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9 N°2 (2021)
Sobre a perda da
intimidade
Susana Scramim1
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Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq.
submetemos nesse momento foram rechaçados por nós mesmos até agora. E
os motivos pelos quais os rejeitávamos passam pela justificativa de que
esses meios nos levavam para longe de nossos objetos e objetivos que eram
e são a criação de ambientes de convívio e de intimidade com a pesquisa e
com os sujeitos pesquisadores.
Cena número 1
Walter Benjamin e o Humanismo
Já vivíamos o impasse na relação entre Técnica e Subjetividade nos debates
em torno da sobrevivência do Humanismo na cultura do Ocidente antes da
pandemia ser instaurada em março de 2020. Essa crise sanitária apenas
transformou um debate com consequências elegíveis em uma questão de
emergencial e impositiva. Todos fomos compelidos a enfrentar esse desafio.
Restou-nos enfrentar imediatamente o impasse de pensar modos de
convivência com a Técnica para mediar nossas relações interpessoais no
Humanismo e na Arte. A questão que me inquieta e aflige é a de como
produzir experiência com a intimidade em tempos em que a mediação com a
424 Técnica é impositiva?
Walter Benjamin detectou em suas análises que os “fascismos”
fizeram uso da Técnica em seu aspecto mais primário: como lugar de
captura da subjetividade que era transformada em individualismo narcisista.
Entretanto, para o filósofo alemão a Técnica poderia ser também uma
ferramenta para produzir outros modos de subjetividades, mais próximos
daquilo que a cultura medieval chamou de “vida interior”. A Técnica
poderia ser pensada como lugar de jogo entre modos de vida
descentralizados, de intercâmbio, de pluralidades mediadas, aquilo que foi
definido por ele como Spielraum e que produz uma experiência com a
imagem, Bildraum2. Sobre a Técnica pensada como mediadora de
pluralidades subjetivas, Benjamin ainda afirmaria que o cinema seria capaz
de levar a cabo uma transformação dos sujeitos autocentrados desde que não
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Segundo Márcio Seligmann-Silva, esse modo de lidar com o impasse pode ser
considerado o “embrião de uma técnica do artista que consiste em extrair da ação um novo
e poderoso espaço de imagem, Bildraum, correspondente a um mundo ‘em sua atualidade
completa e multifacetada’ que leva a uma destruição da imagem do indivíduo denominada
‘destruição dialética’” (Cf. SELIGMANN-SILVA, 2019, p. 52-85).
Cena número 2
Miguel Dalmaroni3: a Amizade, a Intimidade e a Pesquisa
Li algumas das mensagens que o colega Miguel Dalmaroni da Universidad
Nacional de La Plata na Argentina enviou aos seus amigos quando as
circunstâncias da propagação do coronavirus no seu país fizeram a
universidade migrar para o modo de atividades à distância.
Em 28 de maio de 2020, ele lamentava em sua mensagem, cujo título
era “Intimidades en Extinción”, que a atividade de ensino mediada pela
internet fazia desaparecer a possibilidade do acaso no despertar de novas
amizades plausíveis em cada período letivo. Citava como exemplo a história
de um engenheiro já formado e mais velho que lhe pediu certa vez para
frequentar seu curso na UNLP. O professor Dalmaroni explicou-lhe que
qualquer pessoa podia participar de seus cursos. Sendo assim, permitiu a
entrada do engenheiro que no decorrer do semestre lhe ofereceu um
envelope, contendo panfletos universitários produzidos em sua época de
estudante. O aluno engenheiro disse que lhe doava aqueles documentos
culturais na certeza de que o professor Dalmaroni saberia qual historiador
430 iria se interessar, valorizar e aproveitar aquele material. Desse intercâmbio
cultural, conta-nos Dalmaroni, surgiu uma incrível amizade entre eles, que
teve seus fundamentos no conteúdo e no gesto da doação para pesquisa de
documentos de cultura.
No que diz respeito às especificidades das relações entre Pesquisa,
subjetividade e universidade, Dalmaroni propunha em La investigación
literaria. Problemas iniciales de una práctica (2009) que mesmo que a
moral, a ética, a impostura ou a superstição tenham suas contraposições
garantidas na vida íntima da pesquisa,
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Miguel Dalmaroni é professor Titular de metodologia da pesquisa literária e de Literatura
argentina na Universidad Nacional de La Plata. É pesquisador independente do CONICET.
Foi professor visitante em várias universidades. Também desempenha papel de avaliador
em comissões assessoras em diversos órgãos de fomento nacionais e internacionais. É autor
de dois capítulos da História de la Crítica de la Literatura Argentina, dirigida por Noé
Jitrik. Entre suas publicações destacam-se: La palabra justa. Literatura, crítica e memoria
en la Argentina (2004); Una república de las letras (2006); La investigación literaria:
Problemas iniciales de una práctica(2009); Patria y muerte. Escritos sobre literatura
argentina y política (2020).
Cena número 3
Marcos Siscar4 e a Utopia morta pela Euforia na história do Futuro
Marcos Siscar se opôs ao antagonismo analítico entre a objetividade com a
qual a vanguarda concretista se constitui no contexto da poesia moderna
brasileira e a construção da intimidade pela poesia que não se alinhou aos
ditames daquela vanguarda. No ensaio “A cisma da poesia brasileira”5,
Siscar refuta a visão historiográfica da poesia brasileira que a compreende
no âmbito de uma corrida pela superação do atraso da cultura nacional.
Geralmente essas visões historicistas culminam – com elogios ou negações
– com o advento da Poesia Concreta na literatura brasileira e o cumprimento
ou não daquela meta de superação. Siscar elabora no referido ensaio uma
relação entre interioridade e exterioridade em relação ao trabalho com o
poema, associando ao tempo presente da poesia o sentimento de falta que a
tecnologia produz. A proposta era a de encontrar um ponto em que a busca
pela superação do atraso fosse compreendida não mais na oposição
dicotômica e sim um jogo de espelhamento de diferenças. Indicou com sua
análise que a realização da Técnica na arte e na cultura sobrevém em algo
434 que se situa na sua própria exterioridade. Afirma que a plenitude do uso da
Técnica – pelo menos no projeto teórico inicial – apenas se realiza no tempo
Futuro e que, no presente, o bom uso da Técnica sempre falta. E, nesse
sentido, a arte do presente é pobre de Técnica. Ela apenas pode ser
assimilada no jogo entre a afeição que provoca e na falta que testemunha.
No ensaio, Siscar entende o Concretismo a partir de uma experiência que
teoricamente se move pela Utopia do Futuro, que acaba frustrada sendo
regida mais fortemente pela Euforia do que pela realização da Utopia.
A partir desses argumentos, ela seria – em consonância com os dois
termos que elegi para abordar a intimidade – muito mais “afetiva” do que
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Marcos Siscar é poeta e professor de Teoria Literária na Universidade Estadual de
Campinas. É pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico, CNPq. Foi professor visitante em várias universidades. Desempenha papel de
avaliador em comissões assessoras em diversos órgãos de fomento nacionais e
internacionais. Entre suas obras de crítica literária destacam-se: Poesia e crise. Ensaios
sobre a crise da poesia como topos da Modernidade (2010); Haroldo de Campos (2015);
De volta ao fim (2016). De poesia: Roubo do silêncio (2004); O interior via satélite (2010);
Manual de flutuação para amadores (2015); Isto não é um documentário (2020).
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Publicado inicialmente no volume 919/20 da revista literária francesa Europe e,
posteriormente, no Brasil, nas revistas Sibila e Germina em 2005.
Cena número 4
Tamara Kamenszain6 e a presentificação da Pobreza na Revolução e no
Pessimismo
Em 2016, na direção inversa ao objetivismo7 na poesia argentina, Tamara
Kamenszain elabora uma leitura pessimista da Pobreza da Técnica na poesia
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Tamara Kamenszain é poeta e ensina literatura em cursos e oficinas poéticas em
universidades da Argentina, México e Estados Unidos. Entre seus principais livros estão:
Tango Bar (1998), El Ghetto (2003), Solos y solas (2005), El eco de mi madre (2010), La
novela de la poesía (2012), El libro de los divanes (2015).
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Edgardo Dobry faz uma reflexão crítico-histórica da poesia argentina da segunda metade
do século XX e percorre um espectro de escritas limitado pelos nomes de “objetivistas” em
oposição aos “neobarrosos”. Ao reconstituir a cena histórica propõe que os objetivistas se
organizaram como oposição aos neobarrocos ou “neobarrosos”, predominantemente
presentes na poesia da década de 1980. Os objetivistas, portanto, terão suas obras
publicadas a partir de 1990. Serão eles, entre outros, García Helder, Martín Prieto,
Alejandro Rubio, Fabián Casas e Martín Gambarotta. Edgardo Dobry estabelece alguns
pontos de relação com outros autores que não os neobarrosos, como os já canônicos
Leónidas Lamborghini, Juana Bignozzi e Joaquín Giannuzzi. Ainda, segundo Dobry, o que
Cena número 5
Yuval Harari9 em busca pelo Sentido: a Inteligência Artificial e a
Subjetividade inoculadora
De modo semelhante ao que defendia Haroldo de Campos com a suspensão
da carga semântica do verso, com a finalidade de alcançar com essa
estratégia a realização plena da operação linguística, o historiador da
Universidade de Jerusalém Yuval Harari vem defendendo certa crença na
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Dois capítulos desse livro de Kamenszain – “Testemunhar sem metáfora” e “Romances
parados, poemas que avançam” – foram traduzidos por Luciana di Leone e publicados pela
Zazie Edições sob o mesmo título do livro completo. Cf. Kamenszain (2019).
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Yuval Noah Harari é doutor em história pela Universidade de Oxford, especializado em
história mundial e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém. O primeiro livro da
série Sapiens teve sua primeira edição em Israel, em 2011, e logo se tornou um best-seller
internacional, sendo publicado em quase quarenta países. Em 2012, ele recebeu o Prêmio
Polonsky por Criatividade e Originalidade nas Disciplinas Humanísticas. Em 2018,
publicou 21 Lições par ao século 21.
REFERÊNCIAS
______. Origem do drama barroco alemão. Tradução Sergio Rouanet. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1984.
KAMENSZAIN, Tamara. Una Intimidad Inofensiva. Los que escriben con lo que
hay. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2016.
HARARI, Yuval. 21 lições para o século 21. Tradução Paulo Geiger. São Paulo
Companhia das Letras, 2018.
Abstract: The motivation for this reflection arises from the impasse produced by
the social distance imposed on all urban society on the planet due to an
uncontrolled pandemic. The essay calls for collective thinking in the search for
alternatives in the face of the abrupt hijacking of our daily teaching practices at the
university, which we were forced to submit to with many of the methods and
instruments that we had rejected until then. Moreover, the reasons why we rejected
them go through the justification that these means took us away from our objects
and objectives.
Keywords: intimacy, thought, pandemic, public education
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