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Cultura e Linguagem

A Multiplicidade da Cultura

Responsável pelo Conteúdo:


Prof.ª M.ª Natalia Mendonça Conti
Prof. Me. Bruno Pinheiro Ribeiro

Revisão Textual:
Aline Gonçalves
A Multiplicidade da Cultura

• Introdução;
• Os Primeiros Passos;
• A Concepção Simbólica da Cultura;
• Cultura como Estrutura;
• Cultura, Hegemonia e Progresso.


OBJETIVOS

DE APRENDIZADO
• Apresentar o conceito de cultura em sua dimensão múltipla;
• Conhecer as relações contextuais das formulações conceituais e seus respectivos desdobramentos;
• Analisar as perspectivas históricas das definições dos fenômenos culturais;
• Refletir sobre os processos político-culturais.
UNIDADE A Multiplicidade da Cultura

Introdução
Como já visto anteriormente, o conceito de cultura se caracteriza pela multiplicidade
e pela variação de sua acepção no transcorrer da história. Essa diversidade exige que o
estudo a leve em consideração, tentando ser o mais abrangente possível, contudo, ao
mesmo tempo, o próprio estudo precisa entender os seus limites. Nesse sentido, esse
preâmbulo tem a intenção de demarcar os limites para esta unidade. Esses limites se
fazem necessários pela condição do trabalho, todavia eles podem servir como estímulo
para que as lacunas deixadas sejam preenchidas em pesquisas futuras.

Portanto o cercamento de nosso objeto de estudo atual, a saber, o conceito de


cultura e suas transformações, se dará a partir de alguns pressupostos, que o próprio
desenvolvimento da unidade tratará como provisórios e parciais.

O primeiro pressuposto é que trataremos da concepção moderna de cultura. Ape-


sar de ser possível encontrar resquícios e pistas de como esse conceito vigorava em
outros momentos da sociedade, nós nos concentraremos na modernidade, porque é
nesse momento que as discussões sobre cultura se manifestam de forma pungente,
de modo que seu legado e desdobramento se realizem até os dias que correm.

O segundo ponto que merece destaque é a parcialidade que o conceito atende,


dada a sua dimensão evidentemente ocidental. É no seio do velho continente, a Eu-
ropa, que esses debates sobre cultura se instalam. Essa territorialização do conceito
lhe concerne um olhar específico, muitas vezes tendencioso, que trata o que está fora
desse parâmetro como “o outro”, gerando inúmeras consequências do pensamento
à política. Contudo, é importante perceber que mesmo essa tradição europeia envie-
sada foi capaz de gestar dissidências e correntes de pensamento que contradisseram
suas raízes de pretensão universalizante, e conseguiram apresentar fendas por onde
outros entendimentos de cultura se manifestaram. Além dessa dissidência interna,
digamos assim, a emergência de novas perspectivas sobre a conceituação dos pro-
cessos culturais englobando perspectivas até então subalternizadas pelo cânone eu-
ropeu terá lugar de destaque em outras unidades desta disciplina.

O terceiro e último ponto é que a genealogia dos estudos culturais nos leva, diante
da perspectiva ocidental moderna, até a antropologia. E esta será nossa base para
o início dos estudos, mas não nos restringiremos a ela, e avançaremos para outras
áreas do conhecimento, passando, nesta unidade, por análises históricas, sociológi-
cas e filosóficas sobre o conceito de cultura. Posteriormente estudaremos os atraves-
samentos das noções de arte e cultura, dois elementos tão íntimos e complexos em
si e entre si.

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Figura 1 –Vanessa Bell, Abstract Painting
Fonte: artuk.org

Os Primeiros Passos
Como ressaltado na introdução, a noção de cultura não surge inequivocamen-
te na modernidade, contudo é nesse período que suas definições se estabelecem
de modo contundente. E do ponto de vista antropológico, é ao britânico Edward
Burnett Tylor (1832-1917) que se costuma atribuir o ponto de partida. Atravessada
pelo impacto da teoria de Charles Darwin, a então nascente antropologia se envere-
dava pelos caminhos de um evolucionismo unilinear.

Tylor tratava a cultura como um fenômeno natural, com causas e regularidades


que poderiam ser objeto de estudo, de análises objetivas capazes de apreenderem
suas leis de funcionamento e sua consequente evolução. O antropólogo britânico se
confronta com as orientações pregressas que normatizavam os processos culturais,
tratando-os em termos restritivos e individualizados. Para Tylor, a cultura se manifes-
ta de maneira ampliada, sendo expressão da experiência coletiva da humanidade, e
seu método de apreensão desse fenômeno se dará de maneira descritiva.
Cultura ou Civilização, tomada em seu sentido etnológico amplo, é aquele
todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume
e todas as demais capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto
membro da sociedade. A condição da cultura, entre as diversas sociedades

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UNIDADE A Multiplicidade da Cultura

da espécie humana, na medida em que é passível de ser investigada nos


princípios gerais, é um tema apropriado para o estudo do pensamento e da
ação humanos. (TYLOR apud THOMPSON, 2009, p. 171)

Tylor compreende a cultura como um fenômeno comum à toda a humanidade,


sendo formada por um conjunto de elementos dentro de um todo complexo que
organiza as sociedades e que pode ser estudado. Se, por um lado, o antropólogo
se filia a uma concepção comum e universalista de cultura, apreendida por meio de
sua descrição, por outro, dada a sua vinculação às teorias evolutivas, Tylor entende a
sociedade a partir de uma estratificação em diversos níveis culturais, sendo a socie-
dade europeia o estágio mais avançado, e as tribos ditas “selvagens”, o estágio mais
atrasado. Para ele, portanto, a cultura estaria presente em toda experiência social,
independentemente de qualquer particularidade, contudo em estágios civilizatórios
distintos, e a antropologia deveria criar uma espécie de escala cultural que mediria
essa capacidade civilizatória de cada uma dessas experiências sociais.

Uma das principais contraposições ao evolucionismo, utilizado por Tylor como


método de análise antropológica dos estudos da cultura, foi desempenhada por Franz
Boas (1858-1949). O antropólogo alemão acreditava que a antropologia deveria se
pautar por duas tarefas:
• a reconstrução da história de povos ou regiões particulares;
• a comparação da vida social de diferentes povos, cujo desenvolvimento segue as
mesmas leis (LARAIA, 2001, p. 35).

Boas rejeitava o universalismo de Tylor e se concentrava nas experiências cultu-


rais particulares, acreditando que não seria possível estabelecer parâmetros sobre as
culturas de maneira apriorística, posto que a história daria conta de manejá-las de
forma diversa. Sendo assim, seria necessária uma verticalização nos estudos de cada
cultura, levando em conta suas transformações históricas peculiares, para a apreen-
são de suas leis de funcionamento, suas categorias e seus demais elementos consti-
tutivos. Só diante desse manancial específico que as culturas, para Boas, poderiam
ser teorizadas e comparadas.

A ausência de formulações e descrições gerais sobre a cultura, tratando-a a partir


de sua multiplicidade histórica, coloca Boas no chamado campo do relativismo cultu-
ral, que atribui à cultura a capacidade de ser única em cada circunstância e momento.
Para Boas, o conjunto específico de cada cultura representaria um todo singular que
seria expresso por meio da língua, das artes, dos costumes, das crenças etc. Esse
todo, complexo, teria a forma de uma espécie de sistema cultural que incidiria sobre
os indivíduos, conferindo a esses indivíduos características específicas dessa cultura.

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Figura 2 – Sue Coe, Triunfo
Fonte: wikiart.org

Ainda no campo descritivo dos processos culturais, o antropólogo polaco


Bronisław Malinowski (1884-1942) é considerado a partir de uma perspectiva fun-
cionalista de análise. Para Malinovski, as experiências humanas só poderiam ser
estudadas no momento de suas respectivas realizações, sendo assim, rejeitava o
evolucionismo que apontava os estudos para o futuro e a visada historicista que se
centrava nos aspectos passados da cultura. Sua metodologia preocupava-se, portanto,
com a apreensão do presente.

Malinowski desenvolveu sua antropologia a partir de uma “teoria das necessida-


des” para explicar a funcionalidade dos processos culturais. Segundo seus preceitos,
os indivíduos têm necessidades psicológicas que fundamentam imperativos que são
atendidos pela cultura. Sendo assim, à cultura cabe a tarefa funcional de responder
a esses imperativos naturais dos indivíduos e organizá-los coletivamente por meio de
“instituições”. Essas instituições seriam elementos concretos da cultura, meios com os
quais se poderia tomar contato para produzir alguma análise sobre seu funcionamento.
O funcionalismo de Malinowski, centrado no presente e nas instituições, aproxima os
estudos culturais de seus objetos, tratando-os como perenes e palpáveis, contudo, ao
desconsiderar os processos formativos desses mesmos objetos, estes se desmancham
em sua efemeridade ou não se revelam em suas múltiplas facetas contraditórias.

Outro autor importante para esses primeiros passos dos estudos da cultura é
o antropólogo americano Alfred Kroeber (1876-1960). Kroeber preocupa-se fun-
damentalmente em como a cultura age nos seres humanos, e tem o interesse em
diferenciar o orgânico do cultural. Para o antropólogo americano, os seres humanos
compartilham atividades e funções vitais comuns, contudo, a forma como esses seres
desempenham essas atividades e funções difere de um sistema cultural para outro.

Para Kroeber, os comportamentos humanos não são determinados pela genética,


e sim pelas transmissões culturais, que se sedimentam como heranças e são respon-
sáveis pela formação dos hábitos e costumes dos seres humanos. Essa centralidade

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UNIDADE A Multiplicidade da Cultura

da cultura na composição das ações humanas também foi capaz, segundo esse an-
tropólogo, de frear alguns instintos humanos ao longo dos séculos, de modo que a
convivência social se desse com ênfase nos aspectos culturais em relação aos orgâni-
cos. Além dessa engrenagem de frenagem moral, a cultura, para Kroeber, é o meio
pelo qual os seres humanos se adaptam aos mais diversos e até mesmo inóspitos
ambientes ecológicos, conferindo à cultura a capacidade de espraiar a humanidade
pela quase totalidade terrestre.

Como a cultura organiza os seres humanos, adaptando-os aos ambientes, domes-


ticando seus instintos e criando suas regras de convivência, a partir da transmissão,
o aprendizado torna-se um elemento fundamental para a produção da vida. Nessa
perspectiva, não são os códigos genéticos que determinam a maneira como a huma-
nidade se comporta, e sim as transmissões culturais. É pela aprendizagem cultural
que as pessoas orientam seus comportamentos, suas formas habituais, seus modos
de relação com as múltiplas instâncias da vida e até a capacidade criativa e as ativida-
des artísticas. E esse processo é acumulativo, para Kroeber, sendo a cultura de cada
tempo, portanto, um resultado das experiências históricas pregressas.

A Concepção Simbólica da Cultura


Segundo Thompson (2009), Tylor, Boas e Malinowski pertencem ao grupo de antro-
pólogos de concepção descritiva da cultura, na qual a “cultura de um grupo ou sociedade
é o conjunto de crenças, costumes, ideias e valores, bem como os artefatos, objetos e
instrumentos materiais, que são adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de um
grupo ou sociedade” (THOMPSON apud GODOY; SANTOS, 2014, p. 22).

Essa concepção descritiva da cultura passa a se modificar a partir dos estudos


do antropólogo americano Leslie White (1900-1975), que começava a desenvolver
a concepção simbólica da cultura. White considerava que a humanidade e a cultura
são indissociáveis e esse laço se dá pela capacidade de criação de símbolos e de seus
respectivos significados por parte dos indivíduos nos mais diferentes contextos.

White ressalta a importância do discurso articulado como sendo um agente im-


portante que é capaz de criar, ordenar e regular sistemas sociais que serão apre-
endidos por meio de simbolizações. Nesse sentido, o acúmulo e a transmissão do
conhecimento desse discurso articulado, bem como de outros elementos simbólicos,
como a linguagem, possibilitam que as pessoas assimilem os símbolos que orien-
tam a organização social daquela cultura. Esse processo de atribuição de sentidos e
significados aos símbolos, para White, faz com que a humanidade não se detenha
no passado e continue criando e reinventando suas simbolizações, em um processo
intenso e múltiplo, que configura pluralidades e variedades culturais, inclusive dentro
de um mesmo fenômeno cultural.

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Figura 3 – Małgorzata Serwatka, War: Scrap
Fonte: wikiart.org

Outro antropólogo importante da concepção simbólica da cultura é o americano


Clifford Geertz (1926-2006). Apesar de ser classificado como pertencente ao grupo
intelectual da concepção simbólica, Geertz se difere de White porque defende um
conceito de cultura fundamentalmente semiótico, ou seja, a base de sua antropologia
são as interpretações.

A premissa da semiotização da cultura é, para Geertz, a possibilidade de os seres


humanos dialogarem com os símbolos e seus significados. Segundo essa perspecti-
va, a tarefa da teoria cultural não é a de organizar um sistema de códigos a partir de
uma lei ordenadora teórica preconcebida, mas, ao contrário, de tomar contato com
as experiências culturais e, por meio da interpretação de seus símbolos, produzir
inteligibilidades mediadas pelos dispositivos teóricos. Nesse processo, segundo Ge-
ertz, a cultura se organizaria a partir de significantes, que seriam um grupo de atos
simbólicos expressos nos meios sociais pelos indivíduos, e a função da antropologia
seria a de estudar esses atos simbólicos por meio de uma análise do discurso.

A partir dessa análise do discurso é possível, segundo Geertz, uma conceituação


de atos simbólicos de modo que seja possível destacar esses atos dos demais ele-
mentos constituintes do comportamento humano. Desse modo, a teoria de Geertz
contribuiria para a percepção da influência da cultura, por meio dos atos simbólicos,
sobre a vida das pessoas, contudo com a concentração dos esforços nas análises do
discurso e suas produções de significados, a teoria cultural de Geertz deixa de lado
as estruturas de poder e os diferentes contextos que agem sobre essa atuação e con-
formação simbólica.

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UNIDADE A Multiplicidade da Cultura

Cultura como Estrutura


O estruturalismo se configurou como uma corrente de pensamento do século XX
com enraizamentos teóricos em diversas áreas do saber, como a linguística, a socio-
logia, a antropologia e a literatura. Tendo em Ferdinand de Saussure (1857-1913)
seu primeiro nome forte, o estruturalismo, em linhas gerais, elaborou uma meto-
dologia que analisava os fenômenos socioculturais em conexão com sistemas e
estruturas maiores.

Na antropologia e nos consequentes estudos culturais, um dos nomes mais impor-


tantes é o do francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Contrapondo-se ao evolucio-
nismo, Lévi-Strauss apresenta o conceito de etnocentrismo, segundo o qual o Ocidente
assumiria em si mesmo o progresso da humanidade e analisaria as demais culturas
com base em seus próprios pressupostos e categorias ocidentais. O antropólogo fran-
cês formula o conceito de etnocentrismo como sendo comum a todas as culturas, ou
seja, as culturas enxergam umas às outras a partir de seus pressupostos, contudo, a
cultura ocidental é aquela que se autoafirma como pertencente ao estágio mais avan-
çado da civilização e que relega ao estágio mais primitivo as ditas culturas selvagens.

Para escapar do evolucionismo ocidental, Lévi-Strauss aposta na pluralidade e


na diversidade cultural como motores da história, como elementos constitutivos das
dimensões expressivas da humanidade. Essa diversidade se estrutura na cultura por
meio de símbolos, e a antropologia deveria ser capaz de analisá-los em sua dimensão
coletiva. É com esse arcabouço e com incorporações de outras áreas do conheci-
mento que Lévi-Strauss vai tentar compreender como os símbolos se estruturam e
conseguem, assim, concentrar significados que conformam hábitos, comportamen-
tos, ações etc. dos indivíduos que convivem naquele sistema cultural.

Kuno Gonschior, Ulramarin. Disponível em: https://bit.ly/2SZUK1k

Outro autor importante é o americano J. B. Thompson (1951), que, a partir do re-


ferencial de Geertz, propõe uma perspectiva teórica que investigue as organizações
simbólicas dos fenômenos culturais, mas que compreenda esses fenômenos como
parte de estruturas sociais. Para Thompson, é possível produzir uma análise cultural
que consistiria no:
[...] estudo das formas simbólicas – isto é, ações, objetos e expressões signi-
ficativas de vários tipos – em relação a contextos e processos historicamen-
te específicos e socialmente estruturados dentro dos quais e por meio dos
quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas.
Os fenômenos culturais, deste ponto de vista, devem ser entendidos como
formas simbólicas em contextos estruturados; e a análise cultural como o
estudo da constituição significativa e da contextualização social das formas
simbólicas. (THOMPSON apud GODOY; SANTOS, 2014, p. 25)

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Como destacado, para Thompson, as formas simbólicas são produzidas, trans-
mitidas e recebidas em contextos estruturados sócio-históricos específicos, e a tarefa
teórica é interpretar essas relações de modo a elucidar os fenômenos culturais.

Além do aspecto estrutural, Thompson considera que as formas simbólicas são


constituídas por aspectos intencionais, convencionais, referenciais e contextuais.
O aspecto intencional diz respeito à experiência individual, que tem interesses e
objetivos e o faz por meio de mensagens. O aspecto convencional se explica como
o acordo tácito entre os indivíduos de determinada cultura que regula leis, normas,
regras, condutas etc. e se expressa na vida cotidiana. O aspecto estrutural aponta
que as formas simbólicas aparecem como estruturas articuladas que compreendem
elementos sistêmicos variados em relação. O aspecto referencial salienta o caráter
representacional das formas simbólicas, que podem referir-se a objetos, indivíduos e
situações. O aspecto contextual atesta que as formas simbólicas estão inseridas em
contextos históricos e sociais e específicos, e por meio deles são produzidas, trans-
mitidas e recebidas.

Cultura, Hegemonia e Progresso


Para o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), as ideias não antecedem as prá-
ticas sociais, moldando-as e organizando assim a experiência social. As ideias são
produzidas a partir das relações sociais objetivas, desse modo, as leis, o estado, o
conhecimento, a cultura e as demais instâncias simbólicas não estão deslocadas das
constituições políticas burguesas nem das formas de produção capitalistas. A partir
desses princípios, Marx ressalta que essas instâncias simbólicas estão em constante
disputa, e que as classes dominantes, por deterem o controle das forças produtivas
e políticas, tentam a todo custo organizar essas instâncias a partir de seus critérios
para manter seus privilégios e o processo de dominação social. Nesse sentido, a luta
de classes se constitui como um fenômeno de disputa política ampla, que inclui as
mais diversas esferas da vida social.

Para o intelectual italiano Antonio Gramsci (1891-1937), a cultura se manifesta


por meio de sistemas de normas e valores produzindo a coesão social. Esse processo
forja um consenso que, mesmo com furos, brechas e dissidências, se estrutura como
uma hegemonia. E no caso da sociedade capitalista, Gramsci afirma que a hegemo-
nia é pautada pela classe dirigente desse processo, a saber, a burguesia. A cultura,
portanto, torna-se um dos elementos da hegemonia e tende a ser produzida e trans-
mitida a partir dos valores da classe dominante. Sobre esse processo, Gramsci avalia
que a hegemonia caminha em duas direções: a primeira se difunde por meio de
teorias e produções científicas validadas no campo intelectual; e a segunda, apesar
de manter relação com a primeira, se manifesta como autônoma e flui pela vida co-
tidiana conformando hábitos e costumes.

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UNIDADE A Multiplicidade da Cultura

Apesar de esse processo de dominação se enraizar a ponto de produzir a vida


sociocultural dos indivíduos, estabelecendo consensos e coesões, a hegemonia en-
contra resistência e dissidência em diversos níveis, com produções sociossimbólicas
que escapam e, até mesmo, confrontam os valores culturais produzidos pela classe
dominante. Nesse sentido, Gramsci acredita ser possível a construção de uma cultura
das classes populares que seja capaz de revolucionar as formas de produção social
da vida a partir de seus valores.

Figura 4 – Eugênio Sigaud


Fonte: rotadorosario.org

O teórico galês Raymond Williams (1921-1988) é mais um dos que estudaram a


fundo a cultura e as suas inúmeras implicações. Partícipe de um movimento inglês
chamado New Left, Williams se consolidou como um dos mais importantes autores
dos assim chamados Estudos Culturais. Williams procura os fios etimológicos da
palavra cultura e encontra uma enormidade de definições, das quais destaca duas di-
retrizes diferentes entre si: uma que se manifestaria por meio da linguagem, da arte,
dos estilos e das atividades intelectuais na vida dos sujeitos e que seria considerada
como idealista; e a outra que conformaria determinada cultura, direta e indiretamen-
te, a partir de múltiplas relações sociais, sendo classificada como materialista.

Nesse horizonte de pensamento, o filósofo americano Terry Eagleton (1943), em


diálogo com Williams e Gramsci, estuda, dentre outras coisas, a relação do Estado
Moderno de bases burguesas e capitalistas com a cultura. Para Eagleton, assim como
para Vladimir Lenin (1870-1924), o Estado tende a elaborar e implementar suas
formas sociais em convergência com os desejos da classe dominante. Nesse sentido,
Eagleton defende a ideia de que o Estado representa interesses culturais e acaba se
tornando um agente de cultura, na medida em que media esses interesses e acaba
produzindo uma tendência de valores e hábitos culturais que pretendem ser assimi-
lados por seus indivíduos. Essa atividade de tentativa de espelhamento cultural entre
o estado e seus indivíduos pode ser lida como uma iniciativa de padronização (e,
consequentemente, redução da multiplicidade) da cultura e uma tentativa de arrefe-
cimento das tensões de classe, que também se manifestam culturalmente no interior
das relações sociais.

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Em contato com as ideias de Williams, e influenciador de Eagleton, o historiador
inglês E. P. Thompson (1924-1993) dedicou parte de seus trabalhos ao estudo das
classes operárias e investigou como a cultura é um elemento fundamental e indisso-
ciável da formação dessas classes.
Pois as pessoas não experimentam sua própria existência apenas como
ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou (como
supõem alguns praticantes teóricos) como instinto proletário etc. Elas
também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com
esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de
parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais
elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura
(e é uma metade completa) pode ser descrita como consciência afetiva e
moral. (THOMPSON, 1981, p. 189)

A cultura é, para Thompson, o espaço onde a existência humana se faz, onde


ela se torna presente na vida de um corpo social, por isso é um elemento capaz de
revelar as contradições e os conflitos que pulsam na sociedade. Desse modo, o autor
estuda como a consciência de uma classe não se faz apenas pelo esclarecimento
intelectual de sua posição diante do jogo social, mas também a partir de como as
classes foram forjando suas experiências culturais ao longo do tempo. Sendo assim,
é possível depreender que uma perspectiva de transformação política não se dá sem
uma transformação cultural, dada a relação intrínseca entre ambos.

Recuando e ao mesmo tempo avançando sobre o tempo, aproximamo-nos do filó-


sofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), que foi um crítico contumaz do progresso
e das dominações de classe, enxergando neles a cultura em relação imanente com
esses processos: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um
monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta da barbárie, não o é,
tampouco, o processo de transmissão da cultura” (BENJAMIN, 1994, p. 225).
Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo
que parece preparar-se para afastar de qualquer coisa que olha fixamen-
te. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Voltou seu rosto para o passado.
A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma
catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e
lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e recons-
truir, a partir de seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso
sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que
o anjo já não consegue fechar. Esse vendaval arrasta-o imparavelmente
para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à
sua frente segue até o céu. Aquilo que chamamos de progresso é este
vendaval. (BENJAMIN, 2016, p. 13-14)

As proposições radicais de Benjamin nos convidam a refletir sobre como o pro-


gresso pode significar um empilhamento de catástrofes varridas para debaixo do

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tapete, um silenciamento diante das inúmeras ruínas que têm a barbárie como o
fundamento mais grave de sua expressão.

Para Benjamin, a cultura não é um elemento positivo em si, que carrega em seu
bojo uma qualidade apriorística e transcendental. A cultura, na perspectiva benja-
miniana, deve ser encarada em seu contexto, e a cultura progressista, no contexto
da sociedade ocidental capitalista, esta que se formou na modernidade e ao mesmo
tempo a formou, em um jogo dialético incessante de afirmação de seus valores e
modos de produção da vida social. E como ela é transmitida e assimilada, constitui-
-se como um elo de propagação da barbárie.

Figura 6 – Paul Klee, Angelus Novus


Fonte: wikiart.org

Com o desenvolvimento técnico e tecnológico vinculado em grande parte à pro-


dução capitalista, tendo a perspectiva de um tipo de progresso ampliado, no final
do século XX, assistimos ao fenômeno da globalização. As inovações tecnológicas
foram capazes de fazer circular informações, mercadorias, pessoas e, consequente-
mente, culturas em uma velocidade nunca vista na história. Esse processo provocou
um paradoxo: quanto mais se podia apreender as diferentes culturas, mais as cultu-
ras hegemônicas, por meio da dominação econômica e da indústria cultural, foram
padronizando a cultura.

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Apesar desse processo de tentativa de padronização, a circulação das pessoas, o
intercâmbio dos saberes, as trocas intelectuais, as relações múltiplas, as lutas sociais
possibilitaram, nos últimos anos, fortes embates à tentativa de hegemonização cul-
tural, e talvez nos apontem outros possíveis caminhos para nossa existência, como
destaca o escritor, líder indígena e ambientalista Ailton Krenak (1953):
Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os
seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos,
nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade
industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações
com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não
só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou
povos indígenas, mas a todos. Tomara que estes encontros criativos que
ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática,
a nossa ação, e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação
da vida para um compromisso com a vida, em qualquer lugar, superando
as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles
a que estamos apegados e onde vivemos, assim como às formas de so-
ciabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade
humana está excluída, que em última instância gastam toda a força da
Terra para suprir a sua demanda de mercadorias, segurança e consumo.
(KRENAK, 2019, p. 49-50)

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Leituras
Ailton Krenak: o tradutor do pensamento mágico
https://bit.ly/3j1FtI2
Raça e História – Claude Lévi-Strauss
https://bit.ly/3510e1x

 Vídeos
Palestra Cultura e Sociedade, por Maria Elisa Cevasco
https://youtu.be/bGpVwhtLsZg
Conferência de Eduardo Viveiros de Castro intitulada “Os involuntários da Pátria”
https://youtu.be/l98nNx5S6HQ
Alfredo Bosi: Cultura ou Culturas Brasileiras?
https://youtu.be/2FprGNQaQ90

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Referências
BAUMAN, Z. Ensaios sobre o conceito de cultura. Trad. Carlos Alberto Medeiros.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história


da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

________. O anjo da história. Org. e trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autên-
tica Editora, 2016.

GODOY, E. V.; SANTOS, V. de M. Um olhar sobre a cultura. Educação em Revista,


Belo Horizonte, v. 30, n. 3, p. 15-41, jul./set. 2014.

KRENAK. A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.

LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2001.

MARX, K. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano


Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica


ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna. Teoria social crítica na era dos


meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2009.

WILLIAMS, R. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra


Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.

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