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NO RESTAURO
Claudia Nógrega
D. Sc., PROARQ/FAU/UFRJ, Brasil
INTRODUÇÃO
Antes de analisar o uso das fontes históricas no restauro, é preciso apresentar o conceito do
que seria uma fonte histórica e, além disso, estabelecer alguns marcos teóricos em que se
apresenta o estudo histórico até os dias atuais. As observações que seguem, têm como
objetivo fundamental situar a importância das fontes para construção da história,
compreendendo o papel dessa disciplina na preservação e valorização dos bens culturais,
além de fornecer alguns elementos para o debate crítico do restauro.
A noção de fonte segundo Funari1 é originária do cientificismo que exerceu os estudos
durante o século XIX. No sentido etimológico a palavra ‘fonte’ [Do lat. fonte] significa
nascente de água, bica onde escorre água potável... 2, que é o mesmo nas línguas que se
originaram esse conceito, no francês, source, e no alemão, quell, por exemplo. No sentido
metafórico, o termo exprime uma noção de origem, causa, ‘fonte de alguma coisa’. Assim
como das fontes d’água, das fontes documentais jorrariam informações a serem utilizadas
pelo pesquisador. Tudo que antes era coletado como objeto de colecionador, passou a ser
considerado não mais algo para simples deleite, mas, uma fonte de informação, capaz de
trazer novos dados, indisponíveis nos documentos escritos.
Um sentido mais amplo da palavra é evidenciado por Chuva3 traduzindo fonte como
múltiplos objetos de estudos e enfoques no sentido de marca, vestígio, uma pegada, alguma
coisa que ficou de toda uma vivência social, não importando qual seja ela. Uma edificação
histórica, por exemplo:
(...) é uma fonte que tem várias linguagens a serem decifradas – a técnica construtiva; o
aspecto estético; os usos que teve e a hierarquia dos seus espaços internos, que informam
sobre uma dada realidade; a apropriação que dela se fez historicamente até os dias de hoje;
a mão-de-obra utilizada na época em que foi construída; as restaurações, se teve,
informando sobre novas visões a respeito do mesmo objeto4.
É do variado elenco que as fontes traduzem e registram fatos que o historiador pode
percorrer, em sua pesquisa, numa atividade de erudição e sensibilidade, por meio de
abordagens específicas, métodos diferentes e técnicas variadas, procurando assim efetivar a
1
In: PINSKY, 2010, p. 85
2
Ver dicionário Aurélio de Lingua Portuguesa.
3
Chuva 1998, p. 44
construção convincente de seu discurso. Conquanto, a História deve ser compreendida
como a disciplina que assegura a tradução de linguagens culturais e o historiador ao
trabalhar com as fontes deve colocá-las no âmbito cultural em que foram realizadas5.
No inicio do século XX a História, assim como a Arqueologia, passou por mudanças
conceituais, com conseqüências profundas para o entendimento das fontes históricas em
geral. A Arqueologia, contudo, passou a fornecer uma grande quantidade de informações
sobre os aspectos do passado, desenvolvendo com isso, novos parâmetros críticos para o
estudo da economia, política e sociologia, voltados à coleta e interpretação desses registros.
A historiografia francesa teve grande influência na formulação dos novos conceitos da
História, especialmente com as idéias de Lucien Febvre (1878-1956) que reconheceu a
importância da interdisciplinaridade nos conteúdos do pesquisador. Marc Bloch (1886-1944)
também se colocou como defensor do caráter particular das Ciências Humanas, e fundou,
junto a Febvre, em 1917, a revista “Annales d’Histoire économique et sociale”, que
preconizava a integração das disciplinas sociais colocando em questão o “problema” na
historiografia6.
Toda a crítica fundamentada no decorrer do século XX viria a culminar na vertente
historiográfica que surgiu nas décadas de 70 a 80 e que ainda prevalece nos dias atuais, a
“História Cultural” que visa, entretanto, uma maior integração com as diversas áreas de
conhecimento tais como: filosofia, antropologia, sociologia, geografia, dentre outras,
ampliando, de maneira considerável, a forma de leitura e intrepretaçao das fontes
históricas.
Outra proposição importante a destacar, que perpassa especialmente à área da
preservação cultural, diz respeito ao uso das fontes enquanto objeto da memória7
compreendendo esta, como matéria-prima para o exercício crítico da pesquisa histórica. Le
Goff (1992) reafirma que o “patrimônio se situa entre a memória e a história” e que “a
apresentação da memória” e a “reação à memória” estão obrigatoriamente na base das
atividades, dos deveres e dos temas de reflexão das disciplinas do Patrimônio.
As fontes, documentos que autenticam e valorizam os vestígios de uma cultura
material ou simbólica, são, portanto, para a crítica moderna, desafios a decifrar durante o
exercício da pesquisa histórica segundo as mais variadas vertentes científicas.
4
CHUVA, 1998, p.44
5
BURKE, 2008; CHUVA, 1998: ARGAN, 1992
6
Para o historiador “toda história é escolha” (FEBVRE, 1989, p. 19), pois ele cria seus próprios materiais, ou se quiser
recria-os; em outras palavras, o historiador parte para o passado com uma intensão precisa, um problema a resolver, uma
hipótese de trabalho a verificar.
7
LE GOFF 1992, NORA, 1984
8
Kühl 2008, p. 79
preservacionistas estão presentes nos discursos das duas vertentes mais atuantes,
representadas pelas figuras de Viollet-le-Duc e John Ruskin. Embora partidários de idéias
antagônicas em relação à prática da preservação, ambos confirmam a importância que deve
ser dada ao estudo do bem que se venha trabalhar.
O conceito de valor e respeito à originalidade dos bens patrimoniáveis foram expostos
por Riegl (1999), no início do século XX, que já alertava para a necessidade do conservador-
restaurador conhecer a história para evitar erros, excessões e ações que danifiquem a
qualidade estética ou documental dos bens culturais. O primeiro documento internacional
sobre restauração de bens culturais, a Carta de Atenas (1931), prescrevia a necessidade dos
países inventariarem seus monumentos históricos e organizarem arquivos onde seriam
registrados os documentos. A Carta de Veneza (1964), no entanto, coloca que a restauração
será sempre precedida e acompanhada de um estudo arqueológico e histórico.
Já os conceitos estabelecidos na Carta de Nara (1994), prescreviam que o trabalho de
levantamento das fontes e informações a respeito dos bens está diretamente ligado com a
capacidade de aceitar os valores atribuídos a eles, gerando assim, por meio da
documentação, julgamentos relativos à sua autenticidade. Neste sentido, a credibilidade das
pesquisas e de seus procedimentos deve ter como fim a justificativa da valorização do bem
como patrimônio cultural.
Dos recentes debates sobre a preservação ainda podemos destacar diversos
documentos internacionais que auxiliam na prática da restauração como os “Princípios para
registro de monumentos, grupos de edifícios e sítios”, produzido pelo ICOMOS em 1996. No
texto a captura de informações por meio dos registros, deve ter importância fundamental
na descrição física, condições e o uso dos monumentos. Além dessas questões, o conteúdo
de pesquisa documental baseado em fontes históricas proporciona informação,
identificação, compreensão, interpretação e apresentação do patrimônio, bem como
promove o envolvimento de seu público.
O trabalho de catalogação e interpretação das fontes no restauro, cuja finalidade é
fornecer indícios autênticos de sua história, está presente em quase todas as etapas do
processo de preservação e conservação, servindo o mesmo como fonte em potencial de
dados que somam aos já analisados. Segundo Ward9, ao trabalhar sobre um objeto, o
restaurador desenvolve o seguinte ciclo de ações: “Exame / documentação / diagnóstico /
tratamento / documentação / conservação e controle / documentação” [grifo nosso].
As etapas de pesquisas estão presentes em todos os momentos do processo de
restauração, compilando e gerando futuras fontes documentais imprescindíveis para a
perpetuação e cuidado com os bens patrimoniais e, poder-se-ia dizer que, o restaurador é
um pesquisador que antes de executar uma tarefa, documenta todos os fatos. Segundo
Kuhl10: “a abordagem teórico metodológica, associada ao ato histórico-crítico, em que se
baseia a teoria brandiana e o restauro crítico, define restauração no campo disciplinar
autônomo”.
É válido salientar, entretanto, que essas prorrogativas também fazem do Restauro uma
disciplina de caráter multidisciplinar, e a sua primeira atividade, o exame ou diagnóstico,
deve estar baseada em abordagens históricas de caráter qualitativo e quantitativo,
encarando o próprio monumento como uma fonte primária11. Segundo Kühl:
9
Ward 1992, p.11
10
Kühl 2008, p. 75
11
A abordagem qualitativa se baseia na observação direta dos danos estruturais e da decomposição do material, assim
como na pesquisa histórica e arqueológica. Já a abordagem quantitativa está ligada principalmente em testes físicos,
monitoramento e análise estrutural.
A preservação deve ser conseqüência de esforços multidisciplinares que envolvem acurada
pesquisa histórico-documental, iconográfica e bibliográfica, sensíveis estudos antropológicos
e sociológicos, pormenorizando levantamento métrico-arquitetônico e fotográfico do(s)
edificio(s) (ou empregar as modernas técnicas de laser scan em três dimensões), exame de
suas técnicas construtivas e dos materiais, de sua estrutura, de suas patologias, e análise
tipológica e formal12.
Sobre esses fatores Argan faz uma observação a respeito da compreenção e atenção ao
uso das fontes pelo pesquisador-historiador no seu exercício de trabalho. Segundo ele o
restauro, que no passado era considerado uma atividade reservada a artistas mais ou menos
especializados, atualmente é considerada uma verdadeira ciência específica a que se
dedicam, em estreita colaboração na formulação da narrativa dos fatos, historiadores,
físicos, químicos, biólogos, geólogos dentre outros profissionais.
O emprego de aparelhos e procedimentos científicos é também necessário à investigação
propriamente histórica. [...] Tudo isto que a ciência revela são dados históricos não menos
preciosos do que se recolhem nos documentos de arquivo e nas fontes literárias. É certo
que a análise científica não pode substituir a investigação histórica, mas fornece ao
historiador os meios para penetrar mais profundamente na realidade histórica da obra de
arte13.
O conhecimento das bases históricas e conceituais sobre as quais os homens se
posicionaram e se posicionam em relação aos bens culturais é extremamente importante.
Temos, com isso, a tarefa de: coletar, colecionar, expor, estudar, possuir e ver, como
atitudes metodológicas que implicam na manutenção ou não das condições materiais e
simbólicas do objeto. Ao mesmo tempo, essas atitudes, produzem e reproduzem as noções
de valor e de autenticidade.
12
KÜHL, 2005/2006, p. 32
13
ARGAN, 1992, p. 42
14
KÜHL, 2005; JANOUT, In. PINSKY, 2010
Quadro 1 – Tipos de Fontes Históricas
Fonte: P insky, 2010
TIPOS DE FONTES
15
CHUVA, 1998
Quadro 2 - Lista das principais instituições arquivísticas
Fonte: P INSKY, 2010
Arquivos Públicos municipais e estaduais, Tribunais Inventários e testamentos; Processos cívies; Processos
Arquivos do Poder Judiciário
de Justiça crimes
Acervos pessoais, familiares de grupos de interesses Documentos particulares de indivíduos, famílias, grupos de
Arquivos Privados
e empresas interesses ou empresas
CONCLUSÃO
Com objetivo de gerar conhecimento e identificação dos bens culturais, anterior às decisões
a respeito de como preservá-los, é que se enquadra a tarefa dos que se dedicam ao campo
da história da arte (arquitetos, historiadores, antropólogos, etc) procurando a melhor forma
possível de evidenciar seu valor e autenticidade. A restauração deve estar calcada nos mais
distintos campos disciplinares: arquitetura, arqueologia, biologia, geografia, física e,
sobretudo da história, esta, por sua vez, pode fornecer importantes dados para o
esclarecimento sobre a historiografia do bem. O uso das fontes históricas no restauro se
integra à elaboração do discurso histórico e ao processo de intervenção
interdisciplinarmente, com uma única função, salvaguardar para futuros estudos dados de
importância fundamental na pesquisa documental. É trabalho dos preservadores culturais,
antes de tudo, conhecer, traduzir e atribuir valores a partir de uma visão mais global do bem
cultural.
É valido, portanto, apontar que o tema dá suporte a inúmeras observações e
aprofundamentos, que caberiam num estudo mais extenso. Porém fica bastante clara a
importância do tema na construção das bases historiográficas do restauro, e da
responsabilidade dos trabalhos dos profissionais envolvidos extraírem significados para
melhor compreensão de uma dada realidade.
BIBLIOGRAFIA
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BURKE, Peter. O que é História Cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005, 191 p.
CHOAY, Françoise. A alegoria do Patrimônio. São Paulo: Editora Liberdade: Editora Unesp, 2001.
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Janeiro: IPHAN, 1998. (p. 41-50)
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 3.ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1989.
FERREIRA, Aurélio Duarte de Holanda. Novo Dicionário da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
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KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização – Problemas teóricos
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___________História e Ética na Conservação e na Restauração de Monumentos Históricos. Revista CPC, São
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LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2ª ed. Campinas Editora da Unicamp, 1992.
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WARD, Philip. La Concervatión del Patromonio. Marina Del Rey, Califórnia: The Getty Conservation Institute,
1992.