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Vol.

9 N°2 (2021)

Sobre a perda da
intimidade
Susana Scramim1

As reflexões que seguem se orientam em torno de cinco cenas que dão


sequência a imagens/experiências com a intimidade em dias de isolamento
social.
A primeira cena parte do elenco Humanismo, Jogo, Técnica,
Violência e Arte.
A segunda envolve a Amizade, Intimidade e Pesquisa.
A terceira contrapõe Euforia à Utopia e à História do Futuro.
423 A quarta presentifica a Pobreza, a Revolução e o Pessimismo.
A quinta em busca pelo Sentido da Vida faz o jogo de espelho entre
Inteligência Artificial e Subjetividade.
Esses conceitos serão grafados ao longo do texto como se fossem
substantivos próprios, porque se pretendem como construção conceitual.
A motivação dessas sequências nasce do impasse produzido pelo
distanciamento social que foi imposto a toda sociedade urbana do planeta
em razão de uma pandemia descontrolada. Todo modo de isolamento social
é uma violência que se realiza ora pela lógica do campo de concentração e
de refugiados ou dos fechamentos de cidades a partir de imposições
sanitárias.
Assemelhando-se a uma reação diante do sequestro abrupto de
nossas práticas cotidianas de ensino na universidade, aquilo que desejo
elaborar neste texto é um mosaico das situações as quais os membros da
comunidade acadêmica fomos forçados a submeter-nos. Muitos dos
métodos e instrumentos de convívio e de ensino-aprendizagem a que nos

1
Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq.

SCRAMIM, S. “Sobre a perda...”. (p. 423-442)


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submetemos nesse momento foram rechaçados por nós mesmos até agora. E
os motivos pelos quais os rejeitávamos passam pela justificativa de que
esses meios nos levavam para longe de nossos objetos e objetivos que eram
e são a criação de ambientes de convívio e de intimidade com a pesquisa e
com os sujeitos pesquisadores.

Cena número 1
Walter Benjamin e o Humanismo
Já vivíamos o impasse na relação entre Técnica e Subjetividade nos debates
em torno da sobrevivência do Humanismo na cultura do Ocidente antes da
pandemia ser instaurada em março de 2020. Essa crise sanitária apenas
transformou um debate com consequências elegíveis em uma questão de
emergencial e impositiva. Todos fomos compelidos a enfrentar esse desafio.
Restou-nos enfrentar imediatamente o impasse de pensar modos de
convivência com a Técnica para mediar nossas relações interpessoais no
Humanismo e na Arte. A questão que me inquieta e aflige é a de como
produzir experiência com a intimidade em tempos em que a mediação com a
424 Técnica é impositiva?
Walter Benjamin detectou em suas análises que os “fascismos”
fizeram uso da Técnica em seu aspecto mais primário: como lugar de
captura da subjetividade que era transformada em individualismo narcisista.
Entretanto, para o filósofo alemão a Técnica poderia ser também uma
ferramenta para produzir outros modos de subjetividades, mais próximos
daquilo que a cultura medieval chamou de “vida interior”. A Técnica
poderia ser pensada como lugar de jogo entre modos de vida
descentralizados, de intercâmbio, de pluralidades mediadas, aquilo que foi
definido por ele como Spielraum e que produz uma experiência com a
imagem, Bildraum2. Sobre a Técnica pensada como mediadora de
pluralidades subjetivas, Benjamin ainda afirmaria que o cinema seria capaz
de levar a cabo uma transformação dos sujeitos autocentrados desde que não
2
Segundo Márcio Seligmann-Silva, esse modo de lidar com o impasse pode ser
considerado o “embrião de uma técnica do artista que consiste em extrair da ação um novo
e poderoso espaço de imagem, Bildraum, correspondente a um mundo ‘em sua atualidade
completa e multifacetada’ que leva a uma destruição da imagem do indivíduo denominada
‘destruição dialética’” (Cf. SELIGMANN-SILVA, 2019, p. 52-85).

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se empenhasse na reprodução e sobreposição por contiguidade do indivíduo


moderno aos modelos oferecidos pela planificação dada no uso da “voz-
língua materna e imagem”. Esse par precisaria ser evitado porque está
associado à reprodução de identidades já conhecidas e não à revolução e
criação de outras formas de vida. Walter Benjamin ressaltou que a crise
econômica fez com que a voz dos atores fosse incorporada aos fotogramas
do filme, até então mudo, como alternativa para se encontrar novamente o
caminho até as massas consumidoras e não produziria emancipação do
pensamento. Elas encontrariam na voz, na prosódia e na língua materna do
ator uma nova maneira de comunicação consigo mesmas, tendo como
consequência a produção de uma arte limitada pelo monolinguismo. A isso
ele denominou estetização da arte e ela seria uma das promotoras da
ascensão do fascismo insipiente na sociedade europeia. Como antídoto a
esse processo de captura do cinema pela barbárie capitalista, Benjamin
propôs a politização da arte, constituindo-se na principal tese de seu ensaio
“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”.
E é desse lugar que eu gostaria de partir. Sabemos que Benjamin
425 constrói essa tese com base em outra mais ampla do materialismo histórico
que é a de que os meios de produção e reprodução na sociedade são
produtores novas formas de subjetividades. O tsunami fascista na Europa foi
desencadeado também pela comunicação fácil entre o indivíduo nacional e a
contiguidade entre “voz-língua materna e imagem”, mediados pela Técnica.
Isso se constata quando se lê a crítica que Benjamin escreve ao livro Krieg
und Krieger, editado por Ernst Jünger, se posicionando contra o culto
místico à guerra que sociedade alemã professava naquele momento, como é
possível ler em seu artigo “Teorias do fascismo alemão”, publicado em
1930, no qual ele também destaca o aspecto mortífero da Técnica.
A reprodução de identidades foi algo combatido por Walter
Benjamin em diferentes frentes de sua atuação como crítico cultural. No
início da década de 1930, ele realizou um projeto pedagógico usando os
aparatos técnicos à sua disposição. Organizou uma série de transmissões de
rádio com o intuito de contar às novas gerações da Alemanha os processos
de formação da cultura burguesa europeia. A composição dos programas
que foram apresentados ao público ouvinte era feita com base na

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combinação inusitada de materiais até então esquecidos pelas novas


gerações. A diferença operada pela iniciativa de Benjamin – se comparada
aos usos narcísicos da Técnica nas Humanidades – estava na forma de
apresentação desses materiais. Cito alguns exemplos: a compilação de cartas
particulares de personalidades alemãs e sua publicação em suplementos
culturais de jornais, coleção e publicação de fragmentos de declarações e
cartas oficiais sobre a Revolução Francesa que ele publicaria em periódicos
e no rearranjo de fotografias documentais, montando imagens-experiências
potentes.
Isso desperta minha atenção para estratégias de divulgação cultural.
Quando se fala nisso na universidade, quer seja, divulgação científica ou
cultural, as críticas e o rechaço por parte dos pesquisadores são imediatos e
muitas vezes sem reflexão mais ampla, porque o que os resultados mais
comuns dessas iniciativas mostram são livros de linguagem próxima do
“senso comum” ou “acessível” e aulas “shows” sem qualquer tipo de
reflexão inteligente compostas por youtubers em busca de fama. Walter
Benjamin fez, entre outros trabalhos, divulgação científico-cultural. É
426 evidente que não havia de sua parte interesse algum em facilitar aquisição
de conteúdo que, por acaso, algum jovem estudante não tivesse estudado ou
encontrado. Não se tratava de um trabalho de construir depósitos de
conhecimento ou de uma enciclopédia no sentido tradicional do termo.
Benjamin tinha o claro propósito de criar possibilidades de recombinações
de materiais, o que também exigiria da parte do estudante a disposição para
a produção de conhecimento e, portanto, para o nascimento de novas formas
de subjetividade. Agindo assim, o que ele produzia era a conexão do sentido
da aprendizagem à Técnica. O objetivo era a produção de uma tecnologia
que provocasse uma revolução contra o avanço do fascismo da identidade
única na Alemanha daqueles anos.
Durante um ano, entre abril de 1931 e maio de 1932, Benjamin
coordenou no jornal Frankfurter Zeitung uma publicação que se pautou pela
modalidade da série. Várias semanas foram necessárias para que a sequência
tomasse forma e seu sentido pudesse ser compreendido pela época do
antologista. Benjamin publicou e comentou cartas particulares trocadas
entre membros e idealizadores do pensamento burguês na Alemanha. Ele

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entendeu que havia que enfrentar a primeira e fundamental crise da


burguesia alemã, em cujo ambiente se respiravam os problemas do
desenvolvimento industrial depois de 1871, com uma recomposição
educativa da memória cultural. Foram nesses anos quando os princípios
intelectuais que sustentaram a burguesia e que também tinham justificado
seu aparecimento e fortalecimento já não funcionavam com as mesmas
motivações de quando foram criados e não produziam os efeitos esperados
no presente. A consequência desse declínio de sua existência e função
resultará, segundo a análise que o próprio Benjamin tinha desenvolvido em
1925 na introdução ao seu estudo do Trauerspiel, é o fascismo.
Não é sem desalento que constato – no adiantado do século XXI –
que alguns alemães não conseguiram compreender o sentido que a antologia
de cartas operada por Walter Benjamin teve para a Europa daqueles anos e
como ela poderia produzir sentido ainda hoje. O trabalho de composição
visava produzir alternativas ao pensamento burguês, e não sua reforma. O
pensamento burguês construiu o sentido do Humanismo moderno, que foi
fundamento para a consolidação dos projetos das nações e seus Estados. Em
427 meio à sua primeira grande crise, que resultou nas duas grandes guerras,
sendo a segunda a que levou ao chão toda possibilidade de pensamento
burguês emancipatório, Benjamin escreveria no estudo introdutório do
Trauerspiel que “o perigo de cair, dos píncaros da ciência, no abismo
profundo do espírito barroco, é grande, e não pode ser desprezado”.
(BENJAMIN, 1984, p. 79).
Ainda que estivessem situados em lados totalmente opostos, é
importante para os estudos filosóficos e históricos repensar como a crítica
ao Humanismo operada por Martin Heidegger pode ser comparada a essa
luta empreendida pela obra de Benjamin. Martin Heidegger também refutou
a cultura burguesa por ser produtora de impasses. Se se compara a
compilação de cartas e outros documentos que testemunham a formação do
Humanismo montados por Benjamin à crítica de Heidegger ao
individualismo burguês, se pode tecer algum ponto em comum. O primeiro
deles é a forma da carta, o envio de uma mensagem a algum destinatário, e a
preocupação envolvida em qualquer ato comunicativo de ele realmente
acontecer, portanto, em ser recebido e lido antes de ser compreendido. Em

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1945, Heidegger escreve cartas em resposta a questões do filósofo francês


Jean Beaufret sobre a devastação do projeto humanista na Europa depois do
fim da guerra. As cartas são publicadas sob a forma de livro no ano
seguinte. Há uma intenção em tentar criar um “fato”, um “ato”
comunicativo, antes de se construir algum sentido para o Humanismo. De
todo modo, Heidegger quer criar um ato comunicativo marcado pela
rejeição ao niilismo e à indiferença que se abatiam sobre a Europa após o
final da Segunda Guerra Mundial. Em Cartas sobre o Humanismo,
Heidegger se defende da crítica que analisa sua obra como niilista
justamente porque o “nihilismo tem como característica a pressuposição de
um Ser incapaz de pensar o nihil” (1991, p.48). O Ser, para Heidegger, é
aquele que é capaz de pensar sua própria decadência e disso sacar sua vida,
sendo assim, seu pensamento estava voltado para alguma forma de vida. Ele
justifica seu desapreço àquilo que associa a ideia de Humanismo à
“decomposição da linguagem operada pelo domínio da metafísica da
subjetividade” que se “extravia irreversivelmente de seu elemento” (1991,
p.6): o de enfrentar-se racionalmente com sua própria decadência.
428 O pensamento de Heidegger no que se refere à sua crítica ao
Humanismo leva em conta a operação de enfrentar-se com seu próprio
processo de declínio. Esta reflexão se materializa na forma seriada de
apresentar a compilação das cartas que compõem a antologia Deutsche
Menschen de Walter Benjamin, quer seja, a apresentação de uma “filosofia
de constituição do sujeito moderno” justamente no paroxismo de sua
tragédia, fragmentado, sem unidade restauradora. Benjamin organiza a
sequência de cartas, iniciando-a com aquela – pois trata dela já no prefácio –
que atesta que essa filosofia do sujeito já nascera com a marca de sua
destruição e que não poderia ser unificada ou reunida sob uma identidade. É
com a carta que Goethe escreve para Zelter que Benjamin, no prefácio à
antologia, constata que em seu próprio “início” o pensamento Humanista de
Goethe já se enfrentava com seu próprio fim. Benjamin extrai desse trecho
dessa carta a hipótese da antevisão de Goethe para o fim da burguesia.

Ferrovias, correio expresso, barcos a vapor e todas as


possíveis facilidades da comunicação são aquilo a que o

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mundo culto almeja para se sofisticar e, com isso,


permanecer na mediocridade. [...] atenhamo-nos o mais
que pudermos à mentalidade da qual viemos; nós, junto a
talvez alguns poucos, seremos os últimos de uma época
que tão logo não retornará. (BENJAMIN, 2020, p19)

A antologia de cartas particulares de humanistas, as compilações de


documentos oficiais da Revolução Francesa e outros trabalhos seus – como
o livro Infância em Berlim, apontado por Adorno como o trabalho
equivalente ao enfrentar-se com seu próprio fim do Deutsche Menschen –
têm o sentido de evidenciar a mimetização que se encena no momento
mesmo da derrocada desse conceito ambivalente de Humanismo que ora se
distinguia segundo uma determinada concepção de “liberdade” e de
“natureza” do homem e sua “identidade”, ora em relação ao seu papel na
sociedade. Nisso, na derrocada do Humanismo, coincidem Benjamin e
Heidegger, bem como na tentativa de ambos de fazer operar a partir desse
declínio uma metamorfose dessa subjetividade em impessoalidade pessoal,
marcada por um orbitar entre o desejo e a criação, entre original e cópia,
entre passado e presente, sem abrir mão do ímpeto individual que produz a
429 ação dissolvida no coletivo. Diferente de Heidegger que escreve sobre o
Humanismo em suas próprias cartas, não abrindo mão, com isso, de sua
individualidade burguesa, na compilação feita por Benjamin não se trata de
escrever “à própria mão” algo sobre o Humanismo alemão/europeu, e sim
de compilar cartas já enviadas, como se houvesse a intenção de operar com
violência um maneirismo “humanista” presente na sua seleção de cartas de
humanistas destacados. Se Walter Benjamin operou por maneirismos, sua
intenção não foi a de restaurar a força de um sujeito centrado em suas
próprias práticas, ao contrário disso, quis provocar o pensamento a partir
daquilo que foram seus fundamentos quando do enfrentamento com sua
decadência, objetivando o reconhecimento e a produção das metamorfoses
promissoras.

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Cena número 2
Miguel Dalmaroni3: a Amizade, a Intimidade e a Pesquisa
Li algumas das mensagens que o colega Miguel Dalmaroni da Universidad
Nacional de La Plata na Argentina enviou aos seus amigos quando as
circunstâncias da propagação do coronavirus no seu país fizeram a
universidade migrar para o modo de atividades à distância.
Em 28 de maio de 2020, ele lamentava em sua mensagem, cujo título
era “Intimidades en Extinción”, que a atividade de ensino mediada pela
internet fazia desaparecer a possibilidade do acaso no despertar de novas
amizades plausíveis em cada período letivo. Citava como exemplo a história
de um engenheiro já formado e mais velho que lhe pediu certa vez para
frequentar seu curso na UNLP. O professor Dalmaroni explicou-lhe que
qualquer pessoa podia participar de seus cursos. Sendo assim, permitiu a
entrada do engenheiro que no decorrer do semestre lhe ofereceu um
envelope, contendo panfletos universitários produzidos em sua época de
estudante. O aluno engenheiro disse que lhe doava aqueles documentos
culturais na certeza de que o professor Dalmaroni saberia qual historiador
430 iria se interessar, valorizar e aproveitar aquele material. Desse intercâmbio
cultural, conta-nos Dalmaroni, surgiu uma incrível amizade entre eles, que
teve seus fundamentos no conteúdo e no gesto da doação para pesquisa de
documentos de cultura.
No que diz respeito às especificidades das relações entre Pesquisa,
subjetividade e universidade, Dalmaroni propunha em La investigación
literaria. Problemas iniciales de una práctica (2009) que mesmo que a
moral, a ética, a impostura ou a superstição tenham suas contraposições
garantidas na vida íntima da pesquisa,
3
Miguel Dalmaroni é professor Titular de metodologia da pesquisa literária e de Literatura
argentina na Universidad Nacional de La Plata. É pesquisador independente do CONICET.
Foi professor visitante em várias universidades. Também desempenha papel de avaliador
em comissões assessoras em diversos órgãos de fomento nacionais e internacionais. É autor
de dois capítulos da História de la Crítica de la Literatura Argentina, dirigida por Noé
Jitrik. Entre suas publicações destacam-se: La palabra justa. Literatura, crítica e memoria
en la Argentina (2004); Una república de las letras (2006); La investigación literaria:
Problemas iniciales de una práctica(2009); Patria y muerte. Escritos sobre literatura
argentina y política (2020).

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la “investigación”, “la investigación científica” o


“académica” es una actividad y una profesión social
definida por una serie de valores y creencias que hacen a
la vez de criterios de evaluación de las prácticas de los
investigadores, y de norma al menos formal de
convivencia profesional. Esos valores y creencias
coinciden grosso modo con algunos de los principales
valores y creencias de la ideología democrático-liberal o
con la concepción secular y moderna de la comunicación
libre y por lo tanto legítima, y pueden resumirse en tres
nociones estrechamente conectadas: comunidad,
publicidad y comunicabilidad universal. Esto es, en la
civilización que adoptó los valores y creencias que hasta
hace algunas décadas llamábamos “occidentales” o, si se
quiere, en el mundo global, la investigación científica
pretende representar un tipo de conocimiento cuyos
procesos de construcción deben estar consensuados o
controlados por la comunidad (en principio la comunidad
científica de la disciplina y en última instancia la
comunidad en general), cuyos resultados deben ser
públicos (es decir, en principio accesibles a cualquier
ciudadano del conocimiento), y sus modos de
transmisión (su semiótica) comunicables (esto es,
hablado en un código convenido y enseñable y, por lo
tanto, también accesible a todos los que hablen el
código). (DALMARONI, 2009, p. 14)
431
Depois de ler a reflexão de meu colega da UNLP – que é um
especialista em ensino e pesquisa na área de Letras – sobre a pandemia e seu
temor pela provável extinção da intimidade acadêmica em consequência da
instauração do regime excepcional de aulas pela internet, comecei a pensar
sobre o sentido da amizade no meio acadêmico. Me perguntei, se no
processo de construção da amizade estaria incluída a intimidade? E, se a
resposta fosse afirmativa para a presença da intimidade no relacionamento
acadêmico, que tipo de subjetividade estaria envolvida na construção desse
lugar compartilhado do íntimo? De que tipo de intimidade estamos falando
quando a questão envolve alguém compartilhar comigo um material
cultural? Trata-se da intimidade do doméstico ou uma experiência com
aquilo que é público?
O comentário e a glosa – que são gêneros acadêmicos – de um
material cultural dizem respeito ao mundo exterior e, portanto, não estão
situados na ambiência do íntimo e do doméstico. Contudo, estão
relacionados a uma ideia de experiência que produz sabedoria que pode ser

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compartilhada no público. Quando se dedicou a refletir sobre o estatuo


ontológico e político da amizade, Giorgio Agamben ofereceu ao leitor um
depoimento de sua tentativa de manter um relacionamento de amizade
filosófica com Jean-Luc Nancy por intermédio da troca de cartas. Tais
cartas dariam o testemunho do que ele chamaria de “instância desse com-
sentimento da existência do amigo no sentimento da existência própria”
(AGAMBEN, 2008, p. 88-89). Para justificar a proposta de enviar cartas
sem propriamente haver algum pacto de intimidade entre os que estão sob o
amparo da amizade, Agamben recorre a Ética a Nicômaco de Aristóteles
para observar certas equivalências entre sua iniciativa e a do filósofo grego.
A partir dos fragmentos 1170a 28 até 1171b 35, Agamben elabora uma
correlação sensitiva entre ser e viver, mais especificamente entre um sentir-
se existir e um sentir-se viver. Segundo suas conclusões, a amizade se
sustentaria no próprio fato da existência, ela seria o resultado de uma
partilha sem objeto e envolveria uma política. A amizade não estaria
atrelada a uma troca entre subjetividades – muito menos entre sujeitos em
presença –, não é uma relação entre sujeitos prontos a contratar entre si e,
432 por meio disso, fundar uma identidade e uma sociedade a partir dessa
relação. A amizade seria uma força de “des-subjetivação no coração mesmo
da sensação mais íntima de si” (AGAMBEN, 2008, p. 90).
A partir dessa proposição me perguntava qual a natureza da amizade
que se constrói quando é fundada nessa relação? Agamben responde que ela
é, antes que nada, de natureza política. “A amizade é a condivisão que
precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de
existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir
originário que constitui a política” (Idem, p.92).
Em minha vida de orientadora de teses acadêmicas muito
frequentemente presenciei colegas e alunos que jamais citavam seus
próprios colegas de curso, quem dirá os colegas de instituições vizinhas.
Diante desse desconhecimento que nega a existência do amigo tão frequente
nas ações da vida acadêmica brasileira, me perguntei se era realmente
autêntico o nosso medo de hoje em perder a intimidade com o isolamento
social, em decorrência da pandemia do novo vírus. Não teria sido essa
imposição do isolamento algo que apenas foi acrescentado ao nosso modo

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de operar já extremamente deturpado no que diz respeito às formas da


amizade na vida acadêmica universitária? Foi realmente o isolamento social
que nos impediu seguir estabelecendo as amizades ou ele apenas atuou
como o golpe final em algo que já estava assolado?
As perguntas se avolumavam enquanto escrevia:
Qual o sentido, a partir dessa constatação, do lamento pela perda da
intimidade em tempos de pandemia?
Existe algo como um contraponto para essa perda? O que vai sobrar?
Qual o lado avesso da intimidade?
Comecei a olhar para a palavra escrita neste texto: intimidade. Olhar
para ela e buscar mais sentidos para seu uso. Nessa busca me dei conta de
que há uma gama enorme de sinônimos para a palavra intimidade. No
entanto, me surpreendeu que, em razão do amplo espetro dos seus sentidos,
não haja um único antônimo para ela. No dicionário, não há o avesso da
intimidade, não há outro lado. Insisto na escrita. Quero seguir pensando na
relação entre os sujeitos a partir da ideia da “des-subjetivação no coração
mesmo da sensação mais íntima de si” (AGAMBEN, 2008, p. 90). A partir
433 da constatação da falta do significante para o antônimo da intimidade,
decido caminhar na direção de definir dois termos amigos da intimidade
para rodeá-la com uma abordagem de não existência. Elegi dois termos
para, a partir deles, abordar, bordejar, margear a intimidade, arriscando
alcançar sua falta ou a sua não existência. Elegi dois termos que penso bem
apropriados para a reflexão que elaboro neste momento. A intimidade como
“afeto” e como “conhecimento”. Com essas duas moedas falsas penso nela
agora a partir da troca com outro amigo.

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Cena número 3
Marcos Siscar4 e a Utopia morta pela Euforia na história do Futuro
Marcos Siscar se opôs ao antagonismo analítico entre a objetividade com a
qual a vanguarda concretista se constitui no contexto da poesia moderna
brasileira e a construção da intimidade pela poesia que não se alinhou aos
ditames daquela vanguarda. No ensaio “A cisma da poesia brasileira”5,
Siscar refuta a visão historiográfica da poesia brasileira que a compreende
no âmbito de uma corrida pela superação do atraso da cultura nacional.
Geralmente essas visões historicistas culminam – com elogios ou negações
– com o advento da Poesia Concreta na literatura brasileira e o cumprimento
ou não daquela meta de superação. Siscar elabora no referido ensaio uma
relação entre interioridade e exterioridade em relação ao trabalho com o
poema, associando ao tempo presente da poesia o sentimento de falta que a
tecnologia produz. A proposta era a de encontrar um ponto em que a busca
pela superação do atraso fosse compreendida não mais na oposição
dicotômica e sim um jogo de espelhamento de diferenças. Indicou com sua
análise que a realização da Técnica na arte e na cultura sobrevém em algo
434 que se situa na sua própria exterioridade. Afirma que a plenitude do uso da
Técnica – pelo menos no projeto teórico inicial – apenas se realiza no tempo
Futuro e que, no presente, o bom uso da Técnica sempre falta. E, nesse
sentido, a arte do presente é pobre de Técnica. Ela apenas pode ser
assimilada no jogo entre a afeição que provoca e na falta que testemunha.
No ensaio, Siscar entende o Concretismo a partir de uma experiência que
teoricamente se move pela Utopia do Futuro, que acaba frustrada sendo
regida mais fortemente pela Euforia do que pela realização da Utopia.
A partir desses argumentos, ela seria – em consonância com os dois
termos que elegi para abordar a intimidade – muito mais “afetiva” do que

4
Marcos Siscar é poeta e professor de Teoria Literária na Universidade Estadual de
Campinas. É pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico, CNPq. Foi professor visitante em várias universidades. Desempenha papel de
avaliador em comissões assessoras em diversos órgãos de fomento nacionais e
internacionais. Entre suas obras de crítica literária destacam-se: Poesia e crise. Ensaios
sobre a crise da poesia como topos da Modernidade (2010); Haroldo de Campos (2015);
De volta ao fim (2016). De poesia: Roubo do silêncio (2004); O interior via satélite (2010);
Manual de flutuação para amadores (2015); Isto não é um documentário (2020).
5
Publicado inicialmente no volume 919/20 da revista literária francesa Europe e,
posteriormente, no Brasil, nas revistas Sibila e Germina em 2005.

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efetiva. A Técnica – quando atua no tempo presente da poesia – atua


enquanto falta, e acaba se situando no âmbito das sensações, do afeto,
dependente da amizade e, nesse sentido, pobre em produção efetiva de
conhecimento. Desse modo, a intimidade, quando pensada como
interioridade psíquica do indivíduo, depende da Técnica, existindo como
desdobramento dela: uma quase Técnica de si. Contudo, ela é bem mais
pobre se pensada como uma Intimidade metaforizada no conhecimento do
mundo cultural e, portanto, exterior. Siscar analisa essa “situação” a partir
de um “impasse”.

Os acontecimentos que acionam esta cisma poética são certamente


heterogêneos e é importante não diminuir a importância nem dos fatos
políticos locais (como a anistia e o processo de redemocratização),
nem dos fatos políticos mundiais (como a queda do comunismo e, em
seguida, a ocidentalização das relações à qual se dá o nome de
“globalização”). Quer seja do ponto de vista político, quer seja da
perspectiva das novas coordenadas tecnológicas, uma outra situação
cultural apresenta-se como horizonte da poesia e da literatura em
geral, cujas consequências não são totalmente mensuráveis. No
entanto, como se sabe, as situações instáveis (historicamente,
poeticamente) são lugares onde a poesia costuma manifestar-se e
435 onde, de todo modo, melhor se manifesta o sentido da sua ligação com
o contemporâneo. Eu me limitarei, aqui, a retomar um dos dados que
está em jogo nesta abertura, mais próximo dos fatos poéticos e mais
próximo dos discursos que abordam a tradição poética brasileira. [...]
Igualmente, e de um modo também dramático, a saída desse esquema
impôs uma tarefa à nova poesia brasileira, a de encontrar uma voz
própria, tarefa ao mesmo tempo banal (na medida em que não se pode
esperar outra coisa de um poeta) e exorbitante (pois é a ela, e somente
a ela, que se pede). Em outros termos, tudo ocorre como se a poesia,
antes de mais nada, devesse explicar-se com o impasse da técnica para
poder começar a falar; como se, para poder existir, a poesia devesse
medir-se com a amplitude das questões que a precederam. É possível
encontrar em muitos poetas uma inquietação quanto a esse topos. A
inflexão que eles dão à questão relacionada à formalidade
(tecnológica, modernizante, poética) torna-se, consequentemente, um
dos traços a partir dos quais se poderia refletir sobre a passagem da
poesia em direção ao devir da sua voz. [...] A superação do impasse
sobre o sentido da modernização no Brasil não se dá sem o
reconhecimento de seus pressupostos poéticos e políticos. Embora não
seja razoável atribuir essa tarefa ao poeta ou à poesia, pode-se
conceber que a poesia seja capaz de atrair nossa atenção para esses
problemas e, ao nos ensinar um certo modo de ler o mundo, seja
também capaz de nos conduzir a uma reflexão sobre as categorias das
quais dispomos: “realidade”, “sujeito”, “origem”, “sentido”.
Frequentemente considerada como expressão ou formalização de
certas estruturas que constituem sua situação (social ou estética), a
poesia carrega também uma força de dramatização da dificuldade do

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presente que solicita a atribuição de sentido, mas não o estabelece, isto


é, não está exatamente adequada às estruturas das quais dispomos para
pensar o sentido do social ou do poético. (SISCAR, 2005, p. 45-55)

Tomada como fundamento para essa análise de Siscar, a


negatividade dialética de Theodor Adorno o permitiu concluir que a arte do
presente somente poderia ser pobre em Técnica e, sendo desse modo, é
precária, porque depende de certa Intimidade para ser aceita e compreendida
como busca por sua voz própria. Sua adesão é operada pela Euforia, e
produz afeição. Entretanto, para Siscar, especificamente no que se refere ao
Concretismo, o tempo presente precário é transformado em algo pleno, que
operou uma substituição da pobreza pelo acesso à tecnologia no agora
daquela poesia. Uma Euforia, no sentido que proponho aqui, em relação à
realização da operação da poesia, o que contrastaria com o projeto da Utopia
vanguardista de formação de público leitor. No lugar do leitor previsto no
ideário da vanguarda, a linguagem poética encontrou seu destinatário no
consumidor da cultura de massas, já que os concretistas transformaram a
linguagem mediante variadas tecnologias em algo estabilizado, passível de
436 controle com vistas a uma melhor comunicação com o leitor-espectador. O
uso da Técnica pela vanguarda do Concretismo veio acompanhado por um
otimismo do novo rico.

Cena número 4
Tamara Kamenszain6 e a presentificação da Pobreza na Revolução e no
Pessimismo
Em 2016, na direção inversa ao objetivismo7 na poesia argentina, Tamara
Kamenszain elabora uma leitura pessimista da Pobreza da Técnica na poesia

6
Tamara Kamenszain é poeta e ensina literatura em cursos e oficinas poéticas em
universidades da Argentina, México e Estados Unidos. Entre seus principais livros estão:
Tango Bar (1998), El Ghetto (2003), Solos y solas (2005), El eco de mi madre (2010), La
novela de la poesía (2012), El libro de los divanes (2015).
7
Edgardo Dobry faz uma reflexão crítico-histórica da poesia argentina da segunda metade
do século XX e percorre um espectro de escritas limitado pelos nomes de “objetivistas” em
oposição aos “neobarrosos”. Ao reconstituir a cena histórica propõe que os objetivistas se
organizaram como oposição aos neobarrocos ou “neobarrosos”, predominantemente
presentes na poesia da década de 1980. Os objetivistas, portanto, terão suas obras
publicadas a partir de 1990. Serão eles, entre outros, García Helder, Martín Prieto,
Alejandro Rubio, Fabián Casas e Martín Gambarotta. Edgardo Dobry estabelece alguns
pontos de relação com outros autores que não os neobarrosos, como os já canônicos
Leónidas Lamborghini, Juana Bignozzi e Joaquín Giannuzzi. Ainda, segundo Dobry, o que

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do presente. De acordo com as formulações da autora, a Técnica na poesia


contemporânea argentina, longe de produzir a tão almejada des-
subjetivação, mesclou subjetividades ao espaço geográfico. Essa
sobreposição entre sujeitos e espaço estaria relacionada aos problemas
sociais e econômicos e à falta de projetos para o Futuro no país, o que gerou
uma poesia do presente pobre em Técnica e rica em interioridade afetiva,
fenômeno nomeado por Kamenszain como “intimidad inofensiva”.
Literatura essa, segundo Kamenszain, feita com poucos recursos,
relacionando a poesia à pobreza material da sociedade argentina do começo
do século XXI. Diferentemente das vanguardas históricas, a intimidade é
exposta nessas escritas – feitas com o que se tem – sem a intenção de
provocar choque ou “escândalo”. Elas apenas querem dizer “aquí estoy”,
enunciando-se como um sujeito fraturado na sua relação com o espaço
degradado. Nelas, o conhecimento do mundo está pensado como
conhecimento de si – o mundo encontra-se bastante reduzido pelas
contingências materiais – o que conflui na acepção do conhecimento como
produto de um mundo subjetivo, porém, em processo de destruição. Tamara
437 Kamenszain recorre ao conceito de extimidade de Jacques Lacan para dar
conta dessa instância enunciativa que ela denomina de “post yo” ou “sujetos
de la reenunciación”.

El término extimidad, tal como lo concibe Lacan, representa a lo más


próximo [“en ti más que tú” (LACAN, 2010, p. 271)] que al mismo
tiempo hace su aparición en el exterior. Se trata de una formulación
paradojal que da cuenta del modo de ser del sujeto: lo más íntimo
habita afuera, como un cuerpo extraño, produciendo una “fractura
constitutiva de la intimidad” difícil de aceptar para el mismo sujeto ya
que se trata de “un real que habita en lo simbólico” (MILLER, 2012).
(Las heces y la voz serían, para Lacan, ejemplos paradigmáticos de
ese real éxtimo). Ahora bien, frente a la irrupción de las redes sociales,
se comenzó a utilizar el término extimidad para dar cuenta de la
novedad que significa exponer la propia intimidad en las vitrinas
globales de la Web. (KAMENSZAIN, 2016, p. 57-58)

caracterizaría o “neobarroso” ao qual se contrapõe o objetivismo seria sua


“latinoamericanidade”, sem a pecha da busca pela “identidade”, contudo, desconstruída por
uma concepção de linguagem como jogo e aberta, pensada por Mallarmé e seus herdeiros,
mas não sem uma “una festiva melancolía” “que encuentra en la palabra más materia o
espejismo que sentido, más juego que significado”. Os poetas neobarrosos estariam
orbitando em torno a personalidades como Eduardo Milán (Uruguay), Severo Sarduy
(Cuba), Néstor Perlongher (Argentina), José Kozer (Cuba). (Cf. DOBRY, 1999, pp. 45-57)

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Se os sujeitos não são capazes de se reconhecerem senão naquilo que


está fora de si, como se fosse uma espécie de repetição quantitativa do que
está no exterior, resta, portanto, ao sujeito o inventário, mas como há muito
pouco a quantificar por causa da pobreza, há que inventar, abrir o real à
invenção. Nesse momento é que se torna possível pensar a Revolução. Em
Una Intimidad Inofensiva. Los que escriben con lo que hay8, Tamara
defende sua hipótese que a poesia do presente é avessa
à Técnica não somente porque rejeita à formalização dialética, mas porque
as condições materiais são paupérrimas. Nesse cenário, a Técnica não
serviria à Revolução, como o pensamento de Walter Benjamin teria
elaborado, nem impediria a Revolução pela produção da experiência
reificada, como analisou Adorno. O que produz a Revolução, segundo a
análise de Tamara Kamenszain, é a falta da Técnica na sua presença mais
concreta. Os sujeitos parecem rejeitar qualquer sonho com as promessas de
felicidade oferecidos pela Técnica, como rejeitam igualmente toda
formalização, dessa maneira não há a sua postergação para o Futuro.
Estariam todos os sujeitos inseridos em um tipo de História do Presente.
438 Em 2020, estamos novamente diante de um velho debate na área das
Humanidades, e ele vem agora carregado de uma carga extra de Pessimismo
e uma rejeição ao pensamento do Futuro.

Cena número 5
Yuval Harari9 em busca pelo Sentido: a Inteligência Artificial e a
Subjetividade inoculadora
De modo semelhante ao que defendia Haroldo de Campos com a suspensão
da carga semântica do verso, com a finalidade de alcançar com essa
estratégia a realização plena da operação linguística, o historiador da
Universidade de Jerusalém Yuval Harari vem defendendo certa crença na

8
Dois capítulos desse livro de Kamenszain – “Testemunhar sem metáfora” e “Romances
parados, poemas que avançam” – foram traduzidos por Luciana di Leone e publicados pela
Zazie Edições sob o mesmo título do livro completo. Cf. Kamenszain (2019).
9
Yuval Noah Harari é doutor em história pela Universidade de Oxford, especializado em
história mundial e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém. O primeiro livro da
série Sapiens teve sua primeira edição em Israel, em 2011, e logo se tornou um best-seller
internacional, sendo publicado em quase quarenta países. Em 2012, ele recebeu o Prêmio
Polonsky por Criatividade e Originalidade nas Disciplinas Humanísticas. Em 2018,
publicou 21 Lições par ao século 21.

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estabilidade da comunicação mediada por uma linguagem balizada pela


Técnica. Dos teóricos-críticos discutidos neste ensaio, Harari é talvez aquele
que mais aposte em encontrar um sentido para a História. Seu procedimento
analítico procede de disciplinas científicas alheias ao campo historiográfico,
o que lhe permite associar novos materiais culturais a esta área do
conhecimento, no entanto, suas conclusões sofrem as limitações daquele que
não maneja as ferramentas analíticas dos historiadores mais atentos à
normatividade da área. Suas análises alcançam um grande número de
leitores ávidos por repostas, porque procuram atribuir sentido ao que,
aparentemente, não tem, saciando assim a sede de histórias coerentes que se
adequam ao senso comum. A série Sapiens levanta questões complexas
sobre o significado da evolução e da experiência humana e tenta lhe
fornecer uma explicação plausível.
Em seu livro de 2018, 21 lições para o século 21, propõe que no
pensamento sobre a subjetividade humana – individual por definição – seja
incluída uma discussão com questões humanistas da Inteligência Artificial.
Segundo ele, a associação dos seres humanos às máquinas inteligentes pode
439 melhorar a relação do sujeito consigo mesmo e com outros sujeitos, da
mesma maneira otimizaria a tarefa de proteção à vida no planeta. A
Inteligência Artificial é capaz de executar certas tarefas antes impensáveis
como as relacionadas ao convívio social, à medicina, ao ensino e à arte. Para
ele os humanos têm graves defeitos, entre os quais está o de não serem
colaborativos, além de terem a imensa dificuldade em se atualizarem. A
Inteligência Artificial, por princípio, é colaborativa, trabalha em rede e se
atualiza constantemente. Por essas razões, ele advoga que deveríamos
aceitar a estabilidade que a tecnologia nos poderia oportunizar. O cerne da
discussão já não se encontra limitado à ciência da informação como em
tempos da Poesia Concreta. Os pressupostos empenhados por ele estão
atravessados pelo pensamento de Walter Benjamin, quando pensou a
existência das duas Técnicas, sendo a comunicação uma delas, e pelo
pensamento de Giorgio Agamben sobre as formas de vida, o que conduz a
discussão da Técnica associada a outras ciências que não apenas à
informação, e a mais importante delas é a biotecnologia. Entusiasta da
enorme capacidade de eliminar equívocos que essas máquinas de IA podem

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ter, Harari lamenta que o custo desse processo de desambiguação da


subjetividade seja o da perda da individualidade tal como ela foi formulada
pela filosofia Iluminista. Para ele, haveria que se reinventar o processo de
formação da subjetividade moderna. E isso será condicionado por uma
importante necessidade, a do tipo de trabalho disponível nas metrópoles
urbanas do planeta. Assumindo a tese marxista propõe que o trabalho é
produtor e reprodutor de formas da subjetividade. Quem quiser trabalhar no
Futuro próximo terá que aprender a ser colaborativo e sua individualidade
deverá ser gestada a partir de uma coletividade pensada não somente a partir
de seus pares humanos, mas também com as máquinas. Haverá a permissão
para que as máquinas façam o que sabem fazer melhor que os seres
humanos. A subjetividade deverá ser formada a partir do desenvolvimento e
aprendizagem da capacidade de decidir e ao mesmo tempo sendo flexível
diante de toda informação disponível no mundo.
A questão que novamente se coloca para o humano e sua
Humanidade é a da comunicação e do trabalho criativo. Haverá a pretensão,
inúmeras vezes tentada por diferentes projetos de modernização, de
440 estabelecer uma relação intersubjetiva fundada ainda na representação e no
esclarecimento? Vale lembrar que tanto a representação quanto o
esclarecimento pressupõem uma presença, uma origem, ou seja, algo pelo
qual se faz a guerra. Walter Benjamin pensou a comunicação da memória
para as novas gerações atuando na composição do fragmento, materializada
mediante uma linguagem justaposta à memória do mundo e ao inconsciente,
o que explica de modo muito pedagógico sua crítica ao “cogito” e ao
raciocínio reto. A articulação entre memória do mundo e linguagem produz
um modo de expressão que se coloca em marcha como contínua
recomposição sem matriz originária, sem destino de reapropriação e muito
menos de guerra. A Técnica replicará somente os desejos perseguidos por
um sujeito que ousar enfrentar-se com a Técnica.

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novo campo de ação lúdico (spielraum) em Benjamin e Flusser”. Artefilosofia,
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Resumo: A motivação para essa reflexão nasce do impasse produzido pelo


distanciamento social imposto a toda sociedade urbana do planeta em razão de uma
pandemia descontrolada. O ensaio convoca um pensamento coletivo na busca de
alternativas diante do sequestro abrupto de nossas práticas cotidianas de ensino na
universidade, o qual fomos forçados a submeter-nos com muitos dos métodos e
instrumentos rechaçados por nós mesmos até então. Além disso, os motivos pelos
quais os rejeitávamos passam pela justificativa de que esses meios nos levavam
para longe de nossos objetos e objetivos.
Palavras chave: intimidade, pensamento, pandemia, educação pública

Abstract: The motivation for this reflection arises from the impasse produced by
the social distance imposed on all urban society on the planet due to an
uncontrolled pandemic. The essay calls for collective thinking in the search for
alternatives in the face of the abrupt hijacking of our daily teaching practices at the
university, which we were forced to submit to with many of the methods and
instruments that we had rejected until then. Moreover, the reasons why we rejected
them go through the justification that these means took us away from our objects
and objectives.
Keywords: intimacy, thought, pandemic, public education

Recebido em: 19/08/2020


Aceito em: 06/12/2020

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