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Restauração, de Cesare Brandi, conjunto de seus escritos e aulas à frente do Instituto
Central de Restauração -ICR de Roma e publicados em 1963; a Carta internacional sobre
a conservação e o restauro de monumentos e sítios, conhecida como Carta de Veneza, de
1964, do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - ICOMOS, organização não
governamental associada à UNESCO; e o artigo de Françoise Choay sobre autenticidade
publicado nos anais da Conferência sobre autenticidade em relação à convenção do
patrimônio mundial, realizada em Nara em 1994, e organizada pela UNESCO, pelo
Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais -
ICCROM, e pelo ICOMOS.
Em sua experiência à frente do frente do ICR, Cesare Brandi definiu restauro como
“o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física
e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o
futuro” (BRANDI, 2004, p. 30) e formulou dois axiomas: “restaura-se somente a matéria
da obra de arte” (BRANDI, 2004, p. 31), e “a restauração deve visar ao restabelecimento
da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso
artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte
no tempo” (BRANDI, 2004, p. 33). O primeiro axioma resulta em reconhecer que a
intervenção deve estar limitada à matéria, que é o que se degrada, e não no processo
mental, sobre o qual seria impossível de agir, o que implicaria em se trabalhar com
suposições sobre um “estado original”, condenável por ser uma recriação fantasiosa.
Assim, o refazimento de um monumento não se trata de restauração, mas um falso
histórico, posto que a matéria não é a mesma, pois foi historicizada. O segundo axioma
implica no reconhecimento do restauro como ação que requer juízo crítico para ser
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possível alcançar a unidade potencial da obra - ou imagem mental do objeto em forma
completa mesmo na ausência de partes - sem sacrificar a veracidade do monumento,
entendido como portador de valores históricos e artísticos. A reconstituição da unidade
potencial seria o próprio imperativo da instância estética em relação ao restauro. Com
relação à ruína, Brandi concluiu que a restauração somente pode ser a “consolidação e a
conservação do status quo, ou a ruína não era uma ruína, mas uma obra que ainda continha
uma vitalidade implícita para promover uma reintegração da unidade potencial
originária.” (BRANDI, 2004, p. 66). Ademais, excluída a possibilidade de intervenção
direta a não ser a de conservação e consolidação da matéria, existiria, no caso da ruína, a
“intervenção indireta que concerne ao espaço-ambiente e que, para a arquitetura, se torna
problema urbanístico” (BRANDI, 2004, p. 66).
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A Conferência de Nara deu-se devido à forma específica por meio da qual alguns
monumentos japoneses são conservados: pela substituição das peças deterioradas
periodicamente, as quais são reproduzidas. Essa forma de conservação contrasta com a
visão ocidental, baseada na autenticidade material dos bens culturais, em detrimento à
autenticidade das técnicas e dos processos de criação e recriação desses bens. Em razão
disso, a candidatura de monumentos japoneses ao título de patrimônio mundial sempre
foi de difícil aprovação. Na ocasião, Françoise Choay, historiadora, apresentou
proposições sobre o conceito de autenticidade, as quais foram publicadas sob o título Sete
proposições sobre o conceito de autenticidade e seu uso nas práticas do patrimônio
histórico no ano seguinte. Tendo partido do sentido original do conceito de autenticidade
na cultura ocidental, de "uma propriedade ligada aos atos textuais (às vezes mesmo orais)
emanando da autoridade" (do direito ou da religião), Choay (1995) afirmou que houve
um desdobramento do conceito para significar o que é legitimado pela crítica. No campo
da conservação e da restauração do patrimônio histórico, o termo teria assumido
significações múltiplas e vagas, frequentemente relacionadas à ideia de verdade ou de
qualidade física. Contudo, essa transposição do conceito dos textos para os objetos
materiais, em que os edifícios estão inseridos, fez surgir alguns problemas, como o fato
de, diferentemente do texto, a matéria ser alterada com ação do tempo, sendo, portanto,
necessária definição prévia de sua autenticidade para seu reconhecimento. Não sendo
possível fixar o estado de um objeto, Choay (1995) concluiu que "a noção de
autenticidade poderia ter uma utilidade, prática, preventiva, mas unicamente pela
interpretação de sua antítese, a inautenticidade, no caso de falsos ou cópias deliberadas".
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quartos de dormir e sala; alicerces e paredes de taipa de pilão, sendo os alicerces com
profundidade média de 50cm e as paredes com espessura variando entre 40-60cm; pintura
branca de cal ou de tabatinga; telhado de quatro águas com cobertura de telhas de canal;
e aproveitamento dos forros dos quartos para compartimentos de uso variável. O modelo
considerado puro teria se mantido enquanto durou o prestígio daqueles colonos. Isso
explicaria o fato de, nos exemplares considerados tardios, algumas dessas características
não estarem presentes. A taipa, apesar de utilizada no século seguinte, não seria de mesma
qualidade, e o telhado de quatro águas, apesar de presente, não possuiria a mesma limpeza
construtiva. Como veremos adiante, a tese da tipologia pura foi utilizada para legitimar
intervenções em que elementos arquitetônicos em desconformidade com esse padrão
foram removidos. De acordo com Mayumi (2017), a recuperação tipológica do exemplar
considerado puro teria sido "orientada também pelo desejo modernista de exaltar as raízes
da cultura paulista e de remover dos exemplares, sempre que possível, os traços da
'decadência' social, cultural e estilística." (MAYUMI, 2017, p. 72). Levantamento dessas
residências, incluindo planta e cortes, foi organizado por Katinsky (1976). Ao final do
artigo, são reproduzidos desenhos elaborados para as residências cujas intervenções são
analisadas, com exceção daquela do Itaim Bibi, não documentada (Figuras 1 a 5).
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externas com as internas. Completamentos foram executados com placas de concreto
armado nos pontos erodidos do embasamento. Com relação aos trechos e elementos
arruinados, refazimentos foram executados em concreto ciclópico - ala esquerda da casa
grande - ou em concreto armado - frechais comprometidos.
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A casa bandeirista do Caxingui, localizada na Praça Ênio Barbato, foi restaurada
em 1967 pela construtora Adolpho Lindenberg de acordo com os critérios do Sphan-SP,
mas por profissionais sem conhecimento em restauração. De acordo com Mayumi (2008;
2017), nesse caso, merece destaque o fato de a empena da fachada sudeste ter sido
suprimida para permitir a construção de um telhado de quatro águas, conforme a tese de
Luís Saia para os exemplares seiscentistas.
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tradicional de Luís Saia, ou seja, de restauro em busca de uma tipologia pura. Com relação
às soluções de consolidação, foram adotadas soluções variadas, como concretagem de
painéis armados adossados aos maciços de taipa e consolidações com fixação de malha
metálica e chapisco, que não consideraram os princípios de mínima intervenção e
reversibilidade ou retrabalhabilidade, princípio segundo o qual “qualquer intervenção de
restauro não torne impossível mas, antes, facilite as eventuais intervenções futuras”
(BRANDI, 2004, p. 48).
Por fim, com relação à casa bandeirista do Itaim Bibi, localizada à Av. Brigadeiro
Faria Lima n. 3477, essa encontrava-se íntegra até 1980, quando Carlos Lemos publicou
um artigo na Folha de São Paulo sobre sua visita (MAYUMI, 2016). A partir daquele
momento, contudo, sem manutenção, entrou em sucessivos processos de arruinamento,
por ação antrópica - inicialmente, pela remoção do telhado e posteriormente, por
desestabilização estrutural provocada por escavação de subsolos no entorno da casa - e
por exposição a fatores naturais. DPH e Condephaat realizaram trabalho de levantamento,
incluídos fragmentos e em 2003, o proprietário assumiu compromisso com o Ministério
Público do Estado de São Paulo em restaurar a casa. O critério de consolidação estrutural
para conservação dos remanescentes e de recomposição das lacunas com materiais e
técnicas construtivas modernas, idealizado por Luís Saia, foi adotado pela arquitetura
Helena Saia em 1997 para elaboração do projeto, com diferença apenas do emprego de
concreto leve para lacunas irregulares. As obras foram iniciadas em 2008, porém com
outro proprietário, quem alterou o projeto original do centro comercial previsto para o
entorno da casa de maneira a permitir sua vista desde a Av. Brigadeiro Faria Lima. Em
2008, o projeto foi revisado em função do processo de arruinamento. Alteração em
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relação às soluções técnicas previstas originalmente foi o emprego de solo-cimento
apiloado para recomposição das paredes de taipa de pilão em vez de vedações apoiadas
em estrutura auxiliar de concreto armado. As obras foram paralisadas entre 2009 e 2011,
quando houve desestabilização do terreno da casa, o que resultou em avarias. Retomadas
obras de restauro, procedeu-se com, entre outras atividades, demolição das paredes sem
possibilidade de recuperação, execução de reforço estrutural das paredes desde as
fundações, e madeiramento novo, em itaúba e cumaru. A solução para diferenciar os
refazimentos das paredes originais merece destaque. Depois de consolidados, os maciços
de taipa foram revestidos com acabamento distinto da recomposição: os primeiros
receberam acabamento rústico e os refazimentos, liso. Apenas na capela, os refazimentos
não receberam acabamento. Ao final do artigo, são reproduzidas ilustrações e fotografias
referentes ao projeto e à casa, antes e depois da intervenção (Figuras 6 a 10).
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ILUSTRAÇÕES
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Fig. 2. Residência do Caxingui
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Fig. 3. Residência do Jabaquara
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Fig. 4. Residência do Tatuapé
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Fig. 5. Sítio Morrinhos
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Fig. 6. Esquema inicial de consolidação e recomposição da casa do Itaim Bibi
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Fig. 8. Estado de arruinamento da casa do Itaim Bibi
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Fig. 10. Parede consolidada e refazimentos da capela (Casa do Itaim Bibi)
REFERÊNCIAS
CHOAY, Françoise. Sept propositions sur le concept d'authenticité et son usage dans les
pratiques du patrimoine historique. In: Nara Conference on Authenticity. Paris:
UNESCO, 1995, pp. 101-120.
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GONÇALVES, Cristiane Souza. Metodologia para a restauração arquitetônica: a
experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-1975. 2004. São Paulo: Annablume;
Fapesp, 2007.
MAYUMI, Lia. Resgatar das ruínas: a casa bandeirista do Itaim Bibi. Restauro, São
Paulo, n. 0, 2016. Disponível em:
<https://revistarestauro.com.br/resgatar-das-ruinas-a-casa-bandeirista-do-itaim-bibi/>.
Acesso em: 2022-08-14.
___. Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. São
Paulo: Romano Guerra, 2008.
SAIA, Luís. Notas sobre a arquitetura rural paulista do segundo século. Revista do
Sphan, Rio de Janeiro, n. 8, pp. 211-275, 1944. Disponível em:
<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=reviphan&pagfis=1971>.
Acesso em: 12 ago. 2022.
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