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AULA 01
TEORIA DA RESTAURAÇÃO I
2014
INTRODUÇÃO
Antes de iniciar propriamente essa discussão, será realizada uma incursão sobre o
surgimento e transformação no tempo da noção de patrimônio.
O valor, que também é uma construção humana, difere das categorias tempo e
espaço por não ter uma representação quantitativa como o calendário, o relógio ou os
sistemas de medição. Os valores são construídos a partir de consensos, acordos entre os
homens, sendo uma categoria puramente histórica (Connor, 1999), que dá sentido ao tempo
e ao espaço.
A noção de patrimônio, a sua vez, surge quando conferimos valor aos bens
produzidos pelo homem no tempo e no espaço. O patrimônio, portanto, pode conter em si
uma significação cultural múltipla, envolvendo valores estéticos, históricos, científicos,
sociais, espirituais (CARTA DE BURRA, 1980) e tantos outros quantos cada sociedade na
sua vivência cotidiana a ele atribuir.
O termo patrimônio, em sua origem, está ligado à idéia de herança e posse, que é
transmitida de pai para filho. O patrimônio entendido como bem cultural de uma
coletividade (sociedade) só surge no século XV (CHOAY, 2001).
A partir desse momento uma série de outras cartas patrimoniais são publicadas e
se pode perceber uma clara transformação no tempo do entendimento de patrimônio,
inicialmente voltado apenas para as obras monumentais, que passa a englobar conjuntos
urbanos, exemplares da arquitetura vernácula e a paisagem. Hoje esse conceito foi ainda
mais ampliado e incorpora também a dimensão imaterial, expressa por meio das práticas
sociais e das manifestações culturais.
Assim, se por um lado ocorreu uma expansão das tipologias de bens passíveis de
serem consideradas patrimônio, no século XX ocorre também o que Choay (2001) identifica
como outra forma de expansão em relação ao patrimônio: a do seu público. Choay (2001, p.
210 e 211) dispõe que:
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Nessa situação se enquadram certos bem culturais que são transformados em verdadeiros cenários,
sendo deles extraídos toda sua originalidade, para se tornarem atrações turísticas de amplo interesse.
A arquitetura era apreciada por ele não pelo seu valor artístico e estético, mas
como um meio de conservação do passado. A herança mais importante que sua obra
deixou foi a admiração pelo edifício histórico, que deveria ser respeitado e conservado pelo
seu valor de antigüidade.
O profundo respeito de Ruskin pela idade do edifício demonstra a forma como ele
entendia e valorizava a ação da passagem do tempo nas construções humanas. Apesar do
certo radicalismo da abordagem, é inegável a importância dada pela obra de Ruskin ao
respeito pela originalidade do monumento e pelas marcas nele deixadas pela passagem do
tempo, aspecto este ausente em grande parte das intervenções patrimoniais
contemporâneas.
Na verdade, o que ele buscava com a restauração era alcançar um modelo ideal
de edifício, tanto em relação ao seu aspecto quanto à sua estrutura, pois a intervenção
deveria buscar um aperfeiçoamento dos materiais e da estrutura, mesmo que isso
implicasse a perda de sua originalidade2.
É uma visão que foi criticada por não ter respeitado a concepção original do
edifício e nem as marcas deixadas pela passagem do tempo. Todavia, desse seu
entendimento alguns aspectos tiveram grande relevância para a prática do restauro: i. o
grande interesse pela história das técnicas e dos canteiros de obras; ii. o método de
pesquisa no local, com a utilização de registros fotográficos, escritos e gráficos para
documentar a obra e subsidiar as ações de restauro; iii. e o entendimento de que o uso é a
melhor maneira de garantir a conservação de um monumento, não devendo, portanto, as
ações de restauro inviabilizarem ou limitarem esse aspecto.
A sua fala está dividida em três partes: uma primeira tratando da escultura, a
segunda da pintura e a última da arquitetura. Ao longo do texto, Boito cita vários exemplos
antes de definir a sua posição sobre a restauração de cada um desses objetos artísticos.
Para a escultura, o autor descarta qualquer ação de restauro, por acreditar que se
poderia produzir um falso histórico. Sobre o assunto ele diz:
Quanto à pintura, ele compara o restaurador a um cirurgião que deve agir para
salvar a vida e, por julgar essa ação por vezes arriscada, defende a mínima intervenção,
apenas na estrutura em que se encontra a pintura e não na imagem propriamente dita. E
diz: “parar o tempo; e aqui está a sabedoria: contentar-se com o menos possível” (BOITO,
2003, p. 53).
Quanto à arquitetura, ele defende ser legítima a intervenção por acreditar que o
presente tem prioridade sobre o passado, mas refuta a restauração como entendia Viollet-
le-Duc, que visava dar a obra um estado de perfeição que ela pode nunca ter tido, por ver
nisso um risco de falsificação que podia comprometer a originalidade da obra.
O Culto Moderno aos Monumentos (1903) de Aloïs Riegl foi uma obra que surgiu de
como uma tentativa de organizar os conceitos ligados à conservação dos monumentos e aos
valores a eles atibuídos. Resultou de uma profunda mudança que foi se delineando desde o
século XIX sobre a forma do culto aos monumentos e às exigências que dele se derivavam.
Ainda que de forma implícita ou não intencional, esta é uma obra que sistematiza as visões
de Ruskin, Viollet-le-Duc e Boito com o enfoque na identificação e categorização dos
valores atribuídos ao patrimônio por esses e outros profissionais envolvidos com a questão.
Obra de arte é toda obra humana apreciada pelo tato, pela vista ou pelo ouvido
que mostra um valor artístico. Monumento histórico é toda e cada uma dessas obras que
possui valor histórico.
é, portanto, fundamental para que o valor histórico seja mantido e o bem seja herdado por
outras gerações.
O critério para identificação deste valor é determinado pela relação entre o grau
de integridade em que se encontra o bem e a sua capacidade de continuar transmitindo a
mensagem em razão da qual foi construído. Assim, se a integridade for perdida e o
monumento não mais estiver apto a transmitir sua mensagem, este valor deixa de existir. É
válido ressaltar que a ausência deste valor não significa a ausência dos demais.
O valor artístico, segundo Riegl, é algo relativo que varia com o que ele chama de
exigências da moderna vontade da arte, variando de pessoa para pessoa e no tempo. Segundo
o autor, este valor se subdivide em dois: o valor artístico de novidade e o valor relativo.
antiguidade, este também pode ser percebido por todos, não só por especialista, sendo sua
identificação dada pela aparência de algo novo, não desgastado pela passagem do tempo.
Esse foi também um valor que Viollet-le-Duc desejava agregar aos edifícios, ao serem
restaurados, quando buscava transformá-los em modelos ideais.
O último valor descrito por Riegl é o valor artístico relativo que se refere à
possibilidade de que obras de gerações anteriores possam ser apreciadas não só como
testemunhos passados, mas também com respeito a sua própria e específica concepção
como obra de arte.
Segundo Riegl, é um valor que entra em conflito com o valor de antiguidade por
exigir a conservação e restauração da obra como requisito fundamental para que ela
continue sendo obra de arte. Esse é o valor principal que baseia toda a Teoria da
Restauração de Cesare Brandi.
Ainda que não traga balizas práticas para a ação do restauro, a teoria de valores
construída por Riegl é um referencial fundamental para auxiliar no adequado
conhecimento do bem e dos valores que ele agrega, informações essas fundamentais a
serem levantadas quando se realizam intervenções de qualquer natureza em bens culturais.
A obra Teoria da Restauração de Cesare Brandi, que foi publicada no ano de 1964,
segue sendo um dos principais referenciais teóricos para a prática do restauro, tendo
influenciado muitas publicações sobre o tema, a exemplo da Carta de Veneza (1964),
principal documento patrimonial internacional.
Como produto da atividade humana, a obra de arte coloca uma dupla instância: a
instância estética, por meio da qual é obra de arte, e a instância histórica, pois foi realizada
pelo homem em certo tempo e em certo lugar. Segundo o autor, a instância da utilidade,
presente na arquitetura, não pode ser apresentada isoladamente, mas sempre vinculada a
essas instâncias fundamentais.
Se a apreensão estética da obra de arte for prejudica, o restauro deve, sempre que
possível, promover a volta dessa unidade potencial. Como exemplo, podemos citar o caso
hipotético de uma igreja que teve a voluta de um dos lados danificada e, por ser simétrica a
do lado oposto, seria possível a sua reconstrução, a qual se tornava necessária para
devolver a unidade formal da obra. Nesse caso a restauração deve reconstruir a voluta, mas
deixando claro que se trata de uma reconstrução, de modo a ser claramente percebida em
intervenções futuras.
Caso não haja indícios suficientes do estado original de uma obra, a reconstrução
não deve ser realizada. Assim, o que Brandi defende é um profundo conhecimento da obra
antes de nela intervir, pois cada situação deve ter uma solução individualizada.
Brandi conclui que a restauração não pode presumir nem o tempo passado como
reversível, nem a abolição da história, a ação do restauro deve ser pontuada como evento
histórico, tal como é, pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de transmissão
da obra de arte para o futuro. O autor entende que “na atuação prática essa exigência
histórica deverá traduzir-se não apenas na diferença das zonas integradas, mas também no
respeito pela pátina, que pode ser concebida como o próprio sedimentar-se do tempo sobre
a obra”.
Sem uma base teórica bem sedimentada, é impossível ao restaurador agir com a
devida cautela e o devido respeito exigidos pelo seu objeto de trabalho, os bens culturais.
Além disso, a tomada de decisão na atuação prática, seja quando se elabora um projeto de
restauro, seja quando se está em um canteiro de obras, deve sempre ser precedia por
discussões teóricas sobre como agir em cada caso.
Quando lidamos com o patrimônio cultural, nunca devemos perder de vista que
eles nunca pertencerão à geração atual, mas sempre às gerações vindouras.
BIBLIOGRAFIA
BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. [Tradução do original
Teoria del Restauro, publicado em 1963. Tradutora: Beatriz Mugayar Kühl].
CONNOR, Steven. Teoria e Valor Cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
RIEGL, A . El culto moderno a los monumentos; tradução de Ana Pérez López.- Madri: La
Balsa de la Medusa: Editora Visor, 1999.
RUSKIN, John. The seven lamps of Architecture. New York: Dover Publications, 1989.
LEITURA RECOMENDADA
Disponível em:
http://www.iccrom.org/eng/02info_en/02_04pdf-
pubs_en/ICCROM_doc05_HistoryofConservation.pdf