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RESTAURAÇÃO
RESUMO
Este artigo trata da ampliação de possibilidades de investigação da arquitetura e da cidade por meio
da aproximação com a Arqueologia. São apresentados três estudos de campo, dois finalizados –
Lagar de azeite em Ano Gatzea (Grécia) e Lidgerwood M.Co (Campinas-SP) - e um em andamento –
Quadrilátero Central (Ribeirão Preto-SP), que lançam mão de métodos de reconhecimento dos
estratos temporais presentes nas edificações e na paisagem urbana por meio da investigação direta
da matéria. Tais estudos se justificam por buscar suprir uma das principais lacunas nos estudos
retrospectivos que é a ausência parcial ou completa de documentação, tais como mapas, projetos e
fotografias que evidenciem o processo de formação e transformação do edifício e da cidade. Em
alguns casos, existem tais documentos, entendidos como fontes indiretas, e, por vezes, são os únicos
registros remanescentes de edificações outrora demolidos. Por se tratarem de objetos heterogêneos,
pesquisar edificações construídas, alteradas e demolidas sobre um mesmo território urbano exige
investigações objetivas e sistemáticas que sejam capazes de concatenar as diferentes instâncias
informativas. Nesse sentido, as experiências e metodologias aqui expostas marcam a trajetória das
pesquisas às quais a autora tem se dedicado nos últimos anos e que tem o intuito de contribuir à
documentação e preservação de edificações e paisagens históricas por meio da exploração do
potencial que a matéria edificada tem enquanto registro da dimensão temporal dos espaços
construídos e transformados pela atividade humana, sejam eles antigos ou recentes, de caráter
monumental ou modesto, agenciados por usos formais e informais, mas, acima de tudo, dotados de
significância cultural.
Esse novo discurso tomaria maiores proporções quando, em meados do século XIX,
começaram a ser contrapostas as operações de intervenção sobre os edifícios e ruínas
históricas, marcadas principalmente pelo antagonismo das linhas de pensamento de John
Ruskin e de Viollet-le-Duc. Ainda que diametralmente opostas, tais teorias evidenciariam a
condição da matéria arquitetônica como documento, que, posteriormente, protagonizariam a
teoria e a prática de restauro de Camillo Boito e de Gustavo Giovannoni.
Estudos que têm a matéria arquitetônica como principal fonte de dados buscam suprir uma
das principais lacunas nos processos de reconhecimento histórico-arquitetônico que é a
ausência parcial ou completa de documentação (fotos, projetos, croquis, certidões, mapas,
etc). Os edifícios, assim como os depósitos arqueológicos, são entendidos como uma
sequência de estratos, indicativos de um processo que vai do mais antigo ao mais recente,
ou seja, são eles a contar sua própria história. Os “estratos que formam a ‘matéria
arquitetônica’ são caracterizados por sistemas, técnicas e materiais heterogêneos, nem
sempre visualmente evidentes ou documentados” (VILLELA, 2015, p. 55).
Entender e aplicar tais métodos solicitava, antes, compreender muitas das terminologias
empregadas pelos autores e que eram próprias da Arqueologia, mais precisamente da
Estratigrafia, principal instrumento para leitura de estratos (geológicos, arqueológicos ou
arquitetônicos), às quais os arquitetos nem sempre estão habituados. Termos como
“unidade estratigráfica”, “interface”, “atividade”, “fase” e “cronologia” constituem a base para
o entendimento do principal sistema de datação relativa, que vem sendo usado desde os
primeiros estudos em Arqueologia da Arquitetura, a Matriz de Harris. Esse método, de
aplicabilidade relativa ao estudo arquitetônico, é extremamente válido para o
estabelecimento de relações de anterioridade, contemporaneidade e posterioridade entre as
diversas ações construtivas e destrutivas empreendidas nas superfícies verticais e
horizontais do edifício. Graficamente, a matriz é um diagrama, “resultado do
sequenciamento de quadrículas que representam as atividades construtivas implementadas
sobre a construção original” (VILLELA, 2015, p. 90). Além de uma sistemática, no caso da
arquitetura, o método guarda ainda uma outra vantagem por não ser destrutivo. Depende
basicamente da observação e anotação dos estratos, no caso de superfícies com materiais
aparentes.
Desde o encerramento das atividades da fábrica, o prédio albergou diversos usos que o
transformaram consideravelmente. Seu reconhecimento cronológico-construtivo, no entanto,
era, até então, desconhecido. Foram encontradas apenas duas fotografias, uma de 1898 e
outra de 1907, que serviram como referência para a datação das atividades e fases
construtivas agenciadas no edifício desde o momento de sua criação. Informações mais
recentes foram obtidas a partir do álbum de fotografias da obra de restauro empreendida em
1991, quando o prédio estava bastante degradado, gentilmente cedido para reprodução pela
arquiteta responsável pelo projeto e obra, Prof. Dra. Ana Villanueva. Todas os demais dados
deveriam ser extraídos diretamente da matéria.
Os prédios industriais, por sua vez, raramente eram motivo de atenção dos fotógrafos. Foi o
caso do prédio da fábrica Lidgerwood. Embora tenha provocado uma revolução na produção
agrícola brasileira com a introdução de um moderno maquinário, dentre os registros
iconográficos somente foi encontrada uma fotografia da antiga e imponente entrada no ano
de 1907. A segunda fotografia, de 1898, captura parcialmente o muro lateral, ainda assim de
A empresa continuou operando no local até 1914. Depois desta data, ela foi sucedida pela
Lidgerwood Limited, que, quatro anos depois, vendeu todas as suas firmas à sua
representante brasileira. As atividades se encerraram entre 1922 e 1923 (RODRIGUES,
1996; CAMILLO, 2003), quando as antigas oficinas Lidgerwood foram substituídas pela
Meiller & Cia (CAMILLO, 1998). O edifício foi vendido para a firma Pedro Anderson & Co.
Inc. e transformado em fábrica de tecidos. Em 1928, passou a abrigar vagões da Cia.
Paulista de Estradas de Ferro. Em 1985, tornou-se garagem dos funcionários da Fepasa
(CONDEPACC, 1989) e em 1991 foi restaurado para, no ano seguinte, receber o Museu da
Cidade.
Na quarta etapa, foram mapeados indícios construtivos como pequenas falhas ou grandes
indícios de remoção e adição de elementos arquitetônicos, agrupados por semelhança e
sequenciados de acordo com sua provável ocorrência.
Por fim, todos os dados foram concatenados em modelo gráficos tridimensionais, por meio
dos quais a cronologia construtiva do edifício se elucida. As imagens a seguir comunicam as
diferentes conformações físicas que o edifício Lidgerwood teve ao longo das seis fases
identificadas em sua cronologia, desde sua origem, no final do século XIX, aos dias atuais
(Figura 3).
A escala da rua diz respeito ao conjunto edificado da área de estudo (núcleo original e
primeiro ciclo de expansão). Mapas cadastrais e fotografias são essenciais aos estudos
retrospectivos arquitetônicos e urbanos. No 1º semestre de 2018, deu-se início ao
levantamento documental no acervo do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto
(APHRP), que conta com 1606 fotos digitalizadas da cidade como um todo, além daquelas
não digitalizadas e que constituem o acervo físico do APHRP. Tais fotos dispõem de um
sistema de catalogação, elaborado em uma planilha do Excel, onde constam o número de
registro, a identificação do fundo, a legenda, a descrição do conteúdo visual, a data
(provável, quando não impressa), o nome do fotógrafo e o nome do responsável pelo
fichamento. Dentre a amostragem que diz respeito ao Quadrilátero Central foi possível
perceber que há maior quantidade de registros da Praça XV de Novembro e de seu entorno
próximo, bem como uma predileção dos fotógrafos por monumentos singulares, muitos
deles reproduzidos em cartões-postais - como os teatros Carlos Gomes e o Pedro II. Há
também séries de fotos de eventos - inauguração de esculturas públicas, registros de
catástrofes naturais, chegadas de personalidades notórias, etc. –, de vistas parciais de ruas
e, a partir da década de 1930, de fotografias aéreas. As arquiteturas menores, em geral,
constituem plano de fundo das paisagens capturadas, e, embora não fossem foco dos
fotógrafos, para esta pesquisa são de particular interesse, pois mostram as transformações
sofridas na paisagem, cuja compreensão se rebate nas informações presentes nos mapas.
Ressalta-se, contudo, a condição dos mapas, que tratam a cidade como um objeto
bidimensional por meio de convenções e códigos de representação que nem sempre
correspondem à reprodução fidedigna do real (BUENO, 2004), o que reforça a importância
da matéria arquitetônica como fonte informativa direta e complementar às fontes
documentais.
Considerações finais
Os edifícios são produtos da cultura humana e, por isso, obras dinâmicas, constantemente
abertas a novas alterações, de modo que não se relacionam a apenas um período ou a um
suposto estado original. Projetos de restauração devem considerar tais estratificações,
entendidas na Carta de Veneza de 1964 como contribuições de todas as épocas (ICOMOS,
1964). A Arqueologia da Arquitetura vem justamente buscando efetivar uma progressiva
colaboração interdisciplinar para leitura e análise sistemáticas de tais estratificações para
suprir as inconsistências na formação arqueológica do arquiteto e na formação projetual do
arqueólogo (BOATO, 2008).
Bibliografia
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