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MONOGRAFIA

O restauro hoje e as intervenções nas casas bandeiristas localizadas no município


de São Paulo

Rodrigo de Castro Dantas Cavalcante

Disciplina AUH 5816 Metodologia e prática da reabilitação urbanística e arquitetônica


Professores Beatriz Mugayar Kühl e Pedro Augusto Vieira Santos (colaborador)

O restauro é campo disciplinar autônomo que passou por processo de


amadurecimento sobretudo a partir de meados do século XIX, quando afastou-se do
sentido comum do termo, em que se pretendia fazer um bem voltar a um estado anterior,
ou inclusive idealizado, que nunca existiu, para outro, em que passou-se a respeitar os
estratos históricos e a pátina, ou resultado da ação do tempo no objeto. A fim de discutir
algumas das bases teórico-metodológicas da disciplina como entendida hoje, neste artigo,
propõe-se analisar o caso das casas bandeiristas localizadas no município de São Paulo,
restauradas em 1954-55 (Butantã), 1967 (Caxingui), 1978-79 (Jabaquara), 1979-80
(Tatuapé) e entre os anos de 1979 e 2000 (Sítio Morrinhos), e o caso da ruína da casa do
Itaim-Bibi, cuja consolidação e recomposição ocorreu entre os anos de 2007 e 2011.
Decisão pela escolha desses casos justifica-se não somente pela existência de referências
que sistematizaram as intervenções pelas quais passaram (MAYUMI, 2008; 2016; 2017),
mas sobretudo porque, a despeito dessas construções compartilharem um mesmo
esquema, arquitetonicamente e construtivamente, não receberam o mesmo tratamento,
havendo inclusive exemplar que, tendo sofrido processo de arruinamento, foi objeto de
recomposição. Inicialmente registradas por Mário de Andrade e seus colaboradores - Luís
Saia, Nuto Sant'Anna e Germano Graeser - essas casas, exemplares da arquitetura rural
paulista dos primeiros séculos de ocupação portuguesa, foram posteriormente
ressignificadas por Luís Saia (1944), quem primeiramente definiu critérios para sua
restauração. Dadas as datas das intervenções, para análise foram consultadas a Carta de
Atenas, de Restauração, de 1931, resultado do primeiro Congresso Internacional de
Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, ocorrida no mesmo ano; a Teoria da

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Restauração, de Cesare Brandi, conjunto de seus escritos e aulas à frente do Instituto
Central de Restauração -ICR de Roma e publicados em 1963; a Carta internacional sobre
a conservação e o restauro de monumentos e sítios, conhecida como Carta de Veneza, de
1964, do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - ICOMOS, organização não
governamental associada à UNESCO; e o artigo de Françoise Choay sobre autenticidade
publicado nos anais da Conferência sobre autenticidade em relação à convenção do
patrimônio mundial, realizada em Nara em 1994, e organizada pela UNESCO, pelo
Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais -
ICCROM, e pelo ICOMOS.

Das diretrizes expressas na Carta de Atenas de 1931, destacamos a necessidade de


crítica bem informada do caráter histórico e dos valores dos monumentos; o respeito pela
obra histórica e artística do passado, importando todos os seus estratos; o respeito pelo
caráter e pela fisionomia das cidades, sobretudo do entorno dos monumentos antigos; a
possibilidade de emprego de materiais modernos, mas de maneira a se preservar o aspecto
dos monumentos restaurados; e no caso de ruínas, a recolocação dos elementos originais
em seus lugares (anastilose), devendo novos materiais necessários a esse trabalho serem
reconhecíveis. Constatou-se nos diversos Estados representados, o abandono das
reconstituições integrais.

Em sua experiência à frente do frente do ICR, Cesare Brandi definiu restauro como
“o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física
e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o
futuro” (BRANDI, 2004, p. 30) e formulou dois axiomas: “restaura-se somente a matéria
da obra de arte” (BRANDI, 2004, p. 31), e “a restauração deve visar ao restabelecimento
da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso
artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte
no tempo” (BRANDI, 2004, p. 33). O primeiro axioma resulta em reconhecer que a
intervenção deve estar limitada à matéria, que é o que se degrada, e não no processo
mental, sobre o qual seria impossível de agir, o que implicaria em se trabalhar com
suposições sobre um “estado original”, condenável por ser uma recriação fantasiosa.
Assim, o refazimento de um monumento não se trata de restauração, mas um falso
histórico, posto que a matéria não é a mesma, pois foi historicizada. O segundo axioma
implica no reconhecimento do restauro como ação que requer juízo crítico para ser

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possível alcançar a unidade potencial da obra - ou imagem mental do objeto em forma
completa mesmo na ausência de partes - sem sacrificar a veracidade do monumento,
entendido como portador de valores históricos e artísticos. A reconstituição da unidade
potencial seria o próprio imperativo da instância estética em relação ao restauro. Com
relação à ruína, Brandi concluiu que a restauração somente pode ser a “consolidação e a
conservação do status quo, ou a ruína não era uma ruína, mas uma obra que ainda continha
uma vitalidade implícita para promover uma reintegração da unidade potencial
originária.” (BRANDI, 2004, p. 66). Ademais, excluída a possibilidade de intervenção
direta a não ser a de conservação e consolidação da matéria, existiria, no caso da ruína, a
“intervenção indireta que concerne ao espaço-ambiente e que, para a arquitetura, se torna
problema urbanístico” (BRANDI, 2004, p. 66).

A Carta de Veneza ampliou o conceito de monumento daquele isolado para o


ambiente urbano ou rural com significado cultural particular, e reconheceu a importância
do emprego de ciências e de técnicas que possam contribuir para salvaguarda do
patrimônio arquitetônico, entendido tanto como obra de arte, como testemunho histórico.
Com relação à conservação, defendeu-se manutenção constante, uso dos monumentos
como facilitador de sua manutenção, necessidade de respeito à configuração tradicional
de um dado monumento, não podendo ser alteradas as relações de massa e de cor, e
proibição de deslocamento do todo ou de parte do monumento, salvo quando sua
preservação exigir tal ação. A restauração, por sua vez, deveria ser tratada como uma ação
de caráter excepcional e ser baseada no respeito aos materiais originais e à autenticidade
documental. Outras diretrizes para a restauração foram completamentos, quando
realizados, de maneira a se integrar harmoniosamente, sem prejudicar as partes
interessantes do edifício, sua configuração tradicional, o equilíbrio de sua composição e
sua relação com o entorno, e distintos e com marca de seu tempo; emprego de técnicas
modernas para consolidações somente admitido quando técnicas tradicionais se
mostrarem inadequadas; e remoção de camadas de diferentes épocas e estilos somente
justificável em casos em que o que é revelado seja de muito maior interesse que aquilo
removido. Embora o princípio da anastilose já houvesse sido antecipado na Carta de
Atenas de 1931, a Carta de Veneza avançou quando sugeriu que o uso de material a ser
utilizado para restabelecimento das partes existentes mas desmembradas deverão
"reduzir-se ao mínimo necessário para assegurar as condições de conservação do
monumento e restabelecer a continuidade de suas formas" (CARTA DE VENEZA).

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A Conferência de Nara deu-se devido à forma específica por meio da qual alguns
monumentos japoneses são conservados: pela substituição das peças deterioradas
periodicamente, as quais são reproduzidas. Essa forma de conservação contrasta com a
visão ocidental, baseada na autenticidade material dos bens culturais, em detrimento à
autenticidade das técnicas e dos processos de criação e recriação desses bens. Em razão
disso, a candidatura de monumentos japoneses ao título de patrimônio mundial sempre
foi de difícil aprovação. Na ocasião, Françoise Choay, historiadora, apresentou
proposições sobre o conceito de autenticidade, as quais foram publicadas sob o título Sete
proposições sobre o conceito de autenticidade e seu uso nas práticas do patrimônio
histórico no ano seguinte. Tendo partido do sentido original do conceito de autenticidade
na cultura ocidental, de "uma propriedade ligada aos atos textuais (às vezes mesmo orais)
emanando da autoridade" (do direito ou da religião), Choay (1995) afirmou que houve
um desdobramento do conceito para significar o que é legitimado pela crítica. No campo
da conservação e da restauração do patrimônio histórico, o termo teria assumido
significações múltiplas e vagas, frequentemente relacionadas à ideia de verdade ou de
qualidade física. Contudo, essa transposição do conceito dos textos para os objetos
materiais, em que os edifícios estão inseridos, fez surgir alguns problemas, como o fato
de, diferentemente do texto, a matéria ser alterada com ação do tempo, sendo, portanto,
necessária definição prévia de sua autenticidade para seu reconhecimento. Não sendo
possível fixar o estado de um objeto, Choay (1995) concluiu que "a noção de
autenticidade poderia ter uma utilidade, prática, preventiva, mas unicamente pela
interpretação de sua antítese, a inautenticidade, no caso de falsos ou cópias deliberadas".

No artigo Notas sobre a arquitetura rural paulista do segundo século, publicado na


revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Sphan em 1944, Luís
Saia escreveu sua experiência de investigação de 12 residências rurais localizadas em São
Paulo e em suas proximidades, dentre as quais aquelas que são objetos do presente artigo.
Na ocasião, uma havia sido restaurada pelo Sphan, no caso, a casa e a capela do sítio
Santo Antônio, em 1939. Com base nesses casos, Saia elaborou uma caracterização das
casas rurais paulistas seiscentistas. De acordo com ele, entre os exemplares considerados
“puros”, do século XVII, verificar-se-iam: implantação preferencialmente em ponto
situado a meia altura da paisagem; assentamento sobre plataforma; planta em retângulo e
em esquema rígido, com faixa fronteira composta de alpendre-capela-quarto de hóspedes
e faixa da família, conservando de certo modos as mesmas divisões da fachada, com

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quartos de dormir e sala; alicerces e paredes de taipa de pilão, sendo os alicerces com
profundidade média de 50cm e as paredes com espessura variando entre 40-60cm; pintura
branca de cal ou de tabatinga; telhado de quatro águas com cobertura de telhas de canal;
e aproveitamento dos forros dos quartos para compartimentos de uso variável. O modelo
considerado puro teria se mantido enquanto durou o prestígio daqueles colonos. Isso
explicaria o fato de, nos exemplares considerados tardios, algumas dessas características
não estarem presentes. A taipa, apesar de utilizada no século seguinte, não seria de mesma
qualidade, e o telhado de quatro águas, apesar de presente, não possuiria a mesma limpeza
construtiva. Como veremos adiante, a tese da tipologia pura foi utilizada para legitimar
intervenções em que elementos arquitetônicos em desconformidade com esse padrão
foram removidos. De acordo com Mayumi (2017), a recuperação tipológica do exemplar
considerado puro teria sido "orientada também pelo desejo modernista de exaltar as raízes
da cultura paulista e de remover dos exemplares, sempre que possível, os traços da
'decadência' social, cultural e estilística." (MAYUMI, 2017, p. 72). Levantamento dessas
residências, incluindo planta e cortes, foi organizado por Katinsky (1976). Ao final do
artigo, são reproduzidos desenhos elaborados para as residências cujas intervenções são
analisadas, com exceção daquela do Itaim Bibi, não documentada (Figuras 1 a 5).

Se como vimos, do ponto de vista tipológico o movimento moderno influenciou no


restauro das casas bandeiristas por meio de eliminar traços de decadência daquela
sociedade para exaltar as raízes da cultura paulista, também valeu-se do uso de materiais
e técnicas modernas, no caso, do concreto, armado ou não, e de diferentes maneiras. Saia
(1944) justificou o emprego do concreto plasticamente, pois a concretagem conferiria às
paredes o aspecto irregular típico da taipa, bem como conceitualmente, pois um dos
preceitos da arquitetura moderna é a honestidade no uso do material. De acordo com
Gonçalves (2007), justificativa para que o restauro não fosse executado em taipa de pilão
teria sido a perda de domínio da técnica. Ainda de acordo com Gonçalves (2007), quem
descreveu a experiência do Sphan em São Paulo por meio da análise de projetos entre os
anos de 1937 e 1975, desde as primeiras intervenções, o uso do cimento e do concreto
armado difundiu-se como solução técnica em todo o país, mas sobretudo no estado. No
caso do sítio Santo Antônio, que serviu de referência para restaurações posteriores, o
concreto fora utilizado em consolidações e completamentos e refazimentos. No caso das
consolidações, procedia-se com rasgos na taipa para posterior preenchimento com
concreto armado - caso dos pilares das quinas ou dos pontos de junção das paredes

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externas com as internas. Completamentos foram executados com placas de concreto
armado nos pontos erodidos do embasamento. Com relação aos trechos e elementos
arruinados, refazimentos foram executados em concreto ciclópico - ala esquerda da casa
grande - ou em concreto armado - frechais comprometidos.

A casa bandeirista do Butantã, localizada na Praça Monteiro Lobato, foi restaurada


em 1954-55 pela Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo. O projeto de
restauro ficou a cargo do arquiteto Luís Saia, então chefe da superintendência do Sphan
no estado de São Paulo. De acordo com Mayumi (2008; 2017), as patologias mais
frequentes nesse tipo de edificação estavam presentes: erosão das paredes periféricas em
sua porção inferior, próxima ao solo; lacunas nas paredes, também denominada "cáries";
fendas e trincas provocadas por desagregações dos maciços de taipa; separação das
paredes nos cunhais (quinas) provocada por falta de sistema de amarração ou pelo
apodrecimento dos frechais; envasaduras emparedadas ou escavadas nas paredes; paredes
primitivas ausentes e paredes acrescidas; esquadrias alteradas ou apodrecidas; cobertura
alterada; revestimento ausente ou desagregado; e a maior parte das ferragens ausente.
Para o restauro foi adotado o modelo das restaurações pioneiras do Sphan em São Paulo.
Para exame da estabilidade e das características do tipo "puro" de residência, procedeu-
se à demolição total dos revestimentos da taipa e destelhamento completo. Com a etapa
de prospecção foi possível eliminar todos os acréscimos em desconformidade com a
tipologia original e descobrir os vestígios para posterior recomposição, incluindo dos
alicerces. Com o desmonte do telhado foi possível remover as peças não originais e definir
a consolidação de sua estrutura. Única medida de consolidação adotada foi a introdução
de cinta de concreto sobre o respaldo das paredes concêntricas, a qual foi executada em
vala de largura equivalente a um terço da parede, ficando assim, imperceptível.
Completamentos das lacunas do embasamento foram executados com placas de concreto
moldadas no local. Completamentos de trincas foram executados com argamassa
cimentícia. Também foram restauradas as esquadrias das envasaduras, as quais não
receberam cor, parede do vão central e sua cobertura foram refeitos. Algumas peças da
cobertura, as quais foram encontradas, foram reposicionadas e usadas como modelo para
sua reconstrução. A última etapa do restauro compreendeu revestimento das paredes com
argamassa e pintura à base de cal.

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A casa bandeirista do Caxingui, localizada na Praça Ênio Barbato, foi restaurada
em 1967 pela construtora Adolpho Lindenberg de acordo com os critérios do Sphan-SP,
mas por profissionais sem conhecimento em restauração. De acordo com Mayumi (2008;
2017), nesse caso, merece destaque o fato de a empena da fachada sudeste ter sido
suprimida para permitir a construção de um telhado de quatro águas, conforme a tese de
Luís Saia para os exemplares seiscentistas.

A casa bandeirista do Jabaquara, também conhecida como do Sítio da Ressaca,


localizada na Rua Nadra Raffoul Mokodsi n. 3, foi restaurada em 1978-1979 pela
empreiteira Planejamento, Engenharia e Construção Ltda. (PEC) segundo projeto do
arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade, então Diretor Regional do Sphan-SP. A obra foi
fiscalizada pela Empresa de Urbanização (Emurb) e acompanhada por profissionais do
então recém criado Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura de São
Paulo, muitos deles egressos do Curso de Especialização em Conservação de
Monumentos e Conjuntos Históricos realizado em São Paulo em 1974. Na casa do Sítio
da Ressaca, embora as obras não tenham sido orientadas pelo Sphan-SP, foram utilizados,
em certa medida, os mesmos procedimentos: remoção completa dos revestimentos para
eliminação dos acréscimos, reforço estrutural, recomposição das envasaduras originais e
acabamento à base de cal. Diferentemente dos dois primeiros casos (Butantã e Caxingui),
na restauração do Sítio da Ressaca, Antonio Luiz Dias de Andrade substituiu, ainda que
parcialmente, o esqueleto de concreto armado por argamassa armada; e para
revestimento, em vez de argamassa cimentícia, argamassa à base de tabatinga, misturando
cal, cimento e saibro. Segundo Mayumi (2008; 2017), essas teriam sido tentativas de se
utilizar materiais e técnicas mais compatíveis com os originais. Contudo, o emprego de
argamassa armada justaposta às paredes resultou em aumento significativo de sua
espessura, o que alterou o aspecto do edifício.

A casa bandeirista do Tatuapé, localizada na Rua Guabijú n. 49, foi restaurada em


1979-1980 pela PEC segundo projeto do arquiteto do DPH Luiz Alberto do Prado
Passaglia, especialista formado no Curso de Conservação de Monumentos e Conjuntos
Históricos de 1974. Foi a primeira experiência do DPH com o projeto e acompanhamento
da obra. De acordo com Mayumi (2008, 2017), o respeito à historicidade da matéria,
conforme preconizado no curso de especialização, havia sido adotado no memorial
descritivo do projeto. Todavia, a intervenção foi conduzida segundo orientação

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tradicional de Luís Saia, ou seja, de restauro em busca de uma tipologia pura. Com relação
às soluções de consolidação, foram adotadas soluções variadas, como concretagem de
painéis armados adossados aos maciços de taipa e consolidações com fixação de malha
metálica e chapisco, que não consideraram os princípios de mínima intervenção e
reversibilidade ou retrabalhabilidade, princípio segundo o qual “qualquer intervenção de
restauro não torne impossível mas, antes, facilite as eventuais intervenções futuras”
(BRANDI, 2004, p. 48).

A casa bandeirista do Sítio Morrinhos, localizada na Rua Santo Anselmo n. 102,


restaurada em três momentos, entre os anos de 1979 e 2000, contou com projetos dos
arquitetos Antônio Gameiro e de Luiz Alberto Passaglia. De acordo com Mayumi (2008;
2017), o fato de o restauro ter sido conduzido em três etapas ao longo de mais de vinte
anos permitiu debate sobre o critério a ser adotado, o que resultou em se preservar os
acréscimos, inclusive os volumes adicionados ao da edificação principal. Com relação
aos aspectos técnicos, as consolidações foram pouco invasivas, limitando-se ao
cintamento dos maciços de taipa com cabos de aço, e foi utilizada argamassa argilosa
com baixo teor cimentício para revestimentos, mais assemelhada à tabatinga.

Por fim, com relação à casa bandeirista do Itaim Bibi, localizada à Av. Brigadeiro
Faria Lima n. 3477, essa encontrava-se íntegra até 1980, quando Carlos Lemos publicou
um artigo na Folha de São Paulo sobre sua visita (MAYUMI, 2016). A partir daquele
momento, contudo, sem manutenção, entrou em sucessivos processos de arruinamento,
por ação antrópica - inicialmente, pela remoção do telhado e posteriormente, por
desestabilização estrutural provocada por escavação de subsolos no entorno da casa - e
por exposição a fatores naturais. DPH e Condephaat realizaram trabalho de levantamento,
incluídos fragmentos e em 2003, o proprietário assumiu compromisso com o Ministério
Público do Estado de São Paulo em restaurar a casa. O critério de consolidação estrutural
para conservação dos remanescentes e de recomposição das lacunas com materiais e
técnicas construtivas modernas, idealizado por Luís Saia, foi adotado pela arquitetura
Helena Saia em 1997 para elaboração do projeto, com diferença apenas do emprego de
concreto leve para lacunas irregulares. As obras foram iniciadas em 2008, porém com
outro proprietário, quem alterou o projeto original do centro comercial previsto para o
entorno da casa de maneira a permitir sua vista desde a Av. Brigadeiro Faria Lima. Em
2008, o projeto foi revisado em função do processo de arruinamento. Alteração em

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relação às soluções técnicas previstas originalmente foi o emprego de solo-cimento
apiloado para recomposição das paredes de taipa de pilão em vez de vedações apoiadas
em estrutura auxiliar de concreto armado. As obras foram paralisadas entre 2009 e 2011,
quando houve desestabilização do terreno da casa, o que resultou em avarias. Retomadas
obras de restauro, procedeu-se com, entre outras atividades, demolição das paredes sem
possibilidade de recuperação, execução de reforço estrutural das paredes desde as
fundações, e madeiramento novo, em itaúba e cumaru. A solução para diferenciar os
refazimentos das paredes originais merece destaque. Depois de consolidados, os maciços
de taipa foram revestidos com acabamento distinto da recomposição: os primeiros
receberam acabamento rústico e os refazimentos, liso. Apenas na capela, os refazimentos
não receberam acabamento. Ao final do artigo, são reproduzidas ilustrações e fotografias
referentes ao projeto e à casa, antes e depois da intervenção (Figuras 6 a 10).

Apesar de não haver regras fixas para a consolidação e o restauro de monumentos


históricos, são princípios gerais na atualidade não se admitir reconstruções, mas apenas a
anastilose (Carta de Atenas de 1931), a mínima intervenção e a distinguibilidade (Carta
de Veneza, art. 9°), a reversibilidade ou retrabalhabilidade, e a compatibilidade de
técnicas e materiais (Carta de Veneza, art. 10°). Se o emprego da tecnologia do concreto
armado no caso das intervenções em tela seja discutível hoje em função das
recomendações relativas à retrabalhabilidade, à época encontrava respaldo. Como visto,
de acordo com a Carta de Atenas de 1931 admitia-se a possibilidade de emprego de
materiais modernos desde que preservado o aspecto do monumento restaurado. Contudo,
com relação às recomposições, a despeito de muitas terem sido orientadas não somente
em função da tipologia supostamente conhecida, mas também na medida em que
identificaram-se vestígios do embasamento por meio de prospecções, é possível afirmar
que não foram observados os diferentes estrados e a anastilose: apesar do uso de materiais
distintos, esses foram empregados para verdadeiros refazimentos. À recomendação das
reintegrações limitadas à anastilose, a Carta de Veneza recomendou que o
restabelecimento das partes desmembradas deverão reduzir-se ao mínimo necessário.
Particularmente no caso das ruínas da casa do Itaim Bibi, a despeito da diferenciação
entre maciços consolidados e refazimentos, se a intervenção tivesse se restringido às
consolidações, teriam chegado aos nossos dias como documento mais autêntico. Único
caso dentre os analisados em que foram observados os princípios do restauro como hoje
é entendido foi aquele do Sítio Morrinhos.

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ILUSTRAÇÕES

Fig. 1. Residência do Butantã

Fonte: Katinsky (1976).

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Fig. 2. Residência do Caxingui

Fonte: Katinsky (1976).

11
Fig. 3. Residência do Jabaquara

Fonte: Katinsky (1976).

12
Fig. 4. Residência do Tatuapé

Fonte: Katinsky (1976).

13
Fig. 5. Sítio Morrinhos

Fonte: Katinsky (1976).

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Fig. 6. Esquema inicial de consolidação e recomposição da casa do Itaim Bibi

Fonte: Mayumi (2016 apud Processo municipal n. 1997-0.182.217-0).

Fig. 7. Perspectiva com posição do madeiramento remanescente da casa do Itaim Bibi

Fonte: Mayumi (2016 apud Processo municipal n. 1997-0.182.217-0).

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Fig. 8. Estado de arruinamento da casa do Itaim Bibi

Fonte: Mayumi (2016 apud Dalton Sala, 2004).

Fig. 9. Parede consolidada e refazimentos (Casa do Itaim Bibi)

Fonte: Mayumi (2016 apud DPH/STPRC, 2008).

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Fig. 10. Parede consolidada e refazimentos da capela (Casa do Itaim Bibi)

Fonte: Mayumi (2016 apud DPH/STPRC, 2011).

REFERÊNCIAS

BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. São Paulo: Ateliê, 2004.

CARTA DE ATENAS. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201931.
pdf>. Acesso em: 2022-08-14.

CARTA DE VENEZA. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=236>. Acesso em: 11 ago.
2022.

CHOAY, Françoise. Sept propositions sur le concept d'authenticité et son usage dans les
pratiques du patrimoine historique. In: Nara Conference on Authenticity. Paris:
UNESCO, 1995, pp. 101-120.

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GONÇALVES, Cristiane Souza. Metodologia para a restauração arquitetônica: a
experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-1975. 2004. São Paulo: Annablume;
Fapesp, 2007.

KATINSKY, Julio Roberto. Casas bandeiristas: nascimento e reconhecimento da arte


em São Paulo. Série Teses e Monografias n. 26. São Paulo: Instituto de Geografia da
Universidade de São Paulo, 1976.

MAYUMI, Lia. Resgatar das ruínas: a casa bandeirista do Itaim Bibi. Restauro, São
Paulo, n. 0, 2016. Disponível em:

<https://revistarestauro.com.br/resgatar-das-ruinas-a-casa-bandeirista-do-itaim-bibi/>.
Acesso em: 2022-08-14.

___. Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. São
Paulo: Romano Guerra, 2008.

___. Restauração de casas bandeiristas: experimentações e permanência. Revista CPC,


[S. l.], n. 22, p. 62-114, 2017. DOI: 10.11606/issn.1980-4466.v0i22p62-114. Disponível
em: <https://www.revistas.usp.br/cpc/article/view/122248>. Acesso em: 11 ago. 2022.

SAIA, Luís. Notas sobre a arquitetura rural paulista do segundo século. Revista do
Sphan, Rio de Janeiro, n. 8, pp. 211-275, 1944. Disponível em:
<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=reviphan&pagfis=1971>.
Acesso em: 12 ago. 2022.

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