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Revisão Textual:
Aline Gonçalves
A Memória como Aspecto Fundamental
na Relação entre Cultura e Linguagem:
Dois Estudos de Caso
• Introdução;
• Experiência, Linguagem e Memória;
• Memória Social, a Memória como Museu;
• Diáspora Africana: Memória, Pertencimento, Apagamento e Resistência.
OBJETIVO
DE APRENDIZADO
• Trabalhar a articulação entre cultura e linguagem para pensar memória e questões episte-
mológicas ligadas a dois casos históricos concretos: os campos de extermínio nazistas e a
questão diaspórica negra no período do colonialismo.
UNIDADE A Memória como Aspecto Fundamental na Relação
entre Cultura e Linguagem: Dois Estudos de Caso
Introdução
A memória constitui-se como um problema para a humanidade ao longo de sua
história de diferentes modos. Tradições são construídas a partir de valores, tecnolo-
gias e memórias, e podem ser destruídas a depender do modo como são tratadas
e abordadas. Isso diz respeito a registros, documentação, modos de tornar vivos os
acontecimentos e aprendizados do passado e do presente. A ativação ou a supressão
de determinada memória social pode produzir grandes efeitos nas culturas e nas
linguagens (na língua, nas artes).
Mas o que é chamado aqui de memória não tem a ver exatamente com o que en-
tendemos por lembrança, no sentido individual, mas com memória social, produzida
a partir de experiências em comum de uma sociedade nacional, regional ou plane-
tária. Certamente, essa memória é também feita das memórias individuais, mas não
se produz como a soma de cada memória individual, vai sendo produzida a partir
dos acontecimentos que acometem a vida social e os desdobramentos desses aconte-
cimentos na vida do conjunto da população e suas instituições. Tudo o que delimita,
determina e produz a vida em sociedade é material para a produção de memória.
Há, contudo, eventos que marcam profundamente a experiência humana, situações
e passagens a partir das quais a nossa existência enquanto espécie, no marco da
cultura e da linguagem, fica atravessada de maneira incontornável.
Você Sabia?
Em 1895, na França, os irmãos Lumière exibiram aquele que ficou conhecido como o pri-
meiro filme de todos os tempos, “Arrivée d’un train em gare à La Ciotat” (Chegada de um
trem à estação da Ciotat). O filme tinha menos de um minuto de duração, apresentava
um trem chegando à estação, onde p assageiros o aguardavam para embarcar. Quando
o trem se aproximou da câmera, a plateia que acompanhava a sessão imaginou que ele
fosse sair da tela e atropelá-los, e então fugiu em direção à saída do cinema assustada.
Imagina o quanto essa experiência transformou o imaginário e a vida das pessoas e da
sociedade na época? Link para o filme: https://youtu.be/CUgvS7i4TDg
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Experiência, Linguagem e Memória
Em 1936, o pensador alemão Walter Benjamin escreveu um importante texto que
nos ajuda muito a pensar a respeito dessas experiências de profunda transformação
na cultura, na linguagem e, por conseguinte, na memória. Intitula-se “O narrador:
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (2008, p. 197), e trabalha sobre a
tese de que o narrador, ou a experiência de narrar, encontra-se fora de uso, não é
mais presente na vida social. A isso o autor atribui a baixa das “ações da experiência”,
que, para ele, seguiria tendencialmente decaindo até seu desaparecimento completo.
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elaboração do passado e a nossa relação com as memórias sociais. Seu pensamento
apresenta algumas perguntas sobre as razões pelas quais lidamos com os dados do
passado e de que modo exercemos essa atividade. Um dos artigos do livro começa
com a seguinte indagação: “por que hoje falamos tanto em memória, em conser-
vação, em resgate? E por que dizemos que a tarefa dos historiadores consiste em
estabelecer a verdade do passado?”. Mais adiante, elabora ainda mais a questão.
“Por que fazemos questão de estabelecer a história verdadeira de uma nação, de
um grupo de uma personalidade?”. Pode nos parecer um movimento natural, o de
olhar para trás e daí depreender as experiências que nos trouxeram até aqui. Sa-
bemos, contudo, que sobre os mesmos eventos circulam diferentes leituras, muitas
vezes antagônicas, a depender da posição de onde o evento é lido e analisado. Em
relação à realidade brasileira, por exemplo, há uma disputa importante em torno do
período em que o País viveu sob uma ditadura civil-militar. Há figuras importantes
do poder, por exemplo, que, mesmo diante das evidências documentais e científi-
cas, negam a existência de tortura e desaparecimentos nesse período – fenômeno
conhecido como revisionismo ou negacionismo. O passado não é terreno fácil de
ser trabalhado, justamente pelo que Gagnebin nos aponta como uma “ética da ação
presente”, razão e direção fundamental que motiva a busca pela verdade do passado
(GAGNEBIN, 2018, p. 39).
Como uma experiência traumática, foi sendo elaborada de diversos modos, a par-
tir de instituições e de iniciativas de grupos políticos, pesquisas científicas e procedi-
mentos literários, a partir dos quais foi sendo possível pensar a respeito com algum
distanciamento e em chave crítica. Boa parte do pensamento produzido a respeito
apresenta o Holocausto e, sobretudo, a existência e funcionamento dos campos de
extermínio nazistas como um marco na história da humanidade, a partir do qual seria
impossível pensar a humanidade sem considerá-lo como referência, por se tratar de uma
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“É isto um homem?”, escrito pelo químico italiano judeu Primo Levi, em 1947, e publi-
cado só em 1958. O livro trata das experiências vividas pelo próprio autor no campo de
extermínio de Auschwitz, onde ficou confinado até o fim da guerra, tendo escapado com
vida. É uma das obras mais importantes da literatura de testemunho e aborda o limite da
dor, fome, do sofrimento, frio e da desumanização, quando o ser humano é destituído de
qualquer sentido de existência e dignidade e degradado em absoluto, razão da pergun-
ta proposta pelo título do livro. Poderíamos pensar que a pergunta é feita em relação aos
prisioneiros, submetidos àquelas condições terríveis, mas também aos seus algozes, que,
acompanhando e proporcionando o esvaziamento da dignidade e humanidade de outras
pessoas, também estariam destituindo-se de qualquer humanidade.
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Há algumas décadas, contudo, há pensadores elaborando criticamente e questio-
nando os modos como essa memória é tratada do ponto de vista institucional, so-
bretudo a memória dos campos e um processo reconhecido hoje como museificação
da memória do Holocausto. Jeanne Marie Gagnebin fala de “abusos de memória”
cometidos por “empresas de memória” na medida em que vão morrendo de morte
natural os sobreviventes de Auschwitz, buscando pensar uma alternativa a uma for-
ma de memória que se assemelhe à comemoração.
A exigência de memória, que vários textos de Benjamin ressaltam com
força, deve levar em conta as grandes dificuldades que pesam sobre a
possibilidade da experiência comum, enfim, sobre a possibilidade da
transmissão e do lembrar (...). Se passarmos em silêncio sobre elas em
proveito de uma boa vontade piegas, então o discurso sobre o dever de
memória corre o risco de recair na ineficácia dos bons sentimentos ou,
pior ainda, numa espécie de celebração vazia, rapidamente confiscada
pela memória oficial. Proporia, então, uma distinção entre a atividade
de comemoração, que desliza perigosamente para o religioso ou, então,
para as celebrações de Estado, com paradas e bandeiras, e um outro
conceito, o de rememoração (...). Tal rememoração implica uma certa
ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se
lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado,
para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ain-
da não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração
também significa uma atenção precisa ao presente, (...) pois não se trata
somente de não esquecer do passado, mas também de agir sobre o pre-
sente. (GAGNEBIN, 2018, p. 54-55)
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pareceram emblemáticos do ponto de vista do que foi aquele lugar e do que ele é
hoje, e, a partir das fotos, propôs caminhos de pensamento que buscassem atar ou
criar atritos entre a experiência pregressa e a atual daquela localidade. Ao longo de
todo o livro, na medida em que percorremos as fotos e as elaborações relacionadas,
percebemos um fio que conduz, como uma pergunta central da obra, e diz respeito a
Auschwitz como lugar de barbárie que se tornou “um espaço público exemplar”, um
museu de Estado, transformado de “lugar de barbárie” para “lugar de cultura”. Seria
Auschwitz possível como lugar de cultura?
Parece não haver ponto em comum entre uma luta pela vida, pela so-
brevivência, no contexto de um “lugar de barbárie” que foi Auschwitz
como campo, e um debate sobre as formas culturais da sobrevivência, no
contexto de um “lugar de cultura que é hoje Auschwitz como museu de
Estado. Mas há. É que o lugar de barbárie foi possibilitado – uma vez que
foi pensado, organizado, sustentado pela energia física e espiritual de to-
dos aqueles que nele trabalharam negando a vida de milhões de pessoas
– por determinada cultura: uma cultura antropológica e filosófica (a raça,
por exemplo), até mesmo uma cultura estética (...). A cultura, portanto,
não é a cereja do bolo da história; desde sempre é um lugar de conflitos
em que a própria história ganha forma e visibilidade no cerne mesmo das
decisões e atoa, por mais “bárbaros” ou “primitivos” que estes sejam.
(DIDI-HUBERMAN, 2019, p. 19-20)
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Em seu “Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do Holo-
causto”, importante obra da literatura de testemunho dos campos de extermínio,
Ruth Klüger alerta para outros aspectos ainda dessa institucionalização e fetichiza-
ção da memória dos campos. A autora desenvolve ao longo do livro a ideia de que
a memória dos campos foi pasteurizada, sendo reconhecida como uma experiência
homogênea, sendo que diferentes grupos atravessaram vivências distintas e mesmo
as experiências entre diferentes campos não guardavam as mesmas características.
Parte importante de sua contribuição no pensamento sobre a memória diz respeito
também a como enxergamos o problema do testemunho, na medida em que aqueles
que saíram com vida dos campos carregavam uma experiência profunda de morte, e
falar sobre ela não seria tarefa fácil. No seu caso, particularmente difícil, na medida
em que era criança, e relata repetidas situações de deslegitimação de sua experiên-
cia, como se uma criança não estivesse apta a dar testemunho legítimo.
AREIA
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Diáspora Africana: Memória, Pertencimento,
Apagamento e Resistência
Se na primeira parte de nossa unidade tratamos de temas caros aos estudos das
ciências humanas, com um recorte distante temporal e geograficamente de nós, nesse
segundo momento trataremos da questão da memória e de sua disputa em relação
a um debate fundamental à sociedade brasileira, constituinte de sua formação social:
a diáspora africana. Se, no caso alemão, a disputa e o debate sobre a memória do
holocausto são tão presentes no âmbito do Estado desde o fim da guerra, no Brasil
a temática da diáspora, da escravidão e da constituição de nossa formação social
por povos de diferentes países e culturas de África sempre foi uma dura disputa
por reconhecimento, reparação e adoção de políticas públicas consequentes com a
história de opressão aos povos negros e indígenas durante o período do colonialismo
e, posteriormente, na formação do Brasil moderno.
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enquanto sujeitos. O que significa tratar por “negro” todo aquele que tenha vindo ou
descenda de escravizados trazidos de África, sem considerar sua etnia, cultura, origem?
Para o pesquisador, o tratamento de negro, como denominação homogênea, cumpriu
o papel de apagamento dessas etnias e grupos, na medida em que essa denominação
é fruto também de um processo de dissolução desses grupos no território de todo o
continente americano, como se cada uma das pessoas não tivesse vínculos e pudesse
ir a qualquer parte sozinha, sem os seus, bem como se não importasse sua origem.
Abdias Nascimento trata de alguns modos como as culturas africanas foram per-
seguidas e persistiram no Brasil:
Sempre que vemos estudado o tema das culturas africanas no Brasil, a
impressão emanada de tais estudos é que essas culturas existem porque
receberam franquias e consideração num país livre de preconceito étnico
e cultural. A verdade histórica, porém, é bem oposta. Não é exagero afir-
mar-se que desde o início da colonização, as culturas africanas, chegadas
nos navios negreiros, foram mantidas num verdadeiro estado de sítio. Há
um indiscutível caráter mais ou menos violento nas formas, às vezes sutis,
da agressão espiritual a que era submetida a população africana, a co-
meçar pelo batismo ao qual o escravo estava sujeito nos portos africanos
de embarque ou nos portos brasileiros de desembarque. As pressões cul-
turais da sociedade dominante, a despeito de seus propósitos e esforços,
não conseguiram, entretanto, suprimir a herança espiritual do escravo na
medida em que ocorreu nos Estados Unidos, onde apenas sobreviveram
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alguns elementos culturais. Mas essa incapacidade de aniquilar definitiva-
mente a vitalidade cultural africana, que se expandiu por vários setores
da vida nacional, não pode ser interpretada como concessões, respeito
ou reconhecimento por parte da sociedade dominante. (NASCIMENTO,
2016, p. 123)
O autor nos atenta ao fato de que a Igreja Católica atuou no sentido de coibir e
proibir práticas religiosas que não fossem cristãs, e à despeito dessa perseguição, al-
gumas das religiões de matriz africana puderam persistir no tempo. Parte importante
dessas manifestações não se restringiam ao seu aspecto religioso, mas se combina-
vam com formas de celebração e festejos populares, como o bumba meu boi, dos
quilombos, os autos populares, dos congos. Nascimento se vale da classificação pro-
posta por Arthur Ramos para as culturas que permaneceram em território brasileiro,
sendo que não necessariamente os condutores e descendentes tiveram condições de
manter vivas essas culturas, na medida em que viviam sob terríveis condições, víti-
mas de violência e choque contra suas culturas:
A. Culturas sudanesas: representadas primariamente pelos povos iorubá
da Nigéria, os gêges do Daomé (Benin), os fanti e axânti da Costa do Ouro
(Gana) e alguns outros grupos menos relevantes ao contexto brasileiro;
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Raízes
para Aristides Barbosa
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E doce encanto no olhar
Carlos de Assumpção é um homem negro, poeta brasileiro, nascido em 1927, em Tietê, in-
terior de São Paulo, e vive hoje em Franca, também no interior do estado. Teve seu primeiro
livro publicado em 1982 (Protesto), e recentemente sua poesia completa foi publicada no
volume “Não pararei de gritar”, pela editora Companhia das Letras.
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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:
Livros
Não pararei de gritar
ASSUMPÇÃO, C. de. Não pararei de gritar. Poemas reunidos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
Introdução aos estudos africanos e da diáspora
MORTARI, C. Introdução aos estudos africanos e da diáspora. Florianópolis:
DIOESC; UDESC, 2015.
Vídeo
Conversas Metodológicas – Transnacionalismo Negro e Diáspora Africana
Palestra de Valter Silvério.
https://youtu.be/PRVgdW4Vb8g
Leitura
Diáspora Africana
Ana Luíza Mello Santiago de Andrade – Portal Geledés.
https://bit.ly/2HbTcyJ
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Referências
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.
BRECHT, B. Poemas 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. São Paulo: Editora 34, 2000.
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