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FENOMENOLOGIA

DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL
Fundamentos para uma
Arquitetura do Lugar

CANDIDO CAMPOS
FENOMENOLOGIA
DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL
Fundamentos para uma
Arquitetura do Lugar
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Reitor
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Vice-Reitor
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Marco Moriconi
Marco Otávio Bezerra
Ronaldo Gismondi
Silvia Patuzzi
Vágner Camilo Alves
FENOMENOLOGIA
DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL
Fundamentos para uma
Arquitetura do Lugar

CANDIDO CAMPOS
© 2021 EDUFF

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Capa: Glaucio Coelho | MC&G Editorial

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

Campos, Luis Candido Gomes de.


C198 Fenomenologia do patrimônio ambiental : fundamentos para
uma arquitetura do lugar [recursos eletrônicos] / Luis Candido
Gomes de Campos. — Niterói : Eduff, 2021 — 4,0 kb ; e-PUB.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5831-134-8
BISAC ARC014000 ARCHITECTURE / Historic Preservation /
General

1. Arquitetura e Urbanismo. 2. Fenomenologia. 3. Patrimônio


histórico. I. Título.
CDU: 720 . 1

Elaborado por Márcia Cristina dos Santos CRB7-4700

Direitos desta edição cedidos à


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CEP 24220-008 - Brasil
Tel.: +55 21 2629-5287
www.eduff.uff.br - faleconosco.eduff@id.uff.br
Para a Dona Clarita
PREFÁCIO

Este livro é uma contribuição importante para se pensar o


Patrimônio Arquitetônico e Urbanístico para além das fronteiras
dos métodos de restauro e das epistemologias subjacentes que
instauram a restauração como disciplina. Neste sentido não tem
um caráter historiográfico, de ensaiar uma teoria do patrimô-
nio partindo de sua historicidade e/ou de sua monumentalidade.
Desenvolve-se ao longo do texto o questionamento do patrimô-
nio como um documento, um vestígio, uma rugosidade, que fustigado
pelo tempo e pelas sucessivas gerações representa um (in)determi-
nado período da história que lhe garante uma sobrevida não como
uma construção, um artefato, humano a ser habitado a partir
das memórias e das tradições, mas como patrimônio histórico, se
referindo, como propõe Choay, “a uma instituição e a uma mentali-
dade [...] que revela a opacidade da coisa” (CHOAY, 2006, p. 11).
No contrafluxo desta linearidade cartesiana e estruturalista que
reduz o artefato aos aspectos materiais e técnicos determinados por
uma versão da História, Cândido Campos opta por desvelar a opacidade
da coisa a partir do relacional, do intersubjetivo, do dialógico, que
procura elaborar uma teoria do patrimônio como ambiente, que a
partir da Fenomenologia, se remete ao lugar, como habitar do ser
originário, que se dobra ao espaço geográfico que em sua geografici-
dade se impõe sobre a nossa existência e o nosso destino (DARDEL,
2011, p. 1-2), mas que se protege e cuida impondo limites, ou melhor,
concretiza e torna visível nosso Dasein, nos situando cotidianamente
em um lugar (NORBERG-SCHULZ, 1979, p. 10).
Na introdução o autor propõe a questionar e a constituir uma
teoria a partir do fazer cotidiano do arquiteto e urbanista, particu-
larmente, mas não só, em sua atribuição e tarefa de restaura-
dor. Ao propor esse percurso a partir da fenomenologia, em um
diálogo, principalmente, com Heidegger, Cândido Campos não
se refere apenas à epistemologia no campo da preservação do
patrimônio, ou de modo mais amplo da arquitetura e do urbanismo,
mas a uma ontologia que tem como meta desvelar a essência da
Prefácio

técnica moderna, como o fez Heidegger, e que o autor elege como


primeiro fundamento da crítica à historicidade. Esta “tese”, que é
intuída pelo livro ainda imaginado, se desvela a partir do exercício
acadêmico de pensar, e repensar, o seu fazer cotidiano na arquite-
tura e, em diálogo com uma multiplicidade de autores de referên-
cia, propor a elaboração de uma teoria, que considero original, do
patrimônio essencialmente como fenômeno ambiental.
O caminho proposto por Cândido Campos para que o leitor o
acompanhe em Fenomenologia do patrimônio ambiental: fundamen-
tos para uma arquitetura do lugar, não é linear e muito menos
isotrópico, é um roteiro orientado pelos questionamentos a partir
da prática profissional e que se deixa levar por sendas que enfren-
tam as asperezas e as mudanças do terreno, no dizer do autor,
caminhar-na-chãosidade. A estruturação em quatro capítulos
subdivididos em oitenta e oito itens apresenta uma cartografia
inicial dos platôs a serem percorridos, que abordam resumida-
mente: 1. Os fundamentos de uma arquitetura que intenta ser para
o lugar; 2. A concretude da arquitetura como fenômeno que abarca
a materialidade do que é projetado no momento da construção
e, também, como diria Norberg-Schulz (1979, p. 6) do fenômeno
intangível que é dado pelo conteúdo de nossa existência; 3. Um
ensaio sobre a questão da teoria na arquitetura e urbanismo, com
uma ênfase nas diversas definições do patrimônio arquitetônico;
4. A questão do projeto arquitetônico e urbano a partir de morfolo-
gias e tipos como “existenciais primordiais”.
Ao procurar os fundamentos da constituição de uma arquite-
tura para o lugar, o autor refuta a historicidade do patrimônio
arquitetônico e procura a verdade da arquitetura, enquanto desvela-
mento do sentido, com base na Fenomenologia em seu esforço
para recolocar a ciência voltada para o mundo da vida (Lebens-
welt), pautada na intropatia (Einfülling). Nesta busca, uma fenome-
nologia da arquitetura é retomada a partir de Norberg-Schulz e
deste para Heidegger.
Esta arquitetura parte de um habitar originário que organiza
o tempo e o espaço a partir da materialidade da matéria originária
de toda a construção: o solo, o chão. Aqui o autor, em um paralelo
com Bachelard que propõe uma poética a partir dos elementais,

FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Prefácio

devaneia sobre a forma que conforma a paisagem, que se transmuta


no entorno do entorno, em nosso ser-no-ambiente e que, no limite
entre o fazer humano e a ação da natureza, subverte o desígnio
do projeto arquitetônico e a sua materialização na concretude da
construção em uma ruína, a pátina do tempo e a ação dos elemen-
tos promovendo “a retomada da arquitetura pela natureza”.
O fenômeno da arquitetura se dá no habitar, seja imanente
ou transcendente, que é protegido e cuidado a partir delimita-
ção do vasto espaço na concretude de uma construção, edificada
a partir dos materiais essenciais – o solo, a pedra, a madeira,
os metais, manipulados, aglutinados para tornar a arquitetura
em lugar. Lugar que é determinado a partir de nossa capacidade
de caminhar, de nosso caminhar-na-chãosidade, que engendra
as distâncias e as direções e que moldam o habitar a partir das
escalas determinadas por nossa corporeidade, que a partir destas
estâncias e circunstâncias (HEIDEGGER, 2012, p. 133) delimita o
espaço geográfico, tornado assentamento.
A teoria subjacente a esta fenomenologia da arquitetura se
apresenta como uma disposição, como uma abertura, definida pelo
autor, a partir de Brandi, “como a vontade originária de “re-esta-
belecer” potencialidades”. A teoria, que se oferece no livro como
ontologia, é delimitada e delineada a partir de três referências: a
tipologia, a morfologia e a teoria do restauro. Esta última referên-
cia é apresentada em diálogo com diversos autores a partir de uma
interlocução intermediada por Choay em A Alegoria do Patrimô-
nio. Brandi, a partir de seu aporte fenomenológico na discussão do
restauro, é um interlocutor privilegiado, e a partir de sua obra e da
ideia de reintegração. A partir deste Cândido Campos questiona
os outros “res” (restauração, reconstrução, reforma, revitaliza-
ção, retrofit), que separam o patrimônio material do patrimônio
imaterial e que, a partir das “cartas patrimoniais”, paulatinamente
passa a compreender o patrimônio arquitetônico e urbanístico como
patrimônio cultural.
O questionamento final versa sobre o “ser do projeto”: o que
é, em essência, projetar?
O autor sugere que o fundamento da arquitetura é o “demorar-se
no desenho”, no desígnio que em sua origem comporta “a observação

FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Prefácio

do visível, a criação do possível e a comunicação do compreensível”.


Mas não basta demorar-se no desenho, “Projetar no modo fenome-
nológico é reconhecer que sempre tudo se dá na presença, através da
direção e da distância, no mover-se e no demorar, com desdobra-
mentos nos referenciais. Significa estabelecer a compreensão daquilo
que se vê na forma, e daquilo outro que se sente de modo subjacente,
embora sempre primordial, no uso”. A partir deste princípio o autor
propõe um caminho metodológico que se desenvolve a partir de
tipologias e morfologias como “existenciais primordiais”.
Segundo Heidegger a essência da técnica moderna nos leva
ao caminho do desabrigo, onde todos os lugares estão fadados a
atender apenas nossa subsistência, neste sentido o desabrigo como
destino que se constitui na essência de toda a história. “Somente o
destino na representação objetificante torna acessível o elemento
histórico como objeto para a historiografia, isto é, para uma ciência,
e a partir disso torna apenas possível a corrente equiparação do
histórico ao historiográfico” (HEIDEGGER, 2007, p. 375-398).
A questão da técnica, ainda segundo Heidegger, é de que o
modo de representar da historiografia põe a natureza como um
complexo de forças passíveis de cálculo e a física põe a natureza
como um complexo de forças, transmitindo a falsa ideia de que a
técnica moderna é uma ciência aplicada da natureza (HEIDEGGER,
2007, p. 386-387). Neste sentido, caminha a argumentação colocada
neste livro: a de que a arquitetura e o restauro, ao pensar o seu
fazer como técnica objetiva, afastam a ciência do mundo da vida e o
patrimônio de sua essência que é ser ambiente. Aqui, há um apelo
à questão prática, à experiência vivida, à recuperação da imagina-
ção criadora (BACHELARD, A poética do espaço, 1993), que desvela
o patrimônio para além da opacidade da coisa, onde a arquitetura e
o urbanismo para além do restauro, emerge como uma das possibi-
lidades de salvação da Terra, no momento em que desabrigar o
poético a remete para a sua essência enquanto técnica: a da arte de
projetar e de construir poeticamente, ou como conclui o autor: do
ato projetual como “mergulho no mundo”, pessoal e intransferível.

Werther Holzer
Nova Friburgo, fevereiro de 2021.

FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


SUMÁRIO

PREFÁCIO 8

INTRODUÇÃO 16

FUNDAMENTOS 20
O que é a verdade? 20
Essência e Fundamento 24
Fenomenologia na Arquitetura 29
Heidegger 30
O Habitar Originário 35
O Tempo e o Ser 37
O Espaço 40
A Materialidade 43
A Matéria original – Terra, solo e chão 46
A Forma 50
Forma e Paisagem 54
O Ser originário da paisagem 55
Outro Olhar 56
“Princípio e Causa de Movimento e Repouso” 57
Mundifi cação e Antropia 60
Patrimônio ou “Ambi-ente”? 61
A Potencialidade 64
Potencialidade e Possibilidade 66
No Limite do Ser Arquitetura a Ruína 66
A Ruína – Entre a Arquitetura e a Natureza 68

O FENÔMENO ARQUITETURA 70
O Habitar Imanente – “A Concha” 70
O Habitar Transcendente 72
Os Materiais Essenciais 73
O Solo 75
A Alquimia dos Aglomerantes 75
A Pedra 77
A Madeira 78
Os Metais 80
A Manualidade 82
Arqui-tetura, Espaço e Lugar 85
A Cabana Original 86
Os Desdobramentos do “Entre” 88
Ontologia (e ontogênese) da Espacialidade 91
Ontogênese do Caminhar (uma proposta) 92
O Modo Temporal – O Caminhar-na-chãosidade 98
O Modo Espacial – Direção e Distanciamento 101
Escalas Não Numéricas 102
A Escala da Mão 103
A Escala do Braço 103
Escala do Corpo 103
A Escala do Céu 104
O Lugar 104
O Logos, a Instância da Estância 106

A QUESTÃO DA TEORIA 110


Teoria e Tratadística 111
A questão da Técnica 112
Recorte Referencial 116
O Referencial da Restauração 117
Patrimônio e Poder 118
A Invenção do Patrimônio 119
A Restauração no Século da História 121
Ruskin e a Antítese 122
Haussmann 124
Camilo Sitte 124
Boito e Giovannoni 125
Brandi e a síntese do Histórico e Artístico 126
O desdobramento das Palavras 130
O Tombamento 134
A Barafunda dos “Rês” 136
Restauração 137
Reconstrução 137
Reforma 138
Revitalização 139
Retrofit 140
Patrimônio Material 140
Entorno 142
Patrimônio Imaterial 142
Patrimônio Natural ou Ambi-ente? 143
Da Coisa ao Tudo 146
A normativa das Cartas Patrimoniais 147
Expansão física 151
Expansão conceitual 151
Nos Limites da Expansão o “Lixo Monumento” 152
Patrimônio Pré-histórico 154
Patrimônio Etnológico e Referência Cultural 156
Patrimônio Histórico 157
Patrimônio Arquitetônico – A Ruína 157
Patrimônio Urbano 158
Patrimônio Artístico 158
Patrimônio Científico e Tecnológico 159
Patrimônio Natural 159
Ontologia do Lixo 161
“Ser ou Não Ser – Assumir o Reprimido” 164

A QUESTÃO DO PROJETO 166


A Questão do Ser 166
Projeto e Plano 173
Amplitude e humildade 174
Especialidade na profissão 174
O projeto e o fazer artesanal 175
A técnica moderna 177
Criação projetual 179
Copiar, derivar ou inventar 183
Heurística 184
Demorar-se no desenho 188
Mover-se e sentir, demorar-se e ver 190
O desafio do projeto 191
O “Neourbanismo”13 (um programa de necessidades) 193
Mergulho no mundo 195
Projeto no modo fenomenológico 198
Projeto e Lugar 198
A Busca de um caminho metodológico 200
Tipologia e Morfologia como existenciais primordiais 201
Existencial do tipo como fenômeno 202
Tipos fundamentais 204
Tipo como fenômeno vivido – um exemplo 209
Existencial da forma como hermenêutica 212
Totalidade e Integração 215
Unidade e Reintegração 216
O Ambi-Ente e Reversão 217
Encaminhamento metodológico para o Projeto Ambi-êntico 219
Princípio da Utilidade ou Serventia 221
Princípio da Vitalidade 222
Princípio da Totalidade 222
Princípio da Unidade 223
Síntese da Identidade 223
Operativo de Integração 224
Operativo de Reintegração 224
Operativo da Reversão 224

CONCLUSÃO 228

REFERÊNCIAS 230

SOBRE O AUTOR 234


1 INTRODUÇÃO

Este livro é extraído de uma tese de doutorado que o antecede.


Contudo, Heidegger nos ensina que as coisas nem sempre são
aquilo que parecem ser. Na verdade, contrariando a cronologia,
a tese é que nasce do livro. E ainda que aquela venha antes deste,
é neste que está à disposição original do questionamento. Aquele
tipo de questionamento que todos temos, de uma maneira ou de
outra, cotidianamente, enquanto estamos a caminho do trabalho
ou no intervalo do almoço ou, talvez principalmente, à noite, antes
de dormir; seja de maneira clara e consciente, ou mesmo como um
tipo de intuição passageira, num olhar distante momentâneo,
mas sempre com o gosto meio amargo da inconformidade e da
angústia em buscar sentido naquilo que fazemos.
Em geral, na lida engajada do trabalho diário, o questionamento
se encolhe, oculta-se por trás das manualidades e no comércio
das convivências, e então as coisas parecem funcionar mais ou
menos. Entretanto, quando se rompe o fazer regular, o mundo se
mostra por uma brecha, em geral despercebida ou evitada. Este
livro é justamente uma tentativa de olhar através dessa brecha
e questionar sentidos.
Assim pretende-se aqui buscar um questionamento teórico
que nasce essencialmente da prática, mas, paradoxalmente, da
ruptura dessa prática. A prática do arquiteto e urbanista (no caso
também restaurador) voltada ao mais essencial que está no fazer
como base para o pensar.
Em geral temos resistências a rupturas, pois elas tendem a
trazer algumas ideias, em princípio estranhas, e afastar outras, às
quais estamos apegados. Entretanto mudar, ou ao menos tentar
fazê-lo, é sempre bom. A ruptura pode inicialmente assustar, mas,
na verdade, expande as possibilidades no “mundo interior” que
compartilhamos, onde, querendo ou não, estamos lançados. Aqui
temos apenas duas opções: ou aceitamos as condições dadas e
então “ok, tudo bem”, ou seguimos buscando brechas, movidos pela
inconformidade e pelo questionamento. Essa é a nossa condição,

16 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Introdução

é desse modo que vêm e vão as ideias: como disposições pessoais


contrapostas a contextos históricos de permanências ou mudanças.
Portanto, as ideias aqui esboçadas nascem do contexto maior
da nossa busca atual, apresentada em geral com uma roupagem
ambientalista, mas que, em essência (conforme nos parece) surge
de uma disposição, de um impulso em retomar relações há muito
perdidas com o mundo e com a vida.
Assim ocorreu também no passado com a ideia de “patrimônio
histórico e artístico” que se reafirmou sob o signo da historiografia
na Europa do século XIX trazendo consigo, também, a dialética da
conservação e do restauro. Essas concepções, claramente eurocên-
tricas, estão contextualizadas na busca de identidade durante a
consolidação dos estados nacionais e voltaram-se, inicialmente,
para o monumento individual.
A seguir, no transcorrer do século XX, o conceito patrimo-
nial expandiu para o entorno, daí para o sítio, passando depois à
paisagem, chegando à própria ideia de natureza e, finalmente, envolvendo
também os usos e costumes como objeto de interesse da conserva-
ção oficial e institucional; tudo reunido sob a marca do “patrimô-
nio cultural”, este termo genérico, o qual, também, por sua vez,
expandiu-se para o “conjunto universo” do “Patrimônio Mundial,
Cultural e Natural da Humanidade!” Ou seja, todas as possibi-
lidades nas variedades material, imaterial e natural, conforme
indica a sequência temporal das cartas patrimoniais da Unesco.
Mas, apesar dessa ampla ramificação física e conceitual pela
qual passou o “objeto patrimonial”, a experiência mostra que, no
âmbito do projeto arquitetônico e urbanístico, tanto a normativa
quanto a teoria e a prática, especialmente esta última, permanece-
ram solidamente enraizadas no paradigma “histórico e artístico”,
conforme elaborado desde o “século da história”. Partimos da
premissa de que essa “expansão enraizada” traz consigo problemas
de fundamento, problemas revelados, por exemplo, na “bem-in-
tencionada”, porém ineficiente, instituição do tombamento.
Demanda-se, portanto, um questionamento de ordem
epistemológica e a decorrente necessidade de buscar caminhos
e métodos alternativos para o pensar e o projetar. Pensar não
apenas o projeto de restauro e conservação, pois seria insuficiente

17 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Introdução

falar da restauração quando o assunto na verdade se concentra


no projetar em geral. O recorte deve, portanto, se expandir para
tomar corpo e consistência.
Tomamos, então, como ponto de partida para nossa busca
por fundamentos, em primeiro lugar no reconhecimento de que,
embora o domínio da área do urbanismo e do patrimônio cultural
possam implicar na contribuição de diversas disciplinas, consti-
tuem-se, antes, como diz Françoise Choay (2001), num “apanágio”
do arquiteto urbanista, devido à necessária compreensão espacial
e pela decorrente disposição projetual que concernem à profissão.
Assim, assumindo nossas atribuições pretendemos, aqui, buscar
algumas ideias alternativas e contrapô-las à vigência da historio-
grafia na questão das preexistências urbanas, com a finalidade
de tentar afinar a compreensão dos objetos da vivência cotidiana
e da memória (materiais ou não) pelo diapasão da arquitetura,
e, muito especialmente pelo urbanismo, para discutir, enfim, a
questão fundante do projeto entendido aqui no campo expandido
do “modo de ser”.
Nossa epistemologia do projeto nasce do questionamento
do patrimônio “dito” histórico e artístico, não pela narrativa do
historiador, nem pela crítica do esteta, mas a partir daquilo que vem
antes. Para tanto traçamos um caminho que passa por questões
mais essenciais como o tempo, o espaço, o lugar e o ambiente,
através do aporte da fenomenologia Heideggeriana.
Heidegger nos ensina que somos seres históricos (não historio-
gráficos). Como tais estamos lançados no jogo das possibilidades
e escolhemos nosso caminho para constituir o mundo e nele nos
reconhecermos. Escolher ser arquiteto é escolher também não
ser outras coisas, significa traçar uma trilha particular no sentido
existencial. Entretanto, ao mesmo tempo, nosso caminhar se alinha
a outros caminhares e a trilha se alarga numa rede de referên-
cias. Dentro dessa rede, sempre no jogo das possibilidades e a
partir “daquilo que se faz habitualmente”, seguimos escolhendo
os fazeres e afastando os não fazeres; se opto, por exemplo, por
ser um teórico, volto minha disposição para tal, estudo as teorias,
escrevo, leciono e posso jamais entrar na poeira da obra; ou, por
outro lado, se decido fazer obras, mergulho na lida áspera do

18 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Introdução

fazer prático e me afasto das elucubrações teórico/filosóficas. Em


nosso modo de ser, de maneira geral, as escolhas levam também
a renúncias. A escolha tende a desvelar, a renúncia, ao contrá-
rio vela, afasta referências. No presente trabalho pretendemos,
em primeiro lugar, caminhar no sentido do desvelamento; “dar
um passo atrás”. Essa expressão que será recorrente neste texto
refere-se a tentar abrir uma abertura mais ampla em meio aos
referenciais, dar um zoom out. Como se sabe, o campo de visão
mais aberto reduz o detalhamento, e isso nos parece bom, posto
que fundamentos têm um caráter geral.
Assim, necessariamente, aqui, em nossa escolha, perdemos a
acuidade da arquitetura e da intervenção do objeto arquitetônico
e voltamo-nos para o urbano como fundamento primeiro. Para
nós, daqui para frente, não há arquitetura que não seja estrita-
mente “fato urbano” para usar a expressão de Aldo Rossi.
Mas podemos dar mais um passo atrás e verificar que antes do
urbano há a condição de possibilidade que leva ao urbano que é o
existencial do ser-com, ou, antes ainda, o ser-em e, no fundamento
primeiro, o ser, o fenômeno.
Propomos então, nos dois primeiros capítulos, tentar nos voltar-
mos ao “ser arquitetura”, iniciando pela questão da fundamenta-
ção epistemológica, onde justifica-se o aporte da fenomenologia
em oposição à empiria das ciências naturais; em seguida traçamos
um caminho do pensamento que inicia com a ideia de habitar,
passa pela questão da espacialidade, e chega até o fundamento do
lugar; segue-se então uma interpretação crítica do recorte teórico
em que estamos inseridos (que inclui arquitetura, urbanismo e
restauração); finalmente, como síntese propositiva, apresenta-
mos um caminho metodológico para o projeto de arquitetura e
urbanismo a partir da matriz fenomenológica.

19 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


2 FUNDAMENTOS

O que é a verdade?
O senso comum, que tem lá sua sabedoria, diz que a verdade é
pessoal, que cada um tem a sua, em conformidade com a consciên-
cia e a partir de determinados critérios morais, religiosos etc. Nesse
aspecto minha verdade enquanto profissional da restauração e profes-
sor de arquitetura me diz que ao longo de vinte e cinco anos tenho
trabalhado em engano. Vejo muito claramente que a restauração em
arquitetura é uma ilusão. Penso que, cada vez mais, é válido o aforismo
de Ruskin dizendo que “a restauração é uma destruição seguida da
falsa descrição da coisa destruída!” (RUSKIN, 1996). Sempre suspei-
tei intuitivamente da vigência da historiografia como fundamento
da intervenção arquitetônica e urbanística. Nunca pude ver de fato
a história nas coisas, mas ao contrário, vejo “as coisas na história”.
Hoje tenho convicção de que é necessário libertar a arquitetura e, em
especial, o urbanismo do peso da historiografia. Penso que a fenome-
nologia pode fornecer as ferramentas para atender a essa demanda.

Ora, o tratamento historiográfico não cria o acontecer


dos acontecimentos. Tudo que é historiográfico, toda
representação e constatação nos moldes da historiogra-
fia se determinam por acontecimentos, isto é, fundam-se
no destino do processo de acontecer. A recíproca não é,
porém, verdadeira. Os acontecimentos não são necessa-
riamente historiográficos.

A ciência histórica não pode decidir se o acontecer dos


acontecimentos só se manifesta, em sua essência pela
e para a historiografia ou se, ao invés, a objetivação
historiográfica, mais do que revela, vela o acontecer dos
acontecimentos. Entretanto, decidido já está que é, como
incontornável, que o acontecer dos acontecimentos vige
e vigora na teoria historiográfica. (HEIDEGGER, 2018).

20 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

Na lógica tradicional a verdade vem da adequação, ou da confor-


midade entre um ente e a ideia de que dele se tem, contudo, para
o autor de “Ser e Tempo”, essa pretensa verdade da adequação
muitas vezes pode ser enganadora e aprisionar o pensamento,
“velar o ser”. Ou, colocando a questão em termos específicos: o fato
de haver conformidade entre determinada narrativa histórica, por
mais documentada e comprovada que seja, e um dado qualquer
existencial, a arquitetura, por exemplo, não pode estabelecer,
necessariamente, algum tipo de dependência, e mesmo subordi-
nação, da coisa em relação ao relato da história.
À primeira vista pode parecer que seria impróprio pensar
a arquitetura, e por extensão o urbanismo, sem buscar referên-
cias no relato historiográfico. Há muito a tradição consolidou a
pretensão de que a história seria o legítimo vínculo que aproxima
o fazer e o pensar a arquitetura ao mundo, entretanto, para nós
parece que, na verdade, afasta.
Convém ressaltar que não se trata aqui de uma simples
negação desse fundamento humano que é a ciência da história,
muito menos de qualquer tipo de iconoclastia dos bens culturais,
conforme se poderá constatar claramente no que se seguirá. Mas,
ao contrário, trata-se de valorizar efetivamente aquilo a que se
atribui valor e de mostrar que talvez existam outras possibilidades,
outro olhar, que a princípio poderá, inadvertidamente, parecer
menos “adequado” por não atender a uma lógica tomada como
verdadeira pelo hábito e, portanto, obedecida sem questionamento.
Buscamos uma abordagem mais verdadeira que aquela que
nos tem conduzido à farsa da reconstituição estilística e que leva,
em essência, à perda do patrimônio que acaba sendo, irremedia-
velmente, substituído pelo seu simulacro. Mas rejeitamos também
a pura e simples negação que, negando, termina por reafirmar
aquilo que nega.1
Além disso, convém ainda frisar: falar “patrimônio histórico
e artístico” é dizer, na verdade “patrimônio da historiografia e
da historiografia da arte”, pois o “artístico”, nesse caso, refere-se
primordialmente à genealogia dos estilos, às fases da história da

1  “Inversão”, em termos psicanalíticos.

21 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

arte: barroco, rococó, neoclássico etc., tomados como repertó-


rio reconstitutivo, não naquilo que a arte tem como experiência
de vida e que pulsa na emoção da presença e da descoberta, mas
antes corroborando a historiografia como paradigma fundamen-
tado em pressupostos livrescos que, diga-se de passagem, são
sempre verdades transitórias e, portanto, sujeitas a enganos e
revisões, ou seja, são também históricas.
Assim, entendemos o primado da historiografia no patrimônio
urbano “dito histórico e artístico” como “um problema central”, ou
melhor dizendo, uma geratriz que traz consigo, de roldão, todas as
outras questões que se seguirão. Em outras palavras: o “primado
da historiografia” parece-nos ser um típico “obstáculo epistemoló-
gico” (BACHELARD, 1996), um “velamento” que nos impede de ver a
verdade da contingência e do constante porvir dos fatos urbanos,
e que termina sempre envolvendo nosso campo disciplinar na
teia imobilizante da historiografia. Quer seja pela afirmação das
diversas manifestações objetivas dos “historicismos” que volta e
meia retornam como uma espécie de pecado original que tende
à iconolatria, ou, por outro lado, nas subjetividades anti-históri-
cas iconoclastas que, buscando negar, terminam evidenciando,
por contraste, aquilo que rejeitam.
Portanto, o “objetivo inicial” deste trabalho será tentar contor-
nar a vigência da historiografia na área de patrimônio urbano e
arquitetônico, não a eliminar simplesmente, pois o relato histórico
será sempre uma referência importante. Propor eliminar o relato
historiográfico como parte da compreensão da cidade seria uma
inocência, além de tão ou mais problemático que deixá-lo imperar,
tal como se dá. O que propomos aqui é considerar a historio-
grafia em seu merecido lugar, ou seja, de grande importância,
porém não determinante na compreensão e, consequentemente
nas decisões de projeto.
Também com relação ao (dito) “artístico” consideramos
necessário superar a ideia da “cidade como obra de arte” (o que
se apresentaria então como nosso “segundo objetivo”) para tentar,
assim, libertar o ato projetual da historiografia da arte, onde se
dita normativas impondo “aquilo que foi” ao que, na verdade, segue
sempre sendo em direção ao porvir, em meio a “complexidades e

22 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

contradições”. A pretensa questão dita “estética”, que por ser assim


designada deveria dizer “filosofia da arte”, em geral de filosofia
não tem nada, não indo além de uma crítica calcada em pressu-
postos que quase sempre resultam na previsibilidade monótona
da repristinação voltada a modelos colonialistas do passado; ou,
outras vezes, numa pretensa criatividade solipsista que, em geral,
decai no arbitrário ou acaba se voltando a reprodução de modelos
tardo-colonialistas, estilos ditados pelo brilho dos “renders”, pelas
vedetes arquitetônicas do momento ou do mercado das imagens
midiáticas.
Propomos como alternativa um caminho fundamentado de
fato em uma compreensão filosófica. Buscamos a arquitetura e
o projeto através do fenômeno, no seu modo-de-ser, a partir do
que Heidegger chama de “Dasein”, 2 a “presença”. No interior do
drama da condição humana, onde somos jogados numa busca
do sentido-de-ser. 3 Naquilo que somos em essência, existencial-
mente. Pretende-se assim encontrar a arquitetura, os espaços e os
lugares em sua condição originária, na constituição de mundos,
condição essa que, necessariamente, vem sempre antes do relato
da história ou mesmo dos ditames da moda, em suma, antes mesmo
daquilo tudo que os outros esperam que acreditemos ser “o que
se deve fazer”.
Se relembrarmos, por exemplo, as fotos verdadeiras do Taj
Mahal cercado de lixo e miséria podemos constatar que para além
dos palácios fotogênicos, ajeitados no photoshop para os panfletos
de turismo, esconde-se o horizonte dos fenômenos de onde surge o
fato urbano como revelação da verdade, não numa linha do tempo
que se perde na pretensa objetividade documental do passado, nem,
tampouco, na subjetividade da auto referência desvinculada das
preexistências, mas em camadas diversas, num sentido existen-
cial, no encontro de mundos, onde se escondem e se mostram as

2  “Dasein” nome em geral deixado sem traduzir, mas que, ao pé da letra seria
“ser aí (aqui)”; também se traduz como “presença” (que para nós parece uma boa
tradução), contudo adotamos a expressão original por ter mais identidade.
3  Em Heidegger é comum usar termos hifenizados para indicar o caráter uno
em palavras associadas.

23 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

referências, a origem e o destino, a memória e o esquecimento,


tudo constantemente despejado nas possibilidades do porvir.
Pretendemos, aqui, que nossa verdade venha ao encontro
das seguintes questões: será possível encontrar uma alternativa
para o engessamento do patrimônio no passado e tentar unir as
coisas do cotidiano à história e ao destino? Será também possível,
ou útil, ou talvez até necessário, trazer a questão do patrimô-
nio cultural para uma esfera mais originária como, por exemplo,
o “ambiente”? Acreditamos que sim. Poder-se-ia chamar a isto
uma hipótese, nós aqui preferimos chamar intuição. É a exequi-
bilidade desta intuição que pretendemos provar.
Finalmente, uma interpretação conclusiva da verdade está na
possibilidade de ela ser libertadora. Ou seja, a verdade desvelada
nos libera do engano. Uma busca autêntica não pode se acomodar
aprisionada no molde da ad equação predicativa, na conformidade
do caminho fácil do “se-então”. Muito pelo contrário, deve-se estar
sempre inconformado, mesmo que isso nos leve pelo caminho mais
difícil.
Apontando, então, nessa direção, Heidegger nos ensina que
a verdade está na essência e a essência na verdade. É, portanto,
no desvelar da essência que podemos tentar chegar à abertura
para a liberdade através daquilo que é verdadeiro.

Essência e Fundamento
Buscar a essência de algo significa, em meio às múltiplas
possibilidades de interpretação, mostrar aquilo que aquela coisa é.
Mas como é possível (pode-se perguntar) que em uma única, entre
tantas possíveis abordagens sobre as coisas em geral, possamos
pretender essa “azeitona do pastel”, a essência!? E como, e para que
deveríamos nos dar ao trabalho de buscar essa tal essência quando,
conforme entendimento geral, a pura e simples consideração das
ciências já estabeleceria parâmetros de conhecimento seguro,
preciso e controlado sobre os fenômenos da natureza e da vida?
O aporte teórico que conduz este trabalho, a fenomenologia,
surgiu em oposição à ideia de que o conjunto das ciências seria

24 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

o único meio eficaz e, também, o fim para a busca da verdade


e do progresso.

Contra as mais altas manifestações do pensamento


europeu, as meditações de Husserl voltaram-se contra
uma forma de ceticismo: o positivismo reinante no último
terço do século XIX. Sob a aparência de um cientifi-
cismo extremo e positivo representa, na verdade, uma
das mais agudas formas de dissolução do mundo e da
vida (XIRAU, 2015).

O positivismo, no final do século XIX, atropelou a filosofia e


pretendeu tomar para si o papel de reunir as ciências, anterior-
mente ocupado pela metafísica. Assim, a velha questão dos entes
(as coisas em geral) e dos seres (as essências dos entes) que vem
desde os gregos antigos até Kant e Hegel foi deixada de lado.
Então, em seguida, em fins do século XIX, em meio à crise das
tradições filosóficas onde buscava-se caminhos, por um lado
entre os neo-kantianos, como na hermenêutica de Diltey e, por
outro, com os empiristas, através do positivismo de Comte, surgiu
o psicologismo, onde propunha-se que a filosofia fosse reduzida
aos processos do psiquismo. Pois foi aí, nas aulas de um famoso
psicologista chamado Brentano (que também deu aulas a Freud) que
surgiu uma das principais vertentes da filosofia contemporânea.

Psicologista convicto ao início de suas meditações sobre


a ciência, Husserl viu-se obrigado, pela análise rigorosa
desta, a uma retificação fundamental. Na crítica do psicolo-
gismo e na originalidade do método pelo qual ele a levou
a cabo encontra-se a inspiração de todas as descober-
tas posteriores. (XIRAU, 2015).

Husserl, que buscava rigor filosófico, funda a fenomenologia


a partir do conceito de “intencionalidade” tomado de Brentano.
A fenomenologia Husserliana, retoma a busca da essência, ou a
busca do ser dos entes. Em Husserl essa busca ocorre por meio
da intencionalidade e da redução fenomenológica.

25 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

A fenomenologia husserliana é o estudo das estruturas


intencionais da consciência, isto é, dos vários modos
nos quais a consciência está dirigida para os objetos. Ela
descreve os modos nos quais os objetos são ‘constituídos’
na consciência. Ela faz isso com base na redução fenome-
nológica, na qual todos os posicionamentos da existên-
cia real do mundo e dos objetos do mundo, incluindo aí
nós mesmos como entes psicofísicos, são suspensos ou
colocados fora de ação (GORNER, 2017).

Permitamo-nos embarcar no grande navio da filosofia como


clandestinos, sem pagar a passagem, mas também sem negar
esforço para descascar as batatas da leitura. Iniciamos então nossa
busca por Husserl, que é de difícil leitura, especialmente, em nosso
caso, sem acesso ao idioma original. É necessário ficar claro que
um trabalho como este não pode aspirar a pretensões filosóficas
mais profundas. Assim, não se poderia aqui, dentro do enquadra-
mento proposto, pretender dominar, por exemplo, a abrangên-
cia do pensamento husserliano, até porque a maior parte da sua
obra ainda está inédita, sendo meticulosamente compilada por
uma equipe de especialistas. Contudo nossa modesta aproxima-
ção a Husserl pôde conduzir a orientação inicial deste trabalho
como referência epistemológica, especialmente quando o autor
propõe, de forma laboriosa e incansável, dar sentido ao pensamento
científico, reagrupando as ciências em torno de uma epistemo-
logia onde os entes são compreendidos em regiões por meio das
“ontologias regionais”.

Qual é a relação entre as ontologias e a questão do ser? Ser


é sempre o ser de um ente. A totalidade dos entes pode
ser dividida em diferentes regiões dos entes. Exemplos
de tais regiões seriam a história, a natureza, o espaço,
a vida, a linguagem. (GORNER, 2017)

O campo disciplinar onde repousa a arquitetura e urbanismo


e, dentro dele, o campo da restauração e do patrimônio histórico
e artístico formam sub-regiões, áreas de interseção, onde se

26 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

entrecruzam os campos da engenharia, sociologia, história,


geografia, economia, para citar apenas alguns. Esta intercor-
rência de diferentes modos de lidar com relação aos entes traz
consigo problemas por conta da diversidade e da decorrente
falta de sintonia entre os diversos aportes teóricos correlatos.
Nossa curta (e dura) passagem por Husserl nos ensinou que, em
primeiro lugar, podemos usar a fenomenologia como episte-
mologia, ou seja, como busca daquilo que Avicena chamava de
“pensamentos de segundas intenções” (aqueles pensamentos
acerca de pensamentos, ao invés dos de primeiras intenções
que se referem às coisas).
Husserl propõe que nos voltemos “às coisas elas mesmas”,
por meio da consciência e da intencionalidade, desvinculadas dos
conceitos dados pelas ciências naturais.
Tentamos aqui, dentro das limitações impostas a um trabalho
que pretende propor uma equanimidade entre a abordagem teórica
e a aplicabilidade prática, o enfrentamento dessas e outras dificul-
dades epistemológicas que são problemas de fundamento, ou seja,
estão na base do que as coisas são, do que pensamos sobre elas e,
por conseguinte, do que queremos, devemos, ou mesmo podemos
fazer a respeito delas.
Na vida profissional do arquiteto-urbanista-restaurador,
na visão fragmentaria setorial de um projetista ou do emprei-
teiro, do professor ou mesmo do teórico, o campo de trabalho se
limita, estreita-se em um determinado enquadramento parcial
deixando de fora toda uma rede de referenciais, num complexo
mundo de possibilidades que se desdobra. Entretanto, parece-
nos que os problemas de fundamento epistemológico aparecem,
principalmente, nas “interfaces”, ou seja, onde os fenômenos e as
ideias colidem: onde a filosofia encontra a teoria, onde a teoria
encontra o projeto, o projeto à obra e, também, enfim, onde a
ação humana se impõem a natureza que, por sua vez, contra-
põe resistência à ação antrópica fechando o ciclo problemático.
Mas por que a epistemologia positivista ou, falando em termos
atuais, neopositivista, não pode dar conta desses problemas que,
em última análise, são questões de sentido? Nas ciências positi-
vas, como já mencionado, a verdade resulta da adequação entre

27 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

um postulado e o fenômeno ao qual esse postulado se dirige, essa


adequação é mediada pelo método científico e pela vigência de
paradigmas (Kuhn, 1978), contudo essa visão do mundo leva ao
ceticismo, pois...

[...] conhecer formas objetivas de construção de corpos


físicos ou químicos e fazer previsões de acordo com isso –
nada disso explica coisa alguma, mas precisa de explica-
ção. (XIRAU, 2015).

O somatório das diferentes considerações sobre um objeto


qualquer como o projeto, o programa, desenhos, a maquete, fotogra-
fias e mesmo vídeos, não constituem a arquitetura como fenômeno,
que pressupõem necessariamente o fenômeno arquitetônico
em sua condição existencial. Mas como fazer para compreender
as coisas de maneira adequada? Tomemos, a título de ilustra-
ção, um exemplo divertido e caricato do cinema de animação
que mostra como “não” fazê-lo: “Jack Skellington”, personagem
de The Nightmare Before Christmas, animação de Tim Burton,
vive no sombrio “Mundo do Halloween”. Certo dia, por conta do
destino, vê-se no (estranhamente alegre) “Mundo do Natal”. Não
consegue entender o significado da festa que o fascina, então,
como “bom” homem de ciência que é, carrega para o seu labora-
tório o máximo de objetos, árvore de Natal, bolas, bolo, meias,
presentes etc., submete tudo a uma análise laboratorial rigorosa;
então, a partir de suas conclusões, resolve ele mesmo promover
o Natal com um resultado, obviamente, catastrófico!
A passagem desse clássico da animação ilustra com muita
propriedade e boa didática a impossibilidade de entendermos o
objeto da presente busca através dos meios empíricos ou mesmo
do racionalismo.
O exame das questões do patrimônio histórico, da conser-
vação e do restauro, aqui tomados como ponto de partida para a
questão mais abrangente da arquitetura e do urbanismo passam,
em primeiro lugar, pelo modo, por como compreendemos a questão.
Tratamos de algo cuja essência é redutível a dados apenas em
segundo plano. Uma metodologia que se voltasse, por exemplo, ao

28 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

levantamento e a análise de dados, estudando políticas implemen-


tadas, sucesso ou fracasso de projetos executados etc., ainda que
muitas vezes útil, de maneira geral nos levaria a uma condição
análoga àquela que Husserl identificava na crítica ao método das
ciências positivas, segundo a qual, geralmente, chega-se a “conclu-
sões embutidas nas premissas”.

Fenomenologia na Arquitetura
Não é nenhuma novidade o aporte da Fenomenologia como
método de compreensão do fenômeno urbano. Norberg-Schulz
(1926 – 2000) já formulou alternativas para a crise do modernismo
retomando o conceito de “Genius loci”, a ideia de “lugar”, entre
outros princípios baseados no aporte fenomenológico. Além disso,
bem antes de Husserl ou Heidegger, já se praticava intuitiva-
mente diversas “fenomenologias” na poesia, na arte e mesmo
na vida em geral, pois, em verdade, num certo sentido, somos
todos fenomenólogos, a maioria das vezes sem sabê-lo. Pode-se
identificar na história do pensamento arquitetônico diversas
aproximações por diferentes caminhos como em Quatremère
de Quincy (1755 – 1849), Laugier (1713 – 1769), Gottfried Semper
1803 – 1879) e (para nós aqui, muito especialmente) em Ruskin
(1819 – 1900), entre outros.
A Fenomenologia se difundiu e infiltrou-se por todos os campos
do conhecimento, especialmente nas Ciências Humanas, influen-
ciando diversos autores na História, no Direito, em Estética, na
Arquitetura e nas Artes. Na Filosofia, autores fundamentais como
Heidegger (1889 – 1976), Gastón Bachelard (1864 – 1962), Merleau-
-ponty (1908 – 1961), Sartre (1905 – 1980) em Estética, Argan (1909
– 1982), em Arquitetura Norberg-Schulz (1926 – 2000) e o próprio
Brandi (1906 – 1988), para citar apenas alguns dos principais autores
que foram encontrados em nossa busca.
Ao final Heidegger apresentou-se como a pedra de toque
para este trabalho.
Cabem aqui algumas considerações iniciais sobre nossa
experiência com o filósofo: a princípio Heidegger é de difícil

29 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

leitura,4 por outro lado, aos poucos, pareceu-nos que o autor de “Ser
e Tempo” é, na verdade, mais difícil de aceitar que propriamente
de entender. Contudo quando finalmente conseguimos superar
a resistência inicial encontramo-nos em casa, reconhecemos em
nós mesmos aquilo que está proposto como uma compreensão
profunda da condição humana.
Penso que não se deve jamais iniciar pela leitura de Ser e
Tempo, a não ser que o leitor já tenha um bom conhecimento
de filosofia antiga e moderna. Assim, parece uma boa estraté-
gia começar pelos textos de comentadores e, em seguida, ler e
reler os ensaios e conferências do chamado segundo Heidegger,
ainda que pareça, inicialmente, um tanto enigmático e exotérico.
Entretanto, aos poucos, com releituras alternadas, pode-se tentar
enfrentar as mais de quinhentas páginas de Ser e Tempo e mesmo
que, ainda assim, algumas passagens do livro sejam quase impene-
tráveis, pode-se enfim compreender a importância e o gênio de
um filósofo que soube reunir e, ao mesmo tempo subverter a
perspectiva de toda história da filosofia. Heidegger reúne, em
parte, a fenomenologia a partir de Husserl com a hermenêutica
de Schleiermacher e Diltey (de influência kantiana) retomando
também fundamentos da filosofia grega antiga (os pré-socráti-
cos e em especial Aristóteles), além de influências aqui e ali de
Kant, Hegel e Nietzsche. Absorve e ao mesmo tempo nega a todos.

Heidegger
Sem pretender alcançar um domínio mais profundo em
filosofia, o que está fora do nosso alcance, trataremos a seguir
dos principais conceitos do filósofo para tentar apresentar um
esboço de terminologia, alguns conceitos básicos e, principal-
mente, uma tentativa de esclarecer ao leitor que o desconhe-
ça,5 como se estrutura o pensamento heideggeriano, naquilo que

4  Embora menos difícil que Husserl, que parece a alguém com uma bagagem
literária mediana, quase impossível, indecifrável!
5  Ainda que em linhas gerais e com possíveis falhas.

30 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

nos interessa que é, através da filosofia, buscar alternativas para


repensar alguns aspectos do patrimônio “dito” histórico e artístico
e do projeto urbano e de arquitetura.
Mas por que Heidegger? Pode-se perguntar. Porque a proposta
heideggeriana nasce da convergência da fenomenologia e da
hermenêutica, ambas voltadas a restabelecer, por vias diferen-
tes, um estatuto filosófico e epistemológico para as ciências, em
especial as ciências humanas. Heidegger busca superar o velho
dilema entre racionalismo versus empirismo buscando fundamen-
tos a partir do modo como produzimos conhecimento.
O interesse principal de Heidegger está na questão do ser, na
busca da verdade, iniciada pelos gregos antigos e que começou a se
perder, segundo ele, a partir da filosofia helenística e, em especial,
a partir dos latinos. O filósofo retoma a questão sob um aspecto
diferente, conforme tentaremos expor a seguir: os entes (ou seja,
tudo aquilo que, de alguma maneira é) vinham sendo conside-
rados pela lógica tradicional através da adequação predicativa.
Assim, resumidamente, qualifica-se um ente por meio de um
predicativo adequado, coerente, e temos a verdade. Só que não!
Heidegger considera que esta abordagem mais esconde do que
revela a verdade sobre o ente. Pela via da lógica tradicional, aquilo
que parece ser, muitas vezes é um engano, entretanto a inautentici-
dade (que, também segundo Heidegger, nos caracteriza) consolida
o erro pela autoridade da tradição e o engano se cristaliza como
verdade. Dessa maneira encobre-se a verdade velando o ser.
Pode parecer ao senso mais prático que tratamos aqui de
abstrações distantes da realidade objetiva. Mas é fácil reconhecer
que viver na “não verdade” não tem nada de irrelevante, ao contrá-
rio, pode ser mesmo o fundamento da condição trágica em que
vivemos.
Portanto, ao longo da história do pensamento humano, tanto
revelam-se quanto se encobrem seres de entes diversos. Pensamos
que no caso específico que aqui tratamos, ou seja, no ente “patrimô-
nio” qualificado (“logicamente”) enquanto “histórico e artístico”,
dá-se justamente isso! E as dificuldades e incoerências que identi-
ficamos no contexto deste trabalho parecem vir desse engano
fundamental. Contudo voltemos ao filósofo.

31 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

Heidegger parte de um entendimento que une a fenomeno-


logia e a hermenêutica para buscar a origem da questão do ser
dos entes a partir de um ente em especial, aquele ente que se volta
para os outros entes e que formula a indagação sobre o ser. Este
ente é o Dasein. Este ente sou sempre eu. Aquilo que caracteriza
o Dasein é a existência, é ser-no-mundo (hifenizado para enfati-
zar o caráter uno do fenômeno).

Dasein está no mundo não como uma moeda está numa


caixa, mas como eu vivo em minha casa mesmo quando
estou fora dela. “No” significa habitar numa área, ter
familiaridade com ela. Dasein tem familiaridade com
seu mundo onde vive. (GORNER, 2017).

Heidegger formula, em Ser e Tempo, uma ontologia do Dasein


propondo a estrutura do ser deste ente que é o Dasein, ou seja, o
modo como se dá a sua existência a partir do que ele chama dos
existenciais.

O ser do Dasein é o ser-no-mundo. O que Heidegger tem


em vista com o termo “mundo” não é ele mesmo um ente.
Nem a totalidade dos entes. Ele é, de qualquer modo,
inseparável dos entes em dois aspectos. Em primeiro
lugar, o mundo é um existencial; ele pertence ao ser do
Dasein, e o Dasein é um ente. Assim, se não houvesse
nenhum Dasein, não haveria mundo. Em segundo lugar,
o mundo é inseparável dos entes que são diferentes do
Dasein. Não pode haver um mundo sem entes intramun-
danos (a terminologia heideggeriana é tal que só o Dasein
é no mundo; os entes diferentes do Dasein são no interior
do mundo... (GORNER, 2017).

Para Heidegger somos todos “Daseins”, quer queiramos ou


não, e estamos jogados em estreita e necessária relação com uma
rede de referenciais que está no interior do mundo. Não temos
escolha quanto a “estar aí”, embora possamos aceitar passiva-
mente, no modo inautêntico, aquilo que, no interior do mundo, os

32 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

outros nos impingem, ou, por outro lado, numa busca autêntica
lançamo-nos às possibilidades.
O Dasein é ser-no-mundo e o mundo é um existencial, um
fundamento do que somos, uma condição de possibilidade para que
os entes venham até nós. Mas, na ontologia fundamental do Dasein
há outros existenciais, outras condições de possibilidades no jogo
de sermos-no-mundo. Primeiramente a disposição e a compreen-
são, ambos ditos equiprimordiais, ou seja, com igual importân-
cia e interdependentes. A disposição, ou tonalidade afetiva, é a
condição de possibilidade de nos voltarmos a alguma coisa ou
questão (parece-nos que poderia ser aquilo que possibilita que
tenhamos interesse fundamental pelo que quer que seja). Já a
compreensão, como indica o nome, refere-se não a um tipo de
entendimento lógico, mas também à condição de possibilidade, ou
aquilo que leva a que, de diferentes modos, formulemos entendi-
mentos. São ambos fundamentos ontológicos na constituição das
referências, no modo de ser do Dasein, para lidar com os entes.

Isto implica que a descrição de Heidegger do encontro


das coisas no mundo seja ao mesmo tempo precisa e sem
a incorporação de qualquer pressuposição de fora. Por
exemplo, se começamos apenas com a consciência, como
o idealismo alemão, então já pressupomos que Dasein é
essencialmente a consciência e não um ser-no-mundo.
Se começamos com o empirismo, já pressupomos que
há objetos no mundo que mandam informação para o
sujeito. A reivindicação de Heidegger é que sua descri-
ção do encontro de Dasein com as coisas do mundo não
tem nenhuma pressuposição, permitindo que as coisas,
ou seja, a situação, apresentem-se como elas realmente
são. (SCHMIDT, 2014)

Destarte, aqui para nós, a arquitetura é um sendo, nem objetiva


e nem subjetiva, mas constituída em nosso modo de ser e lidar
com as coisas. No contexto deste trabalho partimos do princípio
de que não existe uma arquitetura em si, senão como parte de
uma complexa teia de relações. O que já nos lança de imediato ao

33 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

urbano como manifestação primeira daquilo que é antes relação


que coisa. Reiteramos, portanto, para deixar claro, que, na busca
do que é essencial, tratamos aqui do urbano antes do arquitetô-
nico e, também, do projetar em geral antes do projeto de conser-
vação e restauro.
Iniciamos com o fundamento primordial da ideia de “habitar”
tratada por Heidegger em diversas oportunidades, mas em especial
em Construir, Habitar, Pensar (2018). Em seguida, passamos a
tratar de alguns conceitos fundantes, a começar pela questão da
temporalidade. Para Heidegger, o tempo da historiografia é um
modo deficiente de lidar com a compreensão da temporalidade
e, ainda que sejamos seres essencialmente históricos, a tempora-
lidade mais originária não se dá através da história voltada ao
passado, mas antes como “estrutura de possibilidade”.
A esse fundamento mais essencial do tempo segue-se, em
nosso discurso, uma tentativa de estruturar o que propomos ser
uma “ontologia da arquitetura”.
Pretende-se, aqui, no fim das contas, buscar, não propriamente
uma metodologia, mas antes um sentido para a compreensão
que leva ao ato projetual. Para tanto parece que não podemos
negligenciar questões como: o espaço, a matéria, a forma etc.,
até o sentido originário de lugar, percorrendo um caminho do
pensamento, para encontrar a arquitetura, não objetiva e nem
subjetivamente, mas como fenômeno.

Os espaços que percorremos diariamente são ‘arrumados’


pelos lugares, cuja essência se fundamenta nesse tipo
de coisa que chamamos de coisas construídas. Conside-
rando-se com atenção a essas relações entre o lugar e os
espaços, entre os espaços e o espaço, poderemos adquirir
uma base para pensar a relação entre o homem e o espaço.
Quando se fala do homem e do espaço, entende-se que
o homem está de um lado e o espaço de outro. O espaço,
porém, não é algo que se opõe ao homem. O espaço nem
é um objeto exterior e nem uma vivência interior. Não
existem homens e, além deles, espaço. Ao se dizer ‘um
homem’ e ao se pensar nessa palavra aquele que é no

34 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

modo humano, ou seja, que habita, já se pensa imedia-


tamente no nome ‘homem’ a demora, na quadratura,
junto às coisas. (HEIDEGGER, 2018).

Firmitas (remete ao construir), utilitas (ao habitar) venustas (ao


pensar). Constatar que a tríade vitruviana converge para o artigo
heideggeriano que trata mais claramente de arquitetura pode
nada revelar, ou talvez nos leve a pensar no quanto as palavras
nos dominam sem que nos demos por isso.
O texto do filósofo pode ser lido e relido e a cada vez pode
trazer caminhos diferentes para o pensamento. Assim, levados
no pensar, pretendemos, talvez, tentar recolher, guardadas nas
palavras, as ideias que venham até nós pelo caminho.

O Habitar Originário
Se nos voltarmos livremente ao mistério da primeira morada,
não parece difícil conjecturar que o “Dasein intrauterino” desconhece
a corporeidade. Seu ser se dá numa plenitude tátil que, muito
provavelmente, não pode inferir ou sequer intuir a questão corporal.
Portanto, na condição mais originária, podemos supor que o sentido
de lugar venha antes até que a noção de ser um corpo, o qual se
confunde com o invólucro da “nave-mãe”.6 Ao nascermos, no mundo
exterior onde somos lançados, habitamos por um tempo “ainda o
antes”, numa “desuterinização” progressiva que vai sendo gradati-
vamente efetivada por surpresas, estranhamentos e ou insights. O
próprio corpo vai ser uma descoberta posterior, inferida através
de camadas de evidências, sempre, e cada vez surpreendente-
mente no que chamamos mundanização.
O ser-é-no-mundo. Nossa sexualidade, por exemplo, é prova
cabal do quanto pode ser surpreendente habitar o próprio corpo
tanto quanto o de outrem. Habitamos em primeiro lugar a densidade
sensível do mundo por meio da existência que nos arrebata e,
apenas em segundo plano, passamos a habitar nossa própria

6  O que pode levar à compreensão que dizer “ser” não é o mesmo que dizer “ego”.

35 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

corporeidade em nosso autorreconhecimento, sempre e cada


vez, num sentimento de angústia que nos impulsiona em nossa
história, entre os abismos do nada e em direção à morte, como
“seres para a morte” que somos.

O RELÓGIO
Diante de coisa tão doida
Conservemo-nos serenos

Cada minuto da vida


Nunca é mais, é sempre menos

Ser é apenas uma face


Do não ser, e não do ser

Desde o instante em que se nasce


Já se começa a morrer.”
(CASSIANO RICARDO)

O habitar o mundo manifesta-se através do desafio de quem


foi simplesmente jogado numa condição que não escolheu (ou
seja, cada um de nós) o que, portanto, demanda disposição na
existência e, sem solução de continuidade, compreensão do sentido
da existência.
Contrariando, portanto, o subjetivismo de Marc Augé (1994)
podemos propor uma hipótese fundante, suscitada por essa
questão inicial, para passar às questões seguintes: parece-nos
que não existe o “não-lugar”, mas somente o “não habitar”. Pois
se o habitar se dá como ser-no-mundo, tudo é potencialmente
lugar. Podemos habitar, uma cabana, um vale, o templo religioso,
o escritório na torre de vidro, um shopping center, um país inteiro,
nosso smartphone, todo o universo, a cela de um presídio; através
da angústia podemos habitar o nada do nosso abismo interior...
Podemos habitar outrem! Podemos nos encontrar ou nos perdermos
onde habitamos. Pois todas as estâncias que habitamos emanam
e convergem a partir do ser-no-mundo (o Dasein), este eixo em
torno do qual tudo se move.

36 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

O Tempo e o Ser
Pode parecer diletantismo trazer uma abordagem preten-
samente filosófica do “tempo” num livro que trata de arquite-
tura, contudo é inegável que a historiografia traz consigo uma
perspectiva temporal, a qual, ao nosso ver, coloca-se como uma
verdade aparentemente incontestável, confrontando-se e velando
o tempo do fenômeno vivido. Assim, uma compreensão clara
da questão do tempo, da temporalidade e da discussão desses
conceitos, constitui o fundamento primeiro, que não pode ser
negligenciado.
A concepção de tempo já está bastante discutida pelas
ciências e pela filosofia, quase à exaustão, embora não haja
sequer um consenso sobre se de fato ele existe. No atual estado
da arte consideram-se três concepções fundamentais de tempo:
a primeira como ordem mensurável do movimento, a segunda
como movimento intuído e a terceira como estrutura de possibi-
lidades (ABBAGNANO, 2007).
A primeira (ordem mensurável do movimento) é a concep-
ção que, com variações, predominou ao longo da história e que
propõe o tempo em termos absolutos, compreendido a partir de
uma mensurabilidade relativa, ou seja, o tempo uno medido em
diferentes escalas desde a escala cósmica até o átimo do momento
presente begsoniano.
A segunda concepção (movimento intuído) pode ser exempli-
ficada em Santo Agostinho:

O tempo é identificado por Agostinho como própria vida


da alma que se estende para o passado ou para o futuro
(extensio ou distensio animi) Agostinho diz: “de que modo
diminui e consome-se o futuro que ainda não existe? E
de que modo cresce o passado que já não é mais, senão
porque na alma existem as três coisas, presente, passado
e futuro? A alma espera, presta atenção e recorda, de tal
modo que aquilo que ela espera passa através daquilo
a que ela presta atenção, para aquilo que ela recorda.
Ninguém nega que o futuro ainda não existe, mas na

37 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

alma já existe a espera do futuro; ninguém nega que o


passado já não existe, mas na alma ainda existe a memória
do passado, e ninguém nega que o presente carece de
duração porque logo incide no passado, mas dura a atenção
por meio da qual aquilo que será passa, afasta-se em
direção ao passado [...] a rigor não existem três tempos,
passado, presente e futuro, mas somente três presen-
tes: o presente do passado, o presente do presente e o
presente do futuro” (ABBAGNANO, 2007).

Essa ideia de um presente móvel vem também ao encontro


da temporalidade da fenomenologia husserliana.

Toda vivência efetiva é necessariamente algo que dura;


e com essa duração inserem-se em um infinito contínuo
de durações, num contínuo pleno. Ela tem necessaria-
mente um horizonte temporal atualmente infinito de
todos os lados. Isso significa que pertence a uma corrente
infinita de vivências. Cada vivência isolada, assim como
pode começar, pode acabar e encerrar a sua duração;
é o que acontece, por exemplo, com a experiência de
uma alegria. Mas a corrente das experiências não pode
começar nem acabar. (XIRAU, 2015)

A terceira ideia do tempo (estrutura de possibilidade) é uma


concepção ilustrada por Heidegger em Ser e Tempo, e nos interessa
de modo especial. A primeira característica dessa concepção é o
primado atribuído ao futuro, diferente das duas concepções acima
referenciadas, que são voltadas à presentificação. Para Heidegger
quando o tempo é autêntico (originário e próprio da existência), ele é...

[...] o porvir do ente para si mesmo na manutenção da


possibilidade característica como tal. Porvir não significa
um agora, que, ainda não tendo se tornado atual, algum
dia o será, mas sim a futuração em que o ser-aí (Dasein)
chega a si mesmo com base no seu poder ser mais próprio.
(ABBAGNANO, 2007).

38 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

A ideia de tempo proposta por Heidegger (chamada temporali-


dade ecstática) subverte o horizonte modal da tradição centrada no
presente e substitui a ordem causal por uma estrutura de possibi-
lidades. Assim, sob o primado do futuro, no campo expandido
das possibilidades, converge também o passado como origem do
possível já vivido e que volta, novamente, a ser revivido também
como possibilidade. Aqui, o passado é lançado para o porvir, não
mais o “presente do passado”. O presente é a abertura, e o futuro
o aberto onde se projeta o ser. Assim, a temporalidade ecstática
se presentifica como “futuração”, no jogo das possibilidades, e
converge na existência, enquanto “caímos para frente”, em direção
à morte quando tudo cessa.
E em que nos interessa tudo isso para âmbito deste trabalho?
Interessa essencialmente, como fundamento! Enquanto nos apegar-
mos ao relato da historiografia, à ilusão de voltar ao passado, tratamos
a questão a partir de uma visão estrita, unilateral. Deixamos de
considerar o problema inserido no contexto existencial, muito
mais abrangente e profundo que parte da constatação de que o
fenômeno urbano, a arquitetura, os monumentos e nós mesmos
(aqueles que vivenciamos tudo isso) constituímos um sistema
complexo, uma rede de relações que se dirige para o futuro.
Note-se, como já foi dito, que aqui não se defende pura e
simplesmente o fim da restauração, nem a necessária elimina-
ção do conceito de patrimônio histórico, mas uma mudança no
sentido, modificando aquilo que é o maior causador de mudanças:
o olhar! Considerar (como se faz atualmente) a temporalidade do
patrimônio histórico dentro de uma lógica causal, ou seja, numa
sucessão de causas e efeitos, projeta ilusoriamente para trás a
percepção e a ação, produz a ideia profundamente enraizada
em nosso imaginário do “voltar ao que era” e tem promovido em
verdade a permissividade da destruição, pois se podemos restau-
rar, podemos destruir indefinidamente. O privilégio do restauro
reconstitutivo sobre a conservação7 leva a sucessivas restaura-
ções e abandonos e, portanto, à inevitável descaracterização e total
perda de sentido, comprometendo sistematicamente a qualidade

7  Negado pela teoria, mas quase sempre efetivado na prática.

39 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

do nosso patrimônio, que termina sendo levado à “destruição


seguida da falsa descrição da coisa destruída”. Basta observar a
avassaladora maioria das obras de restauração que vemos por aí,
geralmente bastante burocráticas e medíocres.
Se, por outro lado, tirarmos a questão do patrimônio da redoma
da historiografia e a trouxermos para o âmbito da historiologia das
possibilidades, conforme a temporalidade heideggeriana propõe,
ou mais especificamente, se nos voltarmos para uma busca que
envolva os lugares da memória em sua verdadeira condição existen-
cial, num voltar-se para o futuro, apresenta-se então para nós uma
única possibilidade, uma abertura para o “ambiente”. Assim, todo
patrimônio dito histórico e artístico (material, imaterial, natural) será
“Patrimônio Ambiental”, o ente cujo ser se apresenta na quadratura
proposta por Heidegger, ou seja, na relação profunda entre “céu,
terra, deuses e mortais”. Nesse novo contexto o Iphan (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), empoderado 8, tornar-
se-ia IPHAM (Instituto do Patrimônio Humanista e Ambiental).
Assim, desvelando os véus puídos da historiografia que escolhe
seu objeto de interesse por exclusão (onde se determina aquilo
que é e o que não é histórico e ou artístico) e afinando, enfim, as
coisas pelo todo, talvez possamos reencontrar nossa memória
libertada da história, enquanto autêntico projeto de futuro, onde
a história não estará nas coisas, mas as coisas é que estarão na
história. É nesse sentido que pretendemos caminhar com base
nas premissas a serem aqui desenvolvidas.

O Espaço
Fora do princípio de “extensão” cartesiano, que se define pela
sua mensurabilidade, o espaço nos escapa, parece ser algo intangí-
vel, confunde-se com a ideia do vazio ou do não ser. A prevalên-
cia do visibilismo em nossa percepção das coisas oculta o ente do
espaço e, por conseguinte, nos distancia da questão do seu ser.

8  Pois tanto superaria o “histórico e artístico”, quanto transcenderia à ideia do


“nacional”, posto que o ambiental aspira ao universal.

40 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

A ciência o considera como o lugar da matéria e do movimento,


juntamente com o tempo constitui uma unidade fundamental,
moldada em sua elasticidade pela ação de matéria e energia, no
jogo da formação e expansão do universo.
Contudo, antes de tudo isso, o espaço se dá para nós como o
recheio do mundo, o substrato, a coisa primordial e envolvente.
Tudo se liga e se separa pelo espaço, e justamente sua onipresença
faz com que ele não se mostre. Por ser o tudo parece nada ser.
O espaço se retrai por meio da sua expansão, pela aparência de
que as coisas nele imersas se apresentem como o mundo, quando
na verdade são apenas o molde por trás, que parece esconder
a coisa primeira. Mergulhar no mar traz para nós (por meio da
densidade e do gradiente das distâncias, revelado pelas partícu-
las em suspensão) a demonstração da espacialidade no substrato
mais fundamental da água, de onde todos viemos.
Assim, para fazer ver o espaço propomos que, tal qual como
se faz para ver ao microscópio, onde se aplica corantes para se
discernir a forma das criaturas no meio aquoso, imaginemos uma
densidade aumentada que possa mostrar aquilo que a aparência
cotidiana esconde. Consideremos o espaço como o coloide ou o
“gel” do mundo vivido. Nessa percepção adensada o espaço pode
ser visto como o recheio móvel, despejado na lonjura do céu e dos
horizontes, porém delimitado pela dureza do contorno das coisas,
e que vem perdendo densidade na proximidade até desaparecer,
diluído no manuseio dos utensílios. A proximidade mais imediata
e o dominar os objetos, que caracteriza o manuseio, rompe o “gel
espacial” e traz as coisas para a “bolha da manualidade”, onde o
mundo se apaga momentaneamente e só cabem as mãos e os olhos.
Nesse devaneio fenomênico da espacialidade, que por ser
habitual está esquecido, o espaço gel passa a ser o contrário
do negativo e, portanto, a coisa positiva que é o fluido que tudo
penetra, no qual, constantemente, caminhamos mergulhados na
piscina do mundo.
Em sonhos, quando voamos, libertos do visibilismo (que, como
já dissemos, ao mostrar oculta), nossa intimidade com as densida-
des materiais do espaço se revela. O sonho de Ícaro de voar, levado
ao extremo radical pelo wingsuite, guarda uma história intuída,

41 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

não aquela contada9, mas a do reconhecimento e apropriação do


espaço a partir da sua presença e densidades enquanto fenômeno
vivido, onde nosso corpo está sempre imerso, num “pan-arquime-
dismo” esquecido.

CÉUS INTERIORES
A primeira lembrança é puramente corpórea...
Quando era moleque eu voava de verdade!
Com perícia e absoluta tranquilidade,
cheguei a planetas distantes,
vi todas as paisagens!
Os campos, as matas, as montanhas e o mar!
Imenso...

Vi que o céu é mesmo como disse Ptolomeu,


uma bolha e outra e mais outra sem fim,
todas repletas de coisas, as mais variadas,
principalmente por ser tudo!

Em sonhos incontáveis,
noite após noite,
estive por cima das árvores,
sobre toda cidade...

Depois, suavemente, caí de rolê.


E desde então, sei lá quando nem por que,
de uns tempos pra cá, sigo no serviço terrestre,
tropeçando em juntas de piso...

E em outras pequenas saliências do chão.

Convém frisar que o ar não é o espaço, mas uma possibi-


lidade da sua manifestação. O ar, que se move entre a brisa e o
vendaval revela a amplidão do espaço da paisagem, no vai e vem

9  Diferente daquela historiografia que começa com os desenhos de Leonardo,


paralela ao sonho subjacente.

42 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

das nuvens e na estreiteza dos pequenos espaços pelo vento que


uiva nas frestas. O ar leva pelo espaço (presos nas suas fibras
gelatinosas), o vento, o pólen, os cheiros; espalha a fumaça e o
fogo. O ar, esse ente etéreo, e, portanto, essencialmente espacial,
nos deglute numa constante peristalse, penetrada no contra-
fluxo pelo caminhar e mover-nos que nos define.
Em geologia e pedologia o “espaço entre” é reconhecido como o
lugar onde os fenômenos se dão, em oposição ao caráter autocontido
da matéria bruta rochosa e granular fechada em si, que predomina
sem de fato dominar. Os “vazios”, como são chamados na ciência
dos solos, são onde se processam o mistério das transformações,
as reações químicas, as trocas, os segredos da vida e da morte.
Essa microespacialidade do solo leva-nos, em nosso devaneio,
a considerar que talvez haja um adensamento fenomênico do
espaço que seja inversamente proporcional ao seu volume 10, ou
seja, talvez o espaço se apresente mais intensamente em menor
escala. O mesmo acontece na arquitetura. A esse respeito deixamos
para a nossa memória pessoal aquilo que sentimos, com relação
à espacialidade, quando entramos na Basílica de São Pedro em
comparação à Nossa Senhora do Ó em Sabará.

A Materialidade
Ruskin, nas Pedras de Veneza, refere-se à igreja de São Marcos
como “arquitetura incrustada”. Interessante notar como as boas
ideias são, com justeza, chamadas “seminais”. Uma única palavra,
uma semente, guarda o todo em sua singularidade, esperando
uma oportunidade... Tomemos então esta oportunidade propor-
cionada pelo Mestre das “Sete Lâmpadas da Arquitetura” para falar
da materialidade.
O incrustado é a materialidade por excelência. Apenas outro
conceito, de certa maneira oposto, pode se comparar como revela-
ção da qualidade material que é o desgaste. Contudo, no reino da

10  Talvez aí esteja explicada, ao menos em parte, a tendência que temos em


permanecer próximos aos edifícios que Jan Gehl identifica.

43 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

materialidade a incrustação impera. É como se dá, por exemplo, a


formação dos planetas e, em seguida, a própria lava que emerge e
se acumula em camadas formando as rochas vulcânicas; também
no acúmulo deposicional das rochas sedimentares, nos arenitos
ou os calcários, decantados, gota a gota. Tudo são variações da
incrustação. O crescimento por acumulação superficial é a regra
geral no reino mineral e, ao mesmo tempo uma contradição, uma
teimosia da matéria que insiste em contrariar a lógica do desgaste
contra o qual se debate.
Com relação à materialidade descrita por Ruskin podemos
referir à nossa própria experiência: visitar pela primeira vez a
igreja de São Marcos em Veneza é, com certeza, uma experiên-
cia estranha para quem pode ser verdadeiramente tocado por um
acontecimento arquitetônico singular como esse. Sua imagem de
coisas agregadas, miríades de pedras variadas, colunas de diferen-
tes tamanhos formas e cores, os cavalos da fachada (também lá
encrustados), suas formas e irregularidades está muito além de
qualquer questão de gosto. É uma espantosa aparição que transcende
inclusive à temporalidade histórica.
Este estranho “cluster” monumental nos lança em uma
temporalidade muito além do tempo da historiografia. A acumula-
ção de coisas levada às filigranas dos mosaicos internos, no piso
ondulante... Tudo isso nos transporta sabe-se lá para que dimensões
temporais que se desdobram em profundidades abissais. Parece
que o acúmulo de coisas sobre coisas se deu ao longo, não dos
séculos, mas das eras. Essa experiência áspera, brilhante e obscura,
ondulante e “multi-encrustada” leva-nos a intuir uma condição
de temporalidade expandida, quase indescritível, como se um
grande esqueleto primordial, anterior a tudo, tivesse encalhado
na laguna e depois, por gerações incontáveis, recebido coisas,
sobre coisas, sobre coisas...

A CARCAÇA
Há milhões de anos no passado,
uma imensa baleia ancestral,
maior que um grande dinossauro,
morreu aprisionada ao lamaçal.

44 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

E desde então, continuadamente,


a sua ossada em forma de serpente,
grão a grão, camada por camada,
foi sendo recoberta pela enchente.

E a sua longa coluna vertebral


desenhou um “S” escavado,
ficando para fora unicamente
a sua cabeçorra colossal...

Então, uns hominidas, bem depois,


ao verem suas órbitas arqueadas
e os imensos contrafortes ogivais,
tomaram-na como dádiva dos deuses!

E juntaram hordas de escravos,


movidos a ração e chibatadas,
e cobriram a carcaça, dentro e fora,
com coisas coloridas e enfeitadas...

Depois, chegando o auge da História,


ou seja, no Período Medieval,
tornaram a adornar à sua moda,
recobrindo o recoberto novamente,

com mosaicos de brilho reluzente,


mármore, marfim e pórfiro roubados
de algum califa atarefado...
No harém, distraído, com as vestais.

Mais tarde, um belo dia, de repente...


Pois é assim que o tempo passa para a gente,
em Oxford, numa aula de História,
Enquanto ressonavam na plateia...

Um jovem inglês, ruivo e magricela,


teve um “insight” lá da última fileira:

45 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

“A Igreja de São Marcos é a Carcaça!


E o Gran Canale é o Rabo da Baleia!”

Em contraste com a materialidade irregular e cumulativa


do incrustado ou mesmo da aspereza do desgaste, a perfei-
ção da forma, como ocorre, por exemplo, numa escultura em
mármore absolutamente polida, a matéria é sublimada; diluída,
se oculta sob a velatura da luz. Então, aprisionada no contorno e
nas superfícies, a matéria se retrai, até que venha o desgaste e
recoloque a materialidade novamente em questão. Entretanto a
matéria e a forma não estão em oposição, ao contrário, mesclam-
se, alternam-se e seu encontro pode proporcionar o perfil dos
maciços montanhosos ou as pedras redondas dos rios. O arquiteto
que não reconhece esta lição da natureza e não busca voltar-
se para ela está perdido na praticidade superficial dos catálo-
gos de materiais.

A Matéria original – Terra, solo e chão


Do que a palavra Terra aqui significa deve-se afastar
tanto a representação de uma massa de matéria aglome-
rada como também, segundo a astronomia, a ideia de
planeta. Terra é aquilo em que se reabriga o desabro-
char de tudo que, na verdade, como tal desabrocha.
Nisso que desabrocha, a terra vige como a que abriga.
(HEIDEGGER, 2010)

Palavras são coisas concretas e na fenomenologia, como na


poesia, não existem sinônimos. Assim dizer “terra” como aglome-
rado material ou como a superfície planetária é muito diferente
de dizer “chão”. Contudo propomos voltar a atenção também
para a palavra que habita entre “terra” e “chão”; entre a imanên-
cia autocontida do aglomerado material da superfície planetária,
e o chão na sua concretude da presença (Dasein). Assim, entre a
materialidade e a concretude, talvez possamos buscar igualmente
a força oculta da palavra-coisa “solo”.

46 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

A ontologia da terra refere-se ao que abriga. Abriga-nos


sermos presos à segurança de estar sobre o chão, na terra (condição
comprovada pela angústia muito conhecida do sonho de estar
caindo); abriga demarcá-la com estacas, cercá-la, construir sobre
a terra, buscando no solo a sua condição e firmeza de chão, para
edificar sobre a sua carnadura, na disposição de vencer o tempo
e os elementos que fluem ao redor.
A terra firme é a própria ideia fundamental da segurança e
do abrigar. A terra é o além que se faz presente na sua habitual
materialidade, mas, ao mesmo tempo, retrai-se em seu desdobra-
mento nas profundidades. É o reino dos mortos. Hades, deus do
submundo, é o senhor dos mortos, mas também da riqueza. Ele
reina onde se escondem os medos e o tesouro dos metais nobres.
Na terra enterramos os mortos queridos. Somos na terra em
sua retração em nossa própria constrição para a morte. Assim
como a terra é em nós, também somos na terra para além do ser,
na extinção do mundo. Sua constituição material de rocha desfeita
possibilita o que a pedra nega. Penetrá-la, escavá-la para guardar
os segredos dos tesouros e dos crimes.
Por outro lado, é no solo onde se planta e se cria o alimento,
na expectativa do desabrochar. O solo é o motivo, a terra o pretexto
pelo que vivemos e nos matamos em guerras ou na partilha de bens.
O solo pátrio, onde nascemos, nos dá o com que somos, e é
constituído pelos mesmos elementos que compõem nossa massa
corporal advinda da química do solo e, também, a própria cultura em
sua manifestação mais originária do homem e da mulher “da terra”.
Escondido além da aparente simplicidade de dizer “homem/
mulher da terra”, está o segredo de sermos- “na”- terra.

O SOLO
O solo se chama chão
apenas quando se pisa
E ao se pisar, nosso peso,
Pouco a pouco, dia a dia,

comprime a areia, o saibro,


a pedra e o matacão.

47 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

E enquanto eu olho pro chão,


com ideias de matuto,

No fundo dos oceanos,


imensas placas terrestres,
se movem ao longo dos anos
movidas por elefantes!

E a chuva derrete montanhas,


e aos poucos, constantemente,
o vento carrega poeira
modelando continentes...

E enquanto eu coço a cabeça,


perdido em meus devaneios,
Uma linda cientista
desvenda mistérios profundos,

da a alma que a terra tem,


oculta por entre seus grãos,
E que por falta de nome,
denomina-se “vazios”...

E então, com mãos delicadas,


desenha uma curva elegante,
de um gráfico que revela
segredos que nunca se viu,
do solo do meu Brasil!

Os pedologistas, cientistas do solo, consideram cinco fatores de


formação dos solos. Cinco entes que vêm até nós e são mundaniza-
dos onticamente, por via da ciência empírica. Contudo, enquanto
manifestação ontológica, propomos chamar, em sua unidade de
“cultura essencial”, aquilo que se dá no “ambi-ente”, este ente
ambíguo que funde a presença com o mundo. Seguem-se os cinco
fatores de formação do solo para os pedologistas e suas contra-
partidas “culturais” por nós propostas (entre parêntesis):

48 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

1. O clima (traz o fundamento que molda os costumes e


modus vivendi);
2. O relevo (imprime aquilo que diferencia, por exemplo, o
homem da montanha do da savana);
3. O tempo (é o sendo da história da presença no jogo das
possibilidades);
4. Os seres vivos (nós mesmos que revolvemos a terra, os
bem-te-vis que cantam agora enquanto escrevo, os animais
e vegetais que habitam o interior da quadratura);
5. O material de base (tudo que vem da terra como a
arquitetura e as artes, os antepassados que vêm de
longe no tempo e no espaço, livros extraídos das arvores,
mistérios do inconsciente geográfico, nossa própria
massa corporal).

Nosso vínculo essencial com a terra vai, de maneira geral, para


além da nossa compreensão ôntica. Tal qual como a natureza, a
terra também escapa, em sua essência, ao nosso entendimento
habitual, e nem sempre sua compreensão se dá em relação direta-
mente proporcional à nossa disposição de voltarmo-nos para ela.
Historicamente temos tomado a própria natureza, a terra, o solo
e o chão como recurso, como matéria para consumo. Esquece-
mos e ou negligenciamos nossa “essência-na-terra” que nos faz
o que somos.
Contudo, ultimamente, por conta da catástrofe ambiental,
que avança a passos largos, nos vemos forçados a tentar caminhar
em direção à natureza; porém ainda perdidos, entre uma ideia de
natureza, quase sempre moldada por uma compreensão delimi-
tada pela visão das ciências naturais, ou na gula escatológica da
técnica moderna e na apropriação capitalista, que vê apenas
recurso a explorar; ou, ainda, por outro lado, no extremo oposto
do ecologismo, que elimina o homem do meio ambiente como
única possibilidade para a salvação de uma natureza desuma-
nizada. Todas as visões preconcebidas e arbitrárias onde impera
o engano da lógica predicativa do “se-então”, que mais esconde
que mostra.

49 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

A Forma
Pode parecer fundamental para a compreensão da forma, que
se inicie nosso discurso cartesianamente, pela análise objetiva dos
mecanismos corporais, os “órgãos dos sentidos”, o olho, as organe-
las do tato na epiderme, o nariz e os ouvidos. Esta é, usualmente,
a porta de entrada para o conhecimento da percepção, e a arapuca
da objetividade.
Além dessa questão em torno dos órgãos dos sentidos, ou
na sequência dela, os estudos da psicologia cognitiva explicam a
percepção da forma, subjetivamente, considerando configurações
pretensamente “primárias” (quadrado, círculo ou triângulo) ou
ainda a partir de configurações “mais simples”, como no caso de
um padrão plano que se tornaria “mais complexo” num desdobra-
mento tridimensional, sendo o segundo derivado do primeiro numa
relação de crescente “complexidade”.
Convém, de passagem, reconhecer que a psicologia da Gestalt
deu uma contribuição fundamental para a explicação de como
se processa o mecanismo da nossa percepção das imagens. A
ideia da prevalência da totalidade num padrão qualquer em sua
relação fundamental com as partes é uma verdade que trouxe
muitos desdobramentos nas ciências em geral e, por exemplo,
na teoria da arte; lembremos de autores, como Rudolf Arnheim
(1904 – 2007) ou Gombrich (1909 – 2001), e podemos constatar
como as explicações da ciência podem trazer compreensões para
um mundo aparentemente tão arredio a explicações como é o
da arte. Entretanto aqui devemos contornar o embate “objetivo
X subjetivo”. Assim, em nossa busca por fundamentos, movidos
pela disposição do questionamento, poderíamos considerar três
hipóteses para a abertura da nossa análise da forma: (1) a fisiologia
dos órgãos dos sentidos; (2) alguma abordagem subjetiva, como
a da Gestalt ou; finalmente, (3) a busca do fenômeno, que está
sempre antes das coisas e das ideias.
Parece, portanto, necessário, como propomos aqui, tentar
dar um passo atrás para ver o como da forma. Não significa que,
retrocedendo no pensamento, iniciaríamos nossa busca por um
círculo ou um quadrado; ou quem sabe um triângulo? Não, nosso

50 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

passo atrás não nos leva a uma pretensa forma “mais simples”, esta
é a armadilha da subjetividade, uma herança da lógica tradicional
onde tudo se dá como causa e consequência. Não partiremos do
“pseudo-elementar”, da pretensa “forma simples com seu contorno
e densidade interna, em contraste com a difusão do fundo etc.”
simplesmente porque consideramos que, primeiramente, não há
nenhuma “forma simples”. As três figuras geométricas mencio-
nadas, se comparadas, podem ser mais vermelhas, maiores ou
menores, mais lisas ou mais rugosas; cada qual tem sua própria
complexidade, aliás variável conforme a circunstância; contudo,
em essência, pertencem a universos diferentes, em termos absolu-
tos são sempre incomparáveis uma à outra. Portanto está fora do
nosso interesse essa forma da experiência “in vitro”.
Contudo, quem sabe? Talvez houvesse uma pretensa “forma
primordial” no próprio campo visual vazio... Mas o que é o vazio?
É o preto ou o branco? Seria o acinzentado dos olhos fechados?
Talvez a visão dum eventual vazio esbarre, inviável, no próprio
ato de perceber que, por si, já conecta “algo”. Mas ainda, tentando
insistir, talvez se pudesse, por exemplo buscar um suposto “esvazia-
mento” por meio de um tipo de “pregnância meditativa”, mas que,
talvez, se revertesse em não perceber. Em suma, seja como for,
parece-nos que quanto mais procurarmos, essa extrema simpli-
ficação da forma, haveria ainda o seu antes.
Por outro lado, buscando a via do fenômeno, não parece difícil
“nos observarmos a nós mesmos observando”, através da “janela
da alma”, por uma abertura mais ou menos arredondada, uma
elipsoide muito vaga, talvez levemente horizontal, mais intuída
que presenciada, com as bordas imprecisas, difusas, que está talvez
“desaguando” (para fora ou para dentro?), mas principalmente na
“retenção” do que se foi e na “protensão” do que virá. Aqui não há
ainda um “campo visual”, ele vem depois.
Antes, talvez um tanto por dentro e no primeiríssimo plano
está a “útil e necessária” proteção do sombrolho; nas laterais, as
“antenas parabólicas” das orelhas, obviamente não vistas, mas
fortemente sentidas, expandindo uma espacialidade que se estende
ao redor (mas principalmente para os lados e para trás) e que se
retrai num tipo de invasão espacial para o interior da cabeça (ao

51 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

mesmo tempo por trás e por dentro); os ouvidos que, com seus
“cordões de marionetes”, puxam o olhar para confirmar ou negar,
mas principalmente “duvidar” do que se vê e, simultaneamente,
o nariz 11, sempre alerta, cumprindo uma função prospectiva na
parte inferior do campo visual.
Nota-se que, numa simples auto-observação, verificamos
claramente que, no todo, ou seja, na associação do aparato olhos-ou-
vido-nariz (sem adentrar em outros desdobramentos, talvez inúmeros
e variáveis) estamos falando de algo único, fundamentalmente
inclusivo e interdependente, como numa contrapartida organo-
fenomênica da Gestalt. O predomínio da visão se dá apenas até
que nos lembremos do que significa uma noite na mata fechada
sem luar. Além disso, provavelmente em nossa condição silvícola
original, a importância desse sistema integrado seria, certamente,
bem maior. Contudo ainda não termina aqui.
Essa necessária complexidade, que, na verdade, se transforma
em simplicidade porque se funde pela inclusão (e não analiticamente
numa cadeia lógica), vai ainda mais longe, inclui o movimento, as
rotações, translações e toda a complexa biomecânica do mover-
nos em sincronia com todos os aspectos descritíveis ou não da
presença, de estar no mundo. O caminhar sobre, ao longo de,
entre, através, dentro ou fora e em torno, sempre na expecta-
tiva do porvir e na retenção do que se apresenta, com todas as
estranhas e misteriosas coisas que se escondem no cotidiano mais
corriqueiro, e se mostram nas situações mais surpreendentes.
Entretanto, surge em nossa busca prévia da forma, o mais
banal: as mãos. Em nosso mover-ver-ouvir-farejar (antes de cheirar)
como um único e inseparável evento, ao mesmo tempo irrelevante
e, por isso mesmo, profundamente insondável, as mãos, essas,
partes do todo, que guardam a marca da nossa personalidade,
que também participam e, na verdade, coordenam, esse feixe
absolutamente unitário e integrado, determinando o sentido de

11  Este ornamento, que foi, no passado remoto dos nossos ancestrais, um
órgão fundamental para a sobrevivência, mas, que com o tempo, foi, aos poucos,
perdendo sua função vital e, ainda que preserve vestígios de sua função defensiva
e prospectiva, como tudo que fica obsoleto, voltou-se principalmente para os
prazeres.

52 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

proximidade pela possibilidade do tátil, pelo domínio do “pegar


o que”, por conseguinte, baliza também o sentido primordial da
distância.
Pronto! Parece que, enfim, temos nosso “canivete suíço” para
lidar com a forma em sua essência cambiante, quase liquefeita,
pois necessita sempre ser reconstituída na presença.
Somos essencialmente nossa corporeidade no mundo, nem
mais nem menos, o visibilismo é uma parte, importante, mas sempre
parte. Podemos então tratar daquilo que nos propusemos, o como
revelador do que. Entretanto o como já foi indicado pelo filósofo.

A presença, no entanto, está e é “no” mundo, no sentido


de lidar familiarmente na ocupação com os entes que
vêm ao encontro dentro do mundo. Por isso, se, de algum
modo, a espacialidade lhe convém, isto só é possível com
base nesse ser-em. A espacialidade do ser-em apresenta,
porém, os caracteres de distanciamento e direcionamento
(N32). (HEIDEGGER, 2001)

A forma então se dá em primeiro lugar na presença, no mundo


constituído como uma estrutura prévia que antecede a qualquer
concepção perceptiva do visibilismo. Assim, na direção e na distân-
cia apresenta-se a forma e é onde ela também se esconde. Aqui,
sendo a mudança e o movimento as regras fundamentais, vemo-nos,
com relação à compreensão da forma, na disposição da sua busca,
no modo de ordenar o mundo.
As formas são a confirmação ou a negação das referências num
escaneamento, sempre parcial e incompleto. Husserl nos revela a
apropriação da forma constituída na consciência: “ao andarmos em
volta de uma mesa a forma se constitui na consciência por meio
da alternância entre protenção e retenção etc.” Contudo tem um
“antes”, esse antes ocorre, por exemplo se tomarmos, não muito ao
acaso, um objeto, um martelo: visto isolado contra um fundo liso e
contrastante, como uma folha de papel, sua forma longa no cabo
e a cabeça transversal se apresentam nitidamente, sua materia-
lidade de madeira e ferro também, contudo se imaginamos esse
mesmo martelo no emaranhado de uma caixa de ferramentas

53 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

desorganizada é necessário que o antes se faça presente para que


o mesmo martelo seja identificado pela sua forma, caso contrário a
ferramenta será percebida apenas como parte de um emaranhado.

Forma e Paisagem
A noção de natureza em Aristóteles implica particulari-
dade e diferença. Physis, ‘natureza’ em grego, significa em
primeiro lugar ‘ação de engendrar, de produzir, de fazer
nascer’; Aristóteles, por sua vez, define o termo como
‘princípio de movimento e de repouso’, ou, mais precisa-
mente, ‘princípio e causa de movimento e de repouso,
imediata e essencialmente presente naquilo em que se
encontra’ (BERNHARDT, 1973).

Para Aristóteles a natureza é “princípio e causa de movimento


e repouso”. Para tratar da questão da forma da paisagem tomemos a
nossa cidade, o Rio de Janeiro a qual, apesar da insistente destrui-
ção que sempre tende ao pior, permanece em seu “movimento” dos
depósitos sedimentares que serpenteiam por entre o “repouso” dos
morros de gnaisse, cansados dos milênios. Na área de influência
da Baía da Guanabara, o relevo, bastante acidentado, foi drasti-
camente modificado durante a formação e desenvolvimento da
cidade e, apesar de tudo, persiste a beleza teimosa que resulta do
jogo das forças naturais em conflito com a intervenção humana.
A Geomorfologia é um ramo da Geografia Física que estuda a
forma e as transformações do relevo, levando em conta também
os aspectos climáticos e ambientais decorrentes da configura-
ção da paisagem. Enquanto o movimento da vida dos animais,
como nós, segue ciclos do dia e noite, das estações, da vida e da
morte, a grande engrenagem do tempo geológico gira contínua e
lenta, mas também dá voltas, grandes voltas, no sobe-desce dos
oceanos e a movimentação das placas tectônicas que vêm e vão,
no soerguimento de cordilheiras e o trabalho contínuo da erosão,
lenta, mas persistente, pondo abaixo tudo que se levanta, sejam
as grandes montanhas ou nossos velhos edifícios.

54 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

Por um lado, a ação do bicho-homem tenta impor seu mundo


repleto de coisas, pessoas, devastação, carbono e lixo, forçando
os limites do humano contra o natural. Por outro lado, a força dos
elementos, que segue em seu passo de gigante, opõe resistên-
cia à ação antrópica, a qual, cada vez mais assume escala global,
transformando o desequilíbrio e a catástrofe, que já seriam uma
possibilidade natural, em certeza.

O Ser originário da paisagem


Nosso modo-de-ser tem nos afastado da relação com os valores
mais essenciais da vida, mas na maioria das vezes só atentamos
a isso quando já é tarde demais. Contudo pela via da compreen-
são de que é possível mudar podemos direcionar uma disposi-
ção autêntica e reverter o que parece ser irreversível, pois se o
mundo é produto do meu modo-de-ser só é possível mudar o mundo
mudando a maneira de lidar com ele.
Em termos gerais é necessário mudar padrões de consumo,
andar a pé ou de bicicleta, economizar água e reduzir emissões de
lixo e poluentes, reciclar, atuar política e socialmente, educar as
crianças etc. Em termos específicos, ou seja, naquilo que compete
ao arquiteto, deve-se primeiramente reduzir o consumo de energia
e custos de manutenção, voltar-se ao requinte da simplicidade;
buscar os materiais renováveis, alternativos, tradicionais, locais
ou, no mínimo, com boa durabilidade; fazer projetos flexíveis e
voltados ao sentido de lugar, que transcendam a estrita materia-
lidade do construído e que busquem as relações com o sítio, com
a cultura local, com o sol, a lua e as estrelas, a chuva e o vento, a
fauna e a flora locais.
Mas todas essas iniciativas se referem à ôntica, ou seja, ao ente
ambiental. Em termos da ôntica podemos buscar os números, os
índices e mesmo a qualidade. Pode-se mesmo avançar para um
ambiente menos mal. Contudo, uma verdadeira mudança deve ir
além do ente, deve atingir o ser, ainda que potencialmente.
É na plenitude do ambi-ente, onde ser, estar e fazer conver-
gem para o gerúndio, na presença. O “sendo” na quadratura é o

55 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

contrário da alienação ôntica que vela a verdade da nossa ligação


mais originária com a vida. Só podemos então aprender com
quem de fato é.
O indígena, tem a plenitude do sentido de lugar no meio natural,
entre o céu e a terra, na disponibilidade das coisas simples, na
dádiva perene dos rios de água fresca, entre as árvores, plantas e os
animais, tudo trazido à condição habitual, manuseável, até mesmo
corriqueira, onde as coisas da natureza e, portanto, ela própria,
desprovida dos preceitos e dos conceitos, está em sua condição
utensiliar e, portanto, deixa de ser uma questão e desaparece.
Para o indígena aquilo que nós denominamos paisagem
não é algo discernível, pois coincide com o mundo. Justamente
por estar à mão ela se dissolve nos fazeres diários. Torna-se
habitual. É envolvida pelo pertencimento que se desdobra a
partir dos manuseios cotidianos mais simples, como preparar
a comida; passando pela instância dos domínios da circunvi-
são, nos caminhos da caça e da coleta traçados pelo próprio
caminhar; ante o mistério dos limites desconhecidos, até chegar
às profundezas insondáveis dos deuses, que, por sua vez, acedem
aos mortais através dos ritos. Tudo nos f luxos e ref luxos da
convergência da quadratura.
Mas isso não nos pertence mais. Apenas atingiríamos uma
condição de ser no ambi-ente, quando essa questão deixasse
de ser uma questão. Condição há muito perdida por nós outros,
onde a natureza e a paisagem surgem pela ruptura de não sermos
nela. Para nós ela se dá como recurso ou objeto da ciência, como
valor histórico ou artístico 12 , ou ainda como mercadoria para
uso ou troca.

Outro Olhar
Assim se deu, já de início, com os colonizadores que aqui
chegaram, envolvidos em seus respectivos mundos das referências
eurocêntricas, através das quais viam os indígenas como idiotas,

12  De maneira muito artificiosa, conforme questionamos aqui.

56 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

crianças inocentes (que, talvez, nem alma tivessem). Fecharam


os olhos para aquilo que consideravam atraso e trouxeram sua
própria compreensão da paisagem, por exemplo, conforme nos
parece, já de início pelo nome dado à Cidade de São Sebastião do
“Rio” de Janeiro. Chamar “Rio” sugere uma compreensão prévia,
dada pelo conhecimento prático de geografia. A interpretação
da toponímia leva-nos a pensar que, talvez, os primeiros olhos
experimentados que aportaram por aqui reconheceram, na Baía de
Guanabara uma configuração geográfica tipicamente fluvial. Hoje
essa visão pode parecer estranha (confundir a Baía de Guanabara
com um rio!) mas, na verdade, de fato, o que corresponde à atual
baía é bastante diferente do que em outras épocas, milênios
antes. Num passado remoto, quando o mar estava em um nível
bem mais baixo do que o atual. Havia mesmo um rio, hoje oculto
pelos sedimentos, que escavou um sulco profundo deixado pela
passagem das “águas milenares”, uma calha escavada na rocha
de base com aproximadamente 100 metros de profundidade que
corresponde ao leito desse rio ancestral, oculto sob uma volumosa
camada de sedimento, mas, provavelmente intuído pelo olhar
altamente referenciado de navegantes calejados.

“Princípio e Causa de Movimento e Repouso”


Então, alimentada por rios de água doce, ricos em matéria
orgânica carreada desde as nascentes e ao longo dos vales, a
Guanabara foi acumulando generosas reservas de matéria orgânica,
que possibilitaram a proliferação de diversos ecossistemas inter-re-
lacionados de maneira complexa.
O estuário produziu então uma fartura de alimento que os
nossos antepassados indígenas conheceram bem. As águas calmas
protegidas da fúria do mar aberto eram como um grande útero
que acolhia e alimentava a minhoca, o peixe e o golfinho, a baleia
e o homem. Entretanto, a formação e desenvolvimento da área
metropolitana do Rio de Janeiro (maior concentração de habitan-
tes na costa brasileira) transformou profundamente o cenário
paradisíaco original.

57 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

A Geografia original do Rio de Janeiro constituiu-se num


fator determinante para a história de sua ocupação. A região
era então entrecortada de “praias formosas” e manguezais. A
paisagem ondulante do mar e das montanhas de pedra entremeadas
pela mata13 que envolve a cidade constitui uma imagem caracte-
rística da orla do Rio de Janeiro, “hoje patrimônio mundial”. No
conjunto da paisagem, o padrão curvo dos depósitos sedimenta-
res, se acumulam desde o entorno dos inselbergues rochosos e
se despejam para o mar em mangues e restingas serpenteantes.
Tentemos então, dando mais uma volta no caminho do
pensamento, fazer um exercício de análise dessa forma geográ-
fica: partimos do pressuposto de que quando uma forma qualquer
consegue expressar visualmente o fenômeno que a gerou, ocorre
na nossa percepção uma sensação que faz vibrar em nosso ser
uma disposição, que podemos chamar (na falta de outro nome)
de “beleza”, ou antes, um reconhecimento que poderia inferir-se
que fosse de caráter estético. Contudo a estética, ou a filosofia
da arte, é uma compreensão que vem depois da “compreensão
prévia”, muito bem exemplificada na abordagem da Poética do
Espaço de Bachelard (BACHELARD, 1993).
Cumpre ressaltar que a poética não é meramente o exercí-
cio do diletantismo, mas antes a busca de uma abertura para a
verdade. Então esse reconhecimento que seguiremos chamando
pelo conceito vago de beleza, na falta do termo preciso, acontece,
por exemplo, com a sequência de verticais e horizontais do
sistema arquitravado, ou com as pedras que se comprimem
mutuamente num arco, ou ainda com a clareza expressiva de
um sólido contraforte. O desenho conceitual de Leonardo da Vinci
evidencia, também, ao olhar atento, o olhar do mestre para essa
relação entre a coisa (o ente) e o fenômeno (o ser). Suas investi-
gações de anatomia, ou os estudos do movimento das águas,
conseguem captar a expressão visual do como dos fenômenos,
através da sua “morfogênese”. Temos aqui, portanto, empres-
tado da geomorfologia, o termo que leva ao sendo na forma da
paisagem. Nas áreas costeiras em geral, mas nos estuários em

13  Quase inteiramente reflorestada com muitas árvores exóticas como a jaqueira.

58 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

particular, o sendo da forma se inicia no depósito de sedimento


arrancado da rocha pela erosão que, transformado aos poucos
em solo, permitiria o triunfo da vegetação da mata atlântica,
hoje praticamente extinta.
Os acúmulos sedimentares se despejam então entre os
promontórios costeiros e entram numa luta entre duas forças
inerentes à natureza: uma que tende para baixo, que aos poucos
desmancha montanhas, e que transporta os sedimentos através
dos rios; e a outra força, de sentido contrário, do mar, que algumas
vezes é mansa e por outras feroz. O equilíbrio dinâmico entre
essas duas forças produz a curvatura cambiante das praias,
das restingas e dos manguezais, através da dinâmica da forma
mutante da paisagem, onde entram também o misto de fatores
que vão desde o incansável remexer da atmosfera, o refluxo dos
oceanos e das marés, a mecânica lenta e pesada da geomorfologia,
chegando até o minúsculo, mas determinante, tamanho dos grãos
de areia da praia.
Também, a partir de uma leitura analítica, a paisagem da
nossa cidade se dá como associação de elementos:

1. As montanhas de pedra são elementos sólidos – barrei-


ras a romper ou contornar, marcos referenciais ordena-
dores e identificadores do espaço;
2. A praia, a restinga e o mangue são o encontro das formações
sedimentares, onde o solo se encontra com a areia, portanto
apresentam consistência moldável – hoje, apinhadas de
gente, poluídas, modificadas por aterros diversos são um
artifício resultante da disputa pela vista do mar. Visitar
uma praia oceânica como as da ilha grande, no litoral
sul do Rio de Janeiro, por exemplo, pode mostrar o que
é realmente uma praia em sua inserção como a barreira
cambiante que emoldura e limita o litoral onde a vegetação
insiste em tentar ocupar e, ao mesmo tempo enfrenta a
força das investidas do mar. As políticas urbanas deveriam
observar melhor a questão dos litorais!
3. O mar é líquido, portanto, f luido, perene e mutante,
irrompe e cede, delimita e expande. Dele vamos evitar

59 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

falar para não nos perdermos no seu poder e imensidão,


deixemos o trabalho para a descrição precisa de Dorival
Caymmi.
4. A atmosfera e o seu predomínio voraz, mal disfarçado pela
transparência do meio espacial, ao menos em condições
de tempo bom.

Mundificação e Antropia
Como decorrência da lenta e complexa modelagem da
paisagem, que se processou durante os tempos geológi-
cos, combinada com mudanças ambientais de clima e
nível do mar foi produzido na Baía e Bacia da Guanabara
um diversificado complexo de ecossistemas que inclui:
Mata Atlântica, campos de altitude, manguezais, brejos,
alagados, pântanos, lagunas, restingas, dunas, praias,
rios, estuários, enseadas, sacos, gamboas, ilhas, lajes,
coroas, costões e pontões rochosos, falésias e feições
ruiniformes. Cada um desses ecossistemas possui um
significado ecológico particular e uma inter-relação
com o ecossistema da Guanabara como um todo. Alguns
desses ecossistemas foram literalmente destruídos
durante a ocupação histórica, iniciada com a coloni-
zação europeia, como as restingas, sistemas f luviais,
pântanos; outros foram irremediavelmente mutila-
dos, como as enseadas, sacos, gamboas, estuários,
lagunas, praias, manguezais, Mata Atlântica e ilhas. Os
costões rochosos, que caracterizam a entrada majestosa
da Guanabara, em função de suas características de
difícil acesso e impropriedade para a agricultura ou
ocupação, e os campos de altitude, situados no topo da
Serra dos Órgãos, foram os únicos ecossistemas que
permaneceram relativamente incólumes. No entanto,
mesmo alguns costões rochosos foram mutilados por
aterros, como nos realizados para a formação do bairro
da Urca. (AMADOR, 1997)

60 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

Na antiga conformação geográfica da cidade, os quatro estados


de consistência (acima mencionados) mais os elementos vivos,
entremeavam-se de maneira complexa no jogo de ação e resistên-
cia entre os elementos.
As ações antrópicas incidiram inicialmente sobre as áreas de
terra firme e os morros e em seguida, a medida em que aumentou
o interesse de ocupação dos colonizadores, as áreas sedimenta-
res como os mangues e restingas foram sendo suprimidas pelas
“benfeitorias” como aterros, a drenagem e a canalização. As encostas
foram ocupadas de modo predatório, os rios retificados ou canali-
zados e os mangues aterrados, destruindo irremediavelmente toda
uma rede de inter-relações para sobrepor-lhe relações diferentes,
um mundo sobre outro.
Contudo, embora siga se destruindo a paisagem (como no caso
da recente comédia de erros da ciclovia Tim Maia) a tal “beleza”
subsiste como uma verdade a ser revelada, como potenciali-
dade! Nos rios que passam na tubulação sob a terra, onde ainda
se vê alevinos como nas bocas de lobo do Catete, nos sedimen-
tos que seguem sendo trazidos pela água, enfim, na paisagem
quase indestrutível que resiste bravamente. Nisso, e em muito
mais, a grande roda da natureza segue girando sem parar, parte
manifesta, parte em segredo, o pouco que resta serve ainda de
base para diversos ecossistemas, que, embora fragmentários,
mas de grande importância ambiental, servem como substrato
para inúmeras formas de vida, além de constituírem recursos
paisagísticos que guardam, talvez, possibilidades de requalifica-
ções. Apesar da cegueira, da burrice e da ganância, sempre haverá
a possibilidade da reversão.
A geografia da cidade foi irremediavelmente alterada por nossa
ocupação que vê a natureza como empecilho, como recurso ou
como um nada. A antiga configuração paisagística, característica
da formação geográfica de toda a região, cedeu lugar à configu-
ração artificial resultante da supressão dos elementos. Onde se
encontravam em harmonia “o céu e a terra, os deuses e os mortais”.
Pensamos que é necessária e fundamental a disposição de buscar
no projeto urbano a potencialização das relações perdidas, “reverter”
o sendo do ambiente para o modo ambi-êntico. Precisamos buscar

61 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

conceitos essenciais e voltar-nos para as preexistências, todas elas,


no modo existencial. A sustentabilidade e a reciclagem são pouco mais
que paliativos, modos deficientes já apropriados pelo consumismo
e esvaziados na banalidade dos modismos de paredes verdes.

Patrimônio ou “Ambi-ente”?14
“Qualquer ideia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua.
O autor nada mais fez que vestir a verdade
Que dentro em ti se achava inteiramente nua...”
(Quintana, 2005)

O geógrafo maranhense, Raimundo Lopes, na primeira edição


da Revista do Patrimônio do então recém-nascido SPHAN, no ano de
1937, antevê de maneira excepcional a questão da relação fundamen-
tal entre patrimônio e natureza que aqui propomos desenvolver:

Fala-se geralmente da proteção à natureza, da restau-


ração dos monumentos históricos e de outras elevadas
manifestações de nosso idealismo civilizado; para muitos,
porém, não se evidencia o laço íntimo que as liga [...]
protege-se a natureza para o bem da cultura; e a recíproca
é verdadeira: o amparo aos monumentos da cultura reverte
em proteção à natureza. (LOPES, 1937)

Essa asserção, aparentemente simples, guarda uma compreen-


são fina no domínio verbal. Sua forma circular é, curiosamente,
um atalho para resolver aquilo que aqui nos leva a dar muitas
voltas com as palavras. Leva-nos também à disposição de fazer o
caminho contrário, em direção aos “monumentos” e não a partir
deles, ou mais claramente, leva-nos a refazer, em nosso discurso,

14  Consideraremos aqui o termo hifenizado para designar o caráter impresso na


etimologia da palavra que evidencia o “ente ambíguo” e que, conforme nos parece,
revela o fenômeno da presença.

62 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

esse círculo proposto pelo autor, iniciado pela natureza, passando


pelos monumentos e voltando novamente à natureza.
Dizemos “caminho ao contrário” porque todo caminho percor-
rido pela “alegoria do patrimônio”, desde a ideia das “antiguidades
nacionais” da Europa novecentista até os “patrimônios universais”
da atualidade, emana (de fato ou de maneira subjacente) a partir do
objeto arquitetônico, do monumento ou de alguma “coisa”, coisificada15
enquanto objeto de interesse e de atribuição de valor. Em especial
pelo seu reconhecimento enquanto documento histórico e artístico.
Essa emanação irradiada da coisa se dirige para o chamado “entorno”
(uma espécie de “sub-coisa” de alguma maneira subordinada).
Assim ocorreu também com a “coisa natureza” (ou alguma das
muitas ideias que dela se tem). A natureza, enquanto patrimônio
cultural, veio aos poucos entrando para rol das cartas patrimo-
niais e para os livros de tombo. Ocorreu, a princípio, sem que
se soubesse muito bem como encaixá-la enquanto documento
histórico e como obra de arte; até quando, ao longo do século XX
a natureza, a paisagem, ou o sítio, em sua personalidade múltipla,
foi se ajustando ao conceito, que nos parece sintomaticamente
redundante: “a paisagem cultural” (como se a ideia de paisagem por
si só já não implicasse cultura). A mesma redundância sintomá-
tica se dá no conceito de “arquitetura ou cidade, histórica”, como se
não fosse toda e qualquer manifestação urbana um fato histórico.
Seguindo, contudo, a intuição de Raimundo Lopes, propomos
fazer o caminho contrário. Para nós o monumento passa a ser “o
entorno do entorno” e deixa de ser uma coisa, pois com-funde-se
no lugar, num modo de apropriação que envolve uma interpretação
hermenêutica, um movimento circular que envolve arquitetura,
entorno, paisagem e natureza enquanto fenômeno de sermos-
no-ambiente e como projeto urbano.
Cumpre aqui observar de passagem que com Heidegger chegamos
à conclusão de que somos realmente criaturas peculiares em nossa
relação com a natureza. Vemos o mundo de maneira muito estranha,
formamos mundos dentro do mundo. Em nosso mundo, onde se revela

15  Note-se que inclusive o conceito de patrimônio imaterial não deixa de ser
uma coisificação.

63 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

a nossa essência enquanto modo de ser, a natureza desnaturaliza-


se. Reinventamos uma natureza artificial, mundanizada e, para nós
ela não é mais o que era em sua imanência de “Deus ou natureza”
proposta por Espinosa; passa a ser ameaça ou desafio, objeto de
adoração ou apenas recurso material. A história é, sob certo ponto de
vista, a história do afastamento da natureza e a história das cidades
a comprovação material disso. O mundo urbano é a versão material
do nosso modo de ser, onde a natureza, digamos “natural”, por seu
caráter imanente, fechado em si, está excluída, é o nada.
Na condição de nada a natureza é tudo que está fora do nosso
alcance, a substância inacessível, o desconhecido; território onde as
ciências naturais ainda não chegaram, tudo aquilo que os olhos não
podem ver, as mãos não podem tocar sem que a natureza deixe de
ser ela mesma. Estamos condenados à maldição de Midas, e mesmo
se nos retiramos, como Robson Crusoé, ainda assim carregamos
conosco o mundo, permaneceremos envolvidos essencialmente
em nossa condição de ser-no-mundo-desnaturalizado.
Assim, descartamos, em nossa busca, o ideal romântico do bom
selvagem. Voltar à natureza é impossível, pois estamos atrelados a
um mundo que não permite retorno. Entretanto somos, essencial-
mente, em direção às possibilidades. Temos, a nosso favor uma
pequena margem de manobra naquilo que Heidegger chama de
autenticidade. Nossa autenticidade possibilita a abertura para o
diferente, para simplesmente não aceitar as circunstâncias.
Mas como, então, promover a ação autêntica e resolver o
paradoxo de não aceitar a condição que não se pode resolver?
Como transpor o intransponível?

A Potencialidade16
Uma bela escultura de uma deusa grega do período
clássico não é apenas reconhecida como objeto artístico,

16  Excerto da minha dissertação de mestrado onde o tema da potencialidade era


tomado dentro do conceito de restauração. Conferir Campos (2002); aqui reapro-
priado em termos das relações ambientais.

64 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

sua imagem é mesmo um símbolo daquilo que se


entende por arte. Mas o que dizer desta mesma obra
que permaneça soterrada, oculta da pá do arqueólogo
e dos olhos das pessoas. Nessa condição hipotética,
nossa bela deusa, símbolo da perfeição que ninguém
vê, poderá ser ainda considerada uma obra de arte?
Entendemos que sim, embora apenas potencialmente.
Uma vez que se iniciem escavações no sítio onde fica
a tal escultura, e descubra-se o contexto ao qual ela
pertencia, aumenta sua potencialidade artística que
acaba por se realizar quando ela renasce pelas mãos
do arqueólogo. Por outro lado, se a mesma peça de
mármore teve seus braços decepados e perdidos
para sempre, ela terá perdido também parte de sua
potencialidade, ou mais especificamente, de sua
“unidade potencial”. Nossa sofrida obra continuará
se enfraquecendo artisticamente na medida em que
aumentem as lacunas até quando só lhe restarem as
pernas, e mais, e mais com perdas sucessivas; todavia,
enquanto exista um fragmento que possa mostrar as
marcas do cinzel, ou alguma superfície ondulada de
um tecido esvoaçante, ou um pedaço que denuncie um
trecho castigado da pele outrora polida da nossa bela
escultura, estará ali um pálido esforço da matéria em
permanecer viva no mundo da arte. Um bom observa-
dor poderá ainda ser tocado pelo encanto poético que
emana desse fragmento. Após tamanho sofrimento a
que tenhamos submetido a tal obra, ela terá perdido
totalmente a unidade originária revelada no ato de sua
criação, e quando existam apenas alguns fragmentos
indefiníveis de rocha, deixará o universo da arte, candida-
tando-se, quando muito, para o mundo da Arqueolo-
gia, da História, ou da Geologia. (CAMPOS, 2002)

Entendemos por potencialidade como a possibilidade, maior


ou menor, que o objeto tenha de vir a ser mundanizado, trazido
para a existência.

65 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

Potencialidade e Possibilidade
Aqui trazemos um conceito da matemática que pode ilustrar
a ideia daquilo que tende a algo, sem nunca chegar efetivamente:
a ideia da função exponencial. Assim, quanto mais nos voltemos
para o nosso modo de ser autenticamente, tanto mais podería-
mos nos aproximar da natureza ainda que jamais chegaría-
mos efetivamente a ela, pois ela estará sempre fechada na sua
imanência. Contudo, por meio da função exponencial, ou seja,
“tendendo a”, talvez possamos colher muitos resultados como
na fabula a seguir:

ARROZ NO TABULEIRO DE XADREZ


De acordo com a lenda, um rei indiano foi, certa vez,
presenteado com um tabuleiro de xadrez feito à mão,
e ao perguntar para o homem que havia lhe dado o
presente o que ele gostaria de receber em recompensa,
o homem disse que gostaria de receber o pagamento
em arroz, sendo a quantidade do grão relativa às casas
do tabuleiro: um grão na primeira casa, dois grãos na
segunda, quatro na terceira, oito na quarta, e assim por
diante. O rei concordou com a condição, e de pronto pediu
para que o arroz fosse dado ao homem, porém, chegada
na vigésima primeira casa, já eram necessários mais
de um milhão de grãos de arroz, e antes de chegar na
casa número 50, já não haveria mais arroz suficiente no
mundo (WIKIPÉDIA, 2019).

No Limite do Ser Arquitetura a Ruína

A RUÍNA
A ruína sempre começa numa linha que se desfia,
numa farpa, numa lasca ou na louça esquecida na pia.
Em seguida aparece um vento, que entra sorrateiramente,
e rouba a alma das coisas, de um jeito que a gente nem sente!

66 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

E então, na primeira brisa, a alma logo se solta.


E quando ela se desprende fica um molusco sem concha,
deixando caminho aberto pros inimigos à volta:
O primeiro é a artilharia, que é própria gravidade!

As forças navais são a água, que sempre dissolve tudo!


Os cupins, a infantaria, e são vorazes criaturas,
feitas só de boca e ânus, unidos por um canudo!

Mas, em suma, é com a perda da alma! Assim nascem as ruínas:


A humana é de dentro pra fora, e é produto do destino!
A das coisas, de fora pra dentro, e é conforme descrito acima.

A ruína potencializa a natureza, tende para ela. Em seu


desfazer-se pela ação dos elementos, o artefato consome esponta-
neamente a energia humana colocada na sua feitura e, gradativa-
mente, desgarra-se do mundo dos utensílios voltando, em matéria
e essência, ao seu pertencimento originário de simplesmente
não pertencer.
Há uma estranha dialética entre a ruína e a arquitetura,
esses dois entes diferentes cujos seres são também distintos.
E ainda que ocupem o mesmo espaço em tempos diferentes, se
complementam numa temporalidade única. Para nós a ruína é
o portal da reversão, é a abertura para uma natureza potencial.
Numa ruína verdadeira, ou seja, aquela deixada na sua
condição mais originária (que é essencialmente processual)
vivenciamos sempre um estranho espetáculo, um misto de
fascinação, por aquilo que teima em resistir, e de angústia,
pelo que se vai. As ruínas arrumadinhas são algo diferente,
pois a recomposição (ainda que pelo método mais ou menos
rigoroso da anastilose) mumifica a matéria morta e caótica da
ruína e rouba-lhe o encanto dramático, numa comprovação de
que, muitas vezes, consertar é destruir pelo avesso, tal como
se dá na restauração reconstitutiva em geral. Na condição da
ruína autêntica está a verdade da condição humana, em meio
às vigas caídas sobre os restos da vida, por baixo da poeira que
se acumula.

67 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

Georg Simmel (1858 - 1918) já formulou o conceito de ruína


que atende à compreensão clara de que se trata do encontro
de duas forças antagônicas, a força da arquitetura que, contra-
riando as leis da natureza, ergue o improvável em oposição aos
elementos, os quais, no sentido contrário, tendem para baixo.
As ruínas são então os ralos do mundo por onde as referências
mergulham, se perdem e a natureza retoma para si aquilo que
lhe foi usurpado.
Mas, como diz o poeta, “desde que se nasce já se começa a
morrer”, portanto a arquitetura está fadada a nunca poder triunfar
absolutamente sobre a incansável força da natureza que, noite
e dia, segue sempre em frente sem dar trégua, pois o desgaste
é constante e todos sabemos muito bem da eterna luta contra a
morte que nos obriga a, sempre, estarmos na faina da conserva-
ção das nossas coisas pessoais, da nossa casa etc.
A condição do constante desgaste coloca a necessidade da,
também constante, disposição em conservar. Assim, a constância
da luta entre a degradação e a manutenção são o próprio sendo
da arquitetura em sua materialidade. Este ente que está fora do
contexto das leis naturais que é a arquitetura depende fundamen-
talmente de ser cuidado e pode sê-lo em diferentes modos: desde
a sua constituição, para a conservação, a modificação ou a supres-
são e o abandono.

A Ruína – Entre a Arquitetura e a Natureza


Concluímos esse primeiro capítulo no limbo entre natureza
e arquitetura, para retornar, em seguida, nos mesmos termos.
Contudo, falta ainda uma questão importante de caráter prático que,
como arquitetos, nos concerne diretamente para uma compreen-
são projetual, e que está em saber o “quando” da ruína, ou melhor,
quando a arquitetura deixa de ser arquitetura e entra para a categoria
ruína? Pergunta que deixa sempre intrigados os alunos de projeto.
Pensamos que isso é um pseudoproblema que surge por tentar-
mos submeter a questão ao se/então da lógica predicativa ou ainda
por conta do nosso pragmatismo científico. Suponhamos então,

68 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Fundamentos

que, pela via da ciência, fôssemos determinar o quando da ruína


pela via numérica, por exemplo, o percentual de arruinamento.
Mas quanto? 50%, 30%? Obviamente é absurdo usar o parâme-
tro percentual.
Poder-se-ia, entretanto, como alternativa à solução numérica,
pensar no acontecer das coisas, num determinado evento como
a queda do telhado; neste caso a exposição do espaço interior ao
céu pareceria um parâmetro razoável para apontar o nascimento
da ruína, na medida em que se dirige ao fato de que, a falta da
cobertura apresentaria no espaço interior, o céu, esse elemento
natural por excelência que invade e rompe o caráter de fechado
que caracteriza essencialmente a arquitetura, representando
verdadeiramente a dita “retomada da arquitetura pela natureza”.
Contudo, ainda assim, seria discutível, se chegamos mesmo, de
fato, à condição de ruína, de acordo com o estado de conserva-
ção das paredes etc.
Portanto, pela maneira como a questão se coloca, pode-se
chegar à conclusão que definir a ruína é uma daqueles típicos
problemas que diferenciam as ciências da natureza das ciências
humanas, quer dizer: os números não podem explicar aquilo que
pertence exclusivamente à esfera da interpretação, além disso,
a disposição de cada intérprete levaria a compreensões distin-
tas: o arruinamento da casa dos meus antepassados seria visto
de maneira diferente do mesmo fato em casa de estranhos ou
de, por exemplo, inimigos. Schleiermacher (1768 – 1834) dizia
que nas ciências naturais ocorre “explicação”, nas humanas,
“compreensão” (SCHMIDT, 2014). A Ruína não pode ser explicada
pela ciência, é perda de tempo, pode, contudo, ser compreen-
dida e interpretada.
Concluímos esta primeira parte, que trata de fundamentos,
na interface, entre o ser e o não ser da arquitetura, em sua contra-
posição à natureza, onde ela se insurge e para onde ela, mais cedo
ou mais tarde, retornará.
De fato, parece mesmo que o ser habita as interfaces.
Caminhemos, então, agora, em direção ao “fenômeno que
constitui a arquitetura”, em busca da sua essência. Percorrer suas
interfaces talvez possa nos levar até aquilo que ela é.

69 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


3 O FENÔMENO ARQUITETURA

O Habitar Imanente - “A Concha”


À concha corresponde um conceito tão claro, tão seguro,
tão rígido que, por não poder simplesmente desenhá-la,
o poeta, reduzido a falar sobre ela, fica a princípio com
deficiência de imagens. É interrompido em sua evasão para
valores sonhados pela realidade geométrica das formas. E as
formas são tão numerosas, por vezes tão novas, que, a partir
do exame positivo do mundo das conchas, a imaginação é
vencida pela realidade. Aqui, a natureza imagina e a natureza
é sábia. Bastará olhar um álbum de amonites para reconhecer
que, desde a era secundária, os moluscos construíam sua
concha seguindo lições de geometria transcendente. Os
amonites faziam sua morada no eixo de uma espiral logarít-
mica. Encontraremos no belo livro de Monod-Herzen uma
exposição bem clara dessa construção das formas geométri-
cas pela vida. (BACHELARD, 1993)

A relação entre habitar e construir está oculta sob os fazeres


cotidianos, ou ao menos não se mostra com tanta clareza como ocorre,
por exemplo, com nosso primo distante, o molusco. Esse mestre da
geometria constrói ao mesmo tempo em que habita sua carapaça de
cálcio forjada a partir da sua gosma corporal. Em sua “autoconstru-
ção habitada” o molusco gastrópode é, talvez, a mais perfeita fusão
entre construção e habitação e representa o modelo ideal do que
significa habitar essencialmente, como manifestação originária.
Assim, em sua ontologia do construir-se, esse clássico da natureza
projeta-se num único vórtice, entre o infinitesimal (para dentro), e
o infinito (para fora) num gesto corporal que se consolida na forma.
Um amonite espiral, na sua oficina secreta, aciona sua enerva-
ção e aninha alquimias intangíveis ao anatomista e ao fisiologista
que, mesmo com todas as técnicas do laboratório digital, jamais
poderão compreender os segredos do fenômeno do ser em toda sua

70
O Fenômeno Arquitetura

extensão. O microcosmo neuroquímico movimenta um insondá-


vel turbilhão da vida, que mergulha e aflora em si mesmo gerando
campos elétricos, que alguns predadores aprenderam a captar.
Os fluxos de energia desdobram-se em movimentos centrípetos
até a escala infinitesimal das subpartículas; ao mesmo tempo que
se projetam num vórtice que tende ao infinito para fora, para o
mundo, lançando para o meio externo os tentáculos da intencio-
nalidade, não no sentido figurado, mas como encarnação (ou será
que podemos pretender que aquilo que Husserl chama intencio-
nalidade seja uma exclusividade do bicho-homem?).
Enfim... prosseguindo em sua incrível odisseia meditativa
(porque cega, surda e muda), o molusco, esse milagre da persis-
tência evolutiva, repete um processo milenar, e se projeta forte e
frágil perante o incomensurável, diante da feroz luta pela sobrevi-
vência, ante a totalidade do mundo onde constrói e habita em si
mesmo, a sua morada. Ora, com a gente não é muito diferente. Somos
todos moluscos! Apenas não nos damos conta disso. Contudo, se
nos desprendêssemos das ideias para as imagens, a partir de uma
suposta energia humana irradiada do lugar, então, do lar originário,
da chama onde habitam os deuses domésticos surgiriam vórtices,
e o turbilhão circularia pelos espaços da arquitetura fluindo, em
seguida, dali para a aldeia, por entre as casas, e circundaria o vale,
passando depois pelo templo, quando transbordaria, finalmente, para
o mundo a fora, nalgum padrão espiralado talvez semelhante à concha.
Entretanto, devaneios à parte, com os moluscos humanos
acontece algo diferente!

Para Ortega y Gasset, o animal é atécnico; vive ajustado ao


seu ambiente; basta-lhe a adaptação orgânica. A técnica é
o dom dos inadaptados como o homem, que leva a espécie
a reformar as circunstâncias em que vive, eliminando as
suas necessidades, ‘suprimindo ou minguando o acaso e
o esforço que exige satisfazê-las’. Por meio dela criamos
possibilidades complementares da vida, com objetos novos
que ultrapassam a natureza. ‘Homo faber’ o homem se
inventa. Man makes himself, resume, Gordon Child (1986)
no título de um de seus livros. (NUNES, 2016)

71 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

O Habitar Transcendente
O que se perde no tempo passado pode renascer na imagina-
ção, assim, se começamos a imaginar a condição original da civili-
zação podemos considerar, sem medo de errar, que o primeiro
fundamento da manualidade, a produção de artefatos 17 levaria
à arquitetura e à própria condição humana. Ainda que a mão
humana, com seu polegar oposto, não seja, no reino animal, a
única ferramenta eficaz para a transformação de coisas ou para
a construção, pois diferentes espécies, como aves, usam os bicos,
ou outras criaturas o próprio corpo ou parte etc. Contudo, entre os
mamíferos, especialmente nós, os primatas, a habilidade manual
é bastante difundida.
Em diversos aspectos, a evolução biológica corrobora a condição
existencial, mas muito em especial no jogo das possibilidades que
condena, mas, ao mesmo tempo, propicia o desafio de estarmos
sempre lançados em direção ao futuro. Há diversas demonstra-
ções da filosofia heideggeriana nos mecanismos da evolução e
vice-versa.
Assim, a partir de uma hipertrofia cerebral circunstancial e
de uma decorrente maneira peculiar de lidar com as coisas ou,
em outras palavras, numa sucessão de circunstâncias e acasos
(evolutivos) de um lado, e de disposições e compreensões (fenomê-
nicas) do outro, nossa espécie de primata foi levada a uma condição
peculiar de lidar com o mundo em um modo de ser essencialmente
transformador, tanto perante mundo, quanto com relação a nós
mesmos. Passamos então a operar as coisas a partir da manualidade.
Ora, fazer coisas implica na condição em que as coisas oferecidas
pela natureza não atenderiam a alguma demanda (preexistente
ou criada). É exatamente aí que a manualidade instrumentaliza
um rompimento às imposições da natureza.
A arquitetura e a cultura e, em essência, a própria condição
humana nascem dessa ruptura. Quando o homem elabora os primei-
ros artefatos funda um mundo à parte. Assim, naquele momento
soterrado num passado distante, aos poucos (ao menos dentro na

17  Como, aliás, já indicara Gottfried Semper.

72 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

nossa estrita noção de tempo) e seguindo por caminhos tortuosos,


mas com direção e sentido definidos pela conexão das possibilida-
des, deu-se a primeira revolução e o estabelecimento da condição
humana que nos caracteriza.
Começamos a nos afastar da natureza, voltando-nos a outra
natureza que, sempre projetada para frente, tornou-se a nossa
própria natureza, paralela, alheia à natureza natural. Então, por
tentativa e erro, animados por uma curiosidade que só pode encontrar
paralelo no ímpeto que observamos em nossas crianças, começa-
mos a desvendar os mistérios dos materiais: a força da madeira,
a flexibilidade do bambu, a impermeabilidade da folha, a dureza
da pedra, a agregabilidade do barro. Compreensões desdobradas
em disposições e vice-versa para constituir, a partir da (apenas
pretensa) insignificância dos fazeres habituais do dia a dia, a
complexidade do ser-no-mundo.

Os Materiais Essenciais
Oculta sob a simplicidade do fazer manual está a magia da
realização. O que se esconde na ação de unir coisas para criar outras
coisas é sempre surpreendente se observado com atenção, seja na
conclusão de uma obra de arte, como um quadro que se termina,
ou na produção de algum artefato, mesmo que de caráter simples
e prático como, por exemplo, uma caixinha de madeira bem-feita;
ao final, há sempre aquele olhar do artista que admira a sua obra,
e, por trás dela, o intrincado encadeamento dos referenciais.
Realizar algo deixa uma estranha impressão de satisfação que
poderia ser o inverso da angústia nadificante, pois acrescenta e
acumula acontecimentos ao mundo, traz para o ser-com o produto
da disposição do Dasein e conecta à rede dos referenciais a partir
do principal canal de ligação que temos com o mundo, ou seja, o
“por entre” as mãos.
Além disso, há o prazer da descoberta que sempre se renova
na comprovação de executar algo. Saber fazer nos traz a impres-
são de ocupar uma posição vantajosa no comércio dos autorreco-
nhecimentos, pois a habilidade manual é o inverso da alienação e

73 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

proporciona autoridade e mesmo poder. Por outro lado, a técnica


moderna de base científica, mais fundamentada na teoria que na
prática, afastou, ao menos da maioria de nós, o domínio diversi-
ficado dos diferentes fazeres manuais. Então, a propalada facili-
dade moderna cobra, na verdade, o preço alto da alienação e até da
incapacidade para realizar, conceber e imaginar quando rompe a
magia do fazer com as mãos que, em essência, constitui mundos
e que forjou a nossa condição essencial.
No caso do arquiteto há muito já nos afastamos das artes
manuais. Muito especialmente no Brasil, onde o ranço da cultura
escravagista permanece fortemente impregnado em uma elite
preguiçosa, para quem o fazer manual é tido como coisa inferior.
Nossos arquitetos, de maneira geral, não têm ideia de como montar
uma fôrma para concretar uma viga, ou sequer segurar um martelo.
Não pensamos o projeto pelo seu modo de fazer, mas antes pelo
desenho esquemático, em geral pelo plantismo ou por cópias dos
modelos da moda.
Do ponto de vista da prática artesanal na arquitetura, a área
de restauração tem uma enorme vantagem sobre as demais, pois
para aquele que se dispõe há sempre a oportunidade e o prazer do
trabalho manual; inclusive com desdobramentos também na sala
de aula, pois o depoimento de um professor que relata a experiência
real de ter feito e que pode mostrar, antes de explicar, por exemplo,
o corte e montagem de peças estruturais, o restauro de elementos
arquitetônicos como telhados e cúpulas, a modelagem de ornatos,
a pintura mural, o afresco etc., sempre estabelece uma empatia e
interesse redobrado por parte dos alunos, ou seja, pode-se mesmo
dizer que na sala de aula o fazer manual segue em seu desdobra-
mento de abrir mundos.
Contudo, pelo bem da verdade e apesar da valorização das
manualidades, não se pode deixar de admirar as técnicas modernas
de construção. A revolução do aço e do concreto expandiram os
limites das possibilidades da capacidade humana para o bem e
para o mal. Contudo o fundamento do grande repousa no pequeno,
o princípio do aço está na madeira, o do concreto está na terra,
o grande afasta, e o pequeno aproxima. As técnicas tradicionais
aproximam o pensar do fazer mais essencial realimentando a

74 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

lógica (no sentido do logos) do conceber e do executar. Seguem-se,


portanto algumas considerações sobre os materiais essenciais
para, através delas, chegarmos ao fundamento mais essencial
da manualidade, tanto de maneira geral, quanto com relação
à arquitetura.

O solo
A matéria de que somos feitos é a efetiva junção entre os
elementos água e terra, ambos necessitam um do outro e estão
unidos intimamente. A água, do gênero hermafrodita é por vezes
conteúdo e por outras continente, quando ela encontra espaço
para se expandir vira fêmea, na condição de aperto, infiltra-se,
percola e preenche. A terra, por sua vez, é visceralmente fêmea,
capta o elemento líquido, reelabora-o, e distribui generosamente
para todos os meios adjacentes. Faz brotar as sementes e alimenta
as grandes florestas. As argilas, sedentas, compõem o seu tecido
vital e ativo, retêm a água em seus interstícios e possibilita todas
as reações com o meio e os seres vivos. Também na construção,
esse tecido “orgânico” das argilas possibilita o habitar humano
mais essencial. Onde a madeira inexiste o homem, tal como os
cupins, cria um pequeno universo artificial que imita a abóbada
celeste, onde há madeira o solo é elevado, vem de baixo para cima
e sustenta a estrutura da cobertura sobreposta.
Construir com terra é um fundamento da condição humana.
Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as culturas
a arquitetura de terra é a regra fundamental. A arquitetura de
terra une os elementos da quadratura da maneira mais explícita
possível, precisamos voltar a construir mais com terra para sermos
mais nós mesmos!

A Alquimia dos Aglomerantes


Extraída da rocha carbonática (que em última instância
vem das conchas de animais primitivos que fixaram o carbono)

75 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

ou diretamente da concha (que não deixa de ser uma pedra do


reino animal) a cal, esse anfíbio dos seres inanimados, transita
com facilidade por todos os elementos: o fogo a desperta do
sono pesado dos milênios, a água exorciza os calores retidos
pelo elemento ígneo. Quando na água, então, a cal repousa
calma como uma nuvem coloidal com finos cristais de algodão
molhado...
Finalmente se junta ao habitar humano, ou melhor, junta-o,
une-o, agrega o saibro, a areia e a pedra. Consolida e resguarda
na certeza do abrigo. Assim, enquanto conforma o nosso habitar
retorna ao elemento ar; respira carbono como as plantas, e como
elas, absorve a seiva da terra que sobe pelas suas redes capila-
res; sua no calor e transpira pelos seus poros como os grandes
animais do campo, e como eles se retrai no frio; bebe, inspira e
expira como nós.
Ao repousar na casa das mulheres e dos homens, protege-
-os com a sua firmeza, dos perigos do mundo e, finalmente, em
seu ritmo, no seu tempo, o tempo herdado das profundezas dos
rochedos, vai aos poucos endurecendo, faz-se de novo pedra (algo
como um arenito carbonático poroso).
Desdobra-se a cal em mil aplicações, no cuidado da terra
para o plantio, nos remédios, e na arte! Desde o Egito, passando
por Creta, Giotto e Michelangelo! Apenas quem já pôde pintar na
técnica de afresco, como eu pude fazê-lo, um pouco, em obras,
compreende porque Michelangelo, entusiasta da escultura como
arte superior e avesso à pintura exclamava: “afresco, sim!” A
brancura cristalina da pasta fresca de cal, associada ao pó de
mármore criam um suporte liso, úmido e finamente poroso,
embebido em água de cal, onde o pincel, apenas com água e
pigmento, desliza saborosamente; a parede absorve a tinta, ou
melhor, sorve a água colorida, que lentamente inunda a fina
porosidade da massa.
A cal é um material da quadratura heideggeriana, ela guarda
o fruto da terra, o cuidado da lavra, das alquimias, guarda a arte
dos mortais e a força da natureza em seus ciclos e na alternân-
cia dos elementos. Viva a cal!

76 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

A Pedra
As rochas, em sua interminável variedade de cor, consistên-
cia e textura, vivem muitas vidas. Nascem da forja mais quente
que o sol nas entranhas da terra e quando são esfriadas pelo ar
atmosférico se fecham em si mesmas, numa tentativa de imitar
o planeta mãe que esfria de fora para dentro, tentando reter um
núcleo incandescente.
Uma rocha que emerge das profundezas ígneas comporta-se
como um pequeno planeta efêmero e segue, na sua tenacidade,
pensando que é. Sua dureza autocontida traz a essência do para
dentro, do inacessível; a pedra só conhece a força da compres-
são, que ela domina como ninguém mais, pois as pedras de uma
construção lutam em silêncio um sumô intertravado numa força
bruta estática, enquanto a sua superfície externa tenta inutil-
mente resistir contra os elementos que nunca desistem e que
têm o tempo a seu favor para dissolver as montanhas.
Mas a tenacidade é o princípio da pedra, pois mesmo dissol-
vida pelo intemperismo seu pó se reencontra e, teimosamente,
cumpre novamente o seu destino nas rochas sedimentares que
se consolidam em segredo formando os arenitos, os calcários
e, por meio de uma alquimia milenar, o milagre dos mármores.
Nós tivemos uma longa e dura luta para dominar o material
que é a maior prova de que os grandes sacrifícios propiciam
grandes compensações, pois dominar a dureza da pedra cedo se
reverteu em grande vantagem tecnológica. Nas mãos do homem,
são, por exemplo, a arma primordial com a qual Caim teria matado
Abel. O monumento funerário essencial seriam pedras empilha-
das, ideia original que seguiu como tal até às grandes pirâmides.
A perenidade, o máximo que se pode aproximar da eternidade,
está na pedra. O símbolo da vontade do poder que se estende para
muito além do ciclo da vida humana. Lembremos também das
pontas de lança de sílex, esta pedra/vidro trabalhada à perfeição
do ourives por cavernícolas desaparelhados, demonstração de que
provavelmente os primeiros artefatos “hightech” foram de pedra.
O aprimoramento técnico do trabalho com pedra dependeu
da evolução de todo um aparato tecnológico, especialmente

77 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

ferramentas de ferro, pois o esforço para romper as rochas de


maneira controlada encontra limites instrumentais, superado em
parte pelos egípcios que dispunham de uma reserva de mão de obra
descomunal sem dominar ainda o ferro, cortando pórfiro sabe-se
lá como com ferramentas de bronze; ou ainda os incas, em Machu
Picchu, onde talvez o incrível ato de cortar o granito fosse apenas
menos duro que carregá-lo morro acima. De qualquer maneira
a estereotomia evoluiu muitíssimo ainda na antiguidade, decaiu
na alta idade média e recrudesceu magnificamente nas grandes
catedrais na baixa idade média e depois. Em construção a pedra
é, e sempre será, o sinônimo de trabalho duro e durabilidade.

A pedra pesa e manifesta seu peso. Mas ao nos confron-


tarmos com seu peso ele se recusa ao mesmo tempo
a qualquer penetrar nele. Tentemos isso quebrando o
rochedo, então ele nunca mostra nos seus pedaços um
interior e um aberto. Imediatamente a pedra se retira,
de novo, para o mesmo abafamento do peso e do maciço
de seus pedaços. Tentemos conceber isso de outro modo,
colocando a pedra sobre a balança, então só trazemos o
peso ao cálculo de quanto pesa. Talvez esta determina-
ção bem exata da pedra permaneça um número, mas o
peso como tal nos escapou. (HEIDEGGER, 2018)

A Madeira
Não há material mais visceralmente humano que a madeira, ela
nos acompanha da manjedoura ao caixão. Sabe-se que, muitíssimo
antes dos primeiros hominídeos, o advento dos vegetais lenhosos foi
um tremendo sucesso em termos evolutivos. A madeira é digerida
por pouquíssimos animais, originalmente por nenhum, portanto
sua dureza associada à flexibilidade foi aprimorada ao longo de
muitos milênios desde singelos raminhos frágeis e suculentos
até que se erguessem as grandes árvores, por feixes poderosos de
fibras paralelas, numa materialização conceitual de que a união
faz a força. Lembremos das Sequoias descomunais, algumas com

78 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

mais de 100 m de altura e diâmetro de até 12 m (a mais antiga


sobrevivente, no parque nacional da sequoia na Califórnia tem
4.650 anos de idade).
Em sua incrível autoconstrução as árvores vencem, como
mais ninguém, a força da gravidade e, conquistando impetuo-
samente as alturas em busca do sol, estendem longas vigas
em balanço que resistem ao vento e à tempestade. As grandes
árvores são as rainhas do reino vegetal e do próprio mundo.
Algum ser de outro planeta onde elas não existissem, cairia de
joelhos em adoração perante o milagre de uma grande árvore!
As árvores conformam mundos à parte servindo de lar e refúgio
a muitas espécies, nós mesmos, talvez não estivéssemos aqui,
pois antes da nossa aventura na savana vivíamos nas árvores, o
que certamente terá levado ao desenvolvimento e aperfeiçoa-
mento das mãos que nos conectam com o mundo. Enfim, como
se não bastasse, há ainda o pequeno detalhe de que produzem
oxigênio! Somos cria das árvores, mas o que temos feito dentro do
nosso modo de ser!? Essa é uma resposta para ser dada intima-
mente na nossa consciência.
Voltando à madeira, sua característica estrutural, que associa
resistência a tração e compressão com a possibilidade de corte
preciso e relativamente fácil, faz dela o material genuinamente
arquite-tônico. Tec-tônica diz “tônus”, e dizendo fala da força
muscular da viga de madeira, que puxa para reter e empurra
para conter.
No movimento parado da estática, sob a abertura mais elemen-
tar (e por isso mesmo mais poderosa) do triangulo da treliça,
contornamos por baixo o ímpeto dominador da gravidade e, ao
mesmo tempo, contemos o empuxo lateral do vento. O trabalho
com a madeira demanda, além do apuro manual, inteligência
fina e visão tridimensional. A perda dos testemunhos construti-
vos mais antigos nos impede de traçar uma genealogia clara da
treliça na construção, contudo podemos inferir que haveria um
avanço conjunto entre as estruturas em geral e as embarcações,
por meio do domínio das ações de compressão “intra e entre”
peças estruturais e, especialmente da tração axial, onde se dá o
melhor aproveitamento com menores seções.

79 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

Também a arte de encaixes evoluiu magnificamente ao longo da


história. O domínio técnico das sambladuras, em diversas civiliza-
ções, possibilitou a vitória da construção sobre terremotos levando
a uma arte refinada, muito especialmente nas culturas orientais.
A madeira nos ensinou a construir com a pedra, com o concreto
e com o ferro.

Os Metais
A essência da terra destila-se em metal. O homo-alchemist,
devoto de Hefesto (vulcano) e de prometeu, que nos antecede
em milênios, fez, sabe-se lá por que conjunções milagrosas,
uma revolução que se reflete até os dias de hoje como ponta de
lança da tecnologia. Pode-se imaginar a odisseia desconhecida
da conquista dos metais em meio à precariedade e a condição
rústica de então. Seria fascinante investigar a proeza de fundir
metais numa pré-história da metalurgia, à maneira de Bachelard,
onde contexto sonhado pelo filósofo-poeta poderia trazer pistas
da tecnologia com-fundida com rituais e magia!
Desde o início da metalurgia alargamos o passo em nosso afasta-
mento da natureza e na criação de um mundo que nos é peculiar.
Como não dispomos aqui da referência bibliográfica, que
na verdade se inicia nos alquimistas no clássico “A Formação
do Espírito Científico”, tratemos, portanto, nós mesmos de um
ícone da metalurgia. Um verdadeiro clássico: O Gancho! Contudo
convém justificar a origem da poesia que se segue para ilustrar
a ideia, para não parecer que se trata de algo gratuito, mas da
passagem da questão da materialidade tratada até aqui para o
tema subsequente da manualidade que se seguirá.
Certa vez na cidade de Ourense, na Galícia, visitando uma
daquelas casas de pedra que parecem ter saído de contos medievais
vi, junto ao fogão de lenha, um gancho. Não era mais que uma barra
de seção circular que teria meia polegada de grossura retorcida
com muito esforço, ou a quente, com a forma aproximada da letra
delta grega. Uma peça realmente muito tosca, contudo, fui tomado
de fascinação por aquele “artefato ideia de Platão”. Sua idealidade

80 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

estava, primeiro, no flagrante cristalizado do ato de produzi-la,


pois, o esforço em dobrá-la era bastante expressivo em sua dureza
e peso. Pensei então por quanto tempo haveria de estar ali aquele
gancho, pacientemente, em sua condição de absoluta disponibi-
lidade. Pessoas morreram e ele permanece ali.18 Pensei também
que os artefatos são assim, guardam o mistério dos tempos e
das vidas e apenas se revelam ao olhar da poesia, ou através da
arqueologia, após passarem pelo reino dos mortos.

O GANCHO
O fogo começou a odisseia,
depois veio a “Idade dos Metais”
Na curva da História surge o Gancho,
conquista dos nossos ancestrais!

O Gancho, como tecnologia,


apresenta engenho e precisão,
pois junta a forma e a ideia
em absoluta comunhão!

Também imita a natureza,


em sua essência muscular,
Pois a eficiência do que puxa
é bem melhor que a de empurrar!

Quem é que sempre ergue a carga?


Dirás “o guindaste”, sabichão!
Mas o guindaste puxa o gancho
e este é que encara a missão!

Já pude vê-lo no teatro!


Em premiada atuação,
Mostrando sensibilidade,
puxando pra coxia o canastrão.

18  Tive notícias recentemente e o gancho passa bem, como era de se esperar,
provavelmente sobreviverá a todos nós.

81 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

Contudo é necessário apontar


que o Gancho não aspira à perfeição,
pois nasce torto e morre torto,
e fica pior se endireitar.

A Manualidade
Rousseau nos ensina no “Emílio” aquilo que deveríamos lembrar
ao compor os programas de ensino de arquitetura em tempos
de vigência absoluta da virtualidade castradora em que vivemos.
Kant, conforme acentua Heidegger, já indicara que mais que nas
profundas meditações do gênio, ou os grandes atos históricos, é
nas coisas do cotidiano, as mais simples e corriqueiras, que se
escondem os mistérios fundamentais.
Lidar com as coisas na manualidade já é em si transcender.
A descoberta das coisas por meio do manuseio abre mundos e
interliga esses mundos intersubjetivamente através dos referen-
ciais. No ser-em, no lidarmos com as coisas, está sempre também
implícito o ser-com. Assim, se nos é permitido fazer um relato
pessoal como exemplo, recordaria um episódio, talvez aos sete
ou oito anos de idade, no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de
Janeiro, acompanhando minha mãe que lá trabalhava.
Estava eu, então, recortando bonecos de papel e as suas
roupas intercambiáveis (muito envolvido na minha “lida engaja-
díssima” e minuciosa) quando me apareceu um senhor de idade
e estatura altas. Soube ser arquiteto. Disse-me o senhor, que me
pareceu bem gentil, que eu não deveria cortar diretamente as
figuras, mas, antes, destacá-las da folha cortando ao redor para
então recortá-las mais detalhadamente quando separadas do
todo; “assim fica mais fácil!”, disse o meu velho mestre instan-
tâneo, digo instantâneo pois nunca o havia visto antes, nunca
mais o vi depois. Contudo fez-se a magia do fenômeno! A simples
instrução de “recortar antes ao redor” me abriu uma compreensão
amplificada e uma perspectiva do mundo. Compreendi, intuitiva-
mente e para sempre, que as coisas devem ser entendidas primei-
ramente em sua totalidade, consideradas de fora para dentro;

82 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

deve-se vir do todo para parte, para então, novamente voltar ao


todo. Tive um “master class” de hermenêutica, uma verdadeira
lição de vida que minha inocência de meninote apenas intuiu
“com, talvez, um olhar aparentemente perdido enquanto ressoa-
vam ecos em tuneis invisíveis”.
O fato é que hoje a memória desse pequeno e, ao mesmo
tempo, monumental episódio deixou uma marca profunda no meu
ser e, quem sabe, se, talvez, esteja ali mesmo a origem do meu
futuro autorreconhecimento na profissão de arquiteto? Gosto de
pensar que o tal velho seria Lucio Costa que à época creio que
andava por lá.
Partirmos de um exemplo pessoal, o que pode parecer pouco
acadêmico. Mas pergunta-se: o lidar com as coisas não é mesmo
sempre uma experiência pessoal? Certamente. É assim mesmo
que se dá no manuseio das coisas.
Tratamos aqui de modo genérico aquilo que é mesmo sempre
particular, e que, justamente por ser essencialmente particu-
lar é também, e necessariamente, geral. O fazer com as mãos é
exatamente, nem mais nem menos, uma experiência pessoal. O
que nos leva a crer que os primeiros hominídeos em seu engaja-
mento do fazer manual também ficaram, em algum momento,
“com, talvez, um olhar aparentemente perdido enquanto ressoa-
vam ecos em túneis invisíveis”.
Fala-se muito da invenção da roda, mas antes da roda vem a
ontologia do rolar, do girar e do rodar. E o que dizer da descoberta
do dobrar enquanto fenômeno vivido e seu desvendar o mistério
dos limites da flexibilidade e da possibilidade do romper-se, e
todos os desdobramentos para a vida, exemplificado nas alterna-
tivas da velha frase de estar entre o que “verga, mas não quebra,
ou o que quebra, mas não verga”; ou, ainda, o esticar e a revela-
ção de que as coisas podem crescer e crescendo podem afinar
e chegar, muito antes da ciência, ao conceito da ductilidade.19 E

19  Lembremos como em algumas regiões da china se faz macarrão a partir de


uma única massa que, em seu manuseio, vai sendo esticada e dobrada repeti-
damente, quase ao infinito, através do mais puro conceito de ductilidade que a
humanidade jamais viu!

83 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

como o esticar mundaniza todas as ideias derivativas de limites


ou da falta deles, do que é ou não possível! Quantos ecos...
Mas sigamos, pensemos também no comprimir e as decorren-
tes ideias do que cede e do que resiste, a rigidez ou a possibilidade
de modelar, a plasticidade, e o poder de submeter a matéria à
forma na magia de moldar e, a partir daí, “novamente com o olhar
distante”, pensar o que talvez se possa fazer com as pessoas...
Poderíamos prosseguir com o raspar, o desgastar, o enfiar, o
sobrepor, o encaixar etc... todas as variações dos fazeres manuais
e seus incomensuráveis desdobramentos referenciais. Quantos
“olhares distantes a ecoarem em tuneis invisíveis” nos levaram e
seguem nos levando adiante nessa nossa aventura interior que
fizemos e seguimos fazendo juntos enquanto seres históricos?
A história da técnica aqui esboçada é essencial, é a história
do modo de sermos-no-mundo. A historiografia da técnica é uma
versão ôntica, interessante, útil e mesmo bela, mas não essencial.

O ponto de vista do filósofo espanhol (Ortega y Gasset)


coincide com o do antropólogo (Gordon Child), até na sua
enumeração dos três estágios da técnica: 1) a técnica do
acaso; 2) o artesanato; 3) a técnica do técnico. A do acaso
não consegue senão um escasso repertório de atos, sempre
iguais, produzindo as mesmas coisas, que mal se distinguem
da atividade natural biológica. Falta ao seu beneficiário, o
chamado primitivo ou selvagem, consciência específica de
seu precário instrumental, um prolongamento da maneja-
bilidade da mão, de que, um dia, Engels fez exaltado elogio.
Se ele inventa, não sabe que inventa. Já no segundo estágio
o repertório aumenta, acompanhado pela consciência de
que o seu uso parte de uma tradição estabilizada, demanda
capacidade especial de alguns homens: os artesãos, artífi-
ces e profissionais, conservadores por excelência; o que
fabricam ou modificam resulta de uma aprendizagem
herdada, esquecida, que continua inercialmente como
repetição de práticas passadas, fixando-se num sistema
de artes e ofícios. Mas o artesão é, ao mesmo tempo, técnico
e operário, o que sabe e o que executa.

84 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

A ‘técnica do técnico’ é aquela do pleno conhecimento


das práticas em uso, quando o homem chega a fabricar o
instrumento que pode fabricar tudo: a máquina. Então o
conhecimento pleno das práticas e, portanto, da técnica
corresponde a noção de uma só capacidade ilimitada de
fazer e de produzir. (NUNES, 2016)

Arqui-tetura, Espaço e Lugar


Se nos é dado divagar num breve devaneio etimológico podemos
inferir que a palavra “arquitetura”, derivada diretamente do grego,
guarda uma diferença fundamental do termo, em certo sentido
correlato – construção – que por sua vez vem do latim. Arqui-tetura
refere-se ao agente+coisa; construção, por sua vez, diz apenas da coisa
constituída pelo conjunto das suas partes. Ou seja, a partícula “arq”
é uma referência, ou quase uma reverência, pelo caráter superla-
tivo, àquele que “tectoniza”, o arqui-teto. Por outro lado, o “cons”, da
construção, remete não ao agente, mas antes à coisa em si, na sua
característica de estar cons-tituída por partes agregadas. A partir
da palavra original, “construção”, o construtor, o agente, é simples-
mente derivado direta e inteiramente da coisa, não se apresenta
no nome original.
Ora, se há alguma utilidade nessa constatação, ou seja, se ao
menos ela é razoável como uma abertura, poderá então, legitima-
mente, servir como um ponto de partida, para indicar o quanto o
termo “arquitetura” é mais originário que “construção” por trazer,
não apenas a coisa, mas o seu fazer, revelando o como da arquitetura
em seu modo de ser e fazendo ver, já de início, oculto na palavra, o
Dasein arquiteto em ação na sua lida engajada e no seu autorreconhe-
cimento daquele que, enquanto técnico, está acima, que vê de cima,
que domina acima dos demais a tectônica, a técnica. O arquiteto, ou
o carpinteiro chefe. Sendo “arqui”, estando acima, ilumina e orienta
o fazer, como o cérebro está em cima das mãos no fazer as coisas.
O tecton, da tectônica, também remete além, àquilo que diz mais
que construção, em especial diz também teto, a cobertura, a parte
superior da construção, onde sempre se apresenta o desafio maior

85 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

da tecno-logia, o “logos da técnica”, o desafio e a superação do limite


dos materiais para vencer vãos, para cobrir, envolver os espaços e
constituir o fundamento mais fundamental da proteção sobre.
A cobertura paira sobre, na confiança e no prestígio do arquiteto,
para vencer, com o milagre da técnica, a força essencial da gravidade,
para constituir o pequeno universo humano que se impõe e ao
mesmo tempo está submisso sob o universo dos deuses, entre o céu
e a terra nesta interface que habitamos. Em oposição ao milagre da
cobertura, o suporte parietal é mais primitivo, remonta ao trabalho
duro de suportar o peso. A arquitetura é uma arte a construção um
ofício, ofício afeito àquilo que se ergue do chão como uma extensão
da própria terra. Assim, seguindo em nossa busca do originário
da arquitetura, caímos novamente na velha cabana original, lugar
comum dos antigos tratados de arquitetura.

Para um estudo fenomenológico dos valores da intimidade do


espaço interior, a casa é, evidentemente, um ser privilegiado,
sob a condição, bem entendido, de tomarmos, ao mesmo
tempo, a sua unidade e a sua complexidade, tentando integrar
todos os seus valores particulares num valor fundamental.
A casa nos fornecerá simultaneamente imagens dispersas
e um corpo de imagens. Num e noutro caso, provaremos
que a imaginação aumenta os valores da realidade. Uma
espécie de atração concentra as imagens em torno da casa.
Através das lembranças de todas as casas em que encontra-
mos abrigo, além de todas as casas em que já desejamos
morar, podemos isolar uma essência íntima e concreta que
seja uma justificativa para o valor singular que atribuímos
a todas as nossas imagens de intimidade protegida? Eis o
problema central. (BACHELARD, 1993)

A Cabana Original
Aliás, já que aqui estamos, é na cabana mesmo, ou num
espaço correlato, o lar original em suma, é aqui onde somos de
fato lançados para sermos-no-mundo. É a partir do lar, ao menos

86 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

se mais ou menos mantidas as condições humanas normais desejá-


veis deste direito-dever fundamental, mas mesmo nas condições
adversas (que infelizmente vemos todo dia pelas ruas, na miséria
da nossa gente). É a partir do lugar onde nascemos que constituí-
mos o mundo das coisas e das pessoas. Aqui começamos a tatear o
vento nos gestos do bebê, ensaiando a manualidade que vai consti-
tuir nossa mundanidade e nos fazer o que somos na circunvisão;
aqui somos lançados no mundo e começamos a medir instintiva-
mente a direção e a distância das coisas para irradiar, a partir do
lugar originário, os espaços.
No reconhecimento do lar original desdobra-se o mundo, que,
inicialmente, parece ser a totalidade de um universo constituído
de teto paredes e chão e coisas inéditas que vêm até nós, tudo num
misto de espaço e corporeidade em expansão, engendrados a partir
do milagre da maternidade. Contudo, em algum momento insinuam-
-se pelos vãos, por ruídos estranhos, pela brisa e pelo trovão, nos
primeiros passeios no parque, os mistérios do fora. O mundo-a-fora,
onde fatalmente deveremos mergulhar mais cedo ou mais tarde,
como o pássaro em seu primeiro voo, e que vai dar a justa compreen-
são da nossa condição de jogados, vai fazer ver e reconhecer, por
comparação, o lar mais claramente em sua essência como o lugar
primeiro, em oposição ao desafio do mundo. O refúgio e o abrigo.
Ao longo da vida, em nossa cotidianidade, deveremos voltar
diariamente para descansar da lida, para encontrar o compartilha-
mento da vitória e o alento da derrota. O lar é o lugar fundamen-
tal, é nossa âncora invisível que levaremos conosco para tentar
engastá-la em todos os espaços onde vamos residir ao longo da
nossa história para tentar fundar filiais deste lugar fundamen-
tal, insuflando lugares possíveis nos espaços que ocuparemos
no futuro sem, contudo, jamais desligar aquela ligação à origem,
para onde seremos atraídos na hora da morte. O lar é um núcleo,
uma chama, como de fato era entre os gregos antigos. Ele aquece,
organiza, direciona e distancia os espaços. Arquitetos não podem
criar lugares, estes são exclusividade do Dasein nos esplendores
e misérias de ser-no-mundo.
Mas voltemos à cabana para a qual estamos habilitados, a bela e
útil ideia romântica da cabana original! Poderíamos falar dela como

87 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

um ente individual, mas somente num modo deficiente de considerá-


-la. A famosa cabana de Robson Crusoé não existe em si, senão numa
extensa rede de significâncias que mergulha em todas as direções por
meio dos vetores móveis das possibilidades. Chegar a construir uma
cabana, mesmo a do náufrago solitário, é sempre um ato intersubje-
tivo. Assim, num mundo onde somos-com-outros construímos cabanas
e, necessariamente, espaços entre-cabanas que as une e as separa
para que possamos circular, permanecer e nos demoramos na rede
das proximidades e distancias dos espaços, em torno dos lugares.

Os Desdobramentos do “Entre”
Estar e circular entre é uma condição fundamental da vida.
A minhoca e o falcão estão e circulam entre os elementos que a
ales concernem, aos quais estão adequadamente aptos e limitados.
Assim estamos também nós. Habitamos a quadratura “entre o céu e
a terra, entre os deuses e os mortais”. No entre que concerne a nós
se dá a arquitetura enquanto espacialidade em torno dos lugares.
Tomemos mais uma ilustração para mostrar a questão da relação
entre lugar e espaço, um exemplo que se vê nos livros de história
e que está na origem da formação da cultura ocidental.
Lembremo-nos das catacumbas na Roma Antiga, em seus
caminhos e como eles chegam até nós: Em oposição ao massacre,
à barbárie e ao caos existencial proporcionado pela ruína da vida, da
cultura e da religião na antiguidade tardia, além, é claro, do trabalho
leonino de São Paulo e a tenacidade dos mártires, apresentou-se
a promessa da vida eterna e bem-aventurança que finalmente foi
liberada por Constantino possibilitando o desejo, ou antes, uma
forte disposição, para o culto dos mortos a partir do enterramento
(não mais a cremação como era o costume antigo dos romanos)
para aguardar o dia do juízo final, quando todos seriam resgata-
dos na volta do Messias.
As catacumbas são um impressionante testemunho de como
podemos ser estranhos no nosso modo de ser. Fala-se em cinco
milhões de enterramentos nas catacumbas romanas. A necrópole
subterrânea, em grande parte cavada no tufo vulcânico, formava redes

88 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

de tuneis onde foi se instituindo uma hierarquia entre caminhos


e os nichos principais, maiores e mais decorados, que abrigariam
os mártires ou santos e nichos mais modestos até enterramentos
feitos ao longo das galerias mesmo. Os restos desses personagens
ilustres instituíam lugares sagrados, monumentos ao avesso, e
quanto mais personagens célebres houvesse numa catacumba,
tanto mais seria honroso estar nessa catacumba, em especial na
máxima proximidade possível desses santos.
Assim, os lugares inusitados num meio, certamente imprová-
vel, faziam surgir os espaços instaurados e organizados em escava-
ções que serpenteavam em torno desse poderoso sentido de lugar
a partir de uma energia invisível que emanava dos restos mortais
dos mártires como se fossem ímãs. Mais tarde, com o cristia-
nismo podendo sair de seu submundo para o mundo externo,
permaneceu a mesma lógica. Entretanto, ao invés dos enterra-
mentos próprios, ou da lenda nem sempre confirmada desses,
instituiu-se e consolidou-se a disseminação das relíquias que
se espalhavam e se fixavam fundando lugares e criando as rotas
de peregrinação. Para um grupo de religiosos que pretendesse
construir um convento ou uma igreja devocional era absoluta-
mente imprescindível ter uma relíquia de um mártir ou de um
santo importante, em especial até do próprio Jesus ou de Maria.
Ainda que em grande parte de veracidade duvidosa, as relíquias
deveriam, obviamente, ser atestadas por alguma autoridade
constituída para tal e, nessa condição, poderiam valer fortunas.
Contudo, atestadas ou não, mas antes, reconhecidas pela força
da fé, as relíquias tinham o poder de fundar e manter lugares a
partir das igrejas que eram construídas em torno dessas relíquias
e que atraíam (e ainda atraem) incontáveis formigueiros humanos.
A partir de Carlos Magno e em especial depois do ano mil, as
igrejas e conventos cresciam em tamanho e suntuosidade consti-
tuindo uma extensa rede de cidades cuja espacialidade estava organi-
zada em torno de uma fé (ou uma disposição) que poderia superar
qualquer obstáculo. Fundar e construir núcleos urbanos, erguer
em pedra o milagre das últimas igrejas românicas e a apoteose do
gótico, reconstruí-las, sempre que necessário, após os sucessivos
incêndios e catástrofes, consumiu a vida, a energia e o dinheiro

89 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

de sucessivas gerações nessa grande aventura, que muitas vezes


irradiava a partir de um fragmento de osso de origem duvidosa.
Contudo, mesmo que a relíquia fundadora fosse roubada, como,
aliás, acontecia seguidamente, o lugar já estará constituído, já
ganhou vida própria enquanto tal, e poderá seguir independen-
temente de seu elemento gerador.

Se a casa do sonhador está situada na cidade, não é


raro que o sonho seja de dominar, pela profundidade,
os porões da vizinhança. Sua moradia deseja os subter-
râneos dos castelos-fortes da lenda em que misterio-
sos caminhos faziam comunicar por baixo de todos os
recintos fechados, de todas as muralhas, de todos os
fossos, o centro do castelo com a f loresta distante. O
castelo plantado no alto da colina tinha raízes numa
rede de subterrâneos. Que poder para uma simples casa
ser construída sobre um emaranhado de subterrâneos!
(BACHELARD, 1993)

Saltando no tempo e no espaço para o caso brasileiro podería-


mos, seguindo o caminho muitas vezes percorrido, mencionar
a formação do espaço colonial. Os jesuítas foram os herdeiros
diretos da tradição da urbanização baseada na ocupação por
meio da construção de complexos militar/religiosos que tiveram
nas cruzadas o canto de cisne da cultura medieval. Por fim, essa
tradição e prática que lhe corresponde se desdobrou, quase em
total continuidade, na aventura das navegações e da colonização
ao final do século XV.
Uma nova ermida reconstrói inteiramente a paisagem ao redor,
instaura o lugar, arruma os espaços e desdobra em torno de si o
mundo. Antes mesmo de qualquer consideração historiográfica
ou religiosa o templo induz à abertura de novos caminhos, forma
as freguesias e une os lares em torno das praças e das ruas que
aos poucos se despejam desde os umbrais do templo. Uma igreja
colonial é ao mesmo tempo o farol, a torre de vigia e a caserna em
tempos de conflitos. Ela toca o céu como uma aparição, ao mesmo
tempo improvável e cotidiana; reflete e irradia sol na brancura

90 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

mineral da caiação contra a sombra do arvoredo, por cima dos


telhados; domina a paisagem e o casario ao redor que se dobra
em sinal de reverência.
Um monumento que vem do período colonial e sobrevive
bravamente a todo o ímpeto destrutivo que nos caracteriza deve
ser cuidado pelo que ele traz de essencial, e apenas secundaria-
mente por aspectos historiográficos.
Além disso é importante lembrar que ele não se constitui
na pura e simples presença do edificado, porque ele é em sua
presença e abrangência, a própria carne da terra, um segmento
enraizado e emaranhado da grande teia de relações no tempo e no
espaço daquilo que significa o que somos. Não é, pois, um mero
documento histórico; não provem do relato porque é muito mais.
Insere-se numa totalidade parcialmente oculta, mas presente. O
edificado pulsa vivo, junto com a terra ao redor, desdobra-se além
da sua “coisidade” estritamente construtiva, é uma coisa maior
em extensão e sentido, se esparrama como potencialidade, se
oculta aqui, mas reaparece mais à frente.
Portanto, obviamente, é impossível restaurá-lo como objeto
individual porque ele não tem sentido enquanto tal, a não ser que
seja decretada a sua morte e amputação do seu verdadeiro corpo
que está na terra.
Mas ainda que demolida, eliminada a construção, sua essência
permanecerá como uma potencialidade teimosa, impregnada
no lugar que o edifício originário instaurou. Cabe a nós a busca
hermenêutica para mostrar o que se vê e o invisível.

Ontologia (e ontogênese) da Espacialidade


Como será espaçado o espaço senão no passo? Permitamo-
-nos algumas considerações evolutivo-biológicas para chegar, em
relação ao caminhar, a uma questão que, como se diz popular-
mente, seria “mais velha que andar pra frente”. Somos os únicos
mamíferos plenamente bípedes, o urso, o gorila, o chimpanzé, os
lêmures etc., estão numa condição intermediária, usam ambas
as modalidades alternadamente, sobre duas ou quatro patas, ou

91 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

até mesmo três quando carregam algo conforme lhes convenha o


que, aliás, pode ser na verdade considerado antes uma vantagem,
sob certo aspecto mais evoluída, uma versatilidade que aumenta
a mobilidade, poupa bastante energia e os joelhos.
A idade nos mostra que nossos próprios projetos naturais de
joelho e de coluna vertebral estão bastante defasados em relação
à nossa demanda estrutural deixando-nos, na verdade, atrasa-
dos nesses itens da evolução. Inclusive a esse respeito pode-se
mesmo dizer que não há uma necessária relação de grau evolutivo,
em termos de uma escala, entre o fato de nós, com muito custo,
estarmos quase sempre de pé e os outros animais mencionados
não. São antes situações circunstanciais de adaptação, não se
organizam factualmente numa gradação, a não ser aos olhos de
um senso comum grosseiro ou de uma ciência míope.
Contudo, se olharmos de perto, talvez possamos observar
o quanto as relações das diferentes circunstâncias adaptativas
ao ambiente podem mostrar, em meio à trama misteriosa das
possibilidades, o modo, o como lidamos com o mundo. Assim, a
partir de uma ontogênese talvez possamos abrir caminho para
uma ontologia, ainda que um tanto inusitadamente, para, em
seguida, tentar empreender a busca do ser do espaço vivido de
nossa espécie, ou mais especificamente, uma ambiciosa análise
do “Dasein-bípede” em sua espacialidade.

Ontogênese do Caminhar (uma proposta)


Iniciemos nosso raciocínio pensando em nós mesmos quando
bebês. É fácil notar aquilo que qualificaríamos como “ambides-
tria plena residual”, ou seja, uma clara equivalência funcional
muito pouco diferenciada entre pés e mãos, com uma gradativa
primazia das mãos que, em termos da especialização evolutiva
apresentam o polegar oposto, o qual, na evolução motora do bebê
levará a uma rápida vantagem para as mãos que logo poderão,
com maior autonomia, levar o “Dasein-zinho” a embarcar em seu
projeto de lidar com o mundo manualmente. Note-se (e isso é
bastante sintomático, como se verá a seguir) que a manualidade

92 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

nos bebês se efetivará bem antes que os pés, e toda estrutura das
pernas, possam iniciar a cumprir sua função de caminhar, no que
se poderia chamar do prosseguimento de uma “embriologia tardia”.
Pois bem, sem querer entrar mais a fundo em questões de
anatomia comparada (o que seria irresistível se não fosse extempo-
râneo) chegamos aqui pelo caminho do livre pensar, se assim nos
permitirmos, a encontrar, de maneira incontestável, um atavismo
evolutivo do tempo em que éramos arborícolas. Naquele tempo
era menor a diferenciação e tanto mãos como pés serviam para
segurar em conjunto. Os pés, mais longe da cabeça, serviam a
manualidades, digamos, subsidiárias, que ainda se verificam nos
primatas arborícolas e em nossos bebês, que tentam usar os pés
como mãos auxiliares. Até aqui nenhuma novidade.
Mas, talvez possamos pensar os caminhos da evolução dentro
da historiologia das possibilidades e fora da ilusória perspectiva
antropocêntrica, que sempre vela a verdade sobre as coisas da
natureza e da vida. Em geral pensamos nas mãos como tendo
sido “libertadas” para os fazeres manuais, o que nos caracte-
riza como humanos etc., (como em algum texto do Engels). Mas
se pensarmos ao contrário? Se imaginarmos que na verdade
os pés é que se tenham libertado da manualidade para o seu
“manuseio”... Ou diríamos (com as desculpas que a licenciosi-
dade dum neologismo tão esdrúxulo demanda), o “podoseio” do
chão. Pensando ao contrário, chegamos à interessante conclu-
são de que antes, pés e mãos eram na verdade apenas mãos,
pouco diferenciadas. Com o tempo os pés, gradativamente, foram
alinhando o polegar e ganhando robustez, para suportar carga
e impacto, quando deixamos as árvores e nos vimos às voltas
com a nova demanda da savana.
Contudo nós, devido ao vício antropocentrista, sempre preferi-
mos contar a história das coisas elevadas, nunca das rasteiras.
Todavia às vezes o inferior é superior e o pé, em sua nova especiali-
zação de “apenas” andar, não mais manusear, apresenta a condição
de pisar como um advento, a conquista de novos tempos e novos
espaços. Refunda-se a partir daí o nosso ser-no-mundo, subvertendo
nossa relação com o fundamento tão básico quanto a gravidade,
tirando-nos da árvore para nos ligar ao chão.

93 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

Ora, se assim se deu realmente, quando descemos para o


campo aberto da savana estabeleceu-se uma nova condição, onde
a primitiva manualidade “ambidestra plena” do arborícola tornou-
-se, aos poucos, apenas residual em nossos rebentos. A partir daí,
libertos das árvores, concedeu-se aos pés, robustecidos e empode-
rados, essa novidade, esse avanço evolutivo. Pudemos desde então
“manusear com os pés” ou, como já dito acima, “podosear” nosso
novo domínio, o chão. Consequentemente, fundamos uma nova
espacialidade, diferente da arboricidade original, a partir do (até
então inédito) 20 “chão pisado”. Fundou-se a “chãosidade” oposta
à antiga arboricidade.
Note-se, e isso é importante, que apesar dessa “revolução do
chão”, a espacialidade em termos de direção e distanciamento que
Heidegger, com muita perspicácia, identifica, permaneceu inalterado,
como uma herança ancestral profundamente enraizada em nosso ser,
um atavismo dos tempos arborícolas quando precisávamos medir
direções e distâncias na circunvisão” para saltar de galho em galho.
Penso assim, talvez um tanto pretensiosamente, ter descoberto na
trama das possibilidades evolutivas, a clareira onde se esconderia
uma origem perdida da espacialidade original do Dasein.
Mas prossigamos em nosso estranho caminho onde o passado
distante conecta-se ao nosso agora enquanto modo de ser e segue
sempre projetado ao porvir. Seria interessante notar que essa
pretensa “espacialidade originária do pisar”, a “chãosidade” aqui
proposta, não elimina ou sequer modifica, de maneira nenhuma,
a espacialidade dada por meio da “direção e distanciamento” a
qual permanece em plena vigência, conforme indica o filósofo,
enquanto espacialidade essencial e, acrescentaria eu, “ancestral”,
como a mim me parece.
Contudo, penso que a partir do surgimento da “chãosidade”
como novo advento na nossa lida-engajada-com-o-mundo apresen-
ta-se uma hipótese bastante plausível de que ambas as espacia-
lidades passam a conviver alternando-se em nossa apropriação
do mundo. Assim, a espacialidade a partir do “chão”, chão aqui

20  Antes disso não havia o chão, que se instaura como fenômeno a partir do
pisar essencial.

94 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

considerado por definição como o “solo-pisado-pelo-Dasein”, cujo


ser é o próprio pisar, revela o chão enquanto o “utensílio dos pés”,
pois “o solo se chama chão apenas quando se pisa” e este ente, o
chão, é um homólogo do utensílio. Convém lembrar, para corrobo-
rar esta tese, que a caminhabilidade do piso é uma condição artifi-
cial, não é um dado da natureza, é antes uma exceção, tendo
uma clara característica utensiliar, ou seja, é produzida artifi-
cialmente enquanto artefato, pois na natureza natural o piso é
acidentado e, via de regra, obstaculizado, o que, enfim, pouco
importava para o Dasein arborícola primitivo, para quem o pisar
era uma estranha e perigosa eventualidade no solo onde habita-
vam inimigos mais aptos.
Contudo a chãosidade levou à constituição do engajamento
com o pisável. Significaria dizer, a título de exemplo, que um
caminho humano essencial em sua condição mais originária,
como uma trilha na mata, é constituído artificialmente a partir
do caminhar e apresenta-se como um artefato produzido pelo
próprio pisar que, no “podoseio”, escava um sulco identificável
visualmente e utilizável pelos sucessivos caminhantes que, por
sua vez, reafirmam e consolidam a trilha pelo próprio caminhar-
-com em meio aos obstáculos naturais. 21 Também a grande rede
de estradas romanas seria um imenso utensílio e, finalmente,
todos os desdobramentos da pavimentação.
Assim, os dois modos mais originários de lidar com a espacia-
lidade - por um lado aquele partir da “direção e distanciamento”
e, por outro, o do “pisar-o-chão” - seriam excludentes, mas, ao
mesmo tempo, associados, alternativos na lida-engajada-do-
-mundo. Ambos originários por antecederem à percepção visual
simplesmente dada, pois a pura percepção visual se apaga, ou ao
menos se atenua, perante a direção e distância e ante o próprio
pisar-na-chãosidade.

A não ser que as coisas deem errado de algum modo, o


utensílio permanece ‘discreto’. Quando estou comple-
tamente absorto na lida e faço uso de algum utensílio

21  O que também ocorre com animais de grande porte como os elefantes.

95 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

em sua atividade, não me acho dirigido para o utensí-


lio enquanto tal, a ferramenta por exemplo. E tampouco
estou dirigido para a obra mesma. (GORNER, 2017)

Enfim, propomos acrescentar à espacialidade que é dada a


partir do utensílio na manualidade e na espacialidade da circunvi-
são, cuja ôntica é tátil e visual, uma outra espacialidade proposta a
partir do “utensílio chão”, também na circunvisão, em sua condição
igualmente originária, na ocupação do “pisar-engajado”, esta
corpórea e tátil e, secundariamente, visual em sua ôntica, consti-
tuindo-se, assim, em não apenas um, mas em dois modos originá-
rios que se alternam na espacialidade do ser-no-mundo.
Portanto, nós, os bípedes implumes, em nossa “podosidade do
chão”, ou seja, em nossa “chãosidade”, temos como um dos modos
mais originários de lidar com o espaço “o pisar”. No movimento
do caminhar no tempo dá-se o que podemos chamar então de
“modo temporal” da espacialidade do Dasein. Mas também, ao
mesmo tempo, associado a esta chãosidade-móvel-temporal aqui
proposta, temos também o modo, tanto ou mais originário por ser
mais ancestral que é o da “distância e do direcionamento na circun-
visão”, ou seja, o “modo espacial”. Isto posto, parece que podemos
inferir que, provavelmente, o engajamento em cada um desses
modos implica em uma atenuação momentânea do outro, pois...

É tentador interpretar a percepção mais típica dos fatos


cotidianos como a ‘transposição espontânea do temporal
para o espacial’. É essa de fato a hipótese de Paul Fraisse.
Ele especula que a espacialidade corresponde à percep-
ção visual, que, sendo a ‘mais precisa’ das modalidades
sensoriais, é biologicamente superior às outras modali-
dades, entre as quais a da temporalidade. Em que sentido
o espaço é mais preciso do que o tempo? Talvez a razão
mais convincente para a prioridade biológica do espaço
seja que este último normalmente utiliza as coisas como
veículo para a ação, e que, portanto, na percepção as
coisas são anteriores ao que elas fazem. As coisas, porém,
habitam o espaço, enquanto o tempo se ajusta à ação [...]

96 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

Pode-se afirmar que a transposição da modalidade temporal


para a espacial ocorre, de fato, sobretudo quando interpre-
tada como uma sucessão substituída pela simultaneidade.
Isto não acontece apenas por questão de conveniência, mas
por necessidade, quando a mente passa de uma atitude
participante a uma atitude contemplativa. Para compreen-
der um evento como um todo, deve-se vê-lo em simulta-
neidade, e isso significa de modo espacial e visual. Por sua
própria natureza, a sucessão limita a atenção ao que é
momentâneo, a um diferencial de tempo. A sinopse, como
o termo indica é visual. (O tato, a única das outras modali-
dades de sentido com acesso à organização espacial, é de
alcance limitado demais para poder contribuir eficazmente
com os aspectos espaciais das imagens.) Gaston Bachelard
nos faz lembrar não ser a memória animada pelo tempo.
‘A memória – que coisa estranha! – não registra duração
concreta, no sentido da duração de Bergson. Depois que
as durações chegam ao fim, é impossível restabelecê-
-las. É possível apenas pensá-las, pensá-las ao longo da
trajetória de um tempo abstrato que não tem densidade.
Só através do espaço, só no espaço, encontramos de fato
os belos fosseis da duração, concretizados por uma longa
permanência.’ (ARNHEIM, 1989)

Rudolf Arnheim sugere, Bachelard corrobora, Heidegger


atesta, ao menos em parte, e o conjunto das ideias converge para
uma interessante hipótese de que, na espacialidade do Dasein,
apresente-se uma alternância binária, ora temporal (do caminhar),
ora espacial (distancio-direcional) possibilitando um modo da
percepção do espaço uno, porém constituído a partir da alternân-
cia desses dois modos originários que se sucedem no tempo quase
imperceptivelmente, sem solução de continuidade. É possível que
esta alternância ocorra, entre outros motivos, devido à conhecida
dificuldade, senão impossibilidade, que o cérebro tem de proces-
sar simultaneamente, na consciência, diferentes insights.
Contudo, afastando a questão fisiológico-psicológica,
podemos seguir tentando descrever “como é possível” que

97 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

ocorra essa pretensa alternância que propomos no que tange ao


fenômeno vivido. Husserl, falando sobre aquilo que se dá quando
ouvimos uma música, descreve os mecanismos de “retenção”
(que podemos definir como uma espécie de memória residual
imediata) e “protensão” (ou aquilo que se projeta para frente por
meio da intencionalidade), para Husserl, enquanto flui a melodia
presentificada, o que se ouve agora projeta-se para “trás”, no
modo de retenção, algo comparável à cauda de um cometa que
rompe o véu do presente e se dissolve no passado imediato; ao
mesmo tempo, sem solução de continuidade, o mesmo f luir,
sempre presentificado, segue projetando para “frente” a proten-
são intencional. Assim constituímos o fenômeno da música em
sua unidade. A alternância dos modos espaciais aqui conside-
rada deve se dar de modo semelhante, em “fluxos modais” que
deslizam ao longo de si.

O Modo Temporal – O Caminhar-na-chãosidade


Se examinarmos nossa própria memória visual parece coerente
o fato de que quando lidamos com um espaço percebido, no dito
modo temporal, ou melhor, andando ao longo de um percurso,
apresenta-se mais ou menos o seguinte: se temos em foco um
objetivo em frente no caminho, este se aproxima e, aos poucos,
aumenta suas dimensões e nitidez com a proximidade; enquanto
isso, lateralmente, no campo visual periférico, deslizam para trás,
móveis e fluidos, os diversos planos superpostos em profundi-
dade; quanto mais fundo mais lentamente se move e, ao muito
longe, a lua, por exemplo, parece parada; do longe para o perto,
gradativamente cada plano mais próximo “desliza para trás” mais
rapidamente com relação aos do fundo. Assim, enquanto meu
corpo desloca-se para frente faz o espaço todo, em contrapar-
tida, “andar” para trás em múltiplos “deslisares” conforme as
diversas profundidades, lembremos por exemplo da experiência
que se dá, ao rodar por uma estrada e que pode ser enfatizada
no movimento mais rápido do carro ou do trem, mas lembremos
também do que se dá ao percorrermos o interior de uma grande

98 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

catedral gótica onde as sombras e os relevos se superpõem em


fluxos espaciais escalonados.
Essa condição de andar para frente com o espaço que “deságua”
para trás, muda constantemente os padrões visuais, como se nos
movêssemos não diante, mas dentro do tubo de um caleidoscópio
imaginário. No desdobramento do “andar para frente” (este velho
costume ancestral e por isso mesmo negligenciado) penetramos
a massa de ar sobre a terra que envolve a paisagem, os lugares e
os espaços da cidade onde as coisas todas (sempre mutantes em
sua apropriação pelo “modo caminhar”) habitam em torno dos
lugares que podem ser bem conhecidos, mais ou menos familia-
res ou simplesmente desconhecidos e, portanto, experimentados
entre a surpresa, a intimidade e a indiferença.
A organização do espaço arquitetônico na urbe, seja geometri-
zado e alinhado ou então serpenteante, são sempre originados
pelos próprios caminhos que constituem, configuram e reafirmam
os contextos arquitetônicos. Na apreensão visual do caminhar a
arquitetura da cidade apresenta-se em padrões de totalidades
e unidades, ou mesmo na relativa descontinuidade fragmentá-
ria que caracteriza, em grande parte, as megalópoles contempo-
râneas. Gordon Cullen e Kevin Lynch já demonstraram como o
andar configura sempre características visuais que podem permitir
leituras sequenciais da identidade.
A aparente obviedade de falar do andar para frente esconde
também a condição de, enquanto ser-no-mundo estarmos sempre
projetados, como numa queda para frente, projetados para o
futuro. O fenômeno de caminhar para frente é uma presentação
do porvir, caminhamos sempre em frente penetrando no entre
até o espaço final (o vazio) que nos espera. O caminharmos-to-
dos-no-mundo esconde, em sua simplicidade, e revela, em sua
essência, a própria mostração de que somos entre os mortais.
Pôr-se a caminho é uma representação importante da condição
humana, mas essa condição fundamental é velada pela cotidia-
nidade e apenas se faz notar quando se rompe o andar-enga-
jado e nos vemos para atravessar os rubicões da vida ou, mais
corriqueiramente, no contraste da condição contrária de andar para
trás, na estranheza que nos causa, em nossa secreta perspicácia

99 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

da infância, estarmos eventualmente voltados para trás desde


a traseira de um veículo, vendo o espaço deslizar ao contrário.
Mas tudo isso que se refere à imagética do movimento, constitui
a ôntica da pura visualidade. O caleidoscópio do mover-se revela
a espacialidade própria desse caminhar de modo deficiente, ou
seja, vela nossa “chãosidade”. A verdadeira essência do caminhar
não enxerga nada, apenas tateia no pisar.
Estamos entre os animais superiores que mais caminham.
Quantos caminhares dos nossos antepassados nos puseram em
todos os cantos do planeta? Os pés conhecem de cor e esquadri-
nham na intimidade do pisar o espaço do lar, mas também a rua
a praça e o bairro na lida engajada do cotidiano. Nossa “chãosi-
dade”, em sua condição mais originária, esconde-se no estreito
contato entre o pé e o chão, na vereda secreta do nosso destino,
entre os abismos da gravidade, o nosso comprimir-nos contra
a epiderme do piso. No sulco da trilha, no gramado do primeiro
caminhar do bebê que inicia sua jornada, nos pés descalços da
infância que tateiam e experimentam as pedrinhas pontudas
do chão que vão prenunciar os obstáculos maiores que virão.
Caminhamos sobre o piso de chão batido da tapera e da vila,
que cedem, compactados por gerações. No pisar do areão da aldeia
se esconde a arqueologia dos passos dos antepassados; está a força
da natureza da última enxurrada. No chão da estrada está a marca
invisível dos que se foram e a possibilidade dos que virão.
No caminhar do cotidiano, na lida do trabalho, vai ficando
para trás a própria vida que se esvai pelo caminho; nos encontros
dos amigos, nos amores achados e perdidos ou nos passos, que
mal tocam o chão, nos passeios em que levamos nossa velha mãe.
Medimos no caminhar a própria vida que vai a cada passo em
direção ao espaço final onde cessa todo caminhar.
O caminho nos marca e nós marcamos o caminho. Caminhar
é aquilo que somos, somos-no-caminho, seja em busca da terra
prometida, no vagar a esmo da derrota mais atroz ou no seguir
sozinho na perda da pessoa amada que se foi. Caminhar é nossa sina
desde sempre, para vir, para ir e para voltar ou não, no caminhar
de fé dos peregrinos ou no pé-ante-pé para o patíbulo. Tudo o que
é humano está no caminhar.

100 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

O Modo Espacial – Direção e Distanciamento


Por outro lado, quando estamos parados, liberados da dinâmica
e da fluidez do movimentar-nos, podemos “medir” o espaço, em
suas relações de tridimensionalidade em melhores condições,
pois a estrutura espacial pode ser esquadrinhada a partir de
referências fixas, menos f luidas e mutáveis, mais claramente
inter-relacionadas.
Ao contrário do observador em movimento, o tempo mais
longo do observador parado possibilita a impregnação de visadas
escolhidas que podem ser repetidas seletivamente e impressas
na memória a partir da busca de padrões formais mais claros e
definidos para melhor fixação na memória.
Tal constatação não é incoerente com a nossa condição biológica,
pois conforme tenhamos evoluído para a caçada em grupo essa
diferença modal seria, ao que parece, bastante útil. Imaginemos
uma situação do caçador furtivo na floresta: enquanto ele se desloca
e sua visão se expande, digamos, mais conectada em totalidades
numa sintonia entre visão, audição e os demais sentidos, parado-
xalmente despejados no mundo e, ao mesmo tempo, ocultos sob
a epiderme. Em seu deslocamento na selva o caçador vira uma
espécie de antena de varredura audiovisual.
Nesse modo a percepção do todo prevalece, os sentidos se
unem para fazer uma varredura sem foco específico como faz um
scanner lazer. Quando o radar “visual-auditivo” capta algo diferente
do padrão total, a princípio indefinido, pode ser um remexer nas
folhas ou algum padrão visual cromático levemente destoante
do conjunto, desliga-se o modo temporal e liga-se, automati-
camente, o modo espacial, mais adequado para estabelecer um
padrão figura-fundo numa totalidade estática, quando então o
caçador cessa o caminhar para fazer medições relacionadas a
direções e distanciamentos.
No contexto espacial da distância-direção deixa-se, então,
temporariamente, de lado a varredura da totalidade do campo
visual móvel, para lançar mão do recurso que a visão binocu-
lar possibilita por meio da paralaxe visual, onde, ao invés da
varredura, dá-se a triangulação. Ora, falar triangulação é dizer

101 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

justamente direção e distância, que podem ser captadas em pleno


fenômeno, por exemplo, quando, após andar entre as arcadas da
mata fechada, no modo temporal, nosso autêntico índio silvícola
estaca de repente na floresta, entrando no modo espacial e acerta,
com olho de lince, a flechada certeira em um macaco no topo do
arvoredo, a trinta metros de distância.

Escalas Não Numéricas


Não é nenhuma novidade a referência corporal na medição
do espaço. A polegada e o palmo, o pé e a braça vieram de referên-
cias originárias, partem de uma compreensão das relações do
corpo com o espaço e do espaço com o corpo, e foram tomadas
como unidades métricas, vigentes, até a substituição pelas escalas
numéricas convencionais.
Contudo nunca deixamos de lado a referência das medidas
corporais. Não é incomum fazermos verificações com o corpo, como
em marcenaria, que se mede com os dedos; ou pelo costume de
“calibrar” 1 metro na distância entre a ponta dos dedos e o ombro
oposto; ou ainda medir com passos ou passar entre. A partir das
medidas do corpo a compreensão é mais intuitiva, mas nem por
isso imprecisa. Quem trabalha com projeto conhece o problema de
se determinar medidas em escala numérica que, às vezes, não se
confirmam presencialmente. Assim o uso do corpo, no demorar-
-se no espaço da locação do projeto sempre foi, e nunca deixará
de ser, um fundamento.
Do ponto de vista do fenômeno, a corporeidade é no espaço,
tanto quanto a espacialidade é no corpo. Logo, essencialmente,
a escala humana funciona como um diapasão que vibra sempre
numa determinada frequência que parece absoluta, mas, na verdade
reverbera em consonância com a escala das coisas do mundo, ou,
em outras palavras, a escala humana não é meramente a relação
comparativa entre nosso tamanho corporal absoluto e as coisas
com que comparamos, ela tem uma espécie de elasticidade, que
se encolhe ante o imenso e se expande perante o ínfimo; e que
se encurta na distância e se alonga na proximidade, embora, ao

102 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

mesmo tempo, se mantenha, sempre no “aqui”. Assim, embora a


velha tradição das medidas já registre, convém revisitar as calibra-
ções da escala humana.

A Escala da Mão
O ali, o lá e o acolá saem sempre do aqui. A escala da mão é a
referência básica a partir da qual calibramos todas as coisas. É escala
dos objetos plenamente apropriáveis. Nas mãos, sob o aparente-
mente óbvio dos fazeres humanos, o utensílio é a chave que penetra o
mistério da abertura do mundo. É possível ser um bom arquiteto sem
dominar os fazeres manuais (Gropius, parece que sequer desenhava),
contudo a manualidade, especialmente se trabalhada desde a infância
(vide o Emílio de Rosseau), abre caminhos diretos para aspectos que
o intelecto precisa dar muitas voltas para encontrar.

A Escala do Braço
É através do raio de ação da envergadura que se dá o domínio
da nossa própria espacialidade e o sentido de territorialidade mais
fundamental. Os braços são a ponte que vence o abismo que existe
entre o corpo e o mundo (e os outros). Perante os outros, os braços
abrem as portas da intimidade no abraço, ou distanciam no repúdio
e na luta corporal. Com os braços abrimos caminho por entre as
coisas e as pessoas. A pintura e a escultura são produzidas na
escala do braço, tudo o que é apropriável pelo gesto.

Escala do Corpo
Na escala do corpo acontece a arquitetura como espacialidade.
A cabana e a catedral são medidas pelo corpo. Assim, enquanto a
manualidade mede o longe a partir do perto, o caminhar, ao contrá-
rio, galga distância do perto a partir do longe. Entretanto, desde
quando começamos a usar montarias, e todos outros meios de

103 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

transportes posteriores, subverteu-se nossa essência caminhante


e perdeu-se o sentido originário que se consolidara ao longo dos
milênios de caminhadas. É provável que nossa atual atração por
aventuras em trilhas seja uma reminiscência desse elo perdido.

A Escala do Céu
Através da ciência e da cosmologia formamos uma ideia de céu
infinito, mas, do ponto de vista do fenômeno de estar-aí (aqui), o céu
apresenta-se como coisa, atingível nas grandes alegrias ou quando
nos sentimos amados. Termina onde começa a terra, formando o
horizonte das possibilidades humanas, é delimitado pelos caminhos
possíveis, é finito e apresenta forma, consistência, cores, texturas
variáveis e características locais. A abóbada celeste é a arquitetura
fundamental. O teto da paisagem é modelo de referência para a
arquitetura construída.

O Lugar
É chegada a hora de tentar enfrentar o desafio do lugar. Dizemos
desafio porque suscita muitas questões no caminho do pensar, com
todas as dificuldades que a filosofia apresenta para nós, arquitetos,
que, de maneira geral, não estamos muito habituados a pensar,
mas antes, fazer. Assim, perguntamos a pergunta que, em geral,
é respondida insatisfatoriamente, com algum sentimentalismo
vago e reticências: O que é este ente, o lugar? Onde ele se esconde
e se mostra? Qual é o ser que lhe corresponde? E, por conseguinte,
qual a sua verdade? Como podemos encontrar um acesso até ele?
E, finalmente, talvez a pergunta mais importante, ao menos para
nós arquitetos: o que fazer com ele caso ele se mostre?
Pode-se começar limpando o terreno e buscando, como ponto
de partida, àquilo que o lugar não é. O lugar não é uma coisa, não
se configura como espacialidade no sentido material e, portanto,
não pertence à esfera da objetividade. Assim, descartamos de
saída os métodos da ciência empírica em nossa busca. Jamais

104 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

encontraremos o lugar através da empiria, seja em termos qualita-


tivos ou quantitativos, e ainda que se faça um daqueles obstinados
e criteriosos levantamentos dos diversos lugares reconhecidos,
listados em tabelas e analisados em gráficos para que, em seguida,
se aplique os algoritmos mais complexos analisados em grandes
computadores veremos que o lugar estará além, fora do alcance.
Christopher Alexander avançou por essa seara com seus “paterns”
buscando o sentido de lugar a partir de espaços típicos. Tentemos,
pois, tomar a questão por outro lado, a partir do lugar ele mesmo.
Voltando, portanto, ao lugar em si, ainda que ele não seja uma
coisa, apresenta-se, a lugaridade, por meio das coisas, através
delas, insinua-se e emana do estar entre as coisas. Constatação que
também afasta a pura subjetividade do lugar como uma ideia, ou o
“lugar ideal”. O emanar das coisas coloca-o previamente no mundo
enquanto revelação, a qual poderá eventualmente desdobrar-se
como subjetividade, a partir de alguma qualidade atribuída a um
determinado contexto de coisas, ou seja, a partir de um reconhe-
cimento, um “valor imaterial”, tal como é tratada a questão na
esfera do patrimônio cultural.
Assim, embora o lugar não seja nem objetivo enquanto coisa,
nem subjetivo enquanto ideia, se é que ele existe de fato, resta-nos
entre a coisa e a ideia apenas duas possibilidades: primeiramente,
ou o lugar não é coisa nem ideia e aí ele não existe, é uma quimera,
um diletantismo, não é mesmo nada; ou então é a fusão da coisa
com a ideia; em outras palavras, o fenômeno. Assim, em nossa
busca (nada casual, deve-se admitir) chegamos à fenomenologia.

O lema fenomenológico ‘para as coisas em si’ não implica


aceitar ‘construções que flutuam livremente e descober-
tas acidentais’ [SZ: 28]; e também não aceita conceitos
aparentemente demonstrados ou pseudoperguntas da
tradição. Para descobrir o sentido apropriado da fenome-
nologia, Heidegger volta mais uma vez para as raízes
gregas das duas palavras que constituem a fenomeno-
logia: ‘fenômeno’ e ‘logos’. Ele volta para o grego para
evitar conotações que possam ter sido adicionadas aos
termos desde então e para expor seu significado original.

105 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

‘Fenômeno’ originalmente significa ‘aquilo que mostra a


si mesmo, aquilo que é manifesto’ [SZ:28].

O conceito de logos é particularmente difícil porque a


tradição filosófica usou várias traduções impróprias,
especialmente quando o compreende como ‘razão’. Seu
significado central é a fala, mas num sentido particular.
‘Logos enquanto discurso significa na verdade deloun, tornar
manifesto na fala ‘aquilo sobre o que estamos falando’[SZ:32].
Heidegger descobre que a discussão de Aristóteles da fala
como apophainesthai (ou seja, a fala que nos permite ver
de si mesmo aquilo sobre o que falamos) esclarece este
sentido de logos como fala. Logos, neste sentido, também
está ligado com os conceitos de verdadeiro ou falso, não no
sentido de correspondência, mas no sentido de aletheia,
descobrimento. (SCHMIDT, 2014)

Então, aquilo que nos escapa acerca do conceito de lugar em


nossa busca por entre o objeto e o sujeito, apresenta-se como
possibilidade no fenômeno e se dá no sentido de ser-no-mundo,
ou seja, enquanto modo de ser a partir da ontologia fundamental
do Dasein. A abordagem para esta investigação do ser do lugar
ocorre por meio do logos, a fala. Assim, para fazer ver aquilo que
estancia, ou seja, o “lugar”, apresenta-se não algum dado espacial
ou alguma idealização da lógica, mas a palavra. Portanto, ao que
parece, já avançamos um pouco mais em nossa busca. Encontramos
o que o lugar não é (coisa ou ideia) o que ele é (fenômeno) e agora
onde ele habita (o logos) e, também, por conseguinte, o modo de
acesso (as palavras). Façamos uma tentativa de acessar o lugar do
lugar para então saber o que fazer com ele quando encontrado.

O Logos, a Instância da Estância


O logos se dá originariamente na fala, antes até que na escrita.
A palavra falada é onde habitamos. Heidegger lembra-nos que

106 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

pensamos dominar as palavras, mas, na verdade, elas é que nos


dominam. Propomos seguir os passos do filósofo ao reino do logos.
Iniciemos pela fonte, vamos aos gregos como ele talvez fizesse.
Vamos a Esopo (620 – 570 A.C), um escravo contador de histórias
que antecedeu até aos pré-socráticos. Assim, cremos poder buscar
o conceito de lugar na fonte mais originária, amparados no ninho
onde nasceu a filosofia e a ciência. As histórias atribuídas a Esopo
prescindem à escrita, pertencem à oralidade.
Oferecemos como porta de entrada para a clareira do lugar
a conhecidíssima fábula da Galinha dos Ovos de Ouro 22. Não será
necessário, obviamente, contar a história por mais saborosa que
ela sempre seja, pois ela nos habita e nós nela. Vamos, portanto
direto ao que aqui interessa que é nossa busca pelo ser do lugar.
Temos então um primeiro problema que está na tarefa de decidir
se, em nosso discurso, o lugar é o ovo ou a galinha? É, pois, ambos
em sua unidade.
O lugar é, primeiramente, e inusitadamente, as tripas da
galinha, frágeis e perecíveis, a fonte misteriosa desdobrada em
profundidades insondáveis na simplicidade absoluta do ser até
os limites do que não é. Nas tripas das aves os gregos antigos
liam os desígnios do destino, a advertência dos antepassados, a
sorte na batalha, os amores, a vida e a morte. O oráculo, onde a
sacerdotisa interpreta as tripas, é o lugar por excelência, engendra
o templo que se constrói em seu redor e funda os espaços e o
próprio mundo irradiado desde si.
Por outro lado, na fábula, a simplicidade da galinha morta
mostra o mistério do insondável através do qual nossa curiosi-
dade infantil mergulha na incredulidade do milagre emergente do
ovo de ouro, a promessa maior daquilo que, mais que símbolo, é
a própria promessa materializada na forma alongada do ovo, cuja
imagem elipsoide assimétrica é, em nosso imaginar, ao mesmo
tempo, estática, inquieta e elementar, como uma escultura de
Brancusi. Essa promessa encarnada essencialmente no ovo está
associada à plenitude total do ouro que, mais que irradia, resplan-
dece e que, paradoxalmente, nasce da simplicidade mais radical

22  Pouco importa se a atribuição é confirmável ou não.

107 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


O Fenômeno Arquitetura

das tripas, esse abismo para onde nossa imaginação insiste em


retornar e retornar... repetidas vezes, e onde nunca encontra nada.
Ao emergir a luz revelada da sombra absoluta inunda os espaços,
irradia ao redor, ilumina as pessoas e projeta-se para o céu se
anunciando aos deuses, que acenam para a luz, e aos mortais que
afluem em peregrinação para sua fonte.
Retomemos os exemplos mencionados acima, quando vimos
o “lugar” no fogo sagrado do lar grego antigo, na relíquia medieval,
ou na nossa relação primordial com nosso próprio lar. Propomos
então que o lugar em seu ser absoluto, em sua essência, seja, nada
mais nada menos, que a Galinha dos Ovos de Ouro, o fundamento,
o fogo, a relíquia e o pertencimento compartilhados em seu brilho
e simplicidade. A essência daquilo que somos com o mundo e com
os outros, entre “o céu, a terra, os deuses e os mortais”. Aquilo que
demanda disposição, compreensão e um especial cuidado na lida
engajada do Dasein arquiteto.
Cumpre ainda notar de passagem que atiramos no lugar e
acertamos na vitalidade. Ou seja, a verdade do logos nos diz também
que o conceito de “vitalidade”, em sua condição verdadeira, passa
longe do uso indiscriminado que geralmente nós arquitetos fazemos
da palavra, pois é, antes de tudo e justamente, o brilho do lugar
em sua manifestação mais originária23. Parece-nos, enfim, que
isto é bom e suficiente para o que aqui se pretende.
Finalmente, em resposta à última pergunta (de caráter operacio-
nal), sobre “o que fazer ao encontrar o lugar?” A resposta é óbvia:
basta fazer o que o protagonista da fábula não fez ou, no mínimo,
não fazer o que ele fez; ou ainda, talvez nada fazer, deixando o
lugar seguir em sua vigência.

23  Aquilo outro que em geral se chama mais ou menos sem definir claramente
de “vitalidade” são derivações secundárias, idiossincrasias ou recurso retórico
vazio.

108 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


4 A QUESTÃO DA TEORIA

O termo “teoria” pode ser considerado sob quatro aspectos princi-


pais: 1º enquanto especulação e vida contemplativa, este é o signifi-
cado original da Grécia antiga (ao menos no estereótipo que trazemos
hoje) e se opõe à prática enquanto modo de contemplação; 2º uma
condição hipotética ideal onde seriam cumpridas normas gerais que
na verdade são observadas imperfeita ou parcialmente; 3º conside-
rada como ciência pura, sem aplicabilidade direta, ex. física teórica
e 4º uma hipótese ou um conceito científico (ABBAGNANO, 2007).
Portanto a teoria, em sua condição mais originária enquanto
“especulação e vida contemplativa” surge, muitas vezes, no diletan-
tismo do nada fazer e sustenta-se no fazer de outrem. Nesse sentido
a teoria é parte do exercício de poder e de dominação, o que, a
bem da verdade, não está longe de uma profissão como a nossa,
historicamente vassala dos poderosos e cada vez mais distante
dos fazeres manuais.
Esse ócio, dito produtivo, não é nem de longe um privilé-
gio exclusivo de gregos antigos refestelados em lençóis de linho;
ainda se pratica em modos variados nas diferentes esferas sociais,
nas diversas formas de parasitismo humano, público ou privado,
entre os setores mais abastados onde haja tempo para usufruir
do trabalho alheio.
Por outro lado, enquanto “condição hipotética ideal, a teoria pode
surgir de uma disposição que nasce da ruptura do fazer cotidiano,
quando “algo dá errado e o mundo se mostra” abrindo possibilida-
des sobre como, por que e para quem se faz aquilo que é feito. Assim
a teoria seria originada do questionamento. Pode-se considerar
mesmo a atraente hipótese de que a teoria, no âmbito da técnica,
teria nascido nas noites de insônia do artesão autêntico, que não
conformado às convenções sedimentadas pelo fazer regular do
dia a dia, buscaria caminhos da compreensão por meio de uma
disposição original.
É interessante observar aquilo que Heidegger indica de que,
na prática do fazer manual, a percepção dos utensílios dissolve-se

110
A Questão da Teoria

no ato da feitura. A manualidade, que é o modo mais originário


de lidar com os entes, coloca em segundo plano a compreensão
do juízo perceptivo que se tem dos utensílios. Portanto, a busca
do “ser da arquitetura” leva-nos ao seu caráter utensiliar, ou seja,
ao fazer e ao usar, antes da teoria.
Para o bem e para o mal, teorizar é um modo secundário de
lidar com as coisas e os utensílios, um subproduto do fazer que
pressupõe uma alienação do fazer. É, em suma, não fazer. Assim
se deu, por exemplo, a passagem do modo de produção do artesão
feudal para o advento do burguês bem-disposto, e de teorização
em teorização levou os arquitetos a saírem do canteiro de obra
para o ateliê. Possibilitou também que o mestre (prático) viesse
a ser substituído pelo professor (teórico), o que remete àquela
frase conhecida, em grande parte verdadeira, que diz que “quem
sabe faz, quem não sabe ensina”.

Teoria e Tratadística
Não se pode medir a relevância de Vitrúvio para o seu tempo,
entretanto, pode-se depreender hoje, com relativa facilidade, que
os Dez Livros de Arquitetura (2006) tratam de uma teoria nascida
principalmente da prática, ou seja, um conjunto de preceitos para
fazer entender a correta condução da arte de construir a partir
de considerações e regras formuladas por alguém que conhece o
ofício, talvez por tê-lo exercido na prática, inclusive manualmente,
o que confere um ethos, uma especial autoridade para a teorização.
Por outro lado, quatrocentos anos depois, em Alberti, revela-se
o sinal dos tempos da modernidade e, embora na Arte de Construir
(2012) haja prescrição de preceitos práticos, a teoria nasce antes
do logos, da disposição intelectual e, de maneira geral, dirige-se
à prática dentro de um programa intelectual prévio, ao mesmo
tempo especulativo, moralista e doutrinador. Em comum, as duas
fontes, a prática e a intelectual, buscam de maneira geral chegar
a preceitos de aplicabilidade, seja para conservar, aprimorar ou
modificar essa prática, ou ainda criticá-la em sua validade dentro
de um determinado contexto histórico e ideológico.

111 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

A questão da Técnica
Nossa relação mais essencial com o mundo se dá a partir da
manualidade. Juntar materiais para criar coisas é um milagre que
muitas vezes passa desapercebido na aparente simplicidade do
cotidiano. Presenciar, por exemplo, um artista ou ainda um simples
artesão habilidoso em ação é sempre um curioso espetáculo. 24 E
mesmo o artefato produzido pela mais alta tecnologia guardará
sempre sua ancestralidade no fazer manual.
Contudo, à medida em que se afasta a manualidade e prevalece
a teoria sobre a prática, a técnica passa a colocar a compreen-
são antes da disposição do fazer. No desenrolar da presença,
quando o entendimento antecede a ação, prevalece a inautenti-
cidade. Entretanto, convém frisar, em termos dos existenciais do
ser-no-mundo não há espaço para maniqueísmos. Os juízos de
valor são sempre subsidiários, vêm depois. Assim, se em nossa
essência mais fundante tudo se dá como condição de possibili-
dade, muitas vezes “o feio é belo e o belo é feio” e a compreensão
inautêntica, em simplesmente aceitarmos a técnica, pode também
ser autêntica... Ou não.
Se pensarmos, por exemplo, no principal instrumento da concep-
ção projetual, o desenho, podemos observar que na disposição
mais autêntica de desenhar, ou seja, durante as primeiras fases
da infância, a técnica é algo que praticamente inexiste, tanto nos
meios como nos fins, limitando-se a uma vaga intuição dos próprios
limites e possibilidades inerentes aos materiais que se usa para
desenhar, ainda assim, completamente “esquecidos” durante o
uso. Portanto, talvez justamente pelo desprendimento em relação
à técnica, a descoberta de mundos se faz plena, na livre imagina-
ção que o desenho infantil expressa; o qual, antes da represen-
tação, dá-se na própria “presentação”. 25
No ato de projetar desenhando há também essa mesma
disposição originária, tal como nas crianças. Obviamente no adulto

24  Obviamente, para quem tem olhos para ver!


25  Ainda que por caminhos misteriosos e, em boa parte, “incompreensíveis”
para a miopia dos adultos, que quase sempre circula entre o objetivo e o subjetivo.

112 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

pode dar-se em termos potenciais, não na generosa plenitude da


descoberta infantil, pois o desenhista que busca a criação projetual
já está tomado por “predisposições”, influências, teorias, costumes,
enfim, referenciais, que irão incidir, tanto previamente, quanto
durante o processo; tanto nos meios de expressão, quanto no objeto
de interesse que se busca. Contudo, ainda assim, pode se preservar
uma margem para o jogo das possibilidades, e uma certa submis-
são à técnica não oblitera necessariamente a intuição ativa do
projetista autêntico, podendo mesmo se chegar à transgressão,
ao inusitado, e até ao improvável.
Assim, quando não nos deixamos aprisionar pela técnica,
ela pode até mesmo ser a melhor parceira da disposição criativa,
recortando as possibilidades e instrumentalizando a imaginação.
Note-se que mesmo no caso da negação do tecnicismo a técnica
pode ser útil, pois a própria negação tem como ponto de partida
aquilo que se nega e, portanto, não inicia do zero.
Entretanto, no extremo oposto da livre imaginação “dispositiva”
está a submissão “compreensiva” voltada quase que estritamente
ao atendimento da técnica, no modo que “os outros” impõem a nós.
Mas o que, de fato, essencialmente traz a técnica? A técnica
pressupõe o atalho, a busca de não “reinventar a pólvora”,
como diz a sabedoria popular. Trata-se de encurtar para nós
os caminhos já percorridos pelos diversos “Daseins” e pular o
novelo emaranhado dos seus poucos acertos e muitos erros,
que a tradição selecionou, acumulou e resumiu na intersub-
jetividade da “tecno-logia”. Portanto, embora à primeira vista,
possa se pensar que a técnica é “o saber acumulado, dissemi-
nado pelo ensino teórico, sedimentado pela prática etc.”; parece
que, na verdade, a técnica acumula de maneira mais intensa e
contundente os erros, retraídos sob a superfície dos acertos.
Donde conclui-se que a técnica não é apenas os acertos que se
mostram, mas também os erros que se escondem. Mas ainda
que o erro seja indesejável e, portanto, afastado, seguirá sempre
presente para revelar a verdade e as contradições do mundo;
ele se retrai, mas continua se insinuando aqui e ali, sempre
presente por baixo da fina camada da perfeição. Então, quando,
eventualmente, o erro se mostra, traz consigo o mundo.

113 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Saber como os edifícios ficam em pé é tão importante quanto


saber como caem, contudo, como sempre, só se conta a história
dos vencedores, esquecemos os heróis anônimos que amarga-
ram as derrotas úteis para nós. Assim a técnica mostra “o que é
correto”. Os erros, sempre presentes, revelam nossa experiência
mais primordial da manualidade, fundada na “tentativa e erro”.
Nos modos de produção pré-industriais, a técnica apresen-
tava um caráter instrumental de primeira ordem, ou seja, direta-
mente voltada à prática, e se sedimentava como tradição no âmbito
do domínio de cada ofício. Com o desenvolvimento da ciência
teórica e da técnica moderna, a teoria se desprendeu da prática
passando tudo, em ritmo de crescimento acelerado, a ser proces-
sado como “informação” cada vez mais desvinculada do fazer com
as mãos. 26 Logicamente a atuação profissional do arquiteto não
poderia ficar de fora desse processo de alienação das manuali-
dades. Passamos a negligenciar e até desqualificar o fundamento
do fazer manual que nos define, de tal maneira que é possível, ou
até muito provável, formar profissionais da construção civil que
não sabem sequer bater um prego, pois, pretensamente estão
atendidas as questões teóricas.
Entretanto, o resultado da evolução da teoria processada
como informação está nos levando, pelo caminho da hegemonia
da técnica, rumo ao domínio da inteligência artificial como um
paradigma incontornável. Esta realidade transforma a teorização
em um conjunto de informações articuláveis como dados, onde se
substitui as possibilidades humanas pela simulação das probabili-
dades numéricas. Nesse contexto o fazer manual (este fundamento
essencial do Dasein) limita-se ao trabalho alienado, muitas vezes
explorado no regime de servidão dos imigrantes escondidos em
porões, nessa nossa pós-modernidade, dos smartphones e dos
robôs que já servem até para o sexo.
No mais, em grande parte, nossa manualidade tornou-se
alienada da sua condição de engendrar mundos e hoje se reduz

26  Este fato encontra uma confirmação paradigmática no movimento “arts and
crafts” da Inglaterra vitoriana onde se buscava uma retomada do fazer artesanal e
que terminou por influenciar a Bauhaus voltada à produção industrial.

114 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

àquilo que consta no “manual de instruções” dos utensílios, em


geral dispensável, pois o importante realmente é que compre-
mos os tais utensílios que os outros desejam que manuseemos
para que eles (os outros) possam nada fazer, sempre refestela-
dos. Assim, curiosamente, retorna o tema inicial da teorização ao
modo de apropriação do fazer de outrem para a prática do nada
fazer de alguns.
Cabe, enfim, lembrar que a teorização, seja de origem prática,
intelectual ou informática, apresenta a tendência de se crista-
lizar em dogma, verdade pretensamente inquestionável, que
sempre atende a ideologias, ou, no caso atual, ao próprio “ethos”
hegemônico da técnica.
Contudo, questionar é um fundamento mais originário que
teorizar. Faz-se teoria no jogo do nosso modo de ser com as coisas,
a partir dos existenciais da disposição e compreensão, ou seja,
os mesmos princípios que possibilitam a condição de possibili-
dade da criação de preceitos teóricos são aqueles que possibili-
tam a sua negação.
Assim, movidos pela disposição do questionamento, pretende-
mos neste capítulo tratar a questão da teoria a partir do seguinte
programa: Primeiramente discorrer sobre algumas das principais
correntes teóricas que formaram a nossa compreensão no campo
disciplinar da arquitetura, urbanismo e restauração, com ênfase nos
autores que nos interessam mais diretamente, para extrair deles
nossos conceitos operacionais: Quatremère de Quincy e a tipolo-
gia (considerada aqui como a essência utensiliar da arquitetura);
Camilo Sitte e a morfologia urbana (enquanto, “logos”, a lingua-
gem da forma); e Cesare Brandi através do conceito de “reinte-
gração”, da sua teoria do restauro, reapropriada ao urbanismo e
no contexto ambiental.
Em seguida tentamos acompanhar, resumidamente, os caminhos
das ideias de patrimônio histórico, artístico, material, imaterial e
natural, passando por uma breve sequência das chamadas Cartas
Patrimoniais, buscando, finalmente, uma ontologia do desdobra-
mento dessa expansão até às fronteiras do mundo das referên-
cias, o que nos leva, conforme propomos, ao encontro da verdade
que ninguém quer ver do lixo/monumento.

115 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Note-se que nesse capítulo sobre a teoria não se busca tomar


os autores e os respectivos conceitos na pura e simples aplica-
bilidade. A aplicação aqui, quando se dá, é de ordem epistêmica.
Apropriada como fundamento ontológico, em seu sentido primordial.
Assim, interessa-nos, antes, e muito especialmente em Quatremère
de Quincy, a ideia dos tipos fundamentais: “a caverna, a tenda e a
cabana”; obviamente não em termos literais, mas na compreen-
são profunda que se esconde na enganadora superficialidade da
asserção do mestre, ou melhor, no reconhecimento de que esse
“devaneio”, em geral negligenciado, é mais revelador do que pode
parecer à primeira vista, e que, portanto, talvez possa desvelar
fundamentos escondidos.
Da mesma maneira não interessa aqui, senão secundaria-
mente, o uso da morfologia de Sitte estritamente voltada para a
forma urbana a partir dos elementos morfológicos como a quadra,
o lote, os cheios e vazios etc., mas no que está antes disso, na
condição de possibilidade que leva à compreensão de identificar
a linguagem da forma em geral (ou o morfo-logos) e a decorrente
disposição em “integrar” na “fala da forma”, ou seja, o originário
que está por trás da ação.
Igualmente, de Brandi, tomamos e pretendemos desenvolver
aquilo que entendemos ser a essência de sua teoria, em especial
a ideia de reintegração, essa não voltada unicamente à questão
da complementação das perdas da obra de arte, mas, também
“antes”, como disposição, ou, em outras palavras, como a vontade
originária de “re-estabelecer” potencialidades.

Recorte Referencial
Tomamos essas três principais referências, da tipologia, da
morfologia e da teoria do restauro, para propor uma ontologia.
Contudo, obviamente, toda contribuição teórica acumulada no
campo disciplinar do urbanismo é importante. Há vários autores
fundamentais, por exemplo Cerdà, Jane Jacobs, Aldo Rossi etc. que
tratando de questões urbanas ou de arquitetura remetem, necessa-
riamente, às questões que vem ao encontro do que aqui se discute.

116 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Contudo, embora esta experiência preliminar esteja aberta a


desdobramentos, não pretendemos tratar da teoria do urbanismo
em geral como num compêndio, senão para aquilo que se refere
especificamente a alguns autores que incidirão mais diretamente
em nosso caminho metodológico e, ainda assim, a partir dos concei-
tos básicos de suas respectivas contribuições, naquilo onde elas
possam ser operacionalizadas, utilizadas como ferramentas de
trabalho para a nossa própria proposição. De qualquer maneira o
presente trabalho segue em aberto e, com certeza não termina aqui.

O Referencial da Restauração
Numa espécie de apologia da disciplina do restauro costumo
sempre aludir, como brincadeira em sala de aula, à ideia que os
arquitetos restauradores cultivam, sobre seu ofício como sendo
superior, se comparado à disciplina da arquitetura em geral. Comparo
o restaurador com os personagens do filme “Ensaio de Orques-
tra” de Fellini, onde cada músico exalta seu instrumento como
o melhor e mais completo. “Mas, de fato, digo eu, a disciplina da
restauração lida com toda extensão do campo disciplinar, desde
a concepção mais abstratamente filosófica, até a obra mais tosca,
e da filigrana à paisagem”.
Não é demais lembrar que o inventor da restauração moderna,
Violet-Le-Duc, não foi apenas o grande restaurador do seu tempo,
mas, segundo Pevsner, foi também o principal teórico da arquite-
tura desde Alberti e preparou o terreno para as gerações seguin-
tes ingressarem em novos tempos.
Assim, seguindo em nossa caminhada das ideias, passamos
um tanto detidamente pela questão do corpus teórico do restauro
em busca de um caminho. Caminho que, em parte, já percorremos
e que, conforme imaginamos, pode nos levar a uma compreen-
são que pretende ir além do campo estrito da restauração para
a discussão de caráter disciplinar da arquitetura em geral e do
urbanismo, e mesmo de visão de mundo.
Podemos exemplificar a apropriação do conceito de “reversibili-
dade”, muito aplicado como um princípio que prevê a possibilidade de

117 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

que uma intervenção qualquer possa, eventualmente, ser revertida,


ou seja, subtraída sem prejuízo da condição preexistente. Essa é uma
ideia cuja essência já é por si generosa e, por isso mesmo, pode ser
expandida para uma compreensão mais ampla e profunda, se trazida
para uma esfera ontológica. Assim, a “reversão” como proporemos
aqui, pode também falar da busca de uma condição originária da nossa
relação com o mundo e com a vida. Não no sentido ôntico (e pouco
inteligente) do “voltar ao que era” do restauro repristinativo, mas
com o passado que se volta ao futuro, no nosso ser-com-o-ambi-ente.
Reverter ao ambiente, por meio do espaço, da matéria, da
forma e do projeto voltados ao sentido de lugar; o qual as camadas
de intervenções (funcionalistas, programáticas, históricas, estéti-
cas, criativas, geniais ou burras) foram com o tempo recobrindo.

Patrimônio e Poder
Françoise Choay (2001) situa o nascimento da ideia de Patrimô-
nio Histórico na reconstrução de Roma ao final da idade média.
Essa busca de referenciais da antiguidade voltou-se ao classicismo
como modelo dentro de uma ideologia de poder que buscava legiti-
mar o papado buscando reacender a supremacia da igreja e da
cidade eterna em tempos de mudanças. A escolha do classicismo
representava uma renovação para a classe dominante juntamente
com o clero, numa nova ordem onde, gradativamente, abando-
nava-se o modo de produção feudal e se voltava para o avanço do
capitalismo mercantil.
Portanto a ideia de patrimônio histórico nasce e se desenvolve
como busca de legitimação do poder, lastreado pela historiogra-
fia e pela religião e encontrando respaldo, em termos da arquite-
tura, na retomada da linguagem clássica da antiguidade.
Da mesma maneira, quinhentos anos depois, em meados do
século XIX a ideia de restauração também tem seu nascimento
voltado a um programa de retomada de valores, dessa vez justamente
aqueles negados pelos renascentistas. O gótico passaria a ser reconhe-
cido como o estilo representante da cultura europeia, enquanto o
legítimo representante dos estados nacionais em formação.

118 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

No Brasil, durante o estado novo, vimos também algo semelhante


na criação do patrimônio histórico nacional, quando o foco do
interesse das elites (intelectual, burocrática e econômica) encontrou,
na fórmula do colonial, associado ao modernismo, um caminho onde
o nacionalismo pretendia legitimar a ascensão do poder econômico
que saía do rural para o urbano. A ideia de restauração não está
desvinculada desse jogo de legitimação do poder. Não é por acaso
que o, então, SPHAN é fundado em plena ditadura Vargas e traz a
questão do patrimônio histórico e da restauração como instru-
mento de legitimação e, eventualmente, até perpetuação do poder
constituído. Esse é o pano de fundo e assim tem prosseguido.
Mas voltando à teoria, o caminho do pensamento da restau-
ração se inicia com Violet-Le-Duc, até chegar à teoria da restau-
ração contemporânea, proposta nos anos 60 do século XX, segue
uma sucessão de teses e antíteses que se sucedem no tempo,
e que serão também discutidas resumidamente neste capítulo.
Embora pudéssemos remontar a antecedentes longínquos
partiremos, como sempre, do marco inicial em Violet-Le-Duc e
na ideia da restauração como “voltar ao que era”. 27 Exporemos
essa breve genealogia partindo da premissa de que a ideia de
repristinação (reconstituição) persistirá como uma força invencí-
vel e, apesar de gradativamente afastada em termos das teorias
posteriores, permanecerá até os dias de hoje como um atavismo
perene na prática do ofício. 28

A Invenção do Patrimônio
Françoise Choay (2001) situa na cidade devastada de Roma,
no ano de 1420, o nascimento da ideia de Monumento Histórico.
A partir do século XIV, período em que a arte começa a se
libertar da subordinação à religião, o Monumento Histórico passa
a ser valorizado por sua antiguidade.

27  Em Violet-Le-Duc mais especificamente “voltar ao que poderia ter sido”.


28  De fato, enquanto escrevo acabo de saber que a catedral de Notre Dame de
Paris será restaurada no modo “voltar ao que era”.

119 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

A ideia da antiguidade revisitada reafirma Roma como a princi-


pal referência dos monumentos de um passado glorioso. Note-se
que tal referência nunca se perdera de todo durante o medievo,
mas tomava novas dimensões, se renovava em todos os campos
da sociedade e da cultura, em especial na elite mercantil enrique-
cida que dominava as cidades-estados da Península Itálica.
Assim, a partir do século XV aumenta o interesse pelas antigui-
dades por parte dos pesquisadores patrocinados pelos nobres. As
viagens a Roma passam a ser parte obrigatória na formação, não
só dos artistas e dos eruditos italianos, mas de humanistas de toda
Europa e de outras partes do mundo nos períodos subsequentes.
O culto ao monumento, inaugurado pelos humanistas do renasci-
mento, é levado adiante pela pesquisa meticulosa de estudiosos ao
longo dos séculos seguintes. Primeiro os arquitetos ou os eruditos
e depois os antiquários, cultivavam o estudo das obras antigas.
Inicialmente as pesquisas atribuíam mais confiabilidade aos
textos escritos e menos aos testemunhos remanescentes dos
monumentos em si; posteriormente, com o estudo das formas, dos
estilos de época e suas variações regionais, passa-se a dominar o
vocabulário formal dos monumentos. Aos poucos, o diletantismo
dos especialistas passa a ser substituído por um caráter científico
que encontrava um paralelo na nascente Anatomia Comparada, ao
ponto de haver casos de estudiosos que tratavam tanto de edifícios
antigos como da morfologia de animais ou plantas.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, consolida-se entre os fidalgos
europeus o hábito de fazer viagens de caráter aventureiro, cientí-
fico ou pitoresco (lembremos, por exemplo, de Humbolt). Com
relação aos monumentos, o interesse dos viajantes está inicial-
mente voltado para as antiguidades greco-romanas, seguindo-se
a inclusão nos roteiros das ruínas romanas ou gregas existen-
tes fora da Itália e da Grécia. Aos poucos, os eruditos europeus
começam a voltar os olhos para os testemunhos arquitetônicos que
caracterizam suas próprias origens, trazendo um novo interesse
para os monumentos da época medieval e dando início à institui-
ção do conceito de “Antiguidades Nacionais”.
Entretanto as coisas mudam e as cidades crescem em ritmo
acelerado. Em meados do Séc. XIX, quase todas as cidades europeias

120 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

sofreram transformações surgidas com as novas demandas e


aumento de população, resultantes do progressivo desenvolvi-
mento industrial. Ao mesmo tempo ocorre uma desvalorização
dos centros históricos e a correspondente degradação de suas
condições de vida. A cidade antiga se desvalorizava, enquanto os
investimentos passaram a concentrar-se em outras áreas urbanas.

A Restauração no Século da História


Com efeito, para conhecer a história de uma arte, não
é suficiente determinar os diversos períodos por ela
percorridos em um determinado lugar; é necessário
também seguir sua trajetória em todos os lugares em
que foi produzida, indicar as variedades das formas de que
sucessivamente se revestiu e traçar o quadro compara-
tivo de todas essas variantes, levando em consideração
não só cada nação, mas cada província de um mesmo
país [...]. (VIOLLET-LE-DUC, 1996)

Restaurar, no sentido de reconstruir algo que se perdeu,


no todo ou em parte, não é, certamente, ao menos em termos
gerais, uma novidade absoluta e exclusiva de Violet-Le-Duc. É
algo, em certo sentido, natural. Uma velha foto da qual se que
tenha perdido parte da imagem é restaurada através da reinte-
gração das perdas para restabelecer sua completude. Quando
nos quebra um vaso, por exemplo, naturalmente o colamos
tentando disfarçar as marcas do desastre etc. Diversas culturas
consideram a restauração como a pura e simples reconstrução.
É sabido por exemplo, que diversos povos orientais consideram
a restauração como demolir, às vezes inteiramente, um edifício,
e em seguida reconstruí-lo seja com a mesma forma, ou mesmo
diferente do original. Contudo, na Europa novecentista a ideia
de restauração traz a marca da reconstituição com base no ethos
da historiografia.
Violet-Le-Duc volta-se ao gótico e se torna um profundo
conhecedor, capaz de identificar com apuro as diferentes escolas

121 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

do gótico nas diversas regiões. Essas classificações taxionômicas


dos monumentos acabariam instrumentalizando restaurações
onde o arquiteto vestia a pele do antigo artesão, estribado num
profundo conhecimento dos estilos, dos materiais e das técnicas
construtivas originais. A corrente filológica desenvolvida desde os
primeiros antiquários ao longo dos séculos XVII e XVIII até fins
do século XIX encontra em Violet-Le-Duc o seu exemplo mais
célebre de aplicação prática

Ruskin e a Antítese
Por outro lado, paralelamente à visão filológica, voltada princi-
palmente para o caráter formal dos monumentos, na Inglaterra
Vitoriana surge outra corrente, mais interessada na materia-
lidade dos edifícios submetida à ação destruidora do tempo.
Ruskin é o principal representante dessa corrente. O autor das
Sete Lâmpadas da Arquitetura associa princípios éticos e morais à
questão estética e considera que a arquitetura deve ser entregue
ao seu destino inevitável de um dia sucumbir à força dos elemen-
tos, cabendo a nós apenas a piedosa atividade da conservação,
jamais a restauração:

Não faz parte do meu atual intento considerar de forma


exaustiva o segundo dos grandes deveres que nos compete,
do qual falei antes: a conservação da arquitetura que
já possuímos. Mas, me permitirei algumas considera-
ções, particularmente necessárias nos tempos em que
vivemos. Nem o público, nem aqueles a quem é confiado
a conservação dos monumentos públicos compreen-
dem o verdadeiro significado da palavra restauro. Ela
significa a mais total destruição que um edifício possa
sofrer: uma destruição no fim da qual não resta nem
ao menos um resto autêntico a ser recolhido, uma
destruição acompanhada da falsa descrição da coisa
que destruímos. Não nos enganemos numa questão
tão importante: é impossível em arquitetura restaurar,

122 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

como é impossível ressuscitar os mortos, ainda que,


não tenha sido nunca grande e belo. Aquilo sobre o qual
tenho insistido, indicando como a vida do todo, aquele
espírito que somente nos é chegado pelas mãos e olho
do executor, não pode ser nunca restituído. Talvez uma
outra época possa produzir um outro espírito, e então se
tratará de um novo edifício; mas não se pode fazer apelo
ao espírito dos executores que estão mortos, e não se
pode lhes pedir para guiar outras mãos e outras mentes
numa empresa claramente impossível, quando se trata
de executar uma cópia fiel e sincera dos mesmos. Que
reprodução se poderá executar de superfícies que estão
consumadas de meia polegada? Todo o inteiro requinte
do acabamento de superfície da obra estava exatamente
naquela meia polegada que se foi. Se tentares restaurar
aquele acabamento, não podereis fazê-lo senão arbitra-
riamente. (RUSKIN, 1996)

Essas duas concepções antagônicas, a corrente do restauro


filológico de Violet-Le-Duc e a conservativa de Ruskin, passaram
a dominar o modo de lidar com os monumentos de uma maneira
geral, com a preferência oscilando ora para um lado, ora para outro.
Entretanto, embora alcance e a profundidade das duas concep-
ções tenham exercido enorme influência na história subsequente
do restauro, a cidade, como objeto artístico, e, portanto, como
objeto da restauração, fora deixado em segundo plano por ambos
os autores.
Violet-Le-Duc, imbuído pelo conceito das Antiguidades
Nacionais, tratava o monumento individualmente, e ainda que
reconhecesse o valor dos conjuntos arquitetônicos, identificava e
valorizava o caráter de permanência dos monumentos em contraste
com a mutabilidade das edificações comuns (antecipando concei-
tos mais tarde retomados por Aldo Rossi).
Ruskin, da mesma forma, reconhecia o caráter preeminente dos
monumentos, embora também voltasse os olhos, como humanista
e moralista, para as edificações comuns, ainda que tratadas indivi-
dualmente, como bastiões da memória familiar.

123 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Haussmann
Dentro de um contexto de modernização, o século XIX marca
o início das novas avenidas que irão romper os tecidos antigos
em nome do conforto e da higiene. Haussmann, em seu plano de
renovação de Paris, promoveu a destruição de grandes áreas da
cidade antiga em benefício da circulação, da estética e da ordem
social, determinando, entretanto, a conservação de determina-
dos edifícios considerados como monumentos a serem preserva-
dos ou mesmo colocados num novo contexto que os evidenciasse
como pontos focais dos novos espaços. Embora, na época, vozes
de inconformismo se levantassem contra a perda da velha Paris
Medieval, as demolições não deixavam de ser reconhecidas como
uma necessidade imposta por uma modernização inevitável.
Parece evidente que os românticos nutriam um sentimento
de perda pelos antigos conjuntos urbanos, entretanto parece claro
também que não encaravam esses conjuntos como um patrimô-
nio passível de ser protegido da destruição, como ocorria, por
exemplo, com as velhas catedrais e outros monumentos isolados.
Ainda com base em Choay, pode-se afirmar que até fins do Século
XIX os textos especializados que tratavam das cidades abordavam
a questão espacial apenas naquilo que se relacionava diretamente
aos monumentos. Os estudos históricos, até a Segunda metade
do século XIX, referiam-se às cidades sob o ponto de vista de suas
instituições jurídicas, políticas, religiosas, econômicas e sociais.
Mesmo a História da Arquitetura pouco trata da cidade. Todavia,
diversos fatores contribuíram para o atraso do estudo histórico e
artístico do espaço urbano: sua escala e diversidade, a ausência de
cadastros confiáveis; além da dificuldade de se reunir documentos
relativos às transformações do espaço urbano através do tempo.

Camilo Sitte
Camillo Sitte denuncia essa ausência no ano de 1889. Dessa
maneira, embora o século XIX, principalmente a partir do plano
Haussmann, tenha assistido a um debate dos valores culturais e

124 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

artísticos de conjuntos urbanos, o urbanismo inaugura o questiona-


mento da cidade como obra de arte a partir da edição da “A Construção
das Cidades Segundo Seus Princípios Artísticos”. No auge da discus-
são sobre o Ring de Viena, o livro de Sitte surge como um aconteci-
mento surpreendente. Através de uma perspectiva histórica, podemos
agora entender por que razão tal livro obteve tamanha repercus-
são imediata, esgotando rápido sucessivas edições; também ficou
claro o motivo pelo qual foi tão duramente atacado pelos modernis-
tas como Le Corbusier; e ainda, porque veio novamente atrair o
interesse dos meios profissionais, depois de passados 100 anos.
Filho de restaurador de igrejas e estudioso apaixonado da
forma urbana antiga e medieval, Sitte baseava-se numa vista
treinada nos princípios compositivos das cidades pré-industriais.
Criticava a rigidez e a monotonia dos traçados urbanos de então,
que considerava como sendo determinados por princípios funcio-
nalistas e descuidados dos resultados artísticos. Dois episódios
podem ilustrar a concepção de Sitte: a intervenção de Karel Buls
no Grande Palácio de Bruxelas (1883-96), que propunha recupe-
rar os valores do espaço público na cidade histórica; e a recons-
trução da torre na Praça de São Marcos em Veneza, arruinada
em 1902. Na ocasião, optou-se por reconstruí-la produzindo um
falso histórico que, todavia, restaurava o espaço singular da praça.
A obra de Sitte influenciou os urbanistas na Europa e fora
dela. Posteriormente a crítica modernista distorceu a obra de Sitte,
conferindo-lhe uma Imagem retrograda voltada a um revivalismo
medieval, a maneira de Ruskin.

Boito e Giovannoni
Em princípios do século XX Camilo dá uma importante contri-
buição com uma primeira tentativa de estabelecer uma síntese
entre a corrente da restauração à maneira de Violet-Le-Duc e
da corrente conservativa de Ruskin. A partir de uma perspectiva
profissional e de uma proposta científica positivista, o arquiteto
propõe que seja possível identificar, na restauração de monumen-
tos, onde termina a parte original e começa a parte restaurada.

125 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

A concepção de Boito será retomada e estendida à cidade por


Gustavo Giovannoni (1873-1947) engenheiro-arquiteto, professor
universitário de Arquitetura e de Restauração. Profissional atuante
em diversos projetos e como teórico respeitável por sua formação
sólida e diversificada, tornou-se capaz de reunir as práticas de
arquitetura, urbanismo e restauração. Entre seus numerosos
textos Vecchie cittá e edilizíe nuova (1931), trata da necessidade
de implementação de políticas que atendam aos valores ambien-
tais e contextuais das cidades históricas. Defende a necessidade
da conservação para a história (valores documentais), para a arte
(valores estéticos) e para vida presente (valores de uso).
Giovannoni ficou esquecido talvez, principalmente pela sua
associação ao fascismo, contudo recentemente vem sendo revisi-
tado pelo levantamento e compilação da sua extensa obra. Ele
é o primeiro autor a propor a restauração aplicável ao contexto
urbano, pois, embora a ideia de analogia entre arquitetura e a
cidade esteja enunciada desde Alberti, a aplicação de princípios
de restauração ao espaço urbano, ao que tudo indica, deve ter
sido inaugurada por Giovannoni.
A Carta de Atenas, de 1931, primeiro documento internacio-
nal que apresenta princípios e normas gerais para a conservação
e restauração de monumentos, foi inspirada nas ideias de Giovan-
noni, ainda que de maneira reduzida, pois apenas defenderá a
necessidade de respeitar o entorno dos monumentos, não desenvol-
vendo a questão da restauração aplicada à cidade.

Brandi e a síntese do Histórico e Artístico


Nos anos 60 do século XX Cesare Brandi, em seu livro Teoria da
restauração (BRANDI, 2004), de matriz fenomenológica husserliana,
consegue finalmente uma síntese entre as concepções originadas
na tese do restauro e na antítese da conservação.
A Teoria brandiana está dirigida especificamente para obras
de arte, ou mais claramente, para aquilo que se apresente como
tal. O autor não propõe uma definição de objeto artístico, mas
antes o “fenômeno” que se constitui na consciência quando algo

126 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

se “revela” como arte. Este fenômeno transcorre dentro de uma


temporalidade que o caracteriza e que se desdobra, não em termos
estritamente cronológicos, mas como “tempo vivido”, iniciado
desde o ato da criação até o momento presente. Para Brandi esta
temporalidade é dividida em três partes:

1. O momento da criação – consideramos que no caso da


cidade o momento de criação permanece em curso no
tempo presente;
2. O tempo cronológico – que incorpora vetustez, esteja a
obra concluída ou não;
3. O momento presente – quando a obra de arte se revela
como tal perante nós.

A “temporalidade” característica da obra de arte determina


uma orientação que tornou obsoleto o conceito de restauração
inaugurado por Violet-Le-Duc, 29 que considerava a restauração
como uma intervenção que possibilitaria que a obra “voltasse ao
que era” ou ao que, hipoteticamente, “poderia ter sido”.
A teoria brandiana rejeita também a arbitrariedade mal
disfarçada que caracteriza o “restauro por analogia” com base
em estudos tipológicos, cuja aplicação, ainda que respaldada em
sólido conhecimento da obra ou do estilo de época, leva ao erro
de substituir o “momento da criação”, algo obviamente insubs-
tituível, uma vez que se processaria estritamente dentro de um
contexto cultural específico.
Outro problema que a teoria brandiana busca resolver é da
“restauração” que faz com que a obra fique “renovada”, ou seja,
aquela intervenção através da qual se apaga a trajetória temporal
referida no segundo momento citado acima (do tempo cronoló-
gico). Para Brandi, é um duplo engano intervir tanto no primeiro
como no segundo momentos, o que levaria a uma falsificação da
obra de arte em termos históricos e artísticos.

29  Embora na prática ainda professado correntemente em nosso meio


profissional.

127 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

A restauração deve dar-se exclusivamente no “aqui e agora”


quando a obra pode ser considerada dentro de uma coerente
perspectiva espaço-temporal.
Essa abordagem constitui uma síntese das contribuições
anteriores compatibilizando a tese da restauração inaugurada
por Violet-Le-Duc e a antítese conservativa de forte caráter
ético-humanista de Ruskin, que polarizavam o debate em torno
dos “Monumentos Nacionais” desde meados do século XIX (e que
na verdade ainda se apresentam na arena quando se questiona
o destino do patrimônio).
Além disso, Brandi resolve a questão da reintegração (comple-
mentação das perdas), superando a abordagem ostensiva do
Restauro Científico de Camilo Boito e propondo o interessante jogo
ilusório de “ser e não ser” da reintegração discreta e do conceito
de “potencialidade” postos em ação a serviço da fruição artística
e, ao mesmo tempo, da verdade histórica.
A definição proposta para a restauração como o “Momento
metodológico do reconhecimento da obra de arte” segue os princí-
pios da “redução fenomenológica” Husserliana, propõem como
“objeto”, não a obra em si, mas o “fenômeno do reconhecimento”.
Aqui, usando o método fenomenológico, deveria entrar em
ação a “intencionalidade” que se projeta sobre o objeto, previa-
mente despido da intercorrência das ciências naturais; então,
sujeito e objeto se fundem numa estrutura noético-noemática
envolta no tempo presente que desliza em sucessivos “agoras”,
deixando vestígios no passado, impressos na memória como
“retenção”; durante o percurso surgem também ideias recolhi-
das pela “intuição”, lembranças, recentes e antigas, experiên-
cias, devaneios..., assim, sucessivamente, o presente mergulha
no futuro “presentificado”, e novamente estende para frente os
tentáculos da intencionalidade no que Husserl chama de “proten-
são”, levando, no caso em questão, à conservação ou ao restauro
(ou não) da obra de arte como consequência lógica do próprio
“reconhecimento”, profundo e potencialmente pleno, mais ou
menos como faz o poeta. É isso, parece-nos, que significaria o
“momento metodológico” proposto por Brandi.

128 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

No chamado “restauro crítico” de Brandi a temporalidade caracte-


rística da obra de arte, mencionada acima, determina o sentido a
ser dado para quando se trata de restauração: restaurar não seria
então reproduzir o ato da criação. Em outras palavras: aditamen-
tos de estilo são inaceitáveis, além disso, presta-se o desserviço de
confundir as pessoas, que não podem diferenciar o que é verdadei-
ramente antigo do que é falso. Restaurar não significará também
copiar uma obra em parte ou no todo, ou mesmo reconstruí-la;
tampouco admite-se a restauração “que deixa tudo novinho em
folha”, pois dessa forma apaga-se a passagem do tempo que incidiu
sobre a obra, ignorando o segundo momento, acima mencionado.
Restauração será desde então restabelecimento da “unidade
potencial” da obra de arte e, ao mesmo tempo, uma afirmação do
tempo presente; por essa razão, as partes reintegradas devem
ser identificáveis como contemporâneas quando vistas de perto,
embora, ao mesmo tempo, no todo, possibilitem que o conjunto
vibre na sua inteireza sob a luz.
Outro ponto fundamental da conservação e da restauração
em Brandi é que se resolva o problema da inserção da obra de arte
no tempo presente. O autor indica que é importante: “assegurar
as condições necessárias para que a espacialidade da obra de
arte não seja obstruída ao situar-se dentro do espaço físico da
existência” (BRANDI, 2004). Isso significa adequar os usos aos
monumentos e conjuntos, de tal maneira que os antigos espaços
possam comportar usos contemporâneos levando em conta as
configurações espaciais significativas. Note-se que não há referên-
cia ao uso ou função, mas à “existência”, ou seja, à possibilidade
do fenômeno.
Do ponto de vista do pensamento, o autor da Teoria da Restau-
ração (2004), oferece uma bela “arquitetura das ideias”! Uma técnica
de apropriação.
Entretanto, segundo nos parece, ao seguir a teoria fenome-
nológica husserliana, Brandi deveria prever a “suspenção” do
“fenômeno da obra de arte” inteiramente livre das intercorrên-
cias, o que significaria excluir também, conforme entendemos,
o histórico e o artístico, o que não se dá na proposta. Mas de
fato pode se perguntar, como um italiano, diretor do serviço de

129 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

patrimônio em Roma, em pleno século XX, recém-saídos de uma


guerra devastadora, poderia sequer pensar em propor a suspen-
ção da história e da história da arte?
Contudo cumpre reconhecer que, no fim das contas, a teoria é
sólida, bem estruturada e permanece vigente com poucas mudanças
por parte dos adeptos e, por outo lado, com muitas críticas e o ceticismo
daqueles que pensam que não seria ilegítimo retomar algo próximo
de Violet-Le-Duc. De qualquer maneira, na verdade, e em grande
parte, prevalece mesmo quase sempre (falamos do caso brasileiro)
a repristinação acompanhada de citações inócuas a Brandi.
Para nós, a contribuição de Brandi é inestimável. O autor
encontrou um “caminho do meio” e conseguiu atender ao programa,
há muito perseguido, da improvável conciliação de teses aparen-
temente inconciliáveis, entre restaurar ou conservar. Entretanto
seguiu preso às ideias do histórico e do artístico como premis-
sas incontornáveis.
Evidentemente tal abordagem se adequava a Veneza, Roma
etc., à ideia de cidade como obra de arte, entretanto, a adoção
da teoria brandiana em caráter geral tem difícil aplicabilidade
e pode mesmo soar irreal, ou mesmo pernóstica, para a grande
maioria dos casos reais. Ou ainda, por outro lado, apenas seguiria
servindo aos interesses das classes dominantes.
Por essa razão entendemos que é necessário superar o paradigma
histórico e artístico em direção ao ambiental, restando-nos aqui,
portanto, de Brandi, a admiração pelo mestre que sempre nos
inspirou e a reapropriação da sua ideia de reintegração de modo
um tanto subvertido, fora da historiografia e da (chamada) estética.

O desdobramento das Palavras


Fazendo um apanhado geral da questão da teoria e história do
patrimônio e restauração podemos dizer que, para nós cariocas,
para quem tudo acaba em samba, a “Alegoria do Patrimônio” pode
mesmo, muito facilmente, remeter a um desfile de carnaval: na
larga avenida haussmaniana do urbanismo moderno, as coisas
e as ideias, as ideias as coisas desfilam uma atrás da outra:

130 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Violet-le-Duc, como sempre, da velha guarda, na comissão de


frente; Ruskin sentado no carro abre alas, chacoalhando meio sem
graça, achando que tudo aquilo é uma perdição; Brandi é lembrado
no enredo mas sequer aparece no desfile etc. Enquanto isso, nós
aqui, na fila de trás, aplaudimos entusiasticamente, e seguimos
tentando fazer um carnaval parecido, tal como fazem os paulis-
tas com relação ao carnaval carioca. Pensamos que realmente as
coisas poderiam mudar.
Cabe perguntar: o que, em verdade, estamos dizendo ao falar
em patrimônio histórico e artístico nacional? Na verdade, essa ideia
coloca em primeiro plano o relato historiográfico para sedimentar
ideologias (religiosas ou laicas) e esconder a verdade dos fatos. A
restauração, por seu turno, pretende replicar ad eternun aquilo que
não é mais. Assim, no contexto geral, vela-se o ser factual do jogo
das possibilidades da história verdadeira, para ajudar a manter as
coisas mais ou menos funcionando.
Recentemente os movimentos de decolonização têm reunido
pessoas para denunciar falsos heroísmos que ocultam covardias
verdadeiras e até remover monumentos ditos históricos e artísti-
cos. Sem maiores desenvolvimentos dessa temática, que se
estenderia para outros caminhos, limitamo-nos a constatar que
esse questionamento denuncia a ideologia que se esconde sob a
ideia de patrimônio histórico e artístico a qual apenas aparenta
ser “politicamente correta”.30
Convergem, ao menos em essência, aquilo que motiva os
movimentos decolonialistas e o que aqui se propõe, ou seja:
contrapor a questão humanística e ambiental, e, por desdobra-
mento, social (supostamente autêntica) à historiográfica e artística
(pretensamente inautêntica).
Falar “teoria” é falar em ideias, ideias são fenômenos subjeti-
vos, teorias, intersubjetivos. O desenrolar das teorias no tempo
absorveu e ou abandonou ideias, o que levou à alternância entre

30  Não se pretende aqui fazer nem a apologia nem a condenação da iconoclas-
tia mais radical. Essas escolhas emanam do Dasein na constituição de mundos,
embora, para nós, em nossa própria compreensão, talvez fosse mais interessante
re-ambientar (como recentemente ocorreu no Cais do Valongo) ao invés de sim-
plesmente destruir.

131 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

teses e antíteses e mudou o olhar de um grupo de especialistas,


os ”arquitetos-restauradores-teóricos-europeus”, que, voltados
para o seu objeto (aliás, criado também por eles), pensaram e
propuseram um modo de lidar com esse objeto.
Mas quem diz que nossos objetos (e ideias) têm que ser os
mesmos? O advento do (também “chamado”) “patrimônio imaterial”
traz essa questão com muita clareza! Entretanto não é só isso, uma
teoria, um livro ou as ideias em geral, nunca persistem em estado
puro, sempre mudam no caminho e se desdobram infiltrando-
-se na vida das pessoas, oscilam com elas entre a reverência e a
submissão, no modo inautêntico; ou, por outro lado, autentica-
mente na crítica e na subversão.
No mundo das possibilidades onde, para o bem e para o mal,
estamos todos lançados devemos sempre questionar. Mas porque
devemos questionar? Certa vez, há tempos, no agora inexistente
Museu Nacional, lembro-me de uma senhora de idade que reclamava
de tudo, de como tudo estava maltratado, com obras inacaba-
das, forros despencados etc. As pessoas se entreolhavam fazendo
voltinhas com o dedo ao lado da orelha ou davam sorrisinhos
marotos – “é doida” – Portanto, pode sempre parecer bobagem
dizer que está tudo errado quando ninguém quer ver a verdade.
Tudo bem, foi-se o Museu, mesmo assim deve-se fazer coro com
a velhinha, ainda que tardiamente.
Seguimos adiante falando de ideias e de coisas e do que talvez
elas possam ser. Nas páginas imediatamente a seguir faremos breves
considerações sobre a “coisa” que a palavra é, sobre a ideia que ela
carrega. Não vamos fazer uma compilação de conceitos teóricos
ou verbetes de dicionário. Mas parece interessante e adequado
recolher nas próprias palavras, ainda que sumariamente, o produto
de anos de discussões teóricas que nelas permanecem impregna-
dos, levando em conta também as mudanças e mesmo as indefi-
nições que, com o tempo, se agregaram aos conceitos originais
fazendo as palavras mudarem e, consequentemente, também as
ideias e as teorias. Assim escolhemos alguns conceitos chave a
serem interpretados livremente pelo seu sentido atual, ou seja,
semântico e, também, sob o ponto de vista teórico e profissional,
o que quer dizer, crítico.

132 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Quando nomeamos algo trazemos à existência aquilo que


antes seria apenas uma possibilidade. Os entes existem na medida
em que são trazidos à existência (Dasein), nomeá-los possibilita
reconhecê-los em meio aos demais entes.
No reino das palavras (“que pensamos comandar, mas que
na verdade nos comandam”) podemos desvelar a verdade sobre
os entes, mas, ao mesmo tempo, as palavras servem também
como abrigo para o engano, ou a mentira. Um caso clássico desse
problema está em nomear o DDT (diclorodifeniltricloroetano) como
“defensivo agrícola” (aproveitando inclusive a letra inicial “d” como
um recurso secreto de veracidade pela associação com a sigla
química). Contudo, na verdade, a mentira deslavada se revela e,
num meio termo tecnocrático, tentou-se chamar “agrotóxico”;
finalmente, pelos seus verdadeiros efeitos que vão muito além
do “agro” deveria, em verdade, denominar-se mesmo “veneno”.
Ao fim a estratégia de marketing indicaria o retorno à sigla da
composição química, menos problemática.
Retomando o que nos compete voltemos ao recente caso do
incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de
Janeiro. Este crime doloso de negligência e abandono por parte
do poder público, e, na verdade, de todos nós, que foi delibera-
damente mal denominado nos meios de comunicação, para ser
introduzido, azeitadamente, goela abaixo da gente. Assim, no reino
das palavras que encobrem, quando chamam “tragédia” remetem
a coisa do destino; enquanto “catástrofe”, a um evento nefasto da
natureza; como “acidente”, um fruto do acaso; “sinistro”, um desvio
das possibilidades, e por aí vai... E assim seguimos inquilinos das
palavras, quer estejamos atentos ou distraídos.

O acesso à essência de uma coisa nos advém da lingua-


gem. Isso só acontece, porém, quando prestamos atenção
ao vigor próprio da linguagem. Enquanto essa atenção
não se dá, desenfreiam-se palavras, escritos, programas,
numa avalanche sem fim. O homem se comporta como
se ele fosse criador e senhor da linguagem, ao passo que
ela permanece sendo a senhora do homem. Talvez seja
o modo de o homem lidar com esse assenhoramento

133 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

que impele o seu ser para a via da estranheza. É salutar


o cuidado com o dizer. Mas esse cuidado é em vão se a
linguagem continuar apenas a nos servir como um meio
de expressão. Dentre todos os apelos que nos falam e que
nós homens podemos a partir de nós mesmos contri-
buir para se deixar dizer, a linguagem é o mais elevado
e sempre o primeiro. (HEIDEGGER, 2018).

O Tombamento
Fala-se que o termo é uma referência à Torre do Tombo em
Lisboa, lugar onde jazem documentos importantes etc. Contudo
é de uma evidência incontornável que a etimologia nos leva até a
tumba. De qualquer maneira, ainda que não se chegue ao mundo
dos mortos pela origem grega da palavra, a coisa converge em
perfeição com a hipótese etimológica. Assim, levado à tumba, o
monumento é ungido enquanto relíquia e deixa o mundo dos vivos,
embora, na maioria dos casos, nele tenha que permanecer. Esse
fantasma está excluído do tempo das mudanças e mergulha, ao
menos pretensamente, numa temporalidade diferente, torna-se
uma referência documental, um testemunho do passado que se
foi, ainda que tenha que seguir sendo usado e desgastado como
as demais coisas (não tombadas) do mundo mutante dos vivos.
A bem da verdade não se pode negar que a vigência do
tombamento, com todos os problemas decorrentes, tem tido seus
méritos e contribuiu muito para cidades “menos piores”, congelando
partes da cidade e estancando o turbilhão das mudanças que caracte-
riza a modernidade. Para o proprietário do imóvel tombado, de
maneira geral o tombamento é um castigo, principalmente por
impedir a inserção do imóvel no livre mercado.
Contudo, sem dúvida, deve-se reconhecer, em princípio, que
é mesmo fundamental tirar o edifício, seja lá o que for, do mundo
das mercadorias, o que implica também que sua condição de objeto
de uso pessoal seja posta em segundo plano, passando a prevale-
cer a sua condição de objeto de interesse público com valor (no
caso) histórico e artístico.

134 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Mas como se dá essa referência? Em tese prioritariamente


impõe-se, por bem ou por mal, a conservação e, eventualmente,
deve-se aplicar o (dito) último recurso, pretensamente “não desejá-
vel”, porém “aceitável”, da restauração; ao menos é o que se apregoa
nas normativas e na teoria. Contudo, ao fim e ao cabo nega-se no
discurso o que, na verdade, é a tendência geral: que é sempre (ou
quase sempre) “voltar ao que era”, ou ao menos tender a essa condição.
Esse delírio de voltar ao que era é paradoxal sob qualquer
conceito de temporalidade que se considere, exceto a temporalidade
arbitrária que tomba e tombando exige que o tempo, não apenas
pare, mas retroceda, buscando assim autenticar o documento
histórico falsificado, produzido arbitrariamente, geralmente como
instrumento de afirmação da ideologia de grupos do poder. Além
disso, e de maneira grave, a falsa interrupção do fluxo do tempo das
coisas que, por serem restauráveis, podem sempre ser restauradas
novamente, insere o objeto numa absurda temporalidade cíclica
de “eterno retorno”, como já mencionado, levando finalmente a
uma destruição dissimulada.
O paradoxo do patrimônio histórico isolado do restante do
mundo ao redor que, estranhamente, não seria histórico, ou seria
“não histórico” é um problema sempre reconhecido na discussão
teórica, mas nunca resolvido. Este velamento não é uma questão
secundária, é grave! Recomenda-se a esse respeito a leitura do
artigo de Lia Motta O SPHAN em Ouro Preto – Uma História de
Conceitos e Critérios (MOTTA, 1987) para assistir a uma exemplar
“comédia dos erros” repleta de boas intenções.
Pergunta-se então: Por que seguimos ainda sob a ideia obsoleta
e desajeitada do tombamento? Especialmente no Brasil onde se
privilegia o bairrismo, nosso, dos arquitetos, do tombamento autoral
que, na maioria das vezes, sequer tem qualquer reconhecimento
das pessoas comuns, às quais, os órgãos de patrimônio preten-
samente deveriam representar.
Tomando a questão por outro lado, ou seja, pelo lado ambiental
poder-se-ia abandonar a imobilização do tombamento e conside-
rar que os espaços, um interior, um jardim de uma velha casa,
um conjunto, os monumentos, determinados trechos da cidade
ou mesmo cidades inteiras etc., poderiam todos ser considerados

135 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

sempre sob a designação de patrimônio ambiental, tratados


como tal, do todo para a parte a partir da sua totalidade mais
abrangente, ou seja, em seus desdobramentos, na sua inserção
“contaminante”, sem um perímetro de delimitação que separe o
que é do que não é. Esse ambi-ente seria estudado meticulosa e
continuadamente (no demorar-se) por uma equipe que seguiria
sempre acompanhando (e incorporando qualitativamente) a sua
mudança no tempo (necessária e ponderada), indicando potencia-
lidades no contexto entre as coisas e as pessoas, com a participa-
ção das próprias pessoas nos processos de decisão e escolha, não
a partir de pressupostos livrescos e oficiais e, de maneira geral,
autoritária e, geralmente, pouco inteligente. Em outras palavras,
como projeto de urbanismo participativo e integrado.

A Barafunda dos “Rês”


O prefixo “re” leva àquilo que vem à memória. Santo Agosti-
nho refere-se ao “passado do presente”, àquilo que, não sendo
mais, volta como manifestação presentificada do que já foi. A
memória como uma marca fundamental da condição humana
pode suscitar muitas questões. Aqui interessa-nos apenas, e mais
ou menos de passagem, a constatação da confusão entre as ideias
de memória e história. O senso comum pode ver pouca diferença
entre ambos, e grande parte do problema original que indicamos
aqui está justamente nessa confusão. História é uma palavra que
traz conceitos múltiplos (como a historiografia), memória, por
outro lado, é uma única coisa, remete ao fenômeno. Entretanto,
o desenvolvimento da teoria da restauração já trabalhou muito
e girou em torno desse questionamento experimentando ideias
e testando possibilidades.
Assim, em meio a “barafunda dos rês”, os conceitos de restau-
ração (com todos os problemas inerentes) são a pedra de toque, o
ponto de referência para a compreensão dos demais conceitos que
sempre são referenciados a partir daí. Por essa razão também, a
teoria da restauração geralmente assume o status de referencial,
de fundamento para análise, a crítica e para a atuação prática em

136 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

o projeto e a obra. Caso contrário, ou seja, sem o gabarito da teoria


da restauração, falar, por exemplo, em revitalização ou requali-
ficação, ao menos em termos de arquitetura e do urbano, pode
querer dizer muitas coisas, inclusive coisa nenhuma. Quando
nos perdemos na generalidade damos livre curso a apropriações,
antagônicas ou mal-intencionadas.

Restauração
“A palavra e a coisa não são novas” e o conceito já está discutido
retrospectivamente aqui no contexto geral. Apenas cabe ressal-
tar o caráter central que “palavra e coisa” representam, manifes-
tado já pelo fato de a restauração ter absorvido (ou fagocitado)
o conceito de conservação que, originalmente, era antagônico.
Assim, fala-se, por exemplo, em “restauro conservativo” e não
em “conservação restaurativa”, demonstrando o predomínio e a
força do atavismo de “voltar ao que era” quase como um impulso.
Outro aspecto desse predomínio reconstitutivo está também no
programa do curso de arquitetura que oferece a disciplina de Técnicas
Retrospectivas, sempre com a ênfase no aspecto reconstitutivo.
Ao que parece, todo esforço em buscar um sentido para o
termo que foi empreendido por gerações de teóricos e que levou à
ideia conclusiva de que restaurar NÃO é voltar ao que era encontra,
realmente, uma forte resistência.
Para nós, no contexto do que aqui se defende, parece que o
termo poderia ser substituído pelo conceito central que vige na
teoria. A “reintegração” trazida para o contexto mais abrangente do
urbano numa abordagem antes “ambiental” ao invés de histórica/
artística/reconstitutiva.

Reconstrução
Tecnicamente, entre os restauradores o termo é usado tanto
para indicar o próprio restauro repristinativo, seja em parte ou no
todo (principalmente no todo). De certa maneira confunde-se com o

137 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

“voltar ao que era”, embora não seja incomum algum tipo de “recons-
trução simplificada” ou esquemática, característica do restauro
científico. Praticaram-se muitas reconstruções, pós-segunda
guerra, nas cidades europeias devastadas pelos bombardeios,
numa maneira de apagar a tragédia e o sofrimento. Curiosa essa
ação de reconstruir para apagar, ou relembrar para esquecer!
Assim poderíamos, mais uma vez, ilustrar com o exemplo do
Museu Nacional,31 incendiado recentemente: questões histórico-
-artísticas à parte reconstruí-lo, tal qual como ele era, 32 significa
compactuar com o descaso que levou à sua perda, apagar o evento
(“trágico, catastrófico etc.”) criminoso. Assim, a ação criminosa fica
banalizada e torna-se, se não aceitável, mas ao menos tolerável,
empurrada para debaixo do tapete do esquecimento. Podemos então
(que tal?!) incendiá-lo novamente, diversas vezes se necessário,
porque sempre se poderá reconstruí-lo. Quem segue pensando
que “tanto faz” está enganado ou enganando.

Reforma
Persiste sempre alguma confusão entre restauração e reforma,
não apenas para leigos, como mesmo para arquitetos, inclusive
nos meios acadêmicos. A rigor a reforma é um termo genérico,
pouco usado no que se refere ao patrimônio histórico. Entretanto,
costuma-se, eventualmente, usar essa designação para qualifi-
car pequenos trabalhos conservativos ou de pintura, em especial
em imóveis preservados (não tombados) onde se costuma admitir
modernizações no interior. Observo, de passagem algo que sempre
me chamou atenção que está na constatação de que, muitas vezes
numa dita “reforma” a forma seja mantida e se modifique apenas
a materialidade, os revestimentos e acabamentos etc., manten-
do-se a forma original. Assim, como ninguém fala em “remate-
rialização”, o uso da palavra “reforma”, onde a forma não muda,

31  Como se pode notar o fato nos afetou de maneira contundente.


32  Ainda que se deixe aqui e ali vestígios mais ou menos discretos como costuma
se fazer.

138 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

parece ser mais uma prova da prevalência do visibilismo no nosso


modo de compreender as coisas em geral.

Revitalização
A associação entre a ideia de “vitalidade” e o prefixo “re” que,
analiticamente remete a “voltar à vida” fazem desse termo o mais
promissor e atraente, mas também o mais falacioso. Conforme
ocorre em geral com os “rês”, o termo revitalização serve na prática
para designar ideias variadas de maneira mais ou menos indiscri-
minada. Nunca é demais relembrar aquele exemplo clássico do
pelourinho, em Salvador, onde a chamada revitalização nos anos
90, paradoxalmente, expulsou a população que lá vivia. E de tal
maneira deu-se a tal “revitalização” que em cada um daqueles
sobrados centenários onde habitavam diversas famílias passasse
a ficar um único lojista vendendo suvenir. Questões como essa
mostram de maneira contundente como é importante definir uma
terminologia coerente.
Nunca será a mesma coisa chamar veneno de defensivo. No
império das palavras dizer “revitalização” pode esconder “gentri-
ficação”. Isso não é de maneira nenhuma irrelevante, é crucial,
e deveria ser corrigido. Nunca podemos deixar de lembrar que
a retórica é a “o modo de manifestação do ser-com”, ou seja, é
a maneira como negociamos as questões da convivência. Uma
terminologia indefinida, dentro de uma disciplina que lida tão
diretamente com o espaço da vida das pessoas, traz sempre consigo
a possibilidade de manipulação.
Para nós, no contexto deste trabalho, a vitalidade não se refere
a algum tipo de refuncionalização dos espaços arquitetônicos, mas
está antes, é o próprio brilho do lugar. Não é item de projeto, pois
como não pode se projetar o lugar, não se pode também produzir
vitalidade, ela simplesmente emana dele e apenas pede passagem
para chegar aos espaços. Assim pode-se, através da espacialidade,
propiciar, abrir caminho, ou ao menos não obstruir. Ou ainda, na
maioria das vezes, onde o brilho do lugar se mostre, talvez seja
melhor nada fazer, e deixar as coisas seguirem seu curso.

139 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Retrofit
O retrofit é o patinho feio aos olhos dos cisnes da restaura-
ção, faz os teóricos torcerem o nariz. Falamos o que se segue,
portanto, a partir de uma visão pessoal.
Em geral execrado no meio especializado, o conceito retrofit
implica a prerrogativa da livre utilização do interior da edificação,
com a manutenção da sua relação com o exterior como contra-
partida da intervenção. Em geral junta a reforma interior com
a restauração repristinativa do exterior. Por ser caracteristica-
mente um empreendimento da iniciativa privada, a reforma do
interior é voltada para o ganho imobiliário, e, portanto, pretende
a maximização do uso.
Por outro lado, o restauro do exterior é sempre do tipo recons-
trutivo que apaga a passagem do tempo e deixa seu aspecto exterior
como novo, como convém a uma mercadoria, salvo, evidentemente,
no caso de alguma intervenção excepcional onde mercado suporte,
ou eventualmente até deseje, o fator “Cult” da degradação aparente
de velhos armazéns em áreas portuária de grandes centros.
Por tratar-se eventualmente de operação urbana interligada
ou de contrapartida entre a esfera pública e privada, muitas vezes
o investidor pode tornar aceitável para o poder público justaposi-
ções de acréscimos volumétricos, nesse caso, geralmente usando
recursos de discernimento entre o novo e o velho, herdado do restauro
científico que exigia o claro discernimento da coisa acrescida em
contraste com a preexistência, levando em geral a um aspecto final
sempre de difícil manobra projetual. Vê-se, por esse exemplo, como
há sempre muitas variáveis no mundo dos “rês”.

Patrimônio Material
Já está bastante reconhecido que a questão da materiali-
dade nesse termo é imprecisa e mesmo confusa. Refere-se a uma
designação que surgiu a partir da expansão da ideia de patrimô-
nio, mais especificamente a partir da consolidação do conceito,
pretensamente antagônico ao patrimônio imaterial. Desde então

140 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

passou a se estabelecer uma distinção: material seria o que se


refere à coisa física, o imaterial estaria nos usos e costumes etc.
Entretanto, na verdade, as coisas não se dão tão simploriamente
assim. Esse aparente simplismo negligencia uma grande confusão,
esconde dificuldades e aspectos conceituais bastante relevantes.
Primeiramente constata-se que há uma imprecisão em
designar como material o que meramente se apresenta na coisa
física, pois na arquitetura, na cidade, na paisagem e mesmo na
natureza há sempre uma essência não material que predomina
sobre o material justamente naquilo a que se atribui valor. Ou
seja, o contraporte da memória, da história, da afetividade, da
artisticidade ou, do dito “significado”.
Assim, o patrimônio material está prioritariamente insuflado
do imaterial para ser aquilo que é por meio do reconhecimento,
deixando de sê-lo, eventualmente, quando cessa tal disposição.
Por outro lado, a imaterialidade do dito “patrimônio imaterial” é
também uma ideia frágil cujo nome não está à altura da coisa,
basta lembrar o artesanato, o bumba meu boi, por exemplo, cuja
existência física, tal qual como na arquitetura, depende da manifes-
tação material, pois há uma íntima complementaridade entre o
fazer e o feito. Uma “ambiência fenomênica” que os envolve.
De fato, temos, novamente aqui, o velho problema de qualifi-
car os entes por meio da lógica predicativa33 que, “adequadamente”,
afasta a essência daquilo que é. Então essa falta de caráter conceitual
termina por enfraquecer nosso campo disciplinar e, consequente-
mente, prejudica o resultado do que se pretende fazer com os objetos
tão caros da nossa memória. Poderia alguém, contudo, dizer (como
sempre ocorre) que levantar uma questão como essa é “complicar
a coisa”, que isso é “irrelevante”, entretanto, na verdade, compli-
cado está como está, e isso não tem nada de irrelevante.
Todavia esse problema com os conceitos vai mais longe, chega
às origens. Desde o surgimento do binômio restauro/conservação
a questão da materialidade do patrimônio está colocada, de certa
maneira, em oposição ao formalismo. Essa é uma questão central que
pode ser entendida nos seguintes termos: o restauro reconstitutivo

33  Sujeito/predicativo – patrimônio/material – patrimônio/imaterial.

141 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

está voltado para a questão da forma, da recomposição da forma;


por outro lado, a conservação, como a vê Ruskin, volta-se prioritaria-
mente à matéria. Essa antítese parece esconder mais uma daquelas
questões de oposição entre objetividade e subjetividade, na qual,
conforme já mencionado, costumamos nos perder. No império das
palavras a indefinição conceitual leva à ignorância e ao erro.

Entorno
Vivemos em meio aos achados e perdidos do se/então que
caracterizam a lógica tradicional. Para nós é perfeitamente natural
(e mesmo indiscutível) considerar que se temos monumentos temos
então o seu entorno. Entretanto, conforme já pudemos discutir
acima, a ideia de “entorno”, advém do engano em desconsiderar
que na verdade não existe uma autonomia do objeto arquitetônico.
Ele não é uma coisa, mas numa coisa, o monumento, é sempre, e
necessariamente, num contexto qualquer, que, ademais, não se
limita ao entorno imediato, mas antes como uma parte no jogo
de referências espaço-temporais que se desdobram sabe-se lá
até onde, a partir de pontos de referência.
O entorno, portanto, não se subordina a nada, muitas vezes
até predomina, guarda, em seu sendo, o sentido de ser daquilo
que foi e vai se constituindo na historiologia das possibilidades,
O dito “entorno” é junto. Portanto, do ponto de vista do fenômeno,
pode mesmo haver uma inversão, e, assim, o monumento pode
ser, como já dito, o entorno do entorno.

Patrimônio Imaterial
A pretensa imaterialidade do dito patrimônio imaterial, “dos
usos e costumes”, é mais um legado da miopia causada pela lógica
predicativa. Na verdade, um desdobramento. Da mesma maneira
que o entorno (de certa maneira visto, digamos, como “semi-mate-
rial”) deriva da “coisificação” equivocada do monumento, também a
“imaterialidade” do patrimônio (dito) imaterial, por sua vez, deriva,

142 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

por contraposição, da “materialidade”. Assim, nos termos da própria


lógica, que aqui negamos, parte-se de uma premissa falsa, levando ao
“engano de um engano”, definindo, enfim, uma coisa (o dito patrimô-
nio imaterial) pelo que essa coisa não é (imaterial). Decorre dessa
incompreensão que sempre parece um tanto desconfortável (e até
perigoso) ajustar alguma defesa coerente e adequada do patrimônio
imaterial enquanto objeto, pois, com certeza, o olhar pode mudar as
coisas, o olhar mata! O (dito) “bem imaterial” pode, muito facilmente,
ser destruído pela própria intenção engendrada no engano original
onde assenta a sua defesa. Aqui mais uma vez o fenômeno pode
resolver a questão, demonstrando que o sentido é outro. Se Heidegger
está correto (e está) em dizer que constituímos o mundo a partir do
manuseio, em desdobramentos para a circunvisão e para os referen-
ciais, tudo se dá antes do dilema material/imaterial. Dá-se na concre-
tude do fazer e vivenciar, na constituição de mundos.
O fazer é, então, tão concreto quanto o feito: A igreja engastada
como parte do ambiente do pelourinho em Salvador onde também,
e igualmente, insere-se o acarajé, dão-se ambos na sua absoluta
concretude, como partes de um todo.
O Ritual do fazer, ver fazer, aprender, compreender, interpretar,
cheirar, comer, lembrar e relembrar, ou esquecer. A essência mais
fundamental da vida oculta na aparente simplicidade do cotidiano.
Aloísio Magalhães voltou-se às “referências”, termo muito mais
adequado de maneira geral. Note-se ainda que pela via do ambi-ente,
ou seja, através da atenção e do cuidado voltado à ambiência (do
“espaço em torno dos lugares”) parece estar verdadeiramente a
chave da preservação dos “usos e costumes”. No espaço pode-se
intervir (ou não!), nos costumes (bem como no lugar) não se deve!
Aqui o arquiteto recua e pode no máximo propiciar, pois como
diz a sabedoria popular: “o inferno está cheio de boas intenções”.

Patrimônio Natural ou Ambi-ente?


Patrimônio é uma palavra que remete ao pertencimento de
vínculo parental, algo que se recebe, ou ao qual se imagina fazer
jus por conta de uma filiação. É a herança. Assim, ao que parece,

143 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

recebemos então o patrimônio natural, esta preexistência absoluta,


esta dádiva, que vem a nós como herança do patriarca também
absoluto... Deus! Seria um fato bastante estranho e curioso (se
pudesse ser visto de fora) que a esmagadora maioria da humani-
dade aceite como verdade uma inverdade fundamental, um silogismo
rasteiro no qual a gente e se aninha confortavelmente para fugir
da angústia do nada.
Assim a cegueira do antropocentrismo permite, com sobra,
falar em “patrimônio natural” com relação ao meio onde nos
movemos para além dos limites da cidade e do campo humani-
zado, onde a água fresca corre da montanha, onde os pássaros
cantam e o calango se embrenha no relvado. Tudo, água, pássaros,
calango e relvado, tudo está a nosso dispor, como recurso, possibi-
lidade para nosso proveito e deleite ou, secundariamente, como
incômodo, obstáculo a vencer (obviamente, desde que valha o
esforço) especialmente no esforço alheio.
Nessa visão tudo nos serve, embora, às vezes, se volte contra
nós na aspereza do deserto, no terremoto e no tsunami, na praga
da covid-19; os castigos de Deus...
Ou, ainda, num certo “modo heroico”, podemos ver os obstácu-
los naturais como o substrato da ação humana na possibilidade
da superação, que, “heroicamente” tem deixado toneladas de lixo
nas trilhas para o Monte Everest. Nosso patrimônio, enfim, por
ser “nosso” pode ser bem ou maltratado por nós, podemos gerir
mal a nossa herança e pormos tudo a perder.
Por outro lado, radicalmente oposto, com o respaldo da ciência,
em especial a partir do corte epistemológico provocado por Darwin,
considera-se que não! Não somos os escolhidos, não somos os herdei-
ros do dito patrimônio natural, mas apenas uma parte, os “primatas
tiranos”, uma espécie animal que, por um conjunto de circunstân-
cias peculiares da evolução, veio a dominar o planeta, ou ao menos
pensa dominar aquilo que não pode ser efetivamente dominado,
embora sigamos tentando fazê-lo, para além da escala global, com
uma finalidade específica de caráter predatório e destrutivo. Nessa
visão, em suas variações, não há patrimônio, mas a natureza como
imanência, ecológica e auto pertencida, além do nosso alcance, o
qual sempre resultará em rapinagem e destruição.

144 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Assim, como sempre, giramos ao redor do “subjetivo versus


objetivo” embora, no fundo, esse nosso atavismo maniqueísta mais
esconda que mostre a verdade. Contudo, tentando sair do círculo, e
para o que aqui nos interessa, pode-se inferir que falar “patrimô-
nio natural” já é aprisionar na gaiola do antropocentrismo aquilo
que não se sabe o que é, a natureza, seja por meio da figura de
Deus (?!), ou mesmo pelo ateísmo, em verdade ancorado na outra
religião da ciência.
Aqui, para nós, antes das escrituras e das prescrições, antes
ainda do turbilhão dos entes está o Dasein, este ente que, imerso
na existência, indaga sobre o ser, tanto sobre si mesmo, quanto
sobre todos os entes ao redor na sua circunvisão e alhures, no
desdobramento das referências.
Para o Dasein, parece-nos, a dita “natureza” (em sua ontologia)
é um grande galpão onde está guardado, mais ou menos organiza-
damente, em prateleiras, no escuro absoluto, tudo aquilo que ainda
não é, tudo o que será, o que talvez venha a ser, o que possivelmente
não será, o que provavelmente não será e, finalmente, aquilo que
jamais virá a ser, pois nunca será trazido à condição mundana,
por tender ao infinitesimal enquanto possibilidade.
Assim, lá no galpão está, por exemplo, “aquilo que certamente
será”: a morte. A minha, certa, enquanto (infelizmente para mim)
a dos os meus entes queridos, entre o provável e o possível; por
outro lado, cada um deles encontrará também seu destino no
escuro do galpão, enquanto, para eles, a minha morte estará entre
o provável e o possível.
Lá, ainda, no tal galpão, está a próxima descoberta do design
que vai fazer a fortuna de alguém, que não a minha (embora haja
essa remota possibilidade desde que eu volte minha disposição
para tal e busque a minha invenção, às apalpadelas no escuro).
Em suma, a natureza, em sua ontologia, guarda todas as
minhas possibilidades (do Dasein), os amores possíveis e as traições
prováveis, a possível (embora pouco provável) paz mundial! Àquilo
que nunca será, chamemos “zaiplok”, pois por nunca ser, jamais
também terá nome e, por não ter nome, tampouco será. Aqui,
fora do galpão, está o mundo. Tudo que, de alguma maneira é,
aqui está, na presença.

145 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

O mundo parece ser o tudo, mas quem acredita nisso está


enganado, porque tem o galpão.
No ser-no-mundo está, digamos, a nossa versão da natureza,
em conformidade com o nosso modo de ser. Ela será sempre consti-
tuída a partir da nossa disposição, ou seja, do modo como nos
voltarmos para ela, e da nossa compreensão, quer dizer, de como
a interpretamos, seja no modo inautêntico, quando acreditamos
passivamente naquilo que nos dizem os teólogos ou os cientis-
tas, ou, por outro lado, autenticamente, quando nos lançamos às
possibilidades e enfrentamos a obscuridade do “galpão da natureza”.
Portanto, aqui, preferimos abandonar a ideia subjetiva de
patrimônio natural e a objetividade da natureza imanente. Interes-
sa-nos antes de tudo o “ambi-ente” este “ente-ambíguo” onde
habitamos a abertura do entre.

Da Coisa ao Tudo
Não é novidade a discussão sobre como a expansão do patrimo-
nialismo leva a uma condição paradoxal na qual preservar tudo
significa nada preservar. O tombamento demanda uma delimita-
ção e uma inscrição, demanda também um inventário fundamen-
tado e justificado. Trazer partes cada vez maiores da cidade e
da paisagem em geral para os livros de tombo pode demonstrar
uma tendência em reconhecer que a questão é mais abrangente
que apenas a justaposição de bens tombados em entornos que
servem de pano de fundo a monumentos.
As conhecidas áreas de proteção ambiental, como as APACS
do Rio de Janeiro são um avanço no sentido do que realmente
interessa, contudo parece-nos que o sentido de totalidade, unidade
e ambiência ainda ficam subordinados ao objeto arquitetônico
que termina sempre considerado e tratado enquanto unidade
autônoma, documental e estilística.
Temos seguido a sequência de causas e efeitos, partindo da
“coisa” para o entorno e vizinhanças, daí para conjuntos maiores
com medidas de proteção gradativas, deixando de fora tudo mais
que, pretensamente não seria nem histórico, nem artístico. Fazer

146 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

o caminho ao contrário do que tem sido feito, ou seja, olhar a


questão da arquitetura sempre, e necessariamente, a partir de
totalidades, unidades e da ambiência, talvez possa nos levar a
uma condição mais originária.

A normativa das Cartas Patrimoniais


As Cartas Patrimoniais são um marco civilizatório importante,
são também, inegavelmente, a demonstração de que o cuidado
com aquilo que se reconhece como valores culturais da espécie
humana são interesse comum. Não há, ao menos em português,
muita literatura sobre alguma análise e crítica das Cartas. Talvez
isso se dê porque exista uma tendência em reconhecer o valor e
importância desses documentos e, quem sabe, implique numa
certa aceitação, quase uma unanimidade, decorrente desse
reconhecimento.
Contudo, como dizia um dos nossos importantes pensado-
res modernos, Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”, o
que, por si só, já ensejaria um olhar crítico e uma análise mais
profunda. Poderia se estudar a questão de possíveis mecanis-
mos de dominação e poder implícitos na normativa das cartas,
ou o impacto da visão eurocêntrica nas culturas locais. Podería-
mos ainda investigar a organização institucional, ou como se dá
a distribuição do reconhecimento dos bens culturais, ou ainda a
arrecadação e distribuição dos recursos, pois, em suma, sempre
as coisas podem esconder coisas. Contudo aqui não temos essa
proposta. O tempo e os objetivos aqui propostos nos fazem passar à
margem dessas importantes questões que poderiam ficar guarda-
dos para uma próxima pesquisa, pois, embora essa análise seja
importante para a compreensão do conjunto das referências do
que aqui se trata, convém seguir dentro do recorte proposto, mais
voltado para a compreensão e disposição do projeto e do que incide
diretamente sobre ele.
Portanto, aqui nos interessam em especial três aspectos:
primeiramente o fato de que as Cartas são, conforme nos parece,
uma “dupla redução” da teoria. As cartas nascem da teoria, filtram

147 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

essa teoria pelo crivo institucional e se apresentam na forma de


recomendações formuladas no plenário (pretensamente represen-
tativo) da instituição. Em seguida são divulgadas como precei-
tos a serem seguidos por todos os países signatários e, portanto,
aplicados na normativa da legislação de cada governo, onde aquilo
que restou da primeira filtragem vai ser novamente destilado
pelas instâncias do poder local. Todo esse processo de filtragem
resulta, enfim na legislação onde, ainda conforme pensamos,
chega-se ao “beco sem saída” da “restrição” como princípio geral.
Para nós, o afastamento da teoria, que, em princípio, é a
formulação que trata do “o que fazer”, leva, na lei, ao receituário
do simplesmente “não fazer”. O brilho e a inteligência da teoria
ficam opacas no dispositivo legal, o que certamente tem rebati-
mentos na qualidade do resultado prático sempre voltado para
o NÃO, ao invés do SIM.
O segundo aspecto que nos interessa está num problema que,
de maneira geral, parece não ser notado, e que está no modo como
as Cartas são apresentadas e utilizadas.
As Cartas, são referenciadas umas nas outras, vêm até nós
como um corolário, como remédios na prateleira para serem
usados conforme as diferentes necessidades, como uma sequên-
cia cumulativa organizada dentro da lógica dedutiva.
Contudo as cartas nascem, na verdade, das teorias, e as teorias
são antagônicas, se apresentam como tese e antítese. Portanto cartas
deveriam ser gradativamente anuladas, substituídas. Entretanto
não é o que se dá, elas seguem todas aparentemente válidas.
O resultado prático leva à confusão, como de fato é bastante
comum na ação da fiscalização dos órgãos de patrimônio, onde
procedimentos antagônicos podem ser adotados, a critério do fiscal,
conforme uma ou outra carta, de acordo com seu gosto pessoal.
O terceiro e último aspecto já mencionado aqui, está na questão
da expansão conceitual e objetal da ideia de patrimônio cultural.
As Cartas Patrimoniais, apresentadas no seu conjunto, apontam
para a evolução da ideia de patrimônio histórico/artístico que se
inicia com o conceito de Monumento Histórico e se desenvolve até a
universalização do Patrimônio Cultural, material, imaterial e natural,
gerando-se listas de bens patrimoniais de interesse universal.

148 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Essa expansão do conceito e do objeto permanece, ainda


conforme nos parece, presa aos preceitos originais (histórico e
artístico) que, ao nosso ver, dificultam colocar no mesmo pacote
questões tão diversas. Daí nossa insistência em começar do fim
e fazer uma leitura inversa que viria da natureza ao monumento,
partindo do conceito mais generoso e inclusivo do ambiente, ou
como temos chamado aqui, uma compreensão ambi-êntica.
Segue-se a enumeração de algumas cartas patrimoniais, em
ordem cronológica apenas para ilustrar de passagem as questões
acima mencionadas.

1. Carta de Atenas (1931) – Escritório Internacional dos


Museus.
2. A instituição promotora do evento confere um caráter
técnico, artístico e museológico no trato dos monumentos
e seu entorno. Entorno esse considerado na sua relação
direta com a imagem do monumento, como uma espécie
de moldura.
3. Carta de Atenas (1933) Congresso Internacional de Arquite-
tura Moderna (Ciam).

Muito conhecida dos arquitetos, a carta de Atenas, preconiza a


negação da forma urbana tradicional e o advento da cidade funcio-
nalista, onde os monumentos poderiam ser poupados da destruição
física, embora submetidos a um tipo de destruição indireta, quando
inseridos nos “desconfortáveis” contextos da cidade modernista.34

4. Recomendação Relativa à Salvaguarda da Beleza e do


Caráter das Paisagens e Sítios – Conferência Geral da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e Cultura (1962).

Carta trata questão da paisagem como objeto de valor cultural,


voltada para conservação, reconhece o caráter estético e pitoresco

34  Como, na verdade, é muitas vezes o que de fato acontece quando, como no
nosso caso, se está “condenado ao moderno”, no dizer de Mário Pedrosa.

149 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

da paisagem. Embora não fale em restauração menciona a expres-


são “reabilitação’ como medida para intervenção na paisagem.

5. Carta de Veneza, Carta Internacional Sobre Conservação e


Restauração de Monumentos e Sítios. Congresso Interna-
cional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históri-
cos /COMOS (1964).

De inf luência brandiana, é, provavelmente, o documento


internacional de maior repercussão na área de conservação de
patrimônio, prioriza o conceito de conservação sobre a restauração,
considerando esta de caráter excepcional. Estende os princípios de
conservação e restauração aos chamados “Sítios Monumentais”.

6. Convenção Sobre a Salvaguarda do Patrimônio Mundial,


Cultural e Natural – Unesco (1972).

Define como patrimônio cultural:


• Os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou
de pintura monumentais, elementos ou estruturas de
natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de
elementos que tenham um valor universal excepcional
do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
• Os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas
que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integra-
ção na paisagem, tenham um valor universal excepcio-
nal do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
• Os lugares: obras do homem ou obras conjugadas do
homem e da natureza, bem como as áreas que incluam
sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do
ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropo-
lógico. (Ministério da Cultura. Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, 1995).

Em síntese, a evolução do pensamento sobre aquilo que hoje


denominamos “Patrimônio Cultural apresenta um aspecto notável
que é, em nosso entender, uma dupla expansão dos limites da

150 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

ideia de Patrimônio. Dupla porque ocorrida em termos físicos e


em termos de abrangência conceitual.

Expansão física
O enquadramento do monumento histórico limitava-se inicial-
mente aos edifícios, especialmente àqueles que rememoravam
grandes fatos ou personagens ilustres. Pouco a pouco, notou-se
que é inconcebível considerar o edifício como objeto isolado e
instituiu-se o conceito de entorno. Dotado de valor histórico e
artístico, mais ou menos vinculado ao monumento, o entorno está
geralmente subordinado ao edifício tombado, como a moldura ao
quadro. Embora muitas vezes possa ser reconhecido por valores
próprios, em termos de conjunto arquitetônico. O entorno geralmente
corresponde a áreas residenciais, apresentando assim caráter mais
mutável que os monumentos isolados. A justaposição de monumen-
tos e entornos possibilitaram a extensão da categoria patrimo-
nial à escala da cidade e do território. Dessa forma o monumento
e seu entorno imediato apresentam maior densidade patrimonial”
e, portanto, critérios mais rígidos para intervenção”. À medida em
que nos afastamos do centro diminui a densidade patrimonial” e,
por conseguinte, aumenta a liberdade de atuação. Dentro desse
esquema, a cidade contemporânea (pretensamente não histórica)
apresenta-se como o limbo, pertence ao conjunto, mas não é regida
pelas mesmas leis, nela, em termos estéticos, pode-se tudo. Ela é
o lugar da liberdade e da criação artística, palco para o desfile das
individualidades criativas, moderna por excelência.

Expansão conceitual
A questão patrimonial, nascida no século XV sob a égide
do Monumento Histórico passou, nos períodos subsequentes a
enquadrar-se no campo da erudição, da ciência e da História da
Arte, chegando ao domínio oficial, inicialmente sob o título de
Antiguidades Nacionais e, posteriormente, Patrimônio Histórico e

151 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Artístico. Atualmente (sob o olhar atento da sociedade globalizada),


os monumentos e conjuntos urbanos foram alçados à categoria de
Patrimônio cultural, ou, mais ainda: Patrimônio da Humanidade.
A Convenção Sobre a Salvaguarda do Património Mundial,
Cultural e Natural – Unesco (1972) (acima citada), apresenta uma
compreensão que remete a uma estrutura em anéis concêntri-
cos com proteção intensiva no centro e atenuando a medida em
que nos afastamos para o exterior. Nessa carta internacional o
patrimônio urbano é tratado de maneira análoga ao tratamento
dispensado ao patrimônio natural, ambos incluídos sob a catego-
ria abrangente de bens culturais.
A internacionalização do conceito de bem cultural sob o título de
Patrimônio da Humanidade e a lista dos bens a serem preservados
inclui e exclui, mostra e esconde; acompanha, em grande parte, uma
disputa pelo mercado do turismo, a expansão do consumo de produtos
culturais provenientes da mídia digital e outros desdobramentos
que, conforme já mencionado, escapam do escopo deste trabalho.
Contudo, no que nos interessa, ou seja, em essência, tudo isso vai
mais longe e chega até onde a vista não quer alcançar. Pois exclui
e esconde a verdade do que realmente é a nossa herança cultural...

Nos limites da Expansão o “Lixo Monumento”


“[...] definir-me seria dar-me limites,
e minha força não conhece nenhum.”
(ROTERDAM, 1972)

O que se segue, na conclusão deste capítulo, apresenta-se


na forma de uma carta aberta 35 dirigida ao Comitê do Patrimô-
nio Mundial da Unesco solicitando a inclusão do lixo na lista do
Patrimônio da Humanidade. Propõem-se o que o lixo seja reconhe-
cido como a manifestação mais significativa do nosso modo de
ser, o verdadeiro retrato da nossa cultura globalizada.
Monumental é o lixo, e apenas ele!

35  Que não será enviada.

152 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

O lixo é histórico, artístico, etnológico, arqueológico; é a memória


e a herança. Não adianta descartá-lo, a reciclagem apenas tangen-
cia o problema. Em nosso entendimento o lixo deve ser cuidado
no sentido existencial heideggeriano.

Carta Aberta
Prezadas Sras.(Srs.) Membros da Comissão da Unesco para o
Patrimônio Mundial da Humanidade,
Propomos, pela presente, a apresentação junto a esta Comissão,
da candidatura do maior de todos os monumentos: “O Lixo”!
Nos termos que se seguem:
Introdução
O Lixo, este imenso legado, acumulado ao longo de incontáveis
gerações é, parece-nos, o verdadeiro e mais significativo produto
(provavelmente o maior em volume e massa) da relativamente curta,
porém pródiga, passagem da nossa espécie pelo planeta. Nós, que
por algum tempo julgávamo-nos feitos à imagem e semelhança
do altíssimo, lançados ao mundo e quiçá, ao universo, temos no
lixo espalhado por todos os elementos ao redor, o DNA, a nossa
marca inconfundível!
Seguem-se, portanto, algumas considerações sobre o lixo a
partir de conceitos que pretendem comprovar o que, em nosso
entendimento, é bastante evidente: o fato de que somos uma
espécie essencialmente escatológica. Partimos do princípio de
que essa característica está profundamente enraizada em nós,
é parte integrante de nosso modo de ser. Devemos fazer uma
autocrítica profunda, já aconteceu assim na época de Copérnico,
quando tiramos nosso planeta do centro do universo e lançamos
uma sombra sobre a existência de um Deus que nos teria criado
à sua imagem e semelhança (Quanta pretensão!); mais à frente
Darwin deu um golpe mortal na ideia infundada de que somos, de
alguma maneira, superiores. Contudo, ainda persistem tentativas
em reservar, para nós, um lugar no topo da pirâmide da evolução
e, até hoje, considera-se de modo mais ou menos consensual que
nossa inteligência (um pequeno detalhe associado uma grande
sorte) garante essa pretensa posição de liderança! O que é simples-
mente ridículo! Mas deixemos de lado, por enquanto, a origem da

153 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

origem das coisas, ocupemo-nos de propor uma merecida homena-


gem e reconhecimento à nossa obra maior!

Patrimônio Pré-histórico
Convidamos a assistência a um gesto simples: afastemos de
lado com o pé um pouco de terra, e o que veremos sob o tapete
fino da paisagem humanizada?... Mas tenhamos coragem, vamos
mais longe, penetremos na contramão do túnel do tempo, através
da longa e abarrotada galeria subterrânea da nossa História. Se
escavarmos a atual crosta de lixo sob as camadas de contaminação
do chorume, numa prospecção arqueológica imaginada, poderemos
encontrar camadas, sob camadas, sob camadas... E então, nos estratos
mais profundos, dejetos esparramados numa caverna imaginá-
ria, lembranças de um grupo de hominídeos em seu banquete, em
torno de uma carcaça apodrecida... Sim, já houve quem afirmasse,
a partir de estudos de anatomia comparada, que nossa complei-
ção física (“fracotes” em meio ao MMA da selva) não nos dotava
propriamente do arsenal do caçador, colocando-nos, em termos
da economia alimentar, mais próximos das hienas que dos leões,
ou seja, é bem provável que fossemos carniceiros. Se esse é o caso,
trata-se de um problema das origens mais fundantes do nosso ser!
Esse nosso pretenso gosto por restos, uma inteligência que
se aguçou pela seleção natural, associada ao instinto gregário e
uma crescente capacidade de comunicação e ainda, provavel-
mente, alguns lances de sorte, levaram-nos ao domínio do fogo.
O cozimento da carne tornou-se um fator crucial para a sobrevi-
vência em nossa constante luta contra as bactérias, que desde
então, tornaram-se eternas parceiras que tratamos de domesti-
car. Assim, os primeiros hominídeos já iniciaram, por absoluta
vocação, a refuçar carcaças e queimar árvores, abandonando tudo
para trás, repetindo incansavelmente a mesma arte. Em frente a
horda, e para trás o seu rastro. Pode-se imaginar, por exemplo,
quantos incêndios florestais nossos antepassados haveriam de
ter provocado, iniciando o processo de humanização da paisagem
enquanto já semeavam ossos chupados pelas selvas e savanas.

154 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Apesar disso, queimadas à parte, de maneira geral, naquele tempo


a degradação biológica dava conta de absorver nossas sobras e,
portanto, nossa ação ainda não era tão contundente, embora nosso
modo de ser já apresentasse grandes potencialidades para o que
hoje vemos plenamente consumado. O problema desse comporta-
mento, ou antes, dessa natureza escatológica, começaria então a
tomar uma escala cada vez maior quando nos tornássemos gradati-
vamente sedentários. Com a fixação da horda em assentamen-
tos humanos mais prolongados, inicia-se o acúmulo! Já então
proporcionalmente descomunal! Pensemos nos sambaquis! Esses
verdadeiros testemunhos do rei dos animais! Valiosos documentos
pré-históricos, marcos fundamentais da condição humana, marca
incontestável da luta pela vida dos nossos esforçados ancestrais,
o que são senão Lixo? ou melhor, paleo-lixo.

PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
Arqueologia
Para além do véu puído que é a vida,
passo o tempo cavoucando miudezas,
esquadrinhando os tesouros e os dejetos,
cacos, restos e também restos de outros restos...

Meu olhar de ultrassom tudo atravessa,


e me envolve numa orgia de esqueletos...
Que eu carrego em bandejas, peça a peça,
pra dançarem, na gaveta, um minueto.

No museu, sob as vitrines ondulantes,


onde voam esfareladas borboletas
e onde marcham, sem andar, alguns besouros,

entre as múmias discutimos mil segredos...


E eu revelo, em resumidas etiquetas,
tua História, minha História, e nossos medos!

O lixo mostra quem somos, guarda mesmo mistérios... Investigar


o lixo cotidiano de alguém é altamente revelador, mostra costumes,

155 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

preferências, segredos... Podemos inferir o modo de vida, a condição


econômica, a mentira e a trapaça, a alegria e a tristeza, a saúde e
a doença, as provas de crimes. A verdade sem retoques sobre nós
mesmos se esconde em nosso lixo. Descartamos, para o serviço de
coleta ou simplesmente para o mundo, sem nos dar conta, o rastro
do nosso próprio mundo vivido, pois aquilo que se jogou fora revela
o que não se jogou, o que comemos, do que gostamos, como estão
as finanças etc. Excelente material para o investigador ou para o
psicopata assassino que analisa a próxima vítima.
Pois não é outro o trabalho do arqueólogo, nobilíssima profis-
são que nos fascina e que muito admiramos. A arqueologia não
estuda outra coisa senão o lixo.

Patrimônio Etnológico e Referência Cultural


Quem já não pôde observar o especial deleite que algumas
pessoas têm em espalhar o lixo ao redor? Basta ir a qualquer praia
no Rio de Janeiro! (Eu já pude observar com especial atenção) em
casos assim nota-se uma necessidade incontrolável que mereceria
ser estudada pela Antropologia. Obviamente esse curioso compor-
tamento já terá sido objeto de estudo e encontra na psicologia casos
clínicos mais radicais nos chamados “acumuladores compulsi-
vos” que juntam montanhas intransponíveis de inutilidades em
casa. Contudo não pretenderíamos aqui abarcar a totalidade das
“Ciências Positivas” sobre tão profunda e complexa temática. Mas,
de qualquer maneira, pode-se especular se, para além da patolo-
gia, haveria mesmo algum tipo de prazer ou necessidade instintiva
em espalhar lixo ao redor. Tal fenômeno poderia, quem sabe, se
originar de um princípio de territorialidade, um atavismo instintivo,
algo semelhante ao costume comum aos mamíferos em marcar o
território com urina e fezes, que poderia chegar até nós por meio
de uma versão “civilizada”, usando o lixo ao invés dos excremen-
tos. Marcação de território, sentido primitivo de lugar, símbolo de
dominação. Não é, portanto, absurdo imaginar que os fundamen-
tos do nosso senso territorial e de delimitação desse território não
sejam propriamente o do “bom selvagem” de Rousseau. Talvez nossa

156 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

sociedade também fundamente seus ritos e costumes a partir de


fundamentos e simbolismos mais profundos e menos nobres.

Patrimônio Histórico
Seguindo a nossa tortuosa galeria do tempo (com todas suas
emanações) começamos a construir cidades na mesma época em
que saímos da pré-história, sempre com a marca da escravidão,
da usurpação, sempre deixando um rastro de destruição de vidas
e da natureza. E quando não construímos a partir da destruição,
destruímos simplesmente. A antiguidade, especialmente Roma e
toda a Idade Média são o testemunho da destruição, do saque, da
pilhagem e da rapinagem. Civilizações inteiras foram arrasadas,
cidades inteiras destruídas. A regra era a submissão ou a carnificina
e a ruína, ou tudo junto. Seguimos nosso instinto carniceiro. Roma
especialmente! A “Cidade Eterna” com sua perversão e sadismo,
o deleite das massas ansiosas por tripas expostas, seus vomitó-
rios, suas valas comuns onde se enterravam juntas as carcaças
dos animais tratados como a gente e a gente como animais, e tudo
junto como lixo, fazendo com que, por vezes, os arqueólogos atuais
se deparem com imensas massas de gordura putrefata compacta
no subsolo que têm que ser novamente enterradas por absoluto
pavor! Roma, com seus 5 milhões de enterramentos nas catacum-
bas repletas de gazes venenosos, Roma, com a sua Cloaca Máxima é,
realmente, um retrato fiel do nosso processo civilizatório. Pulemos
a idade média e o renascimento, em especial a colonização do Novo
Mundo, para evitar enjoos, e, dois mil anos depois, já acumulamos
um imenso legado, montanhas de resíduos, humanos e materiais,
sobre os quais erguemos nossa civilização.

Patrimônio Arquitetônico – A Ruína


Considerada como um artefato desprovido de uso a ruína é,
também, nada mais que lixo em grande escala. Lixo-monumento,
entregue à natureza, descartado em seu próprio lugar.

157 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Patrimônio Urbano
Pensemos em Paris, a cidade luz, assentada sobre diversas
camadas de restos de história, de tribos celtas, colônias romanas,
merovíngios, carolíngios etc. Quantas camadas! Em meados dos
XIX o grande projeto de modernização, modelo de interven-
ção para o mundo civilizado! O projeto: transformar em lixo
imensas áreas da cidade, uma imensa rapinagem com verniz de
modernização, que reitera nossa incapacidade de abrir mão da
escatologia. A reforma Haussman, e a nossa versão tupiniquim
na Reforma Passos, e outras como o desmanche do Morro do
Castelo em pleno século XX, tudo em nome da modernização!
Pura rapinagem, exercício da escatologia! Quanto lixo, quanto
resíduo foi para debaixo do tapete e não sai na foto do turista!
Portanto, Senhoras e senhores, o que está por baixo dos Patrimô-
nios da Humanidade, das paisagens “naturais”, “humanizadas” e
monumentos? Sob as “Maravilhas do Mundo”! Está tudo erguido
sobre montanhas de lixo! Há, portanto que se fazer justiça à
nossa natureza e à verdade dos fatos: A Unesco deve conside-
rar, inapelavelmente, este fundamento que preenche o chão das
grandes cidades: O LIXO! Nosso patrimônio maior! Histórico,
artístico, arqueológico, etnológico, material, o grande legado
para as futuras gerações!

Patrimônio Artístico
Pode-se alegar com bastante firmeza o caráter artístico do
lixo. Em cada peça do conjunto dos artefatos em desuso que foram
lançados ao mundo está a marca do tempo a que correspondem,
embalagens, por exemplo, são produto da arte de seu tempo, o
design está entremeado no lixo, os artefatos, as vidrarias, os cacos
de azulejos, a louça, a mobília, partes ou peças inteiras que, “em
vida”, se apresentavam como obra de arte, antes de estarem na
condição de lixo. O uso de lixo para composição de obras de arte
apenas corrobora a potencialidade que se esconde na trama das
coisas descartadas que guardam, secretamente, no emaranhado

158 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

do lixão, infindáveis fragmentos de belezas perdidas do cotidiano,


“incontáveis lírios no imenso pântano”, tudo demasiadamente
humano, tudo integrante da nossa vida e da nossa essência. Tudo
isso nos representa profundamente, para o bem e para o mal,
quer queiramos admitir ou não!

Patrimônio Científico e Tecnológico


Não vamos falar das intermináveis sucatas tecnológicas, por
exemplo, da informática, saltemos diretamente a Marte, a nova
fronteira, depois da Lua, onde já depositamos restos tecnológicos.
Contudo, no Planeta vermelho (muito sintomaticamente), sem
sequer termos chegado pessoalmente, já conseguimos deixar o
nosso inconfundível rastro que nos antecede, uma sonda atolada
no areal, lixo e monumento, monumento e lixo! Isso sem falar no
imenso lixo astronáutico espalhado ao redor da nossa própria
estratosfera, toneladas de nuvens de sucata que orbita nosso
planeta. Nossa marca registrada, produto do nosso engenho e
ímpeto desbravador. Que incomensurável e desmedida imundice
a nossa, que tende ao universo!

Patrimônio Natural
Do ponto de vista do senso comum o lixo é o excedente, resto
sem serventia, descartado poderia eventualmente dar a falsa
impressão de que desaparece. Contudo, nem de longe é assim.
A capacidade de absorção e recolocação dos resíduos no ciclo
natural de trocas de matéria e energia é um aspecto que em princí-
pio caracterizaria a própria cadeia alimentar, que tende mais
ou menos a equilibrar o manejo do ciclo da matéria orgânica,
fazendo com que o descarte retorne ao ciclo e seja reabsorvido.
Contudo sabe-se que mesmo na economia da natureza isso não é
uma regra geral. São conhecidos fenômenos naturais de caráter
cíclico ou pontuais, como explosões ou déficits populacionais de
determinadas espécies biológicas onde se rompe o equilíbrio das

159 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

trocas de energia e matéria, gerando, eventualmente, excedentes


e decorrentes desequilíbrios. Um caso muito significativo, pela
sua escala global, se deu no período Carbonífero onde o sucesso
dos vegetais lenhosos propiciou uma grande disseminação de
árvores que se multiplicaram desmedidamente, ocupando grandes
áreas do planeta. Contudo, naquele tempo, não havia nenhuma
forma viva que fosse capaz de digerir a celulose (os cupins vieram
bem depois), o resultado: imensas áreas com acúmulos de troncos
de árvores não biodegradáveis que morriam e se amontoavam;
somou-se a isso uma grande atividade vulcânica produzindo
incêndios globais, efeito estufa radical e extinções em massa.
Hoje, o fator humano, ou antes, o antropocentrismo, que
considera o meio ambiente como reserva de recurso e, ao
mesmo tempo, depósito do descarte é, cada vez, mais alarmante.
Para efeito dessa proposta não é necessário buscar o volume
assustador de lixo acumulado no meio ambiente global, basta
observar quanto lixo cada um de nós produz quando jogamos
fora o nosso saco de lixo diário que (apenas para alguns poucos
de nós), por um passe de mágica, aparentemente desaparece...
Montanhas e mais montanhas potencialmente centenárias e
toxicas se acumulam exponencialmente. Em suma, sem que
haja uma mudança radical, é impossível tiraria o lixo de nossas
vidas. Não é possível fazê-lo desaparecer, pois isso demandaria
altos índices de reciclagem. Mas, no contexto da sociedade de
consumo em que vivemos, servimo-nos do meio ambiente como
fonte de recursos de maneira ferozmente predatória, manufa-
turamos esses recursos que são transformados, onde a própria
transformação já gera resíduos, usamos a parte que interessa
e, finalmente, descartamos direta e indiretamente o que sobra
na extremidade final do ciclo de produção e consumo. É essa a
nossa relação com o meio natural. A natureza para nós é ciência,
matéria prima, o deleite da paisagem, objeto de consumo pelo
turismo ou no “Animal Planet”, mas, em primeiro lugar é um
nada onde despejamos a matéria que constitui o nosso “mundo”.
Observe o lixo diário que você produz e admita que nós somos
seres escatológicos, e que a sociedade global é um imenso vulcão
de lixo em plena atividade!

160 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

Ontologia do Lixo
[...] há certos tipos de experiência, Heidegger sustenta,
que são especialmente descerradoras do mundo ou que
ao menos nos colocam em uma posição de ‘deixar que
ele seja visto’. O que essas experiências têm em comum
é o rompimento das referências constitutivas dos entes
à-mão. Em nossa lida ou em nosso engajamento com as
coisas, algo pode vir ao nosso encontro como inútil ou
como não apropriado para o uso que temos em vista [...]
Em cada um desses casos, o ente à-mão assume o caráter
de meramente presente-à-mão. Em tais experiências as
referências que são normalmente implícitas, que são
consideradas como garantidas, se tornam explícitas. O
sistema de referências em que nós normalmente moramos
de maneira simples ‘vem à luz’, tal como Heidegger a
fórmula. Ele fala do caráter de algo meramente presen-
te-à-mão, que toma o lugar em tais experiências, como
uma ‘des-mundanização’ do à-mão. Nessa des-munda-
nização, porém, o mundo se anuncia. (GORNER, 2017)

O lixo pode ser considerado por diversos aspectos conforme


enumerados acima, todos revelam parcialmente aquilo que o
caracteriza, mas cabe ainda perguntar sobre a verdade do lixo,
sobre sua essência. O que seria então, essencialmente, o lixo?
Se o produto da ação humana, os artefatos por exemplo, estão
interconectados numa trama de significâncias como propõe a antolo-
gia do “Dasein”, imaginemos, para facilitar o raciocínio, a tessitura
dessa trama: O nosso modelo imaginário se desenvolve como um
plano bidimensional, um tecido mesmo, nesse tecido as coisas em
geral são os nós. Os nós-coisas podem ser organizados, ou antes,
ajuntados ou afastados em grupamentos variados conforme diferen-
tes arranjos formando regiões. Assim, num determinado trecho
desse tecido pode-se imaginar (a título meramente de exemplo)
o conjunto de ferramentas de um marceneiro, cada nó é uma
ferramenta, consideradas todas as variedades possíveis. Alguns
artefatos podem pertencer a mais de uma região, por exemplo,

161 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

martelos servem ao referido marceneiro, mas também ao constru-


tor. Então poderíamos, tomando ainda o nó-martelo como referên-
cia, superpor à trama da região oficina do marceneiro a outra
tessitura, do referido construtor, com alguns nós-coisa em comum,
e outros não. Justapondo os dois tecidos, o do marceneiro e o do
construtor, há nós em comum, coincidentes, e outros não coinci-
dentes, numa espécie de teoria dos conjuntos fenomenológica
com uniões, interseções, contiguidade ou independência total,
aumentando a complexidade das duas tessituras interpostas na
grande feira livre da ação humana. Ora, essa tessitura imaginá-
ria tem um urdimento irregular, assim, as coisas às vezes estão
mais próximas ou mais afastadas conforme pertençam a regiões
parcialmente coincidentes, vizinhas ou distantes, formando uma
complexidade inextricável. Seguindo nessa imagem, os nós-coisa
podem ir desde um prego até uma imensa catedral, sistemas de
nós podem formar um grande artefato que é uma cidade, consti-
tuindo, enfim, grandes tecidos que conformam um complexo e
mutável conjunto de referências que designamos genericamente
como cultura.
Note-se que existe uma complexidade que se desdobra em
outras complexidades menores, assim em cada ponto ou nó, digamos,
há subtramas. Portanto, um martelo é o produto da fundição ou
da usinagem da cabeça de ferro ou aço que o compõe, e toda uma
rede de complexidades histórico/tecnológicas implícitas em sua
existência. Pois bem, a cabeça do martelo e tudo que há por trás
dela une-se ao cabo de madeira ou metal, que também por sua
vez traz sua própria genealogia que remonta a épocas ancestrais,
tipologias, formas, saberes, tradições e inumeráveis especifici-
dades que o caracterizam como ente.
Assim, a grande rede de coisas está imersa no mundo, do
ponto de vista ontológico é mesmo parte do mundo, em certo
sentido seu próprio substrato, aquilo que se encontra à mão e que
define a essência do nosso ser. Obviamente, por estar inserida na
dinâmica da vida, essa trama não é, em absoluto, algo estático,
pelo contrário, fervilha em constante movimento, muda de forma,
a todo o momento surgem novos nós, outros são desfeitos, outros
tantos tem maior permanência, outros novos ainda virão ou não,

162 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

alguns são apenas lembrança ou esquecimento, outros potencia-


lidade, potencialidade que poderá algum dia se efetivar ou não.
Nós outros, os seres mortais que circulamos em meio à trama dos
nós-coisas, somos movidos e, ao mesmo tempo, pomos em ação
essa trama complexa. Enquanto seres no mundo vivemos imersos
entre a trama e o urdimento, nossas habilidades e fazeres nos dão
acesso aos nós-coisa. Assim, movemo-nos dentro do movimento e
movimentamos o movimentado que, em termos de ação e reação
também nos aciona. Pode-se comparar a imagem desse fenômeno
com a atividade que se manifesta, por exemplo, numa nebulosa
onde se formam estrelas, planetas e outros corpos celestes em
meio a nuvens de poeira palpitante.
Pois bem, e o lixo?
Onde a trama dos nós-coisa se esgarça surge o lixo, O lixo faz
parte dessa trama de maneira inseparável, está preso à rede, é
parte dela, integra sua dinâmica oculta. Seguindo na analogia do
martelo, um martelo quebrado, inutilizado, vira lixo. Rompe-se
a coesão da estrutura interna do nó-coisa-martelo. Contudo as
partes rompidas, (no exemplo a cabeça separada do cabo) seguem
presas à rede geral, e por mais que se subdividam estarão sempre
interligadas no todo. Por fim, desdobrando esse raciocínio, imagine-
mos um ínfimo fragmento de micro lixo, um minúsculo pedaço de
plástico que viaje flutuando até o centro do Oceano Pacífico, e após
passar pela cadeia alimentar permaneça ali, fora da nossa vista,
preso nas profundezas abissais. Nessa condição essa partícula
será ainda um nó distante, inseparável da trama que o define.
E aqui surge, por comparação, o conhecido fenômeno da física
quântica que considera que duas partículas que interagem em
algum momento permanecerão ligadas, pulsando em uníssono,
por toda distância e todo o tempo!
Portanto não podemos, e não poderemos, de modo algum,
nos separar do lixo, ele é, como se diz, o “chiclete no tamanco”, é
impossível nos desfazermos dele, está condenado a nós e nós a
ele, é nossa própria essência, extensão material e concreta. Está
intimamente enredado na trama do modo de ser das coisas, é um
ente concreto, existe no mundo sensível, permanece e tende a se
perpetuar. Não adianta escondê-lo, é inútil varrê-lo para debaixo

163 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

do tapete, exportá-lo, vendê-lo, comprá-lo, compactá-lo, moê-lo,


comprimi-lo no aterro sanitário, A melhor solução técnica não é
mais que um paliativo, pois ele permanecerá ali como uma marca
indelével que apenas cresce, e cresce e cresce... Uma extensão do
nosso ser. A perfeita definição daquilo que somos a revelação da
própria constituição do nosso mundo!
Reconheçamos, portanto, esse incomensurável monumento,
pois ele merece!
Atenciosamente, Candido Campos – Arquiteto

“Ser ou Não Ser – Assumir o Reprimido”


Em termos psicanalíticos nossa relação do lixo pode ser
entendida a partir do conceito de repressão. Nossa maneira de
ser-no-lixo, essa essência que nos define, é rasteira demais para
que possamos assumi-la e suportá-la, assim, temos um impulso
irrefreável em esconder, como se fosse possível fazer não ser o
que apenas não se vê, mas que permanece ali, cada vez mais ali,
represado, pressionando barragens sempre insuficientes, como
se a ocultação pudesse fazer não ser aquilo que fundamental-
mente é. Contudo, como no caso dos impulsos sexuais reprimi-
dos, para nós o lixo não deve ser escondido, deve ser assumido
integralmente, não deve ser objeto da ocultação, mas a própria
revelação. Talvez essa seja nossa única salvação.
O universo da física está em expansão e o universo humano
também. Em torno do mundo das coisas e das ideias, por fora dos
limites dos entes desfuncionalizados, que é o lixo, fica o nada,
onde se oculta, sempre oculta, a natureza inatingível, onde habita
a infinitude e a limitação das potencialidades humanas. O lixo
precisa ser assumido, trazido para a circunvisão e não empurrado
para fora, onde de fato ele jamais estará, como aquilo que ele é
de fato e em essência: a essência de nós mesmos, a cultura, a
arte, herança para as futuras gerações, o verdadeiro testemu-
nho de “sermos-no-mundo” no esplendor e miséria daquilo que
somos. Portanto, ao invés de ser ocultado debaixo do tapete dos

164 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão da Teoria

intermináveis compactamentos dos aterros sanitários o lixo


deve ser objeto de cuidado, não de desprezo, pois no modo do
desprezo ele sempre se voltará contra nós. A ideia de sustenta-
bilidade atinge apenas parte do processo, tangencia o problema,
presa no ciclo entre o consumo, o descarte e a reciclagem. Mas
antes do consumo e depois da reciclagem existe o nosso modo de
ser. Pretendemos aqui, no entendimento e nas propostas que se
seguem, atingir nosso modo de ser a partir da cultura e da arte,
fundamentos da nossa essência onde estamos e sempre estaremos
com-o-lixo. Pensamos que deveria partir da Unesco o reconhe-
cimento e estímulo de assumirmos aquilo que somos e colocar
o lixo no modo de cuidado e não no esquecimento daquilo que
permanece sempre em sua vigência mal dissimulada.

AUTOCONHECIMENTO
Consta que Sócrates, após falar do Esculápio,
teve um insight derradeiro em sua mente!
E disse: “anota! Platão, enquanto é tempo!
como fazer, enfim, pra autoconhecer-te:

Nunca consulta a quem conheças num momento,


e nem, tampouco, com quem tens intimidade,
quem te odeie, ou ao amigo mais atento,
menos ainda a quem te ame de verdade.

Pra admirar a tua alma por inteira,


e vislumbrar a elegância do teu corpo:
pede uma análise da tua faxineira!

E aí então, se suspeitares que és um porco!


Deves cuidar daqui pra frente do teu lixo,
e aprimorar tua beleza e o teu capricho!”

165 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


5 A QUESTÃO DO PROJETO

A Questão do Ser
Voltamo-nos agora para o ser do projeto, buscamos a sua
ontologia. Aqui não tratamos o projeto objetivamente enquanto
um conjunto de procedimentos técnicos que se dirige a atender
ao programa de necessidades; tampouco é entendido subjetiva-
mente, como raciocínio lógico do cumprimento “correto” de uma
demanda à luz da teoria; mas no que está antes disso, na essência
do projetar.
Entretanto, convém ressaltar: ao colocarmos “em suspenso”
o ato projetual, no que se refere especialmente aos seus aspectos
técnicos, não se pretende supor que estes não sejam importantes;
são, na verdade, cruciais pois, na prática, o projeto se apresenta
pela demanda da necessidade e pela resposta da técnica. Contudo
buscamos aqui uma compreensão daquilo que se dá em termos
da disposição do projetar, ou seja, uma análise interpretativa
do “impulso primordial” que leva ao projetar, não apenas no
sentido estrito do interesse em fazê-lo, mas como condição de
possibilidade.
Na escola de arquitetura, no ateliê de projeto do quinto período,
justamente onde termina o projeto de arquitetura e inicia o projeto
urbano, costumávamos propor, como tema para trabalho, algum
conjunto urbano com características mais ou menos uniformes,
algo como o casario predominantemente eclético de uma única
rua (no caso a rua Sacadura Cabral na região portuária do Rio de
Janeiro). No tal conjunto os alunos, em grupos, fariam projetos para
uma ou mais unidades com a intenção de “revitalizar” o conjunto
por completo.
O resultado das propostas tomadas uma a uma era geralmente
de boa qualidade, ao menos do ponto de vista da solução plástica e
cumprimento do programa etc., contudo, quando colocados todos,
lado a lado na maquete geral, revelava-se desastroso, algo como
um aeroporto repleto de espaçonaves intergalácticas.

166
A Questão do Projeto

O resultado dessa curiosa revelação? Paramos de trabalhar


com as turmas subsequentes em um único conjunto e fugimos
do problema. Fugimos do que parece ser o “clamor das coisas”.
Contudo, pensar e repensar este problema colhido na prática
da sala de aula leva-nos a supor que, mais que apenas um mero
problema casual, o caso traz antes uma questão de fundamento,
pois “quando algo dá errado, o mundo se mostra”, expõe o nosso
modo de lidar com as coisas e pode revelar, por exemplo, que o
correto nem sempre é o verdadeiro.
Mas o que seria então, em essência, projetar?
Essa pergunta tentaremos responder ao longo deste
capítulo final.
Mas antes, para não perder a oportunidade de concluir a
questão levantada na experiência acadêmica acima referida,
podemos, talvez, dar aquele passo atrás, como temos feito aqui,
para primeiro perguntar: O que seria ensinar a projetar? Pergunta
essencial no contexto deste trabalho, que, no fim das contas,
volta-se ao ensino do projeto. Além disso, questionar a essência
do ato projetual, ou seja, tentar entendê-lo enquanto disposição,
talvez possa abrir caminho para a sua compreensão.
Indo então diretamente ao assunto, podemos dizer que,
essencialmente (tal como acontece na música com o Jazz), ensinar
a projetar é uma ficção, porque não é possível ensinar a projetar,
ou sendo mais claro, é impossível. E ainda que se possa ensinar
todo aparato técnico que incide no projeto como normativa, legisla-
ção, dimensionamento, estrutura, materiais de construção e sua
aplicabilidade, gerenciamento de projeto e obra etc., o conjunto
dessas informações não pode atingir o objetivo central do ensino
do projeto, é tudo útil, mas passa ao largo.
Contudo, de qualquer maneira, e felizmente, se não é mesmo
possível ensinar a projetar é, perfeita, e até prazerosamente
possível, aprender. Na verdade, o programa de ateliê de projeto
integrado adotado como norma, desde o primeiro período, é
a consolidação do reconhecimento disso e atende ao princí-
pio de que o único caminho do aprendizado do projeto está em
fazer junto. Talvez um (necessário?) atavismo da velha relação
mestre/aprendiz.

167 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Aquele que poderia ser reconhecido como o mais ortodoxo


templo do ensino de arquitetura, a Escola de belas Artes de Paris,
em pleno século XIX, corrobora a prerrogativa do aprendizado
sobre o ensino.

O aprendizado dos estudantes matriculados na Escola


ocorria, sobretudo fora dos muros do edifício. Na verdade,
a parte principal do seu aprendizado ocorria no ateliê.
Profissionais destacados de cada área empregava os
estudantes, pagando-lhes baixos salários, mas, em
contrapartida, cabia educá-los de acordo com os princí-
pios do projeto. Naturalmente a qualidade variava tanto
quanto o estilo. Os estudantes tendiam, assim, a escolher
os instrutores com os quais mais se identificassem. A
escola oferecia aulas e conferências, mas a presença dos
alunos era facultativa e não havia avaliações de curso.
(CHING, JARZOMBECK, & PRAKASH, 2016)

Assim, convergem a ideia e a constatação, pois se defende-


mos aqui que o projeto é um fenômeno único, “um mergulho no
mundo”, poderíamos, então, responder perguntando: é possível
mergulhar por alguém?
Portanto, antes de ser um procedimento técnico, o ato de
projetar pressupõe uma condição essencialmente relacional, o
encontro de referências e contingências e a busca por modos
para articular possibilidades.
Esse referido “mergulho” é a essência do projetar em arquite-
tura, urbanismo, restauração, paisagismo etc., porque, essencial-
mente, tudo isso está no interior do mundo e o mundo é um só.
Uma busca essencial deve levar a uma condição essencial.
Portanto nossa busca leva-nos, necessariamente, ao todo do
ato projetual e ao projeto urbano, antes do arquitetônico, como
um modo de pensar digamos, centrípeto, de fora para dentro,
ao invés da tendência contrária de partir da coisa para o todo,
como ocorre com a ideia que vai do monumento ao entorno e
do edifício ao contexto. Assim, para nós, invertem-se os papeis
e o objeto é sempre e necessariamente a própria totalidade.

168 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Os frequentadores de parques urbanos não procuram


um cenário feito para os edifícios; eles procuram um
cenário feito para eles mesmos. Para eles, os parques
são o primeiro plano, e os edifícios, o pano de fundo, e
não o contrário. (JACOBS, 2011)

Esse desvelamento da totalidade como fundamento já foi


indicado, ainda que em termos correlatos, na compreensão ontoló-
gica de Camilo Sitte. Contudo o pensamento modernista negou
e nós, agora, nesse desdobramento da modernidade em que nos
vemos imersos, seguimos negligenciando. Prosseguimos, em
grande parte, enganados por aquilo que é simplesmente dado
como “coisa”, quando na verdade é a manifestação de uma totali-
dade a qual, quase sempre, termina aparentemente retraída em
nossa visão míope.
Assim, o sentido fundante do lugar e a necessária circunvisão
que deveria ser sempre o ponto de partida e de chegada são, de
maneira geral, relegados à condição acessória de fundo, simples-
mente ignorados ou, pior, mencionados de passagem no discurso
evasivo dos “memoriais justificativos” que, ao final, terminam
copiados como frases de efeito nas chamadas dos folhetos de
propaganda dos empreendimentos imobiliários.
Mesmo que o discurso “politicamente correto” das defesas
projetuais traga geralmente a importância da relação com o entorno,
tanto no restauro do monumento quanto no projeto do edifício
em geral, a totalidade do fenômeno urbano permanece como uma
questão complementar, ou seja, como “entorno”, “contexto” ou ainda
uma “ambiência” ou “atmosfera” tomados evasivamente, como
dados do visibilismo ou como falatório vazio, sem uma abordagem
ontológica. Basta ver, por exemplo, o modo de ação dos órgãos de
patrimônio que consideram o monumento tombado como objeto
ativo da restauração/conservação e, por outro lado, o entorno na
passividade da proteção.
Falar de conceitos como lugar, atmosfera, ambiente, vitalidade
etc., no discurso copy/paste dos memoriais justificativos, ou no
falatório em geral, sem trazer esses conceitos efetivamente para
o modo de lidar com as coisas é muito pior que apenas ignorá-los,

169 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

pois faz parecer que a questão está resolvida, quando na maioria


das vezes não está.
Costuma-se imputar a culpa por essa abordagem da “arquitetu-
ra-coisa” ao modernismo, ao dito racionalismo e ao estilo interna-
cional, à herança deixada na “pista de cinzas” da tradição projetual
modernista; e é mesmo verdade que o próprio Sitte, precocemente,
já criticava a visão equivocada da arquitetura moderna como “objeto”
e do espaço ao redor como “sobra”. Contudo, parece-nos que se
trata de um problema anterior, mais fundamental e persistente.
Trata-se de um modo de compreensão da cidade e da disposição
em projetá-la a partir da persistência do ver que obstrui o ser.
Esse engano se mostra em sua persistência a partir de outras
manifestações, como é o caso da historiografia da arquitetura
que, de maneira geral, desprovida de documentos que revelem
a verdadeira história da arquitetura, essencial, voltada à vida, ao
cotidiano, ao popular e ao vernacular, 36 ou seja, ao verdadeiro
“ambi-ente”, mostra antes, e quase exclusivamente, a história dos
monumentos, apresentando a exceção como marca do tempo, como
se a arquitetura monumental de Brasília, por exemplo, falasse pelo
que significa a arquitetura brasileira em geral do nosso tempo.
Também persiste o predomínio da “arquitetura-coisa” no
próprio programa das nossas escolas de arquitetura que, apesar
de toda crítica ao projeto modernista, ainda iniciam tratando o
objeto arquitetônico nos primeiros períodos, chegando gradati-
vamente ao urbano, quando, ao contrário, parece-nos, seria mais
interessante o movimento de fora para dentro. Talvez coubesse
perguntar se não seria o caso de mudar o sentido e mesmo o
próprio nome do curso para “urbanismo e arquitetura” ao invés
de “arquitetura e urbanismo”? Começar pelo urbano para chegar,
gradativamente, à arquitetura, no sentido de buscar primeiro a
compreensão da “coisa como totalidade”, como abertura para a
disposição do projetar, sempre no modo “ambi-êntico”.
Note-se que isso que entendemos que seja um engano
fundamental tem sido levado ao extremo na existência de cursos
onde se trata apenas de arquitetura, tomada como design de edifícios,

36  E temos aqui uma questão essencialmente ruskinista.

170 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

enquanto disciplina autônoma, sem a devida compreensão do lugar


e do conjunto, o que, para nós, parece o extremo do contrassenso.
Poderia, contudo, alguém questionar que “não há problema
nenhum” em que a questão seja colocada nesses termos, ou seja:
“por que não deixar que se projete o edifício com autonomia, como
uma idiossincrasia? Talvez se trate apenas de um produto do nosso
atual individualismo, uma condição da contemporaneidade... E
que cada um faça o que quer e lance mão da sua liberdade, pois
assim teremos a marca do nosso tempo, a expressão material do
fato social etc.” De fato, de certa maneira tem sido o modo como
a coisa verdadeiramente se dá.
Pode-se ainda, sob o tópico de um “liberalismo” tentar defender
que o chamado “estilo da época” sempre se apresente tecendo,
pelo formalismo variado ou pela uniformidade material, uma
certa unidade estilística que poderia compor algo “interessante”,
digamos assim, “Nova Yorks pan-urbanas” com torres aqui e ali de
design retorcido. Entretanto, também esse argumento atende ao
“deixar fazer”, facilmente apropriável pelo modo de produção e de
consumo, ao invés de apontar para a ideia do “direito à cidade”, num
projeto humanista e “ambi-êntico”, ou seja, uma busca pelo espaço
voltado à integração, à qualidade ambiental e ao sentido de lugar.
Além disso, tratar a arquitetura como vontade autônoma, como
subjetividade, e não nascida de uma compreensão intersubjetiva,
leva à negação da nossa natureza de ser-com, do projeto urbano
e arquitetônico como possibilidade colocada no jogo da retórica,
da provável contestação e do possível convencimento. Ignorar um
fundamento dessa nossa verdadeira condição humana atende
muitíssimo bem ao jogo dos interesses do poder econômico e do
mundo virtual, onde cada vez mais o valor se aliena das coisas,
das ideias, das pessoas e se volta aos dados.
Assim, essa pretensa autonomia do edifício possibilita e
sustenta, por exemplo, o projeto concebido pela inteligência artifi-
cial, e até facilita “a vida” do computador, ou ao menos do progra-
mador, posto que o objeto arquitetônico, tomado autonomamente,
dispensaria sequer a inserção, por exemplo, da extensa variedade de
dados do lugar para o seu processamento, possibilitando o projeto
genérico, pretensamente aplicável a qualquer lugar, conferindo

171 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

viabilidade e mesmo validando um projeto executado por algum


aplicativo de telefone celular como, aliás, já está ocorrendo.
Nas orientações de projeto em sala de aula, 37 vez por outra,
levanta-se, por parte dos alunos, a questão de não haver, ou haver
pouca teorização, além da falta de uma bibliografia de caráter
específico, em especial na questão daquilo que se chama “revita-
lização”, ao que sempre respondo que “há sim!” Sem precisar
voltar a Alberti, temos toda história da teoria moderna que
inicia em Violet-le-Duc 38 e todos teóricos subsequentes, temos
Ruskin e sua visão humanista, temos a busca de Boito e Giovan-
noni, temos Brandi e uma teoria fundamentada na fenome-
nologia que tem ampla aplicabilidade; 39 há também, como já
mencionado, Camilo Sitte, Quatremère de Quincy, Aldo Rossi,
além de referências como, por exemplo, Carlo Scarpa que fala
através do que faz; entre outros tantos mestres que, no conjunto,
oferecem uma perspectiva crítica que, bem assimilada e aplicada
com discernimento e inteligência, pode instrumentalizar as mais
diferentes situações onde se coloque o ato projetual.
Assim, colocada aqui a questão de uma busca do projetar
pretende-se, talvez, buscar também uma resposta à demanda
anunciada pelos alunos e tentar fazer convergir o ferramental
teórico na prática do projeto, fazendo o passado da teoria conver-
gir para o futuro do ato projetual.
Tentaremos aqui, através de um caminho metodológico,
a formulação de uma espécie de “adensamento do referencial
teórico” partir dos conceitos da tipologia arquitetônica, da morfolo-
gia urbana e da teoria da restauração, como as três chaves para
o projeto dito de “revitalização”, ou de “intervenção” (para juntar

37  Aqui nos referimos ao “projeto de revitalização”, mas pode servir a toda abor-
dagem projetual.
38  Nunca é demais lembrar que os teóricos, como Violet-le-Duc, estão na base
do desenvolvimento de toda teoria arquitetônica subsequente e fundamentam,
não só a questão de patrimônio e restauro, mas a compreensão geral da arquite-
tura e da cidade. Da mesma maneira, aqui, pretende-se abarcar uma questão geral
de projeto a partir do questionamento de patrimônio e restauro.
39  Ainda que com algumas incompreensões e o uso negligente que em geral
se faz.

172 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

todos os “res”), mas que preferimos chamar “integrado” (como


propunha Giovannoni), ou, “ambi-êntico” como propomos aqui.
Essas três chaves estão voltadas para um “sentido de projetar” que
não seja nem objetivo e nem subjetivo, mas situado antes desses
dois modos, ou seja, na origem da constituição de mundos que
deve caracterizar uma disposição projetual originária, voltada
para o “ambi-ente”, o ente cujo ser está na “quadratura”. Assim,
as teorias do urbanismo se “com-fundem” ontologicamente, o
que talvez possa nos levar a um modo-de-ser do projeto em geral.
Cuidamos, todavia, em não tomar a teoria como um receituário,
ao contrário, diante da teoria recuamos para vê-la numa melhor
perspectiva, como diria Husserl, “em suspenso”. Assim, mais
uma vez, propomos dar um passo atrás para buscar o caminho
do fenômeno, daquilo que vem antes.
Delimitado, portanto, nosso objeto, podemos tentar, senão
definir, ao menos delinear, em contornos gerais, nossa compreen-
são relativa à arquitetura.
Pergunta-se, então: O que é enfim, para nós arquitetos,40 esse ente
“a arquitetura”, já que ela não é, em essência, nem objeto e nem ideia?41
Compreendida originariamente como urbanismo, a arquite-
tura é, em sua serventia, espacialidade e técnica. Ela vem a nós
enquanto tipo, forma, matéria, vitalidade e identidade; desdobra-se
a partir dos lugares, na disposição da memória ou no esquecimento
e na indiferença. É cuidada por meio de constituição, conserva-
ção, modificação, supressão ou abandono.

Projeto e Plano
Cabe, contudo, ressaltar que falando “projeto”, não nos referimos
ao plano de caráter regional, pois, este se dá na necessária esfera da
aplicação da interdisciplinaridade. No plano pratica-se o projeto do

40  Ao Dasein corresponde o mundo.


41  Note-se que discordamos da ideia de que a arquitetura seria “construção com
intenção”. Ela é constituída como fenômeno, independe daquilo que pretenda o
arquiteto, aliás, diga-se de passagem, até prescinde dele.

173 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

que pode até jamais ser visto presencialmente, tomam-se importan-


tes aspectos escolhidos em mapas, compara-se dados geográficos,
sociológicos, números e projeções. É inquestionável a importân-
cia do planejamento regional. Aqui, contudo, tratamos a questão do
projeto enquanto disposição propositiva, do lançar-se às possibilida-
des na compreensão da teoria, na negociação da retórica e na ação
de demorar-se na presença e no desenho da cidade. À maneira de
Camilo Sitte e Gordon Cullen, consideramos como nosso objeto a
espacialidade, no mover-se e no demorar, contudo não partimos da
prevalência do visibilismo, mas também daquilo que não se mostra:
o lugar, e os espaços que, em torno dele se conformam.

Amplitude e humildade

Arquitetura e urbanismo abarcam um campo de ação desco-


munal, em extensão e profundidade, e estará sempre além das nos-
sas melhores capacidades, pois o mundo urbano se espalha para fora
das cidades, para qualquer lugar onde possamos estar. Esta comple-
xidade ôntica que se apresenta no mundo das coisas (os entes em
geral) esconde desdobramentos ainda mais profundos, ontológicos,
no mundo dos referenciais. Portanto é fundamental a quem preten-
da projetar e, consequentemente, propor mudanças em meio a essa
trama complexa, o reconhecimento de um necessário e incontorná-
vel déficit de poder a ser ocupado pela humildade e pela negociação.
Aqui interessa-nos o projeto mais como processo que como produto
acabado. Mas, ao mesmo tempo, espera-se do urbanista uma dis-
posição autêntica, um ímpeto, que só pode ser compreendido como
um impulso criativo que caracterizam a arte e a técnica.

Especialidade na profissão
Entretanto, na lida cotidiana, para sobreviver, nós, profis-
sionais de arquitetura, nos vemos em geral obrigados a buscar,

174 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

naturalmente, maneiras de dominar apenas uma parcela desse


complexo sistema espaço-temporal que é o fenômeno urbano.
Assim, o que ocorre é a especialização. Voltamo-nos para um
determinado aspecto em nosso engajamento na profissão como
condição de sobrevivência. Voltar os olhos para uma parte e, dentro
dessa parte, atender a apenas um aspecto específico, geralmente
de caráter técnico, afasta a compreensão de totalidades.
De fato, hoje em dia, e cada vez mais, experimentamos a condição
do especialista restrito, ainda que, por outro lado, voltado a um
horizonte de informações que abarca um mundo de referências
virtuais intermináveis, nos smartphones, nos aplicativos, progra-
mas gráficos, compartilhamentos em rede e no Google.
Assim, entre a restrição e a multiplicidade, tornamo-nos
profissionais que sabemos muito sobre pouco e, por outro lado,
pessoas que sabem pouco sobre muito. Parece-nos que essa restri-
ção do técnico associada à superabundância da informação e dados
termina fazendo com que voltemos as costas à nossa relação mais
originária com o mundo, com as coisas simples e, talvez, com as
pessoas e a própria vida, o que, muitas vezes, pode nos levar a
valorizar irrelevâncias e ignorar fundamentos.

O projeto e o fazer artesanal


O homem primitivo era ao mesmo tempo artista, cientista e
engenheiro e não era ainda nada disso. Antes de haver propria-
mente projeto conforme entendemos hoje, na condição do fazer
mais intuitivo, misturava-se o projeto com a obra.
Pode-se então perguntar, como, em termos teleológicos,
começamos a estabelecer a condição não natural que nos caracte-
riza? Podemos conjecturar que nossos antepassados, quando deram
os primeiros passos nos processos mentais mais complexos da
teleologia o fizeram a partir da tentativa e erro, método ideal para
quem não tem alternativas, ou as tem demais (o que vem a ser
mais ou menos a mesma coisa).
De qualquer maneira, contrariando uma visão raciona-
lista, é possível que naquela metodologia básica (talvez mesmo

175 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

originária) de “tentar, errar ou acertar”, aumentamos a margem


de erro juntamente com a possibilidade da ruptura de limites, e,
portanto, de inovação.
Lembremos disso com relação ao ensino de arquitetura, tantas
vezes opressor e voltado para uma pretensa eficácia programática
e valorização das individualidades, o que termina reproduzindo
a lógica mais obtusa do mercado onde, muitas vezes, se ignora
os processos humanos em busca dos resultados.
A convivência com o erro promove um aprendizado mais
longo, porém mais profundo, lembremos que o erro traz consigo
a humildade e a sabedoria.
Como regra geral encontramos ao longo de toda história a
evolução da relação mestre/aprendiz, que se consolidaria como
um fundamento essencialmente humano, um refinamento do
instinto gregário, que culminou com fenômenos da dimensão das
grandes catedrais na baixa idade média e da revolução artística
no renascimento.42 A escassez documental de planos e desenhos
não chega a indicar que o projeto como concepção, antevisão e
planejamento não existisse no modo de produção pré-industrial. Há
claros indícios de que havia. De qualquer maneira pode se conjec-
turar com uma “certeza probabilística” que o planejar estava muito
mais próximo do fazer e em torno do domínio da manualidade.
Ruskin, como os românticos em geral, era adepto fervoroso do
trabalho manual e da tradição mestre/aprendiz, chegou indepen-
dentemente ao conceito de alienação marxista quando afirmava
que “não se divide o trabalho, divide-se os homens”. A urbaniza-
ção e a divisão do trabalho da era moderna trouxeram consigo
uma crescente inabilidade dos fazeres artesanais. Nossos avós
que ainda traziam alguma cultura rural (com um certo déficit de
utensílios já prontos) e, portanto, em geral, com mais necessidade
e mais oportunidades de praticar tarefas manuais diversificadas,
poderiam, talvez, desenvolver um raciocínio prático construtivo
mais versátil.
Hoje nossos alunos chegam à faculdade de arquitetura agarra-
dos aos celulares, com um repertório de habilidades manuais

42  Para citar apenas exemplos que vêm ao caso.

176 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

muito incipientes. Ora, como em termos de arquitetura e constru-


ção, pensar arquitetura é, no fim das contas, simular arranjos
de “artefatos utensiliares construídos”, uma mente desligada da
prática cotidiana do fazer têm um déficit no pensamento tectônico
que se agrava devido à pouca carga de aulas práticas.43
Portanto, para fazer bons projetos precisaríamos fazer mais
obra, de preferência com alguma prática direta, feita à mão, e nesse
aspecto o campo do patrimônio cultural pode oferecer boas oportu-
nidades devido a seu caráter mais artesanal, daí a importância
de disciplinas como “técnicas retrospectivas” que se desdobram
para muito além do mero resgate
da tecnologia perdida do modo de produção que se foi, ganhando,
na verdade, um significado essencial como oportunidade para a
criação de mundos.

A técnica moderna

Em oposição à técnica pré-industrial com menor divisão de


trabalho menor rentabilidade e produção de pequena escala, im-
põe-se o modo de produção cujo discurso é o da eficiência, mas que
traz no seu cerne o fazer alienado próprio da técnica moderna. Aqui-
lo que está por trás dessa eficácia na verdade busca o máximo rendi-
mento como mínimo de gasto e levou à apropriação da arquitetura
modernista pela voraz máquina de construção de cidades anônimas
que domina o mundo urbano desde o início do século XX.

O desencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma


exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer
energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e armaze-
nada. Isto também não vale ao antigo moinho de vento?
Não! Suas alas giram, sem dúvida, ao vento e são direta-
mente confiadas ao seu sopro. Mas o moinho de vento
não extrai energia das correntes de ar para armazená-la.

43  A rigor inviável para o que seria desejado.

177 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Em contrapartida, uma região que se desenvolve na


exploração de fornecer carvão e minérios. o subsolo passa
a se desencobrir, como reservatório de carvão, o chão,
como jazidas de minério. Era diferente o campo em que
o camponês outrora lavrava, quando lavrar ainda signifi-
cava cuidar e tratar. O trabalho camponês não provoca
e desafia o solo agrícola. (HEIDEGGER, 2012)

Todavia uma abordagem fenomenológica da arquitetura e do


projeto não pode negar a técnica, pois ela é a alma do projeto; nela
converge o trabalho e o esforço dos muitos “Daseins” nos caminhos
tortuosos de sermos-no-mundo. A técnica se consolida enquanto
intersubjetividade através da nossa inautenticidade,44 ou, melhor
dizendo, do “simplesmente aceitar” aquilo que se nos apresen-
tam como o que é aceito. Portanto, a técnica sedimenta linhas
do provável, do “com-provável”, em meio às tramas do possível.
Entretanto, a técnica vai muito além do receituário. Nela está,
condensada, a soma dos sucessos e dos fracassos, do “como fazer”
e, talvez o mais importante, do “como não fazer”.
Contudo, ainda assim, a técnica não é inquestionável. Pode-se
sempre questionar, deve-se mesmo questionar sempre tudo, o
que não significa que se deva, pura e simplesmente, descuidar
daquilo que está prescrito na legislação, recomendado na norma
ou consolidado pela prática. Pois na verdade o modo de fazer não
está na técnica, ao contrário é ela que está no modo do fazer.
Antes do modo vem a condição da possibilidade do fazer, ou seja,
a disposição. O jogo do projeto se dá sempre numa alternância
cambiante entre “referências e vontades”, mas estas emanadas do
nosso modo-de-ser mais essencial. Portanto, para mudar disposi-
ções é necessário mudar compreensões e vice-versa.
Enquanto pensarmos o projeto a partir da ideia da arquitetura
como “coisa” sobre um fundo, movendo-nos, como quase sempre
fazemos, entre o objetivo e o subjetivo, estaremos circulando entre
a disposição equivocada e a compreensão errada.

44  Convém lembrar que dizer “inautenticidade” não implica, necessariamente em


algo estritamente “negativo”, mas também numa condição necessária do ser-com.

178 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Criação projetual
Embora consideradas em geral como manifestação artística
fundamental, tanto a arquitetura quanto o desenho urbano distin-
guem-se existencialmente da obra de arte no sentido mais estrito,
em especial pela espacialidade associada ao caráter utensiliar.
O ser “artístico” do fato urbano se retrai no uso, em especial no
que é essencialmente usual e cotidiano. Talvez por isso mesmo
haja dificuldades na aplicação da teoria da restauração à arquite-
tura e ao urbano se comparados, por exemplo, com a pintura e a
escultura. Sobrepor o artístico ao utensiliar é o objetivo e, também,
o “pecado original” da conservação. É possível que a solução desse
problema esteja na sua superação. Em outras palavras, talvez a ideia
da “cidade como obra de arte” seja o último obstáculo epistemoló-
gico a ser superado para sua conquista efetiva como “ambi-ente”,
como aqui pleiteamos.
De qualquer maneira, independentemente de ser ou não
ser arte, há diversas entradas possíveis para a criação projetual.
A diversidade disciplinar no campo do urbanismo possibilita a
diversidade das compreensões.
Entre nós arquitetos, via de regra, aceita-se a hipótese (quase
como uma certeza) de haverem duas abordagens na questão da
criação projetual: uma dita “racionalista”, voltada prioritariamente
a atender ao programa onde a concepção geral (o partido) resulta-
ria em grande parte do arranjo adequado, da distribuição e do
dimensionamento dos espaços etc.; e outra, dita “formalista”, onde
prevaleceria a concepção do todo com a primazia da solução plástica,
atendendo-se à distribuição espacial de maneira consecutiva,
intermitente ou ao final. Note-se que, reiteradamente, como em
tudo mais, estamos, mais uma vez, voltados ao projetar a partir do
modo como concebemos o ato projetual, quase sempre em torno
do velho dilema entre o objetivo versus subjetivo.
No projeto, urbano e de arquitetura, o programa de necessidades,
que normalmente aciona o ato projetual, é uma demanda essencial-
mente objetiva e interessa diretamente a quem realmente manda,
o cliente, que paga pelo projeto e pagará pela obra, implicando em
que os recursos financeiros devam ser usados comedidamente (a

179 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

critério subjetivo dele), e que se produza eficiência na arquitetura


enquanto artefato objetivamente utilitário; mas, também, como
representação da imagem da pessoa ou instituição que o objeto
arquitetônico vai representar. Para nós fica a responsabilidade de
atender às demandas objetivas do cliente,45 contudo, acima dos
aspectos comerciais e profissionais, explícita ou secretamente,
está o deleite subjetivo de projetar!
Seja como for, quase sempre temos que aceitar que o projeto
nasce, quer queiramos ou não, amarrado às demandas, ao
“programa de necessidades” com sua lista dos usos a serem atendi-
dos. Entretanto, uma atitude autêntica não se intimida perante
a restrição, seja ela programática, normativa, ou qualquer outra;
ao contrário, ao invés de simplesmente ceder a uma restrição, na
verdade, o processo criativo autêntico aceita o desafio da demanda,
busca envolvê-la, ao invés de se moldar, busca forçar limites sem,
necessariamente rompê-los.
Entretanto, se observarmos bem (o que inclui observarmos
também a nós mesmos no ato de projetar) veremos que, na verdade,
existe um abismo entre a objetividade (ôntica) da “lista de funções”
do programa e subjetividade (ontológica) das “categorias espaciais”
a serem propostas. São como “coisas” que pertencem a mundos
diferentes. A ponte para vencer esse abismo depende do modo de
projetar de cada um e está, por exemplo, em voltar-se às referên-
cias que vêm à memória, a projetos conhecidos, à tipologia, à moda,
um pássaro, uma concha... Enfim, para onde nossa disposição se
volte a remexer os arquivos da compreensão prévia que já trazemos.
O que aqui nos parece importante compreender é que o programa
de necessidades não pode, ou ao menos não deve determinar nada
(ou quase nada) em termos espaciais. Ele nos proporciona uma
direção, enquanto o sentido é dado pelo próprio ato projetual em
si, como um fenômeno autônomo, referenciado de algum modo,
mas livre dentro das infinitas possibilidades que o programa pode
propiciar quando não nos deixamos aprisionar por ele.
Há diversos modos de abordar a criação projetual. Não se
pretende aqui ditar regras ao que deve pertencer ao livre pensar,

45  É verdade que eventualmente arquitetos famosos têm carta branca.

180 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

entretanto, unicamente, o que parece-nos que deveria ser afastado46


é o que se denomina de “plantismo”, ou seja, fazer nascer os espaços
diretamente de uma lista de itens programáticos, por meio de um
diagrama bidimensional com cores e setas etc., onde se articula
esquematicamente as funções, lado a lado, para daí gerar a planta
baixa, empilhar uma sobre a outra e fechar tudo com o “telhado-
-tampa”. Em termos criativos pode se dizer que um projeto assim
já nasce morto. A missão do professor de projeto é mostrar para
os alunos (que geralmente recorrem a esse expediente) que esse,
certamente, não é o melhor caminho.
Sob a rubrica dita “racionalista”, que vê o projeto como o conjunto
de procedimentos técnicos voltados para o atendimento do programa,
pode-se fazer um trabalho honesto e digamos “correto”, no sentido
de atender a expectativas utilitárias. Entretanto, conforme nos
parece, o “correto” não é necessariamente o verdadeiro, e para
um modo de ser autêntico do projeto, o programa não é mais nem
menos que um pretexto.
Além disso, cumpre ainda lembrar que a arquitetura tem uma
temporalidade mais extensa que o ciclo da nossa vida e, portanto,
os usos mudam, a utilidade permanece, logo é mais racional, e
mesmo mais sábio, atender ao conceito de utilidade (“utilitas”),
permanente, que “funções” contingentes.
É, portanto, na verdade, um erro qualificar como “racional” a
ação projetual voltada estritamente para o atendimento do programa,
pois na verdade não se trata de uma ação racional, mas antes de um
raciocínio mecânico. Por outro lado, algo próximo da pura subjeti-
vidade pode levar ao arbitrário, ao individualismo ou ao bizarro.
Nem objetiva, nem subjetivamente, mas na segurança do saber
fazer manualmente, no domínio da técnica, a intuição pode dirigir
a disposição autêntica e a razão poderá emergir livremente no jogo
das possibilidades, deixando inclusive espaço para o irracional,
para o acidental. Aqui nos aproximamos novamente daquilo que
no início dessa seção tentamos fugir, mas que sempre retorna com
a força de uma verdade: a “criação artística” (ou algo semelhante)

46  Embora se apresente correntemente como método quase predominante, e


até pretensamente dito “racionalista”.

181 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

como fundamento e sentido. Vejamos o que dizia Baudelaire sobre


uma questão análoga na pintura:

[...] uma boa pintura, fiel e igual ao sonho que a fez nascer,
deve ser criada como um mundo (grifo nosso). Do mesmo
modo que vemos que a Criação que vemos é o resultado de
várias criações, das quais as primeiras se tornaram sempre
mais completas pelas seguintes, assim também uma pintura,
se trabalhada harmoniosamente, consiste de uma série de
imagens sobrepostas onde cada camada dá mais realidade
ao sonho e faz com que ele escale outro degrau no sentido da
perfeição. Ao contrário, contudo, eu me lembro de ter visto
nos estúdios de Paul Delaroche e Horace Vernet pinturas
enormes não esboçadas, mas parcialmente feitas, isto é,
absolutamente terminada em certas áreas, enquanto outras
estavam apenas indicadas com um contorno preto e branco.
Poder-se-ia comparar esse tipo de trabalho com uma tarefa
puramente manual que deve cobrir uma certa quantidade
de espaço num dado tempo ou com uma longa rota dividida
em muitas etapas. Quando a seção estiver terminada, está
pronta, e quando todo o curso tiver terminado, o artista está
livre da sua pintura. (Arnheim, 1984)

Assim ocorre também no projeto arquitetônico. “Criar mundos”,


como diz o poeta, demanda um tipo de imersão que remete ao
ser-em. Portanto a criação autêntica ocorre, não no sentido ôntico
do estrito atendimento do programa, mas ontologicamente.
Entrar autenticamente no modo projetista pressupõe uma atitude
semelhante à do poeta e do pintor, e ainda que sigamos cumprindo
expectativas de funcionalidade ou demandas de ordem prática para
atender àquilo que os outros esperam de nós devemos sempre preser-
var (ainda que secretamente) o interessante (e envolvente) jogo
das possibilidades que se vivencia no ato da criação de mundos.
A propósito, convém frisar, do ponto de vista da
fenomenologia não há sinônimos, portanto, autenticidade não
é o mesmo que “gênio criativo”. Em seu sentido mais originário
a criatividade não é nenhum “dom especial” ou algo, como se

182 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

diz, “que já nasce com pessoas especiais e que dificilmente pode


ser adquirido por pessoas comuns etc.” A experiência de alguns
anos no ensino de desenho e projeto pode demonstrar, muito
claramente, que a coisa não se dá assim. Obviamente não se pode
ignorar o fato de que há pessoas realmente mais voltadas para uma
disposição criativa. Pode haver uma inclinação, entretanto, a não
ser que se pretenda haver “intervenções espirituais” ou “sopros
divinos”, pode se dizer que a condição de possibilidade, que leva à
busca da atividade criativa é a mesma que pode levar também a
qualquer outra atividade completamente diversa em condições
outras, a partir de diferentes referenciais.

Copiar, derivar ou inventar


Buscando novamente conceitos emprestados da biologia,
parece razoável inferir que, em termos de como criamos a partir
de referências projetuais anteriores, há uma curiosa correlação
entre e “modelo” e o “tipo” arquitetônicos e, respectivamente, os
modos fundamentais de reprodução, “assexuada” e “sexuada” na
natureza.
A analogia serve para fazer ver que o “modelo” é comparável
à reprodução fiel, a cópia ipsis litteris, que se espelha na matriz
com pretensa fidelidade 47 – trata-se exatamente daquilo que,
em linhas gerais, caracteriza a reprodução assexuada onde a
matriz se autorreplica produzindo clones, característica ainda
existente em diferentes espécies, mas predominante nos primeiros
milênios da evolução biológica.
Por outro lado, o advento da revolução sexual do período
cambriano (algo em torno de 540 milhões de anos) propiciou na
chamada “explosão cambriana”, o aumento radical da variedade
das espécies e das possibilidades evolutivas.
Na arquitetura, como na natureza, o modelo geraria a cópia
pouco variável, enquanto o tipo propiciaria a derivação.

47  Sempre com algumas variações.

183 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Portanto, em oposição a cópia pura e simples que reproduz


o modelo, trabalhar com o tipo, derivar, “estar à deriva”, signifi-
caria estar à mercê das possibilidades e, portanto, variar, ainda
que sem necessariamente, subverter a matriz originária.
Em projetos de arquitetura, em termos gerais, a cópia pura
e simples é um esforço vão e, de modo geral pouco inteligente,
como no caso do restauro repristinativo, por exemplo, onde dá-se,
sempre e necessariamente, a cópia inautêntica por excelência.
De qualquer maneira, no fim das contas, no modo autêntico,
o arquiteto pode trabalhar tanto com o modelo quanto com a
cópia e, eventualmente, podemos ser altamente autênticos e
originais aplicando modelos consagrados (lembremos de Antônio
Francisco Lisboa), ou, por outro lado, absolutamente inautênticos
adotando uma pretensa liberdade total sem qualquer referência
em preexistências, apenas porque (os outros) disseram que ser
criativo significa apenas fazer o que se quer e pronto.

Heurística
Num sentido mais estrito, poderia se falar em “método” quando
temos um plano predefinido, com recursos e metas pré-determina-
dos, quando já se sabe de antemão, tanto o que se procura quanto
o caminho para chegar ao resultado. Nos termos de um método
pretensamente racionalista o devaneio da criatividade projetual
é quase uma perda de tempo. Todavia, a partir de uma compreen-
são menos determinista, seria injusto supervalorizar um processo
criativo, digamos, metódico em detrimento do livre devaneio da
criatividade. Na verdade, ambos os modos se complementam e
são igualmente fundamentais em um conjunto de procedimentos
que percorre um ciclo que vem do mundo como demanda, passa
pela caixa preta da invenção criativa e deve retornar à realidade
da técnica comunicável e exequível. Há sempre vínculos determi-
nantes entre a ôntica e a ontologia do projetar.
A heurística é uma arte (não uma ciência) que busca compreen-
der como se dão os procedimentos para resolução de problemas, em
especial quando se desconhece caminho que conduzirá (ou não) a

184 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

uma solução. Assim, ainda que, até o momento, não haja uma teoria
geral que explique projeto enquanto processo criativo, a heurística
(que tem influenciado diversos campos de conhecimento como a
inteligência artificial) pode lançar uma luz sobre as etapas de tomada
de decisão e em estratégias para a concepção projetual.
A busca projetual colocada no carrossel da heurística, “a
arte da descoberta”, leva a uma compreensão essencial do fazer
manual, do intuitivo e do artesanal, ou seja, no processo criativo
por meio do desenho.
O nome, sintomaticamente enraizado no “desígnio”, remete ao
desenho como um fundamento imemorial. A genealogia do desenho,
no conceber e projetar, certamente tem raízes profundas que nos
levariam a hominídeos riscando planos de caça com gravetos na
areia. E ainda que apenas a partir do renascimento haja testemunhos
materiais relativos ao planejamento gráfico, podemos inferir que o
desenho sempre esteve conosco, como um fundamento humano.
Contudo é inegável que, a partir do renascimento, especial-
mente com Alberti, o desenho e o projeto passam a confundir-
-se como busca da concepção projetual.
Em arquitetura, repetimos sempre isso para os alunos, o
desenho traz três importantes fundamentos: primeiro a represen-
tação do visível, no desenho de observação, em segundo lugar a
capacidade de comunicação, maximizada no desenho técnico e,
finalmente, como forma de pensamento, como fonte de criação.
Esses três princípios nunca se dão isoladamente, em estado puro,
pois estão sempre presentes no ato de desenhar, muito especial-
mente no ato criativo, onde o desenho move-se entre perscrutar
o real, mergulhar no possível, emergir ao exequível, retornando
em sua alternância randômica entre os três modos.
A concepção projetual posta em ação pelo desenhar aciona um
processo que se desdobra em mundos interiores, conecta possibi-
lidades que emergem como visualidade num esboço consciente
aqui, ou num risco subconsciente ali, ou ainda no pseudo-acaso
da inconsciência; num jogo, enfim, onde se alternam referências,
inferências e possibilidades, o sim, o não e o talvez. O aparente caos
e uma ordem oscilante confluem por meio da intuição, direcio-
nada por conceitos prévios ou até pelo abandonar-se ao irracional.

185 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Assim costumo dizer aos alunos, podemos, e talvez até devamos


permitir-nos chegar ao absurdo, para depois cortar as asas do
impossível e voltar à realidade do exequível.
O professor Barki traz a questão da Heurística citando Abrahan
Moles:

Sem querer esgotar o assunto, Moles, no texto citado,


examinou um certo número de métodos heurísticos e os
organizou em três grupos fundamentais. O primeiro reúne
os métodos com os quais se apropria e se procura explorar,
de alguma maneira, sistemas, doutrinas ou conceitos já
existentes e consolidados. O esforço da imaginação recai
no emprego de métodos operadores tais como: de aplicação
direta, de mistura, de revisão, de transgressão, de diferen-
ciação, de definição, de transferência, de contradição, de
crítica, de renovação e de deformação para obter outros
sistemas, doutrinas ou conceitos. Exprimem, portanto
meios heurísticos de menor esforço. (BARKI, 2003)

Esse modo de lidar aplica-se, ainda que não estritamente, ao


uso do “modelo” que levaria à cópia, como ocorreu com o sistema
das ordens da arquitetura grega; ou na aplicação das variedades do
“tipo”, característica da arquitetura da Roma antiga. Note-se que
o uso de ambas as matrizes não implica alguma falta de criativi-
dade como se pensa hoje. A criação projetual tem muitos caminhos
possíveis e às vezes a restrição liberta e a liberdade aprisiona.

O segundo reúne os métodos, ditos estruturais, com


os quais se pretende criar ex nihilo, ou seja, apoiando-
-se bem menos que os precedentes sobre o que quer
que seja de existente. O esforço da imaginação recai no
emprego de métodos com um enfoque original tais como:
dos pormenores (pôr em evidência de pequenos detalhes),
da desordem experimental (‘e por que não?’), da matriz de
descobertas (tabela das ‘casas vazias’), da recodificação
(manipulação ‘ao acaso’), de apresentação (passagem de
uma representação a outra), de redução fenomenológica

186 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

(nova visualização) para obter sistemas, doutrinas ou


conceitos inovadores. Exprimem, portanto, meios heurís-
ticos de intenso esforço. (BARKI, 2003)

Parece-nos que o dito “esforço” não seja de fato o caráter que


diferencia os dois primeiros modos posto que ambos podem igualmente
exigir maior ou menor esforço intelectual em diferentes circuns-
tâncias. Também, à primeira vista, poderia se pensar que o primeiro
modo seria objetivo e o segundo subjetivo, mas na verdade seria
também um engano. Na verdade, parece que seriam mais aplicáveis
no primeiro a qualidade de retrospectivo ou rapsódico e no segundo
de prospectivo. Mas de qualquer maneira, ainda não seriam qualifi-
cações completamente satisfatórias porque sempre haverá uma
estrutura de possibilidades prévia como ensina a fenomenologia.

“O terceiro reúne métodos, que poderiam fazer parte


dos grupos precedentes, mas que apresentam, ao lado
de uma natureza generalista, um caráter apriorístico
mais fortemente pronunciado: dogmático, de classifi-
cação, hierárquico, estético e de síntese.” (BARKI, 2003)

Essa “psicogênese” é bastante interessante como uma das


possíveis abordagens para inferir a respeito do modo de ser do
projetar, e pode mesmo ser útil e ter aplicabilidade, por exemplo,
num tipo de “autoanálise” ou “autocrítica”. Mas, convenhamos, alguém
que pretenda dispensar o caminho da intuição para depender da
aplicação analítica dos princípios heurísticos, como efetiva metodo-
logia de trabalho, estará numa situação semelhante ao jovem músico
na conhecida anedota a seguir:

Um dia, um jovem foi visitar um famoso compositor e pediu


conselhos sobre como compor uma sinfonia.
— Quantos anos você tem? Perguntou o compositor.
— Dezoito.
Acho que você é jovem demais para compor uma sinfonia.
Disse a ele o tal grande homem.
— Tente algo mais fácil.

187 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

— Mas você compôs sinfonias quando tinha oito anos,


protestou o jovem.
— “Sim”, concordou o famoso compositor, que era Mozart,
“mas nunca perguntei a ninguém como compô-las.”

Demorar-se no desenho
Os três fundamentos do desenho para a arquitetura: a observa-
ção do visível, a criação do possível e a comunicação do compreen-
sível, repousam na origem da palavra desígnio.
É lamentável que algumas escolas de arquitetura estejam
diminuindo a carga horária de desenho à mão. O desenho livre, seja
no papel ou mesmo numa mesa digital, ainda é e, provavelmente
será sempre, insuperável. Seu principal valor está justamente na
sua imperfeição. Ruskin indicava a beleza do tremido, e observava
que o fazer manual traz a alma do seu executor demonstrando
seu estado de espírito, se ele está feliz ou triste etc. Nós, que
damos aula de desenho de observação para turmas de primeiro
período, já se vão mais de vinte anos, sabemos muito bem que a
alegria da conquista, de conseguir representar algo com perícia,
é uma grande realização pessoal e uma aquisição de poder. Van
Gogh relata, em uma das suas cartas a Theo, que a conquista do
desenho é semelhante à condição de um prisioneiro que tenha
apenas uma colher para escavar sua liberdade e que, aos poucos,
com esforço, dia a dia, obtém sucesso e pode, enfim, experimen-
tar uma incrível sensação de liberdade.
Quando decido desenhar algo que vejo, trago para o domínio
da minha intimidade o que antes era apenas “comum” ou, em
certo sentido, até inexistente. Entretanto todo “comum” espera
sua oportunidade de algum dia não o ser. Quem, por exemplo,
nunca se “afeiçoou a uma simples pedrinha” e a levou para casa,
e a colocou para sempre na estante? As coisas mais simples e
corriqueiras guardam em si, o incomum retraído, até que alguém
venha tirá-la para dançar na existência. Então, qualquer coisa pode
ser uma mensagem na garrafa, aliás, diga-se de passagem, aí está,
por exemplo, o objeto da arqueologia.

188 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

O desenho à mão traz, primeiramente o poder de descoberta,


de revelar. Heidegger já mostrou em “A Origem da Obra de Arte”
(HEIDEGGER, 2010) como os sapatos velhos pintados por Van Gogh
trazem consigo de roldão tudo que é humano.
Mas ainda mais, além de descoberta e invenção, o desenho
possibilita a dominação, que pode chegar até aos limites, no extremo
do ato de dominar. Lembremos as missões exploratórias coloniais
que levavam desenhistas, que retornavam com informações em
desenhos de paisagens, aparentemente inocentes e pitorescas,
mas que na verdade escondiam intenções de dominação territorial.
Poderia se pensar que a fotografia é mais realista etc., entretanto
o desenho apresenta a excepcional vantagem de evitar os rigores
impostos por uma perspectiva estrita, possibilita a seleção do que
se quer ou não mostrar, permite evidenciar relações figura/fundo
com maior clareza ou dar mais peso ao que interessa e menos ao
que não; o que o torna, por exemplo, ainda hoje, quase insuperá-
vel em representação anatômica. Além disso tem o charme que
o caracteriza, a marca individual da personalidade, a expressão,
a originalidade e o estilo pessoal; lembremos, por exemplo os
desenhos de Ruskin (como o frontispício deste livro) que são a
contrapartida gráfica de suas ideias.
O desenho de observação é uma ferramenta muito especial
de compreensão e discurso, além de guardar ainda um certo ritual
de um fazer ancestral em tempos de comandos de voz e toques
digitais. A ação de observar algo, acercar-se ao redor, buscar o
ângulo adequado e pôr-se a desenhar, com tempo, gosto e prazer,
equilibrar as formas e as cores, buscar a proporção e a perspec-
tiva, tudo isso traz para nós o modo mais eficiente de descobrir,
conhecer e apropriar o espaço.
Através do desenho livre, num envolvimento altamente
qualitativo com o espaço podemos nos aproximar do sentido de
lugar, intuí-lo, interpretá-lo, talvez tangenciá-lo. Atualmente o
movimento Urban Sketchers tem resgatado em nível mundial o
ato da observação que a magia do desenho proporciona.
Já na criação a busca do desenho de concepção pode começar
a esmo, por caminhos livres, na lógica oculta do movimento puro,
no gesto, onde, gradativa ou abruptamente, a linha pode abrir

189 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

espaços onde o verbo ser se dá concreta e simultaneamente em


todas as conjugações e tempos possíveis e imagináveis. Como um
caçador furtivo, no primeiro esboço surge algo, descobrimos que
esse algo se assemelha a alguma coisa conhecida, então aceitamos
a semelhança e seguimos na direção, ou rejeitamos e voltamos aos
caminhos na selva em busca da caça, onde tudo pode se dar, até
mesmo voltar ao ponto inicial. Mas eis que algum gesto acendeu
uma outra lembrança, ou vem então a imagem da paisagem local,
ou de repente despenca-se do todo mais absoluto ao mais ínfimo
detalhe... O desenho a mão dá para o arquiteto as ferramentas
da poética. Entretanto, não se pode esquecer, temos também a
boa e velha geometria. Na geometria domesticam-se os impulsos
primitivos, se apazigua o ímpeto do que nasce meio disforme no
primeiro gesto que se desenvolve, evolui, tal qual como se dá
na natureza, nos diferentes modos de evolução e crescimento
que sempre buscam a forma correta e adequada... Contudo, de
repente lembramos que temos um programa de necessidades e
no programa o pretexto para o fazer e o pensar; pois o projeto de
arquitetura deve sempre transitar aquém e ir além do programa.
O desenho técnico, por sua vez, já conquistou o estatuto que lhe
concerne, de clareza e precisão, esse aspecto do desenho, como recurso
de comunicação clara e inequívoca, o aproxima mais da execução que
da concepção e apresentação. A busca de um desenho normatizado
desenvolveu-se a partir do renascimento e avançou especialmente
na escola francesa dos séculos XVIII/XIX até que, finalmente, os
programas gráficos levaram a termo essa tarefa, em especial com
a modelagem 3D, mas principalmente o BIM que, na verdade, já deixa
o mundo do desenho para a outra esfera da representação, como
simulação do próprio fazer. Interessa-nos aqui principalmente o
desenho à mão, entretanto não se pode negar qualidade, e, porque
não dizer, as maravilhas que a técnica pode oferecer.

Mover-se e Sentir, Demorar-se e Ver


O desenho é a abertura para o projeto, contudo, em essência,
o que se busca neste trabalho leva a um caminho que não pode

190 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

se limitar a experiência gráfica, pois o próprio ato de desenhar


projetando e projetar desenhando depende da presença (o Dasein).
Estar dentro e fora, através a ao redor; ver o movimento das pessoas,
sentir os cheiros; ver no amanhecer os recantos aquecidos pelo
sol, ouvir o canto dos pássaros; ver no anoitecer por onde a lua se
mostra e saber da revoada dos morcegos; passar pelos caminhos
e descobrir os cantos de se ficar.
Nossa abordagem metodológica deve seguir o que foi dito acima
sobre os modos de lidar com o espaço mais essenciais, ou seja,
o modo “temporal” no mover-se de maneira geral, mas especial-
mente no caminhar na chãosidade e, também e igualmente, no
modo “espacial”, no demorar-se. Pensamos que lidar com o projeto
coincide com o lidar com o mundo. Conforme já tratado no capítulo
que se refere ao “ser arquitetura”, tal qual como se dá na lida com o
espaço em geral, no caso de interpretar e projetar, os dois modos
ocorrem entremeados, pode-se dizer, juntos, porém distinguíveis.

O desafio do Projeto
Vivemos cada vez mais na condição de seres urbanos,
contudo a grande maioria do que se constrói, ao menos no
caso brasileiro, provavelmente desde sempre, não é produto da
atividade profissional do arquiteto. A cidade se faz a si mesma,
sem nós. Enquanto isso, despejamos anualmente no mercado
brasileiro milhares de profissionais mal preparados, submeti-
dos a um conteúdo programático extenso demais e, portanto,
qualitativamente inviável.
Nossos jovens incautos, cheios de esperança, enfrentam um
mercado perverso onde somos em grande parte dispensáveis,
seja pelo Estado, pelo empreiteiro, ou pelo auto-construtor da
favela, que prescindem muito tranquilamente, e muitas vezes até
com sucesso, da ação de projetistas, lançando mão de modelos
pré-concebidos, cópias de revistas, do Google, ou através de formas
vernaculares mesmo. Some-se a essa constatação, pouco promis-
sora para a categoria, outro problema que se apresenta já com
bastante clareza que nos atinge de outra direção e que poderá

191 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

lançar uma pá de cal na profissão. A inteligência artificial potencia-


lizará em pouco tempo o que já é uma ameaça e que eliminará,
muito em breve, diversos postos de trabalho.
Não estamos livres da extinção, pois com a tecnologia do
processamento de informação que avança pode-se reunir, proces-
sar e combinar livremente dados de projetos em geral por tipolo-
gias, estilos ou autores famosos. Então, o construtor, ou mesmo
o consumidor final, sempre apressados, terão em mãos, a baixo
custo, toda a cultura arquitetônica de todos os tempos e lugares
do mundo na tela do celular, em seguida o programa gráfico fará
o desenho que será impresso em 2D e 3D, e, finalmente, um dos
nossos alunos, dos poucos que estiverem empregados, mal-em-
pregados, assinarão o projeto que não fizeram. Até o dia em que
a própria aprovação de projeto na municipalidade também será
processada por um avatar na internet. Assim estamos da obsoles-
cência à extinção!
Portanto, primeiramente, como professores, devemos fazer
uma mea-culpa e perguntar: quando ensinamos projeto estamos
levando nosso aprendiz à busca da autenticidade verdadeira? Que
é isso, a autenticidade? Talvez uma disposição inconformista que
caracteriza algumas pessoas, os artistas, por exemplo, ou será
um fundamento da nossa condição no mundo? Seja como for já
temos algumas certezas: a inteligência real (aquela que pulsa em
sinapses) quando enrijecida pela repetição mecânica funciona à
maneira da inteligência artificial, junta dados e os combina como
se fossem peças do vestuário, contudo aquilo que é uma proeza
no computador em nós torna-se a própria desinteligência.
É necessário reverter esse processo que está em curso. Quem
dá aula de projeto conhece a dificuldade que existe em convencer
os alunos a uma busca autêntica enquanto eles, apertados pelos
prazos e atraídos pelos modismos, em sua grande maioria, caem
no atalho do chamado “plantismo” e outros funcionalismos que
transformam o ato projetual numa sucessão de procedimentos
restritivos, enfadonhos, sem o brilho da descoberta. A facilidade
da aplicação de materiais nos programas gráficos geralmente é
o último ato de um percurso monótono, quando se dará escolha
final: o revestimento da “caixa”: Brise, ripado, grelha, chapa etc., etc.

192 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Não! Falta ainda a estrutura, “esse acréscimo”! Assim, se seguirmos


formando profissionais que trabalham com o método projetual
desinteligente seremos presa fácil da inteligência artificial, pois
com certeza, o que é bom lá é ruim aqui e o que é bom aqui não
existe (ainda) lá!

O “Neourbanismo”48
(um programa de necessidades)
François Ascher (1946 – 2009) propõe em um pequeno livro
de cem páginas, apresentado como uma espécie de manual, uma
interessante proposta de abordagem programática para o urbanismo
que vem ao encontro da compreensão e sentido do projeto que
aqui se busca. Mais uma vez aqui lembraríamos o poeta Mario
Quintana sobre o fato da ideia de outro autor nos pertencer só
por gostarmos dela. É esse exatamente o caso.
Para Ascher a primeira modernidade, do tipo comunitário,
teria iniciado ainda na idade média – A segunda se deu a partir da
industrialização fordista – A terceira, nominada “sociedade hipertexto”,
está em processo. O conjunto se caracteriza, pelos tópicos a seguir:

1. A metapolização: as cidades mudam de escala e forma:


O processo de urbanização e crescimento das cidades se
mantém sob novas formas.
O crescimento interno das aglomerações por extensão e
adensamento, é substituído por um crescimento externo,
ou seja, pela absorção na sua própria zona de funcio-
namento cotidiano, de cidades, bairros e aglomerações
cada vez mais distantes.
2. A transformação do sistema de mobilidade urbana:
A globalização e a metapolização se nutrem das tecnolo-
gias de transporte e de comunicaçãoe estimulam seu
desenvolvimento. A terceira revolução urbana não gera,

48  Esse tópico limita-se ao fichamento de Ascher (2010).

193 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

portanto, uma cidade virtual, imóvel e introvertida, mas


sim uma cidade que se move e se telecomunica.
Contrariamente ao que se teme o se espera, essas tecnolo-
gias não abalam a concentração metropolirtana, nem
substituem as cidades reais por outras virtuais.

3. A recomposição social das cidades:


Exigência de autonomia torna-se assim uma obrigação,
na medida em que a sociedade se organiza baseada nessa
individualização, com as seguintes características:
• Individualização do espaço-tempo;
• Crescente exigência de autonomia e velocidade;
• Os meios de transporte individuais;
• Os objetos portáteis e, antes de tudo, o celular;
• ‘Onde quero, quando quero, como quero’.

4. A redefinição das relações entre interesses individuais,


coletivos e gerais:
• Vínculos sociais mais frágeis, menos estáveis, porém
muito mais numerosos, variados, conectados nas
múltiplas redes da sociedade hipertexto.
Mudam:
• A evolução das necessidades;
• Formas de pensar e agir;
• Vínculos sociais;
• Novas tecnologias.

A partir dessas mudanças o autor propõe 10 princípios para


o novo urbanismo (neourbanismo) conforme se segue:
1. Elaborar e manejar projetos em um contexto urbano
incerto;
2. Priorizar os objetivos em relação aos meios;
3. Integrar os novos modelos de resultados;
4. Adaptar as cidades às diferentes necessidades;
5. Conceber os lugares em função das novas práticas sociais;
6. Agir em uma sociedade fortemente diferenciada;
7. Requalificar a missão do poder público;

194 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

8. Responder à variedade dos gostos e demandas;


9. Promover uma qualidade urbana nova;
10. Adaptar a democracia à terceira revolução urbana.
O neourbanismo é, portanto:
• Um urbanismo de dispositivos: trata-se menos de
fazer planos do que de aplicar dispositivos que os
elaborem, discutam, negociem, que os faça evoluir;
• Um urbanismo reflexivo: a análise já não precede a
regra e o projeto, mas está presente permanentemente.
O conhecimento e a informação são produzidos antes,
durante e depois da ação. Reciprocamente, o projeto
torna-se plenamente, um instrumento de conheci-
mento e de negociação;
• Um urbanismo de precaução, que dá lugar às contro-
vérsias e que permite meios de considerar as externa-
lidades e exigências do desenvolvimento sustentável;
• Um urbanismo convergente: a concepção e a realiza-
ção dos projetos resultam da intervenção de uma
multiplicidade de atores com lógicas diferenciadas
e combinadas entre si;
• Um urbanismo de reativo, flexível, negociado, em
sintonia com as dinâmicas da sociedade;
• Um urbanismo multifacetado, composto de elementos
híbridos, soluções múltiplas, redundâncias, diferenças;
• Um urbanismo de estilisticamente aberto que, ao
separar o desenho urbano das ideologias urbanísti-
cas e político culturais, dá lugar a escolhas formais
e estéticas;
• Um urbanismo Multissensorial, que enriquece a urbani-
dade do lugar. (ASCHER, 2010)

Mergulho no mundo
A norma NBR 13532: Elaboração de projetos de edificações
– Arquitetura (1995). É um texto injuntivo conciso, como uma
norma técnica deve ser. Prescreve (escreve antes). É, sem dúvida,

195 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

eficaz, está corretamente elaborado. Descreve adequadamente


os serviços necessários, determina etapas, prevê contratempos
etc. Não é necessário acrescentar nada ao que ali vai, contudo, o
assunto que vamos tratar aqui não é, e nem poderia ser mencio-
nado na norma.
Tentaremos analisar, ou melhor, ver o que pode acontecer
por dentro do fazer projetual, fora do que caracteriza a prescri-
ção que a norma preconiza e que tem servido como fundamento
para o que ensinamos a nossos alunos no projeto de arquitetura
e urbanismo. Obviamente não temos a pretensão de determi-
nar uma maneira certa, pois o “por dentro” não é normatizável.
Como dizemos partimos da premissa de que a norma é correta e
adequada, contudo, conforme Heidegger nos ensina:

[...] para ser correta, a constatação do certo e exato não


precisa descobrir a essência do que se dá e apresenta. Ora,
somente onde se der esse descobrir da essência, acontece
o verdadeiro em sua propriedade. Assim, o simplesmente
correto ainda não é o verdadeiro e somente este nos leva
a uma atitude livre com aquilo que, a partir de sua própria
essência nos concerne. (HEIDEGGER, 2012)

É evidente o sentido da palavra “projeto”: projetar é lançar! A


palavra, mesmo na forma de substantivo, retém inquietamente a ação.
Mas enquanto no projeto inautêntico traçamos, no tal
lançamento, um arco balístico previsível que se aplasta mais ou
menos ajustado ao molde do provável, projetar autenticamente, ao
contrário, é um mergulho no mundo, onde os existenciais equipri-
mordiais da disposição e da compreensão promovem uma aventura
na qual nos deixamos levar.
Assim, imitando o milagre da criação, o “projetar autêntico”
acontece em um movimento, digamos, espermatozoidal, convicto
e incerto, penetrando sempre camadas desconhecidas. Então o
projetista, em sua intrépida aventura de ir e seguir indo, escava
lâminas de sombras, por entre as quais se escondem conste-
lações inexploradas que as vezes, no caminho, insinuam halos
luminosos que vão crescendo ou que novamente se diluem no

196 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

escuro. A busca se completa, ao menos provisoriamente, num


facho de luz que surge, inunda o túnel escavado, e torna possível
o improvável, faz ver o que antes não havia. Mas então, a “disposi-
ção”, esse moto perpétuo que nos tira o sono, desgarra-se de novo
e mergulha novamente na escuridão, como um peixe escorrega-
dio que nos escapa das mãos, e segue em sua teimosa protensão,
abrindo novos tuneis. Atrás da “disposição”, que escava sem parar,
segue a “compreensão”, um tanto incrédula e relutante, trazendo
mapas e apontamentos, ideias e teorias pois, diferente da “disposi-
ção”, que nunca sossega, a “compreensão” deseja acampar, abrir
clareiras, fazer um fogo de chão e talvez meditar um pouco. Ao
final a “compreensão” dá um basta, e a “disposição” pode enfim
sossegar... Ou não.
Pode parecer ao espírito mais prático que este devaneio
seja arbitrário, pouco científico, que melhor atendesse a uma
animação da Disney que a um conceito tomado com seriedade.
Contudo, pretende-se que sirva para “mostrar”, o mais precisa-
mente possível, antes até de explicar, o “mergulho no mundo”
que é o fenômeno de projetar. Além disso, essa ideia essencial,
“do que se lança”, vai ao encontro da temporalidade ecstática,49
que nos define enquanto ser-no-mundo. Então, é possível que o
projetar reverbere o próprio drama da vida, de vivermos sempre
“caindo pra frente” no desafio de desaguar entre o “sim”, o “talvez”,
o “quase” e, sempre finalmente, o “não”.
Portanto, e talvez até principalmente, projetar no modo autêntico
mostre uma presentificação do desafio de nossa própria condição
existencial, com a vantagem de que, ao menos aqui, no projeto,
o fim não seja a morte, mas a vida que vai preencher os espaços
projetados. Quem sabe se talvez, por isso mesmo, seja tão prazerosa
a aventura do projeto, um vício que produz endorfina. Desbraga-
damente alegre, moderadamente sofrido e sutilmente assustador.
A criação projetual, para ser autêntica, não pode deixar de ser
um processo fenomenológico, um mergulho no mundo onde se
entretece a trama das significâncias. O projeto se abre e se fecha
enquanto espaço, forma e matéria, mas se constitui como experiência

49  Ver capítulo 1 sobre a temporalidade.

197 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

de vida e sentido de lugar. Não há uma sequência lógica para os


existenciais da disposição e compreensão no modo projetual, pois a
lógica da intuição é livre, não é possível descrever na sua plenitude
um fenômeno que é único e apenas pode ser vivenciado e, por
conseguinte, não pode ser ensinado, mas apenas aprendido.

Projeto no modo fenomenológico


Entendemos que as diferentes maneiras de projetar que giram
em torno do subjetivo versus objetivo são modos possíveis, muito
usuais até, porém deficientes, pois não estão voltados ao fundamento
do projeto que está, segundo nos parece, no tipo como fenômeno
e na forma como logos, não apenas por uma escolha, mas como
condição necessária, numa pretensa “hermenêutica da factici-
dade” do projeto conforme se propõe aqui.
Projetar no modo fenomenológico é reconhecer que sempre tudo
se dá na presença, através da direção e da distância, no mover-se
e no demorar, com desdobramentos nos referenciais. Significa
estabelecer a compreensão daquilo que se vê na forma,50 e daquilo
outro que se sente de modo subjacente, embora sempre primordial,
no uso. É também dispor da razão intuitiva e da intuição racional
para mover a disposição do projetista no “vai e vem randômico”
entre o “mínimo múltiplo comum” da circunvisão, até os limites
da paisagem ao longe e, por outro lado, no “maior divisor comum”
do espaço, até as filigranas da materialidade, ou seja, no perto.

Projeto e Lugar
Projetar os espaços em seus limites e desdobramentos, imaginar
e materializar a forma e a matéria nos lugares onde se vive, se
trabalha, por onde se caminha e se fica; planejar e executar, enfim,
o cenário da vida cotidiana requer conhecimento técnico. Mas

50  A forma considerada no “campo expandido” do fenômeno e não meramente


através do visibilismo.

198 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

também demanda a intuição das relações das pessoas com os


espaços a partir da nossa própria experiência, ou mais especifi-
camente, o ser-em, e, principalmente, entre as diferentes pessoas,
o ser-com, num desenvolvimento que vai sempre além do estrita-
mente arquitetônico e repousa na esfera do urbano e sua complexa
rede de referências.
O projeto deve então acontecer no modo da compreensão
daquilo que se esconde na essência das tipologias e no discurso
da morfologia. Mas também, igualmente, na disposição do sentido
de lugar, expresso em sua manifestação mais perceptível por meio
da vitalidade.
Entretanto, conforme já indicado acima, a vitalidade não
meramente um dado quantitativo relativo à presença de pessoas,
mas propriamente aquilo que emana do lugar, o modo da sua
manifestação, o aberto por onde o lugar se mostra.
Assim, em sua abertura, no seu mostrar-se, o lugar emite o
brilho da sua luz para espaço vivido, onde a vitalidade se mostra.
Desse modo, o que vem a nós é sempre um reflexo, e não a coisa
propriamente, que antes se insinua a partir da sua essência oculta.
Para nós, essa essência do lugar só pode ser acessada na disposi-
ção do logos, ou, por outro lado, e talvez em sua plenitude, no
demorar-se, no que silencia.
Portanto, reiterando, fazemos projeto com ímpeto criador,
mas com humildade. Contudo, seguindo de perto o geógrafo David
Lowenthal (1923 - 2018), não acreditamos que esteja entre as atribui-
ções do arquiteto a criação de lugares. É uma tarefa que pertence
ao mundo. Cabe a nós no máximo propiciar, mas também salvar,
mostrar, e deixá-lo seguir em sua vigência.
Oculto na lição de moral que nos deixa a fábula da galinha
dos ovos de ouro está o fundamento do cuidado, o lugar deve ser
objeto do cuidado, ou, principalmente, e na maioria dos casos,
deve-se deixá-lo em paz. A fábula nos ensina que “quem tudo quer
tudo perde”, mas, essencialmente, pode-se dizer que, às vezes,
“fazer é não fazer e não fazer é fazer”.
A lugaridade, apesar da sua concretude, nos escapa, tem vida
própria, pode se apresentar ou não. Pode jamais se dar onde parece-
ria certa, e brotar espontaneamente onde menos se esperasse.

199 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Já no caso dos espaços a questão é diferente! O espaço, embora


também apresente seus desafios, seus velamentos, 51 dá-se, na
verdade, como o “apanágio” do arquiteto, como aquilo para o que
estamos aptos, e mesmo ávidos, no trabalhar a tipologia, a forma,
matéria, os limites e as possibilidades.

Os parques de bairro ou espaços similares são comumente


considerados uma dádiva conferida à população carente das
cidades. Vamos virar esse raciocínio do avesso e imaginar
os parques urbanos como locais carentes que precisem
da dádiva da vida e da aprovação conferida a eles. Isso
está mais de acordo com a realidade, pois as pessoas dão
utilidade aos parques e fazem deles um sucesso, ou então
não os usam e os condenam ao fracasso. (JACOBS, 2011)

A Busca de um caminho metodológico


Daqui para a frente cremos poder considerar que nosso objeto
de trabalho esteja, há esta altura, definido. Portanto, buscamos a
seguir um caminho para o projeto no modo ambi-êntico.52 Demos
adeus ao tombamento historiográfico e consideramos o restauro
em termos restritos, no que diz respeito ao aspecto “histórico-ar-
tístico”, mas, ao mesmo tempo, abrangentes, pois vinculando o
conceito de reintegração à circunvisão, a partir de totalidades mais
abrangentes o possível e fazendo sempre o caminho do urbano
para o arquitetônico, de maneira que toda arquitetura deixa sua
condição de “coisa” contra o pano de fundo do chamado contexto
e passa a ser “o entorno do entorno”.
O lugar, que estancia e arruma os espaços, apresenta-se sempre
numa contingência potencial que, pela força e brilho, persiste
teimosamente, mas, ao mesmo tempo, sua invisibilidade torna-o
frágil e facilmente negligenciável. Negligenciar o lugar leva-nos

51  Em especial no déficit de compreensão daquilo que se esconde nas aparências


do visibilismo.
52  O ente ambíguo que une o Dasein e o lugar e cujo ser é a “quadratura”.

200 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

a afastá-lo, afastado as intervenções sucessivas soterram o lugar


e apagam-lhe o brilho da vitalidade.
O cuidado aproxima os espaços do lugar, o esquecimento, por
seu turno, afasta. Mas mesmo soterrado pelo esquecimento, ou
seja, em meio à desagregação da unidade originaria. Ainda estará
lá o lugar, cada vez mais retraído, aguardando pelo chamado de
quem tem olhos para ver aquilo que, muitas vezes, mal se insinua.
Dentro do jogo das possibilidades, em nosso modo de ser, o
projeto no modo fenomenológico desconhece o edifício como um
ente, senão como parte do ambi-ente urbano, a partir da experiência
do lugar, nos modos espacial e temporal e voltado para a circunvisão.
Desconhece também o tombamento como medida restritiva de
caráter historiográfico (ilusoriamente imobilizante) e a restauração
do voltar ao que era (cenográfica e reconstitutiva) que caracterizam
a visão da historiografia da arte. Afasta-se, portanto, a abordagem
dirigida para o passado que caracteriza a disposição do “histórico e
artístico”, voltando-se a uma compreensão mais originária, essencial-
mente histórica e artística, mas no sentido existencial.
Pretendemos propor, a seguir, o que talvez possamos chamar
um ensaio ou um caminho metodológico. Ir além disso seria por
demais pretensioso.
Entretanto, apesar do aporte teórico fenomenológico que pauta
este trabalho, neste ponto, finalmente, teremos que nos render
ao mais puro empirismo e afirmar, com certeza, que qualquer
“metodologia” que possa a vir a se propor a partir daqui, só pode
conquistar este título por meio de sua aplicação na realidade. Assim,
entendemos que este esboço metodológico teria que aguardar seu
teste em campo para buscar, efetivamente, o status de “método”.

Tipologia e Morfologia
como existenciais primordiais
O agrupamento por semelhança é um princípio universal, um modo
de tentar organizar para entender. Na história das ciências naturais
há diversos exemplos, como a organização da tabela periódica que
levou à compreensão do universo da química, ou ainda o monumental

201 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

legado de Lineu que, através da classificação dos seres vivos, formulou


uma ôntica das formas vivas e pavimentou um caminho generoso
para a descoberta ontológica da teoria da evolução.
Pensamos que, analogamente, o fundamento primeiro da arquite-
tura repousa no binômio tipologia-morfologia. Assim, para nós,
Quatremère de Quincy trouxe um fundamento para a compreensão
do ser arquitetura. Contudo, por outro lado, ao nos voltarmos para
o estudo da tipologia (seja de criaturas vivas ou da arquitetura) o
modo pelo qual compreendemos é o estudo da forma, a compara-
ção da semelhança e da diferença, ou seja, o acesso à tipologia se
dá por meio da morfologia que é um legado de Camilo Sitte.
Parece-nos que enquanto disposição e compreensão o
“tipo-logos”, ou seja, a essência utensiliar e o correspondente
modo de compreendê-la são complementares e são igualmente
primordiais no estudo da forma urbana. Portanto o tipo arquitetônico
se apresenta para nós por meio do uso, no ato de vivenciar a
espacialidade, e é compreendido hermeneuticamente na sua
manifestação formal.

Existencial do tipo como fenômeno


Do ponto de vista mais estrito da teoria o estudo da tipolo-
gia é entendido a partir de determinadas características formais,
espaciais, figurativas e de uso que reúnem objetos arquitetônicos
em categorias formais ou estilo de época, podendo também caracte-
rizar uma moda ou tradição decorrente de hábitos ou costumes.
Para os cariocas, por exemplo, o sobrado eclético de fins do
século XIX é bastante “típico”. E ainda que, em termos gerais, a
palavra “sobrado” ou “assobradado” possa designar qualquer casa
genérica de dois andares, a expressão remete principalmente ao
conceito original da edificação antiga, da qual, provavelmente o nome
deriva e que pode ser definida como casa antiga com cheiro53 (como

53  Recordo de passar um dia em frente a um sobrado no catete, senti o cheiro


da casa da minha avó e fui, por um momento, lançado num túnel do tempo ins-
tantâneo. É impressionante como os cheiros têm o poder de nos submergir nos
arquivos da memória!

202 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

um vapor sulfuroso que emana do solo aprisionado no porão) 54


e atmosfera característicos, um tanto rústica e encarquilhada,
apertada no lote, às vezes com recuo, quase sempre com quintal
retentor de humidade, em geral com dois ou no máximo três
andares, paredes externas portantes e internas em taipa, estrutura
de madeira, telhado de quatro águas, platibanda, cores variadas,
modinatura em estuque etc., tudo enquadrável pela “história dos
estilos” mas vivenciado essencialmente como lugar, matéria e
forma, no mover-se e no demorar.
Diferente da aplicação do “modelo” onde se busca a semelhança,
o “tipo” volta-se à similaridade e se apresenta, não a partir da
cópia, mas, ao contrário, por meio da variação. Assim a tipologia
pode ser uma importante ferramenta do ser com urbanístico, pois
a partir de uma ideia geral, um tanto vaga e flexível, pode-se obter
algo bastante desejável ao urbanista: o controle sobre o porvir do
projeto urbano juntando as vantagens da unidade no todo, com
a liberdade na parte. Nos primeiros paradigmas do urbanismo
moderno em Haussman ou Cerdà, o uso da tipologia garantiu a
unidade e, portanto, a qualidade proporcionada pela coesão do
conjunto (lembremos que, conforme Gordon Cullen nos ensina,
a beleza da cidade se dá pela repetição de elementos). É evidente
que a unidade tipológica confere aquela identidade visual que
marcou definitivamente Paris e Barcelona.
Também em restauração de conjuntos urbanos o uso da
tipologia é reconhecidamente útil na reintegração de perdas
num conjunto mais ou menos uniforme de edificações, quando
se pode complementar lacunas sem recorrer à mera reconstru-
ção por meio de cópias. É sempre citado entre os restauradores o
trabalho de restauro do centro histórico de Bolonha, no final dos
anos 60 do século XX, onde usou-se a ferramenta da tipologia.

54  Tenho pensado que esse cheiro característico dos velhos sobrados talvez pro-
venha, ao menos em parte, do acúmulo dos fragmentos de pele e cabelos que as
pessoas deixam (ao fim de uma vida seriam provavelmente quilos/pessoa) e que vão
se acumulando nos porões ao longo dos anos. Depositados junto ao solo emanam
vapores de enxofre. Se for isso mesmo trata-se de um tipo de “permanência das
pessoas”. Possibilidade bastante interessante que pode esconder, entre outras coisas,
quem sabe, características étnicas, heranças de cheiros tribais, ou outros devaneios...

203 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Argan e Aldo Rossi entre outros autores a partir dos anos


sessenta do século XX contribuíram para a retomada do estudo da
tipologia após a onda modernista que a negligenciou (à maneira
de le Corbusier) mas que, por sua vez, tentando negar a tipolo-
gia do urbanismo proveniente da escola francesa do século XIX
terminou, na verdade, por proporcionar novas tipologias para o
arsenal urbanístico subsequente.
Entretanto além de tudo isso está aquilo que vem antes. Aqui,
para nós, o tipo é mais, é um fundamento, é a essência do ser
arquitetura que remonta aos primeiros assentamentos humanos,
vai até às obras “hightech” do momento presente e seguirá sempre
permeando toda manifestação arquitetônica. No tipo arquitetô-
nico convergem o fazer e o usar. O fazer, no sentido da lida de
conceber e construir; o usar na experiência de vivenciar a arquite-
tura no que ela tem de usual, no sentido mais profundo que se
oculta na enganadora obviedade do cotidiano. Não é, portanto,
difícil fazer uma associação direta entre o aspecto utensiliar da
arquitetura manifestada no tipo, ou seja, enquanto fenômeno, e
aquilo que Heidegger indica para o ser do utensílio que se dá, em
essência, no manuseio.
Essa essência encontra uma curiosa ontologia em Quatremère
de Quincy, no devaneio da caverna, da tenda e da cabana. Propomos
aqui que os sentidos desses três modos de ser da arquitetura são
existenciais: desdobramentos do existencial fundamental do tipo.
Todos três igualmente originários e fundantes na essência da
constituição e da serventia da arquitetura:

Tipos fundamentais
Quatremère de Quincy estabelece uma relação entre as etimolo-
gias dos termos tipo e caráter. Tipo deriva do termo grego typos, no
sentido de gravar ou imprimir. Caráter, do grego characteer, traz
o significado de marca e de traço distintivo [...] um verdadeiro tipo
possui caráter próprio, e este permanece impresso em sua forma.
Tipo, do grego Typos, significa matriz, impressão, molde, figura
em relevo ou em baixo relevo” e distingue-se do modelo, do latim

204 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

modellum, trasladado às artes através do italiano modello, que


implica em uma “cópia literal” e possui demasiadas conotações
empíricas, físicas e miméticas. O tipo é a ideia geral por trás da
aparência individual do edifício, uma forma ideal, gerada de infini-
tas possibilidades, da qual muitos edifícios dissimilares podem
derivar. Distingue-se do modelo, objeto específico que pode ser
copiado identicamente.

Cada um dos principais edifícios deve encontrar em sua


destinação fundamental, nos usos que lhe concernem, um tipo
que lhe é próprio. A arquitetura deve tender a se conformar,
da melhor forma possível, a estes tipos se quer imprimir, a
cada edifício, uma fisionomia particular. É da confusão entre
estes tipos que nasce a desordem tão comum que consiste em
empregar indistintamente as mesmas ordenações, disposi-
ções e formas exteriores em monumentos destinados aos
usos mais diversos. (PEREIRA, 2008)

O tipo, ou aquilo que é típico, se dá a partir de uma matriz.


Quatremère de Quincy encontra três caracteres fundamentais,
três tipos básicos na arquitetura e, embora possam ser encontra-
dos em conjunto, cada um deles provém de uma matriz distinta:
a caverna, a tenda e a cabana. É verdade que seu devaneio atende
a um programa que tem por finalidade conferir autonomia e
pedigree à linhagem da arquitetura clássica grega, pretensamente
a herdeira da cabana original. Mas também é verdade que esta
tripla designação é por demais atraente para ser simplesmente
deixada de lado. Não podemos deixá-la passar sem examiná-la
com alguma atenção. Para nós o arqueólogo e esteta do século
XVIII ensaia uma fenomenologia da arquitetura a partir de um
estudo das modalidades do fazer e do usar. Pensamos aqui que
se pudermos entrar na questão da tipologia a partir da proposta
do mestre, daquilo que ela possibilita como revelação, ao invés
daquilo que ela restringe, talvez possamos encontrar a ontologia
do tipo arquitetônico naquilo que interessa ao projeto.
A caverna que é, para Quetremère, o modo de ser mais
primitivo (para nós é equivalente aos outros dois) manifesta-se

205 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

essencialmente no escavar, na constituição da arquitetura por


subtração e acumulação. Em termos da historiografia (Quatremère
era arqueólogo) está associada à arquitetura egípcia, em especial
ao hipogeu, à mastaba e à pirâmide. Assim a arquitetura da caverna
está nos exemplos mais explícitos de templos escavados na rocha
de diversas culturas, mas também, em seu sentido mais univer-
sal, na arquitetura de terra, no iglu, na cúpula, na abóbada de
alvenaria e na alvenaria em geral; na matéria construída em
torno, no modo de penetrar e se envolver no solo que é retirado
do chão, desfeito e recomposto sobre e ao redor; o modo caverna
é unilateralmente voltado para dentro, nega o exterior, é côncavo,
uterino. Em sua versão industrial a caverna está no concreto
armado. A caverna se estrutura pela força bruta da compressão.
A tenda, por outro lado, é esquálida, descarnada, epidérmica,
quase imaterial, envolve sem separar de maneira consistente o
dentro do fora, faz-se com a pele dos animais, com a pele dos
vegetais (as folhas) ou com o tecido. É uma extensão da roupa
ou a roupa compartilhada. É o modo de construir minimalista,
intransformado. O fundamento da cabana está na articulação dos
nós, em constituir o esqueleto para sustentação da pele que não
pode consigo própria. Modernamente está na “curtain wall”. A
tenda se faz pela força da tração.
A cabana, segundo Quatremère, está na origem da arquite-
tura grega, a forma de construir racional por excelência, analítica
em seu modo de juntar coisas de diferentes naturezas; ortogonal
por necessidade e por sua constituição material; une elementos
da tenda e da caverna tirando de cada uma dessas formas originá-
rias aquilo que elas têm de mais eficiente. A cabana é ambiva-
lente espacialmente, em termos de conformar ao mesmo tempo
o dentro e o fora. Explora todas as forças no desafio da técnica e,
portanto, é o mais essencialmente arquitetônico dos modos de
ser da arquitetura.
Quatremère de Quincy mostra, aos que ouvem com atenção,
que há um timbre particular que emana em cada tipo fundamen-
tal e faz vibrar no mesmo tom o simples e o requintado, o modesto
e o suntuoso, ressoando nas fibras na intersubjetividade e se
mostrando antes no modo de habitar (no uso) e, secundariamente,

206 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

na forma (enquanto interpretação). Quem projetar sem o estudo,


ou ao menos o sentido originário e intuitivo do tipo, será um mero
copista, preso à objetividade; ou estará perdido em torno do próprio
umbigo, atado a subjetividade.
Sem negligenciar o caráter ôntico do tipo urbano e arquite-
tônico, onde gira a esfera do autorreconhecimento e da ação
do arquiteto enquanto técnico, pensar a arquitetura e o urbano
enquanto fenômeno é, em primeiro lugar, voltarmo-nos à tipolo-
gia no sentido existencial, ou seja, na “linguagem mais essencial”,
a partir da essência que repousa nas relações utensiliares da
arquitetura. Significa compreender a relação mais simples e direta,
e por isso mesmo, a mais misteriosa, da vivência do cotidiano
que se oculta por meio da sua expansão. O reconhecimento
deste fundamento primeiro que repousa no caráter do “utensí-
lio arquitetura” nasce, enquanto tal, a partir de experiência de
habitar, ou, melhor dizendo, naquilo que é habitual. Entretanto,
o habitual revela-se mais claramente não na sua manifesta-
ção cotidiana em que, na verdade, se esconde, mas antes na
ruptura.55 Assim, o habitual vibra numa espécie de baixa frequên-
cia contínua cuja constância amortece a presença, tal como
acontece com um ruído persistente do aparelho de ar-condi-
cionado que, ligado, permanece refrescando enquanto deixa de
ser ouvido. O “baixo contínuo do tipo fala na relação essencial
entre corporeidade e ambi-ente, sedimenta-se na tempora-
lidade e nas diferentes camadas do aqui, do ali e do acolá, na
proximidade e na distância, até o abismo dos limites do ser, na
constituição do mundo.
O fenômeno da presença (Dasein) dá-se como constituição
originária a partir da manualidade, no que se refere ao utensílio
manuseável; a espacialidade da arquitetura em especial, dá-se
(conforme nos parece) também no “podoseio” (o manuseio dos
pés), em mover-se “no entre” da espacialidade, para constituir a
espacialidade mais própria e fundamental que está no fenômeno.
A espacialidade do visibilismo é secundária, desdobra-se a partir

55  A angústia momentânea de acordar do sono num lugar inabitual, que todos
já experimentamos, é um exemplo claro.

207 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

daquela outra que poderíamos chamar de operacional, mais


originária e essencial. No caminhar irradia-se a disposição do
aproximar e distanciar e, sem solução de continuidade, no manuseio,
a direção e a distância.
Estamos aqui atendendo ao chamado de uma busca por
sentido, mas isso é uma disposição, uma escolha. Podemos, por
outro lado, ignorar completamente o sentido das coisas e irmos
levando a vida a partir do que se apresenta na aparência, no dito
visibilismo, ou seja, a partir da ôntica (interpretações das coisas
em geral) e ignorar o ser (aquilo que as coisas são - a essência). É,
pois, exatamente isso que temos feito com a arquitetura mecani-
cista que se afasta da vida e obstrui o sentido de lugar.
Dá-se assim também com nossa visão de natureza, a qual
estamos depredando irreversivelmente, por ser vista em sua ôntica,
como recurso ou enquanto obstáculo.
Ao longo de nossa história perdemos a compreensão do sentido.
É, pois, justamente o sentido que a fenomenologia busca resgatar
e que tentamos aqui perseguir.
Assim (diria ao aluno de arquitetura), em termos práticos,
para trabalhar com o tipo (antes de tudo aquilo que a boa técnica
determina) projeta-se com atenção ao tipo por meio da compreen-
são interpretativa, mas também com a intuição, com a saudade,
com as lembranças da casa da avó, com as reminiscências. Mas só
isso ainda não basta. É necessário viajar pelo país e pelo mundo
e conhecer as variedades dos tipos, e seguir sempre na disposi-
ção da pesquisa, pois o projetar para frente da possibilidade que o
projeto é, surge, em sua condição ideal, da saudade e da expecta-
tiva, do brilho da presença de tudo que vem até nós e nos afeta,
mas, principalmente, do desafio que está na possibilidade de
ocupar o ser-com do urbano com o ser-em do arquiteto autêntico.
Lembrando que a autenticidade, conforme aqui entendida, está
fundamentada, referenciada e acompanhada, necessariamente,
pela sabedoria da reverência e da humildade.
As ferramentas do tipo se guardam, então, no baú da memória,
usual e visual, na referência do tipo individual e cotidiano, do
estudo do tipo em suas variedades, na diversidade e, também,
nas particularidades de vivenciar a cabana e o palácio.

208 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Tipo como fenômeno vivido – um exemplo


Falemos mais do tipo característico da Cidade do Rio de Janeiro
que, infelizmente, apesar de todas as legislações de proteção, ou
mesmo em virtude delas, a cada dia tem preciosos exemplares
derrubados ou deformados em sua matéria, forma e contextuali-
dade. Falemos do sobrado eclético mais comum, esses monumen-
tos da cotidianidade, construídos em torno do final do século XIX/
XX. Aquelas típicas casas, como a casa da minha avó.
Como dizia Bachelard, “o espaço guarda o tempo em seus
infinitos alvéolos”. Recordo de uma reminiscência de infância
que espero trazer para ilustrar o que tratamos: Um sobrado que
hoje não mais existe, onde morava minha tia-avó, nos anos 60 do
século passado, quando cheguei de Porto Alegre com três anos
de idade. Atrevo-me em apresentar a poesia que escrevi sobre o
assunto, ainda que corra o risco de parecer inoportuno!

VÓ CORACY
Onde hoje não tem mais nada,
morava a Vó Coracy.
Luz e graça desta vida!
Num velho sobrado na Glória,
onde passo todos os dias.

De criança me fascinava
quando a porta da entrada se abria
em avançada engenharia,
dum barbante que se puxava
lá do alto da escada,
ao toque da campainha.

E a escada gemia baixinho:


“sinhá, sinhá, sinhá...”
numa fantasmagoria
que vinha do tempo de escravo
que o José representava,
enquanto sumia e aparecia.

209 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

O Velho Artur apreciava


um vinho branco ordinário,
e com seu sotaque portenho
contava diversas vezes
de quando era Portô,
nos tempos da juventude,
que dava porrada em uns dez,
encostado de costas num poste
pra ninguém chegar por trás.

Nessa altura a “Véia Gasosa”,


depois da terceira garrafa
e a conversação animada,
falava “puta que os pariu!”
pro deleite da gurizada.

Mas tinha também, às vezes,


a sessão de espiritismo,
com chiliques e cheiro enjoado,
que a gente via da fresta
curioso e com um medo danado!

E feijão como nunca se viu!


preto como a Severina,
miúda, sempre calada.
Me permito repetir:
puta que pariu!
muito bom! Carregado no alho!

Era como provar a vida


quando a gente só intuía,
mas ainda não sabia,
que o melhor da vida é um só dia
entre os seres que a gente ama!

Agora que todos se foram,


onde hoje não tem mais nada,
paira no ar invisível,

210 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

na altura de uma sacada,


uma saudade secreta,
apenas pra mim revelada!

Naquele episódio, que por meio da imagem poética se atualiza


nos alvéolos da memória, conectava-se o meu ser a uma rede
complexa e, sem que eu soubesse como e por que, eu passaria
a estar ligado de uma vez por todas à tradição arquitetônica, à
história da imigração italiana (essa era a origem da família) à
questão da escravidão, ao sincretismo entre os cultos de matriz
africana e o espiritismo, ao feijão, e por que não dizer, ao Gilberto
Freire, à história do circo no Brasil (a italianada era de circo) etc...
a tudo aquilo que pulsa dentro da gente e que se chama em geral
de cultura! Mas que aqui preferimos chamar referenciais. Tudo
isso ao alcance das mãos, minando como água fresca na fonte da
tipologia enquanto fenômeno e lugar.
O lugar, impresso no espaço pela vitalidade das presenças,
no brilho do encontro de mundos. No desgaste e no ranger do
tabuado piso, que fala a quem tem ouvidos, no desaprumo das
divisórias de taipa, que dançam a quem tem olhos, na simplicidade
da lâmpada sem luminária pendurada por fio de pano, ou mesmo na
ausência e no indefinível, o tipo “sobrado”, especialmente quando
desgastado pela vida que passou, ganha uma emocionante vitali-
dade, aspira a se humanizar, ganha personalidade e, finalmente,
sobrevive à própria eliminação física, das coisas e das pessoas.
Convém frisar aqui mais uma vez, para fazer valer nossos
objetivos, que isso não tem relação direta com relatos históricos,
a não ser secundariamente, mas com relações originárias, com a
constituição de mundos, com aquilo que volta como um tsunami
quando aspiro o cheiro dos porões, quando passo em frente a um
velho sobrado, cuja carcaça se conserve.
O exemplo da poesia peca pela pessoalidade, mas possibili-
ta identificar concretamente o sentido de lugar e corroborar a tese
da “galinha dos ovos de ouro” acima proposta. Deve-se proteger a
arquitetura pelo seu valor maior que é aquilo que faz dela um tes-
temunho vibrante do esplendor e miséria de sermos no mundo,
e não por motivações meramente historiográficas e de reconhe-

211 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

cimentos estilísticos que, na verdade, reproduzem apenas aquilo


que os outros esperam que reconheçamos.

Existencial da forma como hermenêutica


De acordo com Camilo Sitte, o projeto de intervenção urbana
é uma experiência que parte da percepção de cidade, e não de
planos abstratos desenhados no papel. Sitte considera que artístico
é somente aquilo que pode ser percebido num lance de vista,
trata-se do espaço urbano considerado por seu caráter pitoresco
sob um ponto de vista relativamente estático. Ou seja, no “modo
espacial”.
Mais tarde, retomando e ampliando a ideia de Sitte, Gordon
Cullen propõe a Visão Serial como instrumento de leitura do
espaço. Contribuição importante, pois trata-se de trazer a questão
do Movimento (deslocamento do corpo através do espaço) para
o processo de análise da forma urbana. Na Visão Serial, Cullen
propôs o movimento do observador a pé se deslocando ao longo
de espaços e fazendo desenhos, com a finalidade de buscar relação
formais e categorias espaciais que caracterizam a cidade. Uma
proposta que busca conciliar os modos temporal e espacial.
Convém ressaltar que os modos, temporal e espacial, conver-
gem no fato urbano por meio do tipo que é o fundamento primeiro.
Nele está a marca que diferencia o que é essencialmente humano
daquilo que é simplesmente dado. No tipo está a diferença, ou
melhor dizendo, o abismo que separa, por exemplo, um seixo
natural de uma ponta de lança de sílex.
Entretanto o encontro fundante entre o fazer e o utilizar que
está no tipo permanece em silêncio, oculto em seu caráter utensi-
liar enquanto não se manifestar como linguagem por meio da
linguagem da forma. Na verdade, parece-nos, da dupla “forma-ma-
téria” confundidas numa unidade inseparável. Mas adiemos, por
enquanto, da questão dessa hipotética fusão forma-matéria para
seguir na tentativa de investigar os fundamentos da morfologia
urbana buscando sua fonte originária.

212 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

A Forma, como examinada no capítulo 1 acontece antes da


percepção visual, enquanto disposição no sentido de voltar-se
para, e como compreensão por meio da interpretação. Esses são
os chamados existenciais equi-primordiais do ser-no-mundo.
Para o (Dasein), relembramos, a disposição e a compreensão são
complementares, são o modo pelo qual constituímos o mundo, ou
melhor, a condição de possibilidade para constitui-lo. Buscamos
aqui encontrar os caminhos da disposição que leva a interpretar
e projetar e supomos que esse caminho está oculto no tipo em
seu sentido profundo.
Seguindo na tentativa de estruturar uma antologia do Dasein-
-Arquiteto pretendemos agora buscar um modo de compreen-
são do projetar e, parece-nos que Camilo Sitte oferece a ôntica
dessa compreensão, cabe então a nós uma tentativa de ensaiar
uma ontologia da morfologia urbana.
Pergunta-se: o que diz a fala da forma?
Imaginemos algo nunca visto que surge em nossa frente
enquanto caminhamos por aí... algo que já de início se apresente
desprendido do solo, e que mude de forma e cor constantemente,
sem peso e sem consistência, sem uma definição clara de posição
e distância e, portanto, também sem clareza quanto proporções
e dimensão. Esse “troço” não chega a ser uma coisa, não pode
propriamente ser algo a não ser que desprovido de sentido, nessa
condição força seu caminho para o interior do mundo, contudo
falta-lhe uma estrutura prévia de compreensão. Algo parecido com
isso pode ocorrer com os truques de camuflagem do mundo animal
ou com testemunhos de fenômenos meteorológicos incomuns,
que quando vêm a nós deslizam para o terreno do sobrenatural
num modo, digamos, místico ou fabuloso; ou ainda para a solução
mais “tecnologística” do Ovni.
A compreensão da forma pressupõe, então, uma estrutura
modal prévia, um reconhecimento, uma relação num jogo de
encaixe aonde o encaixe vem antes das peças. Não nos referi-
mos aqui à expectativa que antecede à percepção de algo, mas
ao constante transbordar para dentro do mundo em que somos
jogados. Assim, tudo que vem a nós no interior do mundo entra
para a prateleira das referências abarrotada de entes. A fala traz

213 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

o ente para o mundo insufla “vontade de ser” nesse ente no ato


contínuo de primeiro classificá-lo e, imediatamente em nomeá-lo.
Camilo Sitte conseguiu ver o que antes não havia, embora
estivesse sempre lá. Ele identificou, classificou e nomeou a ideia
inusitada e originária da forma urbana como linguagem fundamen-
tal, uma interpretação da forma, que nos fala nas entrelinhas da
linguagem ôntica da composição arquitetônica tradicional.
É verdade que, sem ofuscar o brilho da sua descoberta, o autor
ainda vivia no universo da linguagem do século XIX, na colunata e
no arco triunfal, nos estilos historicistas, enfim, que constituíam
seu universo figurativo. Contudo, mesmo aprisionado num universo
figurativo em extinção, a principal lição de Sitte transcende e leva
a uma ontologia da compreensão do fenômeno urbano demons-
trando que a forma urbana demanda um caráter de totalidade,
“onde a vista alcança”, ou seja, na circunvisão.
Portanto, para nós arquitetos, a interpretação da forma está
sempre dada na circunvisão, no demorar-se na direção e na
distância, e na experiência do mover-se. Assim, falar em forma
é falar em relação, relação que direciona e dá sentido no fluir e
no demorar-se ontologicamente, na interpretação hermenêu-
tica do Dasein-arquiteto.
Desfaz-se a ilusão da arquitetura como objeto, contraposto ao
fundo, desfaz-se também o entorno e o contexto, que encobrem
a verdade da forma arquitetônica tentando fazer parecer que o
fundo é fundo, quando na verdade não é. A teoria da gestalt já
indica a necessidade de se entender totalidades, contudo temos
a tendência de sempre fazer um recorte “coisal”.
Trabalhar com a morfologia como fundamento não significa,
como se costuma pensar, em reduzir o problema do projeto a
subordinar a proposta a algumas características dos elementos
morfológicos tais como volumetria, lote, quadra etc., mas direcio-
nar a disposição do projetar para compreensão de que, no que diz
respeito à forma, tudo é sempre relação, com-figuração, como
assevera a gestalt. No projeto é sempre fundamental compreen-
der a totalidade da circunvisão no princípio das relações, conside-
rando a presença no ser-em, nos modos de apropriação temporal
e espacial, nas escalas do corpo, no mover-se e no demorar-se

214 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

(conforme já mencionados acima). Nesse aspecto as contribui-


ções de Kevin Linch e Gordon Cullen, são inestimáveis.
Para nós a morfologia apresenta-se como a linguagem
fundamental e incontornável, pensar a forma na interpretação
hermenêutica significa buscar a compreensão das relações que
vêm desde as características do céu, do relevo, do sítio e de todos os
elementos interconectados, justapostos, contrapostos, sobrepos-
tos, no contraste ou na proximidade de valor, tom, temperatura
e cor, e nas mudanças ocorridas no tempo, tudo trazido para a
análise e interpretação hermenêutica desde a compreensão inicial
até a proposta final.

Totalidade e Integração
A ideia de totalidade é um conceito operacional que vem da
escola francesa do urbanismo desde o século XIX e leva ao entendi-
mento de que o projeto deve se dar como uma integração sistêmica.
Não é, portanto, em termos gerais, nenhuma novidade. Entretanto
aqui consideramos a totalidade não em sua ôntica, que leva ao
correto proceder técnico, mas na sua ontologia.
Para nós é então aquilo que está antes, e que, por exemplo, se
manifesta como condição de possibilidade para chegarmos aos
mapas mentais de Kevin Linch. Assim a totalidade se dá como o
desdobramento sempre móvel, na disposição da descoberta, mas
tende a se sedimentar com o tempo no modo do reconhecimento,
da identidade. Parece então que, à medida em que envelhecemos,
por exemplo, e nos dirigimos à morte, nosso mundo tende a se
“calcificar” e constitui o que Bachelard chama “os belos fosseis da
duração, concretizados por uma longa permanência”.56 A totalidade
é, portanto, um modo de compreensão do ser-no-mundo, consti-
tuída a partir do núcleo gerador da presença; é o que nos leva a
constituir um recorte identificável do mundo e que, por camadas,

56  O que corrobora a boa prática de conversar com os idosos do bairro, por exem-
plo para compreender o sentido de lugar e os espaços onde o arquiteto trabalha.
Os idosos nos fornecem atalhos para a compreensão.

215 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

possibilita os desdobramentos para além. O exemplo típico da


totalidade está no bairro que, antes de ser uma superfície geográ-
fica é um reconhecimento e, ao mesmo tempo, um autorreco-
nhecimento, por meio do qual e no qual repousam uma coleção
de sensações e imagens etc., que constituem o pertencimento.
Já a integração decorre da totalidade, dirige-se a ela por meio da
disposição, tal como aquela disposição originária e fundadora de
Camilo Sitte em sua crítica ao espaço moderno.

Unidade e Reintegração
Ao longo dos séculos a questão da unidade formal em conjun-
tos arquitetônicos não existia, não era um problema, porque era
uma condição dada, mergulhava no segredo da lida engajada. A
exacerbação da individualidade é uma questão moderna surgida
a partir da modernidade em geral, mas principalmente, a partir
das pesquisas formais dos arquitetos das vanguardas europeias
entre guerras na Europa, que terminou por trazer o uso de novos
materiais tipologias, além do modo de projetar individualista, ou
mais especificamente, peculiar, porque podendo ocorrer sem
qualquer referência tipológica referenciada na tradição.
Entretanto nem sempre o impulso criativo original e a invenção
levam necessariamente a rupturas. Lembremos, por exemplo, do
maneirismo e do barroco onde colunas, cornijas e frontões são e
torcidos, retorcidos, quebrados e requebrados numa subversão,
mas sem o abandono da linguagem clássica e, portanto, contri-
buindo para o todo por meio da variação do tipo; ou ainda como
o art nouveau ou o art deco se enquadram bem num contexto
eclético/colonial. Lembremos também, numa referência mais
brasileira: Antônio Francisco Lisboa, inventor e criativo dentro
daquilo que era “normal”, subvertendo dentro da norma.
Assim, originalmente, as limitações e possibilidades da técnica,
além do repertório da tipologia e da linguagem formal determina-
vam tal unidade. Entretanto, a partir do advento do modernismo
vanguardista há uma disposição em operar por contraste. O arquiteto
que se autorreconhece “criativo” passa a entender que não pode e

216 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

não deve submeter o projeto ao sentido de unidade preexistente. O


que até fins do século XIX era uma prática comum, e de certo modo
inquestionável, foi afastado a partir da atitude projetual indivi-
dualista característica do modernismo e instituída desde então.
Entretanto hoje, em geral, fundir a proposta num todo parece
significar tolher a criatividade. Entendemos que a unidade é um
caráter desejável porque possibilita a identidade e o reconheci-
mento. Note-se que a unidade, conforme aqui entendida, não se
refere estritamente à repetição de um modelo ou à variação estrita
da tipologia arquitetônica, mas pode se dar também enquanto
unidade do que é variável, do que se justapõem por semelhança,
mas também se contrapõe por contraste e dessemelhança e que
converge para constituir a identidade. Definido então o entendi-
mento da unidade dizer “reintegração dessa unidade” significa a
disposição que leva à reintegração, ou seja, à intenção de “vibrar
junto”. Nosso modelo de reintegração está na teoria brandiana,
aplicado para além das obras de arte, sem excluir a cópia, nem a
variação, nem a diversidade e, mais ainda, nem o inusitado como,
por exemplo, no caso paradigmático da pirâmide do Louvre.

O Ambi-Ente e Reversão
Na constituição de mundos voltamo-nos para o nosso próprio
“avesso” que se expande, se desdobra e se confunde no emaranhado
dos entes que vêm até nós e que classificamos e organizamos à
nossa maneira seguindo o modo “como se faz”, “como é o certo”
ou, ao menos, como parece sê-lo.57
Mas na verdade nosso destino histórico se dá, essencialmente,
como distanciamento e, portanto, como alienação da natureza.
Assim, imersos no mundo constituído, no paradoxo de nos fechar-
mos na abertura de ser-no-mundo, a natureza se retrai, perdemos
irremediavelmente o acesso ao estranho mundo da natureza. Ela
não nos pertence como, tal pensa aquele que a vê como recurso,

57  A Morte de Ivan Ilich, O conto de Tolstoi é a melhor representação dessa


condição e do engano que dela provém.

217 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

quer seja econômico ou mesmo paisagístico; tampouco perten-


cemos a ela, como pretenderia alguma comunidade hippie. Não
devemos nos deixar levar pelo antropocentrismo.
Entretanto, “o princípio e causa de movimento e repouso,
imediata e essencialmente presente naquilo em que se encontra”58
segue alhures girando na grande roda do mundo e se em nosso
mundo, voltado pra si mesmo, estamos alheios à natureza ela não
está a nós, e, de fato, tem cobrado a conta. É verdade que estamos
começando, modestamente, a tentar pagar a fatura, temos feito
tentativas modestas de caminhar em direção a ela, com os movimen-
tos ambientalistas, com a ideia da sustentabilidade, a reciclagem
etc., contudo são paliativos, não vão ao cerne do problema, pois
inclusive já foram (sempre rapidamente) apropriados pela máquina
capitalista que tudo devora.
Não podemos nos iludir, qualquer tentativa de aproximação à
natureza não mudará a condição de que ela sempre será impene-
trável, nunca acessível. Expulsos para sempre do paraíso original
do mito bíblico, seguiremos sempre no nosso modo de ser que
apenas possibilita um aproximar-se. De dentro da nossa bolha
podemos apenas tender a ela, aproximar-nos e assim sentir a
sua essência como potencialidade. O que se propõe aqui é que o
projeto urbano deveria sempre buscar a reversão como objetivo
principal. Dentro da reversão (e não da restauração) devem estar
todos os “rês”.
Assim a questão central do nosso trabalho é, na verdade, não
central, mas periférica, e resulta em dar alguns passos atrás para
tornar a periferia um grande ponto central num “zoom out”. Tentar ver
a questão da arquitetura sempre, e necessariamente, no ambi-ente,
o ente ambíguo que funde a nós próprios e a abertura para o mundo
no fenômeno da presença, ou seja, no entre que nos concerne. Mas
como se dá na prática aquilo que se fala? Como comprovar que
não falamos do sexo das borboletas enquanto a tragédia da vida
se desenrola? Temos que começar pela compreensão e afiná-la no
discurso, ou seja, sempre voltamos ao império das palavras, à fala.

58  Conforme Aristóteles, que acreditava nesse princípio. [Conferir essa emenda,
por favor]

218 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Projetar para o ambi-ente está muito longe de apenas prever


paredes verdes ou jardins de chuva; não se limita, tampouco, a buscar
os números da eficiência energética ou mesmo seguir no caminho
da sustentabilidade, essa ideia há muito já apropriada pelo inimigo
(sempre atento e solícito); pois, embora tudo isso possa contribuir,
devemos sempre lembrar que não se pode mudar aquilo que não
muda na essência, no modo de ser, no como. Talvez o caminho venha
a partir de uma “nova versão” que é nova e, ao mesmo tempo velha,
porque originária. Trata-se então, talvez, de uma “re-versão”, não
num sentido de voltar a uma condição original, mas, autentica-
mente, em direção à historiologia das possibilidades.

Encaminhamento metodológico
para o Projeto Ambi-êntico
O raciocínio percorrido até aqui nasce da crítica ao pressu-
posto da historiografia como paradigma no trato da questão do
patrimônio cultural. Contudo isso não se dirige apenas à questão
com restauro ou intervenções em (ditos) centros históricos, mas
com o lidar com as preexistências em geral, o que é sempre uma
ação histórica antes de ser historiográfica.
Entretanto, não parece oportuno criticar sem propor alternati-
vas. Assim, neste capítulo final, ensaiamos um caminho alternativo
para o projeto urbano, 59 levando em consideração as preexistên-
cias sejam quais forem, não mais a partir do monumento ou do
conjunto urbano, tomados como coisa histórica e artística, tampouco
da relação da “arquitetura coisa em si” contraposta ao contexto,
mas, antes de tudo isso, a partir de relações mais fundantes que,
conforme entendemos, antecedem às abordagens autorreferen-
ciadas da subjetividade, ou da objetividade multidisciplinar.
Assim, nossa proposta parte do ambi-ente, este ente ambíguo
que inclui a nós mesmos, emana de nós. Todavia não podemos
simplesmente abandonar totalmente os referenciais teóricos
consolidados pela tradição em nosso campo disciplinar, pois eles

59  O que significa dizer também arquitetônico.

219 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

guardam o essencial de outros “Daseins”. Voltando-nos para o que é


essencial a fenomenologia parece poder instrumentalizar o projeto
urbano sem prejuízo das demais considerações teóricas. Assim,
o projeto ambi-êntico segue a intuição de Camilo Sitte através da
própria espacialidade que experimentamos da cidade, ou seja,
do estudo da forma que está ao alcance de uma visada, e sempre
um tanto além, no desdobramento do caminhar, em sucessivas
visadas como nos ensina Gordon Cullen.
Mas ainda assim talvez devamos sempre dar mais um passo
atrás. Para o antes daquilo que é simplesmente dado (daquilo que
é visível). Podemos então nos voltar àquele que sou sempre eu e
que indaga sobre aquilo que é dado. Para o Dasein o mundo, e tudo
que nele está disponível, emana do fundamento utensiliar. Aqui
para nós, nessa abertura que buscamos, está no “tipo”, a essência
utensiliar da arquitetura intuída por Quatremère de Quincy. Ou
seja: no fazer e no usar que presentifica a essência do que se dá.
No projeto ambi-êntico, a multidisciplinaridade não é simples-
mente descartada, mas posta em suspenso. Assim, podemos nos
voltar à nossa própria experiência de ser-em (no demorar-se e no
mover-se). No mergulho no mundo do projeto buscamos o lugar
que sempre se retrai e que mal pode ser apalpado no escuro, nunca
conhecido plenamente, mas apenas interpretado pela hermenêutica.
Assim, a compreensão do lugar pode levar à intersubjeti-
vidade do ser-com e possibilitar ao arquiteto/urbanista voltar-
-se ao reconhecimento do espaço como o aberto do lugar, desde
a análise e compreensão até a proposição, sempre no jogo das
possibilidades, no sendo da arquitetura entre “o céu a terra, os
deuses e os mortais”.
Nosso encaminhamento teórico apresenta 8 princípios dividi-
dos em três categorias:

a) Os três primeiros analíticos, devem ser buscados presen-


cialmente no lugar, levantados através da vivência, por
meio de desenho e textos (caderno de croquis), fotogra-
fia serve, apenas assessoriamente, porque é necessário
o tempo da contemplação operante que só o desenho à
mão pode oferecer;

220 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

b) O quarto sintético, a “identidade” é levantada através


de reuniões entrevistas e relatórios, é necessariamente
presencial, deve incluir compilação discussão e crítica,
síntese dos três primeiros princípios;
c) Os três últimos operativos, voltados para ação a partir
do resultado dos anteriores.

O produto pode se apresentar como um caderno com propostas


de intervenção que referencia o que fazer e não fazer. Ou melhor
dizendo: uma busca de sentido para indicar o que talvez fazer ou,
por outro lado, o que certamente não fazer.

Princípio da Utilidade ou Serventia


No reino do logos podemos medir o peso das palavras, esses
entes concretos disfarçados de letras. Assim podemos dizer, sem
medo de errar, que “utilidade” tem mais peso, é mais originária,
mais fundante que “funcionalidade”, ao menos neste contexto
em que tratamos: o cenário onde se dá a vida das pessoas.
A utilidade é a essência do utensílio, desde um cotonete até
o grande artefato que constitui uma cidade. O caráter utensi-
liar se efetiva como fenômeno no ato de usar e cessa com
a interrupção do uso, tornando a se dar novamente em sua
eventual retomada. O princípio da utilidade é a porta de entrada
do Dasein para o mundo, é o que dá sentido ao mundo que está
organizado em círculos concêntricos como que irradiando do
fenômeno de sermos-no-mundo por meio da nossa disposição
e compreensão das coisas que encontramos no interior desse
mundo. Desprovida de utilidade a coisa retira-se do mundo,
decai no puro visibilismo e daí para a invisibilidade daquilo que
é ignorado e apenas subsiste. Trazer as coisas para o mundo em
sua potencialidade significa o reconectar-lhe à teia das referên-
cias, não numa tentativa vã de levá-la de volta ao passado ilusório
da historiografia ou ao estritamente técnico, mas para junto
do f luxo da vida no presente que deságua sempre e constan-
temente no futuro.

221 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

Princípio da Vitalidade
A vitalidade é o brilho do lugar na sua manifestação originá-
ria. Assim, o lugar irradia na vitalidade primeiramente onde há
pessoas, onde elas vivem, trabalham e se divertem, em especial
onde “habitam e demoram”, nos espaços da vivência e da convivên-
cia, cotidiana e casual. Contudo a vitalidade pode vibrar também
no espaço humanizado pela ausência, no drama de sermos uns
com os outros para a morte, ou seja, um cemitério, por exemplo,
pode ter muitíssima vitalidade, ainda que apenas potencialmente,
como vestígios arqueológicos antes de serem retirados da sua
condição de esquecimento.
O lugar retém e acumula a vitalidade, por entre as fibras dos
espaços que o circundam, na acumulação e no desgaste da matéria,
no ranger do tabuado, no lento e constante ceder ao peso e ao atrito
das pessoas. Por outro lado, as presenças seguem imprimindo sua
marca na passagem pelos espaços que, quanto mais marcados
pelo desgaste da presença, mais vitalidade engendram no lugar.

Princípio da Totalidade
A essência da totalidade apresenta-se como contingência
tanto em termos de constituição como em sua permanência no
tempo. Assim, a totalidade não é, pois é antes um sendo consti-
tuído como fenômeno vivido. A totalidade é colhida e mantida
presa, sempre em sua contingência, pelos existenciais da disposi-
ção e da compreensão. É mais fácil identificar a totalidade como
fenômeno visual, contudo, muitas vezes ela se oculta sob a carapaça
do ente e se manifesta apenas intuitivamente, vibra em cada um
de nós, especialmente na experiência da tradição sedimentada
no cotidiano, ou reverberando na intersubjetividade. Um bairro
é uma totalidade, uma determinada paisagem também. A totali-
dade, por ser contingente, pode ser desfeita pela entropia do fluir
das coisas, ou pela entropia do descuidado que nos caracteriza,
levando essa totalidade a uma condição fragmentária. Citaria,
por exemplo, para ilustrar na prática essa concepção abstrata,

222 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

o caso dos bairros portuários no Rio de Janeiro que, há muito,


com o conjunto das intervenções urbanas, perderam o sentido
de totalidade, e, portanto, em grande parte o seu caráter, pois
não se sabe mais ao certo onde começam e terminam devido à
ação antrópica dos aterros e construções desqualificantes. O
objetivo do projeto ambiental é cerzir as relações de totalidade,
caso se compreenda que isso é bom, útil e ou necessário.

Princípio da Unidade
A unidade é a filha mais bonita da totalidade, deve ser cuidada,
deve poder tocar o céu e estar sob o sol, e pisar descalça o chão.
Ter contato com a natureza, prestar respeito solene aos deuses.
Deve também amar e ser amada pelas pessoas em geral, mas
em especial os velhinhos, as crianças e os animais. A unidade
vibra em conjunto sob o sol e se adensa na presença por entre a
sombra das árvores. A unidade, em termos urbanos, configura-
-se como identidade e memória e apenas secundariamente como
história. Como ocorre com as mulheres embeleza-se à medida
que envelhece porque com o tempo se torna cada vez mais ela
mesma. Cumpre ao projeto ambiental, protegê-la com zelo apaixo-
nado, promover motins em seu nome, recompô-la sempre em sua
pureza e integridade, vestir, alimentar, levar ao culto dos deuses
e deixar que a enfeitem com laços e bordados nos dias de festa.

Síntese da Identidade
Entendemos, no contexto deste trabalho, o conceito de identi-
dade conforme se segue:

[...] não é possível estabelecer em definitivo o significado


de identidade ou o critério para conhecê-la, mas, dentro
de determinado sistema linguístico, é possível determinar
esse critério de forma convencional, porém oportuna.
Essa concepção foi apresentada por F. Waisemann num

223 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

artigo de 1936 ‘(Uber den Begriff der Identitat, em Erkennt-


niss,VI, p. 56 et seq.)’. (ABBAGNANO, 2007)

Assim identidade apresenta-se como um conceito formulado


intuitivamente, síntese da análise hermenêutica dos três primei-
ros, atendendo a possibilidades diversas, por exemplo, totalidades
complexas ou unidades díspares. Operacionalmente funciona como
um catalisador, ligando os três primeiros princípios de caráter
normativos aos três últimos, operacionais.

Operativo de Integração
Tomamos emprestado de Camilo Sitte a ideia de integração,
integra-ação pressupõe a ação de instaurar uma integridade a
partir da preexistência identificando seu potencial em termos
de vitalidade, totalidade, unidade visando atender à identidade
intuída a partir da compreensão do lugar.

Operativo de Reintegração
A Reintegração é tomada de empréstimo da teoria da restau-
ração de Brandi para sua aplicação em todas as escalas. Refere-se a
recompor unidades potenciais com a contribuição do tempo presente.
A integração e a reintegração operam por meio da tipologia
e da morfologia.

Operativo da Reversão
Para o princípio de reversão o edifício é que é o entorno do
entorno. A reversão conforme já mencionado acima, refere-se à
busca de uma condição originária da nossa relação com o mundo e
com a vida. Não pode ser confundida com a ideia de “voltar ao que
era”, do restauro historiográfico, conceito ao qual, na verdade, se
contrapõe; mas antes, ao passado projetado para o futuro, para o

224 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

ambi-ente. Trata-se da busca do sentido de lugar através do espaço,


por meio da matéria, da forma e do projeto. Trata-se também de
abrir caminho para o brilho do lugar, cujas camadas de interven-
ções precedentes foram, com o tempo, recobrindo e, portanto,
obstruindo. Assim, a reversão é a arqueologia do lugar.
Relembramos mais uma vez que esse brilho do lugar é a
própria vitalidade em sua manifestação mais originária, não no
sentido que é dado geralmente ao projeto “dito” de revitalização,
voltado estritamente à refuncionalização, mas na manifestação
verdadeira daquilo que é.
Reverter é, enfim, voltar-se às possibilidades, potencializar
a abrangência da quadratura na simplicidade do cotidiano.
Assim, o projeto no modo de reversibilidade deve se voltar
aos elementos da quadratura, ao “céu e à terra, aos deuses e aos
mortais”. Não se projeta, por exemplo, simplesmente o edifício.
No ato do projeto refunda-se sempre o contexto na sua maior
amplitude possível, não apenas do ponto de vista formal, mas
como acontecimento conectado com o ente na totalidade e com o
ser, na identidade. Dentro do conceito de reversibilidade, ou seja,
tendendo potencialmente para a natureza inatingível, o projeto
não é implantado, ele repousa ou nasce do chão, repousar significa
buscar a exata posição em meio ao arvoredo; nascer do chão é,
por exemplo, ceder espaço para um af loramento de rochas ao
Invés de suprimi-las num reconhecimento de que as pedras,
especialmente as grandes, fazem o tempo passar mais devagar,
são entes filosóficos.
Construímos, como já dito, para as mulheres e os homens, as
crianças e os velhos e para os animais, mas também, às avessas,
construímos, necessariamente, para o céu e o sol, a lua e as estrelas
que residem o reverso do construído e diariamente vêm cumprir
sua rotina de comunhão conosco; a chuva é uma benção que deve
sempre ser aceita como tal e recolhida no zelo e no cuidado. Os
elementos físicos estão diretamente integrados aos etéreos, tanto
que lentamente se fundem na corrosão. Assim, o regime de ventos
que incidem na construção pertence, essencialmente, ao projeto e
deve ser efetivamente buscado enquanto material de construção,
tal qual como um tijolo. A construção revertida não ignora as águas

225 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


A Questão do Projeto

que rolam sobre a terra, nem os veios temporários e muito menos


os cursos d’água e os rios, esses entes sagrados que possibilitam a
nossa existência. O projeto que se volta para a quadratura permite
que a terra respire, que absorva a água quando tiver sede e que
possa suar seus vapores no calor. Busca os arbustos e as arvores
que conhecem e são conhecidas pela terra e que juntos atraem
para si o pássaro e o calango. Significa enfim trabalhar com os
elementos e os materiais da quadratura (“materiais essenciais”,
cap. 2) no modo mais essencial, ou seja, voltado para o lugar.
Fechando, finalmente, mais um círculo do pensamento que
sempre nos leva de volta ao sentido de lugar, chegamos ao termo
do possível. Até aqui o projeto se deu como disposição e compreen-
são, a partir daqui o projeto se afasta para o projeto em si, ou seja,
segue-se o “mergulho no mundo”, individual, contudo, preferen-
cialmente não individualista como, aliás, esse encaminhamento
pretende direcionar.
Como ente essencialmente “possibilístico” o projeto pertence
à esfera da negociação, no comércio do ser-com. Deve, portanto,
desenvolver-se por meio da retórica (na compreensão prévia do
logos); como hermenêutica (na emoção do pathos), que leva à intuição
da criação voltada para o que pode emocionar e, finalmente; na
técnica e na autoridade profissional (ou seja, no ethos do arquiteto).
Note-se que aqui, finalmente! Se encaixa perfeitamente,
como sequência lógica e natural, aquilo que prevê a norma NBR
13532 Elaboração de projetos de edificações – Arquitetura (1995),
com sua distribuição em etapas: estudo preliminar, anteprojeto
e projeto executivo.

226 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


6 CONCLUSÃO

Diríamos agora, inautenticamente, que esta é uma conclu-


são inconclusa. Este trabalho, embora rematado, não pode ser
conclusivo, está fora do seu alcance. Contudo pretendemos ter
encontrado, ainda que em parte, aquilo que buscávamos: buscáva-
mos o “projeto como verdade”, encontramos um caminho, ou
melhor, um caminhar subjetivo que aspira a alguma intersubje-
tividade. Esse caminho apontou para uma possível metodologia
de projeto a partir de algumas considerações práticas, referên-
cias teóricas e pretensões filosóficas. O resultado é uma trilha
aberta que chega a um limiar intransponível. Assim, por motivo
de força maior, sentamo-nos à beira do caminho, mas com uma
vaga e discreta sensação de dever cumprido.
Nossa busca termina então onde começa o projeto. No limiar
do ato projetual, esse “mergulho no mundo”, pessoal e intransfe-
rível que, entretanto, pode ser investigado quanto a seu sentido,
conforme tentamos aqui, mas que na sua verdade última pertence,
exclusivamente, a quem está constituído para tal, no ato de projetar:
o Dasein arquiteto imerso em sua trama referencial, reconhecido
pela sociedade, que o investe dessa atribuição, e ou, principal-
mente, autorreconhecido na sua lida engajada.
Finalmente levanto uma última questão enquanto escrevo em
plena quarentena mundial da coronavírus, em meio a essa tragédia
que dobrou os joelhos dessa nossa espécie de primata (fracote
e arrogante) e que expõe, dramaticamente e à custa de muitas
vidas, o nosso modo (torto) de ser; mas que também, por outro
lado, termina trazendo uma oportunidade de nos fazer ver que o
destino e mais autêntico do ser desdobra-se sempre no ser-com.
Recordo um dia em que atendia a um aluno de projeto
conversando sobre o seu trabalho quando a certa altura, na defesa
de uma determinada escolha, ele alegou – “mas esta é a minha
arquitetura!” – ao que dei uma imediata “resposta correta”, dizendo:
“a arquitetura nunca é ‘minha’, ela tem um sentido social, o que
faz dela sempre algo que transcende à esfera pessoal do arquiteto

228
Conclusão

etc.”. Entretanto, reexaminando agora essa questão (agora que


Heidegger chegou mais perto na minha rede de referências) vejo
que o correto nem sempre é o verdadeiro. Responderia hoje então
ao aluno, a título de conclusão final e como justificativa deste
trabalho: é verdade que podemos, sim, pensar o projeto em termos
individuais “entre o aeroporto e o hotel”, voltados para nossos
tablets, mergulhados no mundo onde “sempre eu” dou sentido às
coisas e às pessoas em torno de mim, no meu modo de ser. Posso,
sim, fazer a “minha” arquitetura se o destino colocar perante mim
a oportunidade para ser autêntico. Posso, sim, também, envolto em
“delírios nova-iorquinos”, pensar que o meu projeto autêntico vai
possibilitar que as pessoas em torno das torres de vidro inaccessíveis
possam ser “inteligentes” o suficiente e, portanto, reciclar as sobras
antes que o serviço de coleta carregue os contêineres de lixo. Mas
então, cedo ou tarde, essa autenticidade poderá mostrar a sua
verdadeira face do narcisismo, no modo de ser do arquiteto que,
voltado para si mesmo, se deleita com o grandioso exercício da
individualidade e o afago da crítica dos colegiados. Contudo, por
outro lado, pode-se tentar fazer o caminho inverso, vir do todo
para a parte e assim compreender que o ser-no-mundo, que sou
sempre eu, só se completa, em sua plenitude, no ambi-ente e no
modo do cuidado.
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233 FENOMENOLOGIA DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL – FUNDAMENTOS PARA UMA ARQUITETURA DO LUGAR


Sobre o Autor

SOBRE O AUTOR

Candido Campos é Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela


Universidade Federal Fluminense (PPGAU-UFF) (2020) e também
mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PROURB) (2002). Especialista em Restauração pela Universidade
Federal da Bahia (CECRE- Curso de Especialização em Conserva-
ção e Restauração de Monumentos e Conjuntos Históricos) (1996).
Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal
Fluminense (1996).
Atualmente (desde 2004) é professor da Pontifícia Universi-
dade Católica (PUC) Rio de Janeiro. Tem experiência profissional
na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Restaura-
ção de Patrimônio Histórico, tendo no acervo diversos projetos
e obras executados.
Contato: candidogcampos@gmail.com

234
“O modo de representar da historiografia põe a natureza como
um complexo de forças passíveis de cálculo, e a física põe a natureza
como um complexo de forças, transmitindo a falsa ideia de que a
técnica moderna é uma ciência aplicada da natureza. Neste sentido
caminha a argumentação colocada neste livro: a de que a arquitetura,
e o restauro, ao pensar o seu fazer como técnica objetificante, afasta
a ciência do mundo da vida e o patrimônio de sua essência que é ser
ambiente. Aqui, há um apelo à questão prática, à experiência vivida, à
recuperação da imaginação criadora, que desvela o patrimônio para
além da opacidade da coisa, onde a arquitetura e o urbanismo para além
do restauro, emerge como uma das possibilidades de salvação da Terra,
no momento em que desabrigar o poético a remete para a sua essência
enquanto técnica: a da arte de projetar e de construir poeticamente,
ou como conclui o autor: do ato projetual como “mergulho no mundo”,
pessoal e intransferível.”

ISBN 978-65-5831-134-8

9 786558 311348

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