assim um contributo
para um conhecimento mais aprofundado deste universo. Ao procurar identificar e
conhecer uma proposta relativamente marginal da sociedade portuguesa, visará um
conhecimento mais sistemático e rigoroso que poderá ser aproveitado por outras áreas
científicas, designadamente as ciências da nutrição, no desenho de projectos de
investigação associados a formas de alimentação menos comuns.Talvez contribua para a
formulação de hipóteses de trabalho capazes de desfazer ou questionar certas assunções
e formas de olhar para a proposta de alimentação que a macrobiótica incorpora, talvez
essas hipóteses permitam refutar de forma consistente algumas das convicções da
macrobiótica.
O lugar deste trabalho, nesse âmbito específico que é o da alimentação, é o de
uma investigação em Antropologia Social sobre concepções, atitudes e formas de
relação com os alimentos. Dado que a macrobiótica extravasa o âmbito da alimentação,
houve necessidade de convocar outras sub-disciplinas que não apenas a Antropologia da
Alimentação. A Antropologia da Saúde e da Doença, a Antropologia do Corpo e
disciplinas como a História e a Sociologia serão, desta forma, referências fundamentais
nesta pesquisa.

45
Perspectivas sobre alimentação

Capítulo 2

Perspectivas sobre Alimentação

2.1 Antropologia da Alimentação: estradas, caminhos e encruzilhadas para uma


investigação

Como já tive oportunidade de referir, a macrobiótica extravasa a esfera estritamente


alimentar. Porém, como também já antecipei, é sobretudo pela sua referência a questões
alimentares que costuma ser identificada. Nesta medida, pareceu-me justificar-se, desde o
início, a inserção deste trabalho na área da Antropologia da Alimentação. Sem pretender
algum tipo de exaustividade, dado que diversos autores procederam a revisões dos
principais trabalhos efectuados na área da Antropologia da alimentação (Goody, 1982;
Messer, 1984; Lupton, 1996; Mintz e Du Bois, 2002; Contreras e Gracia, 2005; Araújo,
2006), seguirei um percurso clássico, justamente aquele que é sinalizado pela História da
Antropologia da Alimentação. Procederei inicialmente a uma apresentação mais descritiva
e, posteriormente, procurarei ser mais analítica e orientada para questões entendidas como
significativas para o desenvolvimento deste trabalho.
Convém referir, desde já, que os temas, conceitos e formas de abordagem que
encontramos em muitos dos textos que podemos incluir na História da Antropologia da
Alimentação são característicos de um tempo e de um tipo de inquietações que,
naturalmente, não correspondem aos que encontramos na actualidade. Nos textos mais
clássicos, como aqueles que encontramos nos finais do século XIX e na primeira metade
do século XX, temas como o da insegurança alimentar, associada ao modo de produção
industrial, não eram recorrentes. Do mesmo modo, temas como o da alimentação como
um direito humano básico; ou discussões sobre especificidades relativas à agricultura
biológica, como a sua maior ou menor adequação ao modo industrial de produção,
também não o eram (cf. Pollan, 2009a). Temas específicos como o da necessidade de
rever políticas alimentares em que países carenciados são “ajudados” com produtos
subsidiados e excedentários de países mais ricos, também não tinham aí lugar de
destaque, pelo menos tal como são formulados actualmente. Muito embora uma
preocupação de âmbito mais global com a questão alimentar pudesse ser encontrada em
organizações enquadradas na Organização das Nações Unidas (ONU), como a Food and

47
«À Mesa com o Universo»

Agriculture Organization (FAO), a generalidade dos trabalhos encontrava-se afastada de


preocupações sociais globais.
Se atentarmos numa abordagem clássica desta sub-disciplina, os primeiros textos,
que podemos enquadrar na designação de Antropologia da Alimentação, foram
produzidos nos finais do século XIX e são atribuídos a Garrick Mallery e Robertson
Smith que se centraram sobretudo em aspectos religiosos ligados aos consumos
alimentares (cf. Mintz e Du Bois, 2002). Posteriormente, autores como Audrey Richards
(1932; 1995 [1939]) que evidenciou a função social da alimentação; Margaret Mead
(1997 [1970]) que abordou a questão dos hábitos alimentares e a sua relação com a
cultura; Claude Lévi-Strauss (1965; 1968) que se centrou na dimensão simbólica dos
alimentos; Marvin Harris (1994 [1985]) que perspectivou os consumos alimentares a
partir do contexto ecológico e material; Mary Douglas (1991 [1966]; 1997 [1975];1979),
que perspectivou a comida como sistema de comunicação, entre outros, transformaram a
alimentação num objecto de relevância antropológica fundamental ao evidenciarem a
importância que os alimentos podem deter em termos de compreensão da vida social.
Para além do seu manifesto interesse do ponto de vista nutritivo, a atenção ao modo como
os alimentos eram recolhidos, produzidos, confeccionados, distribuídos, consumidos e
classificados, revelava-os como elementos extremamente significativos.
Se a alimentação se transforma numa temática importante para a Antropologia, é a
partir dos anos 80, com o livro de Jack Goody - Cooking, Cuisine and Class (1982) - que
se pode assinalar um ponto de viragem no que diz respeito aos estudos sobre alimentação.
As pesquisas nesta área, tal como destacado por Mintz e Du Bois (2002), têm permitido,
efectivamente, a clarificação de vários processos: político-económicos (Mintz, 1985);
simbólicos (Munn, 1986), de construção social da memória (Sutton, 2001), etc. A atenção
que tem sido prestada à relação entre alimentação e fenómenos migratórios; alimentação e
identidade; dimensão ritual e simbólica dos alimentos; à globalização de certas formas de
alimentação; ao modo como certas políticas afectam a forma de alimentação ou qual o
papel da guerra nas mudanças alimentares, ou ainda como a industrialização da produção
alimentar condiciona as formas de alimentação, ilustra bem a diversidade de áreas de
investigação, bem como a actualidade e importância deste tipo de estudos.
Entre os trabalhos realizados sobre alimentação é possível identificar, também,
diferentes orientações do ponto de vista teórico. Se nos servirmos, como critério de
ordenação, das matrizes clássicas da disciplina, deparamo-nos com um pólo evolucionista

48
Perspectivas sobre alimentação

(Frazer, Crawley, Robertson Smith…) que centrou a sua atenção sobretudo em aspectos
rituais, religiosos e sobrenaturais ligados ao consumo de alimentos (análise de tabus,
totemismo, sacrifício, comunhão…) e que se interessou particularmente por descrever e
interpretar proibições e prescrições de alimentos. Interessou a estes investigadores uma
identificação e interpretação de costumes alimentares estranhos, que ajudassem a explicar
a evolução das instituições sociais (Contreras e Gracia, 2005:104). Caracterizados pela
ausência de uma inserção no terreno, estes estudos defendiam, fundamentalmente, uma
perspectiva de evolução linear que desde há muito foi questionada e rebatida nos seus
pressupostos centrais, não se revelando, também por isso, pertinente a sua discussão neste
contexto.
Continuando a seguir uma apresentação apoiada em Contreras e Gracia (2005), um
outro pólo que podemos identificar é o funcionalista, que perspectivou a cultura alimentar
como preenchendo uma função específica, procurando, nessa medida, fixar os rituais e as
crenças a ela associadas em processos sociais mais amplos (Audrey Richards, 1932; 1995
[1939]). Os aspectos simbólicos associados à alimentação foram aqui relegados para
segundo plano, havendo uma focalização sobretudo nas funções sociais que dela
decorriam. Da alimentação sublinhou-se a sua dimensão como necessidade biológica
fundamental, mas foi mostrada, também, como instrumento essencial da socialização dos
indivíduos, imprescindível na perpetuação dos sistemas sociais. Aspectos como a procura,
preparação e consumo alimentares foram vistos como componente central da actividade
quotidiana, tendo de igual forma sido analisados, ainda que em segundo plano, os valores
simbólicos dos alimentos e o modo como estes serviam para evidenciar o estatuto social,
os recursos ambientais mais valorizados e os ciclos temporais. Ainda dentro desta corrente
de pensamento, foi também prestada alguma atenção ao modo como os processos de
produção e distribuição de alimentos se repercutiam na saúde da população – o trabalho de
Richards é, de resto, um bom exemplo de tal preocupação. O que hoje mais sobressai
destas propostas de análise é, talvez, o reconhecimento das influências mútuas entre
biológico e social, sendo de notar, todavia, que, de acordo com a predominância da
perspectiva durkheimiana de que um facto social só pode ser explicado por outro facto
social, esta relação só viria a ser recuperada e repensada dezenas de anos mais tarde (ver
Fischler, 2001 [1990]).
As críticas dirigidas à escola funcionalista são já bem conhecidas: realçou-se a
visão estática que produziu dos sistemas sociais, o facto de estes não serem inscritos na

49
«À Mesa com o Universo»

História, a pretensa objectividade, o facto de não se dar a atenção adequada aos conflitos e
aspectos não funcionais, etc. Apesar de tudo, vale a pena referir que de acordo com autores
como Beardsworth e Keil (1997: 59-60), as interpretações funcionalistas continuam a
permanecer, ainda que apenas de forma implícita, no centro de muitas investigações
actuais. Da minha parte, julgo que continua a ser pertinente a análise dos subsistemas de
produção, distribuição e consumo alimentar e o modo como estes influenciam os sistemas
sociais. Estas dimensões são, de resto, centrais em algumas das propostas de que mais à
frente falarei. De acordo com Contreras e Gracia (2005:115), predomina no panorama
actual uma orientação um pouco difusa, de inspiração funcionalista, que tem servido de
base para uma colaboração entre antropólogos e nutricionistas.
Uma outra vertente dos estudos sobre alimentação apontada por Contreras e Gracia
(2005) é o culturalismo, corrente que, em boa medida, coincidiu temporalmente com o
funcionalismo. Conferindo uma orientação psicológica aos seus estudos, o culturalismo
enfatizou a importância do conhecimento dos hábitos alimentares, e o modo como
diferentes culturas orientam os comportamentos neste âmbito particular. A preocupação
com o combate à fome no mundo foi aí também um elemento presente (Mead, 1997
[1970]). Os trabalhos realizados antes da Segunda Guerra Mundial centram-se em aspectos
como a ansiedade em torno da comida, a abstinência ou as frustrações alimentares (Messer,
1984). Mais tarde, tal como referido por Contreras e Gracia (2005:116), retomou-se a
análise psicológica das motivações dos comportamentos alimentares, procurando-se
observar, por exemplo, o modo como a ansiedade em torno de carências alimentares reais
ou fictícias, ou outros aspectos, podiam afectar a ordem cultural, social e psicológica de
uma sociedade (Shack, 1997 [1969]), Holmberg (1950), Massara (1997 [1989]) O que
interessa reter, a propósito da abordagem culturalista, é o lugar central atribuído à cultura:
é ela que determina diferentes práticas e representações alimentares. De acordo com
Contreras e Gracia (2005:128) durante os anos 1960 e 1970 aspectos como a imbricação de
factores económicos, ecológicos, tecnológicos e sociais, bem como a atenção às
configurações históricas e transformações sociais são menosprezados.
A vertente estruturalista, por seu turno, divulga uma concepção segundo a qual
para se compreender um sistema de alimentação nos devemos centrar nas estruturas
profundas e observar, por exemplo, de que forma o gosto e a definição do que é ou não
comestível se encontra conforme à sociedade e cultura. Evitando qualquer reducionismo
biológico a que a questão da alimentação se pudesse prestar, Lévi-Strauss esforça-se por

50
Perspectivas sobre alimentação

demonstrar que só depois de os alimentos serem reconhecidos pela nossa mente como
comestíveis é que são consumidos, ou seja, são os significados sociais atribuídos aos
alimentos, no quadro de uma taxonomia, que os tornam passíveis de ser ingeridos. Uma
outra proposta estruturalista é a de que devemos considerar os sistemas de alimentação
como sub-sistemas, não sendo possível no interior de cada sub-sistema, analisar os
elementos isoladamente (Lévi-Strauss, 1965,1968; Barthes, 1997 [1961]; Douglas, 1979;
1997 [1975]; Sahlins, 1988 [1976]; Fischler, 2001 [1990]); Bourdieu, 1979).
Nem sempre é fácil “arrumar” autores, todos eles referenciais e que, pelo menos em
alguns casos, se colocam em posições intersticiais e combinam aspectos que parecem
provir de diferentes quadros teóricos. Assim, Sahlins, embora possua referências fortes na
perspectiva estruturalista, amplia-a e dá-lhe novos horizontes, podendo ser remetido para o
culturalismo simbólico. A sua ideia de que a lógica simbólica que orienta a procura de
alimentos é a de que os que são comestíveis são os que se encontram em relação inversa
com a humanidade, quer dizer, quanto mais próximos do homem menos são consumidos,
expressa bem a importância dos aspectos culturais e simbólicos da sua perspectiva de
análise (Sahlins, 1988 [1976]). Douglas, por seu lado, evidencia tanto a influência da
corrente estruturalista francesa como a do estrutural-funcionalismo britânico.
Considerando fundamentais os aspectos biológicos do acto alimentar, esta autora, coloca,
contudo, a ênfase no carácter expressivo e significativo da alimentação (Douglas, 1991
[1966])
Bourdieu, pode, também, ser colocado entre os teóricos estruturalistas e os
materialistas, já que perspectiva o gosto e as preferências alimentares na óptica da
transmissão e da reprodução social. De facto, colocando em causa a ideia de que o gosto
seja uma escolha pessoal, Bourdieu (1979) defende que o gosto e os consumos alimentares
são uma expressão da identidade de classe através da qual se reproduzem distinções
sociais. As mudanças sociais, ligadas por exemplo, à ascensão social, resultam da
apropriação de consumos, práticas e valores das classes sociais dominantes, ou seja, é pela
imitação que se processa a alteração de uma situação social. Contudo, esta imitação nem
sempre dá lugar, de forma imediata, a uma inserção numa nova classe social. Certos
indivíduos ao procurarem mimetizar comportamentos alteram-nos, produzindo realidades
novas, não sendo assim linear a identificação com a classe social com a qual procuram ser
assimilados. A classe social surge em Bourdieu, desta forma, como estrutura relativamente
resistente; encontra-se associada a consumos alimentares e a um sentido do gosto

51
«À Mesa com o Universo»

específicos. Estes aspectos não são meramente individuais, antes resultam de uma
aprendizagem no interior de uma classe social a que não se acede unicamente pela
aquisição de capital económico.
As principais críticas aos trabalhos estruturalistas e que, de resto, também podem
ser dirigidas aos culturalistas, têm a ver com o facto de conferirem prioridade à análise dos
elementos descritivos e estruturais da alimentação e de conferirem uma autonomia
excessiva à razão cultural, sobrepondo-a a fenómenos materiais de ordem biológica,
ecológica ou histórica, negligenciando, dessa forma, o estudo do contexto sócio-económico
e político em que os alimentos são preparados e consumidos, bem como a sua evolução
espacial e temporal (Contreras e Gracia, 2005:127).
Algumas das principais respostas às orientações estruturalistas e culturalistas
podem ser situadas em torno dos trabalhos de Harris (1994 [1985]) e Ross (1980) por um
lado, e os de Goody (1998 [1982]), Mennell (1985), Mintz (1985;1996) e Beardsworth e
Keil (1997) por outro. Harris e Ross costumam ser situados na corrente neo-funcionalista,
na ecologia cultural ou no materialismo cultural. Os seus trabalhos incorporam uma
orientação ecológica e retomam aspectos da perspectiva materialista que haviam sido
redefinidos por Steward (1972 [1955]) e White (2005 [1949]). À premissa de Lévi-Strauss
«bom para pensar, então bom para comer» Harris (1994 [1985]) contrapõe a de «bom para
comer, então bom para pensar», enfatizando a ideia de que a comida tem que satisfazer em
primeiro lugar o estômago e só depois a mente. Ancorando a sua análise na compreensão
dos mecanismos de adaptação ao meio e realçando a importância das infra-estruturas
económicas em detrimento das super-estruturas ideológicas, Harris oferece-nos uma
interpretação da cultura alimentar e das preferências e proibições na qual os pontos de vista
dos actores sociais são ignorados e onde a tónica é colocada em critérios como a
maximização dos recursos disponíveis - é essa, por exemplo, a sua explicação para a
interdição do consumo de carne de vaca na Índia.
Apesar das críticas severas às posições de Harris, apresentadas por autores como
Sahlins ou Douglas, a ecologia cultural e o neo-funcionalismo abriram caminho para os
estudos etno-ecológicos que se desenvolveram entre os anos 70 e 80, de que é exemplo o
trabalho de Rappaport, (2000 [1968], 1979). De acordo com Contreras e Gracia
(2005:135), esses estudos apresentaram novas perspectivas ao defenderem que a
alimentação humana não depende apenas da adaptação aos ecossistemas, mas também das
heranças culturais; das elaborações surgidas mediante o contacto com outras populações;

52
Perspectivas sobre alimentação

dos constrangimentos face a factores externos e, também, traço relevante e que afasta esta
perspectiva dos neo-funcionalistas, do comportamento dos indivíduos enquanto actores
sociais. Estes aspectos implicavam, na verdade, uma nova postura teórica e metodológica,
obrigando a trabalhar com modelos interaccionais e processuais.
Outros autores a que já fiz referência, nomeadamente Goody (1998 [1982]),
Mennell (1985), Mintz (1985; 1996) e Beardsworth e Keil (1997), tecerão também críticas
às perspectivas culturalistas e estruturalistas. Estes autores costumam ser associados às
interpretações materialistas pela importância que atribuem à análise dos contextos
alimentares e pelo destaque que conferem a factores como o espaço, o tempo e a dinâmica
social dos grupos em diferentes quadros sócio-económicos e culturais. Autores como
Contreras e Gracia (2005:136) agrupam-nos sob o termo developmentalism, dada a sua
preocupação fundamental com o estudo do desenvolvimento dos sistemas alimentares.
Realçam, porém, que o developmentalism não é uma perspectiva explícita ou um corpo
teórico homogéneo, é sobretudo uma categoria, de acordo com a qual qualquer tentativa
para compreender as formas culturais e sociais contemporâneas deve ter em consideração a
relação destas com o passado e deve apelar à reconstrução histórica. As transformações
sociais tornam-se desta forma num tema fundamental, a partir do qual se analisarão os
efeitos da globalização, os conflitos, as contradições e as relações de poder em relação à
produção, distribuição e consumo de alimentos.
Goody (1998), que questiona a abordagem de Lévi-Strauss pela ênfase dada à
cultura e pela pouca importância atribuída às relações sociais e às diferenças individuais,
defende que não é possível uma análise da cozinha desvinculada das questões de poder e
de autoridade na esfera económica e que, consequentemente, é necessária uma análise da
estratificação social e divisão sexual do trabalho, dado que estes aspectos influenciam as
práticas alimentares. A sua análise sobre grupos do norte do Gana (Gonja e Lo Dagaa)
levá-lo-ia também a colocar em evidência os efeitos sociais produzidos pelos processos de
mudança que ocorrem a uma escala mais global, designadamente os que têm a ver com a
evolução da ‘alimentação industrial’.
Mennell (1985), desenvolvendo um estudo comparativo sobre a evolução das
cozinhas francesa e inglesa, procurou, também ele, compreender as diferenças e
semelhanças que se foram estabelecendo entre estas cozinhas, bem como entre as classes
sociais. Na sua abordagem aplicou a perspectiva de Elias (1989 [1939]), prestando atenção
a processos históricos e diferentes configurações sociais. Procurou, todavia, ampliar o

53
«À Mesa com o Universo»

trabalho desenvolvido por Elias. A seu ver, Elias centrou-se nas maneiras à mesa, nada nos
dizendo sobre o apetite (distinto da noção de fome em Mennell) como processo
civilizacional. Para Mennell o sentido do gosto, a civilização do apetite, era importante
enquanto processo histórico. Esta civilização do apetite só pôde evidenciar-se numa
situação de segurança alimentar e foi concomitante com o desenvolvimento da sociedade
de corte. Mennell defenderia ainda que uma maior interdependência e equilíbrio de
poderes entre classes sociais proporcionariam um maior equilíbrio na distribuição de
alimentos, facto que, muito embora não fosse linear, contribuiria para uma maior
similaridade entre cozinhas. A resolução da escassez dos alimentos, bem como o maior
equilíbrio na distribuição dos mesmos, seriam, assim, aspectos fundamentais para
compreender o desenvolvimento das cozinhas nacionais.
Para Mintz (1985) a análise do contexto alimentar nas suas diversas vertentes
(histórica, espacial, económica…) é também muito relevante, apontando este autor a
necessidade da elaboração de uma História Social sobre o uso de novos alimentos. O seu
trabalho sobre a produção, comercialização e consumo de açúcar - Sweetness and Power
(1985) – procura demonstrar que o consumo de açúcar pela classe trabalhadora no séc.
XIX não pode ser explicado apenas na óptica da imitação ou do gosto inato pelas
substâncias doces, mas pela interacção entre poderes económicos, políticos, necessidades
nutricionais e significados culturais. Curiosamente, defende Mintz, a suposta preferência
humana pelo doce teria encaixado perfeitamente na expansão do sistema capitalista
industrial. Constatamos que para ele, como para outros, por exemplo Fischler (2001), a
modificação dos hábitos alimentares não tem a ver apenas com um desejo de ascensão
social, pois nem todos os consumos das elites se convertem em desejos para as outras
classes sociais, sendo, ao contrário, realçada a importância das circunstâncias em que um
novo hábito é adquirido.
A análise de Beardsworth e Keil (1997), sobre a pluralidade de menus disponíveis
no sistema alimentar moderno, vai também de encontro à necessidade de contextualização
dos sistemas alimentares. A questão do desenvolvimento de tais sistemas encontra-se,
também aqui, muito presente. Para estes autores, o pluralismo na oferta de possibilidades
de alimentação é o resultado da globalização e da industrialização da produção e da
distribuição. Contrariamente a autores como Fischler (2001) que tendem a identificar a
sociedade actual com a gastro anomia, querendo com isto fazer referência à desagregação

54
Perspectivas sobre alimentação

das referências normativas17, Beardsworth e Keil tendem a ver as tensões existentes como
emergência de uma nova ordem alimentar, mais aberta, flexível e plural.
Também os estudos de género fizeram a sua incursão pela alimentação, sendo
possível identificar um primeiro conjunto de trabalhos que se centrou, sobretudo, nas
questões do poder e no modo como a acção de homens e mulheres, relativamente à
produção, armazenamento e distribuição de alimentos se traduzia em relações de poder.
Tal como referido por Contreras e Gracia (2005:149), um segundo conjunto de trabalhos
interessou-se ainda pela análise do poder subjectivo - Caplan (1997); Counihan (1999);
Orbach (1986) Adams, (2010 [1990]) – tendo-se centrado em torno das diferentes relações
que homens e mulheres mantêm com a comida e no modo como estas se repercutem na
construção das suas identidades de género. Os estudos feministas das últimas décadas
tendem a enfatizar, de resto, que as mulheres não actuam sempre de igual forma e que não
são nem meras receptoras de uma sociedade patriarcal, nem inteiramente manipuladas por
interesses económicos e políticos. Esta visão remete, assim, para o debate estrutura-
agência.
Algumas das tendências mais recentes nos estudos sobre alimentação podem ser
identificadas com o construtivismo social e o pós-estruturalismo (Lupton, 1996;
Hepworth, 1999), o debate estrutura-agência (Germov e Williams, 2004 [1999]) e o
embodyment (Shilling, 2003 [1993]) (ver Contreras e Gracia, 2005). Nestas vertentes
acentuam-se aspectos que julgamos relevantes; a visão da realidade social como
construção social, resultante de discursos e dos significados produzidos por estes; a
necessidade de interpretar os fenómenos mediante a pluralidade de circunstâncias que os
produzem; a ênfase na subjectividade; a procura da conexão entre factores estruturais e
individuais; o entendimento da ordem social e da formação da identidade como sendo cada
vez menos uma questão de classe social; a ênfase nos padrões de consumo como forma de
evidenciar a posição individual e expressar a individualidade; as críticas às teorias da
conspiração dos sistemas capitalistas que manipulam os indivíduos e determinam as suas
formas de expressão; o reconhecimento do papel da acção individual e abandono da ideia
de sujeição a um sistema; a visão dos indivíduos como não sendo nem totalmente
poderosos nem como estando completamente desapossados; o estudo do corpo como lugar
crucial para a compreensão dos processos de identidade e saúde; a rejeição dos
essencialismos e o apelo a conceitos como relativismo, interacção social e processualismo.
17
Um exemplo do que se afirma seria a grande flexibilidade nos horários das refeições.

55
«À Mesa com o Universo»

Se atentarmos em diversos estudos que têm sido desenvolvidos sobre formas de


alimentação fora do “padrão” dominante, verificaremos que têm sido enfatizados aspectos
que visam um conhecimento das motivações que conduzem a essas práticas alimentares,
considerando as trajectórias individuais e o modo como se faz a inserção deste tipo de
alimentação num outro mais amplo. Para lá destes aspectos têm ainda sido considerados os
efeitos produzidos quer nos indivíduos que adoptam determinadas práticas, quer nos
membros que configuram as redes familiares e sociais, bem como as vantagens sentidas
relativamente a esta forma de alimentação. Dimensões que remetem para as relações entre
alimentação e saúde têm, neste âmbito, sido também alvo de atenção (cf. García, 2002).
Tão-pouco têm sido esquecidos os modos de percepção relativamente àqueles que praticam
estas formas de alimentação, as preocupações de carácter ambiental, as ideologias que
subjazem a diferentes práticas alimentares, a inserção destas práticas no sistema capitalista,
etc… Autores como Barkas (1975), Beardsworth e Keil (1997), Ossipow (1997), Maurer
(2002), Stuart (2007), Lau (2000), Belasco (2007 [1989]), Araújo (2006), Le Grand (2010)
têm desenvolvido os seus trabalhos neste campo. Muitas destas investigações, que vêm
sendo feitas sobre formas de alimentação fora do “padrão” dominante, não escapam à
remissão para as correntes que atrás referimos e que, pode dizer-se, estruturam fortemente
o pensamento antropológico.
De facto, os estudos sobre práticas alimentares como o vegetarianismo, a
macrobiótica, o frugivorismo ou o crudivorismo reflectem muitas das problematizações
atrás referidas e necessitam de ser aí enquadrados. A macrobiótica, de que me ocupo nesta
investigação, parece-me ser, na verdade, um campo sugestivo para reflectir sobre aspectos
cruciais que de alguma forma a transcendem enquanto forma específica de alimentação. É
possível analisar, através deste sistema alimentar, aspectos como as dinâmicas sociais, os
efeitos da globalização, as ideologias alimentares, a pluralidade de situações implícitas a
esta orientação alimentar, as modificações na produção e nos mercados (algumas delas
resultantes de novas atitudes face à comida), as concepções e atitudes face ao corpo e à
saúde, o distanciamento face aos discursos biomédicos, etc.

56
Perspectivas sobre alimentação

2.2 Perspectivar a Alimentação Macrobiótica a partir dos Estudos sobre Alimentação

A concepção sobre a alimentação e o acto de comer, entendidos como sendo


centrais na definição de subjectividades, no sentido enunciado por Deborah Lupton (1996),
constitui um bom ponto de partida para analisar escolhas alimentares, como são aquelas
que se associam à macrobiótica. O conceito de subjectividades, ao incorporar a ideia de
que os indivíduos são altamente mutáveis e contextuais, apesar de condicionados pelos
limites impostos pelo contexto sócio-cultural, pareceu a Lupton menos rígido do que o de
identidade (cf. Lupton, 1996:13). Na verdade, muito embora possamos falar de identidades
para fazer referência a uma ideia de sujeito plural e fragmentado, o conceito de
subjectividades, ao assumir claramente a ideia de que nenhuma identidade se encontra
definitivamente estabelecida, e que pode haver uma certa ambiguidade no modo como os
indivíduos se vão posicionando em circunstâncias específicas, tem surgido como categoria
analítica mais capaz de dar conta da complexidade individual. A possibilidade de na noção
de subjectividades se poder atender tanto à dimensão consciente como à inconsciente; às
emoções e ao modo como elas se expressam através de discursos, julgo que traduz alguma
dessa complexidade. É claro que para além dos discursos é importante olharmos as
práticas, sendo na análise dessa relação que, frequentemente, se encontram as
ambiguidades e incongruências que caracterizam os indivíduos.
Dos muitos campos através dos quais se constrói uma subjectividade, comer
constitui, tal como referi, uma dimensão importante. Ainda que o acto de comer seja, quase
sempre, culturalmente construído, as opções individuais nesta matéria reflectem uma
dimensão de subjectividade. Sobretudo em sociedades plurais, apesar dos
condicionamentos específicos derivados de certas formas de socialização e de apropriação
de concepções e práticas, é possível observar expressões dessa subjectividade através das
escolhas alimentares. Por exemplo, optar pela alimentação macrobiótica significa desde
logo, pelo menos para o exterior, construir um ethos ao qual associamos um conjunto de
concepções e práticas. Tal não significa, porém, que todos os indivíduos se posicionem de
modo idêntico em relação à macrobiótica, do mesmo modo que nem todos fazem das suas
opções alimentares um pretexto para mudar radicalmente de vida. Ainda que mudar de
hábitos alimentares signifique grandes alterações no quotidiano, é possível, evidentemente,
manter a mesma actividade profissional ou o mesmo círculo de amigos.

57
«À Mesa com o Universo»

O acto de comer constitui ainda uma forma particular de expressão de


subjectividades na medida em que corresponde frequentemente a um entendimento sobre o
corpo e o modo como se quer transformá-lo. A noção do corpo humano como projecto
(Shilling, 2003), isto é, como processo através do qual é possível concretizar uma
idealização sobre a sua forma e conteúdo, julgo que encontra alguma ressonância entre os
que seguem a macrobiótica. A visão do corpo como algo dinâmico e moldável, capaz de
responder a objectivos específicos, faz também sentido numa análise sobre a adopção da
alimentação macrobiótica. O corpo que se pretende obter através da macrobiótica é um
corpo saudável, enérgico, resistente, flexível, equilibrado em termos de yin e de yang. De
acordo com as necessidades específicas de cada um, o corpo pode ser “moldado” para
melhor responder aos objectivos concretos, havendo até orientações alimentares em função
da actividade profissional. Acredita-se que até as emoções podem ser trabalhadas a partir
dos alimentos ingeridos. A adopção da “alimentação macrobiótica padrão” costuma
também traduzir-se numa aparência corporal/física particular. Um dos consultores
contactados, referia que essa transformação se notava logo que as pessoas “levavam a
macrobiótica a sério”. Pelo que pude observar, verificam-se, efectivamente, alterações no
aspecto físico daqueles que passaram a fazer exclusivamente alimentação macrobiótica. A
perda de peso é, sem dúvida, um dos aspectos mais visíveis. Não encontrei ninguém que
seguisse a “alimentação macrobiótica padrão” há já alguns anos e que tivesse excesso de
peso. O projecto de um corpo saudável, tranquilo, libertado de excessos, em “harmonia
com o universo”, desperto e espiritualizado, constitui, portanto, uma ideia consolidada
entre os que praticam a macrobiótica. Idealmente, seguir este regime significa incorporar
um projecto de corpo e com ele concorrer para um tipo particular de subjectividade. O acto
de comer adquire, assim, um sentido mais denso, constituindo-se em dimensão vivencial,
com base na qual o indivíduo expressa escolhas, que tanto dizem respeito a um ideal de
corpo como a um entendimento do mundo.
A comida cumpre, naturalmente, necessidades biológicas, mas realçar sobretudo
esta dimensão, ou apresentá-la como instância última onde deve ser encontrada a
explicação para as opções alimentares, significaria uma remissão para o grau zero de
humanidade. A opção pela macrobiótica, com todas as expectativas que mobiliza, constitui
uma ilustração de como dimensões que transcendem a necessidade biológica, se
incorporam no acto de comer. Note-se que o que foi referido está para além de todos os
aspectos que costumam ser evocados a propósito da dimensão cultural e social da

58
Perspectivas sobre alimentação

alimentação (cf Lupton, 1996:1), pois a macrobiótica coloca-se num outro plano, o do
desenvolvimento da espiritualidade, já que é dessa forma que é vista por muitos dos
seguidores.
Lupton (1996), ao defender que as escolhas alimentares - e as emoções associadas a
estas - devem ser vistas como o resultado de um processo de construção social, mediado
pela cultura e pela sociedade, contempla uma perspectiva a que considero ser importante
prestar atenção, focalizando-a a partir da macrobiótica. Este modelo alimentar instaura
precisamente uma ruptura com hábitos e tradições associados à alimentação. Quem, por
acaso, conheça a despensa ou cozinha de indivíduos que pratiquem alimentação
macrobiótica, depara-se, inevitavelmente, com um conjunto de ingredientes que são
desconhecidos da maior parte dos portugueses. Não apenas os ingredientes são diversos
como também algumas das técnicas de confecção se afastam dos costumes nacionais. Face
a uma necessária reinvenção do acto alimentar, para a qual os praticantes de alimentação
macrobiótica são convidados, e que evoca outros contextos e outras culturas, como
equacionar, então, a questão da mediação cultural e social? Nancy Chen (2009: 111)
defende a necessária contextualização social e cultural das “dietas” ou dos “regimes
alimentares”, realçando que a simples replicação dessas dietas pela indústria alimentar é
inadequada. Esta posição, concordante com a importância atribuída pela autora à cultura e
aos sistemas de conhecimento na análise dos alimentos, pode ser um bom ponto de partida
para analisar a questão atrás enunciada.
Quando se procura contextualizar a alimentação macrobiótica do ponto de vista das
referências culturais e sociais, ela surge, na verdade, como um objecto ambíguo. Da
mesma forma que as mercadorias têm uma vida social (Appadurai, 1986), também a
macrobiótica, que não deixa de ser um produto possui essa vida. Circulando pelas pessoas
e pelo mundo, foi conhecendo transformações em diferentes contextos culturais e sociais.
Nas palavras de um dos formadores na área da macrobiótica que foram contactados, a
alimentação macrobiótica encontrar-se-ia radicada na alimentação tradicional japonesa,
devendo ser compreendida a partir desse contexto. Sabemos que Ohsawa (fundador da
macrobiótica moderna) reuniu muito conhecimento relativo à alimentação tradicional
japonesa (cf. Koztsh, 1981), mas construiu um sistema de alimentação e um sistema de
pensamento que continha algo de inovador. Influenciado por filosofias orientais, como o
taoismo e o budismo, desenvolveu uma classificação muito pessoal dos alimentos,
servindo-se das categorias tradicionais de yin e de yang. O que sucede é que, embora

59
«À Mesa com o Universo»

baseado na matriz binária (yin/yang) inventada pelos chineses, dá-lhe uma nova vida ao
reinventá-la. Tal como me foi referido numa das aulas do curso curricular Michio Kushi
(IMP), Ohsawa reinterpretara as noções de yin e de yang para as tornar mais
compreensíveis para os ocidentais. Podemos dizer que o sistema de conhecimento que se
encontra por detrás da alimentação macrobiótica tem por referência filosofias orientais,
abarcando particularmente o contexto sino-japonês, mas devemos ter presente que a
remissão para uma tal vastidão torna problemático o uso da ideia de quadro cultural.
De qualquer modo, a forma como a macrobiótica viaja pelo mundo e o facto de ser
provavelmente mais conhecida nas sociedades euro-americanas do que na China ou no
Japão, contribui para a difícil caracterização deste objecto. A sua desterritorialização
confere-lhe, na verdade, características singulares, na medida em que problematizam a sua
contextualização. Não havendo na macrobiótica uma correspondência entre uma forma
cultural específica e um lugar, e, muito menos a ideia de uma relação orgânica entre uma
população, um território e um conjunto organizado de significados, tal como referido por
Hannerz (1998:37), os termos da sua identificação e contextualização necessitam de
procurar outras vias. Se pensarmos a macrobiótica como forma cultural, podemos mesmo
encontrar nela uma boa ilustração para um objecto cultural desterritorializado,
fragmentário, poroso, adaptável a homens e lugares. Não conhece fronteiras, captura
significados de causas ambientalistas, mas também resultados da actividade científica,
transita pelo mundo com o seu conjunto organizado de sentidos, sendo, ainda assim, capaz
de se adaptar em diversos aspectos a sistemas culturais locais e às “suas cozinhas”. Produz
identidade entre os indivíduos que a ela aderem, sendo possível ver nela um espaço de
reconhecimento marcado por uma certa universalidade.
Quando alguém adere à macrobiótica, instaura, como referi, uma certa ruptura com
uma forma de alimentação e com a cultura alimentar em que surge integrado. Até que
ponto substitui a sua cultura alimentar por outra? A sua prática alimentar é uma prática
descontextualizada por relação às práticas predominantes, uma fuga em relação a um tipo
específico de prática cultural e socialmente construída? Como contextualizar a
macrobiótica? Pelo que venho afirmando e pelo que mais à frente se tornará mais explícito,
a perspectiva territorial, no sentido de análise de um fenómeno como sendo relativo a um
território em particular ou a um contexto geográfico e cultural específico, não permite uma
análise consistente sobre a macrobiótica, antes devendo essa contextualização ser
sobretudo procurada num sistema de conhecimentos com o qual diferentes indivíduos se

60
Perspectivas sobre alimentação

identificam. Apresentada a problemática desta forma, quase nos poderíamos interrogar


sobre se continuaria a fazer sentido falar da alimentação como algo sempre mediado,
construído, a partir do contexto cultural, aqui entendido a partir da referência à noção de
cultura alimentar18, em que se está inserido.
A macrobiótica, tal como procurarei demonstrar, constitui um exemplo de como a
adopção de uma outra visão sobre os alimentos pode abalar concepções anteriores sobre os
mesmos e pode significar um processo de reconstrução de sentidos. Este processo tanto
pode conduzir a uma ruptura com concepções relativas a determinada cultura alimentar,
como pode interceptá-la e encontrar inesperadas relações (como quando se confecciona
tofu à Braz). Considero que este processo de reconstrução de sentidos, no seu duplo
movimento e na relação dinâmica que empreende, acaba por contribuir para uma erosão de
concepções “mais tradicionais” sobre alimentação; erosão que pode não ter, de forma
imediata, um efeito disruptivo (no sentido de romper com “padrões alimentares” mais
instalados) mas que pode levar à transformação de práticas estabelecidas. Este processo
não será, evidentemente, exclusivo da macrobiótica, mas, como procurarei demonstrar, os
discursos, em torno dos receios relativos ao consumo de alimentos processados pelo sector
agro-industrial, proporcionam uma maior permeabilidade para a entrada de concepções
mais marginais sobre a alimentação, como a macrobiótica. Nesta medida, os sistemas
marginais surgem como indispensáveis para pensar aqueles que são predominantes. Uns e
outros vão estabelecendo entre si relações dinâmicas através das quais se transformam.
Refere Nancy Chen que se no início do séc. XX as filosofias sobre dietas
alimentares nos EUA se encontravam muito marcadas por ideias moralistas, surgindo a
alimentação como parte importante da vida espiritual, tal não se verifica nos dias de hoje
(2009:60). Se dantes as orientações alimentares estavam integradas num conjunto de
princípios morais, hoje surgem, a seu ver, sobretudo sob a alçada das ciências da nutrição e
da prática biomédica. A orientação alimentar em função de factos como a obesidade,
diabetes e doenças cardiovasculares ter-se-á tornado dominante. Tal é revelador para a
autora do modo como a ciência e a medicina passaram a estruturar os significados

18
Cultura alimentar entendida no sentido que lhe é atribuído por Mabel Gracia: «conjunto de actividades
estabelecidas pelos grupos humanos para obter do meio envolvente os alimentos que possibilitam a sua
subsistência, desde a aquisição, produção, distribuição, armazenamento, conservação e preparação dos
alimentos, até ao seu consumo, incluindo aí todos os aspectos simbólicos e materiais que acompanham as
diferentes fases desse processo». (Gracia, 2002:17) [Tradução livre]

61
«À Mesa com o Universo»

associados às prescrições dietéticas, tendo assim havido uma substituição das concepções
moralistas por outras de carácter científico.
Ainda que tal se verifique, convém dizer, a este propósito, que muito embora a
ciência e a biomedicina possam corresponder hoje a formas mais institucionalizadas e
aceites de discursar sobre o corpo, a preocupação com questões de saúde e com a
manutenção de um corpo saudável nunca deixou de estar presente nas diversas orientações
dietéticas que foram produzidas ao longo dos séculos. Se tomarmos como exemplo
específico a alimentação macrobiótica, constataremos que um corpo saudável surge
frequentemente como condição para o “desenvolvimento espiritual”. Em todo o caso, tal
como procurarei demonstrar, alguns dos discursos da área das ciências da saúde, em
particular das ciências da nutrição, invadiram efectivamente os discursos sobre
alimentação e saúde produzidos na macrobiótica, levando a que os alimentos fossem
também aqui classificados em termos nutritivos e em termos de efeitos relativos à saúde.
Verifica-se assim que a macrobiótica não é um sistema fechado, mas antes aberto a
influências diversas. Podemos também dizer que diversos aspectos da sua prática
alimentar, como a valorização dos cereais integrais na alimentação, ou a utilização de
certos ingredientes como o tofu, parecem, em contrapartida, ser cada vez mais
reconhecidos e considerados importantes na alimentação. Atente-se a este propósito, e tal
como poderá ser observado mais à frente, à pirâmide alimentar criada pelo departamento
de nutrição da Universidade de Harvard que inclui, precisamente, cereais integrais e tofu.
O que este processo indicia são relações dinâmicas entre diferentes sistemas de
conhecimento. Os sistemas dominantes “contaminam” os marginais, que, por vezes, para
se afirmarem necessitam de uma linguagem mais próxima da ciência. Contudo, os
dominantes, acabam por ser alterados para formas que permitem algum grau de identidade
com aqueles que são marginais, ainda que tenham de desenvolver um conjunto de
procedimentos específicos para sustentarem as verdades a que chegam.

62
Perspectivas sobre alimentação

2.3 Estudos Sociais sobre Alimentação em Portugal: Interpelações a uma pesquisa sobre
a Macrobiótica

No âmbito das Ciências Sociais, os estudos sobre alimentação em Portugal têm


constituído uma área com fraca expressão. Recentemente, no entanto, têm sido conduzidas
pesquisas que parecem querer inverter essa situação. Ainda não se percebe claramente uma
tendência que permita identificar os estudos sobre alimentação como núcleo central na
investigação desenvolvida, mas diversos contributos têm sido dados para transformar esta
área num terreno menos ignorado. Decerto que o facto de, a nível internacional, a
alimentação ser um objecto de interesse crescente por parte das Ciências Sociais, ajuda a
compreender a maior atenção que, também entre nós, lhe tem sido dedicada.
No desenvolvimento desta pesquisa não poderia deixar de fazer menção a alguns dos
trabalhos sobre alimentação que têm sido realizados em Portugal; o recorte que tem sido
empreendido, na sua proximidade e distanciamento com esta investigação, permite também
situar de forma mais adequada esta pesquisa. Sem pretender algum tipo de exaustividade
relativamente a esses estudos, e orientando as minhas referências sobretudo para trabalhos
mais recentes que têm sido desenvolvidos em Antropologia e Sociologia, procurarei
assinalar alguns dos rumos de investigação que têm sido seguidos. Tal procedimento
procurará um duplo efeito: por um lado, identificar áreas temáticas e questões teóricas, por
outro, situar esta dissertação no âmbito da Antropologia da Alimentação desenvolvida em
Portugal.
Se procurarmos um dos escritores mais profícuos no que respeita os estudos sobre
alimentação em Portugal, e que sobre ela teorizaram, deparamo-nos, inevitavelmente, com
Alfredo Saramago. O trabalho deste autor, na intersecção entre a História e a Antropologia,
constitui, sem dúvida, uma referência significativa. O seu papel enquanto divulgador da
gastronomia portuguesa é sobejamente conhecido. Juntou as tarefas de investigação e de
divulgação ao gosto pela confecção e degustação; livros como Cozinha para Homens, a
Honesta Volúpia (1992) são disso exemplo. A par de José Quitério (1987, 1992) e José
Bento dos Santos (2008), terá sido um dos que mais fundiu o gosto pela comida com as
histórias que a comida podia contar.
A Saramago se deve a descrição e caracterização da cozinha de diferentes regiões do
país. Associando aspectos de natureza histórica com contextos ambientais, hábitos

63
«À Mesa com o Universo»

alimentares e técnicas e saberes na preparação dos alimentos, revela preocupação com a


identificação dos aspectos estruturantes das cozinhas. Em obras como Para uma História
da Alimentação no Alentejo (1997) o conceito de estrutura, embora evocado como
fundamental, não é alvo de uma apresentação teórica aprofundada. O seu uso, tanto pode
remeter para períodos históricos e levar-nos a pensar em noções como a de complexo
histórico-geográfico, como para uma perspectivação da alimentação como linguagem
(fazendo-nos pensar em Lévi-Strauus), como ainda para a estrutura da cozinha ou para a
caça como primeira estrutura civilizacional (Saramago, 1997). Saramago, que não dedica
muito do seu tempo ao esclarecimento de questões teóricas e conceptuais, como se estas
lhe obnubilassem o paladar, surge-nos sobretudo obstinado em identificar as paisagens
alimentares que teve oportunidade de conhecer. A ênfase que colocou na história e no
modo como a passagem de diferentes povos pelo território português marcaram a sua
cultura alimentar - quer ao nível da introdução de novos alimentos, quer ao nível das
técnicas e utensílios culinários - permitiram-lhe realçar a cozinha portuguesa como cozinha
que se transformou pela sua exposição ao mundo. Para além das particularidades
gastronómicas de diferentes regiões que são dadas a conhecer, a sua obra permite também
perspectivar a alimentação como indicador de transformação social.
Para um autor que se referiu a muitas das inovações alimentares promovidas pelo
sector agro-industrial como terrorismo alimentar e à busca de produtos para promover o
emagrecimento como ascetismo alimentar esclarecido (Saramago, 1992:14), a
macrobiótica deveria surgir, seguramente, como uma heresia; fruto amargo da exposição
de Portugal ao mundo. A sua referência à importância dietética da comida, permite aqui
alguma aproximação a esta investigação, dada a dimensão dietética que pode ser associada
à macrobiótica. Refere Saramago que «A cozinha teve como primeira orientação a
vigilância da saúde e da vida» (Saramago, 1997:27). Esta é uma afirmação que, como se
pode calcular, o autor não pode sustentar de forma adequada; a referência que faz ao facto
de os primeiros livros de cozinha publicados darem relevo a receitas relacionadas com a
saúde não permite que seja feita essa extrapolação. Salienta ainda este autor que desde os
livros hipocráticos (séculos V e IV a.C.) têm sido publicados textos sobre a relação entre
alimentação e saúde, não podendo esta questão ser identificada com preocupações
recentes.
A ideia de uma dieta personalizada, de acordo com a idade, profissão, modo de vida
e ainda de acordo com a estação, fazia parte, segundo Saramago, de um conjunto de

64
Perspectivas sobre alimentação

orientações dietéticas que ficaram consagrados em textos árabes clássicos 19. Na


interpretação de Saramago, a «cozinha de estação» alentejana, com as suas «comidas de
Verão» e «comidas de Inverno» (comidas frias e húmidas, quentes e secas), seria
«tributária da influência que a dietética teve na cozinha árabe» (Saramago, 1997:118).
Como veremos, a recomendação de uma alimentação de acordo com o contexto
geográfico, com a estação (comidas que aquecem ou arrefecem o corpo), com a idade,
género, profissão e condições de vida, faz parte do conjunto de orientações promovidas na
macrobiótica, o que permite, na verdade, pensar num fundo comum ou qualquer outra
forma de influência e de contacto para estas orientações.
A cozinha regional portuguesa tem sido uma das áreas às quais tem sido dedicada
mais atenção. Leite de Vasconcelos, Lopes Dias, Veiga de Oliveira, são alguns dos
etnógrafos que dedicaram alguma da sua atenção às comidas de Portugal. Em diversas
monografias a presença de descrições relativas ao tipo de alimentação praticado é uma
referência comum. A descrição e análise da matança do porco deram mesmo lugar a um
bom conjunto de trabalhos (O’Neill, 1989; Martins, 1991; Cerqueira, 2000 - são apenas
alguns exemplos). Contudo, caracterizar os diferentes comeres regionais nem sempre
significa tomar a alimentação como objecto de problematização. Este facto implica, na
verdade, uma abordagem particular em termos teóricos.
A cozinha regional, sobre a qual recaiu inicialmente um olhar sobretudo descritivo,
continua a ser hoje uma área bastante merecedora de atenção, quer como factor de
identificação e projecção de um território, quer ao nível estritamente gastronómico, quer
ainda ao nível dos agentes turísticos que exploram as potencialidades do turismo
gastronómico. Vários têm sido os processos analisados: identitários; de mudança social; de
legitimação social; de tradição e inovação; de invenção da tradição; de patrimonialização,
de turistificação; de mercantilização, etc. Vejamos alguns contributos específicos que
têm sido dados para a discussão destas questões.
João Leal (1991, 1994) não analisa a cozinha regional, mas parte das Festas do
Espírito Santo (Açores) para analisar a circulação cerimonial do alimento e o modo como a
festa configura um espaço de reconstrução de identidades. Os festejos, e a comida a eles

19
As referências que Saramago faz à alimentação dietética são breves e focam-se essencialmente nos
aspectos dietéticos da alimentação muçulmana. Curiosamente, é possível detectar nos aspectos que refere
alguns pontos de contacto com a macrobiótica, como se uma raiz comum assistisse a esses dois sistemas de
interpretação.É bem provável, aliás, que as concepções hipocráticas tivessem influenciado ambos os
sistemas.

65
«À Mesa com o Universo»

associada, surgem assim como elementos simbólicos a partir dos quais é possível
esconjurar a desagregação social e legitimar uma nova configuração social. Neste âmbito, a
dádiva a residentes e forasteiros e as prestações alimentares «(…) ao mesmo tempo que
ligam os homens à divindade, ligam também os homens entre si.» (Leal, 1991: 35).
Surgem como forma particularmente expressiva de os lugares e a freguesia se
apresentarem como «corpo social unificado» (ibid.:41) ou, quando se recusa a prestação de
alimentos, de evidenciarem a sua dissidência e desejo de autonomização. Na análise da
ruptura do vínculo ritual do lugar de Santo Antão, (que se recusou a participar nos festejos
da freguesia a que pertencia - Topo), João Leal evidencia claramente como a quebra de
solidariedade expressa na recusa da participação e da dádiva servem para representar a
tensão social. É de reforçar que a festa e a comida não são, no seu trabalho, o objecto
último de análise, antes são convocadas enquanto instrumentos de análise de fenómenos
mais gerais, facto a que, indubitavelmente, a alimentação se presta.
Maria Manuel Valagão (1990, 2006) tem dirigido a sua pesquisa em torno de
dimensões como a mudança social, a inovação e tradição. O seu trabalho, Práticas
Alimentares Numa Sociedade em Mudança. Estudo de Caso numa Freguesia do Alto-
Douro (1990), é marcante nos estudos sociais sobre alimentação. Neste trabalho procurou
observar de que modo as transformações sócio-económicas da região, observadas nos anos
1980, se repercutiam no sistema e práticas alimentares. Mudança social e continuidade
foram, pois, conceitos chave na sua abordagem. O trabalho de Raquel Moreira tem-se
também centrado no modo como a comida pode reflectir transformações sociais. Na
pesquisa que desenvolve no concelho de Sintra (Moreira, 1995), aborda o modo como as
práticas alimentares e as sociabilidades foram modificadas com o turismo. A sua análise
leva-a a defender a importância de se aliar turismo, gastronomia e agricultura como forma
de projecção local. Os recursos alimentares e a cozinha regional são também por si
analisados na óptica da identidade territorial (Moreira, 2006).
Autores como Vasco Teixeira (1993, 2005), Daniela Araújo (2009) e José Manuel
Sobral (2004), partindo da cozinha regional/local, têm também contribuído para a análise
de processos que permitem um conhecimento mais aprofundado do fenómeno alimentar
em Portugal. Focalizando-se nas práticas alimentares do Fundão, Vasco Teixeira procura
caracterizar e definir os principais traços da cozinha local. Em conjugação com este
aspecto, desenvolve uma etnografia minuciosa do que considera serem os principais
elementos distintivos dos manjares - elementos alimentares, técnicas de preparação e

66
Perspectivas sobre alimentação

situações (condições) de consumo - (Teixeira, 2005:30). Partindo da articulação entre a


noção de cozinha e a de manjares cerimoniais (anteriormente explorada por Veiga de
Oliveira, 1984),procura, não apenas fazer um levantamento rigoroso de alimentos, técnicas
e receitas do contexto que analisa, mas também detectar o sistema de valores inerentes ao
sistema alimentar que estuda; aspecto, sem dúvida, fundamental na afirmação da
identidade da região.
Daniela Araújo tem orientado a sua investigação para contextos alimentares
bastante distintos. Numa primeira fase para a cultura culinária em contexto religioso,
pesquisa que a levou a analisar a culinária no Templo de Lisboa da Associação
Internacional para a Consciência de Krishna (Araújo, 2006). Numa fase posterior, centrar-
se-á no Concelho de Chaves, onde procurou analisar questões como a patrimonialização e
a abertura a influências externas da cozinha regional (Araújo, 2009) 20. Defende que os
processos de patrimonialização, onde se inclui o património alimentar, devem ter em
consideração as assimetrias regionais e ser percebidos no contexto da globalização, do
transnacionalismo, da construção europeia e do reconhecimento a nível nacional e
internacional destes processos21. Na verdade, a salvaguarda do património alimentar, ao ser
estabelecida através de consagração legal, acabou por incentivar os processos de exaltação
das tradições alimentares22.
Daniela Araújo não se limita, com o seu trabalho, a projectar turisticamente uma
região através da comida, aspecto que acaba por ficar mais enfatizado em trabalhos como o
de Claúdia Henriques e Maria João Custódio (2010). Ao invés, questiona o sentido dessa
patrimonialização através de instrumentos conceptuais como: turistificação,
mercantilização e neotribalismos gastronómicos. Neste âmbito, refere a autora, «Qualquer
alimento ou comida que tenha uma qualquer ligação a um determinado lugar, pode ser

20
Trabalhando a partir de histórias de vida e de memórias ligadas à alimentação no concelho de Chaves,
desenvolveu o trabalho: O local e o global na construção de uma paisagem alimentar plural. Das versões
privadas e públicas da cultura alimentar às ativações do património alimentar de Chaves. 2011. Dissertação
de doutoramento a aguardar defesa.
21
Ver Araújo, Daniela. «Das comidas aos lugares». Disponível em
http://www.mapadasideias.pt/?p=919&lang=pt [Acedido em 14.08.11].
22
A Resolução do Conselho de Ministros nº 96/2000, Diário da República, 171, série I-B, de 26/07/2000, pp.
3618-3620, já consagrava a gastronomia nacional como património intangível que cumpria salvaguardar e
promover. Em 24 de Janeiro de 2008 é aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República
n.º 12/2008, a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adoptada na 32.ª Sessão da
Conferência Geral da UNESCO, em Paris, a 17 de Outubro de 2003. A Convenção é ratificada em 2008 pelo
decreto do Presidente da República nº 28/2008, Diário da República,60, série I, 26-03-08, p. 1685. O
Decreto-lei nº139/2009 estabelece o regime jurídico de salvaguarda do património cultural imaterial e
reconhece a sua importância na internacionalização da cultura portuguesa - Diário da República, 113, I série,
15-06-09, pp. 3647-3653.

67
«À Mesa com o Universo»

vendido como representando a essência desse lugar contribuindo para marcar a identidade
local e/ou regional das suas populações, facto que tem sido rentabilizado pela indústria
turística»23. Acrescenta ainda que «Esses processos de ativação do património alimentar
assumem frequentemente uma dimensão de neotribalismos gastronómicos fundados em
afiliações, mais ou menos naturais, das comidas aos lugares e da diferenciação dos últimos
por referência às primeiras» (ibid.). Estas afirmações remetem, sem dúvida, para um
posicionamento problematizante em torno da cozinha regional e para o modo como ela
pode servir interesses locais, nacionais e transnacionais, aspectos através dos quais
estratégias e políticas associadas à comida merecem ser pensadas.
As questões a que acabo de aludir, reenviam-nos para fenómenos como a
regionalização, nacionalização e internacionalização, podendo ser pensadas à luz de
conceitos como relocalização e deslocalização (Poulain, [2002] 2003: 19-29)24. É pela
evocação destes conceitos e pelo reconhecimento da sua presença na culinária e
alimentação portuguesas que José Sobral analisa questões ligadas ao nacionalismo,
cosmopolitismo e estrutura de classes (2007, 2008). Tomando como referência um festival
nacional de gastronomia, onde a cozinha regional se encontra representada (2007) e,
posteriormente, os menus coleccionados pelos escritores Ramalho Ortigão e Carlos
Malheiros Dias (2008), José Sobral analisa diferentes práticas em torno da alimentação na
sociedade portuguesa e o modo como elas se podem prestar a objectivos sociais diversos.
A exaltação da cozinha nacional, do mesmo modo que a internacional, julgo poder ser
entendida no seu trabalho como devendo tomar sempre em consideração os agentes
implicados e os efeitos que estes procuram.
Se a sublimação da cozinha regional é indispensável ao estabelecimento de uma
cozinha nacional - «O nacional é o regional.», observa Sobral (2007:25) a propósito do
XXIV Festival Nacional de Gastronomia de Santarém (Outono de 2004) - o
cosmopolitismo alimentar pode ser uma boa forma de expressar a diferenciação social. A
nação, com a sua cozinha nacional composta a partir das diferentes cozinhas regionais,
projectava-se nesse festival a partir das regiões, afirmando a sua identidade nessa
diversidade. Nessa encenação da nação, palavras e alimentos fundem-se, concorrendo para

23
Ver Araújo, Daniela. «Das comidas aos lugares». Disponível em
http://www.mapadasideias.pt/?p=919&lang=pt [Acedido em 14.08.11].
24
A relocalização remeteria para processos onde o “tradicional” e o “autêntico” são valorizados, e onde o
território, a região, são exaltados enquanto lugares de produção. Por sua vez, a deslocalização remeteria para
um âmbito de circulação mais global e para a industrialização de certos alimentos.

68
Perspectivas sobre alimentação

um objectivo que acaba por conduzir a um duplo efeito: criar particularismos através dos
quais cada região se pode autopromover, e afirmar a identidade nacional pela riqueza da
diversidade apresentada. Sabe-se que nestes processos a incorporação de discursos sobre o
que deve ser uma cozinha regional/nacional (que os livros de cozinha tão bem servem para
codificar) acaba por contribuir para criar a própria realidade. É dessa relação dialéctica
entre palavras e práticas que parece resultar aquilo que se pode designar por cozinha
regional ou nacional. Sobral nota, justamente, duas dinâmicas distintas mas comunicantes
na relação entre nacionalismo e cozinha, por um lado os actos alimentares quotidianos de
produção e consumo, lentamente incorporados, por outro, um conjunto de intervenções
intencionais, pedagógicas, doutrinária e políticas através das quais se procura promover a
cozinha portuguesa (Sobral, 2008:118). Uma cozinha regional ou nacional, tal como é
sugerido por Sobral, é sempre o resultado de circunstâncias históricas, políticas e
económicas particulares, de diversos cruzamentos. É assim que diversos pratos tidos como
nacionais, podem, nos seus aspectos mais estruturantes, ser encontrados noutros contextos.
O cosmopolitismo alimentar, observado em Portugal tanto no séc. XIX como no
séc. XX e XXI, evidenciou um movimento de natureza diferente. Os menus elaborados
entre as elites do séc. XIX e que foram analisados por Sobral, salientam o valor simbólico
atribuído à língua, cultura e comidas francesas, facto evidenciado tanto pelo idioma de
redacção como pela estrutura da refeição apresentada. O cosmopolitismo observado
limitava-se, assim, às classes dominantes e a cozinha constituía, por entre outros, um
importante veículo de diferenciação social; os pobres não tinham acesso a essa cozinha
(Sobral, 2008:103). De um cosmopolitismo alimentar restrito a certos grupos no séc. XIX,
passou-se, nos sécs. XX e XXI, sobretudo a partir da década de 1970, para uma grande
diversificação das propostas culinárias, fruto de diversos fluxos migratórios e de uma
maior abertura de Portugal ao mundo.
Referia Poulain que o que diferencia os cozinheiros franceses de hoje dos seus
predecessores é que deixaram de olhar para as outras tradições culinárias como «sub-
culturas» a civilizar e passaram a vê-las como fonte de inspiração (Poulain, 2003:28), facto
que, seguramente, assinala a maior receptividade a outros produtos e modos de cozinhar.
Numa alusão às transformações observadas no espaço alimentar metropolitano de Lisboa a
partir da década de 70, afirma Sobral: «(…) neste espaço pós-colonial, a diversidade vai
penetrando e, nas mesmas zonas em que se consomem cozidos, caldeiradas e açordas,
comem-se também agora as muambas, as cachupas, o funge.» (Sobral, 2004:85). Para além

69
«À Mesa com o Universo»

do funge, vale a pena acrescentar no contexto desta investigação: come-se também agora o
tofu ou a sopa de miso.
A sopa de miso faz parte, na verdade, desse mesmo processo que é o de abertura a
novos modos de confeccionar e novas concepções sobre a alimentação. Neste sentido, a
noção de cosmopolitismo, no sentido de abertura ao exterior e de recepção de influências
externas, faz também sentido numa investigação sobre a macrobiótica. Como consequência
dessa abertura e do interesse que muitos votaram à macrobiótica, temos hoje um mercado
alimentar muito mais diversificado. De acordo com relatos que me foram feitos, produtos
como as algas e o miso, que hoje podem ser facilmente encontrados em lojas de
“alimentação natural”, terão surgido no espaço comercial sobretudo por solicitação
daqueles que decidiram adoptar a macrobiótica.
Pensar a cozinha macrobiótica por relação à cozinha regional/nacional constitui um
desafio onde não é difícil encontrar categorias oponíveis. Se à primeira associamos
imediatamente o território, a outra surge como objecto desterritorializado, como atrás foi já
sugerido. É certo que remete para o contexto sino-japonês, sendo defendida a sua
inspiração na “cozinha tradicional” japonesa, mas, por outro lado, a macrobiótica tem uma
presença mais expressiva nas sociedades euro-americanas do que no Japão. Se a uma
cozinha associamos um saber local transmitido na família de geração em geração, à
macrobiótica associamos uma aprendizagem que frequentemente é externa ao contexto da
casa e do grupo familiar. Se a uma associamos contextos de sociabilidade que intensificam
laços sociais, na macrobiótica é frequente encontrar casos de conflito familiar devido à
opção por uma forma de comer distinta. Se a uma associamos o excesso alimentar, à outra
associamos mais a frugalidade. Se a uma associamos uma atitude despreocupada em
relação à saúde, à outra associamos uma certa obsessão pelo tema. Com todas estas
diferenças é evidente que a macrobiótica instaura uma ruptura face à cozinha
regional/nacional. Ainda que seja verdade que frequentemente procura adaptar certos
pratos da “cozinha tradicional portuguesa” e dar-lhe um ar mais familiar para despertar
uma maior receptividade, o conjunto de concepções que guia a cozinha macrobiótica é
bastante distinto.
Uma outra dimensão que tem sido desenvolvida a propósito dos estudos sobre
alimentação é a questão da segurança alimentar. É focando um produto regional, o queijo
de Serpa, que Harry West desenvolve a sua pesquisa em torno do debate relativo à
utilização do leite cru. A sua preocupação é dirigida para o debate sobre questões ligadas à

70
Perspectivas sobre alimentação

segurança alimentar. Animado pelos debates científicos, políticos e económicos em torno


do fabrico de queijos com leite cru, confronta posições europeias, defensoras de um modo
de produção artesanal de queijo (com utilização do leite cru), com outras mais
representativas do sector agro-industrial, onde o argumento da segurança alimentar é usado
para justificar a substituição do leite cru pelo leite pasteurizado (West, 2008). A sua análise
leva-o a perspectivar o debate em torno do leite cru como debate que acabou por ter
implicações nas negociações relativamente aos alimentos transgénicos. Assim, a aceitação
de um produto – queijo fabricado com leite cru - visto à partida como mais inseguro (facto
discutível, mesmo em termos científicos, tal como West evidencia), poderia ser utilizada
para obter outra concessão ou maior permissividade em relação aos temidos transgénicos.
É também sobre questões ligadas à segurança alimentar que se debruça Elsa Frazão
(2009). Evocando alguns episódios recentes relativamente aos receios alimentares,
designadamente a crise causada pela «doença das vacas loucas», procura demonstrar o
quanto a proximidade social e a confiança depositadas no talhante que comercializa a carne
são importantes para superar receios relativamente ao consumo. Destacando a importância
do local de aquisição de bens alimentares, Monica Truninger expressa-se num sentido
próximo deste ao afirmar que « (…) os espaços e contextos onde se estabelecem as
relações de troca de bens alimentares, como, por exemplo, os mercados de venda directa,
tornam-se importantes mediadores dos significados da qualidade alimentar» (2010:47). A
questão da confiança, por vezes obtida através da garantia pessoal depositada em
produtores e retalhistas com os quais se tem uma ligação familiar, é também apresentada
por esta autora como fundamental para analisar os consumos de alimentos biológicos
(Truninger 2010: 183). Atentos às crises alimentares, muitos seguidores da macrobiótica
vêem nessas crises o resultado de opções alimentares inadequadas. A insegurança
alimentar serve-lhes de pretexto para se distanciarem de um modo de produção alimentar
que contestam e para promoverem a macrobiótica. De certa forma, e tendo em
consideração os consumos feitos, é também uma certa forma de activismo alimentar que
podemos observar entre os praticantes de alimentação macrobiótica, ainda que nem sempre
haja uma consciência desse activismo. Claro que é discutível falar de activismo, quando
não há uma mobilização particular que dê visibilidade social a uma causa, mas entendo que
os consumos, ou a decisão sobre a abstenção em relação a certos consumos, são formas de
intervenção social cujos efeitos podem gerar transformação social. Yvonne Le Grand
(2010), no trabalho que desenvolve a propósito do JantarPopular, organizado pelo Grupo

71
«À Mesa com o Universo»

de Acção e Intervenção Ambiental (GAIA), explora justamente o modo como o activismo


social se pode expressar através da comensalidade.
Paula Mascarenhas (2007) toma como objecto de estudo a compreensão de uma
cultura alimentar e a sua transformação, reportando-se, para tal, ao Concelho de Cascais
(1960-2005). Na sua análise, junta um vasto conhecimento sobre os principais contributos
teóricos na área da Sociologia e da Antropologia da alimentação à observação de 29
“grupos familiares” do concelho. Identifica aí os principais factores que conduziram a uma
nova cultura alimentar e que conduziram a mudanças significativas em relação ao que se
passava há 50 anos atrás. O crescimento demográfico da região, as migrações internas, a
urbanização, a transformação da estrutura sócio-económica, a participação da mulher no
mercado de trabalho, a influência da industrialização alimentar e a tecnificação das
cozinhas no espaço doméstico, são aspectos por si identificados como os principais
motivos que conduziram a essa mudança. Longe de identificar esta nova cultura alimentar
como desestruturada, classifica-a como complexa e múltipla. Constata, a partir da sua
análise, que na escolha de produtos alimentares se valorizam sobretudo aspectos como o
preço e a qualidade, mas que se verifica também uma preocupação com a saúde e com
questões dietéticas e ecológicas, sendo essa preocupação visível num “novo imaginário”
em torno da alimentação (2007:388). Refere, a este propósito, que «A presença de produtos
Light nas despensas e nos frigoríficos, na quase totalidade dos grupos domésticos
observados (leite magro ou meio-gordo, iogurte magro, margarinas, Coca-Cola sem
calorias, produtos de emagrecimento, suplementos vitamínicos), veio confirmar uma
grande preocupação com a saúde e a estética em todos os grupos sociais» (Mascarenhas,
2007: 231). Em relação a três grupos, observa o consumo de alimentos como arroz
integral, milho painço e outros cereais, algas, tofu e leite de soja, ou seja, produtos que
encontramos habitualmente numa despensa ou frigorífico de alguém que segue uma
alimentação macrobiótica. Constata ainda Paula Mascarenhas que o primeiro restaurante
macrobiótico em Cascais surgiu nos anos oitenta e que em 2001 existiam quatro
restaurantes vegetarianos e/ou macrobióticos. A autora relaciona ainda a “nova cultura
alimentar”, de que a macrobiótica e o vegetarianismo fazem parte ainda que com pouca
expressividade, com questões que têm a ver com uma maior consciencialização do risco
associado a certos consumos alimentares, desencadeados em boa medida pelas crises de
um período recente (“doença das vacas loucas”, frangos belgas com dioxinas, gripe das
aves, etc.). Este trabalho, pelo que nos diz sobre as mudanças na cultura alimentar

72
Perspectivas sobre alimentação

(conceito que serve de suporte ao desenvolvimento da sua pesquisa) e pela referência que
faz a novas atitudes face aos alimentos, contribui na verdade para reforçar a ideia de que
opções alimentares como a macrobiótica e o vegetarianismo têm vindo a adquirir maior
expressividade.
O trabalho de Mónica Truninger sobre o desenvolvimento da agricultura biológica
em Portugal e sobre o consumo de produtos biológicos, reflecte, também, sobre alguns dos
receios relativos ao panorama alimentar que levam os consumidores a optar pelos
consumos «bio». A sensação de insegurança face ao modelo agro-industrial e motivos
ligados à saúde são alguns dos aspectos identificados para justificar a escolha destes
produtos. Muito embora Monica Truninger note, relativamente ao consumo de produtos
biológicos, que o conceito de saúde pode adquirir diversos significados - desde a segurança
alimentar, conteúdo nutricional dos alimentos, ao bem-estar físico, espiritual e social e até
mesmo do ambiente (Truninger, 2010:73) – transmite-nos a ideia de que evocações desta
natureza costumam ser frequentemente apontadas como razões para consumir «bio». A
aplicação que desenvolve da teoria das convenções para analisar os consumos «bio»,
levam-na a identificar argumentos diversos para justificar este tipo de consumo;
argumentos que nem sempre se encontram de forma isolada, mas antes se entrelaçam e
sobrepõem, conduzindo a justificações plurais para o consumo.
Vários aspectos do trabalho de Truninger convergem para esta pesquisa. Antes de
mais, o facto de diversas justificações para consumir bio poderem ser observadas entre os
seguidores da macrobiótica. A desconfiança face ao sector agro-industrial, a evocação da
maior qualidade nutritiva dos alimentos, as justificações por motivos de saúde (nas suas
diversas cambiantes) e até as razões éticas, ambientais e espirituais são frequentemente
encontradas entre os que optaram pela macrobiótica. As origens do movimento de
agricultura biológica, por serem marcadas, tal como refere Truninger (ibid.), por uma
abordagem ecológica espiritual-cósmica, constituem outro aspecto que permite relacionar
este movimento com a macrobiótica 25. A perspectiva holística, em que corpo, espírito,
ecossistemas naturais e cosmos formam um todo, que marcou inicialmente este
movimento, é também reencontrável na macrobiótica, como teremos oportunidade de
verificar.

25
As origens do movimento da agricultura biológica são situadas por Truninger nos anos 1920. Rudolf
Steiner, filósofo austríaco fundador da corrente filosófica da Antroposofia, ligado ao conceito de agricultura
biodinâmica, terá sido um dos mentores deste movimento (Truninger, 2010:23).

73
«À Mesa com o Universo»

Por outro lado, o facto de a Unimave (União Macrobiótica Vegetariana) 26ter sido, tal como
refere Truninger (2010:106), pioneira na venda de produtos biológicos, permite estabelecer
uma forte relação entre o movimento da agricultura biológica em Portugal e a
macrobiótica. Outras empresas, como a Celeiro-Dieta, a Espiral-Centro de Divulgação de
Alternativas, a Próvida – Produtos Naturais, Lda. e o Instituto Macrobiótico de Portugal,
são também apontadas como tendo estimulado o consumo de produtos biológicos. O facto
de se encontrarem fortemente ligadas à comercialização de produtos alimentares usados
habitualmente na macrobiótica, cria, inequivocamente, uma estreita associação entre o
consumo de bens alimentares biológicos e a prática de uma alimentação macrobiótica. Esta
pesquisa acaba, assim, por se sentir particularmente interpelada pelo trabalho de Truninger,
dado o facto, entre outros, de irmos ao encontro dos mesmos consumidores, ainda que por
vias diversas. Com isto não pretendo dizer, obviamente, que os consumidores de produtos
bio se encontrem sempre ligados à macrobiótica - Truninger demonstra bem que tal não
acontece - o que pretendo sublinhar é que a opção pela macrobiótica inclui,
frequentemente, um privilegiar de consumo de bens alimentares bio.
A presente pesquisa sente-se ainda interpelada pela de Truninger pela menção que a
autora faz à escassez de trabalhos sobre indivíduos com estilos de vida mais alternativos
(Truninger, 2010:66). Face a essa escassez, este trabalho procura ser um contributo no
sentido de melhor conhecer, em Portugal, concepções e práticas ligadas a uma proposta de
orientação no mundo com carácter mais alternativo. Procurarei demonstrar neste trabalho
que a macrobiótica não deve ser perspectivada como “movimento” isolado, mas como
proposta que convoca e dialoga com outros movimentos, sendo o movimento da
agricultura biológica, da «alimentação natural» e da contracultura alguns deles. Julgo que
a articulação da macrobiótica com o movimento da agricultura biológica contribuirá para
esclarecer o modo como práticas marginais e periféricas concorrem para afirmar outras que
são mais valorizadas e vão adquirindo maior centralidade.
Pela apresentação efectuada relativamente a alguns dos trabalhos desenvolvidos na
área da alimentação em Portugal, é possível detectar diversos temas em análise que
interpelam este trabalho e que permitem coloca-lo em diálogo com um conjunto mais vasto
de trabalhos que têm vindo a ser realizados nas ciências sociais sobre alimentação. Dentro
deste campo, duas áreas têm vindo a ganhar particular destaque: uma mais ligada à cozinha

26
Associação surgida no início dos anos 1970. Em páginas subsequentes terei oportunidade de a apresentar
com maior detalhe.

74
Perspectivas sobre alimentação

nacional/regional e a questões relacionadas com identidade e patrimonialização, outra mais


centrada em questões que têm a ver com a segurança alimentar, qualidade dos alimentos e
princípios associados ao consumo de bens alimentares. Tanto num como no outro caso,
acabamos por ser remetidos para diferentes dinâmicas e interesses sociais relacionados
com o acto de comer. A dimensão política (para além de cultural e biológica) deste acto é
indiscutível, podendo ser observada a partir de diversas instâncias: regulação, promoção,
prevenção, consumo, activismo social… Comer ou produzir alimentos surgem nessas
instâncias sempre como actos ideológicos (é claro que o sabor também conta, muito
embora também ele possa ser gerido a partir de um treino particular), no sentido de que é
sempre um sistema de conhecimentos particular que é activado para justificar as opções
feitas. Estes sistemas de conhecimento não são, como referi, entidades rígidas; constroem-
se através de relações dinâmicas e por vezes convocam saberes tidos como periféricos.
Nesta medida, analisar esses saberes mais periféricos pode contribuir para um
conhecimento mais aprofundado de aspectos relacionados com as transformações
alimentares.

2.4 A Macrobiótica Olhada pelas Ciências Sociais

Os estudos na área das ciências sociais que se debruçam especificamente sobre a


macrobiótica, e que foram publicados, são escassos, sendo possível identificar Kotzsch
(1981), Ossipow (1997), Lau (2000). Autores como Berkson (1985), Angulo (1986) e
Whetstone (2002), desenvolveram também trabalhos nesta área, não tendo, todavia, sido
possível encontrar menção à publicação dos seus trabalhos. A pesquisa empreendida para
situar trabalhos neste campo em Portugal permitiu identificar dois trabalhos finais de
licenciatura: Gomes (2003) e Teixeira (2006). Se não nos cingirmos especificamente à
macrobiótica, e atendermos a temáticas de investigação como “dietas alternativas”;
“movimento de alimentação saudável”; “vegetarianismo”; “alimentação biológica”;
“capitalismo new age” e “capitalismo verde”, o campo abre-se enormemente, sendo
possível encontrar inúmeros autores a trabalhar sobre o assunto. Se procurarmos textos
sobre a macrobiótica escritos fora do quadro científico, e que são sobretudo textos de
divulgação e promoção, encontramos um número incontável de publicações, sítios na
internet e blogues.

75
«À Mesa com o Universo»

Dos trabalhos desenvolvidos na área das Ciências Sociais especificamente


direccionados para a análise da macrobiótica, destaco o de Ossipow (1997).
Desenvolvendo trabalho de investigação em território suíço, mais particularmente a partir
de Genebra, esta autora procura testar três hipóteses: uma primeira, que postula que as
práticas e representações associadas à macrobiótica e vegetarianismo podem ser
assimiladas a estilos de vida; uma segunda, que defende que a adopção do vegetarianismo
e da macrobiótica se encontram associados a um projecto de vida que, gerando uma
recomposição progressiva da identidade dos indivíduos, os leva a transformar o seu estilo
de vida; uma terceira, que postula que não há mudanças no estilo de vida sem que haja
uma modificação do habitus (Ossipow, 1997: 11). Encontramos nesta autora um trabalho
direccionado para a questão das transformações nos estilos de vida associadas às mudanças
alimentares, abordagem muito identificada com conceitos bourdieunianos, tais como o de
distinção social, habitus, capital, campo e luta de campos (Bourdieu, 1979;1989), mas
também com o conceito de redes desenvolvido por autores como Barnes (1969), Mitchell
(1969) e Boissevain (1974). Conceitos como os de identidade, alteridade, representações
sociais e estilos de vida, são também referências centrais. Este é um dos poucos trabalhos
encontrados na área da Sociologia e da Antropologia que analisa especificamente a
macrobiótica pelo que a ele voltarei mais adiante.
Destaco também o trabalho de Kotzsh (1981), integrado nos estudos sobre religião,
que analisa a vida e obra daquele que é considerado o fundador da macrobiótica moderna,
Georges Ohsawa. Kotzsh estabelece relações entre o pensamento de Ohsawa e a tradição
religiosa japonesa. Perspectiva a dimensão sincrética visível na obra deste autor como
corolário da religiosidade japonesa. Apresenta ainda Ohsawa como resultado de um
conjunto de circunstâncias singulares, de que fazem parte uma história familiar, um quadro
de saúde e um quadro histórico, político e económico particular. Kotzsh é uma referência
significativa, na medida em que procura contextualizar o pensamento de Ohsawa e
identificar as raízes da proposta macrobiótica, evidenciando assim o quanto a macrobiótica
é herdeira de práticas e dinamismos da sociedade japonesa. Um exemplo desses
dinamismos que é identificado por Kotzsh é o movimento Shoku-yo - movimento fundado
por Ishitsuka Sagen no final do séc. XIX que exaltava um modo de vida “em conformidade
com as leis da natureza”. Com o seu afã nacionalista, visava a recuperação e defesa de
valores tidos como tradicionais da sociedade japonesa, quer ligados à educação e valores

76
Perspectivas sobre alimentação

quer à alimentação (cf. Kotzsh, 1981:45). Ohsawa seguirá este movimento e dar-lhe-á
conteúdo, como à frente veremos.
Lau (2000), por sua vez, desenvolvendo um trabalho sobre a macrobiótica na área
dos estudos culturais, procura destacar o modo como um conjunto de práticas corporais
com referências no Oriente se expressa na sociedade americana. Mais especificamente, o
seu livro procura tornar explícita uma tensão que a autora observa: a que existe entre uma
proclamada espiritualidade das práticas alternativas de obtenção de saúde (como as que
analisa: yoga, Tai Chi, aromaterapia e macrobiótica) e o modo como essas práticas se
transformaram em mercadorias na economia de mercado (Lau, 2000:2). Para evidenciar tal
tensão, baseia-se sobretudo em informação retirada da web (sítios e blogues) e textos de
divulgação relativos às referidas práticas corporais. É com estes materiais que procura
observar de que forma é incorporada uma ideologia que, através das práticas físicas, é
transformada em mercadorias corporais. Neste contexto, a macrobiótica é perspectivada
como um dos produtos daquilo que designa como capitalismo new age, ou seja, seguindo
Lau, um conjunto de actividades económicas que tem frequentemente uma inspiração
oriental e onde é evocada a dimensão espiritual da vida humana e promovida uma visão
holística dos fenómenos.
De acordo com Lau, a macrobiótica terá conseguido implantar-se na sociedade
americana em parte porque participava do discurso mainstream relativo à saúde e à dieta,
ou seja, o discurso dos “super alimentos”, dos “super corpos” e do controle do corpo (Lau,
2000:87). O que Lau vê como participando do discurso mainstream, pode, na verdade, ter
sido marginal noutra altura, sendo ainda assim capaz de influenciar esse tipo de discurso.
Considera a autora que muitas dessas práticas, outrora marginais, se começam a deslocar
para o centro e que, pela disponibilidade de tempo e de recursos económicos que
implicam, acabam por ficar disponíveis sobretudo para classes sociais com mais recursos.
Na sua opinião, a tradição americana (transcendentalismo americano do séc. XIX) mais os
regimes dietéticos defendidos no séc. XIX por homens como Kellogg (médico, adventista
do sétimo dia, fundador da companhia Kellog’s) e a exaltação de aspectos como o
individualismo e a autoconfiança terão proporcionado um bom espaço de acolhimento e
desenvolvimento dessas propostas. Por outro lado, a promoção do multiculturalismo e o
fascínio pelo Oriente terão também contribuído, na sua opinião, para a expansão dessas
práticas. Práticas que, através da celebração da natureza e romantização do passado,

77
«À Mesa com o Universo»

constituiriam, na linha de Beck (2008 [1986]), uma crítica da modernidade. Voltarei a


estes aspectos.
Retomando o conceito de etnomimesis, proposto por Robert Cantwell (1993), Lau
utiliza-o para designar o modo como certas influências culturais são encenadas e
apropriadas. Caracteriza, desta forma, a adopção das práticas que estuda como marcadas
pela etnomimesis. A mimetização seria, neste processo, uma forma de representação da
cultura de outros povos e apropriação da mesma; uma forma de transformação do corpo
num outro corpo, mais identificável com a cultura que se procuraria incorporar. Esta
concepção, aliás pouco desenvolvida pela autora, sugere um conjunto de problemas.
Importa notar, desde logo, que a macrobiótica está longe de subsumir a cultura japonesa. A
julgar pela fraca expressividade que parece ter no Japão, talvez nem possa ser considerada
representativa da sua cultura. Da mesma forma, julgo poder dizer-se que a prática de yoga
nas sociedades euro-americanas deve estar longe de ser uma encenação/mimetização da
cultura indiana. Pretender representar uma cultura a partir de uma prática específica não
pode deixar de ser senão redutor.
A dimensão política, que por vezes é associada aos consumos, também não é
esquecida por Lau. Segundo a autora, acreditar que o consumo é acção política pode ser
um dos maiores riscos da modernidade (Lau, 2000:140). Por outro lado, a adopção de
práticas alternativas é apontada por Lau como podendo ser vista enquanto busca de um
antídoto para os riscos emergentes da sociedade moderna, caracterizada por um
individualismo crescente, contexto onde um fascínio New Age pela autodescoberta e auto-
cura se expressam (Lau, 2000:139). Também estas são dimensões a que regressarei no
capítulo 3. O livro de Lau é, na verdade, rico no conjunto de propostas interpretativas que
apresenta, muito embora não as aprofunde. Ainda assim, oferece-se como bom ponto de
partida para a discussão que mais à frente apresentarei.
Os trabalhos desenvolvidos em Portugal por Rita Gomes (2003) e Carla Teixeira
(2006) seguem algumas orientações já apresentadas. O de Rita Gomes focaliza-se nas
questões identitárias, procurando evidenciar o papel da alimentação na construção e
expressão de uma identidade. Procura observar de que forma a ruptura com práticas
alimentares anteriores levam a uma reconstrução identitária. Não se focando
particularmente na questão dos estilos de vida, considera, todavia, que existe um
rompimento com aquilo que era a realidade quotidiana dos indivíduos que aderem à
macrobiótica. Recolhendo elementos para o seu trabalho fundamentalmente a partir de

78
Perspectivas sobre alimentação

entrevistas semi-estruturadas, a autora conclui que se verifica, entre aqueles que aderem à
macrobiótica, uma reconstrução identitária que resulta do “desejo de ser outra pessoa”
(Gomes, 2003:59), existindo um desenho de um novo projecto identitário que tem reflexos
mesmo ao nível da profissão. Algumas das situações por mim observadas confirmam este
aspecto, pois pude detectar casos em que os indivíduos mudaram para profissões que
entendiam ser mais compatíveis com as suas opções. Não se trata, todavia, de uma regra, já
que em muitos casos observados tais mudanças não se verificavam.
O trabalho de Carla Teixeira (2006) assenta em grande medida num inquérito por
questionário efectuado no IMP (Instituto Macrobiótico de Portugal), através do qual
procura caracterizar aqueles que frequentam o IMP. Partindo da importância das opções
alimentares na definição de um estilo de vida, procura observar os elementos através dos
quais se constrói uma identidade ao nível da macrobiótica. Acaba por concluir que o IMP
surge como uma comunidade imaginada, na medida em que é um local de comunhão,
gerador de sentimento de pertença, de vinculação e onde é intensificada a unidade do
grupo (Teixeira, 2006: 98). Esta visão do IMP como comunidade imaginada parece-me um
pouco excessiva, mais à frente, de acordo com os dados etnográficos que recolhi procurarei
demonstrar porquê.

2.5 A Macrobiótica Olhada pelas Ciências da Saúde

Muito embora haja escassez de trabalhos sobre a macrobiótica na área das Ciências
Sociais, é possível encontrá-los em maior número nas áreas das Ciências da Saúde e da
Vida. Esses textos estão sobretudo situados no domínio das ciências da saúde e, de uma
maneira geral, julgo que beneficiariam com os contributos resultantes de uma
caracterização e análise sociológica relativa a indivíduos que tivessem adoptado a
macrobiótica. A análise social não deveria, na verdade, ser apartada de outras pesquisas
sobre o corpo e os seus processos. Ainda que não se focalize na ínfima e microscópica
partícula, a investigação social deveria constituir referência para muita da actividade
científica que é desenvolvida. Os estudos sobre os efeitos dos alimentos beneficiarão
sempre do conhecimento das práticas e das histórias de vida associadas a determinadas
opções alimentares.

79
«À Mesa com o Universo»

Os primeiros estudos científicos que começam a ser referidos na literatura destinada


à divulgação da macrobiótica são atribuídos a Sacks (1974; 1975). Estes trabalhos são bem
acolhidos entre aqueles que seguem a macrobiótica, dado que é estabelecida uma relação
benéfica entre a prática do vegetarianismo e a diminuição do colesterol total e tensão
arterial. No primeiro trabalho (Sacks et al.,1974), defende-se que o controle da pressão
arterial deve ter em consideração orientações dietéticas. Até à data as preocupações
limitavam-se ao sal, mas os dados recolhidos revelavam que os vegetarianos tinham menos
casos de tensão arterial elevada, o que permitia concluir que o consumo de produtos de
origem animal tinha também implicações na tensão arterial. Mais tarde, Sacks (1975),
demonstraria ainda que o consumo de produtos lácteos e de ovos tinha influência no
aumento do nível de lípidos e que estes alimentos implicavam um aumento do colesterol
total. Este estudo não se dirigia especificamente aos seguidores da macrobiótica, mas foi
visto como um estudo que apoiava as suas ideias sobre a alimentação e que poderia ser
usado para ajudar a sustentar as suas posições. Haveria na macrobiótica uma atenção muito
especial aos estudos que, de alguma forma, ajudassem a promover a prática alimentar
associada a esta proposta, dada a sua focalização nas questões de saúde. Outros estudos,
mais críticos em relação à macrobiótica, não seriam alvo da mesma atenção por parte
daqueles que seguiam a macrobiótica.
Dos trabalhos desenvolvidos sobre os efeitos da macrobiótica na saúde, um dos
mais significativos correspondeu, como já referi, a uma pesquisa iniciada na Holanda nos
anos 80 (Dagnelie et al., 1990). O facto de ter havido neste país um aumento do número de
casos de raquitismo e de os hospitais terem reportado situações que diziam respeito a
crianças pertencentes a famílias com “hábitos alimentares alternativos”, como a
macrobiótica, e que não administravam vitamina D aos seus filhos, constituiu um dos
motivos para que a pesquisa fosse desenvolvida. Com esta investigação procurou-se
avaliar alguns aspectos do desenvolvimento de crianças com alimentação macrobiótica,
tendo sido observadas 53 crianças nascidas em 1985 com idades entre 11 e 24 meses. Os
autores do estudo dizem que as crianças foram recrutadas com a ajuda de professores de
macrobiótica, bem como das famílias. Afirmam ter feito uma relação de todas as famílias
holandesas que praticavam macrobiótica (173), sendo que 97% dessas famílias tinham
seguido cursos ou palestras na área da macrobiótica e 75% delas praticavam macrobiótica
há mais de 5 anos. O nível educacional médio das famílias era elevado e as crianças tinham
sido alimentadas exclusivamente com leite materno até aos 4-8 meses, após o que foram

80
Perspectivas sobre alimentação

introduzidos na sua alimentação sólidos de origem vegetal, persistindo a amamentação, em


média, até aos 13 meses.
Procurando apresentar dados rigorosos, os autores concluem que 28% dessas
crianças apresentavam sintomas de raquitismo, atribuindo tal facto à falta de vitamina D e
a níveis baixos de cálcio. Os autores preocupam-se em sugerir, àqueles que seguem a
macrobiótica, a inclusão de peixe gordo na alimentação das crianças, tendo em conta o
facto de os pais recusarem os produtos lácteos e os suplementos alimentares. Preocupam-
se, também, em alertar aquele que é um dos grandes promotores da macrobiótica, Michio
Kushi, para que possa influenciar as práticas alimentares de muitos dos que seguem esta
prática. Neste sentido, estamos perante um estudo que revela preocupação social,
procurando corrigir o que considera serem deficiências na macrobiótica.
Um dos consultores de macrobiótica, por mim contactados, defendeu, porém, que
os problemas apontados resultariam essencialmente de um excesso de rigidez na
alimentação e da não inclusão de peixe na mesma. Acrescentou que, entretanto, tinha sido
muito revista esta prática alimentar, tendo o próprio Michio Kushi elaborado uma pirâmide
alimentar menos restritiva. De qualquer modo, este estudo demonstrou existir uma maior
percentagem de crianças com problemas de raquitismo entre os que seguiam a
macrobiótica do que entre aqueles que seguiam formas mais comuns de alimentação.
Aquele trabalho, pelo destaque que deu a alguns dos aspectos negativos que podem
estar relacionados com a alimentação macrobiótica, parece ter sido decisivo num certo
rumo que a investigação tomou e que levou a que se investigassem efeitos negativos
inesperados na alimentação. Assim, a partir dos anos 80, surge um ciclo de trabalhos que
se ocupa sobretudo com as repercussões, em termos de saúde e desenvolvimento,
decorrentes da opção por “dietas alternativas”. Alguns desses trabalhos são dirigidos
especificamente para a macrobiótica, mas outros observam, sobretudo, os efeitos
provocados pela adopção do vegetarianismo. De um modo geral, constatamos que tais
estudos tendem a afastar os receios relativamente a estas dietas, sendo mesmo
frequentemente apontados benefícios de uma dieta vegetariana, sobretudo na vertente
lacto-ovo-vegetariana.
Se nos detivermos em alguns dos primeiros artigos científicos publicados sobre a
macrobiótica, poderemos constatar a existência de alguma preocupação em relação a
propostas alimentares menos comuns, dado que haviam sido descritas algumas deficiências
nutritivas em crianças vegetarianas (Van Stavern e Dagnelie, 1988). Estes autores

81
«À Mesa com o Universo»

começam por referir a existência, na Holanda, de “vários movimentos filosóficos,


espirituais e pseudo-científicos ” (movimento ecológico, antroposófico e macrobiótico),
que ensinam o uso de uma “dieta natural e saudável”, convergindo na proposta de uma
dieta vegetariana e sustentada por “alimentos saudáveis” (Van Stavern e Dagnelie, 1988:
819). Partindo da observação das deficiências descritas, são analisadas crianças ligadas aos
diferentes movimentos, concluindo-se que as que praticam uma alimentação macrobiótica
seguem uma dieta que se aproxima do veganismo (sem consumo de qualquer tipo de
alimentos de origem animal) e que estas são, provavelmente, as que se encontram em
maior risco (Van Stavern e Dagnelie, 1988: 821). É sugerido, portanto, que se averigúem,
nas crianças que seguem uma alimentação macrobiótica, os níveis de cálcio, riboflavina,
vitamina D e vitamina B12, bem como uma hipotética maior vulnerabilidade para
infecções, e ainda se existem alguns indicadores em temos de retardamento mental.
Finalmente, é evidenciada a preocupação em saber se é possível melhorar a condição
nutritiva destas crianças também seguindo a “filosofia macrobiótica”.
Trabalhos posteriores procuram esclarecer algumas destas situações. Surgem assim,
numa fase inicial, resultados que apontam para deficiências em termos nutritivos,
sobretudo carência de ferro e de vitamina B12 (Dagnelie et al, 1989) - esta última avaliada
posteriormente através de marcadores como o ácido metilmalónico e a homocisteína no
plasma (Schneede et al, 1994) - mas também carência de cálcio e de vitamina D, que
surgem implicados nos atrasos de crescimento (Dagnelie et al, 1990). Em trabalho
publicado em 1994, Dagnelie e Staveren, apresentam os seus resultados relativos a
crianças com idades entre 4-18 meses nascidas em famílias que seguiam a macrobiótica.
As avaliações antropométricas levam-nos a concluir que os atrasos no crescimento se
verificavam sobretudo entre os 6 e os 18 meses. Estas crianças tinham, de resto, um menor
peso à nascença. São também aqui notadas carências de proteínas, vitamina B12 e D,
cálcio e riboflavina, bem como um desenvolvimento psicomotor mais lento. Constatam
ainda que o leite materno de mulheres que seguiam a macrobiótica tinha menos vitamina
B12, cálcio e magnésio. Os autores frisam que a ocorrência de tal facto não pode ser
justificada com o facto de as famílias não estarem bem informadas sobre como praticar
alimentação macrobiótica, dado que as mães já seguiam a macrobiótica há mais de três
anos e tinham tido formação sobre este tipo de alimentação. Muito embora refiram que as
suas conclusões não são extensíveis a toda a população residente na Holanda que pratica
macrobiótica, referem que os dados cobrem 80% das crianças com aquelas idades que

82
Perspectivas sobre alimentação

estão integradas em famílias que seguem esse regime alimentar. Face aos dados
apresentados, recomendam o consumo de peixe gordo e de produtos lácteos (Dagnelie e
Stavaren, 1994).
Em 1997 é publicado um estudo sobre a massa óssea de 195 adolescentes
holandeses, com idades entre 9 e 15 anos, que seguiam uma alimentação macrobiótica, de
tipo vegan e pobre em cálcio e vitamina D, tal como é descrita pelos autores (Parsons et al,
1997). São retomados os estudos que haviam sido publicados 10 anos antes, sobre crianças
que seguiam alimentação macrobiótica e nas quais se descreviam diversas carências, de
acordo com o que atrás referi. A partir desses trabalhos é analisada a situação desses 195
adolescentes em termos de desenvolvimento e conteúdo mineral ósseo (CMO). Concluem
os autores que o CMO total é significativamente mais baixo nos adolescentes que seguem
a macrobiótica do que no grupo de controle, pelo que a adopção desta prática alimentar na
infância influencia negativamente a condição óssea dos adolescentes, defendendo que este
facto poderá fazer aumentar o risco de fracturas numa idade mais avançada. São
observados desvios em relação a esta tendência, mas não são suficientes para inflectir estes
resultados. Referem, por outro lado, e como já havia sido salientado em estudos anteriores,
que o nível educacional dos pais destas crianças é elevado e que neste estudo a condição
socioeconómica das famílias é similar (Parsons et al, 1997:1489), não sendo tal, portanto,
justificativo, dos resultados obtidos.
Um outro estudo (Miller et al, 1991), realizado na Nova Inglaterra (EUA) sobre a
população que seguia a macrobiótica (110 adultos e 42 crianças) confirma a carência de
vitamina B12. Nesse grupo, 51% apresentavam uma baixa concentração de vitamina B12,
sendo que esta era tanto menor quanto maior fosse o tempo de duração da prática de
alimentação macrobiótica. 55% das crianças e 30% dos adultos apresentavam uma
concentração elevada de ácido metilmalónico na urina, o que permitia aferir sobre a
carência de vitamina B12. A pequena estatura e baixo peso relativos constatados nas
crianças, são, aliás, associados à elevada concentração de ácido metilmalónico na urina
(Miller et al, 1991). Podemos pois verificar que algumas das carências observadas nos
estudos desenvolvidos na Holanda continuam a observar-se noutros contextos geográficos.
Deve notar-se que a carência apontada não é exclusiva da “dieta macrobiótica”, ela havia
já sido reportada anteriormente em diversos estudos relativos a vegetarianos. No entanto,
em trabalho publicado em 2007, é referido que o peso e a altura relativos de crianças que
seguiam a macrobiótica eram inferiores aos de crianças vegetarianas (Di Genova,

83
«À Mesa com o Universo»

2007:186). Revelando preocupação com eventuais deficiências na alimentação das


crianças, as autoras deste trabalho recomendam, tanto a vegetarianos como àqueles que
adoptaram a macrobiótica, vigilância relativamente ao consumo de proteínas, gorduras de
origem vegetal (para incrementar o aporte energético) vitamina D, vitamina B12, ferro e
cálcio.
Estas críticas são contrabalançadas por estudos que sublinham as virtudes de
modelos de alimentação alternativa. Assim, estudos efectuados sobre o efeito da “dieta
macrobiótica Ma-Pi 2”27 em 25 indivíduos com diabetes de tipo II, tratados com anti-
hiperglicemiantes e que tinham praticado até então “alimentações comuns”, revelaram que,
após ensaio clínico de 6 meses com a nova dieta alimentar, houve significativas melhoras
(Porrata et al.,2007). A glicemia diminuiu em 53%, a hemoglobina glicosilada em 32%, o
colesterol em 21% e os triglicéridos em 43%. O peso diminuiu bem como o perímetro da
cintura. Ficaram ainda normalizados os valores da hemoglobina, creatinina, ácido úrico,
ureia, transaminase glutâmico pirúvica, frequência cardíaca e tensão arterial. Do total dos
pacientes, 88% suprimiriam os anti-hiperglicemiantes. Neste estudo, tão favorável a Mario
Pianesi e à associação “Un Punto Macrobiótico”, vemos, assim, serem destacados os
benefícios de uma alimentação à base de cereais integrais, vegetais, leguminosas e chá
verde - uma alimentação que tenderia a alcalinizar o organismo: equilibrada, em termos
energéticos e proteicos, baixa em gorduras e com elevado consumo de hidratos de carbono
complexos, fibras, betacaroteno, manganésio e magnésio.
Resultados favoráveis à adopção de um regime macrobiótico pelos diabéticos são
igualmente descritos por Bhumisawasdi et al. (2006). Curiosamente, neste último artigo,
onde são também feitos agradecimentos a Mario Pianesi e seus assistentes, para além da
referência à redução dos níveis de açúcar no sangue, do peso, da tensão arterial e
frequência cardíaca são também referidos aspectos mais dificilmente quantificáveis e
objectiváveis, como maior tranquilidade, maior vibração e energia (Bhumisawasdi et
al.,2006: 2104).
Um outro conjunto significativo de estudos que foram efectuados procuraram
avaliar os efeitos da macrobiótica na prevenção e tratamento do cancro. Jane Teas, Joan
Cunningham e Andrew Cousins (2000-2002) desenvolveram um projecto onde procuraram
conjugar a biomedicina com a Antropologia Médica - Complementary and Alternative

27
Referida como dieta macrobiótica-vegetariana preconizada por Mario Pianesi, fundador e presidente da
associação internacional “Un Punto Macrobiótico”, em Itália (Porrata et al.2007).

84
Perspectivas sobre alimentação

Medicine with Curative Intent: Macrobiotics and Faith Healing . Um dos objectivos deste
projecto era observar os efeitos da macrobiótica na saúde e prevenção do cancro. A
investigação decorreu entre 2000 e 2002 e centrou-se em entrevistas a seguidores da
macrobiótica. Para além deste aspecto, foi desenvolvido um esforço de caracterização dos
centros de divulgação da macrobiótica existentes nos EUA bem como das lojas de
“produtos naturais” onde poderiam ser encontrados alimentos habitualmente utilizados
nesta área. Um dos sítios de divulgação da macrobiótica - The Rice House -, gerido por
“consultores macrobióticos” radicados em Israel, dá conta, justamente, da investigação
efectuada28.
Em trabalho publicado sobre a relação entre macrobiótica e cancro, no qual alguns
desses investigadores (Teas e Cunningham) participaram (Kushi et al., 2001) faz-se uma
assinalável revisão da investigação desenvolvida sobre esta matéria. Para além desta
revisão, os autores baseiam-se nas respostas a um inquérito que teria sido enviado a 548
indivíduos com cancro que teriam sido observadas entre 1981 e 1984 por Michio Kushi
(consultor de macrobiótica), e ao qual apenas 98 dos inquiridos responderam. Destes
indivíduos, 91% recebia pelo menos um tipo de terapia convencional, como a
quimioterapia, 56% usavam outras terapias não convencionais sem ser a macrobiótica.
61% revelava clara adesão às recomendações macrobióticas;10% uma adesão parcial e 1%
não aderiu. Foram analisadas avaliações subjectivas por parte dos inquiridos, onde uma
parte significativa referia um efeito positivo da macrobiótica no tratamento do cancro,
afirmando uma maior tolerância à quimioterapia e maior bem-estar emocional. Por outro
lado, 90% referia que tinha apoio dos companheiros no seguimento da macrobiótica e 82%
referia que tinham apoio de membros da família. Apenas 25% responderam que os
médicos que os acompanhavam apoiavam a decisão de adoptar a macrobiótica; 19%
referiram a oposição dos seus médicos à adopção da macrobiótica e 50% referiram que os
seus médicos eram indiferentes relativamente a tais práticas (Kushi et al., 2001:3060S)
Para além disto, esta pesquisa permitia concluir que a maior parte das pessoas que
procurava um conselho na área da macrobiótica o fazia após uma consulta com um

28
Ver Macrobiotics research Project

http://www.thericehouse.com/research/Research%20Home%20Page.htm [Acesso em 14.07.2011].

85
«À Mesa com o Universo»

terapeuta convencional e que muitas vezes não informava o seu médico sobre a prática da
macrobiótica.
Concluiu-se nesse trabalho que as mulheres que seguiam uma alimentação
macrobiótica tinham um nível de circulação de estrogénios ligeiramente mais baixo, o que
sugeria um risco menos elevado de cancro de mama. Concluíram ainda que existiam
probabilidades de a dieta macrobiótica reduzir o risco de cancro, mas que não dispunham
de bases empíricas cientificamente fundadas que fossem suficientes para recomendar ou
desaconselhar esta dieta, pelo que seria necessário prosseguir com a investigação nesta
área. Rezash (2008), em trabalho posterior, dá-nos também conta da necessidade de uma
investigação mais sistemática para avaliar os riscos e benefícios da macrobiótica na
prevenção e tratamento do cancro, no mesmo sentido se expressando Horowitz (2002).
Apesar de esta necessidade ser apontada, a investigação de Kushi (2001) dá conta
de diversos estudos efectuados sobre o uso da “dieta macrobiótica” e o desenvolvimento de
doenças cardiovasculares. Na perspectiva dos seus autores, tais estudos evidenciam de
forma consistente um menor risco de doenças cardiovasculares na população que seguia a
macrobiótica por relação à generalidade da população. Como justificação para esta
conclusão, era apontada a existência de um nível de colesterol mais baixo. Para além deste
aspecto, também o facto de a tensão arterial ser, em média, mais baixa; de se observarem
níveis mais elevados de antioxidantes no plasma e ainda de o peso dos indivíduos ser
menos elevado, foram igualmente apontados como factores relevantes (Kushi et al., 2001:
3060S)
Uma das razões evocadas pelos autores para desenvolver a investigação acima
mencionada, foi a da existência de relatos de casos de cura de cancro através da
macrobiótica. Um desses casos, frequentemente referido nas sessões de divulgação sobre
macrobiótica, é o «caso Sattilaro». Anthony Sattilaro, ficou conhecido como o médico a
quem, aos 49 anos, foi diagnosticado um cancro na próstata em fase avançada (já com
metástases nos ossos) e que conseguiu vencer adoptando a macrobiótica, tendo ficado
completamente resolvidas as lesões provocadas nos ossos pelas metástases. O seu livro,
Recalled by Life: the Story of my Recovery from Cancer (1984), dá conta do seu processo
de cura e de como foi aconselhado na mudança de alimentação por Waxman (director da
East-West Foundation em Filadélfia) consultor e professor na área da macrobiótica, que
tive oportunidade de conhecer em curso de formação promovido pelo IMP (Instituto
Macrobiótico de Portugal).

86
Perspectivas sobre alimentação

Após um período sem a doença, Sattilaro viria a ter uma recidiva e morrer de
cancro da próstata em 1989. No “meio macrobiótico” a mensagem que foi divulgada foi a
de que “depois de se ter curado terá abandonado a macrobiótica e voltado a criar as
condições para desenvolver, de novo, este tipo de cancro”, mas podemos sempre especular
sobre os motivos que estiveram na origem desta situação. É aliás de realçar que Sattilaro,
pelo menos numa primeira fase, foi submetido a intervenções cirúrgicas e foi medicado,
não sendo possível, portanto, apontar apenas a adopção da macrobiótica no seu processo de
cura. Em todo o caso, a “sua história” foi suficientemente estimulante para incentivar a
pesquisa sobre os efeitos da macrobiótica no cancro, sendo o trabalho que atrás referi, pelo
menos em parte, uma resposta a esse estímulo. O facto de um dos autores deste estudo ser
filho do mais proeminente consultor de macrobiótica actualmente vivo, Michio Kushi, não
deverá ser completamente alheio ao interesse por uma investigação de carácter científico
sobre a relação entre macrobiótica e cancro. Deve ser referido, neste contexto, que ainda
que a prática da macrobiótica possa ter sido importante para superar certas situações de
cancro, mesmo aqueles que dedicaram a sua vida à macrobiótica, como Aveline e Michio
Kushi foram vítimas de cancro, Aveline foi vítima de um cancro no colo do útero, que não
superou, tendo falecido em 2001, e Michio de um cancro do cólon, aparentemente
resolvido através de intervenção cirúrgica.
Um dos aspectos que é referido nesse trabalho (Kushi, Cunningham e outros), é que
a macrobiótica engendra um respeito pela natureza espiritual da existência e que as
modificações no estilo de vida causadas pela adopção da macrobiótica pressupõem uma
participação activa por parte do indivíduo (2001: 3057S). De acordo com os autores, comer
de forma macrobiótica, contribui para desenvolver a agencialidade e o sentimento de
poder, dado que o indivíduo participa activamente no seu tratamento. Esta participação não
se observaria nas formas convencionais de tratamento de cancro, onde o indivíduo se torna
apenas num receptor de uma terapia, vendo-se assim desempoderado (Kushi et al.,
2001:3060S).
Outros trabalhos científicos como o The China Study (Campbell; Campbell, 2006) e
Eat, Drink, and be Healthy (Willett; Skerrett, 2005) devem também ser mencionados.
Muito embora não se debrucem especificamente sobre a macrobiótica, acabaram por se
tornar numa referência importante para diversos professores e consultores de macrobiótica,
e também para muitos dos que praticam este tipo de alimentação. O livro The China Study
é o resultado de uma investigação desenvolvida na China pela Universidade de Cornell e

87
«À Mesa com o Universo»

pela Universidade de Oxford. A escolha deste país ter-se-á devido, em parte, ao facto de
em muitas regiões, sobretudo nas zonas rurais, se praticar uma alimentação com ampla
base vegetariana. Nesta pesquisa, que constitui um estudo epidemiológico, foram
observados 6500 adultos (metade homens/ metade mulheres, com idades entre os 35 e os
64 anos) de 65 zonas rurais e semi-rurais na China. Cada um dos observados permitiu a
recolha de sangue, tendo sido também analisada a urina de metade da amostra. Ao grupo
foi também administrado um questionário sobre o seu estilo de vida e tipo de alimentação.
Para lá da recolha destes elementos, a equipa de investigação fez visitas de três dias a 30%
das famílias, procurando avaliar os seus consumos alimentares. Nesse âmbito, foram
também recolhidas amostras de alimentos nos mercados locais, que procuravam
corresponder àquilo que era considerado representativo da dieta típica de cada região
(Campbell, 2006: 353-354). Um dos principais objectivos do trabalho foi o de avaliar os
efeitos da alimentação sobre a saúde. Ainda que o livro China Study dedique apenas um
capítulo aos resultados específicos obtidos na China, é a partir das conclusões aí
apresentadas que se discutem as doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, vários
tipos de cancro, etc. Através da comparação entre os dados obtidos na China e os
observados no mundo ocidental, sobretudo nos EUA, Campbell disserta sobre a
importância da nutrição no desenvolvimento de inúmeras doenças.
Com base nos dados recolhidos, este autor e a sua equipa, concluíram que uma
alimentação de base vegetariana era mais adequada aos humanos, tendo mesmo defendido
não existir praticamente nenhum nutriente que se encontre nos alimentos de origem animal
que não pudesse ser substituído, de forma vantajosa, por alimentos de origem vegetal. Por
esta razão, uma das grandes linhas de discussão ao longo do trabalho é a de que o consumo
de proteínas animais e gordura animal se encontra relacionado com a maior parte das
doenças crónicas, nomeadamente ao produzirem um significativo aumento do colesterol. A
constatação de um nível de colesterol muito mais baixo entre a população chinesa
observada (média de 127 mg/dl quando a dos americanos era de 215 mg/dl), levou
Campbell a atribuir grande relevância a este aspecto concreto 29.
O trabalho de Campbell foi alvo de forte contestação e a sua visão sobre o efeito
das proteínas e da gordura classificada como excessiva e redutora. Um amplo e

29
Numa das palestras sobre alimentação macrobiótica a que tive oportunidade de assistir (2011) foi referido
que Campbell praticaria uma alimentação próxima da macrobiótica e que, sob seu conselho, Clinton teria
procedido a modificações alimentares para tratar os seus problemas cardiovasculares.

88
Perspectivas sobre alimentação

pormenorizado debate sobre o seu trabalho, com respostas e contra-respostas entre


Campbell e seus críticos, pode ser encontrado em Minger (2010) e em Masterjohn (2005-
2008). De qualquer forma, estudos recentes têm vindo a atribuir menor importância às
gorduras saturadas na alimentação, bem como ao nível de colesterol. O sítio “cholesterol-
and-health.com”, onde Masterjohn escreve, procura mesmo afirmar a importância do
colesterol e das gorduras na alimentação humana30. Pollan (2009b: 57) faz referência a
proeminentes cientistas da Harvard School of Health que teriam concluído que muito
embora adicionar ácidos ómega-3 à alimentação reduzisse a morte por doenças
cardiovasculares (DCV) e a morte em termos globais, os níveis totais de gordura na
alimentação tinham aparentemente um impacto muito reduzido no risco destas doenças,
devendo-se antes ter em consideração o tipo de gorduras consumido 31. Por outro lado,
sublinha ainda Pollan, alguns investigadores já não consideram que um colesterol elevado
seja factor de risco, dado que “metade das pessoas que sofre um enfarte não apresenta
níveis de colesterol elevado, e que cerca de metade das pessoas com colesterol elevado não
sofre de DCV” (Pollan, 2009b: 60). Não irei proceder, evidentemente, a uma discussão
técnica destes aspectos, mas devo assinalar que aquilo que parecia ser um dado
relativamente consensual passou a ser alvo de controvérsia, o que vem corroborar a ideia,
atrás avançada, de que a fobia por certos alimentos, ou a sua classificação como «super-
alimentos», deve ser também ela colocada no plano das ideologias alimentares. A corrida
às fontes de ácidos ómega-3 parece ter, neste contexto, mas em sentido inverso, algum
paralelismo com a fobia às gorduras.
Retornando ao estudo de Campbell, compreende-se porque foi tão bem acolhido
entre os seguidores da macrobiótica, é que as suas conclusões vão de encontro àquilo que é
defendido por eles como sendo uma alimentação adequada. De facto, algumas das
conclusões do trabalho de Campbell - existência de um forte peso da nutrição no
desenvolvimento de doenças; consideração de que a alimentação de base vegetariana é a
mais adequada às populações humanas já que provoca um índice de colesterol mais baixo;
de que a dieta à base de vegetais e o exercício físico estão na base da saúde ou ainda de que
as fibras e antioxidantes reduzem o cancro no trato digestivo - vão de encontro ao tipo de

30
Ver: “Cholesterol-and-health.com, Uncovering the truth about America’s most demonized nutrient”
http://www.cholesterol-and-health.com/index.html [acesso em 4.08.11]. Campbell (2006) refere que o
trabalho de Masterjohn, que escreve neste website, é em parte suportado por produtores de animais e que se
estaria a procurar criar uma agenda para reabilitar o colesterol.
31
Hu, Frank et al. 2001. «Types of Dietary Fat and Risk of Coronary Heart Disease: a critical Review»
Journal of the American College of Nutrition.Vol. 20, 1, 5-19.

89
«À Mesa com o Universo»

alimentação padrão que é preconizado na macrobiótica. Pode pois dizer-se que este estudo
científico surge de alguma forma como a “prova científica” das verdades que a
macrobiótica procura veicular.
O trabalho de Willett e Skerrett (2005), Eat, Drink, and be Healthy, é também uma
referência importante nas sessões de esclarecimento sobre macrobiótica. Willett é um
reputado investigador, ligado à Harvard Medical School, que apresenta um conjunto de
argumentos e de conclusões que vão, de modo idêntico, de encontro a algumas das
concepções sobre saúde e alimentação que são defendidas na macrobiótica. Trata-se de um
trabalho que, por essa razão, é apresentado na macrobiótica como relevante, e cujos
resultados devem ser tomados em consideração. O trabalho de Willett e Skerrett, à
semelhança do que aconteceu com o de Campbell, permitiu a muitos dos seguidores da
macrobiótica olhar para as suas práticas alimentares não como algo marginal e pouco
fundamentado, mas como tendo um elevado valor, susceptível mesmo de adquirir um lugar
central nas práticas alimentares. De alguma forma, os defensores da macrobiótica
encontraram na comunidade científica porta-vozes de incontestável autoridade, por forma a
afirmar que muitas das concepções que defendiam constituíam um caminho a seguir.
Willett e Skerrett centram-se na pirâmide alimentar criada pelo Departamento de
Agricultura dos EUA, 1992-2005 (USDA), e nas outras que foram propostas
posteriormente, para demonstrar que as orientações básicas sobre alimentação se
encontram desactualizadas e que é necessário reconstruir a pirâmide 32. Apresentam em
alternativa a sua própria versão da pirâmide da alimentação, que consideram ser mais
saudável.

32
É de notar que as recomendações da USDA têm sido revistas, sendo possível encontrar no sítio da USDA
12 pirâmides diferentes (MyPyramid), de acordo com necessidades específicas de grávidas, crianças em
idade pré-escolar, para perder peso, etc.
Ver: http://www.choosemyplate.gov/global_nav/MyPyramidAnimationTranscript.pdf [acedido em 7.08.11].
Para Willett, também a “MyPyramid” parecia uma boa ideia, na verdade, não o foi; não faz referência ao
tamanho, no seu entender o elemento mais importante na definição das calorias necessárias. Uma das suas
poucas vantagens é a de acrescentar a importância do exercício e da actividade física (Willett, 2005:20).

90
Perspectivas sobre alimentação

Figura 1- Pirâmide original da USDA33

Figura 2 – Pirâmide de Willett e Skerrett34

33
Imagem disponível em http://www.everynutrient.com/food-pyramid.html [acedido em 7.8.11] e também
em Willett (2005:17).
34
Imagem disponível em http://www.trustyguides.com/healthy-eating1.html [acedido em 7.8.11] e também
em Willett (2005: 13).

91
«À Mesa com o Universo»

Os principais pontos questionados relativos à pirâmide proposta pela USDA, são os


de não fazer distinção entre o tipo de gorduras usado na alimentação (saturadas,
polinsaturadas e monoinsaturadas), promovendo-se assim a fobia pelas gorduras. Um outro
aspecto sublinhado é o da recomendação, na base, do consumo de hidratos de carbono, sem
realçar aqueles que para Willett são mais aconselháveis como os alimentos integrais;
situação idêntica é observada em relação à fatia das proteínas e ao facto de não se fazer
distinção entre carnes vermelhas, carnes brancas, peixe e ovos. Finalmente, nota Willett, é
recomendado um uso diário de produtos lácteos que a ele parece excessivo. Em
consequência, considera este autor que embora os americanos sejam dos povos que mais
consomem cálcio isso não os impede de apresentarem uma das mais altas taxas de fracturas
ósseas do mundo. Refere, neste contexto, diversos estudos que sugerem que a ingestão
excessiva de produtos lácteos aumenta a possibilidade de as mulheres desenvolverem
cancro nos ovários e os homens cancro na próstata (Willett, 2005:18-19). Willett contesta
ainda que se aconselhe o consumo de batatas numa base diária, dado o seu elevado índice
glicémico (superior ao do açúcar). Por fim, critica o silêncio da pirâmide relativamente a
aspectos como o peso, necessidade de exercício, importância de beber diariamente uma
bebida alcoólica e tomar suplementos vitamínicos. Defendendo que a pirâmide da USDA
foi construída de forma a contemplar mais os lobbies da indústria alimentar do que
critérios científicos, Willett refere a dimensão política associada ao estabelecimento de
uma pirâmide alimentar (Willett, 2005:15).
De forma sumária, pode dizer-se que a pirâmide proposta por Willett e Skerrett em
“The New Healthy Eating Pyramid” (Willett, 2005:13), nos é apresentada como sendo o
resultado das melhores evidências científicas conhecidas e o resultado de 40 anos de
pesquisa em todo o mundo, com Harvard à cabeça. Em relação à pirâmide anterior, para
além do exercício e da actividade física, Willett propões sete mudanças básicas:1) vigiar o
peso; 2) ingerir poucas gorduras de má qualidade (leia-se saturadas) e mais de boa
qualidade (de notar que estas últimas são colocadas na segunda fatia da pirâmide, a contar
da base); 3) consumir menos hidratos de carbono refinados e em maior quantidade os
provenientes de alimentos integrais; 4) procurar fontes saudáveis de proteínas, como
leguminosas e nozes, juntamente com peixe, aves e ovos (é feita uma separação entre
proteínas de origem animal e origem vegetal, de forma a que aqueles que pretendam seguir
um regime vegetariano possam aí encontrar orientação); 5) consumir abundantemente

92
Perspectivas sobre alimentação

vegetais e fruta mas evitar as batatas por causa dos níveis de açúcar no sangue e da
insulina; 6) beber álcool com moderação para prevenir doenças do coração e isquemia; 7)
como forma de prevenção tomar suplementos vitamínicos (sobretudo vitaminas B 6 e B12,
ácido fólico e vitamina D), considerados essenciais para prevenir doenças
cardiovasculares, cancro, osteoporose e outras doenças crónicas (cf. Willett, 2005:21-24).
Finalmente se percebe que estas orientações alimentares foram bem recebidas pela
“comunidade macrobiótica” que viu nesta nova pirâmide - que inspirou a pirâmide da
Harvard School - uma maior aproximação à que tinha sido elaborada para a macrobiótica
por Michio Kushi.

93
«À Mesa com o Universo»

Figura 3 - “The Healthy Eating Pyramid”35

Figura 4 - Pirâmide macrobiótica de Michio Kushi36

35
Imagem disponível em http://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/what-should-you-eat/pyramid-full-
story/index.html [Acedido em 7.8.11].
36
Imagem disponível em http://www.holistic-cooking.co.uk/WhatIsMacrobiotics.htm [Acedido em 7.8.11] e
também em Kushi et al. (2001).

94
Perspectivas sobre alimentação

Se compararmos as duas pirâmides, verificamos a grande importância que em


ambas é dada ao consumo de vegetais e de cereais integrais 37. Às leguminosas é dado um
papel de destaque idêntico e vemos o tofu aparecer na “The Healthy Eating Pyramid
(HEP)”. As algas têm um lugar importante na pirâmide de Kushi, dada a importância
nutricional que lhe é atribuída em termos de minerais 38. O uso de peixe e carne tem um
maior destaque na HEP, mas é de ter em consideração que também na pirâmide seguida na
macrobiótica é recomendado o uso semanal de peixe, aspecto que não encontrávamos nas
primeiras orientações relativas à alimentação macrobiótica padrão. A utilização de
produtos lácteos continua a ter importância na HEP, mas menor do que a que se verificava
na pirâmide original da USDA. Este aspecto constitui também uma maior aproximação à
pirâmide alimentar proposta por Kushi, onde se pode observar que os produtos lácteos, a
carne e os ovos são considerados opcionais, recomendando-se que se consumam de modo
pouco frequente, apenas mensalmente ou numa fase de transição. Alimentos que
habitualmente não são recomendados na macrobiótica, como o açúcar, os cereais refinados
e as batatas, encontram-se também relegados para o topo da pirâmide da HEP, não sendo
aconselhado o seu uso regular. A aproximação entre estas pirâmides permite-nos observar
de que modo contributos situados nas margens e com pouco relevo podem adquirir maior
visibilidade quando associados a formas mais institucionalizadas de produção de
conhecimento, como é o caso do estabelecimento de uma pirâmide alimentar por parte de
um departamento científico ligado à nutrição. De alguma forma, as margens adquirem
centralidade, dado que vêem reconhecidos os seus argumentos. Não há, evidentemente, um
reconhecimento directo das recomendações feitas na macrobiótica, mas o facto de os
resultados da investigação científica irem, por vezes, de encontro ao recomendado na
macrobiótica, acaba por dar mais força aos argumentos usados pelos defensores desta
corrente. A recomendação de Willett, de que se consumam mais vegetais, hidratos de
carbono complexos, gorduras saudáveis em porções moderadas e se faça mais exercício,
vai de encontro a princípios defendidos na macrobiótica.
Para Kaptchuk e Eisenberg (1998), o facto de haver a ideia de uma convergência
entre algumas das concepções dos movimentos de “alimentação saudável” e as

37
É de notar que a pirâmide proposta por Michio Kushi considera ainda a importância do consumo de
pickles. Não se trata de pickles comuns, como os que habitualmente encontramos em conserva, mas de
vegetais que são habitualmente fermentados em casa (cebolas, couves, rabanetes…) e considerados muito
benéficos nos processos digestivos pela macrobiótica.
38
Por outro lado, o facto de a alimentação macrobiótica ter uma forte inspiração japonesa ajuda também a
explicar este aspecto.

95
«À Mesa com o Universo»

observações desenvolvidas nas ciências da nutrição não deve representar uma qualquer
aproximação entre estas duas formas de abordagem dos alimentos. Para estes autores, o
facto de as ciências da nutrição terem descoberto tardiamente a importância dos cereais
integrais, não deve permitir que se confundam instâncias que são distintas e não partilham
modos de construção do conhecimento similares. É que se as ciências da nutrição assentam
num conjunto de procedimentos que incluem uma metodologia de investigação científica,
esses movimentos surgem a estes autores como visando sobretudo promover uma
ideologia, e como contendo intenções morais, sociais e de pureza ética que são
potencialmente perigosas. Consideram, assim, que para haver uma interacção construtiva
entre estes diferentes domínios é necessário reflectir sobre as suas diferenças em termos de
modo de abordagem39.
A análise desenvolvida por Kaptchuk e Einsenberg, sobre os movimentos de
alimentação saudável nos EUA, conduzem-nos aos fundadores da tradição do
vegetarianismo e dos cereais não processados na América, apontando Sylvester Graham
(1795-1851) e William Alcott (1789-1859) como pioneiros nesse processo. A primeira loja
de “alimentos saudáveis”, a Graham Provision Store, abriria em Boston em 1837. Os
cereais tostados Granula (mais tarde conhecidos por granola) seriam preparados pela
primeira vez em 1863 por James Caleb Jackson (1814-1895). Os autores detectam, desde
logo, nesta primeira fase do movimento, um desejo de expressar sentido e moralidade
através da comida. Aspectos como a abstinência e regramento nos comportamentos
estavam aí implícitos. Elementos da mesma natureza podem ser encontrados num segundo
estádio do movimento, quando a reintrodução dos granola, com John Harvey Kellogg
(1852-1943) e a criação dos Corn Flakes, foram associados a uma relação harmoniosa
entre mente e corpo. Também Bernarr Macfadden (1868-1955) transformou a comida
numa fórmula para a masculinidade, fertilidade e sexualidade - os macfadden’s granola
lançavam a mensagem da purificação do sangue.

39
Referem a este propósito os autores: «As Ciências da Nutrição procuram utilizar as ferramentas científicas
para investigar e esclarecer sobre os efeitos dos alimentos, da dieta e dos suplementos dietéticos. O
movimento da alimentação saudável serve-se livremente (frequentemente de forma selectiva) das discussões
científicas relativas ao impacto da dieta no bem-estar e nos riscos de doença. Contudo, subjacente à sua
abordagem, encontra-se uma agenda social e moral de amplo alcance. Neste movimento, a comida é
impregnada, de forma flexível, de qualidades simbólicas, a que se associam significados e moralidade. A
comida é uma reserva iconográfica para projectos sociais e para a defesa da pureza ética. A dieta constitui
uma forma persuasiva de corporizar propósitos e auto-conhecimento. É fácil e potencialmente perigoso
ignorar esta dimensão da alimentação saudável.» (Kaptchuk e Eisenberg, 1998: 472) [Tradução livre]

96
Perspectivas sobre alimentação

Nos anos 1960 os cereais integrais seriam reintroduzidos, de acordo com Kaptchuk e
Eisenberg, na “onda holística” que explorava o potencial humano. Uma “onda“ de atracção
pelo Oriente, e pela espiritualidade que lhe estava associada, pelo yoga e pela meditação,
teria mesmo conduzido para as margens os movimentos cristãos de defesa da alimentação
saudável. A partir dos anos 1970, os cereais tostados, o arroz integral e a “comida
saudável”, ter-se-ão tornado cada vez mais compatíveis com o mainstream (cf. Ibid.: 472).
Esta perspectiva, algo concordante com a análise de Lau (2000) – que defendia que certas
práticas corporais de inspiração oriental antes tomadas como marginais terão adquirido
uma cada vez maior centralidade nos EUA - reposiciona os movimentos de alimentação
saudável, apresentando-os como estando cada vez mais integrados no sistema.
Kaptchuk e Eisenberg, ainda que apresentem os resultados da investigação
científica como algo que está sempre em transformação, e ainda que não adoptem uma
atitude de arrogância face a outros tipos de conhecimento, defendem que as
recomendações em termos nutritivos devem ser o resultado de investigação básica e não de
filosofias ou políticas sociais. Sendo certo que sugerem uma interpenetração entre estas
diferentes áreas, não deixam, todavia, de contribuir para alguma tensão entre elas. Parece-
me legítimo observar que, ao caracterizarem os movimentos filosóficos e as políticas
sociais como sendo ideologicamente orientados, esquecem que também a prática científica
pode ser ideologicamente orientada. De facto, como atrás referi, o nutricionismo pode
também ser visto como expressão de uma ideologia e instrumento capaz de servir causas
políticas e sociais. Sobressai desta discussão o evidente cruzamento entre informação
oriunda dos movimentos de comida saudável e informação proveniente da investigação
científica. Estas diferentes áreas nem sempre estabelecem diálogos entre si, mas não são
totalmente insensíveis aos argumentos que apresentam, parecendo alimentar-se desses
mesmos debates.

Dos trabalhos recolhidos sobre os efeitos da alimentação macrobiótica, verifica-se


que, de uma grande preocupação que marcou os anos 80 e 90 sobre este tipo de
alimentação, se passou para uma fase de avaliação menos negativa sobre os seus efeitos,
afirmando-se mesmo o reconhecimento dos seus benefícios, quer na prevenção de doenças
cardiovasculares, quer na prevenção da diabetes. Julgo que esta tendência é, aliás,

97
«À Mesa com o Universo»

concomitante com o que se observa relativamente aos trabalhos científicos sobre o


vegetarianismo. Muitos são os estudos que apontam os benefícios destas formas de
alimentação - desde que haja, bem entendido, preocupação em assegurar aqueles nutrientes
que se considera serem deficitários neste tipo de alimentação. Observa-se, ainda que de
forma difusa, uma nova orientação nos trabalhos científicos, com maior abertura para a
aceitação deste tipo de práticas alimentares, sendo possível detectar, ao mesmo tempo,
alguma transformação na “alimentação padrão” seguida na macrobiótica - que de um
modelo mais rígido terá passado para um modelo um pouco mais flexível, pelo menos foi
isso que me foi transmitido por diversos seguidores da macrobiótica.
A referência a estes estudos parece-me ser relevante no contexto deste trabalho,
dado que encontramos na macrobiótica uma grande discussão sobre questões ligadas à
saúde e a uma alimentação saudável. Basta notar que os estudos mais controversos e
críticos sobre a alimentação macrobiótica raramente eram mencionados nas sessões de
formação sobre este modelo alimentar, muito embora fossem utilizados dados provenientes
de investigação científica que eram favoráveis à adopção da macrobiótica enquanto
prática. Nessas sessões, o tema “mais quente” em termos de eventual deficiência nutritiva,
recaia sobretudo em torno da vitamina B12. O facto de alguns dos participantes seguirem
uma dieta vegan, colocava o problema de saber onde procurar essa vitamina. Se para o
cálcio e ferro era relativamente fácil encontrar alimentos vegetais que fornecessem este
tipo de micronutrientes, para a vitamina B12 era mais difícil, dado o facto de ela se
encontrar, sobretudo, em produtos de origem animal. As discussões sobre se o tempeh
(alimento fermentado, feito à base grãos de soja) e algumas algas teriam ou não vitamina
B12 ocuparam algum tempo dessas sessões. O facto de o tempeh ser fermentado pela
exposição ao ar permitia que se defendesse que o contacto com diferentes
microorganismos, provocado por uma menor assepsia, o tornava uma fonte de B12.
Todavia, as recomendações por parte do formador salientavam que não se desse muita
importância a este aspecto, dado que o passado de comedores de produtos de origem
animal da maior parte dos presentes fazia com que tivessem acumulado B 12 suficiente para
não sentirem esse tipo de carências. Por outro lado, a recomendação de consumo de peixe,
duas vezes por semana, evitaria que se sentissem carências de vitamina B12. Uma
recomendação comum nas sessões de formação era também a de que os participantes não
se transformassem numa espécie de “intelectuais da comida” sempre a avaliar a
quantidade de proteínas, hidratos de carbono, vitaminas e minerais. Não havendo uma

98
Perspectivas sobre alimentação

situação específica de doença, ou qualquer outra situação a acautelar em termos de saúde, a


alimentação macrobiótica padrão (representada na pirâmide elaborada por Kushi) seria
suficiente.

Procurei mostrar, neste capítulo, que os estudos sobre alimentação são já


abundantes no seio da literatura antropológica, mas, no entanto, em Portugal, são
relativamente escassos os que existem inteiramente votados a esta matéria. Apesar dos
esforços feitos, parece haver, entre nós uma lacuna a este nível. Se procurarmos trabalhos
sobre formas de alimentação como o vegetarianismo ou a macrobiótica, eles são ainda
mais raros e, no entanto, o estudo dessas propostas alimentares reveste-se de alguma
importância – pode ajudar a compreender modos singulares ou minoritários de orientação
no mundo, bem como esclarecer formas de resistência, lutas ideológicas sobre como nos
devemos alimentar e modos de classificação, produção, confecção e circulação de
alimentos. Por outro lado, convém acrescentar que práticas alimentares como a
macrobiótica e o vegetarianismo parecem estar em franca expansão noutros países e
também em Portugal. Refira-se, a título de exemplo, que nos Estados Unidos em 1985 o
número de vegetarianos era de 6 milhões, tendo passado a ser em 1992 de 12,5 milhões (cf.
Contreras e Gracia, 2005:181) e que no Reino Unido, de 1984 para 1990, o número de
vegetarianos aumentou em 76% (García, 2002:251).
Com este capítulo pretendi, essencialmente, situar esta pesquisa no âmbito dos
estudos desenvolvidos sobre alimentação. Muito embora possa ter parecido excessiva a
atenção dada aqui a alguns dos contributos referidos, pareceu-me um olhar oportuno na
medida em que permitia colocar este trabalho em diálogo com outros desenvolvidos sobre
alimentação. O pouco que se escreveu sobre a investigação desenvolvida em Portugal na
área da alimentação acabou por justificar essa maior atenção. Escrever sobre uma proposta
alimentar que tanto se distancia da “gastronomia nacional”, permite pensar Portugal como
um espaço mais plural também em termos alimentares. Permite, igualmente, dar conta de
fenómenos na sociedade portuguesa que têm contribuído para uma maior diversificação
dos produtos alimentares disponíveis - produtos que, em grande medida, começaram por
surgir por via da macrobiótica, mas que acabaram por começar a ser incluídos noutras
despensas ou frigoríficos que não os dos praticantes de alimentação macrobiótica, refiro-

99
«À Mesa com o Universo»

me especificamente a produtos como o tofu, seitan, miso, etc. É verdade que o consumo
destes produtos está longe de se encontrar generalizado, mas a sua adopção significa, sem
dúvida, inovação relativamente aos consumos “mais tradicionais”. Em alguns casos
podemos dizer que provoca mesmo uma certa erosão naquela que era a forma de
alimentação mais arreigada. Neste contexto, um sistema marginal de alimentação como a
macrobiótica, acaba, por ter alguma influência em formas alimentares mais instituídas,
sendo um dos diversos aspectos que levam à sua transformação. Não se pense contudo que
esta relação é unívoca. A alimentação macrobiótica é também influenciada pelos diferentes
contextos de integração. A tentativa de fazer na macrobiótica certos pratos da cozinha
regional, denuncia também essa permeabilidade aos gostos mais entranhados. É essa
permeabilidade que ajuda a compreender o arroz doce elaborado com bebida de soja e
malte de cevada, as pataniscas de seitan, as fatias douradas sem ovos, etc.
Convém, agora, destacar alguns aspectos que se tornarão importantes no decurso
deste trabalho. Desde logo, e em conexão com o parágrafo anterior, a relação entre
sistemas alimentares marginais e sistemas dominantes, o modo como vão sendo
contaminados uns pelos outros através de relações dinâmicas que vão estabelecendo. Por
outro lado, a comida, e os consumos que em torno dela se observam, como expressão de
subjectividades. A incorporação ideológica que o acto de comer pode envolver, e o modo
como nesse acto se expressa uma visão sobre o corpo e sobre o mundo parece ajustar-se a
uma análise sobre a macrobiótica. O corpo surge aí como forma de concretização de um
projecto individual e, por vezes, até como projecto com desejo de alcance social. A
transformação do corpo num campo de experimentação, frequentemente observada com a
adopção da macrobiótica, constitui uma forma muito particular de expressão de si mesmo,
sendo, em algumas ocasiões, um desafio relativamente a orientações mais
institucionalizadas. Suscita, ainda, um olhar por parte da ciência, que, tal como vimos,
aponta para as deficiências neste tipo de alimentação, embora também lhe reconheça
benefícios. A comunicação entre práticas alimentares ligadas à macrobiótica e discursos
científicos sobre as mesmas julgo que é um factor indispensável para compreender
fenómenos de recomposição e de reorganização de significados, quer na macrobiótica quer
nos discursos científicos.

100
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Capítulo 3

A Macrobiótica: Trânsitos e Trajectos e de um sistema de conhecimento

3.1 Em Busca das Origens: Percursos e Sentidos da Macrobiótica

Muito embora a macrobiótica pareça encontrar uma clara fonte de inspiração nas
filosofias orientais, designadamente no taoismo e no budismo zen, o modo como é
designada remete, dir-se-ia que inesperadamente, para uma raiz grega (macro-grande,
bios-vida). A explicação passa, decerto, pelo facto de o termo macrobios ter sido
introduzido por Heródoto (484?-425 A.C) na sua História para fazer referência aos
etíopes e à sua suposta longevidade. Também Hipócrates (460?-377? A.C) terá utilizado
este termo para se referir a uma vida longa em Dos Ares, Águas e Lugares (cf.Collins et
al, 2001). Aristóteles (384-322 A.C) e Galeno (129-199?) usariam o vocábulo no mesmo
sentido (cf. Wenker, 2008).O termo - macrobiótica - terá sido introduzido e divulgado no
Ocidente por Christoph Von Hufeland (1762-1836), primeiro médico de Frederico
Guilherme III, rei da Prússia, de Goethe e Schiller, que em 1797 escreveria a obra A
macrobiótica ou a arte de prolongar a vida humana40. Mais tarde, Georges Ohsawa
adoptaria este termo para identificar a sua proposta de orientação no mundo.
Von Hufeland acreditava que ainda que o termo da vida pudesse ter um limite
natural, de acordo com as espécies, era possível agir de modo a preservar e prolongar a
vida. A macrobiótica seria, justamente, um programa geral a partir do qual se poderia agir
de forma a estender os anos de vida. Não se dirigia exclusivamente à alimentação, mas
antes a um conjunto de factores (clima, localização geográfica, constituição física,
alimentação, profissão, etc.) que deveriam ser tomados em consideração para se alcançar
uma maior longevidade. Alguns desses factores não podiam ser controlados pela acção
humana, mas o seu conhecimento foi visto como permitindo uma conduta mais avisada
para se alcançar uma idade avançada. Por esta perspectiva se pode constatar, desde já,
que logo nestas formulações sobre o que se entendia ser a macrobiótica, se evidenciava

40
Esta obra surgiu em diferentes edições francesas com título distinto. Foram consultadas duas edições:
Von Hufeland, Christoph. 1833 [1797] L’Art de Prolonger la Vie de l’ Homme. Paris: J. B. Baillière.
Tradução da 2ª edição alemã por Antoine Jourdan. Versão disponível no Google Books:
http://books.google.com/books/about/L_art_de_prolonger_la_vie_humaine.html?id=IKMUAAAAQAAJ
[Acedido em 4-10-11] e Von Hufeland, Christoph. 1871[1797]. L’Art de Prolonger la Vie par la
Macrobiotique. Paris: J. B. Baillière et Fils. Edição revista e acrescentada por Jacques Pellagot.

101
«À Mesa com o Universo»

um programa de vida que extravasava a esfera estritamente alimentar e que não se dirigia
exclusivamente ao corpo físico. Mais do que um simples conjunto de regras dietéticas, a
proposta de Von Hufeland continha preocupações de ordem moral. Entendia o médico de
Goethe que a saúde física se encontrava intimamente ligada à saúde moral, acreditando
na superior missão moral dos homens. A sua proposta buscava, pois, ser bastante mais
que uma mera orientação de ordem dietética. A macrobiótica surgia como conjunto de
orientações práticas que visava manter e aumentar algo através do qual espírito e corpo se
expressavam, a força vital41.
Para Von Hufeland a duração da vida dependia sobretudo da dotação em termos
de força vital, da qualidade dos órgãos e do modo como a força vital era despendida e
restaurada. Se o objectivo da medicina era a saúde, o da macrobiótica era preservar e
aumentar a força vital, de forma a alcançar uma maior longevidade. Neste âmbito, a
medicina deveria ser apenas um meio auxiliar da macrobiótica e não um recurso de uso
banal. Pela importância colocada nos cuidados com a preservação da força vital e com a
manutenção de um corpo saudável, Von Hufeland foi identificado como um dos
precursores da medicina preventiva. No que respeitava a duração da vida, reconhecia que
o desejo de a prolongar constituía uma preocupação de todos os tempos, mas que faltava
a esta arte uma sistematização que lhe permitisse eficácia. A escrita do livro A
macrobiótica ou a arte de prolongar a vida humana, em parte inspirada na obra de
Francis Bacon (1561-1626), Historia Vitae et Mortis, visava justamente suprimir essa
lacuna42.
Interessa no contexto deste trabalho destacar de forma um pouco mais detalhada
alguns aspectos que são considerados relevantes por Von Hufeland como forma de
proporcionar uma maior longevidade, dada a proximidade que encontramos entre a sua
obra e a macrobiótica moderna de Ohsawa. Como foi já referido, o clima constituía um
importante factor a ter em conta, ideia que se conserva também na macrobiótica moderna,

41
Conceito que Von Hufeland identifica como “verdadeiro sopro da divindade”, como força existente nos
organismos vivos que tudo conserva e renova, que tanto existe de forma latente como livre. Quatro agentes
vitais: luz, calor, ar (oxigénio) e água constituíam o seu principal alimento. Manifesta-se de forma diversa
de acordo com os diferentes órgãos do corpo humano, podendo expressar-se nos nervos como sensibilidade
ou nos músculos como irritabilidade. A força vital não seria igual em todos os indivíduos e certas
condições externas poderiam fazê-la aumentar ou diminuir. O trabalho rápido levaria a um maior dispêndio
da força vital e teria como contrapartida a diminuição do tempo de vida (Von Hufeland,1833: 26 e segs).
Este conceito, que viria a ser abandonado pela medicina, é reencontrável na macrobiótica moderna, sendo
por vezes identificado com o ki (Chi), sopro vital dos orientais.
42
Historia Vitae et Mortis, segundo título da Phaenomena universi sive Historia naturalis et experimentalis
ad condendam philosophiam, terceira parte da Instauratio Maga (1620), obra onde Bacon defende o
império do homem sobre a natureza e sobre as coisas. A procura da longevidade pode aí ser vista como
inserindo-se num projecto onde o domínio e controle da vida constituem expressão da realização humana.

102
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

segundo a qual as orientações alimentares devem variar de acordo com o clima e a


estação do ano. Considerava Von Hufeland que contextos mais amenos, onde não
houvesse uma grande variação de temperaturas, eram mais favoráveis à longevidade do
que aqueles onde se observassem temperaturas extremas. A adaptação do corpo a
variações sensíveis de temperaturas provocaria um desgaste da força vital. Por essa razão,
ainda que considerasse a montanha como lugar favorável a uma maior longevidade, dada
a pureza dos ares, acreditava que os suíços não seriam dos mais longevos dadas as
oscilações térmicas a que eram expostos. Por outro lado, defendia que a vida nas
pequenas cidades ou no campo era também mais saudável do que nas grandes cidades. A
agitação da vida nas grandes cidades, o excesso de população, a fraca qualidade dos ares,
não contribuíam para aumentar a longevidade.
Este tipo de considerações não é original, já Hipócrates revelava preocupação com
os lugares, os ares, as águas e o clima, considerando-os relevantes para a saúde. Aspectos
da obra de Von Hufeland parecem assim constituir uma ressonância de trabalhos
anteriores, o mesmo se passando com a obra de Ohsawa. A crítica deste último à
civilização de matriz tecnológica e científica encontra algum paralelismo com a
inquietação que a vida nas grandes cidades causava em Von Hufeland. A sensação
produzida é a de trabalharmos sobre um palimpsesto narrativo, onde, cada nova história
conserva partes do texto antigo. A romantização da natureza, o “viver de acordo com as
leis da natureza”, a vida simples, frugal, moderada em tudo, constituem apanágio do
modo de vida preconizado tanto por Von Hufeland como por Ohsawa.
Para Von Hufeland, não eram os filtros mágicos nem os sortilégios que permitiam
prolongar a vida, nem tão-pouco as purgações e sangrias, comuns na época, mas antes
factores como os referidos, a que se juntava a alimentação, o vestuário, a constituição
física, actividade desenvolvida e ainda atitude. Não eram os que consumiam carne e
bebidas alcoólicas em excesso que chegavam a uma idade mais avançada, mas antes os
que se alimentavam sobretudo à base de vegetais, frutos e leite (quanto a estes dois
últimos alimentos a macrobiótica moderna seria bem mais restritiva). O uso de alimentos
de origem vegetal de acordo com a estação do ano fazia igualmente parte das suas
recomendações (orientação que também encontramos na macrobiótica moderna). Para
além das recomendações de carácter prático, convém salientar que Von Hufeland
reconhecia igualmente a importância da hereditariedade, um “stamen vitae particular”,
que estaria na origem de uma maior longevidade. Entre as predisposições principais para
uma longa vida contava: um bom estômago e aparelho digestivo, bons dentes, caixa

103
«À Mesa com o Universo»

torácica bem desenvolvida e bons órgãos respiratórios, coração pouco susceptível,


capacidade de auto restabelecimento, força vital suficiente e bem repartida pelos
diferentes órgãos, bom temperamento, constituição regular e sem disformidades, nenhum
órgão claramente fraco e constituição perfeita do aparelho reprodutor (Von Hufeland,
1833: 157 e segs), aspectos que serão igualmente importantes na macrobiótica moderna.
Será o termo da vida algo fixado à partida ou pode ser modificado pela acção
humana? Velha questão. Pomo de discórdia entre filósofos, teólogos e cientistas.
Conhece novos modos de formulação, de acordo com os contextos em que é produzida,
sem que o enigma seja desfeito. Se no passado as acções para prolongar a vida foram
consideradas uma heresia, um desafio a Deus que tudo decide, essas acções foram
também consideradas uma forma de afirmação humana. A questão da duração da vida e
de como prolongá-la surge também na macrobiótica moderna. Um dos livros mais
influentes escritos sobre a macrobiótica surgiria, precisamente, com o título Macrobiótica
Zen, Arte da Longevidade e do Rejuvenescimento (Ohsawa,1976 [1960]). À ideia de uma
vida longa, sugerida de forma mais imediata pelo termo macrobiótica, alguns dos
seguidores desta proposta contrapõem a ideia de uma “grande vida”, isto é, uma vida que
não é necessariamente longa mas que é vivida com qualidade. Estas interpretações para o
termo não significam, no entanto, que a preocupação com a longevidade e com a
manutenção de um corpo harmonioso e saudável não se encontrem nos textos sobre a
macrobiótica. Os textos de Ohsawa revelam preocupações desta natureza. A aura mística
que envolve a macrobiótica, a sua via alquímica, com experiências e dissertações sobre a
transmutação da matéria (como a experiência empreendida por Ohsawa para transformar
sódio em potássio), procura, justamente, um conhecimento mais profundo sobre os
mistérios da vida. Um certo fascínio pelo oculto e pela espiritualidade caracterizam a sua
obra.
Fiz referência até aqui, sobretudo, à obra de Von Hufeland, dado que foi ele que
deu à designação macrobiótica os contornos de uma proposta de orientação no mundo.
Esta proposta, como vimos também, parece ter constituído fonte de inspiração para
Ohsawa, tendo este adoptado o termo que havia sido divulgado por Von Hufeland 43.
Convém aqui referir, contudo, ainda que de forma breve, que o trabalho de Von Hufeland
se insere numa vasta tradição literária do Ocidente, que viu a alimentação como dimensão
43
Não é certo, todavia, que Ohsawa tenha lido o livro de Von Hufeland. A informação recolhida refere que
Ohsawa terá conhecido um descendente de Von Hufeland. Herman Aihara, discípulo de Ohsawa que com
ele privou, não o apresenta como um conhecedor da obra de Von Hufeland. Ver Aihara, Herman «The
History of Macrobiotics» in Eden Organic.
Disponível em: http://www.edenfoods.com/articles/view.php?articles_id=66 [Acedido em 10-10-11].

104
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

fundamental para nutrir corpo e espírito e assegurar uma vida longa. Uma das primeiras
referências à abstenção de carne como via para desenvolver o espírito, vem-nos de
Pitágoras (580?-495? A.C) que, presumivelmente, sob influência da tradição religiosa e
filosófica indiana, adoptaria na sua escola um regime vegetariano. Se aspectos como a
pureza e contaminação associados ao consumo de carne eram os que mais caracterizavam
a tradição filosófica indiana, em Pitágoras as concepções ligadas à transmigração das
almas constituíam motivo para que se defendesse a abstenção do consumo de animais. O
regime alimentar com ausência de consumo de carne ficaria conhecido durante muito
tempo como dieta pitagórica. Também Hipócrates tomou a alimentação como parte
fundamental do processo de cura. Muitos outros se lhe seguiriam. No século XIX o
número de publicações sobre o vegetarianismo aumentaria enormemente. Em Portugal,
de acordo com as declarações de alguns dos indivíduos entrevistados, a macrobiótica
seria impulsionada precisamente a partir do movimento vegetariano. É pois provável que
noutros países a adesão à macrobiótica tivesse igualmente sido efectuada sobretudo por
indivíduos que já seguiam regimes alimentares mais restritivos. Nesta medida, e tendo
também em consideração o trabalho de Von Hufeland, a macrobiótica de Ohsawa
encontra já um contexto particular de acolhimento. Convém até salientar que, mais do
que contexto de acolhimento, encontra referências e fundamentos com os quais encontra
uma particular afinidade44.
Apesar dos contributos de Von Hufeland e dos paralelismos que possamos
encontrar, a ampla difusão da macrobiótica dar-se-á, como já se foi deixando entender,
com Georges Ohsawa. De acordo com Herman Aihara (um dos discípulos e biógrafos de
Ohsawa), Ohsawa terá conhecido na Alemanha, em 1958, um descendente de Von
Hufeland e terá usado pela primeira vez o termo macrobiótica na sua tradução para
japonês do livro O Homem, esse Desconhecido, de Alexis Carrel. O termo começaria a
ser usado com toda a propriedade em 1960 no livro Macrobótica Zen45. Os princípios

44
De acordo com Wenker (2008), entre os textos e autores que fizeram menção à importância da
alimentação numa vida longa, podem ser referidos os Diálogos de Platão (428/27-348/347 A.C); o Corpus
Hermeticum (100-300 D.C.) atribuído a Hermes Trismegistus; as Enéadas de Plotino (205-270); De
Triplici Vita (De Vita Sana; De Vita Longa; De Vita Coelitus Comparanda) de Marsilio Ficino (1433-
1499) e o Tratado da vida sóbria de Alvise Cornaro (1484-1566). Renascentistas como Giovanni Pico della
Mirandola (1463 –1494), Paracelso (1493-1541), Marco Fabio Calvo (1440-1527), Leonardo da Vinci
(1459-1519) são também considerados como tendo tido preocupações específicas com a dieta alimentar.
Nos séculos XVIII e XIX assiste-se a um aumento significativo de publicações defensoras da abstinência
de carne. Georges Cheyne (1671-1743); Joseph Ritson (1752 –1803); Johnny Appleseed (1774 – 1845);
Percy Bysshe Shelley (1792-1822); Amos Bronson Alcott (1799 - 1888); Gustav Struve (1805 – 1870);
Sylvester Graham (1794-1851) são alguns dos defensores do vegetarianismo.
6 Ver Aihara, Herman «The History of Macrobiotics» in Eden Organic.Disponível em:
http://www.edenfoods.com/articles/view.php?articles_id=66 [Acedido em 10-10-11].

105
«À Mesa com o Universo»

filosóficos associados à macrobiótica podem, contudo, ser encontrados em obras


anteriores, como no Principe Unique de la Philosophie et de la Science d’Extrême-Orient
(Principe Unique), de 1931, surgindo aí, de resto, o termo macrobiótica, ainda que sem a
importância, enquanto categoria identificadora, que posteriormente viria a ter
(cf.Ohsawa,1973: 102).
Pensa-se que Ohsawa terá adoptado o termo macrobiótica a partir de Von
Hufeland, mas os ‘segredos’ da macrobiótica tê-los-á começado a aprender a partir de
Saguen Ishizuka (1850-1910), médico do exército japonês que se teria curado de uma
doença renal grave através da adopção deste tipo de alimentação. Ishizuka publicaria em
1890 o livro Teoria da dieta para prolongar a vida e, em 1900, o Tratamento da dieta
pela teoria de Ishizuka. Julgo ser importante determo-nos neste momento no percurso de
Ohsawa, habitualmente considerado o fundador da macrobiótica moderna. Compreender-
se-á melhor o fundo ideológico que orienta a construção deste sistema filosófico de
orientação no mundo e compreender-se-á também melhor em que medida as questões
ideológicas orientam o acto de comer46.

3. 2 Ohsawa, Fundador da Moderna Macrobiótica

Georges Ohsawa nasceu nos subúrbios de Quioto, a 18 de Outubro de 1893,


tendo-lhe sido dado o nome de Sakurazawa Jyõichi, nome que viria a trocar em 1949 por
um outro mais ocidentalizado, como se na carga simbólica associada à invenção de um
nome se expressasse um desejo de aproximação e maior facilidade de penetração no
Ocidente47. Viria a falecer em Tóquio, no dia 23 de Abril de 1966. Ao longo da sua vida
viajou pelo mundo, tendo vivido em países como o Japão, Índia e França. Kotzsch (1981,

46
Kotzsh (1981; 1985; 1988) desenvolveu um estudo aprofundado da vida e pensamento de Ohsawa. É
também possível encontrar informação relevante nos seguintes endereços electrónicos:
Shurtleff, William; Aoyagi Akiko. 2004. George Ohsawa, The Macrobiotic Movement. A Special Exhibit -
The History of Soy Pioneers Around the World - Unpublished Manuscript. Soyinfo Center, Lafayette,
California. Disponível em:
http://www.soyinfocenter.com/HSS/george_ohsawa_macrobiotics_soyfoods1.php [Acedido em 10-10-11].
ZenMacrobiotics.«A tribute to George Ohsawa».
Disponível em: http://www.zenmacrobiotics.com/ [Acedido em 10-10-11].
Aihara, Herman «The History of Macrobiotics» in Macrobiotic Guide.
Disponível em: http://macrobiotics.co.uk/history.htm [Acedido em 10-10-11].
Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica»in Instituto Macrobiótico de Portugal
Disponível em: http://www.e-macrobiotica.com/artigos_e_multimedia/artigos/diversos/ [Acedido em 21-
11-11].
47
Kotzsch (1985,37) refere o nome de nascimento de Ohsawa como sendo Yukikazu Sakurazawa. Outra
grafia encontrada foi Sakurazawa Nyoiti.

106
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

1985, 1988), um dos estudiosos de Ohsawa, reconhece-lhe várias profissões: na área


comercial, na marinha mercante, como escritor, professor, médico, activista político,
reformador social, alquimista e pensador religioso.
De acordo com Kotzsch, os pais de Ohsawa vinham de famílias de samurais,
sendo possível identificar os seus ancestrais nos anais históricos da região em que
viveram. As reformas da primeira fase do período Meiji (1868-1912), que conduziram a
uma modernização do Japão, ao terminarem com o sistema feudal e restaurarem o
império, fizeram com que esta elite ficasse desapossada e conhecesse a pobreza. Ohsawa
seria educado de forma tradicional, ainda que sem o estatuto dos seus antepassados. A
situação de pobreza conduziria a família da zona rural para a cidade para procurar
emprego. No seu primeiro ano de vida, Ohsawa terá estado à beira da morte. Duas das
suas irmãs morreram na infância. Infelizes coincidências, que, em parte, atribuiu ao facto
de a mãe seguir algumas das ideias ocidentais relativamente à alimentação, e de dar aos
filhos, diariamente, ovos, leite e pão. O pai saiu de casa para viver com outra mulher
quando Ohsawa fez 6 anos, o que contribuiu para que os rendimentos familiares não
permitissem à família sair da situação de pobreza. Anos mais tarde, quando Ohsawa tinha
12 anos, a sua mãe contraiu tuberculose pulmonar, doença de que viria a falecer. Nessa
altura, Ohsawa terá ido viver com o pai e a madrasta, mas durante pouco tempo,
acabando por se tornar discípulo num templo budista. Mais tarde seria acolhido pela
família de um colega de escola que se dedicava ao comércio de chá. Ohsawa é tratado
como se fosse da família e faz estudos comerciais, vindo mais tarde a trabalhar nesta área,
primeiro como caixeiro, depois como gerente. Este percurso de vida, marcado por
frequentes dificuldades económicas tê-lo-á impedido de continuar a estudar (cf. Kotzsch,
1981).
No final da adolescência, viu morrer o irmão, vítima de tuberculose. Algum tempo
depois, já com 18 anos, ele próprio é diagnosticado com tuberculose intestinal, sendo-lhe
dadas poucas esperanças de sobreviver. Terá sido nessa altura que Ohsawa,
afortunadamente, de acordo com os registos biográficos, encontrou numa biblioteca um
livro de Ishitsuka com a dieta shoku-yō (shokuyo-kai, shoku-yō-kai). Tentou um regime
com arroz integral, vegetais cozinhados, óleo e sal, tendo os sintomas de tuberculose
desaparecido rapidamente. Este sucesso terá levado Ohsawa a continuar com a dieta
shoku-yō, dieta associada ao movimento shoku-yō, fundado por Ishitzuka, e que era
largamente inspirada nas recomendações de Ekken Kaibara (1630-1716), como à frente
veremos. De acordo com Nishibata Manabu (presidente do movimento quando Ohsawa

107
«À Mesa com o Universo»

se tornou membro), shoku designava o alimento - qualquer tipo de alimento, devendo-se


aí incluir não só a comida mas também a luz, a atmosfera e os factores culturais – e yō
significava a via através da qual se procurava a saúde e a felicidade (cf. Kotzsch,
1981:89).
Ohsawa viria a identificar-se com o movimento shoku-yō, a integrá-lo e dirigi-lo.
A macrobiótica por si inventada traduziria alguns dos aspectos fundamentais deste
movimento, sendo o termo macrobiótica, em larga medida, uma designação
ocidentalizada para essa prática radicada no Japão que é o shoku-yō. A substituição deste
último termo pelo vocábulo macrobiótica, bem como a substituição do nome pessoal
Sakurazawa Jyõichi para Georges (George) Ohsawa, ou ainda a ocidentalização do
primeiro nome de alguns dos seus discípulos japoneses, como Cornellia (Cornellia
Yokota), e Herman (Herman Aihara) levam a pensar, aliás, num objectivo comum
associado a essas substituições, justamente o de tornar uma proposta de orientação no
mundo com profundas raízes orientais mais familiar ao Ocidente. 48

3.3 Da Macrobiótica ao Movimento Shoku-yō: Percursos e Precursores

O movimento shoku-yō foi fundado por Ishitsuka em 1908 e procurava, em larga


medida, recuperar algumas das práticas e valores que caracterizavam o Japão tradicional.
Contava, entre os seus membros, com indivíduos oriundos da nobreza, das elites militares
e das facções mais conservadoras dos negócios e da política, facto que viria a
proporcionar a Ohsawa o contacto com elementos influentes na sociedade japonesa.
Muitos desses indivíduos apoiavam ideias nacionalistas e de preservação da “essência
nacional”, expressa em movimentos como o Nippon-shugi, considerando, assim, que um
dos aspectos fundamentais de preservação da identidade nacional era seguir a
“alimentação tradicional japonesa” (Kotzsch, 1988: 43).
De acordo com Kotzsch (1981), à política de fechamento que havia caracterizado
o país no período anterior à restauração Meiji (entre 1638 e 1868), seguiu-se uma política

8 A este propósito, Kotzsch refere situações mais prosaicas, como a de Tomoko Yokoyama que adoptaria o
nome de Aveline para adquirir um título de passagem do Japão para os EUA (Kotzsch, 1988: 164). Após o
casamento com Michio Kushi, passaria a ser conhecida por Aveline Kushi. Sobre a substituição dos nomes
pessoais ver: Shurtleff, William; Aoyagi Akiko. 2004. George Ohsawa, The Macrobiotic Movement. A
Special Exhibit - The History of Soy Pioneers Around the World - Unpublished Manuscript.Soyinfo Center,
Lafayette, California e Kotzsch (1988).
Disponível em: http://www.soyinfocenter.com/HSS/george_ohsawa_macrobiotics_soyfoods1.php [Acedido
em 10-10-11].

108
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

de abertura e ocidentalização que viria a abalar alguns dos sistemas sociais vigentes,
designadamente o sistema terapêutico e o sistema alimentar. É nesse contexto que, a
partir de 1883, o governo passa a proibir a prática de técnicas terapêuticas tradicionais e
estabelece a medicina de bases científicas como modo oficial de tratamento. Na
sequência deste acto, o uso de ervas medicinais, os técnicos de acupunctura, moxabustão
e massagens, passam a ser considerados como baseados em superstições e como não
tendo fundamentos científicos, sendo, com este tipo de justificações, ilegalizadas as suas
práticas. O desaparecimento destas técnicas não terá sido imediato, mas passaram a ter
uma existência subterrânea, da qual só reemergiriam mais tarde.
De acordo com Kotzsch (1981), também no campo da alimentação e da nutrição
terá ocorrido um fenómeno de ocidentalização que viria a desestruturar algumas das
práticas tradicionais. Desta forma, a moderna ciência da nutrição, que se começara a
desenvolver na Europa do século XIX, com o trabalho de químicos como o do alemão
Justus Von Liebig, viria a ter grande peso também no Japão. O governo japonês, desejoso
de aumentar a saúde e vitalidade do povo (e, provavelmente, deslumbrado com a
supremacia tecnológica do Ocidente), terá difundido algumas das concepções ocidentais
sobre alimentação, designadamente as relativas à importância do consumo de carne e de
leite para assegurar um desenvolvimento físico e mental apropriado. A crença de que o
consumo destes alimentos se encontrava associada a uma estatura mais elevada e,
portanto, a uma superioridade física, terá constituído motivo para o incentivo no consumo
destes alimentos.
Nas casas urbanas mais sofisticadas o leite e as tostas terão começado a aparecer
com regularidade, substituindo as bolas de arroz, a sopa de vegetais e o chá. O açúcar
branco terá também aumentado a sua presença nos pratos confeccionados, constituindo o
seu consumo um barómetro de cultura e refinamento. De uma alimentação muito assente
em componentes como o arroz, os feijões de soja (a partir dos quais se fazia miso, tofu e
molho de soja), outras variedades de feijão, algas, peixe fresco e seco, vegetais e frutos
locais, ter-se-ia passado para uma outra onde era incentivado, e visto como condição de
progresso, o consumo de carne, açúcar, leite, manteiga e queijo (produtos cujo consumo
no passado, sobretudo o de produtos lácteos, era pouco comum). Refere Kotzsch
(1981:37), numa aproximação a considerações que por diversas vezes ouvi em sessões de
esclarecimento sobre a macrobiótica, que os japoneses pré-modernos acreditavam que o
consumo de leite faria com que os humanos adquirissem algumas das características das
vacas. É de referir, neste contexto, que nas sessões de macrobiótica uma das razões dadas

109
«À Mesa com o Universo»

para o não consumo de leite prendia-se com o facto de ser considerado um consumo
antinatural (algo próprio dos bezerros e jovens crias), um adulto não só não necessitaria
de consumir leite, como tal consumo revelaria uma “certa imaturidade”.
Face às inovações introduzidas, que colocavam os japoneses entre dois mundos,
um agrícola, de uma ruralidade com vestígios do feudalismo, e outro moderno,
industrializado, urbano e ocidentalizado, a tensão teria levado a um abandono de certas
práticas que importava recuperar e estimular. O movimento shoku-yō surgiu, justamente,
no quadro da recuperação e estímulo da divulgação de certas práticas “tradicionais”,
como as relacionadas com a alimentação e outros cuidados terapêuticos menos
institucionalizados. Ishitsuka, que desde criança sofria de uma crónica infecção de rins,
que se traduzia numa inflamação de pele, sentia que através da medicina
institucionalizada não alcançaria a cura, o que ajuda a compreender o seu empenho na
criação desse movimento e na promoção de uma forma diversa de abordar os problemas
de saúde. Efectivamente, seria através daquilo que kotzsch (1981) designa como
“medicina tradicional oriental” que Ishitsuka viria a resolver os seus problemas de saúde.
Para que melhor se compreenda a acepção deste tipo de “medicina” (a macrobiótica
funda-se nela) vale a pena determo-nos no percurso de Ishitsuka e nas fontes que ele
considerou relevantes para dar conteúdo àquela prática terapêutica.
De forma resumida, pode dizer-se que Ishitsuka provinha de uma família de
samurais e que, tal como Ohsawa, tinha tido uma infância marcada pela pobreza e pela
disciplina. Terá terminado a sua escolaridade formal aos 18 anos e começado a trabalhar
num hospital, iniciando a partir daí uma formação autodidacta. De acordo com Kotzsch
(1981), os seus estudos e a prática no hospital terão permitido que adquirisse o grau e
estatuto de médico. Aos 28 anos assumiria o cargo de médico militar e, nove anos depois,
a liderança da farmácia do exército, posto que terá mantido até 1895. Porém, insatisfeito
com as respostas que a medicina de base científica dava aos seus problemas de saúde,
decide empreender uma pesquisa pelas práticas e textos “tradicionais”.
A sua investigação leva-o a obras como o Nei Jing de Huang Di, também
conhecido como Clássico de Medicina do Imperador Amarelo (aproximadamente 500
anos A.C.), obra que constitui uma compilação da sabedoria médica chinesa da época. Aí
são tratados assuntos como a anatomia humana, tipos e causas de doenças, métodos de
diagnóstico - pelo pulso, cor facial e voz – e de métodos de tratamento (alimentação,
acupunctura, massagens e ervas medicinais). A saúde é apresentada como derivando de
um modo de vida em harmonia com a natureza e a alimentação surge como meio eficaz

110
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

no tratamento de doenças. A importância do consumo de cereais, que será tão importante


na narrativa macrobiótica, está bem assinalada nessa obra. É ainda estabelecida a
associação entre os cinco sabores (doce, amargo, salgado, picante e ácido) e os órgãos do
corpo humano, sendo que um consumo excessivo de algum destes sabores ou a sua falta
podiam estar relacionados com distúrbios nos órgãos correspondentes.
Uma outra influência significativa em Ishitsuka e no movimento shoku-yō foi
Mizuno Nanboku (1760?-1834?), um dos clássicos japoneses do estudo da fisionomia.
Kotzsch (1981) diz-nos que a sua longa experiência de observação de pessoas se terá
iniciado com o trabalho numa barbearia, depois com o trabalho numa casa de banhos e,
por fim, num crematório, onde terá tido oportunidade de observar mortos e estabelecer
relações entre as suas características e as causas de morte. Na obra Nanboku Sõhõ (obra
em 10 volumes, publicados entre 1788 e 1805), Mizuno Nanboku expõe a sua
metodologia de observação de pessoas e as suas considerações quanto aos traços
fisionómicos. Acreditava que o carácter das pessoas, bem como o seu passado e o seu
futuro, podiam ser detectados através de uma observação atenta das características físicas.
Acreditava também que as pessoas podiam aumentar a sua longevidade através da
alimentação. O trabalho de Mizuno Nanboku viria a influenciar a prática do diagnóstico
visual na macrobiótica (técnica comummente utilizada para avaliar a condição
física/emocional dos indivíduos) 49.
O filósofo e escritor Ekken Kaibara (1630-1714), que popularizou o pensamento e
ética de Confúcio, terá sido outra influência importante para Ishitsuka. Kotzsch
apresenta-o como o avô da macrobiótica (1985:15). Um dos seus livros é um manual de
higiene e de cuidados de saúde inspirado no Nei Ching. Também para ele a vida em
“harmonia” com a natureza, a comida e a bebida eram os principais aspectos que
afectavam a saúde. O consumo de cereais, particularmente de arroz, devia prevalecer
sobre qualquer outro alimento. De acordo com Kotzsch (1981:44-45), a essência da
técnica de saúde proposta por Kaibara não era o ascetismo mas o autocontrole e a
moderação; na comida, na bebida, na actividade sexual, no sono e até na conversação.
Recomendava que apenas se comesse quando se tivesse fome e só até 80% a 90% da
capacidade do estômago. Dever-se-ia ainda evitar comer antes de dormir e ter exercício
moderado após as refeições (recomendações que reencontramos na macrobiótica e que
são igualmente recorrentes noutros registos de orientação alimentar). A chave para a

49
A obra Food Governs your Destiny: The Teachings of Namboku Mizuno (Kushi et al.,1991), procura
justamente divulgar o trabalho de Mizuno Namboku enquanto fisionomista e realçar a importância do
diagnóstico visual.

111
«À Mesa com o Universo»

saúde e para uma vida longa seria o controlo dos desejos e o evitamento das sete emoções
extremas (alegria exultante, raiva, preocupação, pensamentos obsessivos, medo, loucura e
surpresa). Daqui resultaria um resguardar da vitalidade. Como vemos, é possível
encontrar aproximações entre estas recomendações e as que atrás foram referidas
relativamente a Von Hufeland, assim se sugerindo um significativo paralelismo entre
concepções defendidas no Ocidente e no Oriente50.
Destes diferentes contributos (Nei Jing, Mizuno Nanboku e Ekken Kaibara),
Ishitsuka registou a importância a atribuir à alimentação, quer como fonte de doenças
quer como fonte de cura. Registou ainda a importância dos cereais e de um modo de vida
em conformidade com as leis da natureza. Foi com esta base que partiu para a pesquisa
em áreas como a Nutrição, Antropologia, Química e História. No exército, Itshisuka terá
observado soldados de diferentes partes do Japão e prisioneiros chineses, fazendo um
registo sistemático dos seus tipos físicos e do tipo de alimentação ingerida em cada
região. Terá ainda usado dados antropológicos em segunda mão, procurando informar-se
sobre os hábitos alimentares dos esquimós, dos chineses do norte da China e dos nativos
de Kamchatka (cf. Kotzsch,1981:46). Serão esses dados que o levarão à definição de um
conjunto de recomendações que entendia permitirem assegurar uma boa saúde. A
constatação de que os monges budistas evitavam o consumo de carne por julgarem que
este alimento não permitia um pleno desenvolvimento espiritual ou que o consumo de
arroz integral tostado, e depois vaporizado, teria sido o principal alimento do povo chinês
no período Han, terão também tido o seu peso na avaliação que fez relativamente a
questões alimentares.
As suas pesquisas na área da Química levam-no a considerar os minerais
fornecidos pela alimentação como o elemento chave para assegurar a longevidade. É esta
constatação que o conduz a uma teoria da fisiologia humana fundada na relação entre
sódio (Na) e potássio (K). Na sua óptica, uma vida longa resultaria de uma relação
adequada entre estes dois elementos (Na-3: K-7), desta relação dependeria a capacidade
do organismo para absorver outros minerais. De acordo com Ishitsuka, esta proporção
entre Na e K encontrava-se sobretudo nos cereais, razão por que estes deviam constituir a

50
No contexto deste trabalho não é possível explorar a hipótese de a medicina tradicional chinesa ter
influenciado a medicina praticada no ocidente. Joseph Needham, sinólogo, autor de Science and
Civilisation in China, defende que a medicina tradicional chinesa faz parte, ainda que de forma
embrionária, do processo civilizacional do Ocidente e que há uma série de coincidências entre esta e o
corpus hippocraticum, designadamente na concepção dualista, na dinâmica dos cinco elementos, na relação
microcosmo – macrocosmos e na interacção entre saúde e ambiente (Needham, Joseph et al. 1996 [1954-
1995]. Science and Civilisation in China.7 Vols. Cambridge.Cambridge University Press).

112
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

base da alimentação humana. A estes dever-se-ia ainda juntar vegetais, feijões, algas,
frutos e pequenas quantidades de alimentos de origem animal, sendo que tanto os frutos
como os vegetais deveriam ser da época. A geografia e o clima, bem como a actividade
física, eram importantes, mas não tanto como a alimentação. As doenças surgiriam de um
desequilíbrio entre sódio e potássio, causado sobretudo por uma dieta inadequada. As
batatas e os lacticínios, pelo seu suposto desequilíbrio entre estes elementos, são
considerados por Ishitzuka como predispondo para a varíola (cf. Kotzsch, 1981:52). Em
1897 seria publicada a sua principal obra - Kagakuteki Shoku-yõ Chõjuron (Teoria
química e nutricional da vida longa), onde procuraria apresentar uma disciplina de
alimentação prática baseada em leis científicas. São as orientações aí apresentadas que
constituirão os alicerces da macrobiótica de Georges Ohsawa.
Para Ishitsuka o efeito da comida era tão poderoso e subtil, que os diferentes tipos
de grão produziam diferentes tipos de desenvolvimento espiritual. As características
físicas, emocionais, psicológicas e espirituais eram por ele entendidas como sendo
determinadas em primeiro lugar pela comida. Se se ingerissem alimentos com uma
relação adequada entre Na/K ter-se-ia uma vida longa, saudável, uma mente feliz e ser-
se-ia naturalmente polido e com sentido de moral. As suas observações levaram-no a
considerar que nas zonas costeiras os habitantes tendiam a ser mais baixos e de cara mais
arredondada, enquanto os das zonas montanhosas seriam mais altos. Atribuía tal facto à
maior abundância de sódio nas zonas costeiras (no solo, no ar e na comida) e de potássio
nas zonas montanhosas (cf. Kotzsch, 1981:56). Estariam igualmente dependentes dessa
relação o peso, o grau de desenvolvimento e maturação (?), longevidade, tipo de voz e de
sonoridade, temperamento, memória, rapidez de pensamento, tipo de resposta emocional,
sentido de negócio, capacidade para guardar um segredo, tranquilidade, força de espírito
e bom coração (ibid.:57). As pessoas com predominância de potássio teriam tendência
para ser mais calmas, sensíveis e espirituais, enquanto as que se caracterizavam por uma
predominância de sódio seriam mais activas e materialistas. O desejo sexual seria nas
primeiras mais constante e perdurável, prolongando-se até uma idade mais avançada,
enquanto nas segundas seria mais esporádico, intenso e de curta duração.

Como vemos, é longo o rol de atribuições físicas/mentais/emocionais/espirituais,


que a comida pode proporcionar. Os alimentos são apresentados como contendo o

113
«À Mesa com o Universo»

gérmen da própria regeneração social, deixando assim a alimentação de ter meras


repercussões em termos individuais para passar a ter uma amplitude social. Nesta leitura
do mundo se encontra alicerçada a macrobiótica actual, ainda que novos contributos
tenham sido introduzidos. A preocupação com a relação Na/K manter-se-ia em Ohsawa,
continuando actualmente a ser veiculada nas sessões de formação sobre alimentação
macrobiótica. A recomendação para que se evite a ingestão de batatas e bananas continua
a assentar no suposto desequilíbrio Na/K destes alimentos (potássio em excesso nos dois
alimentos), tendo mais recentemente sido introduzido, como factor negativo, o elevado
valor glicémico destes alimentos e as suas consequências ao nível da elevada produção de
insulina.
O movimento shoku-yō expressava mais do que o desejo de retorno a uma forma
de alimentação que se julgava mais sadia e identificada com a alimentação tradicional
japonesa, revelava preocupações com a preservação de traços culturais de um Japão que
se via cada vez mais industrializado e exposto ao Ocidente. O regresso à suposta forma
de alimentação “tradicional” era apontada por Ishitzuka como modo de o Japão responder
à crise que vivia na época. Estas características são assim indiciadoras de que este
movimento pode ser visto como movimento nacionalista. Ishitzuka considerava que a
alimentação ocidental era sobretudo baseada no desejo e avidez, visando apenas a
produção em quantidade e pouco se importando com a saúde e felicidade humanas.
Considerava que uma dieta à base de carne e batatas produzia gente de carácter fraco e
incapaz de concentrar-se, enquanto uma dieta baseada no consumo animal tenderia a
tornar as pessoas escravas de gratificações. Quanto ao açúcar, esgotaria os minerais do
corpo, sendo causador de muitas doenças. Os frutos tropicais, por seu turno, tornariam os
ossos mais fracos e as comidas pré-preparadas destruiriam a memória e a capacidade de
pensar. O arroz branco, ainda que pudesse ser visto como de mais fácil digestão, teria
falta de gorduras, proteínas e de uma relação adequada de minerais inorgânicos (cf.
Kotzsch, 1981:61). Define-se assim um conjunto de concepções, um fundo ideológico,
que virá a orientar a visão sobre a alimentação na macrobiótica.
Em 1895, Ishitsuka inicia actividade na medicina privada em Tóquio. Torna-se
conhecido como médico com poderes miraculosos de diagnóstico e de cura, capaz de
tratar com sucesso, através de prescrições alimentares, indivíduos a quem os médicos
convencionais da época já haviam retirado as esperanças. Cada paciente recebia um
diagnóstico e a indicação dos alimentos que devia consumir ou evitar (prática que pude
continuar a observar enquanto assistente em consultório de orientação alimentar

114
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

macrobiótica). Algumas das cartas que recebia no seu consultório vinham-lhe dirigidas da
seguinte forma «Dr. Daikon Radish, Tokio”, «Dr. Miso Soup» ou «Dr. Anti-
Doctor»(Kotzsch, 1981:64). O movimento iniciado por Ishitsuka não morreria consigo,
encontraria seguidores, entre eles, um jovem estudante da Escola Comercial de Quioto,
Nyoiti Sakurazawa (Georges Ohsawa), que se tornaria membro do movimento em 1916.

Esta genealogia tem por finalidade ajudar a melhor situar as origens da


macrobiótica moderna. Desde já é importante assinalar uma configuração histórica
particular que se desenhava desde meados do século XIX, justamente a da abertura do
Japão ao ocidente, com fenómenos como a industrialização, urbanização, modernização,
e a alteração de estruturas tradicionais. Após a vitória nas guerras sino-japonesa (1894-
95) e russo-japonesa (1904-05), e, ainda, a conquista, por parte do Japão, do estatuto de
potência política e militar, ter-se-á desenvolvido, de acordo com Kotzsch (1981), um
crescente sentimento chauvinista, um ethos nacionalista e japanocêntrico. Três anos antes
do nascimento de Ohsawa, em 1890, era publicado o Decreto Imperial sobre educação em
que se exortava a população à adopção da educação tradicional japonesa, reafirmando-se
a importância da hierarquia. A educação moral- shushin – terá passado a ter um carácter
imperativo no sistema nacional de educação. Ter-se-á procurado inculcar a ética
confucionista e instrumentalizado a religião para reforçar a ideologia de Estado e formar
cidadãos leais e obedientes, tendo-se mesmo passado a considerar o Shintoísmo como
religião nacional. Tal seria parte, ainda de acordo com Kotzsch, de um projecto para
combater o individualismo ocidental, o igualitarismo, o materialismo e a democracia.
Desde os primeiros anos era ensinado às crianças que o imperador era o descendente de
uma divindade solar e promovida uma visão da política nacional radicada em
fundamentos religiosos51.
É visível em Ishitsuka e Ohsawa uma preocupação com a perda de valores e
referências tidos como tradicionais que parece ser corolário da ideologia educativa que se
pretendia implementar. O receio de uma descaracterização social associado ao
crescimento das cidades e à industrialização é, de resto, um fenómeno facilmente
51
Ruth Benedict (1989 [1946]), em The Chrysanthemum and the Sword veicula também a ideia da
importância do imperador entre os japoneses, centrando-se no modo como a suposta educação japonesa
(não foi realizado trabalho de terreno) justificava as suas atitudes. Abstenho-me de comentar as
circunstâncias sociais e políticas em que tal obra foi produzida, dada a sua irrelevância para o
desenvolvimento deste trabalho.

115
«À Mesa com o Universo»

reencontrável no mesmo período noutros contextos, designadamente no português. Há, no


entanto, alguma ambiguidade na história de Ohsawa, que é reveladora de uma certa
complexidade em termos de subjectividade. Se por um lado adere ao movimento shoku-
yō (adopta a prática alimentar aos 18 anos e torna-se membro formal aos 23) e advoga a
defesa de valores tradicionais, por outro, revela um fascínio pelo Ocidente e pela sua
cultura que parecem incongruentes. A pesar neste balanço estará, por certo, o facto de a
elite intelectual do Japão da sua juventude se caracterizar por um amplo humanismo e
abertura a elementos liberais da cultura ocidental. Tanto a literatura japonesa moderna
como a ocidental seriam objecto do interesse de Ohsawa, vindo mesmo este a traduzir
para japonês Les fleurs du mal (Baudelaire) e a escrever poemas. Ohsawa é assim um
homem com um interesse profundo pela cultura ocidental mas que, em virtude de
circunstâncias históricas e pessoais, acaba por se inclinar numa fase da sua vida para uma
exaltação dos valores tradicionais japoneses. A sua admissão formal no movimento
shoku-yō coincide com uma defesa mais activa desses mesmos valores.
Após uma breve passagem por um emprego no escritório de uma empresa
comercial (1913), Ohsawa foi contratado para trabalhar num navio, transportando
material de guerra para o Reino Unido. Teve oportunidade de viajar pelo sudeste asiático,
oceano Índico, Canal do Suez, Mediterrâneo e Atlântico Norte. Em 1917 trabalharia
numa companhia de comércio de sedas em Tóquio, tendo continuado a viajar pelo
sudeste asiático, Europa e América do Norte. Durante este período casa-se e aprende
francês. Apesar de ler e traduzir textos da cultura ocidental, começa a mergulhar
profundamente em alguns dos textos clássicos orientais, lendo Confúcio e Lao Tze, bem
como textos importantes da medicina chinesa e japonesa.
De acordo com Kotzsch (1981), Ohsawa, ao tornar-se membro activo do
movimento shoku-yō, começa a cultivar uma identidade japonesa “mais nativista”, a
distribuir comida confeccionada de acordo com os princípios do movimento e a organizar
palestras e encontros. No início dos anos 20 divorcia-se da sua primeira mulher e casa
com uma mulher japonesa mais conservadora. Transforma-se num líder dentro do
movimento, escrevendo, viajando e dando palestras. Ao fim de dois anos era o supervisor
da organização e editor da revista. De acordo com Kotzsch (ibid.), os seus escritos
evidenciavam que, em 1928, se havia mudado para um posicionamento tradicionalista,
chauvinista e, às vezes, xenófobo. Para este autor são difíceis de determinar as
circunstâncias exactas desta mudança, sendo contudo apontada a desilusão face à
civilização ocidental - fruto da I Guerra mundial - e a destruição do mito do progresso do

116
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

homem ocidental, como tendo contribuído para este facto (cf. Kotzsch, 1981:76). A
turbulência económica e social dos anos 20, que terá feito com que muitos japoneses se
dispersassem por diferentes movimentos (marxistas-leninistas, artísticos, místicos, entre
outros), proporcionaria orientações e formas de expressão muito distintas. Aos princípios
hedonistas que observava e que via como decadentes, Ohsawa contraporia a ética samurai
da disciplina. É possível, ainda de acordo com Kotzsch, que Ohsawa se tenha
direccionado para a tradição e tenha radicalizado o seu discurso devido à ameaça do
socialismo e do comunismo.
Kotzsh (1981:79), considera provável que o factor mais importante no
redireccionamento de Ohsawa nos últimos anos da década de 20 tenha sido a filosofia
conservadora e nacionalista do movimento Nippon Shugi. Ainda que tenha surgido como
movimento moderno nos anos 1880, as raízes do Nippon Shugi eram mais remotas.
Pensadores como Kada Azumamaro (1669-1736), Kamo Mabuchi (1697-1769), Motoori
Norinanga (1730-1801) e Hirata Atsutane (1776-1843) contribuíram para esse
movimento, desenvolvendo ideias sobre a singularidade e superioridade dos valores
morais e espirituais dos japoneses. Um pouco ao jeito do que sucedia com os românticos
europeus, tendiam a olhar para um primeiro período da história nacional com profunda
nostalgia. O período em que foi constituída a Man'yōshū (antologia da mais antiga poesia
japonesa, compilada no século VIII) foi visto como período imaculado que antecedeu a
corrupção estrangeira, neste caso a influência chinesa.
No âmbito desse movimento, a cultura ocidental, vista como assente no
materialismo, individualismo, igualitarismo e hedonismo, foi tomada como ameaça
mortal à alma da nação japonesa e à sua sobrevivência. Houve um apelo para uma
restauração de valores, de forma a permitir que o Japão retornasse ao “caminho original”.
Uma das ideias desenvolvidas era a de que o Japão tinha um papel de liderança único na
história mundial e de que deveria ser pioneiro num novo tipo de civilização que juntasse
oriente e ocidente. Esta linha de pensamento rapidamente conduziria ao militarismo e
expansionismo, tendo alguns grupos defendido que era destino do Japão expandir-se
territorialmente para o continente asiático (cf. Kotzsch, 1981:81 e segs). Em 1885, o
Seikyo Sha (sociedade nacionalista) já se havia organizado com o fim de preservar a
“essência nacional” e de se opor às ideias ocidentais. Nas décadas seguintes outros
grupos viriam a promover a necessidade da preservação da “essência nacional”. Ohsawa
esteve distante de uma influência directa destes grupos numa primeira fase, sendo através
do movimento shoku-yō que os encontraria e se deixaria influenciar.

117
«À Mesa com o Universo»

Como vemos, é num contexto de apelo a ideais nacionalistas, resultante de uma


configuração histórica particular, que deve ser situada a actividade de Ohsawa. O seu
interesse pelos textos clássicos orientais e pela “alimentação tradicional” pode ser vista
como reacção à ocidentalização, apesar do fascínio que a cultura ocidental causara no
jovem Ohsawa. O facto de tanto Ishitsuka como Ohsawa terem nas suas histórias de vida
situações de doença que apenas puderam curar usando procedimentos terapêuticos
tradicionais, terá sido também significativa para compreender a exaltação e defesa desses
procedimentos, inserindo-os no quadro de um conjunto de saberes tradicionais que
interessava defender. Em 1931, Ohsawa escreveria a propósito do Japão «…perdeu o
espírito oriental autêntico, sem ter sabido conquistar o verdadeiro espírito ocidental.
Reteve apenas uma salada russa americanizada, de comunismo, capitalismo, cinema e
jazz.» (1973:109) [Tradução livre]. Era pois contra essa descaracterização que importava
lutar, surgindo o movimento shoku-yō como projecto ambicioso no qual poderia ser
promovido um programa reformador da humanidade.
Um outro elemento que importa destacar, prende-se com um dos aspectos que
costumam ser assinalados relativamente ao contexto religioso japonês, justamente o seu
carácter sincrético. É um aspecto importante, na medida em que a proposta de Ohsawa,
nos contributos diversos que convoca, parece reflectir esse mesmo sincretismo. A
complexidade da vida religiosa japonesa, com a integração de diferentes formas de
religiosidade, parece ajudar a compreender a macrobiótica de Ohsawa. A introdução do
budismo no Japão, do confucionismo, do taoismo e do cristianismo no Japão, terá gerado,
de acordo com Kotzsch (1981), uma forma muito particular de apropriação destes
sistemas religiosos. De um modo geral, os japoneses não terão retido estes sistemas
religiosos na íntegra, antes tendo rejeitado certos elementos e adaptado outros, de forma a
construir algo de novo. É o próprio Ohsawa que refere a propósito dos japoneses: «En
contact avec la civilisation chinoise pour la première fois, il y a plus de quinze cents ans,
ils en reçurent tout ce qu’elle offrit: les lettres, la philosophie, le taoisme, le boudhisme,
la literature, les arts et les métiers, les costumes, etc. Ils ne refusèrent rien.» (1973:109).
Nada terão recusado, bem pelo contrário, e, ainda de acordo com Ohsawa, tudo terão
querido praticar antes de julgar.
A possibilidade de identificação com mais do que uma forma de religiosidade não
terá sido sequer problemática. Diz-nos Kotzsch (1981:10), que, muito embora o
confucionismo, o budismo e o shintoísmo possam ser considerados os pilares da nação, e
tenham tido uma efectiva relação com o estado e com a nação, alguns japoneses casam-se

118
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

numa cerimónia xintoísta e são sepultados com uma cerimónia budista. Evocando a
faculdade de síntese como característica japonesa é ainda Ohsawa quem nos refere a
existência entre os japoneses de uma cultura do espírito de síntese que permitiria unificar
domínios como a filosofia, sociologia, ciência, artes e religião… A formação da nação
nipónica seria ela mesma um exemplo de síntese sociológica (Ohsawa, 1973:110).
Uma das primeiras obras de Ohsawa, com significado para a compreensão da
macrobiótica, intitulava-se, justamente, Principe Uniquede La Philosophie et de la
Science d’Extrême-Orient (1973 [1931]). Aí procurou unificar diversos contributos das
religiões e filosofias orientais (Índia e China antigas) com a ciência, de forma a
estabelecer o Princípio Único (princípio que governaria a causalidade de todos os
fenómenos do universo e que se expressaria através da yniologia). A yniologia (análise de
acordo com os princípios yin e yang) seria a filosofia que permitiria integrar e
compreender os diferentes contributos e sabedorias 52.
De acordo com Kotzsch (1981), dois aspectos são importantes para compreender a
receptividade dos japoneses em relação a religiões estrangeiras. Em primeiro lugar, a
recusa da divisão entre sagrado e profano; em segundo, a importância atribuída à vida
prática em detrimento de outras dimensões mais conceptualizadas. Neste âmbito,
subsistiria na religiosidade japonesa um entendimento do cosmos como «continuum
ôntico» (Kotzsch, 1981), em que a natureza é expressão do divino, sem dicotomias entre
sagrado e profano, e onde o Homem é visto como parte integrante da natureza. Daqui
derivariam uma perspectiva optimista sobre a natureza humana; a continuidade entre
domínio material e espiritual; a primazia à experiência directa e ao modo de apreensão
intuitivo e afectivo e, até, a concepção segundo a qual as crenças e comportamentos
religiosos não são mutuamente exclusivos (Kotzsch, 1981: 3-4). À ideia de um sagrado
exterior ao Homem contrapor-se-ia uma visão do sagrado como algo de que o Homem
faz parte e que se encontra perante ele. A religiosidade japonesa estaria, assim, muito
mais focalizada em certas manifestações particulares do divino do que em aspectos
universais e transcendentais, conjugando de forma intensa a experiência religiosa e a
experiência estética. Pronunciando-se sobre o espírito japonês, Ohsawa diria: «A única
coisa que lhe interessava era a vida prática, é pois o pragmatismo que orienta, desde
sempre, o povo nipónico.» (1973:109) [Tradução livre].
52
Ohsawa caracteriza a yniologia do seguinte modo: «A In’yologia é a mais englobante filosofia do
Extremo Oriente. Inclui toda a ciência. Creio que ela facilita aos ocidentais a compreensão do budismo e,
por extensão, toda a filosofia do Extremo Oriente mais profunda, lugar onde a totalidade das ciências
práticas da vida, medicina, biologia, economia, sociologia, por exemplo, se encontram extraordinariamente
sintetizadas de forma harmoniosa (Ohsawa,1973:8).

119
«À Mesa com o Universo»

Tanto o confucionismo como o taoismo nunca tiveram o estatuto de religiões


independentes no Japão - o seu estatuto enquanto religiões é de resto discutível. O
taoismo, e também o budismo, partilhavam a qualidade maternal e protectora
relativamente ao entendimento da natureza, qualidade que, de acordo com Kotzsch, ia de
encontro à consciência religiosa nativa. O confucionismo, por seu lado, terá sido
particularmente importante em termos éticos e morais, tendo-se traduzido em aspectos
pragmáticos da vida social e política. A sua orientação seria mais paternal e masculina,
baseando-se numa perspectiva hierárquica das relações humanas e na piedade filial. A
obediência e respeito pelos mais velhos constituíam valores fundamentais, bem como os
princípios éticos da subordinação, lealdade, humildade e auto-sacrifício. Taoismo e
confucionismo coincidiriam numa explicação do mundo através da teoria dos cinco
elementos, teoria que será também adoptada pela macrobiótica proposta por Ohsawa.
Esta breve explanação está ciente das suas limitações relativamente à referência à
religiosidade japonesa e ao contexto histórico em que Ohsawa começou a desenvolver o
seu trabalho. Muito mais haveria a dizer, mas tal desviar-nos-ia dos objectivos desta
pesquisa. O enquadramento a que procedo serve apenas para evidenciar o quanto a
macrobiótica de Ohsawa é orientada por fundamentos ideológicos/religiosos e que a sua
proposta deve ser analisada à luz desses fundamentos bem como tendo em conta o
contexto histórico-social específico em que se moveu. É claro que é também a trajectória
pessoal de Ohsawa que permite compreender a sua proposta de reforma da humanidade.
Trata-se de uma trajectória pessoal marcada por uma doença grave, acontecimento que
acabará por conduzi-lo a uma forma de alimentação mais identificada com a
“alimentação tradicional japonesa”, e, depois, ao interesse por textos filosóficos clássicos
do Oriente, bem como à exaltação de valores e práticas tradicionais. Também a sua
formação e a actividade profissional, associados com as viagens que teve oportunidade de
realizar, devem ser tomadas em consideração para compreender o seu interesse pelo
mundo ocidental.

Ohsawa, dando uma importância inequívoca à dimensão prática da sua proposta,


suporta-a com um conjunto de orientações para o dia-a-dia, além de procurar torná-la
mais compreensível para os ocidentais. A macrobiótica pode, desta forma, ser vista como
uma filosofia prática na qual a Natureza é endeusada, à semelhança do que acontecia no

120
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

taoismo, budismo e confucionismo. Ohsawa integra na sua cosmovisão uma dimensão


espiritual inequívoca, que faz a macrobiótica parecer uma quase religião. De uma forma
sarcástica, alguns dos críticos da macrobiótica ter-lhe-ão chamado “a religião do arroz
integral”. Ainda que tenha divulgado o non credo como fundamento básico, a visão do
universo que Ohsawa nos apresenta conceptualiza o homem como ser espiritual. Nas suas
palestras, exaltava, justamente, a dimensão pessoal, espiritual e religiosa do shoku-yō, ou,
do shoku-yō-dō, a via através da alimentação. Uma via que implicava “viver de acordo
com a natureza”, ficar satisfeito com comida simples e em pequenas quantidades. Estas
eram condições básicas para caminhar em direcção à espiritualidade e desenvolver a
clarividência. A comida foi vista por Ohsawa como tão determinante que defendeu que
ela precedia o espírito. Só uma alimentação adequada permitiria o desenvolvimento da
espiritualidade. 53

3.4 Do Movimento Shoku-yō à Macrobiótica: Aspirações Universalistas

Convencido da universalidade dos princípios do shoku-yō e da superioridade do


que designou por “espírito japonês”, mas também atraído pela cultura europeia, Ohsawa
deixou Tóquio em 1929 para ir viver para Paris. Tinha o objectivo de divulgar o shoku-yō
e de se afirmar como escritor. Viveu em Paris com muito poucos recursos. Diz-nos
Kotzsch (1981), que vivia numa águas furtadas e que se alimentava de grãos
habitualmente vendidos como comida para pássaro e de vegetais que haviam sido
rejeitados nos mercados ou que apanhava nos parques e nos subúrbios. Terá começado
por escrever artigos sobre a cultura japonesa para vender em revistas e jornais, sem obter
grande sucesso, pelo menos numa fase inicial.
É numa atmosfera rica do ponto de vista intelectual e artístico que Ohsawa
imerge. De acordo com Kotzsch (1981), terá começado a estudar de forma aprofundada a
tradição intelectual e científica do Ocidente. Assistiu a conferências na Sorbonne e ter-se-
á tornado “estudante-investigador” no Instituto Pasteur, tendo-se aí interessado pela
espectroscopia. 54 O mergulho que fez na “cultura ocidental” levou-o à confirmação de

53
“Viver em harmonia com a Natureza” é um aspecto incansavelmente repetido por Ohsawa. A poucos
princípios terá sido tão fiel, pelo menos no que é visível na produção escrita.
54
Forma de observação que utilizaria como auxiliar na classificação dos elementos químicos em termos de
yin e de yang. Os elementos que tinham um comprimento de onda em direcção ao vermelho e laranja do
fim do espectro eram relativamente yang (carbono, hidrogénio e sódio estavam nessa categoria), os que se
encontravam próximos do violeta eram mais yin, como o potássio. (cf. Ohsawa, 1973:68).

121
«À Mesa com o Universo»

que a mente ocidental era excessivamente analítica e direccionada, não estando preparada
para compreender a abordagem holística e intuitiva dos orientais. Aparentemente, terá
sido o desejo de divulgar essa visão holística, bem como o de tornar os princípios do
shoku-yō acessíveis e atractivos para os ocidentais, que o terá levado a escrever e publicar
em 1931 o livro Principe Unique. Com este livro, Ohsawa conquistaria uma notoriedade
que até aí não almejara. Consegue melhorar a sua situação financeira e movimentar-se
por alguns dos círculos intelectuais parisienses, conhecendo figuras como Paul Valery,
André Malraux e Lévy-Bruhl55.
O livro Principe Unique constituiu uma oportunidade de divulgar na Europa
alguns dos aspectos de sistemas religiosos e filosóficos orientais (budismo, taoismo,
shintoísmo) e, mais especificamente, permitiu a Ohsawa apresentar os pilares do seu
sistema de pensamento, o Princípio Único, ou Princípio Unificador e a teoria da
yniologia, aspectos a que, de resto, já atrás fiz referência 56. Atento às preocupações de
Lévy-Bruhl, Ohsawa procura também ele fornecer o seu quadro da “mentalidade
primitiva”, considerando que Lévy-Bruhl havia falhado nos seus intentos dada a sua
incompreensão da profunda relação entre domínio material e espiritual. Na sua óptica, a
“mentalidade primitiva” seria caracterizada por uma visão unificadora destes domínios. O
homem era perspectivado como não se encontrando apartado da natureza, mas como
parte integrante da mesma, o mesmo acontecendo em relação à dimensão metafísica. A
compreensão de todos os fenómenos deveria, assim, estar baseada numa relação de
interdependência. Para sublinhar esta relação, Ohsawa evocaria as palavras de Lao Tze:
«O homem (yo) [yang] é alimentado e governado pela Terra (In) [yin]; a Terra é
governada pelo Céu (yo) (Sol); o Céu é governado pelo Tao, e Tao pela Grande Natureza
(Taikyoku)» (Ohsawa, 1973:101) [Tradução livre]. Defendendo a inexistência de uma
separação entre o real e o ilusório, sublinharia que a nossa «consciência» cria a
«realidade» e que a nossa «realidade» depende das funções mentais (cf. Ohsawa,
1973:61).
Procurando sempre destacar a noção de unidade e de interdependência entre os
fenómenos, procuraria evidenciar de que forma religião, filosofia e ciência podiam ser

55
Ainda que numa fase mais avançada da sua vida tivesse mantido um posicionamento anti-intelectual e
anti-académico parece ter havido uma certa sedução por certos círculos intelectuais. Poder-se-á especular
que a ausência de uma formação de nível superior poderá estar na origem do desdém de Ohsawa pelos
meios intelectuais e científicos, mas o certo é que se serviu deles, e dos saberes deles emanados, para
afirmar as suas concepções.
56
Alguns dos formadores na área da macrobiótica preferiram adoptar o termo «Princípio Unificador a
«Princípio Único», por o considerarem mais adequado para expressar a propriedade de síntese e para evitar
a conotação com um certo monolitismo.

122
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

interligadas através do Princípio Único. Apropriando-se de alguns termos e técnicas


científicas, como a espectroscopia, interpreta-os à luz de teorias filosóficas e religiosas
orientais e procura elementos de síntese e de unidade que lhe permitam afirmar a validade
do Princípio Único, um princípio universal de compreensão do mundo que acreditava que
deveria ligar todos os homens. Na combinação de aspectos científicos com a sua teoria,
podemos detectar alguma criatividade, mas, simultaneamente, alguma sensibilidade para
o entendimento dos recursos necessários para uma penetração no ocidente de alguns dos
elementos do pensamento oriental, ou, mais especificamente, do seu sistema de
pensamento. Ainda que muito crítico em relação à ciência produzida no ocidente, na sua
opinião uma mistura de teorias em constante mudança e que apenas se podia expressar
em termos de volume, peso e espaço; incapaz de interligar diferentes fenómenos, Ohsawa
parece ter percebido o seu poder do ponto de vista discursivo e o quanto poderia
constituir um instrumento valioso para reforçar a sua visão do universo. As
reinterpretações que fez da física moderna através do recurso às categorias de yine de
yang (cf. Kotzsch, 1981:116), afiguram-se como consequência desse entendimento. Nem
mesmo o cristianismo constituiu um óbice à divulgação da sua concepção sobre a vida e o
universo. De acordo com o espírito sincrético que reconhece nos japoneses, integra-o na
sua visão unificada do universo, e apresenta Cristo como um mestre do «Princípio
Único», cujos ensinamentos seriam apropriados aos bárbaros europeus que tinham uma
miopia espiritual (Kotzsch, 1981:227).
Após seis anos de permanência na Europa, em que divulgou as suas concepções
filosóficas e em que, supostamente, ajudou pessoas a curarem-se através da alimentação,
Ohsawa regressou ao Japão em 1935, aí vivendo até 1953. A sua actividade social, e até
política, seria intensa, conhecendo fases de ultra-nacionalismo. Face a um contexto em
que vê ser implementada a vacinação em massa e os programas higienistas, e onde é
promovido o uso de vitaminas, fruta, carne, leite e óleo fígado de bacalhau (produtos
associados a uma superioridade física e cujo consumo era incentivado no ocidente),
procura defender de forma obstinada a importância da “alimentação tradicional
japonesa”. Na sua opinião, a propaganda de certos alimentos tinha a ver com conceitos de
nutrição ocidentais que não eram adequados aos japoneses. A confirmá-lo estaria o
elevado número de tuberculosos que existiria no Japão, número que seria o sinal de uma
crescente degeneração física, mental e espiritual. A melhor forma de venerar o imperador
e ser patriota passaria então por adoptar a “comida nativa”, sendo “o verdadeiro shinto” a
prática do shoku-yō. Por esta altura terá chegado a revelar alguma simpatia pelo nazismo

123
«À Mesa com o Universo»

e pela disciplina do corpo que este regime procurava promover. De acordo com Kotzsch
(1981:165), Ohsawa ter-se-ia associado a intelectuais e militares que estudavam a questão
judia, tendo mesmo escrito virulentos ataques anti-semitas, identificando o materialismo
ocidental e o hedonismo com a “ideologia judia”. É, portanto, um posicionamento
radicalista, o que encontramos em Ohsawa, pelo menos nesta fase. Moviam-no ideais de
regeneração do povo e de estabelecimento de uma comunidade pacífica, mesmo que para
tal fossem necessárias medidas mais autoritárias. Diz-nos Kotzsch, que mais do que tratar
de doenças o que interessava verdadeiramente a Ohsawa era criar um movimento
religioso e social que resolvesse os problemas da nação (1981:295).
No decurso da sua vida terá mudado frequentemente de posições, mas uma crença
profunda no poder da comida, forma de expressão do universo, terá estado sempre
presente no seu pensamento. A comida constituiu, no seu caso, uma forma primeira de
expressão de um projecto ideológico. Projecto através do qual as sociedades se deveriam
organizar. A comida pode ser perspectivada, em Ohsawa, como sendo lugar de recepção,
participação e percepção do universo. O alimento, essência concretizada dos ritmos
cósmicos, substância na qual o ambiente surge incorporado, constituía para Ohsawa a
fonte através da qual se transmutava o mundo vegetal em vida humana. Da sua recepção
dependia essa vida e por ela se participava da “ordem do universo”. Pela comida se podia
obter maior discernimento e capacidade de entendimento dessa “ordem”. A ordem de
Ohsawa, claro57.
Em 1937, Ohsawa tornar-se presidente do movimento shoku-yō; promove
publicações e distribuição de comida. Organiza, então, o primeiro congresso nacional do
movimento, que contava, na altura, com cerca de 2500 membros. Dedica-se a consultas
individuais, criando a regra de não ver um paciente mais do que uma vez, e cobrando
valores muito elevados para observar pessoas durante 15m justos. Entendia que a leitura
dos livros publicados no âmbito do movimento shoku-yō seria suficiente para dar
sequência ao tratamento. Após 20 anos de ligação ao movimento, Ohsawa abandona-o, e,
decide devotar-se, por sua conta, a causas políticas e sociais. Em 1940, muda-se para uma
pequena cidade próxima de Quioto, adquire um velho restaurante e aí estabelece, com um
pequeno grupo de discípulos, um centro de pesquisa e de conferências que será

57
Não discuto neste contexto, os pressupostos de Ohsawa, nem enveredo por uma análise crítica da sua
proposta ideológica. Convém destacar, todavia, a partir dos dados que vêem sendo apresentados, a visão
profundamente ideológica que Ohsawa apresenta para a alimentação, fazendo da macrobiótica um projecto
ideológico de reforma da sociedade.

124
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

responsável pela publicação de uma revista. Marcando esta nova fase da sua vida, adopta
a designação Shin Seikatsu Ho (verdadeiro modo de vida) em vez de shoku-yō.
Após a eclosão da II Grande Guerra, sobretudo a partir de 1943, assume uma
posição anti-militarista, discordando, por conseguinte, de uma solução militar para o
Japão. Em alternativa ao confronto entre países, defende a existência de um governo
mundial, sustentado num parlamento, também ele mundial. De acordo com Kotzsch
(1981), terá procurado ser intermediário entre os EUA e o Japão para conseguir a paz.
Com o decorrer do conflito, começa a profetizar a derrota do Japão e o fuzilamento dos
governantes58. Acaba por atrair a atenção das autoridades pelas suas críticas e profecias,
de tal forma que a sua escola e revista são interditadas. Ao mesmo tempo, alguns jornais
começam a referi-lo como charlatão. Ainda de acordo com Kotzsch (1981), será feito
prisioneiro por diversas vezes na sequência destes acontecimentos. O próprio Ohsawa –
alude a este período, referindo ter sido condenado à morte por duas vezes, sendo salvo in
extremis pelo general MacArthur (Lopes, 1978: 22).
Mais tarde, em 1948, em Yokohama, colocaria uma placa identificadora na nova
escola, que entretanto abrira, onde se podia ler «Centro do Governo Mundial». Chama ao
seu centro «Maison Ignoramus» e, como atrás foi referido, atribui nomes ocidentais a
alguns dos seus alunos, procurando transformá-los em cidadãos internacionais. Será
também por esta altura que, de forma mais sistemática, passa a designar o conjunto de
concepções que defendia por macrobiótica.
Desapontado com a fraca adesão dos japoneses à sua proposta, Ohsawa e Lima
(sua mulher) deixam o Japão em 1953. Vivem algum tempo na Índia e, em 1955, seguem
para África para irem ao encontro de Albert Schweitzer, a viver em Lambaréné (no actual
Gabão). Schweitzer, médico-missionário alsaciano a quem foi atribuído o Prémio Nobel
da Paz em 1952 e que fundou, a partir da missão existente nessa localidade, o Hospital de
Lambaréné, era, no entender de Ohsawa, a personalidade adequada para credibilizar a
macrobiótica. A “sensibilidade espiritual” que Ohsawa lhe atribuía, a preocupação com
princípios universalistas e com uma ética comum a todos os homens, e, possivelmente, o
facto de ser vegetariano, terão constituído para Ohsawa factores de aproximação.
Ohsawa adoece durante a sua estada em África: fere-se e tem dificuldade em
cicatrizar as feridas (úlceras tropicais). Schweitzer recomenda-lhe que vá de imediato
para a Europa, mas Ohsawa insiste em se tratar através da macrobiótica. Adopta uma

58
Procurando atribuir-se poderes superiores, obtidos por um profundo conhecimento de yin e de yang,
Ohsawa vangloria-se de ter profetizado (sic) a derrota do Japão, o assassínio de Gandhi, Kennedy…
(Ohsawa in Lopes, 1978:22).

125
«À Mesa com o Universo»

dieta muito restritiva e ingere sal embrulhado em algas 59. Ao fim de duas semanas refere
que as feridas haviam desaparecido. Fica aparentemente curado, mas não consegue
convencer Schweitzer sobre a superioridade do que designava como “medicina
macrobiótica”. Muito embora a escrita do livro La Philosophie de la médecine d'Extrême
Orient, que terminara recentemente, se dirigisse particularmente a Schweitzer, Ohsawa
parece não ter conseguido conquistar este médico para a sua causa. Seguirá para Paris em
1957, onde começará a publicar uma revista mensal Yin – Yang, desenvolvendo, a partir
de então, actividade em diversos países da Europa (Bélgica, Suiça, Alemanha, Suécia,
Itália e Inglaterra), nos quais ministra palestras e promove a macrobiótica. O livro
Macrobiotique Zen surgido em 1960 é o resultado visível desta fase da sua vida.

3.5 Trânsitos da macrobiótica pelo mundo

A passagem de Ohsawa pela Europa dará origem a um número crescente de


seguidores da macrobiótica. O ambiente que Ohsawa encontra nessa altura é também
mais favorável à introdução da macrobiótica e à recepção de concepções vindas do
oriente. No Verão de 1959 será organizado um Campo de Verão em França (Sainte
Marie-Sur-Mer) onde surgirão cerca de 300 pessoas de diferentes países. Aí foram dadas
palestras e consultas médicas, começando a crescer o número de pessoas que diziam ter-
se curado com a adopção da macrobiótica. A afirmação de Ohsawa de que todas as
doenças se poderiam curar em 10 dias, por certo deve ter causado curiosidade por tal
prática. Uma revista francesa Rouge et Noir publica diversos artigos sobre Ohsawa,
chamando-lhe “o japonês que deseja salvar a civilização ocidental” (Kotzsch, 1981:240).
Na Bélgica, surge um grupo de entusiastas que começa a fazer pela primeira vez na
Europa a distribuição de produtos macrobióticos de origem biológica, criando uma
empresa de distribuição a que será dado o nome da mulher de Ohsawa – «Lima».
A introdução da macrobiótica na Europa viria a proporcionar a circulação de
produtos que dantes não se encontravam nas prateleiras das áreas comerciais. Na verdade,
as práticas de “alimentação natural” e o direccionamento para a agricultura biológica, têm
uma especial dívida para com Ohsawa, que estimulou este tipo de agricultura. De acordo
com Kotzsch (1981:236), terá sido Ohsawa a iniciar o cultivo de arroz biológico em

59
Kushi referiria que teria sido ele e sua mulher a enviarem desde os EUA os alimentos necessários ao
tratamento de Ohsawa.

126
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

França. Haveria poucas quintas de agricultura biológica na Europa, onde o arroz integral
e a sopa de miso não surgissem regularmente na mesa (Kotzsch,1981:308, o que é
indiciador da influência de Ohsawa neste grupo e da profunda conexão entre as
perspectivas deste autor, relativamente à alimentação, e as preocupações dos que, numa
fase inicial, se associaram ao movimento da agricultura biológica. De resto, a ligação
deste movimento a Rudolf Steiner, fundador da corrente filosófica da Antroposofia, (cf.
Truninger, 2010: 23), evidenciava que este grupo tinha um entendimento sobre a comida
que estava longe de se limitar a questões nutritivas e ambientais. Tinha também, pelo
menos num primeiro momento, uma clara dimensão espiritual. Com a passagem de
Ohsawa pela Europa e EUA nos anos 1960, rapidamente começam a aparecer centros
macrobióticos na Bégica, França e EUA. Muitas pessoas começam a devotar-se por
inteiro a negócios relacionados com a produção e distribuição de bens alimentares,
necessários para uma alimentação macrobiótica, bem como à formação. Este último
aspecto seria, aliás, imprescindível para a divulgação da macrobiótica, dada a novidade
do conjunto de conhecimentos (concepções filosóficas, ingredientes, técnicas e estilos
culinários…) associados à macrobiótica. Começam a surgir revistas dedicadas a esta
proposta em francês e em inglês, e os livros de Ohsawa começam a ser traduzidos para
diversos idiomas. Em Portugal, será sobretudo a partir da década de 1970 que começarão
a ser publicados os livros deste autor.
É de referir que o contexto de acolhimento da proposta de Ohsawa nos anos 1960
é-lhe particularmente favorável. Ohsawa representa uma proposta crítica em relação a
diversos aspectos da sociedade ocidental. As suas objecções em relação à ciência (ainda
que tivesse a pretensão de a harmonizar com a sua cosmovisão), ao materialismo e ao
racionalismo, que, em seu entender, impediam o desenvolvimento da intuição e da
sensibilidade espiritual, surgem, para muitos, como proposta alternativa a uma forma
excessivamente racionalizada de explicação do mundo. A ausência de sentido ou de
finalidade para a vida humana, de uma compreensão integrada do universo, ou o
sentimento do absurdo da vida (aspectos que terão sido associados a correntes filosóficas
em voga nos anos 60 e 70, como o existencialismo), terão contribuído para a necessidade
de uma proposta de reencantamento do mundo. Uma visão do universo como sistema
fechado (organizado em sete estádios segundo a proposta de Ohsawa), coerente e
inteligível, com um quadro de valores e de orientações organizado e sintético, como
aquele que a macrobiótica sugeria, encontrou facilmente seguidores. A macrobiótica
surgia assim como uma espécie de saber prático, onde teoria e praxis podiam ser

127
«À Mesa com o Universo»

colocados em acção para transformar cada indivíduo e, concomitantemente, a própria


ordem social.
Kotzsch (1981) apresenta a desilusão com a ortodoxia científica e médica como
um dos factores que pode ter desencadeado um maior interesse no Ocidente por propostas
alternativas como a macrobiótica. A proposta ecléctica e sintética de Ohsawa, sem
teísmos, apelava a um certo cosmopolitismo, e, o seu enfoque na intuição, como
dimensão significativa da acção, constituía uma espécie de antídoto em relação a vias
mais intelectualizadas e racionalizadas. Para além disso, a proposta de Ohsawa incluía
um elemento poderoso, um optimismo em relação ao mundo, ao Homem e à
possibilidade de felicidade na Terra que era um claro contraponto a visões mais
pessimistas e desencantadas do mundo. Refere Kotzsch (1981:312), que o seu
pensamento constituiu uma refrescante celebração do Homem, da natureza, do cosmos e
do modo como se podiam harmonizar entre si. O sofrimento do Homem, visto como
transgressão humana da “ordem da natureza”, passava a ser perspectivado como podendo
ser facilmente superado; constituía, de resto, o prelúdio necessário para a autocrítica e
para o despertar para uma via em conformidade com a “ordem do universo”.
Muito embora Ohsawa tivesse presente o preceito budista de que a fonte de todo o
sofrimento eram os desejos humanos e tivesse sido crítico de vias mais hedonistas, não
asfixiou o indivíduo relativamente à sua condição de sujeito desejante. Se em relação à
comida seguiu as orientações restritivas de Kaibara e de Ishitsuka, o mesmo não se
passou em relação à sexualidade. Para além deste aspecto, a sua proposta procurou
constituir um estímulo para que o indivíduo perseguisse os seus próprios objectivos e se
tornasse livre. Na sua opinião, o homem livre era aquele que vivia exactamente como
queria. A vida era para ele um jogo divertido em que cada indivíduo poderia ser produtor,
realizador e actor principal. Não vendia o seu tempo por dinheiro. A preocupação
fundamental deveria assentar num sentido autocrítico e em ser humilde. As características
fundamentais que frequentemente evocava, eram, justamente, a humildade, generosidade,
gratidão, auto-sacrifício, simplicidade e contentamento (cf. Kotzsch, 1981:28). A forma
de as realizar fazia-se, sobretudo, pela comida, simples e frugal.
Retornando à questão do contexto de acolhimento à proposta de Ohsawa, é de
salientar que um certo fascínio pelo oriente e atracção pelos seus sistemas filosóficos e
religiosos tinham já começado a fazer o seu caminho na Europa e nos EUA, existindo
uma audiência potencial para os seus ensinamentos. A presença em França, antes da
chegada de Ohsawa, de grupos de estudo Vedanta e do yoga atestavam esse interesse. Por

128
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

outro lado, a leitura atenta de Henry David Thoreau (1817-1862), com o livro referencial
para o movimento ambientalista Walden ou a Vida nos Bosques (1854); o zen
popularizado por Allan Watts (1915-1973); os beatniks, com Kerouac (1922-1969) a
escrever Os Vagabundos do Dharma (1958); o movimento psicadélico iniciado por
Richard Alpert (Ram Dass, n.1931) e Timothy Leary (1920-1996), com as experiências
psicotrópicas e viagens à Índia, representavam a contestação a uma sociedade materialista
e, portanto, pouco centrada na espiritualidade. Representavam a busca de novos
horizontes e sentidos para uma sociedade desencantada, pelo menos em alguns dos seus
segmentos. É pois junto dos simpatizantes destas propostas que Ohsawa encontrará
muitos dos seus seguidores. Outros virão do mainstream, outros ainda virão por razões de
saúde. Aproveitando o boom zen, Ohsawa dará ao seu livro o título Macrobiótica Zen.Em
1960, apresentará uma palestra na Academia Budista de Nova Iorque, indo de encontro a
apelos de seguidores da macrobiótica que já aí existiam. Cultivará, numa fase final da sua
vida, a imagem do homem sábio, um dos últimos filósofos do oriente que iria iluminar o
mundo (cf. Kotzsch, 1981: 238).

A divulgação na Europa e na América da macrobiótica ficará ainda a dever-se ao


trabalho exercido pelos seus discípulos directos, a maior parte deles japoneses. Um dos
esforços de Ohsawa foi justamente o de promover a colocação de alguns dos seus
discípulos na Europa e na América. A partir de 1949, e durante os anos 1950, assistir-se-á
à chegada desses discípulos. Michio Kushi (considerado actualmente o “líder” da
macrobiótica, n.1926), seria o primeiro a sair do Japão. Chegaria a Nova Iorque para
estudar Direito Internacional na Universidade de Columbia em 1949, após ter estudado
Direito e Ciências Políticas na Universidade de Tóquio. Aveline Tomoko Yokoyama
(mais tarde Aveline Kushi, 1923-2001), campeã de vendas do jornal promovido por
Ohsawa, World Government (Kushi et al.,1989: 293), chegaria a Nova Iorque em 1951,
casando-se em 1953 com Michio Kushi. Herman Aihara (Nobuo Aihara, 1920-1998)
chegaria a San Francisco em 1952 e seguiria nesse mesmo ano para Nova Iorque.
Brevemente, Cornellia Yokota (Chiiko Yokota) juntar-se-lhe-ia. Viriam a casar em 1955,
formando o casal Aihara. Desenvolveriam a sua actividade sobretudo na Califórnia, onde
criariam um centro de macrobiótica que viria a ficar conhecido por George Ohsawa
Macrobiotic Foundation. Também na Califórnia, sob convite dos Aihara’s, Noburo

129
«À Mesa com o Universo»

Muramoto (1920-1955), outro discípulo de Ohsawa, iniciaria a sua actividade, ensinando


medicina tradicional e dando consultas; o Asunaro Institute, em Glen Ellen, seria por ele
criado.
Uma actividade significativa associada à macrobiótica pode ser assim observada
na Califórnia, contexto de particular expressão de diversos movimentos de contestação
dos anos 1950-60, e, em relação ao qual, diversos autores referem o desenvolvimento de
movimentos ligados à agricultura biológica e comercialização de “produtos alimentares
alternativos” (cf. Pollan, 2009a; Belasco, 2007[1989]). No entanto, um primeiro conjunto
de actividades ligadas à macrobiótica nos EUA, centra-se inicialmente em Nova Iorque.
Em 1954, Michio Kushi e Aveline Kushi começariam a ensinar filosofia e medicina
oriental e a dar aulas de “cozinha natural” nessa cidade e, em 1956, envolver-se-iam,
também aí, na abertura da primeira loja japonesa onde surgiriam produtos associados à
cozinha macrobiótica «Azuma». Ao trabalho de Ohsawa e Lima Ohsawa (Sanae [Sanai?]
Tanaka,1899-1999) em França, juntar-se-ia o de Clim Yoshimi, (Kaoru Yoshimi) que,
com Françoise Rivière e René Levy, contribuiriam para difundir a macrobiótica neste
país. Na Bélgica, com o apoio de Clim Yoshimi e, depois, Roland Yasuhara e sua mulher,
Josianne Bagno, desenvolver-se-ia a macrobiótica; Eb Nakamura e Augustine Kawano
(Kiyozumi Kawano) contribuiriam para essa maior presença da macrobiótica na
Alemanha; Tomio Kikuchi e Bernardette Kikuchi assegurariam a divulgação na América
do Sul, no Brasil, a partir de 1955. Após a morte de Ohsawa, Hideo Ohmori, Shuzo
Okada e Lima Ohsawa terão assegurado o desenvolvimento de actividades ligadas à
macrobiótica no Japão. Em 1959, Okada fundaria a Muso Shokuhin, empresa alimentar
ligada à macrobiótica que teve um importante papel na introdução e distribuição de
alimentos no Japão, Europa e América. Começaram por exportar produtos fermentados
derivados da soja para a companhia «Lima» (sediada na Bélgica), em 1963 e em 1966
para a Chico-san, na Califórnia (cf. Shurtleff e Aoyagi, 2004)60.

60
Para uma informação mais detalhada sobre aspectos relativos à implementação e institucionalização da
macrobiótica, ver sobretudo Kotzsch (1981, 1985, 1988), William Shurtleff com Akiko Aoyagi (2004) e
Kushi (1989). Kotzsch é um dos mais significativos estudiosos da macrobiótica, tendo conciliado uma
consistente análise documental com o contacto directo com algumas das mais proeminentes figuras ligadas
à macrobiótica. Teve oportunidade de viajar pelo Japão e de aí recolher dados e estabelecer contactos com
interlocutores privilegiados ligados à macrobiótica, contribuindo, desta forma, para uma visão mais
aprofundada e global sobre o fenómeno. Este autor realizou trabalho de doutoramento sobre Georges
Ohsawa (Kotzsch, 1981) na área da Religião Comparada (Universidade de Harvard), sendo o seu trabalho
um dos mais citados. Apesar deste importante contributo, verifica-se a necessidade de uma investigação
rigorosa especificamente sobre a história da macrobiótica. O estabelecimento em 1999, no Smithsonian
Institution's National Museum of American History, da colecção da família Kushi de materiais relativos a
macrobiótica (ver apêndice 1), deve constituir uma fonte preciosa para uma análise detalhada sobre a
macrobiótica. Poderá constituir também uma fonte importante para a história das práticas relacionadas com

130
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Um olhar atento sobre a história da macrobiótica rapidamente permite detectar a


importância da família, mais especificamente, do «casal», no desenvolvimento de
actividades ligadas à macrobiótica, pelo menos ao nível dos promotores. O envolvimento
parece ser tão profundo que exige regularmente a participação de ambas as partes do
casal. Surgem frequentemente como compartilhando um mesmo projecto, procurando
colocar em prática os ensinamentos da macrobiótica. Manter outro tipo de actividades
tornaria certamente mais difícil a praxis da visão do mundo que procuram defender. O
casal consubstancia assim, regularmente, uma empresa da qual depende a diversos níveis,
financeiros e emocionais. Partindo, supostamente, de um conjunto de concepções
comuns, estes casais organizam-se empresarialmente e estabelecem por esta via um modo
de sustento que é também um modo de vida. A criação de um centro macrobiótico é a
forma mais recorrente de estabelecimento deste tipo de empresas. A ele costumam ser
associadas actividades de formação (aulas de cozinha, palestras, aulas teóricas sobre
macrobiótica), restauração, consultas e por vezes publicações.
A divisão de tarefas entre homens e mulheres costuma ser clara, sendo a
polaridade yin yang, tal como estabelecida pela macrobiótica, geralmente observada.
Desta forma, as mulheres tendem sobretudo a ocupar-se com a área da restauração e com
as aulas de cozinha. Os homens dedicam-se, essencialmente, à formação e divulgação da
macrobiótica através de aulas e palestras, consultas e também publicações. Tendem, por
isso, a ter ocupações que lhes dão maior exposição social, se consideradas em confronto
com as mulheres, habitualmente associadas a actividades mais recatadas. Esta tendência
pode ser observada para os casais Ohsawa, Kushi, Aihara e Varatojo (casal que
actualmente protagoniza a macrobiótica em Portugal), além de muitos outros. O facto de
diversas famílias que seguem a macrobiótica serem numerosas, contribui também para a
acentuação dessa polaridade, surgindo realçado o papel das mulheres sobretudo enquanto
cuidadoras. Uma estrutura tradicional de divisão de tarefas entre os sexos, pode assim ser
observada em algumas destas empresas familiares, facto que, de resto, se encontra em
concordância com os princípios macrobióticos divulgados por Ohsawa, teorizador que, à
partida, se encontrava familiarizado com a concepção de Kaibara (inspirada em
Confúcio) de que as mulheres deveriam ter sempre algum tipo de relação de
subserviência com um homem (cf. Kotzsch, 1988:16).

as terapêuticas alternativas nos EUA, dado que algumas dessas práticas, como o shiatsu e a moxabustão,
surgem associadas à macrobiótica.

131
«À Mesa com o Universo»

No ano em que Ohsawa morreu, em 1966, com uma paragem cardíaca, a


organização macrobiótica no Japão (Centro nipónico Ignoramus) encontrava-se sediada
num edifício modesto. Os discípulos de Ohsawa no Japão eram poucos e ocupavam-se
sobretudo com aulas de cozinha e com a publicação da revista Atarashiki Sekai. Havia
mais alguns ramos do centro noutras cidades, mas pouco expressivo. De acordo com
Kotzsch, Ohsawa deixou poucos praticantes no Japão. A alimentação macrobiótica
representava para a maior parte das pessoas uma forma de ascetismo (na verdade,
encontrava-se próxima da dieta dos monges budistas que levavam uma vida de renúncia)
e aqueles que a ela aderiam eram sobretudo indivíduos cuja saúde dependia da
alimentação. Por outro lado, o consumo de arroz integral era ainda associado a memórias
de guerra e pobreza. Para além disso, seguir a macrobiótica significava ainda, para
muitos, um esbatimento indesejável de certas relações sociais, dado que por vezes
significava o afastamento em relação a certos grupos e a impossibilidade da
comensalidade. Após a morte de Ohsawa, houve um período de estagnação relativamente
às actividades associadas à macrobiótica. Algum tempo depois, com o trabalho
persistente de Lima e alguns dos seguidores de Ohsawa, foi possível desenvolver uma
actividade relativamente consistente de formação e publicação nos dois principais centros
de divulgação da macrobiótica, Tóquio e Osaka.
Em 1984, um dos números da revista Atarashiki Sekai apresentaria uma lista com
160 centros e lojas de venda de produtos pelo país. De acordo com Kotzsch (1985:213),
esta actividade ligada à macrobiótica viria a contribuir para que se estabelecesse no Japão
um sector económico ligado à comercialização de “comida alternativa”. Na verdade,
muitos dos produtos utilizados no âmbito da macrobiótica, que passaram a ser
comercializados na Europa e EUA eram importados directamente do Japão. «Musō
Shokuhin» e «Mitoku» são exemplos de empresas de distribuição entretanto criadas. Da
sua actividade resultou a possibilidade de encontrar de forma mais regular, tanto na
Europa como na América, diversos produtos usados na macrobiótica (algas, miso, ameixa
umeboshi, tamari…). Diz-nos ainda Kotzsch (ibid.), que o desenvolvimento da
agricultura biológica no Japão conheceu também um particular impulso com o
envolvimento nesse sector de pessoas ligadas à macrobiótica. Na área do fornecimento de
sal, que constituía um monopólio do Estado no Japão, surgiram também duas companhias

132
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

dirigidas por pessoas procedentes da macrobiótica e que procuraram, de acordo com o


mesmo autor, colocar no mercado um sal de maior qualidade.

De Ohsawa alguns dos seus discípulos recordarão a sua frontalidade e severidade,


como quando perguntava aos seus discípulos o que haviam comido no dia anterior e não
ficava satisfeito com as respostas que lhe davam. Por vezes agia como um pai. Os seus
discípulos recordam ainda o seu carisma, a capacidade de influenciar e de atrair pessoas,
a coragem e diversidade de competências. Não teve uma educação formal de nível
superior e não tinha grandes preocupações com questões de rigor científico, mas era um
leitor e escritor incansável. Contrapunha à racionalidade científica e ao saber estabelecido
o valor insuperável da intuição. Muitas das suas posições estavam longe de ser
sustentadas. Instigava os seus seguidores não a trabalharem, mas a divertirem-se, o que,
por certo, alimentava essa velha utopia que é a libertação do trabalho. Defendia com
convicção que qualquer doença podia ser curada, atraindo, assim, muitas pessoas e
afastando outras que o viam como um charlatão. O seu estilo profético e a convicção que
depositou nas suas posições proporcionaram-lhe muitos seguidores, que de forma quase
textual quiseram pôr em prática tudo o que ele recomendava, ainda que fosse uma dieta
pouco recomendável para o seu estado. O gosto pela higiene levava-o a apresentar-se de
forma cuidada e até a ocupar-se com a limpeza profunda das casas em que ficava
hospedado, sobretudo da cozinha, que considerava um lugar sagrado. Fumava muito,
entendia que o tabaco não era prejudicial para a saúde, apreciava cerveja e cometia
excessos alimentares, ainda que fosse absolutamente contrário ao desperdício 61 (cf.
Kotzsch, 1988). Estes consumos são, aliás, observáveis em diversos seguidores da
macrobiótica, como se fosse um contraponto a um maior zelo nas questões alimentares.
Dos elementos recolhidos fica também visível a sua capacidade de iniciativa e de
influenciar novas actividades. Diz-nos Kotzsch (1981) que por vezes era dogmático e
fanático e que as suas posições estavam longe de se encontrar sempre fundamentadas.
Ainda que defendesse o non credo, impregnou, de acordo com este autor, a sua proposta
de uma profunda religiosidade, ao ponto de transformar o alimento num sacramento e o
61
Numa ocasião, num campo de verão em França, alguém terá deitado fora arroz que começara a azedar.
Ohsawa foi apanhar os gãos de arroz ao lixo e comeu-os na refeição seguinte, dizendo que a comida que se
tinha começado a decompor era de mais fácil digestão. Kushi relata ainda que numa ocasião em que se
encontrou com Ohsawa nos EUA foram a um café, aí, Ohsawa pediu um cheese-cake e uma coca-cola,
tendo Kushi feito o mesmo tipo de pedido. Ohsawa ter-lhe-á então recomendado que mastigasse bem.

133
«À Mesa com o Universo»

acto de comer num ritual através do qual se convocava a “ordem do universo” para a
mesa. Uma das suas maiores preocupações foi, de acordo com Kotzsch (1981:295), não
tanto a de tratar doenças mas mais a de criar um movimento religioso e social que
contribuísse para a paz mundial.

Sem pretender alongar-me excessivamente com factos relativos ao processo de


divulgação, implementação e institucionalização da macrobiótica, julgo ser ainda
pertinente referir alguns acontecimentos que, de acordo com os dados disponíveis,
acabaram por marcar o rumo da macrobiótica. Em 1961, Ohsawa visitaria os EUA para
participar num campo de verão (actividade consagrada na macrobiótica) nas montanhas
Catskill – Wursboro (Nova Iorque). Aí, num contexto marcado pela guerra fria, revelaria
alguma preocupação relativamente à crise associada à construção do muro de Berlim e à
situação de Cuba, referindo a possibilidade de uma catástrofe nuclear. Exortou, por
conseguinte, os seus seguidores a deixarem Nova Iorque e a instalarem-se num local mais
a salvo da radioactividade, que, para além disso, fosse adequado para o cultivo de arroz.
Após intensa procura desse local, vários seguidores decidiram-se por Chico, no vale de
Sacramento (Califórnia). Treze famílias (36 pessoas) juntaram os seus bens e dirigiram-se
para Chico em caravana (Kushi e Jack, 1989:294)62. Chegaram a 1 de Outubro de 1961.
Entre estas pessoas, de talentos muito diversos, mas poucos conhecimentos no sector da
produção e distribuição de alimentos, estava Herman Aihara 63.
Esta deslocação em caravana não deixa de ter o seu lado “folclórico”, no sentido
menos intelectualizado do termo, mas constitui também apanágio de uma época marcada
pelos movimentos de contracultura, pelo desejo de celebração da natureza, reacção ao
materialismo, industrialização e procura de novas formas de espiritualidade. Uma
contracozinha (countercuisine), conceito adoptado por Belasco (2007 [1989]), com
preferência pelo orgânico, que condenasse a “comida de plástico” e que tivesse uma
dimensão terapêutica (Belasco, 2007:4). Uma cozinha com um novo paradigma, portanto,
surgia, assim, como um desafio a seguir, algo que pode ser visto como compaginável com

62
Shurtleff e Aoyagi (2004) referem 32 pessoas e 11 famílias.
63
Dizem-nos Shurtleff e Aoyagy a propósito do exôdo para Chico «Os talentos eram diversos mas poucos
no que respeitava a confecção e distribuição de alimentos: cinco trompetistas profissionais, um pintor, um
escultor, um economista de Harvard, uma estrela de telenovelas e um engenheiro» (2004:7). A base de
recrutamento para a macrobiótica incluía assim um conjunto de indivíduos ligados a profissões que
costumam ser associadas à classe média - média-alta.

134
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

o desejo de transformação social. Os aspectos referidos por Belasco, aqui entendidos


como configuradores dessa cozinha marginal que era a contracozinha, constituem
também dimensões fundamentais na macrobiótica. Tais aspectos, ainda que não sejam
exclusivos à macrobiótica, têm vindo a adquirir um lugar cada vez mais central nos
discursos de base científica sobre a comida (Nestle, 2006; Pollan, 2009a; Willet, 2005;
Campbell, 2006), e até junto dos consumidores. A este propósito, ainda que
especificamente sobre os alimentos orgânicos, diz-nos Pollan reportando-se ao contexto
americano: “A palavra «orgânico» passou a ser uma das palavras mais poderosas no
supermercado: sem qualquer ajuda da parte do governo, produtores e consumidores,
trabalhando juntos, criaram uma indústria avaliada em 11 mil milhões de dólares, o sector
da economia alimentar que apresenta actualmente o crescimento mais rápido”
(2009a:145). A macrobiótica, apesar da importância dada aos alimentos orgânicos, não
adquiriu, no entanto, a centralidade que Lau (2000) lhe atribui, mas, muitos dos aspectos
a ela associados (preferências alimentares e ingredientes), foram, efectivamente, sendo
introduzidos no mainstream das orientações alimentares, tal como atrás procurei
demonstrar, sem que esse processo relacional fosse explicitado. De um modo geral, ainda
não foi devidamente reconhecida, ao nível do mainstream, a importância da
macrobiótica, e dos movimentos a que acima aludi, nos novos entendimentos sobre o que
deve ser uma alimentação saudável. Quando Lau (2000:87) refere que a macrobiótica
conseguiu implantar-se porque participava do discurso mainstream relativo à saúde e à
dieta, o discurso dos “super alimentos”, dos “super corpos” e do “controle do corpo”,
oculta a influência que a macrobiótica teve em relação a esse mesmo mainstream, com o
seu trabalho pioneiro. Por outro lado, não dá conta, evidentemente, das especificidades da
macrobiótica em relação a essas dimensões (saúde e dieta), nem da resistência e dúvidas
que essa proposta sempre foi suscitando, e continua a suscitar, junto desse mesmo
mainstream. Um trabalho de “desocultação” dessas relações seria indiciador de como as
práticas marginais associadas ao grupo que nos anos 60 se instalou na Califórnia, e a
muitos outros que adoptaram a macrobiótica, podem ser perspectivadas como lugares de
cumplicidade e de criatividade, a partir dos quais seria possível desenvolver
aprendizagens e ir apresentando novos conceitos e produtos ligados à alimentação 64.

64
Diz-nos Pollan (2009a) que do desejo de uma produção alimentar não contaminada surgiram grupos hoje
expressivos do ponto de vista económico como a empresa «Whole Foods», que terá passado de uma
actividade marginal para uma de maior centralidade, medida pelo volume de negócios. O mesmo não
sucedeu com todos os grupos, tendo alguns permanecido marginais, como os que se encontram em
«People’s Park», que Pollan caracteriza como “(…) parque com lixo espalhado por entre a erva e as
árvores, salpicado com as tendas esfarrapadas de algumas dúzias de sem abrigo. Na sua maioria entre os

135
«À Mesa com o Universo»

Em 1962, o grupo que, sob incentivo de Ohsawa se havia deslocado para a


Califórnia fundaria a empresa alimentar «Chico-san», uma empresa de importação e
distribuição de alimentos, que rapidamente importaria e colocaria no mercado alguns dos
produtos básicos da macrobiótica (algas, shoyu, miso, ameixas umeboshi…). Seria, de
acordo com Shurtleff e Aoyagy (2004), a primeira empresa na América a distribuir
produtos alimentares associados à macrobiótica. Numa primeira fase a empresa não teve
muito sucesso com a venda de alimentos, mas após recomendação de Georges Ohsawa
(visitou a «Chico-san» no início dos anos 1960, onde deu palestras) para que produzissem
bolos de arroz, tornou-se mais popular, transformando-se esse produto no primeiro
produto de sucesso da «Chico-san» (cf. Shurtleff e Aoyagy, 2004). Começam a ser
divulgados os livros de cozinha macrobiótica, que constituem um importante ponto de
apoio para as “aventuras” na cozinha, e são publicados diversos livros de Ohsawa nos
EUA. Os livros Zen Cookery (1985 [1964])65, e Zen Macrobiotics (Ohsawa, 1979 [1960])
constituiriam dois dos primeiros importantes veículos através dos quais os americanos se
familiarizariam com a macrobiótica. A partir de 1965, de acordo com Shurtleff e Aoyagy
(2004), as actividades ligadas à macrobiótica cresceram rapidamente nos EUA,
estimando estes autores que de 300 praticantes se tenha passado para 2000 pessoas
activamente envolvidas com a macrobiótica. De acordo com Shurtleff e Aoyagy (2004)
um número significativo de empresas ligadas à transformação da soja foram fortemente
influenciadas pela macrobiótica. Nos EUA, as três primeiras empresas não orientais,
produtoras de miso, seriam criadas por estudantes de macrobiótica.
Muito embora o cultivo de soja se tenha iniciado nos EUA em 1765, com Samuel
Bowen, só a partir de 1887 haveria um verdadeiro incentivo às experiências agrícolas
com esta leguminosa. Tal como descrito no livro The World of Soy (Du Bois et al.,2008),
apenas a partir de finais do século XIX os americanos revelaram alguma curiosidade pela
soja. Numa fase inicial, aquele que viria a ser o primeiro produto agrícola em termos de
valor das exportações dos EUA, seria sobretudo utilizado para enriquecer os solos e como
forragem, não sendo os feijões de soja percepcionados como comida para humanos.

cinquenta e os sessenta anos, alguns deles ainda com roupas e penteados ao estilo hippie” (Pollan,
2009a:149).
65
Livro elaborado pelos fundadores da «Chico-san» (Ohsawa Foundation of Chico), como resposta à
necessidade de uma orientação prática na cozinha. Seria reeditado pela George Ohsawa Foundation,
instituição criada na Califórnia por Herman Aihara e Cornellia Aihara. A elaboração deste livro constituiu
uma das primeiras tarefas que os fundadores da «Chico-san» se auto-impuseram, dado o desconhecimento
sobre a macrobiótica e a falta de livros que constituíssem referenciais de orientação. Com as devidas
ressalvas, tendo em consideração o impacte social destes livros, tal como «o livro de cozinha» foi
importante para o “estabelecimento” de uma cozinha nacional (Appadurai, 1988; Sobral, 2008), também
este livro seria uma referência incontornável para a macrobiótica desenvolvida nos EUA.

136
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Mintz (2008), no conjunto de aspectos que menciona para procurar compreender por que
motivo na Europa e nos EUA nunca se havia antes do século XX fermentado as
leguminosas - técnica que, no caso da soja, permite criar um conjunto assinalável de
derivados (miso, molho de soja, tofu, tempeh [tempe], natto…) - conduz-nos a identificar
o valor vital da soja em alguns países asiáticos (sobretudo China, Japão, Coreia e
Vietname) com motivos de que beneficiariam tanto produtores como consumidores 66. A
soja seria importante para enriquecer os solos e como fonte de energia e de proteínas para
os humanos. É evidente que a questão das proteínas não podia ser colocada numa fase
inicial do consumo da soja, mas face a uma alimentação com uma ampla base vegetal, a
soja constituía, com grande probabilidade, um recurso de ordem energética não
negligenciável. Por outro lado, uma das hipóteses para que a fermentação da soja
ocorresse primeiro na China, e que é sugerida a Mintz por Huang (Mintz, 2008:62),
aponta para uma conjunção favorável, naquele contexto ambiental, entre o tipo de cereais
cultivados (arroz e millet), a utilização do vapor como técnica para cozinhar e a existência
de várias espécies de fungos no ambiente. No ocidente, tais condições não terão sido tão
propícias. Por outro lado, não teria havido necessidade de fermentação das leguminosas,
dado que, ainda que os feijões disponíveis não fossem fáceis digerir, não apresentavam os
problemas de indigestibilidade da soja. A estes aspectos haveria ainda a acrescentar, de
acordo com Mintz (2008), a existência de um momentum cultural específico, na China,
que permitiria a fermentação da soja. Aliás, seriam também outros momenta culturais
particulares que levariam ao sucesso do açúcar e, mais tarde, ao sucesso da soja fora do
contexto asiático.
Desde a domesticação da soja, cerca de 1000 anos A.C., até à sua fermentação,
por volta do ano 900, um longo caminho foi percorrido, favorecendo uma íntima
convivência com um produto de difícil digestão, que tornaria possível a invenção de
diferentes formas de o manipular e de o apresentar. Mais que isto: seria definido através
da fermentação da soja um tipo específico de tempero e de sabor que virá a caracterizar
tanto a cozinha chinesa como a japonesa. O molho de soja impregnaria inúmeros pratos
confeccionados em muitos lugares, tornando-se num dos marcadores mais expressivos
das cozinhas da China e do Japão, podendo ser visto como enquadrando os seus
princípios de condimentação67. Possivelmente porque pouco familiarizados com estes

66
Dos produtos fermentados derivados da soja, só o molho de soja era utilizado na cozinha europeia. O
molho de soja terá entrado na culinária europeia no século XVII (Mintz, 2008:62).
67
A noção de princípios de condimentação (aromas e sabores específicos) é considerada por Contreras e
Gracia (2005: 202), seguindo Elizabeth Rozin e Paul Rozin (1981), como um dos aspectos mais

137
«À Mesa com o Universo»

princípios de condimentação, e porque a questão do gosto também é importante na


eleição dos alimentos, tanto europeus como americanos terão tido alguma relutância em
relação a este tipo de alimentos (cf. Du Bois, 2008).
Associar estes sabores a uma nova cosmovisão e a novas orientações ideológicas
com as quais se sentia alguma afinidade, como a macrobiótica, ou ainda, exaltar os
efeitos do ponto de vista biológico da adopção desses alimentos, com as vantagens
correspondentes para a saúde, acabaria por facilitar a introdução destes produtos. Estes
aspectos devem, assim, ser vistos como relevantes numa análise das mudanças
alimentares e de desenvolvimento do gosto. Du Bois refere, também ela, a importância do
movimento da contracultura nos anos 60 para que se tornassem mais conhecidos os
sistemas de pensamento orientais, as suas comidas e práticas médicas. A soja aparece
como produto com muitas potencialidades ao qual se associam escolhas culinárias New
Age (Du Bois, 2008:221). Esta autora não especifica o que entende por “escolhas
culinárias New Age”, apenas refere a existência de um número crescente de imigrantes
asiáticos que consumiam soja e o maior interesse por este produto, tanto ao nível da
investigação médica, como por parte dos jornalistas que davam conta dessa
investigação68. Nos dados apresentados, Du Bois nunca refere a macrobiótica, como
opção particularmente importante para ajudar a compreender algumas das transformações
do ponto de vista alimentar. Todavia, os elementos que têm vindo a ser apresentados
apontam para o facto de os seguidores da macrobiótica terem sido um grupo decisivo na
introdução da soja e seus derivados na alimentação humana. Factor que terá contribuído
para a transformação do mercado de bens alimentares. A partir dos anos 1980, foi notório
o aumento do consumo de alimentos à base de soja, de tal forma que, de 1992 para 2004,
o volume de vendas deste tipo de alimentos, produzidos nos EUA, aumentaria de 300
milhões de dólares para 3,9 biliões (cf. Du Bois, 2008), números, sem dúvida, bastante
reveladores da importância que este produto adquiriu em termos alimentares.

permanentes (porque mais resistente) e identificador de uma cozinha, algo que pode permanecer durante
séculos enquanto outros componentes desaparecem.
68
A importância da soja em termos nutritivos tem sido amplamente difundida, bem como os seus efeitos
para a saúde. As proteínas presentes na soja transformaram-na num alimento particularmente recomendado
nos regimes vegetarianos e semi-vegetarianos, como forma parcial de substituição dos alimentos de origem
animal. Os benefícios das isoflavonas presentes na soja têm também sido largamente divulgados, sendo
associadas ao combate da osteoporose e desconfortos da menopausa, bem como na prevenção de certos
tipos de cancro. Este alimento surge assim na categoria dos nutracêuticos, ou seja, alimentos com efeitos
medicinais. Curiosamente, o “leite” de soja (bebida de soja), cuja presença é cada vez mais regular nos
supermercados e à mesa, tido por muitos como um substituto saudável ao leite, foi-me apresentado nas
sessões de formação em macrobiótica como um produto “de difícil digestão” e que não deveria ser
consumido diariamente.

138
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Antes que esta expressividade no consumo de produtos derivados da soja se


verificasse e se observasse neles uma trajectória alheada da macrobiótica, alguns
acontecimentos relativos à História da macrobiótica devem ser mencionados. Em 1965,
um acontecimento trágico viria a contribuir para uma imagem negativa da macrobiótica.
Uma mulher jovem, Beth Ann Simon, com problemas de adição, e que decidira seguir,
por sua conta, uma dieta muito restritiva proposta pela macrobiótica (apenas à base de
cereais), morre. Dada a acção do seu pai enquanto advogado, a Fundação Ohsawa de
Nova Iorque, entretanto criada, é encerrada pela Food and Drug Administration (FDA),
vindo então o centro a mudar-se para Boston, onde se tornou a base de actividades nos
EUA. Este facto contribuiu para uma imagem negativa da macrobiótica e para uma
mediatização pouco favorável a esta proposta. No final da década dos anos 1970, uma
imagem igualmente negativa seria divulgada a propósito de um caso de suicídio em
França. Roger Ikor, professor na Sorbonne, acusaria a macrobiótica de ser responsável
pela morte de seu filho e de a macrobiótica ser uma seita baseada em superstições e
falácias (cf. Kotzsch, 1988:224). Descrito como tendo problemas de ordem física e do
foro psicológico, o seu filho ter-se-ia suicidado na sequência da permanência numa
clínica de René Lévy (seguidor da macrobiótica). Estes casos contribuiriam para que a
macrobiótica fosse associada a charlatanice, mas, por outro lado, terão também
incentivado alguma investigação de carácter científico sobre esta prática, alguma dela,
deve dizer-se, pouco favorável à macrobiótica.
Na sequência do encerramento da Fundação Ohsawa de Nova Iorque, o casal
Kushi muda-se para Brookline, aí ficando sediada uma boa parte da actividade ligada à
macrobiótica. Em 1966, Aveline Kushi abre uma pequena loja de produtos associados à
macrobiótica - «Erewhon»69. A «Erewhon» tornar-se-ia numa das mais importantes lojas
de distribuição de “comida orgânica e natural”, sendo a representante exclusiva de
empresas japonesas como a «Muso» e a «Mitoku». Mais tarde (1986) viria a adoptar o
nome «U.S. Mills», nome de companhia de venda de cereais fundada em 1908, que seria
adquirida pela «Erewhon», quando o volume de negócios desta última empresa atingiu
um milhão de dólares70.

69
Designação que é também uma homenagem a Ohsawa, dado que é igualmente o título de um livro de
Samuel Butler [1872], que era do agrado de Ohsawa.
70
Entretanto a «U.S. Mills, Inc.» foi adquirida em 2009 pela «Attune Foods», empresa do ramo alimentar
dedicada sobretudo à produção de cereais de pequeno-almoço. Este tipo de cereais não é dos produtos mais
recomendados nas sessões de formação sobre macrobiótica, dado o processamento de que são alvo. A
mudança de mãos desta empresa parece estar assim associada a uma estratégia onde a macrobiótica, ainda
que possa ser vista como fazendo parte da História da empresa, tem já um valor residual.

139
«À Mesa com o Universo»

Em 1972 seria criada, em Boston, a «The East West Foundation» (EWF), uma
organização sem fins lucrativos, votada ao ensino da macrobiótica, da medicina oriental e
outras artes tradicionais, presidida por Michio Kushi. Associada a esta organização,
surgiria uma revista com o mesmo nome que se transformaria numa espécie de porta-voz
de estilos de vida alternativos. A EWF acolheria entre 10-12 estudantes que viveriam
com os Kushi. Mais tarde (1978), seria fundado o Instituto Kushi em Boston, que hoje se
encontra sediado nas Berkshires (Becket – MA). Nova Iorque, Massachusetts e Califórnia
seriam assim três pólos importantes no desenvolvimento de práticas relativas à
macrobiótica.
No Reino Unido, só a partir de finais dos anos 1960, com Greg e Craig Sams, se
começaria a promover a macrobiótica. Diz-nos Kotzsch (1988) que a maior receptividade
a este tipo de propostas viria do movimento contracultura, onde se encontrariam
albergadas tendências que viam na macrobiótica uma forma de expressão adequada ao
espírito contestatário. Diz-nos ainda o mesmo autor que, com uma certa falta de
informação sobre o que era realmente a macrobiótica, alguns destes indivíduos juntavam
o arroz integral à marijuana (Kotzsch, 1988:221). A partir de 1975, o casal Kushi
começaria a divulgar a macrobiótica na Europa, apresentando esta proposta como tendo
preocupações ligadas à agricultura, ecologia, saúde, desenvolvimento espiritual e paz
mundial, temas para os quais havia cada vez maior sensibilidade. Diz-nos Kotzsch
(1988:220) que nos anos 80 havia já uma larga e crescente rede de pessoas ligadas à
macrobiótica na Europa. Em 1982 é fundada a Associação Macrobiótica Europeia, com
secretariado em Antuérpia e com organização de congressos anuais 71.
Dos diferentes países da Europa onde a macrobiótica foi introduzida, destaco aqui
apenas a Suécia, país que é apresentado por Roland Keijser (envolvido na macrobiótica)
como estudo de caso (mais à frente analisarei com maior pormenor a situação
portuguesa). Na Suécia, terá havido um intenso debate entre os defensores da
macrobiótica e o movimento vegetariano. De acordo com Roland Keijser, os suecos terão
tido dificuldade em integrar as referências orientais da macrobiótica e viram a proposta
de Ohsawa como um «Ohsawa-ismo», tendo afirmado a “verdadeira macrobiótica” como
sendo a da tradição germânica (a de Von Hufeland,), baseada numa perspectiva
romântica da natureza e na moderna Ciência da Nutrição (cf. Kotzsch, 1988:228).

71
Para uma visão mais completa sobre o desenvolvimento da macrobiótica na Europa veja-se Kotzsch
(1988).

140
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Deste debate vale a pena destacar o entrosamento que é defendido existir entre
vegetarianismo e macrobiótica, dado que se sugere que é no grupo dos vegetarianos que a
macrobiótica encontrará alguns adeptos. Em Portugal, os depoimentos de diversos
informantes conduzem-me também ao estabelecimento dessa relação e a um
entroncamento da macrobiótica no vegetarianismo. Por outro lado, a importância dada às
Ciências da Nutrição revelava já a importância desta área na estruturação dos discursos
sobre alimentação. Na verdade, serão cada vez mais aspectos ligados às questões
nutricionais e às questões de saúde que estruturarão os discursos sobre alimentação e não
aspectos de ordem ética ou disciplinar, como os que tinham caracterizado algumas das
orientações alimentares dos finais do século XIX. Mesmo na macrobiótica, a referência a
aspectos nutricionais e às vantagens, em termos de saúde e de energia, do consumo de
certos alimentos, passou a ser elemento estruturante dos discursos.

Julgo ser possível sustentar após esta apresentação, a importância de Ohsawa, e do


conjunto de actividades associadas à macrobiótica, na compreensão de algumas das
transformações alimentares que se têm vindo a observar nas sociedades euro-americanas.
Alimentos que no passado não se consumiam ou que tinham uma importância residual,
passaram a ser consumidos com maior regularidade, fazendo o seu caminho das margens
para o centro. É nesse sentido que se expressam Du Bois (2008), Mascarenhas (2007) e
Belasco (2007). O “leite” e iogurtes de soja passaram a ter um lugar proeminente nas
fileiras dos grandes supermercados, sendo assim evidenciada a importância que estes
consumos adquiriram. A produção e consumo de produtos biológicos, ainda que longe de
se encontrar limitada aos que seguem a macrobiótica, foram largamente incentivados por
esta proposta. De acordo com os dados recolhidos, a distribuição de alimentos como o
miso, molho de soja, tofu, óleo de sésamo, algas, diversidade de grãos, resultou em
grande medida da introdução da macrobiótica. Por outro lado, a opção por tratamentos
alternativos como os propostos pela macrobiótica, o shiatsu, e até a acupunctura
beneficiaram com a introdução da proposta de Ohsawa. Este autor, defendia, aliás, ter
sido ele a introduzir a acupunctura na Europa (cf. Lopes, 1978: 22) e, muito embora Luísa
Franco refira datas anteriores à sua passagem por França (Franco, 2010), é possível que o
exercício prático da acupunctura tivesse sido particularmente estimulado por Ohsawa, o
mesmo se aplicando a outras formas alternativas de tratamento, como o shiatsu e a

141
«À Mesa com o Universo»

moxabustão. Julgo poder dizer que os dados apresentados apontam uma efectiva
centralidade da macrobiótica, que, de prática marginal, proporcionou, pelos consumos,
alimentares e ao nível dos tratamentos, transformações dos sistemas sociais. Convém
salientar, contudo, que muito embora alguns consumos e algumas práticas possam ter
relação com a macrobiótica, a partir de determinado momento ter-se-ão autonomizado
dessa proposta e seguido um caminho próprio, sendo, frequentemente, ignorada a história
desses processos.

3. 6 A Macrobiótica: Princípios e Categorias para Ler o Mundo

Os princípios que fundam a macrobiótica não se resumem à apresentação inicial


que foi feita por Ohsawa no livro Principe Unique, (1973 [1931])72. A visão de Ohsawa,
sobre a macrobiótica, seria construída no decurso da sua vida e exposta em diversas
obras. Diga-se, desde já, que a macrobiótica de Ohsawa não é exactamente a mesma de
Michio Kushi, que, depois de Ohsawa, pode ser visto como o mais importante divulgador
desta prática. Michio Kushi integraria na macrobiótica novos elementos como a «Teoria
das cinco transformações» e atenuaria alguma da rigidez, em termos de orientação
alimentar, que por vezes é atribuída a Ohsawa. Faria ainda um grande esforço para
encontrar na investigação científica suporte para a visão macrobiótica dos alimentos, do
corpo e do mundo, como se se tivesse apercebido que este suporte era fundamental para
credibilizar a macrobiótica. Por conseguinte, os discursos científicos, ou, de forma mais
rigorosa, os discursos que resultaram da apropriação dos discursos científicos, tornaram-
se, paradoxalmente, estruturantes também na macrobiótica. Esses discursos deram lugar a
um tipo de linguagem onde se misturam saberes periciais, leigos e ideologicamente
orientados, que organizam muitos dos discursos ao nível da macrobiótica. De tal mistura
resulta um “reservatório” de significados a partir do qual é feita uma leitura do mundo,
tanto ao nível dos promotores da macrobiótica como por parte dos que têm formação
nesta área, agindo-se, desta forma, como se se procurasse corresponder, ainda que de
forma indeliberada, ao desejo de síntese e de sentido prático explicitado por Ohsawa no
livro Principe Unique.

72
Como referido, é nesta obra que Ohsawa começa por expôr o seu pensamento à sociedade europeia. Teve
a sua primeira edição em França, pela J. Vrin, uma respeitada editora de textos filosóficos, continuando
ainda a ser editado.

142
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Nesta parte do trabalho, focar-me-ei, sobretudo, no conjunto de princípios e


categorias que actualmente são tomados como fundamentais no ensino da macrobiótica e
que são, em larga medida, o resultado do trabalho de Ohsawa e de Kushi. Sobre este
assunto convém ainda dizer que se é possível encontrar uma linha na macrobiótica que
fez uma leitura mais estrita dos ensinamentos de Georges Ohsawa, uma linha que não
tolera algumas das inovações trazidas por Kushi, e que o encara como tendo feito muitas
cedências ao materialismo – linha, que, de acordo com alguns dos meus informantes,
pode ser identificada com Tomio Kikuchi (Brasil) - é também possível encontrar outras
perspectivas que consideram positiva a maior abertura introduzida por Kushi. O que
importa aqui salientar, é que a macrobiótica está longe de ser um objecto estático, como,
de resto, vem sendo referido. Tem procurado adequar-se a diferentes tempos e diferentes
modos, sendo um objecto aberto a recomposições e com capacidade para interceptar
influências diversas, revelando vontade e capacidade de adquirir um efectivo sentido
prático.
A compreensão do «Princípio Único», também designado «Princípio Unificador»,
constitui um dos pontos basilares que costuma ser referido pelos promotores da
macrobiótica para entender este sistema de pensamento, ainda que nem sempre seja
devidamente explorado 73. A percepção deste princípio teria resultado da observação do
universo, da natureza, da ideia de não permanência e de transformação e mudança
contínuas, tal como sugerida por textos clássicos como o I Ching ou Livro das
Mutações74.
Tendo em vista a compreensão, por parte dos ocidentais, do sistema cognitivo que
sustentava a macrobiótica, Ohsawa elaborou uma teoria que, a seu ver, procurava
simplificar os ensinamentos dos seus antecessores e apresentar uma visão integrada dos
sistemas religiosos e filosóficos orientais. Mais do que simplificar ensinamentos, convém

73
Ohsawa adoptou a terminologia «Princípio Único», no entanto, como referido, alguns formadores têm
sugerido o conceito de «Princípio Unificador» como sendo mais expressivo daquilo que se procura afirmar,
ou seja, como transmitindo de forma mais adequada a ideia de unidade de todos os fenómenos e de visão
integrada.
74
A origem deste livro é atribuída ao fundador mítico Fu-hsi,(Fou-Hi) apontado como primeiro “sábio”
civilizador da China Antiga. Terá sido ele o inventor dos trigramas e do método de adivinhação que lhes
está implícito, tendo governado mediante a consulta das varinhas de aquileia (cf. Kielce, 1988: 9). Estas
varinhas permitiriam definir os trigramas e hexagramas a partir dos quais se augurava o futuro. O termo I
significaria transformação e king a trama de um tecido ou também “tratado de base”. De acordo com a
tradição chinesa, as origens do I Ching podem ser situadas no terceiro milénio A.C., sendo assim
classificado como um dos livros mais antigos de que há registo (cf. Guita, 2005:26). Este livro terá sido
posteriormente aperfeiçoado com os contributos do rei Wen (1092-1090 A.C), do seu filho, duque de Tcheu
e com Confúcio (séc. V A.C.). A primeira tradução, lacunar, é feita em meados do séc. XIX, tendo surgido
posteriormente, em 1924, uma tradução completa pela mão do missionário Richard Wilhelm, que viria a ser
publicada em inglês em 1951 (cf. Kielce, 1988:17).

143
«À Mesa com o Universo»

dizer, contudo, que Ohsawa os organizou de forma criativa e arrojada. Face à mente
racional, que considerava ser característica do ocidente, arquitectou um sistema de
pensamento que esperava que tornasse possível, aos ocidentais, compreender uma forma
de entendimento do mundo mais intuitiva e dedutiva. De uma forma simples, pretendia
que a partir da apreensão de um princípio universal (lei universal), fosse possível a sua
aplicação em casos particulares (kotzsch, 1988: 54) 75.
Através do «Princípio Único», Ohsawa estabelecia uma visão do universo em que
tudo seria proveniente de uma única fonte (“absoluto”, “infinito”) e participaria da
mesma realidade. A visão do universo é assim uma visão holística, através da qual pode
ser detectada uma relação de interdependência entre todos os fenómenos. Desta forma, a
visão do cosmos sugerida é a de um “continuum ôntico” (Kotzsch, 1981), onde todos os
fenómenos podem ser vistos como expressão do divino e como sendo perpassados pela
mesma energia universal. Este princípio surge, assim, como princípio integrador, capaz
de tudo abarcar. O «Princípio único» encontrar-se-ia por detrás de todos os fenómenos do
universo, expressando-se através da relação dinâmica entre yin e yang (categorias opostas
e complementares). Do seu entendimento resultaria a compreensão da ordem do universo.
O conceito de «Princípio Único» aparece em Ohsawa (1973 [1931]) de forma algo
imprecisa, como «Lei Única», «Tao», «Taikyoku», «Brahman», «Deus», «universo-éter»,
«Absoluto» «Natureza». Uma certa complexidade associada a este conceito tem sido,
possivelmente, o motivo pelo qual, apesar de ser entendido como princípio norteador,
nem sempre lhe ser feita menção quando se introduz a macrobiótica. É o que sucede com
alguns livros que abordam este assunto (cf. Varatojo, 2010), em que se opta por referir
uma energia universal - o Ki (Japão) ou o Chi (China), ou ainda o prana (Índia) -, que
seria a base da criação de tudo o que existe, e que corresponderia a uma energia subtil
que fluiria pelo universo e que poderia também ser reconhecida nas estruturas humanas.
Esta categoria, a de Ki, parece ser menos problemática e de mais fácil assimilação.
Ao «Princípio único», Ohsawa acrescentaria mais tarde os «Sete axiomas da
ordem do universo» ou, como refere Kushi (1978:19), os «Sete Princípios Universais do
Universo Infinito», ou seja

75
É certo que a aplicação deste procedimento sugere também uma lógica científica, o que sugere que
muitos aspectos do pensamento de Ohsawa merecem uma análise detalhada. Contudo, não desenvolverei
no contexto deste trabalho uma análise aprofundada da sua proposta, dos seus excessos e das suas
incongruências, dado que tal não constitui o objectivo desta pesquisa. Esta apresentação, ainda que não seja
totalmente não analítica, visa sobretudo apresentar um quadro orientador a partir do qual se possa
compreender de que modo se arquitectou uma cosmovisão que integra um sistema alimentar e um sistema
terapêutico.

144
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Tudo é diferenciação da Infinidade Una.


Tudo Muda.
Todos os antagonismos são complementares.
Não há nada idêntico.
Tudo o que tem uma frente tem um dorso.
Quanto maior a frente, maior o dorso.
Tudo o que tem um princípio tem um fim.
(Kushi, 1978:19)

A estes princípios universais haveria que juntar os doze teoremas do «Princípio


Único» ou as «Doze leis da mudança do universo infinito», de acordo com a interpretação
dos discípulos de Ohsawa:

Doze leis da mudança do universo infinito

A Infinidade Una manifesta-se em tendências complementares e antagónicas, yin


e yang, em sua mutação sem fim.
Yin e yang manifestam-se continuamente a partir do movimento eterno do
universo infinito.
Yin representa a centrifugalidade. Yang representa centripetalidade. Yin e Yang
juntos produzem energia e todos os fenómenos.
Yin atrai yang. Yang atrai yin
Yin repele yin. Yang repele yang.
Yin e yang combinados em proporções variadas produzem fenómenos diferentes.
A atracção e repulsão entre os fenómenos é proporcional à diferença existente
entre as forças yin e yang.
Todos os fenómenos são efémeros, mudando constantemente a sua constituição
quanto a forças yin e yang; yin muda-se em yang, yang muda-se em yin.
Nada é exclusivamente yin ou exclusivamente yang. Tudo é composto por ambas
as tendências em graus variáveis.
Nada é neutro. Em tudo existe uma predominância de yin ou de yang.
Grande yin atrai pequeno yin. Grande yang atrai pequeno yang.
Extremo yin produz yang e extremo yang produz yin.

145
«À Mesa com o Universo»

Todas as manifestações físicas são yang no centro e yin na periferia.


Fonte: Kushi, 1978:20

A representação gráfica das mutações energéticas e das diferentes combinações entre yin
e yang pode ser observada num conhecido hexagrama associado ao Livro das Mutações.

Figura 5 - Ba Gua do I Ching76

Como referi, não procederei, neste contexto, a uma análise em profundidade do


conteúdo desta proposta. A sua apresentação destina-se, sobretudo, a fornecer um
conjunto de elementos que norteiam a macrobiótica e que serão importantes para a leitura
deste trabalho. A ideia de mudança, transmitida pelo I Ching, é uma das constantes no
conjunto dos 12 teoremas apresentados. Essa mudança aparece expressa pelas categorias
yin e yang, categorias que Ohsawa interpretou de forma pessoal, tendo mesmo alterado o
seu sentido em relação à medicina tradicional chinesa.
Compreender a «ordem do universo» implicava ter sempre presente ideia de que
todos os fenómenos participam de uma mesma energia cósmica, procedendo do infinito,
numa espiral de materialização, e, a ele retornando, numa espiral de dissolução. Este

76
Representação gráfica das mutações abordadas no I Ching. Hexagrama onde podemos observar oito
trigramas com as diferentes combinações entre yine yang. Imagem disponível em Miami community
acupuncture http://www.miamicommunityacupuncture.com/blog/balance-method-acupuncture/ [Acedido
em 3-12-11].

146
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

movimento expressaria a suposta «ordem do universo», uma «ordem» com diferentes


manifestações do ponto de vista energético, mas sempre na trajectória da materialização
ou desintegração, de acordo com os diversos estádios ocupados na espiral. Kushi,
justificaria esta arquitectura em espiral tendo em consideração a universalidade deste
padrão e a sua observação na via láctea, no crescimento e desenvolvimento das plantas,
nas impressões digitais, nos embriões… (cf. Kushi, 1989). Essa estrutura espiralada do
universo seria detectada pelos vestígios que deixaria na configuração humana e na
natureza em geral, revelando, assim, a unidade e interconexão de todos os fenómenos.
Desta forma, contribuía para unificar tudo aquilo que podia parecer contraditório e
expressaria, de modo eloquente, o mecanismo da criação. (Kushi etal., 1989)77.
Vejamos alguma das estruturas em espiral que são consideradas:

Figura 6 - A espiral da evolução


Fonte: Kushi, 1989: 44

77
Sobre a formação das espirais diz-nos Kushi: «As espirais são inicialmente criadas por uma força
centrípeta yang, da periferia para o centro, no sentido da fisicalização e materialização, e, ao atingir o seu
estado máximo de contracção, esta força centrípeta torna-se no seu oposto, uma força centrífuga, yin, que se
expande a partir do centro de retorno à periferia, tomando um curso de decomposição e desmaterialização.»
(1978:32). Qualquer espiral completa do universo seria uma espiral logarítmica de sete órbitas (1978:34).

147
«À Mesa com o Universo»

Aqui encontramos representadas as sete órbitas da espiral de evolução. O


entendimento aqui sugerido remete-nos para a teoria evolucionista de desenvolvimento
das espécies, ainda que esta surja de forma simplificada. Coloca o homem no centro da
espiral, apresentando-o como a forma de vida mais contraída, mais yang. Em cada um
destes estádios as espécies representam uma forma específica de transformação dos
alimentos disponíveis, podendo todos os domínios da vida biológica ser considerados
como comida.
Na imagem seguinte, apresenta-se a visão em espiral do desenvolvimento humano
como mais uma evidência da universalidade deste padrão:

Figura 7 - Desenvolvimento humano em espiral: de embrião a adulto

Fonte: Kushi, 1989:33

A representação em espiral pode ser observada nos principais sistemas humanos,


estando as forças centrífugas (yin) e centrípetas (yang) sempre presentes, mimetizando os
fluxos do universo.
A representação em espiral é, na verdade, utilizada para mostrar os mais diversos
fenómenos, mesmo a História de diferentes civilizações. Procurando-se estabelecer uma
ordem no devir histórico, recorre-se à localização da Estrela Polar para referir
«civilizações materiais» e «civilizações espirituais».

148
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Figura 8 - O ciclo Vega/Estrela Polar

Fonte: Kushi, 1989:52

Na imagem seguinte, encontramos uma apresentação mais detalhada dos


acontecimentos históricos, cada secção e cada estádio da espiral com acontecimentos
específico, procurando-se demonstrar, assim, que esta configuração pode explicar todos
os fenómenos. A imagem traduz ainda a ideia da repetição de acontecimentos históricos e
a ideia de alternância, entre períodos de expansão e conquista, e períodos de
universalização de ideias.

149
«À Mesa com o Universo»

Figura 9 - Espiral da História

Fonte: Kuschi, 1989: 53

Nem a tabela de Mendeleyev resiste a uma apresentação em espiral. O gosto pelas


experiências de transmutação da matéria, evidenciado por Ohsawa através de diversas
experiências por ele efectuadas, levaram-no também a interpretar os elementos químicos
em termos de yin e de yang, procurando, através da espectroscopia, aproximações a
discursos científicos verdadeiramente ousadas (Ohsawa, 1973). Na imagem em espiral, os
elementos mais yin ocupam as áreas mais periféricas, enquanto os elementos mais yang
ocupam zonas mais centrais. Os elementos mais leves, mais yin, vão-se gradualmente
transmutando em direcção a elementos mais pesados e, os mais pesados, vão-se também
gradualmente transmutando em elementos mais leves (cf. Kushi, 1989:42).

150
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Figura 10 - A espiral dos elementos

Fonte: Kushi, 1989: 42

Outros exemplos da formação em espiral, e de como, através delas, se pode


explicar o mundo podem ser encontradas na obra de Kushi The Book of Macrobiotics
(1989).
Para concluir esta apresentação vejamos o esquema elaborado por Kotzsch para
dar conta da representação da «ordem do universo», tal como ela havia sido concebida
por Ohsawa.

151
«À Mesa com o Universo»

Figura 11 - A ordem do universo

Fonte: Kotzsch; 1988:

Neste esquema podemos encontrar os sete níveis de evolução da espiral


logarítmica. De acordo com a concepção representada no esquema, a partir do Infinito
terão sido criados dois pólos, yin e yang, que, através de forças centrípetas (yang) e forças
centrífugas (yin), terão dado origem a todos os fenómenos do mundo relativo. Observa-se
uma espiral de materialização, “fisicalização”, onde, da sétima esfera para a primeira, há
um movimento gradual de contracção, “yanguização”, como é comum ouvir junto de
seguidores da macrobiótica. Neste esquema, encontramos assim uma sétima esfera que
representa a infinidade una, unidade, deus; uma sexta esfera a partir da qual se observa a
polarização, yin e yang, o início do mundo relativo; uma quinta esfera (energia e

152
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

vibração; início do mundo fenoménico); uma quarta esfera (partículas pré-atómicas,


início do mundo material); uma terceira esfera (o mundo dos elementos e a natureza
física); uma segunda esfera (o reino vegetal, início do mundo orgânico) e, por fim, a
primeira esfera (o reino animal, terminando no Homem) (Kushi, 1978:36). Nesta espiral,
cada uma das esferas permite a seguinte, ainda que todas se encontrem interligadas. Da
primeira à sétima esfera, esta espiral representa ainda o caminho do absoluto em direcção
ao mundo relativo, representa a trajectória para a materialização, desde o estádio de maior
expansão (energia cósmica) até à sua contracção (vida humana).
Este esquema pode também ser perspectivado a partir do Homem, situando-se este
no primeiro estádio e caminhando em direcção ao sétimo, em direcção ao infinito (espiral
de espiritualização). Como se pode observar, há uma trajectória inversa à que acabei de
referir. Podemos aqui ver presente a ideia de circularidade e de eterno retorno, em que
cada indivíduo transporta algo dessa centelha de absoluto e infinito. De acordo com
Kotzsch, nesta concepção, em última instância o Homem é Deus, tem nele o eterno como
desígnio, a memória do infinito ao qual regressará. O destino de cada pessoa seria, pois, o
de redescobrir o seu eu infinito e, de acordo com esta concepção, tal não é algo que
aconteça apenas após a morte, pode ser realizado em vida - desde que cada um se
encontre de perfeita saúde (em termos emocionais, psicológicos e físicos) e tenha
consciência da unicidade divina, pode realizar essa identidade com o absoluto (Kotzsch,
1988:157).

Figura 12 - A Espiral da Criação

Fonte: Kushi, 1989:16

153
«À Mesa com o Universo»

Daqui decorre, em larga medida, a importância atribuída a aspectos como a


consciência e a alimentação, formas de proporcionar um estado que concorreria para a
realização dessa identidade. Os «Níveis de discernimento e consciência» seriam, neste
contexto, elementos fundamentais para definir cada tipo de orientação e dariam ainda
conta do “estádio de desenvolvimento” de cada um face à escala evolutiva que lhe é
apresentada.

Quadro 1 – Níveis de Discernimento e Consciência

Nível de Nome da Infi- Manifestações em


Discernimento nidade em cada Nível
cada Nível
7º Supremo Consciência universal e eterna. Liberdade Felicidade eterna
Aceitação incondicional, que com o espírito de
tudo abraça. Gratidão ilimitada, Um Grão, Dez Mil
liberdade completa. Grãos. Vida em
Satori ou Nirvana
6º Ideológico Distinção entre justiça e Justiça Religiões,
injustiça, rectidão e iniquidade. doutrinas e
disciplinas.
5º Social Distinção entre o bom e o mau, Paz Éticas, códigos
conveniente e inconveniente, morais, economia
próprio e impróprio, e política.
adaptabilidade e
inadaptabilidade.
4º Intelectual Distinção entre razão e sem- Verdade Teorias, conceitos,
razão, provado e não-provado. organizações,
sistemas.
3º Sentimental Distinção entre amor e ódio, Amor Artes, romances,
simpatia e antipatia, graça e poesia, música.
inépcia, alegria e tristeza.
2º Sensorial Distinção entre conforto e Conforto e Objectos,
desconforto, satisfação e fome, Prazer artefactos,
beleza e fealdade. maquinarias.
1º Mecânico Reacções espontâneas, Adaptabilidade A mudança está
automáticas. sujeita ao estímulo
do meio-ambiente.
Fonte: Kushi, 1978:39

O que esta proposta nos apresenta é, assim, um julgamento relativamente aos


comportamentos, dando-se uma indicação, em termos evolutivos, do caminho a percorrer.
Referia atrás que Ohsawa interpretou as categorias de yin e de yang de forma pessoal e
distante da que encontramos na medicina tradicional chinesa. A informação dada nas

154
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

sessões de formação relativamente a este aspecto é a de que Ohsawa terá feito uma
adaptação da proposta dos chineses relativamente aos conceitos de yin e yang, para que
os ocidentais compreendessem mais facilmente a sua proposta. Assim, órgãos que na
medicina tradicional chinesa são classificados como yang, como o intestino grosso e a
bexiga, na macrobiótica são considerados yin, enquanto que órgãos considerados yin pela
medicina tradicional chinesa, como o fígado, o coração e os rins, são considerados yang
na macrobiótica. Na macrobiótica o princípio de categorização é o de que quanto mais
quente, denso e contraído, mais yang; órgãos ocos são órgãos yin.
As categorias yin e yang são vistas, portanto, como compondo o mundo relativo e
como governando todos os fenómenos “…individuais e colectivos, as partes e o todo, o
passado e o futuro” (Kushi, 1978:21), são categorias opostas, mas complementares. “Elas
constituem o entendimento, o conhecimento mais elevado que a humanidade jamais teve,
e constituem a sabedoria inata, genuína e intuitiva inerente a todos os seres humanos.
Elas são a chave para a realização de todos os sonhos possíveis. Conhecendo-as, seremos
capazes de transformar a doença em saúde, a guerra em paz, os conflitos em harmonia, o
caos em ordem, a miséria em felicidade.” (ibid.:21-22). Assim se afirma a importância da
compreensão destas categorias, elas são um instrumento indispensável para agir sobre os
alimentos, o corpo e a saúde. Na tabela que se segue podem ser observados exemplos de
yin e de yang, tal como apresentados na obra O livro da Macrobiótica (Kushi, 1978).

155
«À Mesa com o Universo»

Quadro 2 – Exemplos de Yin e Yang

CATEGORIAS YIN YANG *

Geral Força centrífuga Força centrípeta


Tendência Expansão Contracção
Função Difusão Fusão
Dispersão Integração
Separação Reunião
Decomposição Organização
Movimento Mais lento e inactivo Mais rápido e activo
Vibração Ondas curtas e de mais alta Ondas longas e de mais baixa
frequência frequência
Sentido/Direcção Ascendente e vertical Descendente e horizontal
Posição Mais exterior e periférico Mais interior e central
Peso Mais leve Mais pesado
Temperatura Mais frio Mais quente
Luz/ Luminosidade Mais sombrio e escuro Mais claro e brilhante
Humidade Mais húmido Mais seco
Densidade Menos espesso Mais espesso
Tamanho Maior Mais Pequeno
Configuração Mais expansiva e frágil Mais contractiva e resistente
Forma Mais longa Mais curta
Textura Mais mole Mais dura
Partícula Atómica Electrão Protão
Elementos N, O, K, P, Ca, etc. H, C, Na, As, Mg, etc.
Meio-ambiente Vibração….Ar….Água…..Terra
Efeito do clima Tropical Clima mais frio
Qualidade biológica Vegetal Animal
Sexo Feminino Masculino
Estrutura dos Mais ocos e expansivos Mais compactos
órgãos
Nervos Mais periféricos, ortossimpático Mais centrais, parassimpático
Atitude Mais branda, negativa Mais activa, positiva
Trabalho Mais psicológico e mental Mais físico e social
Dimensão Espaço Tempo
*Por conveniência, usam-se os símbolos  para Yin e  para Yang.
Fonte: Kushi, 1978: 22

Este quadro de orientações é fornecido para que se possa detectar o movimento


yin e yang. Uma das ideias fundamentais aqui contida é a de que tudo se encontra em
perpétuo movimento. A mutação surge como condição eterna, devendo o Homem
aprender a analisar ritmos, mudanças e transformações.

156
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

A estas orientações Kushi acrescentaria a «Teoria das cinco transformações», uma


teoria captada também a partir do pensamento chinês e associada à medicina tradicional
chinesa, tal como expresso no Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo.
Através dela ensina-se a olhar para os ritmos do universo e da natureza e a observar os
processos de transformação. Agregada à percepção dualista de yin e de yang, permitiria
compreender o corpo, a saúde e a doença. Seria a observação dos ritmos naturais,
sucessão dos dias e das noites, das estações do ano e dos diferentes contextos ambientais,
que permitiria detectar diferentes tipos de movimento, diferentes estádios de
transformação da matéria e a preponderância de certos elementos. A estas transformações
(cinco) estariam associados cinco órgãos humanos, cinco sabores, cinco cores, cinco
alimentos, cinco estádios emocionais… Uma adequação a cada um destes estágios de
transformação só seria possível com a compreensão da «ordem do universo» e com a
compreensão do ciclo de transformações. Estamos perante a ideia de uma aprendizagem
que exige formação, mas também muita intuição, dado que os conceitos de yin e de yang
são apresentados como sendo sobretudo intuitivos.
A teoria dos cinco elementos foi também introduzida na macrobiótica para
permitir uma observação mais adequada de diferentes ritmos e ciclos, e também de forma
a auxiliar a realização de diagnósticos. Esta teoria baseia-se na observação da natureza,
identificando aí cinco elementos, cinco formas de manifestação da energia universal. São
eles: Terra (Solo), Metal, Água, Madeira (Árvore) e Fogo. Estes cinco elementos
encontrar-se-iam relacionados com as estações do ano, sendo um determinado elemento
predominante em cada estação78. Assim, o ciclo das cinco transformações pode ser visto a
partir do elemento Madeira, uma energia ascendente, expansiva, que corresponderia à
Primavera e à dupla de órgãos Fígado/Vesícula biliar, segue-se-lhe o elemento Fogo,
muito activo, muito expandido, corresponde ao Verão e à dupla de órgãos Coração e
Intestino delgado, depois o elemento Terra, energia descendente, identificada com o final
do Verão e associada aos órgãos Estômago/Baço-Pâncreas, a seguir o elemento metal,
uma energia de contracção, de reunião, associada aos Pulmões/Intestino grosso, e, por
fim, o elemento Água, uma energia flutuante, associada aos Rins/Bexiga. Cada estação
do ano activaria de forma particular os órgãos com ela relacionados e teria também
características mais yin ou mais yang. Haveria também um ciclo de controle e de apoio

78
Poderá parecer estranho que se refiram cinco elementos quando apenas conhecemos quatro estações,
mas convém dizer que esta é uma construção simbólica oriental e, tal como me foi referido nas sessões de
formação, os chineses considerariam o final do Verão como correspondendo a uma estação e a uma energia
particular.

157
«À Mesa com o Universo»

entre os diferentes elementos.


Esta breve descrição não dá conta da complexidade desta construção e muito
menos da sua aplicação, mas importa referi-la por ser tida como importante meio de
apoio em termos de orientação no mundo e como importante auxiliar de diagnóstico e de
tratamento.

Figura 13 - Os cinco elementos79

No quadro que se segue encontraremos uma síntese das principais características


deste esquema de compreensão do mundo.

79
Fonte: http://www.acupuncturetunbridgewells.co.uk/the-five-elements.htm [acesso 3-12-11]

158
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

Quadro 3 As Cinco Transformações

Transformação Árvore Fogo Solo Metal Água


Tipo de energia Ascendente Muito activa Descendente Solidificada Flutuante
Órgãos de de Vesícula Intestino Estômago Intestino Bexiga
alimentação e biliar Delgado, Grosso
eliminação triplo
aquecedor
Órgãos de de Fígado Coração. Baço- Pulmões Rins
armazenamento Governador Pâncreas
e distribuição Do coração
Cor Verde, Vermelho Branco Branco Escuro
cinzento leitoso- Pálido
amarelo
Estação Primavera Verão Fim de Verão Outono Inverno
Horas do dia Amanhecer Meio-dia Tarde Anoitecer Noite
Fases da lua Quarto Lua cheia Lua coberta Quarto Lua nova
crescente Por nuvens minguante
Direcção Este Sul Centro Oeste Norte
Sabor Ácido Amargo Doce Picante Salgado
Odor Oleoso Queimado Fragrante A peixe A podre
Som Grito Riso Canto Choro Gemido
Emoção Zanga Histeria Auto- Melancolia Medo
compaixão
Sentido Visão Tacto Paladar Olfacto Audição
Órgão sensorial Olhos Boca Língua Nariz Ouvidos
Cereal Cevada, Milho Millet Arroz Leguminosas,
Aveia, trigo
centeio sarraceno
Vegetal De De folhas Redondos, Pequenos e Raízes
crescimento largas doces contraídos
ascendente
Tecido Músculos Artérias Tendões Pele e Ossos
Cabelo
Planeta Júpiter Marte Saturno Vénus Mercúrio
Fonte:IMP (2005)

Não terei possibilidade de explorar, nesta ocasião, todas estas características e o


modo como se relacionam entre si, julgo, no entanto, que a referência às mesmas
esclarece em que medida esta construção constitui um importante instrumento de
orientação na macrobiótica. A teoria das cinco transformações toma, como ponto central,
a «natureza», dando-nos conta de como na macrobiótica, ela é um poderoso recurso em
termos discursivos.
Pelo que tem vindo a ser apresentado, julgo ter ficado evidenciado o quanto as
questões ideológicas orientam as escolhas alimentares. No caso da macrobiótica, a ênfase

159
«À Mesa com o Universo»

na espiritualidade; na narrativa das origens; na explicação da ordem do universo; nos


níveis de consciência; na ética que deve nortear a acção (honestidade e integridade
absolutas), são elementos que impregnam a macrobiótica de uma aura de religiosidade.
Algumas das orientações em termos de conduta não estão muito distantes dos
mandamentos:

Ser grato a tudo: dificuldades, pobreza, infelicidade e miséria.


Nunca temer ou odiar.
Ter fé na Ordem do Universo. Não desistir.
Não esquecer favores ou gentilezas. Mostrar sempre gratidão
Nunca mentir.
Ser perfeito
Gostar de todo mundo
Não se mostrar suspeito aos outros.
Nunca pretender ser altruísta.
Descobrir sempre alegria, mesmo nas coisas pequenas.
Dar a outros o que é importante a você próprio.
Conscientizar-se que a vida é um milagre.
Fonte: Lopes et al. 1978:25-26

Ainda que Ohsawa tivesse defendido o non credo, o certo é que a aceitação da sua
visão do universo assenta, em boa medida, num acto de fé. Por mais interpretações que
possam surgir relativamente ao que deve ser entendido por non credo na macrobiótica,
este princípio parece contraditório. A este propósito podia ler-se nos textos de apoio
distribuídos pelo IMP «Por non-credo entende-se que não se deve adoptar teorias e
concepções sem reflectir e adquirir experiências sobre todas elas, incluindo aquelas aqui
apresentadas». Uma forma suavizada, portanto, de contornar esta questão.
A mensagem de Ohsawa relativamente à vida podia ser também muito cativante.
A sua mensagem é a de optimismo e de que qualquer um se pode tratar. Para ele não
existiam doenças incuráveis, podia era haver falta de discernimento. Vender a vida por
um salário, trabalhando, era, também para ele, um acto de incompreensão da «ordem do
universo», os seus discípulos diriam, no entanto, que era um trabalhador incansável.
Defendia os seus argumentos com convicção e a sua mensagem optimista e de convite à
experimentação terá por certo seduzido muitos. Outros ter-se-ão entusiasmado com o

160
A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

reencantamento do mundo que a macrobiótica propunha, uma visão em que o indivíduo


era celebrado e livre das clássicas obrigações religiosas.
Em termos de recomendações alimentares, a orientação dada na macrobiótica é a
de que se escolham alimentos em harmonia com o contexto ambiental, de preferência
cultivados próximos do lugar em que se vive, de acordo com a estação do ano e de
preferência de origem biológica. Os alimentos devem ser muito bem mastigados e deve-
se prestar atenção ao modo como os alimentos são consumidos, procurando fazer do acto
de comer um ritual de comunhão com o universo.
Uma das questões que, desde logo, pode ser suscitada, a partir destas observações,
prende-se com a natureza de muitos dos produtos utilizados na macrobiótica (algas,
derivados de soja, feijões azuki…). Julgo que o facto de a divulgação da macrobiótica ter
sido feita inicialmente sobretudo por japoneses e seguindo a alimentação “tradicional”
japonesa ajuda a compreender este facto. Por outro lado, uma das razões que me foram
apontadas, por formadores na área da macrobiótica, incide em questões nutritivas e
medicinais. As algas, ainda que não figurem habitualmente na alimentação dos
portugueses, são vistas como extremamente ricas em termos minerais, o que justifica a
sua importação e consumo. Por outro lado, o miso, as ameixas umeboshi, bem como
outros produtos, são vistos como tendo propriedades medicinais, figurando em diversos
remédios caseiros que são propostos. Nos capítulos seguintes, terei oportunidade de
apresentar de forma mais detalhada aspectos ligados à alimentação proposta pela
macrobiótica.

161
A Macrobiótica em Portugal

Capítulo 4

A Macrobiótica em Portugal

4. 1 A Macrobiótica em Portugal: Condições de Emergência e Divulgação

O objectivo desta parte do trabalho é, sobretudo, o de permitir um


enquadramento relativo à emergência e divulgação da macrobiótica em Portugal.
Pretendo, assim, perspectivar historicamente este fenómeno e dar conta das
circunstâncias que envolveram a produção social de um tipo específico de consumo e de
orientação na vida. Julgo que esta contextualização histórica se afigura relevante, na
medida em nos permite aceder a um espaço social de germinação e proliferação de
perspectivas que acabarão por ter repercussões relevantes em termos sociais.
Relevantes, em primeiro lugar, pelos efeitos ao nível das transformações dos hábitos
alimentares, mas também, e concomitantemente, pelas repercussões ao nível dos
cuidados terapêuticos, dado que a macrobiótica incorpora, claramente, essa vertente.
Estes dois aspectos (comida e terapia), suportados por um conjunto de concepções
específicas sobre os alimentos, o corpo, a saúde, a doença e até o mundo, darão lugar,
em Portugal, como noutros contextos, a um conjunto de acções que contribuirão para
criar novos dinamismos sociais e introduzir inovações sociais e culturais.
A cadeia de pessoas, lugares, produtos, saberes e significados, criada a partir da
macrobiótica, gera um tipo de dinamismo específico no espaço português. Ainda que
possa ter ligações com estruturas pré-existentes, como as que promoviam o naturismo e
vegetarianismo, há uma dinâmica nova que importa perceber. A movimentação
observada, resultante da circulação de ideias, entendimentos, produtos e acções,
caracteriza-se, na verdade, por um tipo de realizações que tem semelhanças com o que
se verificou em países como a França ou EUA. Começa por haver um contacto com o
tipo de proposta defendido pela macrobiótica; surgem alguns indivíduos (por vezes
marcados por uma história de doença) que decidem adoptá-la e que experimentam os
seus benefícios; segue-se um período de implementação e diversificação das vias
através das quais se materializa um novo produto social: sessões de informação e
promoção, publicações, aulas de cozinha, restaurantes, produção e circulação de bens

163
«À Mesa com o Universo»

alimentares, consultas de orientação alimentar e estilo de vida, procedimentos


terapêuticos, etc.
Para que esta materialização ocorresse e dela decorressem efectivas
transformações sociais, algumas com efeitos disruptivos - pelo menos em relação às
práticas alimentares preponderantes -, foram necessárias condições sócio históricas
particulares. Da mesma forma que a generalização do consumo de açúcar ou o aumento
do consumo de soja, analisados por Mintz (1985; 2008), necessitaram de um quadro
histórico, económico e cultural particular, também a alimentação macrobiótica só se
pode expandir devido a um contexto favorável de acolhimento. É certo que, no caso da
macrobiótica, a acção de agentes concretos, como Ohsawa, foi fundamental para que a
macrobiótica se pudesse expandir, mas é de notar que a primeira passagem de Ohsawa
pela Europa (no início da década de 1930) não nos surge descrita como tendo gerado
uma movimentação significativa em torno da macrobiótica neste continente. Só mais
tarde, a partir da década de 1950, se observa um movimento de entusiamo (entusiasmo
relativo, claro) por esta proposta, surgindo um conjunto de actividades que tornam a
macrobiótica mais expressiva.
Nesta última fase, tal como atrás referi, países como a França, ou os EUA,
caracterizavam-se pela existência de um quadro social e cultural que terá sido mais
favorável ao acolhimento da macrobiótica. Movimentos como o da Beat Generation, de
reacção ao materialismo e tecnocracia (Roszak, 1970); de fascínio pelo Oriente; de
retorno à Natureza; de celebração do self (Heelas, 1999); de recusa de uma certa ordem
social e de procura de soluções fracturantes e alternativas, parecem ter sido
efectivamente favoráveis ao desenvolvimento de propostas algo exóticas como a
macrobiótica (Kotzsch, 1985; Belasco, 2007 [1989]). Conjugada com estas
manifestações de contracultura, ter-se-ia mesmo desenvolvido, de acordo com Belasco
(ibid.), uma «contracozinha», que, sintonizada com os movimentos ecologistas e de
defesa da agricultura biológica, procuraria soluções que fossem simultaneamente
sustentáveis, saudáveis e conscientes. Por outro lado, estes movimentos, não sendo em
muitos aspectos absolutamente pioneiros - a celebração da natureza e a preocupação
com o regime alimentar têm uma longa História, como já vimos -, reactivam alguma
literatura e orientações do passado e criam um espaço onde propostas alternativas como
a macrobiótica podem encontrar alguma afinidade.
Portugal, apesar do isolamento a que o regime ditatorial pré -1974 o votara, não
ficará completamente alheado a estes dinamismos sociais. Os movimentos estudantis da

164
A Macrobiótica em Portugal

década de 1960 e o período pré-revolucionário que se viveu desde então até Abril de
1974 evidenciaram claramente não apenas um desejo de mudança social, mas também a
penetração de um ideário favorável a diversos tipos de experimentação social. Ainda
que a macrobiótica tenha surgido em Portugal, no final da década de 60, como um
programa rígido de orientação social, em alguns aspectos conservador - como nas
representações em termos de género, na defesa das hierarquias, na crítica à sujeição ao
hedonismo, materialismo e tecnocracia -, propunha um projecto de transformação
individual e social que não era totalmente incompatível com a efervescência e vontade
de mudança que se vivia no momento. Se, por um lado, a macrobiótica oferecia uma
proposta de disciplina do corpo e da vontade, por outro, prometia um Homem mais
livre, sem doenças, capaz de ousadas realizações e de um nível de consciência, que
representavam, para alguns, não apenas uma espécie de evolução em termos humanos
mas também uma possibilidade de aperfeiçoar os sistemas sociais. Para além destes
aspectos, a macrobiótica surgia aliada à defesa de um modo de produção de alimentos
(modo biológico e de fraco processamento) que entusiasmava pessoas mais sensíveis às
questões ecológicas, e que desejavam também novas formas de intervenção social. Este
período, na sua abertura a novas ideias e experimentações sociais – onde se inclui a
comida, o corpo, os procedimentos de cura e os estilos de vida -, surge assim como
contexto favorável à expansão da macrobiótica.
Os elementos que apresento, seguidamente, estão longe de recriar por inteiro o
processo relativo à emergência e disseminação da macrobiótica em Portugal. Haverá
sempre dados a acrescentar e outros que serão alvo de discussão. Em todo o caso, e
ainda que não constitua objectivo fundamental deste trabalho a apresentação de uma
história da macrobiótica em Portugal, foi empreendido um esforço de contextualização
que julgo que permitirá compreender o modo como foi sendo acolhido e promovido
esse novo produto social que é a macrobiótica.
Os dados em que me baseio, para a apresentação desta breve e possível história
da macrobiótica em Portugal, resultam essencialmente de entrevistas e conversas
estabelecidas com “informantes privilegiados”: ex-dirigentes da Unimave e praticantes
de alimentação macrobiótica de há longa data80. Nesta tarefa de reconstrução de
segmentos de um passado recente, procedo a esse exercício imprescindível que é o

80
Uso a expressão “informantes privilegiados” no seu sentido mais comum, ou seja, refiro-me a
indivíduos que, pelas suas trajectórias pessoais e pelos cargos que ocuparam na direcção de instituições
ligadas à macrobiótica, acabaram por ter um conhecimento profundo da macrobiótica praticada em
Portugal. Refiro-me também a praticantes com um longo convívio com a prática macrobiótica.

165
«À Mesa com o Universo»

cruzamento de dados do terreno. Os elementos que apresento não permitem, só por si,
um cruzamento totalmente satisfatório de informações, mas constituem, ainda assim,
um contributo com algum significado para uma visão mais esclarecida sobre o que foi a
macrobiótica em Portugal.
Os dados recolhidos permitem situar o surgimento da macrobiótica em Portugal,
com actividade visível, nos finais dos anos 60, na cidade de Lisboa. De acordo com
Kotzsch (1985: 225), por volta de 1968, um português, que não identifica, teria
regressado a Portugal, vindo de França, e teria aberto um pequeno restaurante no centro
de Lisboa, onde começara a cozinhar arroz integral com uma pequena quantidade de
vegetais. Esta proposta gastronómica, inspirada na macrobiótica de Ohsawa, terá
decorrido da oportunidade que tivera em França de contactar com a macrobiótica.
Assim, na sequência da inserção deste tipo de pratos nas ementas daquele restaurante,
ter-se-á criado uma clientela com entusiasmo suficiente para organizar uma cooperativa
que viria a constituir em Portugal uma das realizações ligadas à macrobiótica com maior
expressividade: a Unimave (Centro Macrobiótico Vegetariano, S.C.A.R.L). Kotzsch
(1985) associa Jacinto Vieira, que se teria curado de doença grave, à constituição dessa
cooperativa. Ainda a propósito de «começos», Francisco Varatojo aponta o ano de 1975
como data de “começo do movimento macrobiótico”81. Todavia, de acordo com
Kotzsch e alguns dos entrevistados, o início de actividades com ligação à macrobiótica
terá sido anterior a essa data.
Certo é que, numa primeira fase, seria claramente na cidade de Lisboa que se
dinamizariam actividades com vista à divulgação e promoção dos princípios ligados à
macrobiótica. Os restaurantes, a venda de produtos, as palestras, os cursos, as consultas,
a criação de uma cooperativa, são marcos que ocorrem nessa cidade, centro a partir do
qual circularão ideias que defendem que os alimentos afectam a nossa saúde e que a
macrobiótica nos pode levar a uma melhor compreensão e transformação do mundo.
De acordo com dois dos ex-presidentes da Unimave que entrevistei (José
Oliveira e Carlos Campos Ventura82), uma das figuras de referência para compreender o
aparecimento e divulgação da macrobiótica no nosso país foi José Galamba, um dos
primeiros importadores de produtos macrobióticos. José Galamba terá tido problemas

81
Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica
http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].
82
José Oliveira, na casa dos setenta, é actualmente professor de yoga e terapeuta de shiatsu e Campos
Ventura, na casa dos cinquenta, é naturólogo.

166
A Macrobiótica em Portugal

de saúde e, ao tomar contacto com a macrobiótica, em Espanha, acabou por adoptar essa
prática alimentar, promovendo a sua divulgação no nosso país. Nos finais dos anos
1960, princípios dos anos 70, trouxe a Portugal um palestrante espanhol, justamente
com a intenção de dar a conhecer este tipo de alimentação. Francisco Varatojo recorda
que “a primeira palestra sobre macrobiótica em Lisboa foi proferida pelo Dr. Vicente
Ser (…) um discípulo de George Ohsawa” 83. Esta palestra terá sido, segundo Campos
Ventura, muito importante, pois terá gerado um movimento de interesse por esta prática
alimentar. A partir de José Galamba, mas também de Abel Trancoso e outros, ter-se-á
constituído um núcleo de pessoas interessadas pela macrobiótica, que procuraram
informar-se mais com vista a seguir essa orientação alimentar e filosófica. A «Cereália»,
empresa que Galamba criara e se dedicou desde logo à distribuição de produtos
alimentares associados à macrobiótica, viria a permitir que alimentos pouco conhecidos
no nosso país - algas, tamari, miso, ameixa umeboshi, etc. - ficassem disponíveis no
mercado português.
Para José Oliveira (ex-presidente da Unimave), os livros foram também um
elemento de grande relevância na divulgação dos princípios macrobióticos. Recorda que
travou conhecimento com a macrobiótica através de um cartaz que falava da
macrobiótica e de um livro de George Ohsawa, que encontrara num centro de yoga:

Um dia estava em casa do [nome], que dava aulas de yoga em casa, fui lá para
me inscrever no yoga e vi lá um cartaz que falava da macrobiótica. Entretanto,
olhei para o lado e vi que tinha lá um livro do George Ohsawa, peguei no livro
e comecei a ler aquilo. O homem falava no todo… todo à esquerda, todo à
direita, yin/yang, e eu até nem liguei àquilo do yin/yang, mas do todo, o que é
que este gajo quer dizer com o todo? Foi aí que despertei para a macrobiótica.

Um marco significativo na divulgação da macrobiótica em Portugal terá sido o


surgimento do restaurante «A Colmeia», na Rua da Emenda, em Lisboa, nos finais dos
anos 1960, rapidamente tornado num lugar onde não só se serviam refeições
macrobióticas, mas também onde as pessoas se reuniam e debatiam assuntos ligados a
esta prática alimentar e seus princípios orientadores84. Segundo um dos meus
informantes, cozinhava neste restaurante “uma senhora conhecedora da macrobiótica

83
Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica
http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].
84
Kotzsch (1985) não menciona especificamente este restaurante, mas é bem provável que a ele quisesse
aludir quando o referiu como ponto a partir do qual começou a ser divulgada a macrobiótica em Portugal.

167
«À Mesa com o Universo»

[não lhe ocorreu o nome] que todas as sextas-feiras dava uns jantares onde se discutia e
falava da macrobiótica”. O seu proprietário, Abel Trancoso, juntamente com Nogueira e
Gomes Ribeiro (criou a distribuidora Trigrama) viriam a fundar em 1972 a Unimave,
organização que, como já disse, veio a ter um papel decisivo na expansão da
macrobiótica.
Na verdade, faz até sentido ir mais longe e declarar que a História da
Macrobiótica em Portugal só poderá ser compreendida se nos centrarmos na acção da
Unimave. Esta cooperativa dedicou-se desde cedo a várias e importantes actividades:
produção de produtos hortícolas e arroz integral biológicos; serviço de restaurante,
venda de produtos usados na cozinha macrobiótica, cursos de cozinha; apoio alimentar a
iniciados; seminários; colóquios e actividade editorial. Foi a partir da Unimave que se
gerou, como também já referi, um movimento muito expressivo no sentido da
divulgação da macrobiótica.
A ideia da criação da Unimave - uma cooperativa sem fins lucrativos com
propósitos educacionais e culturais, que defendesse a “causa” macrobiótica - terá
surgido ainda em 1971. Segundo Campos Ventura, a Unimave ter-se-á instalado em
Caxias, na R. de S. Paulo, numas instalações que mais tarde terão ficado para a
«Próvida», empresa do mesmo ramo. Seria depois registada notarialmente, e, em
Fevereiro de 1972, abriria a sua sede em Lisboa, na Rua da Boavista. Posteriormente,
nos finais dos anos 70, a Unimave abriria um novo estabelecimento em Lisboa, na Rua
Mouzinho da Silveira, naquela que é apontada como “uma casa excelente”, e onde se
viria a iniciar a importação directa de produtos alimentares. Importavam-se produtos a
granel (sobretudo do Japão e dos EUA), que eram depois embalados e vendidos a
retalho. Mais tarde surge uma nova “filial” em Lisboa, na avenida Barbosa do Bocage
(Campos Ventura refere que terá fechado portas em 1998). Estes três centros
dedicavam-se essencialmente a actividades como a restauração, venda de produtos,
consultas e divulgação através de cursos e palestras. A abertura destes locais evidencia o
interesse suscitado pela macrobiótica a partir dos anos 70.
Foi já no novo século (2001) que a Unimave, que durante 30 anos marcou a
actividade da macrobiótica em Portugal, foi formalmente extinta. É inevitável atentar no
percurso de três décadas desta cooperativa para melhor percebermos o processo da
afirmação da macrobiótica em Portugal. Tendo começado com umas dezenas de sócios,
cada um deles pagando uma quota de cerca de cem escudos, a Unimave viu crescer
rapidamente o número de associados, atingindo os 7000 no início dos anos 1980, um

168
A Macrobiótica em Portugal

dos quais o próprio Michio Kushi, figura cimeira da macrobiótica a nível internacional.
A propósito deste desenvolvimento da cooperativa diz-nos Campos Ventura:

A Unimave cresceu logo muito depressa, começou com umas dezenas largas e
chegou a ter uns 7000 sócios.[Esta adesão]deveu-se ao facto de logo em 74, dois
anos e pouco depois de ter sido criada a Unimave, ter ocorrido o 25 de Abril.
Houve um desbloqueio… politicamente, socialmente… Estas coisas começam a
estar na moda, até porque se integram no espírito da ecologia e de uma
revolução cultural e entre 76 e 80 são os anos de ouro da macrobiótica.

Ainda de acordo com Campos Ventura, a vinda regular de Michio Kushi a


Portugal, a partir de meados dos anos 70, constituiria um estímulo significativo para a
adesão à macrobiótica. A palestra de Michio Kushi na «Estufa fria», em 1975, é
efectivamente lembrada como um momento marcante nas actividades ligadas à
macrobiótica. O impulso dado por este promotor da macrobiótica proporcionaria uma
maior abertura a um esquema de orientação que, até então, estava muito centrado em
George Ohsawa. Na verdade, para muitos dos partidários deste tipo de alimentação,
Ohsawa passara, gradualmente, a ser considerado “excessivamente rígido”.Para
Francisco Varatojo “a principal diferença entre Kushi e Ohsawa é que Kushi tentou
traduzir para a cultura ocidental a, às vezes intraduzível, cultura oriental”85.

Em 1975 esteve cá o Michio, na Estufa Fria, e acho que a partir daí toda a
gente aderiu às suas ideias. As pessoas discutiam muito, porque eram muito
yang, tinham que discutir umas com as outras, comiam ultra yang, sobretudo
arroz integral, miso, muito sal, pouquíssima fruta, ameixa umeboshi, muitas
algas, muito yang. O Ohsawa continuou a ser uma pessoa muito respeitada, mas
o Michio convenceu-nos a todos, vinha cá uma semana por ano. [Campos
Ventura]

A atmosfera de finais dos anos 1970 e as transformações ocorridas após 1974


parecem, na verdade, beneficiar novas propostas, mesmo em termos alimentares. Parece
existir, efectivamente, uma coincidência temporal entre a turbulência social vivida após
o 25 de Abril e o crescimento da actividade ligada à macrobiótica. Por outro lado, como
refere Francisco Varatojo (ibid.):

Os finais dos anos 60 e o início dos anos 70 são um período de enorme


crescimento para o movimento macrobiótico e de produtos naturais nos Estados

85
Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica
http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].

169
«À Mesa com o Universo»

Unidos e centenas de estudantes vindos de toda a América juntam-se aos Kushi,


criando as bases para uma autêntica revolução no modo de vida americano.

Esta revolução não terá sido tão autêntica ou pelo menos duradoura, como é
sugerido, mas, efectivamente, parece ter-se gerado a partir dos Estados Unidos e dos
Kushi um movimento cujos ecos serão notados em Portugal86. Alguns portugueses
deslocar-se-ão aos Estados Unidos para fazerem a sua formação na área da
macrobiótica, sendo esse o caso de Francisco Varatojo e Carlos Campos Ventura.
A Unimave, com os seus períodos “de ouro” e de decadência, parece
acompanhar essas movimentações sociais. De uma situação de muito envolvimento e
activismo nos anos 70, passou-se, porém, para um período de esmorecimento
relativamente à defesa da “causa macrobiótica”, sendo sinal deste abatimento o
encerramento dos estabelecimentos geridos pela Unimave.
Na fase de maior dinamismo, entre 1976 e 1980, a Unimave chegou a possuir
um armazém em Odivelas e terrenos em Almoster, onde cultivava, de forma biológica,
arroz integral, grão-de-bico e feijão azuki, entre outros produtos. “O feijão azuki dava-
se lindamente” refere José Oliveira. “O sr. Vitorino e a família é que tratavam dos
terrenos e nós íamos para Almoster aos fins-de-semana trabalhar, descascar e ensacar
arroz. A máquina de descascar arroz avariava-se muitas vezes, já era velha, aquilo era
uma inquietação… trabalhávamos muito”. A produção de arroz integral, alimento de
referência na alimentação macrobiótica, constituía uma actividade inovadora. É ainda
Campos Ventura, ex-presidente da Unimave, que refere “…dantes era proibida a
comercialização do arroz integral. Havia um decreto qualquer que falava disso” 87. Estes
terrenos de Almoster, propriedade da Unimave, e onde se inovava na produção de
produtos agrícolas associados à macrobiótica, acabaram por ser vendidos mais tarde,
numa altura em que a crise já se instalara.

86
Tal como já foi referido anteriormente, e agora relembro de forma sumariada, a partir de 1951, em
Nova Iorque, Michio Kushi e Aveline Kushi começam a trabalhar juntos em prol da macrobiótica, a eles
se juntando, em 1952, Herman Aihara (também discípulo de George Ohsawa). O casal Kushi e o casal
Aihara (Herman Aihara e Cornelia Aihara) serão apontados como os principais dinamizadores da
macrobiótica na costa Leste dos EUA nos anos 50. Posteriormente, em 1961, o casal Aihara muda-se para
a Califórnia, onde funda um centro macrobiótico, e, em 1964, o casal Kushi, insatisfeito com Nova
Iorque, muda-se para Boston, onde funda a East West Foundation, o restaurante Sanae, a primeira
empresa de produtos naturais na América, Erewhon, a revista East West Journal e a distribuidora de
livros Tao Books. Em 1978 é fundado o Instituto Kushi de Boston. Cf. Varatojo, Francisco «História da
Macrobiótica» http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].
87
Este facto aparece também referenciado por Manuel Sá Couto (1946), um diplomado pelo «Macfadden
Institute of Physical Culture» (EUA), que menciona, no conjunto de dados que apresenta sobre nutrição, a
superioridade do arroz integral por relação ao arroz polido e o facto de o arroz integral ser em Portugal
um alimento proibido.

170
A Macrobiótica em Portugal

A direcção da Unimave era constituída por sete membros, sendo os lugares de


maior responsabilidade atribuídos ao presidente, vice-presidente e tesoureiro. O trabalho
de coordenação na cooperativa exigia algum espírito de entrega, dado que esta
actividade não era remunerada e implicava, habitualmente, a sua conciliação com uma
actividade profissional:

Naquela altura eu era técnico oficial de contas, interessava-me pelo yoga e


pelas corridas [costumava treinar no estádio universitário e fazia maratonas]. Eu
ia para as corridas e era uma inquietação. Saia de casa com uma pasta com os
papéis, outra com a comida... Depois de trabalhar ia correr, e depois ia para a
Unimave (...) Houve muita gente a trabalhar muito na Unimave (…) pessoas
que fizeram muito pela macrobiótica. [José Oliveira]

De acordo com José Oliveira, durante o período em que esteve ligado à direcção
da Unimave havia também uma grande preocupação com a formação dos cozinheiros
que trabalhavam nos restaurantes da cooperativa. Os cozinheiros tinham que estudar
macrobiótica e ter muita sensibilidade para confeccionarem os pratos de acordo com a
pessoa que ia ser servida:

O cozinheiro conhecia de raiz a macrobiótica, conhecia a lei dos opostos. Ao


cliente era dado um prato de acordo com a sua condição. [Para tal] tinha que
haver entendimento da macrobiótica. À mesa, no final das refeições, falávamos
de yin/yang. Isso depois perdeu-se, começaram-se a dar cursos de macrobiótica,
cursos de cozinha…perdeu-se… tem que haver base, tem que haver
entendimento.

Como se pode verificar, parece ter havido na Unimave uma preocupação em


desenvolver uma alimentação direccionada para a saúde e equilíbrio, tendo sido este
atendimento personalizado uma das áreas de acção da cooperativa.
Uma outra área com algum relevo foram as publicações. Campos Ventura
recorda que a Unimave publicou várias revistas - a Aquário ( dois ou três números), a
Vida Maior (em 1989 ou 1988), os Cadernos da Unimave. Editou também alguns
livros, sobretudo de Michio Kushi, que viu ainda editados alguns dos seminários que
proferiu. Algumas das obras editadas resultaram da tradução de publicações da editora
que Michio Kushi tinha em Boston (Tao Books).
Para além das publicações, a Unimave é também referida como o grande centro
de aprendizagem, não só da macrobiótica, mas de outra áreas associadas, como o

171
«À Mesa com o Universo»

shiatsu, naturologia, etc. Os primeiros cursos de shiatsu em Portugal terão mesmo


surgido na Unimave:

A Unimave foi a grande escola, porque todos os que depois fizeram coisas na
macrobiótica e muitos também fora da macrobiótica, mas nesta base das
naturais, em Portugal, aprenderam na Unimave, porque a Unimave era o
grande centro por onde tudo passava. De facto, foi da Unimave que partiram as
primeiras pessoas para estudar acupunctura nos EUA, foi na Unimave que
nasceu o movimento ecologista, foi na Unimave que houve as primeiras lições
de shiatsu, enfim, passou tudo pela Unimave. Depois essas pessoas fizeram a
sua vida fora da Unimave, mas a Unimave era um centro muito activo onde as
pessoas iam aprender.[Campos Ventura].

Podemos constatar, efectivamente, que da Unimave saíram pessoas com gosto


pelo trabalho ligado aos “produtos naturais” e às terapêuticas não convencionais,
algumas com uma atitude empreendedora, que as levaria à criação de negócios nesta
área. Empresas de distribuição e produção de alimentos, como o caso da Trigrama, da
Ignoramus (surgida em 1976) e da Próvida, entre outras, são exemplo do que se afirma.
A Próvida - Produtos Naturais Lda., fundada em 1984, é uma das empresas portuguesas
de maior relevo na produção e distribuição de bens alimentares usados habitualmente na
macrobiótica. Conta entre os seus sócios fundadores Cesaltina e Alcino Sousa e terá
surgido na sequência de uma situação de doença que levou à opção por uma
alimentação macrobiótica como forma de resolver esse problema de saúde.
Actualmente, no site da empresa não se divulgam os produtos a partir de classificações
como «alimentação macrobiótica», mas antes «alimentação natural», termo menos
específico mas também menos restritivo, facto que, do ponto de vista comercial, pode
ter efeitos positivos, na medida em que pode incluir um número mais alargado de
pessoas. Em todo o caso, a linha específica de «produtos japoneses» (géneros
alimentares e utensílios) divulgada no site dá bem conta do enraizamento na
macrobiótica e de como ela foi importante para promover todo um conjunto de produtos
que hoje já não estão exclusivamente associados à macrobiótica. Como vemos, tal como
sucedeu noutros contextos (ver capítulo 3), é a partir da macrobiótica que muitos dos
produtos associados à «alimentação natural» passarão a circular e a ser promovidos.

Conheci o Alcino na Unimave (…), fazia um pão de grande qualidade. Ele


depois saiu de lá em Agosto [1984] para fundar a Provida. O Alcino fundou a
Provida juntamente com o Ricardo, foi aí, na Provida, que ele começou a fazer
tofu. (..) Foi o primeiro a fazer tofu de qualidade em Portugal. [José Oliveira]

172
A Macrobiótica em Portugal

Sobre este assunto diz também Campos Ventura:

A Próvida foi fundada por duas pessoas que saem da Unimave (…).É hoje a
grande empresa portuguesa de referência na área da alimentação natural. Entre
as empresas que nasceram sob o impulso da macrobiótica temos a Cereália, a
Ignoramus,a Trigrama, Próvida, nascem sob o impulso da macrobiótica. Quem
fundou a Trigrama foi um grande activista na Unimave, foi director da
Unimave, o Gomes Ribeiro, não sei se foi presidente, mas director foi, editou
livros e por aí fora. Foi também ele que fundou o Chakra [restaurante], agora
não se pode dizer que a Trigrama seja uma empresa macrobiótica
(…)comercializa alguma coisa macrobiótica e outras que não são propriamente
macrobióticas, mas é sob o impulso da macrobiótica que esta empresa surge.

No decurso desta investigação tive oportunidade de conhecer um dos membros


da Unimave e a unidade de produção de tofu e outros derivados de soja por si
produzidos na Beira Interior. O seu percurso evidencia o peso que a adesão a uma
proposta como a macrobiótica pode ter em termos de modo de vida. De um lugar central
como a capital move-se para o campo com a família, como se impelido pelo ideal de
«retorno à natureza». Instala-se numa quinta onde se dedica a actividades «agro-
ecológicas» e vive sobretudo da produção de bens alimentares habitualmente usados
pelos que praticam uma alimentação macrobiótica e/ou vegetariana. A comercialização
deste tipo de produtos encontra-se em expansão, dado que estes alimentos, vistos como
substitutos da proteína de origem animal, começam a figurar, cada vez mais
regularmente, nas mesas comuns.
A sua quinta, de cerca de 50 hectares, é bordejada por uma outra de dimensão
aproximada, ocupada pela associação de Aikido, modalidade que também pratica. Diz-
me que a outra quinta, mais à frente, está ligada a uma associação budista e que ali se
pretende fazer um centro de meditação. A sensação com que se fica é a de que a
instalação naquelas terras de um determinado tipo de agentes acaba por atrair outros que
lhes estão próximos e que parecem ter alguma afinidade do ponto de vista ideológico.
Parece produzir-se assim, e naquele lugar, uma prática de ocupação de terrenos
agrícolas que os distancia do que se observava há poucas décadas atrás.A reconversão
desses terrenos para outras actividades, evidencia, no caso específico deste seguidor da
macrobiótica, como a adesão a uma proposta como a macrobiótica pode influenciar um
modo de vida e tornar-se a principal base de sustento.

173
«À Mesa com o Universo»

A preocupação da Unimave com a “causa ecológica” faz parte desse mesmo


feixe de ideias que levam a um interesse pelos “produtos naturais”, estando presente, de
resto, no seu próprio projecto enquanto cooperativa. A relação da macrobiótica e, mais
especificamente, da Unimave, com o movimento ecológico é, de facto, clara, tendo a
sede da Unimave chegado a ser local de reunião para o Movimento Ecológico Português
(MEP), tal como refere Afonso Cautela 88 num texto de 23/5/1974:

Como disse e muito bem, na noite de quinta-feira, dia 23 de Maio de 1974, o Dr.
João Barreto de Atalayão, o Movimento Ecológico existia, existe e existirá,
antes e depois de nós, quer o queiram ou não os seus amigos e inimigos,
reunidos ou não na cooperativa UNIMAVE, a noite de ontem.89

Mais à frente, neste mesmo texto, a comissão dinamizadora do Movimento


Ecológico Português convoca uma nova reunião, referindo:

Sem a preocupação de conquistar a Lua numa noite, mas no firme propósito de


não consentir mais manobras dilatórias e de distracção, os responsáveis pela
dinamização do Movimento Ecológico Português convocam, para a Cooperativa
UNIMAVE, às 21 horas do próximo dia 30 de Maio, uma reunião informal de
convívio de todas aquelas pessoas que, de boa-fé e de boa vontade, estiverem
efectivamente interessadas em combinar planos de acção. Lisboa, em 24 de
Maio de 1974.

Uma certa consciencialização ecológica, que a Unimave procura promover,


encontra, efectivamente, um bom aliado no MEP90 e na sua luta pela defesa do ambiente
e respeito pela natureza. Este tipo de preocupações não nasceu, bem entendido, neste
período, senão veja-se, por exemplo, a criação da Sociedade Portuguesa de Naturologia
em 1912, entidade que parece remeter para preocupações do mesmo tipo. Todavia,
parecem ter existido, neste período, estímulos significativos para o desenvolvimento de

88
Jornalista, defensor da macrobiótica, foi director da Unimave. Divulga na internet uma quantidade
assinalável de textos dedicados à macrobiótica e ao movimento ecológico. Muitos dos seus textos podem
ser encontrados em http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ , uma página que parece ter construído em prol da
“causa ecológica” e também para apresentar contributos para a história do movimento holístico em
Portugal. Muitos dos seus textos podem ainda ser encontrados num blogue de Afonso Cautela editado e
“postado” por Abel Campos Artigot http://www.blogger.com/profile/06626323338418825790 [Acesso
em 22-12-11].
89
Texto disponível em http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ecologiaemdialogo/mep-2.htm [Acesso em
11/12/06], aí se refere “Este texto poderá ter sido lido, (no dia a seguir à reunião da Unimave), em
conferência de imprensa, realizada na Casa da Imprensa, de que existe foto da mesa.
90
Nasce a 25 de Abril de 1974, pelo menos a julgar pela referência que lhe é feita no site Big-Bang. Aí se
diz que o 25 de Abril de 2004, será a data em que se celebrará o 30º aniversário do movimento ecológico
em Portugal http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ecologiaemdialogo/index.htm [consultado em 17/12/06].

174
A Macrobiótica em Portugal

uma “consciência ecológica”, sendo a Unimave uma das sedes de discussão de formas
de intervenção.
Através dos dados recolhidos, apercebemo-nos de que a atmosfera que se vivia
na Unimave naquela época, era muito marcada pelo debate político, com vista a uma
intervenção social. Os debates estavam para lá das estritas preocupações alimentares e
frequentemente davam visibilidade a posições políticas. O projecto de entendimento do
mundo e de mudança social proposto pela macrobiótica, que passava pela alimentação
mas também por muitos outros aspectos, parece ter-se conjugado aí com a vontade de
transformação social, associada a causas políticas tão vivas na altura.

(…) aquilo era complicado, era muito complicado, com pessoas sempre a
digladiarem-se, nessa altura ainda esta muito vivo o espírito da esquerda e da
direita, da extrema esquerda…[Campos Ventura]

É de salientar também a estreita conexão que existiu inicialmente entre a


macrobiótica e o vegetarianismo. Muitos dos primeiros praticantes deste tipo de
alimentação terão sido anteriormente vegetarianos. Aparentemente, sobretudo por
razões de saúde, ter-se-ão inclinado para a macrobiótica:

A macrobiótica é divulgada a partir do vegetarianismo e de centros


vegetarianos. Os primeiros macrobióticos portugueses são vegetarianos que
aderem à macrobiótica, mas, depois dos anos 70, a macrobiótica ganhou uma
embalagem tremenda. Na segunda metade dos anos setenta, a macrobiótica
ultrapassou de longe o vegetarianismo. O vegetarianismo nunca pegou muito,
não tinha a expressão que tem agora, neste momento fala-se, está na moda… A
macrobiótica dirigia-se muito à saúde e tinha militantes e activistas muito
activos, muito yang.
[Campos Ventura]

Pelo que nos diz Campos Ventura, uma certa proximidade entre vegetarianismo
e macrobiótica terá existido desde o início. Muito embora cada uma destas formas de
alimentação reivindique uma identidade própria, é possível encontrar alguns pontos de
contacto nestas duas formas de alimentação: os produtos animais são evitados (mesmo
na macrobiótica, que diz não proibir nenhum alimento, evitam-se produtos como a carne
ou os derivados do leite, entre outros); a comida é vista como uma via para a saúde e o
desenvolvimento pessoal e social; têm narrativas muito marcadas pela defesa da

175
«À Mesa com o Universo»

natureza e do ambiente; são referenciais de alteridade relativamente à alimentação


omnívora e são ainda formas de expressão de distinções sociais.
A alimentação macrobiótica não terá sido, no entanto, sempre do agrado dos
vegetarianos que aderiram à macrobiótica. Foi-me relatado que numa das ocasiões em
que Michio Kushi esteve em Portugal, a sua mulher, Aveline Kushi, terá cozinhado
peixe num dos encontros, o que terá indignado alguns dos vegetarianos que entretanto
tinham aderido à macrobiótica.
De acordo com Campos Ventura as pessoas que nesta altura aderiam à
macrobiótica eram sobretudo pessoas com problemas de saúde, com diversos graus de
instrução e origem social diversificada:

(…) Foi um movimento inter-classista, mais do que agora. Lembro-me que


várias vezes almocei na Unimave com… sei lá, com o António José Saraiva por
exemplo, já o conhecia porque colaborei com ele desde o número zero na
revista Raiz e Utopia, de que ele era director, almocei com ele e a mulher que
na altura vivia com ele.
Havia pessoas ligadas às artes, à cultura, havia muitas pessoas que
trabalhavam nos serviços, bancários, era muito inter-classista. Havia de tudo,
nessa altura acho que havia mais homens do que mulheres. A população que
frequenta estes sítios entretanto mudou, agora são mais mulheres do que
homens. Na altura a faixa etária era superior a 17 anos.

Paralelamente à Unimave, embora sem o relevo que esta teve nos finais dos anos
70, surgiram outros projectos ligados à alimentação macrobiótica. Um deles foi o centro
de divulgação e restaurante Chakra, cujo proprietário foi Gomes Ribeiro e, mais tarde
terá surgido o restaurante Biológica:

O Chakra, não sei se ainda existe como restaurante, nasceu como centro de
divulgação, nasceu para aí em 76 (…) Depois do Chacra abriu uma loja onde é
agora o centro comercial Palladium, que era a Biológica e que chegou a ser o
melhor restaurante. O dono era o Gamito, era alentejano, não sei onde está,
telefonou-me há uns tempos, há uns dois anos. Muitas destas pessoas
espalharam-se pelo país, muitas já não estão ligadas à macrobiótica, mas estão
ligadas à agricultura biológica e coisas assim. Desenvolveu-se muito a
naturopatia, a acupunctura… [Campos Ventura]

Um outro projecto com relevo para a compreensão da alimentação macrobiótica


em Portugal foi a criação da «Espiral – Centro para a Divulgação de Alternativas, em
Setembro de 1978».

176
A Macrobiótica em Portugal

Com a Espiral procurou-se constituir uma plataforma que pudesse incluir


vegetarianos, macrobióticos, espiritualistas, pessoas ligadas às medicinas
naturais, «Os Amigos da terra», etc. A ideia era fazer um sítio aberto, uma
plataforma de convivência destas alternativas, era um projecto diferente do da
macrobiótica, era mais um centro de alternativas” [Campos Ventura].

Na verdade, muito embora a «Espiral» tenha uma componente forte ligada à


macrobiótica, ela é mais eclética relativamente à clientela que procura atingir. Sendo
também uma cooperativa, é, nas palavras de Campos Ventura, “uma cooperativa
diferente”.
Apesar da abertura deste novo estabelecimento, deve ficar claro que nenhum
outro projecto suplantou a Unimave entre 1975 e 1980:

Eu estive fora [EUA] entre 80 e 86. Quando saí, a Unimave era uma
organização com uma força tremenda, tinha três casas em Lisboa, era muito
forte. Vim cá em 83, uns dez dias, pouco tempo. Houve aqui um seminário do
Professor Michio e só cá vim de passagem e a Unimave continuava a ser uma
casa forte. [Campos Ventura]

A partir de 1977, segundo José Oliveira, foi necessário resolver muitos


problemas de gestão. Havia, na sua opinião, muito descontrolo na Unimave:

Fazia-se uso do dinheiro que era recebido nas caixas nas despesas correntes, de
maneira que nunca se sabia ao certo quanto entrava e quanto saia, foi preciso
resolver esta situação. Muita gente que estava na macrobiótica não se
preocupava com as contas, foi preciso impor alguma disciplina, teve que se
criar um fundo de maneio para as despesas correntes – “Diziam que eu era
muito yang, mas tinha que ser assim, sem rigor não se chega a lado nenhum. Até
me diziam – Ó Oliveira, não sei o que é que tu lhes fazes, mas quando tu chegas
elas [empregadas] escondem logo os pastéis de nata na gaveta.

Sem apoios bancários, mas com uma gestão que o presidente da altura diz ser de
maior rigor, ter-se-á entrado numa fase de maior facturação da Unimave, que terá
permitido uma maior desafogo financeiro, até pelo menos 1980:

Trabalhávamos com dois bancos, o Pinto Sottomayor e o Espírito Santo. No


primeiro só fazia depósitos e, no outro, pagamentos. Ao fim do mês transferia o
dinheiro todo para o Espírito Santo para fazer os pagamentos. O Sottomayor
começou a ver que nós facturávamos bastante e depois até nos ofereceram
outras condições para não levantarmos o dinheiro todo no final do mês. [José
Oliveira]

177
«À Mesa com o Universo»

Apesar dos esforços de gestão, as dificuldades da Unimave pareciam ser


estruturais, pelo que nos diz um dos ex-empregados da Unimave:

Comecei a trabalhar na Unimave no final de 1980 como fiel de armazém, para


além de ir à praça. Lá, no restaurante do Marquês de Pombal, tinham um
armazém e era tudo embalado lá [referência aos produtos que eram comprados a
granel e depois embalados na Unimave]. Enquanto fui fiel de armazém uma das
discussões que tinha com os empregados era que precisavam de qualquer coisa
e iam directamente ao armazém em vez de fazer encomendas, que era o que
devia ser… Na altura não havia computadores, mas não era nada complicado.
Um dia estava lá e vi o Mário, um dos presos do Linhó, a sair do armazém com
uns pacotes de feijão azuki e olhei para a Fátima, que estava na caixa nessa
altura, e disse-lhe: «Tu vê-lo assim a sair e não dizes nada?» Era assim.
(…) Aquilo era muito desorganizado… os hábitos de trabalho da Unimave eram
assim… despareciam produtos no trajecto do armazém para as lojas e para as
cozinhas… Havia um desleixo completo, muito desperdício, era tudo
desorganizado para se poder roubar à vontade. [António, ajudante de cozinha]91

A partir de 84, são já visíveis os problemas na Unimave, sendo muito provável


que já viessem de anteriores direcções. Um texto da direcção da cooperativa (na altura
com cinco membros), assinado por Artur Morais, Afonso Cautela e Vasco Melo, é
contundente a propósito das dificuldades vividas. Nesse texto, de 1984, retirado do site
de Afonso Cautela, dá-se conta das queixas apresentadas relativamente aos serviços
prestados e das inúmeras dificuldades de gestão. As queixas vão desde o mau serviço de
cozinha prestado, ao entupimento das sanitas, absentismo e insurreição dos
trabalhadores92.

Concretamente, sobre o serviço prestado nesta Cozinha [restaurante da rua


Mouzinho da Silveira], pede-se aos consócios duas coisas: a) alguma paciência,
no que for possível e razoável ter paciência, a uma hora em que todos
necessitam de ser rapidamente e bem servidos; b) Que chamem o responsável
pela equipa da Cozinha e lhe exponham, sem acrimónia, o problema e, se
possível, acrescentem alguma sugestão para o resolver...

Lembramos ainda:

91
Nomes fictícios. A referência a um dos presos do Linhó deve-se ao facto de ter sido conduzida uma
experiência na área da macrobiótica na cadeia do Linhó, de que mais à frente falarei.
92
A identificação do texto surge da seguinte forma: diário de um consumidor de medicinas – documento
para a história do movimento holístico em Portugal. Pode ser lido em http://pwp.netcabo.pt/big-
bang/ecologiaemdialogo/benvindo.htm [Acesso em 17-12-06].

178
A Macrobiótica em Portugal

Muitos dos problemas com que actualmente a Unimave se debate foram


herdados de uma situação conhecida de todos e que não tinha por objectivo
final a recuperação da Cooperativa mas sim a sua, a breve prazo, destruição.

Relembrando que o trabalho na Direcção da Unimave não é um trabalho


remunerado, mas de entrega a uma causa e que a Unimave é uma causa exigente, e com
necessidade de pessoal a trabalhar de forma dedicada, referem:

Para que alguns serviços funcionassem de maneira diferente, seria necessário


que os elementos da Direcção, além das horas que dão à Cooperativa,
passassem a permanecer nela as vinte e quatro horas do dia. Lembre-se, a
propósito, que os elementos da Direcção prestam à Cooperativa um serviço
absolutamente gratuito e nenhum deles faz dessa função a sua profissão...como
aliás exige uma cláusula dos estatutos.

(…) Se, como sempre reconhecemos, há trabalhadores cooperantes que


efectivamente têm honrado essa dupla qualidade de trabalhadores e de
cooperantes, também é verdade que outros há cujo propósito de obstrução se
manifesta das mais diversas formas, algumas aliás detectáveis à vista
desarmada pelos próprios consócios que frequentam mais assiduamente a
Cooperativa.

Procurando alijar responsabilidades pela situação difícil que a cooperativa


atravessa e apelando à efectiva participação de todos os cooperantes, escrevem ainda:

(…) Ou todos os consócios - direcção, trabalhadores e comensais - assumem o


odioso papel de "fiscal" do que está a ser mal feito ou de má fé - ou a Direcção,
nesse caso, não poderá ser bode expiatório absoluto nem responder por tudo,
nem, muito menos, armar em polícia que não é nem quer ser.

Quando, por exemplo, se entope sistematicamente a sanita dos lavabos, porque


alguém, por doença ainda não curada,assim entende deteriorar o ambiente da
Cooperativa, não é só à Direcção que incumbe montar vigilância permanente à
retrete - compete a todos vigiar todos, ou então ninguém.

Lamentamos que a doença leve pessoas a tão baixo, mas que podemos fazer
além de lamentar e recomendar a dieta standart?93

A direcção, procurando ainda responder às reclamações e justificar o mau


serviço prestado, aponta o stress de alguns trabalhadores devido ao absentismo de
93
Note-se a expressão “doença não curada”, dando-se a entender que a macrobiótica poderia curar todas
as doenças e ainda a ironia com que se recomenda a dieta standard, que, de acordo com José Oliveira, era
sobretudo sopa de miso e arroz integral com vegetais.

179
«À Mesa com o Universo»

outros e insinua, num tom algo moralista, a sua falha pelo facto de se encontrarem
doentes:

(…) a má qualidade dos serviços é muitas vezes originada na circunstância de


os trabalhadores presentes se encontrarem em verdadeiro stress, causado pela
ausência sistemática de colegas seus, mais propensos à doença e ao absentismo
incurável.

Procurando responder às queixas, que, pelo que se deixa escrito, têm também a
ver com o tempero da comida, realça-se o facto de nos restaurantes da Unimave a
qualidade não ter a ver com a comida “bem apaladada”. Muito embora um dos
objectivos da cooperativa fosse o de apresentar “refeições mais em conta” (motivo que
talvez ajude a explicar o número de cooperantes), procurava-se assegurar a qualidade
dos produtos usados.

Não devem os consócios esquecer também que os restaurantes na Unimave são


um meio para atingir os fins da Cooperativa, fins que são mais vastos e
importantes do que o prato de arroz. Há que assegurar, evidentemente, a
qualidade mínima da nossa cozinha mas há que não esquecer, no entanto, que
essa qualidade não é o "bem apaladado" do restaurante normal ou outras
exigências de sabor com as quais a Macrobiótica não pode fazer transigências.
Convém também lembrar a vocação mais larga e lata da Unimave, que não é
apenas (embora seja também) um snak-bar rápido para refeições mais em
conta.

Acreditando-se no serviço público prestado pela Unimave e na macrobiótica


como via para uma vida mais saudável, referem:

(…) A Unimave é, em Portugal, o pivô do mais importante movimento mundial


em prol da saúde pública da Humanidade.

Dando-se ainda conta da existência de um pelouro cultural na Unimave, mas


também da sua falta de orientação clara, refere-se:

Têm-se verificado grandes ausências de alguns deles [elementos da direcção],


por motivos da sua vida particular, e os que têm permanecido mais tempo
desdobram-se dentro do que é humanamente possível para atender problemas
que, em princípio, até nem são do seu Pelouro. É o caso do pelouro Cultural,
abordado sobre todos os assuntos menos sobre aqueles que lhe incumbe tratar e
dos quais apresentou detalhado programa que, espera-se, os sócios um dia
180
A Macrobiótica em Portugal

possam ler e subscrever. Por acaso, os assuntos do Pelouro Cultural até são os
que potencialmente interessam aos seis mil sócios que a Cooperativa tem, aos
outros seis mil sócios que poderia ter e, enfim, a todos os milhares que apenas
esperam o minuto feliz de a maravilhosa Macrobiótica lhes bater à porta.

Fazendo-se, mais uma vez, fé na macrobiótica, e evocando-se a dimensão


espiritual associada a esta proposta, concluem, dizendo que aquilo que os sócios fizerem
pela Unimave:

(…) É para que milhares de portugueses doentes desesperados possam um dia


ter e receber no seu coração a mensagem de esperança e liberdade pela Via
Macrobiótica que eles, sócios habituais da Mouzinho, da Bocage e da Boavista,
já tiveram.

Apelando a um espírito de missão e evocando-se, uma vez mais, a dimensão espiritual:

Pensem também nos que ainda não são nossos consócios. Essa é, no médio
prazo, a Grande Aposta desta Direcção, infelizmente travada no passo pelos
que, em vez de usarem a Macrobiótica para salvação das suas almas e exaustão
dos seus Karmas, estão apenas a remeter-se, de novo, para o Inferno das suas
tenebrosas acções.

Que a Ordem do Universo seja para eles também Magnânima e Misericordiosa.

Como podemos ver, a Unimave debatia-se com sérios problemas de gestão e


congregava sócios com diferentes empenhos e graus de participação, sendo que, para
alguns, a atracção por uma refeição “mais em conta” era mesmo o que importava. De
acordo com um dos meus entrevistados, um dos problemas da Unimave prendeu-se com
o facto de terem ido para a direcção da cooperativa pessoas que não eram
verdadeiramente macrobióticas, pois tinham sobretudo, uma relação oportunista com a
macrobiótica e com a Unimave 94:

94
Num dos casos relatados, um dos elementos da direcção apenas terá entrado para a Unimave porque
“andava de olho fisgado numa rapariga que praticava macrobiótica”. Este aparte, relatado em tom jocoso,
ilustra as divergências internas e as críticas relativamente aos praticantes de alimentação macrobiótica.
Como dizem “havia muitas guerras na Unimave” e, como era uma cooperativa, “mandavam todos e não
mandava ninguém” [Campos Ventura], o que terá encaminhado a organização para a crise e posterior
falência.

181
«À Mesa com o Universo»

(…) às tantas entendi que tinha que largar aquilo porque apareceram pessoas
inteligentíssimas e hoje a Unimave não existe, faliu. Entretanto, apareceram
umas pessoas inteligente, uns mestres, uns mestres pop, que já começavam a
aparecer naquela altura,e eu, assim que vi, decidi sair (…) Falava-se muitos de
política e a determinada altura apareceu lá um coronel [Artur do Nascimento
Morais] que começou a fazer macrobiótica e disse que queria ir para presidente
da Unimave. Eu então disse – Está bem, fique já aí! O amigo não perca tempo -
Aquilo deu uma série de voltas e depois acabou. [José Oliveira]

De acordo com José Oliveira, na altura em que Campos Ventura assume a


presidência da Unimave é feita uma reunião nela surgindo uma proposta de salvamento
da cooperativa que, na sua opinião, era ilegal. Nela se propõe que apenas possam
continuar a ser “sócios responsáveis” aqueles que entregarem 50 contos à cooperativa.
A gestão de Campos Ventura é classificada por José Oliveira como polémica e como
não tendo sido capaz de retirar a Unimave das dificuldades financeiras. Campos
Ventura faz uma leitura diferente:

Quando voltei[dos EUA], em 1986, a Unimave estava moribunda. Passados um


ou dois meses depois de ter chegado, houve uma assembleia geral em que
estiveram umas dez pessoas para se decidir se a Unimave acabava ou
continuava. Havia à volta de 15 mil contos de dívidas. Se neste momento, 2006,
é muito dinheiro, há 20 anos era muito mais (…). Nessa altura negociou-se com
os credores e os principais credores – a Trigrama, a Próvida e outros
movimentaram-se para que eu fosse para presidente da Unimave. Eu acabei por
aceitar, mas era de facto uma situação muito complicada, e pronto, de facto nós
levámos depois 15 anos para pagar esses 15 mil contos. A Unimave ainda se
revitalizou e teve produtos, consultas e palestras, mas todo o dinheiro foi
canalizado para pagar as dívidas. Foi muito complicado. Em 2001 acabámos de
pagar as dívidas.
(…) Houve uma verdadeira situação de descalabro. Entre 80 e 86 não
estive cá, mas depoisfalei com toda a gente, nem vale a pena falar muita coisa…
mas o que eu retenho como mais importante para esse descalabro é o facto de a
Unimave ser uma cooperativa, portanto, era de todos e não era de ninguém…95
[Campos Ventura]

A acrescentar às dificuldades financeiras terão surgido também dificuldades com


o senhorio, que procurava reaver as instalações que havia arrendado.

95
Este modelo de cooperativa, sem grande sucesso, viria a ser abandonado. Hoje, o Instituto
Macrobiótico de Portugal parece orientar-se por uma lógica bem diferente. Parece ter hoje uma orientação
mais empresarial e ser hoje um projecto pessoal e familiar centrado em Francisco Varatojo e Eugénia
Varatojo.

182
A Macrobiótica em Portugal

Entretanto houve um processo do senhorio contra nós. O contrato tinha sido só


para restaurante e a casa nunca tinha sido só restaurante. Tinha loja, cursos,
consultas, tinha isso tudo e o senhorio sabia, de modo que foi para tribunal e os
tribunais funcionam como nós sabemos… Aquilo foi andando, durou para aí
uma dúzia de anos até que fechámos. [Campos Ventura]

Quanto aos terrenos em Almoster que eram propriedade da Unimave foram


todos vendidos para pagar as dívidas, como atrás foi referido:

Esses terrenos foram todos vendidos, mais ou menos ao desbarato. É a tal


história … não se podia negociar porque não se estava em boa situação. Os
terrenos foram logo vendidos em 1986, mais ou menos ao desbarato. [Campos
Ventura]

Muitos dos que colaboravam com a Unimave foram também abandonando a


instituição, esvaziando-a de capacidade de acção, contribuindo, desta forma, para a sua
decadência. Os saberes, entretanto adquiridos, seriam canalizados para outros projectos:

(…) Todo o pessoal qualificado tinha desaparecido[1987], só ficaram pessoas


sem capacidade técnica, deixou-se de fazer palestras, consultas, tratamentos, as
lojas estavam vazias, não tinham nada, os centros onde se praticava yoga
precisavam de obras, estavam sujos, sem manutenção, estragados, de modo que
era um verdadeiro pesadelo. (…) A Unimave não conseguiu reter os quadros,
reter esse know how, exactamente porque as pessoas sentiam que era uma
cooperativa, não era de ninguém, e portanto não investiram também na
Unimave. [Campos Ventura]

Quanto à documentação relativa à Unimave (actas, publicações, biblioteca…)


não se lhe conhece o paradeiro, facto que muito intriga José Oliveira, pois considera tais
documentos um acervo importantíssimo para a construção da história da macrobiótica
em Portugal. Campos Ventura, sobre este assunto, refere que a Unimave chegou a ter
uma biblioteca que, pelo que lhe dizem, era boa, mas que quando chegou à direcção da
Unimave esta já estava na ruína, com problemas logísticos e que desapareceram muitas
coisas. Na fase final, a Unimave deixa de ter instalações e perde totalmente o seu papel
enquanto promotora da macrobiótica:

(…) Entrei para presidente da Unimave em 1 de Janeiro de 1987. A Unimave


acabou em Julho de 2001. Durou 30 anos, nasceu em 71, apesar de só ter
aberto as portas em 1972, e acabou em 2001. Deixou de haver instalações…, a
missão que eu me tinha atribuído, que era de pagar as dívidas, estava cumprida,
portanto para a Unimave continuar era preciso instalações e os sócios, vamos

183
«À Mesa com o Universo»

lá ver… isso viu-se logo em 1986… só estavam dez pessoas… Bem… Os sócios
que compareceram à assembleia geral em 1986 foram só dez, quando no papel
eram quase 7000, depois houve umas assembleias gerais que animaram as
coisas, mas a Unimave estava moribunda, nunca mais foi uma coisa muito
participada.
No final eu já estava ligado a uma escola, não estava lá todos os dias, estava lá
só para consultas e cursos e tal, a nível do concreto não estava lá todos os dias,
não havia instalações, não havia nada para investir, a Unimave já só era uma
ideia.
[Campos Ventura]

Em 1984, ainda a Unimave continuava com as portas abertas, surge o Instituto


Kushi de Lisboa. Este projecto foi dinamizado, desde o início, pelo casal Francisco
Varatojo e Eugénia Varatojo, mas não apenas por eles. Estava sediado numa rua perto
da Avenida da Liberdade e, de acordo com Campos Ventura, terá surgido para suprir a
incapacidade da Unimave:

A Unimave deixa de ser capaz de ter esse papel de promotora e divulgadora da


macrobiótica e aparece o Instituto Kushi, que depois se transformou no Instituto
Macrobiótico de Portugal, para aí há uns dez anos [na página do Instituto
Macrobiótico de Portugal faz-se referência a 1985 como data de nascimento
deste instituto]. Neste momento o IMP pode ser identificado como o grande
centro de divulgação e promoção da alimentação macrobiótica em Portugal.
Muitas das pessoas que têm aderido à macrobiótica, têm-no feito sob influência
do Francisco[Varatojo].

Os anos 80, particularmente a segunda metade da década e princípios dos anos


90, representam um período de crise para a macrobiótica em Portugal, pelo menos para
as instituições que defendiam a macrobiótica. Afonso Cautela, no seu estilo cáustico,
refere:

Se o movimento está doente, o mais lógico é começar por fazer o diagnóstico


desse doente. E depois a sua oxigenação. O que até é natural entre terapeutas
que se prezam.

Honra ao Francisco Varatojo que, com a reunião do dia 15 de Fevereiro de


1997, teve a coragem de inverter a marcha para o abismo, iniciando uma era de
crítica e autocrítica internas, uma nova era, portanto, nos anais do movimento
macrobiótico português96.

96
Afonso Cautela http://pwp.netcabo.pt/big-bang/vidanatural/cfv-2.htm [Acedido em 20/12/06]

184
A Macrobiótica em Portugal

Aquilo que Afonso Cautela propõe neste texto de 1997 é um exercício reflexivo
sobre o que não correu bem com a macrobiótica em Portugal. Acusando o “movimento
português” de “seguidismo e uma certa subserviência em relação ao movimento
macrobiótico americano (primeiro), europeu depois e, finalmente, suíço” (ibid.),
considera que uma das razões da falta de vitalidade da macrobiótica em Portugal terá a
ver com o “nosso vício ancestral de nos pormos de cócoras perante o estrangeiro” (ibid.)
e de não sermos capazes de criar uma identidade própria. Julga mesmo que, dada esta
dependência, só é possível compreender as razões que levaram à estagnação da
macrobiótica em Portugal, se se reflectir sobre a dissidência ocorrida entre Kushi e a
Suiça, que liderava o movimento europeu (cf. ibid.).
Procurando identificar alguns dos motivos que levaram à estagnação do
“movimento macrobiótico”, assinala:

a) desconhecimento total das particularidades culturais portuguesas


(especialmente dos tesouros do nosso inconsciente colectivo e dos nossos
arquétipos ancestrais)

b) desconhecimento de outros movimentos afins (Arrogância centrada no


próprio umbigo: umbilicalismo)

c) ausência de um alvo, de uma meta que transcenda o espaço e o tempo -


aquilo a que Michio chama o Sonho - e que deverá ser, em 1997, a 3 anos do 3º
Milénio, o sonho de construir a Nova Idade de Ouro.

Ou ainda:

a) Ignorar o paradigma holístico que define a própria macrobiótica como


tecnologia de vanguarda

b) Ignorar o fundamento da dialéctica Yin-yang, descurando os estudos de


ordem filosófica e especialmente hermética que a inspira

c) Ignorar o alerta que foi dado, há 15 anos, por Michio, no sentido de religar a
sabedoria taoísta às fontes herméticas e alquímicas de onde ancestralmente
procede. Isto, apesar de Francisco Varatojo, em 1982, ter editado em português
o opúsculo de Michio «Transmutações Atómicas». (ibid.)

185
«À Mesa com o Universo»

Face a estes problemas lança um apelo para que se construa uma identidade
macrobiótica portuguesa, capaz de ultrapassar a crise, que reconheça as especificidades
portuguesas e o “movimento macrobiótico” como:

a) movimento adequado e adaptado à conjuntura e às raízes portuguesas;

b) movimento entre outros movimentos holísticos de saúde, par inter pares,


procurando estabelecer pontes, diálogo, plataformas de consenso com esses
outros movimentos

c) movimento de vanguarda que, com outros movimentos de vanguarda, ajudará


a dinâmica de construção de uma Nova Idade de Ouro.(ibid.).

Escusando-me de comentar alguns dos aspectos enunciados relativos à perda de


relevo da macrobiótica, ou aos factores aqui considerados como significativos para a
afirmação de uma identidade macrobiótica portuguesa, e que têm a ver com o
“movimento holístico”, vale a pena dizer que muitas das considerações apresentadas por
Afonso Cautela remetem para a preocupação com a possível ausência de
reconhecimento da macrobiótica enquanto “terapêutica não convencional”. Os aspectos
que procura sistematizar denunciam esse esforço em querer atribuir uma identidade
própria à macrobiótica, de forma a ganhar individualidade no quadro dessas
terapêuticas. O texto de Afonso Cautela parece integrar-se, na verdade, na vasta
discussão sobre as formas de tratamento não convencionais e na expectativa do seu
reconhecimento oficial97.
Convém referir, em todo o caso, que, apesar do período de crise vivido pela
macrobiótica, ficaram marcas claras da actividade que em torno desta proposta se gerou,
quer nos restaurantes, quer nas publicações, quer na oportunidade de divulgar diferentes
formas de abordagem da doença e saúde. Em 1992, em referência ao caso de cura de
Satillaro (ver capítulo 2), e procurando-se afirmar a doença como algo que é da
responsabilidade do indivíduo, diz-nos Afonso Cautela:

97
É de notar que nessa época (2006/07), com vista a um possível reconhecimento público, se começaram
a notar alterações na forma de organização dos cursos do Instituto Macrobiótico de Portugal. Foi aí
afirmado que passaria a haver dois tipos de diplomas, uns que atribuiriam competências e onde seria feita
avaliação dos alunos e da formação proporcionada, e outros que não exigiriam avaliação nem
obrigatoriedade de presenças e que se destinariam sobretudo ao “desenvolvimento pessoal”. Pelo que tive
oportunidade de observar nos anos seguintes não parece ter havido um trabalho significativo no sentido
de que a macrobiótica pudesse enquadrar as terapêuticas não convencionais

186
A Macrobiótica em Portugal

Após 8 seminários de Michio Kushi em Lisboa, após 12 restaurantes a


funcionar, só na área de Lisboa, após a publicação em português de duas
dezenas de livros e de um periódico que se chamou «Jornal da Via
Macrobiótica», já ninguém pode hoje dizer que desconhecia e, por isso adoeceu.
Ninguém está inocente das doenças que tem.
(…) Curar é fácil, e prevenir ainda mais. Difícil é vencer a opacidade estúpida e
arrogante, a inércia da asneira, os interesses e monopólios da indústria
alimentar que mata, a fraude publicitária e a mentira dita científica.
A verdade não está só nos livros, nem está principalmente nos livros. Depende
essencialmente dos olhos puros e sem preconceitos que queiramos abrir à
maravilhosa e poderosa Ordem do Universo. Cujas leis teimamos em não
respeitar. Em não respeitar. Em não conhecer. Em ignorar.
Porque sabemos demais das ciências que temos. 98

Para além da indicação a um número significativo de restaurantes a funcionar


em Lisboa e da divulgação da macrobiótica através de diferentes tipos de publicação,
estas palavras revelam um tipo de posicionamento recorrente junto dos indivíduos que
contactei. A crença na ideia de que a doença ou a saúde devem ser perspectivadas na
óptica da responsabilidade individual; a convicção na prática da macrobiótica como
forma de evitar doenças; a crítica à indústria alimentar, à ciência e ao conhecimento
livresco; a crença na «Ordem do Universo», entidade oculta, suprema, que deve ser
respeitada, aspecto que sugere a inserção da macrobiótica numa tradição mística e
espiritual.

Paralelamente à actividade da Unimave outras experiências de relevo na área da


macrobiótica merecem ser assinaladas, uma delas tem a ver com a confecção de
refeições macrobióticas na cantina da cidade universitária de Lisboa. Numa fase inicial,
no início dos anos 1980, apenas esta cantina universitária servia «refeições
macrobióticas». Mais tarde, este tipo de refeições passaria a estar disponível noutras
cantinas universitárias, o que demonstrava que a experiência na cantina da cidade
universitária havia sido bem-sucedida. Este intrigante sucesso ficou a dever-se, sem
dúvida, ao carácter, determinação e entusiasmo que a responsável desse serviço colocou
na elaboração dessas refeições, mas também a uma gestão de custos que terão
convencido os serviços sociais da universidade.

98
Afonso Cautela «O caso Satillaro em 3 tempos (1988 e 1992)» http://www.catbox.info/big-
bang/gatodasletras/casulo1/SATILLAR.HTM [Acesso em 20-12-11]

187
«À Mesa com o Universo»

As «refeições macrobióticas» que são servidas na cantina da cidade universitária


revelam uma confecção macrobiótica muito livre, por vezes sugerem uma refeição mais
vegetariana do que macrobiótica. No entanto, a designação ficou, remetendo-nos para
uma experiência com os alimentos que teve um dos seus pontos mais altos no final dos
anos 1970 e princípio dos anos 1980. Nestas «refeições macrobióticas», cuja confecção
foi depois ensinada, a partir da cantina da cidade universitária, a cozinheiros de outras
cantinas universitárias, encontramos, por vezes, ingredientes pouco utilizados na
confecção macrobiótica, como os ovos, o tomate e o acúcar. A sopa de miso (um
clássico da macrobiótica) e as algas (outro ingrediente clássico) não são usadas
habitualmente, no entanto é mantida a classificação macrobiótica.
Em entrevistas realizadas em 2007 e 2008 com a responsável da cantina da
cidade universitária, a justificação dada para este tipo de confecção tinha a ver com uma
rigorosa gestão dos dinheiros disponibilizados e dos gostos dos estudantes. Referia-me
que procurava apresentar pratos com cor, saborosos, mas ao mesmo tempo saudáveis,
para poder cativar os estudantes. Procurava proporcionar-lhes formas alternativas de
alimentação sem comprometer excessivamente aspectos como o gosto. Por outro lado,
não utilizava ingredientes como o miso ou as algas porque tornariam o prato muito
dispendioso e não passível de ser suportado pelos serviços sociais da universidade. O
custo de uma «refeição macrobiótica», dizia-me, podia rondar um euro (em 2008)
enquanto uma refeição comum rondaria um euro e sessenta. Havia assim boas razões
para os serviços sociais incentivarem a produção deste tipo de refeições.
O gosto pela macrobiótica vinha-lhe desde os anos 1970, altura em que vira a
sua irmã confeccionar pratos macrobióticos e ser curada de uma hepatite com arroz
integral e a sopa de miso. No momento da entrevista (2008), estava um pouco
apreensiva por não saber como iria ser dada continuidade à macrobiótica na cantina,
dado que ia fazer 70 anos e tinha que se reformar. Actualmente, já reformada, pode
dizer-se que a sua passagem pela cantina produziu efeitos e criou seguidores, sendo
possível encontrar o mesmo tipo de pratos que dantes eram confeccionados. Mais ainda,
é possível encontrar esse género de pratos também noutras cantinas universitárias onde
há cozinheiros que fizeram formação na sua cantina, no seu «santuário», como diz. Para
muitos estudantes a familiarização com o termo «macrobiótica» deriva, justamente, da
experiência com as refeições servidas nas cantinas universitárias.

188
A Macrobiótica em Portugal

Uma outra experiência de relevo na área da macrobiótica, e que mereceu até


divulgação internacional, sobretudo nos canais de informação ligados à macrobiótica,
foi a experiência coordenada por Francisco Varatojo junto dos prisioneiros do
estabelecimento prisional do Linhó, em 1979. Esta experiência envolveu 27 reclusos
problemáticos, teve o apoio do director da prisão e do Ministério da Justiça que
disponibilizaram meios para que a experiência pudesse ser realizada (alimentos, cozinha
e outros recursos necessários). Este projecto procurava demonstrar que através da
alimentação era possível alterar padrões de comportamento no quotidiano. Para
concretizar esta experiência foram dadas aulas sobre alimentação e filosofia oriental aos
reclusos e foi disponibilizada uma cozinha para que estes aprendessem a cozinhar e
modificassem a sua alimentação. O resultado obtido parece ter sido positivo, afirmando-
se que estes reclusos ficaram menos agressivos e deprimidos, tendo refeito as suas vidas
após a saída da prisão sem grandes dificuldades.
Outros aspectos, que não apenas a comida, podem ter pesado para que tal
sucesso ocorresse, mas a notícia correu mundo e José Joaquim (o Al Capone português)
passou a ser conhecido como o criminoso que podia ser tratado com a macrobiótica. Se
ele podia muitos outros também o poderiam ser e, assim, este caso terá inspirado um
projecto levado a cabo num centro para delinquentes juvenis no estado americano de
Virgínia, onde, com a adopção de uma alimentação macrobiótica, com eliminação do
consumo de açúcar, redução da proteína animal e de lacticínios se terá conseguido uma
diminuição dos comportamentos anti-sociais e das acções disciplinares 99.A experiência
do Linhó viria ainda a dar lugar a acontecimentos inesperados e a ser “acarinhada” pelos
Kushi. Um dos reclusos, «Tó-Zé», iria estudar macrobiótica para o Instituto Kushi, em
Boston e ensinaria macrobiótica em New Bedford, lugar onde se instalara uma
significativa comunidade de língua portuguesa, antes de regressar a Portugal100.
A par destas experiências muitos iam fazendo o seu caminho na macrobiótica, com mais
ou menos sucesso, mais ou menos perseverança, mais ou menos rigidez, é ainda um dos
membros da Unimave quem relata:

O Jaime [seguidor da macrobiótica] era enfermeiro, tinha um centro de


enfermagem e um lar de idosos em Lisboa. Um dia chegou ao centro de

99
Este estudo realizado na América surge relatado por Clara Soares no artigo «Diz-me o que comes»
Máxima: http://sub.maxima.xl.pt/0604/soc/100.shtml [acesso em 22-12-11]
100
Ver Kushi Institute Newsletter January 2009 http://www.macrobiotic-way.com/tag/study/ [ acesso em
22-12-11]

189
«À Mesa com o Universo»

enfermagem e disse «já não dou mais injecções». Toda a gente ficou pasmada a
olhar para ele, mas não deu mais injecções mesmo. Um dia cheguei ao lar para
me ir encontrar com ele, estava lá uma senhora com alguma idade que andava
de um lado para o outro e que dizia que estava com fome. O Jaime virou-se para
ela e disse-lhe «A senhora não come mais nada! OUVIU! Tem que esperar para
voltar a comer». Depois dizia «Tenho de a tratar assim porque senão vai-se
embora». Um dia chegou a casa (vivia com a mulher e já tinha filhos na
universidade), arrancou o esquentador e tirou a televisão de casa. Tinham todos
que tomar banho de água fria! (Risos) Vendeu o centro de enfermagem, o lar e
também quis vender a casa, mas a mulher opôs-se!
Conheci outro que a praticar macrobiótica foi encontrado morto em casa,
enforcado. Outro foi viver para Viseu e traz a família oprimida.Muitas pessoas
que conheci dos anos 70 e que passaram pela macrobiótica estão agora com
problemas graves de saúde.

Este relato é sintomático das repercussões profissionais e familiares que a


macrobiótica poderia ter. É comum nas sessões de formação falar-se da rigidez na
macrobiótica nos anos 1970 e 1980. Por outro lado, é destacada a ideia de que a
macrobiótica, afinal, não é a solução para todas as doenças e de que alguns evitamentos
e regimes que estes praticantes se auto-impunham nem sempre davam bons resultados.

Se os anos 80 e 90 foram de crise para a macrobiótica, o mesmo não podemos


dizer da actualidade. Do ponto de vista institucional, a macrobiótica é hoje dinamizada
sobretudo por Francisco Varatojo e Eugénia Varatojo e pelo seu projecto que é o
Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP). A acção do IMP é hoje incontornável para
compreender a macrobiótica em Portugal. Localizado em pleno coração da cidade de
Lisboa, na Baixa-Chiado - Rua Anchieta, constitui o principal centro de divulgação e
aprendizagem da macrobiótica, lugar para onde muitos afluem, mesmo
estrangeiros.101Classificando-se a si próprio como “um centro de referência e uma das
instituições mais conceituadas a nível internacional, no âmbito da Macrobiótica e saúde
natural”102, tem hoje um modelo empresarial de organização, com um tipo de ofertas
semelhante às do Instituto Kushi, agora a funcionar em Becket – Massachussets
(Berkshire Moutains). O IMP tem, de resto, um protocolo com o Instituto Kushi, que

101
Uma belga frequentou comigo o primeiro ano do curso de macrobiótica Michio Kushi, porque tinha
boas referências do instituto.
102
Instituto Macrobiótico de Portugal: http://www.e-macrobiotica.com/imp/historia/cf. http://www.e-
macrobiotica.com/centro.php [Acesso em 20-12-11].

190
A Macrobiótica em Portugal

surge, portanto, como modelo a seguir. Entre os “produtos” oferecidos pelo IMP
contam-se os cursos de alimentação e culinária macrobiótica, os cursos curriculares
Michio Kushi, os cursos de shiatsu, de feng- shui, aulas de yoga, tai-chi, chi-
kung,seminários, consultas, venda de alimentos, restauração, etc. Num outro ponto do
trabalho voltaremos a esta instituição.
A par do IMP podemos encontrar outros centros dedicados à divulgação e
promoção da macrobiótica como o Instituto Português do Princípio Unificador,
associado ao restaurante «Tao» em Lisboa. Aí se fazem encontros regulares para
discutir assuntos no âmbito da macrobiótica e se procuram difundir os ensinamentos de
Ohsawa e, de forma especial, os de Kikuchi (discípulo de Ohsawa que prosseguiria o
trabalho do mestre no Brasil). Enquanto o IMP surge particularmente associado à figura
de Kushi, o Instituto Português do Princípio Unificador, coordenado por Rui Rato
evidencia uma maior ligação a Kikuchi, visto como discípulo mais fiel de Ohsawa e
como não promovendo um ensino de forma académica como aquele que é empreendido
por Michio Kushi.

Os dados aqui apresentados permitem perceber o “movimento macrobiótico”


como expressão específica de algo mais vasto do que um desejo de transformação
social. Tendencialmente de características urbanas, associado a uma multiplicidade de
estruturas complexas, de dimensão e com objectivos variáveis, implicou, desde o
começo, gente muito diversa, entregue a uma mesma causa, facto que não impediu a
eclosão de diversos conflitos. O intenso debate ideológico que atravessou a segunda
metade dos anos 70, fez-se também sentir na Unimave, tendo, aparentemente,
contribuído para acentuar algumas das divergências que caracterizaram esta estrutura.
A importância de uma abordagem de tipo diacrónico, como aquela que aqui foi
ensaiada, permite perceber estas dinâmicas no interior do movimento, bem como
transformações significativas no enquadramento social da macrobiótica. A forma de
gestão dos projectos associados a esta actividade, por exemplo, parece ter sofrido
alterações relevantes, concretamente com a passagem de projectos de cariz mais
colectivo para projectos fortemente individualizados. Nesta transformação parece poder
ver-se uma maior preocupação com a sobrevivência e uma maior orientação para a

191
«À Mesa com o Universo»

sustentabilidade do projecto, de tal forma que têm vindo a permitir a cada vez mais
gente sobreviver profissionalmente em torno da macrobiótica.
Um outro aspecto importante que se depreende dos dados apresentados é o
carácter internacional da macrobiótica. As redes da macrobiótica são internacionais e
proporcionam contactos intensos e constantes. É comum os principais representantes da
macrobiótica de diversos países conhecerem-se. Convidam-se uns aos outros para
seminários nos centros que dirigem e trocam experiências nesse âmbito. O forte sentido
de unidade que caracteriza esta prática está de acordo com este interconhecimento.
Tudo se passa como se uma corrente de ideias e princípios claros e reconhecidos ligasse
os praticantes, de tal forma que um partidário da macrobiótica em Portugal pode
alimentar-se de forma muito semelhante a um inglês ou americano adepto deste tipo de
alimentação. As receitas e as técnicas culinárias podem ser muito semelhantes, factor
para que contribui fortemente a existência de um conjunto de produtos e ingredientes de
referência.
A macrobiótica coloca a alimentação no centro da procura de uma vida saudável.
Para aqueles que aderem ao movimento, independentemente do grau de adesão, a
macrobiótica define um modelo de relação com o corpo e com o mundo. Em última
instância trata-se de uma questão de poder e de controlo, ou seja, de convicção nas
virtudes de um modo de vida que permite o equilíbrio do corpo e que, simultaneamente,
pelo menos a partir de um certo nível de adesão, permite também a leitura do corpo
alheio, desvendando sinais de saúde ou de doença e prescrevendo como terapia o
reencontro com a vida saudável que a macrobiótica acredita perseguir.

192
A Macrobiótica em Portugal

4.2 Retrato em Números: Para uma Sociografia da Macrobiótica

Muito embora não se encontrem disponíveis dados estatísticos relativos aos


seguidores da macrobiótica em Portugal, é possível avançar alguns números
relativamente aos que adoptaram o vegetarianismo. De acordo com dados do Centro
Vegetariano (Associação Ambiental para a Promoção do Vegetarianismo), estima-se
que existam em Portugal 30.000 vegetarianos.Este resultado foi obtido em 2007 por
uma empresa de estudos de mercado (Nielsen), contratada pelo Centro Vegetariano para
proceder a esse estudo. Foram feitas 2000 entrevistas a indivíduos entre 15 e 65 anos
numa amostra considerada representativa da população portuguesa, tendo-se chegado
àquele resultado com um intervalo de confiança de 95%. Na definição do critério
“vegetariano” foi considerado o facto de nunca se comer carne nem peixe como
condição para incluir os indivíduos nessa categoria. Um outro dado apontado nesse
estudo referia que 20% da população portuguesa consumia carne apenas
ocasionalmente, o que entendi constituir uma percentagem significativa e a que devia
dar alguma atenção103.
É possível que, à semelhança do que se verifica noutros países, o número de
vegetarianos, ou de indivíduos que têm outras opções alimentares, esteja a aumentar em
Portugal. Nos EUA, em 1985, o número de vegetarianos era de 6 milhões, tendo
passado a ser, em 1992, de 12,5 milhões (Contreras e Gracia, 2005:181). No Reino
Unido, de acordo com Fiddes (1991), de 1984 para 1990, o número de vegetarianos terá
aumentado em 76% (cf. García, 2002:251). É de crer que o vegetarianismo tenha uma
maior expressividade que a macrobiótica, atendendo à anterioridade desta prática em
relação à macrobiótica, e atendendo também ao facto de se encontrar mais divulgada.
Ainda que a macrobiótica e o vegetarianismo constituam opções diversas, é possível
encontrar, entre os que seguem a macrobiótica, indivíduos que não consomem nem
carne nem peixe e outros que não consomem qualquer produto de origem animal,
podendo, neste caso, e em simultâneo, ser identificados como vegan.
A percepção mais imediata, relativamente à adopção da macrobiótica, é a de que
se trata de um fenómeno marginal, dado o frequente desconhecimento que as pessoas
têm acerca deste fenómeno. Convém, no entanto, destacar alguns aspectos que me

103
Pode ser encontrada referência a este estudo em: http://www.centrovegetariano.org/Article-451-
Portugal%253A%2B30%2B000%2BVegetarianos.htm [Acesso em 20-12-11].

193
«À Mesa com o Universo»

parecem indiciar um crescente interesse por esta prática, constatação que decorre da
investigação efectuada para este trabalho. Em Braga, nos últimos sete anos, surgiram
dois restaurantes votados à alimentação macrobiótica e à venda de produtos
habitualmente consumidos no interior da prática macrobiótica - o «Centro Macrobiótico
Semente» e o «Alfacinha» - o que faz supor um aumento dos consumos nesta área.
Neste mesmo período, foram surgindo restaurantes a oferecer comida macrobiótica em
localidades próximas de Braga, como Guimarães, Barcelos e Famalicão. Lisboa, ainda
nos anos 1980, foi identificada por Kotzsch (1985) como uma das cidades europeias
com mais oferta de restaurantes macrobióticos. Actualmente, podemos encontrar
restaurantes como o «Espiral», «Tao», «Yin Yang», «Colmeia», «Prazeres Ecológicos»,
«Oriente-Chiado», «Cantina do IMP», «Cantina da Universidade», etc. São espaços
onde pode ser servida uma refeição macrobiótica, ou de inspiração macrobiótica, se se
quiser ser rigoroso.
Face à escassez de dados sobre a adopção da macrobiótica, os elementos que
apresento seguidamente ainda que não permitam uma caracterização rigorosa da
sociedade portuguesa relativamente a esta prática - dado não ter sido adoptada uma
estratégia e um modelo que permitisse a representatividade - tornam possível, pelo
menos, traçar um quadro sociográfico relativo aos alunos que frequentaram os cursos do
Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), na área da macrobiótica, em três anos lectivos
consecutivos: 2005-06; 2006-07 e 2007-2008. É certo que o interesse pela macrobiótica
nem sempre se manifesta na aproximação e interacção com o IMP, mas uma boa parte
da actividade em torno da macrobiótica existente em Portugal situa-se neste instituto, o
que justifica a relevância destes dados. A possibilidade de aceder ao arquivo, com o
registo das fichas de inscrição dos alunos, tornou possível uma informação rigorosa ao
universo de alunos inscritos, possibilitando uma recolha mais sistematizada de dados. O
facto de na ficha de inscrição figurarem questões relativas à idade, à formação e
profissão, bem como questões sobre o interesse pela área da macrobiótica, referência a
doenças existentes, e à utilização de medicamentos, etc., permitiu apresentar um
conjunto de dados que ajudam a melhor definir o conjunto de pessoas que frequenta os
cursos do IMP. Talvez até ajudem a compreender por que motivo o recurso a “estudos
científicos” sobre alimentação e saúde sejam tão recorrentes nas sessões de formação. É
que, antecipo desde já este dado, tendo a maior parte dos participantes uma escolaridade
acima da média, é bem provável que sejam mais facilmente persuadidos com
argumentos afirmados como tendo uma base científica. O facto de haver, por parte de

194
A Macrobiótica em Portugal

alguns formadores, uma preocupação em demonstrar uma boa parte do que divulgam
através do recurso a este tipo de dados, sugere que, pelo menos do ponto de vista
retórico, também lhes atribuem importância.
O IMP organiza-se em torno de um conjunto de actividades que é comum
encontrar junto dos centros de promoção e divulgação da macrobiótica. Pode mesmo
dizer-se que a tipologia desta actividade podia já ser encontrada, em boa parte, nos
centros dirigidos por Ohsawa, no Japão, e, mais tarde, nos que surgiram na Europa e nos
EUA. A formação dada pelos Kushi, nos EUA, constituiu, sem dúvida, uma forte
influência no modo como o IMP se veio a organizar. É de referir, aliás, que o IMP
começou por se designar Instituto Kushi, tendo sido, inicialmente (1984), uma das
delegações do Instituto Kushi de Boston. Se olharmos para a página na internet do IMP
e para a do Kushi Institute nos EUA, encontramos grandes afinidades no tipo de
programas/palestras/conferências/actividades 104.
O IMP, de acordo com a sua página de apresentação na internet, veio sobretudo
colmatar uma lacuna em termos formativos que existia em Portugal na área da
macrobiótica. Assentando a sua actividade formativa sobretudo em cursos anuais (Curso
Curricular de Macrobiótica, Curso Anual de Culinária Macrobiótica, Curso de Feng-
Shui, Curso de Shiatsu e, mais recentemente, em parceria com a Fundación para la
Salud Geoambiental (Madrid), o Curso de Saúde Geoambiental), proporciona
igualmente cursos breves (sobretudo cursos de culinária, em módulos ou intensivos);
seminários, workshops e palestras. Esta instituição procura ainda complementar a sua
actividade com consultas de orientação alimentar e de estilo de vida, de alimentação
para bebés e crianças, e outras, em áreas como o shiatsu, acupunctura, feng shui, etc. A
confecção de refeições, venda de produtos, serviços de culinária ao domicílio,
organização de programas residenciais e campos de verão são ainda outras áreas de
actuação.
Uma situação comum no IMP é os alunos frequentarem um curso e,
posteriormente, ou até em simultâneo, inscreverem-se num outro curso proposto, como
se se tratasse, efectivamente, de uma formação complementar. Na verdade, como já tive
oportunidade de referir, há uma grande afinidade – ou pelo menos um discurso de
afinidade - entre os diferentes tipos de formação que são propostos. Para proceder à
caracterização dos alunos do IMP na área da macrobiótica, centrei-me sobretudo na

104
IMP: http://www.e-macrobiotica.com/imp/ [Acesso 18-12-2011].
Kushi Institute: http://www.kushiinstitute.org/ [Acesso 18-12-2011].

195
«À Mesa com o Universo»

frequência do Curso Curricular de Macrobiótica e na frequência do Curso Anual de


Culinária Macrobiótica, dado que eram as formações mais directamente ligadas à
macrobiótica e porque correspondiam, também, a uma formação mais alongada no
tempo. Uma formação adquirida num prazo longo proporcionava mais tempo para que
novas aprendizagens fossem integradas e para que as dificuldades sentidas pudessem ser
trazidas para a sala de aula. Este aspecto pode parecer irrelevante para a caracterização a
que procederei, mas remete para pessoas que foram integrando a macrobiótica nas suas
aprendizagens no decurso de um prazo mais longo e que, por isso, não têm, geralmente,
um encontro meramente pontual e transitório com esta prática. Não pretendo com isto
dizer que as formações mais breves correspondam a abordagens superficiais da
macrobiótica. O grau de envolvimento depende muito do empenho de cada participante,
acontecendo até que aqueles que fazem formações mais breves se inscrevem depois
noutras de duração mais longa. De qualquer forma, pelas razões que evoquei e porque
tinha que fazer opções relativamente à organização dos dados, acabei por privilegiar os
cursos que referi105.
O IMP é um importante ponto de encontro e de discussão, cruzam-se ali pessoas
com muitas afinidades no que diz respeito a questões como as orientações alimentares,
gosto por formas alternativas de tratamento ou atracção por filosofias e formas de
religiosidade de inspiração oriental. À hora de almoço é possível encontrar pessoas que
se conhecem de há longa data e que regularmente fazem ali as suas refeições. Ouvi-las,
nesse contexto, representa já aprender alguma coisa sobre macrobiótica. Por vezes é
possível encontrar algumas delas nas palestras mensais que aí são realizadas,
constituindo esse momento, uma ocasião para se encontrarem e trocarem impressões.
Todavia, como atrás referi (ver capítulo 2) perspectivar o instituto como comunidade
imaginada (Teixeira, 2006) parece-me uma interpretação inadequada do conceito de
comunidade imaginada. A população do instituto, com excepção de alguns que, por
razões de conveniência, vêm ali fazer regularmente as suas refeições e assistir a algumas
palestras, é muito flutuante. Alguns dos alunos têm relutância em classificar-se como
«macrobióticos», vivem longe do instituto e têm um contacto com a instituição
meramente pontual. Ainda que aí possam desenvolver relações de amizade, não se
referem ao instituto através de vínculos particulares.

105
Esses cursos encontravam-se organizados em sessões de um fim-de-semana por mês, das 10h às 18h,
entre Outubro e Julho, com preços que em 2005-06 e 2006-07 eram de 1200 € e que em 2007-08 se
situavam nos 1400 €.

196
A Macrobiótica em Portugal

No levantamento que fiz de dados prestei particular atenção às inscrições no


primeiro ano do curso curricular de macrobiótica e no curso anual de culinária. O facto
de o curso curricular de macrobiótica se encontrar organizado em três anos, fazia com
que os registos relativos ao segundo e terceiro anos do mesmo curso se repetissem, dado
que muitos dos alunos que frequentavam esses anos tinham o seu registo desde o
primeiro ano, situação que me levou a optar por só considerar os primeiros anos desse
curso. No total foram 181 os indivíduos considerados, 115 no Curso Curricular de
Macrobiótica e 66 no Curso de Culinária Macrobiótica. À apresentação dos dados
relativos a estes cursos, procurarei adicionar elementos obtidos a partir da minha
experiência enquanto aluna que acompanhou um dos cursos curriculares de
macrobiótica nos seus três níveis, entre 2005 e 2008.

Quadro 4 - Distribuição dos participantes pelos cursos

2005-06 2006-07 2007-08


Cursos Curriculares de 34 40 41 115
Macrobiótica Nível I
Curso Anual de 19 21 26 66
Culinária
Macrobiótica
53 61 67 181

Em 2005-06 encontravam-se inscritos 34 alunos no curso curricular de


macrobiótica e 19 no curso de culinária; em 2006-07, 40 no curso curricular e 21 no de
culinária e em 2007-08, 41 no curso curricular e 26 no de culinária. Como pode
constatar-se, o número de alunos inscritos foi aumentando no decurso destes três anos.
Nestes cursos, algumas das sessões, de carácter mais teórico e introdutório, eram
dirigidas ao conjunto de alunos, havendo depois aulas separadas de acordo com o curso
frequentado. Era comum, durante o período de formação, os alunos de diferentes cursos
encontrarem-se no instituto e aí fazerem refeições em conjunto, o que constituía uma
oportunidade para se conhecerem melhor e trocar experiências, quer com a prática da
macrobiótica, quer a outros níveis.

197
«À Mesa com o Universo»

Vejamos alguns aspectos relativos à distribuição por sexo de ambos os cursos.


Optei por não apresentar de forma separada os dados relativos a cada curso para que
fosse mais fácil ter uma visão de conjunto e por não se observarem diferenças
significativas que fossem pertinentes para o desenvolvimento deste trabalho. Nos outros
aspectos analisados, procederei do mesmo modo.

Quadro 5 - Distribuição segundo o sexo dos participantes

Masculino Feminino Total


37 – 20% 144 – 80% 181

Como é bem visível, a esmagadora maioria (80%) dos interessados nestes cursos
são mulheres. É um dado relevante, já que em estudo anterior sobre os frequentadores
do IMP (Teixeira, 2006), não se detectava uma grande disparidade entre os dois sexos.
O desequilíbrio observado é consistente em qualquer dos três anos observados,
parecendo traduzir uma tendência estrutural. Que motivos levarão as mulheres a
interessar-se mais por estes cursos do que os homens? Uma maior atenção a aspectos
relacionados com o cuidado do corpo, com a saúde, bem como o facto de habitualmente
serem elas as responsáveis pela preparação das refeições pode ajudar a explicar esta
situação. O facto de as mulheres serem geralmente educadas para serem cuidadoras
pode também contribuir para esclarecer esta situação. Uma das mulheres que conheci
nesse curso (reformada, 60 anos) tinha chegado à macrobiótica sobretudo por causa da
filha que tinha uma doença neuromuscular grave (miastenia gravis) e que estava a
reagir bem ao tratamento sugerido pelo consultor de macrobiótica. Aprender a cuidar de
si, ou dos outros, pode pois ser um bom motivo para aprofundar conhecimentos na área
da macrobiótica.

Quadro 6 - Distribuição segundo a idade dos participantes

Idades 17-25 26-30 31-35 36-40 41-45 46-50 51-60 ≥ 61 Total


28 30 40 22 25 14 10 7 176
16% 17% 23% 13% 14% 8% 6% 4%

198
A Macrobiótica em Portugal

Cinco alunos não responderam a esta questão, pelo que só foram consideradas
176 respostas. Nos quadros seguintes, quando o número de respostas consideradas não
corresponder a 181, isso significa que não houve resposta às questões em apreço por
parte de alguns alunos, ou as mesmas não foram consideradas válidas, devendo, então,
ser apenas considerado o valor apresentado.
Se atendermos à faixa etária dos alunos, constataremos que é entre os 17 e os 45
anos que a maior parte se situa, sendo a faixa dos 31 aos 35 a mais frequentada, um
período que pode corresponder a uma fase de reequacionamento relativamente a opções
de vida. Verifica-se, ainda assim, alguma dispersão em termos etários, o que faz com
que as aulas sejam espaços onde se cruzam diferentes gerações e diferentes
experiências. Nos casos das pessoas com mais idade, é frequente existirem problemas
de saúde e uma maior preocupação com questões neste âmbito. Pode-se chegar jovem à
macrobiótica, mas esse encontro pode também ocorrer já depois dos 60 anos. Do
mesmo modo, na motivação para a frequência de um curso de macrobiótica, podem
pesar mais razões de relacionamento social e ocupação do tempo do que razões que
remetem estritamente para a proposta macrobiótica.

Quadro 7 - Distribuição segundo o estado civil dos participantes

Solteiro Casado Divorciado União Separado Viúvo Total


de facto
90 55 27 4 1 -- 177
51% 31% 15% 2% 0,6%

Em termos de estado civil dos participantes, os resultados apontam para um


maior número de pessoas que se encontram solteiras ou divorciadas (117), ou seja, 66%
dos alunos. É possível que alguns, vivendo em união de facto, tivessem respondido que
eram solteiros, dado que apenas eram interrogados relativamente ao estado civil. Em
todo o caso, julgo que tal não terá influenciado decisivamente os resultados. Contudo,
convém notar que para alguns indivíduos que viviam sozinhos estes cursos podiam
intensificar as suas relações sociais, conhecer mais pessoas e fazer amizades a partir de
pontos de interesse convergentes.

199
«À Mesa com o Universo»

Quadro 8 - Distribuição segundo a naturalidade dos participantes

Açores Alentejo Algarve Centro Lisboa Madeira Norte Outro


país
2 2 6 25 85 4 19 23 163
1% 1% 4% 15% 52% 2% 12% 14%

Este quadro segue a nomenclatura de unidades territoriais para fins estatísticos


(NUTS II), representando, por conseguinte, uma divisão do país de nível intermédio. Há
aqui a destacar o número de indivíduos que nasceram fora do país. É certo que alguns
deles dizem ser naturais de Angola e Moçambique, o que, atendendo a um passado
recente de retorno a Portugal de um número significativo de portugueses que residiam
nas antigas colónias, é relativamente comum. Ainda assim, analisando os dados de
forma mais atenta, constata-se que alguns desses alunos são naturais de países como a
Bélgica, Espanha, Hungria…e que alguns até se deslocaram dos seus países para vir
fazer em Portugal uma formação na área da macrobiótica, o que indicia reconhecimento
do IMP enquanto entidade formadora. Uma das minhas colegas de curso, no primeiro
nível, era belga, tinha feito formação na área da tradução e, então, perto dos 30 anos,
tinha decidido vir frequentar o IMP por lhe reconhecer qualidade ao nível da formação.
No terceiro nível do curso que frequentei, em 2007-08, cinco dos dezassete
alunos eram espanhóis, deslocando-se, quatro deles, mensalmente, de Espanha para
Portugal, expressamente para frequentarem o curso. Vinham de lugares como
Barcelona, Madrid e Lekunberri (Navarra) para obter esta formação, e referiam
claramente que não encontravam em Espanha uma formação de qualidade idêntica.
Alguns já tinham iniciado a formação naquele país e, por isso, puderam ser integrados
no III nível, aspirando a complementar a formação obtida com a frequência do curso
proporcionado pelo IMP. No quadro que se segue, a informação relativa à residência
noutro país apenas surge associada a um indivíduo, mas este quadro reporta-se ao
primeiro ano de formação.

200
A Macrobiótica em Portugal

Quadro 9 - Distribuição segundo o local de residência dos participantes

Açores Alentejo Algarve Centro Lisboa Madeira Norte Outro


país
- - 7 21 124 2 22 1 177
4% 12% 70% 1% 12% 1%

Um dos dados mais salientes neste quadro é o número de alunos (124) que reside
em Lisboa (arredores incluídos), facto compreensível dado o funcionamento do IMP em
Lisboa. Se considerarmos, separadamente, cada um dos cursos em análise, verifica-se
que no caso do curso curricular de macrobiótica há mais indivíduos que vêm de outras
regiões do que no caso do Curso de culinária macrobiótica. O interesse por uma
aprendizagem mais aprofundada, de que não podem dispor noutros contextos, pode ser
um dos motivos. Eu própria, bem como alguns dos meus colegas, tivemos oportunidade
de fazer um curso de culinária macrobiótica em Braga, não tendo depois, nesta cidade,
possibilidade de continuar a aprofundar conhecimentos nesta área. O quadro 6 permite
ainda perceber que, fora de Lisboa, é sobretudo a região centro e a região norte que
contribuem com o maior número de alunos. Um certo efeito de “contágio” pode ser
observado relativamente à decisão de frequentar estes cursos. O facto de uma pessoa
decidir frequentar o curso pode constituir incentivo para que outra sua conhecida, o
frequente também. Era comum aproveitar a boleia de alguém conhecido e decidir-se, em
conjunto, sobre o alojamento em Lisboa. A viagem em companhia fazia assim com que
essas viagens fossem menos penosas e onerosas, além de ser, também, uma
oportunidade para partilhar experiências. É de notar ainda, relativamente a este quadro,
a existência de uma pessoa que mensalmente se deslocava do Funchal para Lisboa para
fazer esta formação (professora, 45 anos). Pelo contacto que fui tendo ao longo destes
anos, esta formanda contribuiu de forma significativa para divulgar a macrobiótica na
Madeira. Como vemos, os trânsitos e os fluxos de informação que os acompanham, e
que tão bem tinham caracterizado Ohsawa e discípulos, continuam a verificar-se,
fazendo da macrobiótica um fenómeno transregional e mesmo transnacional.

201
«À Mesa com o Universo»

Quadro 10 - Distribuição segundo a escolaridade dos participantes

Inferior 1º 2º 3º Sec. Curso Mestr. Dout.


4ªclasse Ciclo Ciclo Ciclo Sup.

- - - 11 61 91 5 3 171
6% 36% 53% 3% 2%

Um outro dado relevante na caracterização dos alunos diz respeito ao grau de


escolaridade. A maior parte deles (99) tem formação concluída de nível superior, uma
percentagem de 58% dos inquiridos. Se tivermos em consideração que muitos dos que
foram incluídos na categoria «Ensino Secundário» (por não terem ainda concluído o
ensino superior) frequentaram ou frequentam o ensino superior sem o concluir, esse
dado assume ainda maior significado. A ideia de que os que adoptam a macrobiótica
tendem a ter níveis de escolaridade acima da média não parece, portanto, ser uma pré-
noção infundada, tal como em trabalho anterior se sugeriu (Teixeira, 2006). A
disposição para acreditar numa proposta como a macrobiótica, tão baseada em critérios
que a ciência não reconhece, não tem uma relação expectável com o nível de
escolaridade – pelo menos considerando que a uma maior formação deveria
corresponder uma maior vigilância relativamente a uma sustentação com base científica.
Todavia, o contacto com muitos destes inquiridos leva-me a acreditar que a sua
disponibilidade para a macrobiótica é favorecida pelo facto de o tipo de discurso que
lhes é apresentado não se afastar muito de esquemas de racionalidade e argumentação
que valorizam e se aproximam da narrativa científica. Uma construção discursiva em
que se deposita fé no indivíduo, se desenvolve uma crítica à ciência e a muitos dos actos
médicos que dela decorrem, se rejeita a industrialização da comida, materialismo das
sociedades actuais e o menosprezo pela natureza, tópicos que parecem seduzir muitos
dos que se encontram na macrobiótica, mesmo aqueles que provêem de formações de
nível superior. Vêem-se e referem-se a si mesmos como estando a aceder a uma
plataforma de conhecimento ou, usando conceitos émicos, a “criar uma consciência” de
que outros ainda estão distantes, como se o efeito de distinção, enunciado por Bourdieu
(1979), tivesse aqui significado. Observo, assim, na maior parte dos inquiridos uma
disponibilidade para reconhecer a importância da espiritualidade que a macrobiótica
procura veicular. Quando, a uma mensagem em que se quer acreditar, se juntam

202
A Macrobiótica em Portugal

argumentos de natureza científica, como muitos dos que são usados nos cursos de
formação, que parecem confirmar aquilo que se promove, todo o enunciado parece ficar
sólido e consistente, pronto a ser adoptado. Muito do efeito de adesão causado na
macrobiótica, tem assim a ver com a enunciação do discurso e com as lógicas
argumentativas que o sustentam, tal como Foucault (1990 [1971]) referia. Ou então, o
que é outra forma de convergir para um mesmo sentido interpretativo, com um poder
simbólico, tal como Bourdieu (1989) o apresentou, ou seja, uma capacidade de «fazer
crer» e «fazer ver».
Se atendermos à distribuição dos participantes por profissão (é seguida a
classificação portuguesa de profissões – CPP/2010 relativa aos grandes grupos
profissionais) 106, constataremos que elas parecem adequar-se aos níveis de escolaridade
detidos pelos alunos. No número de alunos considerado para apresentar esta distribuição
não foi possível atender ao curso de culinária de 2005-06, dado que na ficha de
inscrição desse ano não figurava nenhum pedido relativo à indicação da profissão, daí o
número de respostas consideradas válidas ser de 138.

106
Ver: Instituto Nacional de Estatística. 2010. Classificação Portuguesa das Profissões 2010. Lisboa:
INE.

203
«À Mesa com o Universo»

Quadro 11 - Distribuição segundo a profissão dos participantes

0. Profissões das Forças Armadas _


1. Representantes do poder legislativo e de órgãos executivos, 8 – 6%
dirigentes, directores e gestores executivos
2. Especialistas das Actividades Intelectuais e Científicas 64 – 46 %
3. Técnicos e Profissões de Nível Intermédio 16 – 12%
4. Pessoal Administrativo 10 –7%
5. Trabalhadores dos serviços pessoais, de protecção e segurança e 11– 8%
vendedores
6. Agricultores e trabalhadores qualificados da agricultura, da pesca e da _
floresta
7. Trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices 1 – 0,7%
8. Operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da montagem _
9. Trabalhadores não qualificados _
Desempregados 5 – 3,6%
Reformados 6 – 4,3%
Estudantes 12 – 8,7%
Outra situação 5 – 3,6%
138

Destaca-se neste quadro uma área profissional onde pode ser colocada a maior
parte dos alunos, a dos «Especialistas das Actividades Intelectuais e Científicas», o que
condiz com os níveis de escolaridade apresentados. Em todo o caso, convém dizer que
este grande grupo inclui profissões muito diversas, quer na área intelectual e científica
quer na área artística. Assim, é possível incluir aqui tanto bailarinos, actores e
enfermeiros, como professores e investigadores. Não procedo a uma apresentação
detalhada dos grupos e subgrupos associados aos grandes grupos identificados neste
quadro, dado que tal não me parece um exercício necessário para o desenvolvimento
deste trabalho, mas convém salientar que uma das profissões mais frequentadas neste
conjunto de participantes é a dos professores. Também surgem arquitectos, psicólogos,

204
A Macrobiótica em Portugal

economistas, investigadores, médicos, nutricionistas, cineastas, engenheiros, jornalistas,


advogados, actores e bailarinos, o que evidencia um conjunto significativo de alunos
recrutados em áreas criativas e com elevado nível de formação.
A área dos técnicos e profissões de nível intermédio é a segunda mais
representada. Entre os participantes existem alguns técnicos de saúde, como seja o
técnico de radiologia ou o técnico de cardiopneumografia, mas também terapeutas que
actuam na área das terapêuticas não convencionais, como o shiatsu e a ayurvédica.
Nestes casos, e tal como pude detectar através do contacto com alunos que se
encontravam nesta situação, frequentar um curso de macrobiótica surge como meio de
complementar a sua formação e de alargar o seu campo de acção, tornando possível, por
exemplo, trabalhar no aconselhamento alimentar na área da macrobiótica. Este facto
sugere que a formação em áreas diferenciadas não é vista como incompatível, mas como
podendo ser integrada e utilizada, tanto isoladamente como em complementaridade com
outras terapêuticas. Assim, é possível encontrar quem conjugue o reiki com a
macrobiótica, ou esta com a “massagem ayurvédica”.
Alguns dos participantes destes cursos pertencem também à área dos serviços
administrativos e comércio e outros actuam como técnicos de turismo. Surgem alguns
casos de cozinheiros que, nesta classificação, ficaram adstritos ao grande grupo dos
«Trabalhadores dos Serviços Pessoais, de Protecção e Segurança e Vendedores». No
caso destes participantes, constata-se a conciliação da profissão de cozinheiro com
formações de nível superior, como Tradução, Engenharia Florestal, Engenharia do
Ambiente ou Psicologia. Este aspecto indicia que acabaram por seguir uma trajectória
profissional muito distinta da que seria expectável, dada a formação académica.
Também neste caso, a macrobiótica e, especificamente, a cozinha macrobiótica, pode
surgir como possibilidade profissional ou como forma de complementar conhecimentos
em relação a uma área pela qual estes profissionais nutrem interesse. Há, também, entre
os participantes, alguns estudantes, o que sugere que a macrobiótica tem alguma
capacidade de seduzir os mais jovens. Pesará, nestes casos, a atracção por aspectos de
ordem filosófica e ambientalista, que se encontram implícitos na proposta macrobiótica.
Tal não significa que os outros participantes não manifestem este tipo de interesse, mas
neste grupo essas preocupações são bastante visíveis e afirmadas.
Pela distribuição das profissões apresentadas no quadro é possível constatar que
as mesmas se situam sobretudo na área dos serviços. A maior parte dos profissionais
reside e exerce a sua profissão em contexto urbano e, muito embora alguns demonstrem

205
«À Mesa com o Universo»

desejo de abandonar a cidade e ir viver para lugares mais tranquilos e menos


humanamente transformados, muitos acabam por não o fazer. A ideia do “retorno à
natureza” permanece assim como recurso que se guarda e que se espera um dia
concretizar.
O confronto dos resultados obtidos a partir desta análise com os dados relativos
aos consumidores «bio» apresentados por Mónica Truninger (2010), de acordo com
inquérito nacional realizado pelo «Observa» em 2000, permite encontrar alguns traços
comuns entre os indivíduos que participam nos cursos de formação promovidos pelo
IMP e os consumidores «bio». 107 Diz-nos Truninger (2010:123)

(…) o grupo de compradores de produtos biológicos é caracterizado por


indivíduos com elevado grau de instrução; por jovens e pessoas de meia-idade;
por trabalhadores activos e estudantes; com profissões especializadas (que
incluem especialmente profissionais e técnicos, e profissões associadas); por
pessoas pertencentes à classe média-alta; e por residentes em zonas urbanas. É
também de destacar que pouco menos de metade deste grupo “nunca viveu em
casal”; a maioria tem nacionalidade portuguesa, no entanto, existe uma
percentagem significativa de estrangeiros, e mais de metade não tem filiação
religiosa (são agnósticos ou ateus). A variável género não oferece uma diferença
significativa como já tem vindo a ser assinalado por alguns estudos realizados
sobre a matéria.

A extensão da análise aos membros da «Biocoop» (cooperativa de consumidores


de produtos de origem biológica) permitiria ainda constatar que mais de metade dos
membros se encontrava incluída na categoria dos «Especialistas das Profissões
Intelectuais e Científicas», encontrando-se muitos profissionais que trabalhavam nas
áreas da educação, media e artes, ciências sociais e humanas, arquitectura e engenharia
e que existia uma sobrerepresentação nesta cooperativa de categorias profissionais como
«Escritores, Artistas e Executantes» (15 vezes mais na «Biocoop» face à população de
Lisboa). Constata ainda Truninger que os membros desta cooperativa «vivem sobretudo
numa área urbana e cosmopolita; existe uma proporção significativa de pessoas de
nacionalidade estrangeira (especialmente europeia) e uma distribuição quase paritária
entre homens e mulheres; onde os grupos etários dominantes correspondem aos dos
profissionais activos (entre os 25 e os 49 anos)».

107
Segundo Inquérito Nacional às Representações e Práticas Ambientais dos Portugueses, realizado em
2000 pelo OBSERVA - Observatório de Ambiente e Sociedade. O Observa é um programa de
investigação permanente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, coordenado por
Luísa Schmidt.

206
A Macrobiótica em Portugal

O trabalho de terreno por mim efectuado, a partir do IMP e em Braga, permite-


me afirmar que muitos dos que podem ser classificados como consumidores «bio»
seguem também a alimentação macrobiótica. De resto, relativamente aos indivíduos que
seguem os cursos de formação no IMP, verifica-se, de igual modo, uma escolaridade
acima da média e o exercício de profissões no âmbito da categoria «Especialistas das
Actividades Intelectuais e Científicas», observando-se também diversos casos de
indivíduos com profissões ligadas às artes, bem como de estrangeiros. Também estes
indivíduos vivem sobretudo em áreas urbanas. Relativamente à dimensão «ter vivido
em casal», esta dimensão não pôde ser analisada devidamente por mim, tal como referi,
dado que nas fichas apenas surgia referência ao «estado civil», facto que pode ter levado
os indivíduos a responder de acordo com o tipo de situação que surgia no Bilhete de
Identidade. Não foi possível, por conseguinte, avaliar objectivamente a dimensão que
tem a ver com a conjugalidade. Os elementos recolhidos revelaram, contudo, um maior
número de solteiros, divorciados e separados (118 em 177). A única dimensão em que
há uma clara divergência tem a ver com o género. Nos cursos do IMP encontramos
sobretudo mulheres. São sobretudo elas que preparam as refeições, mas os
companheiros participam na tarefa de «fazer as compras», daqui a possibilidade de os
homens terem uma maior visibilidade entre os membros da «Biocoop» por relação aos
alunos do IMP. Relativamente à religião seguida, os contactos por mim efectuados
permitiram-me perceber que muitos não se identificavam com o catolicismo, mas
também não se declaravam como ateus, antes sugeriam uma identificação com uma
religiosidade de carácter sincrético, onde diferentes elementos do cristianismo, budismo
e taoismo podiam ser encontrados. Muito embora este aspecto não tenha sido
aprofundado por mim, o que o contacto no terreno me permitiu depreender foi que o
tema da espiritualidade, que não é um exclusivo da religão, se encontra muito presente.
De resto, se prestarmos atenção à concepção do universo na macrobiótica (ver capítulo
3) constataremos a importância dessa temática.

Uma das questões colocada na ficha de inscrição, que tem aqui servido de base
para a apresentação destes elementos, dizia respeito a um aspecto especialmente
pertinente para analisar a adopção da macrobiótica, pois questionava os alunos sobre
problemas de saúde. Sendo veiculada por alguns dos formadores a ideia de que a

207
«À Mesa com o Universo»

adopção da macrobiótica no passado se devia sobretudo à existência deste tipo de


problemas, a resposta a esta questão afigurava-se útil e esclarecedora. Uma primeira
constatação é que muitos dos inquiridos não responderam a esta questão. Daqueles que
responderam, 56 referiram que não tinham problemas de saúde e 36 reconheceram que
sim. A maior percentagem dos que responderam «não» sugere que a existência de
problemas de saúde não tem um peso determinante na decisão de frequentar estas
formações. A minha experiência enquanto aluna num desses cursos, permitiu-me
confrontar as minhas observações com o que se encontrava inscrito nessas fichas, tendo
constatado que muito embora algumas daquelas pessoas não sinalizassem problemas de
saúde na ficha de inscrição, tinham-nos tido anteriormente, e, em alguns casos, esses
problemas tinham sido solucionados ou atenuados através da macrobiótica. Em tais
situações, a frequência daquele curso pode ser vista como consequência do sucesso no
tratamento. Num dos casos, a resposta à questão sobre a toma de medicamentos era a
seguinte: «Não. Há cerca de um ano que evito esse tipo de tratamentos» (Técnica
Profissional de BAD, 26 anos). Tratava-se agora de aprender mais sobre uma forma de
tratamento que tinha dado bons resultados. A maior parte dos problemas declarados não
eram graves, e houve até um caso em que a adopção da macrobiótica aconteceu apenas
porque se seguia uma dieta vegetariana que não estava a produzir os efeitos pretendidos
do ponto de vista energético. Em todo o caso, e apesar de a estatística sugerir sérias
reservas a esta conclusão, os problemas de saúde parecem-me ser efectivamente
relevantes para analisar a adesão à macrobiótica.
É de salientar ainda que muito embora a maior parte dos participantes não
revelasse problemas de saúde, e que 105 referissem que não tomavam medicamentos,
aqueles que o faziam assinalavam, sobretudo, as seguintes doenças: alergias e asma;
doenças cardiovasculares, associadas frequentemente a diabetes; hipertensão e
colesterol. As doenças osteoarticulares (sobretudo problemas de coluna) foram também
referidas diversas vezes. Uma das participantes referia:

Não considero ter problemas específicos mas apenas os gerais e infelizmente tão
comuns da sociedade em que nos inserimos como stress, alergias e outros
potencialmente agravados por uma alimentação menos correcta da minha parte.
(32 anos, sem indicação da profissão).

208
A Macrobiótica em Portugal

Num outro caso, uma senhora respondia que não tomava medicamentos, muito
embora mencionasse alguns problemas de saúde: Um quisto na garganta, ouvidos (ouço
mal de um ouvido), tensão alta, colesterol elevado. (Técnica auxiliar de Serviço Social,
61 anos). A minha percepção relativamente a estas situações é a de que a adesão à
macrobiótica conduz as pessoas a evitarem medicamentos, ainda que em alguns casos
exista uma recomendação médica para que sejam tomados.
Com uma outra questão colocada na ficha procurava aferir-se de que forma se
manifestava o interesse pela macrobiótica. Na resposta a esta questão, os visados
responderam referindo os motivos que os levavam a interessar-se por esta prática.
Assim, de acordo com as respostas dadas, a esta pergunta aberta, foi possível identificar
o seguinte conjunto de significados, por ordem do mais para o menos referido: 1)
Desejo de melhorar os hábitos alimentares e de aprofundar o conhecimento sobre a
alimentação macrobiótica; 2) Interesse pelas filosofias e propostas terapêuticas orientais
bem como por tratamentos naturais; 3) Desenvolvimento pessoal; 4) Razões
profissionais; 5) Razões de saúde; 6) Interesse em mudar o modo de vida. Houve ainda
outros aspectos que foram apontados como razões fortes como a questão da
espiritualidade e a questão ambientalista, mas o número de indivíduos que se
pronunciou sobre estes aspectos foi bem mais reduzido. É de notar que muito embora
tenha procurado aqui individualizar as categorias mencionadas, umas nem sempre
excluem as outras, sendo possível encontrar, numa única resposta, elementos que
podem conduzir a mais de uma categoria. Assim, uma das alunas respondeu:

Tento aplicar a macrobiótica no meu dia-a-dia. Na alimentação, na prática de


métodos de relaxamento e por conseguinte no meu estado de espírito e
abordagem da vida. Tenho grande vontade de aprender e contactar cada vez
mais esta filosofia. (Técnica de BAD, 26 anos).

Facilmente reencontramos aqui preocupações que vão de encontro à categoria 1


mas também à 2, 3 e até à 5. Noutros casos podemos observar ainda a facilidade como
são integrados diferentes princípios filosóficos:

Reconheço na Macrobiótica uma via equilibrada para o bem-estar integral do


ser humano. Como cristã não partilho alguns princípios da filosofia oriental

209
«À Mesa com o Universo»

mas aceito e vivo segundo alguns conceitos e práticas da sabedoria oriental


(Agente de viagens, 54 anos).

Ou ainda,

Tenho uma preocupação de bem-estar em geral, e é nesta base que o meu


interesse se manifesta, em especial, pela macrobiótica. No entanto gosto de ter
uma postura moderada em relação a “tudo” na vida. Nada de
fundamentalismos. Em termos práticos, não sigo os preceitos macrobióticos à
risca, no entanto, aboli as carnes do meu regime alimentar e o fumo de tabaco
dos meus hábitos (Secretária, 35 anos).

Neste caso, a identificação com uma das categorias é difícil, dado que o que
mais sobressai é a ideia de bem-estar geral. Talvez «Razões de saúde», seja a categoria
mais adequada, mas há na resposta alguma informação que a transcende.
Uma das respostas típicas dadas foi: Pretendo conhecer melhor a macrobiótica e
melhorar substancialmente a minha alimentação tendo conhecimento dos benefícios
que daí podem advir para o meu bem-estar (Enfermeira, 26 anos). Esta resposta dá
conta do desejo de aprofundar uma aprendizagem que se julga que possa vir a ter efeitos
benéficos, quer ao nível da saúde quer a outros níveis, tal como a noção de bem-estar
sugere. As razões de saúde são também evocadas a partir de respostas como: Desde há
um ano e meio que mudei a minha alimentação devido a um problema de saúde, sob
[nome do terapeuta] (economista, 36 anos) ou ainda Há um ano que mudei a
alimentação para a macrobiótica por indicação da minha terapeuta [nome]. Sinto-me
bem e queria aprofundar mais, para além da alimentação. (Professora, 44anos).
O desejo de fazer transformações no modo de vida aparece também explícito em
algumas das respostas, incluindo vários aspectos das outras categorias consideradas:

O meu interesse reside na necessidade que tenho de modificar o meu estilo de


vida, quer na alimentação, quer na saúde, quer na minha espiritualidade.
(Homem de 61 anos, não indica profissão)

Como vemos, a idade parece não constituir um obstáculo a que se procure


modificar o estilo de vida.

210
A Macrobiótica em Portugal

O interesse pela macrobiótica relaciona-se também frequentemente pela simpatia


por terapêuticas não convencionais, onde o tipo de abordagem é tido como mais natural:

O mundo da medicina oriental sempre me fascinou pela abordagem mais


natural (e menos química). A nutrição é outra área de grande interesse para
mim e como tal a macrobiótica apareceu na minha vida. (Assistente de
investigação, licenciada em Bioquímica, 24 anos)

Ou ainda:Tirei o curso de podo-reflexologia e tenho interesse pelas medicinas orientais.


(mulher, 32 anos, não indica a profissão). No caso seguinte é revelado ainda mais
claramente o interesse por algumas práticas orientais:

[Sou] praticante de taichi/chikung há cerca de 6 anos. Reiki essencial nível III.


Praticante de kyodo. Curso básico de Zen Shiatsu na união budista. (mulher, 36
anos, sem indicação de profissão)

Destacando-se ainda a atracção pela medicina oriental podemos encontrar a


seguinte resposta:

Interessa-me a abordagem da saúde feita pela medicina oriental (orientada


para a saúde e não para a doença, pesquisando as causas e não tratando
essencialmente os efeitos). Relativamente à macrobiótica encaro-a
essencialmente como um grande desafio a mim mesmo. (Técnico de radiologia,
24 anos).

A concepção de que a medicina oriental, e também a macrobiótica, estariam


mais orientadas para a saúde do que para a doença, seria frequentemente encontrada no
decorrer do curso, subjazendo a este tipo de discurso uma imagem negativa sobre a
medicina praticada no ocidente. Note-se que, neste caso, esta concepção é apresentada
por um técnico de saúde, o que sugere uma visão crítica relativamente ao conjunto de
procedimentos que observa na sua área profissional. Comentários semelhantes podem
ser observados noutros técnicos de saúde, sendo tal indiciador de algum desconforto no
modo como actuam na área da saúde.

211
«À Mesa com o Universo»

Sugerindo-se que a frequência do curso de macrobiótica pode também ser uma


forma de complementar uma formação encontramos respostas como esta:

A filosofia oriental tem percorrido os meus maiores interesses ao longo desta


vida. Fiz o 1º ano de shiatsu pela Eides – M. Mariposa; fiz o 1º ano e frequência
do 2º ano de medicina tradicional chinesa na ESMTC [Escola Superior de
Medicina Tradicional Chinesa]; e agora vou experimentar a
alimentação…demasiado importante no nosso dia-a-dia.(Publicitária, 44 anos)

Em alguns casos a orientação para o exercício de uma profissão parece estar já


bem definida:

Quero tirar todos os níveis, incluindo o nível 4 para que possa ser consultor,
ajudar as pessoas a terem uma vida mais saudável e harmoniosa.(Assistente de
cozinha, 21 anos)
«Sim. Quero abrir um restaurante macrobiótico.» (Jornalista, 33 anos)

Por estas respostas é possível detectar diferentes motivações para a decisão de


frequentar estes cursos. Em todo o caso, estas respostas situam-se num conjunto
definido de assuntos, sendo as categorias que enunciei as áreas onde essas motivações
podem ser observadas. Tal como referi, essas categorias, ainda que distintas, podem ser
evocadas em simultâneo pelo mesmo participante, que pode pretender, ao mesmo
tempo, melhorar a sua alimentação, encontrar maior equilíbrio físico e emocional,
transformar o seu modo de vida e até procurar uma nova profissão. Tudo isto através de
uma área pela qual sente atracção, as “filosofias e terapias orientais” que lhe permitem
um “maior desenvolvimento da espiritualidade”.

212
A Macrobiótica em Portugal

4.3 - Ensino e Aprendizagem da Macrobiótica: Modos de Transmissão de


Conhecimentos

Uma estratégia fundamental para compreender de que forma os indivíduos


desenvolvem a sua aprendizagem da macrobiótica passa, inevitavelmente, por procurar
perceber de que modo o conhecimento relativo a esta proposta de orientação no mundoé
transmitido. Determo-nos nos contextos e formas específicas de divulgação de ideias,
“modos de ver” e “modos de fazer”, permite analisar, efectivamente, o tipo de
informação que é propagado, bem como o modo como é apresentado. A questão da
transmissão de conhecimentos é, na verdade, um aspecto medular para analisar a
permanência, mas também a dinâmica dos modos de conceptualizar o real, dado que é
por via dessa transmissão que se assegura que haja continuidade na aprendizagem dos
saberes associados a qualquer forma de entendimento do mundo 108. Também no caso
que aqui me ocupa, a aprendizagem da macrobiótica, o modo de transmissão de
conhecimentos, sinaliza continuidade e reprodução, mas também recriação e
transformação.
O tipo de conhecimento que é transmitido, bem como a utilização de certos
conceitos, deve ser relacionado com sistemas específicos de pensamento e contextos
particulares de formação. Com efeito, o valor de termos como por exemplo ki (chi), yin
e yang não é sempre exactamente o mesmo em todas as circunstâncias, e a acepção
destas noções é algo divergente consoante estejamos a falar de macrobiótica ou de
medicina tradicional chinesa. Cada um destes sistemas de referência fez a sua própria
interpretação dos conceitos referidos, o que pode gerar alguma ambiguidade, mas ao
mesmo tempo evidencia o dinamismo e singularidade de cada um deles. Elisabeth Hsu,
no seu livro The Transmission of Chinese Medicine(1999), chama precisamente a
atenção para a questão dos contextos de aprendizagem de matérias ligadas à medicina
tradicional chinesa, para frisar que a diferentes contextos e estilos de conhecimento
correspondem diferentes formas de aprendizagem109. De acordo com o estatuto que cada

108
Uso o termo saberes sobretudo nesse sentido que evoca pluralidade e menor formalização.
109
Na sua pesquisa pôde identificar três modos distintos de transmissão de conhecimentos: secreto,
pessoal e estandardizado. O modo secreto corresponderia a uma aprendizagem desenvolvida numa prática
privada, sob a orientação de um mestre de qigong (chi kung); o modo pessoal a uma prática colectiva,
mas fora das unidades públicas de trabalho, com um mentor de acumoxa e o modo estandardizado à
aprendizagem nos hospitais, clínicas e colégios. Cada uma destas formas de aprendizagem fê-la sentir-se,

213
«À Mesa com o Universo»

indivíduo tem no contexto em que se move, varia também o modo e o tipo de


informação que lhe é proporcionado. Na pesquisa efectuada, verifiquei também essa
diversidade e pude constatar que nos cursos e seminários certas temáticas eram
abordadas de modo diferente consoante se tratasse de um público mais especializado ou
iniciante. Este tipo de abordagem pode ser considerado comum e revelar bom senso por
parte de quem organiza as sessões, mas deixa também claro que é o contexto e o
conjunto de pessoas que influenciam a natureza do discurso que é apresentado e, através
dele, o padrão de conhecimentos transmitido.
No caso da macrobiótica, podemos identificar essencialmente três formas através
das quais se faz a transmissão de saberes: os livros; a informação veiculada no círculo
de amigos/conhecidos e aquela que é apresentada em cursos e palestras. A primeira
forma tem a ver com a literatura produzida em torno do tema e tem permitido que, de
forma relativamente autónoma, os indivíduos se possam iniciar nesta forma de
alimentação e de orientação. Para alguns dos praticantes que contactei, os textos da
macrobiótica foram efectivamente relevantes e marcaram um rumo relativamente a
novas opções e modos de perspectivar a vida. De forma independente, começaram a
procurar novos ingredientes e a fazer as suas experiências na cozinha. A colocação na
prática do que se lia nos livros terá levado a algum radicalismo e até a situações
extremas, sobretudo quando o livro guia pertencia a autores como Ohsawa, mas segui-lo
evidenciava também empenho profundo. Autores como Ohsawa e Kushi ou Rosa
Calado, para o caso português, foram efectivamente importantes no desenvolvimento de
uma prática ligada à macrobiótica.
Uma segunda forma de transmissão deste tipo de saberes é aquela que se faz entre
pares, no grupo de amigos/conhecidos e que implica interacção/partilha, dúvidas e
interrogações sobre modos de seleccionar alimentos e de os confeccionar. As afinidades
e a confluência em termos de perspectivação do mundo (simpatia pela macrobiótica,
mas também pela causa ecologista e aspiração a um mundo diferente, de maior
responsabilidade individual e social), tornam por vezes este processo de aprendizagem
numa ocasião para consolidar amizades e possibilitar uma visão mais integrada deste
tipo de práticas.

respectivamente, como discípula, aprendiz e estudante, em interacção, designadamente, com mestre,


mentor e professor.

214
A Macrobiótica em Portugal

Finalmente, uma terceira forma de transmissão de conhecimentos passa pela


organização de cursos/palestras/conferências/encontros com vista à formação nesta área.
É justamente nesta última forma de transmissão de conhecimentos, que podemos
classificar como mais formal, que focalizarei a minha atenção neste ponto do trabalho.
Sem dúvida que estas três modalidades de formação e transmissão de conhecimentos se
articulam e complementam, mas deve ser sublinhado que esta última, na medida em que
sugere mais consistência no desenvolvimento das aprendizagens, constitui um bom
ponto de partida para abordar esta questão de uma forma mais integrada. De facto, a
partir dos cursos, que aliam a prática à teoria, parece-me possível observar de que forma
os diferentes níveis se articulam e fecundam mutuamente.

Transmissão formal - Cursos, Livros, Palestras

Os elementos que apresentarei, de seguida, derivam de cursos e palestras que


frequentei e não correspondem, evidentemente, a uma amostra representativa dos cursos
que se fazem em Portugal. É muito provável que as orientações desses cursos sejam
diversas, ideia, de resto, defendida pelos agentes envolvidos. Não pretendo, por isso,
generalizar os dados e conclusões a que cheguei; mas apenas apresentar os resultados
das minhas observações, que, apesar das referidas ressalvas, julgo serem significativas
para a compreensão deste fenómeno. A convicção da sua relevância decorre, desde
logo, do facto de os cursos que frequentei terem sido promovidos pelo Instituto
Macrobiótico de Portugal (IMP), instituição que é um lugar de referência nesta matéria.
O seu grau de organização e o envolvimento com a “causa macrobiótica” constituem
aspectos queconferem a esta instituição, mais que a qualquer outra, legitimidade para
representar a macrobiótica no nosso país. Por outro lado, a capitalidade do instituto,
nesse sentido preciso que é o de centro a partir do qual se faz a promoção de um estilo
de vida e de alimentação e se divulgam também “novidades” “formas de fazer” e se
apresentam novos intérpretes da macrobiótica, fazem desta instituição um lugar
reconhecido pela generalidade dos praticantes.
Uma das minhas primeiras formas de contacto mais aprofundado com a
macrobiótica ocorreu já em 2001 e, ainda que na altura não estivesse claramente
definido que a minha temática de investigação futura iria incidir sobre esta matéria,
coloquei-me, desde o início, no papel de observadora. As notas que retirei, nessa

215
«À Mesa com o Universo»

ocasião, parecem-me ainda agora proveitosas para a análise da questão que me


proponho tratar aqui: o papel da transmissão de saberes efectuada de modo mais formal,
quer dizer organizada em cursos e promovida por instituições reconhecidas no meio.
Vale a pena, todavia, efectuar uma breve contextualização. Nesse anode 2001
tive conhecimento de um curso de macrobiótica que se iria realizar em Braga através de
folhetos de divulgação que foram deixados num ginásio que frequentava na altura,
provavelmente pelo professor de yoga. Como já tinha algum interesse pela temática da
alimentação, tal como referi anteriormente, e desejava até desenvolver investigação
nesta área, considerei que a proposta me interpelava e poderia mesmo vir a constituir
um campo de pesquisa convergente com os meus projectos académicos. Claro que já
tinha tido contactos com a macrobiótica, por exemplo na cantina universitária e numa
ou outra refeição pontual, mas nunca tinha tido interesse em passar além desse nível
elementar. Considerei, portanto, que esta era uma boa ocasião para explorar novos
campos. Por outro lado, a sedução relativamente à macrobiótica advinha de um certa
diferença e exotismo associados a esta prática alimentar, o que, enquanto antropóloga,
confesso, acabou também por contar.

Apresentação do Curso

O plano do curso que me foi entregue, e que viria a decorrer em Palmeira


(Braga), era promovido por uma ex-aluna do IMP e contava com o apoio de alguns
nomes relevantes na área da macrobiótica: Francisco Varatojo (director do IMP); Bob
Lloyd (na altura presidente da associação macrobiótica britânica); José Oliveira
(professor de yoga, tai-chi-chuan, terapeuta de shiatsu e orientador de alimentação
macrobiótica) e Sandra Herceg (croata a residir em Amesterdão, apresentada como uma
das “mais conceituadas e experientes cozinheiras macrobióticas europeias”). Como se
pode ver, o curso apresentava um certo grau de internacionalização e prometia contacto,
ainda que indirecto, com outros países e com outras práticas na área da macrobiótica. A
programação apresentada era a programação standard do nível 1 do curso de cozinha do
IMP e prenunciava, portanto, uma formação idêntica – de resto, os diplomas de
formação seriam passados pelo IMP. O curso organizava-se em 108h, divididas por
nove meses (um fim de semana por mês, das 10h às 18h), entre Outubro de 2001 e

216
A Macrobiótica em Portugal

Junho de 2002 e incluía aulas teóricas e práticas (três fins-de-semana com aulas teóricas
e outros seis com aulas práticas). O anúncio do curso fazia-se nestes termos:

A cozinha macrobiótica é uma arte única que não só satisfaz os sentidos mas tem
a capacidade de criar uma vida mais harmoniosa. Não é uma dieta rígida mas
sim uma abordagem flexível e de senso comum, que difere de acordo com o
clima, a idade, sexo, actividade, condição de saúde, estilo e objectivos de vida
[Brochura de divulgação do curso]

Os termos desta apresentação inicial procuravam desde logo criar a ideia de que
este tipo de cozinha se dirigia a qualquer um e podia, de alguma forma, trazer
transformações no modo de vida e torná-la mais aprazível. Por outro lado, procurava-se
desfazer a ideia da macrobiótica como dieta rígida, de forma a desmentir a imagem que,
de um modo geral, se foi criando deste tipo de alimentação. Como contraponto à rigidez
associada à macrobiótica, sublinhava-se a capacidade de dar resposta a diferentes
públicos e necessidades. A mensagem que ficava era, pois, a de uma proposta de
alimentação destinada a melhorar a qualidade de vida, que se dirigia a todos e que
procurava, ao mesmo tempo, ter em consideração especificidades e necessidades
individuais. Mais à frente, na mesma brochura, enunciavam-se algumas das
características da alimentação macrobiótica:

Baseada em princípios e tradições milenares, consiste em simples mas deliciosos


produtos tais como cereais integrais, vegetais, algas e leguminosas e seus
derivados. Como alimentos complementares inclui também as frutas em estação,
produtos animais opcionais (especialmente peixe), oleaginosas, sementes e uma
variedade de óleos, temperos e condimentos.

Também aqui a estratégia discursiva era idêntica: a ideia de uma proposta


alimentar muito restritiva, associada sobretudo ao arroz integral, era contrariada através
da sugestão de diversidade em termos alimentares. Apelava-se, por outro lado, ao
fascínio e sedução do exótico a que já aludi, mas também à credibilização pela História,
nomeadamente através da evocação dos “princípios e tradições milenares” de que
partiria a macrobiótica. A ideia de uma prática com raízes em tempos ancestrais surgia,
assim, como legado de incontornável valor.
Esta sugestão surge de forma recorrente e, se atentarmos no conteúdo dos
cursos, constataremos que o esforço para encontrar referências históricas para
amacrobiótica é indesmentível. Essas referências podem passar pela Escola Pitagórica e
pela referência à sua preocupação com a alimentação e defesa de um regime de

217
«À Mesa com o Universo»

alimentação vegetariano, pelo Código de Manu, na Índia, pelo Nei-Ching,na China, por
Hipócrates (a expressão que lhe é atribuída “faz do alimento o teu medicamento” é
constantemente evocada, bem como a dieta de cevada “que ele aconselhava numa
primeira fase a muitos dos doentes que o procuravam”) ou ainda pela Bíblia, sendo o
Livro de Daniel referido como exemplo da importância dos cereais na alimentação:
“Daniel após 10 dias a comer cereais é colocado na jaula dos leões e estes não o
comem”. A interpretação deste episódio, que fez dos cereais um elemento de
incontestável poder – neste caso poder de sobrevivência no mais imediato sentido da
palavra – é naturalmente discutível, todavia é curioso que numa proposta alimentar
como a macrobiótica, em que são tão fortes as referências sino-japonesas, se utilize o
texto bíblico, referência do mundo ocidental por excelência, para fundamentar uma
prática e atribuir valor a determinados consumos. Evidentemente que podemos ver nesta
utilização de referências tão distintas uma tentativa de divulgar uma proposta de
orientação no mundo que, por meros efeitos retóricos, se tenta ligar a um conjunto de
referências familiares aos potenciais candidatos ao curso – ou pelo menos nas quais
estes reconhecessem uma ligação à sua “cultura”.
Justificando a importância da aprendizagem proporcionada pela frequência do
curso referia-se ainda na mesma brochura:

A cozinha macrobiótica adquire cada vez mais sentido nas sociedades


contemporâneas contrabalançando os efeitos da poluição, da fast food, da junk
food e de uma vida sedentária. A crescente ocorrência de doenças degenerativas
e de múltiplos problemas de saúde causados por regimes alimentares agressivos,
pode, deste modo, ser combatida.

Neste último trecho são apontadas as razões fundamentais para aderir a este tipo
de cozinha: a degradação ambiental e os estilos de vida pouco saudáveis que, com
frequência, conduziriam a doenças trágicas. Face a um ambiente hostil, que empurraria
a sociedade contemporânea para o abismo, havia uma tábua de salvação, a
macrobiótica, que ajudaria a contrabalançar os efeitos negativos do desenvolvimento.
Esta imagem de um estado civilizacional negativo e até catastrófico é, efectivamente,
muito recorrente no início da formação nesta área. Parece procurar-se fazer um esforço
de consciencialização que leve a que se mude de rumo, começando por optar por um
outro tipo de alimentação. Para além disto verifica-se que, aqui, como em muitas outras
mensagens sobre alimentação (cf Gracia, 2005), há uma visão da alimentação muito

218
A Macrobiótica em Portugal

centrada na saúde, já que o poder dos alimentos se manifesta, em larga medida, nos
benefícios para a saúde que deles decorrem.
É de registar também as características específicas da cozinha macrobiótica que
eram apresentadas nesta ocasião:

Para além das propriedades físicas dos alimentos (carbohidratos, proteínas,


vitaminas, etc.) a cozinha macrobiótica considera também o ki ou qualidade
energética dos mesmos. Por isso o curso de cozinha é também um estudo
aprofundado de noções como yin-yang ou cinco transformações que têm
aplicações muito concretas na elaboração e confecção de menus, jogando com os
cinco sabores, as cinco cores e os diferentes estilos culinários.

Conciliando aspectos que costumam ser explorados por áreas ligadas à nutrição
com outros mais esotéricos, propõe-se juntar na cozinha macrobiótica conceitos como
os de proteínas e vitaminas com os de ki e yin-yang, como se entre eles houvesse uma
homologia indiscutível. Presta-se, assim, atenção a um tipo de linguagem que parece ser
incontornável para falar de alimentação (os hidratos de carbono, minerais, vitaminas,
etc.) e que foi desenvolvido pelas Ciências da Nutrição. Por outro lado, usa-se um
conjunto de termos que dão singularidade à proposta de alimentação macrobiótica e que
a aliam a algo mais do que uma dieta: a uma concepção sobre a natureza do mundo.
Percebe-se aqui, mais uma vez, que o recurso a este tipo de argumentos procura conferir
legitimidade e reconhecimento a esta abordagem, aproximando-a, sem a confundir, de
um discurso científico consagrado na tradição intelectual do Ocidente. A estruturação
do discurso sobre alimentação será assim construída sobretudo por referência a questões
de saúde.
Procurando corresponder às necessidade práticas e imediatas dos praticantes que
pretendessem cozinhar para si e para as suas famílias, o curso propunha também uma
incursão por diferentes sabores e tradições culinárias, referindo-se que “Para além da
cozinha macrobiótica e cozinha tradicional medicinal, as aulas práticas constituem uma
viagem pela verdadeira cozinha tradicional portuguesa e pela cozinha étnica ‘Gourmet’
de outras culturas”. Neste plano, o que aqui se sugere é, então, que uma abordagem
fundada na macrobiótica, além de ser capaz de dar resposta a eventuais problemas de
saúde, consegue ainda integrar princípios de outros tipos de cozinha, possibilitando que
não ocorra uma separação radical entre a cozinha macrobiótica e outras, com as quais os
alunos possam estar mais familiarizados e que sejam mais do seu agrado. Este é um
aspecto significativo, já que no decorrer do curso se sublinharia a importância de se

219
«À Mesa com o Universo»

fazerem mudanças graduais na alimentação como condição de manutenção deste tipo de


prática alimentar. Mudanças radicais eram entendidas como tendo menor potencial de
consolidação, dada a dificuldade em suprimir certos hábitos. A questão é ainda
relevante do ponto de vista dos paradigmas culturais dominantes, pois aquilo que se
procurava dizer é que era possível adoptar alguns dos pratos da “verdadeira cozinha
tradicional portuguesa” e ainda adaptar outros, de forma a satisfazer o desejo e a
memória de certos sabores. Vale a pena destacar o adjectivo“verdadeira”, já que remete
para a presunção de uma forma de abordagem mais autêntica e próxima de uma cozinha
original. A sugestão da aproximação a uma “cozinha étnica ‘gourmet’” procura ainda
transmitir essa ideia de que é possível casar uma “alimentação saudável” com comida
saborosa e requintada de outros países. A aprendizagem da confecção de sushi
constituiria, aliás, um exemplo deste tipo de abordagem.
Para além dos aspectos propriamente culinários, os módulos teóricos do curso
incluiriam ainda “diagnóstico visual da saúde, nutrição e medicina oriental, constituindo
uma introdução a uma nova filosofia e perspectiva sobre a vida em geral”. Nestas
últimas indicações procurava-se alargar os horizontes da macrobiótica, deixando esta de
se cingir unicamente a aspectos que tinham a ver com a cozinha e com a alimentação e
passando a assumir-se como “nova filosofia”, capaz de reorientar os sujeitos no mundo.
Para além de uma renovada visão do mundo, propunha-se ainda uma abordagem do
corpo de acordo com a “medicina oriental”. Este termo, apresentado de forma vaga,
acabaria por remeter para o modo como Ohsawa e Kushi interpretaram e recriaram a
medicina tradicional chinesa nas suas numerosas obras. Partindo da cozinha, abria-se a
aprendizagem para essa dimensão fundamental que tem a ver com a forma de
perspectivar o mundo e ainda para o conhecimento do corpo como parte fundamental de
um projecto de transformação. Neste sentido, a saúde e o equilíbrio surgem como
pontos de crucial atenção, sobre os quais os discursos produzidos a partir da
macrobiótica se organizariam.

220
A Macrobiótica em Portugal

Contexto de Desenvolvimento do Curso

Após esta incursão pela apresentação do curso, importa fazer referência ao


contexto em que o mesmo se desenvolveu. O curso teve lugar numa casa particular, uma
moradia situada nos arredores de Braga, num bairro recente de vivendas, quase todas
em banda, habitado essencialmente por pessoas de classe média. Contrariamente à
maioria das casas, esta não era geminada e possuía um pequeno jardim à sua volta. O
isolamento relativo permitia-lhe assim um pouco mais de independência e privacidade.
Havia ainda a vantagem de não ter que se prestar contas à administração do condomínio
ou a condóminos sobre as actividades desenvolvidas no interior da casa.
Quanto às aulas, estas decorreram num espaço que tinha sido inicialmente
destinado a uma garagem, mas que havia sido transformado num salão onde era
possível desenvolver diversas actividades. O salão dispunha de três portas que
comunicavam com o exterior, uma que dava acesso, através de uma escada, ao 1º andar
da casa, uma outra envidraçada que dava para o jardim e uma outra, maior, que tinha
sido inicialmente a entrada de automóveis. Já no decurso do curso, esta porta metálica
seria substituída por uma envidraçada, o que permitiu maior entrada de luz e vistas para
o exterior, apagando um certo “ar de garagem”. Junto ao salão ficava ainda uma casa de
banho, que impedia a invasão do espaço privado da casa aquando do funcionamento do
curso. Uma pequena biblioteca, com livros de cozinha macrobiótica e outros
relacionados com terapias não convencionais, tinha também sido montada numa
pequena sala contígua ao salão. Neste tinha-se montado uma bancada com lava-loiças e
dois fogões a gás. Um frigorífico dava também apoio às aulas práticas de cozinha.
Durante estas era colocada uma mesa quadrada grande no centro do salão, à volta da
qual nos sentávamos, enquanto nas aulas teóricas era retirada para que se pudessem
dispor as cadeiras de forma a ficarmos todos de frente para o professor.
Estes pormenores podem parecer irrelevantes, mas ajudam a compreender de
que forma uma “casa de família” é transformada com vista a comportar este tipo de
iniciativas. Diversos cursos de que tive conhecimento e que funcionaram em casa de
particulares tinham condições próximas. Ter uma casa com garagem, com uma cave, ou
com um espaço que se pudesse adaptar para o desenvolvimento de certas actividades,
parece ser condição fundamental para que se tome este tipo de iniciativas.
Efectivamente, o desenvolvimento “profissional” destas actividades implica um espaço

221
«À Mesa com o Universo»

relativamente acolhedor e disponível para as mesmas. Mais tarde, quando quis


aprofundar alguns aspectos ligados à macrobiótica e fiz um curso de shiatsu, viria a
defrontar-me com o mesmo tipo de espaço, uma zona da casa (o rés do chão) que tinha
sido modificada com vista a tornar possível o desenvolvimento de certas práticas e a
permitir que pessoas estranhas à casa entrassem sem afectar de forma significativa a
privacidade dos seus habitantes. Vemos, assim, a importância da casa, e de um espaço
específico, não só para os que se dedicam a actividades relacionadas com a
macrobiótica, mas também para outros que desenvolvem actividades próximas.

As Sessões do Curso

A sessão inaugural do curso foi uma sessão aberta, em que estiveram presentes
cerca de 20 pessoas. Destas só nove viriam a frequentar o curso, as outras, embora
tivessem pago a 1ª sessão, pelo interesse que tinham em ouvir o professor das primeiras
aulas, não prosseguiriam com o curso. É de notar também que algumas dessas pessoas
aproveitavam a presença do professor em causa para fazerem aí mesmo, na casa onde
iria decorrer o curso, consultas de avaliação do estado de saúde e orientação alimentar
Durante as aulas teóricas a professora de cozinha macrobiótica, organizadorado curso,
procedia à confecção dos almoços.
Quanto à proveniência dos participantes, deve dizer-se que era essencialmente
da região norte: Braga, Guimarães, Barcelos, Porto e Famalicão. Das nove pessoas que
viriam a frequentar o curso, a grande maioria eram mulheres, havendo apenas um
homem; apresentavam elevados níveis de escolaridade, pois sete tinham formação ao
nível da licenciatura ou superior, um frequentava o ensino superior e outro, embora
tivesse frequentado este nível de ensino, não chegara a conclui-lo. As áreas de formação
passavam pela Matemática, Engenharia biológica, Engenharia têxtil, Engenharia civil,
Serviço social, Antropologia, Língua e Literatura Modernas e Economia. Em termos
profissionais, dois trabalhavam como engenheiros em empresas da região, um como
assistente social, dois como professores no ensino superior e um no ensino secundário.
As idades estavam compreendidas entre os 21 e os 40 anos, estando a maioria (sete) na
casa dos 35/37 anos. Seis destas pessoas residiam em Braga e as restantes em
Guimarães, Famalicão e Barcelos.

222
A Macrobiótica em Portugal

Vemos, assim, que o curso incluía sobretudo residentes em Braga, embora


conseguisse também atrair pessoas de cidades próximas e nas quais não havia nenhuma
formação nesta área. Entretanto, a situação modificou-se e o facto de se terem aberto
restaurantes macrobióticos e vegetarianos em Guimarães, Famalicão e Barcelos, e de aí
se promoverem aulas de cozinha, contribuiu para aumentar a oferta nesta área. Pelo
menos dois dos participantes do curso promovem, actualmente, os seus próprios cursos
de cozinha, tendo começado por fazê-los, também eles nas suas casas. Tal como referi
atrás, ter uma casa que se preste a este tipo de práticas foi, uma vez mais, condição
indispensável para o desenvolvimento deste tipo de actividades.

A Espiral da Criação: Uma Visão Integrada do Mundo

A primeira sessão do curso consistiu numa introdução à macrobiótica e os temas


abordados centraram-se na definição do que é a macrobiótica e na apresentação da
concepção do universo defendida por esta corrente, mas foi também feito apelo a uma
consciencialização e alteração dos modos de vida. Por outro lado, foi feita uma
abordagem da alimentação macrobiótica padrão, com referência aos alimentos que
deveriam ser privilegiados e àqueles que deveriam ser evitados. Abordou-se também,
intensamente, a relação entre saúde, doença e alimentação.
A adopção da macrobiótica foi apresentada, logo de início, como um processo
individual que iria interferir com os estilos de vida, com os “aspectos básicos da vida de
cada um”, dado que implicaria mudanças significativas não apenas nesse gesto essencial
que é o da alimentação, mas também nas atitudes e “modo de estar no mundo”. A este
propósito foi reafirmada a questão da responsabilidade individual e de como é vão
justificar as “frustrações”, “o tipo de vida que se leva”, “a situação em que nos
encontramos“ e “as desgraças”com “os outros” ou com “o sistema”. Defendeu-se que,
em última instância, “somos os responsáveis por tudo o que nos acontece, de bom ou de
mau”, “fomos nós que escolhemos de uma determinada maneira”, “ a decisão final foi
nossa e nessa medida temos responsabilidade naquilo que somos e naquilo que
criamos”, sendo o “mundo um reflexo de nós mesmos”. Este tema da responsabilidade
individual viria a ser abordado frequentemente, verificando-se, efectivamente, uma
centralização no indivíduo. Este é tomado como locus de referência numa argumentação
que procura sinalizar problemas e apontar caminhos para os solucionar, caminhos que

223
«À Mesa com o Universo»

sugerem um reequacionamento dos modos de vida e reflexão sobre o essencial e o


supérfluo.
Um dos recursos utilizados para familiarizar os ouvintes com a macrobiótica foi
a apresentação da visão macrobiótica do universo. Esta visão foi expressa através da
evocação da espiral da criação/materialização110. Uma espiral logarítmica com sete
órbitas que, de acordo com o afirmado, se observaria um pouco por todo o lado; a via
láctea seria uma espiral deste género, as correntes dos ventos e dos oceanos possuiriam
o mesmo padrão, bem como a forma das conchas, o fluxo da água nos rios, as
impressões digitais na extremidade dos dedos, a estrutura helicoidal das moléculas de
ADN, etc. A espiral da vida, como também é designada, foi referida como procurando
explicar como surgiu o Homem, prestando atenção aos diferentes níveis de energia que
se verificam nas sete órbitas e que permitem perceber o processo gradual através do
qual a energia se transforma em matéria e, no sentido inverso, a matéria em espírito.
Esse processo revelava uma complexidade crescente, dado que de órbita para órbita se
ia verificando uma maior densidade e elaboração.
Assim, teríamos um sétimo nível, o do absoluto (o tau [tao] para alguns), que
corresponderia ao “Infinito uno”, ou seja, a uma ausência das coordenadas
espaço/tempo e matéria. Neste domínio estar-se-ia já no mundo da unidade, por
superação da dualidade. O sexto nível seria o da polaridade, de yin e de yang, das forças
opostas mas complementares, do Céu (yang) e da Terra (yin), da noite (yin) e do dia
(yang), sendo a constante troca entre yin (força centrífuga) e yang (força centrípeta)
classificada como a origem de todas as espirais que se podem encontrar no universo e,
por extensão, em todos os fenómenos.111 Um quinto nível da espiral da criação seria o
da vibração/energia, que é tido como o início do mundo dos fenómenos e que envolve
energia eléctrica e magnética. Os pólos energéticos yin e yang seriam assim
responsáveis pelo movimento e vibração. O quarto nível seria o das partículas

110
Perspectiva a que já tive oportunidade de fazer referência no capítulo 3, mas a que volto para a
recolocar no contexto específico da formação.
111
Num dos textos de apoio do 1º nível do curso curricular de macrobiótica (2005) no IMP pode ser
encontrada uma visão crítica da ciência actual. Aí se citava e adoptava o texto de uma revista Non Credo
em que se referia: “A actual teoria da criação do universo baseia-se numa interpretação pouco correcta da
espiral logarítmica. Porque as galáxias parecem estar a afastar-se umas das outras a uma velocidade
estonteante, os cientistas desenvolveram a teoria do Big Bang. Hoje em dia, o universo continua a
expandir-se em espiral e não começou com uma violenta explosão. Nem acabará com uma. (…) A luz
também se move em espiral e a sua velocidade varia na razão inversa à sua origem, tendendo, portanto,
para uma velocidade infinita. Num futuro não muito distante, quando a ciência “redescobrir ” o princípio
do Yin e Yang, a estrutura do universo será muito melhor compreendida” (IMP, 2005). Por aqui é possível
discernir uma forma de compreensão dogmática, assente nos princípios de yin e de yang, e crítica
relativamente a outras interpretações.

224
A Macrobiótica em Portugal

subatómicas, que estaria na fronteira entre o visível e o invisível, o material e o


imaterial e que seria o domínio das formas subtis. O terceiro nível pertenceria aos
elementos e ao mundo mineral, seria o domínio dos átomos, da matéria inorgânica, dos
elementos da tabela periódica e das inúmeras formas através das quais as moléculas se
organizam (água, oxigénio, dióxido de carbono, sódio, ferro, etc.). Este é também o
nível em que os cinco sentidos operam e através dos quais é percepcionada a realidade.
O segundo nível é relativo ao mundo vegetal, aí podem ser encontradas todas as plantas
de que diferentes espécies necessitam para sobreviver. Finalmente, no primeiro nível,
dependente de todos os outros, encontrava-se o nível animal, onde o Homem se
situaria112.
A categoria “formas subtis” é explicitada num dos Cadernos Macro, onde se
refere que a Física actual procura conhecer esta “área subtil”, dominada por partículas
ainda mais pequenas que o átomo, como os neutrinos e os muões. Para que se veja de
que forma se recorre à ciência para tornar mais convincentes certos argumentos, ainda
que se adopte uma postura crítica face à mesma, vale a pena citar a seguinte passagem
“Explica a ciência que (…) todo o espaço à sua volta é atravessado por um número
incalculável de partículas minúsculas que passam pelo espaço vazio existente nas, e
entre as moléculas que constituem toda a matéria. Quando a matéria é vista ao nível
desta escala, numa molécula de água (H2O), por exemplo, existe mais espaço vazio
entre os dois átomos de oxigénio e o átomo de hidrogénio do que espaço ocupado pelos
átomos em si” (Varatojo e Romão, 2005a: 20). Esta constatação, relativa ao facto de se
encontrar cada vez mais espaço vazio, é depois utilizada para evocar a ideia de que o
Homem possui alguma percepção deste domínio, uma percepção extra-sensorial, que
não pode ser explicada com objectividade, mas que tem a ver com um conhecimento
subtil dos acontecimentos (uso um exemplo do texto supra citado: “ninguém avisa que
irá telefonar, mas, quando o telefone toca, sabe-se de ‘forma subtil’ quem está ao
telefone”). A abordagem deste assunto é depois conduzida até à ideia de que a
alimentação afecta estas qualidades de percepção extra-sensorial e que uma dieta muito
yang, excessiva em produtos animais como a carne e os ovos, afectaria essa mesma
percepção. Em contrapartida, uma dieta com mais alimentos do reino vegetal afinaria a

112
Num dos Cadernos Macro podemos ver sintetizada esta visão do Universo: “pode-se dizer que o
Absoluto se diferencia em yin e yang, que originam o mundo relativo por meio de um movimento
centrípeto, em espiral, que se materializa gradualmente ao longo de vários níveis de transformação:
energia, partículas subatómicas, matéria inorgânica, vegetais, animais, do qual os seres humanos são o
último resultado” (Varatojo e Romão, 2005a: 22).

225
«À Mesa com o Universo»

capacidade intuitiva. Esta ideia sobre o corpo humano como receptor que precisa de
estar devidamente sintonizado para captar a informação é, aliás, recorrente.
As forças yin e yang são vistas como dando expressão, entre outros aspectos, ao
reino vegetal e ao reino animal. A proposta de evolução biológica apresentada socorre-
se do evolucionismo e da teoria da selecção natural das espécies de Darwin, mas
adequa-a aos princípios de yine yang. A perspectiva sobre a evolução das formas de
vida, tal como é vista na macrobiótica, aponta assim para uma evolução sujeita a
alterações climáticas e que vai do meio aquático (cerca de 2,8 biliões de anos) para o
meio terrestre (cerca de 0,4 biliões de anos), passando primeiro pelos animais
invertebrados, depois vertebrados marinhos, anfíbios, répteis e aves e mamíferos, entre
estes os macacos, e depois o Homem. Paralelamente a este desenvolvimento poder-se-ia
observar a seguinte evolução no plano vegetal: musgos marinhos (algas primitivas),
vegetais marinhos (algas), musgos (ervas primitivas), plantas antigas, plantas modernas,
e plantas herbáceas portadoras de sementes. Os cereais seriam, desta forma, uma das
espécies vegetais mais evoluídas (cf. Kushi, 1978: 44).
Como podemos verificar, esta narrativa sobre as origens é construída a partir de
modelos propostos pela ciência e surge como interpretação dessas mesmas propostas.
No âmbito deste trabalho, não interessa fazer uma análise minuciosa da mesma e
evidenciar os seus pontos menos coincidentes e mais falaciosos, interessa antes reter e
sublinhar a instrumentalização que é feita do conhecimento científico, processo que
permite dar consistência à argumentação usada na macrobiótica. Interessa também reter,
a propósito deste esquema de representação, a percepção que é feita de alimentos como
os cereais. Pelo facto de surgirem como ponto máximo da evolução no mundo vegetal
são objecto de uma permanente valorização. No contexto, é mais um argumento, entre
outros, para justificar que os cereais devam ser privilegiados na alimentação.
A referência aos aspectos acima mencionados contribui também para
desenvolver o tema da interligação de todos os fenómenos de acordo com o paradigma
holístico. O facto de os sete níveis se implicarem uns nos outros serve para acentuar a
ideia de interdependência e para dar a entender a unidade dos fenómenos. A ideia que se
procura transmitir é a de que tudo o que existe tem a mesma origem e, nessa medida,
participa da “Infinidade Una”, relativa ao sétimo nível. Esta mensagem remete para o
«Princípio Unificador», ainda que não tenha havido uma explicitação sobre o mesmo
nessa ocasião. O «Princípio Unificador» manifestar-se-ia, por exemplo, na afirmação de
que “o desejo de paz e felicidade estaria relacionado com a memória de um infinito que

226
A Macrobiótica em Portugal

existe em cada um de nós”. A referência à espiral da criação/materialização surge, desta


forma, como recurso indispensável para abordar a proposta macrobiótica de
interpretação do universo e para focar a atenção num tema que é aqui fundamental: a
ideia que cada indivíduo representa o universo e de que todos os fenómenos se
encontram relacionados. A alusão recorrente ao “bater de asas de uma borboleta no
Japão que tem repercussões em Nova Iorque” é aqui usada precisamente para salientar
que os acontecimentos que têm lugar em contextos distantes não nos são alheios. Iniciar
um curso de cozinha, ainda que macrobiótica, falando destes assuntos, poderia parecer
invulgar para alguém estranho a este sistema alimentar, mas a referência a estes
aspectos surge como fundamental, pois é a partir destes dados, que constituem na
macrobiótica a base de entendimento da vida e do universo, que se julga ser possível
desenvolver uma concepção sobre os alimentos e sobre o modo de os confeccionar. É
assumido desde o começo que o conjunto de preocupações que orientam a alimentação
e a cozinha em geral têm a ver com preocupações de carácter ético.

Tudo é Transformação Contínua

Só após a apresentação destas ideias foi possível falar mais claramente da


macrobiótica e abordá-la na perspectiva da aplicação da ordem da natureza à
alimentação. Defendeu-se que a macrobiótica, de uma forma geral, procura prestar
atenção ao modo como a energia se transforma e que, no caso da alimentação, se
centrava precisamente nos efeitos energéticos dos alimentos, ou seja, no modo como o
tipo de energia característico de cada alimento se transforma no indivíduo. A
importância do estudo das transformações é justificada com a referência a “saberes
milenares” que poderiam ser ilustrados por livros como o Tao Te King de Lao Zi (Lao-
Tzu) e o I Ching ou Livro das Mutações, a que já tive oportunidade de fazer referência
(ver capítulo 3). Muitos dos princípios que orientam a perspectivação do mundo na
macrobiótica, designadamente a atenção aos ciclos da natureza e às transformações que
aí ocorrem, têm efectivamente o seu enraizamento no tauismo [taoismo] e na polaridade
entre yin e yang que se expressa a partir do tau (tao, a via)113. O tau é um dos símbolos
mais complexos e misteriosos da cultura chinesa, é classificado como:

113
De acordo com Kristofer Schipper (1997) as origens do tauismo [taoismo] são obscuras, dado não se
saber ao certo quem é o fundador, nem em que momento surgiu. Sabe-se, todavia, que o tauismo possui

227
«À Mesa com o Universo»

O princípio da ordem universal que rege tanto o microcosmo quanto o


macrocosmo, simultaneamente causa primordial, processo do mundo, força
espiritual, essência de vida, idêntica e separável das suas múltiplas criações. (…)
Dele são oriundos todos os seres, a ele retornam todos os seres. (Kielce,1988:
20).

O tau preside, como dizia, a yin e yang, à formação da Terra e do Céu, não como
duas regiões distintas, mas apenas como duas formas diferentes de a energia cósmica se
expressar 114. Da dinâmica dual e cíclica inerente a yin e yang resultariam as
transformações de toda a criação, sendo que o extremo de uma situação classificada
como yang daria lugar a yin, o mesmo acontecendo a yin na sua fase extrema
(transformação em yang). A noite cerrada daria lugar ao dia, a luz intensa à sombra,
“quando yin atinge o seu apogeu, transforma-se em yang e vice-versa” (Schipper,
1997:511), o que levaria a que a alternância fosse considerada uma das primeiras leis
cósmicas. É de notar, ainda a propósito deste assunto, até para enquadrar alguns
elementos que serão apresentados posteriormente, que a acção de yin e de yang se
estende a cinco planetas (Vénus, Júpiter, Mercúrio, Marte e Saturno), tendo cada um
deles correspondência com cinco agentes – água, fogo, madeira, metal e terra. Estes
cinco agentes, ou níveis de transformação da energia, representariam as cinco fases de
um ciclo percorrido sucessivamente por yin e por yang.

uma significativa tradição escrita e erudita (contando o Cânone Tauista de 1442 mil e quinhentas obras) e
que se afirma como uma religião de salvação individual, o que pode ser um factor que ajuda a explicar o
motivo pelo qual os divulgadores da macrobiótica colocam uma ênfase tão particular na questão da
responsabilidade individual. Centra-se também na imortalidade, mas encara-a como o resultado de uma
ciclicidade cósmica, que conduz à mutação e não ao fenecimento, uma imortalidade que se expressa no
sentido referido por Schipper (1997) de que aquele que segue os ciclos cósmicos se renova como a
natureza. Os primeiros tauistas terão tido como principal ocupação a observação dos fenómenos naturais.
Estudavam os ciclos do céu e da terra e registavam as suas observações de forma a poderem prever o
futuro. No entanto, diz-nos Schipper (1997: 515) “O seu conhecimento da história ensinava-lhes que,
apesar da sua arte, nada era verdadeiramente previsível: as dinastias mudavam, o usurpador de ontem
tornava-se o herói fundador de hoje, a legitimidade «por mandato do Céu» nada tinha de inquebrantável,
os antepassados reais não eram os antepassados do mundo. Compreenderam assim que o homem ocupa
apenas um lugar insignificante num universo em perpétua mutação onde alto e baixo, grande e pequeno,
anterior e posterior, não passam de noções relativas”. Este processo de mudança que estaria na origem de
todas as coisas teria a ver com o tau.
114
Um dos trechos mais citados para falar de yin e de yang pertence ao cap. 42 do Tão Te King onde se
pode ler:
O Tao originou o um.
O um originou o dois.
O dois originou o três.
O três originou todos os seres do mundo. (Lao Tzu, 1997:93).
A interpretação que é considerada mais frequente para estas palavras é a de que Um significa o grande
começo, criado pelo Tau, Dois, o yin e o yang donde tudo procederia, Três, as três energias que
constituiriam o céu, a terra e o Homem e que estariam na origem de todas as formas do mundo (cf. Kielce,
1988:21).

228
A Macrobiótica em Portugal

A água é o yin perfeito, o fogo o yang perfeito; entre os dois situa-se o metal (o
yin nascente e a madeira (o yang nascente). O elemento terra reúne os outros
quatro e serve de fase intermédia entre cada etapa da revolução do ciclo. Os
Cinco Agentes servem também para classificar os pontos cardinais, as cores, as
notas da escala pentatónica, as vísceras, os sabores, etc. (id.)

A menção a estes aspectos reveste-se de crucial importância já que eles ajudam a


compreender a construção do discurso sobre os alimentos e sobre o mundo que se
observa na macrobiótica. A alusão a estes aspectos numa sessão inicial não foi tão
detalhada como a que agora descrevo (breve, também ela), mas o que foi referido sobre
este assunto constituiu, indubitavelmente, uma âncora necessária, a partir da qual se
compreenderia o tipo de posicionamento e de argumentação defendido na macrobiótica.
Para além destas referências, seria feita, de forma breve, uma alusão à história da
macrobiótica, evocando-se autores como Christopher Von Hufeland, que teria escrito o
livro A macrobiótica ou a arte de prolongar a vida humana, Georges Ohsawa, Alexis
Carrel que escreveria O Homem, esse desconhecido. A propósito de Ohsawa, seria
salientada a sua intenção de criar a paz através de uma revolução pela alimentação. Este
autor considerava que só pela alimentação seria possível transformar os homens e torná-
los mais responsáveis. Teria apreciado particularmente, tal como anteriormente foi
referido, a leitura do livro de Samuel Butler –Erewhon -, uma utopia do séc. XIX que
remete para um lugar imaginário (Erewhon) onde, curiosamente, se enviavam os
doentes para a prisão como forma de repressão da sua enfermidade e de não terem
sabido conservar a sua saúde. Considerava-se que nunca se seria firme se não se gozasse
de perfeita saúde. Pelos vistos, pelo menos a este nível, a ideia da doença como algo de
criminoso pareceu sugestiva a Ohsawa.

Alimentação equilibrada

Compreender o “espírito” da macrobiótica revelava-se um ponto de partida


importante para que se percebesse que a macrobiótica não é apenas alimentação.
Clarificando este ponto, era necessário passar para uma dimensão mais pragmática, que
permitisse aplicar os conceitos de yin e yang na cozinha e que contribuísse para que a
macrobiótica fosse reconhecida como um bem precioso ao nosso dispor. Para tal,
começou por se fazer referência a algumas doenças e à sua relação com os alimentos.

229
«À Mesa com o Universo»

Assim, a artrite reumatóide e também as artroses foram apontadas como tendo como
causa principal o consumo de ovos e de frango. O tomate, pela sua condição ácida
(ácido oxálico), seria também responsabilizado pela criação de situações inflamatórias
que ajudariam a agravar o problema. Desta forma, foram assim sendo apresentados
alguns alimentos cujo consumo era pouco recomendado, dado que estavam associados a
certas doenças. Entram nesta categoria, de modo geral, alimentos como a carne, os ovos,
o leite e derivados, as batatas e as solanáceas em geral (tomates, beringelas…), os
alimentos refinados, o açúcar, frutos tropicais e outros alimentos vegetais de origem
tropical.
Uma alimentação equilibrada, tal como era entendida na macrobiótica, podia ser
orientada através da «Alimentação Macrobiótica Padrão». Esta forma de alimentação
foi divulgada, primeiro, através de uma roda de alimentos que continha uma fatia de 50
a 60% de cereais integrais; 25 a 30% de vegetais; 10 a 15% de leguminosas e algas e 5 a
10% de sementes, óleos e outros condimentos. O peixe foi também referido como
alimento a incluir semanalmente na alimentação. Consumir peixe duas vezes por
semana foi referido como o ideal para assegurar o aporte de determinados nutrientes,
designadamente vitamina B12, que tendia a ser difícil de encontrar numa alimentação
que não incluísse nenhum produto de origem animal. Por outro lado, o peixe, enquanto
fonte de proteínas, era também importante para evitar algum consumo alimentar
deficiente a este nível. Considerou-se, ainda assim, que a falta de proteínas não era um
problema neste tipo de alimentação e que as leguminosas constituíam uma boa fonte
deste tipo de nutrientes. Foi possível observar, efectivamente, uma preocupação em
assinalar fontes de cálcio, ferro, proteínas para que se pudessem identificar alimentos
que permitissem substituir os ovos, a carne e o leite. Foi através da referência a uma
linguagem científica e com argumentos ancorados na saúde que se procurou afirmar a
superioridade deste tipo de alimentação.
Para os que se iniciavam neste tipo de alimentação, havia uma preocupação
visível com o abandono de certo tipo de alimentos, especialmente lácteos. A questão
que mais colocavam era “onde ir buscar o cálcio”. Face a este tipo de interrogações, foi
defendido que “o leite não era sequer a melhor fonte de cálcio”, porque “embora o leite
fosse rico nesta substância, apenas uma pequena parte do cálcio do leite era absorvido
pelo organismo”. Ou seja, o corpo humano teria dificuldade em absorver o cálcio do
leite e, para além disso, havia pessoas que tinham problemas sérios com a digestão deste

230
A Macrobiótica em Portugal

alimento115. Problemas como a osteoporose tinham a ver com a fixação de cálcio, mas a
verdade é que se podia ingerir cálcio sem conseguir assimilá-lo. Aquilo que se passaria
é que muitas pessoas tinham uma alimentação muito rica em proteínas, o que gerava
grande acidez (sobretudo quando a fonte de proteínas era a carne) e tal implicava um
grande desgaste de minerais, designadamente cálcio, para neutralizar a acidez. A
conclusão foi, pois, a de que “quanto mais proteínas ingerimos mais cálcio perdemos”.
Tanto as proteínas como o açúcar, este último também pela condição ácida que gerava,
contribuíam para desmineralizar e descalcificar. Para além de uma diminuição do
consumo de proteínas era indispensável que se fizesse exercício físico para que o cálcio
se fixasse e que houvesse exposição solar para que a vitamina D, que ajuda também a
fixar o cálcio, pudesse ser produzida. Por outro lado, era importante ainda que se
estimulasse a produção de estrogénios, outro factor importante na fixação do cálcio.
Foram depois apontadas fontes de cálcio em que este nutriente era mais bem
absorvido, como os vegetais de cor verde-escura (couves, brócolos, salsa, etc.). A
ocasião prestou-se logo a que também algumas pessoas falassem das suas experiências
com a ingestão de leite e com o seu abandono. Uma senhora referiu como tinha
melhorado muito de uma colite ao deixar de beber leite e adoptar a alimentação
macrobiótica. Para esta senhora, que tinha tido problemas graves durante muito tempo,
a macrobiótica tinha sido “uma verdadeira bênção”. Uma outra referiu como tinha
melhorado de problemas de alergias com a eliminação do leite e outra ainda como tinha
sentido melhoras dos seus problemas hepáticos. Para além de vários problemas que
foram associados ao consumo excessivo de produtos lácteos (sobretudo aumento de
mucosidades, que originavam problemas respiratórios comuns como a asma, rinite
alérgica, etc.; problemas ginecológicos, como corrimento vaginal, alguns tipos de
cancro, como o da mama e o da próstata e o facto de a lactose ser potenciadora de
diabetes, dado ser um açúcar do leite), o leite foi ainda classificado como “comida para
adultos” que “nos deixava agarrados à infância” e que “nos impedia de crescer”. “Já
viram algum animal adulto que continue a beber leite?” é uma questão frequentemente
colocada nos cursos. As considerações relativamente ao consumo de leite
ultrapassavam, assim, os meros aspectos físicos e nutritivos, ligando-se a aspectos

115
Contreras informa-nos sobre a frequência com que se observa esta situação, dizendo que 95% dos
aborígenes americanos e 85% dos árabes apresentam intolerância à lactose (cf. 1993: 19). Neste curso foi
afirmado que 75% da população mundial apresentaria este tipo de intolerância.

231
«À Mesa com o Universo»

emocionais e comportamentais, enlaçavam-se agora os aspectos nutritivos com os


efeitos em termos de atitude e posicionamento no mundo.
Como podemos constatar, a informação é transmitida através de um tipo de
linguagem que vai buscar às Ciências da Saúde e da Nutrição muitos dos seus termos
usuais e até da sua argumentação. Esta linguagem não é, contudo, de fechamento para
os que não são especializados, antes traduz situações e informação que abordadas com
um tipo de linguagem mais técnica poderiam não ser captadas com tanta facilidade. O
orador efectua, assim, uma interpretação de alguma informação científica e organiza o
seu discurso com recurso a termos científicos que acabam por lhe conferir maior efeito
retórico. Observa-se assim uma mistura entre saberes leigos, saberes ideologicamente
fundados e saberes periciais como forma de construção de um discurso que possa ser
visto como significativo. É possível, efectivamente, observar uma certa
instrumentalização da ciência com o fim de tornar os discursos mais eficazes, indo
assim de encontro a um público que, de modo geral, tem uma escolarização acima da
média. As pessoas que participam nestes cursos parecem exigir esse tipo de linguagem,
como se tal fosse garantia de uma abordagem mais informada, profunda e de
distanciamento face a interpretações “populares”. É-lhes possível interiorizar aquelas
mensagens porque elas parecem emanar de um discurso científico e estar mais próximas
das suas próprias categorias discursivas. Simultaneamente, essas mensagens parecem ir
de encontro a uma visão mais espiritualizada que por vezes procuram. A informação é
apresentada através de termos e conceitos que remetem para um discurso no qual
reconhecem mais seriedade, autoridade, profundidade e por isso lhe atribuem maior
legitimidade. A crítica dirigida a certas ideias sobre alimentação e saúde parece,
portanto, provir do próprio discurso científico, o que torna todos os argumentos mais
convincentes. Surpreendentemente, o que observamos aqui, ainda que por caminhos
ínvios, é o poder da ciência, pois ainda que a crença na ciência seja evocada como um
dos principais mitos dos séculos XX e XXI, nesse entendimento que vê a ciência como
única fonte explicativa legítima, e, nesse sentido, que faz com que um facto desde que
seja explicado cientificamente seja válido, procede-se como se ela fosse a fonte legítima
de autoridade em termos de saber, acabando-se, deste modo, por continuar amarrado a
essa forma discursiva.
A referência à roda dos alimentos defendida na macrobiótica foi também uma
ocasião para falar de como as rodas alimentares que têm sido habitualmente divulgadas
pelas ciências da saúde e da nutrição constituem instrumentos políticos e económicos e

232
A Macrobiótica em Portugal

são o resultado de muita discussão e negociação. Assim, a parcela tão importante que é
atribuída aos produtos lácteos na roda dos alimentos seria sobretudo o resultado dos
muitos grupos de pressão formados a partir dos grandes produtores e distribuidores de
lacticínios. O mesmo aconteceria com os produtores de ovos e até com os fabricantes de
embalagens para os acondicionar, pois veriam o seu negócio diminuído com a
diminuição do consumo de ovos. A indústria alimentar, e em especial alguns dos seus
sectores, são assim mostrados como agentes que visam apenas o lucro e que são capazes
de condicionar instrumentos aparentemente tão inócuos e imunes a interesses
particulares como a roda dos alimentos. O clima que se cria é o de uma suspeição
generalizada sobre os interesses da indústria alimentar e até sobre as Ciências da
Nutrição que não estariam defendidas desses mesmos interesses.
O facto de a investigação científica ser financiada e orientada, em termos de
assuntos a pesquisar, por essa mesma indústria, seria, de resto, factor indicativo de uma
certa promiscuidade e parcialidade relativamente aos resultados obtidos. Divulgar ou
não uma roda de alimentos, enquanto medida política, foi também apontado como um
acto sujeito a pressões, discussão e negociação. Na verdade, a fatia a destinar a
determinado tipo de alimentos numa roda ou pirâmide alimentar não é sempre
consensual, havendo a este nível diferentes propostas por parte dos nutricionistas, tal
como já foi explorado no capítulo 2. As alterações que têm vindo a ser feitas à roda ou
pirâmide alimentares revelam-nas como objectos plásticos, dependentes de contextos,
intervenientes, entendimentos, medidas políticas. A sua ductilidade sugere bem que são
objecto de negociação; sugere ainda a possibilidade de serem o resultado de uma
ideologia alimentar específica, empreendida por vezes por nutricionistas e identificada
por Scrinis (2002) como nutricionismo.
Mesmo na macrobiótica pode observar-se que houve reelaborações ao nível da
distribuição gráfica de alimentos, senão vejamos:

233
«À Mesa com o Universo»

Figura 14 - Alimentação Macrobiótica Padrão 116

De uma roda de alimentos passou-se para uma pirâmide alimentar onde estão
incluídos (numa porção mínima) alimentos como a carne, ovos e produtos lácteos. É
certo que é sugerido que este tipo de consumos seja ocasional e que corresponda a uma
fase de transição, mas eles estão lá, evidenciando uma reorganização em termos
discursivos e algumas cedências face a uma proposta mais ortodoxa que frequentemente
é classificada como rígida 117. Como vemos, estas construções são o resultado de
relações dinâmicas, relações que activam tanto o legado histórico de conhecimentos
relativos à macrobiótica como informações relativas à sua prática. Os diversos
problemas de saúde que caracterizaram alguns dos que seguiram a macrobiótica no
passado (ver capítulo 2) parecem ter ajudado a redefinir a pirâmide macrobiótica. Um
certo paralelismo em relação àquilo que é observado por Cristiana Bastos e Renilda
Barreto, quando afirmam que as substâncias de cura «são também o que delas fazem o
uso, a circulação, o conhecimento localizado, o comércio, as transacções» (2011: 16)

116
Versão portuguesa da pirâmide alimentar elaborada por Michio Kushi e disponibilizada por Lawrence
Kushi et al.(2001). A imagem pode ser encontrada nos cadernos de apoio do Curso Curricular de
Macrobiótica, nível 1, do Intituto Macrobiótico de Portugal (IMP, 2005).
117
Curiosamente, tal como já foi explorado, se compararmos a pirâmide alimentar proposta por Michio
Kushi (2001) com a de Walter Willet (2005) encontraremos significativas coincidências. Na base, uma
parte importante é dedicada aos cereais integrais e para o topo (uso raro) vai a carne.

234
A Macrobiótica em Portugal

pode aqui ser traçado. Os alimentos usados na macrobiótica, tantas vezes afirmados
como «substâncias de cura», surgem reorganizados nesta pirâmide como resposta a
dificuldades sentidas e como adequação a contextos sociais específicos. Os elementos
recolhidos, tal como atrás apontado, sugerem que estas novas orientações alimentares
tiveram em consideração os problemas de saúde sentidos dentro da prática macrobiótica
e as dificuldades de muitos praticantes em fazerem a transição para a alimentação
macrobiótica. Há assim uma relação dinâmica entre orientações e práticas; entre agentes
a quem é reconhecida autoridade para definir um rumo e agentes anónimos que seguem
ou gerem essas orientações de acordo com a sua subjectividade.
Em contraponto a anteriores orientações na macrobiótica surgem propostas mais
abertas e que admitem certos consumos. É defendido que as fases de transição “não
devem ser excessivamente rígidas”, a não ser que haja algum problema de saúde em
particular, pois podem tornar difícil a adopção de uma nova prática alimentar”. Todavia,
o facto de alguns dos que aderem à macrobiótica ingerirem produtos pouco
recomendados neste sistema indigna muitos dos que aderiram à macrobiótica. Referia-
me um dos meus informantes: “dizem que são macrobióticos, mas não passam sem o
cafezinho, o cigarrinho… não sei que raio de macrobiótica é essa” (formador, 64 anos).
Este posicionamento permite ilustrar alguma da diversidade existente relativamente ao
modo como se considera esta prática entre os que a ela aderem.
Para além do leite, a que já fiz referência, outros alimentos foram objecto de
uma atenção especial, designadamente a carne. O consumo de carne é visto, como
referi, como sendo um factor de desmineralização, dado o efeito de acidificação que
provoca no organismo. O desgaste de minerais é visto, então, como a resposta do
organismo a este efeito nefasto. A carne é caracterizada, portanto, como um alimento
pouco adequado para humanos. Para lá das explicações a que aduzi, um outro factor tem
a ver com o facto de o intestino delgado do Homem ser mais longo (6 a 8 metros) do
que o dos carnívoros em geral. Esta característica faria com que a carne tivesse
dificuldade em fazer o trânsito intestinal, já que este, sendo mais demorado, provocaria
maior afluxo de sangue na zona intestinal. Daqui decorreria um efeito de putrefacção da
carne ingerida, sendo esta, justamente, a causa da acidificação. O organismo procuraria
neutralizar esta condição com o desgaste de minerais. Todavia, apesar destas
considerações, defendeu-se que com muita actividade física e em contextos mais frios,
se justificava o consumo de carne.

235
«À Mesa com o Universo»

Os efeitos da carne não eram, obviamente, apenas físicos, tendo também


implicações ao nível comportamental. Assim, a carne era um alimento muito yang e, de
acordo com o que foi defendido, “os povos cuja alimentação dependesse essencialmente
de outros animais eram mais territoriais” ou ainda “do ponto de vista físico os povos
yang conquistavam os povos yin e os povos yin conquistavam os outros pela
espiritualidade”. Nesta lógica, os europeus, conquistadores, teriam dominado os outros
povos por terem uma alimentação que favorecia as artes da guerra, mas os outros
acabariam por conquistá-los por essa via mais yin, que é a da espiritualidade. No
Ocidente, a atracção por religiões e terapêuticas de origem oriental seria expressão disso
mesmo. Evidentemente que esta é uma explicação simplista, que esbarra facilmente em
alguns episódios bem conhecidos da História da humanidade, mas esmiuçar estes
aspectos nesta ocasião e demonstrar a sua inconsistência não constitui o objectivo deste
trabalho. O que interessa identificar aqui é o tipo de argumentação utilizado, que, pela
mistura de dados científicos com interpretações bastante lineares e simplificadoras, vai
erigindo um discurso que é reconhecido por muitos como um discurso de verdade,
nesse sentido que Foucault tão bem lhe soube dar.
O tema da saúde e alimentação foi presença constante ao longo de todo o curso e
a referência aos alimentos foi sendo sempre feita tendo em consideração os seus efeitos
em termos físicos e emocionais. Consideraram-se essencialmente dois tipos de doenças,
as doenças de ajustamento e de tipo degenerativo. Na primeira categoria estavam
doenças de pouca gravidade como a gripe, que o corpo resolvia por si mesmo, com o
seu poder curativo, ou seja, com a sua capacidade de se ajustar a novas circunstâncias e
contextos. Na segunda categoria estavam as doenças degenerativas que traduziam uma
incapacidade do corpo em encontrar solução para situações de desequilíbrio e que
implicavam uma degradação de órgãos e tecidos. Uma das principais razões apontadas
para o surgimento de doenças tem a ver com dificuldades de eliminação orgânica. Um
corpo que não elimina bem entraria em desequilíbrio. Seria necessário que a energia (o
ki) circulasse adequadamente para se assegurar um corpo vigoroso. A este propósito foi
então referido que “as mulheres tinham uma vida mais longa porque eliminavam mais”.
Em termos de desequilíbrios físicos, uma das situações mais comuns que foi
assinalada, e que era bastante ignorada, era a hipoglicemia (níveis baixos de açúcar no
sangue). De acordo com o que foi afirmado esta patologia afectaria cerca de 70% das
pessoas. Tratar-se-ia de um distúrbio causador de grande instabilidade emocional,
irritabilidade, fome, ansiedade, sonolência após as refeições, dificuldade de

236
A Macrobiótica em Portugal

concentração, sensação de confusão, etc. Afirmou-se mesmo que “para Kushi estava na
origem da maior parte dos divórcios” . A causa da hipoglicemia tinha a ver com alguns
consumos frequentes. Em primeiro lugar com o consumo de ovos, frango, peru, atum,
marisco e comida tostada (farinhas no forno – bolachas, biscoitos…) e em segundo
lugar com o consumo de açúcares simples (sacarose, chocolate, batatas, álcool …),
alimentos refinados e café. “Comer batatas é como comer açúcar”, foi referido. Na
verdade, o seu índice glicémico é elevado, recomendando Willett e Skerrett (2005) que
não sejam consumidas com regularidade. Contestou-se, também, a altura do dia em que
costuma ser medido o índice glicémico (pela manhã), procurando-se evidenciar que
após o repouso nocturno o nível de açúcares está mais estabilizado, não sendo, por esta
razão, a altura mais adequada para fazer este tipo de observações. Um pouco depois do
almoço seria a altura ideal para medir o índice glicémico, dado que após o almoço os
sintomas de hipoglicemia costumam ser mais elevados. Dado o vasto número de
alimentos envolvidos, compreende-se que a hipoglicemia fosse vista como afectando
um tão vasto número de pessoas. Uma forma de combater a hipoglicemia consistiria em
evitar os alimentos acima referidos e procurar açúcares complexos (polissacarídeos),
que teriam moléculas mais longas, por essa razão se desdobrando mais lentamente,
sendo por isso absorvidos de forma mais gradual, não provocando os altos e baixos
típicos do consumo de hidratos de carbono simples. Resultaria daqui que os cereais
integrais seriam os melhores alimentos para garantir um nível equilibrado de açúcares
no sangue.
Outros alimentos foram também objecto de considerações pouco abonatórias. Os
ovos afectariam muito o pâncreas e os ovários, sendo defendido que o seu consumo
excessivo seria a principal causa de quistos e de cancros nos ovários. O tomate deveria
também ser evitado, neste caso pela sua acidez e pela sua propensão para ampliar
situações inflamatórias, sendo esta recomendação particularmente importante para
pessoas com problemas nas articulações e artrite. O uso de frutos tropicais num clima
não tropical foi também assinalado como podendo enfraquecer as pessoas, dado o seu
carácter yin. A interrogação sobre a origem de todas estas representações não pode
deixar de ser colocada, mas esta é uma questão a que ainda não podemos responder com
rigor. Apenas pode ser apontada a importância dos precursores da macrobiótica e das
suas concepções para esclarecer um pouco mais este aspecto.
A ingestão de cereais integrais deveria então ser privilegiada, devendo ser dada
preferência a cereais em grão como o arroz integral, millet, cevada, aveia, etc. Os

237
«À Mesa com o Universo»

vegetais a consumir deveriam ser variados e no prato devia-se procurar incluir alguns
bem cozinhados e outros apenas escaldados. Os vegetais redondos (abóbora, nabo,
cebola, etc.) seriam também muito adequados para tratar órgãos redondos, enquanto as
raízes fortaleceriam os intestinos e os órgãos reprodutores masculinos. Quanto às algas
a recomendação era que fossem usadas diariamente na alimentação, se bem que em
pequenas quantidades. A alga kombu seria adequada, por exemplo, para ajudar a
eliminar mucosidades causadas por lacticínos, enquanto a alga aramé foi apresentada
como útil para problemas no útero e nos ovários. Quanto às bebidas, recomendava-se
sobretudo o «chá 3 anos» (kukicha, bancha), a que é atribuído o poder de tornar o
sangue mais alcalino. Curiosamente, recomendava-se também que não se usasse
granulado de soja (alimento que resultaria do processamento da soja no fabrico de óleo
de soja), considerado um “assassino pancreático” e recomendava-se também um uso
moderado (não diário) do “leite” de soja, já que este também gerava muitas
mucosidades e era de difícil digestão. O peixe recomendado foi sobretudo o peixe
branco em detrimento do peixe vermelho ou peixe azul.
As recomendações de que damos nota têm um carácter prático, parecendo, por
isso, ir de encontro ao que muitos dos participantes do curso desejavam. De algum
modo, criou-se, inicialmente, a ideia de uma situação de alarme em termos alimentares,
apontando-se algumas das doenças graves com que as pessoas podiam ser confrontadas
e que tinham a ver com alimentação. Depois, tentava oferecer-se uma visão sobre o
mundo dos alimentos para se redesenhar uma visão alternativa que poderia representar
mais saúde e mais qualidade de vida. Desta forma, gerava-se um pouco a ideia de se ter
tido acesso a um tipo de conhecimento que não estaria ao dispor de todos e que
constituiria uma visão à qual chegam apenas os que têm “mais discernimento”. A
alimentação surge, assim, como factor de distinção no plano social (Bourdieu, 1979;
Ossipow, 1997). O facto de os conselhos dados serem também muito de natureza prática
e aparentemente fáceis de concretizar era um aspecto que os praticantes consideravam
como positivo e que justificava o investimento que tinham feito. O conhecimento
apreendido traduzia-se também em self empowerment, dado que as aprendizagens
podiam ter repercussões na vida pessoal e constituir um recurso, não só para fazer frente
a situações de enfermidade, mas também para desenvolver uma atitude de maior
confiança face à vida em geral.
Algumas indicações sobre hábitos alimentares a implementar foram divulgadas.
Eram orientações que não se limitavam aos nutrimentos mas que se estendiam a atitudes

238
A Macrobiótica em Portugal

a adoptar. Assim, em documento elaborado pelo Instituto Macrobiótico de Portugal, era


recomendado:

- Pode comer e beber uma quantidade confortável de acordo com o seu desejo e necessidades
individuais.
- Coma regularmente 2 a 3 vezes por dia, se tiver uma actividade física intensa pode incluir 4
refeições por dia.
- Inclua cereais e produtos à base de cereais em todas as refeições – pequeno-almoço, almoço e
jantar.
- 50% do volume total da sua alimentação diária deve consistir de cereais ou produtos à base de
cereais.
- Inclua pelo menos um acompanhamento de vegetais em cada refeição – pequeno-almoço,
almoço e jantar.
- Coma todos os dias umas duas tigelas de sopa de vegetais temperada com miso, shoyu ou sal
marinho.
- “Snacks” podem ser usados moderadamente, mas não devem substituir uma refeição regular.
- Coma sempre sentado, mesmo que seja um “snack”.
- Evite comer três horas antes de dormir.
- Mastigue muito bem cada garfada – até a comida se liquefazer.
- Cozinhe com amor, cuidado e mente pecífica.
- Tente comer com a família e os amigos.
- Coma com um espírito de gratidão e apreciação pelos outros, pela sociedade, a natureza e o
universo.

Como se pode constatar as recomendações são sensatas e, tirando um ou outro


aspecto, como o número de refeições, facilmente poderiam ser subscritas por
nutricionistas convencionais. Destaca-se deste conjunto a importância dada a aspectos
que não os meramente nutritivos. O último aspecto referido remete claramente para a
dimensão ideológica que caracteriza a macrobiótica. Na parte prática do curso não foi
dado, contudo, um destaque especial a esta dimensão, como se se evitasse dar um ar
dogmático a este tipo de alimentação e ela pudesse, por este motivo, ser
descredibilizada. Critérios que visam uma racionalização do discurso podem assim ser
observados no modo como é conduzida a formação

239
«À Mesa com o Universo»

Cozinhar, Convocar o Universo para a Mesa

As primeiras aulas práticas de cozinha constituíram uma descoberta fascinante


de novos ingredientes. Alimentos que não costumam ser usados regularmente na
cozinha portuguesa (arroz integral, arroz glutinoso, quinoa, bulgur, millet, trigo
sarraceno, miso, amasake, fu, natto, tempeh, tofu,shoyu, soba, tahin, umeboshi,
gomásio, algas wakame, kombu, aramé, nori… - ver glossário) foram apresentados
como ingredientes com os quais nos iriamos familiarizar, dado que eram ingredientes de
referência na cozinha macrobiótica e iriam ser por nós usados na elaboração de algumas
refeições. Nestas sessões ensinou-se a dar preferência aos alimentos da estação, aos que
são de proveniência biológica e aos que estão mais próximos do ponto de vista
geográfico.
Este aspecto, proximidade geográfica, e evitamento de consumo de alimentos
que estejam para lá do raio de 50 km, é paradoxal, como já tive oportunidade de referir,
dada a quantidade de ingredientes básicos que têm de ser importados de países como o
Japão para que se possam confeccionar alguns dos pratos propostos. O consumo de
algas, um dos produtos importados, não é corrente entre nós. Exceptuando algumas
comunidades costeiras dos Açores que utilizam a Porphyra leucostica, “erva patinha”,
incorporada em sopas, tortas e omeletas ou a “erva malagueta”, que costuma ser
conservada em vinagre e consumida ao longo do ano, ou, ainda, a alga nori, que, por via
do sushi, foi sendo mais popularizada, as outras são praticamente desconhecidas por
aqueles que não praticam uma alimentação macrobiótica. No entanto, de acordo com o
que nos diz Leonel Pereira 118, a costa portuguesa é rica em algas, e abundante em
algumas das que são usadas na macrobiótica, como a kombu, nori, esparguete do mar e
as agarófitas (algas produtoras de agar, ficocolóide que permite dar consistência e
aspecto gelatinoso a muitos pratos, sobretudo sobremesas). As agarófitas são recolhidas
em Portugal e comercializadas por empresas como a «Iberagar», indústria de
ficocolóides que as processa e as destina a usos em microbiologia, cosmética, indústria
alimentar, etc. Todavia, estas algas raramente são usadas sem ser incorporadas em
alimentos que foram processados pela indústria alimentar. Convém ainda dizer que esta

118
Leonel Pereira, «As algas marinhas e respectivas utilidades» documento disponível em
http://br.monografias.com/trabalhos913/algas-marinhas-utilidades/algas-marinhas-utilidades.shtmlnível
[Acesso em 12-11-11]

240
A Macrobiótica em Portugal

indústria apenas se terá desenvolvido devido à escassez de agar durante a II Guerra


Mundial, até porque esta mercadoria vinha sobretudo do Japão. A primeira fábrica de
agar surgiu em 1946, e Portugal ter-se-á tornado um dos maiores produtores mundiais
deste produto (cf. Pereira, ibid.). Ainda assim, por que motivo as algas, um produto de
elevado valor nutritivo e de baixo valor calórico, não se inscreveram nos consumos
alimentares dos portugueses, pelo menos nos do continente? Talvez uma das razões para
esta situação tenha algumas semelhanças com aquela que explica o facto de os
americanos só terem começados a consumir soja e seus derivados há bem pouco tempo
atrás (Du Bois, 2008). Sabemos que a recolha de algas marinhas e a sua utilização como
fertilizante remonta, pelo menos, ao século XIV, e que a tradicional apanha de sargaços
até foi objecto de investigação etnográfica (Veiga de Oliveira et al., 1990 [1975]).
Apesar disso, a indústria das algas para alimentação (exceptuando as agarófitas) não se
desenvolveu, contrariamente ao que aconteceu, por exemplo, na Galiza, onde a
«Algamar» investiu na extracção, preparação e comercialização de algas. De acordo
com Leonel Pereira, investigador que se especializou no estudo de algas, em Portugal,
mesmo as algas que são utilizadas em cosmética e em talassoterapia são importadas
(ibid.). Parece aqui existir, portanto, um importante recurso a explorar 119.
Na macrobiótica as algas são usadas de diversificadas formas, na alimentação e
em remédios caseiros. Tidas como ajudando a mineralizar e depurar o organismo são
frequentemente vistas como favorecendo os processos de eliminação. O iodo presente
nas algas, pelo facto de activar a tiróide, e, assim, a velocidade das reacções
metabólicas, é visto como impedindo a formação de depósitos de lípidos nas células,
contribuindo, desta forma, para combater a obesidade (Pereira, ibid.). A argumentação
apresentada no curso para justificar a importação de certos produtos, como o miso ou as
algas, incidia sobretudo na sua importância do ponto de vista nutritivo e restaurador,
importância de tal forma elevada que, a sua importação, não nos deveria coibir de os
usar.
Para além de aspectos como a origem geográfica dos alimentos, aprendeu-se a
avaliar se estes são mais ou menos yang, devendo-se para tal prestar atenção à forma e
consistência, devendo-se considerar que vegetais mais pequenos e contraídos são mais
yang e maisvolumosos e compridos mais yin. As raízes foram, nesta lógica,
apresentadas como sendo mais yang e as folhas dos vegetais mais yin. De um equilíbrio

119
Em Castelo do Neiva, o restaurante-marisqueira - «Augusto» - apresenta algumas sugestões onde se
encontram incluídas algas, promovendo assim um recurso local, estas sugestões são, contudo, tímidas.

241
«À Mesa com o Universo»

entre yin e yang resultaria também uma refeição mais harmoniosa. Devia ser avaliada
adequadamente a situação de cada indivíduo na hora da confecção, pois poderia
necessitar de uma alimentação mais yin ou mais yang de acordo com a sua condição.
Neste contexto foram também ensinadas técnicas de «yanguização» e «yinização» dos
alimentos, ou seja, técnicas através das quais poderíamos atribuir uma qualidade mais
yin ou mais yang a determinados alimentos. Assim, o uso do forno (calor) permitia
«yanguizar» os alimentos enquanto a adição de líquidos aos mesmos os «yinizava». Era
assim possível trabalhar a «energia dos alimentos» e conseguir, quando esse fosse o
objectivo, uma «polaridade» adequada, quer dizer, uma relação equilibrada entre yin e
yang. Aprender a cozinhar de forma verdadeiramente macrobiótica implicava
compreender e aplicar a relação yin-yang, as categorias que designavam todo o mundo
envolvente e através das quais o corpo e as emoções deveriam ser compreendidos. As
situações de doença expressavam-se, também, através de yin e de yang, sendo possível
identificar doenças yin, doenças yang e doenças yin-yang. Um maior esclarecimento
sobre este tipo de classificações ocorreria, contudo, no Curso Curricular de
Macrobiótica.
A este tipo de considerações juntou-se ainda o ensinamento sobre como montar
uma cozinha macrobiótica, fazendo-se referência a ingredientes básicos para temperar
(shoyu, miso, gomásio, óleo de sésamo, azeite, vinagre de ameixa…) e outro tipo de
ingredientes, como a diversidade de cereais, a utensílios específicos (colheres de
madeira, suribachi, faca para vegetais, coador, steamer, escova para limpar vegetais,
prensa para pickles, esteiras de bambu para sushi, panela de pressão…). Insistiu-se
ainda na preferência que deveria ser dada ao fogão a gás em vez de ao fogão eléctrico,
dada a «maior qualidade energética» deste tipo de combustível (presença do fogo) e ao
facto de esta ser transferida para os alimentos cozinhados (uma das minhas colegas no
Curso Curricular de Macrobiótica retiraria a placa para cozinhar em vitrocerâmica da
sua cozinha para a substituir por um fogão a gás). Referia-se ainda a necessidade de
evitar o micro-ondas e outros electrodomésticos, dado que afectariam a qualidade
energética dos alimentos. O alimento surge, assim, não apenas através das suas
qualidades nutritivas mas como tendo uma «carga energética» que se encontra
dependente da forma como é manuseado e até do estado de espírito com que é
cozinhado. Pessoas doentes, deprimidas ou zangadas deviam evitar cozinhar, dado que
transferiam a sua energia para os alimentos. Cozinhar de forma energética implicava
ainda ter atenção ao corte dos vegetais, não apenas para preservar as suas qualidades

242
A Macrobiótica em Portugal

energéticas, mas também para conseguir uma apresentação mais agradável à vista. A
cebola, por exemplo, deveria ser cortada longitudinalmente, de forma a mais facilmente
representar a totalidade daquele alimento e, igualmente, de forma a mais facilmente
preservar a relação yin e yang. Também os estilos culinários (cozedura simples,
cozinhar na pressão, no vapor, vaporização leve, em nishime [cozedura numa menor
quantidade de água], fritar [habitualmente em tempura], assar, tostar, grelhar…) foram
evocados como forma de «energizar» de diferentes modos os alimentos e de lhes
conferir propriedades yin ou yang.
A estrutura de uma refeição macrobiótica completa incluía uma sopa de
vegetais, um prato principal onde estavam incluídos cereais (a principal fonte de
hidratos de carbono na macrobiótica), proteínas (lentilhas, feijão, grão, seitan, tofu…),
vegetais cozidos, escaldados e por vezes crus, algas, e alguns pickles (vegetais
fermentados, tidos como facilitando a digestão). A refeição costuma ser finalizada com
um doce ou fruta. Por vezes é acompanhada por um chá, como o chá 3 anos,
dispensando-se frequentemente, contudo, a ingestão de bebida. Nas imagens seguintes
dou exemplo dos diversos componentes da refeição. Trata-se de uma refeição comum e
há que considerar que este padrão costuma ser alterado em refeições festivas ou noutras
situações.

Figura 15 - Sopa de Miso

243
«À Mesa com o Universo»

Figura 16 - Empadão de millet com lentilhas

Fig. 17 - Tarte de maçã

Para além destes pratos, que são exemplo de uma refeição típica, tal como ela
costuma ser ensinada nos cursos de cozinha macrobiótica, e que tende a ser reproduzida,

244
A Macrobiótica em Portugal

de forma mais ou menos elaborada no espaço doméstico, apresento também uma


fotografia com um pequeno-almoço muito comum entre os que seguem a macrobiótica.
Arroz integral cozinhado até ficar cremoso com malte de cevada. Tal confecção implica
habitualmente o uso de uma maior quantidade de água para cozinhar o arroz. Na
imagem pode ainda ver-se uma chávena de chá 3 anos com uma fatia de pão integral
com tahin (pasta de sésamo).

Figura 18 - Exemplo de um pequeno-almoço típico

A frequência dos diferentes cursos e o contacto de anos com indivíduos que


seguem a macrobiótica, levam-me a entender que é possível fazer uma cozinha
macrobiótica saborosa e equilibrada. Aqui, como em qualquer outra orientação
alimentar, e dependendo dos indivíduos e das suas opções subjectivas, é também
possível fazer-se uma cozinha desequilibrada e com deficiências de alguns nutrimentos.
Questões ligadas à subjectividade de cada um e à sua acção individual, são assim
relevantes para caracterizar esta prática. De qualquer dos modos é importante salientar
que a cozinha macrobiótica, tal como é hoje ensinada via IMP, é uma cozinha muito
diversificada e que a alimentação seguida pelos que praticam hoje a macrobiótica não
deve ser imediatamente identificada com as deficiências do ponto de vista nutritivo que

245
«À Mesa com o Universo»

foram observadas no passado junto de indivíduos que se integravam no mesmo tipo de


orientação alimentar.
Em trabalho desenvolvido sobre a macrobiótica no quadro da Faculdade de
Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (Silva, 2008), procura-se
fornecer um documento que possa auxiliar médicos e nutricionistas a orientar
indivíduos que sigam a alimentação macrobiótica, dado não ser defensável o
“imperialismo alimentar”. Parte-se aí de muitas das deficiências nutritivas que foram
detectadas no passado para salientar aspectos para os quais deve ser dada mais atenção
na orientação alimentar. Ora, deve ser salientado que, apesar da importância desta
iniciativa, para além da atenção a esses aspectos do passado, deve ser sobretudo
prestada atenção ao que está a ser promovido no presente, pois é aqui que mais
claramente pode ser identificado um quadro orientador em termos de alimentação e
pode ser detectada alguma deficiência em termos nutritivos. Uma observação de
proximidade, de carácter mais etnográfico, é pois importante para que não se eternize
nas Ciências da Saúde um discurso sobre a macrobiótica a partir das suas deficiências
em termos nutritivos. Na macrobiótica, tem havido, efectivamente, um esforço por
superar alguns dos problemas observados no passado. A macrobiótica não é um sistema
fechado, tem sido objecto de recomposição e de adequação a diferentes contextos.
Encontra-se envolvida em relações dinâmicas que têm conduzido a algumas
transformações nas suas perspectivas, como, aliás, a autora desse trabalho também
salienta ao apresentar a macrobiótica. Neste quadro, podemos constatar que, enquanto
os trabalhos emanados das Ciências da Saúde sobre a macrobiótica, tendem a ser
elaborados a partir das deficiências, em termos nutritivos, que foram reconhecidas nesta
orientação alimentar (ver capítulo 2), estes aspectos tendem a não ser referidos nas
sessões de formação na área da macrobiótica, como se estes ensombrassem essa
proposta alimentar e a tornassem menos atractiva. Diferentes formas de perspectivar um
mesmo problema são assim propostas, sendo o discurso adoptado concordante com o
lugar a partir do qual é produzido.
É de notar ainda, a propósito do tipo de confecções que foi ensinado neste curso
de cozinha, que, muito embora essas confecções estejam enquadradas em termos de
classificação yin e yang, são por vezes apresentadas, noutros contextos mais
mediatizados, como a televisão, apenas por referência às características energéticas e
nutritivas dos alimentos. A menção aos minerais e vitaminas é uma constante para
afirmar o poder desta comida, uma comida que «limpa», «energiza», «cura»,

246
A Macrobiótica em Portugal

«equilibra» e «sintoniza o Homem com a ordem do universo», como dizem. Assim se


misturam saberes leigos e saberes periciais e se sugere que a familiarização, cada vez
mais recorrente com as características nutritivas dos alimentos, coloca também
exigências de linguagem à macrobiótica, de tal forma que se vê assim impelida a
apresentar os alimentos através de um tipo de discurso que emana da actividade
científica que tanto questiona.

247
Sistemas terapêuticos em confronto

Capítulo 5

Sistemas Terapêuticos em Confronto: Práticas Marginais e Sistemas


Dominantes

5.1 Macrobiótica: um Sistema Terapêutico

5.1.1 Nas margens do poder biomédico

Parece-me que um dos fenómenos fundamentais do século XIX correspondeu ao


que se poderia classificar como processo de apropriação da vida pelo poder.
Tratou-se, na verdade, de uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser
vivo, uma espécie de estatização do biológico, ou, pelo menos, uma tendência
que conduziria ao que podemos classificar como a estatização do biológico.120
Foucault. (1997: 213 [1976])

Com estas palavras inicia Foucault a sua lição de 17 de Março de 1976 no


Collège de France, uma lição que viria a ser marcante para todas as disciplinas
interessadas em analisar sistemas sociais. Aí seriam abordados temas que serviriam de
inspiração a diversas gerações de investigadores: a apropriação da vida pelo poder, o
biopoder, as áreas de aplicação do biopoder. Estes conceitos, estruturadores de muitos
dos discursos centrados no corpo e nas formas de o regular e disciplinar, continuam hoje
a ser pertinentes e constituem uma das vias através das quais pode ser empreendido um
caminho de desocultação de relações e de discursos tornados verdade, para usar uma
categoria cara a Foucault.
A perspectiva teórica de análise do corpo que a partir de Foucault seria
desenhada, tenderia, assim, a realçar a importância de estruturas através das quais se
estabeleciam relações de dominação/sujeição. Tomadas como indispensáveis à
manutenção da ordem social instituída, essas relações constituíram o foco das atenções
de uma forma de perspectivar as sociedades que tomou o poder e a apropriação da vida
pelo poder como dimensão fundamental para interpretar a vida social. Neste contexto, o
relevo dado às escolhas individuais que não surgiam enquadradas nessas relações de
dominação/subordinação, ou que, de algum modo, não as suportavam, foi escasso. A
prioridade dada às estruturas e às diferentes modalidades de criar constrangimentos
120
Tradução livre.

249
«À Mesa com o Universo»

sociais, constituiu efectivamente o núcleo essencial de análise nessa perspectiva teórica.


A primazia dada ao peso da estrutura social, retirou, desta forma, importância a aspectos
como a agencialidade, dificultando assim que se atentasse, com a mesma insistência, em
processos e acções que podiam contribuir, ainda que de forma subtil, para a
transformação de sistemas dominantes.
Sem procurar, no contexto deste trabalho, retirar importância às formas mais
institucionalizadas de funcionamento que condicionam a acção social, até porque, como
veremos, elas são efectivas, considero que, na maior parte dos casos específicos que
analiso, as escolhas individuais relativas à saúde e cuidado do corpo se afastam da acção
do Estado e do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Nas tomadas de decisão
relativamente ao corpo, de que darei conta, podemos observar que há situações de
desobediência face àquilo que é recomendado pelos médicos e que há uma procura de
soluções que não se encontra enquadrada no Estado. Deve ser sublinhado, ainda assim,
que essa busca de soluções não significa sempre que os indivíduos se queiram
posicionar à margem daquilo que lhes é proporcionado pelo Estado, mas, antes, que não
encontrando respostas satisfatórias para os seu problemas no leque de possibilidades
que lhes é oferecido pelo SNS, optam por soluções que se afastam da medicina
convencional ou que surgem articuladas com esta. Ao invés de pretenderem manter-se à
margem do Estado, alguns gostariam de poder encontrar dentro do Estado soluções que
permitissem a realização das suas escolhas, tal como é, de resto, proposto por Cunha e
Durand a propósito da vacinação (2011). A discussão que a partir daqui se pode
empreender remete necessariamente para uma discussão em torno das políticas de saúde
e políticas do corpo, dimensão que, face à procura de cuidados de saúde fora do quadro
do SNS, cada vez mais urge debater. É certo que cuidados de saúde fora do âmbito da
acção do SNS existem desde há muito, mas, o facto de ter sido empreendido um
processo de institucionalização das terapêuticas não convencionais pode ser visto como
revelador da importância que esta questão tem vindo a assumir na sociedade portuguesa.
A análise de representações e de práticas situadas nas margens sociais, como as
que surgem associadas à macrobiótica, pode contribuir para evidenciar formas de acção
que não são de total sujeição em relação a orientações dominantes, ainda que com elas
dialoguem. De facto, muitos dos indivíduos que adoptaram a macrobiótica enquadram-
se na acção de diferentes órgãos representativos do poder e não se isentam de participar
em modelos de organização que, todavia, contestam em diversos dos seus aspectos. O
que procuro afirmar é que as representações e práticas que caracterizam muitos dos que

250
Sistemas terapêuticos em confronto

seguem a macrobiótica os conduzem a fazer opções que são distintas das práticas
dominantes. Mais ainda, essas representações levam-nos, frequentemente, a discursos
de contestação em relação a modelos e orientações estabelecidas, muito embora estes
discursos não se expressem, habitualmente, de forma colectiva e organizada. Esses
discursos de questionamento, sobretudo em relação ao sistema alimentar e em relação
ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), associados a práticas alternativas, acabam por
traduzir formas de experienciar o corpo que, argumento, acabam por ter efeitos, ainda
que subtis, ao nível das orientações e forma de organização dominantes.
Destas práticas de fronteira decorre um tipo de consequências cujo efeito não é
perceptível de forma imediata, mas que acaba por gerar transformações não só nas
concepções, mas também nas formas de acção. Explorei em capítulos anteriores
situações que me pareciam revelar este tipo de efeitos, designadamente o contributo da
macrobiótica para a transformação do mercado alimentar nas sociedades euro-
americanas, através do incentivo ao consumo de certos produtos alimentares - sobretudo
cereais integrais, derivados da soja e produtos biológicos. Procurei ainda apontar que
propostas recentes de pirâmides alimentares, apresentadas no campo das Ciências da
Nutrição, sugeriam que havia um efeito de ressonância por relação ao que se defendia
na macrobiótica (ver capítulo 2). Julgo que ao nível dos sistemas de saúde é possível, do
mesmo modo, observar transformações que derivam de uma procura crescente de
cuidados de saúde habitualmente classificados como alternativos. A integração de
medicinas alternativas em centros onde são disponibilizadas especialidades médicas
«clássicas» (Kaptchuk e Eisenberg, 2001; Franco, 2010), bem como a inclusão de
terapêuticas não convencionais no feixe de consultas apoiadas por algumas seguradoras
implicam um conjunto de serviços disponibilizados distinto do de um passado recente.
Considero que este facto é resultante de um conjunto diversificado de processos, entre
os quais saliento a procura, por parte dos consumidores, deste tipo de serviços. Acredito
que esta procura, associada frequentemente a representações sobre o corpo que escapam
a lógicas dominantes, como é o caso da macrobiótica, contribui, ainda que de uma
forma que não é ainda inteiramente perceptível e passível de ser demonstrada, para uma
transformação dos serviços de saúde, tal como foram concebidos num passado recente,
e que, a prazo, implicarão novas conceptualizações sobre a saúde e novos modelos de
organização deste sector.
Neste sentido, a relação entre terapêuticas convencionais e não convencionais
deve ser vista como dinâmica e não apenas como sendo regida por uma lógica de

251
«À Mesa com o Universo»

dominação e subordinação. Esta noção - relação dinâmica - inspirada na leitura de


trabalho de Mónica Saavedra (2011) sobre a vacinação, trabalho onde a autora propõe o
conceito de «hegemonia dinâmica» para analisar a vacinação enquanto processo social,
é na verdade relevante no contexto deste trabalho. Permite-nos olhar para as práticas
sociais, mais ou menos institucionalizadas, como actos relacionais que colocam
diferentes agentes numa situação de interacção, podendo a partir daí ocorrer alguma
transformação nessas práticas.
Como é do conhecimento geral, a aceitação social das terapêuticas
convencionais e não convencionais é distinta, não dando lugar tais formas de tratamento
a parceiros com igual peso nos processos de negociação. Ainda assim, por vezes, é a
partir das margens que vão sendo dados sinais para a alteração de modos de pensar e
organizar os serviços de saúde. É certo que as terapêuticas não convencionais não têm
conhecido um sucesso idêntico e que os processos de institucionalização que lhes
assistem também não são exactamente os mesmos (Franco, 2010), mas, no seu
conjunto, julgo que já estão a contribuir, ainda que de forma tímida, para transformar a
organização dos serviços de saúde. As práticas menos integradas no sistema e com um
estatuto de maior marginalidade (marginalidade diferente e relativa, de acordo com a
terapêutica) podem, assim, ser perspectivadas como concorrendo para a erosão de certos
modelos instituídos, contribuindo, desta forma, para o seu desaparecimento, pelo menos
tal como os conhecíamos no passado. Tal não coloca em perigo, necessariamente, os
sistemas sociais, mas vai realçando as suas fragilidades e assinalando caminhos através
dos quais pode ser ensaiada a mudança. Nesta medida, podemos perspectivar as práticas
alternativas como inputs dados ao sistema no sentido da sua transformação. Estes
inputs, sublinho uma vez mais, não significam o seu desmantelamento, mas podem ser
vistos como promovendo discussões e decisões em termos de políticas do corpo, que
poderão conduzir a transformações, e, no limite, à reconfiguração de certos serviços,
como o SNS.
Assim, como foi destacado, em sistemas marginais, como a macrobiótica,
podemos reconhecer essa capacidade de influenciar actividades que cada vez mais
ocupam um lugar central, como a comercialização de produtos biológicos. Porém, da
mesma forma, foi também reconhecido que a macrobiótica se tem transformado em
virtude do modo como foi sendo apropriada e questionada em diferentes contextos. O
efeito de transformação que apontei, e que alarguei a diversas práticas, não deve assim
ser visto apenas numa direcção unívoca, estabelecida a partir de sistemas marginais e

252
Sistemas terapêuticos em confronto

com efeitos sobre sistemas dominantes, mas através de uma visão relacional e dinâmica,
que nem sempre está claramente estabelecida mas que vai fazendo o seu caminho.
Retornando às palavras de Foucault, e à ideia de apropriação da vida pelo poder,
mote para este capítulo, é necessário dizer que muito embora algumas das terapêuticas
não convencionais estejam a ser integradas em sistemas e modos de funcionamento que
participam daquele que é o modelo preponderante, há outras, como a macrobiótica, que
se têm mantido mais à margem desses processos e que revelam, justamente, um
conjunto de procedimentos menos integrado e que pode ser conflituante com
procedimentos estabelecidos e apoiados pelo Estado. O que procurarei evidenciar ao
longo deste capítulo não serão as transformações específicas nos serviços de saúde, que
podem ser associadas a práticas e concepções sobre o corpo de expressão mais residual,
mas, sobretudo, apresentar uma forma de abordagem do corpo, da saúde e da doença
que, na sua expressão marginal, não corresponde exactamente a uma visão estatizada
sobre o corpo. Tal como procuro argumentar, esta forma de abordagem, juntamente com
outras práticas, contribui para repensar as formas de conceber e organizar os serviços de
saúde.
Os indivíduos que adoptam processos de tratamento no âmbito da macrobiótica
colocam-se em diversas situações à margem dos serviços disponibilizados pelo Estado,
porque não acreditam nos processos terapêuticos propostos e se consideram alertados
para alguns dos perigos que podem correr nesses processos. Assim, tendo em
consideração os seus problemas específicos, procuram solucioná-los por recurso
exclusivo à macrobiótica ou, caso considerem essa opção relevante, em associação com
outras orientações terapêuticas. Estabelecem assim, frequentemente, relações
estratégicas com o SNS, pelo menos nas situações em que o acompanhamento médico
convencional é tido como imprescindível. Neste jogo, entre formas de conceber e
proceder, que por vezes são conflituantes, observa-se frequentemente a dificuldade em
fugir a um modelo estatizado de intervenção sobre o corpo, mas também se revela
agencialidade e tomadas de decisão sobre si que constituem uma renúncia aos serviços
disponibilizados pelo Estado. Envoltos numa teia de relações, que os faz balançar entre
diferentes perspectivas de abordar o corpo, a saúde e a doença, os indivíduos nem
sempre deixam que o seu corpo seja totalmente estatizado, antes mergulham, tanto
quanto possível, numa estratégia de conciliação entre diferentes universos de tratamento
- estratégia essa por vezes sugerida pelo próprio consultor na área da macrobiótica.
Interagem dessa forma com o poder biomédico e procuram manipulá-lo a partir das

253
«À Mesa com o Universo»

margens em que se situam. Estamos, pois, nessa área que é a da interacção das margens
com o centro, aqui representado pelo poder biomédico.

Perspectivo aqui a macrobiótica como sistema terapêutico, dada a forma


organizada, conjugada e interdependente como um conjunto de crenças e concepções
sobre o corpo se alia a um conjunto específico de procedimentos que visam a cura.
Essas concepções, organizadas sobretudo por Ohsawa e por Kushi, ensinam a ler o
corpo e a interpretá-lo, e têm a si associados discursos que ensinam como fazer
diagnósticos e utilizar procedimentos específicos de cura. O processo de cura na
macrobiótica encontra-se muito ancorado na alimentação - promoção e restrição de
certos alimentos (jejum em alguns casos), com recomendação de uso de remédios
específicos feito a partir da combinação de alimentos. Esse processo encontra-se
igualmente associado a um conjunto de formas de tratamento que não implicam
directamente o consumo de alimentos. O uso de compressas de gengibre, emplastros
específicos para certos problemas, técnicas para estimular a circulação sanguínea e
linfática, banhos, técnicas de do-in (auto-massagem), meditação, cânticos, promoção de
estilos de vida considerados mais saudáveis, etc. fazem parte de uma ampla panóplia de
formas de intervir e cuidar do corpo. Não terei oportunidade, no contexto deste trabalho,
de dar conta de muitos dos ensinamentos específicos que são feitos nos cursos de
formação, convém salientar, contudo, e desde já, que esses ensinamentos se apoiam em
teorias cosmológicas relativas ao que entendem ser a «Ordem do Universo», na energia
ki, nas concepções sobre yin e yang, na teoria das cinco transformações e no diagnóstico
visual, tal como foi sendo promovido por Ohsawa e Kushi, na tradição do fisionomista
japonês Mizuno Namboku (ver capítulo 3). Diagnósticos através do aspecto geral do
corpo, do rosto, dos olhos, da observação e palpação de mãos e antebraços foram
também aí abordados. A maior parte das orientações de tratamento no âmbito da
macrobiótica, acontecem no contexto de uma consulta, promovida por consultores nesta
área, que fazem dessa actividade profissão, havendo assim um encontro entre diferentes
agentes (consultor e consulente) com vista à promoção de um processo terapêutico 121.

121
O termo paciente pareceu-me desajustado, dado ser característico de uma linguagem utilizada no
âmbito das práticas médicas convencionais, Termos alternativos, como doentes, utentes, clientes, não me
pareceram opções mais adequadas.

254
Sistemas terapêuticos em confronto

O corpo na macrobiótica surge como um continuum em relação ao mundo


envolvente, existindo entre a dimensão corpórea, mental e espiritual esse mesmo
continuum (Kotzsch, 1981). Esta ideia de continuidade é reencontrável noutros
sistemas, designadamente na medicina ayurvedica, onde pode ser encontrada a ideia de
corpo e pessoa como entidades fluídas e penetráveis, em intercâmbio entre o meio social
e natural (cf. Langford, 2002). A espiral de materialização e de dissolução desenhada na
macrobiótica, encontra-se, de resto, em consonância com uma visão holística do
universo em que tudo se encontra interligado, conectado. Se, no passado, Ohsawa
chegou a defender a alimentação como única via através da qual deviam ser explicadas
as situações de doença e aquilo que de bom ou mau acontecia ao homem, numa fase
posterior da sua vida viria a afirmar a importância da atitude, integridade e
discernimento. A consideração das emoções e dos estados mentais foram referidos nos
cursos de formação como aspecto fundamental a considerar para que pudessem ser
empreendidos processos de cura. Neste capítulo, procurarei dar conta de concepções e
significados específicos em torno do corpo, saúde e doença, procurando evidenciar
práticas e discursos em torno deste sistema terapêutico que constituam formas de
distanciamento em relação a esquemas de cuidado do corpo mais estatizados. Teremos
oportunidade de observar que esta terapêutica não convencional se sustenta num
discurso de demarcação face à ciência e à biomedicina, mas que, paradoxalmente,
recorre com frequência a estudos científicos para afirmar certas orientações e
posicionamentos. Teremos ainda ocasião para analisar a forma estratégica como muitos
indivíduos se relacionam com o poder biomédico a partir da macrobiótica.

255
«À Mesa com o Universo»

5.1.2 Macrobiótica, Corpo, Saúde e Doença122

Apresento, seguidamente, concepções e orientações relativas ao corpo, saúde e


doença, tal como as pude captar em acções de formação e junto dos que têm a
macrobiótica como referencial de orientação. Identificar e problematizar essas
concepções e orientações implicará dedicar alguma atenção a processos discursivos de
demarcação face a outras formas de abordagem do corpo, particularmente aquelas que
costumam ser identificadas com a biomedicina e que orientam o Serviço Nacional de
Saúde (SNS). Os discursos de demarcação a que aludo parecem-me verdadeiramente
significativos, na medida em que consubstanciam uma retórica própria, justificadora e
legitimadora de um conjunto de saberes e de práticas. Esta retórica contribui para
“redireccionar” os indivíduos, facultando-lhes recursos de percepção e interpretação da
realidade. O posicionamento face aos cuidados de saúde é, portanto, elaborado através
de uma estratégia de demarcação que, em diferentes momentos, remete para
temas/situações como os que agora enuncio: dramatização do estado actual de saúde da
população em geral; medo difuso; responsabilidade individual, autonomia e, na linha de
Illich (1975), crítica da biomedicina, (actos médicos pouco humanizados, desatentos ao
indivíduo e à sua singularidade, abordagem alopática, técnicas invasivas, medicalização
excessiva dada a orientação para lucros de laboratórios e empresas farmacêuticas, etc.).
A análise destes aspectos será uma oportunidade para reflectir sobre a falta de
enquadramento que os partidários da macrobiótica encontram no SNS, dada a fraca
abertura deste para abordagens do corpo menos convencionais. Referido em contexto de
formação como tendo uma postura monolítica e de ignorância da pluralidade da
estrutura social e das representações culturais, este serviço é acusado de não satisfazer
muitos dos que reconhecem noutras formas de abordagem do corpo uma resposta mais
adequada às suas necessidades. Estes, entrados nessa zona de esquecimento ou mesmo
negação, fora da área de controlo e intervenção das políticas instituídas, manifestam um
sentimento de distanciamento e de desprotecção, denunciado tanto no que diz respeito
às comparticipações na aquisição de bens de saúde, como no que remete para o nível do
acompanhamento e vigilância dos cuidados atribuídos ao SNS. Entre os que aderem à
macrobiótica e adoptam outras formas de se tratar que não as convencionais, verifica-se,

122
Esta parte do trabalho foi apresentada no âmbito do seminário de estudos pós-graduados do ICS, em
2008. Beneficiou aí dos comentários de João Guerra.

256
Sistemas terapêuticos em confronto

assim, que se vêem frequentemente como contribuintes de um sistema de que pouco


beneficiam, pois apenas o usam de forma muito crítica e selectiva. Face a este cenário,
alterações nas políticas do corpo que acolhessem de forma mais adequada o pluralismo
terapêutico são, geralmente, vistas com bons olhos.

Tal como já foi antecipado, na macrobiótica, as doenças surgem de uma


ausência ou excesso de energia, de um desequilíbrio entre yin ou yang. Yin
corresponderia a uma natureza mais branda, mais expansiva, mais fria, mais negativa,
mais feminina, enquanto yang corresponderia a uma natureza mais activa, mais
contraída, mais quente, mais positiva, mais masculina. A água seria o yin perfeito e o
fogo o yang perfeito. Nesta óptica, um corpo são é visto como o resultado de um
equilíbrio energético entre yin e yang, algo que só pode ser conseguido através de uma
incorporação adequada de certos alimentos. Se a concepção da doença através das
categorias yin/yang nos remete imediatamente para a medicina tradicional chinesa, é de
assinalar, todavia, que a interpretação que se faz na macrobiótica dos princípios yin e
yang não é sempre inteiramente coincidente com a que podemos observar na medicina
tradicional chinesa ou no shiatsu123.
Muito embora nos cursos de macrobiótica sejam dadas orientações relativas a
estas formas de classificação, transmite-se também a ideia de que os conceitos de yin e
de yang não são conceitos inteiramente racionais. São antes conceitos intuitivos, que
nem sempre correspondem aos esquemas distintivos fornecidos, pois, de acordo com a
situação e o tipo de efeito, um aspecto yang pode ser interpretado como yin. Assim, em
contexto de formação e em conversa com colegas, foi-me referido que o café, enquanto
bebida, pode ser considerado yin, mas, nos seus efeitos mais imediatos, pode ser visto

123
A frequência de um curso de shiatsu (técnica de harmonização da energia ki, também referida qi ou
chi, através de pressão digital ou palma da mão em diferentes pontos dos meridianos) - ao longo de 304h,
entre 2002 e 2004 - decorreu do interesse pela macrobiótica e viria a permitir-me constatar que as
classificações em termos de yin e de yang não são inteiramente concordantes na macrobiótica e em
sistemas que concebem o corpo humano como sendo percorrido por meridianos. Órgãos que na
macrobiótica surgem classificados como yin (por exemplo, intestino grosso e estômago) vêem os
respectivos meridianos ser classificados nesses sistemas como yang. Uma das explicações que me foi
facultada por um dos formadores foi a de que Ohsawa teria modificado estas formas de entendimento
devido ao facto de usar a Terra e não o Sol como sistema de referência para a aplicação dos conceitos de
yin e de yang (!). De qualquer das formas, este problema parece ter sido resolvido na macrobiótica através
da distinção que se efectuou entre estrutura de um órgão e fluxo electromagnético desse órgão (ki) nos
meridianos. Assim, o coração terá uma estrutura yang, mas o respectivo fluxo no meridiano é yin.

257
«À Mesa com o Universo»

como yang, dado que é conotado com maior actividade. Por outro lado, os alimentos, ou
aspectos observados, que são yin ou yang, não são yin e yang exactamente da mesma
forma ou no mesmo grau. O sal, pela forma contraída que apresenta, é yang, mais yang
do que os ovos, que também são muito contraídos, mas estes são mais yang do que a
carne e esta mais yang que o peixe. A água enquanto líquido é yin, mas se estiver
solidificada, ainda que mais fria (aspecto yin), é mais yang, porque mais contraída (ver
tabela de classificação de alimentos no final). Como se pode ver a fronteira entre estas
categorias nem sempre é clara, e a sua aprendizagem implica, como constantemente é
referido em contexto de formação, treino, aprendizagem e desenvolvimento da
capacidade intuitiva. Vemos também aqui que este esquema à primeira vista dualista de
interpretação do mundo oferece muitos cambiantes e gradações, gerando por vezes uma
confortável ductilidade e ambiguidade. Vejamos, de seguida, algumas das concepções
sobre saúde e doença, bem como as respostas específicas dadas no âmbito da
macrobiótica124.

Uma das concepções que vigora entre muitos dos seguidores da macrobiótica
que contactei, e que deriva das sessões de formação a que assistiram, é a de que a saúde
não é um estado mas um processo, um processo que implica atenção contínua e
interacção adequada com o ambiente. “A saúde e a doença são relativas e mudam
constantemente de uma para outra”, foi afirmado por um dos formadores. De acordo
com esta perspectiva, não existe ninguém absolutamente saudável, pois há sempre
necessidade de “fazer certos ajustamentos”. A saúde, entendida como tendo a ver com a
“capacidade de alinhamento” num processo de doença, estaria relacionada, como
referem, “com a capacidade de nos adaptarmos à vida, sem entrarmos em stress e sem
necessitarmos de um grande esforço”. Assim, quanto mais fácil fosse a “adaptação a
condições internas e externas” mais saudáveis seríamos e mais claramente se revelaria o
nosso equilíbrio energético em termos de yin e de yang. Num dos documentos que me

124
Não parto aqui da ideia de que a saúde e a doença sejam factos inteiramente objectivos e constato que
mesmo na macrobiótica por vezes é difícil referir com clareza o que é a saúde. Conforme nota Gadamer, a
saúde é mais “um facto psicológico-moral do que um facto demonstrável pelas ciências
naturais”.(1997:28) e “a doença, a perda do equilíbrio não é apenas um facto médico-biológico, mas
também um processo relacionado com a história da vida do indivíduo e com a sociedade” (op. cit: 48). É
no sentido da afirmação da doença como tendo uma inequívoca dimensão cultural que se expressam
autores como Kleinman (1980) ou Janzen (1982).

258
Sistemas terapêuticos em confronto

foi fornecido no Curso Curricular de Macrobiótica, podia ler-se: a saúde é “um processo
onde é permitida à base biológica da nossa existência um funcionamento com o mínimo
de tensão, permitindo um máximo de exploração e interacção com o mundo à nossa
volta”125.
Em contrapartida, as doenças surgiriam como diminuição nessa capacidade de
interacção. Seriam frequentemente o resultado de um desrespeito pela natureza e
revelariam ausência de sintonia com o meio envolvente. São vistas como “uma
capacidade decrescente de interagir com o ambiente de forma produtiva para o
desenvolvimento do nosso próprio potencial, conduzindo a um isolamento cada vez
maior” (idem). Recomenda-se, no entanto, que não se encare a doença como um
acontecimento inteiramente negativo. Ela pode surgir como oportunidade para “prestar
atenção à alimentação”, “recuperar a harmonia” e promover o “desenvolvimento
pessoal”. Por vezes surge como sinal de que devem ser feitas alterações no estilo de
vida126. Há assim uma visão da doença como experiência transformadora. Foi
justamente nesse sentido que se expressou uma das mulheres que contactei:

Trabalhava até mais não, esquecia-me de mim e só pensava nos outros e no


trabalho, até que tive que abrandar quando me foi diagnosticado um cancro de
mama, devia mesmo ter parado durante mais tempo. Este período de tratamento
tem-me feito olhar para as coisas de outra maneira. [professora, 36 anos]

Numa outra situação, uma mulher [educadora de infância, 45 anos] com um caso
sério de urticária, mononucleose e outros desarranjos, só ao ter um acidente com um pé,
que a obrigou a ficar em casa, é que começou a constatar que estava a melhorar dos
problemas e que isto se devia ao descanso, pois os seus problemas de saúde pareciam
ter a ver com excesso de actividade. Acontecimentos como estes podem ser relatados
pelos mais diversos tipos de pessoas, facto que não constitui, evidentemente, uma
especificidade dos simpatizantes da macrobiótica. O que interessa salientar é que na
macrobiótica é desenvolvida uma forma de perspectivar estes problemas que salienta a
dimensão de ensinamento que a doença pode ter. Incentiva-se, por isso, aqueles que se
vêem afectados a procurar compreender os sinais que a própria doença lhes envia, sendo

125
Instituto Macrobiótico de Portugal, Textos de Apoio, Curso Curricular de Macrobiótica, Nível 1, 2005.
126
A este propósito, vale a pena referir que alguma literatura costuma ser recomendada para promover
outra forma de ver a realidade. Um dos livros que me foi apontado como significativo para aprender a ver
a doença de outra maneira foi um livro de Dethlefsen e Dahlke, A doença como caminho, Cascais,
Pergaminho, 2002.Texto publicado numa editora que se direcciona para os livros de auto-ajuda e
desenvolvimento pessoal.

259
«À Mesa com o Universo»

que esses sinais assumem muitas vezes a forma de “mensagens espirituais”. Então, é a
visão particular do mundo que a macrobiótica apresenta que ajuda, como referem, a
“abrir os canais de cura”.
Num discurso de demarcação relativamente à medicina convencional foi-me
referido que na macrobiótica podem ser considerados três tipos de medicina: a medicina
superior, que trataria a Humanidade; a medicina média que trataria as causas e a
medicina inferior que trataria os sintomas. A medicina convencional é claramente vista
como procurando, sobretudo, eliminar os sintomas e, nessa medida, qualificada de
inferior, uma vez que não prestaria atenção ao Homem como um todo, antes o dividindo
em partes, esquecendo assim a relação entre diferentes órgãos e entre corpo, mente e
espírito.
Neste âmbito, foi-me referido:

Em situações diversas como por exemplo uma amigdalite ou uma apendicite, o


que se costuma fazer em muitos casos é retirar estas partes do corpo humano,
sem procurar compreender porque surgiu o problema. Actuam como se esses
órgãos não fizessem falta para nada. Ora, as amígdalas e o apêndice são muito
importantes enquanto elementos de alarme. São sinalizadores de yin ou de yang
excessivo na alimentação. Quando há uma situação de amigdalite isso é sinal de
que se está numa condição muito yin (muitos líquidos, doces, comidas que
arrefecem o corpo…). E quando há uma situação de apendicite isso significa que
a condição é muito yang, com consumo excessivo de carne e poucos ou nenhuns
vegetais. A maior parte das vezes as pessoas retiram estes órgãos e não
modificam nada na alimentação, o que está mal. A doença deveria ser um sinal
para fazer mudanças, pois o corpo procura mostrar que está a ressentir-se das
condições a que está a ser exposto. [Professor na área da macrobiótica]

Face a este tipo de práticas a macrobiótica procura, como referi, distanciamento


crítico. Afirmando-se como estando mais próxima de uma medicina que pretende tratar
a humanidade, dirigida a cada um de forma particular, procura realçar a ideia de que só
tratando o indivíduo é possível alterar o todo social.
O modo como na macrobiótica se procura o bem-estar centra-se, numa primeira
fase, na alimentação e no estilo de vida, tal como já foi referido. Só depois de esgotadas
as possibilidades de tratamento através desta via é que se recomenda que se façam
abordagens que exijam o conhecimento de especialistas. Assim, dever-se-á começar por
prestar atenção à alimentação e adoptar um “estilo de vida natural”, usando remédios
caseiros caso seja necessário, praticando exercício, procurando estar em contacto com a

260
Sistemas terapêuticos em confronto

natureza, usando técnicas respiratórias, fazendo chi-kung127, meditação, cantando,


fazendo auto-massagens, etc. Só quando não se conseguem resolver os problemas
através deste tipo de práticas é que se devem procurar técnicos de “ajustamento natural
da energia”, que pratiquem, por exemplo, shiatsu, acupunctura, moxa ou outras técnicas
de manipulação do chi (ki, qi, energia vital). Caso este tipo de técnicas não venha a dar
resultado, podem então ser procuradas outras formas de tratamento como a homeopatia,
a ayurvédica ou outros “tratamentos populares”. Nesta fase, e caso não tenham sido
obtidos resultados significativos, é ainda possível recorrer a suplementos alimentares e
vitamínicos, a hidroterapia, a tratamentos electromagnéticos ou a consultas na área da
psicologia. Só quando estas possibilidades de cura se esgotarem é que se deve recorrer
aos medicamentos e a outros tratamentos ainda mais invasivos como a cirurgia,
quimioterapia, radiologia, etc. Esta é entendida como a “ordem natural” através da qual
se deve procurar o bem-estar. Porém, costumam referir os formadores:

Começa tudo ao contrário. Em vez de se procurarem soluções com menos


efeitos secundários, começa-se logo a tomar medicamentos e a intoxicar o
corpo. Há medicamentos de que o corpo nunca se livra e outros que demoram
anos a ser eliminados. São estes os resultados de muitas práticas médicas.

Como vemos aqui, o acesso aos cuidados de saúde prestados pela medicina
convencional, não constitui um interdito. Muitos dos que praticam alimentação
macrobiótica referem que em situações de acidente ou em casos específicos como uma
crise de apendicite, o melhor é recorrer aos hospitais e aos médicos que neles trabalham,
mas em muitos outros casos, e sobretudo em doenças crónicas, considera-se preferível
procurar outro tipo de abordagem. Ou seja, é também pelo quadro de impotência na
medicina convencional face ao tratamento de doenças como as doenças crónicas,
degenerativas e debilitantes que se externalizam estes cuidados de saúde e se admitem
outras vias de tratamento (Clamote, 2006). Defendem os seguidores da macrobiótica
que o que é realmente mais adequado é procurarmos uma alimentação capaz de evitar
muitos problemas. Como se percebe, não há propriamente uma recusa absoluta dos
cuidados de saúde, mas antes um uso selectivo, que evidencia estratégias específicas de
relação com o poder biomédico.
Num quadro como este, facilmente surgem problemas quando necessitam de
recorrer a profissionais ligados às terapêuticas não convencionais e não encontram
127
O Chi-Kung consiste em exercícios e meditação como forma de activar a energia Chi. Apoia-se nos
princípios de yin e de yang.

261
«À Mesa com o Universo»

enquadramento legal ou qualquer tipo de comparticipação por parte do Estado. Por


exemplo, quando necessitam de faltar ao trabalho por estarem doentes, continuam a ter
que recorrer ao médico para obterem o certificado comprovativo do seu estado, ainda
que frequentemente ignorem as prescrições que lhes são feitas. O facto do grupo
profissional dos médicos deter o monopólio sobre a comprovação legal do estado de
doença é algo que gostariam de ver alterado, pois entendem que “a medicina
convencional” nem sempre é a resposta mais adequada aos seus problemas.
Na macrobiótica, um dos passos fundamentais para que as pessoas se sintam
mais saudáveis tem a ver com mudanças na alimentação. A comida, enquanto forma de
incorporação do ambiente no indivíduo, deve ser seleccionada de forma criteriosa, para
permitir níveis energéticos mais adequados, dado que uma alimentação deficiente,
excessiva ou desequilibrada origina doenças. Na perspectiva da macrobiótica, a
“alimentação moderna” e o “uso indiscriminado e exagerado que se faz de fármacos”
são vistos como razões que ajudam a explicar o “declínio geral das funções imunitárias
naturais”. A alimentação deve ser adaptada, tal como já foi referido, ao contexto
geográfico, ao clima, estações do ano e às necessidades específicas individuais. Deve
ainda dirigir-se, maioritariamente, para os cereais integrais e outros vegetais 128.
A alimentação é vista também como sendo responsável pelos estados
emocionais, de tal forma que “afecta o modo de pensar”.

Os alimentos ingeridos são processados pelo organismo de forma a produzir o


sangue, que alimenta os diversos tecidos do corpo, e o cérebro é também,
evidentemente, alimentado pelo sangue, dependendo assim o seu desempenho e
até a qualidade das nossas ideias do tipo de alimentos ingeridos [Formador na
área da macrobiótica]

Salienta-se ainda nas sessões de formação que muito embora os efeitos da transferência
da alimentação para o corpo sejam em alguns casos muito subtis, esses efeitos ocorrem
sempre. Alimentos mais yang produziriam uma energia mais yang (rápida,
concentrada…) e alimentos mais yin produziriam uma energia mais yin (suave,
expansiva…). Neste contexto, defendeu o formador:
128
Como referi, a pirâmide com a dieta alimentar padrão, proposta por Kushi (cf. Varatojo e Romão,
2005b:24) para um clima temperado, inclui diariamente, 40 a 60%, em peso, de cereais integrais; 20 a
30%, em peso, de vegetais (inclui pickles), 5 a 10%, em peso, de leguminosas e derivados, bem como de
algas (devem ser usadas em pequenas quantidades); temperos e condimentos, bem como óleo vegetal.
Semanalmente, e de forma ocasional, podem ser utilizados frutos, sementes, oleaginosas, adoçantes
(nunca açúcar refinado) e peixe. Mensalmente, opcionalmente, ou numa fase de transição de tipo de
alimentação, é admitido, ainda que não incentivado, o consumo de lacticínios, ovos e carne.

262
Sistemas terapêuticos em confronto

Quando as pessoas querem ficar mais concentradas devem comer mais yang,
usar mais miso e arroz integral. Se quiserem ficar mais yin, devem consumir
mais vegetais aéreos e menos raízes. Devem evitar consumir fritos, porque os
fritos, pelo seu tipo de energia, provocam dispersão mental.

Por este tipo de concepções se pode perceber um aspecto fundamental desta proposta de
orientação no mundo, que tem a ver com a compreensão dos alimentos como sendo
fundamentalmente energia, melhor dizendo, uma forma de transformação da energia
disponível no universo (energia ki). Cada alimento tem as suas características próprias
do ponto de vista energético, características que são transferidas para o corpo quando o
alimento é incorporado. Na relação com o mundo e com os outros, cada um libertaria
esse tipo de energia, uma energia que na macrobiótica tem um peso considerável na
compreensão das formas de acção.
É neste quadro que se divulgam as linhas principais para avaliar sobre uma
“condição equilibrada” e que foram definidas por Ohsawa (1976) como as sete
condições da saúde e da felicidade. São elas:1) a ausência de fadiga; 2) bom apetite; 3)
sono profundo; 4) boa memória; 5) bom humor e mente calma, vendo as dificuldades
como desafios; 6) rapidez e dinamismo de raciocínio e de execução; 7) sentido de
justiça. A esta última condição, Ohsawa juntaria, mais tarde, a importância da
honestidade e integridade 129. A gratidão pela vida permeia cada uma destas condições.
Verificamos assim que o entendimento sobre o que é um corpo equilibrado ou saudável
procura ir de encontro ao paradigma holístico que defendem, na medida em que procura
integrar na concepção de saúde critérios abrangentes e relativos ao indivíduo enquanto
todo. Aspectos físicos e avaliações de carácter moralista são assinalados como devendo
pesar na análise sobre o modo como as pessoas se encontram. Alguns dos factores mais
relevantes para garantir a saúde passariam, sublinho uma vez mais, pela alimentação e
estilo de vida, pela actividade física, por uma vida emocional e social equilibrada e pela
auto-reflexão. Este último aspecto é bastante significativo, porque se encontra associado
à ideia de responsabilidade individual. Na macrobiótica é frequentemente reiterada a
ideia de que a doença e a saúde são da responsabilidade de cada indivíduo.
Independentemente do contexto em que viva, do sistema social em que esteja integrado,
o indivíduo é perspectivado como sendo o responsável pelo que lhe sucede. Esta
perspectiva, na medida em que isenta os sistemas sociais de responsabilidades, pode,

129
Dados recolhidos em cursos de formação sobre macrobiótica.

263
«À Mesa com o Universo»

naturalmente, favorecer uma abordagem neoliberal dos serviços públicos de saúde. Mais
adiante retomarei esta questão.
Se os sinais referidos acima servem para avaliar sobre o estado de saúde, outros
podem ser classificados como sintoma de doença e ser apresentados como sequência
comum em situações de enfermidade. Um dos primeiros sintomas apontado é o cansaço
e falta de vitalidade, que afectaria numa primeira fase os intestinos, que ficariam
sobrecarregados, a que se seguiriam os rins, numa fase em que o cansaço se teria
tornado crónico. Um segundo sintoma seriam as dores e falta de flexibilidade, que
revelariam localização de toxinas nas zonas articulares. Neste caso, seriam o fígado e a
vesícula que evidenciariam dificuldades de eliminação. Um terceiro sintoma, revelador
de uma situação mais grave, seria a toxicidade do sangue, frequentemente associada a
problemas de pele (eliminações através da pele). O quarto, corresponderia a tensão e a
libertação emocional. O quinto sinal de doença corresponderia já a desordens
degenerativas e incapacidade do corpo fazer ajustamentos. O sexto nível teria a ver com
a degeneração do sistema nervoso e o sétimo com arrogância e isolamento. Este último
aspecto remete, assim, para a questão da atitude, domínio que é considerado
fundamental no processo de cura. Quando se chega à “arrogância e ao isolamento” isso
significa que a doença não foi uma oportunidade de desenvolvimento pessoal.
Um dos factores que é realçado na macrobiótica como condição de saúde, tem a
ver com o modo como o nosso corpo elimina. Se houver boa eliminação (intestinos que
funcionam bem, ausência de retenção de líquidos, etc.) não se entrará nos três últimos
estádios referidos anteriormente. De acordo com esta perspectiva, as mulheres teriam
uma esperança de vida maior porque eliminavam mais que os homens (a menstruação e
até o facto de “falarem mais que os homens” são apontados como exemplo dessa maior
capacidade de eliminação). Algumas doenças são mesmo vistas como formas
patológicas de eliminação e ajustamento. Diabetes, hipertensão e colesterol elevado,
seriam vistos como manifestações resultantes de dificuldades de eliminação e, numa
primeira fase, poderiam ser classificadas como “doenças de ajustamento”. O sarampo é
também visto como forma de eliminação, “eliminação do yang acumulado durante a
gravidez”! Por esta razão, a vacinação das crianças contra esta doença traduzir-se-ia na
afectação dos processos de eliminação e na fragilização do sistema imunitário. Acredita-
se mesmo que a “medicina moderna” bloqueia os processos de eliminação que estão

264
Sistemas terapêuticos em confronto

ligados às doenças, pois impede que estas se manifestem, contribuindo, dessa forma,
para a referida fragilização do sistema imunitário 130.
Numa das sessões de formação que frequentei, defendeu o formador que as
formas de tratamento deviam ser naturais, pois, de acordo com Hipócrates, “todas as
doenças tinham causas naturais e, por tal razão, a cura também devia ser natural”. O
pressuposto de que se parte é o de que o ser humano, enquanto elemento do mundo
natural, participaria de uma certa ordem e tendência para o equilíbrio, sendo toda a
intervenção médica uma tentativa de restaurar o equilíbrio alterado. Esta concepção
adequa-se à ideia grega de natureza onde o todo é concebido “como uma ordem em que
os processos naturais se repetem e decorrem dentro de ciclos fixos (…) a natureza é
algo que se mantém a si mesma e por si mesma nos seus próprios carris” (Gadamer,
1993: 43), tal como acontece na concepção da natureza associada à teoria das cinco
transformações, e na macrobiótica em geral, a natureza é uma entidade harmoniosa com
a qual os humanos devem estar em consonância, devendo seguir os seus ritmos fixos.
Aprender a observá-los e interpretá-los, procurando uma adequação aos mesmos,
constitui, já por si, um factor de saúde. Associando a macrobiótica a outras propostas no
âmbito da naturopatia, e procedendo-se como se os conselhos a dar tivessem igualmente
relevo na macrobiótica, procurou-se criar a ideia de uma raiz comum nestas formas de
tratamento - concepção que é, de resto, também sugerida por Needham (1996) -, que
permitiria que certos conselhos fossem adoptados por todos e que se misturassem
conhecimentos relativos a diferentes formas de abordagem do corpo. Partindo desta
ideia, o formador referiu aquilo que considerava serem os “pilares da saúde natural” e
que deveriam acompanhar qualquer conselheiro no âmbito da macrobiótica.
Um dos primeiros aspectos referidos recomendava que se prestasse atenção ao
hara (centro físico situado na zona abdominal, imediatamente abaixo do umbigo), pois
era aí que se encontrava a força vital. Uma zona muito tensa ou muito frouxa poderia
denunciar uma condição mais yang ou mais yin. Em segundo lugar, deveria promover-
se um “certo higienismo”. Na medida em que as doenças são consideradas geralmente
como externas, factores como a alimentação, o sítio onde se vive, a casa que se habita, o
exercício físico, a cama onde se dorme, ou o tipo de roupas que se usa, devem ser

130
Num outro trabalho, desenvolvido no âmbito do projecto “A vacinação. Sociedade e administração do
corpo: abordagens antropológicas” PTDC/HAH/71637/2006, coordenado por Manuela Ivone Cunha,
analiso a questão da vacinação entre os que seguem a macrobiótica, procurando aí evidenciar como as
concepções sobre a saúde e doença podem conduzir à recusa da vacinação (Calado, 2011).

265
«À Mesa com o Universo»

considerados factores relevantes. Em terceiro lugar, devia-se ter em conta que “a doença
é geral e não local”:

Nunca afecta somente um órgão ou uma parte do corpo, mas deve ser
relacionada com o todo que é o corpo (se uma borbulha aparece no rosto, deve-
se prestar atenção ao meridiano ou órgão que está representado nessa parte do
rosto 131)”. [Formador na área da naturologia]

Em quarto lugar deveria ver-se qualquer doença como sendo sempre “uma manifestação
de auto-cura” e forma de “controlo dos danos”. “Quando o corpo canaliza para um
determinado lugar um certo número de toxinas, está a impedir que estas causem maiores
danos”. Em quinto lugar, e tal como já referi, a doença deveria ser considerada como
forma de autoconhecimento, “devemos aproveitar cada percalço para nos conhecermos
melhor”. Em sexto lugar foi apontada a importância de “prestar atenção aos principais
canais de eliminação (rins, intestinos, pele e pulmões)”. Em reforço desta ideia apontou-
se o facto de em várias escolas de saúde, de diferentes contextos, se começar sempre
pelos intestinos para observar a condição da pessoa.
É justamente nesse sentido que se expressa Ellen Salkeld (2005), ao desenvolver
análise etnográfica numa clínica de “medicina holística” nos EUA sobre a noção de
risco nos discursos de médicos que aí exerciam132. Ora, para que os intestinos
funcionassem bem era essencial o consumo diário de fibras, sendo ainda conveniente o
uso de produtos fermentados como o miso, shoyu, pickles caseiros, etc. Os rins,
enquanto órgãos de filtragem, são vistos também como importantes canais de
eliminação. A pele e os pulmões, enquanto órgãos de respiração, consideram-se
intimamente ligados. Dada esta ligação, quando se combatem problemas de pele através
do uso de cortisona, em lugar de se permitir que “o lixo absorvido” venha para o
exterior através da pele, estaria a promover-se a sua acumulação nos pulmões. Em
sétimo e último lugar, foi destacada a importância da boa disposição e optimismo na
resolução dos problemas. Como vemos, misturam-se aqui, uma vez mais, aspectos
fisiológicos com outros que têm a ver com questões ambientais, comportamentais e com

131
Remete-se aqui para o diagnóstico visual, tema ensinado nos cursos de formação. O rosto é uma parte
do corpo a partir da qual podem ser observados os principais órgãos do corpo humano.
132
Uma das pacientes que entrevistara relatara-lhe que o médico lhe teria dito que apesar de o sistema
imunitário dizer respeito a todo o corpo, 65% dessa imunidade residiria no intestino. Uma alimentação
inadequada sobrecarregaria as glândulas supra-renais e levaria a uma diminuição da actividade da tiróide.
Quando tal acontecia o fígado começava a libertar toxinas para o corpo em vez de promover a sua
excreção (cf. Salkeld, 2005: 326).

266
Sistemas terapêuticos em confronto

atitudes. Este cruzamento, caracteriza algumas das abordagens naturalistas, mas dá


conteúdo também à macrobiótica.
A origem da maior parte das doenças é vista na macrobiótica como estando
relacionada com um sistema imunitário fraco. Afirma-se que quando as defesas do
ponto de vista imunitário são fortes, as bactérias e vírus não têm oportunidade de causar
danos, já que não encontram um ambiente adequado para se desenvolver 133. Assim, a
atenção não deve dirigir-se para agentes patogénicos e forma de os debelar, mas mais
para o corpo e para o reforço do seu sistema imunitário. Este posicionamento, não é, de
forma alguma, uma novidade na abordagem das questões de saúde, é apenas mais uma
evidência de que como a noção de sistema imunitário tem invadido as teorias sobre as
doenças. Emily Martin (2000) refere a este propósito que a arena da saúde se encontra
saturada de referências ao sistema imunitário e que este conceito adquiriu hoje uma
importante centralidade nos debates sobre saúde e doença (cf. Martin, 2000: 125).
A abordagem da macrobiótica a doenças como o cancro expressa, justamente, a
importância do sistema imunitário e da alimentação. Só quando as células encarregues
de eliminar aquelas que se tornaram cancerígenas não se “encontram em boa forma” é
que “as outras podem avançar”. Esta debilidade teria a ver, sobretudo, com alimentação
e estilo de vida. De acordo com o que me foi referido, a genética apenas ajudaria a
explicar uma pequena percentagem de cancros.

Quando numa mesma família aparece ao longo de várias gerações o mesmo tipo
de doença, tal tem mais a ver com o padrão de alimentação que é mantido de
geração para geração do que com razões de carácter genético. [Formador na
área da macrobiótica]

Nesta óptica, um determinado padrão de alimentação levaria a acumulações nocivas, o


que significa dizer, uma vez mais, que o cancro surge como resultado de uma
dificuldade de eliminação.
Numa das sequências que me foi apresentada como conduzindo à formação de
tumores, pode observar-se a seguinte evolução: quando o corpo está em equilíbrio (1ª
fase) há uma eliminação normal; numa 2ª fase começa a observar-se uma eliminação

133
Alguns dos seguidores da macrobiótica, sobretudo formadores, referem que Pasteur, com a sua luta
anti bacteriológica, é exemplo dos “maus caminhos da ciência”, enquanto Claude Bernard, pela atenção
que deu ao «meio interno», ao conjunto físico-químico que banha todos os tecidos do corpo, é visto como
cientista notável a quem não foi dada a visibilidade merecida.

267
«À Mesa com o Universo»

anormal; numa 3ª fase começa a haver eliminação crónica através da pele 134; numa 4ª
fase ocorre acumulação, podendo observar-se gordura em torno de órgãos vitais; numa
5ª fase dá-se o armazenamento; na 6ª fase começa a haver degeneração do sangue e da
linfa e, por fim, na 7ª fase, surgem os tumores. De acordo com o que me foi relatado “a
maioria das pessoas tem uma condição pré-cancerosa”. Torna-se necessário, por isso,
dedicar atenção à alimentação, pois os tumores desenvolver-se-iam sempre num
ambiente de grande acidez e, à partida, tudo o que alcalinizasse mais o sangue
combateria o cancro.135
Outros factores são também referidos como catalisadores do cancro,
designadamente factores ambientais (poluição, radiação, stress) e emocionais, mas
também a utilização de medicamentos e produtos químicos presentes na alimentação 136.
Um tipo de cancro que derivaria, de forma clara, do uso de produtos químicos é o
cancro da bexiga. Um outro exemplo seria o do cancro do pulmão, que surge associado
ao consumo excessivo de carne, conjugado com álcool. A causa principal do cancro do
cólon, por seu turno, seria o consumo de carnes vermelhas.
De acordo com os princípios de yin e de yang, alguns destes cancros são
classificados como yin, outros como yang, outros ainda como sendo simultaneamente
yin e yang. Este tipo de classificação depende da localização do tumor no corpo
(superior/exterior - yin – inferior/interior – yang); tipo de órgão afectado e rapidez de
desenvolvimento. É ainda de acordo com esta classificação que devem ser definidas as
respostas para combater a doença. De uma forma geral, deve-se reduzir o consumo de
gorduras, açúcares e em alguns casos eliminar os óleos. Diversos formadores referiram
ter-se constatado que em indivíduos que tinham cancro, a eliminação de gorduras e

134
A pele não deve estar seca, se o estiver não permite a eliminação. A causa de uma pele seca teria a ver
com o facto de os poros estarem “entupidos com gordura”. A manteiga, o queijo e as natas seriam
exemplos de alimentos responsáveis por esta situação e o uso de cremes ainda ajudaria mais a “entupir os
poros”. A resposta dada para superar este tipo de problemas passa pela restrição relativamente ao
consumo desses alimentos, sendo ainda recomendado que se esfregue a pele com uma toalha quente e
húmida, de forma a abrir os poros e estimular a circulação. Este conselho foi seguido com tanto fervor por
uma senhora que tinha sido aconselhada a este tratamento no âmbito de uma consulta de orientação
alimentar, que a sua pele ficou “em carne viva” de tanto se esfregar.
135
Na macrobiótica defende-se que o sangue deve ser tendencialmente alcalino, devendo haver uma
relação adequada entre sódio e potássio, tal como defendido por um dos precursores da macrobiótica,
Sagen Ishizuka (ver capítulo 2). Uma condição ácida, gerada por alimentos provocadores deste efeito
(carne, açúcar…), constituiria um ambiente propício ao desenvolvimento de doenças. As células
cancerosas são também referidas como consumindo muito açúcar, razão pela qual pessoas que fossem
afectadas por tal doença deveriam suprimir os açúcares simples.
136
Para cada tipo de doença existiria um padrão emocional próprio. Assim, no caso específico do cancro
da mama, o padrão seria “tomar conta dos outros e não tomar conta de si”. A mama, por estar associada à
nutrição, estaria ligada a entrega, surgindo a doença como indício de entrega excessiva.

268
Sistemas terapêuticos em confronto

abaixamento de peso conduziram a uma regressão dos tumores. Julga- se que quando se
diminui significativamente a quantidade de alimentos, as células cancerígenas têm
menos possibilidade de se desenvolver. Este modelo de classificação permite que a cada
tipo de cancro seja recomendada uma dieta específica. Por outro lado, para além dos
cuidados com a alimentação, os indivíduos doentes devem procurar tomar conta de si e
rever situações ligadas ao trabalho e às emoções.
Relativamente a situações de cancro, realça-se que no caso de as pessoas estarem
a fazer tratamentos de quimioterapia/radioterapia ou outros, se procurarem conjugar
uma alimentação adequada com esses tratamentos, os efeitos secundários não serão tão
indesejáveis. A quimioterapia é vista como alterando significativamente a flora
intestinal e como diminuindo o número de glóbulos brancos. Nestes casos poderia ser
recomendada uma maior frescura nos alimentos consumidos, bem como tofu frito, que
“ajudaria a subir os glóbulos brancos”. Já quem tenha cancro dos ossos deverá ter o
cuidado de não se esquecer de consumir um pouco de óleo com vegetais, para ajudar a
fixar os minerais. O caldo de vegetais doces é considerado particularmente
recomendado para situações de quimioterapia e sempre que seja necessário equilibrar os
níveis de açúcar no sangue 137.
Para que melhor se aceda às concepções sobre a saúde/doença e tipo de respostas
encontradas, vale a pena procurar ilustrar essas concepções através de mais um
exemplo, neste caso a abordagem que na macrobiótica se faz da hipoglicemia. Para
além da enorme expressão demográfica que lhe é atribuída - calcula-se que este
problema afecte cerca de 2/3 da população ocidental – a hipoglicemia é relevante pela
seguinte razão “quando os níveis de açúcar baixam, as funções cerebrais tendem a ser
básicas” (Varatojo e Romão, 2006: 19). Os sintomas de hipoglicemia são numerosos:
sonolência, irritabilidade, instabilidade emocional, ansiedade intensa, sono após as
refeições, bocejos, dificuldade de concentração, fome - “pessoas que passam o dia a
depenicar”, “que não conseguem fazer nada pela manhã sem tomar o pequeno-almoço”
- entre outros sintomas. Uma das formas de avaliar esta condição seria observar o tempo
que as pessoas conseguem passar sem ingerir alimentos. Se conseguirem passar muito
tempo sem comer e ainda assim se sentirem com energia e boa disposição, isso é visto

137
O caldo de vegetais doces, um dos remédios caseiros mais recomendados na macrobiótica, terá sido
inventado por Kushi para combater sobretudo a hipoglicemia (níveis crónicos baixos de açúcar no
sangue). Prepara-se cozendo quantidades idênticas de vegetais doces (cebolas, cenouras, couve lombarda
e abóbora) no triplo do volume de água. Após uma cocção de 20m, côa-se o preparado e bebe-se uma
chávena quente ou morna. A frequência com que se bebe este caldo deve depender do estado em que se
encontra a pessoa (ver Varatojo e Romão, 2006: 19-20).

269
«À Mesa com o Universo»

como sinal de que não são hipoglicémicos. Na macrobiótica, esta condição tem um
estatuto intrigante, ela não apenas afectaria a maior parte da população ocidental, como
seria uma das principais causas de divórcio, segundo defendeu Kushi. A culpa ficaria a
dever-se à instabilidade emocional e irritabilidade que a hipoglicemia provoca 138. Um
factor que ajuda a explicar por que razão muitos dos pacientes não têm uma noção clara
do problema teria a ver com a prática frequente de efectuar análises ao sangue em
jejum, ou seja, numa altura em que a energia seria ascendente e os níveis de açúcar se
encontrariam mais altos – deveria ter-se presente que, após o repouso, a energia subiria.

Uma questão que não pode deixar de ser colocada relativamente a estes
entendimentos, tem a ver com os fundamentos e processos de legitimação em que se
apoiam. Dizem-me decorrer de muitos anos de observação e também de estudos
científicos que apoiam estas concepções. Constato que, por uma questão de eficácia
discursiva e de legitimação de uma prática de cura, é feito uso de estudos científicos que
apoiam estas posições. Michio Kushi parece ter constatado, desde muito cedo, a
importância dos estudos científicos como forma de legitimação da macrobiótica fora do
círculo estrito dos seguidores deste tipo de orientação. Numa das suas obras mais
conhecidas - The Book of Macrobiotics (1989) -, procura dar conta, justamente, dos
estudos científicos efectuados que evidenciariam os benefícios da adopção da
macrobiótica, importando aqui dizer que não dá igual destaque àqueles que apontaram
as deficiências, do ponto de vista nutritivo, na adopção desta dieta (ver capítulo 2). Em
contexto de formação, ainda que não seja afirmado, de forma explícita, que o
reconhecimento e legitimação externos da macrobiótica - quer enquanto sistema
alimentar quer enquanto sistema terapêutico – dependem da legitimação de carácter
científico, pressente-se que a recorrência a esse discurso e o seu uso selectivo concorre
para esse efeito que é de busca de legitimação.
A macrobiótica revela-se bem em sintonia com a ambiguidade e com o carácter
interceptivo que caracterizam muitos dos fenómenos e movimentos da
contemporaneidade. Não dispensa o conhecimento científico, mas mantém com ele uma
relação tensa, que incorpora processos de legitimação e de crítica. Se por um lado, se

138
Conferência proferida em Lisboa em 2002.

270
Sistemas terapêuticos em confronto

afasta de uma experiência do mundo suportada por argumentos racionais e científicos,


questionando-os e descredibilizando-os com regularidade, por outro, faz uso dos
trabalhos científicos que corroboram as posições defendidas na macrobiótica,
encontrando em tais argumentos razões de legitimação. Mais que isso, adopta por vezes
uma linguagem mais técnica e conforme à actividade científica, procurando, através deste
procedimento, tornar a proposta macrobiótica numa proposta mais rigorosa e credível. Na
verdade, este tipo de linguagem parece produzir entre os mais escolarizados um certo
efeito de familiaridade e reconhecimento, levando-nos a pensar que desta forma aderem
com mais facilidade às mensagens apresentadas.
Nesta paradoxal articulação entre uma vertente que procura sustentar-se em
argumentos científicos e racionais e outra mais de ordem espiritual, afinal de contas entre
ciência e ideologia (aspectos assumidamente inconciliáveis no discurso da modernidade),
observa-se todo um uso da tradição e trabalho de recomposição da mesma. Resulta daqui
uma proposta de orientação no mundo passível de maior aceitação, sobretudo de uma
proposta capaz de produzir sentido e gerar adesão junto de indivíduos urbanos e
escolarizados. Constata-se, neste cenário, que a legitimação da macrobiótica parece
implicar um trabalho de conciliação/articulação entre ciência e ideologia, como condição
necessária para legitimar a visão do mundo apresentada.
Numa sessão de formação sobre alimentação macrobiótica, podemos facilmente
passar de uma caracterização dos alimentos em termos de qualidade energética, quer
dizer, em termos de yin e de yang, para uma apresentação de gráficos com dados
obtidos a partir do The Nurses Health Study 1980-1992139 ou o The Honolulu Heart
Health Program 1965-1986140; da energia ki para revistas científicas, como o American
Journal of epidemiology ou o Archives of Internal Medicine. O consumo de leite, não
recomendado na macrobiótica, como sabemos, costuma ser um dos pretextos para a
apresentação de dados científicos que poem em causa alguns dos benefícios
habitualmente atribuídos ao leite. Um estudo apresentado numa dessas sessões,
Feskanich et al (1997), no American Journal of Public Health, dava-nos, justamente a
indicação, através do The Nurses Health Study 1989-1992, de que um consumo elevado
de leite e de cálcio não produzia qualquer efeito em termos de protecção contra fracturas
ósseas; outros dados, a partir do Iowa Women’s health Study 1986-1995 (Kushi et al.,

139
Estudo de grande alcance que foi estabelecido em 1976 por Frank Speizer e em 1989 por Walter
Willett. Resulta de questionários aplicados a mais de 100.000 enfermeiras de diferentes estados dos EUA.
Sublinha-se que se trata de um estudo em que são considerados 12 anos na apresentação dos resultados
140
Trata-se igualmente de um estudo que envolve milhares de americanos.

271
«À Mesa com o Universo»

1999), foram apresentados como evidenciando um aumento de risco de cancro no


ovário associado ao aumento do consumo de leite e ovos.

De acordo com os princípios defendidos na macrobiótica, a forma como a


energia se movimenta ao longo do dia é um aspecto a ter em atenção quando se quer
cuidar do corpo. Os fluxos energéticos teriam a ver com a teoria das cinco
transformações (teoria dos cinco elementos), desenvolvida na China, depois no Japão, e
mais tarde trabalhada na macrobiótica, sobretudo por Kushi. A ideia subjacente a esta
teoria é a de que ao longo do dia e ao longo do ano podemos observar diferentes formas
de energia, mais contractivas ou mais expansivas, mais yin ou mais yang. Nesta
mudança existiria uma ordem (tal como na concepção grega de natureza) que era
necessário entender. As diferentes estações do ano e os diferentes períodos do dia
revelariam qualidades energéticas extremamente relevantes no cuidado de certos órgãos.
Assim, e de forma muito simplificada, a Primavera revelaria uma energia ascendente,
em expansão, energia árvore, a que estariam ligados órgãos como o fígado e a vesícula
biliar. O Verão representaria uma energia mais activa, dispersa, no seu momento de
maior expansão, a energia fogo, associada ao coração e intestino delgado. O fim do
Verão corresponderia a uma energia descendente, de condensação, energia solo,
associada ao estômago, baço e pâncreas. O Outono corresponderia a uma energia de
reunião, à solidificação, à energia metal e estaria sobretudo ligada aos pulmões e
intestino grosso. Por fim, no Inverno, o elemento predominante seria a água, a energia
seria flutuante e os órgãos associados são os rins e a bexiga. Cada período do ano
activaria de forma particular os órgãos que lhe estão associados, devendo ser dirigida
para eles uma atenção particular. Ao longo do dia podem também observar-se períodos
em que certos órgãos estariam mais activos. Assim, pela manhã, a energia seria
ascendente, energia árvore, como referi. Ao meio-dia estaria no seu momento de maior
actividade e expansão (energia fogo). No final da tarde seria uma energia descendente,
estabilizante (energia solo). No fim do dia seria já uma energia contractiva, densa
(energia metal). Pela noite, a energia iniciaria o movimento de expansão, sendo nessa
altura uma energia flutuante (energia água). Da mesma forma que era possível observar
estes ciclos energéticos no decurso do dia e do ano, era também possível trabalhar com
a energia específica dos alimentos, uma energia que adviria da sua afinidade com as

272
Sistemas terapêuticos em confronto

estações do ano e com os cinco elementos, e que poderia ser direccionada para trabalhar
os órgãos do corpo humano. Os alimentos são assim pensados não apenas a partir das
suas qualidades nutritivas mas também a partir das suas características energéticas,
aspecto que, neste caso, nada tem a ver com calorias 141.
Voltando ao caso da hipoglicemia, ela é apresentada como devendo ser tratada
sobretudo à tarde, altura em que a energia solo, relacionada com o baço e pâncreas,
estaria mais activa. A hipoglicemia é encarada como envolvendo essencialmente o
pâncreas (que segrega insulina e anti-insulina) e o fígado (que acumula açúcar sob a
forma de glicogénio e que o envia para o organismo quando necessário). As causas mais
profundas da hipoglicemia são vistas como derivando do consumo de alimentos como o
frango, os ovos, atum e alimentos fumados. As causas são yang e estes alimentos
provocam uma grande contracção do pâncreas. Já as causas secundárias teriam a ver
com o consumo de açúcar, chocolates, café, álcool, batatas e alimentos refinados.
Segue-se a estes considerandos um conjunto de recomendações para tratar a
hipoglicemia, que passam por evitar os alimentos que a provocam e por fazer refeições
a horas regulares, com cereais integrais e vegetais a todas as refeições. Os alimentos
devem ser soltos e os vegetais levemente cozinhados, de forma a descontrair o pâncreas.
É recomendado o consumo de caldo de vegetais doces, sendo os banhos quentes e as
massagens vistos como ajudando no processo de descontracção, tendo igual relevo uma
atitude perante a vida mais descontraída (emoções ligadas ao território e à
competitividade são associadas à hipoglicemia). Por tudo isto, podemos constatar que o
leque de respostas é amplo. Dirige-se prioritariamente para a alimentação, mas abarca
outros aspectos, procurando encontrar soluções que combinem uma dimensão física,
emocional e espiritual. Em última instância, e uma vez mais, será sempre o indivíduo,
com a sua subjectividade, comportamento e atitude, o responsável pelo estado em que
se encontra.
Distúrbios comuns, como constipações, gripes, estados febris, são tratados na
macrobiótica através de uma prática alimentar comum, como a alimentação
macrobiótica padrão, e ainda com recurso a tratamentos caseiros. A lista dos
tratamentos inclui pratos medicinais, infusões, compressas, banhos, etc142. O que

141
A descrição da teoria das cinco transformações encontra-se na verdade muito simplificada. Muitos
aspectos são aqui omitidos, por não serem tomados como indispensáveis para compreender o tipo de
concepções inerentes à saúde e doença.
142
Mais informação sobre este assunto pode ser vista no livro Remédios Caseiros de Francisco Varatojo e
Pedro Romão (2006)

273
«À Mesa com o Universo»

interessa aqui realçar não é a composição nem a forma específica de cada um destes
tratamentos, mas mais o modo como eles procuram ser uma resposta estruturada a
problemas comuns. Uma resposta através da qual se procura demonstrar que a utilização
de fármacos para este tipo de desequilíbrios é totalmente desnecessária e até
contraproducente “já que, por um lado vai criar obstáculos à regeneração do organismo
e, por outro, expor todo o ambiente sanguíneo e celular a uma série de produtos
químicos raramente destituídos de efeitos colaterais” (Varatojo e Romão, 2006:5). O
que deriva daqui, defendem, é que há uma espécie de camuflagem da doença, cujos
efeitos serão graves, porque não se permitiu ao organismo o desencadeamento de todos
os processos para a resolução do problema, facto a que se atribui notória gravidade.
Consideram ainda os autores que este tipo de abordagem não se limita à medicina
alopática, podendo observar-se noutras “medicinas não convencionais”. Verificamos
assim, uma vez mais, a procura de distanciamento face a outras práticas, acompanhado
da afirmação de um conjunto de técnicas específicas, com uso de produtos bastante
particulares, muitos deles de origem oriental como o shoyu,ameixa umeboshi, tekka, raiz
de lótus, etc.
Muitos outros aspectos poderiam ser aqui referidos para ilustrar formas de
tratamento e concepções sobre a saúde e a doença, mas esse seria, pelo menos nesta
ocasião, um exercício exaustivo e desnecessário. O que pode ser salientado, numa
primeira síntese, relativamente a concepções sobre a saúde, doença e tipos de respostas
encontradas, é que a natureza e a observação dos seus ritmos, constituem, pelo menos
do ponto de vista discursivo, dimensões de importância maior no universo de
significados que caracterizam a macrobiótica. A relevância de conceitos como energia
ou equilíbrio/desequilíbrio para falar de saúde e doença; a visão holística do corpo; a
espiritualidade-religiosidade que impregna as atitudes e posições (muito embora
defendam o non credo e adoptem a máxima “sê o teu próprio mestre”); a enfatização na
questão da responsabilidade individual, das mudanças a efectuar no quotidiano e a
procura de uma identidade específica através da enunciação de critérios de alteridade
relativos a outras práticas, como as que se ligam à biomedicina, são, efectivamente,
pontos essenciais para compreendermos o conjunto de concepções que caracteriza a
macrobiótica.

274
Sistemas terapêuticos em confronto

5.1 3 Traçar fronteiras, persuadir, direccionar, consciencializar

As sessões de formação na área da macrobiótica visam, naturalmente, como


outras áreas e outras propostas, apresentar uma perspectiva credível de abordagem do
universo, do ser humano e da realidade social mais imediata. Nesta medida, verifica-se,
inevitavelmente, um esforço de promoção e divulgação de um modo de ver o mundo
que procura ser convincente e produzir efeitos junto de potenciais seguidores. Um certo
proselitismo ou, pelo menos, intenção de “criar consciência” pode assim ser associado
às sessões de divulgação. Isto não significa que aqueles que se dedicam a estas
actividades procurem de forma persuasiva ludibriar os que os ouvem. Não me parece ser
esse o caso. Muitas das pessoas que ouvi pareciam seguir e acreditar genuinamente no
conjunto de concepções que defendem. Revelavam preocupações de ordem social que
os levava a divulgar as concepções que entendiam ser significativas e que podiam levar
a uma “transformação da humanidade”, mas também evidenciavam o empenho de quem
transformara a macrobiótica num modo de vida. O que interessa aqui destacar, porém, é
que nesse desejo de difundir uma forma particular de entender o mundo, é seguida uma
estratégia discursiva onde são recorrentes certos temas, produzindo-se uma retórica que
procura produzir os efeitos atrás mencionados. Identificar e analisar essas estratégias
discursivas ajuda-nos a situar o modo como se constrói uma argumentação e,
simultaneamente, esclarece-nos sobre o modo como é marcada a diferença face a outras
propostas. Pelo que fui enunciando, foi já possível destacar elementos de diferenciação
entre as concepções sobre a saúde e a doença na macrobiótica e na medicina
convencional. Vejamos agora que estratégias específicas são utilizadas para reforçar a
proposta apresentada e conduzir à sua adesão.
Um dos recursos discursivos fundamentais utilizados consiste em dramatizar a
actual situação em termos de saúde da população em geral. O cenário apresentado é
sombrio e procura-se descrever uma sociedade pouco autónoma, excessivamente
medicalizada e que perdeu consciência relativamente à responsabilidade que tem na
situação que ela própria criou. O modo de vida ocidental é visto como estando a gerar
verdadeiras epidemias, como a obesidade, hipertensão, diabetes, entre outros, devendo-
se tal situação a uma alimentação de má qualidade e a um modo de vida que se afastaria
cada vez mais dos ritmos e equilíbrios naturais.
Um exemplo do modo como se procura lançar o alarme sobre a actualidade,
pode ser evidenciado através da forma como se iniciou uma das sessões de formação

275
«À Mesa com o Universo»

que frequentei. O mote para a apresentação da aula era dado por um texto atribuído a
Collin Campbell (2006), professor de bioquímica nutricional na universidade de
Cornell, autor frequentemente referido no IMP e a que já fiz referência no cap. 2. Diz-se
nesse texto:

Estamos a levar a nossa juventude para o caminho da doença em idades cada vez
mais jovens. Um terço das crianças neste país [EUA] tem um excesso de peso ou
está em risco de ter excesso de peso. Os nossos miúdos começam a ser vítimas
de um tipo de diabetes que só afectava adultos e agora as crianças tomam mais
medicamentos que nunca.
Estes problemas têm a ver com três actos diários: pequeno-almoço, almoço e
jantar.

Seguia-se a este texto a apresentação de uma sequência histórica de mapas que revelava
a forma assustadora como a obesidade tem aumentado nos EUA. A sequência era na
verdade preocupante, mas, não pretendendo aqui subestimar o problema, importa notar
a eficácia retórica que alcançava. As imagens traduziam o drama social de uma
população decadente, vítima do fast food e incapaz de adoptar “hábitos alimentares
correctos”. Face a estas imagens, a macrobiótica, enquanto via que privilegia a
alimentação, foi apresentada como resposta adequada. Este exemplo, por entre outros
que poderiam ser dados, evidencia o modo como se utiliza informação objectiva sobre
problemas actuais de saúde, de forma a justificar a opção por outros modos de vida e de
alimentação. Há recurso a dados científicos disponíveis, num uso que por vezes é
meramente instrumental, no sentido de reforçar as opções tomadas na macrobiótica 143.
A referência às “epidemias” dos séculos XX e XXI é, sem dúvida, um bom
ponto de partida para evidenciar os riscos da fraca qualidade da “alimentação moderna”,
uma alimentação “subjugada ao sector agro-industrial e aos seus múltiplos interesses
económicos”. Um sector que estaria mais interessado no processamento de produtos e
na sua venda do que com o bem-estar dos consumidores. O apelo ao consumo regular
de leite, por exemplo, seria estimulado pelas empresas produtoras de leite e até a sua
importância na pirâmide ou roda dos alimentos teria sido objecto de negociação com as
empresas leiteiras. A este propósito, foi referido numa das sessões, que anúncios
recentes em que se “incentivavam os alunos do ensino básico a beber leite para
enfrentarem o matulão da turma ao lado” se deviam apenas a uma diminuição das
vendas de leite, daí a agressividade da campanha. Os alimentos excessivamente
143
É esse o caso da referência a cientistas como Campbell (2006) e Walter Willet (2005).

276
Sistemas terapêuticos em confronto

processados, distantes dos cereais integrais que tanto defendem, são também alvo de
crítica e uma manifestação do afastamento relativamente a uma forma de alimentação
mais próxima da natureza. O uso de pesticidas na agricultura, o recurso a antibióticos na
criação de animais, a promoção da utilização de organismos geneticamente modificados
(OGMs), os problemas causados por medicalização desadequada ou excessiva, do
mesmo modo que os que surgiriam na sequência da vacinação, são aspectos evocados,
entre outros, para chamar a atenção para os riscos da nossa sociedade e dramatizar,
assim, a situação actual. Uma dramatização que é necessária para iniciarem um processo
a que chamam “consciencialização” – “para as pessoas mudarem é preciso criar
consciência”, defendem.
Salkeld (2005), na pesquisa que desenvolveu numa clínica de medicina holística
nos EUA, destaca, justamente, o modo como é usada a noção de risco na relação do
médico com o paciente para produzir inflexões nos hábitos alimentares. Uma das
principais preocupações dos médicos consistia, justamente, em alertar os pacientes para
os riscos relativos a certas práticas alimentares. Explorando a noção de risco à luz de
autores como Beck (2008 [1986] e Giddens (1992), o que está em causa é evidenciar o
uso que esses médicos faziam de mensagens mediáticas sobre riscos alimentares (vacas
loucas, mercúrio no peixe…) para persuadirem os pacientes a mudarem de alimentação.
Para esses médicos (formados na medicina convencional, mas especializados em
abordagens holísticas) a alimentação e a digestão eram processos essenciais,
responsáveis por uma grande variedade de doenças, razão pela qual se focavam
sobretudo na alimentação e se esforçavam por informar os pacientes sobre a necessidade
de usar produtos de boa qualidade, confeccionados de forma saudável. O uso de
produtos biológicos, a diminuição do consumo de açúcar, carne e produtos lácteos, era
também aí recomendado, o que acaba por ser coincidente com conselhos dados na
macrobiótica e fazer pensar nas relações dinâmicas que se estabelecem entre diferentes
sistemas terapêuticos.
Salkeld, ao referir que a atenção dos media às crises alimentares e aos estudos
que evidenciam correlações entre alimentação e cancro (ou outras doenças), influencia a
percepção sócio-cultural do risco da classe média americana, procura demonstrar que é
partindo dessa compreensão cultural do risco para a saúde que os “médicos holísticos”
incorporam nos seus discursos a relação entre risco, confiança e responsabilidade
individual no alcance da saúde. Explorando a percepção de risco do cidadão comum da
classe média, esses médicos evocariam nos encontros terapêuticos com os pacientes

277
«À Mesa com o Universo»

argumentos inerentes a essa percepção, procurando convence-los a mudar de


comportamento e a combater, por essa via, os efeitos negativos dos riscos ambientais. O
esforço destes clínicos é, de acordo com Salkeld, um verdadeiro esforço de educação e
formação para uma vida quotidiana constantemente marcada pelo risco. Neste contexto,
tal como se defende na macrobiótica, a resposta mais adequada para fazer face a uma
situação de risco seria a acção individual (cf. 2005: 329-330). A alteração individual de
comportamentos e crenças alimentares, resultado de uma educação em que se procura
ver o paciente como agente activo no processo de cura, seria uma forma de responder
aos riscos intrínsecos à vida social. Vale a pena dizer, que a concepção de risco que aqui
se expressa não coincide com a noção epidemiológica desse conceito, segundo o qual as
doenças podiam alastrar de forma descontrolada por toda a população, estando antes
focada na redução do risco como capacidade individual. É através dos aspectos da vida
quotidiana que podem ser alterados e que dependem apenas de decisões individuais e do
sentido de responsabilidade individual, tais como a escolha dos alimentos a ingerir, que
se deve procurar a redução dos riscos.
Muito embora a questão do risco não constitua o tema central desta análise, a
referência a esta dimensão justifica-se, na medida em que ela vai de encontro a uma
retórica de afirmação da macrobiótica face a outras formas de abordagem do corpo. Um
dos aspectos dessa retórica prende-se precisamente, como já salientei, com a
dramatização em torno das questões da saúde e com o risco em que incorremos ao
seguirmos “a alimentação moderna” , “um estilo de vida stressante” e ao “consultarmos
a maior parte dos médicos”. Como se não bastasse um ambiente desregulado, fruto de
uma “acção humana inconsciente”, gerador de riscos difíceis de controlar a partir do
indivíduo, os estilos de vida poderiam contribuir ainda mais para aumentar os riscos e
degradar ainda mais esse ambiente144. Na perspectiva de muitos dos que seguem a
macrobiótica, a sociedade actual, dominada pela ideologia do progresso e por uma
ciência de matriz tecnológica e materialista, ignoraria que a vida é uma oportunidade de
“criar consciência” e de “desenvolver a espiritualidade”. A ideia de que a civilização
moderna, dominada por essa matriz, está a colocar em perigo a saúde humana e
concomitantemente, o planeta, é frequentemente reiterada. Neste âmbito, do que se trata

144
A ideia de “ambiente desregulado” parece paradoxal. Como agir de acordo com os “ritmos da
natureza”, quando essa natureza parece escapar à ideia de regularidade e de equilíbrio, tal como a
defendiam os gregos e algumas filosofias orientais? A ideia de ausência de regulação surge aqui mais
para alarmar e dramatizar a do que por qualquer outro motivo. Partir do pressuposto da falta de regulação
da natureza seria contrariar os próprios princípios da macrobiótica.

278
Sistemas terapêuticos em confronto

é de alertar, dramatizando se necessário, para o carácter urgente da recuperação dos


valores fundamentais da humanidade, projecto só possível se tiver como ponto de
partida a alimentação145.
Pelo que acabei de enunciar, verifica-se que a evocação do risco, com vista a
uma consciencialização que leve à mudança de hábitos, vai mais longe do que procurar
apenas uma mera inflexão, traduzindo uma apreciação de carácter ético e moral, através
da qual se veicula e defende um modo de vida e se critica a sociedade actual. Por outro
lado, se o risco tem uma dimensão de construção sócio- cultural e pode ser visto como
lugar a partir do qual se defendem certas propostas ideológicas, pode também ser visto
como forma de monitorização do indivíduo e do seu corpo (cf. Lupton, 2000: 206-207).
É pela noção de risco que os indivíduos vão encontrando relações entre o seu corpo e o
ambiente, desenvolvendo modos de percepção. A noção de risco permite, como refere
Lupton (2000), uma acção disciplinadora e controladora do corpo e obriga à vigilância
do mesmo para impedir julgamentos relativamente a estilos de vida desregrados e nos
quais há falta de auto-disciplina. Essas seriam características individuais que os corpos
obesos, por exemplo, revelariam.
Depois de dado o alarme, a estratégia discursiva que se segue é a interrogação
relativamente à manutenção de um certo estado de coisas: “Por que não alteramos este
modo de estar?”; “Por que insistimos em manter um estilo de vida tão pouco
saudável?”; “A maior parte das pessoas sente-se infeliz com a sua forma de vida, por
que não muda?” Exploradas estas questões, a temática que é desenvolvida a seguir é a
do medo, pois o medo é visto como o principal responsável pela inacção, pela inércia:

As pessoas têm medo de tudo e mais alguma coisa, não dão passos em frente
porque estão sempre a pensar em eventuais perdas e não encaram a
possibilidade de ganhos. As vidas que têm foram eles que as escolheram, são
responsáveis por isso. [Formador na área da macrobiótica].

O medo é ainda identificado com o tipo de alimentação que as pessoas levam e que faz
com que os rins fiquem sobrecarregados. Ora, na macrobiótica, os rins são identificados

145
Tanto Ohsawa como Kushi (autores de referência na macrobiótica, como foi referido) procuram alertar
para a ideia de que a paz no mundo e a reconstrução da humanidade só seria possível a partir de uma
transformação na alimentação. Aliás, nos textos produzidos por estes autores, avulta a ideia (cf. Kushi,
2000:5) de que esta degradação decorre de uma alimentação desequilibrada. A alimentação macrobiótica
surge, assim, como proposta de regeneração da humanidade. Ela é condição indispensável para um corpo
e uma mente sãos, sem eles não é possível o auto-conhecimento e o aperfeiçoamento individual exigidos
para salvar o planeta.

279
«À Mesa com o Universo»

como órgãos que governam precisamente emoções como o medo. As pessoas não
modificariam os seus hábitos básicos, o seu quotidiano com trabalhos pouco
estimulantes, porque sentiriam “medo de não ter todas as comodidades a que estão
habituadas”. E, no entanto, tudo depende delas, já que são consideradas responsáveis
pelas situações que elas próprias criaram.
O tema da responsabilidade individual é o tema que se segue nessa estratégia
discursiva que procura dar sentido à macrobiótica enquanto proposta a adoptar. A
doença e “aquilo que fazemos com a nossa vida é da nossa inteira responsabilidade,
“nós somos capazes de mudar a nossa vida”, são frases que podem ser ouvidas com
regularidade e que procuram transmitir confiança às pessoas para que iniciem as
mudanças que consideram fundamentais. Trata-se, de alguma forma, de procurar levar
as pessoas a acreditar que têm poder de decisão e que podem ser mais autónomas. Ao
iniciarem a aprendizagem da macrobiótica e adquirirem capacidade de controlar melhor
alguns problemas de saúde, alguns dos que aderiram a este sistema de alimentação
sentem na verdade ser acrescido o seu poder sobre o corpo e sentem-se a “comandar
mais as suas vidas”. Algumas das pessoas que contactei deixaram empregos
razoavelmente remunerados e estáveis para se dedicarem a outras actividades, foi esse o
caso, por exemplo, de uma professora universitária, uma oficial de justiça e uma
professora do ensino básico. Há, efectivamente, uma insistência na ideia de que os
processos individuais são o factor realmente essencial e que são esses que, em última
instância, conduzem à transformação da vida social. Os gestos básicos do dia-a-dia que
constituem o quotidiano, são os que podem transformar o mundo.
Uma outra dimensão fundamental, que suporta uma retórica discursiva de
demarcação face às formas de abordagem do corpo mais convencionais, tem a ver com
as críticas ao serviço nacional de saúde e à biomedicina. Algumas destas críticas foram
já evocadas, até porque a definição de concepções sobre a saúde e doença é apresentada
tendo sempre como contraponto a medicina convencional. Os médicos são, desde logo,
vistos como tendo grandes lacunas na sua formação, dado terem, “quando têm” (diz-me
um dos formadores), um reduzido número de horas de formação sobre nutrição. “Não é
com 30 horas de aulas sobre alimentação num curso de medicina que se conseguem
formar bons médicos”, dizem-me. Tendo em consideração que muitas doenças têm a ver
com problemas alimentares, esta situação é para os seguidores da macrobiótica muito
grave e não abona a favor da ideia de uma formação adequada. Por outro lado, faz parte
da retórica discursiva acusar a medicina convencional de se dirigir pouco para o

280
Sistemas terapêuticos em confronto

paciente enquanto indivíduo e não prestar atenção ao Homem enquanto todo. Como já
vimos, excessiva medicalização, mas também os interesses dos laboratórios que a
sustentam, são alvo de crítica. Os laboratórios incentivariam o crescimento da indústria
de medicamentos ao financiarem pesquisas que teriam na mira a criação de mais
medicamentos. Face a esta agressividade, era pois necessário estar atento, olhando
criticamente os actos médicos e procurando evitar o consumo de produtos químicos.
Resumindo, vemos assim, que noções como risco, medo, responsabilidade
individual e necessidade de autonomia, jogam um papel fundamental numa estratégia
discursiva que procura a consciencialização do ser humano. Só a partir desta
consciencialização parece ser possível, para os que defendem a macrobiótica,
desenvolver a espiritualidade, aspecto de importância maior nesta proposta de
orientação no mundo e que evidencia que esta proposta está longe de ser meramente
uma orientação em termos alimentares. Por outro lado, e voltando à questão do
enquadramento inicial necessário para a apresentação e justificação da macrobiótica
enquanto proposta a seguir, devem ainda ser salientadas as críticas relativamente à
industrialização e suas consequências, ao estado de saúde actual, factor associado aos
cuidados médicos convencionais e indústrias que os suportam. Estes parecem-me ser,
efectivamente, os principais eixos a partir dos quais se sugere a necessidade de um
modo de vida alternativo.

Com os aspectos que enunciei, procurei dar conta de algumas estratégias


discursivas, utilizadas para sublinhar a importância da macrobiótica enquanto proposta
de orientação no mundo. A referência a esses aspectos pareceu-me relevante, na medida
em que permitia perceber de que forma se faz o enquadramento para a apresentação
dessa proposta e são justificadas as suas sugestões. No que foi referido sobre este
assunto, acrescido do que foi evocado a propósito das concepções sobre a saúde/doença
e respostas dadas no âmbito da macrobiótica, sobressaem alguns temas e perspectivas

281
«À Mesa com o Universo»

que merecem uma discussão mais aprofundada. O que procurarei fazer, de seguida, é
retomar e apontar alguns desses tópicos de discussão146.
Um dos primeiros aspectos que destaco dessa discussão tem a ver com a relação
entre o Estado e os cuidados de saúde. A utilização da macrobiótica, enquanto sistema
terapêutico, tal como outras terapêuticas não convencionais, revela que o corpo
biológico não é algo que esteja inteiramente sobre a alçada do Estado. Esta situação é
perspectivada como favorável por alguns dos indivíduos que contactei, dado que não
implica controlo e permite uma maior autonomia, embora seja vista também como
gerando algumas dificuldades. Para muitos dos que contactei, a actual política de
Estado, em termos de saúde, ao ignorar formas alternativas de tratamento, não vai de
encontro ao que sentem como necessidade, dado que, na maior parte dos casos, não têm
qualquer tipo de comparticipação nesses gastos.
Os seguidores da macrobiótica fazem, de um modo geral, um consumo restrito,
crítico e selectivo dos cuidados de saúde no SNS. São frequentes os casos de indivíduos
que passam anos sem consultar o médico e, que, quando o fazem, é sobretudo para
realizar análises e exames de rotina de forma a certificarem-se de que não têm qualquer
problema de saúde. Costumam ser também muito resistentes à toma de medicamentos e
até à vacinação.
Em Braga, e no período em que decorreu esta investigação, quatro mulheres com
quem contactei, no âmbito desta pesquisa, optaram por fazer o parto em casa (todas elas
tinham formação de nível superior e profissões concordantes com o grau académico).
Esta é uma solução bastante mais onerosa e geralmente afirmada como arriscada, mas
que essas mulheres, ainda assim, entenderam adequada. Entre os motivos que as
levaram a fazer esta opção destacava-se o desejo de não se submeterem ao ambiente do
hospital, com o receio relativo ao tipo de intervenção que aí pudesse ocorrer - uma
cesariana ou vacinação de recém-nascidos, são alguns dos aspectos assinalados -, bem
como perda de autonomia. Esta prática, a do nascimento em casa, que julgo ter
aumentado em Portugal nos últimos anos, é incentivada no âmbito dos cursos de
formação na área da macrobiótica.
Há assim um conjunto de práticas que vão ficando fora do controle do Estado e
que revelam brechas na ideia da estatização do biológico. Tal não quer dizer, todavia,
pelo menos em relação a estas mulheres, que a sua opção as tenha colocado fora do

146
Não será ainda, seguramente, uma reflexão inteiramente informada e final sobre o que foi apresentado,
mas os elementos iniciais de uma análise mais aprofundada, a fazer noutra ocasião.

282
Sistemas terapêuticos em confronto

poder biomédico. Quem acompanhou esses partos, para além de doulas147, foram
profissionais de saúde, médicos ou enfermeiros obstetras. Convém ainda dizer, em
relação a estas práticas, que há informação que circula no meio sobre experiências
semelhantes, acontecendo ser o mesmo enfermeiro obstetra a seguir estes casos pela
imagem de credibilidade que conseguiu alcançar. É esta confiança que foi adquirindo
que lhe garante o acompanhamento de mais mulheres em situações futuras.
Ainda a propósito de relação estratégica com o poder biomédico, um dos meus
informantes, já na casa dos setenta anos de idade, começou a sentir-se muito cansado e
resolveu consultar o médico para fazer análises. Foi-lhe detectada uma anemia grave e
um nível extremamente baixo de vitamina B12 (problemas que costumam ser associados
a dietas pouco cuidadas, onde não há ingestão de qualquer produto de origem animal), a
tal ponto que a médica que o atendeu, quando tomou conhecimento do resultados dos
exames, lhe telefonou para o internar no hospital para lhe ser feita uma transfusão
sanguínea. Ele, todavia, pediu à médica para não o fazer, e para lhe dar apenas mais um
ou dois dias para começar a resolver o seu problema. A médica acedeu renitentemente,
facto de que este paciente se congratulou, pois entende que a médica foi “muito
compreensiva”. Passou então a dedicar mais atenção á sua doença e às suas refeições,
consultou um naturopata e começou a tomar suplementos alimentares. Ao fim de alguns
dias começou a sentir-se melhor e os níveis de hemoglobina e de B12 ficaram próximos
do normal. No seu entendimento, com o excesso de trabalho e com as mudanças que
tinham ocorrido recentemente na sua vida, não prestara a devida atenção à alimentação
e acabara por se ressentir disso, mas “conseguira safar-se de ir parar ao hospital”.
Declara nem imaginar o que lhe sucederia se tal lhe acontecesse, mas acredita que “seria
uma tragédia”. Já numa fase posterior, e dados os problemas renais com que se ia
confrontando, acabou, contudo, por seguir o tratamento médico que lhe tinha sido
recomendado, procurando sempre ter cuidado com a alimentação.
Estes exemplos revelam a recusa de cuidados médicos ou, pelo menos, o seu uso
selectivo. Estes indivíduos revelam, frequentemente, comportamentos que evidenciam
uma quase ausência de relação com o Estado e os serviços que este disponibiliza em
termos de cuidados de saúde. No caso referido anteriormente, há uma consulta a um
“médico convencional” e depois opta-se pelo naturopata, voltando-se mais tarde ao

147
Mulheres que se especializam no acompanhamento de famílias e na experiência da gravidez, parto e
maternidade. Existe em Portugal uma associação de doulas que promove formação específica nesta
área.Ver: http://www.doulasdeportugal.org/index.php?target=pt/finder&district=&language=&go=Buscar
[Acesso 12-11-11].

283
«À Mesa com o Universo»

“médico convencional” para fazer análises, o que evidencia também uma relação
estratégica com os cuidados de saúde. Neste caso específico, o facto de o naturopata não
poder prescrever a realização de análises, que depois seriam comparticipadas pelo
Estado, poderá ser uma justificação para este tipo de opção. Por outro lado, o susto com
o problema talvez tenha sido tão grande que este indivíduo decidiu continuar a manter
contacto com o “médico convencional”. De qualquer forma, é revelador de que muitos
dos que seguem a macrobiótica nem sempre encontram o enquadramento que
desejariam, nem o tipo de respostas que mais se lhes ajustariam. Existem ainda outras
dificuldades, nomeadamente com aspectos como baixas médicas e comparticipações de
outros produtos de saúde. Esta hegemonia da biomedicina que faz com que os “médicos
convencionais” tenham o monopólio do diagnóstico e da prescrição, pelo menos na
maior parte dos serviços de saúde comparticipados, remete, inevitavelmente, para as
questões do biopoder com que iniciei este capítulo. No entanto, o que encontramos nos
actos acima referidos, não são formas conscientes e activas de resistência à hegemonia
da biomedicina, mas apenas opções relativamente ao que entendem ser a resposta mais
adequada aos seus problemas, opções que revelam a forma estratégica como as margens
podem dialogar com o poder biomédico.
O problema acima evidenciado não pode deixar de ser relacionado com aquilo
que se costuma designar como pluralismo médico. Em Portugal, apesar dos avanços
feitos na criação de legislação sobre terapêuticas não convencionais (Franco, 2010),
estas ainda não se encontram regulamentadas, o que faz com que não haja ainda
enquadramento legal para o seu funcionamento. A regulamentação desta actividade
poderia eventualmente ir de encontro às necessidades daqueles que recorrem a este tipo
de terapêuticas, mas vale a pena ver o que sucedeu noutros países com as “medicinas
não convencionais” para reflectir sobre o tipo de solução que foi adoptada. Em países
como os EUA, onde estas medicinas estão mais bem enquadradas e regulamentadas,
tem-se verificado um interesse crescente pelas “medicinas não convencionais” 148. A
história conflituosa que no passado terá oposto a medicina convencional a outras formas
de medicina parece ter-se atenuado, dando lugar ao início de uma espécie de
reconciliação. Kaptchuk e Eisenberg referem que há um interesse cada vez maior em
integrar este tipo de medicinas nos centros médicos e hospitalares e que mesmo nos

148
Refiro regulamentadas porque pluralismo médico existe desde há muito nos EUA com uma presença
persistente e poderosa, como referem Kaptchuk e Eisenberg (2001), bem como noutros contextos (cf.
Janzen, 1982).

284
Sistemas terapêuticos em confronto

cursos de medicina surgem cada vez mais disciplinas relativas às “medicinas não
convencionais”. Até as farmácias complementam a sua oferta com linhas de produtos
feitos com plantas medicinais, tendo crescido também a investigação nesta área (cf.
Kaptchuk e Eisenberg, 2001: 193).
Esta situação permite reconhecer que as terapêuticas não convencionais se
transformaram num produto económico de elevado interesse e, muito provavelmente
por este motivo, estão a ser integradas em unidades de saúde convencionais, havendo
mesmo situações de partenariado entre a biomedicina e as “medicinas não
convencionais”. É esta situação que leva Kaptchuk e Eisenberg a perguntarem se esta
integração não significará a eliminação do pluralismo médico que tanto é defendido (cf.
2001: 193). É também nesse sentido que se expressa Baer (2003), ao defender que as
medicinas holísticas estão a ser biomedicalizadas e que são os profissionais tradicionais
de saúde que estão a colocar estas medicinas sob a sua alçada. Curiosamente, o texto de
Salkeld (2005) sobre a noção de risco no discurso dos médicos de uma clínica médica
holística, faz pensar o inverso, pois aí, pelo que Salkeld nos refere, os médicos (com
formação na medicina convencional e depois na holística) fazem um tipo de abordagem
que se distancia da medicina convencional. O mais certo é que os fluxos de informação
se façam nos dois sentidos e que haja efectivamente uma relação dinâmica entre eles.
Costumam ser acentuadas, porém, as concepções hegemónicas ligadas à biomedicina,
dada a sua associação com ciência e poder. Ter em consideração o caso dos EUA, entre
outros, pode ser relevante para decidir sobre a regulamentação das terapêuticas não
convencionais no nosso país
Um outro aspecto que gostaria de mencionar a partir dos dados que recolhi,
prende-se com a focalização no corpo e na saúde, como se vivêssemos sob o regime da
“somatocracia”, para usar uma expressão de Foucault (2001: 43) e recuperar um tema
que preocupou Illich (1975). Na verdade, não apenas o Estado evidenciaria a sua
finalidade de cuidar do corpo e nele intervir, mas também os comportamentos
individuais, mesmo os que são relativamente marginais ao Estado, como os que
podemos observar na macrobiótica, se revelariam muito concentrados no corpo e na
qualidade da sua energia. Alguns dos partidários da macrobiótica submetem-se a dietas
purificadoras e a cuidados corporais que são muito exigentes, quer em termos de
disciplina individual quer em termos de tempo disponível para todos esses cuidados,
cientes que estão da importância de tais procedimentos para garantir um corpo saudável.
A dieta número sete, prescrita por Ohsawa, que implica passar dez dias a comer arroz

285
«À Mesa com o Universo»

integral, é um dos exemplos de dietas que alguns indivíduos usam para “limpar o corpo”
e para se “purificarem”. Outros, pelo menos numa fase inicial, despendem uma boa
parte do seu tempo em assuntos que têm a ver com a aquisição de alimentos e com a sua
confecção. A procura dos produtos com a melhor qualidade leva-os, por vezes, a
percorrer diferentes estabelecimentos comerciais até encontrarem o que procuram. Num
dos casos que me foi relatado [estudante, 23 anos], entre a aquisição, a confecção, a
refeição e o arrumar da cozinha, despendiam-se umas cinco ou seis horas por dia.
Noutros casos, é ainda necessário levantarem-se pelas cinco, seis horas da manhã, para
prepararem o almoço que levam para o trabalho. Esta disciplina a que se obrigam
evidencia bem o quanto o corpo e a saúde é importante para eles. Não se trata aqui de
procurar um corpo adequado aos cânones de beleza dominantes, mas mais de estar
saudável, evidenciando o que entendem ser uma boa qualidade do ponto de vista
energético. Tanto num caso como no outro é a focalização no corpo que se afirma como
gesto significativo. Tão significativo que pode ser visto como prejudicial. Verifica-se,
desta forma, uma estruturação dos discursos em torno do corpo (quer no que diz
respeito à alimentação, quer no que diz respeito ao vigor do mesmo), que é sobretudo
colocada em termos de saúde, sendo o Homem perspectivado, sobretudo, como alguém
que tem de prevenir doenças ou que tem doenças a tratar, mesmo na macrobiótica.
É nesse sentido que se expressa Ivan Illich (2005 [1994]). Depois de ter criticado
severamente a medicina, os médicos, o modo como se organizavam e os efeitos dos
actos médicos (Illich, 1975), passa a considerar que o maior agente patogénico da
actualidade é a focalização na saúde, a tal ponto que a busca da saúde se tornou
consubstancial com a experiência do corpo (cf. Illich, 2005: 928). Dito de outra forma, a
sua opinião é que a experiência do corpo e do eu se tornou o resultado das concepções
médicas e dos cuidados de saúde, transformando-se, por isso, de acordo com a
terminologia que usara anteriormente (cf. Illich: 1975), numa doença iatrogénica (cf.
idem: 929). Considera, no entanto, que a influência da medicina institucionalizada já
não tem o poder que tinha anteriormente e que a sua importância relativa no sector da
saúde se encontra em recuo, dando lugar a práticas de autocuidado, juntas com um
entusiasmo ingénuo por tecnologias sofisticadas, fitoterapias e outros149.

149
Como Illich refere: «O recurso exclusivo a técnicas de automedicação, bem como o deslumbramento
naif por toda uma sofisticação tecnológica, tornam o esforço dos médicos e o seu investimento pessoal
num trabalho cada vez mais frustrante. Parece-me que a participação da medicina naquilo que é a busca
patológica da saúde não tem hoje senão um papel menor.» (2005:928). Ou ainda: «Uma mistura confusa
de tecnologia avançada com fitoterapia, de biotecnologia com autocuidado, está actualmente a ser

286
Sistemas terapêuticos em confronto

O facto de uma boa parte das imagens da publicidade evocarem a qualquer título
a saúde, seria apenas mais um exemplo de como o tema se tornou invasivo. A questão
da diminuição da influência da medicina institucionalizada é discutível. No entanto, é
impossível não reconhecer que são múltiplas as mensagens que remetem para a saúde e
para diferentes terapias, ao ponto de o tema se tornar obsessivo. A macrobiótica é
também um exemplo de como o cuidado de si, com alguma autonomia e a procura do
equilíbrio, revelam algo de obsessivo. Do ponto de vista teórico, defende-se na
macrobiótica que se procura tornar o indivíduo mais livre e autónomo. Verifica-se, na
prática, pelo menos em alguns casos, o contrário. Sucede assim com os indivíduos que
evitam viajar por receio de não poderem fazer “refeições equilibradas”, ou que vão
limitando o seu círculo de amigos por não se enquadrarem nos seus padrões de
alimentação. Pode-se sempre argumentar que estes indivíduos ainda não perceberam “o
espírito da macrobiótica”, como por vezes se defende, mas o certo é que se encontra
com alguma frequência, e para lá dos exemplos fornecidos, uma conduta
excessivamente centrada em questões que têm a ver com o corpo, com a saúde e com a
alimentação. A tal ponto que parecem fazer sentido as palavras radicais de Illich «Pela
sua redução à vida, o sujeito é lançado num vazio que o esgota. Para falar de saúde em
1999 (…) é necessário compreendê-la numa liturgia societária ao serviço de um ídolo
que anula o sujeito». 150.
Longe de considerar o corpo como facto natural, independente do contexto
sócio-histórico, como reconhece tê-lo feito (idem: 932), Illich, em Dans le Mirroir du
passé (1994), fazendo eco de Foucault, defende que os corpos nunca existiram senão em
função de um contexto. No caso do “corpo ocidental”, o corpo corresponderia a uma
materialização progressiva do eu, a algo através do qual a pessoa se produz e objectiva.
As pessoas já não se refeririam ao corpo como “o meu corpo”, mas antes como o “corpo
que sou”, facto que via com apreensão e como indicativo de uma matriz epistemológica
em formação, na qual os indivíduos se apreenderiam a si mesmos como elementos de
um programa informático complexo (cf. Illich: 2005: 934). O que neste ponto
preocupava o autor, era a natureza artificial da noção de vida e o esvaziamento da noção
de pessoa associado a um culto compulsivo do corpo.

colocada em acção para representar a realidade, incluindo essa realidade que é o corpo vivido»
(2005:934). [Tradução livre].
150
Illich, Ivan. 1999. “Un Facteur Pathogène Prédominant, l’obsession de la santé parfaite”
http://www.monde-diplomatique.fr/1999/03/ILLICH/11802.html [Acedido em 21-2-08].

287
«À Mesa com o Universo»

A saúde como responsabilidade individual é outro tema criticado por Illich


(1990) que vale a pena aqui mencionar. Illich vê a responsabilização em termos de
saúde como uma ilusão e perversão da sociedade actual, sobretudo considerando as
circunstâncias de vida actuais (industrialização, desenvolvimento tecnológico com
prejuízos para o ambiente e vida social, formas de organização do trabalho, etc.). Ser
responsável com a saúde, num contexto como este, onde os modos de trabalhar e de
viver são doentios, é, para Illich, algo paradoxal, e pode ser visto como privilégio de
poucos «“ser saudável” é uma condição que se reduz à possibilidade de usufruir da
combinação entre técnicas, protecção ambiental e adequação às consequências das
técnicas, três aspectos que são, claramente, privilégios» (Illich, 1990:2) 151. Face a uma
época descarnada, como entendeu aquela em que viveu, na qual os gastos com cuidados
de saúde não paravam de crescer, considerava que a forma mais decente de viver era
renunciar à saúde como responsabilidade, acto que constituiria um verdadeiro ponto de
partida para uma conduta ética. Para Illich, era certo que nunca conseguiríamos eliminar
o sofrimento e curar todas as doenças. Sendo a morte uma certeza, não se justificava
uma tão grande focalização na saúde. Defendia também maior liberdade e autonomia
relativamente à saúde; liberdade para se declarar doente; para recusar qualquer tipo de
tratamento ou para aceitar os medicamentos e tratamento que entendesse. Liberdade
ainda para ser tratado por uma pessoa à sua escolha (homeopata, médico, acupunctor,
astrólogo ou qualquer outro), liberdade, finalmente, para morrer sem diagnóstico (cf
Illich, 1990).
Como vemos, esta defesa da liberdade individual parece estar distante da noção
de risco e do seu uso como elemento moral de responsabilização. Sugere, ao contrário,
que noções como a de risco e responsabilidade pessoal sejam hoje instrumentos de
controlo do corpo, que conduzem à procura da saúde de forma compulsiva. Coloca de
novo a questão do pluralismo terapêutico e da liberdade de escolha, da relação entre
Estado e indivíduo, propondo a renúncia e uma via mais ascética como resposta de
maior conteúdo ético. Proposta que é certamente radical, como de resto o foram muitas
das posições de Illich sobre a sociedade em que viveu, mas que por isso suscita maior
debate, permitindo o confronto de diversos olhares.
No contexto desta discussão vale a pena retomar a noção de responsabilidade
individual e equacioná-la na perspectiva das políticas do corpo. A questão da saúde

151
Tradução livre.

288
Sistemas terapêuticos em confronto

como responsabilidade individual pode, na verdade, ter efeitos perversos, como


mencionava Illich. Ao remeter-se para o indivíduo a inteira responsabilidade pelo que
lhe sucede, constrói-se um tipo de argumentação que pode isentar o Estado e os
sistemas sociais dessas mesmas responsabilidades, levando-os a desinvestir na saúde.
Nesta medida, essa perspectiva favorece claramente uma ideologia e uma política
neoliberais obstinadas em transformar também a saúde num mercado de livre escolhas,
onde cada «paciente-consumidor» (Briggs e Hallin, 2007), enquanto sujeito racional,
poderia ser responsabilizado por essas mesmas escolhas. Neste modelo, o do «paciente-
consumidor», o indivíduo é alguém que dispões de diferentes canais de informação
(internet, grupos de suporte, media, livros...), que acede a um modelo de
biocomunicabilidade - modo como circulam actos discursivos e práticas centrados na
saúde (ibid. 45) e que pode, por isso, teoricamente, fazer escolhas racionais, livres,
sendo as suas opções uma questão de responsabilidade individual.
Convém, todavia, não confundir a liberdade que Illich defendia, que vai de
encontro a uma ética de respeito por cada um enquanto pessoa e ser espiritual, e uma
lógica neoliberal onde a saúde é sobretudo um mercado aberto à livre concorrência,
onde os indivíduos podem escolher de forma supostamente livre o que melhor entendem
servi-los. A destrinça entre estas duas formas de exercício da liberdade, pode, para
alguns, não ser óbvia, dado que em última instância o que se defende é o respeito pela
liberdade individual, mas as lógicas que suportam estes diferentes posicionamentos
julgo que não são coincidentes Enquanto para Illich a focalização na saúde e a
diversificação dos produtos associados à saúde esgotava o sujeito, transformando-o
sobretudo num consumidor compulsivo e obcecado com a sua saúde - situação de que
ele deveria libertar-se e que via com apreensão -, na lógica neoliberal a saúde é mais um
mercado onde supostamente agentes informados e racionais escolhem. Para um
mercado ávido por satisfazer e criar necessidades de consumo ao nível da saúde (quer
sob a forma de prevenção, quer sob a forma de tratamento), a livre escolha (ou ilusão de
livre escolha) e a transformação da saúde num assunto de responsabilidade individual
não são, seguramente, aspectos menores em termos de racionalidade económica.

289
«À Mesa com o Universo»

5.2 Macrobiótica e Biomedicina: Instersecção e Confronto

5.2.1 Da Biomedicina à Macrobiótica: Experiências e Narrativas

O encontro com a macrobiótica é um acontecimento que frequentemente decorre


de uma situação de doença. Como poderemos constatar, através dos casos que serão
apresentados, é essa situação específica que conduz a uma busca de soluções que sejam
mais satisfatórias do que as propostas pela biomedicina. Esta circunstância, a de ser a
partir da doença que se desencadeia todo um processo de busca de soluções alternativas,
faz parte, de resto, da própria história da macrobiótica, representando amiudadamente
um novo direccionamento para a vida. Se atentarmos em algumas das figuras
proeminentes dessa história, como Itshisuka e Ohsawa (ver capítulo 3), verificaremos
que tal aconteceu. Foi a partir da impossibilidade, quer de um quer de outro, em resolver
os seus problemas de saúde (problemas renais e de tuberculose, respectivamente),
através da medicina convencional, que enveredaram por uma pesquisa de outras
soluções. O sucesso obtido com as respostas que encontraram (alterações na
alimentação) foi tão significativo que as suas vidas acabaram por ficar marcadas por
essa experiência de transformação dos hábitos alimentares, tendo dedicado a sua
existência à promoção de práticas alimentares que entendiam ser mais saudáveis.
Também em um dos casos que apresento (Raquel), a macrobiótica foi de tal modo
importante que decidiu dedicar uma parte da sua vida à divulgação e ensino da
macrobiótica.
A experiência da doença como forma de redireccionamento na vida é de facto
comum, podendo-se, com a consciência das devidas distâncias, estabelecer algum
paralelismo entre a experiência xamânica e aquela que ocorre em indivíduos como
Ohsawa. Tal como acontece entre alguns xamãs, há, no caso de Ohsawa, uma história
de sofrimento, de doença que resiste aos tratamentos habitualmente adoptados, e que
acaba por significar um chamamento para que se tome uma nova direcção na vida.
Ohsawa, com a sua história pessoal de dor, a que se soma uma história familiar marcada
pela doença (morte da mãe e irmãos), parece acumular sinais de repetição que têm a ver
não apenas com o sofrimento inevitável deste mundo, mas com um mundo menos
tangível, como se a doença viesse do mundo dos espíritos para o colocar num caminho
de salvação pessoal e social. Num certo sentido, é como se essa experiência o

290
Sistemas terapêuticos em confronto

iluminasse e tornasse mais apto enquanto intermediário entre o mundo terreno e o


mundo espiritual. Assim, ao convocar o universo para a mesa, Ohsawa pode ser visto
como alguém particularmente competente para mediar dimensões que são vistas como
conectadas mas que têm formas de expressão distintas.
Ainda que as experiências dos alunos que frequentam os cursos de macrobiótica
no IMP não possam ser claramente identificadas como experiências de tipo xamânico,e
ainda que nas respostas aos questionários do IMP (ver cap.4) a maior parte dos alunos
não refira problemas de saúde específicos, a verdade é que, entre os contactos que
efectuei, uma situação de doença frequentemente precede a adopção da macrobiótica.
Diversos relatos dão-nos conta dessa situação estruturando um modelo narrativo que
procura evidenciar os benefícios da macrobiótica. A própria trajectória de afirmação da
macrobiótica na Europa e na América foi sendo desenhada por recurso a argumentos
que salientavam os benefícios para a saúde que poderiam advir da prática deste tipo de
alimentação. A possibilidade de a macrobiótica poder curar os mais diversificados
males do corpo, incluindo o cancro, foi até importante para que esta proposta de
orientação no mundo adquirisse projecção social. A associação da macrobiótica a
problemas de saúde não é, portanto, uma associação vaga e acessória, antes está na base
da sua projecção. Assim, se olharmos para o conjunto de actividades profissionais
ligadas à macrobiótica, verificaremos que a parte destinada ao aconselhamento em
termos de cuidados de saúde é significativa. O aconselhamento individualizado ocorre
sobretudo em contexto de consultório, sendo essa a ocasião para um encontro clássico, o
encontro entre terapeuta e paciente, melhor dizendo, entre consultor e consulente.
Este é um encontro clássico, mas apenas no que respeita a forma, dado que nem
a formação do terapeuta é clássica nem o tipo de orientação que ocorre no consultório o
é. Convém dizer, desde logo, que a própria designação “terapeuta”, não costuma ser
adoptada quando se faz referência ao aconselhamento e acompanhamento, antes se
preferindo o termo consultor e, mais recentemente, health coach. Na verdade, o termo
consultor é um termo mais descomprometido, colocando essencialmente nas mãos
daquele que procura a consulta a possibilidade de se tratar. É também um termo mais
desresponzabilizante e defensivo, na medida em que sugere apenas orientações,
recomendações, conselhos e não prescrições 152.

152
Antes da consulta, pede-se àqueles a que a ela se dirigem que preencham uma ficha onde se pode ler
“os nossos conselhos não são conselhos médicos profissionais. Se procura conselhos médicos, por favor
visite um médico mais apropriado para o seu problema específico”. E ainda “Não prometemos garantir

291
«À Mesa com o Universo»

Por outro lado, o termo “paciente” também não costuma ser utilizado para fazer
referência a este tipo de aconselhamento, dado que sugere sobretudo o acompanhamento
clínico exercido no âmbito da medicina convencional. Termos como utente e cliente
também me pareceram desajustados, dada a habitual remissão do primeiro termo para a
utilização de serviços e, no segundo caso, dada a lógica comercial para que a noção de
cliente remete. Acabei por optar pelo termo “consulente”, dada a sua menor vinculação
às situações que acabei de referir. É certo que o termo é pouco utilizado na linguagem
comum e se adequa a diversos ramos de actividade, não se encontrando particularmente
relacionado com os cuidados de saúde, mas comporta essa dimensão de busca de
conselhos e de orientação que me pareceu justificar o seu uso.
Como venho procurando defender ao longo deste capítulo, os processos
terapêuticos, que decorrem no âmbito da macrobiótica, revelam opções que se
encontram distantes da tutela do Estado e que, por vezes, contrariam orientações dadas
no âmbito da medicina convencional. Estas opções evidenciam que os indivíduos não se
encontram completamente submetidos ao poder biomédico e que tomam decisões em
relação ao seu corpo que não se encontram sob a alçada deste sistema. Como também
venho defendendo, tal não significa que recusem, em todas as ocasiões, as orientações
dadas no âmbito da medicina convencional, antes procurando relacionar-se com ela de
forma estratégica. A necessidade de meios complementares de diagnóstico, que
permitam um acompanhamento mais objectivo de uma determinada situação, ou de
outros apoios facultados pelos Serviço Nacional de Saúde, implicam frequentemente
que os indivíduos se movam entre diferentes sistemas terapêuticos e se relacionem de
forma dinâmica com ambos. É esse o caso de Teresa, espanhola, professora, com cerca
de 50 anos que se debateu com um cancro de mama.
Antes de apresentar o seu caso, impõe-se que refira algo a propósito da sua
nacionalidade. Convém dizer que conheci diversos casos de espanhóis que procuraram
Portugal tanto para obter formação na área da macrobiótica como para virem a consultas
por causa de desordens que os preocupavam. Dizia-se mesmo, em contexto de
formação, que a macrobiótica era das poucas coisas que Portugal exportava para
Espanha e em que estava em verdadeira vantagem relativamente a este país. O facto de
em Portugal existir uma figura carismática associada à macrobiótica, com

nada no que diz respeito à eliminação dos seus problemas, mas, se desejar aprender como apreciar e
beneficiar da Alimentação Macrobiótica, teremos o maior prazer em o(a) assistir”. Sugerindo-se, em
simultâneo os benefícios da macrobiótica afirmava-se aí “A alimentação macrobiótica é um método
alimentar que tem provado ser eficaz na correcção de muitas desordens”.

292
Sistemas terapêuticos em confronto

reconhecimento a nível internacional, Francisco Varatojo, associado à existência de uma


instituição - Instituto Macrobiótico de Portugal – que sob a direcção de Francisco e
Eugénia Varatojo, se apresenta como estrutura dinâmica e organizada, constituem,
provavelmente, uma das razões desta vantagem. Devo dizer ainda que, neste processo,
tive oportunidade de ter como colegas de curso alguns espanhóis que viriam a criar
centros de macrobiótica em importantes cidades espanholas como Sevilha e Barcelona,
o que, confirma a importância do IMP enquanto pólo de formação, tal como referido no
capítulo 4.
Vejamos agora o relato de Teresa a propósito da situação de cancro por que
passou. Nele poderemos detectar a recusa de um tipo de tratamento, aquele que é
proposto pela medicina convencional e, ao mesmo tempo, a relação que vai continuando
a manter com o poder biomédico.

Há quase dois anos, mais especificamente, há 20 meses, foi-me


diagnosticado um cancro de mama. Há um ano que me andava a apalpar e
observar, mas não estava muito preparada para enfrentar problemas e não fui
logo ao médico. Apesar disso, todas as noites me apalpava para ver se os
nódulos ainda lá estavam. Andei meio alterada nesse período. Comecei a ficar
preocupada em saber se o que tinha era bom ou mau. Fui ao ginecologista, a
um ginecologista privado. Não sei porquê, senti no momento que aquilo era
algo sério. O médico mandou-me fazer todos os exames e viu-se que tinha um
cancro na mama, na mesma mama onde sentia os nódulos. Disse-me que as
células observadas eram cancerígenas. A indicação médica que me foi dada foi
a de que tinha de fazer uma mastectomia, com toda a correspondência que isso
tinha em termos de tratamento e alteração do corpo. Desde o primeiro
momento, não sei explicar como, entendi e senti que podia fazer algo de
diferente e que ao menos devia tentar algo antes de me submeter à medicina
oficial. Decidi pôr-me em contacto com [consultor na área da macrobiótica].
Bom… as casualidades não existem. Já tinha feito um curso de cozinha
macrobiótica e procurei saber se alguém me podia ajudar e disseram-me que se
alguém me podia ajudar com conhecimento de causa era o [consultor]. Pus-me
em contacto e ele, sem me assegurar nada, disse-me que se estivesse disposta
podia fazer uma experiência [com a macrobiótica]. Ao mesmo tempo, fiz todos
os exames para ter conhecimento de causa da minha situação (…). A mim, e
tendo em consideração o que sentia dentro de mim, isto animou-me, ainda que
em muitas alturas tivesse muitas dúvidas e ficasse assustada. As pessoas
normalmente indicam-nos outras vias e perguntam-nos porque vamos fazer
aquilo, mas uma outra força levava-me a seguir outro caminho. Tive vivências
internas muito profundas e passei mal, mas aquilo fazia parte do processo de
cura. Na altura tive que recorrer a um psicólogo. Levei-me a sério e comecei a
fazer uma dieta rigorosa (…). Nas férias da Páscoa vim ao Monte Mariposa e
aqui animaram-me muito. Deram-me muita força.
No momento em que comecei com a dieta aquilo era uma loucura. Tinha
que me levantar cedo e escrever o que faltava e o que ia comer neste e naquele

293
«À Mesa com o Universo»

dia. Segui com a minha determinação e é o que é...é tão importante o processo
prático como o processo interior. Aos poucos, senti que precisava de exames e
que tinha necessidade de suporte médico para ver a evolução, nunca abandonei
o caminho médico oficial. Quando renunciei ao que os médicos me propunham,
tive reacções de grande dramatismo, alguns médicos deram-me um ano e outros
quase me enviaram directamente para o cemitério. Recorri a um centro para ter
ajuda psicológica e algum suporte médico. Uma das primeiras coisas que ouvi
tinha a ver com a soberania em relação à minha saúde, eles aceitaram
acompanhar-me. Disseram-me para voltar dali a uns seis meses para fazer
exames e ver qual era a evolução. Alarguei mais o prazo, não estava preparada
para uma frustração e sentia que tinha havido uma mudança nos nódulos e que
tinham diminuído. Não me importava se eram dois ou três milímetros. Só vim ao
fim de uns oito meses. A radiologista ficou muito surpreendida, pois não
encontrava nada na ecografia. Ao princípio não me felicitou e disse-me que
devia ter feito algo diferente… não sabia se na homeopatia se na macrobiótica.
Disse-lhe que estava a fazer macrobiótica. Disse-me para ir para casa
tranquilamente, que não tinha nada… Disse-me para fazer uma ressonância
magnética e disse-me que, dos sete nódulos, quatro tinham desaparecido, não
havia nenhum rasto, e três tinham diminuído consideravelmente de tamanho.
Saí, pulei, fui para o monte e soltei toda a tensão acumulada
(…) Comparei as ressonâncias de um e outro período e estavam muito
diferentes (…) Em Março passado fiz exames e na ressonância magnética não se
encontrava nada. Os médicos perguntaram-me o que tomava, se era algum
tratamento hormonal e adoptaram uma outra postura comigo.
Necessitei de me agarrar a alguém para seguir este caminho. Acho que a
dieta é fundamental, mas também é necessário ver a enfermidade como o
caminho da salvação. Em um ano vi-me livre de sete nódulos, quando queriam
mastectomizar-me. A componente emocional da enfermidade também é muito
importante.153 [Teresa]

Como vemos, este caso representou uma tomada de decisão difícil. Constituiu
uma desobediência à recomendação que havia sido feita pelo médico. Nestas ocasiões, a
pressão de familiares e amigos sobre estas decisões costumam pesar, dado o receios
relativamente a opções sobre as quais não se encontram informados e cuja eficácia não
se encontra devidamente comprovada. Alguns dos doentes que se vêm nestas
circunstâncias, como Teresa, referem a importância de poderem contar com apoio
médico apesar das suas opções. O que estes indivíduos procuram, e de acordo com a
situação em que se encontram, é uma solução conjugada e consentida entre diferentes
sistemas terapêuticos. Para compreender estas opções tem de ser tomado em
consideração o tipo de representações que estes indivíduos fazem sobre a doença e os
modos de a tratar. Se a tomam como uma aprendizagem espiritual ou um «caminho para
a salvação» e se dão importância ao modo como «sentem» que deve ser feito o processo

153
Tradução livre a partir do castelhano.

294
Sistemas terapêuticos em confronto

terapêutico, as suas opções, mais à margem do poder biomédico, são as únicas a que
podem atribuir um significado positivo, aspecto importante num processo de cura.
Vejamos um outro caso, relatado por uma mulher que frequentou o Curso
Curricular de Macrobiótica do IMP e cuja descrição de uma situação de doença dizia
respeito à sua filha que pretendia ajudar através da macrobiótica

Cheguei à macrobiótica através de um programa de rádio sobre


desenvolvimento pessoal que passava à noite. Nesse programa havia a
possibilidade de apresentar casos de doença e era depois sugerida uma
orientação, em termos alimentares, para resolver esse problema (…) A minha
filha [Professora de Informática no ensino secundário] adoeceu gravemente,
tinha muita dificuldade em falar e sentia um enorme cansaço. (…) Ela andou
por muitas consultas, mas inicialmente os médicos não conseguiram detectar o
que ela tinha. Estava muito preocupada e com vontade de a ajudar e comecei a
pesquisar informação na internet sobre macrobiótica. Encontrei o site do
Instituto Macrobiótico de Portugal. Contactei o IMP e disseram-me que, em
Agosto, o Francisco estaria no Monte Mariposa. Decidi ir ao Monte Mariposa
com a minha filha para ter uma consulta com o Francisco. A minha filha foi
diagnosticada inicialmente como tendo paralisia facial, mas eu tinha uma
intuição de que era algo de mais grave, tinha sinais de que era uma doença
mais grave. Depois de muitas consultas a médicos foi diagnosticada com
miastenia gravis, uma doença que implica a produção de anticorpos que
interferem com neurotransmissores e que debilitam a troca de informação entre
sistema nervoso e músculos. Ela tinha alturas em que se sentia tão cansada que
não conseguia rodar a chave do carro para ir trabalhar. Decidi cuidar dela ao
longo de um ano, preparando-lhe refeições macrobióticas de forma muito
rigorosa e sempre à mesma hora. Fiz o tratamento com ela, com uma grande
entrega, emagrecia ela e emagrecia eu. Houve uma altura em que ela deixou de
ter menstruação. Quando voltou a ter menstruação, eu, que já tinha entrado na
menopausa, tive ao mesmo tempo um corrimento com sangue. Quando ela está
pior sinto dores na garganta. Enquanto cuidava dela andei sempre à procura de
mais informação e lia muitos livros que achava que nos podiam ajudar. Um dia
uma senhora com quase nunca costumo falar disse-me que tinha sonhado com a
minha filha e que no sonho ela melhorava (…) Frequentei aulas de
macrobiótica em Madrid com a minha filha na «Escuela de Vida» e encontrava-
me aí com o Francisco, depois decidi vir fazer o curso de macrobiótica a
Lisboa. Decidi que se a macrobiótica resultasse com a minha filha iria abrir um
centro. Passava manhãs na cozinha e às vezes quase todo o dia a tentar fazer
refeições que fossem atraentes e saborosas (…).
A minha filha já consultou três médicos e os dois primeiros queriam que ela
tirasse o timo, coisa que ela não quer fazer porque já contactou várias pessoas
que dizem que não melhoraram e que até ficaram pior. Esta recusa tem-lhe
causado alguns problemas, porque os médicos dizem que não lhe podem
continuar a dar baixa e vir a reforma-la se ela não fizer aquilo que eles lhe
indicam e que retirar o timo é uma das operações que costuma ser recomendada
a pessoas que têm esta doença.

295
«À Mesa com o Universo»

(…) Da parte da família por vezes sinto alguma pressão porque têm receio de
que a situação piore caso não haja intervenção cirúrgica.154
[Marta, espanhola, reformada, 60 anos]

Este caso foi tornado público e aparece contado na primeira pessoa por Raquel,
encontra-se disponível num sítio da internet que entretanto Raquel criou para apresentar
e divulgar a macrobiótica. 155 Não tive oportunidade de a conhecer, mas o seu relato dá
bem conta de uma forma de tratamento em que se procura uma solução que não aquela
inicialmente apontada pelo médico. Face à ausência de efeito de muitos dos
medicamentos que tomara inicialmente e insatisfeita com o diagnóstico dos primeiros
médicos que consultara, procura outros e decide começar a experimentar outras vias,
que não a medicina convencional, com a ajuda da mãe. Esta ajuda seria, na verdade,
preciosa, dado o relato de sucesso que Raquel nos conta. Raquel ainda não resolveu
totalmente o seu problema, mas encontra-se melhor e não retirou o timo. Como ela
própria reconhece, não é um sucesso que apenas se fique a dever à macrobiótica, mas a
uma conjugação de vários contributos que foram importantes: o último médico que
consultou e que a apoiou na sua decisão de continuar a utilizar formas complementares
de tratamento; os fármacos que se encontram disponíveis; a acupunctura; a meditação,
as visualizações positivas; as massagens e as modificações no estilo de vida
(cf.testemunho no referido site). Neste caso, foi através de uma estreita articulação entre
diferentes tipos de tratamento que terá sido desencadeado o processo que a levou a
melhorar a sua condição. É importante notar, tendo em conta a relevância das decisões
individuais, que essa combinação terapêutica foi, em grande medida, definida por ela
com a ajuda de sua mãe. Não se colocando fora da alçada da medicina convencional,
Raquel seleccionou nela aquilo que poderia ser importante para se tratar. A
possibilidade de poder contar com o apoio do médico neste tipo de tratamento foi
fundamental. Como se pode facilmente depreender, esta solução conjugada é onerosa e
exige uma grande disponibilidade em termos de tempo. Recorrer a terapêuticas não
convencionais de forma tão regular como Raquel o fazia não se encontra ao alcance de
todos. Por outro lado, no conjunto de terapêuticas a que recorreu para se tratar, é difícil
perceber o peso específico de cada um destes contributos, mas é destacada de forma
particular a importância da alimentação. Depois de ter sentido uma dificuldade inicial
em alterar a sua alimentação habitual para a alimentação macrobiótica, diz-nos Raquel:

154
Tradução livre a partir do castelhano.
155
Aprendiendo Macrobiótica http://aprendiendo-macrobiotica.blogspot.com/2007/11/presentacin.html
[Acesso em 21-12-11]

296
Sistemas terapêuticos em confronto

O meu corpo tornou-se mais sensível a tudo, comecei a ser mais intuitiva e a
sentir os efeitos energéticos dos alimentos e dos estilos de cozinhar. Que
descoberta incrível! Dou um exemplo: antes de praticar esta dieta nunca comia
raízes de vegetais, quando comecei a sentir os seus efeitos, senti que me
concentrava com mais facilidade, que ficava mais capaz de me organizar e de
me focar em como melhorar a minha saúde, sentia-me mais enraizada na vida e
na natureza. Isto que senti através da minha experiência, li mais tarde em livros
sobre macrobiótica, tinha a ver com as qualidades energéticas das raízes! Sinto
muita gratidão por tudo isto.156
[Raquel, Professora de Informática, 36 anos]

Detecta-se neste relato, como nos anteriores, a importância dada à intuição. Esta é uma
característica a que se dá importância na macrobiótica e que é relacionada com a
natureza espiritual dos humanos. Ser mais intuitivo seria uma forma de evidenciar essa
espiritualidade, sendo esta uma qualidade passível de ser apurada também, por exemplo,
pela alimentação. É ainda dada atenção às qualidades energéticas dos alimentos, uma
energia interpretada de acordo com as categorias yin/yang e com a Teoria dos cinco
elementos. As raízes costumam ser apontadas como contendo uma energia de
concentração dado o facto de se desenvolverem no interior da terra, serem mais
contraídas e, por isso, mais yang. A importância que Raquel atribui à alimentação pode
também ser percebida quando nos diz:

Demorei mais de 8 meses a começar a sentir melhoras na minha condição. É


tudo muito lento, mas vou-me dando conta de que ganhei muito. Sabíeis que a
cada 4 meses o nosso sangue se renova completamente? Ou que a cada 18-36
meses muda a musculatura profunda e o sistema nervoso periférico? E que a
cada 3-5 anos se renovam todas as células dos nossos órgãos? Sabíeis que a
cada 7 anos se renova completamente o nosso sistema nervoso central,
incluindo o nosso cérebro? O nosso corpo está constantemente a renovar-se e,
se lhe dermos as condições de nutrição adequadas, permitimos que aquilo que
estava estagnado, que já não funcionava ou tinha problemas, seja limpo. A
alimentação é uma poderosíssima ferramenta para a saúde que está ao alcance
das nossas mãos.(id.)

O relato que apresento seguidamente, não dá conta da procura de soluções


conjugadas com a biomedicina, tratando-se de uma experiência de adopção da
macrobiótica a partir de uma situação de alergia:

156
Tradução livre.Ver Aprendiendo Macrobiótica
http://aprendiendomacrobiotica.blogspot.com/2009/07/raquel-vida-actual-y-tratamientos.html [Acesso em
21-12-11]

297
«À Mesa com o Universo»

Tomava anti-histamínicos, pois tinha imensa alergia ao pólen e melhorei imenso


com a macrobiótica. Lembro-me que a Rita dizia «ah, isso da alergia é dos
lacticínios». E eu pensava «esta é maluquinha, como é que isto dos lacticínios
tem a ver com a alergia! Tenho alergia ao pólen, não tenho alergia aos
lacticínios!» E ela dizia «ah, é que os lacticínios potenciam». E eu pensei «por
que não experimentar?» Decidi ir a uma consulta de orientação alimentar
macrobiótica. Foi uma revolução na minha vida…Quando ele [consultor] me
disse que deixando os lacticínios podia melhorar muito e viu que comia muita
fruta, disse-me que bastava comer duas ou três peças de fruta. Eu perguntei
«como é que é? Por dia?», «Não, por semana» disse-me ele!
Agora já como mais fruta, sinto que posso comer mais. Deixei de tomar anti-
histamínicos, o que é muito bom. Agora quando ando a espirrar já penso «o que
é que andei a comer?» Passei uma fase em que era muito restritiva na
alimentação e me tornei até bastante rígida. Aquilo estava a resultar tanto
comigo que queria que também resultasse com os outros. Nunca mais fiz um
pequeno-almoço como fazia antes. Percebi que melhorava quando deixava de
comer pão. Melhorei da prisão de ventre, das insónias…
Durante uma fase da minha vida comi de uma forma tão limpa, tão limpa, que
perdi a menstruação, o organismo não tinha nada para eliminar. O consultor
disse-me que isso era normal. Bem, nessa altura também deixei de tomar a
pílula e o consultor disse-me «ah! Agora é que começaste verdadeiramente a
fazer macrobiótica».
[Claúdia, Professora do 3º ciclo do ensino básico, 35 anos]

Este caso, que não se reveste da mesma gravidade do anterior, e que se terá resolvido
sem que fosse necessário recorrer a algum apoio no âmbito da biomedicina, exemplifica
o modo como algumas pessoas vão resolvendo os seus problemas através da
macrobiótica. Porém, como já se viu, nem sempre é exclusivamente por esta via que se
encontram as soluções e nem sequer todas as doenças são tratáveis através da
macrobiótica, como Ohsawa chegou a pensar. Ainda assim, há casos efectivos de
pessoas que se curaram através da macrobiótica, muito embora tais casos não pareçam
suficientes para que esta prática seja reconhecida enquanto sistema terapêutico, pelo
menos externamente. Também a forma de apresentação e divulgação da macrobiótica
leva a crer que necessita da legitimação da ciência para adquirir maior reconhecimento.

298
Sistemas terapêuticos em confronto

Nem sempre a escolha de modos de vida e de tratamento alternativos decorre


sem que haja interferências por parte das autoridades que representam o Estado. Se é
certo que há agencialidade, há também situações de clara apropriação da vida por parte
do Estado. Foi esse o caso relativo a um processo judicial que analisei, processo que
implicou a retirada aos pais de seis filhos menores, com idades entre os 7 meses e os 14
anos, por suspeita de incompetência parental. 157 Este processo decorreu entre 2004 e
2006 e foi iniciado a partir de uma situação de abandono escolar por parte de crianças
que se encontravam a frequentar o ensino básico. A situação de abandono escolar
resultou de objecções colocadas na escola relativamente ao facto de as crianças não
serem vacinadas. Este facto não terá sido gerido da melhor forma, e a pressão exercida
pela escola conduziu à decisão de abandono escolar. A opção pela não vacinação, tal
como é possível depreender através da análise do processo, decorreu da adopção da
macrobiótica.158
Acusado de incompetência parental, e de educar as crianças como se fosse “um
guru pertencente a uma seita”, o pai destas crianças (Fernando) é submetido a avaliação
psiquiátrica após internamento compulsivo num hospital psiquiátrico. A acusação de
que foi alvo foi a seguinte: “Exercício abusivo do poder paternal, com subtracção dos
filhos à escolaridade e aos cuidados médicos preventivos obrigatórios (Consultas de
159
medicina Familiar, Calendário Vacinal)” (Processo Judicial: 412). A mãe foi
igualmente submetida a avaliação técnica das competências parentais. Antecipo desde já
que este foi um caso moroso, que implicou retirada das crianças e o seu acolhimento por
diferentes instituições de solidariedade social, dada a impossibilidade de encontrar uma
única que reunisse condições para acolher seis crianças com diferentes faixas etárias. Os
relatórios periciais acabariam por concluir a inexistência de incompetência parental,
tanto do pai como da mãe, referindo-se aí, em relação ao pai, que não era por
condicionantes de natureza psiquiátrica que o examinado pensava e agia como agia, mas
apenas por razões ideológicas, dizendo-se explicitamente:

157
Processo Promoção e Protecção 298/04.5 TMCBR.
158
Abordei noutro lugar a questão da vacinação entre os indivíduos que adoptaram a macrobiótica
(Calado, 2011).
159
É de notar, desde já, que esta acusação parte de argumentos que não correspondem à verdade. Em
Portugal não é obrigatória a vacinação nem a comparência em consultas médicas como forma de
prevenção de doenças. Muito embora, em termos institucionais, se aja em relação à vacinação como se
esta fosse obrigatória, ela não o é efectivamente (cf. Cunha e Durand, 2011).

299
«À Mesa com o Universo»

Do ponto de vista psicométrico, o examinado apresenta um Quociente de


Inteligência Superior à Média e uma Personalidade Equilibrada e Estável,
incompatível com Quadros Paranóides, Delirantes ou Maniformes Crónicos
(Processo Judicial: 423)

É ainda o responsável pelo exame psiquiátrico que refere

O Estado de Direito Democrático aplicou neste caso toda a panóplia de meios e


de exclusão ao seu dispor, com a finalidade de, com o Poder que lhe assiste,
impor a norma social e excluir a dissidência (Processo Judicial: 421)

É bem visível nesta afirmação a forma abusiva como todo o processo foi conduzido,
evidenciando-se claramente que as situações menos integradas podem conhecer
desfechos trágicos. É ainda o relator do exame clínico, numa linguagem que é
claramente a da apropriação da vida pelo Estado, quem escreve:

O examinado mostra genuína vontade de submeter-se às regras do Estado,


designadamente a de fazer vacinar os filhos e, consequentemente, de os
submeter à Escolaridade Obrigatória, sem prejuízo de manter, no essencial, as
suas convicções fundamentais. (Processo Judicial: 424)

Seria ainda Fernando que frisaria a forma abusiva como sentira a invasão do estado na
sua vida;

Tirar os meus filhos da Escola foi uma decisão difícil. A pressão é enorme de
todos os lados. Somos discriminados. Isto é uma questão de poder. O Poder tem
sempre razão”.
“A Escola é obrigatória porque é a expressão da vontade do Estado, que, por
sua vez, é a vontade do Povo, quer dizer, da Maioria. Se a Escola não fosse
obrigatória, nada disto tinha acontecido comigo. Mas o Poder está em
discriminar quem não cumpre as normas impostas pela Maioria”. Tirei os meus
filhos da Escola por uma questão ideológica relacionada com as vacinas e a
alimentação, coisa que eu entendo não ser conveniente em termos sociais. Mas
em termos de base, eu até estava certo porque não podem obrigar os meus filhos
a vacinar-se. Eu sigo a Medicina Natural, trabalho com produtos naturais, não
era de esperar que eu aceitasse facilmente uma coisa dessas [sublinhado no
processo] (Processo Judicial: 420)

Como pode ser constatado, se a desobediência à norma foi, em algumas das situações
apresentadas, uma saída feliz para uma situação difícil, neste caso específico, em
virtude de vicissitudes diversas, tal não aconteceu, sendo assim um bom exemplo de
exercício autoritário do poder estatal sobre a vida.

300
Sistemas terapêuticos em confronto

Também neste caso, pelo menos por parte da mãe, houve uma situação de
doença que a conduziu à adopção da macrobiótica:

A macrobiótica começou para mim quando eu era pequena. Por volta dos 6-7
anos foi-me diagnosticada uma epilepsia e a minha mãe, ao fim de muitos
tratamentos sem solução, optou por mudar para uma alimentação macrobiótica
e a partir daí nunca mais tive problema nenhum. A macrobiótica implica não
tomar medicamentos nem fazer vacinas. Não implica não ir à Escola; o
problema é que ir à Escola implica vacinas. [sublinhado pelo relator] Vacinas só
em caso de epidemia ou de risco grave, agora como estão a ser feitas, em bebés,
é que eu não acho correcto. (Processo Judicial: 415)

Já no caso de Fernando, a adopção da macrobiótica resultaria de uma circunstância


distinta:

(…) tudo começou na Tropa (na Marinha), sob a influência de um colega seu
conterrâneo, que lhe pôs nas mãos um livro sobre a Macrobiótica. Aderiu de
imediato àquela filosofia e levou muito à risca os seus ensinamentos, a ponto de
passar dias e dias, durante várias semanas, a comer só arroz. (Processo
Judicial: 414).

Circunstância que terá levado a que apurasse uma sensibilidade e intuição que dantes
não lhe eram conhecidas. Um dos intervenientes neste processo afirma:

(…) [terá] adquirido poderes especiais, pois que, por mais de uma vez, lhe
demonstrou saber de factos pessoais íntimos seus que nunca lhe havia
confidenciado nem tinha possibilidade de saber por meios normais. E que, além
disso, parecia ficar de repente possuidor de conhecimentos e capacidades que
não tinha antes. (Processo judicial: 414)

A menção que é feita a este aspecto merece uma nota, já que, também em relatos
anteriores (Teresa, Marta), e junto de outros indivíduos por mim contactados, é
atribuída importância a “forças ocultas”, “sinais”, “mensagens” “intuições” que
poderiam ser melhor captadas se se apurasse a intuição, sendo esta competência vista
como podendo ser aprimorada com a alimentação. A forma como Fernando é descrito
pelo relator do exame psiquiátrico revela a impressão que o mesmo causou.

Está escudado num constructo ideológico muito elaborado, assente em


formulações filosófico-ideológicas de raiz asiática oriental, com aportes

301
«À Mesa com o Universo»

platónicos, hinduístas, budistas, taoistas e de tradição japonesa, formando um


conjunto a que poderíamos chamar de um naturalismo paradisíaco inocente,
ingénuo e ascético. E, sob este ponto de vista, estamos na presença de alguém
que não é um mero seguidor acrítico das ideias de outrem mas, antes, de alguém
que supera essas ideias e se assume como um guru – para utilizar a linguagem
oriental.[sublinhado do relator] (Processo Judicial: 419)

O sincretismo que nesta transcrição é atribuído a Fernando não é algo de surpreendente


em alguém que adopta a macrobiótica e se centra nos seus princípios filosóficos.
Evidencia que Fernando foi um bom leitor de Ohsawa, e que se terá identificado com a
sua proposta de orientação no mundo.
Este processo, pelas suas especificidades, expressa-se num sentido que é o de
evidenciar a existência de agencialidade e de actuação à margem das orientações
dominantes, mas revela também o modo como este tipo de conduta pode, quando sujeito
ao olhar vigilante do Estado, ter consequências trágicas e significar efectivamente
apropriação da vida pelo Estado. Este caso reenvia-nos, como refiro noutro lugar
(Calado, 2011), para os limites entre autonomia individual e responsabilidade colectiva,
para os constrangimentos institucionais a que o corpo e o indivíduo podem ficar sujeitos
quando caídos nas teias dos processos judiciais. Aquilo que cada indivíduo pode encarar
como sendo o mais adequado para si mesmo e para a sua família, pode afinal significar
uma afronta ao que é pensado como sendo o interesse colectivo.
O exemplo abordado poderá ser qualificado como caso isolado e, por isso, digno
de pouca relevância para classificar um modo geral de funcionamento. A sua
singularidade não obsta, porém, ao valor ilustrativo que encerra. Ele mostra-nos, no
limite, como um conjunto de procedimentos banalizados e pouco vigiados, associados a
alguma incompetência técnica e ligeireza (essa que conduz à retirada dos filhos ao
cuidado dos pais) podem ter consequências dramáticas. A fronteira entre a liberdade
individual e o bem comum podem assim ser facilmente ultrapassados, ainda que essa
violação esteja ancorada na melhor das intenções. Tomar o corpo como território de
decisões individuais pode incluir, assim, tanto uma possibilidade de experimentação e
de descoberta do mesmo que o singulariza como uma possibilidade efectiva de
apropriação e normatização da vida

302
Sistemas terapêuticos em confronto

5.2.2 No Consultório: Cruzamentos entre Sistemas Terapêuticos

Um outro cenário onde podemos observar a interacção entre margens e sistema


biomédico é no consultório de orientação alimentar e estilo de vida. Espaço de encontro
entre consultor e consulente, permite-nos aceder ao universo de pessoas que recorrem a
este tipo de serviços. Os dados em que me apoio têm como base empírica as
observações por mim efectuadas num consultório de orientação alimentar macrobiótica,
situado na cidade de Lisboa. As observações foram realizadas entre Junho e Outubro de
2008, ao longo de 50 consultas, cada uma delas com a duração média de 1h 160. Procurei
observar, especificamente, que pessoas acorriam àquelas consultas, que tipo de encontro
é o que ocorria entre consultor e consulente e como se posicionavam os indivíduos que
vinham à consulta em relação às propostas apresentadas pela macrobiótica e aos
tratamentos no Serviço Nacional de Saúde. Era meu objectivo, neste ponto, observar as
possíveis articulações entre a medicina convencional e tratamentos na área da
macrobiótica.
O que procurarei evidenciar aqui é a existência de uma atitude activa por parte
dos indivíduos que acorrem ao consultório relativamente aos problemas que os afectam.
Nos casos observados define-se um padrão: o SNS foi visto como incapaz de dar
respostas satisfatórias e os pacientes não se resignaram com os tratamentos que aí lhes
foram prescritos. Revelando capacidade de avaliação e decisão sobre o seu corpo,
procuraram outro tipo de abordagens e outras formas de perspectivar os seus problemas.
Quer isto dizer que nem sempre foram seguidas prescrições dos médicos do SNS, nuns
casos não as acatando de todo, noutras procurando soluções que integrassem quer
orientações médicas, quer orientações ao nível da macrobiótica ou outras. Os
consulentes revelavam, assim, flexibilidade na sua relação com o SNS e com a
macrobiótica, uma flexibilidade que se expressou numa abertura a uma pluralidade de
orientações em termos de tratamento e na conciliação possível entre eles, sendo essa
conciliação por vezes incentivada pelo próprio consultor de macrobiótica. Apesar das
fronteiras conceptuais entre a biomedicina e a macrobiótica, em termos de abordagem
do corpo, é observável, mesmo em contexto de consultório, a procura de soluções
concertadas entre estes diferentes sistemas, havendo frequentemente permeabilidade por

160
A possibilidade de observar estas consultas e de estar nelas como assistente decorreu do facto de ter
frequentado o curso curricular de macrobiótica do Instituto Macrobiótico de Portugal.

303
«À Mesa com o Universo»

parte do consultor de macrobiótica a conceitos e formas de abordagem que, à partida, se


julgaria não poderem ser integrados neste tipo de propostas terapêuticas.
Algum paralelismo pode ser estabelecido entre a permeabilidade que é possível
detectar entre a macrobiótica a outros sistemas terapêuticos e a fluidez que Jean
Langford (2002) observa a propósito da relação entre a medicina ayurvedica e a
biomedicina na Índia. A “modernização” da ayurvedica terá levado a que os curricula
contemporâneos relativos ao ensino deste sistema terapêutico integrassem muitas das
disciplinas que faziam parte dos clássicos cursos no âmbito da biomedicina,
observando-se, desta forma, uma acomodação de conhecimentos que dantes não
integravam este sistema médico. No século XX, como forma de obter um maior
reconhecimento social, a ayurvedica teve não apenas que se “abrir” à biomedicina mas
também de ser “limpa” do seu cariz esotérico, das suas contradições e espíritos
(Langford, 2002:17). Revelou-se assim uma capacidade de integração de aspectos
relativos a outros sistemas médicos e à promoção do diálogo com eles, que terá levado a
uma reinvenção da ayurvedica, sugerindo-se que é através de contactos,
interpenetrações, fluxos de informações que diferentes sistemas se vão reorganizando.
No consultório de orientação alimentar macrobiótica, onde a “medicação” é feita
sobretudo através da alimentação, encontramos também estes cruzamentos entre
diferentes sistemas e uma busca de articulações entre eles.
A sala do consultório, situada na cidade de Lisboa, é ampla, luminosa e
acolhedora. O cuidado na decoração procura imprimir tranquilidade ao espaço e tornar
favoráveis as situações de interacção. Aqui, as minhas observações foram efectuadas na
qualidade de assistente do consultor de macrobiótica em exercício. De acordo com o
estatuto que aí detinha, podia facilmente ser identificada pelo consulente como alguém
que estava em aprendizagem e que prestava apoio na consulta, fazendo o registo
informático dos dados pessoais daqueles que procuravam a consulta, bem como dos
elementos significativos relativos a cada situação descrita. Por outro lado, era também
apresentada como assistente do consulente, ou seja, como pessoa que este poderia
contactar com facilidade caso tivesse alguma dúvida relativamente a produtos utilizados
na macrobiótica ou ao modo de confecção de alguma das receitas que lhe havia sido
recomendada. No consultório, nesse contexto particular de interacção, o meu papel era
assim pouco interventivo, apenas me limitando a observar, escutar e a introduzir no
computador os dados que diferentes indivíduos haviam registado numa ficha acabada de
preencher e onde constavam elementos como a identificação pessoal, a patologia que

304
Sistemas terapêuticos em confronto

apresentavam (caso ela tivesse sido detectada) e questões relativas ao estado de saúde.
Para além disso, anotava as recomendações que iam sendo feitas e que no final da
consulta seriam impressas e entregues aos consultados para que estes facilmente
pudessem relembrar as recomendações que lhes eram feitas. Este documento, entregue no
final da consulta, incluía um conjunto de orientações gerais relativas à alimentação e ao
estilo de vida, um conjunto de recomendações específicas, bem como elementos de
contacto do assistente.
Cada uma das consultas foi ocasião para serem trocadas palavras circunstanciais,
mas também para revelar aspectos íntimos da vida pessoal, medos e obsessões de alguns
dos consultados. De intensidade variável do ponto de vista emocional, o encontro
terapêutico procurava conduzir o consulente a uma reflexão sobre o seu modo de vida,
alterações a efectuar e, por vezes, ao encarar da hipótese de definição de novos projectos
de vida. Foi esse o caso de uma jovem mulher, operária numa fábrica de produção de
acessórios para automóveis, onde trabalhava por turnos e que apresentava uma doença
pouco comum (doença de Behçet). O facto de trabalhar com frequência em regime
nocturno e de se obrigar a sucessivos ajustamentos do ponto de vista biológico, de acordo
com a variação de turnos, foi visto como aspecto que não a beneficiava no tratamento da
doença, devendo tal prática ser modificada. O consultor sugeriu-lhe mesmo que mudasse
de profissão, caso não conseguisse um horário de trabalho mais adequado. Confrontados
com doenças de que tinham tido recentemente conhecimento, ou com retrocessos noutras
que procuravam encarar de forma positiva, os consulentes traziam assim para a consulta
alguns dos aspectos mais dramáticos da vida humana, justamente esses que os
confrontam com a doença e por vezes a iminência da morte.
Os dados sociográficos que pude recolher ao longo das 50 consultas resultaram
em grande medida da informação que constava das fichas individuais de consulta.
Algumas ressalvas devem, contudo, ser feitas antes de apresentar esses dados. Alguns
aspectos concretos, como a profissão, nem sempre puderam ser por mim bem
esclarecidos, dado que não estava previsto interagir com o paciente. Por exemplo, nas
situações em que os consultados se apresentavam como reformados, nem sempre
referiam a actividade a que se tinham dedicado, acabando assim por se criar uma certa
homogeneidade neste grupo que, evidentemente, não corresponde à realidade. As
diferenças neste grupo, em termos de pertença social, puderam, todavia, ser detectadas
através da própria situação de interacção ocorrida no consultório. Aspectos como a
verbalização de alguns elementos relativos à actividade profissional, aparência,

305
«À Mesa com o Universo»

linguagem utilizada e temas abordados, denunciaram, frequentemente, diferenças em


termos de estatuto sócio-profissional. As fichas não faziam referência aos níveis de
escolaridade possuídos pelos consulentes, pelo que não faço um levantamento
quantitativo desse dado. No entanto, o facto de em algumas das profissões detidas se
exigir níveis específicos de formação, permite, em alguns casos, perceber o nível de
escolaridade dos pacientes.
Entre os 50 consulentes trinta e cinco eram do sexo feminino e quinze do sexo
masculino, o que evidencia uma clara presença de um maior número de mulheres nestas
consultas, tendência que julgo ser extensível ao universo dos consulentes e que é
compaginável com a forte presença de mulheres nos cursos de macrobiótica que são
leccionados no IMP (ver capítulo 4). A forte feminização que se observa, quer nas
consultas, quer na frequência de actividades ligadas à macrobiótica, sugere um maior
interesse por parte das mulheres relativamente a uma linguagem (a da macrobiótica) que
elege o corpo e a saúde como temas centrais. Este facto não invalida, porém, que os
principais divulgadores e promotores da macrobiótica sejam predominantemente homens.
A distribuição em termos de grupos de idade era a seguinte:

Quadro 12 - Distribuição etária


Idades 0-20 21-40 41-60 61-80 81-100

4 15 19 11 1 50

É entre os 41 e os 60 anos que se situa a maior parte dos indivíduos (19). Podendo
constatar-se assim que o recurso a este tipo de consulta foi feito sobretudo por pessoas de
meia-idade (essencialmente mulheres). Nestas consultas, como por certo noutras, a idade
é sem dúvida um factor significativo, já que os problemas de saúde tendem, naturalmente,
a agravar-se com os anos, crescendo assim a probabilidade de pessoas com idade superior
a 40 anos acorrerem mais a este tipo de consultas. Convém notar, contudo, que um
número significativo de consultados (15) se situa entre os 21 e 40 anos, o que revela bom
acolhimento desta proposta terapêutica entre camadas mais jovens, sugerindo que o

306
Sistemas terapêuticos em confronto

interesse pela macrobiótica não se verifica apenas entre aqueles que têm mais idade, mas
também entre os mais jovens161.
Relativamente à área de residência dos consultados é de salientar que a maioria
(30) reside em Lisboa e na Grande Lisboa. Tal justificar-se-á pelo facto de o consultório
se situar nesta cidade, pois o critério da proximidade e facilidade de contacto não pode
deixar de ser aqui relevante. O facto de aqui se encontrar mais disponível informação
relativamente ao tipo de abordagem proposto pela macrobiótica é também um aspecto
que julgo ser relevante. Apesar do maior peso nas consultas de indivíduos que residem
em Lisboa ou grande Lisboa, é, ainda assim, significativa a presença no consultório de
pessoas provenientes de outras zonas:

Quadro 13 - Distribuição de acordo com a residência

Açores Alentejo Algarve Centro Lisboa Madeira Norte Outro


país
- - - 12 30 - 3 6 50

Efectivamente, o peso dos que vêm de outras áreas que não Lisboa ou Grande Lisboa é
relevante – 20 indivíduos. A distribuição dos consulentes pelo resto do país apresenta
alguma expressão na região centro, sobretudo Coimbra e Leiria (12), pouco significado
no Norte (3) e nenhum no sul. Aspecto significativo é o facto de seis dos pacientes
residirem no estrangeiro, dois na Alemanha, um no Brasil e três em Espanha. Os que
residem na Alemanha são portugueses aí a trabalhar, mas, nos outros casos, trata-se
efectivamente de estrangeiros que procuram estas consultas para resolver problemas
pessoais. O facto de serem os espanhóis aqueles que em maior número se apresentaram
nestas consultas, deve-se tanto à proximidade geográfica, com facilidade nas deslocações,
quanto a uma certa falta de oferta de consultas deste tipo em Espanha - pelo menos de
consultas consideradas de qualidade 162. Por outro lado, o facto de haver contactos
frequentes entre as escolas espanholas de macrobiótica e o IMP, facilita este contacto. É
também frequente a deslocação de alguns professores portugueses de macrobiótica a

161
Este dado é, de resto, congruente com dados relativos aos alunos que frequentam os cursos de
macrobiótica no IMP. Também aí é possível observar um significativo número de pessoas com idade
inferior a 30 anos.
162
Pude ouvir esta opinião relativamente às consultas a alguns alunos espanhóis que frequentaram o curso
curricular de macrobiótica em 2008.

307
«À Mesa com o Universo»

Espanha, o que evidencia recepção positiva aos mesmos e, possivelmente, uma menor
expressão da macrobiótica em Espanha por relação a Portugal, pelo menos no que diz
respeito à formação. Os casos de sucesso na superação de certas doenças verificados em
Espanha e que se tornaram conhecidos por aqueles que se interessaram pela macrobiótica,
funcionaram também como estímulo para que outros vissem na macrobiótica uma
possibilidade de resolução dos seus problemas.
Um outro dado a salientar tem a ver com a origem urbana da maioria dos
inquiridos. Apenas dois dos consulentes revelavam relação com o mundo rural e, mesmo
nestes casos, tratava-se de indivíduos que mantinham actividades fora desse contexto163.
Relativamente às profissões dos consulentes é possível observar uma predominância
numa área que inclui as profissões científicas técnicas e artísticas.

163
Refiro-me aqui ao mundo rural num sentido muito tradicional do termo, justamente aquele que tem a
ver com uma ligação forte à agricultura e organização do quotidiano em função das actividades agrícolas.
É evidente que as transformações ocorridas no mundo rural nos últimos tempos desfiguraram
completamente a imagem de dependência da agricultura. Os novos modos de vida nestes contextos
articulam ainda várias actividades, sendo a agricultura uma fonte de rendimentos secundária.

308
Sistemas terapêuticos em confronto

Quadro 14 - Distribuição segundo a profissão


0. Profissões das Forças Armadas -
1. Representantes do poder legislativo e de órgãos executivos, 1
dirigentes, directores e gestores executivos
2. Especialistas das Actividades Intelectuais e Científicas 20
3. Técnicos e Profissões de Nível Intermédio 6
4. Pessoal Administrativo 3
5. Trabalhadores dos serviços pessoais, de protecção e segurança e 1
vendedores
6. Agricultores e trabalhadores qualificados da agricultura, da pesca e da -
floresta
7. Trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices 4
8. Operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da montagem -
9. Trabalhadores não qualificados -
Desempregados 1
Reformados 10
Estudantes 3
Outra situação 1
50

Como atrás referi, a prevalência na categoria 2 (Especialistas das Actividades


Intelectuais e Científicas) é bem visível neste quadro, evidenciando que aqueles que
recorrem a estas consultas têm, em geral, um nível de instrução acima da média, facto
que apoia a ideia de que se trata de pessoas relativamente bem informadas, sendo
expectável a existência de capacidade de avaliação relativamente a diferentes propostas
de tratamento. Por outro lado, é de salientar que muito embora acorram a estas consultas
sobretudo pessoas com profissões que exigem habilitações académicas de nível superior,
encontramos também alguns operários e trabalhadores da construção civil, profissões sem
grandes exigências ao nível da formação escolar. Esta presença cria, por vezes, a ideia de
uma certa heterogeneidade entre os consultados, mas ao analisarmos os dados podemos
comprovar que a sua expressão é diminuta.
A categoria «Técnicos e Profissões de Nível Intermédio», bem como a categoria
«Pessoal Administrativo», ocupam também um lugar com algum significado (6 e 3
indivíduos respectivamente), revelando uma afluência às consultas de pessoas ligadas,

309
«À Mesa com o Universo»

sobretudo, à área dos serviços. O número de reformados é também muito significativo. 164
Entre os 10 reformados que se apresentaram no consultório, pelo menos três haviam
exercido profissões que podemos incluir na categoria 2 (Especialistas das Actividades
Intelectuais e Científicas), designadamente, professora e jornalista, músico e funcionário
de embaixada na área da cultura.
Se para muitos dos que vêm à consulta a macrobiótica já é uma prática conhecida,
vista como podendo proporcionar alguns benefícios em termos de saúde, para outros a
consulta constitui uma revelação relativamente a novos produtos alimentares, receitas e
técnicas para os confeccionar. Dos 50 indivíduos que vieram às consultas, 27 já
conheciam a macrobiótica e tinham tido algum tipo de contacto com esta prática
alimentar, tendo sido de sua própria iniciativa a decisão de recorrer a este tipo de
consulta. Quanto aos restantes (23), ainda assim um valor bastante expressivo, vieram
porque foram aconselhados por pessoa conhecida ou, nos casos de menores, porque
foram trazidos pelos pais. Constata-se, portanto, que é muito significativa a influência de
pessoas próximas na tomada de decisão de recorrer a um consultor na área da
macrobiótica. Este facto não é uma novidade, já que, relativamente a outro tipo de
consultas este tipo de indicação ocorre frequentemente. Julgamos importante sublinhar,
de acordo com estes dados, que o recurso à consulta de macrobiótica é feito por um
número significativo de pessoas com poucos ou nenhuns conhecimentos nesta área. Este
aspecto, tendo em consideração o valor monetário relativamente avultado da consulta
(cerca de 100€ em 2008), evidencia disponibilidade mental para ouvir, e, em alguns
casos, seguir uma proposta terapêutica bem distinta das abordagens mais convencionais.
Das 50 pessoas que vieram à consulta, 21 revelaram ter já muitos conhecimentos
na área da macrobiótica, dado que já seguiam o regime alimentar a ela associado e, em
alguns casos, tinham vindo a consultas anteriores. Outros 17 consulentes revelavam
também alguns conhecimentos na área da macrobiótica, mas desconhecimento
relativamente a certos produtos específicos. Por outro lado, 12 dos consulentes não
tinham qualquer tipo de conhecimento relativamente à macrobiótica, sendo para eles as
indicações dadas no consultório de carácter inteiramente novo.
Os motivos que trouxeram estes indivíduos ao consultório foram extremamente
variados. Dos distúrbios apresentados há a destacar os cancros (curados e sob vigilância

164
Como referi atrás, nem sempre foi possível registar as profissões desempenhadas anteriormente pelas
pessoas deste grupo. Desta forma, as diferenças entre elas foram essencialmente detectadas a partir da
situação de interacção e de verbalizações relativamente a actividades exercidas

310
Sistemas terapêuticos em confronto

ou em tratamento), sobretudo cancros de mama (sete entre as onze situações de cancro


eram cancros de mama); os problemas digestivos; cansaço e falta de energia, problemas
renais e de tensão arterial e problemas de coluna e dos ossos. No quadro que se segue
apresento as principais patologias apresentadas. As categorias utilizadas não se excluem
mutuamente, dadas as diferentes implicações de certas doenças, mas foram consideradas,
ainda assim, uma das formas mais plausíveis de arrumar a diversidade encontrada:

Quadro 15 - Problemas de saúde

Problemas apresentados
Cancros 11
Problemas digestivos 10
Problemas renais e de tensão arterial 6
Cansaço, falta de energia 5
Problemas de ossos e coluna 4
Doenças auto-imunes 3
Peso em excesso 2
Problemas ginecológicos 2
Problemas dermatológicos 1
Problemas de sangue 1
Problemas na tiróide 1
Problemas cardio-vasculares 1
Inespecífica 3

Esta é pois uma primeira caracterização que podemos fazer do conjunto de indivíduos
que se dirigiram a esta consulta e que ajuda a enquadrar os dados relativos ao encontro
entre consultor e consulente.

A relação consultor/consulente que se estabelece no consultório caracteriza-se


pela cordialidade e pela escuta atenta dos problemas apresentados. Muito embora a
relação entre ambos seja uma relação assimétrica, na medida em que um dos elementos se
encontra numa posição mais vulnerável (a do que procura aconselhamento) e outro na
posição mais protegida (a de conselheiro), é procurada uma proximidade com o paciente
que atenua a distância existente. Como os encontros têm uma duração média de 1 hora,
torna-se possível uma exposição detalhada dos problemas e uma orientação
pormenorizada. A assimetria a que aludo não tem os contornos sugeridos por Parsons
(1951), ou seja, a distância em termos sociais entre o consultor e consulente não é um dos
factos mais relevantes. Por outro lado, o paciente não é visto como sujeito passivo, tal

311
«À Mesa com o Universo»

como ocorria no modelo funcionalista (Bury, 1997), mas como alguém que tem nas suas
próprias mãos o processo de cura e a quem se pede explicitamente uma atitude activa,
uma atitude que pode significar uma mudança no estilo de vida.
O tipo de interacção que ocorre no consultório decorre sobretudo de aspectos
verbais e não-verbais da dimensão comunicacional. A abertura face ao outro, quer da
parte do consultor quer do consulente, parece ser condição indispensável na definição de
um processo de tratamento, um processo que exige alguma negociação e o reequacionar
de diversos aspectos relativos ao estilo de vida. Foi possível detectar que havia por parte
do consultor uma notável capacidade para perceber se as pessoas iriam ou não ser
capazes de introduzir mudanças nas suas vidas. Um exemplo do que se afirma pode ser
dado pelo caso de um homem, próximo da idade de reforma, que viera ao consultório
acompanhado da mulher por motivos que tinham a ver com a pressão arterial. Pelo
diálogo estabelecido e pelo tipo de reacção da mulher face a sugestões nas mudanças
alimentares, facilmente se percebeu que iria ser difícil produzir alterações significativas,
pois era a mulher que iria fazer as compras e cozinhar. A fraca receptividade demonstrada
pela mulher denunciava, desde logo, uma dificuldade acrescida de seguir uma
alimentação de orientação macrobiótica. De acordo com a percepção das circunstâncias
que envolviam diferentes indivíduos, o consultor procurava então adaptar as orientações a
diferentes casos, procurando observar as alterações que as pessoas podiam efectuar. A
ideia de uma alteração radical dos hábitos alimentares nem sempre foi sugerida,
promovendo-se antes uma mudança gradual e que criasse menos ansiedade. Como
vemos, a busca de níveis de entendimento é procurada pelo consultor, mas é necessária
também alguma motivação e receptividade por parte dos consultados. Receptividade para
acolher novas linguagens, novos campos semânticos, e motivação para alterar gestos do
quotidiano.
Dimensão relevante no processo comunicacional é a forma como a palavra é aí
gerida. É possível verificar que nos minutos iniciais é estabelecido um pequeno diálogo
entre consultor e consulente, destinado à apresentação e em que são abordadas questões
do quotidiano que são meramente introdutórias, nada têm a ver com os problemas que
motivaram a consulta (locais de residência, trabalho, eventuais amigos em comum, etc.),
mas que são importantes, na medida em que desencadeiam envolvimento emocional e
aproximam consulente e consultor. O uso da palavra, por não estar ainda centrado em
nenhum dos interlocutores, aumenta a empatia, de tal forma que aquele que acorre à
consulta se sente mais familiarizado, não só com o terapeuta, mas também com o

312
Sistemas terapêuticos em confronto

ambiente do consultório. Só após a apresentação é disponibilizado tempo ao paciente para


fazer uso da palavra. A enunciação que o paciente faz de si e dos seus problemas, bem
como o modo como gere a palavra, são reveladores, como nota por exemplo Fainzang
(2001), das suas pertenças em termos sociais e culturais. No caso vertente, os indivíduos
menos escolarizados tendiam a usar menos a palavra e a destacar a autoridade do
consultor, acentuando o carácter hierárquico da relação. Muito embora o consultor não
fosse médico, era tratado habitualmente com deferência, sendo comum a expressão
“senhor doutor”. Uma certa relação de submissão face a uma autoridade associada ao
consultório é assim visível, sendo de alguma forma comparável com a relação de
submissão dos católicos face aos médicos, constatada por Fainzang (2001:134). Para esta
autora, essa submissão seria construída através da relação que se teriam habituado a ter
com a autoridade religiosa, no caso a religião católica, o mesmo não se passando com
protestantes e judeus. As diferentes condutas face à autoridade do médico (de resistência,
submissão ou negociação), estariam assim ligadas ao modo pelo qual os indivíduos
aprenderam a posicionar-se face à autoridade, estando esta aprendizagem estreitamente
ligada com as pertenças religiosas. Nos casos que observei, não me centrei em pertenças
do ponto de vista religioso, dado que este aspecto raramente foi evocado. O que pude
observar, efectivamente, foram diferenças em termos de postura e de gestão da palavra
que derivavam sobretudo da idade, da formação das pessoas e das profissões que
exerciam ou tinham exercido.
Na parte final da consulta o uso da palavra cabe mais ao terapeuta, e é feita no
sentido de esclarecer o paciente sobre os produtos e as formas de cozinhar na
macrobiótica, dando-se conselhos e fazendo-se recomendações sobre tratamentos
específicos. A passagem desta informação é feita com a ajuda de um dossier sobre
macrobiótica que é dado a cada paciente na primeira consulta – dada a afluência de
pacientes espanhóis, foi também elaborado um dossier em castelhano. Sem esta
orientação escrita, seria difícil para os que estão menos familiarizados com a
macrobiótica seguirem as recomendações que lhes são feitas. Nesse dossier encontramos
um glossário de termos, recomendações relativas a estilos culinários, informações sobre a
alimentação macrobiótica padrão, sobre alimentos que devem ser usados regularmente,
ocasionalmente ou que devem ser evitados, receitas diversas de sopas, pequenos-almoços,
pratos principais, remédios caseiros, etc. Efectivamente, as mudanças a operar em termos
de alimentação podem ser tantas que este tipo de documentos se torna indispensável. Na
parte final da consulta, o paciente é sobretudo um ouvinte atento. Muito embora sejam

313
«À Mesa com o Universo»

frequentes os casos de pessoas que não seguem as recomendações que lhes são dadas, tal
como me foi referido pelo consultor, estas são sempre ouvidas com atenção.
O modelo de relação consultor/consulente que aqui se encontra não é um modelo
fundado numa autoridade em termos de conhecimentos científicos; a autoridade do
consultor advém, sobretudo, da sua experiência e dos muitos casos de sucesso no
tratamento de doenças que não foi possível sanar através da medicina convencional. Por
outro lado, neste modelo de relação o consulente não é encarado apenas do ponto de vista
biológico, mas tendo em consideração aspectos psíquicos e sociais. Procura fundar-se na
confiança, franqueza e sinceridade, de forma a criar uma relação mais humanizada do que
aquela que é possível encontrar em muitos consultórios médicos. A relação procurada,
ainda que não seja decalcada de um modelo teórico a seguir, vai assim de encontro a
alguns dos aspectos defendidos por vários autores que aspiram a um modelo do encontro
terapêutico mais humanizado (Cassel,1991; Hahn,1995). Idealmente deve derivar mais de
uma intensa interacção e processo de negociação do que da imposição de um tratamento
(Goffman, 1971). Não sendo autoritária, a relação consultor/consulente identifica-se
pouco, como referi, com o modelo proposto por Parsons (1951), modelo onde o carácter
assimétrico da relação era um dos aspectos mais significativos e estava na base da
obtenção de um consenso capaz de reabilitar o doente para o sistema social. O que
encontramos é uma solução que parece resultar da interacção e da negociação, mas onde
a persuasão e os argumentos utilizados procuram atribuir uma posição de força aos
tratamentos preconizados pela macrobiótica, assentes sobretudo na alimentação, em
detrimento dos tratamentos propostos pela biomedicina que são desvalorizados, ainda que
por vezes sejam considerados inevitáveis. Assim, embora a solução encontrada resulte da
interacção e da negociação, não deixa de salientar, de forma subtil, a autoridade da
proposta macrobiótica em relação a outras formas de tratamento, como se houvesse um
campo ideológico a defender. No aconselhamento não se procura esperançar os pacientes
para o tratamento de doenças que se sabe, à partida, não terem cura. Faz-se referência,
isso sim, a indivíduos com problemas semelhantes que conseguiram melhorar, ou seja,
projectando de forma subtil a possibilidade de cura ao paciente que se encontra no
consultório. De facto, o exemplo de outros casos, tantas vezes evocado, possui um efeito
retórico notável e deixa no paciente a ideia de que se outros se puderam curar, esse pode
também ser o seu caso.
Os indivíduos que aparecem no consultório evidenciam, de uma forma geral,
uma atitude activa no tratamento das suas doenças, não se cingindo apenas às

314
Sistemas terapêuticos em confronto

prescrições médicas que lhe são apresentadas, antes procurando outras soluções.
Tomam o corpo como território para decisões individuais (decisões condicionada,
evidentemente, por informação diversa) e não se satisfazem com a orientação dada pela
medicina convencional. Surgem como agentes que se vêem como responsáveis pela sua
própria saúde, não se sujeitando acriticamente às prescrições médicas. Por vezes
ignoram mesmo essas prescrições médicas ou conjugam-nas com outras vias
terapêuticas que consideram adequadas para resolver os seus problemas.
No consultório, ainda que com frequência sejam desenvolvidas críticas à
biomedicina e às suas propostas mais invasivas, bem como ao recurso excessivo a
medicamentos, são frequentemente levados em conta os meios de diagnóstico a ela
associados, bem como algumas das suas prescrições em termos de tratamento. Verifica-
se uma certa fluidez em termos de abordagem do corpo, que leva a que a biomedicina
possa ser integrada nas respostas dadas pela macrobiótica. O caso de Francisca (nome
fictício), reformada, com 67 anos, é ilustrativo do que se afirma. Conhecia o consultor
desde os seus 40 anos e acreditava nele porque há muitos anos tinha tido problemas de
saúde que não conseguira resolver com a medicina convencional mas que superara com
a ajuda da macrobiótica. Vinha agora ao consultório porque dizia ter uma infecção
pulmonar que não passava, “andando sempre com catarro”. Queixava-se também de
flacidez na pele, dizendo que “a sua pele estava a cair aos bocados”, bem como de
problemas nas suas relações familiares. Pelo que me foi referido pelo consultor,
posteriormente, tratava-se de uma mulher que tinha sido muito atraente e que não estaria
a aceitar bem o envelhecimento. O seu estado era de desequilíbrio, tendo trazido
relatório médico em que era classificada pelo psiquiatra como portadora de doença
bipolar. Não reconhecia, no entanto, a origem psíquica dos seus problemas, centrando-
se no detalhe minucioso de incómodos físicos diversos. A orientação que pretendia era
sobretudo para esses incómodos, não dando importância alguma ao tratamento de
aspectos psicológicos. Foi-lhe então recomendado que seguisse a alimentação
macrobiótica padrão, bem como algumas recomendações específicas, que incluíam
tomar os medicamentos receitados pelo médico e beber um copo de vinho de vez em
quando para descontrair. Como é bom de ver, estas não são as recomendações que mais
esperaríamos num consultor de macrobiótica, mas são um bom exemplo de como se
procuram soluções conjugadas e de que nem sempre são desprezadas as orientações
dadas por médicos convencionais. Para certas situações elas são mesmo a melhor
solução.

315
«À Mesa com o Universo»

O papel do consultor a este propósito é relevante. O seu posicionamento nunca é


o de desaconselhar o recurso à consulta médica – é provável que seja também para se
proteger que utiliza esta estratégia defensiva – mas o de apresentar outras possibilidades
de tratamento que, em alguns casos, permitem ignorar totalmente as prescrições
médicas, enquanto noutras exigem essa solução conjugada. Sempre que é trazida
informação médica para o consultório ela é analisada com atenção, pois constitui
informação importante para a identificação de problemas, ainda que estes possam ser
situados de forma diferente pelo terapeuta. Por exemplo, um cancro na mama direita
revela também, de acordo com o consultor, uma afecção do fígado (órgão árvore), que
precisa assim de ser tratado, enquanto um cancro na mama esquerda é revelador de
desequilíbrios ao nível do baço e pâncreas (órgãos solo). Em casos de cancro, a
informação trazida pelo consulente relativamente aos marcadores tumorais é uma boa
indicação sobre a evolução da doença e do tipo de intervenção que deve ser feita. Os
indivíduos que se vêem afectados por este tipo de doenças sentem assim necessidade de
se mover entre universos terapêuticos distintos mas complementares.
O caso de Julieta (44 anos, licenciada em economia, administrativa) é ilustrativo
de uma forma activa de gestão da doença e também de como as políticas de saúde não
têm sido definidas no sentido de acolher ou enquadrar outras opções em termos de
tratamento. Praticante de macrobiótica há alguns anos, após um divórcio é-lhe detectado
um cancro na mama esquerda. Decide tratar-se com recurso à macrobiótica, optando por
escolher uma ginecologista que sabe concordar com as suas escolhas e dar-lhe a
orientação necessária. Orientação para que se possa sentir mais suportada nas suas
opções e para se mover no SNS com menos dificuldades. A ginecologista representa, na
verdade, alguém dentro do sistema a quem é reconhecida autoridade em termos
médicos, o que permite a Julieta, por exemplo, ir realizando os exames necessários, sem
ser lançada nos habituais tratamentos para as situações de cancro de mama traçados no
âmbito da biomedicina e que implicam frequentemente tratamentos agressivos como a
quimioterapia, radioterapia e mastectomia. Vale a pena notar, de resto, a propósito da
escolha de certos médicos, que entre os praticantes de alimentação macrobiótica circula
informação relativa a médicos que se sabe serem mais receptivos a modos de tratamento
menos convencionais.
Julieta decide agir sobre o seu corpo através da recusa do tipo de tratamentos
que se encontram estabelecidos para casos como o seu e adopta uma atitude activa na
busca das soluções que lhe parecem mais acertadas. Em vez de se submeter ao

316
Sistemas terapêuticos em confronto

tratamento que o SNS lhe oferece, acredita na possibilidade de vencer a doença através
de outros recursos. Estimulada pelos casos de cura de que ouviu falar a alguns dos
praticantes de macrobiótica e em que não houve recurso a tratamentos como a
radioterapia e a quimioterapia, decide-se por seguir a macrobiótica. A sua opção não é
fácil e refere a dificuldade que sentiu no centro de saúde a que se dirigiu para pedir uma
baixa médica. A doença deixava-a muito debilitada, pelo que não se sentia capaz de
trabalhar e teve, por este motivo, que se dirigir ao centro de saúde para pedir ao seu
médico de família um atestado médico que lhe permitisse faltar ao trabalho e assim
descansar. A sua médica de família acabou por tomar conhecimento dos resultados de
exames que efectuara e ficou alarmada com o facto de Julieta ainda não se encontrar em
tratamento com os resultados que apresentava, tendo mesmo ponderado a possibilidade
de a enviar para o Instituto Português de Oncologia. Considerando uma loucura a
negação do tratamento habitual, contactou mesmo o ex-marido para o colocar a par da
situação, já que era a única pessoa mais próxima de quem tinha o contacto.
Julieta, que não revelara as suas decisões em termos de tratamento, por saber que
não iriam ser bem interpretadas, vira-se assim numa situação em que se sentia alvo de
reprimendas médicas e sem alternativa que lhe permitisse justificar as faltas ao trabalho.
Esta é, pois, uma situação em que a paciente sentiu que havia, por parte do médico, uma
dificuldade em acolher a sua decisão relativa doença, e que, por isso, implicou a
omissão do tipo de tratamento por onde pretendia enveredar. Este caso coloca também
em discussão a questão da soberania sobre o corpo, evidenciando o quanto esta questão
pode ser melindrosa quando atitudes diversas face à doença se confrontam.
Relativamente a este caso, não é possível sequer analisar a reacção do médico face a um
tratamento no âmbito da macrobiótica, porque tal nem chegou a ser revelado, com
receio de que essa via fosse ridicularizada e tida como ineficaz. Conhece-se apenas a
forma alarmada como o médico reagiu face à suposta passividade da paciente perante a
doença. Uma reacção compreensível dado o conhecimento da médica sobre a doença e a
sua possível evolução e dados os imperativos de carácter deontológico que
possivelmente a guiavam.
Uma falta de abertura perante outras vias de tratamento foi assim detectada por
Julieta, que lamenta que apenas os serviços médicos convencionais possam atestar o
estado de doença dos indivíduos. Este facto sugere, na sua opinião, desrespeito por
decisões individuais e beliscaria concepções como as da soberania do indivíduo sobre o
seu corpo. Deparamo-nos aqui com procedimentos específicos, suportados pelo Estado,

317
«À Mesa com o Universo»

para avaliar o estado de saúde, e deparamo-nos com o poder inequívoco da biomedicina


enquanto única forma plenamente legítima de avaliação desse estado. Este facto
reenvia-nos, inevitavelmente, para a ideia de estatização do corpo e para a dificuldade
em agir fora do quadro de acção do Estado. No entanto, é de realçar, que, apesar dessa
dificuldade, tomadas de decisão como as de Julieta revelam a possibilidade de excluir o
corpo biológico da inteira subordinação ao Estado. Revelam também uma forma
estratégica de relação com a biomedicina, que conduziu Julieta a procurar uma
ginecologista que desse o necessário suporte às decisões que decidiu tomar. Tanto este
caso como o de Teresa, casos em muito similares, não revelam na verdade uma rejeição
da biomedicina no seu todo, mas apenas de algumas práticas que consideram ser mais
invasivas e agressivas e que procuram evitar. O que o testemunho de ambas deixa
entender é que buscam uma solução de articulação entre a biomedicina e um processo
terapêutico não convencional.
Este tipo de casos torna importante a discussão em termos de deontologia
médica. Como trabalhar com pacientes que não estão dispostos a acatar todas as
orientações dadas, mas apenas algumas? Como acompanhar um doente que apenas está
disposto a fazer exames de diagnóstico? Como referi, não analiso neste trabalho o modo
como o poder biomédico se relaciona com as margens, mas, sobretudo, como a partir
das margens se procuram articulações com a biomedicina. Pelos casos aqui
apresentados, a qualidade dessa relação parece ser um assunto que depende de cada
médico. Alguns estão disponíveis para um acompanhamento que ultrapassa o quadro da
biomedicina e promovem formas de articulação com outros sistemas terapêuticos,
enquanto outros não demonstram qualquer abertura para esse tipo de situações. Em todo
o caso, este debate não pode deixar de remeter para as políticas do corpo e para o modo
como deve ser pensada a circunstância da articulação entre diferentes sistemas
terapêuticos. Como referem Faizang (2011) e Cunha e Durand (2011), é enquanto
sujeitos políticos que estes indivíduos, que querem soluções distintas, devem ser
pensados. Assim, tal como Cunha e Durand observam a propósito de decisões dos pais
relativamente à não vacinação dos filhos, «Aquilo a que se aspira é (…) mais espaço
para a escolha, participação e agencialidade individual dentro dos âmbitos regulados
pelo Estado» (2011:225). O que desta forma se constata é que, muito embora exista um
corpo, uma pessoa, um sujeito, que tem existência fora do quadro do Estado, há um
desejo de que a partir dele se defina um mais amplo espaço de escolhas e possibilidades
de articulação. Argumento, neste contexto, que o trabalho nas margens é já um trabalho

318
Sistemas terapêuticos em confronto

de erosão feito em torno daquele que é o sistema hegemónico, e pode constituir, como
tenho vindo a afirmar, um input para a sua transformação.
Julieta seguiu um conjunto de recomendações alimentares que passaram numa
fase inicial, pela supressão de óleo/azeite (é de referir que no caso de cancro de mama e
também de outros tipos de cancro os óleos são vistos como factor de disseminação das
células cancerosas), em busca de um tipo de alimentação que não contribuísse para
nutrir este tipo de células e que reforçasse o sistema imunitário. A perspectiva sobre o
cancro na macrobiótica é a de que é possível diminuir o número de células cancerosas
se forem eliminados os produtos que mais as nutram, como os óleos e o açúcar. Ter
como referência a alimentação padrão macrobiótica é importante, mas mesmo dentro
desta há algumas restrições a fazer, como o consumo de leite de soja ou de tofu,
alimentos associados a uma maior produção de estrogénios, e que são vistos como
alimentos a evitar em casos de cancros sensíveis a estas hormonas.
Desde a última consulta que efectuara, os nódulos que tinha na mama tinham
reduzido para metade. Em contrapartida, apresentava uma ligeira anemia, para o que lhe
foi recomendado soba (massa feita a partir de trigo sarraceno) com shoyu (molho de
soja) e mochi (preparado feito a partir de arroz glutinoso socado). Para equilibrar o baço
foi-lhe ainda recomendado que ingerisse suco de couve e de cenoura. A alimentação
deveria ser, nesta fase, um pouco mais diversificada e elaborada, recorrendo a diferentes
técnicas culinárias. A actividade física e a actividade criativa foram também vistas
como muito importantes na superação da doença. Escutar o corpo e divertir-se, foram
algumas das recomendações feitas. O estado emocional é visto como sendo muito
importante no tratamento das doenças, tendo o consultor “receitado”, neste caso
concreto, que a paciente arranjasse um namorado. A zona do chakra do coração teria,
no seu entender, a ver com os afectos, pelo que era importante resolver problemas a este
nível. O recurso a conceitos ligados a outros sistemas conceptuais que não a
macrobiótica, como o de chakra (vórtice de energia vital), evidencia também a
permeabilidade a outras narrativas e conceptualizações sobre o corpo, ainda que os
elementos estruturadores do discurso sobre o corpo sejam basicamente outros.
Através do caso de Julieta, e também do que considerámos anteriormente, vemos
que a solução para os problemas é concertada e que a macrobiótica não dispensa sempre
os exames médicos. Sempre que estes são apresentados constituem uma importante
indicação para o tratamento a seguir e em alguns casos as pessoas continuam a tomar os
medicamentos que lhes foram receitados, ainda que diminuindo a quantidade dos

319
«À Mesa com o Universo»

mesmos. Foi esse o caso de uma rapariga de 15 anos, seguida há algum tempo no
consultório e que padecia da doença de Crohn. Embora não tivesse deixado a
medicação, assegurava, ter melhorado imenso com a alimentação macrobiótica.
Também um orquestrador, que tinha tido um aumento brutal do número de plaquetas no
sangue, conseguira a sua diminuição combinando a alimentação macrobiótica com a
medicação. No caso de Joana, 24 anos, professora de dança, a solução proposta seria
mesmo combinar uma prática alimentar macrobiótica com a hemodiálise. Descobrira,
acidentalmente, havia uma semana, que os seus rins não funcionavam bem. Ao medir a
tensão constatou que a mesma estava muito elevada (13/17), tendo-se dirigido para o
hospital, onde a tensão máxima subiria para 19. Ao fazer exames clínicos constatou-se
que os seus rins eram muito pequenos; não se tinham desenvolvido convenientemente,
pelo que teria que fazer hemodiálise até conseguir a doação de um rim. Os pais, que a
acompanhavam na consulta, estavam dispostos a tal, mas estavam também cientes de
que as práticas alimentares eram importantes. A mãe tivera contactos com a
macrobiótica na sua juventude e considerava-a importante no tratamento da filha, que
apenas temia ter que deixar de dançar.
Por estes breves exemplos podemos constatar que em várias situações é
necessária uma solução de conciliação entre diferentes sistemas de cura e que por vezes
não é possível deixar de recorrer às respostas da medicina convencional. Todavia, ainda
que se opte por fazer quimioterapia ou outros tipos de tratamento mais invasivos, a
adopção de uma prática alimentar macrobiótica costuma dar, segundo o consultor, bons
resultados. Foi esse o caso de António, reformado, 68 anos, com um cancro na garganta.
Fez quimioterapia mas também macrobiótica sob influência do filho. Antes de começar
com a alimentação macrobiótica tomava medicamentos para baixar os níveis de
colesterol, para a tensão e para o ácido úrico. Na altura da consulta a que pude assistir,
já não tomava nenhum desses medicamentos e o seu problema de cancro estava a
evoluir de forma muito positiva. Evidentemente que nem todos os casos terão este
sucesso, mas a verdade é que muitos dos que vieram ao consultório, e que seguiram as
orientações que lhes foram dadas, melhoraram bastante. Quanto àqueles que
apresentavam, especificamente, situações de cancro, conseguiram ver baixar de forma
significativa os valores relativos aos indicadores tumorais.
A interpretação que é feita aos resultados obtidos com a macrobiótica depende
muito do tipo de adesão do paciente a esta prática. Se as orientações dadas forem
seguidas com rigor – o que acontece em menos de metade dos casos dos que acorrem ao

320
Sistemas terapêuticos em confronto

consultório, segundo informação do consultor – acredita-se que a perspectiva de


melhoria da condição do paciente é significativa. Um dos problemas detectados, é que a
adesão aos princípios alimentares da macrobiótica se encontra dependente, ainda de
acordo com o terapeuta, de vários factores: da gravidade do problema apresentado, da
crença que o paciente deposite neste sistema de cura, da sua persistência e da sua
disciplina. Referia o consultor a propósito de situações graves que tinham sido
ultrapassadas:

As pessoas que conheço com este tipo de problemas, e que os conseguem


resolver, revelam todas esta capacidade de andar para a frente, de ir mesmo
para a frente, sem vacilar (…). Têm todas mais ou menos o mesmo estilo, o
estilo de ir para a frente. Há aquelas pessoas que eu e os meus colegas dizemos
que andam naquilo que nós chamamos na gíria o «consultation shopping», vão
à homeopatia, à quiroprática, à macrobiótica…ervas para aqui, ervas para
acolá… numa desorientação tão grande e sem determinação que é difícil de
conseguir.

Estar disposto a mudar de alimentação é, desde logo, apontado como um importante


indicador da obtenção de sucesso no tratamento. Deve notar-se que esta mudança
implica, geralmente, uma outra e mais profunda: no estilo de vida, na atitude perante o
corpo, a doença e a vida. Se se considerar, tal como o consultor em exercício
considerava, que as atitudes mentais e emocionais são fundamentais para explicar a
doença e para encontrar um processo de cura, tornar-se-á facilmente perceptível a
importância destes aspectos. Remetem para dimensões simbólicas, para múltiplos
processos intangíveis que orientam a acção humana e também para emoções que,
sempre de acordo com o terapeuta, encontram nas doenças diversas formas de se
materializar.
Os diversos casos apresentados ao longo deste capítulo remetem-nos para
confrontos entre sistemas marginais e sistemas hegemónicos; remetem-nos para práticas
que interceptam uns e outros sistemas, revelando-se nessa intersecção, na maior parte
dos casos, uma fluidez que permite soluções concertadas entre a biomedicina e a
macrobiótica. As soluções encontradas são, na maioria dos casos, soluções de
articulação que evidenciam indivíduos com flexibilidade suficiente para integrarem, dos
diferentes sistemas terapêuticos com que se cruzam, o que consideram ser mais
adequado para si. Estas escolhas e adequações nem sempre partem exclusivamente
destes indivíduos, mas antes surgem a partir de orientações que lhes vão sendo dadas,

321
«À Mesa com o Universo»

em diferentes consultórios, pelos respectivos terapeutas, o que evidencia que muito


embora não existam relações formais entre diferentes sistemas terapêuticos, e sejam até
traçadas fronteiras claras entre uns e outros, existe uma relação informal através das
quais se procuram soluções conjugadas. Há assim um dinamismo entre diferentes níveis
que coloca em discussão a necessidade de o tipo de articulações não ocorrer apenas de
modo informal mas de modo mais explícito, de maneira a que não fique dificultado o
recurso a este tipo de práticas. É, portanto, uma discussão ao nível das políticas do
corpo que este tipo de práticas parece exigir.

322
Considerações finais

Considerações Finais

Esta pesquisa procurou dar conta do processo social que levou à criação e
promoção de um produto social que tem vindo a adquirir uma expressividade crescente
na sociedade portuguesa: a macrobiótica. Que processo foi esse que permitiu que um
produto de clara inspiração japonesa transpusesse as fronteiras do lugar onde nasceu e
fosse adoptado e apropriado na Europa e na América, foi um dos aspectos que esta
pesquisa procurou esclarecer. Um dos pontos fundamentais deste trabalho prendeu-se,
assim, com a circulação e difusão de um produto, a macrobiótica, e o modo como ele foi
sendo promovido e incorporado no mundo ocidental - tanto no plano das representações
que o suportam quanto das práticas que gera. Múltiplos agentes concorreram para esse
processo, alguns enquanto ideólogos e divulgadores, outros como seguidores e
consumidores, outros ainda como observadores críticos.
Para que este processo pudesse verificar-se foi essencial a existência de uma
configuração histórica social e económica particular, a do período pós II Grande Guerra,
com o crescimento económico que se verificou por essa altura e com o retorno gradual a
um cosmopolitismo que a Grande Depressão suspendera. A ideologia do progresso, o
industrialismo e o materialismo que então imperavam, provocaram inevitáveis reacções
pessimistas a um modelo de desenvolvimento onde os indivíduos eram sobretudo
pensados a partir do que podiam consumir, onde o pensamento se tinha tornado,
também ele, numa mercadoria, sendo a linguagem perspectivada como mero
instrumento para a sua publicidade, pelo menos assim julgaram autores como
Horkheimer, Adorno e mais tarde Marcuse (cf. Tar, 1977). A reacção ao materialismo e
à tecnocracia, encarnada por alguns dos movimentos de finais dos anos 50, como a
«Beat Generation»; a atracção pelo Oriente e pelas «experiências espirituais», por parte
de alguns intelectuais e escritores, como Kerouac; os movimentos de contracultura que
teriam o seu auge na década de 1960; a consciência ecológica e o desejo de uma vida
em harmonia com a natureza, foram aspectos que contribuíram para a criação de um
ambiente social que favoreceu a introdução e disseminação da macrobiótica.
Nas críticas dirigidas à modernidade, ao progresso e ao industrialismo, aspectos
que tanto se afastavam do «viver em harmonia com a natureza», ia-se desenvolvendo
uma «consciência ecológica» que exigia outros estilos de vida e outros consumos. Neste

323
«À Mesa com o Universo»

contexto, a macrobiótica surge como proposta convergente com muitos desses


interesses, sendo adoptada como orientação no mundo por alguns deles. A macrobiótica
propunha não apenas uma vida em harmonia com a natureza, mas também um conjunto
de práticas alimentares que foram tomadas como ajudando a proteger o ambiente. Essas
meiopráticas não apenas contribuíam para essa preservação como também tinham a
vantagem de ter qualidades energéticas e espirituais que contribuíam para um adequado
desenvolvimento humano. Juntava-se às características do tipo de alimentação
proporcionado pela macrobiótica um conjunto de princípios orientadores que na sua
amálgama de conteúdos do taoismo, budismo, xintoísmo e confucionismo
proporcionavam uma visão exótica do mundo. Face a uma modernidade deslumbrada
com as realizações técnicas e científicas, mas ao mesmo tempo descarnada e sem
espírito, a via que a macrobiótica propunha era uma via de reencantamento do mundo,
através da qual cada indivíduo se podia celebrar a si mesmo, ser o seu próprio mestre. A
explicação da «ordem do universo», com toda a sua dimensão simbólica (ver capítulo
3), concorreriam para a formação de um imaginário social onde homens e espíritos
surgiam como formas distintas de manifestação da energia.
Desta forma, é através de uma visão mais espiritualizada do mundo que se vão
desenhando importantes projectos de transformação, individuais e sociais. O
redireccionamento do olhar para um mundo que era mais do que matéria visível,
associado a um discurso de responsabilidade individual, colocariam o indivíduo como
agente fundamental de um processo de transformação social, concretizado primeiro
através de si próprio, através do seu corpo e daquilo de que ele se alimentava, mas que
logo teria repercussões sociais. O corpo surgia, por conseguinte, como lugar de
experiência do mundo que podia proporcionar a realização de transformações
individuais e sociais.
A adopção da macrobiótica na Europa e na América deve ser pensada como
opção feita por indivíduos que vivem em sociedades caracterizadas pela abundância
alimentar. A discussão não se situa aqui em termos de disponibilidade de alimentos e de
ansiedade face à sua escassez, mas sim nos problemas criados pela própria riqueza e
abundância. Neste contexto, a insegurança alimentar não deriva da falta de alimentos,
mas sim dos procedimentos adoptados para os produzir e transformar. As crises
alimentares recentemente ocorridas, «crise das vacas loucas», «frangos belgas com
dioxinas», «gripe das aves», «pepinos contaminados pela bactéria Escherichia coli»
seriam precisamente a expressão dos riscos associados à alimentação e às políticas de

324
Considerações finais

desregulação ligadas ao sector agro-industrial (cf. Gonçalves, 2007). Ainda que estas
crises específicas não tivessem sido conhecidas por Ohsawa, o fundador da
macrobiótica moderna alertava já para os perigos da industrialização excessiva dos
alimentos e para o modo como estes modificavam as suas qualidades energéticas (em
termos de yin e de yang) nesse processo. Actualmente é também esse espaço alimentar
de produção rápida e excessiva, de elevado processamento e refinamento dos alimentos,
que serve de mote à macrobiótica para desenvolver um discurso sobre o risco de
consumir certos alimentos. Julgo poder dizer-se que a sociedade da abundância
alimentar, com todas as suas vicissitudes e perplexidades, acabou assim por possibilitar
a afirmação da macrobiótica. Os riscos associados ao consumo de alimentos cuja forma
de produção se afastava de uma relação harmoniosa com a natureza, passaram a ser,
desta forma, um bom argumento a partir do qual esta proposta procurou afirmar a sua
visão do mundo e as vantagens de uma alimentação macrobiótica.
Uma cosmovisão particular, como aquela que é proposta pela macrobiótica,
surge impregnada de um conjunto de representações, crenças, ideias e valores que
acabam por orientar as atitudes face aos alimentos e face a um modo de entendimento
do mundo, consubstanciando, dessa forma, um quadro ideológico particular. A análise
das opções feitas no âmbito da prática da macrobiótica, exige, nessa medida, uma
ancoragem nesse recurso orientador das acções que é o fundo ideológico. Dito de outro
modo, é à luz de princípios específicos de orientação que foram divulgados por Ohsawa
e por Kushi, e que têm sido ampliados por diversos formadores no âmbito da
macrobiótica, que devemos procurar compreender práticas e representações. Desta
forma, e tal como foi referido, é compatível com esse quadro ideológico uma visão
holística do universo, em que todos os fenómenos são perspectivados como estando
conectados, afirmando-se um desejo de harmonização entre mundo social e mundo
natural, bem como uma crítica à modernidade, à ciência, ao progresso, à tecnocracia, ao
industrialismo e ao materialismo.
Apesar das incongruências que por vezes possamos observar entre a prática da
macrobiótica e estes princípios, eles são a matriz indispensável a partir do qual devem
ser compreendidas as escolhas em termos alimentares, em termos de cuidados de saúde
e até em termos de estilo de vida. Assim, a opção pelo consumo de produtos alimentares
produzidos em áreas próximas do contexto geográfico em que se reside, próprios da
estação, biológicos e pouco processados, as também por tratamentos supostamente mais
naturais e ainda por formas de viver que se julga serem mais expressivas da

325
«À Mesa com o Universo»

“consciência ecológica”, como a decisão de construir uma casa com biomateriais (tal
como sucedeu com um casal com que contactei no âmbito deste projecto), devem ser
observadas à luz desse quadro ideológico particular.
A existência de uma visão do mundo, com um conjunto de princípios
orientadores que são comuns a diferentes sujeitos, facilmente nos conduz à ideia de
grupo, de comunidade ou até «novas tribos» como propõe Maffesoli (2000). As minhas
observações conduziram-me à ideia de que a experiência da macrobiótica cria um certo
nível de identidade entre estes indivíduos e permite a criação de redes, trocas de
conhecimento, grupos de afinidade e de interesses que ajudam a sustentar a própria
prática macrobiótica. Pelo facto de terem referências e experiências comuns, pelo
menos as ligadas a uma prática alimentar, estes indivíduos partilham também diversos
consumos, sendo assim possível detectar identidades a este nível. O mesmo se passa
noutros planos, como a frequência dos mesmos locais para fazer compras, a ida aos
mesmos restaurantes, a palestras, cursos de formação, campos de verão, programas
residenciais e até no mesmo consultório. O facto de ter desenvolvido trabalho de terreno
em Braga e Lisboa permitiu-me detectar a existência de uma rede de conhecimentos
pessoais estabelecida a partir da frequência de lugares como IMP ou aulas de yoga.
Uma rede que é facilmente suportada pela internet e pelos muitos blogues e sítios sobre
a macrobiótica que nela existem. Ainda que a ligação entre alguns dos indivíduos que
frequentaram os cursos do IMP possa ter sido intensa num determinado momento e
posteriormente se tenha diluído, apenas surgindo vagamente através de redes
informáticas, ela permanece como referencial de uma experiência comum que
aproximou indivíduos num determinado momento. Há assim diversos aspectos que
apontam para a ideia de comunidade, uma comunidade porosa, instável e aberta, é certo,
mas ainda assim comunidade.
Um outro elemento que me permite enfatizar a ideia de existência de uma
comunidade decorre ainda da minha experiência num encontro internacional de
professores e profissionais na área da macrobiótica em Novembro de 2008. Esse
encontro decorreria em Lisboa (IMP) ao longo de três intensivos dias e nele se
reuniriam cerca de 30 indivíduos de diversos países europeus e de diferentes estados dos
EUA para discutir “o movimento macrobiótico” e os rumos para a macrobiótica. A
referência regular que nesse encontro se fez ao “movimento macrobiótico”, pressupunha
a interiorização da ideia da existência de uma comunidade macrobiótica. Nesse encontro
foi possível observar entre os participantes o desenvolvimento de projectos

326
Considerações finais

profissionais, e de vida, comuns em diversos aspectos. Muitos destes participantes


dirigiam um centro de macrobiótica no lugar onde viviam e desenvolviam o tipo de
actividades que é típico destes centros (cursos de formação, aulas de cozinha, venda de
produtos alimentares, confecção de refeições e consultas), conheciam-se de outros
encontros e mantinham-se conectados através da internet, veículo de comunicação que
os aproximava e que contribuía para dar conteúdo à ideia de comunidade.
Deve notar-se, no entanto, que o facto de existir um conjunto de interesses que é
comum entre os que seguem a macrobiótica, e de se fazer referência ao “movimento
macrobiótico”, não significa que exista efectivamente uma acção concertada e visível
relativamente a qualquer tipo de reivindicação social - o movimento, se assim lhe
podemos chamar, tem-se mantido silencioso e sem intervenção política significativa.
Ainda assim, nesse encontro internacional a que aludi, havia posições divergentes
relativamente a uma acção social conduzida pelo “movimento macrobiótico”,
permanecendo presente a ideia de que o trabalho a realizar devia ser, sobretudo, um
trabalho individual, orientado para aqueles que procuravam a macrobiótica. Sem agenda
claramente definida, sem outra liderança que não a representada por figuras históricas
como Michio Kushi, sem acção concertada clara, sem mobilização prévia, reconheço
que se poderia até colocar em dúvida a existência de um “movimento macrobiótico”. No
entanto, na correspondência electrónica que recebo de alguns dos participantes que
organizam esses encontros internacionais, esta noção parece ter sido interiorizada, sendo
usada habitualmente para fazer referência a acções desenvolvidas pela comunidade
macrobiótica.
Nem todos os que adoptam uma alimentação macrobiótica são conhecedores dos
seus “princípios filosóficos”, nem agem a partir da apropriação de uma base ideológica
particular. Dos 50 indivíduos que pude observar em contexto de consultório, 23 deles
não tinha tido contacto anteriormente com a macrobiótica. É assim possível seguir um
conjunto de orientações alimentares macrobióticas de forma circunstancial, sem ter a
noção dos significados que lhes subjazem. Acredito que com o decorrer da prática essas
noções possam ser interiorizadas, mas numa fase inicial é efectivamente possível que
esses fundamentos não sejam conhecidos. As razões para adoptar um tipo específico de
alimentação expressam-se de acordo com um conjunto muito vasto de variáveis,
podendo ter a ver apenas com uma condição pontual em termos de saúde e não espelhar
valores nem representações específicas. Podemos assim encontrar indivíduos que
seguem a macrobiótica como se seguissem uma prescrição médica, sem cuidar de saber

327
«À Mesa com o Universo»

dos pressupostos em que ela se apoia. Resulta daqui a sugestão de que o “movimento
macrobiótico” é um movimento difuso, aberto, de livre adesão, que permite vários
níveis de participação. Para alguns dos que contactei e que fazem uma análise mais
profunda da questão, sobretudo formadores, a prática de uma alimentação macrobiótica
não é, contudo, suficiente para identificar um indivíduo como seguidor da macrobiótica.
Ao conduzir os indivíduos a novos hábitos alimentares, a macrobiótica contribui
para uma alteração no estilo de vida, tal como defendia Ossipow (1997), sendo essa
alteração particularmente visível nos consumos. Esta circunstância não significa,
contudo, que se observem sempre mudanças radicais. Muitos dos indivíduos por mim
contactados continuam a manter as suas profissões, os seus círculos de amigos e as
formas e ritmos de convívio. As minhas observações ao longo de três anos, enquanto
aluna de um curso de formação na área da macrobiótica, não me permitiram detectar
mudanças radicais generalizadas em termos de modo de vida. A maior parte desses
indivíduos manteve as suas profissões e, nessa medida, podemos dizer que manteve
uma parte significativa do seu modo de vida, dada a actual centralidade do trabalho na
estruturação do quotidiano e dos estilos de vida. Em todo o caso, deve ser salientado
que alguns indivíduos empreenderam mudanças significativas neste campo, tendo-se
concentrado em novas actividades profissionais. Para estes, a macrobiótica constituiu
um estímulo para transformarem as suas vidas e para arriscarem novas soluções, como,
por exemplo, a de iniciarem um negócio na área da macrobiótica. Foi esse o caso do
«Semente de Luz - Centro Macrobiótico de Braga», local onde se preparam refeições
macrobióticas, são dados cursos de cozinha, consultas de orientação alimentar e de
shiatsu. O discurso da responsabilidade individual em relação ao modo de vida que cada
um constrói para si, parece ter tido, junto dos que abraçaram novos projectos, uma
particular ressonância, resultando num poder emancipatório capaz de conduzir a novas
realizações.
Iniciei esta pesquisa sinalizando a importância de estudar as margens e concluo
reafirmando essa importância. O sentido que no decurso deste trabalho atribuí às
margens, foi o de áreas menos representativas da sociedade portuguesa e de expressão
residual. Perspectivei estas áreas considerando-as merecedoras de análise, porque
questionavam sistemas dominantes e ofereciam alternativas existenciais face a práticas
hegemónicas. De que modo se contribuía a partir das margens para uma transformação
na sociedade, foi um dos aspectos que guiou esta pesquisa. Pelo caminho percorrido,
considero ser relevante ter em conta o contributo dado pela macrobiótica para uma

328
Considerações finais

maior pluralidade de práticas na sociedade portuguesa, práticas associadas aos


consumos alimentares mas também a outro tipo de consumos, como a aquisição de
produtos considerados mais ecológicos (roupa, produtos de higiene e cuidados diários,
escolha da habitação…) ou os consumos relacionados com os cuidados de saúde.
Um olhar historicamente situado, que acompanhe os trânsitos da macrobiótica e
os produtos e conhecimentos que são transaccionados, permite detectar o modo como a
introdução e a circulação deste produto social contribuíram claramente para a
transformação do mercado alimentar. Todo um conjunto de produtos derivados da
transformação da soja, mas não apenas estes, foram sendo promovidos pelos que
seguiam a macrobiótica e defendidos como alimentos a integrar na alimentação
quotidiana. No capítulo 3 deste trabalho procurei evidenciar como a criação de
importantes cadeias de distribuição alimentar como a «Erewhon» nos EUA ou a
«Lima», na Bélgica, derivaram da actividade ligada à macrobiótica. Também em
Portugal, o mercado de “alimentos naturais” conseguiu um grande impulso através de
empresas como a «Próvida», «Trigrama» e «Ignoramus», empresas dirigidas por
indivíduos associados à macrobiótica. A soja, analisada por Du Bois (2008) e Mintz
(2008), como produto que até há bem pouco tempo não era reconhecido como
comestível (ver cap. 3), passou a ser um dos principais produtos agrícolas de exportação
de países como os EUA e o Brasil, e passou a integrar as prateleiras dos supermercados
das mais diversificadas formas. É certo que a maior parte da produção de soja se destina
à alimentação animal e utilização industrial, em todo o caso, o lugar cada vez mais
visível que os produtos alimentares derivados da soja têm vindo a ocupar é sintomático
das transformações alimentares que têm ocorrido. No caso específico deste tipo de
produtos, mas também na valorização dos cereais integrais, dos produtos biológicos,
dos alimentos não refinados e pouco processados os indivíduos que desenvolveram
actividades ligadas à macrobiótica tiveram um papel relevante.
As margens podem efectivamente contribuir de forma criativa e inovadora para
transformar a realidade social, pois transportam em si uma visão alternativa face a
tendências que são hegemónicas e, nessa medida, oferecem caminhos singulares para a
concretização de novos projectos. São ainda marcadas por um desejo de experimentação
que convém não desconsiderar, pelo menos ao nível da análise social. A experiência das
refeições macrobióticas nas cantinas universitárias portuguesas, da alimentação
macrobiótica no estabelecimento prisional do Linhó (ver capítulo 4), da criação de
unidades de produção de alimentos como o tofu, seitan, enchidos de soja, revela esse

329
«À Mesa com o Universo»

desejo de corresponder aos pedidos dos consumidores e também de colocar novos


produtos no mercado.
Mesmo ao nível dos cuidados de saúde é possível observar processos que são
inovadores ainda que por vezes constituam reelaborações de práticas de um passado
recente. A promoção que na macrobiótica se faz do nascimento em casa, desde que não
haja condições específicas de saúde a salvaguardar, desencadeia uma nova forma de
olhar para essa experiência e leva a que diversas mulheres a considerem como
possibilidade. A organização deste acontecimento implica inovação e redes sociais de
apoio, de que fazem parte as doulas, mas também outras mulheres da rede social ligada
à macrobiótica que tiveram experiências similares. Tomando o corpo como campo de
experimentação, ou porque se recusa a vacinação ou porque se recusam os tratamentos
médicos que por vezes são prescritos, optando-se por fazer dos alimentos
medicamentos, estes indivíduos têm experiências com o corpo que, quando bem-
sucedidas, constituem exemplo para os que lhes estão próximos.
A macrobiótica não é um sistema fechado, antes intercepta outros discursos,
estabelecendo conexões com eles. É o que sucede com o movimento da agricultura
biológica, em relação ao qual foi possível estabelecer afinidades (ver capítulo 4). Outros
movimentos, como o da defesa dos animais, são também integrados por alguns dos que
aderem à macrobiótica, observando-se, do mesmo modo, uma proximidade com
discursos associados à defesa do vegetarianismo. Em relação a este último caso,
acrescente-se que é comum encontrar, entre os seguidores da macrobiótica, indivíduos
que anteriormente haviam adoptado uma alimentação vegetariana.
A macrobiótica, enquanto proposta alimentar, deve ser integrada numa vasta
literatura dedicada à relação entre saúde e alimentação, facto que procurei evidenciar no
início do capítulo 3. De Hipócrates (séc. V A.C.), a Alviso Cornaro (séc. XVI), Von
Hufeland (séculos XVIII-XIX) ou John Kellogg (séc. XX), encontramos uma
preocupação comum e fundamental: a de procurar saúde e energia através da
alimentação, buscando melhor fórmula para um corpo vigoroso e longevo. A comida é
usada desde há muito como instrumento moralizador da acção social, não sendo rara a
associação entre um programa de disciplina alimentar e um programa de disciplina
social. Também a macrobiótica com o seu conjunto de preceitos, princípios de
entendimento do universo, representações sobre a comida e orientações (ver capítulo 3)
revela essa dimensão. «Estar à mesa com o universo» significa a incorporação dessas
orientações bem como a tradução das mesmas na acção social.

330
Considerações finais

A macrobiótica não intercepta apenas discursos a que podemos reconhecer


associação directa, usa também o conhecimento científico, ou pelo menos os fragmentos
que são congruentes com as suas posições. Assim, o modo como a ciência é convocada
nas sessões de formação na área da macrobiótica oscila entre a sua demonização e a sua
instrumentalização. Se, por um lado, a ciência representa a incapacidade para uma visão
holística e é entendida como actividade que dá suporte à desregulação do mundo, por
outro ela é utilizada para sustentar os argumentos que são defendidos na macrobiótica,
como se existisse a necessidade de os credibilizar por essa via. Uma das explicações
para esta situação pode prender-se com o facto de o público que assiste às sessões de
formação ter uma escolaridade acima da média e, por isso, existir a probabilidade de ser
mais receptivo a um discurso que resulta da informação relativa a factos científicos.
Uma outra explicação passará pelo facto de se ver na ciência a única possibilidade de
validação e legitimação externa de uma proposta como a macrobiótica, sendo assim
feito um uso selectivo da informação científica.
Como vimos, a macrobiótica, enquanto produto social, não é imutável, não o
seria nunca, tratando-se de um produto social, mas neste caso uma eventual
cristalização contrariaria os seus próprios princípios. Encontra-se aberta a fenómenos de
recomposição e introduz alterações nas suas concepções e práticas, não sendo de todo
insensível aos discursos de natureza científica, ainda que estes lhe apontem problemas.
Os diversos casos de deficiências do ponto de vista nutritivo que foram apontados à
macrobiótica (ver capítulo 2) parecem ter tido efeito no tipo de recomendações
alimentares feitas. Por exemplo, na ênfase dada à necessidade de consumir peixe, ou na
criação no âmbito da macrobiótica, de uma pirâmide menos restritiva do que as
recomendações alimentares elaboradas por Ohsawa. Uma relação dinâmica entre
diferentes sistemas de conhecimento deve ser assim sugerida.
Neste contexto, convém também dizer que se houve alterações no conjunto de
orientações alimentares propostas pela macrobiótica, também ao nível das pirâmides
elaboradas em departamentos de nutrição, como o Departamento de Nutrição da
Universidade de Harvard, houve modificações que as aproximaram da pirâmide
macrobiótica (ver capítulo 2), como se práticas alimentares mais associadas ao consumo
de cereais integrais e a um menor consumo de carne e lacticínios tivessem ganho
relevância e reconhecimento também num âmbito mais mainstream. O que estes
exemplos sugerem, assim, é a existência de relações dinâmicas entre diferentes níveis,
narrativas e processos operativos, ainda que essa relação nem sempre esteja explícita.

331
«À Mesa com o Universo»

Resulta deste tipo de fenómenos um conjunto de contribuições que conduz à


transformação de diferentes propostas e que ajuda a operar processos de recomposição.
Nancy Chen (2009: 60) refere, em relação às dietas alimentares, que elas
deixaram de ser pensadas a partir de dimensões como a moralidade, para serem
pensadas sobretudo a partir de conhecimentos com origem na biomedicina e nas
Ciências da Nutrição. Neste sentido, a ciência e a medicina seriam cada vez mais
estruturadoras dos significados em relação às prescrições dietéticas. Se nos centrarmos
na macrobiótica enquanto proposta alimentar, veremos que este argumento também aí é
válido. Ainda que os significados atribuídos aos alimentos sejam referidos a partir de
uma construção simbólica particular, em termos de yin e de yang, a linguagem das
proteínas, vitaminas, hidratos de carbono, açúcares simples e açúcares complexos
atravessa regularmente os discursos sobre alimentação, fornecendo um quadro
orientador relativamente ao modo como devem ser seleccionados os alimentos.
Misturam-se assim saberes que provêm do discurso científico com outros que são
leigos, tornando-se a linguagem científica numa linguagem comum, empregue de forma
corrente no meio. Muitos dos indivíduos que contactei evidenciavam conhecimentos
sobre aspectos nutricionais acima da média e recorriam mais a esta linguagem para
fazer referência à alimentação do que a tópicos como o gosto.
Como procurei evidenciar (cf. cap. 5), a macrobiótica, para além de um sistema
alimentar, é também um sistema terapêutico. Assim, a existência de um conjunto
organizado de concepções sobre o corpo, a doença e a saúde; de formas específicas de
diagnóstico; de procedimentos de cura e também de profissionais que orientam esses
procedimentos terapêuticos, constituem alguns dos aspectos fundamentais que permitem
classificar a macrobiótica como sistema terapêutico. Ainda que na abordagem
quotidiana os alimentos sejam, eles próprios, pensados a partir de categorias como
equilíbrio, saúde e efeitos energéticos, tal não dispensa, em alguns casos, um
aconselhamento individualizado e indicações específicas sobre como adequar a
alimentação a diferentes problemas de saúde. Trata-se, nestas situações, de usar os
alimentos como medicamentos, utilização que reforça o entendimento da macrobiótica
também como sistema terapêutico.
No decurso desta pesquisa tive oportunidade de contactar com indivíduos que
por razões de saúde, alguns deles afectados por doenças graves, recorreram aos
conselhos especializados de consultores de orientação alimentar. A observação deste
tipo de práticas sugeriu-me a utilidade de confrontar diferentes sistemas terapêuticos,

332
Considerações finais

um associado à biomedicina, outro à macrobiótica. Foi possível observar, nesse


confronto, agentes que, insatisfeitos com as orientações que lhes tinham sido dadas
pelos médicos em relação aos seus problemas de saúde, procuraram outras formas de
tratamento, rejeitando, pontualmente, partes fundamentais do tipo de intervenção que
lhes tinha sido proposto. Neste tipo de atitudes é possível perceber agencialidade
suficiente para se tomar o corpo como território de decisões individuais e para o
submeter a um processo de experimentação. Tais decisões, ainda que amparadas por
alguém que orienta o processo de cura, representam uma não sujeição aos tratamentos
convencionais e a busca de soluções alternativas que, nos casos específicos que analisei,
são encontradas em sistemas marginais ao Serviço Nacional de Saúde, como é o caso da
macrobiótica. Foi o posicionamento destes indivíduos, nas margens do sistema mas em
posição móvel dentro dele, que permitiu perceber como se relacionam com a
biomedicina e com o poder biomédico, apesar do distanciamento com que os encaram.
Como procurei sublinhar, observam-se, a partir das margens, comportamentos
que são mais de relação estratégica que de rejeição do poder biomédico. Recorre-se ao
Serviço Nacional de Saúde na medida em que ele proporcione os meios de diagnóstico
considerados necessários; documentos que atestem o estado de doença ou, ainda, em
alguns casos, os medicamentos de que não se pode prescindir. Uma solução de
articulação é, assim, frequentemente procurada, evidenciando um envolvimento activo
do indivíduo no seu processo de cura - situação que, em parte, contraria a ideia de
apropriação da vida por parte do Estado, tal como apresentada por Foucault (1997). Esta
solução, articuladora e dinâmica, não parte apenas do indivíduo que se vê doente, mas
também do consultor que o acompanha e que, frequentemente, orienta o indivíduo na
sua alimentação e estilo de vida, tendo em linha de conta os exames (biomédicos) que
observa. Vemos assim ser possível uma solução de articulação entre diferentes
universos terapêuticos, o que evidencia dinamismo e fluidez, tal como observado por
Langford (2002) a propósito da medicina ayurvedica.
As dificuldades sentidas por aqueles que procuram soluções terapêuticas que não
as exclusivamente proporcionadas pelo Serviço Nacional de Saúde, remetem-nos, de
facto, para a questão das políticas do corpo e para o modo como pode (ou deve…) ser
perspectivado o pluralismo terapêutico. O Estado deverá permitir a livre escolha de
cuidados de saúde dos indivíduos e proporcionar-lhes apoio nessas escolhas,
respeitando assim a livre escolha? Deverá ignorar práticas alternativas porque a sua
eficácia não se encontra devidamente reconhecida nem validada? Deverá promover a

333
«À Mesa com o Universo»

integração destas práticas no Serviço Nacional de Saúde e regular estas actividades?


Questões que importa serem analisadas e debatidas, que interessa observar por vários
ângulos e não apenas por aquele que permite conter custos na saúde. Entre os
testemunhos que recolhi predominava a ideia da importância de soluções articuladas e,
portanto, estes indivíduos apreciariam a possibilidade de “dentro do Estado”, tal como
referido por Cunha e Durand (2011), poderem fazer as suas opções.
Nem sempre nestes casos a expressão de agencialidade é bem-sucedida e um
caso judicial que tive oportunidade de analisar (cf. cap. 5), em que filhos menores foram
retirados a seus pais, constitui um exemplo disso mesmo. Provavelmente teve tanto de
bem-intencionada quanto de precipitada, mas a intervenção judicial, de que falo,
produziu um tal efeito de devassa da vida privada que configurou uma verdadeira
apropriação da vida por parte do Estado, numa expressiva ilustração dos argumentos de
Foucault relativamente ao poder do Estado sobre o corpo. Não se tratou apenas da
separação de uma família, mas de perceber a impotência a que o poder do Estado pode
reduzir aqueles que buscam as margens procurando um modo de vida alternativo. Nem
sempre é assim, bem entendido. Usei as primeiras linhas da “Introdução” para evocar
um exemplo oposto a este, e entre esses dois pólos, que acidentalmente balizam a
topografia deste trabalho, inscreve-se a realidade, não apenas da macrobiótica mas
também de outras práticas, que ora cruzam (e fecundam) as que se revelam
hegemónicas, ora as confrontam e desafiam. Perceber a dinâmica dessa mistura e
confronto, é, talvez, uma ambição excessiva. Pela minha parte, tentei dar um contributo
sério e empenhado nesse percurso, sabendo que entre o que ficou dito e o que ficou por
dizer se avoluma um novelo que importa ainda deslaçar.

334
Apêndices

Apêndice 1 – Carta de agradecimento do Museu Nacional de História Americana à


família Kushi pelo acervo relativo à macrobiótica165.

165
Disponível em: http://www.michiokushi.org/honors.php [Acesso em 22-11-2011].

335
«À Mesa com o Universo»
Apêndices

Apêndice 2 - Tabela de classificação dos alimentos de yin a yang190

Os alimentos yin produzem efeitos de expansão.


Os alimentos yang produzem efeitos de contracção.

Medicamentos: Terapia de cobalto e outras.


Drogas :alucinogéneos; heroína, anfetaminas; drogas vegetais.
Medicamentos: Quase todos os tipos desde a cortisona à aspirina.
Alimentos quimicalizados: Bebidas industriais gasosas e açucaradas; alimentos
tratados com conservantes e corantes; óleo produzido industrialmente.
Bebidas muito alcoólicas: álcool com açúcar; whisky; vodka; aguardente.
Alimentos açucarados: Açúcar branco; gelados; chocolate; bolos.
Álcool: vinho; saké (vinho de arroz); cerveja sem açúcar
Bebidas estimulantes e aromáticas: Café; chá com corantes.
Especiarias: Pimenta; colorau; caril; gengibre.
Natas
Óleo de pressão a frio: azeite, girassol; milho; sésamo; sésamo tostado.
Frutos tropicais: manga; banana; ananás.
Frutos de clima temperado: Pêra; pêssego; maçã; morango; castanha.
Iogurte
Leite
Queijo fresco sem sal: requeijão; queijo fresco.
Vegetais de origem tropical: tomates; beringela; pimentos; batatas; espargos;
courgettes.
Bebidas saudáveis: chá três anos; chá mú.
Tofu
Sementes e oleaginosas: Nozes; amendoins; amêndoas; sementes de abóbora; sementes
de girassol; sementes de sésamo.
Vegetais de folha verde: couve portuguesa; rama de nabo; agrião.
Vegetais redondos: brócolos; couve-flor; couve lombarda; abóbora.
Raízes: Pastisnaga; nabo; rabanete; daikon; cenoura; bardana.

190
Tabela elaborada a partir de documento similar fornecido no âmbito de um curso de cozinha
promovido pelo Instituto Macrobiótico de Portugal. Os alimentos são apresentados do mais yin para o
mais yang.

337
«À Mesa com o Universo»

Algas marinhas: nori; dulse; aramé; wakame; kombu; hiziki.


Cereais refinados
Natto
Tempeh
Leguminosas: favas; diferentes feijões; grão de bico; lentilhas; feijãi; azuki.
Derivados dos cereais integrais: fu; seitan; massa integral; couscous.
Farinhas
Flocos
Cereais integrais: milho; aveia; cevada; centeio; trigo
Linha de equilíbrio ▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬ arroz
millet; trigo sarraceno.
Moluscos e frutos do mar: mexilhão amêijoas; lulas; ostras; gambas.
Peixe: Carpa; truta; pescada; linguado; peixe-espada; sardinha.
Anfíbios: rã; caracol.
Peixe de carne vermelha: salmão; atum; caviar.
Aves: pato; peru; frango; perdiz.
Queijos duros e salgados
Carne de mamífero: porco; vaca; vitela; cavalo; selvagem.
Ovos
Tamari
Miso
Sal

Os alimentos yang produzem efeitos de contracção.

338
Apêndices

Apêndice 3 - Glossário

Glossário191

Agar-agar: Substância extraída de algas marinhas que se apresenta em flocos ou em


barra. É utilizada na confecção de gelatinas doces e salgadas. É também conhecida por
kanten.
Amasaké: Bebida ou pudim doce, produzido a partir de arroz glutinoso fermentado.
Aramé: Alga marinha muito fina e de cor negra.
Araruta: Planta cuja raiz tem uma fécula branca a partir da qual se faz a farinha de
araruta. É utilizada para engrossar molhos, estufados ou sobremesas.
Arroz Integral: Arroz completo, não polido. Há três variedades principais: de grão
curto, de grão médio e de grão longo.
Arroz Glutinoso: Variedade de arroz de grão curto. Depois de cozido, apresenta uma
goma que o torna pegajoso.
Arroz Selvagem: Gramínea designada popularmente por arroz selvagem. É oriundo da
América do Norte e da China.
Azuki: Feijão pequeno de cor vermelha.
Bancha: Chá feito a partir das folhas e talos da planta do chá. Também é conhecido por
«Kukicha» ou «Chá de Três Anos». É conhecido por conter menos teína.
Bardana: Planta selvagem, conhecida pelas suas qualidades fortalecedoras. A raiz de
bardana é muito utilizada na cozinha japonesa em refogados e sopas.
Bulgur: Uma forma de trigo integral que foi partido, parcialmente fervido e seco.
Cevada: Cereal em grão, base da alimentação do Médio Oriente e de alguns países da
Europa.
Cevada Perolada: Ver Hato mugi.
Chá de Cevada: Chá feito a partir de cevada tostada.
Chá Mu: Chá produzido a partir de 16 ervas diferentes. É um chá medicinal. Costuma
ser apresentado como ajudando a aquecer o corpo e fortalecer os órgãos sexuais
femininos.
Chirimen Iriko: Peixe pequeno e seco.
Chucrute: Couve retalhada e prensada com sal.
Condimento: Tempero utilizado sobre os alimentos, à mesa
191
Elaborado a partir de glossário distribuído no curso de cozinha promovido pelo IMP e a partir do livro
Macro Apetite, de Eugénia Varatojo (1998).

339
«À Mesa com o Universo»

Couscous: Trigo partido, parcialmente refinado, alimento tradicional do Norte de


África
Daikon: Rábano branco comprido. Podem-se utilizar como substitutos rábano vermelho
ou nabo
Daikon Seco: Daikon que foi retalhado e seco
Dentie: Pó preto, para lavar os dentes, preparado com sal e beringela torrada.
Difusor de calor: Um disco de metal redondo que se coloca sob os tachos ou panela de
pressão para distribuir uniformemente o calor e evitar que a comida se queime.
Dulse: Alga marinha de cor púrpura
Faca de vegetais: Faca oriental com ponta quadrada e recorte duplo.
Fu: Gluten de trigo seco e tufado. Demolha-se e cozinha-se em sopas, pratos de
vegetais e de leguminosas.
Gengibre: Raiz picante com propriedades medicinais, utiliza-se na cozinha.
Gomásio: Um condimento feito a partir de sementes de sésamo tostadas e sal marinho.
Hatcho Miso: Miso produzido a partir de feijão de soja, sal e água e fermentado sob
pressão durante pelo menos 18 meses.
Hato Mugi: Erva selvagem, pequena e redonda, que tem sido consumida
tradicionalmente como um cereal. Também conhecida como «Cevada perolada»,
«Lágrimas de Job» e «Cevada selvagem».
Hiziki: Uma alga comprida e estreita de sabor forte.
Kanten: Ver agar-agar.
Kasha: Ver trigo-sarraceno.
Kimpira: Prato de vegetais salteado e cozinhado em chama baixa.
Kinako: Feijão de soja torrado e moído, a partir do qual se faz farinha de soja.
Koji: É um cereal inoculado com o mesmo tipo de bactéria usada para a fermentação de
alimentos, como o miso, shoyu, tamari, amasake e sake.
Kombu: alga seca e larga
Kuzu: Raiz selvagem a partir da qual se produz um amido branco com propriedades
medicinais
Malte De Cevada: Um adoçante natural, produzido através de cevada germinada.
Mel de arroz: Um adoçante natural produzido a partir de arroz integral maltado.
Millet: Cereal redondo, amarelo e pequeno. Alimento tradicional na China e em África.
Mirin: Vinho doce, utilizado para cozinhar.

340
Apêndices

Miso: Pasta produzida com feijão de soja, sal e uma variedade de cereais, fermentada
com uma enzima especial.
Mochi: Um bolo feito a partir de arroz glutinoso socado.
Mugi Cha: Chá de cevada tostada
Mugi Miso: Miso produzido a partir de feijão de soja, cevada, sal e água. É envelhecido
durante 2 a 3 anos, sendo preferível que não seja pasteurizado.
Natto: Feijão de soja fermentado.
Natto Miso: Condimento picante, feito a partir de cevada, miso, malte de cevada e
gengibre.
Nishime: Estilo culinário em que os vegetais são cozinhados bastante tempo no vapor
com kombu e uma pequena quantidade de água.
Nori: Alga que depois de seca e processada se apresenta em folhas largas e finas ou. É
habitualmente utilizada no sushi.
Nuka: Farelo de arroz.
Ohagi: Arroz glutinoso socado e com a forma de bolas, que é envolvido com sementes,
oleaginosas ou condimentos.
Pasta De Umeboshi: Ameixa em pasta, utilizado para cozinhar e para molhos.
Prensa Para Pickles: Pequeno contentor de vidro ou outro material, com uma rosca
ajustável utilizado para fazer pickles ou salada prensada.
Raiz de Lótus: Raiz aquática com propriedades medicinais
Ramen: Massa chinesa
Sal Marinho: Sal produzido a partir de água do mar, rico em oligoelementos. É um sal
integral que não foi refinado e ao qual não foi adicionado qualquer produto químico.
Seitan: Gluten de trigo, cozinhado em água, shoyu; alga kombu e gengibre. É utilizado
como substituto de carne em sopas, pratos de vegetais, de leguminosas e de cereais. É
muito proteico.
Shitake: Um cogumelo japonês que costuma ser usado seco. Tem efeitos medicinais.
Shiso: Folhas das ameixas umeboshi. Podem-se comprar inteiras ou sob a forma de
condimento.
Shio-kombu: Condimento de alga kombu, água, shoyu e gengibre.
Shio-nori: Condimento de alga nori, água, molho de soja e gengibre.
Shoyu: Molho de soja produzido naturalmente, feito com feijão de soja, trigo, água e
sal. Fermentado naturalmente e envelhecido pelo menos 18 meses. Utilizado como
tempero.

341
«À Mesa com o Universo»

Soba: Massas japonesas (do tipo da esparguete) feitas a partir de farinha de trigo-
sarraceno e farinha de trigo. C
Somen: Massas japonesas muito finas.
Steamer: Utensílio usado para cozinhar alimentos no vapor ou para aquecer comida já
confeccionada.
Suribachi: Utensílio de cerâmica com ranhuras que serve para esmagar alimentos,
cumprindo uma função idêntica à do almofariz.
Surikoji: Pilão de pedra.
Sushi Mar: Pequena esteira de bambu, utilizada para enrolar sushi e cobrir a comida
para a manter quente.
Tahin: Pasta pasta macia feita a partir de sementes de sésamo cruas e descascadas.
Takuan: Pickle de daikon.
Tamari: Molho de soja tradicional, feito segundo métodos naturais. O tamari original é
preparado durante o processo de fabricão do miso. O líquido que vem à superfície é
chamado de tamari.
Tawashi: Pequena escova utilizada para lavar os vegetais sem lhes estragar a pele.
Tekka: Condimento feito a partir de raízes salteadas e miso.
Tempeh: Produto à base de feijão soja. É tradicional da Indonésia. Feito com feijão de
soja partido, água e uma bactéria especial.
Tofu: Queijo de soja, produzido com feijão de soja, água e nigari (coagulante extraído
do sal marinho) ou sumo de limão.
Tofu Seco: Tofu que foi seco, tem uma cor beige e é muito leve.
Trigo Integral: Cereal em grão utilizado tradicionalmente em muitas partes da Europa.
Trigo Sarraceno: É também conhecido como «Trigo Mouro». Os seus grãos são
parecidos com os dos cereais. É consumido tradicionalmente sob a forma de kasha
(papa usada na cozinha russa ou polaca) ou massa soba no Japão.
Udon: Massa japonesa de trigo
Umeboshi: Pickles de ameixas pequenas salgadas. Tem propriedades medicinas e é
utilizado como tempero e condimento.
Vinagre De Arroz: Um vinagre fermentado naturalmente a partir do arroz integral e
usado como tempero e condimento.
Vinagre De Umeboshi: O liquido onde as umeboshi são envelhecidas.
Wakame: Alga de folhas grandes verdes que se utiliza em sopas, condimentos, saladas,
com vegetais, etc.

342
Apêndices

Wasabi: Mostarda japonesa


Yannoh: Café feito a partir de 5 cereais e leguminosas que são moídos ate obter um pó
fino

343
344
Bibliografia

Fontes e Bibliografia

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