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DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL
Fundamentos para uma
Arquitetura do Lugar
CANDIDO CAMPOS
FENOMENOLOGIA
DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL
Fundamentos para uma
Arquitetura do Lugar
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Vice-Reitor
Fabio Barboza Passos
Conselho Editorial
Renato Franco [Diretor]
Ana Paula Mendes de Miranda
Celso José da Costa
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Johannes Kretschmer
Leonardo Marques
Luciano Dias Losekann
Luiz Mors Cabral
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Marco Moriconi
Marco Otávio Bezerra
Ronaldo Gismondi
Silvia Patuzzi
Vágner Camilo Alves
FENOMENOLOGIA
DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL
Fundamentos para uma
Arquitetura do Lugar
CANDIDO CAMPOS
© 2021 EDUFF
Equipe de realização
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5831-134-8
BISAC ARC014000 ARCHITECTURE / Historic Preservation /
General
Werther Holzer
Nova Friburgo, fevereiro de 2021.
PREFÁCIO 8
INTRODUÇÃO 16
FUNDAMENTOS 20
O que é a verdade? 20
Essência e Fundamento 24
Fenomenologia na Arquitetura 29
Heidegger 30
O Habitar Originário 35
O Tempo e o Ser 37
O Espaço 40
A Materialidade 43
A Matéria original – Terra, solo e chão 46
A Forma 50
Forma e Paisagem 54
O Ser originário da paisagem 55
Outro Olhar 56
“Princípio e Causa de Movimento e Repouso” 57
Mundifi cação e Antropia 60
Patrimônio ou “Ambi-ente”? 61
A Potencialidade 64
Potencialidade e Possibilidade 66
No Limite do Ser Arquitetura a Ruína 66
A Ruína – Entre a Arquitetura e a Natureza 68
O FENÔMENO ARQUITETURA 70
O Habitar Imanente – “A Concha” 70
O Habitar Transcendente 72
Os Materiais Essenciais 73
O Solo 75
A Alquimia dos Aglomerantes 75
A Pedra 77
A Madeira 78
Os Metais 80
A Manualidade 82
Arqui-tetura, Espaço e Lugar 85
A Cabana Original 86
Os Desdobramentos do “Entre” 88
Ontologia (e ontogênese) da Espacialidade 91
Ontogênese do Caminhar (uma proposta) 92
O Modo Temporal – O Caminhar-na-chãosidade 98
O Modo Espacial – Direção e Distanciamento 101
Escalas Não Numéricas 102
A Escala da Mão 103
A Escala do Braço 103
Escala do Corpo 103
A Escala do Céu 104
O Lugar 104
O Logos, a Instância da Estância 106
CONCLUSÃO 228
REFERÊNCIAS 230
O que é a verdade?
O senso comum, que tem lá sua sabedoria, diz que a verdade é
pessoal, que cada um tem a sua, em conformidade com a consciên-
cia e a partir de determinados critérios morais, religiosos etc. Nesse
aspecto minha verdade enquanto profissional da restauração e profes-
sor de arquitetura me diz que ao longo de vinte e cinco anos tenho
trabalhado em engano. Vejo muito claramente que a restauração em
arquitetura é uma ilusão. Penso que, cada vez mais, é válido o aforismo
de Ruskin dizendo que “a restauração é uma destruição seguida da
falsa descrição da coisa destruída!” (RUSKIN, 1996). Sempre suspei-
tei intuitivamente da vigência da historiografia como fundamento
da intervenção arquitetônica e urbanística. Nunca pude ver de fato
a história nas coisas, mas ao contrário, vejo “as coisas na história”.
Hoje tenho convicção de que é necessário libertar a arquitetura e, em
especial, o urbanismo do peso da historiografia. Penso que a fenome-
nologia pode fornecer as ferramentas para atender a essa demanda.
2 “Dasein” nome em geral deixado sem traduzir, mas que, ao pé da letra seria
“ser aí (aqui)”; também se traduz como “presença” (que para nós parece uma boa
tradução), contudo adotamos a expressão original por ter mais identidade.
3 Em Heidegger é comum usar termos hifenizados para indicar o caráter uno
em palavras associadas.
Essência e Fundamento
Buscar a essência de algo significa, em meio às múltiplas
possibilidades de interpretação, mostrar aquilo que aquela coisa é.
Mas como é possível (pode-se perguntar) que em uma única, entre
tantas possíveis abordagens sobre as coisas em geral, possamos
pretender essa “azeitona do pastel”, a essência!? E como, e para que
deveríamos nos dar ao trabalho de buscar essa tal essência quando,
conforme entendimento geral, a pura e simples consideração das
ciências já estabeleceria parâmetros de conhecimento seguro,
preciso e controlado sobre os fenômenos da natureza e da vida?
O aporte teórico que conduz este trabalho, a fenomenologia,
surgiu em oposição à ideia de que o conjunto das ciências seria
Fenomenologia na Arquitetura
Não é nenhuma novidade o aporte da Fenomenologia como
método de compreensão do fenômeno urbano. Norberg-Schulz
(1926 – 2000) já formulou alternativas para a crise do modernismo
retomando o conceito de “Genius loci”, a ideia de “lugar”, entre
outros princípios baseados no aporte fenomenológico. Além disso,
bem antes de Husserl ou Heidegger, já se praticava intuitiva-
mente diversas “fenomenologias” na poesia, na arte e mesmo
na vida em geral, pois, em verdade, num certo sentido, somos
todos fenomenólogos, a maioria das vezes sem sabê-lo. Pode-se
identificar na história do pensamento arquitetônico diversas
aproximações por diferentes caminhos como em Quatremère
de Quincy (1755 – 1849), Laugier (1713 – 1769), Gottfried Semper
1803 – 1879) e (para nós aqui, muito especialmente) em Ruskin
(1819 – 1900), entre outros.
A Fenomenologia se difundiu e infiltrou-se por todos os campos
do conhecimento, especialmente nas Ciências Humanas, influen-
ciando diversos autores na História, no Direito, em Estética, na
Arquitetura e nas Artes. Na Filosofia, autores fundamentais como
Heidegger (1889 – 1976), Gastón Bachelard (1864 – 1962), Merleau-
-ponty (1908 – 1961), Sartre (1905 – 1980) em Estética, Argan (1909
– 1982), em Arquitetura Norberg-Schulz (1926 – 2000) e o próprio
Brandi (1906 – 1988), para citar apenas alguns dos principais autores
que foram encontrados em nossa busca.
Ao final Heidegger apresentou-se como a pedra de toque
para este trabalho.
Cabem aqui algumas considerações iniciais sobre nossa
experiência com o filósofo: a princípio Heidegger é de difícil
leitura,4 por outro lado, aos poucos, pareceu-nos que o autor de “Ser
e Tempo” é, na verdade, mais difícil de aceitar que propriamente
de entender. Contudo quando finalmente conseguimos superar
a resistência inicial encontramo-nos em casa, reconhecemos em
nós mesmos aquilo que está proposto como uma compreensão
profunda da condição humana.
Penso que não se deve jamais iniciar pela leitura de Ser e
Tempo, a não ser que o leitor já tenha um bom conhecimento
de filosofia antiga e moderna. Assim, parece uma boa estraté-
gia começar pelos textos de comentadores e, em seguida, ler e
reler os ensaios e conferências do chamado segundo Heidegger,
ainda que pareça, inicialmente, um tanto enigmático e exotérico.
Entretanto, aos poucos, com releituras alternadas, pode-se tentar
enfrentar as mais de quinhentas páginas de Ser e Tempo e mesmo
que, ainda assim, algumas passagens do livro sejam quase impene-
tráveis, pode-se enfim compreender a importância e o gênio de
um filósofo que soube reunir e, ao mesmo tempo subverter a
perspectiva de toda história da filosofia. Heidegger reúne, em
parte, a fenomenologia a partir de Husserl com a hermenêutica
de Schleiermacher e Diltey (de influência kantiana) retomando
também fundamentos da filosofia grega antiga (os pré-socráti-
cos e em especial Aristóteles), além de influências aqui e ali de
Kant, Hegel e Nietzsche. Absorve e ao mesmo tempo nega a todos.
Heidegger
Sem pretender alcançar um domínio mais profundo em
filosofia, o que está fora do nosso alcance, trataremos a seguir
dos principais conceitos do filósofo para tentar apresentar um
esboço de terminologia, alguns conceitos básicos e, principal-
mente, uma tentativa de esclarecer ao leitor que o desconhe-
ça,5 como se estrutura o pensamento heideggeriano, naquilo que
4 Embora menos difícil que Husserl, que parece a alguém com uma bagagem
literária mediana, quase impossível, indecifrável!
5 Ainda que em linhas gerais e com possíveis falhas.
outros nos impingem, ou, por outro lado, numa busca autêntica
lançamo-nos às possibilidades.
O Dasein é ser-no-mundo e o mundo é um existencial, um
fundamento do que somos, uma condição de possibilidade para que
os entes venham até nós. Mas, na ontologia fundamental do Dasein
há outros existenciais, outras condições de possibilidades no jogo
de sermos-no-mundo. Primeiramente a disposição e a compreen-
são, ambos ditos equiprimordiais, ou seja, com igual importân-
cia e interdependentes. A disposição, ou tonalidade afetiva, é a
condição de possibilidade de nos voltarmos a alguma coisa ou
questão (parece-nos que poderia ser aquilo que possibilita que
tenhamos interesse fundamental pelo que quer que seja). Já a
compreensão, como indica o nome, refere-se não a um tipo de
entendimento lógico, mas também à condição de possibilidade, ou
aquilo que leva a que, de diferentes modos, formulemos entendi-
mentos. São ambos fundamentos ontológicos na constituição das
referências, no modo de ser do Dasein, para lidar com os entes.
O Habitar Originário
Se nos voltarmos livremente ao mistério da primeira morada,
não parece difícil conjecturar que o “Dasein intrauterino” desconhece
a corporeidade. Seu ser se dá numa plenitude tátil que, muito
provavelmente, não pode inferir ou sequer intuir a questão corporal.
Portanto, na condição mais originária, podemos supor que o sentido
de lugar venha antes até que a noção de ser um corpo, o qual se
confunde com o invólucro da “nave-mãe”.6 Ao nascermos, no mundo
exterior onde somos lançados, habitamos por um tempo “ainda o
antes”, numa “desuterinização” progressiva que vai sendo gradati-
vamente efetivada por surpresas, estranhamentos e ou insights. O
próprio corpo vai ser uma descoberta posterior, inferida através
de camadas de evidências, sempre, e cada vez surpreendente-
mente no que chamamos mundanização.
O ser-é-no-mundo. Nossa sexualidade, por exemplo, é prova
cabal do quanto pode ser surpreendente habitar o próprio corpo
tanto quanto o de outrem. Habitamos em primeiro lugar a densidade
sensível do mundo por meio da existência que nos arrebata e,
apenas em segundo plano, passamos a habitar nossa própria
6 O que pode levar à compreensão que dizer “ser” não é o mesmo que dizer “ego”.
O RELÓGIO
Diante de coisa tão doida
Conservemo-nos serenos
O Tempo e o Ser
Pode parecer diletantismo trazer uma abordagem preten-
samente filosófica do “tempo” num livro que trata de arquite-
tura, contudo é inegável que a historiografia traz consigo uma
perspectiva temporal, a qual, ao nosso ver, coloca-se como uma
verdade aparentemente incontestável, confrontando-se e velando
o tempo do fenômeno vivido. Assim, uma compreensão clara
da questão do tempo, da temporalidade e da discussão desses
conceitos, constitui o fundamento primeiro, que não pode ser
negligenciado.
A concepção de tempo já está bastante discutida pelas
ciências e pela filosofia, quase à exaustão, embora não haja
sequer um consenso sobre se de fato ele existe. No atual estado
da arte consideram-se três concepções fundamentais de tempo:
a primeira como ordem mensurável do movimento, a segunda
como movimento intuído e a terceira como estrutura de possibi-
lidades (ABBAGNANO, 2007).
A primeira (ordem mensurável do movimento) é a concep-
ção que, com variações, predominou ao longo da história e que
propõe o tempo em termos absolutos, compreendido a partir de
uma mensurabilidade relativa, ou seja, o tempo uno medido em
diferentes escalas desde a escala cósmica até o átimo do momento
presente begsoniano.
A segunda concepção (movimento intuído) pode ser exempli-
ficada em Santo Agostinho:
O Espaço
Fora do princípio de “extensão” cartesiano, que se define pela
sua mensurabilidade, o espaço nos escapa, parece ser algo intangí-
vel, confunde-se com a ideia do vazio ou do não ser. A prevalên-
cia do visibilismo em nossa percepção das coisas oculta o ente do
espaço e, por conseguinte, nos distancia da questão do seu ser.
CÉUS INTERIORES
A primeira lembrança é puramente corpórea...
Quando era moleque eu voava de verdade!
Com perícia e absoluta tranquilidade,
cheguei a planetas distantes,
vi todas as paisagens!
Os campos, as matas, as montanhas e o mar!
Imenso...
Em sonhos incontáveis,
noite após noite,
estive por cima das árvores,
sobre toda cidade...
A Materialidade
Ruskin, nas Pedras de Veneza, refere-se à igreja de São Marcos
como “arquitetura incrustada”. Interessante notar como as boas
ideias são, com justeza, chamadas “seminais”. Uma única palavra,
uma semente, guarda o todo em sua singularidade, esperando
uma oportunidade... Tomemos então esta oportunidade propor-
cionada pelo Mestre das “Sete Lâmpadas da Arquitetura” para falar
da materialidade.
O incrustado é a materialidade por excelência. Apenas outro
conceito, de certa maneira oposto, pode se comparar como revela-
ção da qualidade material que é o desgaste. Contudo, no reino da
A CARCAÇA
Há milhões de anos no passado,
uma imensa baleia ancestral,
maior que um grande dinossauro,
morreu aprisionada ao lamaçal.
O SOLO
O solo se chama chão
apenas quando se pisa
E ao se pisar, nosso peso,
Pouco a pouco, dia a dia,
A Forma
Pode parecer fundamental para a compreensão da forma, que
se inicie nosso discurso cartesianamente, pela análise objetiva dos
mecanismos corporais, os “órgãos dos sentidos”, o olho, as organe-
las do tato na epiderme, o nariz e os ouvidos. Esta é, usualmente,
a porta de entrada para o conhecimento da percepção, e a arapuca
da objetividade.
Além dessa questão em torno dos órgãos dos sentidos, ou
na sequência dela, os estudos da psicologia cognitiva explicam a
percepção da forma, subjetivamente, considerando configurações
pretensamente “primárias” (quadrado, círculo ou triângulo) ou
ainda a partir de configurações “mais simples”, como no caso de
um padrão plano que se tornaria “mais complexo” num desdobra-
mento tridimensional, sendo o segundo derivado do primeiro numa
relação de crescente “complexidade”.
Convém, de passagem, reconhecer que a psicologia da Gestalt
deu uma contribuição fundamental para a explicação de como
se processa o mecanismo da nossa percepção das imagens. A
ideia da prevalência da totalidade num padrão qualquer em sua
relação fundamental com as partes é uma verdade que trouxe
muitos desdobramentos nas ciências em geral e, por exemplo,
na teoria da arte; lembremos de autores, como Rudolf Arnheim
(1904 – 2007) ou Gombrich (1909 – 2001), e podemos constatar
como as explicações da ciência podem trazer compreensões para
um mundo aparentemente tão arredio a explicações como é o
da arte. Entretanto aqui devemos contornar o embate “objetivo
X subjetivo”. Assim, em nossa busca por fundamentos, movidos
pela disposição do questionamento, poderíamos considerar três
hipóteses para a abertura da nossa análise da forma: (1) a fisiologia
dos órgãos dos sentidos; (2) alguma abordagem subjetiva, como
a da Gestalt ou; finalmente, (3) a busca do fenômeno, que está
sempre antes das coisas e das ideias.
Parece, portanto, necessário, como propomos aqui, tentar
dar um passo atrás para ver o como da forma. Não significa que,
retrocedendo no pensamento, iniciaríamos nossa busca por um
círculo ou um quadrado; ou quem sabe um triângulo? Não, nosso
passo atrás não nos leva a uma pretensa forma “mais simples”, esta
é a armadilha da subjetividade, uma herança da lógica tradicional
onde tudo se dá como causa e consequência. Não partiremos do
“pseudo-elementar”, da pretensa “forma simples com seu contorno
e densidade interna, em contraste com a difusão do fundo etc.”
simplesmente porque consideramos que, primeiramente, não há
nenhuma “forma simples”. As três figuras geométricas mencio-
nadas, se comparadas, podem ser mais vermelhas, maiores ou
menores, mais lisas ou mais rugosas; cada qual tem sua própria
complexidade, aliás variável conforme a circunstância; contudo,
em essência, pertencem a universos diferentes, em termos absolu-
tos são sempre incomparáveis uma à outra. Portanto está fora do
nosso interesse essa forma da experiência “in vitro”.
Contudo, quem sabe? Talvez houvesse uma pretensa “forma
primordial” no próprio campo visual vazio... Mas o que é o vazio?
É o preto ou o branco? Seria o acinzentado dos olhos fechados?
Talvez a visão dum eventual vazio esbarre, inviável, no próprio
ato de perceber que, por si, já conecta “algo”. Mas ainda, tentando
insistir, talvez se pudesse, por exemplo buscar um suposto “esvazia-
mento” por meio de um tipo de “pregnância meditativa”, mas que,
talvez, se revertesse em não perceber. Em suma, seja como for,
parece-nos que quanto mais procurarmos, essa extrema simpli-
ficação da forma, haveria ainda o seu antes.
Por outro lado, buscando a via do fenômeno, não parece difícil
“nos observarmos a nós mesmos observando”, através da “janela
da alma”, por uma abertura mais ou menos arredondada, uma
elipsoide muito vaga, talvez levemente horizontal, mais intuída
que presenciada, com as bordas imprecisas, difusas, que está talvez
“desaguando” (para fora ou para dentro?), mas principalmente na
“retenção” do que se foi e na “protensão” do que virá. Aqui não há
ainda um “campo visual”, ele vem depois.
Antes, talvez um tanto por dentro e no primeiríssimo plano
está a “útil e necessária” proteção do sombrolho; nas laterais, as
“antenas parabólicas” das orelhas, obviamente não vistas, mas
fortemente sentidas, expandindo uma espacialidade que se estende
ao redor (mas principalmente para os lados e para trás) e que se
retrai num tipo de invasão espacial para o interior da cabeça (ao
mesmo tempo por trás e por dentro); os ouvidos que, com seus
“cordões de marionetes”, puxam o olhar para confirmar ou negar,
mas principalmente “duvidar” do que se vê e, simultaneamente,
o nariz 11, sempre alerta, cumprindo uma função prospectiva na
parte inferior do campo visual.
Nota-se que, numa simples auto-observação, verificamos
claramente que, no todo, ou seja, na associação do aparato olhos-ou-
vido-nariz (sem adentrar em outros desdobramentos, talvez inúmeros
e variáveis) estamos falando de algo único, fundamentalmente
inclusivo e interdependente, como numa contrapartida organo-
fenomênica da Gestalt. O predomínio da visão se dá apenas até
que nos lembremos do que significa uma noite na mata fechada
sem luar. Além disso, provavelmente em nossa condição silvícola
original, a importância desse sistema integrado seria, certamente,
bem maior. Contudo ainda não termina aqui.
Essa necessária complexidade, que, na verdade, se transforma
em simplicidade porque se funde pela inclusão (e não analiticamente
numa cadeia lógica), vai ainda mais longe, inclui o movimento, as
rotações, translações e toda a complexa biomecânica do mover-
nos em sincronia com todos os aspectos descritíveis ou não da
presença, de estar no mundo. O caminhar sobre, ao longo de,
entre, através, dentro ou fora e em torno, sempre na expecta-
tiva do porvir e na retenção do que se apresenta, com todas as
estranhas e misteriosas coisas que se escondem no cotidiano mais
corriqueiro, e se mostram nas situações mais surpreendentes.
Entretanto, surge em nossa busca prévia da forma, o mais
banal: as mãos. Em nosso mover-ver-ouvir-farejar (antes de cheirar)
como um único e inseparável evento, ao mesmo tempo irrelevante
e, por isso mesmo, profundamente insondável, as mãos, essas,
partes do todo, que guardam a marca da nossa personalidade,
que também participam e, na verdade, coordenam, esse feixe
absolutamente unitário e integrado, determinando o sentido de
11 Este ornamento, que foi, no passado remoto dos nossos ancestrais, um
órgão fundamental para a sobrevivência, mas, que com o tempo, foi, aos poucos,
perdendo sua função vital e, ainda que preserve vestígios de sua função defensiva
e prospectiva, como tudo que fica obsoleto, voltou-se principalmente para os
prazeres.
Forma e Paisagem
A noção de natureza em Aristóteles implica particulari-
dade e diferença. Physis, ‘natureza’ em grego, significa em
primeiro lugar ‘ação de engendrar, de produzir, de fazer
nascer’; Aristóteles, por sua vez, define o termo como
‘princípio de movimento e de repouso’, ou, mais precisa-
mente, ‘princípio e causa de movimento e de repouso,
imediata e essencialmente presente naquilo em que se
encontra’ (BERNHARDT, 1973).
Outro Olhar
Assim se deu, já de início, com os colonizadores que aqui
chegaram, envolvidos em seus respectivos mundos das referências
eurocêntricas, através das quais viam os indígenas como idiotas,
13 Quase inteiramente reflorestada com muitas árvores exóticas como a jaqueira.
Mundificação e Antropia
Como decorrência da lenta e complexa modelagem da
paisagem, que se processou durante os tempos geológi-
cos, combinada com mudanças ambientais de clima e
nível do mar foi produzido na Baía e Bacia da Guanabara
um diversificado complexo de ecossistemas que inclui:
Mata Atlântica, campos de altitude, manguezais, brejos,
alagados, pântanos, lagunas, restingas, dunas, praias,
rios, estuários, enseadas, sacos, gamboas, ilhas, lajes,
coroas, costões e pontões rochosos, falésias e feições
ruiniformes. Cada um desses ecossistemas possui um
significado ecológico particular e uma inter-relação
com o ecossistema da Guanabara como um todo. Alguns
desses ecossistemas foram literalmente destruídos
durante a ocupação histórica, iniciada com a coloni-
zação europeia, como as restingas, sistemas f luviais,
pântanos; outros foram irremediavelmente mutila-
dos, como as enseadas, sacos, gamboas, estuários,
lagunas, praias, manguezais, Mata Atlântica e ilhas. Os
costões rochosos, que caracterizam a entrada majestosa
da Guanabara, em função de suas características de
difícil acesso e impropriedade para a agricultura ou
ocupação, e os campos de altitude, situados no topo da
Serra dos Órgãos, foram os únicos ecossistemas que
permaneceram relativamente incólumes. No entanto,
mesmo alguns costões rochosos foram mutilados por
aterros, como nos realizados para a formação do bairro
da Urca. (AMADOR, 1997)
Patrimônio ou “Ambi-ente”?14
“Qualquer ideia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua.
O autor nada mais fez que vestir a verdade
Que dentro em ti se achava inteiramente nua...”
(Quintana, 2005)
15 Note-se que inclusive o conceito de patrimônio imaterial não deixa de ser
uma coisificação.
A Potencialidade16
Uma bela escultura de uma deusa grega do período
clássico não é apenas reconhecida como objeto artístico,
Potencialidade e Possibilidade
Aqui trazemos um conceito da matemática que pode ilustrar
a ideia daquilo que tende a algo, sem nunca chegar efetivamente:
a ideia da função exponencial. Assim, quanto mais nos voltemos
para o nosso modo de ser autenticamente, tanto mais podería-
mos nos aproximar da natureza ainda que jamais chegaría-
mos efetivamente a ela, pois ela estará sempre fechada na sua
imanência. Contudo, por meio da função exponencial, ou seja,
“tendendo a”, talvez possamos colher muitos resultados como
na fabula a seguir:
A RUÍNA
A ruína sempre começa numa linha que se desfia,
numa farpa, numa lasca ou na louça esquecida na pia.
Em seguida aparece um vento, que entra sorrateiramente,
e rouba a alma das coisas, de um jeito que a gente nem sente!
70
O Fenômeno Arquitetura
O Habitar Transcendente
O que se perde no tempo passado pode renascer na imagina-
ção, assim, se começamos a imaginar a condição original da civili-
zação podemos considerar, sem medo de errar, que o primeiro
fundamento da manualidade, a produção de artefatos 17 levaria
à arquitetura e à própria condição humana. Ainda que a mão
humana, com seu polegar oposto, não seja, no reino animal, a
única ferramenta eficaz para a transformação de coisas ou para
a construção, pois diferentes espécies, como aves, usam os bicos,
ou outras criaturas o próprio corpo ou parte etc. Contudo, entre os
mamíferos, especialmente nós, os primatas, a habilidade manual
é bastante difundida.
Em diversos aspectos, a evolução biológica corrobora a condição
existencial, mas muito em especial no jogo das possibilidades que
condena, mas, ao mesmo tempo, propicia o desafio de estarmos
sempre lançados em direção ao futuro. Há diversas demonstra-
ções da filosofia heideggeriana nos mecanismos da evolução e
vice-versa.
Assim, a partir de uma hipertrofia cerebral circunstancial e
de uma decorrente maneira peculiar de lidar com as coisas ou,
em outras palavras, numa sucessão de circunstâncias e acasos
(evolutivos) de um lado, e de disposições e compreensões (fenomê-
nicas) do outro, nossa espécie de primata foi levada a uma condição
peculiar de lidar com o mundo em um modo de ser essencialmente
transformador, tanto perante mundo, quanto com relação a nós
mesmos. Passamos então a operar as coisas a partir da manualidade.
Ora, fazer coisas implica na condição em que as coisas oferecidas
pela natureza não atenderiam a alguma demanda (preexistente
ou criada). É exatamente aí que a manualidade instrumentaliza
um rompimento às imposições da natureza.
A arquitetura e a cultura e, em essência, a própria condição
humana nascem dessa ruptura. Quando o homem elabora os primei-
ros artefatos funda um mundo à parte. Assim, naquele momento
soterrado num passado distante, aos poucos (ao menos dentro na
Os Materiais Essenciais
Oculta sob a simplicidade do fazer manual está a magia da
realização. O que se esconde na ação de unir coisas para criar outras
coisas é sempre surpreendente se observado com atenção, seja na
conclusão de uma obra de arte, como um quadro que se termina,
ou na produção de algum artefato, mesmo que de caráter simples
e prático como, por exemplo, uma caixinha de madeira bem-feita;
ao final, há sempre aquele olhar do artista que admira a sua obra,
e, por trás dela, o intrincado encadeamento dos referenciais.
Realizar algo deixa uma estranha impressão de satisfação que
poderia ser o inverso da angústia nadificante, pois acrescenta e
acumula acontecimentos ao mundo, traz para o ser-com o produto
da disposição do Dasein e conecta à rede dos referenciais a partir
do principal canal de ligação que temos com o mundo, ou seja, o
“por entre” as mãos.
Além disso, há o prazer da descoberta que sempre se renova
na comprovação de executar algo. Saber fazer nos traz a impres-
são de ocupar uma posição vantajosa no comércio dos autorreco-
nhecimentos, pois a habilidade manual é o inverso da alienação e
O solo
A matéria de que somos feitos é a efetiva junção entre os
elementos água e terra, ambos necessitam um do outro e estão
unidos intimamente. A água, do gênero hermafrodita é por vezes
conteúdo e por outras continente, quando ela encontra espaço
para se expandir vira fêmea, na condição de aperto, infiltra-se,
percola e preenche. A terra, por sua vez, é visceralmente fêmea,
capta o elemento líquido, reelabora-o, e distribui generosamente
para todos os meios adjacentes. Faz brotar as sementes e alimenta
as grandes florestas. As argilas, sedentas, compõem o seu tecido
vital e ativo, retêm a água em seus interstícios e possibilita todas
as reações com o meio e os seres vivos. Também na construção,
esse tecido “orgânico” das argilas possibilita o habitar humano
mais essencial. Onde a madeira inexiste o homem, tal como os
cupins, cria um pequeno universo artificial que imita a abóbada
celeste, onde há madeira o solo é elevado, vem de baixo para cima
e sustenta a estrutura da cobertura sobreposta.
Construir com terra é um fundamento da condição humana.
Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as culturas
a arquitetura de terra é a regra fundamental. A arquitetura de
terra une os elementos da quadratura da maneira mais explícita
possível, precisamos voltar a construir mais com terra para sermos
mais nós mesmos!
A Pedra
As rochas, em sua interminável variedade de cor, consistên-
cia e textura, vivem muitas vidas. Nascem da forja mais quente
que o sol nas entranhas da terra e quando são esfriadas pelo ar
atmosférico se fecham em si mesmas, numa tentativa de imitar
o planeta mãe que esfria de fora para dentro, tentando reter um
núcleo incandescente.
Uma rocha que emerge das profundezas ígneas comporta-se
como um pequeno planeta efêmero e segue, na sua tenacidade,
pensando que é. Sua dureza autocontida traz a essência do para
dentro, do inacessível; a pedra só conhece a força da compres-
são, que ela domina como ninguém mais, pois as pedras de uma
construção lutam em silêncio um sumô intertravado numa força
bruta estática, enquanto a sua superfície externa tenta inutil-
mente resistir contra os elementos que nunca desistem e que
têm o tempo a seu favor para dissolver as montanhas.
Mas a tenacidade é o princípio da pedra, pois mesmo dissol-
vida pelo intemperismo seu pó se reencontra e, teimosamente,
cumpre novamente o seu destino nas rochas sedimentares que
se consolidam em segredo formando os arenitos, os calcários
e, por meio de uma alquimia milenar, o milagre dos mármores.
Nós tivemos uma longa e dura luta para dominar o material
que é a maior prova de que os grandes sacrifícios propiciam
grandes compensações, pois dominar a dureza da pedra cedo se
reverteu em grande vantagem tecnológica. Nas mãos do homem,
são, por exemplo, a arma primordial com a qual Caim teria matado
Abel. O monumento funerário essencial seriam pedras empilha-
das, ideia original que seguiu como tal até às grandes pirâmides.
A perenidade, o máximo que se pode aproximar da eternidade,
está na pedra. O símbolo da vontade do poder que se estende para
muito além do ciclo da vida humana. Lembremos também das
pontas de lança de sílex, esta pedra/vidro trabalhada à perfeição
do ourives por cavernícolas desaparelhados, demonstração de que
provavelmente os primeiros artefatos “hightech” foram de pedra.
O aprimoramento técnico do trabalho com pedra dependeu
da evolução de todo um aparato tecnológico, especialmente
A Madeira
Não há material mais visceralmente humano que a madeira, ela
nos acompanha da manjedoura ao caixão. Sabe-se que, muitíssimo
antes dos primeiros hominídeos, o advento dos vegetais lenhosos foi
um tremendo sucesso em termos evolutivos. A madeira é digerida
por pouquíssimos animais, originalmente por nenhum, portanto
sua dureza associada à flexibilidade foi aprimorada ao longo de
muitos milênios desde singelos raminhos frágeis e suculentos
até que se erguessem as grandes árvores, por feixes poderosos de
fibras paralelas, numa materialização conceitual de que a união
faz a força. Lembremos das Sequoias descomunais, algumas com
Os Metais
A essência da terra destila-se em metal. O homo-alchemist,
devoto de Hefesto (vulcano) e de prometeu, que nos antecede
em milênios, fez, sabe-se lá por que conjunções milagrosas,
uma revolução que se reflete até os dias de hoje como ponta de
lança da tecnologia. Pode-se imaginar a odisseia desconhecida
da conquista dos metais em meio à precariedade e a condição
rústica de então. Seria fascinante investigar a proeza de fundir
metais numa pré-história da metalurgia, à maneira de Bachelard,
onde contexto sonhado pelo filósofo-poeta poderia trazer pistas
da tecnologia com-fundida com rituais e magia!
Desde o início da metalurgia alargamos o passo em nosso afasta-
mento da natureza e na criação de um mundo que nos é peculiar.
Como não dispomos aqui da referência bibliográfica, que
na verdade se inicia nos alquimistas no clássico “A Formação
do Espírito Científico”, tratemos, portanto, nós mesmos de um
ícone da metalurgia. Um verdadeiro clássico: O Gancho! Contudo
convém justificar a origem da poesia que se segue para ilustrar
a ideia, para não parecer que se trata de algo gratuito, mas da
passagem da questão da materialidade tratada até aqui para o
tema subsequente da manualidade que se seguirá.
Certa vez na cidade de Ourense, na Galícia, visitando uma
daquelas casas de pedra que parecem ter saído de contos medievais
vi, junto ao fogão de lenha, um gancho. Não era mais que uma barra
de seção circular que teria meia polegada de grossura retorcida
com muito esforço, ou a quente, com a forma aproximada da letra
delta grega. Uma peça realmente muito tosca, contudo, fui tomado
de fascinação por aquele “artefato ideia de Platão”. Sua idealidade
O GANCHO
O fogo começou a odisseia,
depois veio a “Idade dos Metais”
Na curva da História surge o Gancho,
conquista dos nossos ancestrais!
18 Tive notícias recentemente e o gancho passa bem, como era de se esperar,
provavelmente sobreviverá a todos nós.
A Manualidade
Rousseau nos ensina no “Emílio” aquilo que deveríamos lembrar
ao compor os programas de ensino de arquitetura em tempos
de vigência absoluta da virtualidade castradora em que vivemos.
Kant, conforme acentua Heidegger, já indicara que mais que nas
profundas meditações do gênio, ou os grandes atos históricos, é
nas coisas do cotidiano, as mais simples e corriqueiras, que se
escondem os mistérios fundamentais.
Lidar com as coisas na manualidade já é em si transcender.
A descoberta das coisas por meio do manuseio abre mundos e
interliga esses mundos intersubjetivamente através dos referen-
ciais. No ser-em, no lidarmos com as coisas, está sempre também
implícito o ser-com. Assim, se nos é permitido fazer um relato
pessoal como exemplo, recordaria um episódio, talvez aos sete
ou oito anos de idade, no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de
Janeiro, acompanhando minha mãe que lá trabalhava.
Estava eu, então, recortando bonecos de papel e as suas
roupas intercambiáveis (muito envolvido na minha “lida engaja-
díssima” e minuciosa) quando me apareceu um senhor de idade
e estatura altas. Soube ser arquiteto. Disse-me o senhor, que me
pareceu bem gentil, que eu não deveria cortar diretamente as
figuras, mas, antes, destacá-las da folha cortando ao redor para
então recortá-las mais detalhadamente quando separadas do
todo; “assim fica mais fácil!”, disse o meu velho mestre instan-
tâneo, digo instantâneo pois nunca o havia visto antes, nunca
mais o vi depois. Contudo fez-se a magia do fenômeno! A simples
instrução de “recortar antes ao redor” me abriu uma compreensão
amplificada e uma perspectiva do mundo. Compreendi, intuitiva-
mente e para sempre, que as coisas devem ser entendidas primei-
ramente em sua totalidade, consideradas de fora para dentro;
A Cabana Original
Aliás, já que aqui estamos, é na cabana mesmo, ou num
espaço correlato, o lar original em suma, é aqui onde somos de
fato lançados para sermos-no-mundo. É a partir do lar, ao menos
Os Desdobramentos do “Entre”
Estar e circular entre é uma condição fundamental da vida.
A minhoca e o falcão estão e circulam entre os elementos que a
ales concernem, aos quais estão adequadamente aptos e limitados.
Assim estamos também nós. Habitamos a quadratura “entre o céu e
a terra, entre os deuses e os mortais”. No entre que concerne a nós
se dá a arquitetura enquanto espacialidade em torno dos lugares.
Tomemos mais uma ilustração para mostrar a questão da relação
entre lugar e espaço, um exemplo que se vê nos livros de história
e que está na origem da formação da cultura ocidental.
Lembremo-nos das catacumbas na Roma Antiga, em seus
caminhos e como eles chegam até nós: Em oposição ao massacre,
à barbárie e ao caos existencial proporcionado pela ruína da vida, da
cultura e da religião na antiguidade tardia, além, é claro, do trabalho
leonino de São Paulo e a tenacidade dos mártires, apresentou-se
a promessa da vida eterna e bem-aventurança que finalmente foi
liberada por Constantino possibilitando o desejo, ou antes, uma
forte disposição, para o culto dos mortos a partir do enterramento
(não mais a cremação como era o costume antigo dos romanos)
para aguardar o dia do juízo final, quando todos seriam resgata-
dos na volta do Messias.
As catacumbas são um impressionante testemunho de como
podemos ser estranhos no nosso modo de ser. Fala-se em cinco
milhões de enterramentos nas catacumbas romanas. A necrópole
subterrânea, em grande parte cavada no tufo vulcânico, formava redes
nos bebês se efetivará bem antes que os pés, e toda estrutura das
pernas, possam iniciar a cumprir sua função de caminhar, no que
se poderia chamar do prosseguimento de uma “embriologia tardia”.
Pois bem, sem querer entrar mais a fundo em questões de
anatomia comparada (o que seria irresistível se não fosse extempo-
râneo) chegamos aqui pelo caminho do livre pensar, se assim nos
permitirmos, a encontrar, de maneira incontestável, um atavismo
evolutivo do tempo em que éramos arborícolas. Naquele tempo
era menor a diferenciação e tanto mãos como pés serviam para
segurar em conjunto. Os pés, mais longe da cabeça, serviam a
manualidades, digamos, subsidiárias, que ainda se verificam nos
primatas arborícolas e em nossos bebês, que tentam usar os pés
como mãos auxiliares. Até aqui nenhuma novidade.
Mas, talvez possamos pensar os caminhos da evolução dentro
da historiologia das possibilidades e fora da ilusória perspectiva
antropocêntrica, que sempre vela a verdade sobre as coisas da
natureza e da vida. Em geral pensamos nas mãos como tendo
sido “libertadas” para os fazeres manuais, o que nos caracte-
riza como humanos etc., (como em algum texto do Engels). Mas
se pensarmos ao contrário? Se imaginarmos que na verdade
os pés é que se tenham libertado da manualidade para o seu
“manuseio”... Ou diríamos (com as desculpas que a licenciosi-
dade dum neologismo tão esdrúxulo demanda), o “podoseio” do
chão. Pensando ao contrário, chegamos à interessante conclu-
são de que antes, pés e mãos eram na verdade apenas mãos,
pouco diferenciadas. Com o tempo os pés, gradativamente, foram
alinhando o polegar e ganhando robustez, para suportar carga
e impacto, quando deixamos as árvores e nos vimos às voltas
com a nova demanda da savana.
Contudo nós, devido ao vício antropocentrista, sempre preferi-
mos contar a história das coisas elevadas, nunca das rasteiras.
Todavia às vezes o inferior é superior e o pé, em sua nova especiali-
zação de “apenas” andar, não mais manusear, apresenta a condição
de pisar como um advento, a conquista de novos tempos e novos
espaços. Refunda-se a partir daí o nosso ser-no-mundo, subvertendo
nossa relação com o fundamento tão básico quanto a gravidade,
tirando-nos da árvore para nos ligar ao chão.
20 Antes disso não havia o chão, que se instaura como fenômeno a partir do
pisar essencial.
21 O que também ocorre com animais de grande porte como os elefantes.
A Escala da Mão
O ali, o lá e o acolá saem sempre do aqui. A escala da mão é a
referência básica a partir da qual calibramos todas as coisas. É escala
dos objetos plenamente apropriáveis. Nas mãos, sob o aparente-
mente óbvio dos fazeres humanos, o utensílio é a chave que penetra o
mistério da abertura do mundo. É possível ser um bom arquiteto sem
dominar os fazeres manuais (Gropius, parece que sequer desenhava),
contudo a manualidade, especialmente se trabalhada desde a infância
(vide o Emílio de Rosseau), abre caminhos diretos para aspectos que
o intelecto precisa dar muitas voltas para encontrar.
A Escala do Braço
É através do raio de ação da envergadura que se dá o domínio
da nossa própria espacialidade e o sentido de territorialidade mais
fundamental. Os braços são a ponte que vence o abismo que existe
entre o corpo e o mundo (e os outros). Perante os outros, os braços
abrem as portas da intimidade no abraço, ou distanciam no repúdio
e na luta corporal. Com os braços abrimos caminho por entre as
coisas e as pessoas. A pintura e a escultura são produzidas na
escala do braço, tudo o que é apropriável pelo gesto.
Escala do Corpo
Na escala do corpo acontece a arquitetura como espacialidade.
A cabana e a catedral são medidas pelo corpo. Assim, enquanto a
manualidade mede o longe a partir do perto, o caminhar, ao contrá-
rio, galga distância do perto a partir do longe. Entretanto, desde
quando começamos a usar montarias, e todos outros meios de
A Escala do Céu
Através da ciência e da cosmologia formamos uma ideia de céu
infinito, mas, do ponto de vista do fenômeno de estar-aí (aqui), o céu
apresenta-se como coisa, atingível nas grandes alegrias ou quando
nos sentimos amados. Termina onde começa a terra, formando o
horizonte das possibilidades humanas, é delimitado pelos caminhos
possíveis, é finito e apresenta forma, consistência, cores, texturas
variáveis e características locais. A abóbada celeste é a arquitetura
fundamental. O teto da paisagem é modelo de referência para a
arquitetura construída.
O Lugar
É chegada a hora de tentar enfrentar o desafio do lugar. Dizemos
desafio porque suscita muitas questões no caminho do pensar, com
todas as dificuldades que a filosofia apresenta para nós, arquitetos,
que, de maneira geral, não estamos muito habituados a pensar,
mas antes, fazer. Assim, perguntamos a pergunta que, em geral,
é respondida insatisfatoriamente, com algum sentimentalismo
vago e reticências: O que é este ente, o lugar? Onde ele se esconde
e se mostra? Qual é o ser que lhe corresponde? E, por conseguinte,
qual a sua verdade? Como podemos encontrar um acesso até ele?
E, finalmente, talvez a pergunta mais importante, ao menos para
nós arquitetos: o que fazer com ele caso ele se mostre?
Pode-se começar limpando o terreno e buscando, como ponto
de partida, àquilo que o lugar não é. O lugar não é uma coisa, não
se configura como espacialidade no sentido material e, portanto,
não pertence à esfera da objetividade. Assim, descartamos de
saída os métodos da ciência empírica em nossa busca. Jamais
23 Aquilo outro que em geral se chama mais ou menos sem definir claramente
de “vitalidade” são derivações secundárias, idiossincrasias ou recurso retórico
vazio.
110
A Questão da Teoria
Teoria e Tratadística
Não se pode medir a relevância de Vitrúvio para o seu tempo,
entretanto, pode-se depreender hoje, com relativa facilidade, que
os Dez Livros de Arquitetura (2006) tratam de uma teoria nascida
principalmente da prática, ou seja, um conjunto de preceitos para
fazer entender a correta condução da arte de construir a partir
de considerações e regras formuladas por alguém que conhece o
ofício, talvez por tê-lo exercido na prática, inclusive manualmente,
o que confere um ethos, uma especial autoridade para a teorização.
Por outro lado, quatrocentos anos depois, em Alberti, revela-se
o sinal dos tempos da modernidade e, embora na Arte de Construir
(2012) haja prescrição de preceitos práticos, a teoria nasce antes
do logos, da disposição intelectual e, de maneira geral, dirige-se
à prática dentro de um programa intelectual prévio, ao mesmo
tempo especulativo, moralista e doutrinador. Em comum, as duas
fontes, a prática e a intelectual, buscam de maneira geral chegar
a preceitos de aplicabilidade, seja para conservar, aprimorar ou
modificar essa prática, ou ainda criticá-la em sua validade dentro
de um determinado contexto histórico e ideológico.
A questão da Técnica
Nossa relação mais essencial com o mundo se dá a partir da
manualidade. Juntar materiais para criar coisas é um milagre que
muitas vezes passa desapercebido na aparente simplicidade do
cotidiano. Presenciar, por exemplo, um artista ou ainda um simples
artesão habilidoso em ação é sempre um curioso espetáculo. 24 E
mesmo o artefato produzido pela mais alta tecnologia guardará
sempre sua ancestralidade no fazer manual.
Contudo, à medida em que se afasta a manualidade e prevalece
a teoria sobre a prática, a técnica passa a colocar a compreen-
são antes da disposição do fazer. No desenrolar da presença,
quando o entendimento antecede a ação, prevalece a inautenti-
cidade. Entretanto, convém frisar, em termos dos existenciais do
ser-no-mundo não há espaço para maniqueísmos. Os juízos de
valor são sempre subsidiários, vêm depois. Assim, se em nossa
essência mais fundante tudo se dá como condição de possibili-
dade, muitas vezes “o feio é belo e o belo é feio” e a compreensão
inautêntica, em simplesmente aceitarmos a técnica, pode também
ser autêntica... Ou não.
Se pensarmos, por exemplo, no principal instrumento da concep-
ção projetual, o desenho, podemos observar que na disposição
mais autêntica de desenhar, ou seja, durante as primeiras fases
da infância, a técnica é algo que praticamente inexiste, tanto nos
meios como nos fins, limitando-se a uma vaga intuição dos próprios
limites e possibilidades inerentes aos materiais que se usa para
desenhar, ainda assim, completamente “esquecidos” durante o
uso. Portanto, talvez justamente pelo desprendimento em relação
à técnica, a descoberta de mundos se faz plena, na livre imagina-
ção que o desenho infantil expressa; o qual, antes da represen-
tação, dá-se na própria “presentação”. 25
No ato de projetar desenhando há também essa mesma
disposição originária, tal como nas crianças. Obviamente no adulto
26 Este fato encontra uma confirmação paradigmática no movimento “arts and
crafts” da Inglaterra vitoriana onde se buscava uma retomada do fazer artesanal e
que terminou por influenciar a Bauhaus voltada à produção industrial.
Recorte Referencial
Tomamos essas três principais referências, da tipologia, da
morfologia e da teoria do restauro, para propor uma ontologia.
Contudo, obviamente, toda contribuição teórica acumulada no
campo disciplinar do urbanismo é importante. Há vários autores
fundamentais, por exemplo Cerdà, Jane Jacobs, Aldo Rossi etc. que
tratando de questões urbanas ou de arquitetura remetem, necessa-
riamente, às questões que vem ao encontro do que aqui se discute.
O Referencial da Restauração
Numa espécie de apologia da disciplina do restauro costumo
sempre aludir, como brincadeira em sala de aula, à ideia que os
arquitetos restauradores cultivam, sobre seu ofício como sendo
superior, se comparado à disciplina da arquitetura em geral. Comparo
o restaurador com os personagens do filme “Ensaio de Orques-
tra” de Fellini, onde cada músico exalta seu instrumento como
o melhor e mais completo. “Mas, de fato, digo eu, a disciplina da
restauração lida com toda extensão do campo disciplinar, desde
a concepção mais abstratamente filosófica, até a obra mais tosca,
e da filigrana à paisagem”.
Não é demais lembrar que o inventor da restauração moderna,
Violet-Le-Duc, não foi apenas o grande restaurador do seu tempo,
mas, segundo Pevsner, foi também o principal teórico da arquite-
tura desde Alberti e preparou o terreno para as gerações seguin-
tes ingressarem em novos tempos.
Assim, seguindo em nossa caminhada das ideias, passamos
um tanto detidamente pela questão do corpus teórico do restauro
em busca de um caminho. Caminho que, em parte, já percorremos
e que, conforme imaginamos, pode nos levar a uma compreen-
são que pretende ir além do campo estrito da restauração para
a discussão de caráter disciplinar da arquitetura em geral e do
urbanismo, e mesmo de visão de mundo.
Podemos exemplificar a apropriação do conceito de “reversibili-
dade”, muito aplicado como um princípio que prevê a possibilidade de
Patrimônio e Poder
Françoise Choay (2001) situa o nascimento da ideia de Patrimô-
nio Histórico na reconstrução de Roma ao final da idade média.
Essa busca de referenciais da antiguidade voltou-se ao classicismo
como modelo dentro de uma ideologia de poder que buscava legiti-
mar o papado buscando reacender a supremacia da igreja e da
cidade eterna em tempos de mudanças. A escolha do classicismo
representava uma renovação para a classe dominante juntamente
com o clero, numa nova ordem onde, gradativamente, abando-
nava-se o modo de produção feudal e se voltava para o avanço do
capitalismo mercantil.
Portanto a ideia de patrimônio histórico nasce e se desenvolve
como busca de legitimação do poder, lastreado pela historiogra-
fia e pela religião e encontrando respaldo, em termos da arquite-
tura, na retomada da linguagem clássica da antiguidade.
Da mesma maneira, quinhentos anos depois, em meados do
século XIX a ideia de restauração também tem seu nascimento
voltado a um programa de retomada de valores, dessa vez justamente
aqueles negados pelos renascentistas. O gótico passaria a ser reconhe-
cido como o estilo representante da cultura europeia, enquanto o
legítimo representante dos estados nacionais em formação.
A Invenção do Patrimônio
Françoise Choay (2001) situa na cidade devastada de Roma,
no ano de 1420, o nascimento da ideia de Monumento Histórico.
A partir do século XIV, período em que a arte começa a se
libertar da subordinação à religião, o Monumento Histórico passa
a ser valorizado por sua antiguidade.
Ruskin e a Antítese
Por outro lado, paralelamente à visão filológica, voltada princi-
palmente para o caráter formal dos monumentos, na Inglaterra
Vitoriana surge outra corrente, mais interessada na materia-
lidade dos edifícios submetida à ação destruidora do tempo.
Ruskin é o principal representante dessa corrente. O autor das
Sete Lâmpadas da Arquitetura associa princípios éticos e morais à
questão estética e considera que a arquitetura deve ser entregue
ao seu destino inevitável de um dia sucumbir à força dos elemen-
tos, cabendo a nós apenas a piedosa atividade da conservação,
jamais a restauração:
Haussmann
Dentro de um contexto de modernização, o século XIX marca
o início das novas avenidas que irão romper os tecidos antigos
em nome do conforto e da higiene. Haussmann, em seu plano de
renovação de Paris, promoveu a destruição de grandes áreas da
cidade antiga em benefício da circulação, da estética e da ordem
social, determinando, entretanto, a conservação de determina-
dos edifícios considerados como monumentos a serem preserva-
dos ou mesmo colocados num novo contexto que os evidenciasse
como pontos focais dos novos espaços. Embora, na época, vozes
de inconformismo se levantassem contra a perda da velha Paris
Medieval, as demolições não deixavam de ser reconhecidas como
uma necessidade imposta por uma modernização inevitável.
Parece evidente que os românticos nutriam um sentimento
de perda pelos antigos conjuntos urbanos, entretanto parece claro
também que não encaravam esses conjuntos como um patrimô-
nio passível de ser protegido da destruição, como ocorria, por
exemplo, com as velhas catedrais e outros monumentos isolados.
Ainda com base em Choay, pode-se afirmar que até fins do Século
XIX os textos especializados que tratavam das cidades abordavam
a questão espacial apenas naquilo que se relacionava diretamente
aos monumentos. Os estudos históricos, até a Segunda metade
do século XIX, referiam-se às cidades sob o ponto de vista de suas
instituições jurídicas, políticas, religiosas, econômicas e sociais.
Mesmo a História da Arquitetura pouco trata da cidade. Todavia,
diversos fatores contribuíram para o atraso do estudo histórico e
artístico do espaço urbano: sua escala e diversidade, a ausência de
cadastros confiáveis; além da dificuldade de se reunir documentos
relativos às transformações do espaço urbano através do tempo.
Camilo Sitte
Camillo Sitte denuncia essa ausência no ano de 1889. Dessa
maneira, embora o século XIX, principalmente a partir do plano
Haussmann, tenha assistido a um debate dos valores culturais e
Boito e Giovannoni
Em princípios do século XX Camilo dá uma importante contri-
buição com uma primeira tentativa de estabelecer uma síntese
entre a corrente da restauração à maneira de Violet-Le-Duc e
da corrente conservativa de Ruskin. A partir de uma perspectiva
profissional e de uma proposta científica positivista, o arquiteto
propõe que seja possível identificar, na restauração de monumen-
tos, onde termina a parte original e começa a parte restaurada.
30 Não se pretende aqui fazer nem a apologia nem a condenação da iconoclas-
tia mais radical. Essas escolhas emanam do Dasein na constituição de mundos,
embora, para nós, em nossa própria compreensão, talvez fosse mais interessante
re-ambientar (como recentemente ocorreu no Cais do Valongo) ao invés de sim-
plesmente destruir.
O Tombamento
Fala-se que o termo é uma referência à Torre do Tombo em
Lisboa, lugar onde jazem documentos importantes etc. Contudo
é de uma evidência incontornável que a etimologia nos leva até a
tumba. De qualquer maneira, ainda que não se chegue ao mundo
dos mortos pela origem grega da palavra, a coisa converge em
perfeição com a hipótese etimológica. Assim, levado à tumba, o
monumento é ungido enquanto relíquia e deixa o mundo dos vivos,
embora, na maioria dos casos, nele tenha que permanecer. Esse
fantasma está excluído do tempo das mudanças e mergulha, ao
menos pretensamente, numa temporalidade diferente, torna-se
uma referência documental, um testemunho do passado que se
foi, ainda que tenha que seguir sendo usado e desgastado como
as demais coisas (não tombadas) do mundo mutante dos vivos.
A bem da verdade não se pode negar que a vigência do
tombamento, com todos os problemas decorrentes, tem tido seus
méritos e contribuiu muito para cidades “menos piores”, congelando
partes da cidade e estancando o turbilhão das mudanças que caracte-
riza a modernidade. Para o proprietário do imóvel tombado, de
maneira geral o tombamento é um castigo, principalmente por
impedir a inserção do imóvel no livre mercado.
Contudo, sem dúvida, deve-se reconhecer, em princípio, que
é mesmo fundamental tirar o edifício, seja lá o que for, do mundo
das mercadorias, o que implica também que sua condição de objeto
de uso pessoal seja posta em segundo plano, passando a prevale-
cer a sua condição de objeto de interesse público com valor (no
caso) histórico e artístico.
Restauração
“A palavra e a coisa não são novas” e o conceito já está discutido
retrospectivamente aqui no contexto geral. Apenas cabe ressal-
tar o caráter central que “palavra e coisa” representam, manifes-
tado já pelo fato de a restauração ter absorvido (ou fagocitado)
o conceito de conservação que, originalmente, era antagônico.
Assim, fala-se, por exemplo, em “restauro conservativo” e não
em “conservação restaurativa”, demonstrando o predomínio e a
força do atavismo de “voltar ao que era” quase como um impulso.
Outro aspecto desse predomínio reconstitutivo está também no
programa do curso de arquitetura que oferece a disciplina de Técnicas
Retrospectivas, sempre com a ênfase no aspecto reconstitutivo.
Ao que parece, todo esforço em buscar um sentido para o
termo que foi empreendido por gerações de teóricos e que levou à
ideia conclusiva de que restaurar NÃO é voltar ao que era encontra,
realmente, uma forte resistência.
Para nós, no contexto do que aqui se defende, parece que o
termo poderia ser substituído pelo conceito central que vige na
teoria. A “reintegração” trazida para o contexto mais abrangente do
urbano numa abordagem antes “ambiental” ao invés de histórica/
artística/reconstitutiva.
Reconstrução
Tecnicamente, entre os restauradores o termo é usado tanto
para indicar o próprio restauro repristinativo, seja em parte ou no
todo (principalmente no todo). De certa maneira confunde-se com o
“voltar ao que era”, embora não seja incomum algum tipo de “recons-
trução simplificada” ou esquemática, característica do restauro
científico. Praticaram-se muitas reconstruções, pós-segunda
guerra, nas cidades europeias devastadas pelos bombardeios,
numa maneira de apagar a tragédia e o sofrimento. Curiosa essa
ação de reconstruir para apagar, ou relembrar para esquecer!
Assim poderíamos, mais uma vez, ilustrar com o exemplo do
Museu Nacional,31 incendiado recentemente: questões histórico-
-artísticas à parte reconstruí-lo, tal qual como ele era, 32 significa
compactuar com o descaso que levou à sua perda, apagar o evento
(“trágico, catastrófico etc.”) criminoso. Assim, a ação criminosa fica
banalizada e torna-se, se não aceitável, mas ao menos tolerável,
empurrada para debaixo do tapete do esquecimento. Podemos então
(que tal?!) incendiá-lo novamente, diversas vezes se necessário,
porque sempre se poderá reconstruí-lo. Quem segue pensando
que “tanto faz” está enganado ou enganando.
Reforma
Persiste sempre alguma confusão entre restauração e reforma,
não apenas para leigos, como mesmo para arquitetos, inclusive
nos meios acadêmicos. A rigor a reforma é um termo genérico,
pouco usado no que se refere ao patrimônio histórico. Entretanto,
costuma-se, eventualmente, usar essa designação para qualifi-
car pequenos trabalhos conservativos ou de pintura, em especial
em imóveis preservados (não tombados) onde se costuma admitir
modernizações no interior. Observo, de passagem algo que sempre
me chamou atenção que está na constatação de que, muitas vezes
numa dita “reforma” a forma seja mantida e se modifique apenas
a materialidade, os revestimentos e acabamentos etc., manten-
do-se a forma original. Assim, como ninguém fala em “remate-
rialização”, o uso da palavra “reforma”, onde a forma não muda,
Revitalização
A associação entre a ideia de “vitalidade” e o prefixo “re” que,
analiticamente remete a “voltar à vida” fazem desse termo o mais
promissor e atraente, mas também o mais falacioso. Conforme
ocorre em geral com os “rês”, o termo revitalização serve na prática
para designar ideias variadas de maneira mais ou menos indiscri-
minada. Nunca é demais relembrar aquele exemplo clássico do
pelourinho, em Salvador, onde a chamada revitalização nos anos
90, paradoxalmente, expulsou a população que lá vivia. E de tal
maneira deu-se a tal “revitalização” que em cada um daqueles
sobrados centenários onde habitavam diversas famílias passasse
a ficar um único lojista vendendo suvenir. Questões como essa
mostram de maneira contundente como é importante definir uma
terminologia coerente.
Nunca será a mesma coisa chamar veneno de defensivo. No
império das palavras dizer “revitalização” pode esconder “gentri-
ficação”. Isso não é de maneira nenhuma irrelevante, é crucial,
e deveria ser corrigido. Nunca podemos deixar de lembrar que
a retórica é a “o modo de manifestação do ser-com”, ou seja, é
a maneira como negociamos as questões da convivência. Uma
terminologia indefinida, dentro de uma disciplina que lida tão
diretamente com o espaço da vida das pessoas, traz sempre consigo
a possibilidade de manipulação.
Para nós, no contexto deste trabalho, a vitalidade não se refere
a algum tipo de refuncionalização dos espaços arquitetônicos, mas
está antes, é o próprio brilho do lugar. Não é item de projeto, pois
como não pode se projetar o lugar, não se pode também produzir
vitalidade, ela simplesmente emana dele e apenas pede passagem
para chegar aos espaços. Assim pode-se, através da espacialidade,
propiciar, abrir caminho, ou ao menos não obstruir. Ou ainda, na
maioria das vezes, onde o brilho do lugar se mostre, talvez seja
melhor nada fazer, e deixar as coisas seguirem seu curso.
Retrofit
O retrofit é o patinho feio aos olhos dos cisnes da restaura-
ção, faz os teóricos torcerem o nariz. Falamos o que se segue,
portanto, a partir de uma visão pessoal.
Em geral execrado no meio especializado, o conceito retrofit
implica a prerrogativa da livre utilização do interior da edificação,
com a manutenção da sua relação com o exterior como contra-
partida da intervenção. Em geral junta a reforma interior com
a restauração repristinativa do exterior. Por ser caracteristica-
mente um empreendimento da iniciativa privada, a reforma do
interior é voltada para o ganho imobiliário, e, portanto, pretende
a maximização do uso.
Por outro lado, o restauro do exterior é sempre do tipo recons-
trutivo que apaga a passagem do tempo e deixa seu aspecto exterior
como novo, como convém a uma mercadoria, salvo, evidentemente,
no caso de alguma intervenção excepcional onde mercado suporte,
ou eventualmente até deseje, o fator “Cult” da degradação aparente
de velhos armazéns em áreas portuária de grandes centros.
Por tratar-se eventualmente de operação urbana interligada
ou de contrapartida entre a esfera pública e privada, muitas vezes
o investidor pode tornar aceitável para o poder público justaposi-
ções de acréscimos volumétricos, nesse caso, geralmente usando
recursos de discernimento entre o novo e o velho, herdado do restauro
científico que exigia o claro discernimento da coisa acrescida em
contraste com a preexistência, levando em geral a um aspecto final
sempre de difícil manobra projetual. Vê-se, por esse exemplo, como
há sempre muitas variáveis no mundo dos “rês”.
Patrimônio Material
Já está bastante reconhecido que a questão da materiali-
dade nesse termo é imprecisa e mesmo confusa. Refere-se a uma
designação que surgiu a partir da expansão da ideia de patrimô-
nio, mais especificamente a partir da consolidação do conceito,
pretensamente antagônico ao patrimônio imaterial. Desde então
Entorno
Vivemos em meio aos achados e perdidos do se/então que
caracterizam a lógica tradicional. Para nós é perfeitamente natural
(e mesmo indiscutível) considerar que se temos monumentos temos
então o seu entorno. Entretanto, conforme já pudemos discutir
acima, a ideia de “entorno”, advém do engano em desconsiderar
que na verdade não existe uma autonomia do objeto arquitetônico.
Ele não é uma coisa, mas numa coisa, o monumento, é sempre, e
necessariamente, num contexto qualquer, que, ademais, não se
limita ao entorno imediato, mas antes como uma parte no jogo
de referências espaço-temporais que se desdobram sabe-se lá
até onde, a partir de pontos de referência.
O entorno, portanto, não se subordina a nada, muitas vezes
até predomina, guarda, em seu sendo, o sentido de ser daquilo
que foi e vai se constituindo na historiologia das possibilidades,
O dito “entorno” é junto. Portanto, do ponto de vista do fenômeno,
pode mesmo haver uma inversão, e, assim, o monumento pode
ser, como já dito, o entorno do entorno.
Patrimônio Imaterial
A pretensa imaterialidade do dito patrimônio imaterial, “dos
usos e costumes”, é mais um legado da miopia causada pela lógica
predicativa. Na verdade, um desdobramento. Da mesma maneira
que o entorno (de certa maneira visto, digamos, como “semi-mate-
rial”) deriva da “coisificação” equivocada do monumento, também a
“imaterialidade” do patrimônio (dito) imaterial, por sua vez, deriva,
Da Coisa ao Tudo
Não é novidade a discussão sobre como a expansão do patrimo-
nialismo leva a uma condição paradoxal na qual preservar tudo
significa nada preservar. O tombamento demanda uma delimita-
ção e uma inscrição, demanda também um inventário fundamen-
tado e justificado. Trazer partes cada vez maiores da cidade e
da paisagem em geral para os livros de tombo pode demonstrar
uma tendência em reconhecer que a questão é mais abrangente
que apenas a justaposição de bens tombados em entornos que
servem de pano de fundo a monumentos.
As conhecidas áreas de proteção ambiental, como as APACS
do Rio de Janeiro são um avanço no sentido do que realmente
interessa, contudo parece-nos que o sentido de totalidade, unidade
e ambiência ainda ficam subordinados ao objeto arquitetônico
que termina sempre considerado e tratado enquanto unidade
autônoma, documental e estilística.
Temos seguido a sequência de causas e efeitos, partindo da
“coisa” para o entorno e vizinhanças, daí para conjuntos maiores
com medidas de proteção gradativas, deixando de fora tudo mais
que, pretensamente não seria nem histórico, nem artístico. Fazer
34 Como, na verdade, é muitas vezes o que de fato acontece quando, como no
nosso caso, se está “condenado ao moderno”, no dizer de Mário Pedrosa.
Expansão física
O enquadramento do monumento histórico limitava-se inicial-
mente aos edifícios, especialmente àqueles que rememoravam
grandes fatos ou personagens ilustres. Pouco a pouco, notou-se
que é inconcebível considerar o edifício como objeto isolado e
instituiu-se o conceito de entorno. Dotado de valor histórico e
artístico, mais ou menos vinculado ao monumento, o entorno está
geralmente subordinado ao edifício tombado, como a moldura ao
quadro. Embora muitas vezes possa ser reconhecido por valores
próprios, em termos de conjunto arquitetônico. O entorno geralmente
corresponde a áreas residenciais, apresentando assim caráter mais
mutável que os monumentos isolados. A justaposição de monumen-
tos e entornos possibilitaram a extensão da categoria patrimo-
nial à escala da cidade e do território. Dessa forma o monumento
e seu entorno imediato apresentam maior densidade patrimonial”
e, portanto, critérios mais rígidos para intervenção”. À medida em
que nos afastamos do centro diminui a densidade patrimonial” e,
por conseguinte, aumenta a liberdade de atuação. Dentro desse
esquema, a cidade contemporânea (pretensamente não histórica)
apresenta-se como o limbo, pertence ao conjunto, mas não é regida
pelas mesmas leis, nela, em termos estéticos, pode-se tudo. Ela é
o lugar da liberdade e da criação artística, palco para o desfile das
individualidades criativas, moderna por excelência.
Expansão conceitual
A questão patrimonial, nascida no século XV sob a égide
do Monumento Histórico passou, nos períodos subsequentes a
enquadrar-se no campo da erudição, da ciência e da História da
Arte, chegando ao domínio oficial, inicialmente sob o título de
Antiguidades Nacionais e, posteriormente, Patrimônio Histórico e
Carta Aberta
Prezadas Sras.(Srs.) Membros da Comissão da Unesco para o
Patrimônio Mundial da Humanidade,
Propomos, pela presente, a apresentação junto a esta Comissão,
da candidatura do maior de todos os monumentos: “O Lixo”!
Nos termos que se seguem:
Introdução
O Lixo, este imenso legado, acumulado ao longo de incontáveis
gerações é, parece-nos, o verdadeiro e mais significativo produto
(provavelmente o maior em volume e massa) da relativamente curta,
porém pródiga, passagem da nossa espécie pelo planeta. Nós, que
por algum tempo julgávamo-nos feitos à imagem e semelhança
do altíssimo, lançados ao mundo e quiçá, ao universo, temos no
lixo espalhado por todos os elementos ao redor, o DNA, a nossa
marca inconfundível!
Seguem-se, portanto, algumas considerações sobre o lixo a
partir de conceitos que pretendem comprovar o que, em nosso
entendimento, é bastante evidente: o fato de que somos uma
espécie essencialmente escatológica. Partimos do princípio de
que essa característica está profundamente enraizada em nós,
é parte integrante de nosso modo de ser. Devemos fazer uma
autocrítica profunda, já aconteceu assim na época de Copérnico,
quando tiramos nosso planeta do centro do universo e lançamos
uma sombra sobre a existência de um Deus que nos teria criado
à sua imagem e semelhança (Quanta pretensão!); mais à frente
Darwin deu um golpe mortal na ideia infundada de que somos, de
alguma maneira, superiores. Contudo, ainda persistem tentativas
em reservar, para nós, um lugar no topo da pirâmide da evolução
e, até hoje, considera-se de modo mais ou menos consensual que
nossa inteligência (um pequeno detalhe associado uma grande
sorte) garante essa pretensa posição de liderança! O que é simples-
mente ridículo! Mas deixemos de lado, por enquanto, a origem da
Patrimônio Pré-histórico
Convidamos a assistência a um gesto simples: afastemos de
lado com o pé um pouco de terra, e o que veremos sob o tapete
fino da paisagem humanizada?... Mas tenhamos coragem, vamos
mais longe, penetremos na contramão do túnel do tempo, através
da longa e abarrotada galeria subterrânea da nossa História. Se
escavarmos a atual crosta de lixo sob as camadas de contaminação
do chorume, numa prospecção arqueológica imaginada, poderemos
encontrar camadas, sob camadas, sob camadas... E então, nos estratos
mais profundos, dejetos esparramados numa caverna imaginá-
ria, lembranças de um grupo de hominídeos em seu banquete, em
torno de uma carcaça apodrecida... Sim, já houve quem afirmasse,
a partir de estudos de anatomia comparada, que nossa complei-
ção física (“fracotes” em meio ao MMA da selva) não nos dotava
propriamente do arsenal do caçador, colocando-nos, em termos
da economia alimentar, mais próximos das hienas que dos leões,
ou seja, é bem provável que fossemos carniceiros. Se esse é o caso,
trata-se de um problema das origens mais fundantes do nosso ser!
Esse nosso pretenso gosto por restos, uma inteligência que
se aguçou pela seleção natural, associada ao instinto gregário e
uma crescente capacidade de comunicação e ainda, provavel-
mente, alguns lances de sorte, levaram-nos ao domínio do fogo.
O cozimento da carne tornou-se um fator crucial para a sobrevi-
vência em nossa constante luta contra as bactérias, que desde
então, tornaram-se eternas parceiras que tratamos de domesti-
car. Assim, os primeiros hominídeos já iniciaram, por absoluta
vocação, a refuçar carcaças e queimar árvores, abandonando tudo
para trás, repetindo incansavelmente a mesma arte. Em frente a
horda, e para trás o seu rastro. Pode-se imaginar, por exemplo,
quantos incêndios florestais nossos antepassados haveriam de
ter provocado, iniciando o processo de humanização da paisagem
enquanto já semeavam ossos chupados pelas selvas e savanas.
PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
Arqueologia
Para além do véu puído que é a vida,
passo o tempo cavoucando miudezas,
esquadrinhando os tesouros e os dejetos,
cacos, restos e também restos de outros restos...
Patrimônio Histórico
Seguindo a nossa tortuosa galeria do tempo (com todas suas
emanações) começamos a construir cidades na mesma época em
que saímos da pré-história, sempre com a marca da escravidão,
da usurpação, sempre deixando um rastro de destruição de vidas
e da natureza. E quando não construímos a partir da destruição,
destruímos simplesmente. A antiguidade, especialmente Roma e
toda a Idade Média são o testemunho da destruição, do saque, da
pilhagem e da rapinagem. Civilizações inteiras foram arrasadas,
cidades inteiras destruídas. A regra era a submissão ou a carnificina
e a ruína, ou tudo junto. Seguimos nosso instinto carniceiro. Roma
especialmente! A “Cidade Eterna” com sua perversão e sadismo,
o deleite das massas ansiosas por tripas expostas, seus vomitó-
rios, suas valas comuns onde se enterravam juntas as carcaças
dos animais tratados como a gente e a gente como animais, e tudo
junto como lixo, fazendo com que, por vezes, os arqueólogos atuais
se deparem com imensas massas de gordura putrefata compacta
no subsolo que têm que ser novamente enterradas por absoluto
pavor! Roma, com seus 5 milhões de enterramentos nas catacum-
bas repletas de gazes venenosos, Roma, com a sua Cloaca Máxima é,
realmente, um retrato fiel do nosso processo civilizatório. Pulemos
a idade média e o renascimento, em especial a colonização do Novo
Mundo, para evitar enjoos, e, dois mil anos depois, já acumulamos
um imenso legado, montanhas de resíduos, humanos e materiais,
sobre os quais erguemos nossa civilização.
Patrimônio Urbano
Pensemos em Paris, a cidade luz, assentada sobre diversas
camadas de restos de história, de tribos celtas, colônias romanas,
merovíngios, carolíngios etc. Quantas camadas! Em meados dos
XIX o grande projeto de modernização, modelo de interven-
ção para o mundo civilizado! O projeto: transformar em lixo
imensas áreas da cidade, uma imensa rapinagem com verniz de
modernização, que reitera nossa incapacidade de abrir mão da
escatologia. A reforma Haussman, e a nossa versão tupiniquim
na Reforma Passos, e outras como o desmanche do Morro do
Castelo em pleno século XX, tudo em nome da modernização!
Pura rapinagem, exercício da escatologia! Quanto lixo, quanto
resíduo foi para debaixo do tapete e não sai na foto do turista!
Portanto, Senhoras e senhores, o que está por baixo dos Patrimô-
nios da Humanidade, das paisagens “naturais”, “humanizadas” e
monumentos? Sob as “Maravilhas do Mundo”! Está tudo erguido
sobre montanhas de lixo! Há, portanto que se fazer justiça à
nossa natureza e à verdade dos fatos: A Unesco deve conside-
rar, inapelavelmente, este fundamento que preenche o chão das
grandes cidades: O LIXO! Nosso patrimônio maior! Histórico,
artístico, arqueológico, etnológico, material, o grande legado
para as futuras gerações!
Patrimônio Artístico
Pode-se alegar com bastante firmeza o caráter artístico do
lixo. Em cada peça do conjunto dos artefatos em desuso que foram
lançados ao mundo está a marca do tempo a que correspondem,
embalagens, por exemplo, são produto da arte de seu tempo, o
design está entremeado no lixo, os artefatos, as vidrarias, os cacos
de azulejos, a louça, a mobília, partes ou peças inteiras que, “em
vida”, se apresentavam como obra de arte, antes de estarem na
condição de lixo. O uso de lixo para composição de obras de arte
apenas corrobora a potencialidade que se esconde na trama das
coisas descartadas que guardam, secretamente, no emaranhado
Patrimônio Natural
Do ponto de vista do senso comum o lixo é o excedente, resto
sem serventia, descartado poderia eventualmente dar a falsa
impressão de que desaparece. Contudo, nem de longe é assim.
A capacidade de absorção e recolocação dos resíduos no ciclo
natural de trocas de matéria e energia é um aspecto que em princí-
pio caracterizaria a própria cadeia alimentar, que tende mais
ou menos a equilibrar o manejo do ciclo da matéria orgânica,
fazendo com que o descarte retorne ao ciclo e seja reabsorvido.
Contudo sabe-se que mesmo na economia da natureza isso não é
uma regra geral. São conhecidos fenômenos naturais de caráter
cíclico ou pontuais, como explosões ou déficits populacionais de
determinadas espécies biológicas onde se rompe o equilíbrio das
Ontologia do Lixo
[...] há certos tipos de experiência, Heidegger sustenta,
que são especialmente descerradoras do mundo ou que
ao menos nos colocam em uma posição de ‘deixar que
ele seja visto’. O que essas experiências têm em comum
é o rompimento das referências constitutivas dos entes
à-mão. Em nossa lida ou em nosso engajamento com as
coisas, algo pode vir ao nosso encontro como inútil ou
como não apropriado para o uso que temos em vista [...]
Em cada um desses casos, o ente à-mão assume o caráter
de meramente presente-à-mão. Em tais experiências as
referências que são normalmente implícitas, que são
consideradas como garantidas, se tornam explícitas. O
sistema de referências em que nós normalmente moramos
de maneira simples ‘vem à luz’, tal como Heidegger a
fórmula. Ele fala do caráter de algo meramente presen-
te-à-mão, que toma o lugar em tais experiências, como
uma ‘des-mundanização’ do à-mão. Nessa des-munda-
nização, porém, o mundo se anuncia. (GORNER, 2017)
AUTOCONHECIMENTO
Consta que Sócrates, após falar do Esculápio,
teve um insight derradeiro em sua mente!
E disse: “anota! Platão, enquanto é tempo!
como fazer, enfim, pra autoconhecer-te:
A Questão do Ser
Voltamo-nos agora para o ser do projeto, buscamos a sua
ontologia. Aqui não tratamos o projeto objetivamente enquanto
um conjunto de procedimentos técnicos que se dirige a atender
ao programa de necessidades; tampouco é entendido subjetiva-
mente, como raciocínio lógico do cumprimento “correto” de uma
demanda à luz da teoria; mas no que está antes disso, na essência
do projetar.
Entretanto, convém ressaltar: ao colocarmos “em suspenso”
o ato projetual, no que se refere especialmente aos seus aspectos
técnicos, não se pretende supor que estes não sejam importantes;
são, na verdade, cruciais pois, na prática, o projeto se apresenta
pela demanda da necessidade e pela resposta da técnica. Contudo
buscamos aqui uma compreensão daquilo que se dá em termos
da disposição do projetar, ou seja, uma análise interpretativa
do “impulso primordial” que leva ao projetar, não apenas no
sentido estrito do interesse em fazê-lo, mas como condição de
possibilidade.
Na escola de arquitetura, no ateliê de projeto do quinto período,
justamente onde termina o projeto de arquitetura e inicia o projeto
urbano, costumávamos propor, como tema para trabalho, algum
conjunto urbano com características mais ou menos uniformes,
algo como o casario predominantemente eclético de uma única
rua (no caso a rua Sacadura Cabral na região portuária do Rio de
Janeiro). No tal conjunto os alunos, em grupos, fariam projetos para
uma ou mais unidades com a intenção de “revitalizar” o conjunto
por completo.
O resultado das propostas tomadas uma a uma era geralmente
de boa qualidade, ao menos do ponto de vista da solução plástica e
cumprimento do programa etc., contudo, quando colocados todos,
lado a lado na maquete geral, revelava-se desastroso, algo como
um aeroporto repleto de espaçonaves intergalácticas.
166
A Questão do Projeto
37 Aqui nos referimos ao “projeto de revitalização”, mas pode servir a toda abor-
dagem projetual.
38 Nunca é demais lembrar que os teóricos, como Violet-le-Duc, estão na base
do desenvolvimento de toda teoria arquitetônica subsequente e fundamentam,
não só a questão de patrimônio e restauro, mas a compreensão geral da arquite-
tura e da cidade. Da mesma maneira, aqui, pretende-se abarcar uma questão geral
de projeto a partir do questionamento de patrimônio e restauro.
39 Ainda que com algumas incompreensões e o uso negligente que em geral
se faz.
Projeto e Plano
Cabe, contudo, ressaltar que falando “projeto”, não nos referimos
ao plano de caráter regional, pois, este se dá na necessária esfera da
aplicação da interdisciplinaridade. No plano pratica-se o projeto do
Amplitude e humildade
Especialidade na profissão
Entretanto, na lida cotidiana, para sobreviver, nós, profis-
sionais de arquitetura, nos vemos em geral obrigados a buscar,
A técnica moderna
Criação projetual
Embora consideradas em geral como manifestação artística
fundamental, tanto a arquitetura quanto o desenho urbano distin-
guem-se existencialmente da obra de arte no sentido mais estrito,
em especial pela espacialidade associada ao caráter utensiliar.
O ser “artístico” do fato urbano se retrai no uso, em especial no
que é essencialmente usual e cotidiano. Talvez por isso mesmo
haja dificuldades na aplicação da teoria da restauração à arquite-
tura e ao urbano se comparados, por exemplo, com a pintura e a
escultura. Sobrepor o artístico ao utensiliar é o objetivo e, também,
o “pecado original” da conservação. É possível que a solução desse
problema esteja na sua superação. Em outras palavras, talvez a ideia
da “cidade como obra de arte” seja o último obstáculo epistemoló-
gico a ser superado para sua conquista efetiva como “ambi-ente”,
como aqui pleiteamos.
De qualquer maneira, independentemente de ser ou não
ser arte, há diversas entradas possíveis para a criação projetual.
A diversidade disciplinar no campo do urbanismo possibilita a
diversidade das compreensões.
Entre nós arquitetos, via de regra, aceita-se a hipótese (quase
como uma certeza) de haverem duas abordagens na questão da
criação projetual: uma dita “racionalista”, voltada prioritariamente
a atender ao programa onde a concepção geral (o partido) resulta-
ria em grande parte do arranjo adequado, da distribuição e do
dimensionamento dos espaços etc.; e outra, dita “formalista”, onde
prevaleceria a concepção do todo com a primazia da solução plástica,
atendendo-se à distribuição espacial de maneira consecutiva,
intermitente ou ao final. Note-se que, reiteradamente, como em
tudo mais, estamos, mais uma vez, voltados ao projetar a partir do
modo como concebemos o ato projetual, quase sempre em torno
do velho dilema entre o objetivo versus subjetivo.
No projeto, urbano e de arquitetura, o programa de necessidades,
que normalmente aciona o ato projetual, é uma demanda essencial-
mente objetiva e interessa diretamente a quem realmente manda,
o cliente, que paga pelo projeto e pagará pela obra, implicando em
que os recursos financeiros devam ser usados comedidamente (a
[...] uma boa pintura, fiel e igual ao sonho que a fez nascer,
deve ser criada como um mundo (grifo nosso). Do mesmo
modo que vemos que a Criação que vemos é o resultado de
várias criações, das quais as primeiras se tornaram sempre
mais completas pelas seguintes, assim também uma pintura,
se trabalhada harmoniosamente, consiste de uma série de
imagens sobrepostas onde cada camada dá mais realidade
ao sonho e faz com que ele escale outro degrau no sentido da
perfeição. Ao contrário, contudo, eu me lembro de ter visto
nos estúdios de Paul Delaroche e Horace Vernet pinturas
enormes não esboçadas, mas parcialmente feitas, isto é,
absolutamente terminada em certas áreas, enquanto outras
estavam apenas indicadas com um contorno preto e branco.
Poder-se-ia comparar esse tipo de trabalho com uma tarefa
puramente manual que deve cobrir uma certa quantidade
de espaço num dado tempo ou com uma longa rota dividida
em muitas etapas. Quando a seção estiver terminada, está
pronta, e quando todo o curso tiver terminado, o artista está
livre da sua pintura. (Arnheim, 1984)
Heurística
Num sentido mais estrito, poderia se falar em “método” quando
temos um plano predefinido, com recursos e metas pré-determina-
dos, quando já se sabe de antemão, tanto o que se procura quanto
o caminho para chegar ao resultado. Nos termos de um método
pretensamente racionalista o devaneio da criatividade projetual
é quase uma perda de tempo. Todavia, a partir de uma compreen-
são menos determinista, seria injusto supervalorizar um processo
criativo, digamos, metódico em detrimento do livre devaneio da
criatividade. Na verdade, ambos os modos se complementam e
são igualmente fundamentais em um conjunto de procedimentos
que percorre um ciclo que vem do mundo como demanda, passa
pela caixa preta da invenção criativa e deve retornar à realidade
da técnica comunicável e exequível. Há sempre vínculos determi-
nantes entre a ôntica e a ontologia do projetar.
A heurística é uma arte (não uma ciência) que busca compreen-
der como se dão os procedimentos para resolução de problemas, em
especial quando se desconhece caminho que conduzirá (ou não) a
uma solução. Assim, ainda que, até o momento, não haja uma teoria
geral que explique projeto enquanto processo criativo, a heurística
(que tem influenciado diversos campos de conhecimento como a
inteligência artificial) pode lançar uma luz sobre as etapas de tomada
de decisão e em estratégias para a concepção projetual.
A busca projetual colocada no carrossel da heurística, “a
arte da descoberta”, leva a uma compreensão essencial do fazer
manual, do intuitivo e do artesanal, ou seja, no processo criativo
por meio do desenho.
O nome, sintomaticamente enraizado no “desígnio”, remete ao
desenho como um fundamento imemorial. A genealogia do desenho,
no conceber e projetar, certamente tem raízes profundas que nos
levariam a hominídeos riscando planos de caça com gravetos na
areia. E ainda que apenas a partir do renascimento haja testemunhos
materiais relativos ao planejamento gráfico, podemos inferir que o
desenho sempre esteve conosco, como um fundamento humano.
Contudo é inegável que, a partir do renascimento, especial-
mente com Alberti, o desenho e o projeto passam a confundir-
-se como busca da concepção projetual.
Em arquitetura, repetimos sempre isso para os alunos, o
desenho traz três importantes fundamentos: primeiro a represen-
tação do visível, no desenho de observação, em segundo lugar a
capacidade de comunicação, maximizada no desenho técnico e,
finalmente, como forma de pensamento, como fonte de criação.
Esses três princípios nunca se dão isoladamente, em estado puro,
pois estão sempre presentes no ato de desenhar, muito especial-
mente no ato criativo, onde o desenho move-se entre perscrutar
o real, mergulhar no possível, emergir ao exequível, retornando
em sua alternância randômica entre os três modos.
A concepção projetual posta em ação pelo desenhar aciona um
processo que se desdobra em mundos interiores, conecta possibi-
lidades que emergem como visualidade num esboço consciente
aqui, ou num risco subconsciente ali, ou ainda no pseudo-acaso
da inconsciência; num jogo, enfim, onde se alternam referências,
inferências e possibilidades, o sim, o não e o talvez. O aparente caos
e uma ordem oscilante confluem por meio da intuição, direcio-
nada por conceitos prévios ou até pelo abandonar-se ao irracional.
Demorar-se no desenho
Os três fundamentos do desenho para a arquitetura: a observa-
ção do visível, a criação do possível e a comunicação do compreen-
sível, repousam na origem da palavra desígnio.
É lamentável que algumas escolas de arquitetura estejam
diminuindo a carga horária de desenho à mão. O desenho livre, seja
no papel ou mesmo numa mesa digital, ainda é e, provavelmente
será sempre, insuperável. Seu principal valor está justamente na
sua imperfeição. Ruskin indicava a beleza do tremido, e observava
que o fazer manual traz a alma do seu executor demonstrando
seu estado de espírito, se ele está feliz ou triste etc. Nós, que
damos aula de desenho de observação para turmas de primeiro
período, já se vão mais de vinte anos, sabemos muito bem que a
alegria da conquista, de conseguir representar algo com perícia,
é uma grande realização pessoal e uma aquisição de poder. Van
Gogh relata, em uma das suas cartas a Theo, que a conquista do
desenho é semelhante à condição de um prisioneiro que tenha
apenas uma colher para escavar sua liberdade e que, aos poucos,
com esforço, dia a dia, obtém sucesso e pode, enfim, experimen-
tar uma incrível sensação de liberdade.
Quando decido desenhar algo que vejo, trago para o domínio
da minha intimidade o que antes era apenas “comum” ou, em
certo sentido, até inexistente. Entretanto todo “comum” espera
sua oportunidade de algum dia não o ser. Quem, por exemplo,
nunca se “afeiçoou a uma simples pedrinha” e a levou para casa,
e a colocou para sempre na estante? As coisas mais simples e
corriqueiras guardam em si, o incomum retraído, até que alguém
venha tirá-la para dançar na existência. Então, qualquer coisa pode
ser uma mensagem na garrafa, aliás, diga-se de passagem, aí está,
por exemplo, o objeto da arqueologia.
O desafio do Projeto
Vivemos cada vez mais na condição de seres urbanos,
contudo a grande maioria do que se constrói, ao menos no
caso brasileiro, provavelmente desde sempre, não é produto da
atividade profissional do arquiteto. A cidade se faz a si mesma,
sem nós. Enquanto isso, despejamos anualmente no mercado
brasileiro milhares de profissionais mal preparados, submeti-
dos a um conteúdo programático extenso demais e, portanto,
qualitativamente inviável.
Nossos jovens incautos, cheios de esperança, enfrentam um
mercado perverso onde somos em grande parte dispensáveis,
seja pelo Estado, pelo empreiteiro, ou pelo auto-construtor da
favela, que prescindem muito tranquilamente, e muitas vezes até
com sucesso, da ação de projetistas, lançando mão de modelos
pré-concebidos, cópias de revistas, do Google, ou através de formas
vernaculares mesmo. Some-se a essa constatação, pouco promis-
sora para a categoria, outro problema que se apresenta já com
bastante clareza que nos atinge de outra direção e que poderá
O “Neourbanismo”48
(um programa de necessidades)
François Ascher (1946 – 2009) propõe em um pequeno livro
de cem páginas, apresentado como uma espécie de manual, uma
interessante proposta de abordagem programática para o urbanismo
que vem ao encontro da compreensão e sentido do projeto que
aqui se busca. Mais uma vez aqui lembraríamos o poeta Mario
Quintana sobre o fato da ideia de outro autor nos pertencer só
por gostarmos dela. É esse exatamente o caso.
Para Ascher a primeira modernidade, do tipo comunitário,
teria iniciado ainda na idade média – A segunda se deu a partir da
industrialização fordista – A terceira, nominada “sociedade hipertexto”,
está em processo. O conjunto se caracteriza, pelos tópicos a seguir:
Mergulho no mundo
A norma NBR 13532: Elaboração de projetos de edificações
– Arquitetura (1995). É um texto injuntivo conciso, como uma
norma técnica deve ser. Prescreve (escreve antes). É, sem dúvida,
Projeto e Lugar
Projetar os espaços em seus limites e desdobramentos, imaginar
e materializar a forma e a matéria nos lugares onde se vive, se
trabalha, por onde se caminha e se fica; planejar e executar, enfim,
o cenário da vida cotidiana requer conhecimento técnico. Mas
Tipologia e Morfologia
como existenciais primordiais
O agrupamento por semelhança é um princípio universal, um modo
de tentar organizar para entender. Na história das ciências naturais
há diversos exemplos, como a organização da tabela periódica que
levou à compreensão do universo da química, ou ainda o monumental
54 Tenho pensado que esse cheiro característico dos velhos sobrados talvez pro-
venha, ao menos em parte, do acúmulo dos fragmentos de pele e cabelos que as
pessoas deixam (ao fim de uma vida seriam provavelmente quilos/pessoa) e que vão
se acumulando nos porões ao longo dos anos. Depositados junto ao solo emanam
vapores de enxofre. Se for isso mesmo trata-se de um tipo de “permanência das
pessoas”. Possibilidade bastante interessante que pode esconder, entre outras coisas,
quem sabe, características étnicas, heranças de cheiros tribais, ou outros devaneios...
Tipos fundamentais
Quatremère de Quincy estabelece uma relação entre as etimolo-
gias dos termos tipo e caráter. Tipo deriva do termo grego typos, no
sentido de gravar ou imprimir. Caráter, do grego characteer, traz
o significado de marca e de traço distintivo [...] um verdadeiro tipo
possui caráter próprio, e este permanece impresso em sua forma.
Tipo, do grego Typos, significa matriz, impressão, molde, figura
em relevo ou em baixo relevo” e distingue-se do modelo, do latim
55 A angústia momentânea de acordar do sono num lugar inabitual, que todos
já experimentamos, é um exemplo claro.
VÓ CORACY
Onde hoje não tem mais nada,
morava a Vó Coracy.
Luz e graça desta vida!
Num velho sobrado na Glória,
onde passo todos os dias.
De criança me fascinava
quando a porta da entrada se abria
em avançada engenharia,
dum barbante que se puxava
lá do alto da escada,
ao toque da campainha.
Totalidade e Integração
A ideia de totalidade é um conceito operacional que vem da
escola francesa do urbanismo desde o século XIX e leva ao entendi-
mento de que o projeto deve se dar como uma integração sistêmica.
Não é, portanto, em termos gerais, nenhuma novidade. Entretanto
aqui consideramos a totalidade não em sua ôntica, que leva ao
correto proceder técnico, mas na sua ontologia.
Para nós é então aquilo que está antes, e que, por exemplo, se
manifesta como condição de possibilidade para chegarmos aos
mapas mentais de Kevin Linch. Assim a totalidade se dá como o
desdobramento sempre móvel, na disposição da descoberta, mas
tende a se sedimentar com o tempo no modo do reconhecimento,
da identidade. Parece então que, à medida em que envelhecemos,
por exemplo, e nos dirigimos à morte, nosso mundo tende a se
“calcificar” e constitui o que Bachelard chama “os belos fosseis da
duração, concretizados por uma longa permanência”.56 A totalidade
é, portanto, um modo de compreensão do ser-no-mundo, consti-
tuída a partir do núcleo gerador da presença; é o que nos leva a
constituir um recorte identificável do mundo e que, por camadas,
56 O que corrobora a boa prática de conversar com os idosos do bairro, por exem-
plo para compreender o sentido de lugar e os espaços onde o arquiteto trabalha.
Os idosos nos fornecem atalhos para a compreensão.
Unidade e Reintegração
Ao longo dos séculos a questão da unidade formal em conjun-
tos arquitetônicos não existia, não era um problema, porque era
uma condição dada, mergulhava no segredo da lida engajada. A
exacerbação da individualidade é uma questão moderna surgida
a partir da modernidade em geral, mas principalmente, a partir
das pesquisas formais dos arquitetos das vanguardas europeias
entre guerras na Europa, que terminou por trazer o uso de novos
materiais tipologias, além do modo de projetar individualista, ou
mais especificamente, peculiar, porque podendo ocorrer sem
qualquer referência tipológica referenciada na tradição.
Entretanto nem sempre o impulso criativo original e a invenção
levam necessariamente a rupturas. Lembremos, por exemplo, do
maneirismo e do barroco onde colunas, cornijas e frontões são e
torcidos, retorcidos, quebrados e requebrados numa subversão,
mas sem o abandono da linguagem clássica e, portanto, contri-
buindo para o todo por meio da variação do tipo; ou ainda como
o art nouveau ou o art deco se enquadram bem num contexto
eclético/colonial. Lembremos também, numa referência mais
brasileira: Antônio Francisco Lisboa, inventor e criativo dentro
daquilo que era “normal”, subvertendo dentro da norma.
Assim, originalmente, as limitações e possibilidades da técnica,
além do repertório da tipologia e da linguagem formal determina-
vam tal unidade. Entretanto, a partir do advento do modernismo
vanguardista há uma disposição em operar por contraste. O arquiteto
que se autorreconhece “criativo” passa a entender que não pode e
O Ambi-Ente e Reversão
Na constituição de mundos voltamo-nos para o nosso próprio
“avesso” que se expande, se desdobra e se confunde no emaranhado
dos entes que vêm até nós e que classificamos e organizamos à
nossa maneira seguindo o modo “como se faz”, “como é o certo”
ou, ao menos, como parece sê-lo.57
Mas na verdade nosso destino histórico se dá, essencialmente,
como distanciamento e, portanto, como alienação da natureza.
Assim, imersos no mundo constituído, no paradoxo de nos fechar-
mos na abertura de ser-no-mundo, a natureza se retrai, perdemos
irremediavelmente o acesso ao estranho mundo da natureza. Ela
não nos pertence como, tal pensa aquele que a vê como recurso,
58 Conforme Aristóteles, que acreditava nesse princípio. [Conferir essa emenda,
por favor]
Encaminhamento metodológico
para o Projeto Ambi-êntico
O raciocínio percorrido até aqui nasce da crítica ao pressu-
posto da historiografia como paradigma no trato da questão do
patrimônio cultural. Contudo isso não se dirige apenas à questão
com restauro ou intervenções em (ditos) centros históricos, mas
com o lidar com as preexistências em geral, o que é sempre uma
ação histórica antes de ser historiográfica.
Entretanto, não parece oportuno criticar sem propor alternati-
vas. Assim, neste capítulo final, ensaiamos um caminho alternativo
para o projeto urbano, 59 levando em consideração as preexistên-
cias sejam quais forem, não mais a partir do monumento ou do
conjunto urbano, tomados como coisa histórica e artística, tampouco
da relação da “arquitetura coisa em si” contraposta ao contexto,
mas, antes de tudo isso, a partir de relações mais fundantes que,
conforme entendemos, antecedem às abordagens autorreferen-
ciadas da subjetividade, ou da objetividade multidisciplinar.
Assim, nossa proposta parte do ambi-ente, este ente ambíguo
que inclui a nós mesmos, emana de nós. Todavia não podemos
simplesmente abandonar totalmente os referenciais teóricos
consolidados pela tradição em nosso campo disciplinar, pois eles
Princípio da Vitalidade
A vitalidade é o brilho do lugar na sua manifestação originá-
ria. Assim, o lugar irradia na vitalidade primeiramente onde há
pessoas, onde elas vivem, trabalham e se divertem, em especial
onde “habitam e demoram”, nos espaços da vivência e da convivên-
cia, cotidiana e casual. Contudo a vitalidade pode vibrar também
no espaço humanizado pela ausência, no drama de sermos uns
com os outros para a morte, ou seja, um cemitério, por exemplo,
pode ter muitíssima vitalidade, ainda que apenas potencialmente,
como vestígios arqueológicos antes de serem retirados da sua
condição de esquecimento.
O lugar retém e acumula a vitalidade, por entre as fibras dos
espaços que o circundam, na acumulação e no desgaste da matéria,
no ranger do tabuado, no lento e constante ceder ao peso e ao atrito
das pessoas. Por outro lado, as presenças seguem imprimindo sua
marca na passagem pelos espaços que, quanto mais marcados
pelo desgaste da presença, mais vitalidade engendram no lugar.
Princípio da Totalidade
A essência da totalidade apresenta-se como contingência
tanto em termos de constituição como em sua permanência no
tempo. Assim, a totalidade não é, pois é antes um sendo consti-
tuído como fenômeno vivido. A totalidade é colhida e mantida
presa, sempre em sua contingência, pelos existenciais da disposi-
ção e da compreensão. É mais fácil identificar a totalidade como
fenômeno visual, contudo, muitas vezes ela se oculta sob a carapaça
do ente e se manifesta apenas intuitivamente, vibra em cada um
de nós, especialmente na experiência da tradição sedimentada
no cotidiano, ou reverberando na intersubjetividade. Um bairro
é uma totalidade, uma determinada paisagem também. A totali-
dade, por ser contingente, pode ser desfeita pela entropia do fluir
das coisas, ou pela entropia do descuidado que nos caracteriza,
levando essa totalidade a uma condição fragmentária. Citaria,
por exemplo, para ilustrar na prática essa concepção abstrata,
Princípio da Unidade
A unidade é a filha mais bonita da totalidade, deve ser cuidada,
deve poder tocar o céu e estar sob o sol, e pisar descalça o chão.
Ter contato com a natureza, prestar respeito solene aos deuses.
Deve também amar e ser amada pelas pessoas em geral, mas
em especial os velhinhos, as crianças e os animais. A unidade
vibra em conjunto sob o sol e se adensa na presença por entre a
sombra das árvores. A unidade, em termos urbanos, configura-
-se como identidade e memória e apenas secundariamente como
história. Como ocorre com as mulheres embeleza-se à medida
que envelhece porque com o tempo se torna cada vez mais ela
mesma. Cumpre ao projeto ambiental, protegê-la com zelo apaixo-
nado, promover motins em seu nome, recompô-la sempre em sua
pureza e integridade, vestir, alimentar, levar ao culto dos deuses
e deixar que a enfeitem com laços e bordados nos dias de festa.
Síntese da Identidade
Entendemos, no contexto deste trabalho, o conceito de identi-
dade conforme se segue:
Operativo de Integração
Tomamos emprestado de Camilo Sitte a ideia de integração,
integra-ação pressupõe a ação de instaurar uma integridade a
partir da preexistência identificando seu potencial em termos
de vitalidade, totalidade, unidade visando atender à identidade
intuída a partir da compreensão do lugar.
Operativo de Reintegração
A Reintegração é tomada de empréstimo da teoria da restau-
ração de Brandi para sua aplicação em todas as escalas. Refere-se a
recompor unidades potenciais com a contribuição do tempo presente.
A integração e a reintegração operam por meio da tipologia
e da morfologia.
Operativo da Reversão
Para o princípio de reversão o edifício é que é o entorno do
entorno. A reversão conforme já mencionado acima, refere-se à
busca de uma condição originária da nossa relação com o mundo e
com a vida. Não pode ser confundida com a ideia de “voltar ao que
era”, do restauro historiográfico, conceito ao qual, na verdade, se
contrapõe; mas antes, ao passado projetado para o futuro, para o
228
Conclusão
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Referências
GORNER, Paul. Ser e tempo: uma chave de leitura. 1ª ed. Tradução: Marco
Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2018. 248 p.
NUNES, Benedito. Heidegger. 1ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, 168 p.
SOBRE O AUTOR
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“O modo de representar da historiografia põe a natureza como
um complexo de forças passíveis de cálculo, e a física põe a natureza
como um complexo de forças, transmitindo a falsa ideia de que a
técnica moderna é uma ciência aplicada da natureza. Neste sentido
caminha a argumentação colocada neste livro: a de que a arquitetura,
e o restauro, ao pensar o seu fazer como técnica objetificante, afasta
a ciência do mundo da vida e o patrimônio de sua essência que é ser
ambiente. Aqui, há um apelo à questão prática, à experiência vivida, à
recuperação da imaginação criadora, que desvela o patrimônio para
além da opacidade da coisa, onde a arquitetura e o urbanismo para além
do restauro, emerge como uma das possibilidades de salvação da Terra,
no momento em que desabrigar o poético a remete para a sua essência
enquanto técnica: a da arte de projetar e de construir poeticamente,
ou como conclui o autor: do ato projetual como “mergulho no mundo”,
pessoal e intransferível.”
ISBN 978-65-5831-134-8
9 786558 311348