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História da Arte

Prof. Marcus Tadeu Daniel Ribeiro

Arte no período colonial


pintura, escultura e arquitetura no Brasil – 1ª fase
(1549-1654)

O início da colonização no Brasil decorreu do projeto governamental português de ocupar a terra então
descoberta, através da povoação dos pontos estratégicos para garantir sua posse e, portanto, sua explo-
ração econômica. A função religiosa desempenhou papel essencial nesse processo colonizador, não ape-
nas pelo significado religioso que representou em seu tempo, decorrente da expansão da Contra-
reforma no continente americano, mas também funcionando como elemento que iria permitir o estabe-
lecimento de um novo sistema de valores culturais junto ao povo autóctone.

Uma arte voltada para o mar


O início da colonização portuguesa no Brasil enfatizou a
região do nordeste, pela proximidade da região com a
metrópole e pelas conveniências econômicas que o ex-
plorador logo percebeu nessas áreas. No sistema das
capitanias hereditárias, apenas as de Pernambuco e
São Vicente progrediram. Com a criação do Governo
Geral, em Salvador, no ano de 1549, as autoridades
portuguesas estabeleceram a meta de ocupar a terra
por razões estratégicas. A metrópole percebia que a pre-
sença freqüente de navios de outras bandeiras nesta re-
gião, especialmente a francesa, mantendo um comércio
com os índios locais, acabaria por redundar, em pouco
tempo, na tentativa de fixação de uma colônia francesa
no País.
Os portugueses guerrearam esses invasores, para o que
não bastariam armas, mas sobretudo gente que pudes-
se povoar a região após a expulsão definitiva, que só vi-
ria a acontecer, no caso do Rio de Janeiro, em 1565,
transcorridas duas expedições. A presença da Compa-
nhia de Jesus e de outras ordens religiosas é testemu-
nho eloqüente, através dos templos que hoje remanes-
cem daquela época, desse período histórico de fundação
da cidade.
Algumas cidades brasileiras situadas na costa ou mes-
mo no interior ainda apresentam edificações religiosas
Arte do Brasil colonial 2

jesuíticas decorrentes dessa época. Embu (SP), Rio de


Janeiro, Niterói, Cabo Frio (RJ), Nova Almeida, Reritiba
(atual Anchieta, ES) Salvador (BA), Olinda (PE), Belém
(PA) e outras situadas no litoral ou próximo dele, surgi-
ram de um esforço de ocupação da terra pela coroa por-
tuguesa com a intervenção direta da Igreja, desde a se-
gunda metade do século XVI.

Figura 1 - Luiz Teixeira, Rotei-


ro de todos os sinais (1573-8),
In: COARACY, Vivaldo. O Rio
de Janeiro do século XVII. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1965.

Assim, esse anos iniciais do processo civilizador é mar-


cado pela ação dos padres da Companhia de Jesus, que
atuam no Brasil, recebendo influência, especialmente
nas áreas litorâneas, da cultura européia. A arte dessas
cidades cedo refletirá os padrões estilísticos, que chega-
vam pelo mar, através das embarcações que aportavam
no Rio de Janeiro, vindo de outros portos brasileiros e
portugueses. A cidade debruçava-se sobre o mar, de
onde recebia o vento novidadeiro das influências es-
trangeiras, semeando, assim, desde os primeiros mo-
mentos de sua História, as bases de uma visão cosmo-

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polita que marcou o habitante dessa região.

A baía de Guanabara e duas igrejas jesuíticas


Destacam-se duas igrejinhas representativas desse
momento inicial de ocupação da terra pelo colonizador:
a Igreja de São Lourenço dos Índios, situada em Niterói,
e o Colégio Jesuítico de Santo Inácio, localizado no Mor-
ro do Castelo do Rio de Janeiro.
A igrejinha de São Lourenço é uma das mais antigas e-
dificações existentes em toda região sudeste. Em no-
vembro de 2001, o prefeito daquela cidade escreveu, no
catálogo relativo à restauração do imóvel, que a edifica-
ção poderia ser vista como uma “representação simbóli-
ca da fundação da cidade de Niterói”.1
As palavras são verdadeiras. Em 1915, um pouco antes
de destruírem o Morro do Castelo na cidade de São Se-
bastião do Rio de Janeiro, onde estavam as igrejas do
Colégio dos Jesuítas e a de São Sebastião, a velha Sé,
houve um prefeito niteroiense que se empenhou pela
preservação da igreja de São Lourenço. Já falo dele,
porque a atitude desse político foi quase pioneira para
sua época. Enquanto isso, a igreja dos jesuítas do Mor-
ro do Castelo, também construída sobre um outeiro na
mesma época da de Niterói, seria destruída em 1922 e
ninguém fez nada de efetivo para tentar salvá-la.
Na época do arrasamento do Morro do Castelo, falou-se
muito da existência de um tesouro que, segundo a tra-
dição popular, havia sido escondido pelos jesuítas... Ar-
rasou-se o morro inteiro, destruíram-se as duas igrejas,
o casario multissecular da localidade e o arruamento de
traçado medieval existente ali. Não encontraram nada –
claro! – a não ser um túnel que ligava o convento jesuí-
tico ao outro lado do morro do Castelo, escavado para
dar fuga aos jesuítas nos casos de invasão da cidade.
Mas não havia tesouro nenhum dentro dele.
O tesouro, a rigor, estava bem na frente de quem qui-
sesse ver: era a própria igreja multissecular dos jesuítas
e a de São Sebastião, com suas obras de talha e suas
imagens anciãs, que a cegueira do falso progresso des-
truiu. Mais à frente, mostro alguns dos vestígios que

1
SILVEIRA, Jorge Roberto. [Apresentação] In: NITERÓI. Restauração da Igreja de São Lourenço dos Índios.
Niterói: Prefeitura de Niterói; Ministério da Cultura, 2001.

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restaram de um desses dois importantes templos cario-


cas.
A igreja de São Lourenço dos Índios fica no cimo de um
morro onde Araribóia fundou sua aldeia após a expul-
são dos franceses do Rio de Janeiro. Isso quase sempre
as pessoas sabem. O que não se conhece muito é a pró-
pria guerra dos índios e a história de Araribóia.
Araribóia quer dizer “cobra feroz”. A tribo dos temimi-
nós por ele chefiava havia sido expulsa do local pelos
tamoios, futuros aliados dos franceses, de sorte que não
foram apenas os portugueses que usaram, contra seus
inimigos europeus, os temiminós, mas também esses se
valeram dos portugueses na reconquista das terras das
quais haviam sido expulsos em tempo passado pelos
tamoios. Uma mão lava a outra.
Não existe um marco tumular relativo a Araribóia pró-
ximo à igreja, da mesma forma que há, na Igreja dos
Capuchinhos, no Rio de Janeiro, herdeira do espólio da
antiga Sé, o marco quinhentista e a lápide tumular de
Estácio de Sá, fundador da cidade do Rio. Pelo que se
sabe, tendo Araribóia morrido afogado, supõe-se que
seu corpo nunca tenha sido encontrado e que o herói
indígena nunca tenha podido receber, como seria justo
que tivesse, as exéquias solenes de um verdadeiro capi-
tão-mor, título que recebeu de Dom Sebastião, rei de
Portugal.
Quando se chega ao adro da Igreja de São Lourenço dos
Índios, percebe-se o caráter estratégico que a localidade
teve para a implantação da aldeia indígena. Dali descor-
tina-se a barra e boa parte da baía de Guanabara, po-
dendo-se perceber especialmente a movimentação ad-
vinda da cari oca – “casa de homem branco”, literalmen-
te... “Amigos, amigos, sobrevivência à parte”. Os antigos
aliados portugueses não tardariam a cobiçar a gente de
Araribóia como mão-de-obra escrava e, neste caso, os
jesuítas, que se opunham à escravidão indígena, bem
que poderiam se tornar – como de fato acabaram sendo
– um aliado contra o expansionismo de seus vizinhos ci-
tadinos.

A igreja de São Lourenço dos Índios (Niterói, RJ)


Daí a importância da igreja de que falamos. Ela é um
testemunho de que o processo de colonização teve as
suas idas e vindas, demonstrando que houve uma es-
tratégia de sobrevivência dos índios no local, que se ali-

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aram aos jesuítas. Mas esses, de tanto ferir os interes-


ses de colonos e do próprio Estado monárquico portu-
guês, acabariam sendo expulsos do Brasil e demais
possessões portuguesas, por decreto de 3 de setembro
de 1759, assinado pelo Marquês de Pombal. Quando fa-
larmos da época de Dom José I e do seu ministro todo-
poderoso, o Marquês de Pombal, voltamos a falar da ex-
pulsão dos jesuítas, procurando entender suas razões.
Depois da expulsão dos jesuítas, a igreja de São Lou-
renço passou ao domínio paroquial até que, em 1915,
Manoel Otávio de Souza Carneiro, o então prefeito de
Niterói, solicitou a incorporação do templo ao patrimô-
nio da municipalidade, por entender que ele era o único
marco de fundação da cidade, embora tivesse sido re-
construída em princípios do século XVII.
O nome desse prefeito bem que merece ser lembrado,
porque ele já estava tentando preservar o patrimônio
cultural brasileiro, antes mesmo de o governo federal
criar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional, que é de 1936. De sorte que uma das primeiras
medidas feitas pelo IPHAN após sua criação e após a
promulgação do Decreto-lei n.º 25, que é de 30 de no-
vembro de 1937, foi o tombamento da Igreja de São
Lourenço, que já se encontrava protegida desde 1934,
quando o imóvel passou a ser próprio do município.
O templo tem partidos e linhas que remontam ao ma-
neirismo, estilo artístico situado cronologicamente entre
o término do Renascimento e o início do Barroco. Foi
este o primeiro estilo que ocorreu no Brasil do início da
colonização. Sem que se possa caracterizá-lo tão-
somente como um momento de transição na arte, mar-
cado pela convivência de elementos formais de duas e-
ras distintas, o maneirismo possui algumas caracterís-
ticas que, no Brasil, conferem-lhe especificidade e ca-
racterísticas históricas.

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Figura 2 - Igreja de São Lourenço dos Índios (Niterói, RJ)


Além, disso, o imóvel é um exemplar da arquitetura je-
suítica, de enorme recorrência em vários locais do terri-
tório nacional, documentando, através de traços artísti-
cos marcados pela simplicidade e pelo despojamento, o
início da presença do ideário contra-reformista na Amé-
rica portuguesa. Isso foi apenas o início, pois o estilo da
Contra-reforma esteve mais relacionado ao Barroco do
que ao Maneirismo. Um historiador da arte alemão –
Werner Weisbach – chega a chamar o estilo barroco de
o “estilo da contra-reforma”.
A arquitetura jesuítica constituir-se-á num dos traços
mais marcantes da influência da cultura européia no
Brasil nos momentos primazes de sua ocupação. Ela
não será a única forma de manifestação da arquitetura
conventual no continente americano, mas terá impor-
tância por reproduzir, de maneira disciplinada, as solu-
ções, características e partidos arquitetônicos europeus
trazidos ao Brasil nessa época. Deve-se tributar à arqui-
tetura jesuítica a característica que se verificou, com al-
guma freqüência na colônia, mesmo nas obras de ou-
tras ordens religiosas ou paroquiais, de se fazerem tem-
plos com o exterior bastante simples, contrastando com
um interior eventualmente rico.
Antes de se construir essa igreja, houve uma outra no
mesmo local, de dimensões mais modestas, feita em
1568, talvez em taipa de pilão, segundo anota Germain
Bazin2. Ela foi substituída em 1627 pela atual igreja,

2
BAZIN, Germain. Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, [1983], v. 2, p. 148.

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que é de pedra e cal. Em 1769, o templo passaria por


uma reforma, mas suas linhas primordiais permanece-
riam, pois ainda segundo o historiador da arte francês,
“a fachada, muito simples, é a de um templo do século
XVII”.3
Ao se olhar a fachada do imóvel, entende-se porque se
fala em simplicidade e em austeridade como forma de
se entender o espírito dos jesuítas, ordem religiosa cria-
da em 1540, no apogeu do pensamento racionalista da
Renascença. Em todos os vãos do pano principal da fa-
chada predominam as linhas retas, a linguagem geomé-
trica, a razão. As três janelas do coro de cima e a porta-
da, trabalhadas em pedra de cantaria, integram-se com
o traçado que esquadrinha a cornija e as linhas superi-
ores do frontão triangular, em cujo tímpano vê-se um
óculo circular.
Não há concessões ao virtuosismo barroco que marcari-
a, com suas curvas alambicadas, a fase artística poste-
rior, especialmente em outras ordens religiosas ou
Figura 3 - Vista lateral da igreja, mesmo nas igrejas paroquiais.
com a escada de acesso ao cam-
panário e ao coro de cima. Apenas os vãos do campanário4, incorporados à super-
fície do pano da fachada, apresentam-se arrematados
por arcos de meio ponto, quebrando o aspecto austero
da fachada. A esse campanário tem-se acesso através
de escada lateral, que se inicia pelo lado de fora do
templo e sobe em linha reta até alcançar o coro de cima
da igreja.
A presença do campanário rompe a simetria do imóvel e
empresta algum dinamismo à fachada, o que faz imagi-
nar que talvez tenha sido acrescentado ao edifício em
época posterior do século XVII ou até no início do XVIII
e não por ocasião da construção do templo. Na fase
maneirista, pelo menos na arquitetura, prevalecia ainda
uma tendência clássica, onde o gosto pelo equilíbrio e
pela estabilidade predominava. A inclusão de um pro-
longamento da fachada, rompendo com a simetria e,
portanto, com o equilíbrio, parece atender mais ao gosto
barroco, porque institui uma desigualdade que tanto
caracterizou uma época marcada pela ambigüidade e
pelo dinamismo, como foi o século XVII e boa parte do
XVIII.

3
Idem.
4
Entende-se por campanário a “torre de uma igreja onde os sinos são colocados. Destinava-se também, antiga-
mente, para fins de observação e alarme” Cf. REAL, Regina M. Dicionário de Belas-Artes: termos técnicos
e matérias afins. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962.

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Arte do Brasil colonial 8

Durante os trabalhos de restauração desenvolvidos en-


tre 1999 e 2001, foram encontrados vestígios no prédio
de que a sua forma original de fato não possuía aquele
prolongamento do frontispício. É provável que ele tenha
sido feito em época posterior e que a reforma de 1769
achou por bem respeitá-lo.
A planta da igreja caracteriza também o programa ar-
quitetônico utilizado pelos jesuítas no início da coloni-
zação, nomeadamente na “fase missioneira”: no templo,
é adotada a nave única com acesso pela portada da fa-
chada principal ou pelo lado do Evangelho (lado direi-
to)5; sobre a entrada do templo, há um coro de cima,
feito para os dias de festividade; no outro extremo da
nave, encontra-se a capela-mor, onde se situa o altar-
mor e o retábulo6 correspondente, que domina a aten-
ção dos fiéis; uma sacristia lateral está anexada ao cor-
Figura 4 - Ig. S. Lourenço dos
Índios - planta-baixa
po da capela-mor. No caso da igreja de São Lourenço
croqui do autor dos Índios, a sacristia estende-se por um trecho ao lon-
go do corpo da igreja pelo lado da Epístola, cômodo que
talvez tenha servido como residência paroquial.
Quando se entra no templo, não se pode deixar de repa-
rar na simplicidade do espaço, onde várias épocas con-
correm de maneira harmônica e graciosa para constitu-
ir um ambiente próprio à devoção. A riqueza artística da
capela-mor contrasta com a simplicidade da nave.

5
O lado “direito” do templo é aquele do Evangelho, ou seja, aquele em que se situa o púlpito. O lado “esquer-
do”, por sua vez, é o lado oposto e é denominado de Epístola.
6
Retábulo é uma palavra egressa do castelhano retablo – “atrás da mesa”, literalmente. A palavra “mesa”. apli-
cada no sentido religioso, significa “altar”. O retábulo, portanto, é aquela peça entalhada em madeira, escul-
pida em pedra ou pintada sobre qualquer superfície, que fica atrás dos altares. Os retábulos, com freqüência,
possuem um ou mais nichos, que são reentrâncias abobadadas onde ficam as imagens dos santos, à frente
dos quais os fiéis ajoelham-se para rezar. Na tradição católica, todo altar possui uma pedra, esteja ela apa-
rente ou não, que é considerado o lugar sagrado daquela.

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Figura 5 - Igreja de São Lourenço dos Índios - Nave


Aquele púlpito que se vê no lado do Evangelho (lado di-
reito do templo) é obra dos fins do século XIX ou início
do XX. Não é original. Da mesma forma, o forro e sua
correspondente pintura já se perderam. Os relevos da
Via Crucis colocados nas paredes laterais são de um ar-
tista contemporâneo, mas integram-se perfeitamente ao
espaço, pela simplicidade de sua concepção.

Figura 6 - Paços da Paixão


Da pintura da época colonial, restam aquelas circun-
dantes do retábulo situado do presbitério7, bem como
aquela outra existente no arco-cruzeiro8, que separa a

7
O mesmo que capela-mor.
8
Parede, normalmente adornada, que separa a nave central do presbitério ou capela-mor.

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Arte do Brasil colonial 10

nave central da capela-mor. A pintura do arco-cruzeiro


apresenta motivos decorativos típicos do século XVIII,
com rocalhas estilizadas, já ao gosto da fase inicial do
Rococó. Devem ter sido acrescidas na reforma de 1769
ou um pouco antes.
Os anjos situados em torno do retábulo da capela-mor
são da mesma autoria do autor da pintura de Nossa
Senhora da Assunção, feita no painel superior da obra
de talha. Percebe-se isto pela homogeneidade do dese-
nho entre a pintura parietal e a do retábulo, demons-
trando que se tratava de artista com traço seguro e bom
domínio da técnica. A pintura aponta já para o gosto
barroco, podendo-se perceber a intensidade das cores
utilizadas, o recurso do chiaroscuro no painel central e
um certo dinamismo na composição da obra, caracterís-
ticas que se relacionam ao Barroco.
O retábulo devotado ao orago do templo encanta o visi-
tante, por sua erudição clássica e riqueza contida. A
sua douração, da mesma maneira que aconteceu em
Figura 7 - Retábulo Ig. São outras igrejas fluminenses, foi feita a partir do início do
Lourenço dos Índios – detalhe século XVIII, após a descoberta do ouro nas Minas Ge-
Nossa Senhora da Assunção rais. Originalmente, a obra deveria ser policromada. A
imagem de São Lourenço, de que se falará à frente, si-
tuada dentro de um nicho, domina a parte central do
retábulo. Entre o altar curvilíneo, onde o retábulo se
apóia, e o arremate curvilíneo que coroa o nicho e os
dois pares de colunelos9, predomina um gosto clássico,
com tendência ao emprego de linhas retas. No arremate
superior, todavia, onde se encontra o painel de Nossa
Senhora da Assunção, enquadrada por obra de talha
sinuosa e adornada com florões, revela-se aquele en-
cantamento lírico que se enlaça às formas barrocas.

O Maneirismo e outras transições dos anos seiscentos


Do ponto de vista estilístico, esta obra de talha encon-
tra-se situada entre o final de um estilo que se encerra,
o Renascimento, e o alvorecer de uma nova etapa artís-
tica, cheia de caprichos formais, em que iria preponde-
rar o virtuosismo decorativo, sem eliminar de todo os
traços clássicos. Por esta razão, esse retábulo deve ser
visto como uma das mais importantes obras de talha
maneiristas produzidas no Brasil da primeira metade
do século XVII.

9
Colunelos são colunas de pequena dimensão. Chama-se coluna qualquer pilar de seção circular. A pilastra, por
sua vez, é um pilar integrado parcialmente ao plano de uma parede.

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Afirma-se que a escola que fez este retábulo é a mesma


que elaborou aquele outro situado no Colégio dos Jesuí-
tas do Morro do Castelo, arrasado em 1922, e que hoje
se encontra na Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso,
no centro do Rio de Janeiro.

Figura 8 - O altar e o retábulo correspondente integram-se num ambiente


religioso, onde se vêem pinturas parietais e um baldaquino, que arremata
toda a acomposição.

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Figura 9 - Retábulo da Igreja de São Lourenço dos Índios (Niterói, RJ)

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Arte do Brasil colonial 13

Alguns autores utilizam a expressão “proto-barroco” pa-


ra designar o estilo da obra, mas o próprio Maneirismo,
que antecede o Barroco, apregoa, em vários momentos,
soluções estéticas do porvir estilístico que se avizinha-
va. “A Última Ceia” do pintor maneirista Tintoretto, por
exemplo, possui elementos estruturais que serão utili-
zados reiteradamente no Barroco: a encenação e a fun-
Figura 10 - Tintoreto, Última ção dramática dos personagens na cena, o emprego do
Ceia, 1592-4, óleo sobre tela,
365 x 568 cm, Ig. São Jorge chiaroscuro, a organização dinâmica da obra, a prepon-
Maior, Veneza derância dos aspectos pictóricos e táteis, a ambigüida-
de, além de outros pontos. Seria a tela do renomado
pintor veneziano “proto-barroca”? De certo que não. Era
maneirista.
O maneirismo, no Brasil, é um estilo marcado pela he-
rança clássica, mas com manifestações formais criati-
vas e relacionadas, não raro, a traços que tipificam a
estética barroca. Era um momento em que a arte euro-
péia se estabelecia no País, mas demonstrava já as no-
vas tendências que alvoreciam no cenário artístico do
Velho Mundo. Isto de certo que pode caracterizar uma
transição. É a transição de uma era para outra.
Mas há ainda um outro tipo de transição, que não ape-
nas a temporal. Trata-se da mudança de uma cultura
para outra, onde valores estéticos são trazidos por artis-
tas europeus, que aqui estabelecem e passam, lenta-
mente, a incorporar uma nova visão de mundo, que lhe
é conferida pelo contexto cultural local. E assim, desde
os primeiros momentos da colonização, através de uma
miscigenação de idéias, em que concorrem três raças,
três maneiras distintas de entender a realidade e que se
influenciam reciprocamente, passa a se constituir uma
arte brasileira, não por ser autóctone ou genuína, mas
por retratar essa miscigenação cultural plural e com-
plexa, única no mundo.
A imagem de São Lourenço que alinda o retábulo é bem
interessante e merece algumas observações. Olhemos
para ela com atenção e procuremos entender um pouco
das coisas que nela vemos. Por que aquelas vestes? Por
que o santo traz aqueles objetos nas mãos? O que há ali
para ser visto?
São Lourenço foi um santo mártir da Igreja Católica que
viveu no século III, quando atuava como diácono, ao la-
do do Papa Sisto II. Conta-se que Lourenço, a quem o
papa incumbira de guardar os livros litúrgicos, docu-

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Arte do Brasil colonial 14

mentos importantes e até valores, foi preso pelas forças


do imperador romano Valeriano, que mandou torturar o
clérigo até que ele confessasse onde escondera a impor-
tante papelada. Lourenço não apenas demonstrou-se
possuidor de um espírito inquebrantável, não revelando
o paradeiro da documentação, como ainda revelou sua
vocação missionária, pois ainda converteu, ao cristia-
nismo, o carcereiro Hipólito, futuro mártir cristãos, imo-
lado também pelas forças romanas.
Umas das formas que se usou para torturar o santo foi
colocá-lo sobre o calor do fogo, mas sem que o deixas-
sem morrer, todavia. Seu corpo ficou todo queimado e,
por isso, o santo tem como atributo uma grelha numa
das mãos, símbolo da tortura pela qual passou. Na ou-
tra mão, traz uma palma, símbolo cristão do sofrimento
e do martírio.

Figura 11 - Imagem de São Lourenço em madeira dourada e policromada


Em algumas representações deste santo, é comum en-

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Arte do Brasil colonial 15

contrar-se um livro no lugar da palma, como referência


ao trabalho zeloso feito por Lourenço na guarda dos li-
vros que lhe haviam sido confiados. É ele, por isso, pa-
droeiro dos bibliotecários e dos arquivistas. Mas, a lem-
brar-nos da tortura que o pobre santo passou, ficou a-
inda como padroeiro dos cozinheiros...
O santo na escultura tem as vestes de diácono, com a
dalmática caindo-lhe pelo corpo com elegância, mar-
cando um drapejamento simples e contido, característi-
ca da imaginária seiscentista. Apenas a alva, que se re-
vela das canelas ao chão, tem um caimento maleável,
sugerindo a suavidade do panejamento de um tecido
menos encorpado que a dalmática que lhe recobre.
Os gestos do retratado são disciplinados e sem exces-
sos. Não há, na imagem, aquele tom dramático que ca-
racterizaria com freqüência a imaginária do século
XVIII. Os movimentos da escultura dispõem-se de ma-
neira a privilegiar o caráter frontal da imagem, caracte-
rizando-a como retabular, ou seja, como uma escultura
feita para figurar num retábulo e ser vista de um só
ponto: de frente. Por esta razão a parte detrás das ima-
gens retabulares com freqüência tem um acabamento
menos cuidado.
Não se conhece a autoria da obra. Pode-se supor que
ela seja de origem portuguesa, se forem considerados o
domínio da técnica da talha de seu autor, a proporção
bem cuidada do corpo humano que ela apresenta, a e-
rudição com que são tratados rosto e mãos e a forma
elegante da postura do santo. A idéia de importação da
obra respalda-se no fato de que o século XVII havia
muitas escolas de imaginária em Portugal, sendo possí-
vel que ela tivesse chegado ao Brasil da mesma forma
que muitas outras esculturas existentes no País: no po-
rão dos navios de carga que faziam o comércio entre
Portugal e sua mais rica colônia. A inexistência de es-
tudos sobre a imaginária fluminense dos séculos XVI e
seguinte, como assim a excelência dessa e de outras
peças de arte sacra fluminense desse período têm enco-
rajado alguns observadores do período a supor que se
trata de uma peça importada de Portugal.
Uma outra possibilidade é que a obra tenha sido feita
no Brasil por algum padre entalhador de origem lusita-
na, aqui radicado por força de sua ação missioneira.
Era muito comum, na época do Brasil colonial, encon-
trarem-se, entre os artistas que aqui atuaram e fizeram
escola, religiosos especialistas na talha de esculturas

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Arte do Brasil colonial 16

para seu trabalho catequético ou mesmo para o exercí-


cio de sua vida religiosa, tão-somente.

O Morro do Castelo e a Igreja dos Jesuítas


De fato, há notícias de que havia, no Morro do Castelo,
uma importante oficina atuante na área de talha e de
imaginária, à qual, inclusive, atribui-se a autoria do re-
tábulo de São Lourenço dos Índios, feito inteiramente
com madeira extraída de árvores brasileiras (canela,
louro e cedro)10. O mesmo domínio que se percebe no
retábulo encontra-se também na escultura, que tem
uma madeira da mesma época da do retábulo, segundo
observou o catálogo de restauração aqui já menciona-
do.11 É possível que essas obras – retábulo e imagem –
sejam um dos primeiros exemplares conhecidos dessa
escola de talha fluminense.
Os retábulos feitos para a igreja dos jesuítas do Rio são
de igual qualidade e foram feitos também por essa esco-
la de entalhadores do Morro do Castelo, chefiada pelo
Figura 12 - Fachada da Igreja de frei Jorge Esteves, que exerceu, por 26 anos, a função
Santo Inácio, do Colégio dos
de faber lignarius, título de excelência obtido pelos
Jesuítas, no Morro do Castelo,
inaugurada no Natal de 1588 e grandes entalhadores do Brasil colonial.
demolida em 1922.

10
NITERÓI. Restauração da Igreja... p. 6
11
Ibidem, p. 7 O catálogo afirma, todavia, que a imagem é portuguesa. Cf. Ibidem, p. 9

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Arte do Brasil colonial 17

Figura 13 - Antigo retábulo da capela-mor da Igreja dos Jesuítas, no Morro


do Castelo. c. 1619.
Nada se conhece sobre esse religioso de notável atuação
como artista e mestre, formador de outras gerações de
artistas da época colonial. A oficina por ele dirigida in-
tegrava-se ao projeto humanista dos jesuítas de unir a
ciência, a arte e a religião ad majorem Dei gloriam – para
maior gloria de Deus. Ela se incorporava a um projeto
humanístico do saber, herdeiro da tradição renascentis-
ta de buscar, através das diversas formas do conheci-
mento, o exercício pleno das potencialidades humanas.
Esse retábulo mostrado acima passou por transforma-
ções e já não guarda mais inteiramente todos os traços
do original, embora sua estrutura estilística e os ele-
mentos básicos que o compõem mantêm-se ainda idô-
neos. O painel situado atrás do santo, incluindo os a-
dornos pseudo-barrocos, não são originais. A obra é
composta à maneira daquela outra da Igreja de São

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 18

Lourenço dos Índios: o altar é feito em madeira escura,


sem adornos, sobre o qual apóia-se, num plano posteri-
or, o retábulo propriamente dito, onde a imagem de
Santo Inácio de Loyola domina na parte central.

Figura 14 - Santo Inácio de Loyola


(madeira policromada e dourada), século XVII
Originalmente, esse retábulo encontrava-se junto ao al-
tar-mor da igreja dos jesuítas do Rio e possuía um ni-
cho na parte central, onde a imagem do santo, que
Germain Bazin12 acredita ser de época posterior, com-
punha harmoniosamente a peça. Os dois pares de co-
lunelos enquadram a imagem e dão uma idéia de esta-
bilidade à composição, por acentuar o equilíbrio. Na
parte superior, apoiados sobre os colunelos, vêem-se
um entablamento de linhas retas, com uma decoração
em relevo, e três painéis pictóricos, no centro dos quais
domina aquele devotado a Nossa Senhora da Conceição.
Esse arremate superior do retábulo tem, como na Igreja
de São Lourenço, um contorno recortado por curvas si-

12
BAZIN, Germain. Op. cit. p. 157, v. 2.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 19

nuosas de delicada graciosidade, seguindo um partido


piramidal.
De certo que o nicho foi retirado quando se precisou
remover o retábulo para uma outra parede em decor-
rência das obras de ampliação do colégio a partir do iní-
cio do século XVIII. Esse trabalho não seria concluído,
com a expulsão dos jesuítas do Pais.13 Durante essas
operações, suprimiu-se a capela-mor, retirando-se de lá
o velho retábulo, que passou para a parede lateral da
nave central. Novo altar-mor seria colocado na altura do
arco-cruzeiro, onde então um grande painel foi colocado
contendo uma paisagem, que servia de fundo para o be-
Figura 15 - Igreja Colégio lo grupo escultórico feito já no início do século XVIII,
Jesuíta (Morro do Castelo)
retábulo principal, circa 1720. com uma crucificação de enorme efeito dramático.

Figura 16 - Interior da Igreja dos Jesuítas (demolida em 1922)


Os dois retábulos laterais são devotados a Nossa Se-
nhora da Conceição, apresentando distinções em rela-
ção ao retábulo da capela-mor que mostrou-se acima.

13
CARVALHO, Anna Maria Fausto Monteiro de. Utopia e realidade: Real Colégio de Jesus da Cidade de São
Sebastião do Rio de janeiro. In: ______. (org.) A forma e a imagem. Rio de Janeiro: PUC – Rio, [s./ data]

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 20

Figura 17 - Retábulo de Nossa Senhora da Conceição,


do lado do Evangelho (madeira policromada e dourada)
Em tudo os dois retábulos devotados a Nossa Senhora
da Conceição assemelham-se ao da capela-mor: o parti-
do, as proporções, o vocabulário estilístico, o gosto. To-
davia, os colunelos encontram-se arranjados de forma a
permitir a abertura de seis nichos complementares, on-
de outrora havia imagens de pequenas dimensões.
Germain Bazin relaciona esses nichos com a informa-
ção apurada no Anuário de 1620 de importação de doze
imagens-relicário, vindas de Portugal14.
As imagens-relicário tiveram uso profuso na Europa
Medieval e associaram-se sempre à prática da peregri-
nação. As igrejas medievais destinadas a abrigar relicá-

14
BAZIN, Germain. Op. cit., p. 157. v. 2. Por conta dessa informação, o eminente historiador da arte francês
aproxima a execução desse retábulo ao ano de 1619, quando então chegaram as imagens.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 21

rios15 tinham uma arquitetura adequada a receber um


certo tipo de fiel, que caminhava longas distâncias até
chegar ao local, entrava no templo, via as relíquias, par-
ticipava dos cultos e ia-se embora. Não era um fiel da
localidade. Por isso, uma peculiaridade da arquitetura
de peregrinação era a presença de um deambulatório,
espécie de corredor circular que contornava o coro (no-
me também dado à capela-mor), para onde se abriam as
absidíolas, local em que se situavam, como se fossem
vitrinas de um museu, os relicários. Os corredores cola-
terais eram feitos de forma a permitir a passagem do fi-
el, ao largo da nave central, sem interferir nos cultos
que ali se processassem.

15
Relicário é uma peça onde se expõe algum vestígio material (osso, fio de cabelo, dente, do de roupa etc.),
também chamado de relíquia, de um santo, com o fim de ser adorado pelos fiéis. A imagem-relicário tem
forma antropomórfica, obedecendo à iconografdo santo. Por exemplo, uma imagem-relicário de São Lou-
renço teria que aparecer com uma palma e uma grelha.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 22

Figura 18 - Busto relicário de


São Benevenuto, barro cozido
avermelhado, séc. XVII, 63 x
45 cm, Itu – Este busto relicá-
rio, embora pertencente à or-
dem jesuítica, não foi feito para
esses retábulos. Sua procedên-
cia é paulista e ilustra bem o
tipo e a riqueza da arte bandei-
rante naqueles tempos remotos
da colonização brasileira.

Figura 19 - Retábulo de Nossa Senhora da Conceição


do lado da Epístola (madeira policromada e dourada).
Com a Contra-Reforma, foram sendo reavivadas tais
práticas religiosas, que haviam perdido um pouco de
sua importância na Renascença. Os jesuítas e os bene-
ditinos, mais do que outras ordens, usaram em seus e-
difícios religiosos no Brasil a relíquia, não para ser ado-
rada por peregrinos, mas pela própria população local e
pelos religiosos. A peregrinação na época da colônia não
foi praticada. Por esta razão, não se vêem edifícios reli-
giosos com aquela planta-baixa típica das edificações
religiosas medievais da Europa, destinadas à peregrina-
ção, contendo deambulatórios, absidíolas, grandes vãos
etc.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 23

Santa Apolônia viveu em


Alexandria no século III,
quando houve intensa perse-
guição aos cristãos. Foi ela presa
e torturada, tendo tido seus ma-
xilares quebrados e seus dentes
extraídos de forma bárbara.
Por isso, Santa Apolônia tornou-
se padroeira dos dentistas, con-
quanto fosse mais razoável que
se tornasse protetora dos clientes
dos dentistas. A representação
da santa tem por atributos, além
da palma, símbolo do martírio,
um boticão com um dente.
A imagem paulista não apresen-
ta a tenaz, mas um livro, que
seria uma referência ao fato da
santa ser diaconisa. Observar, na
altura do peito da imagem, o
lugar onde se prendia o relicário,
hoje desaparecido.
O drapejamento das vestes, a
policromia da imagem e a deli-
cada sinuosidade com que as
mechas de cabelo descem-lhe
pelos ombros, demonstram que
o autor da escultura dominava as
técnicas de modelagem do barro
com perfeição. Esse tipo de
escultura, mais do que a talha
em madeira ou o cinzelamento
da pedra, foi comum no Brasil
dos séculos XVI e XVII .

––––!"––––
Figura 20 - Busto relicário Santa Apolônia, barro cozido avermelhado,
séc. XVII, 58 x 33 cm, (São Paulo)
Os jesuítas, que tinham um trabalho mais voltado para
a formação espiritual do povo indígena, expunham as
relíquias à curiosidade religiosa do fiel. Os beneditinos,
por sua vez, que não tinham, nos tempos coloniais, es-
sa função de ensino e de conversão do gentio, utiliza-
ram a relíquia fora do culto popular. A capela das relí-
quias do mosteiro beneditino do Rio de Janeiro, que se-
rá visto mais à frente, encontra-se na clausura e não
está acessível aos fiéis.
A igreja jesuítica não possuía deambulatórios, desem-
penhando, os retábulos devotados a Nossa Senhora da
Conceição, o papel de expor as relíquias ao fiel. Passava
ele assim a apresentar essa forma peculiar, distinguin-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 24

do-se dos demais, pela presença dessas imagens-


relicário postas entre os colunelos.
Tal aspecto dá-nos outros indicativos, não apenas his-
tórico-culturais, como também formais. Já foi assinala-
do que o estilo dessas obras de talha – o Maneirismo –
situa-se no limiar de duas épocas artísticas: o Renasci-
mento, que fenece na Itália ao longo do século XVI, e o
Barroco, que aparece nos fins daquela centúria, para a-
firmar-se como o estilo característico do século XVII. No
Brasil, o Maneirismo manifesta-se já nos primeiros anos
da colonização, perdura durante toda a primeira meta-
de do século XVII e vai-se extinguindo ao longo da se-
gunda metade desse período, enquanto o Barroco vai-se
afirmando.
Esses retábulos, com seus vários nichos, embora apre-
sentem certa sensibilidade para as soluções barrocas,
como o arremate superior adornado de curvas capri-
chosas, possuem uma característica ainda viva da Re-
nascença, que é a pluralidade, aspecto que se opõe à
idéia de unidade do Barroco.16 Mais tarde, quando ob-
servarmos um retábulo já plenamente barroco, vamos
perceber que a pluralidade cederá lugar à unidade, on-
de todos os elementos da obra de talha concorrem para
carrear a atenção do fiel exclusivamente para o nicho
central, onde impera a figura para devoção.

16
Cf. WOELFFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais de História da Arte.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 25

Figura 21 - Imagem de Nossa Senhora da Conceição. 2ª metade do século


XVII, madeira policromada.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 26

A imagem entalhada de Nossa Senhora da Conceição é


de uma qualidade artística extraordinária: seu
semblante transmite aquele ar de serena religiosidade,
o tratamento dado à vestimenta é elegante, marcado por
drapejamento natural e pela policromia requintada. Os
cabelos, como era costume entre as elites sociais do sé-
culo XVII – a nobreza –, são longos e ondulados. A ati-
tude de Nossa Senhora, marcada pela devoção e pela
sobriedade, ainda não possui aquele exagero típico das
obras barrocas. Tudo nela é introspecção e comedimen-
to. Observe-se que seu olhar dirige-se para baixo, como
sói acontecer entre as imagens marianas dessa invoca-
ção. As representações de Nossa Senhora da Assunção,
ao contrário, a santa eleva seus olhos na direção do
céu, enquanto seus braços aparecem abertos.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 27

São Francisco Borja (1510-


1572) foi o terceiro geral da
ordem, atuando entre 1565 até
seu falecimento. Beatificado em
1624, foi responsável pela mul-
tiplicação de missões jesuíticas e
pela reformulação do ensino
praticado pelos padres jesuítas
Seu atributo é uma caveira coro-
ada, em referência à visão que o
santo teve dos despojos mortais
da imperatriz Isabel, mulher de
Carlos V, e um chapéu cardina-
lício.
Na imagem ao lado, a caveira
está sem a coroa, certamente
feita de metal precioso (pratas
ou ouro), e o chapéu cardinalício
também se perdeu. A cruz refe-
re-se à vida de pregação dos
santos jesuítas. O livro é uma
alusão ao seu trabalho intelectu-
al à frente da ordem. Uma outra
característica muito presente nos
santos jesuítas é a capa que
aparece presa na altura do pes-
coço, sempre com a gola eleva-
da.
Esta imagem pode ser de origem
portuguesa, conforme assinala
Germain Bazin em seu estudo
sobre a arte brasileira. O trata-
mento dado ao panejamento, o
domínio da técnica do entalhe, a
erudição no tratamento das mãos
e da expressão do santo permi-
tem essa suposição.
Figura 22 - Igreja Colégio Jesuíta (Morro do Castelo)
Santo jesuíta, madeira policromada, 1ª metade do século XVII

Duas igrejas jesuíticas no Espírito Santo

A Igreja de Nossa Senhora da Assunção


A Igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Anchieta,
no Espírito Santo, constitui-se em exemplar de relevân-
cia documental da arte do século XVI. O imóvel tem um
aspecto pesado, tão comum na fase maneirista. Tal fei-
ção encontra-se agora ainda mais agravada, em decor-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 28

rência de recente trabalho de restauração, que, procu-


rando retomar a feição original do prédio, acabou por
suprimir algumas modificações que haviam sido feitas
na época barroca. Foram eliminados o adorno contra-
curvado na sobreverga e a cornija, que delimitava o tím-
pano, dentro do qual via-se um óculo.

Figura 23 - Igreja de Nossa Senhora da Assunção em Reritiba, atual Anchieta (ES). No quadro menor, a fachada
depois da restauração. A edificação ainda estava em construção no ano de 1597. A foto foi retirada do livro “Ar-
te no Brasil”, onde escrevem Carlos Lemos e José Roberto Teixeira Leite.
A igreja é ladeada pelo conjunto jesuítico, com colégio e
residência. A torre sineira, com uma passagem na base
em arco pleno, constitui-se em exemplo raro na nossa
arquitetura religiosa. Seu arremate17 é na forma de
meia-laranja, constituindo-se, assim, numa evolução
das formas tradicionais dos arremates piramidais dos
coruchéus típicos dos anos iniciais da colonização. Mais
à frente, serão vistos alguns campanários com arrema-
tes piramidais existentes em outras igrejas brasileiras.
Nessa edificação capixaba viveu seus últimos dias o Pa-
dre José de Anchieta (1534-1597), personagem tão pou-
co lembrado na história brasileira, apesar de sua impor-
tância. Foi ele o fundador da aldeia jesuítica que tinha
essa igreja como sede religiosa.

17
O arremate de uma torre sineira (torre onde fica o sino), também chamada de campanário, ganha o nome de
coruchéu, quando tem a forma de um cone, pirâmide ou pináculo.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 29

A arquitetura dos templos e colégios jesuíticos marca a


paisagem cultural remota da época colonial que se es-
tende do Descobrimento até a expulsão dos holandeses
do solo brasileiro, em 1654. Se comparada em relação a
edificações de outras ordens religiosas, os templos jesu-
ítas são mais freqüentes durante essa época. A cons-
trução de novos templos da Companhia de Jesus esten-
de-se até 1759, quando a ordem é extinta no Brasil.

A igreja dos Reis Magos, em Nova Almeida


Durante o início da colonização, a edificação jesuítica se
encontra em pequenas cidades ou em reduções indíge-
nas, a testemunhar o local e a forma pela qual o gentio
teve contato com o homem europeu. Sua forma de ocor-
rência é sempre marcada pela singeleza, com frontispí-
cios simples, remissões ao classicismo de origem renas-
centista.

Reparar na simplicidade das


formas ainda relacionadas ao
classicismo que o maneirismo
havia herdado da etapa anterior.
Na altura do frontão, sobre as
três janelas do coro de cima, há
um óculo polilobado. A portada,
por sua vez, segue um padrão
renascentista.
À esquerda do templo, o campa-
nário tem o arremate superior na
forma de meia-laranja.
Por fim, vêem-se o prédio do
colégio e residência.

––––!"–––– Figura 24 - Igreja dos Reis Magos, 1615


Cedido por www.novaalmeida.com, fotografia de Gláucio Bedim
Veja-se a igreja jesuítica dos Reis Magos, situada em
Nova Almeida (ES), inaugurada em 1615, onde se en-
contra um templo de nave única, bem ao gosto do qui-
nhentismo brasileiro, marcado pela simplicidade e pela
presença soberana dos partidos retilíneos.
Há que se notar o beiral que encima a parte do colégio e
da residência jesuítica, à esquerda da igreja. Como mui-
tos prédios eram feitos na época do Brasil colônia com a
chamada arquitetura de terra – pau-a-pique, taipa de
pilão ou adobe –, havia a necessidade de se afastar, ao

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 30

máximo, o gotejamento da água da chuva do prumo da


parede, que sofria com a erosão e podia comprometer a
estabilidade do prédio.
Técnicas construtivas
A técnica construtiva do pau-a-pique, também chamada de sopapo ou taipa de sebe,
até hoje é utilizada no interior do Brasil. O construtor inicialmente faz uma trama de
madeira roliças colocadas a prumo (a pique), que será preenchida com o barro. Essa
técnica era usada em residências menores e mais simples.
Na técnica da taipa de pilão, usada em imóveis maiores, inclusive igrejas de pequeno
porte, o mestre de obras construía a parede dentro de uma forma de madeira, a e-
xemplo do que se faz hoje no concreto armado. No lugar de cimento, todavia, indispo-
nível na época, ele preenchia a forma com terra, fibras vegetais e outros elementos
orgânicos – estrume e gordura animal, inclusive o óleo de baleia, que lhe conferia no-
tável dureza e resistência. Com a ajuda de um pilão, o construtor ia socando a terra e
demais elementos para garantir resistência à edificação. Quando o barro secava, reti-
ravam-se então as formas.
O adobe, por sua vez, era uma espécie de tijolo, grande e compacto, cozido ao sol e
que era usado na construção de prédios com a ajuda de uma argamassa feita a base
de cal.
A técnica mais resistente de todas era a chamada pedra e cal, que era usada nos
edifícios religiosos maiores e nos palacetes. Esse caso não se caracteriza como arqui-
tetura de terra, mas sim de alvenaria. A cal servia de elemento aglomerante e podia
ser obtida nas áreas onde se concentravam depósitos de conchas, que são ricos em
calcário. Esses depósitos de calcário são chamados de sambaquis, constituindo-se
em importantes vestígios pré-históricos da ocupação humana páleo-ameríndia, que o
IPHAN procura preservar, através da lei federal 3.924/1961.

Figura 25 – Retábulo da Igreja dos Reis Magos, c. 1700


Cedido por www.novaalmeida.com, fotografia de Gláucio Bedim

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 31

No interior da igreja, vê-se uma obra de talha no altar-


mor, que revela uma elaboração plenamente barroca,
onde preponderam volutas, colunelos espiralados, moti-
vos fitomórficos18 e o abandono total das linhas racio-
nais que marcam a etapa anterior. No centro do retábu-
lo, ao invés de uma escultura, há uma pintura da Ado-
ração dos Magos, onde se revela a cena natalícia de Je-
sus, tratada sob uma linguagem barroca, conforme se
percebe pela composição e pela iluminação da obra.

Figura 26 – Pintura do retábulo da Igreja dos Reis Magos, c. 1700


Cedido por www.novaalmeida.com, fotografia de Gláucio Bedim

A pintura encanta por sua riqueza de detalhes, apesar


da forma algo intuitiva no tratamento do espaço e das
figuras humanas. O panejamento do manto da Virgem e
os adornos das roupas nas vestes dos reis testificam o
espírito meticuloso do artista que elaborou esta pintura.
A maneira de compor, dispondo as seis figuras em um
espaço de partido vertical demonstram sensibilidade e
bom gosto do artista.
Há nesta obra um detalhe que bem exemplifica a ma-
neira com que os jesuítas viam as questões que envolvi-
am a religião e a política. O rei que se aproxima e se a-
joelha diante do Menino Jesus, tira a coroa e coloca-a
sobre o chão, enquanto o Salvador, situado numa posi-
ção superior ao monarca, toca a fronte com sua mão,
abençoando-o. Esse ponto talvez ajude-nos a compre-
Figura 27 - BERNINI, Gian ender melhor as diferenças que os jesuítas tiveram com
Lorenzo - Baldaquino, 1624,
bronze, Sao Pedro (Vaticano)
18
Em forma de folhas ou plantas.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 32

o Estado português, quando tratarmos da arte do sécu-


lo XVIII e do episódio que redundaria na extinção da or-
dem em Portugal e no mundo.
A obra é feita sobre um painel de madeira, enquadrado
sobre duas colunas torsas, adornadas como parras
(símbolo da Eucaristia) e outros motivos fitomórficos.
Os colunelos espiralados seriam usados fartamente por
artistas da época barroca, seguindo as formas do bal-
daquino do trono papal, feito na Basílica de São Pedro,
em Roma, por Gialorenzo Bernini (1598-1680) em 1624.
Dá-se o nome de colunas salomônicas, quando ela tem
a base estriada, como no trono do Vaticano, ou pseudo-
salomônicas, quando ela apresenta a sua base sem
qualquer estria, como é o caso dos colunelos da igreja
dos Reis Magos.
Essa arte que se mostra nas igrejas de São Lourenço
dos Índios (Niterói, RJ), na de Santo Inácio, no Morro do
Castelo, como também as igrejas do Espítito Santo (Re-
ritiba e Nova Almeida) se inspira – ou busca essa inspi-
ração como um ideal nem sempre atingido em plenitude
– no modelo europeu, nomeadamente no português. É
uma arte que se volta para o mar, aqui entendido como
expressão da própria cultura portuguesa. Essa produ-
ção artística, em parte importada da metrópole, em par-
te produzida pelas nossas primeiras oficinas artísticas,
caracteriza um momento histórico de profunda vincula-
ção entre o que se produzia na Europa e o que aqui
passou a ser tido como valor estético, especialmente
nas cidades litorâneas. Nossa produção artística, du-
rante esses primeiros passos na caminhada da história
da colonização, não apenas refletia, mas buscava essa
realidade como fator de identidade de um povo.

O olhar sobre o interior


Em outras regiões, embora os padrões europeus se re-
produzam como parte de uma lógica inerente à sistemá-
tica colonialista, ocorre também a conformação de uma
arte, onde se vêem concessões tão freqüentes quanto
criativas ao padrão cultural que prepondera em outras
áreas na colônia. Essas concessões decorrem do isola-
mento e da visão interiorana, recebendo influência por
outros canais, a arte apresenta ***

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 33

Salvador
Em 1577, um padre jesuíta vindo de Lisboa, onde atua-
ra na construção da Igreja de São Roque, aportava em
Salvador, para projetar e coordenar os trabalhos de
construção da Igreja e Colégio dos Jesuítas. Chamava-
se ele Frei Francisco Dias (1535-1632), a quem se deve
atribuir o risco de várias outras edificações jesuíticas
dessa época: a igreja e colégio de Salvador, como tam-
bém as edificações religiosas do Rio de Janeiro, de San-
tos e de Olinda. Apesar das várias solicitações que fize-
ram ao Geral da Ordem, para que o irmão Francisco
Dias voltasse a Portugal, ficaria ele no Brasil para “a-
prazimento dele próprio”19, até sua morte, aos 95 anos
de idade.
A igreja de Salvador tem referência direta na Sé Nova de
Coimbra, que em vários aspectos se assemelha à igreja
projetada por Frei Francisco Dias. Na catedral de Sal-
vador, predominam os partidos retilíneos, bem marca-
dos pelas pilastras, cunhais e cornijas.20

19
LEITE, Pe. Serafim. Apud. TOLEDO, Benedito Lima de. Do séc. XVI ao início do XIX: maneirismo,. barroco
e rococó. In: ZANINI. Walter. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Fundação Walter Moreira Sal-
les, 1983. p. 125.
20
Pilastras são elementos estruturais verticais, de seção quadrada ou retangular, incorporados parcialmente ao
pano da fachada de um edifício. Os cunhais são as pilastras situadas nos cantos da edificação. As cornijas,
por sua vez, são acabamentos salientes horizontais situados na parte superior do edifício ou na altura dos pi-
sos dos andares que formam o imóvel.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 34

Figura 28 - Igreja do Colégio dos Jesuítas, atual catedral de Salvador - Fa-


chada principal

Pernambuco
Uma edificação de suma importância para se estudar a
História da Arte brasileira em seus momentos primevos
é a Igreja dos Santos Cosme e Damião, localizada em
Igaraçu (PE). Erigida em 1548 – é considerada a igreja
mais antiga do Brasil –, foi bastante danificada na épo-
ca da invasão holandesa. Sendo recuperada após a ex-
pulsão desses, ganhou acréscimos típicos do século
XVIII em sua fachada principal.
O IPHAN promoveu um trabalho de investigação docu-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 35

mental e iconográfica daquele imóvel, descobrindo, a-


través de prospecções arquitetônicas, que o imóvel ain-
da guardava os traços da edificação primitiva escondi-
dos sobre o reboco e a pintura. Assim, fez-se uma res-
tauração radical, procurando-se retomar os traços ma-
neiristas originais do imóvel.
Uma das fontes de época que foram utilizadas para se
recuperar o traçado original foi a pintura de Frans Post,
artista holandês que aqui esteve engajado à expedição
de Maurício de Nassau.
A torre sineira que se vê no lado do Evangelho possui
um arremate bulboso, já do século XVIII, conferindo um
dinamismo à composição da fachada. Mas o frontispício
do templo, com seus dois pequenos nichos sobre a por-
tada, enquadrados por duas janelas retangulares, como
também a portada em si, de gosto renascentista, são da
fase anterior, quando apenas iniciava a colonização do
Brasil.

Figura 29 - Igreja dos Santos Cosme e Damião, 1548, Igaraçu (PE)


Antes da restauração feita pelo IPHAN, o frontão superior
era enfeitado por uma silhueta curvilínea, sendo a cor-
nija (aquela linha horizontal situada sobre os nichos e
as janelas) em forma polilobada. Esse trabalho de res-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 36

tauração talvez fosse conduzido de uma outra forma ho-


je em dia. A Carta de Veneza, instrumento exarado pela
UNESCO depois da realização dessa obra de restauração,
não incentiva obras destinadas a eliminarem-se os a-
créscimos estilísticos incorporados ao imóvel em épocas
posteriores ao seu projeto original.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


História da Arte
Prof. Marcus Tadeu Daniel Ribeiro

Retratos da terra
Pintura e gravura no Brasil colonial

Durante a fase colonial, poucos foram os registros feitos por brasileiros ou por estrangeiros em rela-
ção à terra, à sua fauna e à sua flora, ao povo e aos seus costumes. Por causa da Contra-reforma, a
ênfase da produção artística feita na Colônia era voltada para a arte sacra. As pinturas de paisagens
ou de retratos, naturezas-mortas e coisas assim não era a regra. Mesmo os artistas que produziram
esse tipo de trabalho, como é o caso de Frans Post, carrearam sua produção para o público estrangei-
ro, não para o local. Não havia uma concepção de arte feita para ser consumida durantes os primei-
ros séculos da colonização.

Aspectos históricos
Não há muitos registros da paisagem colonial brasileira.
Percebem-se algumas razões para isto. Por um lado, os
objetivos de Portugal eram a exploração da terra e a
conquista das almas para a causa cristã. Não havia es-
paço para a pintura de paisagem neste contexto. O fato
também se repetia na Europa. A pintura de paisagem se
desenvolveu mais no norte da Europa do que no sul,
onde a presença da influência católica era maior. Os
grandes paisagistas da era barroca viviam na Flandres
protestante.
Além disso, a pintura de paisagem, de certa forma, po-
deria servir de boa referência iconográfica para estran-
geiros e, assim, facilitar a orientação daqueles que qui-
sessem-se aventurar por estas terras. Isso não ocorria
só no Brasil, mas em vários lugares do mundo e em di-
versas épocas. O pintor João Batista Castagneto, por
exemplo, viria a ser preso, em pleno século XIX, por es-
tar pintando uma cena do porto de Toulon, área consi-
derada estratégia pelo governo francês. As preocupa-
ções com uma colônia como o Brasil eram muito gran-
des.
Por fim, a pintura de paisagem não deixava de ser uma
Figura 1 – Georg Marcgraf. forma de enaltecimento nativista da terra e de seu povo,
Mandioca, xilogravura, publica- o que também não interessava ao elemento dominador,
da Historia Naturalis Brasilae cioso em manter a hegemonia sobre a terra conquista-
da. É importante lembrar que, tão logo terminasse a fa-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 2

se colonial, com o advento da Independência (1822), o


primeiro movimento artístico que se interessou em a-
firmar os valores nacionais, o Romantismo, rapidamen-
te escolheu a paisagem e a figura do índio como ele-
mentos-símbolos da realidade brasileira.
Mesmo em Portugal, em razão da Contra-reforma ter ali
encontrado um espaço propício ao seu desenvolvimento,
não cultuava esse gênero de pintura. Durante toda a fa-
se barroca e mesmo durante o Rococó, a Metrópole
mantinha-se direcionada para a produção da arte-
sacra. Esta será a tônica da arte brasileira durante os
anos que antecederam a Independência.

Jean de Léry
Por esta razão, os primeiros registros visuais da terra
brasileira não seriam portugueses, mas franceses e ho-
landeses. Jean de Léry, calvinista que esteve no Brasil
em 1555, escreve uma Histoire d’um voyage fait em la
terre du Brésil, onde aparecem imagens primevas da
terra brasileira. Observe-se que a paisagem que se vê
abaixo é totalmente esquemática, tendo função mais
cartográfica do que propriamente estética.

Figura 2 - Do livro de Jean de Léry

André Thevet
André Thévet (1502-1592) é o autor de Les singularitez

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 3

de la France Antarctique, obra onde os calvinistas são


atacados como responsáveis pelo malogro da chamada
França Antártica, chefiada por Nicolas Durand Ville-
gaignon. Neste trabalho vêem-se imagens da terra, co-
mo é o caso pitoresco do que talvez seja o primeiro re-
gistro visual de um cajueiro, árvore inexistente na Eu-
ropa àquela época.

Eram gravuras feitas talvez sobre uma placa de cobre a


ponta seca ou a buril, onde não há uma preocupação
em criar uma ambiência paisagística e em retratar, sob
a ótica da perspectiva renascentista, o espaço terreno,
seus recortes provocados pela silhueta do relevo sobre o
horizonte. O desenho apresenta certa dureza, com solu-
ções tão desgraciosas como pouco fidedignas. O traba-
lho se destaca não tanto pela técnica, mas pelo desejo

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 4

de retratar o exótico e o surpreendente.

Figura 3 - André Thevet. O fumo. (Portrait de l'herbe Petu ou Angoulmoisine). 1555, xilogravura, 13,8 x
16,3 cm. Livro XXI, v. 2, p. 927.

A gravura publicada no livro de André Thevet acima re-


produzida, por exemplo, mostra esse gosto pelo exótico,
onde o homem branco se depara com uma estranha
prática cultural para ele desconhecida até então, que
era exercida pelo nativo americano: o fumo.
É uma gravura que tem preocupações mais testemu-
nhais do que propriamente interessava-se pelas ques-
tões artísticas. Somente com a vinda dos Holandeses é
que a pintura apresentou alguma qualidade remarcável.

A presença dos holandeses no Nordeste do Brasil do século XVII


Portugal sempre comercializou seus produtos com a an-
tiga Flandres, um país outrora muito rico, mas que, a-
pós sua independência (era uma província da monar-
quia espanhola), se fragmentou. Ele se situava no norte
da Europa e estendia-se por uma região hoje constituí-
da pelo nordeste da França, Bélgica, Luxemburgo e Paí-
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Retratos da terra 5

ses Baixos (Holanda).


Com o término da dinastia de Avis, decorrente da mor-
te, em 1580, do último herdeiro da família real, Dom
Sebastião, sem deixar sucessor ao trono, Portugal pas-
sou à hegemonia da coroa espanhola durante 60 anos.
A Espanha enfrentava Flandres em sua pretensão de
autonomia política. Com a submissão da economia por-
tuguesa à espanhola, todo o comércio do açúcar com a
burguesia flamenga seria suspenso. Flandres reage. A
invasão do Nordeste pelas forças batavas visava com-
pensar as perdas econômicas que a economia do Norte
da Europa vinha experimentando naquela difícil época
pela qual passava.

Figura 4 - Maurício de Nassau- A expedição dos holandeses ao Nordeste inicia-se pri-


Siegen, 1637, por V. Mierefeld meiramente na Bahia em 1624, sem sucesso, mas de-
pois consegue atingir seus objetivos em Pernambuco
seis anos depois. Em janeiro de 1637, chegaria o conde
João Maurício Nassau-Siegen (1604-1679) a Recife, pa-
ra levar à frente a ocupação. Ele trouxe consigo pelo
menos três artistas da Holanda, os quais remunerava
por seus próprios recursos: o paisagista Frans Post
(1612-1680), o pintor de costumes Albert Eckout (1610-
1666?) e o cartógrafo Georg Marcgraff (1614-1668). Ha-
via também Zacharias Wagener (1614-1668), despensei-
ro e artista autodidata nas horas vagas.
Figura 5 - Jacob Ruisdael. Pai-
sagem de Harleem, 52 x 65 cm
Staatliche Museum. Frans Post
Este se transformaria no pintor de maior renome dentre
os daquele grupo. Ele teria permanecido no Brasil de
1637 até, aproximadamente 1644 ou 1645. Não há do-
cumento que relate de maneira categórica de quem ele
foi discípulo, mas seu trabalho revela uma formação ar-
tística sólida e a influência da escola de Haarlem daque-
la época, onde pontificariam depois os nomes dos céle-
bres Salomon Van Ruisdael (c. 1600-1670) e Piet Molijn
(1595-1661), mestres reconhecidos no paisagismo se-
tentrional barroco internacional, cujo trabalho seria
marcado pelo detalhismo e pela valorização de céus cla-
ros e radiosos.
Post pintaria vários quadros durante sua permanência
no Brasil, mas seu regresso à Holanda não encerraria
sua produção da temática de cenas brasileiras. Ele con-
tinuaria a executar cenas pernambucanas em sua cida-
de Haarlem, com a ajuda dos croquis, estudos, anota-
ções e pinturas que mantinha em seu poder desde sua
Figura 6 - Frans Hals, Retrato de
Frans Post, c. 1655, óleo sobre estada no Brasil.
madeira, 27,5 x 23 cm. Col.
Sobre as pinturas feitas aqui, Post procura uma abor-
particular
dagem de um naturalismo muito acurado, à maneira da

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 6

tradição da arte flamenga, mas sem sobrecarregar a o-


bra de pormenores em demasia, prevalecendo, no plano
da composição, uma tendência à simplificação.
Já quase não se conhecem pinturas dessa fase, o que é
uma pena, pois é nessas pinturas onde se encontra
mais a espontaneidade do ato criativo e onde a emoção
da representação pictórica é testemunho do convívio do
jovem pintor com a gente e com a terra exóticas.

Figura 7 - Frans Post. Igreja de São Cosme e São Damião, 1637. Óleo sobre madeira, 33,4 x 41,4 cm.
Museu Nacional de Belas-Artes/IPHAN/MinC

No estudo de José Roberto Teixeira Leite “Os pintores


de Nassau”1, este importante historiador da arte aponta
poucos museus em que se podem encontrar trabalhos
dessa primeira fase do artista holandês. Os Museus do
Louvre (França) e o de Mauritshuis (Holanda) seriam
instituições detentoras de obras desta fase da produção
de Frans Post sobre a iconografia brasileira. O Museu
Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro, possui duas
obras cuja datação pode ser atribuída ao ano de 1637, o
que nos permite supor que foram realizadas no Brasil

1 LEITE, José Roberto Teixeira. Os pintores de Nassau. In: ZANINI, Walter. História Geral da Arte no
Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983. v. 1. p. 353 e 354.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 7

antes do regresso do artista para a Holanda. “Igreja de


São Cosme e São Damião em Igaraçu” tem um modelo
compositivo que tende à simplicidade e se enquadra, em
termos de características, a uma busca do naturalismo
pelo detalhismo ao gosto flamengo.

Figura 8 - Frans Post. Olinda, 1937, óleo sobre tela. 79 x 111,5 cm.
Col. Museu Nacional de Belas-Artes, Iphan/MinC.

Nesta paisagem sobre Olinda, o artista mostra uma ce-


na onde trabalhadores escravos saem de Olinda e se di-
rigem a seus arrabaldes. É um cena marcada por um
descampado, com a cidade num segundo plano e a vár-
zea posta ao longe.
As obras pintadas depois do regresso (1644), mais nu-
merosas, costumam ser mais elaboradas e, não raro,
marcadas por detalhes fantasiosos. Já não primam por
aquele realismo da primeira etapa, mas procuram agra-
dar o gosto do público flamengo com detalhes curiosos
extraídos em boa parte da imaginação do artista.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 8

Figura 9 - Frans Post. Engenho de açúcar. c. 1650.


Museum Boymans van Beuringen. (Roterdã, Holanda)

A produção desse artista não era destinada ao público


local. Mesmo entre as classes abastadas de fazendeiros,
não havia uma cultura que valorizasse esse tipo de pin-
tura. Os representantes da classe senhorial brasileira,
advindos diretamente de Portugal ou sendo descenden-
te desses imigrantes, não tinham a pintura de paisagem
entre seu sistema de valores. Frans Post, quando pro-
duzia esses trabalhos, pensava na burguesia flamenga.
Os quadros de Frans Post desempenham uma impor-
tante função para o historiador contemporâneo. Através
dele se podem conhecer aspectos históricos sobre a
forma primaz de ocupação da região pelo colonizador.
Elementos da arquitetura da época se revelam através
do testemunho pictórico.
Veja-se, por exemplo, esse quadro pintado ao pé de um
Engenho de açúcar, onde a arquitetura local revela o
encanto dos primórdios da civilização no Nordeste bra-
sileiro. Aqui se pode ver o padrão típico das fazendas de
açúcar da Zona da Mata, onde a casa-grande encontra-
se sobre um outeiro, o que permite melhor supervisão
pelo senhor do engenho sobre seus domínios e escra-
vos. Observe-se aquela capela maneirista existente bem
ao lado da casa-grande, com sua simplicidade, equilí-
brio e o alpendre agregado à fachada, tão típica da ar-
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Retratos da terra 9

quitetura primeva brasileira.


Sob este ponto de vista, os quadros de Frans Post não
servem apenas como representações artísticas a serem
apreciadas pelo observador contemporâneo. Eles são
documentos históricos, através dos quais se pode co-
nhecer o modo de vida dos primeiros habitantes da ter-
ra.
Y.Z
Os quadros desse artista costumam alcançar valores
muito elevados em leilões internacionais. As grandes
coleções de arte de Frans Post pertencem aos maiores
museus estrangeiros e brasileiros.
O acervo do Museu Nacional de Belas-Artes no Rio de
Janeiro possui a maior coleção de Frans Post existente
no Brasil. Todas as suas obras pertencem àquela se-
gunda fase, constituindo-se em trabalhos de um encan-
tamento ímpar.
Há algum tempo atrás, houve um leilão no Rio de Ja-
neiro onde apareceu um Frans Post para ser vendido.
Combinei com um colega do Museu Nacional de Belas-
Artes e fomos à exposição do leilão ver a tal obra. Por
alguma razão que não lembro, fomos identificados como
funcionários do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional). Foi o que bastou para que um
comprador interessado em dar lance na peça desistisse
da aquisição. Um conceituado jornal carioca noticiou o
ocorrido, explicando que a desistência se deu pelo fato
de o comprador tencionar colocar depois a obra à venda
no mercado internacional. O possível interesse do órgão
oficial em tombar a obra poderia colocar seus planos
em cheque, pois obra de arte tombada não pode mais
sair do país. Isto é verdade. Mas toda obra produzida no
Brasil até o final do período monárquico ou incorporada
ao meio nacional dentro desta mesma época, segundo a
lei 4.845/65, não pode mesmo sair do país, seja ela
tombada ou não. O especulador estava bem mal infor-
mado com relação à legislação que regulamenta a maté-
ria.
Obra de arte é para ser comprada por quem gosta de
objetos artísticos, por quem tem bom gosto, não por
quem não consegue ver, no objeto artístico, nada além
do que seu valor pecuniário.

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Retratos da terra 10

Albert Eckhout

Figura 10 - Albert Eckout. Mame-


luca, 1641, óleo sobre tela, 267 x
160 cm. Museu Nacional da Di-
namarca, Copenhague.

Pouco se conhece da vida desse pintor, cuja formação


artística, da mesma forma que a do caso anterior, não é
ainda apurada por estudos mais profundos. Eckout es-
teve no Brasil mais ou menos na mesma época em que
Frans Post esteve, sendo ainda assinalada uma passa-
gem pelo Chile durante o ano de 1642.
O trabalho de Eckout não tem aquela graciosidade que
se encontra nas paisagens de Post: é seco, objetivo, as-
sinalado por uma luminosidade fora de moda, à manei-
ra do Quattrocento italiano, em pleno século XVII... Seu

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 11

espírito de investigador, que o faz debruçar-se sobre a


flora e a fauna locais, bem como sobre o elemento nati-
vo, transforma-o mais num cientista, que anota de ma-
neira fria as coisas que vê, do que num artista preocu-
pado com questões estéticas.
Sua abordagem, por isso, é descritiva, mais do que in-
terpretativa. De uma certa forma, esse pintor enquadra-
va-se no espírito racionalista em excesso do povo ho-
landês daquela época, influenciado pelo espírito cientí-
fico que se desenvolvia então.
A “Mameluca” que posa sob um cajueiro com uma cesta
de frutos e flores na mão esquerda é um exemplo desse
olhar do visitante-naturalista. Nenhum detalhe escapa
ao observador arguto. Todavia, a obra não chega a se
impor por seus predicados artísticos. A atitude excessi-
vamente posada da modelo e o cenário exótico concebi-
do quase como numa cenografia ajudam a compor uma
alegoria, mais do que uma cena típica.
O quadro Dança dos tapuias, por sua vez, tem um mo-
vimento menos rígido do que aquele apresentado na o-
bra anterior. Trata-se de um interessante testemunho
antropológico referente a uma dança ritualística dos ín-
dios tapuias, aliados dos holandeses na ocupação. Co-
cares, corte de cabelo, utensílio de guerra, como as fle-
chas e as bordunas que os índios brandem nas mãos,
conferem interessante testemunho de uma forma de vi-
da que já se perdeu. As duas índias à direita, que co-
chicham segredos entre si, conferem uma nota pitores-
ca criada pelo artista, a observar, cientificamente, as-
pectos inerentes à condição feminina...

Figura 11 - Albert Eckout. Dança dos tapuias, 1641-3, óleo sobre tela, 168 x 294 cm.

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Retratos da terra 12

Figura 12 - Albert Eckout. Natureza Morta. óleo sobre tela, 79 x 90


cm. Museu Nacional da Dinamarca. Copenhague.

Sua pintura, todavia, apresenta um aspecto muito favo-


rável para que acabasse sendo admirada na corte de
Luís XIV, rei francês a quem Maurício de Nassau-Siegen
vendeu obras desse e de outros artistas. A partir de car-
tões produzidos por Eckout, a famosa tapeçaria france-
sa Gobelins produziu tapetes importantes, inspirados
na natureza e nos costumes brasileiros. Só uma pintura
quase esquemática como a de Eckout poderia servir de
base para a realização de obras de arte tão importantes
quanto estas.
Tapeçaria Gobelin
Jean e Philibert Gobelin eram dois tintureiros que vivi-
am às margens do rio Bièvre na época do Renascimen-
to, trabalhando para a nobreza e para o rei franceses.
No imóvel em que funcionou sua prestigiosa tinturaria
por tanto tempo, foram instalados, no início do século
XVII, pelos flamengos Comans e La Planche, teares des-
tinados a produzir todo tipo de manufatura têxtil, espe-
cialmente para embelezar os recintos reais. Ali, Luís XIV
reorganizou os tecelões parisienses em meados do sécu-
lo XVII, época do apogeu da fábrica de tapetes francesa,
que então se chamava Manufature Royale des Meubles
de la Couronne. Charles Lebrun foi seu maior diretor.
Em 1694, por razões financeiras, a fábrica foi fechada,
para depois reabrir em 1699, apenas dedicada ao fabri-
co de tapetes. No século XVIII, produziu tapetes em es-
tilo Rococó, retomando a nomeada que obtivera na épo-
ca anterior.

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Retratos da terra 13

Figura 13 - Albert Eckout. Batalha dos animais, tapeçaria, col. particular (Rio de Janeiro)

Nesta Batalha dos animais, Albert Eckout, autor dos


cartões a partir dos quais teceu-se a tapeçaria Gobelin,
concentra-se na exuberância da vegetação, ao mesmo
tempo em que cria uma alegoria representativa do am-
biente selvagem brasileiro, que povoava a imaginação
da nobreza européia do século XVII. Coqueiros e cajuei-
ros servem de pano de fundo para uma revoada de pás-
saros exóticos e exuberantes.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 14

Georg Marcgraf
Não se pode deixar de se fazer a necessária referência
ao trabalho não do artista, mas do naturalista Georg
Marcgraf (1610-1644), uma alemão que veio na comitiva
de Nassau e que trabalhou denodadamente durante sua
estada no Brasil. Marcgraf teve vida curta e, como se ti-
vesse conhecimento de que dispunha de pouco tempo,
produziu imensamente no terreno das ciências natu-
rais, utilizando a arte como um acessório para seu tra-
balho de cientista.

Figura 14 - Georg Macgraf. Engenho, xilogravura In: Historia Naturalis Brasilae. Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro

Além de registrar os costumes da terra, como era, por


exemplo, a organização do trabalho dentro do Engenho
que se vê na imagem acima, Marcgraf elaborou também
429 desenhos sobre fauna, flora, costumes e aspectos
científicos que sua lápis anotou, para ser depois vertido
para a matriz em madeira (xilogravura).
Marcgraf catalogou mais de 700 espécies que estudou
no terreno vegetal e animal, elaborou várias anotações
sobre o clima, desenvolveu um método para calcular
distâncias do globo terrestre e ainda fez uma minuciosa
descrição sobre as estrelas visíveis do hemisfério sul.
Não se trata de um artista bem versado no terreno das
artes visuais, mas um cientista, cuja formação era ain-
da profundamente marcada pelo humanismo renascen-
tista, o que lhe permitia valer-se do conhecimento do
Figura 15 - Georg Marcgraf. desenho e, talvez, da gravura – não se sabe se foi quem
Caranguejo (Guaiaguaçu), xilo-
gravura, In: Historia Naturalis
abriu as matrizes em madeira –, para desenvolver seu
Brasilae trabalho de estudioso.

Y.Z

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Retratos da terra 15

Considerações finais
As pinturas produzidas por Frans Post sobre a paisa-
gem brasileira, bem como os trabalhos de Albert Eckout
e os de Georg Marcgraf sobre nossas frutas, bichos e
gentes do Nordeste seiscentista constituem em rico tes-
temunho sobre a civilização do açúcar em meados do
século XVII. São obras de arte cuja importância, em to-
dos os casos, suplanta o sentido estritamente artístico e
apresenta-se como uma importante fonte para o histo-
riador contemporâneo. Valem, portanto, como fontes
documentais para se compreender como era a paisa-
gem, a natureza, os costumes e as pessoas que ajuda-
ram a fazer o Brasil da maneira como é hoje.
O trabalho de Frans Post deve ser visto também como
uma produção artística de relevância internacional.
Como pintor de paisagem, Post pertence a uma geração
de artistas que marcaria o paisagismo setentrional com
uma produção rica e criativa. São paisagens feitas com
detalhes que se sobrepõem, numa tentativa de criar
ambientes naturais idealizados e mágicos, apesar do
vocabulário extremamente detalhista do pintor.

Bibliografia
BARATA, Mário. Significado da Missão Nassau: Post e
Eckout. Brasil açucareiro, Rio de Janeiro, v. 72, 1968.
BENISOVICH, Michel. Os primeiros pintores do Brasil.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v.
230, p. 442-7, jan./mar. 1956.
LEÃO, Joaquim de Sousa. Frans Post: seus quadros
brasileiros. Rio de Janeiro: Tipografia Mercantil, 1937.
LEITE, José Roberto Teixeira. Os pintores de Nassau.
In: ZANINI, Walter. História Geral da Arte no Brasil. São
Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983. p. 347-
375, v. 1.
SCHAEFFER, Enrico. Albert Eckout, um pintor holan-
dês no Brasil. Anais do Museu Histórico Nacional, T. 20,
1968.
VALLADARES, Clarival do Prado. Albert Eckout. Rio de
Janeiro: Recife: Livroarte, 1981.

Atenção:
Esta é uma apostila produzida por Marcus Tadeu Daniel Ribeiro, destinada a subsidiar pe-
dagogicamente o trabalho de ensino de História da Arte. Seu uso é restrito a seus alunos,
estando seu uso e sua divulgação vedados sob todas as formas e meios, materiais ou digi-
tais, especialmente através da Internet. Este documento está protegido pela Lei n. 9.610, de
19 de fevereiro de 1998, que consolida a legislação sobre direitos autorais.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


História da Arte

O triunfo da fé
Prof. Marcus Tadeu Daniel Ribeiro

Arquitetura, escultura, pintura no Brasil colonial

Após a expulsão dos holandeses, volta a supremacia portuguesa sobre o desenvolvimento colonial bra-
sileiro. É uma época em que a arte cresce sob o apogeu da cultura do açúcar e, em seguida, do início da
exploração do ouro em Minas Gerais. Ela serve de maneira plena ao triunfo da Igreja Católica no Bra-
sil, produzindo grandes obras de arte, mais ou menos entre meados do séc. XVII até 1763, quando a
sede do Vice-reinado é transferida para o Rio de Janeiro. Alguns observadores chamam esta etapa de
período monumental da fase colonial.

Aspectos históricos
Após a expulsão dos holandeses, segue-se uma etapa
de pujança econômica para a mais rica colônia portu-
guesa. O ciclo do açúcar é retomado e a descoberta de
grandes jazidas de ouro, no final do século XVII, daria
um novo rumo à economia do Brasil e de Portugal.
Cidades como Olinda, Salvador, São Luiz, Parati vão
num crescer de desenvolvimento. A arquitetura verna-
cular adquire a sua personalidade. A arte sacra ganha
novo impulso, e edificações religiosas importantes são
erguidas em vários núcleos populacionais do Brasil.
Figura 1 - Relevo do Convento Nesse contexto, surgem edifícios típicos da administra-
franciscano de Nossa Senhora
ção portuguesa no Brasil, como é o caso das casas de
dos Anjos (Penedo, AL)
câmara e cadeia.
É dessa época também a assinatura de vários tratados
internacionais (Tratado de Santo Ildefonso, Tratado de
Madri), dando conta dos limites da América Portuguesa,
tão disputados entre Portugal e Espanha. Com isto, di-
versifica-se e desenvolve-se a arte da construção de for-
talezas.
A pujança econômica, no entanto, será o novo elemento
identificador da arte deste período, que adquirirá uma
dimensão monumental. Trata-se da fusão entre uma
demanda de natureza espiritual, pois que é desta fase o
momento de maior propaganda dos doutrinadores cris-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 2

tãos, e as condições materiais para que este processo se


dê de forma inexorável.
As igrejas todo de ouro, bem como a arquitetura fran-
ciscana serão um reflexo deste casamento entre os im-
perativos da fé e as conveniências do mundo material.

Os conventos franciscanos
Em sua obra A arquitetura Religiosa Barroca no Brasil,
Germain Bazin assinala que, enquanto a arquitetura je-
suítica reproduz, na colônia portuguesa, os modelos e
partidos dos tratadistas europeus, a arquitetura fran-
ciscana obtém soluções inéditas e criativas, constituin-
do-se numa verdadeira escola de construtores dessa or-
dem. Especialmente os conventos situados entre Salva-
dor e João Pessoa, onde a economia do açúcar forneceu
condições materiais mais efetivas ao desenvolvimento
artístico, pode-se encontrar a mais genuína arquitetura
barroca de dimensão monumental, com soluções autóc-
tones.

Figura 2 - Convento de Nossa Senhora das Neves, em Olinda (PE)

A exemplo do que ocorreu com os jesuítas, os conventos


franciscanos estão presentes desde o início da coloniza-
ção, datando de 1585 a fundação, em Olinda, do pri-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 3

meiro convento franciscano no Brasil, em devoção a


Nossa Senhora das Neves. A este seguiram-se vários ou-
tros conventos, fundados ao longo de fins dos Quinhen-
tos e principalmente da primeira metade do século XVII,
mas reconstruídos na segunda metade do século XVII.

Figura 3 - Convento de Nossa Senhora das Neves (Olinda, PE)

Cronologia
O convento de Salvador é fundado em 1587 e remode-
lado em 1686. Depois veio o de Igaraçu (Pernambuco),
feito em 1588 e reconstruído numa obra que se iniciaria
em 1661 e se estenderia até 1693. O de João Pessoa
(Paraíba) data de 1590, tendo sido reformado no início
do século XVIII, já com gosto rococó. O de Vitória (Espí-
rito Santo) é de 1591 e o do Rio de Janeiro, de 1606,
mesmo ano em que se constrói o de Ipojuca (Pernambu-
co), que será refeito em 1654. O da Vila de São Francis-
co, na Bahia, data de 1629 e o de Serinhaém (Pernam-
buco) é do ano seguinte, o qual será remodelado em
1654. Em Santos é fundado um em 1639. Na Bahia, o
de Cairu, que é de 1650, será remodelado a partir de
1654. O de Nossa Senhora da Penha (Espírito Santo)
data de 1650 e o de Itanhaém (São Paulo) é de cinco
anos depois. Em 1658 funda-se a ordem franciscana
em São Cristóvão (Sergipe), mas é de 1693 o início efeti-
vo da construção do atual imóvel que lá se encontra.
Em Penedo e em Marechal Deodoro (Alagoas) a ordem
se estabelece em 1660, sendo de 1682 o início da cons-
trução do cenóbio* de Penedo e, de 1684, o de Marechal
Deodoro.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 4

A reconstrução que se verifica especialmente nos con-


ventos nordestinos se deve à pilhagem e destruição das
ordens pelos holandeses entre 1624 e 1654. Pratica-
mente nenhuma igreja nem cenóbio hoje existente man-
têm as suas características daquela primeira etapa,
sendo todos os conventos reconstruídos após a expul-
são dos holandeses. Portanto, os conventos atuais cons-
tituem uma arquitetura já plenamente barroca, com ca-
racterísticas diferentes daquelas que os holandeses en-
contraram quando aqui chegaram.

Figura 4 - Teto da nave da igreja do Convento de Nossa Senhora das Neves, em Olinda (PE)

Sob o ponto de vista sociológico, os conventos francis-


canos, bem assim a ordem terceira a eles relacionada,
encontram-se ligadas aos setores hegemônicos da soci-
edade, dispondo, portanto de recursos materiais para
desenvolver um trabalho artístico refinado e de bom
gosto.
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 5

Características
Frontispício* – Dá-se o nome de frontispício ou fronta-
ria* à fachada principal de um edifício, seja ele religioso
ou não. Observe-se a fachada do Convento de Nossa
Senhora das Neves, que apresenta traços muito peculi-
ares, existentes em praticamente todos os edifícios reli-
giosos dessa ordem. A presença da galilé*, cuja portada
é encimada por arcos plenos, é uma constante nos con-
ventos franciscanos. Notam-se também janelas no coro
de cima*, arrematadas por sobrevergas* adornadas ao
Figura 5 - Convento de São Cris-
gosto barroco. Esta parte da fachada costuma ser en-
tóvão (SE) quadrada por duas aletas* curvilíneas, que ajudam a
conferir o gosto gracioso da arquitetura barroca. O fron-
tão superior é igualmente curvilíneo, em cujo tímpano*
vê-se um nicho*, onde figura uma imagem de Nossa
Senhora1. Os pináculos*, com seu aspecto pontiagudo,
encontram-se espalhados em meio à parte mais alta do
edifício e ajudam a conferir um gosto adorno das solu-
ções barrocas. O frontispício do Convento de Nossa Se-
nhora dos Anjos (Penedo, AL) não possui pináculos e o
tímpano do frontão tem um relevo da ordem.

Figura 6 - Convento de Nossa Senhora dos Anjos (Penedo, AL)

1 É comum encontrar-se também nos tímpanos barrocos um pequeno óculo*, que pode ser circular ou
polilobado e se destina a facilitar a ventilação do templo.
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 6

Duas tipologias marcam os frontispícios dos conventos


franciscanos: a de Ipojuca, que é seguida pelos conven-
tos de Olinda (PE), Penedo (AL), São Cristóvão (SE) e
Marechal Deodoro (AL), e a de Cairu, que é imitada por
outros conventos, como o de João Pessoa, Igaraçu, San-
to Antônio de Paraguaçu (PE). Enquanto os conventos
da tipologia Ipojuca se caracterizam por um frontão
curvilíneo e adornos que conferem um tom barroco a
uma estrutura clássica, os conventos da tipologia Cairu
caracterizam-se pelo frontispício piramidal, com a am-
pliação da galilé e a diminuição do frontispício, como no
convento de Sto. Antônio de João Pessoa.
Uma torre sineira recuada – Uma outra característica
muito presente nos edifícios da ordem franciscana é a
presença de apenas uma torre sineira*, o que confere
Figura 7 - Frontispício do Con- um idéia de dinamismo à fachada, onde prepondera
vento de Santo Antônio (João uma diagonal compositiva. Normalmente a torre sinei-
2

Pessoa, PB) ra encontra-se deslocada do plano da fachada principal,


como se pode ver no Convento de Nossa Senhora dos
Anjos, situado em Penedo, que aparece no extremo es-
querdo da fotografia, arrematada por um coruchéu* pi-
ramidal. 3 O frontispício do convento de João Pessoa
também apresenta a torre sineira recuada.
Mirante – Na extrema direita da fotografia do Convento
de Nossa Senhora dos Anjos vê-se um pequeno torreão,
que se projeta para cima a uma altura equivalente a um
andar acima do cenóbio, que é um lugar onde os frades
franciscanos ficavam, a contemplar a obra do Criador.
Sendo uma ordem contemplativa, o mirante tinha im-
portância crucial para os franciscanos.
Chaminé da cozinha – Em alguns conventos francis-
canos pode-se perceber uma chaminé monumental u-
sada pelos frades para preparar seus alimentos, bem
como aqueles outros feitos para suas obras sociais. No
convento de Nossa Senhora dos Anjos a chaminé apare-
ce de forma bastante nítida à frente da fachada.
Cruzeiro monumental localizado no adro* – Todo
convento franciscano possui, à sua frente, um adro
amplo, que é um espaço de transição entre o espaço
urbano e a clausura, podendo ser compreendido, como
observou Benedito Lima de Toledo, como um espaço de
transição entre o mundano e o sagrado4. Dali, concen-
Figura 8 - Detalhe da chaminé
da cozinha do Convento de Pe- travam-se as pessoas para sair em procissão nos dias
nedo (Alagoas).

2 O Convento de Nossa Senhora das Neves (Olinda, PE) apresenta uma única torre sineira, que se en-
contra deslocada do pano da fachada, estando sua visibilidade nesta foto encoberta pelo frontão
curvilíneo da fachada.
3 Os coruchéus piramidais são característicos da fase anterior, quando preponderaram as soluções
maneiristas, austeras por excelência.
4 TOLEDO, Benedito Lima de. Do século XVI ao início do século XIX. In: ZANINI, Walter. História Geral
da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983. p. 140, v. 1
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 7

santos. Nesse adro, há sempre uma grande cruz ergui-


da sobre um embasamento largo (soco), a que se dá por
nome “cruzeiro”. Em Penedo vê-se um cruzeiro peque-
no, por não ser mais o original, que se perdeu nas mãos
de um prefeito anticlerical, que o substituiu por figuras
mitológicas nuas.5 Trabalhos de restauração recentes
restituíram o cruzeiro ao local.
Obra de talha rica – Dadas as suas vinculações com os
segmentos mais ricos da sociedade, a obra de talha que
adorna o interior de uma igreja franciscana é sempre
marcada pelo apuro e, não raro, pela riqueza. Na ima-
gem do interior da Igreja de Nossa Senhora das Graças,
do convento franciscano de Olinda, percebe-se esse re-
quinte, com retábulo* adornado com elementos doura-
dos e brancos. A obra de talha do convento de Salvador
é um eloqüente exemplo dessa exuberância artística,
conforme se poderá apreciar mais à frente.
Tetos pintados com motivos religiosos – Os tetos das
igrejas franciscanas, seguindo a tradição da pintura
barroca, são adornados com pinturas e obras de talha.
Em alguns casos, as pinturas apresenta-se divididas
em vários painéis. Isso ocorre no Convento de Nossa
Senhora das Graças, em Olinda. Em outras, como no
Convento de Penedo, a pintura apresenta-se inteiriça,
com caráter ilusionista, que simula um céu em glória
que se descortina diante dos olhos dos fiéis.
Leo Ballet assinala que os tetos barrocos que produzem
essa sensação de ilusionismo são representações típicas
de uma época histórica marcada pelo poder absolutista.
Para esse historiador holandês, da mesma forma que o
absolutismo é a negação de qualquer limite, o teto pin-
tado sobre uma abóbada de berço, forjando uma visão
mística e celestial, rejeita também as limitações materi-
ais do espaço físico e se abre diante do olhar do fiel pa-
ra o infinito para um céu em glória6.
O exemplo europeu mais relevante de tetos pintados
Figura 9 - Andrea del Pozzo. com motivos religiosos e de efeito ilusionista encontra-
Apoteose a Santo Inácio. 1688- se na Igreja de Il Gesù, em Roma, onde trabalhou o Pa-
90, Teto da Igreja de Il Gesù
(Roma).
dre Andrea del Pozzo. A Apoteose a Santo Inácio é uma
pintura parietal onde se vê uma alegoria retratando os
quatro continentes, tendo, ao centro, a figura do santo
cercado de anjos. Essa obra serviria de referência para
vários outros trabalhos que se fariam mundo afora, re-
tratando-se cenas místicas nos tetos de igrejas barro-
cas.

5 BAZIN, Germain. Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, [1983]. v. 1, p. 151.
6 Cf. LEVY, Hannah. A propósito de três teorias sobre o Barroco. Revista do Serviço do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, Ano 5, 1941. p. 259-284
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 8

O frontispício dessa
igreja é posterior à ta
de sua reforma, feita
na segunda metade do
século XVII. Parece
tratar-se de uma re-
formulação levada a
efeito de forma tardia
em pleno século XVIII.
O frontão superior,
adornado com as volu-
tas, tem no meio um
óculo* emoldurado por
adornos circulares e
concêntricos, que simu-
lam os raios do sol.
O cruzeiro do Con-
vento de Nossa Senho-
ra dos Anjos é o menor
dentre todos os con-
ventos dessa ordem.
Esse convento fica
localizado na cidade
de Penedo, às margens
do Rio São Francisco,
bem na divisa entre
Sergipe e Alagoas.

Y.Z
Figura 10 - Convento de Nossa Senhora dos Anjos (Penedo, AL)

Claustro colado ao corpo da igreja. Os claustros dos


conventos franciscanos situam-se normalmente no lado
esquerdo da igreja (direito de quem olha para a facha-
da.) O lado esquerdo é também chamado de lado da e-
pístola. No claustro, acham-se as celas, a biblioteca, o
acesso à cozinha e ao refeitório, bem como ao mirante.
Normalmente, os claustros franciscanos, marcados pela
herança renascentista, têm uma galeria arqueada, se-
guindo a ordem toscana (observar o capitel* da coluna*
no primeiro plano da fotografia).
Lado da epístola e lado do Evangelho.
Quando nos referimos ao lado esquerdo e o lado direito
de uma igreja, precisamos tomar alguns cuidados. Lado
direito da igreja, rigorosamente, é aquele que está à es-
querda de quem olha para a fachada. E o lado esquerdo
encontra-se à direita de quem olha para a fachada. Para
não haver confusões, convencionou-se chamar o lado
direito de lado do Evangelho e o esquerdo de lado da
Epístola.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 9

Figura 11 - Claustro do Convento N. S. dos Anjos (Penedo, AL). Disponível em


http://static.panoramio.com/photos/original/2735597.jpg
(foto de Vinícius Antônio de Oliveira Dittrich)

O convento franciscano de Salvador


Trata-se de um conjunto religioso que escapa à tipologia
da arquitetura conventual dessa ordem. Mas nem por
isso é menos importante do que os demais. Ao contrá-
rio. Sua escala, seu frontispício equilibrado, mostrando
ainda a persistência tardia do gosto que precedeu o es-
tilo barroco, a riqueza de sua obra de talha, toda dou-
rada e com motivos barrocos, e outros elementos artís-
ticos importantes fazem dessa igreja e do cenóbio uma
das edificações religiosas mais importantes do Brasil.
O convento dos franciscanos foi fundado na Bahia no
ano de 1587. Com a invasão de Salvador pelas forças
holandesas (1624), todavia, o imóvel foi destruído, para
ser reerguido praticamente um século depois (1686),
por ordem do superior Frei Vicente das Chagas. Esta
reconstrução, que se inicia pelo claustro – normalmen-
te, a construção dos conventos era feita a partir do
claustro, pois era ali onde ficavam as celas dos religio-
sos –, estende-se até 1723, quando a frontaria da igreja
é acabada.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 10

Esta fachada apre-


senta uma solução inte-
ressante, pois enquanto
se podem ver elementos
já tipicamente barrocos,
como o frontão central
do edifício religioso,
marcado pela presença
de contornos curvilíneos
e alambicados, as torres
sineiras são ainda da
tradição maneirista, com
uma linearidade retilí-
nea, acentuada pelos
ângulos retos formados
entre cunhais e cornijas.
O equilíbrio desse
frontispício é percebido
no enquadramento das
duas torres sineiras em
ambos os lados do pórti-
co central, o que tam-
bém remete sua concep-
ção estilística mais pró-
xima ao maneirismo.
Também o arremate
dos campanários*, em
formato piramidal – os
coruchéus –, apresenta
um gosto maneirista.
Figura 12 - Fachada do Convento de São Francisco (Salvador, Bahia)

A construção do imóvel ficou a cargo do Mestre Manuel


de Quaresma, tendo sido ajudado por outros artistas,
como o Frei Luís de Jesus, cognominado Torneiro, autor
da balaustrada do corpo da igreja, de alguns dos móveis
da sacristia e de elementos da talha da igreja, e o frei
Jerônimo da Graça, que pintou o teto e fez-lhe também
a douração, a partir da década de 1730. Entre 1738 e
1743, fez-se a maior parte dos trabalhos de talha e seu
correspondente douramento, com destaque aos retábu-
los laterais e ao arco cruzeiro, sob a direção do Frei
Gervásio do Rosário e do superior Frei Manuel do Nas-
cimento7.
A obra de talha é de uma riqueza exemplar e bem faz
jus à fama de erudição e de requinte da decoração das
igrejas dos conventos franciscanos. Pode-se notar, no
interior do templo, o gosto barroco manifestado de ma-
neira clara nas volutas douradas, na sensibilidade pela

7 BAZIN, Germain. Op. cit. vol. 2, p. 37 e 38


Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 11

profusão de adornos, no esforço por constituir um am-


biente adornado por elementos dispostos de maneira a
formar um ambiente místico, com uma talha rica que
percorre toda a nave central, o teto, as capelas laterais,
o altar-mor.

Figura 13 - Igreja do Convento de São Francisco (interior).

Esse gosto pela exuberância e pelo exagero confere, à


obra barroca, um sentido de unidade que distingue o
estilo de todos os demais. A percepção do espaço se dá
em sua inteireza, com apelo à sensibilidade do observa-
dor, enquanto que a racionalidade, aspecto exaltado na
fase anterior (Renascimento e, em parte, o Maneirismo)
já, praticamente, não existe mais nesse estilo.
Os azulejos do claustro, considerados os mais belos do
Brasil por Germain Bazin, vieram de Lisboa e foram co-
locados em meados do século XVIII.
Os azulejos portugueses
A azulejaria portuguesa, a bem da verdade, é uma das
mais ricas do mundo. Os azulejos foram introduzidos
na Península Ibérica com a invasão moura, no início do
século VIII. Tanto a arquitetura espanhola quanto a
portuguesa vão-se deixar permear por esse aspecto da
cultura árabe.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 12

Essa prática chegaria ao Brasil na época da coloniza-


ção, sendo o azulejo um elemento decorativo usado ex-
clusivamente no interior dos edifícios. Com o tempo, o
azulejo começou a seu usado também na parte exterior
das edificações, especialmente no Maranhão. Essa prá-
tica, até então ignorada pelos portugueses e pelos espa-
nhóis, acabou sendo “exportada” do Brasil para a antiga
metrópole no século XVIII.
Hoje é muito comum o uso de azulejos nas fachadas
dos imóveis portugueses. Influência brasileira de con-
tramaré. Como se vê, muito antes das novelas, o Brasil
já exportava cultura para os portugueses.

Figura 14 - Convento de São Francisco (Salvador, BA), claustro.

Outras igrejas franciscanas apresentarão um interior


profusamente adornado, não raro com o emprego oni-
presente de folhas de ouro. É o caso, por exemplo, da
Capela dos Noviços do Convento de Santo Antônio (Re-
cife, PE), conhecida como Capela Dourada, e da exube-
rante obra de talha da igreja da Ordem Terceira de São
Francisco da Penitência, no Rio de Janeiro. Na arquite-
tura beneditina, também se pode citar a Igreja de Nossa
Senhora de Monserrate do Mosteiro de São Bento do
Rio de Janeiro.
As chamadas igrejas todas de ouro são, ao lado dos
conventos franciscanos, expressão do que há de mais
genuíno e representativo da arte barroca, que ocorre no
Brasil numa época de pujança econômica da fase colo-
nial. É o que se verá adiante.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 13

As igrejas todas de ouro


A Igreja de São Francisco de Salvador é um exemplo do
que se convencionou chamar de “igreja toda de ouro”.
Mas ela não é a única no Brasil. O advento da descober-
ta do ouro no final do século XVII trouxe um expressivo
crescimento da economia, propiciando o enriquecimento
de outros setores econômicos, que não aqueles apenas
ligados à exploração da cultura do açúcar.
Algumas igrejas nas capitanias do Rio de Janeiro, Bahia
e Pernambuco chegaram a usar uma decoração marca-
da pelo emprego de folhas de ouro, revestindo a obra de
talha, até então policromada. Esse tipo de decoração
arquitetônica só existirá na Península Ibérica e nos paí-
ses do continente americano por ela colonizados. É,
portanto, um fenômeno adstrito à cultura dos países de
língua portuguesa e espanhola.

A Igreja da Ordem Terceira da Penitência, inserida


no conjunto do Convento de Santo Antônio do Rio
de janeiro
Poucos monumentos artísticos brasileiros encontram
equivalência, em termos de riqueza decorativa e de valor
inventivo, com o conjunto arquitetônico formado pelas
Igrejas de Santo Antônio e a da Ordem Terceira de São
Francisco da Penitência, esta última exemplo sofistica-
do de uma igreja toda de ouro. Embora o interesse mai-
or seja sobre a Igreja da Ordem Terceira da Penitência,
por se tratar de uma igreja toda de ouro, será feita tam-
bém uma alusão à igreja conventual de Santo Antônio,
pertencente também à ordem franciscana.
Como era costume durante os anos da fase colonial, e-
rigiam-se as igrejas não apenas nos lugares planos e
nobres da cidade, como também no cume ou nas encos-
tas dos morros. Havia sido assim quando da transfe-
rência do Rio de Janeiro para o Morro do Castelo, onde
Figura 15 - Escadaria de acesso alojaram as igrejas de São Sebastião (Sé) e a do Colégio
ao Convento de Sto. Antônio e de Santo Inácio; no Morro de São Bento, onde construí-
Ig. da Ordem 3ª. Foto de Daniel ram a Igreja de Nossa Senhora de Monserrate; no Morro
Schwabe. Disponível em
http://www.flickr.com/photos/ da Conceição, local em que se faria o Palácio Arquiepis-
dschwabe/354391478/in/set- copal. O Convento de Santo Antônio, no morro de mes-
72057594111378915/ mo nome e onde também se localiza a Igreja da Ordem
Terceira da Penitência, não escapou à regra.

A importância histórica do Convento de Santo Antônio.


O Convento de Santo Antônio, complexo religioso ao
qual a edificação da Ordem Terceira da Penitência asso-
cia-se, participou de diversas formas no processo de
formação histórica do povo brasileiro: constituiu-se

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 14

num centro de excelência do saber e para ali convergi-


am intelectuais antes da Independência, onde se reuni-
ram aliados de Dom Pedro; ali também nasceu o espíri-
to de investigador científico de pessoas como o frei José
Mariano Veloso, o mais importante nome da ciência em
Portugal e no Brasil dos fins do século XVIII e início do
seguinte; o convento de Santo Antônio e a Igreja da Or-
dem Terceira foram edificações da predileção da família
real portuguesa, que ali determinou o enterramento de
seus familiares falecidos no Brasil; do adro daquelas
duas igrejas descortinava-se encantadora paisagem da
cidade do Rio de Janeiro, estendendo-se até o mar,
vendo-se as ruas, os telhados das casas e as torres das
igrejas da cidade, razão porque daquele ponto muitos
pintores registraram várias paisagens da cidade do Rio
de Janeiro.

Figura 16 - Convento de Santo Antônio e Igreja da Penitência (Rio de Janeiro, RJ)

A fundação da igreja e histórico de suas transformações


Em 1592, vindos do Espírito Santo, os franciscanos
chegaram ao Rio de Janeiro, indo instalar-se numa er-
mida situada naquela elevação. Em 1608 lançaram a
pedra fundamental, para construírem uma edificação
projetada pelo frei Francisco dos Santos8. O corpo da
Igreja de Santo Antônio é ainda o mesmo até hoje, ape-

8 Além do Frei Francisco dos Santos, a historiadora da arte Sandra Alvim, que fez exaustivos estudos
sobre a arquitetura religiosa brasileira, informa que foram também autores do projeto os frades Vi-
cente de Salvador, Estêvão dos Anjos e Antônio do Calvário. Cf. ALVIM, Sandra. Arquitetura religi-
osa colonial..., pág. 193
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 15

sar das sucessivas transformações pelas quais tem pas-


sado ao longo dos anos. A fachada, assemelhada à das
igrejas franciscanas nordestinas, havia ganho um a-
créscimo em fins do século XVII, passando a apresentar
uma galilé de arcada tripla, o que perduraria até a re-
forma de 1777, levada a efeito pelo frei Martinho de
Santa Teresa Guerreiro, quando a Igreja ganhou a por-
tada que possui até hoje.
Durante a administração do superior frei Lucas de São
Francisco, ocorrida entre 1716 e 1719, ocorre uma
grande reforma no templo, com o recuo de 3,45 metros
da parede dos fundos da capela-mor; são feitos corredo-
res laterais e tribunas por cima, ampliando-se a largura
do templo. No início do século XX, foram feitas trans-
formações no frontispício da fachada, de gosto neocolo-
nial, alterando-lhe o partido simplificado que possuía
até então e adotando-se a forma que está lá até hoje.
Mas a edificação, a par dessas transformações, conse-
guiu manter o espírito artístico e religioso do Convento.
Se é verdade que, se alguns aspectos originais da edifi-
cação se perderam, especialmente durante o século
XIX, quando o imóvel serviu de caserna para militares,
o que ocasionou a perda dos azulejos do refeitório, é
também certo que os elementos mais essenciais que
marcaram sua arquitetura e decoração através das o-
bras de talha se mantiveram praticamente inalterados.

Figura 17 - Retábulo do altar-mor e retábulos colaterais.

A nave central da edificação religiosa possui apenas

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 16

dois altares de cruzeiro, além do da capela-mor, cir-


cunstância que caracteriza, pela escassez de retábulos
laterais, a arquitetura religiosa franciscana brasileira.
Mas esses retábulos compõem um conjunto de deliciosa
harmonia e apuro em sua execução. O altar-mor é con-
sagrado a Santo Antônio, orago do Convento, e os de
cruzeiro a Nossa Senhora da Conceição e a São Fran-
cisco. Esses retábulos datam de 1620-1624 e sua dou-
ração é pouco posterior (1627-1630). A capela-mor é in-
teiramente revestida de talha, estando o teto pintado
com passagens da vida de Santo Antônio. Seu autor é
desconhecido.
Os retábulos que se encontram na base do arco-
cruzeiro (retábulos colaterais) têm um conjunto de li-
nhas concebido de forma adornada, pelo qual se conju-
gam arcos plenos com os colunelos laterais que enqua-
dram o nicho. A talha que o ornamenta é profusa, de
gosto genuinamente barroco, formando um efeito pictó-
rico ao ambiente arquitetônico compreendido pelo re-
cinto da capela-mor.
A Sacristia, localizada atrás da capela-mor, “é a mais
bonita do Rio”, conforme observou o estudioso Germain
Bazin em seu livro “Arquitetura religiosa barroca no
Brasil”9. Frei Basílio Röwer, a quem se deve a mais
completa memória sobre o cenóbio franciscano, não in-
dica data de execução desse recinto, de grandes dimen-
sões e com um arcaz de rara beleza. Mas uma inscrição
na parte detrás desse móvel, descoberta no ano de 1930
por um conservador, indica a data provável de 1745 pa-
ra o término dos trabalhos da Sacristia e a autoria de
Manoel Alves Setúbal, o mesmo mestre-de-obras que te-
ria atuado na construção da Igreja do Carmo, localizada
na Praça XV de Novembro.

Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência


As belezas desse conjunto arquitetônico religioso não se
resumem à Igreja de Santo Antônio, santo que até hoje
possui a maior popularidade no Brasil. A Igreja da Or-
dem Terceira de São Francisco da Penitência do Rio de
Janeiro constitui-se numa importante edificação sete-
centista religiosa por seus aspectos artísticos excepcio-
nais: no exterior, por fugir aos costumeiros padrões ar-
quitetônicos das igrejas, assemelhando-se a uma casa
senhorial portuguesa, como aqueles exemplos de arqui-
tetura civil situados no norte de Portugal (Museu de A-
veiro, Câmara de Braga, Solar de Jeosa do Mondego e
outras); no interior, pela unidade estilística de sua obra
de talha, pintura e imaginária, conseguida com a cons-

9 BAZIN, Germain. Arquitetura..., Vol. 2, pág. 156


Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 17

trução da Igreja e sua decoração em bem pouco tempo,


apresentando um estilo típico de poucos artistas da
primeira metade do século XVIII.
A fachada é mais larga do que alta, o que confere o as-
pecto palaciano do imóvel referido no início deste texto.
Não possui torre sineira, como seria natural que tivesse,
por imposição dos religiosos do cenóbio de Santo Antô-
nio. Mas o arranjo da composição é deveras valorizado
pela presença de vãos adornados com alisares em pe-
dras de lioz vindas de Portugal, grades antigas e especi-
almente a portada principal, com oval no gosto Dona
Maria onde se vêem as armas da Ordem e as de Portu-
gal.
O frontispício é marcado pelo partido horizontal, caso
único na cidade como de resto bem raro Brasil afora. O
pano da fachada é dividido em três corpos por quatro
pilastras feitas em cantaria e arrematadas no topo por
pináculos. Predomina a simplicidade na fachada do i-
móvel, salvo nos arremates que guarnecem os vãos das
portas e janelas. Um pequeno óculo compõe o centro do
Figura 18 - Fachada da Ig. da frontispício central curvilíneo da fachada.
Ordem 3ª de S. Francisco da
Penitência – Foto (detalhe) O apelo artístico e histórico da edificação não se resume
Márcia Rosa. Disponível em apenas à fachada e ao interior barroco da nave central,
http://www.flickr.com/photos/rosamar/
1017123210/
mas também a outros segmentos que compõem o com-
plexo religioso, que conta ainda com um Museu de Arte
Sacra, com o Salão das Alfaias, Salão dos Andores, Ga-
lerias das Imagens, Capela Primitiva da Ordem. É impe-
rioso também falar-se da sala da Sacristia, com sua no-
tável pintura no teto, do imponente Consistório, do Co-
ro de cima, donde se avista com maior facilidade a pin-
tura do teto da nave central, do Salão dos Retratos, do
Cemitério neoclássico que a Ordem mandou fazer pelo
traçado do arquiteto português José da Costa e Silva,
no início do século XIX.
A Ordem Terceira de São Francisco da Penitência en-
contra-se instalada no Rio de Janeiro desde pelo menos
1619 e funcionava regularmente em espaço contíguo ao
cenóbio franciscano do Morro de Santo Antônio. Essa
edificação é a mais antiga capela de Ordem Terceira a
funcionar na cidade. Mas não era esse que está sendo
agora restaurado pelo Iphan o mesmo prédio da edifica-
ção original onde a Ordem funcionou desde seus mo-
mentos iniciais. A primeira capela da Ordem era agre-
gada à igreja conventual, segundo nos dá notícia Dom
Clemente da Silva-Nigra em sua obra Construtores e
Artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janei-
ro10. Uma segunda capela ainda haveria no século se-
guinte, mas seria apenas a partir do início do século

10 Pág. 308
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 18

XVIII que a construção dessa magnífica igreja teve lu-


gar.
O interior é duma riqueza artística enorme, ficando o
luxo de sua decoração, compatível à opulência dos ir-
mãos da Ordem Terceira de São Francisco, representa-
do na douração que reveste de forma omnímoda prati-
camente toda a obra de talha da igreja.

Figura 19 - Interior da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da


Penitência. Foto Daniel Schwabe. Disponível em
http://www.flickr.com/photos/dschwabe/354391012/

A talha foi contratada pelos irmãos da Ordem em 1726,


com o artista de origem portuguesa Manuel de Brito,
que ficou inicialmente incumbido de fazer o retábulo da
capela-mor, do arco cruzeiro para dentro. Depois, a
1732, foi novamente contratado para fazer um púlpito,
enquanto que Caetano da Costa Coelho era chamado
para a elaboração das pinturas da capela-mor, oito
quadros e o teto da nave da igreja (1737). Manuel de
Brito executou também a talha do apainelamento entre
os altares laterais, executados pelo escultor Francisco
Xavier de Brito. Esse artista foi chamado, em 1735, pa-
ra elaborar a talha do arco-cruzeiro, a cornija e, no ano
seguinte, os referidos seis altares laterais, além da Ca-
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 19

pela do Noviciado.
A igreja seria seriamente prejudicada por vários anos de
quase total abandono, provocado pelo declínio desta
como de várias ordens religiosas no Brasil. O trabalho
de restauração que vem sendo desenvolvido pelo IPHAN,
em parceria com entidades da iniciativa privada, permi-
tiu a restituição do bem à sociedade brasileira, com o
resgate de seus elementos originais e da feição artística
tal qual havia sido imaginada por seus idealizadores.

O Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro


Em 1584, O governador Salvador Correa de Sá mandou
vir, da capital baiana, onde havia sido fundado o pri-
meiro cenóbio beneditino das Américas, religiosos que
pudessem organizar um mosteiro no Rio de Janeiro, a-
tendendo assim a um desejo da população local. Cinco
anos depois, chegaram os monges Pedro Ferraz e João
Porcalho, que se instalaram provisoriamente na primiti-
va ermida de Nossa Senhora do Ó, situada na atual
Praça XV de Novembro.

A escolha do local
Aos monges beneditinos foi oferecido um terreno nessa
mesma praça, além de todas as facilidades que quises-
sem. Mas eles decidiram pela implantação do Mosteiro
num local mais afastado do convívio com a cidade, que,
Figura 20 - Página do canto a esta época, praticamente se resumia ao espaço do
gregoriano da oração de morro do Castelo. Assim foi que os beneditinos se insta-
Vésperas laram no Morro de São Bento. Anota Dom Clemente da
Silva-Nigra, monge beneditino e especialista na história
dessa edificação religiosa, que tal escolha obedeceu ao
desejo de privacidade pretendido pelos religiosos.
Os mosteiros, na Europa medieval, ficavam sempre em
lugares afastados do convívio das aldeias e das concen-
trações populacionais de uma maneira geral. As ordens
monacais eram, neste ponto, diferentes das ordens
mendicantes, que foram surgindo exatamente nos bur-
gos e nas cidades durante os últimos séculos da Idade
Média, procurando levar assistência espiritual à popu-
lação que ali residia. Os beneditinos tinham uma tradi-
ção bem diferente: eram auto-suficientes e procuravam
lugares onde eles pudessem construir não apenas o seu
lugar de oração e de meditação, mas também de sobre-
vivência material.
Por isso, os beneditinos não quiseram ficar no local on-
de hoje se encontra a igreja do Carmo e a da Ordem
Terceira do Carmo. Ocuparam então o morro de São
Bento, que ficava distante do Morro do Castelo e, por

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 20

isso, mais afastado da cidade.


Situado à beira-mar, o local servia de ponto de partida e
de chegada das embarcações dos monges nas viagens
às propriedades rurais do Mosteiro, bem como à própria
cidade. O mosteiro de São Bento, sem escapar à tradi-
ção histórica, como não era uma ordem mendicante, or-
ganiza-se economicamente de maneira auto-suficiente.
Tinha terrenos, casas para aluguel, fazendas, escravos.

Figura 21 - Panorama do Rio de Janeiro, François Froger, 1695

A sesmaria onde se construiu o Mosteiro havia sido de


propriedade de Manuel de Brito, pessoa que viera com
Estácio de Sá expulsar os franceses do Rio e a quem os
terrenos foram cedidos, em 1573, como recompensa por
seus serviços. Dom Diogo de Brito de Lacerda, filho de
Manuel de Brito, e Dona Vitória de Sá, esposa de Dom
Diogo, participaram também dessa doação. Os corpos
do casal encontram-se enterrados na nave central da
Igreja, à altura do transepto.
A sesmaria compreendia aquela elevação geográfica, no
cimo da qual os monges ocuparam uma ermida já cons-
truída em devoção a Nossa Senhora da Conceição, feita
provavelmente de taipa de pilão ou de pau-a-pique11. As
igrejas de Nossa Senhora da Conceição construídas no
Brasil normalmente referem-se a comunidade de portu-
gueses, dado que a Nossa Senhora da Conceição é pa-
droeira de Portugal.

11 ROCHA, D. Mateus Ramalho. A igreja do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Rio, Studio HMF;
Lúmen Christi, 1991, pág. 14
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 21

A imagem que aparece


no retábulo em estilo
“regência” situado no
lado esquerdo da igreja
é certamente do século
XVIII, dada a forma es-
voaçante com que suas
vestes são entalhadas.
As imagens setecentis-
tas têm aquela energia e
espontaneidades que as
distinguem daquelas
outras do século anteri-
or, onde o drapejamento
das vestes é mais sóbrio
e contido. Isso significa
que a imagem original
de Nossa Senhora da
Conceição da antiga
ermida, talvez modelada
em terracota, tenha-se
perdido ou quebrado. A
tradição beneditina não
guardou essa informa-
ção sobre o destino da
imagem da Virgem.
O lampadário em prata
maciça que se vê no
primeiro plano é obra em
estilo rococó do Mestre
Valentim da Fonseca.

Figura 22 – Retábulo de Nossa Senhora da Conceição

Os doadores dessa ermida foram Aleixo Manuel, fidalgo


que viera com Estácio de Sá guerrear os franceses, e
sua esposa Francisca da Costa. Foi ele o primeiro juiz
da cidade e a pessoa que organizou aquela Ordem Ter-
ceira sob a égide de Nossa Senhora da Conceição sobre
o atual Morro de São Bento, inicialmente chamado de
Morro da Conceição. A doação foi feita com a condição
de os beneditinos rezarem, até o fim dos tempos, uma
missa solene no dia de Nossa Senhora da Conceição.
A mudança do nome da igreja
Em 1602, por influxo do governador Dom Francisco de
Sousa, a ermida de Nossa Senhora da Conceição passa-
ria à invocação de Nossa Senhora de Monserrate, con-
forme anotaria Dom Mateus Ramalho Rocha, em sua

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 22

obra A Igreja do Mosteiro de São Bento do Rio de Janei-


ro12. Anote-se também que Nossa Senhora da Concei-
ção, por ser santa padroeira de Portugal, perderia im-
portância naquela época em que a coroa espanhola, sob
o reinado de Felipe II, havia incorporado a coroa lusita-
na desde o termo da dinastia de Avis. Nossa Senhora de
Monserrate bem como a do Pilar, presentes em retábu-
los desta igreja, são duas invocações espanholas da
Virgem.

A imagem de Nossa Se-


nhora de Monserrate é
uma invocação espanho-
la da Virgem Maria. O
nome deriva de um pe-
queno maciço rochoso
situado na Espanha
ocidental, sendo área de
peregrinação.
A imagem que se vê ao
lado pode ser atribuída
ao célebre escultor Do-
mingos da Conceição,
atuante na segunda me-
tade do século XVII, a
quem se deve atribuir
também o trabalho de
marcenaria da porta de
entrada da igreja, bem
assim as imagens de
Santa Escolástica e a
São Bento, localizadas
no altar-mor.
A policromia da imagem
encontra-se um pouco
prejudicada pela ação
do tempo. O estado de
conservação da obra é
ainda muito bom, contu-
do.

Figura 23 - Imagem Nossa Senhora de Monserrate (séc. XVII)

Além dos terrenos que abrangiam o morro, os benediti-


nos adquiriram uma faixa de terra que compreendia a
Prainha,atual Praça Mauá, arrematando ainda a Ilha
das Cobras e a das Enxadas. A propriedade encontra-se
assinalada já no mapa executado a 1631 pelo cartógrafo
real João Teixeira Albernaz.

12 Idem, ibidem, pág. 28


Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 23

Figura 24 - Mapa da cidade do Rio de Janeiro, onde aparece o Mosteiro de São Bento

A Igreja de Nossa Senhora de Monserrate


A implantação do templo integra-se à paisagem naquela
parte da cidade. Do adro, vê-se a cidade e a orla, envol-
ta em verde, tendo por pano de fundo as águas da Baía
de Guanabara.

Figura 25 - Vista do Mosteiro de São Bento (esquerda), tendo à direi-


ta parte da Ilha das Cobras.

O acesso à Igreja hoje é feito através de elevadores, la-


deiras abertas na rocha ou pelas edificações vizinhas ao
mosteiro. Originariamente, o que havia era um caminho
alcantilado, de traçado tortuoso e desconfortável, que
ganhava o cimo da elevação seguindo meandros irregu-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 24

lares. A partir da segunda metade do século XVII, cons-


truiu-se uma ladeira cujo traçado inicial e primeiras o-
bras de execução procuraram aliviar as dificuldades da
subida dos fiéis. Frei Manuel do Rosário Buarcos, que
acabaria falecendo de insolação, e o monge arquiteto
Frei Bernardo de São Bento foram os responsáveis pelas
obras. No século XIX fizeram-se novamente obras de
contenção dos aterros ali existentes e a escadaria em
granito, primoroso e sóbrio trabalho de cantaria*, guar-
necida de parapeitos laterais inteiriços, seria instalada
durante o triênio abacial 1875-1878.

Figura 26 - Escadaria feita


no séc. XIX

Figura 27 - Antiga ladeira de acesso ao Mosteiro de São Bento

O calçamento do adro, feito todo em lajeados planos de


granito, foi ali instalado em meados da década de 1970,
quando a edificação religiosa passou por algumas obras
de conservação e de alteração. Nessa obra fez-se a Casa
de Emaús e a recomposição do alpendre* direito, que
havia sido demolido em 1903, por ocasião da constru-
ção do primeiro edifício da Escola de São Bento, funda-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 25

da em 1858.

A fachada da igreja, ma-


neirista por excelência, é
de gosto classicizante, com
remissões estilísticas ao
Renascimento através de
várias características. Uma
delas é o gosto pelo apai-
nelamento existente na
fachada, criando uma
composição marcada pela
pluralidade (os painéis
superiores com janelas
enquadradas pelos cu-
nhais*, pilastras* e corni-
jas*, os painéis inferiores,
onde se vêem os vãos da
galilé, as aberturas situa-
das na parte de baixo da
torres sineiras). O equilí-
brio da fachada, a lineari-
dade, com sensibilidade à
formação de soluções orto-
gonais e racionalistas. A
galilé, arrematada pelos
arcos plenos na entrada
principal da igreja, bem
como a austeridade que
prepondera em toda mo-
denatura* do imóvel, são
igualmente testemunhos
dessa herança clássica
mostrada na formação de
Francisco Frias da Mesqui-
ta, autor do projeto.

Figura 28 - Adro e fachada da Igreja de Nossa Senhora de


Monserrate

O início da construção da Igreja de Nossa Senhora de


Monserrate data de 1633, baseada no traçado feito em
1617 pelo engenheiro-mor do Brasil, o militar Francisco
de Frias da Mesquita, autor e construtor de vários for-
tes situados nas costas brasileiras entre os anos de
1603 até 1635, quando retornou para Portugal. Já por
essa época o Mosteiro amealhava recursos materiais
que lhe permitiriam empreender obra com envergadura
compatível a uma edificação como a da Igreja de Nossa
Senhora de Monserrate: além das várias casas de alu-
guel que a ordem mandara erigir nas imediações do
morro, funcionava, desde 1613, o engenho de açúcar de
Iguaçu, de onde provinham muitos recursos financeiros
para o Mosteiro.
A cerimônia de lançamento da pedra fundamental data
de 1631, mas apenas dois anos após é que os trabalhos

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 26

se iniciaram e estender-se-iam por oito anos, sendo a


igreja inaugurada em 1641. Naquele ano, a edificação
ainda não possuía o atual frontispício ladeado pelas
duas imponentes torres sineiras*, o vestíbulo*, o coro
de cima e os alpendres, que só depois seriam acrescen-
tados, ao longo da segunda metade do século XVII. Tais
elementos arquitetônicos são típicos da arquitetura
maneirista que se afirma no início da colonização por-
tuguesa no Brasil.
A fachada maneirista guarda ainda traços renascentis-
tas, seja na modenatura* de austera racionalidade, seja
no equilíbrio da composição, cuja sobriedade encontra-
se acentuada pelo enquadramento lateral das torres si-
neiras, seja, enfim, pela presença de uma galilé em arco
pleno, que concorre para atenuar a presença preponde-
rante de linhas retas que desenham a fachada.
Os alpendres laterais formam interessante conjunto,
que, por um lado, concorrem para acentuar o equilíbrio
da composição e, por outro, conferem um gosto de curi-
oso exotismo, ao conjugar elementos arquitetônicos da
ordem toscana, como as colunas que os sustentam,
com o madeiramento do teto feito à moda mourisca.
O vestíbulo, com seu teto abobadado, sobre o qual está
o coro de cima, foi alterado no século XIX, quando en-
tão se arrancaram os antigos portões ali colocados em
meados do século XVIII e os substituíram por outros de
1880, fundidos na Inglaterra. Datam também dessa é-
poca os painéis de azulejos portugueses colocados nas
paredes do vestíbulo. O piso de cerâmica, assentado en-
tre 1669 e 1672, foi trocado, à época das obras de colo-
cação de pisos de mármore em vários segmentos da i-
greja, durante a centúria passada. As portas que sepa-
Figura 29 - Alpendre
ram o vestíbulo da igreja são de canela cravo, com pe-
ças decorativas em jacarandá e mogno, sendo sua exe-
cução atribuída ao Frei da Conceição da Silva, autor de
várias obras de talha que alindam o interior do templo.

A obra de talha e os retábulos


Ao adentrar-se na nave da Igreja de Nossa Senhora de
Monserrate, depara-se com o quebra-vento, obra de ta-
lha de rara beleza, feita no início da década de 1730 por
José da Conceição e Simão da Cunha, ao mesmo tempo
em que se esculpiam os dois anjos do arco-cruzeiro, as
imagens do corpo da Igreja e das capelas falsas (Santa
Francisca Romana e Santa Ida) situadas sob o coro de
cima.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 27

Figura 30 - Falsa capela de


"Santa" Ida.

Figura 31 - Interior do templo, com vistas ao quebra-vento, coro de


cima e o órgão da Coroa, obra do século XVIII.

As capelas laterais, construídas principalmente durante


o último quartel do século XVII, sob a coordenação do
frei arquiteto Bernardo de São Bento, eram mantidas
pelas várias irmandades que se associaram aos monges
beneditinos para ali manterem seus cultos e garantirem
também o enterramento dos seus irmãos no recinto
dessas capelas. Cada um desses altares representou
uma irmandade e apenas a de São Brás mantém-se a-
inda hoje funcionando.
As irmandades religiosas
Essas irmandades que mantinham as capelas laterais
eram um exemplo de como a população se organizava,
numa época em que o Estado monárquico absolutista
não tinha olhos para as necessidades da sociedade civil.
É importante lembrar que o Estado absolutista não era
exatamente forte, mas intolerante. Ele não assistia à
população em educação, assistência hospitalar e outras

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 28

demandas sociais. Isto só aconteceria com o advento do


chamado “despotismo esclarecido” e o desenvolvimento
da burocracia, a partir da segunda metade do século
XVIII. As irmandades e as ordens terceiras eram a for-
ma com que a população se organizava, sob a égide da
Igreja, para tratar de atividades de natureza assisten-
cialista. Essa prática foi muito forte até o século XIX.
Algumas ordens terceiras funcionavam dentro de igrejas
conventuais, mantendo uma pequena capela. Outras ti-
veram muitos membros, crescendo tanto que acabaram
por fazer as suas próprias igrejas. É o caso das Ordens
Terceiras do Carmo, de Santa Cruz dos Militares, da
Candelária, do Rosário, de São Francisco da Penitência
etc.
As pessoas olham hoje a quantidade de igrejas que se
construía naquela época e imaginam que se tratava de
um povo extremamente religioso. Não é bem assim. A
rigor, essas igrejas eram, na maior parte, ordens tercei-
ras ou de irmandades destinada a suprir, em termos de
assistência mutualista, aquilo que o poder público não
fornecia.
Pelo lado da Epístola (esquerdo), vêem-se os retábulos
em devoção a Nossa Senhora da Conceição, São Lou-
renço, Santa Gertrudes e São Brás; pelo lado do Evan-
gelho (direito), vêem-se os altares do Santíssimo, origi-
nariamente dedicado a São Cristóvão, cuja bela imagem
hoje se encontra no batistério, São Caetano, Nossa Se-
nhora do Pilar e Santo Amaro. No altar-mor, vêem-se as
imagens de São Bento e Santa Escolástica, talhadas pe-
lo genial Frei Domingos da Conceição.
Os atributos de Santa Escolástica, irmã gêmea de São
Bento, são o livro da regra beneditina e uma pomba,
que aqui aparece pousada sobre o livro. Não é sempre
que a santa aparece com um báculo na outra mão, con-
forme a imagem ao lado. A presença da pomba nada
tem a ver com o mistério da Santíssima Trindade. Tra-
ta-se de uma alusão ao milagre atribuído ao momento
de sua morte, em que se viu sua alma, na forma de
uma pomba, sair de seu corpo e subir aos céus.
Segundo Jorge Campos Tavares, é comum se represen-
tar esta santa vestida como uma abadessa dominica-
Figura 32 - Domingos da Con- na13. Na imagem que se mostra ao lado, todavia, Santa
ceição. Santa Escolástica Escolástica veste um traje solene da ordem beneditina.
A douração que aparece no hábito, como se fosse fili-
granas fitomórficas – a flor de lis é um de seus atributos
–, é feita com a técnica do esgrafito, que consiste em
cobrir, com folhas de ouro, toda a extensão do hábito,
recobrir-se com tinta esta douração e, depois, com o

13 TAVARES, Jorge Campos. Dicionário de santos. Porto: Lello, 1990. p. 51-2.


Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 29

auxílio de um estilete, remover a tinta já seca, dese-


nhando-se os padrões que se vê no manto da santa.
Dom Mateus Ramalho Rocha contou-me, certa vez, que
uma pessoa que se dizia restauradora, ao descobrir,
num santo que lhe fora confiado por um colecionador
particular, a camada de ouro sob a de tinta, removeu
esta completamente, julgando que o santo era todo em
ouro, perdendo assim todos os detalhes feitos em esgra-
fito.
O trabalho de um bom restaurador impõe um conheci-
mento profundo não apenas de técnicas e de instru-
mentos científicos, mas de História da Arte. Um bom
restaurador é um profissional imprescindível para a
própria História da Arte, pois a conservação física do
bem cultural é fundamental para o trabalho desse pro-
fissional.

Frei Domingos da
Conceição é um nome
que, apesar de pouco
conhecido, deve ser vis-
to como um dos mais
importantes artistas a-
tuantes no Brasil do séc.
XVII.
Esta imagem, atual-
mente em poder de um
colecionador paulista,
toda entalhada em ma-
deira, mede 200 x 135 x
25 cm e demonstra um
conhecimento da arte do
entalhe, um domínio
grande sobre anatomia
e uma formação sólida
do artista em desenho.
O movimento desse
Cristo ressurreto enqua-
dra-se no gosto barroco,
que valorizava as solu-
ções dinâmicas, aqui
percebidas tanto na i-
déia de instantâneo de
um movimento flagrado
pelo artista, quanto
também na disposição
do corpo, com braços
postos em numa diago-
nal.
Y.Z
Figura 33 - Domingos da Conceição Cristo da Ressurreição.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 30

Figura 34 - Interior da Igreja de Nossa Senhora de Monserrate. Notar a unidade que a obra de talha
confere ao interior do templo.

O autor da talha que adornava, com sua profusa pre-


sença decorativista, o corpo central da Igreja, como
também as capelas laterais, foi Alexandre Machado Pe-
reira, ativo na segunda metade do século XVII, fase áu-
rea da mais característica etapa barroca do Mosteiro de
São Bento. É nessa época também em que atua, além
do citado Frei Domingos da Conceição, responsável pela
talha do altar-mor, perdida após a reforma dos fins do
século XVIII, o arquiteto Bernardo de São Bento, que
coordenaria vários dos trabalhos empreendidos por ou-
tros artistas e artesãos. A douração dessa talha, com-
posta basicamente de volutas, acantos, meninos, flo-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 31

rões, arcos, capitéis e emblemas sacros, é geralmente


da primeira metade do século XVIII.

A Capela-mor da Igre-
ja de Nossa Senhora de
Monserrate foi refeita na
segunda metade do sé-
culo XVIII por Inácio Fer-
reira Pinto. A talha anti-
ga,de Domingos da Con-
ceição, possuía um gosto
barroco à maneira da
talha existente nas duas
capelas falsas, situadas
logo no início da nave
central. Essas capelas
têm um gosto próximo
ao chamado “estilo na-
cional português”. A o-
bra de Inácio Ferreira
Pinto, todavia, já apre-
senta um gosto mais
leve, com um arremate
superior típico da se-
gunda metade do século
XVIII (Dona Maria), ca-
minhando muito proxi-
mamente do estilo Roco-
có.
No teto da capela-mor
há pinturas do Frei Ri-
cardo do Pilar, ativo no
Rio de Janeiro no séc.
XVII.

Figura 35 - Capela-mor, com obra de talha de Inácio Ferreira Pinto.

A capela do Santíssimo, bem como o altar-mor, refor-


mado no final do século XVIII seguindo o gosto sensível
ao Rococó, são da lavra do entalhador e escultor Inácio
Ferreira Pinto, segundo atribuição de Dom Clemente da
Silva-Nigra. Defrontando-se com essa capela lateral e a
de Nossa Senhora da Conceição ao mesmo tempo que
compõem um “pendant” de esplêndido efeito decorativo,
vêem-se dois grandes lampadários, em prata maciça, do
risco do escultor, entalhador e arquiteto Mestre Valen-
tim da Fonseca.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 32

Figura 36 - Lampadário do Mestre Valentim da Fonseca

As pinturas
No teto da capela-mor, vêem-se pinturas de Frei Ricar-
do do Pilar, importante pintor de origem alemã ativo na
segunda metade do século XVII no Rio de Janeiro. As
imagens referem-se às aparições da Virgem Maria aos
vários santos beneditinos. A presença da clarabóia bem
no meio da abóbada da capela-mor impôs a elaboração
de uma solução de pintura onde não se pôde fazer uma
imagem apenas, mas várias.
A principal pintura existente no Mosteiro de São Bento
executada pelo Frei Ricardo do Pilar encontra-se na sa-
cristia, inserida num retábulo riquissimamente ornado
com obra de talha em “estilo nacional português”. O re-
tábulo pode ser considerado como o mais típico da obra
de talha barroca, tanto no Brasil como em Portugal. O
nome decorre das remissões que ele faz às portadas das
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 33

igrejas românicas portuguesas, construídas no século


XI e XII, portanto na mesma época em que Portugal
desligava-se da corte espanhola e fundava sua casa
monárquica autônoma. As semelhanças com o estilo
Românico encontram-se nos colunelos laterais escalo-
nados e nos arcos plenos concêntricos superiores que
encimam o retábulo. No Românico, os colunelos tendem
à simplicidade, embora possam vir adornados de cenas
bíblicas ou de elementos extraídos da temática pagã. No
estilo nacional português os colunelos são espiralados, à
maneira “salomônica”, da mesma forma que Gian Lo-
renzo Bernini (1598-1680) concebera o baldaquino da
Basílica de São Pedro, aparecendo no Mosteiro de São
Bento do Rio de Janeiro com uma douração sobreposta
ao vermelho.

Figura 37 - Baldaquino de
Bernini (fonte Wikipedia)

Figura 38 - Retábulo de Nosso Senhor dos Martírios.


Pintura de Frei Ricardo do Pilar. Foto Paulo Conceição.

A pintura que aparece neste retábulo enquadra-se no


estilo barroco, pelo gosto do contraste claro-escuro, pelo
sentido dramático que a obra apresenta, revelando ain-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 34

da uma herança da pintura européia de tradição seten-


trional, assinalada pelo detalhismo requintado e preci-
so. Frei Ricardo do Pilar, nascido na Alemanha, estuda-
ra em Portugal durante algum tempo, onde a influência
da pintura flamenga é também sensível.

Figura 39 - Pintura oval (séc. XVIII) – Foto Paulo Conceição

Vários ovais encontram-se pela sacristia, batistério e


assim. São pinturas de algum autor do século XVIII,
quando a luminosidade era mais suave e menos marca-
da pelo contraste de sombra e luz. A moldura desses
ovais é tipicamente rococó, com rocalhas estilizadas.

Capela das Relíquias


Também em estilo Rococó deve ser vista a Capela das
Relíquias, feita provavelmente em fins do século XVIII,
empregando-se uma douração sem exageros sobre tom
azul turquesa claro. A capela das relíquias possui vários
elementos decorativos em volta dos pequenos compar-
timentos onde as relíquias se encontram expostas.
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 35

Figura 40 - Capela das Relíquias

Observar o oratório em prata maciça, feito também em


estilo rococó, possivelmente da lavra do Mestre Valen-
tim da Fonseca, o mesmo autor dos lampadários que se
encontram na entrada da capela-mor da Igreja de Mon-
serrate.
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
O triunfo da fé 36

Figura 41 - Oratório em prata da capena das relíquias.

Considerações finais
O Mosteiro de São Bento constitui-se numa obra de arte
cuja importância não se resume apenas à beleza de sua
arquitetura, de sua obra de talha, pintura ou escultura,
tomadas isoladamente. Sua riqueza artística deve ser
vista em seu todo, em que cada elemento se integra à
representação de uma idéia – o Barroco –, construída
lentamente ao longo de vários anos. Foi esse o estilo ar-
tístico que testemunhou a formação cultural do povo
brasileiro: exuberante, sensível e assinalado por con-
tradições.
Y.Z

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Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 37

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Fundação Walter Moreira Salles, 1983.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 38

Glossário
Aleta – Acabamento curvilíneo colocado nas laterais de
um frontão, com o intuito de diminuir-lhe o aspecto du-
ro e seco provocado pelos ângulos retos da fachada.
Alpendre – Cobertura saliente, feita em telhas apoiadas
sobre madeiramento estruturado em treliça, que se a-
póia, por sua vez, de um lado, no pano da fachada e, de
outro, em pilares ou colunas.
Altar – Na tradição judaico-cristã, mesa sagrada em
frente à qual o sacerdote promove ritos religiosos ou
onde os fiéis rezam ou depositam oferendas ao santo ou
a Deus.
Adro – Pátio que circunda um edifício, seja ele religioso
ou não. Nas igrejas, chama-se adro o pátio que fica em
frente à fachada principal.
Campanário – O mesmo que torre sineira, ou seja a tor-
re de uma igreja onde os sinos são colocados.
Cantaria – As obras de cantaria são os trabalhos feitos
em pedra destinados a servir de elementos estruturais
numa construção.
Capitel – Arremate superior de uma coluna, normal-
mente adornada com folhas de acanto, ábacos, volutas
etc., cuja análise permite identificar-se a que ordem ar-
quitetônica pertence a coluna. Nas ordens gregas, têm-
se capitéis dóricos, coríntios e jônicos. Nas ordens ro-
manas, têm-se capitéis toscanos e a compósitos. A or-
dem toscana foi uma das mais usadas pelos artistas do
Renascimento e do Barroco.
Cenóbio – Nome genérico dado a qualquer lugar cons-
truído para abrigar comunidades religiosas reclusas,
dedicadas à vida de oração, trabalho e contemplação.
Mosteiros, destinados à habitação de monges, e conven-
tos, específicos dos religiosos de ordens mendicantes,
podem ser citados como exemplos de cenóbios.
Coluna – Qualquer suporte vertical de seção circular,
sobre o qual se apóiam vigas, frisos, arquitraves, corni-
jas ou outros elementos estruturais horizontais quais-
quer. As colunas são formadas de base (às vezes apoia-
da sobre um pedestal), fuste* e capitel.
Cornija – Moldura saliente horizontal, que pode ser re-
tilínea ou curvilínea, para marcar a presença dos pavi-
mentos das edificações. As cornijas superiores dos edi-
fícios têm por função conduzir o escoamento da água da
chuva, de forma a não a deixar escorrer pela fachada, o
que provoca umidade e manchas. As cornijas também
podem ser simples arremates superiores e horizontais

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 39

de um pedestal ou de uma balaustrada.


Coro de cima – Desde a Renascença, chama-se “coro”
ou “coro de cima” a parte de uma igreja situada próxi-
ma à entrada na nave central, onde se localizam leigos e
se processam os ofícios divinos. Originalmente, o coro
ficava junto ao altar-mor. Na Igreja de São Bento a área
do altar-mor é também chamada de coro.
Coruchéu – Remate piramidal de um edifício, verificado
sobretudo sobre o campanário de uma igreja. De manei-
ra mais genérica, usa-se também o termo para designar
qualquer remate de um campanário, seja ele piramidal,
meia-laranja, bulboso etc.
Cunhal – Pilastra, feita normalmente em obra de canta-
ria* com cantos vivos (90º), colocada na quina ou canto
de uma edificação. Os cunhais, por assim dizer, são as
arestas verticais dos edifícios.
Frontaria – Fachada principal de um edifício. O mesmo
que frontispício.
Frontispício – Fachada principal de um edifício. O
mesmo que frontaria.
Fuste – Parte principal de uma coluna, situada entre o
capitel (arremate superior) e sua base. Os fustes podem
ser lisos, como nas ordens toscanas, ou com caneluras,
como nas ordens dóricas.
Galilé – Vestíbulo situado entre a parede da fachada e a
porta de ingresso na nave de uma igreja. Pode apresen-
tar, no vão situado na parede da fachada, uma verga
em arquivolta.
Modenatura – Conjunto de molduras e demais elemen-
tos arquitetônicos que denotam o estilo, fase ou escola
artística de um prédio. Também é chamada de modina-
tura.
Nicho – Reentrância encontrada nas paredes internas
ou externas de uma edificação, onde podem ser vistas
esculturas, vasos, ânforas etc.
Óculo – Abertura circular de uma parede, que tem por
função facilitar a iluminação e a aeração do ambiente.
As rosáceas medievais podem ser consideradas um tipo
sofisticado de óculo.
Pilastra – Elemento estrutural como as colunas ou pila-
res, de seção retangular, incorporado ao pano da parede
e levemente saliente para fora desta.
Pináculos – Pequenos arremates situados nas partes
superiores de um edifício, que exercem função mera-
mente decorativa. As torres sineiras e os frontões curvi-
líneos barrocos costumam vir acompanhados desses e-
lementos arquitetônicos.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 40

Relicário – Relicário é uma peça onde se expõe algum


vestígio material de um santo (osso, fio de cabelo, dente,
fragmento de roupa etc.), chamada de relíquia, com o
fim de ser adorada pelos fiéis. A imagem-relicário é uma
escultura de um santo, com uma relíquia presa nor-
malmente à altura do peito, além de apresentar os atri-
butos correspondentes. Por exemplo, uma imagem-
relicário de São Lourenço teria, além da relíquia presa à
escultura, uma palma e uma grelha.
Retábulo – “Atrás da mesa”, literalmente. Obra de talha
ou em pedra lavrada que se localiza atrás e sobre o al-
tar (mesa sagrada), onde se colocam imagens de santos
ou pinturas religiosas.
Sobreverga – Arremate de vergas existentes em portas e
janelas, normalmente decorado com motivos curvilí-
neos.
Serliano – Relativo ao arquiteto Sebastiano Serlio
(1475-1554), tratadista da arquitetura italiano, natural
da Bolonha, que trabalharia na corte do rei francês de
Francisco I.
Tímpano – Parte interna de um frontão, onde normal-
mente se podem encontrar inscrições, relevos, escultu-
ras etc.
Torre sineira – Parte do edifício religioso onde se situ-
am os sinos. O mesmo que campanário.
Verga – Nome genérico dado aos arremates superiores
de qualquer porta ou janela.

Índice
Aspectos históricos ........................................................................ 1
Os conventos franciscanos ............................................................. 2
Características ......................................................................... 5
O convento franciscano de Salvador ......................................... 9
As igrejas todas de ouro ................................................................13
O Convento e Igreja de Santo Antônio e a Igreja da Ordem
Terceira da Penitência do Rio de Janeiro .................................13
O Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro..............................19
Bibliografia ...................................................................................36
Glossário ......................................................................................38
Índice............................................................................................40
Créditos ........................................................................................40

Créditos
Fotografias do Mosteiro de São Bento: A pintura oval e a
do Nosso senhor dos Martírios são de Paulo Conceição.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O triunfo da fé 41

As demais foram feitas por Humberto Morais Frances-


chi e Nelson Rivera Monteiro, tendo sido extraídas do li-
vro de Dom Mateus Ramalho Rocha, com a autorização
do Mosteiro de São Bento. Seu uso em baixa resolução
é de circulação restrita.

Atenção:
Esta é uma apostila produzida por Marcus Tadeu Daniel Ribeiro, destinada a subsidiar pe-
dagogicamente o trabalho de ensino de História da Arte. Seu uso é restrito a seus alunos,
estando sua divulgação vedada sob todas as formas e meios, materiais ou digitais, especi-
almente através da Internet. Este documento está protegido pela Lei n. 9.610, de 19 de feve-
reiro de 1998, que consolida a legislação sobre direitos autorais. ©

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


História da Arte
Prof. Marcus Tadeu Daniel Ribeiro

A descoberta da terra
Escultura, pintura, obra de talha e arquitetura
(1763-1822)

A segunda metade do século XVIII e início da centúria seguinte é um momento extremamente rico e
diversificado para a arte brasileira. Nessa fase, vários estilos convivem: o Barroco se despede, ao mesm
o tempo que a Igreja deixava de ser um instrumento da Contra-Reforma; o Rococó se afirma como esti-
lo majoritário, alindando o interior de diversas igrejas cariocas e mineiras, numa época em que as ir-
mandades leigas têm papel de destaque na sociedade; no Pará, no Rio e na Bahia começam a aparecer,
ainda que de maneira tímida, dois novos estilos, que são o Pombalino e o Neoclássico, que serão vistos
no próximo segmento. É uma época importante, onde pontificam nomes relevantes da arte, num mo-
mento histórico que a colônia se vê inundada de recursos provenientes da exploração do ouro em Mi-
nas Gerais e quando também inicia um lento movimento de construção de uma identidade do povo
brasileiro.

Preliminares históricos

A Colônia vive os faustos dos recursos materiais advin-


dos da exploração do ouro, descoberto nos fins do sécu-
lo XVII. Esses novos recursos econômicos provocam um
fenômeno inédito na história do país: uma área não si-
tuada no litoral é agora alvo do súbito afluxo popula-
cional, provocado pela perspectiva de enriquecimento
rápido. Não são apenas os exploradores de ouro que
chegam à região das minas, mas também trabalhadores
que viverão da economia que o ouro enseja. Os artistas
fazem parte dessa camada populacional. Neste processo
histórico, em que os olhos do colono se desprendem do
horizonte marítimo e se voltam para o interior, a arte
vai trilhar novos caminhos.
O volume de recursos que o ouro provoca não é impor-
tante apenas para o Brasil, mas para o mundo. A Ingla-
terra é beneficiada, ao obter meios de pagamento para
Ilustração 1 - Capela do Padre
Faria (Ouro Preto, MG) operar o mais importante acontecimento histórico do
século XVIII e XIX: a Revolução Industrial. John Bury,
historiador da arte inglês, especialista na arte brasileira
da fase colonial, assinala que o ouro brasileiro extraído
Arte do Brasil colonial 2

entre 1700 e 1770 foi responsável pela metade de todo o


montante produzido no resto do mundo entre 1500 e
1800! 1 Boa parte desse ouro foi usada por Portugal pa-
ra compensar seu déficit da balança comercial com a
Inglaterra desde o tratado de Methuen, firmado entre os
dois países em 1703.

Ilustração 2 – Ponte da Caveira, próxima a entrada de Lavras Novas, em Ouro Preto, situada na Estrada Real
(Foto Tharcio Oliveira, fonte Wikipedia)
A economia do ouro gerou alterações profundas no pa-
norama econômico e administrativo luso-brasileiro: no-
vos caminhos foram abertos para o escoamento da pro-
dução do ouro, como também para melhor suprir as
necessidades de abastecimento interno da região; o cen-
tro de interesse da colônia deixou de ser o Nordeste a-
çucareiro, passando a se concentrar nas Minas Gerais;
o Rio de Janeiro torna-se um local estratégico para o
controle do escoamento do ouro, transformando-se as-
sim na nova capital da colônia, o que lhe causaria um
notável desenvolvimento urbanístico.
Nesta fase, a Igreja não tem mais a mesma função soci-

1
BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel, 1991. p. 16.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 3

al que lhe havia sido confiada no início da colonização –


a difusão da palavra de Deus, segundo as resoluções do
Concílio de Trento. Nos momentos iniciais da coloniza-
ção, os jesuítas tiveram um papel todo especial no ce-
nário histórico e cultural de então, configurando um ca-
ráter militante e voltado à conversão do gentio. Neste
momento agora de crepúsculo dos tempos coloniais, a
Igreja está mais voltada à organização da sociedade, a-
través das chamadas ordens terceiras ou irmandades
que crescem nos principais centros populacionais. Com
muita frequência, será nas ordens terceiras e nas ir-
mandades religiosas onde a expressão artística brasilei-
ra mostrará sua excelência.

Ilustração 3 - Casa de Câra e Cadeia de Mariana (Foto de J. Siqueira, Disponível em


http://www.flickr.com/photos/jpnaestrada/3201987234/, acesso em 11 jun 2009)
Paralelamente a isto, começa a surgir, no cenário cultu-
ral brasileiro, uma arte de caráter não devocional, rela-
cionada à representação do poder civil. A arquitetura
civil adquire uma importância nunca antes vivida, so-
bretudo na expressão do aparecimento dos palácios,
como o paço da cidade do Rio de Janeiro, bem como a
casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto, obra dum
classicismo austero, inspirada na arquitetura neoclás-
sica do norte de Portugal, onde a influência do neoclas-
sicismo inglês se fez sentir de forma mais acentuada, a

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 4

partir da tratadística de Andrea del Palladio (1508-


1580).
É também dessa fase o surgimento dos primeiros retra-
tos da terra, através da pintura de paisagens, de que
são exemplo lapidar os painéis ovais de Leandro Joa-
quim. Também a pintura de retratos se estabelece des-
de essa época colonial, mas especialmente após a che-
gada da corte em 1808, momento em que a aristocracia
portuguesa apressa-se em se fazer retratar pelos artis-
tas locais, como também por aqueles outros imigrados.

Do Barroco ao Rococó

Minas Gerais

Ilustração 4 - Vista geral da cidade de Ouro Preto


A arte mineira da fase colonial é bastante rica, tanto pe-
lo refinamento e criatividade das soluções que os artis-
tas alcançaram, como também pelo fato de ali desenvol-
verem-se soluções bastante diversificadas. Nas Minas
Gerais, podem-se encontrar artistas cuja produção a-
presenta-se menos afetada pela influência da metrópo-
le, dando azo à criação de soluções típicas da região.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 5

Mas é importante lembrar sempre que em Minas Gerais


também atuaram artistas de origem portuguesa, como
Francisco Vieira Servas, Francisco Xavier de Brito, Ma-
nuel Francisco Lisboa e outros, que conferem o sentido
de diversidade que caracteriza a arte brasileira.

Ilustração 5 - Igreja de Nossa Se-


nhora da Conceição, Ouro Preto
MG

Ilustração 6 - Capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e nave.


Data de 1727 o início da construção da Igreja de Nossa
Senhora da Conceição, feita por Manuel Francisco Lis-
boa, pouco se sabendo sobre a autoria das obras de ta-
lha que adornam os altares laterais. Germain Bazin in-
forma-nos de um pagamento feito a um José Coelho de
Noronha, “entalhador”, para o reparo do retábulo* do
Rosário, mas não se sabe se foi ele o autor de toda obra
de talha, se foi Manuel Francisco Lisboa ou outro autor.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 6

No retábulo da capela-mor, percebem-se vários elemen-


tos que configuram a tradição barroca na obra de talha:
o gosto pelo adorno, a presença dos colunelos* espirala-
dos, na forma salomônica, o baldaquino* monumental,
a policromia*, o horror ao vazio.

Uma característica barroca?

Quando se olha um retábulo


barroco, logo algumas caracte-
rísticas do estilo saltam aos
nossos olhos: o gosto pelo a-
dorno, a policromia, o dina-
mismo, o apelo não apenas à
razão mas aos aspectos subjeti-
vos da percepção.
A presença de anjos de corpo
inteiro ou de apenas a cabeça
com as asinhas (querubins),
marca, com muita frequência,
os retábulos barrocos. Seria
esta uma característica barroca
também?
É importante salientar que nem
sempre os retábulos barrocos
apresentam-se ornados desse
tipo de decoração. Nos da fase
inicial do Barroco tal caracte-
rística tem recorrência incerta.
Todavia a figura do anjo, visto
como mensageiro de Deus e
representado na forma infantil,
foi muito presente na época
barroca, não apenas na obra de
talha, como também na pintura
e na escultura.
O anjo renascentista é apresen-
tado como um adolescente, de
aspecto mais viril do que o anjo
barroco, que começa a ser re-
presentado como uma criança:
pura e pouco racional.

Ilustração 7 - Retábulo lateral da Igreja de Nossa Senhora da Conceição do


bairro de Antônio Dias (c. 1750)
O retábulo acima representado apresenta remissões ao
retábulo lateral da igreja de N. Sr.ª do Pilar, situada na
mesma cidade, sendo marcado pela presença de anjos e
querubins. Notar como característica do estilo que, a-
lém do decorativismo que preenche toda extensão da
obra de talha, percebe-se um dinamismo expresso no
colunelo espiralado e nos dois planos distintos em que
se assentam os colunelos.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 7

Ilustração 8 - Igreja de Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto, MG)


A igreja de Nossa Senhora do Pilar é uma obra fun-
damental para se compreender a arte do período. Nela
encontram-se trabalhos, incluindo a obra de talha, os
mais importantes, que testificam a fase da maturidade
do Barroco mineiro sob influência dos novos artistas
imigrados da Metrópole para a Colônia. Francisco Xavi-
er de Brito é um deles. Sua obra é das mais relevantes
para a arte brasileira daquela fase. Francisco Xavier de
Brito, que havia vindo para o Brasil sob a perspectiva
de apenas trabalhar na Igreja de São Francisco da Peni-
tência, no Rio de Janeiro, acaba por se encantar com a
terra e resolve aqui se estabelecer em definitivo. Pouco
se sabe sobre esse artista, mas sua influência sobre a
arte de seu tempo é tanta que se convencionou deno-
minar de “estilo Brito” aquela fase da talha barroca que
antecede a plena absorção do Rococó pelo meio artístico
Ilustração 9 - Igreja de N. Sr.ª do brasileiro, sendo caracterizada pelo movimento e pela
Pilar (Ouro Preto, MG) leveza.
Observe-se, no salão principal da igreja em forma octo-
gonal, próxima à circularidade elíptica, um aspecto típi-
co da arte barroca: a teatralidade. Enquanto nas escul-
turas percebe-se um gestual de extravasamento dramá-
tico típica do estilo tanto na Europa quanto no Brasil,
no espaço arquitetônico há um sentido cênico conferido

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 8

aos retábulos, um viso teatral ao espaço sagrado nesta


igreja mineira. Quem conhece teatros da era colonial ou
mesmo do início do século XIX rapidamente sente a fa-
miliaridade que há entre esta nave e o recinto de um te-
atro histórico. As tribunas que circundam a platéia, a
forma com que a parte do público vai-se abrindo em re-
lação ao presbitério, a remissão que o arco-cruzeiro faz
ao pano de boca do palco...
A questão do teatro é uma marca muito grande no perí-
odo da arte colonial. É importante lembrar que os pri-
meiros missionários jesuítas que chegaram ao Brasil
usaram fartamente do teatro para a conversão do genti-
o, através da representação dos autos religiosos.

Capela-mor Igreja de Nossa


Senhora do Pilar

Olhar uma obra barroca, mais


do que apenas uma exame visu-
al, pode representar uma expe-
riência sensitiva: não se perce-
bem tão-somente coisas pelos
olhos, mas se as depreendem
pelos vários sentidos onde a
sensibilidade se manifesta como
eco da percepção humana.
A capela-mor da igreja do Pi-
lar, com seus adornos em profu-
são, tem uma douração que se
distingue daquela feita na de
Monserrate (Mosteiro de São
Bento) e na da Penitência, am-
bas do Rio de Janeiro, onde o
dourado integra-se a um univer-
so cromático mais escuro, cri-
ando efeitos especulares do
ouro mais contrastantes. Aqui, o
ouro integra-se a um fundo
branco ou a tons pastéis e a
uma policromia contida presen-
te nos meninos que inundam o
entablamento do retábulo, bem
assim na base dos colunelos e
das mísulas. O efeito consegui-
do com esta mistura é o da
leveza, já acentuada pelas for-
mas graciosas da talha do “esti-
lo Brito”. Tal aspecto de leveza
é ainda reafirmada pela presen-
ça das janelas que inundam de
luz todo o presbitério.

Ilustração 10 - Retábulo da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Pilar


(Ouro Preto, MG)

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 9

Ilustração 11 - Anjo, Francisco Xavier de Brito, Igreja de Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto, MG)
Há um encantamento no olhar daquele que se volta
mais de perto para o retábulo da capela-mor da Igreja
de Nossa Senhora do Pilar. Tudo ali é riqueza de com-
posição, requinte, bom gosto, esmero no trabalho de en-
talhamento da madeira, de douração de seus adornos e
conhecimento profundo da técnica da torêutica. Na o-
bra, prevalecem movimentos barrocos impetuosos por
excelência, e os motivos fitomórficos, que se espalham
em profusão pela superfície do retábulo, que adornam a
base das peanhas onde se apoiam os anjos, que sobem
pelo fuste* espiralado do colunelo salomônico*. Tudo ali
é movimento e sensibilidade. Há também conhecimento
acurado de anatomia. Veja-se, por exemplo, o anjo ajoe-
lhado ao centro da foto, com uma policromia que o dis-
tingue dos demais. Sua atitude orante, expressa na po-
sição do corpo e dos braços em louvação, lembra-nos
Ilustração 12 - Retábulo lateral da aquela teatralidade de que tratamos ainda há pouco.
Ig. N. Sr.ª do Pilar
Na igreja de Nossa Senhora do Pilar podem ser encon-
tradas obras de outros autores do final do século XVIII
ou início do XIX. Veja-se, por exemplo, a extraordinária
Nossa Senhora da Piedade, feita a partir do modelo ita-
liano criado pelo gênio de Michelangelo Buonaroti. O
movimento é idêntico ao da escultura original, com a

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 10

mesma carga dramática daquela que Michelangelo sou-


be externar em seu bloco marmóreo. A escultura brasi-
leira tem uma força expressiva ímpar. A posição e sem-
blante do Cristo morto, como também o clima de dor em
que Nossa Senhora encontra-se imersa, são magistral-
mente captados pelo autor.

Ilustração 13 - Pietà, Michelangelo,


1505, Vaticano.

Ilustração 14 - Nossa Senhora da Piedade, Xavier de Brito,


Igreja N. Sr.ª Pilar (Ouro Preto, MG)
As duas esculturas 2 , entretanto, apresentam diferenças
que vão além da policromia da obra brasileira: a cabeça
do Cristo na versão mineira encontra-se mais à mostra
do que a de seu congênere italiano, estando ligeiramen-
te alteada, permitindo ao fiel uma visibilidade maior do
semblante do Salvador; o corpo de Maria, embora ainda
guarde alguma desproporcionalidade entre as dimen-
sões de um corpo feminino para o de um homem, apre-
senta, na obra de Ouro Preto, proporção mais naturalis-
ta; enquanto o semblante de Maria, na obra de Miche-
langelo, mergulha num mundo de dor no qual não con-
seguimos penetrar, no trabalho de Xavier de Brito, Ma-
ria fita corajosamente, não sem deixar de transparecer
uma dor lancinante, o corpo de seu filho que jaz em
seus braços.

2
Atrás de Nossa Senhora, à direita da foto, vê-se um fragmento da pia batismal.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 11

A figura emblemática da arte brasileira do período colo-


nial é Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), o Aleijadi-
nho, um artista extraordinário, cuja arte nem sempre é
compreendida dentro da dimensão que lhe cabe. Para
alguns, a importância de Aleijadinho decorre de seu
trabalho ter-se afirmado como exemplo da superação de
um homem excluído na sociedade colonial: mestiço, de-
ficiente físico e trabalhador incansável durante a tercei-
ra idade.

O elemento nacional

A imagem do atlante* mostrado


ao lado bem traduz a importân-
cia do trabalho do artista em seu
tempo. Situada sob a imposta*
do coro de cima* da Igreja de
Sabará, pode-se perceber nesta
obra de onde Aleijadinho extraía
os elementos visuais que serviam
de base para sua criatividade.
Se olhamos a obra, sentimo-nos
diante do trabalhador que atua-
va nas minas de ouro da região,
a deslocar sacos de terra sobre
os ombros.
Em seus braços viris, vêem-se
veias que correm sob a pele
castigada pelo sol, percebe-se a
força de uma musculatura mode-
lada com extremo esmero, sente-
se a exaustão do esforço físico
do trabalhador, mas sem perder
a delicadeza dos detalhes rocail-
les no capitel* e na parte inferior
da escultura. Seu olhar volta-se
para baixo, numa resignação que
nos faz lembrar os espíritos
humildes e trabalhadores.
A obra rococó normalmente é
assinalada pela delicadeza e
pelo feminino. Mas, neste traba-
lho, ela assume as cores e a
dimensão de uma realidade tipi-
camente brasileira, naqueles
anos de abastança provocada
pelo ouro.
Ilustração 15 - Atlante da Igreja de Sabará, Antônio Francisco Lisboa
Isto é verdade, mas não é por causa de suas dificulda-
des que as contingências da vida lhe reservou que seu
trabalho adquire importância. A obra de Antônio Fran-
cisco Lisboa, se pudesse ser vista independentemente

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 12

das condições que marcaram sua vida dramática, teria


importância artística e dimensão internacional. Não é
casual, aliás, que grandes historiadores da arte estran-
geiros tenham-se interessado pelo trabalho do mestre
mineiro, como John Bury, German Bazin, Robert Smith
e Piero Maria Bardi, este último radicado no Brasil.
A descoberta do Barroco e de Aleijadinho

Aleijadinho foi objeto de interesse de investigadores e de


viajantes desde o século XIX, mas só começou a ser valo-
rizado a partir da década de 1930, principalmente após
a criação do IPHAN, ocorrida em 1936. Os estudos sobre o
Barroco se iniciaram naquele ano, mas os tombamentos
só ocorreram a partir de novembro de 1937, quando o
Decreto-lei n.º 25/37 foi criado. Somente a partir dessa
época, aliás enquanto os países do Eixo valorizavam
uma arte de inspiração clássica, é que tanto o Barroco
quanto o Rococó começaram a ser estudados por alguns
poucos intelectuais europeus e brasileiros.
Entre aqueles que se interessaram pelo Barroco e o Ro-
Ilustração 16 - Nave e coro de
cima da Ig. de N. S. das Mercês cocó no Brasil, apontam-se os nomes de Rodrigo Mello
de Sabará (MG) Franco de Andrade, Lúcio Costa, Carlos Drummond de
Andrade, Gustavo Barroso, Paulo Santos, Ayrton de Car-
valho, Luiz Saia além de outros. Cecília Meireles, Blaise
Cendras, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e ou-
tros intelectuais participaram de um amplo esforço de re-
descoberta do Brasil a partir da era colonial.
A obra de Aleijadinho incorporou, naqueles anos de bus-
ca por uma identidade nacional, as cores e o típico da ar-
te nacional. Aos olhos dos estudiosos da época, o traba-
lho de Aleijadinho representava o início de uma arte ver-
dadeiramente nativa, com a fixação do mestiço e a con-
cepção de uma arte marcada mais pela expressividade
do que pela busca de um belo ideal.
O Expressionismo, aliás, era um estilo que havia despon-
tando no Brasil e no mundo num passado bastante re-
cente. Lasar Segal e Anita Malfatti haviam expostos tra-
balhos expressionistas pouco antes da Semana de Arte
Moderna de 1922.
Devido à extrema valorização que sua obra passou a ter
no meio historiográfico, o mercado de arte começou a se
interessar também pelo mestre mineiro. Lamentavelmen-
te, a maior dificuldade para o estudo desse artista hoje é
a grande quantidade de obras falsas que lhe são atribu-
ídas.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 13

Ilustração 17 - Retábulo capela-mor Ig. da Ordem Terceira de N. Sr.ª das Mercês, Sabará (MG)

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 14

Aleijadinho foi, sobretudo, escultor e entalhador, embo-


ra haja também uma discussão em torno de seu envol-
vimento ou não com a arquitetura. Parece-nos factível
afirmar que Aleijadinho tenha sido também um arquite-
to, se consideramos que o Barroco é um estilo marcado
pela unidade, ou seja, todas as técnicas de arte são em-
pregadas de maneira concorrente com vistas a atingir
um determinado objetivo estético. A igreja da Ordem
Terceira de Nossa Senhora das Mercês, em Sabará,
possui várias intervenções de Antônio Francisco Lisboa,
conquanto não seja o prédio um projeto do mestre mi-
neiro, mas sim de Tiago Moreira, que recebeu 32 oita-
vas no ano fiscal de 1762-3 por seu trabalho. O coro de
cima*, a balaustrada da nave, os púlpitos e as escultu-
ras de São Simão Stock e São João da Cruz, no entanto,
demonstram como Aleijadinho atuou de maneira criati-
Ilustração 18 – Fachada da Igreja va nesta edificação, contribuindo para a formação de
da Ordem 3.ª de Nossa Senhora das
Mercês (Sabará)
uma ambiência tanto barroca quanto rococó rica e ele-
gante.
Os retábulos, tanto o da capela-mor quanto os colate-
rais, são do mestre entalhador e escultor Francisco Vi-
eira Servas. O retábulo é uma obra que pertence à cate-
goria dos chamados “bens integrados” – colocados atrás
da mesa do altar, eles são feitos para serem incorpora-
dos à arquitetura e só fazem sentido se vistos em sua
ambiência original. Por isto, é preciso que o entalhador
tenha um conhecimento profundo de arquitetura para
fazer um retábulo que sirva aos propósitos da arte des-
tinada à devoção. Veja-se o retábulo da capela-mor da
igreja das Mercês de Sabará, que apresenta uma solu-
ção situada entre o Barroco e o Rococó de certa beleza
graciosa e contida. O emprego do branco com apenas
alguns adornos dourados confere um ar mais leve a es-
ta obra de talha e ao próprio espaço do presbitério. As
rocalhas e o arremate que serve de coroamento na altu-
ra do entablamento dão a marca do período a toda a
composição. O colunelos clássicos e as mísulas que en-
quadram o camarim* afastam-se da tradição barroca
dos colunelos espiralados.
Os retábulos colaterais apresentam imagens da própria
lavra de Aleijadinho, que as executou para a devoção de
São Simão Stock e São João da Cruz. São obras de
grande poder expressivo, como se pode ver nas imagens
que se seguem. São Simão estende, num gesto de sen-
sível dramaticidade, sua mão direita, da qual apareceria
pendido um escapulário, que lhe teria sido entregue pe-
la própria Nossa Senhora numa aparição. Segundo a

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 15

tradição cristã, o escapulário teria por função livrar das


chamas do inferno quem o utilizar. Por esta razão, na
iconografia deste santo, tanto ele pode aparecer com o
escapulário, quanto com as chamas.

Ilustração 19 - Retábulo de São


Simão Stock

Ilustração 20 - Retábulo de São Simão Stock, de Aleijadinho


(Ig. N. Sr.ª das Mercês, detalhe da imagem)
O retábulo, visto na ilustração 10, tem um gosto rococó,
como já foi dito, pela sensibilidade ao virtuosismo deco-
rativista, com a recorrência de motivos rocaille, e a leve-
za pela conjugação do branco com o esparsamente dou-
rado presente nas molduras e adornos. As cores em
tons pastéis no camarim do retábulo, toda decorada
com motivos florais, remetem ao gosto rococó que então
se desenvolvia.
Observe-se o panejamento das vestes dos dois santos,

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 16

que tem movimento e graciosidade, além de marcar


uma técnica de policromia típica da imaginária* barroca
e rococó, onipresente em várias localidades brasileiras 3 :
o esgrafito*. Esta técnica é o que permite o artista pin-
tor a fazer aquelas delicadas filigranas em ouro que a-
parecem ornando as vestes dos santos. Os desenhos
são obtidos esfregando-se um estilete ou brunidor sobre
a camada externa de tinta até se desvelar a camada in-
ferior da tinta, no caso, uma película de ouro.

São João da Cruz

São João da Cruz era um santo


de origem espanhola, nascido
em pleno Renascimento numa
localidade próxima à cidade de
Ávila. Descendente de uma
família de nobres, mas arruina-
dos financeiramente, São João
foi confessor e orientador espi-
ritual de Santa Teresa de Ávila.
Em sua iconografia, São João
aparece segurando uma cruz,
numa alusão à simplicidade em
que vivia, pois, em sua cela,
nada além de um crucifixo exis-
tia. Assim ficaria conhecido por
seus colegas de clausura: João
da Cruz.
Foi professor da universidade
de Salamanca e reformou a
ordem dos carmelitas, com a
ajuda de Santa Teresa. Escre-
veu inúmeros trabalhos teológi-
cos e foi reconhecido santo em
1726.
São João da Cruz costuma ser
representado também com um
livro aberto, já que passou a ser
considerado santo doutor da
Igreja a partir de 1926.
É considerado padroeiro dos
poetas espanhóis.

––––––––

Ilustração 21 – São João da Cruz , de Aleijadinho


(Ig. N. Sr.ª das Mercês de Sabará)

3
Na Bahia não houve esse tipo de esgrafito, por ser mais escasso e, portanto, caro o comércio de ouro naquela
região. Todavia, a policromia baiana foi uma das mais criativas do Brasil, com uma diversidade de cores e
soluções inteiramente inovadoras para o artista da época.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 17

A igreja da Ordem Terceira de São Francisco de As-


sis em Ouro Preto é um significativo exemplo da obra de
Aleijadinho em Ouro Preto.

Ilustração 22 - Igreja de São Francisco de Assis da Penitência, Ouro Preto


Nas antigas cidades ligadas direta ou indiretamente à
economia do ouro, só havia as igrejas ligas ao clero se-
cular (igrejas paroquiais), sendo proibidas, pelo rei, as
ordens primeiras (ordens monacais ou mendicantes
masculinas) e segundas (ordens monacais ou mendi-
cantes femininas).
A ordem terceira de São Francisco de Assis sempre es-
teve relacionada aos setores mais abastados da socie-
dade colonial. Toda ordem terceira, aliás, tem sempre
uma relação com determinados segmentos da sociedade
de seu tempo: as ordens terceiras do Rosário, por e-
xemplo, eram normalmente relacionadas a comunida-
des negras; as ordens terceiras de São José eram as dos
marceneiros; Nossa Senhora da Conceição, dos portu-
gueses; Nossa Senhora do Pilar, dos espanhóis etc. A
Ordem Terceira de São Francisco era a comunidade dos
ricos da cidade. É um fato a ser observado, aliás, que o
casario circundante a uma igreja da ordem terceira de
uma cidade tende a ser assobradado e numa escala
maior do que o do resto da cidade.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 18

Aleijadinho trabalhou para os setores mais ricos da so-


ciedade da antiga Vila Rica. Seus trabalhos eram muito
valorizados já em seu tempo – ele não faz o tipo român-
tico do artista cujo reconhecimento só ocorreria após a
morte. Ele tinha uma oficina numerosa, onde atuavam
ajudantes, aprendizes e escravos, sendo o escravo Mau-
rício o mais importante que trabalhava para ele. Na i-
greja das Mercês em Sabará, por exemplo, os retábulos
não foram feitos por ele porque a comunidade não pôde
arcar com um orçamento tão elevado quanto o mestre
escultor lhes pedira. 4

A fachada da igreja de São


Francisco

Antônio Francisco Lisboa exe-


cuta, nesta igreja, um dos mais
importantes conjuntos de obras
de sua lavra. Esculpido em
pedra sabão, o conjunto de
relevo do frontispício se divide
em duas partes: a composição
que arremata a parte superior
da porta principal e o relevo
circular à altura da cornija*. Na
parte de baixo, vê-se uma com-
posição rococó de partido pi-
ramidal, onde se percebem a
efígie da Virgem dominando a
composição, sob a coroa de
espinhos de Cristo e, no meda-
lhão superior, vê-se a imagem
de São Francisco de Assis rece-
bendo os estigmas de Cristo.
O efeito monumental da porta-
da, com o adorno na sobrever-
ga* e espalhando-se por sobre a
superfície do frontispício é
grandioso e praticamente domi-
na todo o frontispício.
A fachada apresenta um dina-
mismo instigante, pela presença
das curvas desse relevo, mas
também pela sucessão dos pla-
nos que se alternam da torre
sineira* em forma circular,
arrematadas por campanários*
bulbosos, e o plano do frontis-
pício.
Ilustração 23 - Detalhe do frontispício da
Igreja S. Francisco de Assis (Ouro Preto)

4
Cf. BAZIN, Germain. Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, [1982]. p. 92-3. v. 1

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 19

O interior da igreja de São Francisco de Assis apresenta


o trabalho de talha do retábulo do altar-mor, como ex-
pressão mais genuína da arte rococó na antiga Vila Ri-
ca. O trabalho é marcado pela leveza e pela graça, ven-
do-se pinturas sobre a madeira imitando-se pedras e
outros materiais mais nobres. Predominam as cores
claras e os tons pastéis, tudo arrematado por dourações
em detalhes e molduras de superfície apaineladas.

Ilustração 24 - Retábulos laterais, do


risco de Aleijadinho, mas executa-
dos em 1829 por Vicente Álvares da
Costa

Ilustração 25 - Retábulo a capela-mor da Ig. da Ordem Terceira de São


Francisco de Assis em Ouro Preto
No teto da Igreja de São Francisco aparece uma pintura
de Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), bem ao gênero
do ilusionismo barroco, mas apresentando a leveza e a
feminilidade da pintura rococó. Trata-se de uma Nossa
Senhora da Conceição, retratada num céu em glória.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 20

Ilustração 26 - Teto da Ig. São Francisco de Assis de Ouro Preto, por Manuel da Costa Ataíde (1775)

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 21

Em Congonhas do Campo, Aleijadinho imortalizou seu


estilo e gênio através de um conjunto escultórico que é
referência cultural para a humanidade, já que é inscrito
no livro de patrimônio da humanidade da UNESCO. Tra-
ta-se da igreja de Bom Jesus de Matosinhos, havendo
dois conjuntos execurtados pela oficina de Aleijadinho
remarcáveis: o primeiro, situado na rampa de acesso ao
adro* e à igreja propriamente dita, é constituído de es-
culturas entalhadas na madeira dos Passos da Paixão
de Jesus Cristo; o outro conjunto é formado pelas es-
culturas em pedra sabão dos profetas do Antigo Testa-
mento.

Ilustração 27 - Os Passos da Paixão da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo (MG)
Diante da paisagem do Santuário de Bom Jesus, o via-
jante se dirige instintivamente aos Passos da Paixão, a
espreitar seu interior. Lá dentro, ele vê imagens escul-
pidas por Aleijadinho e pintadas por Ataíde. No dia de
nossa visita ao lugar, as obras se encontravam sendo
acondicionadas para fins de proteção. As esculturas de
Aleijadinho são hoje muito requeridas pelos museus es-
trangeiros, que as pedem em empréstimo à cúria dioce-
sana e ao governo brasileiro para participarem de mos-
tras no exterior. Essa prática tem ajudado a difundir a
arte brasileira no exterior, mas tem-se revelado também
danosa ao próprio patrimônio cultural brasileiro.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 22

Ilustração 28 - Esculturas de Aleijadinho num dos Passos da Paixão (Santuário de Bom Jesus de Matosinhos,
Congonhas do Campo, MG)
O Brasil tem uma legislação destinada a impedir a ex-
portação de obras de arte relevantes para o estrangeiro.
Além do Decreto-lei 25, de 30 de novembro de 1937, que
impede a saída de obras tombadas, há também a lei
4.845, de 19 de novembro de 1965, que proíbe a saída
de obras produzidas no Brasil até o fim do período mo-
nárquico ou incorporadas dentro desta mesma época.
Como parecerista do IPHAN, tive oportunidade de anali-
sar, entre vários casos, o de um empréstimo de trabalhos
de Aleijadinho que acabavam de ser restaurados e iam
para uma exposição no Vaticano. O Conselho Consultivo,
que analisou o caso, promoveu acesa discussão sobre o
assunto e, em decisão inédita, negou a saída das obras,
após votação acirradíssima.
A discussão abordou a questão do desfalque à unidade
barroca que tal empréstimo representaria, a reciprocida-
de exigida pela lei 4845/65, que não estava sendo cum-
prida, e o prejuízo ao turismo para Minas Gerais e, em
corolário, para o Brasil. Uma curiosidade: dentro do tem-
po previsto para a duração da exposição, o banco res-
ponsável pela promoção do evento faliu... Imaginem-se os
percalços que as obras de Aleijadinho não enfrentariam
para regressar ao Brasil.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 23

As esculturas que alindam o adro da Igreja de Bom Je-


sus de Matosinhos são importantíssimas por se confi-
gurarem na mais expressiva e completa coleção escultó-
rica no mundo a representar os profetas do Antigo Tes-
tamento. O historiador da arte John Bury compara-as
àquelas feitas por Claus Sluter e por Michelangelo. As
esculturas, vistas ao longe, desempenham função de
pináculos* colocados estrategicamente no adro da igre-
ja. Vistas de perto, são obras de arte marcadas pela ex-
pressividade e lirismo.

Ilustração 29 - Igreja de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo (MG)


O edifício da igreja foi erguido por Antônio Rodrigues
Falcato e Francisco de Lima Cerqueira, pedreiros, e por
Antônio Gonçalves, carpinteiro, a partir do risco elabo-
rado por um desconhecido. Mas a intervenção de Alei-
jadinho e sua oficina no adro da igreja enobrece o espa-
ço com a dignidade de uma coleção escultórica única no
Brasil e no mundo.
Logo na entrada da escadaria que dá acesso ao adro da
igreja, o visitante depara-se com duas esculturas de
profetas: Isaías, à esquerda de quem olha, e Jeremias.
Isaías, o profeta que relata com maior precisão a vinda
do messias, afirmando que Ele morreria pelos pecados
da humanidade, aparece retratado na obra de Aleijadi-
nho com aquela dramaticidade peculiar.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 24

Ilustração 30 - Os profetas Isaias (primeiro plano), Baruc (à esquerda, 2º plano), Jonas (à esquerda, 3º plano) e
Daniel (à direita, 3º plano), por Antônio Francisco Lisboa.

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Arte do Brasil colonial 25

Isaias aponta firmemente para o pergaminho que tem


em mãos. Vêem-se, no rosto e no corpo do profeta, al-
guns traços típicos da arte de Aleijadinho: a fisionomia
do profeta é grave e seu corpo tem uma gestualidade te-
atral; os olhos do personagem retratado são amendoa-
dos, numa alusão à etnia negra que era vista nas minas
povoadas de escravos; a barba do personagem aparece
tratada em profusão, saindo o bigode das narinas; no
caso específico dos profetas de Congonhas do Campo,
vê-se a influência do chamado turquismo, uma das in-
flexões que o Barroco apresentaria na Europa e que, no
Brasil como na própria América Latina, teria recorrên-
cia raríssima.

Os profetas de Aleijadinho

Na escadaria que sobre pela


direita de quem chega à igreja,
vêem-se os profetas Jeremias
no primeiro plano, tendo, atrás
de si e à direita do observador,
no segundo plano, a imagem de
Ezequiel. Na extrema direita
da foto, no 3º plano, vê-se Joel
e, na extrema esquerda, Osei-
as.
Há um dado interessante no
ordenamento destas esculturas
que pode ser vista na foto ante-
rior. Pela sua disposição, é
possível ver uma hierarquia
entre elas, distinguindo-se os
profetas maiores dos menores.
As quatro primeiras esculturas,
situadas no primeiro e segundo
lanços da escada, eram para
ser as dos profetas maiores –
Isaías, Jeremias, Ezequiel e
Daniel. Mas este último profeta
encontra-se situado no último
plano, junto aos chamados
profetas menores. Em seu lu-
gar, vê-se a imagem de Baruc.
O que teria se passado para
que Aleijadinho tivesse feito
essa troca? Ou teria sido mera
coincidência estarem reunidas,
logo no início da escadaria,
três dos quatro profetas maio-
res?

Ilustração 31 - Jeremias no primeiro plano, Ezequiel, no segundo plano,


Joel, na extrema direita da foto, e, à esquerda, Oseias.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 26

O turquismo pode ser visto nos turbantes usados pelos


profetas, como também no coruchéu* de algumas igrejas
mineiras. No Santuário de Bom Jesus, vê-se essa alu-
são ao Oriente Próximo na abóbada dos Passos da Pai-
xão, que assinala também essa influência que grassou
na Europa na segunda metade do século XVII, quando
os otomanos expandiram seu poderio econômico e mili-
tar.
As esculturas de Aleijadinho são todas feitas em pedra
sabão, um mineral excelente para a prática da escultu-
ra, mas de baixa dureza. Não apresenta, assim, muita
resistência à ação da intempérie ou mesmo à ação hu-
mana quando mal intencionada, provocando danos ir-
reparáveis à obra de arte. Veja, na imagem de Jeremias,
o desgaste provocado pelo tempo, com perdas significa-
tivas em toda extensão do rosto do profeta.

Ilustração 32 - Detalhe da escultura de Jeremias, por Aleijadinho


Existe ainda um outro problema que se constitui como
o mais inadmissível de todos: trata-se dos atos de van-
dalismo cultural praticados contra essas obras de arte.
Alguns turistas têm por hábito inscreverem seus no-
mes, com a ajuda de um canivete ou de uma simples
chave, nas obras de arte que enfeitam o adro do santu-
ário.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 27

Em algumas obras, como a que representa o profeta


Jonas, foram feitas marcas em toda extensão do ser
marinho que acompanha a iconografia do profeta. O
que passará pela cabeça do “Araújo”, do “A.A.C.”, da
“Elza” e de outros seres que se comprazem em inscrever
seus nomes na história universal do vandalismo?

Ilustração 33 - Detalhe da escultura do profeta Jonas, com atos de vandalismo.


Mas os atos de vandalismo não acabam por aí. Há ca-
sos em que pessoas simplesmente arrancaram parte
das esculturas e levaram consigo como “souvenir”, con-
forme se pode verificar, sobretudo, nos dedos arranca-
dos de vários profetas, como do próprio Jonas e Amós.
Diante desses problemas, pergunta-se se já não seria
hora de o poder público municipal, em parceria com en-
tidades governamentais investidas da preservação do
patrimônio cultural, providenciarem a remoção dessas
esculturas para um museu de arte naquela cidade?
A escultura de Davi, de Michelangelo Buonaroti, foi co-
piada por artista contratado pelo governo para depois
ser transferida para o interior de um museu, onde se
encontra a salvo da erosão provocada pela intempérie,
como também das práticas de vandalismo perpetradas
Ilustração 34 - Escultura de Amós, por espíritos obscuros que andam por aí. Por que não
sem os dedos. se faz o mesmo com a obra de Congonhas do Campo?

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Arte do Brasil colonial 28

Rio de Janeiro
Em 1763, o Rio de Janeiro é transformado no centro
administrativo da Colônia, o que o beneficiaria, com o-
bras destinadas ao seu aprimoramento urbano. No en-
tanto, desde o governo de Antônio Gomes Freire de An-
drade (1733-1763) que esses trabalhos de aparelha-
mento da cidade vinham tomando vulto provocado pelo
seu crescimento populacional.

Ilustração 35 - Aqueduto da Carioca, 1747 a 1750, segundo o risco de José Fernandes Pinto Alpoim
Uma obra destinada a aprimorar o abastecimento de
água da cidade foi o Aqueduto da Carioca, que ficaria
conhecido como Arcos da Lapa, construído a partir do
risco do Brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim (1700-
1765). Alpoim foi um engenheiro militar responsável pe-
la construção de várias obras no Rio, como o claustro
do Mosteiro de São Bento, o Paço da Cidade, o convento
de Santa Teresa e o da Ajuda, além de outras aqui e em
outras capitanias. As obras estenderam-se entre 1747 e
1750, sendo feitas com pedras da região, embora se ti-
vessem as pedras do reino, o lioz, como melhores para
construção de uma obra desta natureza, mas, por isto
mesmo, muito mais caras.
Este equipamento urbano* permitiu que a cidade resol-
vesse a questão do abastecimento, municiando-a com a

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 29

canalização da água do Rio da Carioca, que nascia no


Morro do Desterro, atual Santa Teresa, e era levada até
o Largo de Santo Antônio, hoje Largo da Carioca, onde
se fez construir um chafariz.
Trata-se de um gênero construtivo inventado pelos ro-
manos e difundido pelo mundo tempo afora, sem apre-
sentar praticamente alteração alguma desde a época de
seu invento. A técnica construtiva permitia o escoamen-
to da água ao longo de vários quilômetros, aproveitan-
do-se dos declives suaves do terreno. O chafariz da Ca-
rioca não era o ponto terminal do abastecimento. Alpo-
im pensou na continuidade da obra e estendeu-a sub-
terraneamente pela rua do Cano, atual 7 de setembro,
até o Largo do Carmo, atual Praça XV de Novembro,
onde o Mestre Valentim da Fonseca construiu um cha-
fariz.

Ilustração 36 - Chafariz do Largo do Carmo, de Mestre Valentim da Fonseca, e, à esquerda, o Paço da cidade.
O chafariz do Mestre Valentim da Fonseca situava-se
no cais principal da velha cidade do Rio de Janeiro. Ne-
le, abasteciam-se os navios que aportavam e que preci-
savam de água doce para seguir viagem. Valentim da
Fonseca fez o chafariz encimado por um pináculo na
parte superior, arrematado por uma esfera armilar,
símbolo do império português. O diminuto terraço sobre
o chafariz é cercado de uma balaustrada circundante,

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 30

em cujos vértices o arquiteto colocou um pináculo me-


nor. Observem-se as escadarias que ladeiam o chafariz,
que desciam antigamente até o nível do mar. Antiga-
mente, os escaleres, vindos dos navios, atracavam nesta
escadaria, para que os visitantes da cidade pudessem
aportar, como se pode ver nos ovais de Leandro Joa-
quim.

Ilustração 37 - Paço da cidade, Jose Fernandes Pinto Alpoim.


Ao fundo da imagem, à esquerda, vê-se o Paço da cida-
de, a casa do governador da capitania e que se trans-
formou no palácio do governo desde a chegada da corte.

A engenharia colonial

A utilização dos arcos abati-


dos, como o que se vê na foto-
grafia ao lado, foi uma cons-
tante na arquitetura colonial.
Não se tratava apenas de um
recurso de natureza estética.
Havia uma razão de ser desses
arcos elegantes e que marcam
quase sempre as edificações da
fase colonial: conseguir-se
vencer maiores vãos, tornando-
os mais estáveis e resistentes
com o uso dos arcos abatidos.

Ilustração 38 - Entrada do Paço, de José Fernandes Pinto Alpoim

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 31

A edificação encontra-se hoje prejudicada pela presença


daquele arranha-céu que se vê ao fundo, erguendo-se
pelo lado esquerdo da foto. É um dos problemas que se
depara quando não se observa a questão do entorno
dos bens tombados. Não se trata do contraste entre o
novo e o velho, o que até pode torna-se instigante e in-
teressante, se usado com gosto e parcimônia. O que de-
ve ser evitado é o confronto de escalas distintas de dois
tempos radicalmente opostos. A volumetria de um arra-
nha-céu, com seu sentido concentrador (de espaço, de
aportes materiais etc.), padronizador e tecnológico nada
tem a ver com a escala contida e humana de um prédio
colonial.

A antiga Sé

A antiga Sé do Rio de Janeiro


situava-se originalmente no
cimo do Morro do Castelo. À
medida que a cidade foi cres-
cendo e espraiando-se pela
várzea, onde hoje se situa a
Praça XV e arredores, a popu-
lação começou a assistir as
missas nas igrejas das ordens
terceiras, bem como nas dos
conventos de Santo Antônio e no
Mosteiro de São Bento. Os
clérigos da Sé desejaram então
ocupar um novo espaço situado
na parte plana da cidade e
tentaram alojar-se em diversos
lugares: a Igreja de São José,
que recorreu ao rei e venceu a
disputa com o cabido; a do
Rosário, cuja comunidade a-
bandonou o imóvel e deixou-o
estragar-se por completo; numa
nova igreja situada no Largo de
São Francisco, cuja construção
foi abandonada em meio.
Quando da chegada da corte,
Dom João determinou que a Sé
ficasse instalada no antigo
convento do Carmo, no Largo
do Carmo, o que foi comemora-
do pela cidade, que não manti-
nha, com esta ordem religiosa,
uma relação muito amigável.
Os carmelitas foram transferi-
dos para a atual igreja da Lapa.
Ilustração 39 - Antiga Sé do Rio de Janeiro, originalmente Igreja da Ordem
Primeira do Carmo

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Arte do Brasil colonial 32

A fachada da Igreja da Ordem Primeira do Carmo, a


Antiga Sé, não é uma construção de época. Nas décadas
de 1920 e 30, houve um movimento chamado “neocolo-
nial”, que procurou valorizar o Barroco como expressão
maior da arte brasileira, num momento histórico em
que a História da Arte vinha resgatando a arte da era
colonial no Brasil, como já foi assinalado anteriormente.
Esse movimento redundou numa arte marcada por um
gosto sensível ao exagero barroco e rococó. A fachada
dessa igreja, como também a Igreja da Lampadosa, si-
tuada na Avenida Passos, sofreram modificações radi-
cais e ganharam esse vocabulário neobarroco, que se
nota na imagem anterior.

Os retábulos laterais da
antiga Sé
A restauração feita em 2008 em
toda obra de talha que adorna a
antiga Sé permitiu ao visitante
atual recuperar a impressão que
a obra de talha original causara
na população da época.
Esse retábulo em devoção a São
João Batista bem ilustra a bele-
za e o requinte do estilo do
século XVIII. Observe-se que o
retábulo utiliza o branco e o
dourado, como características
da arte torêutica da fase rococó.
Há leveza e requinte nesses
colunelos salomônicos, com
fuste espiralado, que sobe em
movimento dinâmico, ao lado
das mísulas douradas.
No entablamento, vêem-se ar-
rancos de frontão apoiados
sobre os colunelos salomônicos,
tendo ao centro um frontão ao
gosto Dona Maria, com apli-
ques em dourado e adornos
próximos ao Rococó.
A imagem de São João Batista
parece ser do final do século
XVIII ou início do seguinte. A
igreja foi remodelada durante o
século XIX, havendo alguns
trabalhos em talha que imitam o
estilo Rococó. Algumas pinturas
apresentam um vocabulário do
século XIX.

Ilustração 40 - Retábulo de São João Batista

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Arte do Brasil colonial 33

Ilustração 41 - Capela-mor da Igreja do Carmo, antiga Sé do Rio de Janeiro.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 34

Desde a fundação da cidade que já existia uma edifica-


ção religiosa no local, ao que parece em devoção a Nos-
sa Senhora do Ó. No século XVIII, houve o alargamento
dos edifícios e a construção de outros na área hoje ocu-
pada pela Praça XV de Novembro. A construção da igre-
ja atual é de 1761 e a fachada que foi perdida no século
XX havia sido remodelada por Pedro Alexandre Cravoé,
um arquiteto neoclássico.

Ilustração 42 - Nave central e capela-mor Igreja de Nossa Senhora do Carmo


O interior da igreja de N. Sr.ª do Carmo, a antiga Sé, a-
inda guarda a obra de talha rococó original, que é de
Inácio Ferreira Pinto, o mesmo toreuta atuante na cape-
la-mor da Igreja de Nossa Senhora de Monserrate do
Mosteiro de São Bento. É interessante notar que a talha
dessa igreja apresenta uma grande uniformidade, de-
monstrando tratar-se do mesmo artista que a realizou
em sua totalidade. Sem dúvida, trata-se de uma das i-
grejas mais importantes do Rococó no Brasil.
A pintura sobre o teto da capela-mor, bem como os o-
vais que adornam o exterior das capelas laterais são de
artista do século XIX, com formação acadêmica. É im-
portante assinalar que Thomas Driendl (1848-1916), o
célebre arquiteto e paisagista oitocentista, atuou em vá-
rias igrejas fluminenses, ao lado do pintor de origem a-
lemã Georg Grimm (1846-1887).

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 35

A igreja de São Pedro dos Clérigos é uma edificação


que não compõe mais a paisagem cultural da cidade do
Rio de Janeiro. Foi destruída em 1943, à época da aber-
tura da Avenida Presidente Vargas. E não apenas ela,
mas também a do Bom Jesus do Calvário, com uma fa-
chada neoclássica, construída a partir de 1776, além de
outros bens, perderam-se por ocasião da abertura da-
quele eixo viário monumental. A igreja dos Clérigos foi
concluída em 1738, a partir do traço do engenheiro mi-
litar José Cardoso Ramalho.

As obras da grande avenida

A perda dessa igreja foi um dos


acontecimentos mais danosos
ao patrimônio cultural brasilei-
ro. Desde o início da década de
1940, houve uma intensa luta
por sua preservação, mas os
“defensores do progresso”
saíram vencedores da disputa.
Não há dúvidas de que a aber-
tura da avenida era uma melho-
ria urbana necessária à cidade.
Mas houve uma proposta que,
sem impedir a abertura da ave-
nida, procurava garantir a
preservação do templo.
Rodrigo Melo Franco de An-
drade, presidente do IPHAN,
sugeriu que a grande avenida
contornasse o templo, a exem-
plo do que se faria na Igreja da
Candelária, que também estava
localizada na rota de destruição
da abertura da avenida.
A Candelária, que era marcada
mais pelo gosto neoclássico do
que pelo rococó, foi preservada,
numa época em que se valoriza-
va o neoclassicismo como o
grande estilo de arte.

Ilustração 43 - Igreja de São Pedro dos Clérigos, Centro do Rio de Janeiro,


destruída em 1943 (Fotografia Gentileza Arquivo Central IPHAN)
A igreja dos Clérigos era, em vários aspectos, represen-
tativa do Rococó brasileiro, possuindo planta em forma
de oito, sendo adornada, em seu interior, por uma talha
rica, marcada por adornos rocailles e pela pintura em
branco com dourado, o que torna o ambiente leve, como
se viu na antiga Sé. As plantas das igrejas da era Roco-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 36

có eram em forma dinâmica, podendo ser octogonal, em


oito ou mesmo com o movimento semelhante ao que se
vê na planta de São Francisco de Ouro Preto.

Ilustração 44 - Capela-mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos (Fotografia Arquivo Central do Iphan)

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 37

Diferenças entre o Barroco e o Rococó

Sendo um estilo da nobreza e não especificamente da re-


aleza, o Rococó originalmente não assume aquela dimen-
são palaciana que a arte barroca possui com frequência.
Suas construções são numa escala menor, mais adequa-
da a ambientes aristocráticos e sem o viso do poder mo-
nárquico absolutista – rico, vertiginoso, ilusório. É sempre
importante lembrar que o Barroco não se confunde com o
Rococó: o Barroco nasce na Itália no final do século XVI e
será o estilo característico do século seguinte, perduran-
do ainda em vários locais por todo o século XVIII, en-
quanto que o Rococó nasce na França no início do século
XVIII e dura menos de um século; o Barroco associa-se
ao poder absolutista e à Contra-reforma, razão porque
possui um sentido solene, majestoso e doutrinário, en-
quanto que o Rococó é o estilo da aristocracia francesa, e
se caracteriza pela leveza e a frivolidade; as plantas bar-
rocas normalmente são retilíneas, enquanto que as de i-
grejas rococós são movimentadas.

Ilustração 45 - Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, de José Cardoso Ramalho


Um exemplo típico de uma edificação religiosa rococó é
a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, que
alinda a paisagem do Aterro do Flamengo. O culto a es-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 38

sa invocação da Virgem já se verificava numa gruta e-


xistente no local desde o século XVII, passando depois a
uma edificação em madeira e argila. Germain Bazin 5 ,
na esteira de Moreira de Azevedo, informa que a igreja
atual, em pedra e cal, foi erigida a partir de 1741, sendo
seu construtor José Cardoso Ramalho, o mesmo militar
da igreja dos Clérigos.
A igreja apresenta uma série de inovações, com um tra-
çado inédito para seu tempo, tendo em sua fachada a
presença de uma única torre sineira central, adornada
por uma galilé, solução totalmente incomum na Histó-
ria da Arte brasileira até então. Dentro da galilé, um o-
val ao gosto Dona Maria coroa a portada principal.

Ilustração 46 - POrtada da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro (Foto Rodrigo Soldon, disponível em
http://www.flickr.com/photos/soldon/2689966859/. Acesso em 16 jun. 2009.)
A planta do imóvel é octogonal e sua decoração interior
é das mais requintadas e leves dos templos brasileiros,
com obra de talha marcada pela presença de rocailles,
dividindo sua função decorativa com painéis de azulejos
de origem portuguesa. No coro de cima, vê-se um órgão.

5
Ibidem. p. 152

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 39

Ilustração 47 - Nave da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro

Considerações finais
O período que vai de meados do século XVIII até a Inde-
pendência, encerrando o ciclo da fase colonial, é bas-
tante rico em termos de estilos e de soluções artísticas
inéditas na História da Arte brasileira e até latino-
americana.
Nessa fase encontramos manifestações tardias do Bar-
roco e o apogeu das expressões do Rococó. Também
nessa fase encontramos a arte que fará a transição para
o Neoclassicismo, estilo aque caracterizaria o século
XIX, de que se dará notícias mais à frente.
A arte dessa fase é bastante rica e precisa ser vista sa-
bendo-se distinguir um estilo de outro: o Barroco e o
Rococó não devem ser confundidos. Cada um tem a sua
especificidade e sentido histórico que lhe são peculia-
res.

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Arte do Brasil colonial 40

Referências
1. BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no
Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983.
2. ______. O Aleijadinho e a escultura barroca no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Record, 1972.
3. BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil colonial.
São Paulo: Nobel, 1991.
4. COSTA, Lúcio. A arquitetura dos jesuítas no Brasil.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
v. 5, Rio de Janeiro, MEC, 1941, p. 9-104.
5. LEMOS, Carlos et al. Arte no Brasil. São Paulo: A-
bril Cultural, 1976, vol. 1.
6. OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de, PEREIRA, Sônia
Gomes e LUZ, Angela Ancora da. Arte no Brasil.
Textos de síntese. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
7. ______. Barroco e rococó na arquitetura religiosa
brasileira. Revista do Patrimônio, nº 29, 2001, p.
144-169.
8. ______. O rococó religioso no Brasil e seus antece-
dentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
9. SANTOS, Paulo F. Arquitetura religiosa em Ouro
Preto. Rio de Janeiro: Kosmos, 1951.
10. ______. O barroco e o jesuítico na arquitetura brasi-
leira. Rio de Janeiro, Kosmos, 1951.
11. ______. Quatro séculos de arquitetura. Rio de Janei-
ro, IAB, 1981.
12. SILVA NIGRA, D. Clemente. Construtores e Artistas
do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Salva-
dor: s/ed., 1950
13. SILVA TELLES, Augusto C. (Consultor). Arquitetura
na formação do Brasil. Brasília: UNESCO, 2007.
14. ______. Atlas dos monumentos históricos e artísticos
do Brasil. Brasília: MONUMENTA / IPHAN, 2008.
15. TEIXEIRA, Luis Manuel. Dicionário ilustrado de Be-
las Artes. Lisboa: Presença, 1985.
16. TOLEDO, Benedito Lima de. Do século XVI ao iní-
cio do XIX: Maneirismo, Barroco e Rococó. In:
ZANINI, Walter (coord.). História geral da arte no
Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles,
1983.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte do Brasil colonial 41

17. VALLADARES, Clarival do Prado. Aspectos da arte


religiosa no Brasil: Bahia, Pernambuco e Paraíba.
Rio de Janeiro: Spala Editora, 1981.
18. ______. Nordeste histórico e monumental. São Paulo:
Obedrecht, 1990.

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Arte do Brasil colonial 42

Glossário
Adro – Pátio que circunda um edifício, seja ele religioso
ou não. Nas igrejas, chama-se adro o pátio que fica em
frente à fachada principal ou ao lado do imóvel, sendo
ele resguardado costumeiramente por um muro baixo.
Aleta – Acabamento curvilíneo colocado nas laterais de
um frontão, com o intuito de diminuir-lhe o aspecto du-
ro e seco provocado pelos ângulos retos da fachada.
Alpendre – Cobertura saliente, feita em telhas apoiadas
sobre madeiramento estruturado em treliça, que se a-
póia, por sua vez, de um lado, no pano da fachada e, de
outro, em pilares ou colunas.
Altar – Na tradição judaico-cristã, mesa sagrada em
frente à qual o sacerdote promove ritos religiosos ou
onde os fiéis rezam ou depositam oferendas ao santo ou
a Deus. Não se deve confundir o altar com o retábulo*.
Atlante – Escultura que representa um homem em ati-
tude de suportar o peso de algum elemento arquitetôni-
co. Dá-se o nome de cariátide se a figura for feminina.
Baldaquino – Dossel ornamentado sustido por coluna
ou preso à parede, mas adornados por elementos deco-
rativos laterais. É normalmente colocado sobre tronos
ou servem como arremates decorativos de retábulos.
Camarim – Recinto principal, também chamado de ni-
cho, de um retábulo onde a imagem do santo fica aloja-
da.
Campanário – O mesmo que torre sineira, ou seja a tor-
re de uma igreja onde os sinos são colocados.
Cantaria – As obras de cantaria são os trabalhos feitos
em pedra destinados a servir de elemento estrutural
numa construção.
Capitel – Arremate superior de uma coluna, normal-
mente adornada com folhas de acanto, ábacos, volutas
etc., cuja análise permite identificar-se a que ordem ar-
quitetônica pertence a coluna. Nas ordens gregas, têm-
se capitéis dóricos, coríntios e jônicos. Nas ordens ro-
manas, têm-se capitéis toscanos e compósitos. A ordem
toscana foi uma das mais usadas pelos artistas do Re-
nascimento e do Barroco.
Cenóbio – Nome genérico dado a qualquer lugar cons-
truído para abrigar comunidades religiosas reclusas,

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Arte do Brasil colonial 43

dedicadas à vida de oração, trabalho e contemplação re-


ligiosa. Mosteiros, destinados à habitação de monges, e
conventos, típicos dos religiosos de ordens mendican-
tes, podem ser citados como exemplos de cenóbios.
Coluna – Qualquer suporte vertical de seção circular,
sobre o qual se apóiam vigas, frisos, arquitraves, corni-
jas ou outros elementos estruturais horizontais quais-
quer. As colunas são formadas de base (às vezes apoia-
da sobre um pedestal), fuste* e capitel*.
Colunelo – Coluna de dimensões pequenas ou médias,
usadas normalmente em retábulos*.
Colunelo salomônico – Coluna de dimensão pequena
ou média, tendo o seu fuste em forma helicoidal e sendo
a sua parte inferior estriada.
Cornija – Moldura saliente horizontal, que pode ser re-
tilínea ou curvilínea, para marcar a presença dos pavi-
mentos das edificações. As cornijas superiores dos edi-
fícios têm por função conduzir o escoamento da água da
chuva, de forma a não a deixar escorrer pela fachada, o
que provoca umidade e manchas. As cornijas também
podem ser simples arremates superiores e horizontais
de um pedestal ou de uma balaustrada.
Coro de cima – Espécie de mezanino existente no inte-
rior das igrejas, situado logo após a entrada, onde nor-
malmente se encontra o órgão e onde se instalam os
músicos em cerimônias solenes e eventos especiais. O-
riginalmente, o coro ficava junto ao altar-mor. Na Igreja
de São Bento a área do altar-mor é também chamada
de coro. O coro de cima surgiu após o Renascimento.
Coruchéu – Remate piramidal de um edifício, verifica-
do, sobretudo, acima do campanário de uma igreja. De
maneira mais genérica, usa-se também o termo para
designar qualquer remate de um campanário, seja ele
piramidal, meia-laranja, bulboso etc.
Cunhal – Pilastra, feita normalmente em obra de canta-
ria* com cantos vivos (90º), colocada na quina ou canto
de uma edificação. Os cunhais, por assim dizer, são as
arestas verticais dos edifícios.
Dossel – Peça decorativa para cobrir retábulos, tronos
reais, púlpitos etc.
Equipamento urbano – Nome genérico dado aos bens
imóveis relacionados à infra-estrutura e ao funciona-
mento das cidades, como aquedutos, charizes, pontes,
oratórios, postes de iluminação, pelorinho etc.

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Arte do Brasil colonial 44

Esgrafito – Técnica de policromia que permite o pintor


realizar desenhos em filigranas de ouro nas vestes das
imagens dos santos. O artista cobre a superfície do
manto do santo com folhas de ouro, pintando por cima
dessa camada de ouro com uma tinta escura. Quando a
tinta está seca, ele faz os desenhos removendo, com um
estilete ou brunidor, a camada externa de tinta até se
desvelar a película de ouro que estava oculta.
Frontaria – Fachada principal de um edifício. O mesmo
que frontispício*.
Frontispício – Fachada principal de um edifício. O
mesmo que frontaria*.
Fuste – Parte principal de uma coluna, situada entre o
capitel (arremate superior) e sua base. Os fustes podem
ser lisos, como nas ordens toscanas, ou com caneluras,
como nas ordens dóricas.
Galilé – Vestíbulo situado entre a parede da fachada e a
porta de ingresso na nave de uma igreja. Pode apresen-
tar, no vão situado na parede da fachada, uma verga
em arquivolta.
Imaginária – Arte da reprodução da imagem sagrada,
especialmente a dos santos católicos, através de escul-
turas.
Imposta – Parte do encontro de um arco com uma co-
luna ou pilar, que serve como sustentação de uma ar-
cada.
Modenatura – Conjunto de molduras e demais elemen-
tos arquitetônicos que denotam o estilo, fase ou escola
artística de um prédio. Também é chamada de modina-
tura.
Nicho – Reentrância encontrada nas paredes internas
ou externas de uma edificação, onde podem ser vistas
esculturas, vasos, ânforas etc.
Óculo – Abertura circular de uma parede, que tem por
função facilitar a iluminação e a aeração do ambiente.
As rosáceas medievais podem ser consideradas um tipo
sofisticado de óculo.
Pilastra – Elemento estrutural como as colunas ou pila-
res, de seção retangular, incorporado ao pano da parede
e levemente saliente para fora desta.
Pináculo – Pequeno arremate situado nas partes supe-
riores de um edifício, que exerce função meramente de-
corativa. As torres sineiras e os frontões curvilíneos

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Arte do Brasil colonial 45

barrocos costumam vir acompanhados desses elemen-


tos arquitetônicos.
Policromia – As várias cores usadas numa pintura, es-
cultura, retábulo e demais obras de talha.
Relicário – Relicário é uma peça onde se expõe algum
vestígio material de um santo (osso, fio de cabelo, dente,
fragmento de roupa etc.), chamada de relíquia, com o
fim de ser adorada pelos fiéis. A imagem-relicário é uma
escultura de um santo, com uma relíquia presa nor-
malmente à altura do peito, além de apresentar os atri-
butos correspondentes. Por exemplo, uma imagem-
relicário de São Lourenço teria, além da relíquia presa à
escultura, uma palma e uma grelha.
Retábulo – “Atrás da mesa”, literalmente. Obra de talha
ou em pedra lavrada que se localiza atrás e sobre o al-
tar (mesa sagrada), onde se colocam imagens de santos
ou pinturas religiosas.
Serliano – Relativo ao arquiteto Sebastiano Serlio
(1475-1554), tratadista da arquitetura italiano, natural
da Bolonha, que trabalharia na corte do rei francês de
Francisco I.
Sobreverga – Arremate de vergas existentes em portas e
janelas, normalmente decorado com motivos curvilí-
neos.
Tímpano – Parte interna de um frontão, onde normal-
mente se podem encontrar inscrições, relevos, escultu-
ras etc.
Torre sineira – Parte do edifício religioso onde se situ-
am os sinos. O mesmo que campanário*.
Verga – Nome genérico dado aos arremates superiores
de qualquer porta ou janela.

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História da Arte
Prof. Marcus Tadeu Daniel Ribeiro

Neoclassicismo
pintura, escultura e arquitetura no Brasil

A era das revoluções que transforma o cenário econômico, social e político da Europa do século
XVIII e início do seguinte é um momento marcado pela retomada dos valores clássicos na Literatura,
nas Artes Visuais, na Arquitetura, apresentando também reflexos profundos na Música. Esse período
é o que se segue às fases barroca e rococó, que haviam caracterizado as artes durante o século XVII e
princípios do XVIII. O Neoclassicismo condenou as soluções estéticas ambíguas e excessivamente a-
dornadas que haviam assinalado as manifestações culturais anteriores, ao mesmo tempo que instituía
uma linguagem de austera e de nobre serenidade.

Aspectos históricos
O desenvolvimento do Neoclassicismo no Brasil inicia-
se timidamente no século XVIII, através de ocorrências
episódicas, ao mesmo tempo em que o Barroco tardio e
o Rococó atingiam uma fase de exuberância estilística
nas principais cidades brasileiras, tendo Aleijadinho,
em Minas Gerais, representado um ícone para todo o
contexto cultural do continente americano. Esse brilho
do mestre mineiro tem ofuscado a visão daqueles que se
debruçam sobre o período e mal enxergam outros artis-
tas e mesmo outros movimentos da época. Por isso é
tão pouco conhecida a história do Neoclassicismo brasi-
leiro anterior à vinda da Missão Artística Francesa em
1816.1
Além disso, pensar historicamente esse estilo, que na
França apresentou-se como porta-voz da burguesia re-
volucionária, num país agrário e escravocrata como o
Projeto da Praça do Comércio,
de Auguste-Henri Victor Brasil, tem sido, no mínimo, um desafio para aqueles
Grandjean de Montigny que procuram entender o fenômeno artístico inserido no
––––]^––––
contexto histórico onde nasceu. Por isso, não é raro en-
contrar-se quem aponte o caráter fortuito e estranho

1
Um outro fator concorre para dificultar a construção da história do Neoclassicismo no Brasil, o mais importante
e recorrente estilo do Rio de Janeiro e do Brasil oitocentistas: seu desaparecimento paulatino provocado pe-
lo avanço da especulação imobiliária na segunda metade do século XX. Especialmente os casarões das clas-
ses mais abastadas, localizados em terrenos ajardinados de dimensões generosas, se perderam, dificultando a
compreensão, ao homem de hoje, da importância que esse estilo teve principalmente na época do Império.
Neoclassicismo 2

desse estilo ao desenvolvimento cultural da sociedade


brasileira.2
Mas a conjuntura histórica em que o Neoclassicismo
ocorre, tanto em Portugal como no Brasil, não era es-
tranha aos avanços ideológicos que sensibilizavam as
elites revolucionárias européias daquela fase. A época,
em todo continente americano, era de inquietações polí-
ticas sob a égide do pensamento liberal. Na Europa, a
chamada Época das Luzes, que procura redefinir o pa-
pel do poder monárquico e consagrar a primazia do sa-
ber científico sobre as crenças religiosas, deixará mar-
cas profundas no Estado monárquico lusitano, com re-
flexos imediatos no Brasil.
O “absolutismo ilustrado”, também conhecido como
“despotismo esclarecido”, será o mais característico re-
flexo do Iluminismo na corte portuguesa. Mudanças
importantes ocorrem durante os anos de Dom José I,
que governa Portugal entre 1750 e 1777 e teve como
ministro de Negócios Estrangeiros o célebre Marquês de
Pombal (1699-1782), em cujo governo começaram a vi-
cejar manifestações culturais de orientação classicista,

tanto na Metrópole, como na Colônia. O movimento lite-


Marquês de Pombal
rário Árcade influencia tanto poetas inconfidentes, como
Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e Tomás Antônio
Gonzaga (1744-1809), que sonhavam com a Indepen-
dência do País, como também são cultivados por aque-
les ligados à corte lusitana, como Basílio da Gama
(1741-1795) e o português Antônio Diniz da Cruz e Sil-
va (1731-1799), juiz de direito que veio participar dos
autos da devassa dos inconfidentes de Vila Rica e con-
denar Tiradentes à forca.
O Neoclássico é fruto de um movimento cultural e cien-
tífico maior, onde a adoção de um discurso austero e
avesso aos excessos do Barroco e do Rococó reflete o
surgimento de uma nova etapa histórica, onde se con-
sagravam práticas políticas e culturais incompatíveis
com a tradição contra-reformista implementada pela I-
greja, especialmente através dos jesuítas, desde a des-
coberta. Com o alijamento do braço educador da Igreja
na América Portuguesa – a expulsão dos jesuítas ocorre
em 1759 –, a arquitetura barroca, que tanto havia con-
corrido como instrumento persuasivo no processo de
colonização, vai ser paulatinamente abandonada, ce-

2
Cf. REIS JÚNIOR, José Maria dos. História da Pintura no Brasil. São Paulo, Leia, 1944.

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Neoclassicismo 3

dendo espaço a uma nova estética, marcada pela auste-


ridade, pelo racionalismo e voltada não mais ao princí-
pio da persuasão, senão ao da celebração do Estado. A
arquitetura adequada a essa nova época e coerente com
a corrente de pensamento que então se estabelece é a
Neoclássica.

As fases do Neoclassicismo
A história do Neoclassicismo no Brasil apresenta três momentos
mais significativos: o primeiro é chamado de “neoclassicismo de
transição”, que vai de meados do século XVIII até a chegada da
Missão Artística Francesa, em 1816; a segunda fase é inaugurada
com o “neoclassicismo imperial”3, estabelecendo-se com a fundação
da Academia Imperial de Belas-Artes e a adoção do ensino oficial
de arte sob o rigor da disciplina neoclássica, estendendo-se até a dé-
cada de 1860, quando o Romantismo já se afirma no cenário artísti-
co brasileiro; a terceira fase, caracteriza-se pela ocorrência de um
“Neoclassicismo tardio”, sendo marcado por um período de re-
apropriações livres desse estilo, onde o encontramos de forma recor-
rente, especialmente durante a época da a arquitetura eclética, ao
mesmo tempo em que surge, já nos fins do século, a arquitetura ro-
mântica, marcada pela revivescência medievalista.

1. O Neoclassicismo de transição
Na arquitetura portuguesa e brasileira, desenvolveu-se, a partir de
meados do século XVIII, um estilo que é assinalado simultaneamen-
te pela persistência discreta da herança da era barroca e rococó, co-
mo também pelo purismo e pelo despojamento das tendências neo-
clássicas que se avizinham. Em 1755 foi estabelecida a Casa do Ris-
co das Reais Obras Públicas, em Lisboa, que ficaria conhecida por
sua atuação de reconstrução da capital portuguesa, derruída de um
terremoto naquele ano. Em sua direção, foram postos engenheiros e
arquitetos como Manuel da Maia, Carlos Mardel, que seria respon-
sável, entre inúmeros projetos, pelo risco da catedral inacabada do
Rio de Janeiro, e, mais tarde, José da Costa e Silva, o mesmo que
aportaria junto com a família real no Rio no ano de 1808.
Esse novo estilo artístico, caracterizado pelo historiador da arte por-
tuguês José Augusto França como “protoneoclássico”4, ficaria co-

3
O professor Donato Mello Júnior utiliza a expressão “estilo imperial brasileiro” para se referir ao desenvolvi-
mento do Neoclassicismo no Brasil durante o século XIX.
4
FRANÇA, José Augusto. Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Bertrand, 1987. p. 212

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Neoclassicismo 4

nhecido como “pombalino”, onde a tradição clássica se mistura com


um gosto barroco, caracterizando um momento de transição na arte.
Ele é contemporâneo à reconstrução da velha capital portuguesa, a-
firmando-se através de um gosto mais austero, típico da arquitetura
neoclássica. Além disso, esses prédios apresentam, em Portugal, no-
vas soluções construtivas, como a padronização dos elementos que
compõem a arquitetura civil, bem como a adoção de uma estrutura
de madeira dentro das paredes, capaz de resistir a futuros abalos
sísmicos. Essas características podem ser vistas nos prédios de Lis-
boa, na área conhecida como “Baixa Pombalina” bem como na
“Praça do Comércio”.
As igrejas recuperadas ou construídas em Lisboa durante essa época
bem demonstram o gosto de transição que o estilo pombalino repre-
senta, tanto porque assimile novos influxos modernizantes que o ne-
oclassicismo simboliza em seu tempo, como também porque faça
significar, pela permanência de certas referências estilísticas da fase
anterior, um sentido conservador dessas mudanças. O ingresso do
mundo luso-brasileiro no Neoclassicismo não se daria de forma es-
tanque, nem mesmo teria seu surgimento marcado apenas, no Brasil,
pela chegada dos artistas franceses em 1816. O estilo pombalino se-
ria a marca dessa fase de transição. Escreve um historiador da arte
sobre esse período: “A arquitetura neoclássica, como de resto a mai-
or parte dos ciclos artísticos, não tem limites nítidos; há sempre uma
franja onde se sobrepõem a agonia dos estilos cessantes e o alvore-
cer das novas formas”5 O seu motivador de fundo histórico – é im-
portante reafirmar – não foi exatamente o terremoto de Lisboa, mas
a expansão da ideologia que caracterizaria a etapa do “despotismo
esclarecido” durante a segunda metade do século XVIII.
Algumas igrejas podem ser apontadas como típicas dessa época. A
Igreja das Mercês (Lisboa) é do traço de Joaquim de Oliveira, um
arquiteto de pequena nomeada mas cujos talentos fizeram Carlos
Mardel levá-lo para a Casa do Risco em 1762. Essa igreja, cuja fa-
chada Augusto França considera como a “mais bela das fachadas
das igrejas de Lisboa”6, tem um nobre frontão ondulado, adornado
por fogaréus*, como também as duas platibandas balaustradas* que
flanqueiam o frontão, em cujo tímpano* um vitral circular produz
efeito harmônico e agradável. A fachada central é formada pelos ar-
cos da galilé* e, acima, pelas três janelas do coro, cujo conjunto é
enquadrado por aletas* curvilíneas, que valorizam a edificação. Esse
templo apresenta um frontão curvilíneo contracurvado*, extraído do
vocabulário barroco de Francesco Borromini (1599-1667), que ar-
remata o frontispício do templo com graciosidade e leveza, substitu-
Igreja de Jesus ou das Mercês indo o movimento curvilíneo de gosto alambicado tão típico da fase

5
SANTOS, Reynaldo dos. História da arte em Portugal. Porto: Portucalense, 1953. p. 196, v. 3
6
FRANÇA, José Augusto. Op. cit. p. 190

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Neoclassicismo 5

anterior. Esse tipo de solução arquitetônica apresentará reflexo na


arquitetura brasileira.
O primeiro exemplo é a Igreja de São Francisco de Paula, onde o
partido da composição privilegia tanto a monumentalidade como o
despojamento da modinatura*, cuja sobriedade é rompida apenas pe-
la presença do frontão contracurvado. Nem mesmo nos adornos da
portada e das vergas* que encimam os vãos das janelas, percebem-
se descomedimentos decorativistas. O pórtico principal que compõe
o portão central na fachada da igreja é nitidamente neoclássico, mas
trata-se de um acréscimo feito pelo artista entalhador Antônio de
Pádua e Castro, numa reforma pela qual o templo passou a partir de
1855 e que se estenderia por dez anos. O antigo pórtico tinha um
pequeno frontão contracurvado, ao gosto do que ainda existe no
frontispício do prédio.7
Milton de Mendonça Teixeira8 dá o autor do projeto como sendo do
engenheiro militar Brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim (1756) e
do Mestre Valentim da Fonseca (1801). Sandra Alvim, autora de le-
vantamento sistemático nos arquivos da Ordem para a publicação da
Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro, nada informa
sobre a autoria do projeto. A fachada do prédio, todavia, indica que
se trata de uma cópia do projeto lisboeta da igreja de mesmo nome.
A afinidade da arquitetura da igreja de São Francisco de Paula do
Rio de Janeiro – e de outras também localizados nesta cidade – com
os partidos e formas arquitetônicos de templos portugueses reflete a
idéia de que era pelo Rio de Janeiro, a sede administrativa da Amé-
rica Portuguesa, que se dava mais estreitamente a vinculação da Co-
lônia com a Metrópole, numa correlação estilística que refletia, nas
artes, os laços colonialistas de Portugal em relação ao Brasil.
O interior do templo já apresenta um gosto mais pronunciadamente
neoclássico, sendo adornado por dez colunas coríntias, dispostas de
par em par, sobre as quais apóia-se um entablamento* que percorre
toda a igreja, amparando os arcos da abóbada da nave e da capela-
mor. O arco cruzeiro apresenta-se despojado da ornamentação bar-
roca, típica da fase anterior, passando a se apresentar mais como e-
lemento construtivo e apoiando-se sobre ábacos* largos e retilíneos.
Igreja da Ordem Terceira de De dentro da igreja, pode-se observar uma curiosa contradição entre
São Francisco de Paula o altar-mor e a capela do Noviciado, devotada a Nossa Senhora das
Vitórias, ambos do traço de Valentim da Fonseca e Silva, o famoso
Mestre Valentim, que foi ajudado pelo mestre carpinteiro Florêncio

7
Antônio de Pádua e Castro optou pela simplificação do pórtico, retificando o frontão à maneira clássica, em
cujo tímpano vê-se um baixo-relevo com a inscrição latina “Charitas”, que significa “Caridade”. O frontão
apóia-se sobre um par de colunelos compósitos. Cf. RIBEIRO, Marcus Tadeu Daniel. “Igreja de São Fran-
cisco de Paula”. In. RIBEIRO, Mírian. (Org.) Igrejas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPHAN, 1997.
8
TEIXEIRA, Milton. O Rio de Janeiro e suas igrejas. Rio de Janeiro: Riotur, 1988, pág. 29

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 6

Machado. A capela de Nossa Senhora das Vitórias, que se situa ao


lado da capela-mor e apresenta ornamentos rococós, é também do
risco de Mestre Valentim, ali ajudado, na douradura da talha e nas
pinturas que retratam os milagres do santo, por Manuel da Cunha,
representante da Escola Fluminense de Pintura. A diferença de esti-
los entre a Capela do Noviciado e o altar-mor da igreja principal é
digna de nota, porque se trata de obras concebidas por um mesmo
artista, mas em estilos diferentes. Mário Barata destaca essa diferen-
ça, apontando, na Capela do Noviciado, um gosto “rocaille” e, no al-
tar-mor, já uma inspiração neoclássica. 9
O trabalho do Mestre Valentim no altar-mor demonstra o abandono
gradativo das formas barrocas e rococós ainda em voga, substituindo
a frondosidade da ornamentação pelo despojamento, com sensibili-
dade para as soluções neoclássicas. É o que demonstram as colunas
coríntias, sobre os quais apóia-se um entablamento curvo do altar-
mor, onde um coroamento semicircular arremata o retábulo com um
gosto clássico. Há que se notar que essas colunas, quando foram fei-
tas por Mestre Valentim no início dos anos oitocentos, não possuíam
os adornos que mais tarde lhe seriam apensados, por ocasião da re-
forma de 1855, feita pelo artista e entalhador Antônio de Pádua e
Castro10. Somente nessa reforma é que os florões e guirlandas que
adornam o fuste das colunas do templo seriam acrescentados.

9
Cf. BARATA, Mário. “Importância artística da igreja de Nossa Senhora de Paula, do Rio”. (Seção “Artes plás-
ticas”), Diário de Notícia, 25 dez. 1955; BARATA, Mário. “Ainda a igreja de São Francisco de Paula”.
(Seção “Artes plásticas”), Diário de Notícias, 8 jan. 1956.
10
Sobre a atuação de Pádua e Castro consultar a dissertação de FERNANDES, Cibele. A talha religiosa da
segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro, através do seu artista maior Antônio de Pádua e
Castro. Rio de Janeiro, UFRJ/EBA, 1991. Dissertação (Mestrado em História da Arte) – Escola de Belas-
Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, texto policopiado), 1991.

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Neoclassicismo 7

Também a Igreja de Santa Cruz dos Militares, inspirada na Igreja


dos Mártires em Portugal, apresenta traçado austero, com uma fa-
chada onde predominam as linhas retas no frontão, nas pilastras*,
cunhais* e cornijas*, esculpidas em trabalho de cantaria. O frontão
triangular também já aparece como uma tendência da época, apre-
goando a solução arquitetônica que o Neoclassicismo tanto valoriza-
ria. A torre sineira, tanto na Cruz dos Militares quanto na dos Márti-
res, em Portugal, não compõe o pano da fachada, que ostenta, em
seu lugar, aletas curvilíneas, acabadas em voluta, ao gosto de Vigno-
la11.

Igreja dos Mártires, de Lisboa

Igreja de Santa Cruz dos Militares


É dessa fase também a construção da igreja da Candelária, projeto
do engenheiro militar Francesco Roscio (?-1805), que concebeu a
igreja de maneira monumental, equilibrada e com planta em forma
de cruz latina, sobre cujo transepto* vê-se um domo que seria cons-
truído apenas no século XIX, quando a igreja recebeu uma decora-
ção interna neoclássica. Sua fachada, onde ainda se percebem vestí-
gios de um barroco contido, volta-se para o mar, dominando, alta-
neira, a silhueta do casario e de outros templos da cidade nos idos
coloniais.

11
Giacomo Barozzi (1507-1573), dito Vignola, arquiteto italiano autor Tratado das Cinco Ordens de Arquite-
tura (1562), sucessor de Michelangelo nos trabalhos na Basílica de São Pedro, no Vaticano, e autor do Pa-
lácio de Branchi, em Bolonha. Projetou também o Palazzo Farneze, em Piacenza (1560), tendo sido ainda
autor do projeto da célebre Igreja de Il Gesù em Roma (1568), igreja-matriz da Companhia de Jesus.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 8

Igreja da Candelária

Embora a fachada da Igreja da


Candelária possua ainda traços
da herança barroca, predomi-
na, em seu aspecto geral, um
sentido de solene monumenta-
lidade. A solução escalonada
nas torres sineiras é inédita na
arquitetura religiosa carioca e,
talvez, no Brasil.
O interior da edificação pre-
domina um gosto nitidamente
neoclássico, com despojamen-
to na decoração, retábulos
feitos em mármore e encima-
dos por frontões gregos.
Os vitrais da fachada principal
são de Henrique Bernardelli e
as pinturas de João Zeferino
da Costa, importantes artistas
atuantes no século XIX.
A planta da igreja é em forma
de cruz latina, havendo um
transepto sobre o qual existe
um zimbório, projetado por
Gustavo Waehneldt, arquiteto
neoclássico. (ver abaixo)

A bela cidade de Niterói também apresenta exemplo de uma arquite-


tura nitidamente neoclássica nessa fase de transição, no arco do tri-
unfo erigido como portada da entrada da fortaleza de São Luís. Obra
do engenheiro militar suíço Jacques Funck, chegado à colônia junto
com Francesco Roscio, por determinação da Carta Régia de 22 de
junho de 1767. Todo lavrado em pedra de cantaria, o arco possui pi-
lastras da ordem toscana e uma platibanda cega de exagerada auste-
ridade, mas compatível ao fim a que se destina de portal de entrada
de uma fortaleza. Sobre a entrada, vêem-se inscrições num oval es-
culpido em lioz, com a data de sua construção e nome do rei Dom
José I em latim.
Na cidade de Belém do Pará também houve a influência dessa arqui-
tetura de transição. Ali atuou Antônio José Landi (1713-1791), ar-
quiteto e artista bolonhês, que chegaria ao Brasil no ano de 1753,
onde se radica. Landi fora discípulo de Fernado Galli de Bibiena,
tornando-se professor de Arquitetura no Instituto de Ciências e Artes
e membro da Academia Clementina de Bolonha. Apesar do prestígio
de que desfrutava naquele centro cultural europeu, preferiu a aventu-
ra de uma viagem à região amazônica, para onde levou suas idéias
visionárias.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 9

À coroa portuguesa interessava a contratação de um profissional


como Landi, pois que ela necessitava mandar arquitetos, geógrafos,
desenhistas e demais pessoas que pudessem compor uma missão ci-
entífica responsável pela demarcação dos limites territoriais que o
Tratado de Madri havia firmado. Instalado inicialmente em Barce-
los, Landi faz estudos da fauna e da flora amazonense e, depois que
se estabelece em Belém do Pará, projeta vários edifícios religiosos e
civis. A Igreja de Santana, com sua planta em cruz grega e uma cú-
pula de gosto romano, exprime um classicismo gracioso, com ador-
nos comedidos, extraídos da gramática barroca.
O Palácio dos Governadores, por sua vez, constitui-se num dos mais
importantes exemplares da arquitetura civil brasileira da época colo-
nial. Marcada pelo equilíbrio e pelas soluções classicistas, como o
frontão triangular e a platibanda que percorre a cimalha do edifício,
Igreja de Santana
a fachada do Palácio dos Governadores produz, com sua presença
solene e traços austeros, um efeito de grandiosidade inusitada no
ambiente ainda retraído da colônia portuguesa.

Casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto


Na antiga Vila Rica, atual Ouro Preto, entre tantas edificações reli-
giosas que testemunham o crepúsculo da cultura barroca e rococó,
encontra-se, dominando a praça central da cidade, a Casa de Câmara
e Cadeia, símbolo maior do poder real português. Construída sob o
traço do engenheiro e governador Luís da Cunha Menezes a partir
de 1784, a edificação obedece a um programa neopaladiano, possu-
indo uma escadaria central municiada de um guarda-corpo balaus-
trado. Do meio da fachada, ergue-se um frontão triangular arremata-
do por uma torre sineira, cuja presença concorre para atenuar o as-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 10

pecto solene da edificação, fazendo também remissão ao vernáculo


barroco existente na região. É o neoclassicismo de transição.
Em Salvador, no início da segunda década, era introduzido o neo-
classicismo do traçado do militar Cosme Damião da Cunha Fidié,
com o prédio da Associação Comercial bahiana, edifício que tinha
um estilo fortemente marcado pela arquitetura anglopaladiana, típica
das construções neoclássicas portuenses, onde a influência da colô-
nia britânica se fazia sentir de forma mais evidente. Era a influência
da arquitetura do vinho do Porto, neoclássica de orientação neopala-
diana.

Associação Comercial de Salvador


Enquanto a arquitetura neoclássica que se desenvolveu ao norte de
Portugal decorria dos influxos ingleses, marcada por uma sobriedade
algo grave, aquela outra que floresceu em Lisboa era especialmente
de ascendência francesa, onde o classicismo mostrava-se mais leve.
Essa influência do classicismo de origem francesa começaria a se
verificar no Brasil com a chegada de José da Costa e Silva, integran-
te da comitiva real que aportou no Rio de Janeiro em 1808. É desse
arquiteto o traçado do Teatro São João, com remissão ao Teatro de
São Carlos de Lisboa, de ascendência italiana, especialmente ao Te-
atro alla Scalla de Milão, do arquiteto neoclássico Giuseppe Pierma-
rini (1734-1808). Costa e Silva é autor também, entre outras obras,
do cemitério da Ordem Terceira da Penitência do Rio de Janeiro,
com sua colunata toscana circundante a um pequeno pátio interno
aberto.
A partir do início do século XIX, com a chegada da Missão Artística
Francesa, o Neoclassicismo ganha um impulso notável, com a insti-
tucionalização do ensino artístico sob a rígida disciplina acadêmica,
exatamente numa época em que o Brasil iniciava o processo que iria
redundar na sua Independência. Começa então, sob os influxos da
tradição francesa, uma nova etapa do Neoclassicismo no país. A fase

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 11

de transição entre um estilo e outro, já superada em exemplos isola-


dos, como o prédio da Associação Comercial de Salvador, o Teatro
de São João, a Casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto ou o arco a
portada do Forte de São Luís, ficaria agora definitivamente para trás.
Instituía-se uma linguagem oficial da arte brasileira com a fundação
de uma escola oficial de arte.

2. O neoclassicismo imperial

O contexto histórico da criação da Escola Real de Ciências,


Artes e Ofícios
A vinda da Missão Artística Francesa ocorre numa época importante
na História do Brasil. Embora se vivesse um período a que se avizi-
nhassem os acontecimentos que redundariam na Independência, a
expectativa do Estado Monárquico português instalado no Rio de
Janeiro no ano de 1816, ano em que aporta, no Rio, o grupo chefia-
do por Joachim Lebreton, não era o de regresso imediato para Por-
tugal. Os franceses haviam sido expulsos de solo português desde
1811 e, embora a população clamasse pelo retorno da corte para a
antiga metrópole, resistia-se a tal empresa. Poucos historiadores
preocupam-se com esse período, e menos ainda em analisar o proje-
to de o Estado português aqui radicar-se em definitivo. Há indícios
que devem ser considerados, como aquele registrado no diário do
musicista clássico Sigmund Neukomm, que se instalou na casa de
Antônio de Araújo de Azevedo, o Conde da Barca, que lhe confi-
denciou: “Nós esperamos fundar um novo império no Mundo Novo
e será muito interessante para o senhor ser testemunha deste período
de evolução”.12
Desde a chegada da corte ao Rio de Janeiro em 1808, vinham sendo
criados organismos destinados a municiar o aparelho de Estado por-
tuguês recém-imigrado a administrar todas as demais possessões lu-
sitanas. O resultado dessa necessidade de aparelhamento do Estado
com instituições administrativas foi a criação de órgãos financeiros,
como o Banco do Brasil, de comunicação, como a Imprensa Régia,
de ensino superior (os cursos de Direito em São Paulo e em Olinda,
de Medicina, na Bahia, e a Escola Politécnica no Rio de Janeiro), e
os de pesquisa, como o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e o de O-

12
NEUKOMM, Sigismund. Apud. SCHUBERT, Mons. Guilherme. Sigismund Neukomm: um músico austríaco
no Brasil. In. ______. (org.). 200 anos: Imperatriz Leopoldina. Rio de Janeiro: IHGB, 1997, p. 42. Para
um estudo sobre essa parte de nossa História pouco conhecida, vale a pena a leitura de LYRA, Maria de
Lourdes Viana. A utopia do poderoso imp
ério - Portugal e Brasil: bastidores da política (1798-1822), Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994 e LIMA, Manuel
de Oliveira. Dom João VI no Brasil (1808-1821), Rio de Janeiro: Topbooks, 1996

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 12

linda.
Alguns portugueses, desejosos de manter vivas as prerrogativas da
antiga metrópole lisboeta, sempre olharam, com desconfiança, a pro-
longada permanência do rei no Brasil e chegaram a reagir, com ri-
gor, aos boatos que então começaram a se difundir no além-mar, de
que se estudava a fundação de uma universidade no Brasil. Vejam-
se as palavras de Ambrósio Reis, eminente diplomata português no
Congresso de Viena, a quem Antônio de Araújo de Azevedo, o
Conde da Barca, havia endereçado carta externando-lhe seu desejo
de criar cursos de Mineralogia em Minas Gerais.

“Espero finalmente – escreve o diplomata –, que não lembre a ninguém en-


volver em tais estabelecimentos [os cursos de Mineralogia] uma idéia infe-
liz que tenho ouvido repetir a alguns de cabeças ocas e alucinadas que con-
fundem sempre o presente com o futuro, e o estado atual do Brasil com o
seu estado possível e ainda indefinidamente remoto, e vem a ser o estabele-
cimento de uma universidade naquele país. Fábrica de bacharéis e de letra-
dos, Ex.mo S.nr, basta por ora uma na Monarquia no estado em que ela se
acha, e certamente seria esta a fábrica mais perniciosa que se poderia esta-
belecer no Brasil, não só porque aumentaria extraordinariamente a turba
misérrima dos bacharéis e promotores de processos roubando ao mesmo
tempo tantos braços à lavoura e às artes, mas também porque produziria
um grande número de semi-doutos ociosos e faladores, de poetas de água
doce, de propagadores de idéias liberais e dos direitos do homem: gênero
de indivíduos que sendo nocivos em todo país o são infinitamente mais em
um no qual a maior parte da povoação é composta de escravos e gente de
cor.”13

Observe-se ainda no trecho abaixo, como o diplomata procura exer-


cer alguma pressão sobre o governo português instalado no Rio de
Janeiro, sugerindo que era imperiosa a necessidade de seu regresso à
velha capital portuguesa, para que não ficassem comprometidos os
laços colonialistas entre Portugal e Brasil.

“Um tal estabelecimento além de dever ser fatal ao mesmo Brasil, o seria
ainda a toda a Monarquia, pois cortaria quase o único fio de dependência
em que o nosso Reino ainda se acha da Metrópole, e aumentaria nesta o
grande descontentamento que infelizmente ouço ali vai grassando por irem
já tardando àquele povo leal e brioso as sábias providências que S. Maj.a
certamente medita pôr em prática para acrescentar a recíproca dependência
e perpétua união dos dois principais membros da Monarquia.”14

A criação de uma escola de artes no modelo que se pretendeu para o


Brasil não interessava aos portugueses que faziam coro pelo regres-
so da corte a Lisboa. As chamadas “belas-artes” não eram usadas
apenas como instrumento de embelezamento dos lugares, mas tam-

13
Idem (grifos no original).
14
REIS, Ambrósio Joaquim dos. “[Carta a Antônio de Araújo de Azevedo”] Londres, [manuscrito], 24 de agosto
de 1816, Arquivo Distrital de Braga, Fundo Barca/Oliveira, Cx. 28, doc. s/nº, 7 pág. Autógrafo, assinado.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 13

bém como veículo de construção dos emblemas representativos do


Estado monárquico português instalado no Brasil. A perspectiva de
sua criação, portanto, enfrentou alguns percalços, a que já se fez re-
ferência na historiografia especializada, conquanto sem se pontuar
as razões históricas cabíveis.

O projeto da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios


Naquele mesmo ano de 1816, chegava, ao Rio de Janeiro, um grupo
de artistas franceses que haviam trabalhado diretamente com Napo-
leão Bonaparte, cuja queda e a conseqüente restauração da casa real
francesa, ressentida dos recentes acontecimentos pontuados na Re-
volução Francesa, gerou um clima de intranqüilidade entre esses ar-
tistas, que procuraram amparo em alguma outra corte. Enquanto o
célebre pintor de história Jacques-Louis David (1748-1825) exilava-
se na Bélgica, vários outros artistas franceses embarcavam em dire-
ção ao Brasil. O pintor de paisagem Nicolas Antoine Taunay (1755-
1830), o pintor de história Jean-Baptiste Debret (1768-1848), os es-
cultores Marc (1788-1850) e Zépherin Ferrez (1797-1851), e o ar-
quiteto Auguste-Henri Victor Grandjean de Montigny (1776-1850),
chefiados pelo historiador da arte Joachin Lebreton (1760-1819)
chegaram ao Rio de Janeiro em março de 1816, onde organizariam a
Grandjean de Montigny, primeira escola de arte no Brasil.
retratado por Angust Muller.
É importante assinalar-se que Francisco José Maria de Brito, res-
ponsável pela arregimentação dos artistas na corte francesa, procu-
rou incentivar a vinda mais de artesãos do que de “artistas de luxo”,
para usarmos suas próprias palavras:

“M.r Lebreton abona a moralidade de toda esta gente – escreve ele ao


Conde da Barca –; se ele deu mais amplo desenvolvimento ao plano que
me propôs, bem o adverti, que não entrava senão em desembolsar, como
prometera, à minha custa, a despesa do transporte, visto ter falhado à sua
palavra o comendador Carneiro de Leão. Graduei mesmo esta ajuda de cus-
to aplicando-a às duas famílias, do arquiteto gravador Grandjean de Mon-
tigny, ao gravador em pintura e miniatura Pradier e ao Mecânico Ovide,
que leva consigo um ótimo serralheiro com seu filho, e um carpinteiro de
carros e seges, que pode servir para fazer instrumentos agrários, e outros
mestres fabris: pareceu-me assim reunir o útil ao agradável, sem sobrecar-
regar de artistas de luxo quando são os de úteis artes que nos faltam.”15

O estabelecimento receberia, primeiramente, o nome de Escola Real


de Ciências, Artes e Ofícios, obedecendo a um projeto que almejava
formar alunos não apenas nas belas-artes, mas principalmente no
terreno dos chamados “ofícios mecânicos”, atividade essencial à
formação da indústria. Mas essa intenção de fazer da escola um pro-
jeto ambivalente fracassou, não tanto porque talvez houvesse venci-
do o preconceito dos artistas de Belas-Artes em dividir sua convi-

15
Idem.

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Neoclassicismo 14

vência com os artesãos16, mas sobretudo porque não havia condições


econômicas e sociais favoráveis para o desenvolvimento de ativida-
des voltadas à nascente indústria brasileira. Os Tratados de 1810,
firmados entre a corte de Dom João e a Grã-Bretanha, destinavam-se
à colocação do produto inglês no Brasil e em Portugal, beneficiando,
através de um sistema de taxas aduaneiras reduzidas, a manufatura
inglesa no mercado brasileiro recém-aberto ao comércio internacio-
nal. A este convênio, firmado no Rio de Janeiro a 19 de fevereiro de
1810 pelos ministros Dom Rodrigo de Sousa Coutinho e o Lorde de
Strangford, é atribuído o atraso em que as indústrias portuguesa e
brasileira se viram durante os anos subseqüentes.17 Depois da Inde-
pendência, o Brasil renovou esses tratados durante os entendimentos
diplomáticos destinados ao reconhecimento de nossa Independência.
A escola de artes sentiria os efeitos desses acordos internacionais e
não houve incentivo para que se ensinassem os ofícios mecânicos a
novas gerações de artesãos. Um observador da época anotou tal pro-
blema na realidade econômica e cultural brasileira:

Por este tratado, entraram no Brasil o sapato feito, os móveis, o fato18, até
colchões; e eu tenho visto desembarcar no Rio de Janeiro caixões já orna-
dos para enterrar meninos. Sua cobiça feroz se estendeu a tudo e tudo devo-
rou e engoliu... Como introduziram o luxo, tudo gradualmente foi caindo
na pobreza; e o comércio português, principalmente no Rio de Janeiro de-
sapareceu. Como levaram frutos e dinheiro, o país caiu em geral na misé-
ria, ainda que coberta por um véu de luxo. Como introduziram tudo quanto
é pertencente aos Ofícios Mecânicos, o Oficial não encontrou quem lhe
desse o que fazer e já não houve necessidade de aprender.19
O fracasso de uma escola de artes e ofícios no Rio de Janeiro, que
tanto formasse artistas na área de belas-artes quanto na de ofícios
mecânicos, não deve ser visto como fruto de preconceitos dos artis-
tas neoclássicos, mas sim de condições históricas pouco favoráveis a
esse projeto.

A atuação dos artistas franceses


A escola de arte, que passaria a funcionar definitivamente a partir de
1826, no prédio projetado por Grandjean de Montigny (retrato ao la-
do), acabaria sendo efetivamente fundada com o nome de Academia
Imperial de Belas-Artes. Tempos depois, com o advento da Procla-
mação da República, o nome da instituição mudaria para Escola Na-
cional de Belas-Artes, sendo transferida para o atual prédio onde ho-

16
Cf. CAMPOFIORITO, Quirino. História da Pintura Brasileira no Século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke,
1983. p. 50
17
Cf. PRADO Jr. Caio. “A era do liberalismo”, In: ______. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasili-
ense, 1985; SODRÉ, Nélson Werneck. “Os tratados de 1810”, In: ______. As razões da Independência.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969.
18
“fato” é o nome lusitano dado às roupas em geral e ao “terno” em particular.
19
MARISCAL, Francisco Sierra y. Idéias Gerais sobre a Revolução do Brasil e suas Conseqüências.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 15

je funciona o Museu Nacional de Belas-Artes, na Av. Rio Branco,


199. O antigo edifício projetado por Grandjean de Montigny seria
então ocupado pelo Ministério da Fazenda e, em 1938, acabaria sen-
do demolido. A despeito dos esforços do Serviço do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional, nada pôde ser feito para se impedir a
destruição de um dos mais importantes prédios neoclássicos brasilei-
ros.

Projeto para a Academia Imperial de Belas-Artes.


Apesar do prédio ter sido demolido, seu pórtico central foi adquirido
e colocado no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde se pode ver
sua colunata hesástila na ordem jônica, com capitéis fundidos em
bronze, caso raro na arquitetura neoclássica brasileira. No andar tér-
reo, vêem-se uma portada arrematada por arco pleno e relevos em
terracota, elaborados por de Zepherin Ferrez. As esculturas em
mármores de Marc Ferrez, retratando Apolo e Minerva, que antiga-
mente ficavam sobre os plintos em granito situados entre a colunata,
se perderam. Toda a composição é arrematada pelo clássico frontão
triangular grego, de serena grandiosidade.

Alfândega (atual Casa França-Brasil)


Grandjean de Montigny projetou vários imóveis na cidade do Rio de
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Neoclassicismo 16

Janeiro, além do prédio da Academia de Belas-Artes. A Alfândega,


atual Casa França-Brasil, é um outro exemplo da inventiva solução
que Grandjean conseguiria, exercendo o rigor neoclássico de influ-
ência italiana na corte dos trópicos. O prédio possui planta seme-
lhante à cruz grega e uma sobriedade típica da arquitetura do perío-
do. Embora não possua colunata à frente do imóvel, como era co-
mum existir nessa época, o que aumenta a gravidade de sua aparên-
cia externa, o imóvel possui uma interessante solução das águas do
telhado, cujos planos se cruzam em formações triangulares rítmicas,
que evocam, em seus movimentos, o gosto clássico. O pórtico cen-
tral é também arrematado por um frontão clássico, tendo uma galilé
composta em arcos plenos.

Residência de Grandjean de Montigny (PUC - Rio de Janeiro)


A residência de Grandjean de Montigny, também projetada por ele,
situada no campus da PUC (Rio de Janeiro), apresenta, nos dois pa-
vimentos, a colunata que adorna as varandas, tão tradicionais dos
tempos coloniais brasileiros. Grandjean, que havia estudado a arqui-
tetura renascentista toscana, utiliza, em seu trabalho, várias soluções
de austera simplicidade. Apesar desse despojamento, o imóvel agra-
da por sua leveza, conseguida com a presença de espaços abertos en-
tre colunas, e uma escadaria semicircular que dá acesso à entrada
principal da residência, que lhe confere certa solenidade.
Jean-Baptiste Debret, parente do célebre pintor neoclássico Jacques-
Louis David e do pintor rococó François Boucher (1703-1770), era
ligado à corte napoleônica, finda a qual recebeu proposta para ir tra-
balhar na corte do czar Alexandre I da Rússia, mas preferiu ir-se
juntar à expedição chefiada por Lebreton. Aqui, atuou na elaboração
de pinturas históricas para a corte de Dom João VI, retratando per-
sonagens históricos, como o próprio rei, ou passagens históricas que
vinham marcando aquela fase da história do Brasil: “O desembarque
da arqui-duquesa Leopoldina, Princesa Real, no Rio de Janeiro”, a
12 de novembro de 1817, obra que ficaria apenas no estudo, hoje

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 17

pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas-Artes. Ali tam-


bém se podem ver estudos para outras obras, como “Retrato de Dom
João VI”, “Feliz Aclamação de Sua Majestade Imperial no Campo
de Santana”, “Coroação de Dom Pedro I” e outros.

Auto-retrato de Jean Baptiste


Debret

Debret, homem típico da época das Luzes, artista talentoso e inves-


tigador por excelência, anotou, em textos e em aquarelas luminosas
e de gosto delicado, aspectos da sociedade brasileira. Todo esse tra-
balho de investigação científica seria publicado em Paris com o títu-
lo “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, constituindo-se, para o
historiador e o antropólogo de hoje, em importante testemunho de
época, retratando traços da cultura brasileira do início do século
XIX. Nessas aquarelas, o rigor neoclássico é menos presente, fican-
do os inúmeros retratos que Debret elaborou da terra que o acolhia
como composições onde o artista pôde expressar maior sua sensibi-
lidade e gosto pela pintura.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 18

Jean-Baptiste Debret trabalhou


para corte de Bonaparte como
pintor ligado à estética da Fran-
ça revolucionária.
Sua pintura é dotada de erudição
e de apuro acadêmico no dese-
nho das formas e na distribuição
da luminosidade sobre a cena.
Os personagens têm aquela
teatralidade tão ao gosto das
pinturas do mestre Jacques-
Louis David.
No Brasil, Jean-Baptiste Debret
assumiria a liderança do grupo
de artistas franceses, após o
falecimento de Joachin Lebre-
ton.

Em 1829, Debret organizou a primeira exposição de arte no Brasil,


reunindo 115 obras, das quais 82 foram executadas por seus alunos,
entre os quais Simplício Rodrigues de Sá, Francisco Pedro do Ama-
ral, José Christo Moreira e outros. Félix-Émile Taunay (1795-1881),
filho de Nicolas Antoine Taunay, participou também da mostra, ali
ainda expondo Grandjean de Montigny e Marc Ferrez. A exposição
repetiu-se outros anos, até que Félix-Émile Taunay, quando diretor
da Academia, a transformasse nas chamadas Exposições Gerais de
Belas-Artes.
Outro pintor que integrou a Missão Artística Francesa foi Nicolas-
Antoine Taunay, artista erudito, de desenho elegante e suavidade no
colorido de suas pinturas, foi ele apontado, na historiografia artística
nacional e estrangeira, como “pré-romântico”, apesar de estar enga-
jado àquele grupo predominantemente neoclássico20. Deve-se às re-
lações pessoais desse pintor com os príncipes regentes Dom João e
Carlota Joaquina a verdadeira origem da vinda do grupo para o Bra-
sil, muito embora existam afirmações em contrário. Afonso de Es-
cragnolle Taunay, em seus importantes estudos sobre os artistas
franceses que aportaram no Rio de Janeiro em 1816, esmera-se em
demonstrar que eles vieram ao Brasil a pedido do Príncipe Regen-
te21. Os documentos encontrados pelo prof. Donato Mello Jr. no a-

20
Suzanne Gutwirth escreveu o artigo “A Pre-Romantic Painting by Nicolas-Antoine Taunay”, no Bulletin of
Los Angeles County Museum (1979), pelo qual demonstra elementos formais no trabalho do paisagista
francês que se adiantavam, já nos fins do século XVIII e início do seguinte, à pintura romântica que se se-
guiria à austeridade do movimento neoclássico. O professor Mário Barata também refere-se ao romantismo
que se verifica nas obras de Nicolas e Félix Taunay, em seu estudo sobre o século XIX. Cf. BARATA, Má-
rio. "A arte no século XIX: do Neoclassicismo e Romantismo até o Ecletismo". In: ZANINI, Walter. (org.)
História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983. p. 380.
21
Cf. TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Documentos sobre a vida e a obra de Nicolau Antônio Taunay (1755-
1830) – Um dos fundadores da Escola Nacional de Belas-Artes. Revista do Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro. Tomo LXXVIII, Parte II; e principalmente TAUNAY, Afonso de Escragnolle. A Missão
Artística de 1816. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1983.
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Neoclassicismo 19

cervo documental do Museu Imperial, todavia, relatam o que parece


ser a primeira referência da contratação dos artistas franceses. Por
essas cartas, entende-se ter sido Nicolau Taunay quem solicitou au-
torização para vir ao Brasil, oferecendo-se para “professor dos prín-
cipes ou conservador de coleções de arte de Dom João VI e Carlota
Joaquina”. O prof. Donato Mello Jr. levanta a possibilidade, à luz do
que os documentos revelam, que Taunay já teria estado em Portugal
e conhecido o Príncipe Regente e sua esposa, a quem agradece, nu-
ma das cartas, pela boa acolhida.22 Parece-nos, todavia, que a cir-
cunstância com que chegariam ao Brasil, se postulantes à proteção
do Príncipe Regente ou a convite desse, em nada minimiza ou valo-
riza a importância daquele grupo de artistas franceses. Ao contrário:
é exatamente na dimensão do que eles fizeram construir para a His-
tória da Arte brasileira, nomeadamente no plano pedagógico, que os
torna tão importantes.

Nicolas Antoine Taunay - "Morro de Santo Antônio em 1816”


Taunay foi um paisagista das ruas e arrabaldes cariocas, que soube
captar através de um desenho preciso e de um colorido harmonioso,
ao gosto da tradição francesa das paisagens classicistas de Claude
Lorrain (1600-1682) e de Nicolas Poussin (1594-1665). Excelente
retratista, elaborou também trabalho dentro da temática mitológica,
como “Pastores da Arcádia”. Taunay ficaria conhecido, todavia,
como paisagista que se encantou pelo aspecto exuberante de nossa
natureza.
A escultura de Marc Ferrez foi um outro exemplo da arte neoclássi-
ca no Brasil, que formou pelo menos duas gerações de escultores
brasileiros. A herma do escritor romântico Domingos Gonçalves de
Magalhães, modelada em gesso patinado, é um exemplo do neoclas-

22
Cf. MELLO Jr. Nicolau Antônio Taunay, precursor da Missão Artística Francesa ao solicitar emprego a Dom
João VI – Duas cartas suas inéditas colocam-no na origem remota da Missão e revelam sua passagem por
Portugal. Mensário do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Ano 7, n. 8 1976. p. 3

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 20

sicismo que, na escultura, segue a modelagem austera da arte do es-


cultor italiano Antônio Canova (1757-1822).
O busto em bronze de Dom Pedro II, feito pelo escultor Zepherin
Ferrez em 1846, também acompanha o rigor da concepção neoclás-
sica, com o ainda jovem imperador posando dentro de traje típico do
garbo imperial. A escultura revela uma inusitada leveza, apesar da
temática oficial e do estilo neoclássico de que se reveste. Nela per-
sebe-se o emprego de superfícies lisas, eliminando-se imperfeições e
acessórios dispensáveis ao retrato. Os olhos são lisos, os cabelos or-
ganizados em mechas ritmadas, a expressão do monarca é captada
de forma serena e superior.
A Missão Artística Francesa teve importância ímpar para o desen-
volvimento da arte no Brasil por duas importantes razões. Em pri-
meiro lugar, esses artistas, advindos de um centro cultural de capital
Zepherin Ferrez - Busto de importância no contexto artístico europeu, concorreram para arejar o
Dom Pedro II, 1846 (Museu
Nacional de Belas-Artes)
ambiente artístico nacional, ainda bastante apegado às formas e pa-
drões da era colonial. Esses seguidores do neoclassicismo ajudaram
a reafirmar, no Brasil, uma tendência estética, que apenas de manei-
ra tímida vinha-se manifestando na segunda metade do século XVIII
no Rio, em Salvador e em Belém. Mas a contribuição mais efetiva
que a Missão Francesa representaria para a arte brasileira seria a ins-
titucionalização do ensino artístico sob bases sistemáticas, valori-
zando a formação do aluno através da prática do desenho, dos estu-
dos teóricos e de academia, permitindo acesso a um maior número
de interessados em arte. A partir da criação da Academia Imperial
de Belas-Artes, várias gerações de pintores, escultores, gravadores e
arquitetos foram-se formando ao longo dos tempos, concorrendo pa-
ra o aprimoramento da arte dos oitocentos.

Os discípulos dos artistas franceses


A escola estabelecida pelos membros da Missão de 1816 logo pro-
duziria sucessivas gerações de artistas, que levaram o ensinamento
acadêmico à frente. Esses artistas, todavia, especialmente na área da
pintura, não deram seqüência, no plano profissional, aos ensinamen-
tos neoclássicos e cedo receberiam influência do Romantismo, que
chegava da Europa. A despeito do viés romântico que a pintura aca-
dêmica rapidamente abraçaria, buscando traços da identidade nacio-
nal na paisagem e no índio, o ensino praticado dentro da Academia
Imperial de Belas-Artes continuaria a privilegiar a estética neoclás-
sica durante muito tempo. Assim, muitos pintores e escultores do
século XIX que hoje são vistos como românticos ou mesmo realis-
tas, foram, quando alunos, compenetrados seguidores de Johann
Winckelmann (1717-1768), o grande teórico alemão do Neoclassi-
cismo. Tal aspecto acabaria por se constituir numa característica da
Academia de Belas-Artes, explicando o caráter conservador de que
ela seria acusada tempos depois.
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Neoclassicismo 21

A escultura de Francisco Manuel Chaves Pinheiro (1822-1884)


mantém-se fiel ao Neoclassicismo por muitos anos ainda. Discípulo
de Marc Ferrez, realizou vários trabalhos para o governo de Dom
Pedro II, sendo ele autor de uma importante escultura eqüestre do
Imperador, hoje no acervo do Museu Histórico Nacional. O artista
realizou trabalhos para a Igreja de São Francisco de Paula (Rio de
Janeiro), havendo ainda obras de sua autoria no acervo do Museu
Nacional de Belas-Artes, como a “Deusa Ceres”, medindo 126 x 44
x 40 cm, onde o artista apresenta um estudo em terracota dessa deu-
sa da agricultura.
Na arquitetura, a influência de Grandjean de Montigny seria dura-
doura e, até a década de 1850 e a de 1860, vários outros artistas con-
tinuaram a elaborar trabalhos filiados à doutrina neoclássica. Do-
mingos Monteiro pertence à nova geração de artistas neoclássicos,
atuando na concepção do Hospício Pedro II e na Santa Casa de Mi-
sericórdia do Rio de Janeiro. Entre os discípulos de Grandjean, po-
dem ser mencionanos os nomes de Joaquim Cândido Guillobel, José
Maria Jacinto Rebelo, Manuel de Araújo Porto Alegre, Joaquim Be-
thencourt da Silva, Jó Justino de Alcântara, o primeiro aluno da A-
cademia a tornar-se professor de arquitetura, em substituição a
Grandjean de Montigny, e Antônio Batista da Rocha, que seria pre-
miado por diversas vezes, sendo transformado também em professor
da Academia de Belas-Artes.
Manuel Chaves Pinheiro,
Deusa Ceres De Justino de Alcântara, tem-se uma ponte em estilo romano na Flo-
(Museu Nacional de Belas- resta da Tijuca e sabe-se que foi dele o primeiro projeto para o zim-
Artes) bório da Igreja da Candelária, construção de que ele foi arquiteto en-
tre 1857 e 1865. A solução para a cúpula da edificação pensada por
Justino de Alcântara, que previa a utilização de madeira na estrutura
e de revestimento em cobre, acabaria não sendo adotada, preferindo-
se aquela proposta por Gustavo Waehneldt, em alvenaria.

Gustavo Waehneldt, Cassino Fluminense (Automóvel Clube do Brasil)

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 22

Outro arquiteto da segunda geração, embora não sendo discípulo de


Grandjean, foi Gustavo Waehneldt, autor de vários prédios neoclás-
sicos situados no Rio de Janeiro, inclusive do antigo Cassino Flumi-
nense, atualmente ocupado pelo Automóvel Clube do Brasil, na rua
do Passeio23. Nesse edifício de dois pavimentos, vê-se o pórtico cen-
tral enquadrado por dois pares de colunas jônicas, com uma portada
em arco pleno e, no andar superior, três janelas de corpo rasgado,
guarnecidas de grades de ferro. Na cimalha, vêem-se o frontão clás-
sico e uma platibanda cega.
Gustavo Waehneldt foi um dos arquitetos que promoveram reformas
no Palácio Imperial da Quinta da Boa Vista, alterando sua modinatu-
ra para a feição neoclássica que possui hoje em dia, com seu frontis-
pício austero, encimado por três frontões triangulares: ao centro e
nas laterais da fachada. Na parte superior, a platibanda balaustrada
recebe esculturas clássicas, que funcionam como pináculos. A vo-
lumetria do prédio, cuja simetria é reafirmada pelos dois torreões la-
terais e pelo pórtico central, que também avança para além do plano
da fachada, remete-nos ao palácio da Ajuda situado em Lisboa, do
traço de José da Costa e Silva.

Gustav Waehneldt, Pedro Pézerat e outros. Quinta da Boa Vista


(Rio de Janeiro)
No prédio da Quinta da Boa Vista, que serviu de residência oficial
para os imperadores brasileiros, atuou também o arquiteto de origem
francesa Pedro Pézérat, que trabalhou para Dom Pedro I na década
de 1820. Aluno da Escola Real de Arquitetura de Paris e da Escola

23
Mário Barata sugere que a autoria dessa edificação é de Luís Hosxe, datando-a do ano de 1855. CF. BARA-
TA, Mário Antônio. Rio Neoclássico. In: BRENA, Giovanna Rosso del Brena; ARESTIZABAL, Irma. Rio:
guia para uma história urbana. Rio de Janeiro: Fundação Rio, 1982. v. 2, [p. 24].

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 23

Politécnica, Pézérat chegou ao Rio de Janeiro ainda jovem24 e con-


correu, ao lado de Grandjean de Montigny, para a construção de al-
guns prédios que adornam, com sua austeridade e pureza de estilo,
as ruas da então capital do Brasil. Traçou as linhas de um Palácio
Real em Petrópolis, obra que não chegou a ser concretizada àquela
época, sendo também responsável pelo risco do prédio da Academia
Militar, que até então havia funcionado na Casa do Trem25.

Pedro Pézerat - Casa da Marquesa dos Santos


(Museu do Primeiro Reinado)
Pézérat atuou também na reforma que conferiria o aspecto neoclás-
sico da residência da Marquesa de Santos, também situada em São
Cristóvão, um dos mais notáveis casarões desse estilo no século
XIX. Na parte frontal da fachada, vê-se o clássico frontão grego, em
cujo tímpano aparece um relevo em estuque trabalhado graciosida-
de, o mesmo se verificando num friso colocado abaixo da cimalha,
que atenua o aspecto solene da fachada. Na parte posterior da facha-
da, voltada para o jardim interno, vê-se uma escadaria semicircular
de grande efeito classicista.
Na década de 1820-30, deve-se mencionar igualmente o trabalho do

24
Informa-nos Donato Mello Jr. que foi em 1825 o ano da chegada do arquiteto francês ao Rio de Janeiro. Cf.
MELLO Jr., Donato. “Arquitetura Imperial Brasileira”. In. LEVY, Carlos Roberto Maciel; MELLO Jr.,
Donato. O Rio de Janeiro imperial. São Paulo: s.ed., 1988. p. 42
25
A Academia Militar só seria transferida para o Largo de São Francisco em 1828, no lugar que então havia-se
pensado para a construção da nova Sé da cidade do Rio de Janeiro, obra que ficaria em meio por muitos a-
nos, sem jamais ser concluída. O Largo de São Francisco, antes denominado de Largo da Sé Nova, passou a
ter esse nome em 1759, quando lançou-se a pedra fundamental da nova igreja de São Francisco de Paula, da
irmandade da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, criada através da provisão de 9 de
julho de 1756. Cf. ALONSO, Aníbal Martins. Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco
de Paula – Resumo histórico e ilustrado da Instituição e suas fundações. Rio de Janeiro, s/ed., 1970,
pág. 35 e seg.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 24

engenheiro militar Joaquim Cândido Guillobel, autor do projeto do


Chafariz da Carioca, que substituiu o que havia no local, onde de-
sembocava o aqueduto da Carioca, obra edificada pelo Vice-rei Luiz
de Vasconcelos do século XVIII e que muitos benefícios trouxe à
cidade. O chafariz de Guillobel, infelizmente destruído em 1926,
mas que pode ser analisado a partir da aquarela de Eduard Hilde-
brandt (1844), era todo em cantaria de granito carioca, de aspecto
imponente, embora de efeito algo pesado, em razão do tamanho
desproporcional como também pela total ausência de elementos cur-
vilíneos ou de vãos que lhe suavizassem o traçado austero e maciço.
Contribuía para esse efeito a sua implantação num largo ainda de
pequenas dimensões, cercado de edificações barrocas, como o Con-
vento de Santo Antônio e a igreja de São Francisco da Penitência,
ambos de arquitetura delicada, de partido harmonioso e adornada, no
caso do Convento de Santo Antônio, de graciosas curvas em seu
frontão. A relação do objeto neoclássico com a ambiência que o aco-
lherá, a exemplo também do que fizera Costa e Silva para o túmulo
de Dom Pedro Carlos dentro da Capela de Nossa Senhora da Con-
ceição, foi um problema pouco observado pelos então construtores
de época, que ignoravam o impacto entre o antigo e o moderno, nem
sempre absorvido plenamente pela cenografia arquitetônico-
urbanística.

Joaquim Cândido Guillobel - Chafariz do Largo da Carioca (já destruído)


O funcionamento da Academia bem assim certo afluxo de arquitetos
que para aqui migraram e fizeram significar, no cenário artístico
brasileiro, seus trabalhos, seriam os grandes responsáveis pela con-
tinuidade da estética neoclássica entre nós durante a primeira metade
dos anos oitocentos. Como já foi observado, o mesmo não se daria,
com tanto intensidade, no campo da pintura ou mesmo da escultura,
em que pese o neoclassicismo que ainda resistirá na obra do escultor
Chaves Pinheiro. Na pintura, cedo manifestar-se-ão os influxos do

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 25

romantismo, como nas obras do já mencionado Nicolas Taunay,


bem assim Felix Émile Taunay, filho do primeiro e seu sucessor no
magistério da Academia, conforme já ficou consignado em trabalho
do prof. Mário Barata26. Manuel de Araújo Porto Alegre, Agostinho
José da Mota, Augusto Muller seriam pintores que refletiriam o iní-
cio do movimento romântico no Brasil – praticamente de forma con-
sonante ao desenvolvimento dessa escola na Literatura –, iniciando
uma nova fase da história da cultura brasileira, igualmente sob in-
fluxo duma matriz européia, embora buscando traços identificadores
da cultura nacional através da paisagem e da pintura do índio.
A Academia Pernambucana
de Letras é um exemplo de
como o Neoclassicismo con-
segue um efeito de serena
grandiosidade, mesmo quan-
do se trata de uma edificação
de dimensões medianas.
Os arcos plenos que arrema-
tam as janelas e a galilé que
dá acesso à entrada principal,
contribuem para suavizar o
rigor neoclássico do imóvel.
Louis Vauthier conseguiu,
neste imóvel, a idéia de re-
quinte e de grandiosidade,
mas sem ostentação. Sua obra
é uma referência para o neo-
classicismo em todo Brasil

Várias outras províncias brasileiras receberão também influência da


arquitetura neoclássica, como é o caso de Pernambuco, onde atuou
Luís Vauthier entre 1840 e 1846, quando constrói o Teatro Santa I-
sabel e o prédio da Academia Pernambucana de Letras, ambos situ-
ados no Recife. A solução encontrada por Vauthier para a fachada
desse último imóvel obedece ao padrão classicista, mas com o a-
créscimo de uma galilé que avança para fora do pano da fachada, a-
brindo espaço assim para um pequeno terraço no andar superior cer-
cado de balaustrada graciosa. O prédio é todo forrado em azulejos,
sendo seus vãos (janelas e portas) arrematados por arcos plenos e
adornados em trabalho delicado de estuque.
Em Belém do Pará, onde a tradição clássica já vinha do século XVI-
II, tem-se o Palácio da Câmara Municipal e Prefeitura, com planta
de 1868 do Barão de Marajó, com seu frontão triangular, colunata
toscana e um friso que imita os antigos templos gregos. O Teatro da
Paz, projetado por José Tibúrcio Pereira Magalhães, aprovado na-
quele mesmo ano e construído até 1875, marca também a arquitetura
neoclássica fora do Rio de Janeiro.

26
BARATA, Mário. "A arte no século XIX..." Op. cit. p. 380.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 26

Palácio da Câmara Municipal e Prefeitura de Belém (Pará)

3. Neoclassicismo tardio
Durante a segunda metade do século XIX, o Neoclassicismo ainda
ocorre no país, ainda que tardiamente, mas também de forma criati-
va e monumental. É uma época em que o movimento reaparece in-
corporado ao clima de tolerância estilística que o Ecletismo permitiu
e até incentivou no último quartel do século XIX e início do XX. O
Ecletismo é um estilo ainda pouco conhecido no campo da historio-
grafia artística, mas deve ser visto como um momento em que a ar-
quitetura aparece marcada pela recuperação, livre e criativa, de vá-
rios estilos arquitetônicos extraídos de diferentes estilos do passado.
Sem dúvida alguma, o mais importante exemplar da arquitetura neo-
clássica tardia no Brasil é o Museu do Ipiranga, edifício construído
segundo o traço do arquiteto Ramos de Azevedo, para marcar o lo-
cal e comemorar o 7 de Setembro. O Museu do Ipiranga, concebido
na era do ecletismo no Brasil, com sensibilidade para o resgate dos
elementos classicizantes, tem, como principal característica, a marca
da monumentalidade com a qual se evoca, por essa obra, a impor-
tância do fato histórico que o prédio representa. A solução clássica
do frontão e colunata coríntia, que avança para além do pano da fa-
chada principal, conjugada à utilização das proporções obtidas por
relações geométricas harmônicas, conferem a austeridade com a
qual o imóvel se reveste em toda sua extensão. O apelo clássico que
caracteriza o edifício dá a ele um sentido de equilíbrio e, especial-
mente, de estabilidade: nada mais adequado para representar o sím-
bolo da fundação da Nação. Não existe, por isso, no prédio, qualquer
concessão à graciosidade das formas sinuosas, senão pelo emprego
disciplinado de curvas em arcos plenos sobre os vãos principais da

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 27

fachada e do interior do imóvel.

Ramos de Azevedo - Museu do Ipiranga (São Paulo)


Arquitetos e engenheiros inscreverão seus nomes na história da arte
brasileira dessa última fase do neoclassicismo, já incorporado ao
tempo eclético. O General Francisco Sousa Aguiar, autor do Palácio
Monroe no Rio de Janeiro, faz o traçado da Biblioteca Nacional,
com seu pórtico central grego e os cantos do prédio em forma de ba-
luartes de uma fortaleza.

General Souza Aguiar - Biblioteca Nacional, 1905


Ramos de Azevedo, em São Paulo, projeta também o Teatro Muni-
cipal de São Paulo, também em partido classicizante. No Amazonas,
são edificados, entre outros exemplos notáveis da arquitetura palaci-
ana, o Palácio da Justiça e, num sentido mais erudito, sob influência
do neoclassicismo tardio lusitano, o Teatro Amazonas, concebido
originalmente no Gabinete Português de Engenharia (Lisboa). Em
Belém, onde os antecedentes neoclássicos já eram verificados desde

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 28

o final do século XVIII, o Teatro da Paz é remodelado no final dos


anos oitocentos, enriquecendo-se ao gosto eclético, ao tempo em que
se constrói, sob o risco do engenheiro Francisco Bolonha, o Palacete
Bolonha.

Considerações finais
Ao contrário do que se costuma afirmar em livros sobre arte brasilei-
ra, o Neoclassicismo não começa com a chegada da Missão de 1816,
mas ainda no século XVIII, através de um estilo de transição, que
pode ser chamado de pombalino. Nesse estilo, convivem ainda ele-
mentos do Barroco, ao lado de tendências já classicizantes.
A Missão Artística Francesa (1816) teve importância capital para o
desenvolvimento da arte nacional, renovando, por um lado, o ambi-
ente artístico brasileiro, como também instituindo uma prática de
ensino que iria conferir um grande impulso à arte nacional, com o
contributo no plano pedagógico do estudo acadêmico.
Especialmente na arquitetura, o estilo se manterá vivo ainda durante
todo o século XIX, adquirindo sua inflexão tardia já à época da vira-
da do século, quando então o Ecletismo incorporará novas experiên-
cias revivalistas pautadas na tradição do gosto clássico.

Bibliografia Neoclassicismo

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Cour impériale du Brésil (1825-1831). Histoire de l’Art – Revue de recherche et d’information
publiée sous l’égide de l’Association des professeurs d’archéologie et d’histoire de l’art des
universités, avec la participation du Ministère de la Culture (École du Louvre, Sous-directions
de l’Inventaire général), du Ministère de l’Éducation et de la Recherche, avec le soutien de
l’Institut Nacional d’Histoire de l’Art, n. 55 octobre 2004, p. 69-83.
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19. MUSEU Nacional de Belas-Artes. Exposição Le Breton e a Missão Artística Francesa de
1816. Rio de Janeiro, 1960 (Catálogo de exposição).
20. NOVOTNY, Fritz. Painting and Sculpture in Europe: (1780-1880), Baltimore: Pelikan, 1960
21. OLIVEIRA, Myriam Ribeiro. Alguns aspectos da originalidade da obra de Landi em Belém
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23. REIS JÚNIOR, José Maria dos. História da Pintura no Brasil. São Paulo: Leia, 1944.
24. RIOS FILHO, Adolfo Morales de los. O ensino artístico - subsídio para sua história (1816-
1889), In: Boletim do IHGB. (Anais do III Congresso de História Nacional - outubro de 1938)
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
25. ____________. Grandjean de Montigny e a evolução da arte brasileira. Rio de Janeiro, A
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29. STAROBINSKI, Jean. 1789: os emblemas da razão, São Paulo: Cia das Letras, 1982
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31. TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Documentos sobre a vida e a obra de Nicolau Antônio
Taunay (1755-1830) – Um dos fundadores da Escola Nacional de Belas-Artes. Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXXVIII, Parte II, p. 5-140, 1916.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Neoclassicismo 30

32. ____________. A Missão Artística de 1816. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1983.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na Pintura brasileira do século XIX
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro

O iniciar do Romantismo no Brasil não foi tanto uma reação estética aos postulados da arte
que o precedera, o Neoclassicismo, quanto o produto do processo de ambientação de um estilo
que aqui encontraria condições históricas que o fariam medrar com riqueza e significações
simbólicas profundas. É o primeiro movimento que viceja depois da Independência,
enveredando pela busca de uma identidade coletiva a partir de uma visão tomada pela
subjetividade dos sentimentos humanos.

Entender o período exigiria esforço maior do que o que nos propomos neste artigo, porque
precisaríamos analisar, além da pintura e da escultura, também a literatura, a música, a
arquitetura; perscrutar os meandros da mentalidade da época, em que concorrem tantos
aspectos históricos assinalados pelo surgimento do sentido da individualidade numa sociedade
que se desenvolve e, ao mesmo tempo, procura delinear os fatores que a identificam no plano
da coletividade.

A literatura romântica inicia-se como que se lançasse o manifesto com Domingos Gonçalves
de Magalhães e Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), ou até mesmo já com Souza
Caldas, Frei Francisco de São Carlos e com o próprio patriarca da Independência, José
Bonifácio, que já não são mais inteiramente árcades e parecem testemunhar o caráter de
transição do período, voltar-se para o porvir romântico que a geração seguinte iria firmar. Já
se percebe, nesses, o estro inventivo de exortação nacional, o extravasamento laudatório à
natureza brasileira, a reafirmação da ascendência religiosa – do catolicismo, bem entendido –
sobre a razão e a sensibilidade ao individualismo.

A Pintura e a Escultura seguiram a poética romântica que a Literatura descortinava, da


temática colhida na referência européia – Goethe, Schlegel, Lorde Byron, Walpole, Scott,
Rousseau e Chateaubriand – para o meio nacional. A arte romântica brasileira incorpora-se
definitivamente à literatura, seguindo-lhe de perto o engenho imaginativo. Pintura marcada
por subjetividade que vivifica o culto à individualidade, aos devaneios dos sentimentos
humanos, estremados nas revelações da alma que a época tanto prezou, essa arte que pintores,
gravadores, escultores e arquitetos cultuariam durante boa parte dos anos de oitocentos,
sobretudo na inflexão tardia que avança pelos fins do século XIX, assinalou os tempos de
O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 2

afirmação cultural e de busca de identidade do país após o advento da Independência. Era o


Romantismo.

A mudança do Neoclassicismo para o Romantismo, para além de suas implicações estéticas,


tinha suas razões no momento histórico, pois que à universalidade revolucionária setecentista
de que se fez porta-voz o estilo de Jacques-Louis David (1748-1825) e Germain Soufflot
(1709-1780) à época da expansão da ideologia liberal mundo afora, contrapôs-se a
especificidade nacionalista romântica que marca a primeira metade do século XIX na Europa
e, no Brasil, eclode como movimento durante a fase de afirmação do país no cenário
internacional, após a Independência. O Romantismo, como arte imaginativa, passional e
criadora, será veículo de fecunda criatividade de expressão de tais valores. Enquanto a arte
clássica se prende obstinadamente à forma, a romântica emerge da expressão. A arte clássica
volta-se para o homem, através dum discurso racional e moralizante; a romântica detém-se
nos aspectos intuitivos do homem.

No início do século XIX, o momento é o de transição: na literatura, é o Arcadismo que fenece;


nas artes, o Neoclassicismo servirá de base à formação de vários artistas, mas logo
demonstraria, assim que se formam as primeiras gerações pintores e escultores, sinais de
renovação. O Neoclassicismo foi a referência a partir de que os artistas e arquitetos fizeram
evoluir suas obras. Não se percebem rupturas no período, seja por ocasião da chegada dos
artistas da Missão de 1816, seja na sua evolução para o Romantismo. Muito de sua doutrina
permaneceria engajada no meio artístico nacional, seja pela simples continuidade em muitas
obras arquitetônicas, especialmente as de viso palaciano, seja pelo rigor com que o ensino
acadêmico na escola de artes era ministrado, pelo qual se privilegiava a chamada verdadeira
arte. Quase não há clima de oposição entre o Romantismo e o Neoclassicismo no ambiente
cultural brasileiro, mas uma tendência conciliatória ao longo da sucessão dos estilos. Artistas
como o romântico Porto Alegre e o realista Rodolfo Bernardelli legaram trabalhos escolares
ainda profundamente marcados pelo Neoclassicismo. Por isso a pintura da paisagem, quando
ocorre com sua exuberância criativa nos Taunays e depois em Porto Alegre, tem tanta
importância para a história do Romantismo no Brasil. Seria através dela, interpretada mais sob
a inspiração dos devaneios da sensibilidade do que pelo olhar austero da razão, que o estilo se
faria sentir logo em seus primeiros momentos.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 3

Nicolas Antoine Taunay, na pintura, antecede a todos no Brasil, não apenas


pela primazia de sua presença na cronologia estilística brasileira, mas porque o
significado artístico da sua obra, no tempo, alvitra méritos que o evidenciariam, no
cenário artístico nacional, por gerações afora. Partícipe ele mesmo das primeiras
manifestações estéticas que se distanciavam do Neoclassicismo na Europa, nem
sempre foi, por isso, compreendido pelos contemporâneos e pela historiografia
artística, que mais se tem esmerado em o estudar entre seus confrades da Missão
Artística Francesa do que em o dimensionar no ambiente artístico nacional e mundial.

A presença de Taunay em meio àquele séqüito de artistas franceses é instigante, pois os


neoclassicistas minimizavam a interpretação da paisagem entre os grandes gêneros artísticos
pelo que ela tinha de rebelde, informe e desvinculada da idéia de um mundo idealizado e
perfeito, tal qual os teóricos da Ilustração valorizavam, o que só poderia ser alcançado, na
arte, através da representação da figura humana e dos temas históricos e mitológicos. Somente
com a liberdade de criação do Romantismo é que esse gênero de pintura seria novamente
valorizado. Lebreton, que chefiava a Missão Artística Francesa, em documento encaminhado
ao Conde da Barca a 12 de junho de 1816, ao sugerir a composição do corpo docente da
escola que pretendia instituir, avalia o trabalho de Taunay muito mais pelo talento do pintor
do que pelo alinhamento dele com os preceitos estéticos da ótica neoclássica. Nega-lhe,
mesmo, a qualidade de clássico. “O talento do Sr. Taunay”, escreve ele, “o mais velho,
embora muito destacado, não pode ser tido como clássico, sob este ângulo, mas seus
conselhos terão utilidade, sobretudo nos primeiros estudos de paisagem, e seu nome ilustrará a
escola”.1 Por esta razão, o chefe da Missão Francesa justifica, no mesmo documento, a
posição secundária que pretendia destinar ao ensino da pintura de paisagem na hierarquia das
matérias a serem ministradas na futura escola:

“Pintura - Esta arte se divide em duas partes principais: o gênero


histórico, ou grande gênero, e o que se denomina simplesmente pintura de

1
- LEBRETON, Cav. Joachim. "Memória do cavalheiro Joachim Lebreton para o estabelecimento da
Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro" in BARATA, Mário. "Manuscrito Inédito de
Lebreton". Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro,
23(14):297,1959.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 4

gênero, a qual abrange a paisagem, as cenas familiares e até os mínimos


pormenores da natureza. (...) É fora de dúvida que a pintura de gênero é útil e
agradável; penso ainda que em país como este, ao qual a natureza
prodigalizou todas as riquezas, os Pintores de gênero terão uma mina
inesgotável de assuntos de quadros, e que o gosto dos particulares sentirá e
encorajará de preferência a pintura de gênero, em vez da outra.

“Trata-se, porém, do ensino e dos princípios elementares da arte de


pintar em geral. Desse ponto de vista, é necessário que todos os ramos saiam
do tronco, que é o gênero histórico. Não houve nunca, nas grandes escolas da
Itália e da França, lições públicas de pinturas de gênero, e as Academias não
lhe reservaram senão pequeno número de lugares honoríficos.”2

Desta forma, o vínculo de Nicolas Taunay à Missão Artística Francesa, onde o


Neoclassicismo norteava os preceitos estéticos da Academia que então se formava, tem sido
reavaliado por historiadores da arte atuais: Suzanne Gutwirth escreveu o artigo “A Pre-
Romantic Painting by Nicolas-Antoine Taunay”, no Bulletin of Los Angeles County Museum
(1979), ressaltando aspectos formais de sua pintura que já apregoavam o gosto romântico de
que a arte nacional tanto se permearia; o crítico de arte Mário Barata também assinala que “...
o lirismo que exprimia um primeiro aspecto do romantismo e cedo se externou na poesia,
atingiu as artes visuais através da interpretação da natureza, com sensibilidade à paisagem, já
em obras dos dois Taunay, Nicolau e Félix, e nas importantes paisagens pintadas por Manuel
de Araújo Porto Alegre.”3

Felix Émile Taunay segue os passos do pai, Nicolas, na interpretação da paisagem brasileira.
A sensibilidade ao registro da natureza, num culto à própria visão da terra, eclode na fase
histórica em que o Brasil se vê independente e procura traços culturais que o identificam. A
paisagem é um traço desse esforço de delineamento da identidade nacional. Mas ela tem,
quando se iniciam aqueles anos da centúria, caminhos distintos a trilhar, se cotejarmos

2
- Idem, ibidem, p. 294.
3
- BARATA, Mário. "A arte no século XIX: do neoclassicismo e romantismo até o Ecletismo". In
ZANINI, Walter. (org.) HISTÓRIA GERAL DA ARTE NO BRASIL. São Paulo, Instituto Walter
Moreira Salles, 1983, p. 380.

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 5

diferenças entre a obra de Félix Taunay e a de Manuel de Araújo Porto Alegre. O paisagismo
de Félix Taunay sugere um olhar naturalista, com maior variação cromática e revela uma
composição egressa do classicismo francês. Dele seguirá a linhagem paisagística que ocorrerá
no Brasil ao longo do século XIX, com reflexo nas obras de Agostinho José da Mota (1824-
1878) e de August Müller, seus continuadores naquela geração. Porto Alegre, artista e
escritor, que divide com Pereira da Silva, Varnhagen, e principalmente Domingos Gonçalves
Magalhães, de quem é amigo e êmulo, parecia seguir caminho distinto daquele apontado por
Nicolas Taunay e que fecundara a palheta doutros artistas. A pintura de Porto Alegre, como
aquela que aparece ilustrada em FLORESTA BRASILEIRA, tem significado especial para a história
da arte brasileira. Essa, como outras paisagens pintadas pelo artista gaúcho, segue de perto a
influência da obra do conde de Clarac, que viera ao Rio de Janeiro em 1818 na comitiva do
Conde de Luxemburgo, entrando em contato com o naturalista francês August de Saint-
Hilaire. Clarac, depois de curta permanência no Brasil, voltaria para a Europa, indo instalar-se
no castelo de Neuwield, onde, de posse dos croquis que anotara diretamente da floresta
brasileira, conclui seu trabalho, pelo qual externou então a impressão que a natureza brasileira
lhe causara. Exposta no Salão parisiense de 1819 e divulgada a partir de 1822, através de
gravura aberta por Claude François Fortier, a FLORESTA BRASILEIRA do conde de Clarac acabou
por se constituir modelo de representação das florestas virgens tropicais. No Brasil, Benjamin
Mary, ministro belga no Rio de Janeiro, foi um seu continuador. Do cenário fluminense, cita-
se também a obra Georg Heinrich von Löwenstern, igualmente marcada por certa
monumentalidade na escala da natureza e certa contenção na cor, como é o caso da pintura
LAPA, PASSEIO PÚBLICO E AJUDA, vista enquadrada pelo maciço portentoso da Tijuca. A obra
de Clarac evoca, pelo detalhismo e exatidão, o trabalho de Allaert van Everdingen (1621-
1675) e, pela grandiloqüência da pintura, o do mestre flamengo Jacob van Ruisdael na
abordagem da natureza, com aquela monumentalidade dramática que o paisagismo do Norte
europeu havia demonstrado no período barroco. O célebre naturalista alemão Alexander von
Humboldt, que conhecia como pouquíssimos europeus as florestas tropicais da América do
Sul, declarou que “Clarac é o primeiro a lograr uma representação da floresta tropical
científica e artisticamente convincente.” 4

4
Cf. LÖSCHNER, Renate. “Forêt vierge ao Brésil” von Comte de Clarac. In BRASILIEN – ENTDECKUNG
UND SELBSTENTDECKUNG. Berna, Benteli Verlag, 1992, pág. 133

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 6

Vem de Clarac a ascendência da pintura da paisagem em Porto Alegre. Na pintura da


paisagem, Porto Alegre não deixaria discípulos: sua influência deveu-se mais à ascendência
que gozou sobre outras gerações, como diretor da Academia e como intelectual, do que por ter
conseguido despertar, em outros, o desejo de seguir sua linha de trabalho. Pode-se dizer que
sua obra não chegaria a ser compreendida por alguns contemporâneos: Joaquim Lopes de
Barros Cabral, pintor e êmulo na Academia, traçou-lhe caricatura tão pobre de inventividade
crítica quanto desmerecida em relação ao que verdadeiramente tencionara criticar no autor de
5
FLORESTA BRASILEIRA.

Porto Alegre convivera com Nicolas Taunay na Academia, mas dele não assimila maior
influência do que receberia de Jean Baptiste Debret, seu professor de Pintura Histórica. Adota
uma arte em que a natureza se revela em dimensão épica, numa projeção maior do que a
representação naturalista das obras dos Taunays sugere. Esse interesse pela magnitude da
natureza, cuja escala parece ter assombrado viajantes que passaram pelo Brasil, não deixa de
ser também, até pelo sentido dramático da obra, mais do que pelo caráter idílico das cenas
campestres de Nicolau e Felix Taunay, composição de rica importância artística. Mas segue,
sem dúvida, vertente distinta da que viria a ser adotada no cenário artístico nacional.

Agostinho José da Mota encampa a gramática romântica em suas telas, marcadas, como em
VISTA DE ROMA e FÁBRICA DO BARÃO DE CAPANEMA, por atmosfera densa e de fraca
luminosidade. Desenhista exímio, Agostinho José da Mota soube registrar, em anotações
marcadas por sensibilidade e técnica acadêmica, aspectos da natureza brasileira captadas com
um olhar atento e intimista. Sua litografia BRASIL espelha esse gosto pelos recantos da
natureza, em que seu lápis litográfico parece percorrer e deslizar, num ritual mágico de
recriação da natureza, com exuberância e mistério.

Embora tivesse havido na Europa, sobretudo na literatura, sensibilidade ao resgate da era


medieval, numa metáfora de busca das origens dos estados europeus, a cultura erudita
brasileira entregara-se à procura dos traços que identificavam o país no plano do imaginário

5
As caricaturas foram publicadas numa edição intitulada “Álbum do Pinta-Monos”, cuja autoria é
atribuída a Barros Cabral, embora não exista ainda comprovação documental sobre isso,
segundo me fez significar o conservador de museus Pedro Martins Caldas Xexéo, que aventa
também a autoria, ainda que menos provável, de François-René Moreaux (1807-1860), com
quem Porto Alegre igualmente se indispôs.

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 7

coletivo, por meio da representação da paisagem brasileira, símbolo da terra. A paisagem e a


figura indígena são o mais eloqüente emblema do Novo Mundo, superando qualquer outro
elemento autóctone – por exemplo, o próprio povo, conforme aparece na obra do romântico
francês Théodore Géricault. É verdade que, dando azo à idéia da evasão mental que marcaria
o movimento, a paisagem detém-se na terra e não tanto nos seus habitantes ou mesmo na
relação destes com essa terra. Não seria o povo, mal saído dos grilhões da dominação colonial
e, ao mesmo tempo, alijado da luta pela Independência, o elemento que simbolizou a nação
naqueles anos de formação e afirmação dos valores nacionais, mas a própria terra, em toda a
sua dimensão natural onírica, o objeto que serviria de motivo para tais representações da
nação. O processo da Independência, no Brasil e na maior parte dos países do continente
americano, havia sido marcado pelo total distanciamento da população do processo de
separação. O caráter elitista desse movimento, que conseguiu, no Brasil, congregar a classe
dominante em torno de um projeto político de união nacional, de organização de um estado
monárquico e centralizador, de manutenção da religião oficial católica, defesa do modo de
produção escravista e do latifúndio monocultor destinado à exportação, redundou no esforço
oficial de construção da identidade nacional através de elementos simbólicos alheios a tal
realidade, onde o elemento popular não aparece representado, senão de forma episódica e
inexpressiva, de que o quadro sobre a Independência do Brasil, pintado por François
Moureaux, é exemplo quase isolado.

A paisagem é a representação atemporal da terra brasileira, retratando-a no estado inculto,


selvagem, anterior à ocupação do colonizador, por isso intocada pela civilização e não
corrompida por seus vícios. É a invenção da origem através da paisagem, onde predomina a
natureza inculta, embora idealizada e, por isso mesmo, com suas implicações edênicas, num
resgate de certa forma inconsciente da visão do estrangeiro sobre a terra brasileira ou, como já
foi observado, do paraíso perdido.

A visão da natureza, assim idealizada pelo olhar romântico, era herança do misticismo
construído desde o Renascimento e que foi marcado pela crença de que o descobrimento da
América tinha um sentido de remissão humana, fosse na sua perspectiva de exuberância
material com que o Novo Mundo passou a nutrir a expansão do capital comercial europeu,
fosse na visão do paraíso terreal recuperado. A natureza era a possibilidade concreta do mito

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 8

do paraíso perdido e não foram poucos aqueles que, no Brasil, testemunharam ser estas terras
algo mais do que apenas um recurso natural bem provido.

Cronistas da fase colonial haviam anotado, desde o século XVI, não apenas a exuberância
material da terra, mas suas implicações religiosas. “Se houvesse paraíso na terra” – escreveu
Rui Pereira em 1580 – “eu diria que agora o havia no Brasil”; Cristóvão de Acuña, jesuíta que
percorreu, com Pedro Teixeira, o Rio Amazonas, refere-se à Amazônia como terra paradisíaca
e aos índios como população em tal quantidade que ali se poderia fundar um novo e poderoso
império; em 1650, Leon Pinelo que vislumbrava, no mapa da América do Sul, um coração
humano, afirmava que aqui nesta terra havia sido o local de nascimento de Adão, sendo o
Brasil um local possível do Éden. Ainda no século XVII, o jesuíta Simão de Vasconcelos, que
acompanhara Vieira numa viagem à metrópole, apóia-se em São Tomás de Aquino para
afirmar:
“Que o Paraíso há de crer que foi situado em lugar temperadíssimo ou
debaixo da Equinocial – ressaltando a diferença existente – entre alguma
parte deste Brasil e daquele Paraíso da terra que Deus Nosso Senhor, como
jardim, pôs o nosso primeiro pai Adão (...) por ser esta a parte mais
6
temperada, amena e deleitosa de todo o universo.”

O caso do português Pedro de Rates Hanequim é também interessante, pois reflete a visão
fantástica do Brasil como terra bíblica, berço telúrico do Éden. Hanequim defendia a idéia de
que o Dilúvio Universal não havia atingido as Américas, já que a Bíblia nada mencionava a
respeito do Novo Mundo. E o português, na opinião de Hanequim, sendo a primeira língua
falada no mundo, até a “confusão da Babilônia”, era ainda falado no céu. Seria no Brasil,
conforme previra Vieira, local para a fundação do “Quinto Império, que há de se levantar no
Brasil e há de ser por judeus portugueses (...) que todos são ou haveriam de ficar judeus”.
Hanequim foi condenado pela Inquisição a morte cruel.

6
Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. VISÃO DO PARAÍSO. São Paulo, Brasiliense, 1994; LEITE, Serafim.
“O tratado do paraíso da América e o ufanismo brasileiro”, in NOVAS PÁGINAS DA HISTÓRIA DO
BRASIL. São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1965; MAGASICH-AIROLA, Jorge e BEER, Jean-
Marc de. A AMÉRICA MÁGICA – QUANDO A EUROPA DA RENASCENÇA PENSOU ESTAR
CONQUISTANDO O PARAÍSO. São Paulo, Paz e Terra, 2000; e especialmente LYRA, Maria de
Lourdes Viana. A UTOPIA DO PODEROSO IMPÉRIO. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994.

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 9

Tratava-se de uma visão utópica em que a grandeza da terra, ainda na fase colonial, seduzia o
imaginário lusitano, que almejava, entre especulações registradas em escritos e circunstâncias
concretas, desde o século XVI, transferir a sede do poder monárquico português para o Brasil
e aqui fundar um novo e poderoso império. Mais precisamente, conforme apregoou o Padre
Antônio Vieira:
“Este é o sujeito da nossa história, e este é o Império que prometemos ao
Mundo. Tudo o que abraça o mar, tudo o que alumia o sol, tudo o que cobre e
rodeia a terra será sujeito a este Quinto Império; não por nome ou título
fantástico como todos os que até agora se chamaram Império do Mundo;
senão por domínio e sujeição.”7

Depois da Independência, o Brasil – feito império e não reino – passou a


receber influências culturais doutras nações, sem o patrulhamento dum sistema
colonial monopolizador, como havia sido nos tempos da clausura colonial portuguesa.
As dominantes relações colonizadoras entre Portugal e Brasil geraram a construção,
no Velho Mundo, de uma visão fantasiosa sobre a colônia portuguesa. Os reflexos não
seriam perceptíveis tão-somente no campo da cultura, mas também no da ciência,
segundo observaria Saint-Hilaire.
“Enquanto foi submetido ao sistema colonial, o Brasil esteve fechado
aos estrangeiros com tanto rigor que, em livro impresso em França há doze ou
treze anos, apenas, ainda se discutia se a baía do Rio de Janeiro era ou não a
embocadura de um grande rio. Hoje em dia, essa baía é tão conhecida como
as nossas enseadas mais freqüentadas; a emulação dos europeus é tal que
poucos anos lhes foram suficientes para adquirirem sobre o Brasil noções
perfeitamente exatas, e dentre em pouco terão ultimado de descrever o menor
inseto e a mais insignificante gramínea desse país imenso, que há bem pouco
ainda se apresentava à sua imaginação envolto no maravilhoso que é sempre o
apanágio dos objetos distantes e pouco conhecidos.”8

Essa redescoberta do Brasil, nos momentos iniciais, foi um deslanchar de


interpretações feéricas sobre nossas paisagens, visões duma natureza luxuriante que só
mesmo o lirismo romântico poderia interpretar com a fantasia que o olhar europeu

7
VIEIRA, Pe. Antônio. HISTÓRIA DO FUTURO. LIVRO ANTIPRIMEIRO. PROLEGÔMENO A TODA HISTÓRIA DO
FUJTURO, EM QUE SE DECLARA O FIM E SE PROVAM OS FUNDAMENTOS DELA. Lisboa Ocidental,
Oficina Pedro Galran, 1718, pág. 26.
8
SAINT-HILAIRE, Auguste de. VIAGENS PELAS PROVÍNCIAS DO RIO DE JANEIRO E MINAS GERAIS. São
Paulo, EDUSP; Belo Horizonte, Itatiaia, 1975, pág. 18.

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 10

oitocentista idealizou. O paisagismo no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro


durante a primeira metade do século XIX, tornou-se objeto cada vez mais permanente
dos pintores estrangeiros que aqui estiveram, muitos dos quais engajados em
expedições científicas. Levantamentos feitos da paisagem carioca e niteroiense
demonstram o quanto ela se foi constituindo como um símbolo da representação do
país.9

Vários são os pintores estrangeiros que representarão o cenário fluminense sob


um olhar fascinado pela natureza: Edmond B. de la Touanne, F. Fampom, Barthélemy
Lauvergne, Benjamin Mary, autor de paisagem enquadrada por um arvoredo
portentoso, registrado em sépia com indisfarçável emoção, em meio ao qual se
descortinam, lá em baixo, os arcos da Lapa, tomados das faldas do Morro de Santa
Teresa. August Muller, com suas vistas da Baía de Guanabara, Heinrich Wilhelm,
Príncipe Adalberto da Prússia, que registra a silhueta das montanhas do Rio de Janeiro
tendo como pano de fundo o pôr-do-sol, Karl Robert (barão de Planitz), que retrata o
bairro de BOTAFOGO EM DIREÇÃO AO JARDIM BOTÂNICO, Leon Jean-Baptiste Sabatier,
que com sua ESQUADRA DO PRÍNCIPE DE JOINVILLE, gravada em 1843, registrando uma
iluminação de rara magia que o artista soube imprimir em sua gravura, Abraham-
Louis Buvelot, pintor de história – foi autor, com Louis-Auguste Moreaux, duma
SAGRAÇÃO DO IMPERADOR DOM PEDRO II (1841) – e paisagista emocionado da paisagem
do Rio de Janeiro, Bernhard Wiegandt, com suas cenas urbanas ensolaradas de
luminosa melancolia.

A paisagem não foi tanto um traço do diletantismo e do interesse pelos temas


bucólicos por parte dos artistas, apesar daqueles que se deixaram tocar pelo apelo
cenográfico de nossa terra, mas constituiu-se, sobretudo, num elemento identificador
do país, passando às vezes a ser do interesse direto do estado brasileiro, como é o caso
do ministro Francisco de Assis Coelho, que, em relatório de 14 de maio de 1840,
sugeria que se criassem filiais da Academia Imperial de Belas-Artes em diversas

9
Ver o importante trabalho de Gilberto Ferrez, ICONOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO (1530-1890). Rio de
Janeiro, Casa Jorge Editorial, 2000; como também o importante trabalho de Ana Maria de
Morais Belluzzo, O BRASIL DOS VIAJANTES. São Paulo, Metalivros, 1994

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 11

províncias do país, para que, em tempo hábil, tivéssemos “belas vistas de nossa terra
reproduzidas em quadros”10. Em alguns casos, o próprio artista aventava a utilidade da
pintura de paisagem em benefício do interesse público, conforme ilustra Vítor
Meireles (1832-1903), ao elaborar o PANORAMA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, o maior
quadro já pintado no Brasil, medindo aproximadamente dez metros de altura por cem
metros de extensão, exposto inicialmente no Salão parisiense anos depois, e que se
destinava, segundo pretendia o autor, incentivar a imigração européia para o Brasil.

Mas não seria por força da elaboração desse trabalho magistral que Vítor
Meireles teve tanta importância no cenário artístico nacional durante os anos de
oitocentos. Vítor notabilizou-se no tempo como artista oficial da monarquia brasileira
e seu trajeto profissional justifica plenamente a escolha. Vítor Meireles foi,
simultaneamente, atento e escrupuloso pintor de história, para desvanecimento e
pompa do estado monárquico ao que serviu, e apaixonado paisagista, por sincero
desejo do seu espírito simples.

Como já havia sido observado pelo mentor da Academia, Joaquim Lebreton, a


pintura histórica era o mais importante ramo de pintura, entre todos os demais. Sua
prática ensejava a subordinação do artista pelo aparelho de estado. Essa vinculação
com o estado monárquico engendrava comumente uma pequena autonomia do artista
na criação de seus trabalhos, sendo assim responsável pelo conservadorismo com que
esse gênero artístico ficaria assinalado ao longo do século.

Por ocasião da importante exposição de 1884, onde novos valores artísticos,


especialmente no campo da pintura da paisagem,se vinham revelando, em oposição
cada vez mais crescente à pintura de história marcada pelo estudo sistemático da
figura humana, um atento crítico da Gazeta Literária escreveu: “Se fosse possível
estabelecer entre a seção de figura e a de paisagem um comparativo, aquela, que tem

10
Cf. COSTA, Lygia Martins. “A Paisagem na Pintura Brasileira”, in Anuário do MNBA (1944).

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 12

três professores e muitos alunos, perderia no confronto. (...) Só da aula de paisagem é


que se pode apreciar alguma coisa do quanto expôs a Academia”.11

A prática do gênero histórico dependeu sempre do estipêndio governamental,


até pelos altos valores que a execução de uma obra sempre implicava. A História
constituía-se na vertente do conhecimento coletivo imprescindível à construção da
memória nacional, levada a efeito através das produções artísticas. Através do gênero
histórico é que se podiam registrar passagens importantes da formação histórica do
país, com a exaltação das figuras que protagonizaram esses eventos, e também dos
fatos e personagens heróicos que Raymond Cogniat classifica como o trágico vivido,
tão explorado por Stendhal, Balzac, Antoine-Jean Gros (1771-1835), Francisco de
Goya (1746-1828), Théodore Géricault (1791-1824) e Eugène Delacroix (1798-1863).
No Brasil, a situação não seria diferente: a idéia do heroísmo deriva também desse
trágico vivido, de que são exemplos lapidares, por exemplo, as obras de José Correia
de Lima, que pintou o RETRATO DO INTRÉPIDO MARINHEIRO SIMÃO, CARVOEIRO DO VAPOR
PERNAMBUCANA, e de August Muller, autor de MESTRE DE UMA SUMACA. Em ambas as
pinturas, os personagens retratados encontravam-se no episódio de naufrágios
dramáticos de embarcações, mas salvaram a vida de várias pessoas que teriam
sucumbido pelas águas revoltas do mar. Mas é no plano da História que a idéia do
trágico vivido, visto como ato heróico, vivifica com força e apelo criativos. São
palavras de Vítor Meireles as que definem sua pintura PRIMEIRA BATALHA DOS
12
GUARARAPES como um encontro de heróis.

A Guerra do Paraguai forneceu farto material para a representação da figura


heróica e várias são as passagens eternizadas em pinturas históricas, como aquela em
que o cadete Serafim, partícipe da Batalha do Avaí mas morto na de Lomas
Valentinas, é retratado por Pedro Américo na célebre pintura BATALHA DO AVAÍ. Nessa
obra aparece também a figura do General Osório, ferido em batalha e, por isso,

11
- [ARAÚJO, Ferreira de] "MOVIMENTO Artístico" (Seção). Gazeta Literária, Rio de Janeiro,
2(8):184, 24.dez.1884. Ferreira de Araújo, ao que parece o autor desse artigo, era
proprietário do jornal Gazeta de Notícias, sendo também crítico e colecionador de arte.
12
Cit. em MELLO Jr., Donato. “Temas Históricos”. In VÍTOR MEIRELES DE LIMA (1832-1903). Rio de
Janeiro, Pinakotheke, 1982.

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 13

representado no centro da tela, envolvido na refrega, espada na mão, rosto marcado


pelo ferimento, o entusiasmo do militar gaúcho contagiando o contingente militar
brasileiro, comandado friamente pelo Duque de Caxias, posto num plano secundário
da obra13.

Vítor Meireles desincumbiu-se de diversas encomendas que o estado lhe fizera


no campo da pintura histórica, algumas das quais destinadas a registrar passagens da
Guerra do Paraguai, como o COMBATE NAVAL DO RIACHUELO (1872), onde o Almirante
Barroso aparece no convés da fragata Amazonas, a mão erguida segurando o quepe, as
bandeiras de sinalização da embarcação asseverando a vitória iminente. Sobre a
Guerra há também a PASSAGEM DO HUMAITÁ (1869), pintada pelo mesmo artista. O
pintor catarinense era contratado freqüentemente para a elaboração de registros
pictóricos de interesse histórico, como JURAMENTO DA PRINCESA ISABEL (1875),
RETRATO DE DOM PEDRO II (1877), A QUESTÃO CHRISTIE (estudo), a PRIMEIRA BATALHA
DOS GUARARAPES, PRIMEIRA MISSA NO BRASIL (1860) e CASAMENTO DA PRINCESA ISABEL
(estudo) (1864).

Mais do que qualquer outro de seu tempo, Vítor Meireles foi um artista em que o estado
monárquico investiu, acompanhou atentamente sua formação e transformou em artista oficial.
Até a geração em que desponta como prócer, ao lado de Pedro Américo, o estado brasileiro
não dispunha de artistas cujo talento estivesse à altura das aspirações oficiais, para a

13
A celebrada figura do Duque de Caxias, Patrono do Exército Brasileiro, não gozava, em sua época,
da mesma simpatia que a do General Osório. Apesar da sua importância como estrategista
militar, personagem mesmo capital para a vitória contra Solano López, a verdade é que o
resgate de sua importância histórica só ocorreria durante a década de 1930. Em vida, contudo,
Caxias não chegou a ser festejado pelos artistas e mesmo pela opinião pública. Ao contrário:
Ângelo Agostini retratou-o em charge muito espirituosa, roído de ciúmes pela celebridade de
seu principal êmulo. Rodolfo Bernardelli, autor de estátuas eqüestres referentes a esses dois
militares, retrata Osório em heróica atitude, a espada em riste como se estivesse em plena
batalha, o cavalo quase empinando. Caxias, por sua vez, está impassível sobre sua montaria,
seu olhar perdido ao longe. Indagado porque a escultura sobre Caxias pouca emoção passava,
Bernardelli justificou-se dizendo que pretendera retratar, não o general, mas o pacificador.
Referia-se o escultor à repressão que Caxias comandara contra a Balaiada (1838-1841) e os
Farrapos (1835-1845). E até no quadro de Pedro Américo criou-se a lenda de que Caxias, ao
ver a pintura, teria interpelado o artista, irritado, por estar com o jaquetão aberto: “Onde foi
que o artista me viu em batalha com o jaquetão aberto?”, perguntou Alves de Lima. “E onde é
que já se viu um militar dar opiniões sobre uma obra de arte?...” teria respondido Pedro
Américo.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 14

construção dos emblemas da nação com a pompa e a grandeza que o assunto requeria. O
próprio imperador interessava-se pelo assunto, conforme se percebe nessa carta de Porto
Alegre a Vítor Meireles: “Estude cavalos, porque as nossas batalhas exigem este estudo; e lá
achará belíssimos modelos, já como pintura, nas obras de meu Mestre, o barão Gros, já nas de
Mr. H. Vernet, que conhece as raças e o animal melhor do que ninguém, faça cópia de cabeças
de cavalos em ponto grande, e vá mandando todos os seus estudos, porque serão logo vistos
por Sua Majestade.”14

No retorno da Europa, autor já célebre pela execução da PRIMEIRA MISSA NO


BRASIL, Dom Pedro II o condecorou com o grau de Cavaleiro da Ordem da Rosa,
também dado ao romântico Carlos Gomes. A cadeira na qual se pretendia que ele
lecionasse, a de Pintura Histórica, estava sendo guardada por seu protetor Manuel de
Araújo Porto Alegre: cada passo de Vítor Meireles fora acompanhado pelo velho
mestre. Só depois de seu regresso da Europa é que Vítor foi nomeado professor
honorário da Academia, passando logo em seguida a professor interino e, mais tarde, a
Professor Proprietário. Na verdade, ele já havia concorrido ao cargo em 1853,
perdendo-o para João Maximiano Mafra.

Deve-se ao estudo de Mário Barata a caracterização estilística da obra de Vítor


Meireles como acadêmico-romântica. De fato, encontram-se, na formação do artista
catarinense, traços que assim o qualificam. Existe um papel preponderante que a
herança neoclássica, com sua tendência à austeridade, à rigidez de hierática
sobriedade, ainda exercerá na formação artística de Vítor Meireles, suscetível, todavia,
ao bafejo novidadeiro do Romantismo, de que seu mestre Porto Alegre se mostra
incentivador no espírito do discípulo promissor. Já assinalamos que o Romantismo, no
Brasil, tem um envolvimento algo conciliatório com o Neoclassicismo e, em corolário,
aquela liberdade de busca de soluções estéticas que os românticos pugnavam no Velho
Continente encontrará, no Brasil, um clima de conciliação. Tal aspecto reflete-se na

14
ALEGRE, Manuel de Araújo Porto. “Carta a Vítor Meireles”, Rio de Janeiro (Academia Imperial de
Belas-Artes), 6 de agosto de 1855. Cit. por ROSA, Ângelo de Proença et alii. VICTOR
MEIRELLES DE LIMA, 1832-1903. Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1982, pág. 37

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O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 15

obra de Vítor Meireles, marcada pela serenidade de espírito conciliador e avesso a


contendas.

Seu trabalho, tanto na fase de formação quanto na do pleno exercício


profissional que desemboca em sóbria maturidade, é marcado pela disciplina, pelo
cânone acadêmico, sendo poucas as vezes em que se nota um Vítor Meireles por
demais afastado do que a disciplina acadêmica permitia. O romantismo de Vítor é
impregnado de certo formalismo, que inibiu aquela liberdade de expressão tão
defendida pelos românticos, até mesmo entre os intérpretes do estilo pompier, de que
adiante trataremos. Porto Alegre, numa das várias cartas endereçadas ao discípulo
protegido, ao comentar seu trabalho A DEGOLAÇÃO DE SÃO JOÃO BATISTA, critica-o pela
forma exacerbadamente acadêmica da atitude do centurião, que estende a cabeça do
santo em direção a Salomé. Apesar de suas vinculações com Robert Fleury (1797-
1890), de sua tentativa de estudar com Paul Delaroche15 (1787-1856), de seu apreço
pela obra de Horace Vernet, de quem o acusariam, até, de ter copiado a idéia da
PRIMEIRA MISSA NO BRASIL, Vítor Meireles permanece como um acadêmico-romântico,
mais do que um seguidor, no Brasil, do chamado pompierismo francês16, a exemplo do
que Pedro Américo lograria em seu trabalho.

Na Itália, Vítor Meireles estuda com o pintor Nicolau Couronni (1814-1884),


da Academia de São Lucas, seguindo depois para Florença. Vítor interessa-se pela cor
da escola veneziana de pintura, estudando a obra de Giorgione (c.1477-c.1510),
Veronese (1528-1588), por cujo trabalho mais se interessa, Ticiano (1470-1596),
Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770).

15
“Estude o nu, estude anatomia, e veja se toma Mr. Delaroche por mestre, que é hoje o pintor mais
filosófico e o mais estético que conheço.” Cf. ALEGRE, Manuel de Araújo Porto. “Carta a
Vítor Meireles”, op. cit., pág. 37
16
Jean-Philippe Breuille, em “L’Art du XIXe Siècle” (Dictionnaire de Peinture et de Sculpture, Paris,
Larousse, 1993) refere-se ao pompier como termo criado para designar, inicialmente de forma
pejorativa, o etilo que incorporou, como nenhum outro, o academicismo francês da segunda
metade do século XIX e que se manteve indiferente às vanguardas que eclodiram durante
aquela fase da História da Arte. O estilo pompier não foi apenas empregado para se referir às
obras e aos artistas que comungavam dessa estética, mas serviu para rotular velhos mestres,
membros de juri e o próprio Salão.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 16

Em 1856, quando Vítor chega à capital francesa, atuam ainda Theodore Géricault, Horace
Vernet (1789-1863), Robert Fleury, Léon Cogniet (1794-1880), este lecionando na École des
Beaux-Arts. As obras que produziu durante essa fase são marcadamente românticas, ainda que
prevaleça certo gosto classicizante em algumas pintadas exclusivamente para enviar à
comissão de Desenho e Pintura da Academia, como a DEGOLAÇÃO DE SÃO JOÃO BATISTA (1855,
óleo sobre tela, 130 x 96,9 cm, MNBA) e a FLAGELAÇÃO DE CRISTO (1856, óleo sobre tela,
156,7 x 115, MNBA).

É desse período a pintura UM FAUNO E UMA BACANTE, marcada pelo contributo romântico. É a
partir de sua estada na capital francesa que Vítor começa a produzir mais intensamente uma
arte influenciada pelos grandes nomes românticos. Não é um envolvimento de primeira hora.
Ao contrário: a cópia da célebre A BALSA DO MEDUSE, de Théodore Géricault, data de 1857/8,
portanto já quando o artista se preparava para retornar ao Brasil.

A pintura PRIMEIRA MISSA DO BRASIL surge em 1860. O tema de escolha do quadro teria sido
sugestão de Manuel de Araújo Porto Alegre. A obra foi apresentada no Salão parisiense e sua
chegada ao Brasil é um marco da história da arte nacional. Bethencourt da Silva, em artigo
publicado na Revista Brasileira em primeiro de agosto de 1879, ano em que eclode enorme
querela entre críticos de artistas sobre obras de Vítor Meireles e Pedro Américo, observa: “O
quadro da Primeira Missa, revelação notável de um grande merecimento, é o primeiro marco
onde a história da vida artística há de encontrar o característico de sua emancipação”17. Não
eram exageradas as palavras de Bethencourt da Silva. A PRIMEIRA MISSA NO BRASIL reunia
todas as grandes características de um estilo que buscava identificar os valores nacionais
dentro da temática romântica: a pintura retratava uma cena histórica de suma importância para
a história pátria – o momento em que se inicia o processo civilizador do Brasil –, através do
rito da Eucaristia, para onde aflui o gentio, instigado pelo acontecimento que se desenvolve
num cenário assinalado por uma natureza de exuberante beleza. A temática religiosa na obra
contribui para evidenciar as preocupações do artista em enfocar valores que a estética

17
SILVA, Bethencourt da. “[sobre a polêmica]” Revista Brasileira, 01 de agosto de 1879. Cit. por
ROSA, Ângelo de Proença et alii. VICTOR MEIRELLES DE LIMA. 1832-1903, Rio de Janeiro,
Pinakotheke, 1982, pág. 65

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 17

romântica privilegiava – a temática histórica, a religião, a paisagem e o indianismo


organizam-se como símbolos identificadores do país.

Até aquela época, nada tinha sido feito com a mesma importância simbólica da pintura
PRIMEIRA MISSA DO BRASIL, de Vítor Meireles. Pode-se dizer que ali se iniciava a segunda fase
do Romantismo artístico no Brasil. Pouco depois, surgiria o monumento a Dom Pedro I, de
Louis Rochet, e, mais para o fim do século, erigia-se o prédio monumental que abriga hoje o
Museu do Ipiranga, em São Paulo, com linhas de austera sobriedade neoclássica, a marcar o
local em que Dom Pedro proclamou a Independência.

A figura do índio que Vítor Meireles retrata na PRIMEIRA MISSA DO BRASIL revela
outra característica da arte romântica, que de tão perto acompanhava o movimento na
literatura, dela extraindo o arsenal temático, os elementos alegóricos. A literatura já
vinha construindo, na esteira do mito do nobre selvagem e sob a ótica cristã de
Chateaubriand, a visão do elemento humano autóctone, adequado à representação da
nacionalidade que então se perseguia, mostrando um índio em que são exaltadas a
coragem, a nobreza de caráter e a sinceridade do sentimento. O indianismo, segmento
do Romantismo literário, já esboçado n’O URAGUAI (1769), de Basílio da Gama e no
CARAMURU (1781), de Santa Rita Durão, autores árcades, eclode no século XIX com
viço criativo da poesia romântica de Domingos Gonçalves de Magalhães, com a A
CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS (1856), e especialmente de Gonçalves Dias, com o canto
de morte na poesia épica de “I-Juca-Pirama”.

Enquanto a figura do negro, trabalhador da base de um sistema econômico


escravista, permaneceu sem um arquétipo heróico que tipificasse, junto com o índio e
o branco, o quadro de miscigenação étnica e cultural do povo brasileiro, o índio
tornou-se recorrente no Romantismo. A prosa indianista está em José de Alencar, com
O GUARANI (1857) e, especialmente, com IRACEMA (1865) – anagrama, para Afrânio
Peixoto, da palavra América – símbolo do perecimento da cultura indígena e da
formação de uma nova raça, que o mameluco Moacir – filho da dor –, fruto do amor
de Iracema pelo invasor branco, representa.

Na temática histórica artística, o índio aparece incorporado ao contexto da


obra, a simbolizar, de forma alegórica, o Novo Mundo, não tendo apenas, portanto,

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 18

caráter decorativo. No monumento a Dom Pedro I, no Campo da Aclamação, atual


Praça Tiradentes, esculpido por Louis Rochet, as figuras indígenas que adornam a
base do grupo escultório eqüestre como remissões alegóricas aos grandes rios
brasileiros, foram sugeridas por Manuel de Araújo Porto Alegre à Câmara do Senado
desejoso de eliminar o artigo 2º do projeto de lei de Haddock Lobo que regulamentava
a construção do dito monumento. O artigo 2º previa que “entre os emblemas que
deverão ornamentar o pedestal dessa estátua figurarão todos os cidadãos que com o
excelso príncipe colaboraram efetiva e proeminentemente para a Independência
política do Império”18. No lugar dessas figuras históricas optou-se pelas imagens dos
índios. A figura do índio, como se vê nestes exemplos, desempenhava função
simbólica imprescindível à construção de emblemas nacionais.

Pinturas e esculturas ilustram o influxo que o indianismo, no Brasil,


apresentaria no campo das artes visuais. De um lado, via-se o continente americano
ser representado através da figura indígena desde o século XVI, fosse na efêmera
visão da barbárie silvícola, que aventureiros como Hans Staden procuraram significar,
fosse na reafirmação dos valores edênicos que o imaginário europeu alimentava. Nos
séculos XVI e XVII, Niccolo Frangipane, Étienne Delaune, Marten de Vos, Adriaen
Collaert e outros elaboraram trabalhos simbolizando o Novo Continente, e
especificamente o Brasil, através da figura do índio. Em alguns casos, como nas
pinturas e gravuras de Gilles Rousselef, Charles le Brum, Theodore Gallé e Jan van
der Straet, o índio aparece ambientado num clima de serena harmonia natural,
evocando o olhar sobre a natureza paradisíaca. O imaginário europeu sobre o Brasil,
pródigo em de riquezas naturais, aparece igualmente definido na muito difundida
tapeçaria Gobelins, como naquela chamada o ÍNDIO CAÇADOR (1700) e em OS
PESCADORES – figuras alegóricas de um paraíso possível.

18
Cit. em AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira de. O RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, Livraria Brasiliana
Editora, 1969, Vol. II, pág. 16. O projeto de lei data de 7 de setembro de 1854. As
justificativas de Porto Alegre para a alteração do monumento datam de 30 de setembro
seguinte e tratavam da dificuldade de se julgar o nível de participação de alguns personagens
daquele processo, bem assim a dificulfdade de se levantarem os retratos de muitos deles.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 19

Embora a visão fantasiosa da natureza e do índio brasileiros não seja primazia


do Romantismo, é neste estilo que o índio deixa de ser apenas figura ilustrativa para se
incorporar ao esforço de exaltação nacional, através do discurso histórico e da
narrativa literária de inspiração épica. A mitologia indígena que a literatura semeia,
com seus tipos heróicos assinalados pela pureza de sentimentos e nobreza de atos,
entra para o plano das representações imagéticas e assoma na obra de Vítor Meireles,
autor de MOEMA (1866), cujo corpo se vê abandonado na desolação imensa da praia, de
Rodolfo Amoedo, que pinta o abandono melancólico de MARABÁ e o fim trágico d’ O
ÚLTIMO TAMOIO, de José Maria de Medeiros, autor de IRACEMA (1881), de Augusto
Rodrigues Duarte, que se volta para o modelo europeu em EXÉQUIAS DE ATALÁ (1878),
de Antônio Firmino Monteiro, autor de EXÉQUIAS DE CAMORIM, de Almeida Reis, com
RIO PARAÍBA DO SUL (1866), e mesmo de Rodolfo Bernardelli, escultor que, embora se
tenha distinguido como prócer do Realismo, executou pelo menos duas obras dentro
dessa temática: FACEIRA (1880) e MOEMA (1895). Eram interpretações da figura
indígena que se distanciavam deveras, pelo estro literário de que eram depositárias, do
interesse científico que Jean Baptiste Debret (1768-1848) e de Johann Moritz
Rugendas (1802-1858) haviam manifestado pelo mesmo assunto quase meio século
antes19. A visão de François Auguste Biard, que retrata OS ÍNDIOS DA AMAZÔNIA
ADORANDO O DEUS SOL, reflete o arquétipo da nobre pureza do selvagem, habitante
duma terra paradisíaca. Biard estivera no Brasil em 1858 e 1859.

Também na imprensa ilustrada artistas adotam este tipo de representação


alegórica em trabalhos que variam do proverbial estilo anedótico, especialmente nas
composições caricaturais, às obras de forte apelo dramático. Ângelo Agostini, através
da sua Revista Ilustrada, talvez melhor do que nenhum outro ilustrador do tempo
possa ser apontado como artista que recorreu amiúde a essa imagem-símbolo do país,

19
A palavra pitoresca no livro VIAGEM PITORESCA E HISTÓRICA AO BRASIL, de Jean Baptiste Debret, tem
alimentado, em alguns, a idéia de que o artista estava principalmente interessado pelos
aspectos exóticos de uma sociedade localizada nos trópicos. Na verdade, “pitoresco”, aqui, é
sinônimo de “pintoresco” ou “pictórico” – próprio para ser pintado –, não denotando qualquer
interesse lúdico, fruto de uma visão extravagante do artista, pela temática indígena. O olhar
de Debret e de Rugendas é essencialmente científico, fruto de uma atitude racional do artista
que observa o mundo que o cerca.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 20

através de um índio, ou da nação brasileira, através de uma índia. A figura do índio,


em Ângelo Agostini, é idealizada e apenas alegórica. Nada representa, de fato, um
apoio aos direitos indígenas, que se viam cada vez mais compelidos a deixar suas
terras e a rumar em direção ao interior, tangidos pelas grandes frentes de ocupação.
Quando a Revista Ilustrada noticiava algo relativo aos índios, fazia-o sempre
embrutecidos, senão bestiais, revelando-lhes um caráter profundamente perverso. O
desapreço do ilustrador ítalo-brasileiro pelo gentio era manifesto.

A valorização do índio, na literatura e na arte românticas, enclausurava-se nas


idealizações fantasiosas de escritores e artistas que se entregavam a especulações
sobre um expressivo contingente humano, alijado da comunidade nacional desde o
início da colonização, ou pela destruição de sua cultura, ou pela eliminação física20.
Numa sociedade escravocrata, a valorização do índio era traço caracterizador de uma
estética que se pautou por sua evasão da realidade.

20
Vale a pena a leitura de um documento inédito escrito pelo Barão de Eschwege, quando radicado em
Minas Gerais, pela qual ele narra, ao Conde da Barca, em 1811, as crueldades que o homem
branco cometia contra o gentio. (Mantém-se a grafia tal e qual ela foi escrita por esse alemão
ainda pouco conhecedor da língua portuguesa)
“Sabemos da História da Conquista da América, que o fanatismo, ignorância, e
crueldade dos conquistadores têm sido a culpa das primeiras inimizades do gentio, estes
hereditaram dos pais para os filhos ou por tradição ou por continuação das injúrias até os
nossos tempos, e nunca se deve esperar alguma civilização do Botocudo ou outro índio bravo,
enquanto não se segue outro sistema de civilização. Civilizar com a espada na mão é
contradição; principiar a civilização com o Batismo e querer introduzir logo outros costumes,
pouco pior.
“O índio tem os seus costumes – escreve ele –, tem a sua religião, seja qual que ela
for, e é muito natural que ele a defenda com a sua vida enquanto não está persuadido do
contrário. Efetuar esta última coisa é o ponto em que quase todos se enganaram, aplicando ora
força, ora palavras, poucos bons exemplos, e nenhuma tolerância. Um método que faz antes
espantar e desconfiar, que chegar. (...)
“E o comandante da quinta divisão entra 20 ou trinta léguas o mato, procura os
ranchos dos Botocudos, vai cercá-los de noite e de madrugada cai sobre eles, mata mulheres e
crianças. Muitos dos Botocudos se fingiram mortos para escapar, estes mortos fingidos punha
eles numa fileira, faz com eles a cerimônia do batismo e depois corta as cabeças a todos”
“[Anotação feita à margem da carta remetida a Antônio de Araújo por: ESCHWEGE,
Guilherme (Barão de.) “[Carta a Antônio de Araújo de Azevedo]”, Sem local [Vila Rica],
[manuscrito], sem data [c. novembro de 1811], Arquivo Público Distrital de Braga, Caixa nº
31, Doc. s/nº, 7 pág. Autógrafo, sem assinatura.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 21

O sentido de evasão que se aponta no Romantismo, tendente à representação


do exótico, de contextos estranhos à realidade brasileira, manifestou-se na palheta de
artistas como Pedro Américo e João Zeferino da Costa e na de outros, em ponto
menor, que cultuaram ideais estéticos que vinham sendo reavaliados criticamente na
França, através do Realismo e, em seguida, do Impressionismo. É o chamado estilo
pompier21, de ascendência romântica, mas sem o caráter exortativo que o Romantismo
mais genuíno, na sua inflexão nativista, propugnava. Ao contrário, aqui o Romantismo
leva o escapismo às últimas conseqüências, especialmente em seu arsenal temático,
que se volta para o Oriente exótico, para a ambiência dos acontecimentos bíblicos –
mais pelo gosto à sua história mundana do que pelas significações religiosas –, ou
para as alegorias de temática diversa.

Com efeito, muitos artistas brasileiros que viajaram à Europa com bolsas de
estudos, atuaram em ateliês desses artistas, deles recebendo influências, assimiladas,
todavia, de forma heterogênea: Oscar Pereira da Silva estudaria com Leon Bonart;
Décio Rodrigues Vilares, Almeida Jr. e Rodolfo Amoedo com Alexandre Cabanel;
Benedito Calixto tomaria aulas de Camille Boulanger, Joseph Robert-Fleury e Jules
Lefèvre, que ensinou também a João Batista da Costa. Pedro Weingartner foi
discípulo de Robert-Fleury e de Bouguereau.

O gosto pelo exótico, no Romantismo francês, já se vê em Eugene Delacroix


(1798-1863) e, no Brasil, alguns artistas viajantes que aqui estiveram revelariam tal
aspecto em suas pinturas, ao evidenciar certo gosto pelo extravagante que uma cultura
tropical naturalmente revelava aos olhos do pintor europeu. Charles Landseer, com
seu RANCHO DE TROPEIROS (1827), parece colher referência direta na temática
excêntrica de Eugène Delacroix, realizando uma pintura que sugere, pelos tipos, pelo
tratamento do tema e pela indumentária, um Oriente próximo. Edouard Hildebrandt,
retrata cenas do cotidiano do Rio, como em RUA DO MERCADO NO RIO DE JANEIRO,
LARGO, CHAFARIZ E IGREJA DE SANTA RITA e CHAFARIZ DO RIO DE JANEIRO (1844), de

21
Sobre o assunto, leia-se a comunicação “O Pompierismo Francês e suas relações com a pintura
acadêmica brasileira do século XIX”, de Ivan Coelho de Sá nos Anais do Seminário EBA 180,
ocorrido de 20 a 22 de novembro de 1996. Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes/UFRJ
(Pós-Graduação da Escola de Belas-Artes), 1996, pág. 157-164

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 22

delicioso contraste entre a austeridade neoclássica do chafariz de Cândido Guillobel e


a plácida movimentação da escravaria que, nele, colhe seu bocado de água.

Entre os grandes intérpretes dessa vertente do Romantismo no Brasil, último


vestígio do estilo que demonstra sinais de exaustão já na penúltima década do século,
avulta o nome de Pedro Américo, com JUDITH E HOLOFERNES, A NOITE, OS VOTOS DE
HELOÍSA, CARIOCA, entre os mais notórios. João Zeferino da Costa, com sua POMPEIANA
(1879) e Henrique Bernardelli, com MESSALINA, reafirmam a ascendência que o gosto
pela evasão exerce sobre artistas daquele período.

Da temática religiosa, João Zeferino da Costa se destaca com O ÓBOLO DA


VIÚVA e A CARIDADE, tema que não apenas ilustra um princípio religioso, mas que serve
de veículo para exaltação das virtudes burguesas. Rodolfo Amoedo, que pintara A
PARTIDA DE JACÓ num clima de comovente intimismo, atinge o apogeu em JESUS
CRISTO EM CAFARNAUM, onde consegue imprimir uma atmosfera densa, com jogos de
luzes cuidadosamente estudados ao longo de uma série de desenhos. Todo o pathos da
introspecção romântica, com sensibilidade às revelações e conflitos da alma, Rodolfo
Amoedo procurará sugerir nessa obra.

A religião não seria apenas referência temática de que se pudessem valer os


artistas do estilo romântico, sob o influxo do pensamento de Chateaubriand, mas
representou referencial cultural ainda profundamente ligado à herança de tradições
religiosas multisseculares e que haviam sido determinantes no processo colonizador
nacional. De certa forma, os assuntos que se enlaçavam à temática religiosa
representavam, consciente ou inconscientemente, um indicativo histórico da formação
cultural do país, ou melhor, de um segmento social específico.

Grandes artistas de época interessaram-se pela temática católica e o culto da


espiritualidade encontrou o apoio nas artes visuais. Vários artistas receberam trabalhos
de irmandades religiosas para embelezar os templos desta e de outras cidades
brasileiras. Chaves Pinheiro, Vítor Meireles, João Zeferino da Costa, Pedro Américo,

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 23

Rodolfo Amoedo, Georg Grimm, Thomas Driendl22, entre outros, aturam na


decoração de igrejas seculares e de irmandades. Curiosamente, alguns trabalhos
realizados no corpo das igrejas durante os anos de oitocentos, seguindo uma tendência
européia tipicamente romântica, resgatam, valorizando, um tanto do gosto barroco que
o Neoclassicismo havia condenado. Há de fato, no Rio de Janeiro da segunda metade
do século XIX, certa revivescência de gosto neobarroco, que se espelha, por exemplo,
na obra de talha do toreuta e escultor Pádua e Castro, e na obra de talha de Thomas
Driendl.23

Mas a arte seguiria seu contínuo desenvolvimento, assimilando, já durante o último quartel do
século XIX, novas tendências estéticas que alguns pintores viriam consignar no cenário
artístico nacional, como é o caso daqueles ligados ao alemão Georg Grimm, que inovaram o
gosto na interpretação da paisagem, rompendo definitivamente com a prática acadêmica de
ateliê e celebrando a pintura ao ar livre.

Há também uma diversificação artística, a partir da década de 1880 e na seguinte, estimulada


pelo influxo do Ecletismo, onde convivem artistas de orientações temáticas distintas. Os temas
naturalistas, por exemplo, que mais tarde o Modernismo viria resgatar com força criativa,
inicia-se sob o olhar naturalista e de encantadora sinceridade na pintura do paulista José
Ferraz de Almeida Jr. e do gaúcho Pedro Weingartner, talvez um último vestígio do
Romantismo, num eco das obras regionalistas de José de Alencar – O GAÚCHO (1870), O

22
Sobre esse importante paisagista bem assim os artistas a ele ligados, consultar LEVY, Carlos Roberto
Maciel. O GRUPO GRIMM: PAISAGISMO BRASILEIRO NO SÉCULO XIX. Rio de Janeiro, Pinakotheke,
1980.
23
A professora Cybele Vidal Neto Fernandes desenvolveu interessante trabalho sobre o escultor e
toreuta Pádua e Castro, pela qual ela demonstra a importância desse personagem no cenário
artístico da segunda metade do século XIX, redecorando o interior de igrejas barrocas da
cidade do Rio de Janeiro, seguindo a linha neobarroca que marcaria o período. Leia-se a
propósito sua dissertação de mestrado intitulada A TALHA RELIGIOSA DA 2ª METADE DO SÉCULO
XIX NO RIO DE JANEIRO, ATRAVÉS DE SEU ARTISTA MAIOR ANTÔNIO DE PÁDUA E CASTRO
(Dissertação de Mestrado em História e Crítica de Arte da Escola de Belas-Artes (UFRJ),
março de 1991. O pintor e arquiteto Thomas Driendl também executou trabalhos de
decoração de templos cariocas, mantendo o gosto barroco que eles apresentavam, segundo
gentilmente informou-nos a historiadora da arte Myrian Ribeiro, que orienta atualmente um
trabalho desenvolvido pela restauradora Magaly Oberlander no programa de pós-graduação
da Escola de Belas-Artes (UFRJ) sobre esse assunto.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


O Romantismo na pintura brasileira do século XIX 24

TRONCO DO IPÊ (1871), TIL (1872) e O SERTANEJO – e Bernardo Guimarães, autor de romances
populares ambientados no interior do Brasil.

Mas a arte segue seu rumo e o romantismo vai cedendo espaço às novas tendências. No fim do
século, surge Belmiro de Almeida, com a pintura ARRUFOS, de desconcertante realismo, logo
evoluindo para um trabalho marcado pelo Impressionismo e, em seguida, pelo Pós-
impressionismo. Outros artistas chegariam após o advento da República – e a questão da
construção dos emblemas da nação permaneceria em pauta24. Velhos mestres, como o próprio
Vítor Meireles, cairiam no ostracismo. Outros surgiriam, como os positivistas Décio Vilares e
Eduardo Sá. Na virada do século, brilha o nome de Eliseu Visconti.

O Romantismo, a não ser de forma excepcionalmente episódica e tardia, havia fenecido,


encerrando uma etapa artística de profundas significações para o cenário cultural. Seu
surgimento e sua evolução, ao longo do século XIX, não derivaram só de mais uma
importação, da Europa, de um gosto artístico. O modo como ele se incorpora a um projeto de
construção da identidade coletiva confere ao movimento especificidades que o singularizam,
no Brasil, como uma corrente artística de suma importância para a história da cultura do país.

Este texto foi publicado na Revista do PHAN. Ref. bibliográfica.

RIBEIRO, Marcus Tadeu Daniel. O Romantismo na Pintura brasileira do século XIX. Revista
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 29/2001. Edição
comemorativa dos 500 anos da Descoberta do Brasil.

24
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A FORMAÇÃO DAS ALMAS. Rio de Janeiro, Companhia das Letras.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


História da Arte

Arte Moderna
Prof. Marcus Tadeu Daniel Ribeiro

Pintura, escultura e gravura no Brasil do século XX

O termo Arte Moderna abriga várias tendências e até estilos dentro de si. Começa antes da chamada
Semana de Arte Moderna de 1922 e estende-se até pelo menos meados do século XX, quando então o
movimento fenece e dá lugar a outra época artística. É dentro da Arte Moderna que a hegemonia da
Escola Nacional de Belas-Artes se encerra, dando lugar às escolas locais de arte e, assim, fomentando
a diversificação regional tanto na pintura, quanto na escultura e na gravura.

Aspectos históricos
A modernidade no Brasil tem sido vista quase sempre
através das datas memoráveis, como as exposições de
Lasar Segall (1891-1957) em 1913 e de Anita Malfatti
(1889-1964) em 1917, a Semana de Arte Moderna de
1922 ou a criação da Bienal de São Paulo em 1951. Fa-
tos marcantes costumam servir de referências a um
processo artístico caracterizado pela ruptura com mo-
delos tradicionais de interpretação e de reprodução do
ensino da arte no ambiente cultural brasileiro.
Para a historiografia artística, a Semana de Arte Moder-
na, ocorrida em São Paulo em fevereiro de 1922, trans-
formou-se no marco zero do início do desenvolvimento
da Arte Moderna brasileira. A importância do aconteci-
mento tem-se afirmado ao longo do tempo pela sua for-
Ilustração 1 - Tarsila do Amaral,
"Retrato de Mário de Andrade",
ça simbólica dentro da História da Arte do modernismo
1922, óleo sobre tela, IEB - USP brasileiro.
Todavia, é importante observar que houve antecedentes
históricos no desenvolvimento da arte brasileira em di-
reção à modernidade antes da eclosão da Semana de
1922. Não foi esse um acontecimento estanque, iniciado
sob a “sugestão estrábica de escolas rebeldes”, para se
usarem os termos do escritor Monteiro Lobato (1882-
1948).
Da mesma forma, a Semana de Arte Moderna não se
constituiu num advento sozinho desencadeador de todo
o processo da modernidade. Houve avanços anteriores e

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 2

posteriores, marcados por etapas que precisam ser pon-


tuadas.
Portanto, é necessário se falar em processo tanto quan-
to em rupturas, ao se abordar a problemática das artes
visuais no Brasil na perspectiva da renovação do gosto
moderno.
A primeira etapa da história da modernidade no Brasil
seria pontuada por manifestações anteriores à Semana
de 22, portadoras de sinais de renovação em relação ao
ensino acadêmico. São obras que, sem apresentar uma
ruptura muito radical em relação às práticas anteriores,
prefiguram, todavia, algum inconformismo com a práti-
ca acadêmica.
A segunda etapa vai da Semana de 1922 até o início da
década de 1930, quando alguns artistas, após o episó-
Ilustração 2 - Tarsila do Amaral,
dio da capital bandeirante, começam a atuar, mesmo
"Retrato de Oswald de Andrade", timidamente, dentro de uma perspectiva independente
1922, óleo sobre tela, IEB - USP dos trilhos da arte praticada no ambiente da Escola de
Belas-Artes.
A terceira etapa é a década de 1930, marcada pela cria-
ção de espaços alternativos de ensino de arte, fora do
ambiente acadêmico, como também pela sua regionali-
zação, demonstrando o fim de uma era de centralização,
na capital brasileira, do ensino e, assim, da prática de
um discurso artístico oficial.
A quarta etapa seria aquela onde a Modernidade come-
ça de fato a se afirmar e, sobretudo, a se diversificar,
inserindo novos problemas em relação às artes visuais,
como a questão do engajamento político do artista, o
surgimento da abstração, encerrando-se com a criação
da Bienal de São Paulo.

Anos de inquietação (1889-1922)


As primeiras manifestações da arte com sensibilidade
ao espírito de renovação verificado no Brasil dos fins do
século XIX ocorreram nas primeiras expressões de rup-
tura com as práticas acadêmicas, entrincheiradas na
forma de ensino da velha Academia Imperial das Belas-
Artes, transformada, desde o advento republicano, na
Escola Nacional de Belas-Artes.
Alguns artistas são representativos desse período de
busca por novas soluções no plano estético. O primeiro
pintor a ser apontado como significativo no esforço de
fuga dos modelos da Academia de Belas-Artes ao termo
do século XIX foi José Ferraz de Almeida Júnior (1850-
1899). Ele se notabilizou por apresentar uma pintura de
temática fora da órbita celebrada pela velha escola, ao
procurar fixar o elemento popular em suas telas, o ho-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 3

mem modesto, o caipira ingênuo, os hábitos da popula-


ção interiorana, a exemplo do que a própria literatura
romântica já vinha fazendo.
Observe-se, por exemplo, uma das últimas pinturas que
realizou em sua vida, já na maturidade de seu trabalho,
ao retratar a figura típica do artista interiorano, o violei-
ro cantador, que preenche de lirismo o ambiente rural
dos fins do século XIX com suas músicas, a assinalar
uma forma de cantar, de sentir e de ver o mundo tipi-
camente brasileiras.

Ilustração 3 - ALMEIDA Jr., José Ferraz de. O violeiro, 1899. Óleo sobre tela,
Pinacoteca do Estado de São Paulo.

A modernidade de Almeida Júnior, embora adstrita aos


limites acadêmicos de seu tempo, afirma-se, todavia, na
busca e na representação do homem do campo – sim-
ples e marginalizado pela chamada cultura erudita e até
então ignorado pela arte oficial brasileira, voltada para
os temas considerados maiores: a Histórica, a religião,
mitologia, retratística e, em menor escala em termos de
importância, a pintura de gênero, a natureza-morta e a
pintura de paisagens.
O mesmo acontecia com a gravura e a escultura no fi-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 4

nal do século XIX.


A tendência à mudança manifestava-se dentro do clima
de debates europeu desde a fase realista, quando temas
extraídos da banalidade cotidiana vieram a interessar
os artistas das novas gerações. A influência desses pri-
meiros momentos de renovação da arte no Brasil será
extremamente tímida, quase imperceptível, porque ar-
tistas como Almeida Júnior não mudaram sua forma de
pintar, valendo-se do vocabulário acadêmico aprendido
na velha escola de artes. Apenas a temática de suas o-
bras é que é totalmente inovadora para a arte de então.
Com a evolução do modernismo, artistas procuraram
aprofundar a ruptura já iniciada. Vários estilos diferen-
tes surgiram, na Europa e no Brasil, sob a égide do Mo-
dernismo. A palavra moderno, nesse contexto, enfeixa
um conjunto de intenções artísticas distintas, mas que
têm, como liame, o propósito de rever as práticas de en-
sino ministradas no ambiente da velha escola de artes.
Belmiro de Almeida (1858-1935) é o artista que primeiro
romperá com a arte praticada no ambiente acadêmico
da antiga Escola de Belas-Artes, já então reformada sob
a direção de Rodolpho Bernardelli (1852-1931) após o
advento da República. Sua pintura não se restringiu
apenas à transformação temática, como ocorre com Al-
meida Jr., mas apresentará propostas inteiramente no-
vas no plano estético.
Talvez a primeira obra considerada impressionista no
Brasil seja aquela intitulada “Efeitos do sol” (1892), de
Belmiro de Almeida. Nessa pintura, a luz aparece como
um agente não apenas modelador de volumes, mas co-
mo objeto de representação enfocado criticamente pelo
artista. Não há mais, no trabalho de Belmiro de Almei-
da, qualquer relação com os ensinamentos acadêmicos
Ilustração 4 - Belmiro de Almei- que havia aprendido quando estudara na velha Acade-
da, "Autorretrato", 1883, óleo mia Imperial de Belas-Artes. O pintor desprende-se das
sobre tela, Col. Gilberto Chate- regras acadêmicas e entrega-se à experiência de pers-
aubriand crutar os efeitos vários da luz sobre as coisas e o ar. A
mistura das tintas dá-se pelo princípio da complemen-
taridade das cores, enquanto sua fatura é extremamen-
te vibrante e solta.
Esse pintor não se manteria preso à interpretação do
impressionismo, deixando-se influenciar, depois, pela
arte de Georges Seurat (1859-1891), ligado às vanguar-
das da Arte Moderna européia. A pintura de Belmiro de
Almeida pode ser vista como um processo incessante de
transformação, chegando a pintar obras, mais tarde, em
que ele rompe com qualquer reminiscência da arte aca-
dêmica, adotando soluções artísticas verdadeiramente
transformadoras. Muito embora o ambiente da Escola
tenha recebido a obra com alguma indiferença, como foi

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 5

assinalado por seu mais importante biógrafo1, é neces-


sário apontar a primazia dessa pintura como verdadei-
ramente moderna no Brasil do século XIX.

Ilustração 5 - Belmiro de Almeida. Efeitos do sol, 1892, óleo sobre te-


la. acervo MNBA

Posteriormente, o artista deixar-se-ia influenciar pelo


pós-impressionismo de Georges Seurat (1859-1891) e
de Paul Signac (1863-1935), adotando uma pintura
marcada pelo pontilhismo, onde as cores se fundem na
retina para obter uma luminosidade maior àquela da
mistura das tintas. Obras como “Paisagem em

1 Deve-se fazer referência ao importante trabalho de REIS JÚNIOR, José Maria dos. Belmiro de Almei-
da (1858-1935). Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1984.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 6

Dampièrre (França)” (1912)2 ou “Pont sur lê Quillon-


Fourchiroles” (1920)3, podem ilustrar o influxo que o di-
visionismo provocou em artistas atentos às vanguardas
européias. “Mulher em círculos” (1921)4, com sua ma-
neira inteiramente revolucionária para a concepção do
corpo humano a partir de uma matriz geométrica, refle-
te esse sentido de modernidade arrojada presente no
trabalho de Belmiro de Almeida ao longo de toda sua
vida.

Ilustração 6 - Belmiro de Almeida, "Mulher em círculos", 1921, óleo


sobre tela, col. particular.

Eliseu d’Angelo Visconti (1866-1944) é um artista que


também incorpora a ideia de modernidade debatida na
Inglaterra vitoriana, quando se discutiam os problemas
intrínsecos ao academicismo, mais especificamente ao
classicismo, para o desenvolvimento da arte.
Formado na Academia Imperial de Belas-Artes, após es-

2 Cf. REIS Jr. Op. Cit., p. 82. (Trata-se de um trabalho da coleção particular de José Paulo Moreira da
Fonseca)
3 Ibidem, p. 90 (Colecionador Marília Seabra Buarque de Andrade)
4 Ibidem., p. 95. (Colecionador José Paulo Moreira da Fonseca)

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 7

tudo no Liceu de Artes e Ofícios, Eliseu viajou à Europa


como bolsista do governo brasileiro e lá tomou contato
com as novas tendências e debates em processo no am-
biente cultural francês e inglês.
Demonstrando-se atento aos movimentos do Arts and
Crafts, do Pré-Rafaelismo, sendo ainda sensível à pro-
blemática da semântica simbolista no contexto cultural
da Belle Époque, Visconti desenvolveu, em sua pintura,
um reflexo da diversidade e da complexidade do perío-
do. Não foi ele apenas um pintor, mas também um ce-
ramista e um designer, adiantando-se às condições his-
tóricas de um país agrário como o Brasil, onde a função
do designer não seria de todo compreensível dentro de
um contexto econômico onde a industrialização é ine-
xistente.

Ilustração 7 - Eliseu Visconti. Gioventù, 1898, Acervo do MNBA

Desse avanço em relação a seu tempo, resultou a in-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 8

compreensão de seus contemporâneos, que não avalia-


ram, com a justiça devida, a importância de sua arte no
Brasil recém feito republicano.
Sua obra de arte mais representativa é Gioventù (1898),
um trabalho com nítidas implicações simbolistas e cita-
ções à palheta acurada e espontânea dos pintores da
confraria Pré-Rafaelita. A obra figurou na Exposição U-
niversal em 1900, quando recebeu medalha de prata,
num momento artístico marcado pela afirmação inter-
nacional do Art Nouveau, enquanto pontificavam nomes
de diversas tendências do cenário parisiense e interna-
cional, como Eugène Grasset (1845-1917) e Puvis de
Chavannes (1824-1898), ambos ligados ao movimento
simbolista, tendo sido Visconti aluno do primeiro.
O simbolismo não foi ignorado pela cultura brasileira,
apresentando-se como uma linguagem moderna que os
anos iniciais da República incorporaram, na esteira de
uma literatura marcada igualmente por esta inspiração,
tendo Cruz e Souza (1861-1898) como um de seus mai-
ores representantes na poesia simbolista.
Antes de se passar para os artistas que trouxeram o
vento renovador da Arte Moderna pela ascendência con-
testadora do expressionismo, rompendo definitivamente
com qualquer passadismo acadêmico como o fizeram
Segall e Anita, é necessário mencionar-se o gravador
Carlos Oswald (1882-1971), de origem italiana, imigra-
do para o Brasil após várias experiências com professo-
res internacionais.
Oswald foi o primeiro gravador a tratar seu ofício não
como uma forma de reprodução de imagens, como se
fazia antigamente, antes da invenção e uso do clichê fo-
tográfico em jornais e revistas, mas o primeiro, no Bra-
sil, a tratar a gravura como arte independente. Carlos
Oswald, com um desenho herdeiro da tradição florenti-
na, berço da arte renascentista, apresenta um desenho
que escapa do puro sentido naturalista e encontra solu-
Ilustração 8 - Carlos Oswald.
[Pedra da] Gávea [Rio de Janei- ções estilizadas, sensíveis às novas tendências europei-
ro, RJ] , 1925, água-forte, água- as – é ele o autor do traço do Cristo Redentor sobre o
tinta e ponta-seca aquarelada, cimo do corcovado.
27,3 x 20 cm (área impressa);
45,9 x 32,5 cm (suporte), assi- Esta postura de se buscar autonomia artística para a
nada C Oswald. gravura acabaria por propiciar o desenvolvimento da
Arte Moderna também através da técnica da gravura,
permitindo o alargamento do movimento dentro de uma
nova frente ignorada até então pela academia.

O expressionismo de Segall e de Anita Malfatti


Dois outros artistas foram importantíssimos para a di-
vulgação da Arte Moderna, fora do eixo acadêmico que
vinha norteando a arte brasileira durante o início do sé-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 9

culo XX. O primeiro deles foi Lasar Segall, um artista de


origem lituana que esteve na década de 1910 e imigrou,
posteriormente, para o Brasil à época do entre guerras,
após formação artística nas escolas de arte de Berlin e
de Dresden. Sua exposição em São Paulo e Campinas,
no ano de 1913, não chegou a provocar maiores reper-
cussões no meio cultural. Seu trabalho, todavia, será
mais relevante para a História da Arte moderna brasi-
leira depois de seu estabelecimento em definitivo no
Brasil, a partir de 1923.
O segundo personagem de suma importância para a
história do Modernismo na cultura brasileira foi a pin-
tora Anita Malfatti (1889-1964), que expôs na cidade de
São Paulo no ano de 1917, provocando polêmica entre a
crítica. Anita havia estudado na Alemanha, lá chegando
enquanto o movimento expressionista Die Brucke pro-
movia diversas exposições na cidade. Estuda com o pin-
tor Fritz Burger, Lovis Corinth e, nos Estados Unidos,
com Homer Boss (1882-1956), da Independence School
of Arts. Este último marca profundamente a formação
de Anita, não apenas como artista, mas como professor
preocupado com o desenvolvimento pessoal de seus
discípulos.
As obras mais representativas de Anita Malfatti, consi-
derada por vários críticos e historiadores da arte5 como
precursora do movimento moderno, são da sua fase de
formação em Nova York entre 1915 e 1916, como “Ro-
chedos”, “O Farol de Monhegan”, “A boba”, “O homem
amarelo”6, além de outras. “A boba” (1915), pintada a-
inda no período de formação da artista nos Estados U-
nidos, gerou, junto com outras obras, a polêmica prota-
gonizada pela postura exacerbadamente ácida de Mon-
teiro Lobato. Embora sem desconhecer o “talento” da
artista, enquadra-a como uma pintora filiada à catego-
ria de artistas
“que veem anormalmente a natureza e a interpretam à luz
das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas re-
beldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessi-
va. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os perío-
dos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao
nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais
das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas tre-

5 Cf. ZANINI, Walter. Arte contemporânea. In: ______. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Fun-
dação Walter Moreira Salles, 1983. (499-820, especialmente o capítulo )
6 “O homem amarelo” pertence ao acervo do IEB-USP e já se encontra acautelada, não apenas por se
tratar de uma obra de arte pertencente ao poder público, mas também por se encontrar entre
bens tombados, em conjunto, pelo IPHAN, através do Processo 1217-t-87, que procedeu à sua
inscrição nos livros de tombo 1) Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; 2) Histórico; 3) Belas-
Artes sob o título de “Coleção Mário de Andrade do IEB/USP”.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 10

vas do esquecimento.”7
O texto é polêmico, não apenas pela virulência com que
o escritor paulista verte suas críticas contra a pintora,
com passagens pontuadas de expressões alusivas a
“manicômio”, “arte anormal e teratológica”, “caricatura”,
como também mostra-se nem sempre muito lúcido em
suas ponderações estéticas, ao aproximar o estilo de
Malfatti, permeado do mais inequívoco expressionismo,
a um “impressionismo discutibilíssimo”.8

Ilustração 9 - Anita Malfatti, "A boba", 1917, óleo sobre


tela, 61 x 50,6 cm, MAC/USP

No quadro “A boba”, Anita Malfatti constrói uma com-


posição, cujo cromatismo é marcado pelo emprego de
cores abertas, assinaladas pela intensidade dos tons,
sem a sugestão de sombras e com uma intensidade ex-
pressiva de ênfase no emprego de cores quase puras. No
primeiro plano da composição, predominam os tons
amarelos, como na blusa da mulher sentada na cadeira
e os reflexos sobre sua tez. Ao fundo, as cores assumem

7 LOBATO, Monteiro. Paranóia e mistificação. Disponível em http://www.pitoresco.com.br


/brasil/anita/ lobato.htm, acesso em 22 set. 2009.
8 Idem.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 11

uma dimensão decorativa, rompendo com a função des-


critiva que historicamente desempenhavam no mundo
acadêmico.
Outro trabalho imprescindível para se compreender este
momento da Arte Moderna no Brasil é “O farol de Mo-
nhegan”9, de temática paisagística, com uma palheta
elaborada à maneira do que a artista vinha fazendo em
relação a outros trabalhos dessa época. À solidez do fa-
rol, das casas e da terra do terreno inclinado do primei-
ro plano opõe-se a fluidez de um céu de policromia não
naturalista, com predominância de tons róseos e violá-
ceos, sobre um fundo amarelo e branco.

Ilustração 10 - Anita Malfatti, "O farol de Monhegan", 1915, Col. Assis Chateaubriand, Acervo MAM

N’“O homem amarelo”, Anita Malfatti alcança uma ex-


pressividade enorme, trabalhando uma tela com a pre-
dominância do tom vermelho, um desenho desenvolto e
firme, onde a linearidade não se perde pela hegemonia
da cor, mas evoca remotamente o sintetismo pós-
impressionista de Gauguin. O homem tem um semblan-
te carregado, com o olhar tomado pelo anonimato das
cidades, onde a solidão medra nos desvãos da impesso-
alidade dos tempos modernos. A tonalidade vermelha e

9 MALFATTI, Anita. “O farol de Monhegan”, 1915, 46 x 61 cm, coleção Chateaubrian, Rio de Janeiro.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 12

negra conferem à obra uma tensão algo dramática ade-


quada à abordagem da artista.

Ilustração 11 - Anita Malfatti, "O homem amarelo", 1915-1916, óleo


sobre tela, 61 x 51 cm, Col. IEB-USP

Não seriam essas obras de viso expressionista as pri-


meiras a se apresentarem no Brasil, pois a mostra de
Lasar Segall já tinha ocorrido em São Paulo no ano de
1913, como se disse acima. Afora o ineditismo que seu
trabalho expressionista apresenta, rivalizando com Ani-
ta a primazia do título de primeiro pintor nesta linha,
sua pintura será mais importante depois que se radicou
em São Paulo, chegando na maturidade a partir da dé-
cada de 1930. Por isso, trataremos desse pintor mais à
frente, quando falarmos da fase de afirmação da arte
moderna.
Nessa condição, também se enquadram dois outros pin-
tores como partícipes do movimento moderno que ante-
cedeu o advento da Semana de Arte Moderna, mas cuja
obra só adquiria representatividade em período subse-
quente: Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976) e Vicente
do Rego Monteiro (1899-1970).
Di Cavalcanti ainda apresentaria um trabalho que se
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Arte Moderna brasileira 13

afastava da tendência naturalista apregoada pelo ensi-


no tradicional acadêmico. Mas sua arte, embora tam-
bém se tenha apresentado entre os modernos já atuan-
tes antes da Semana de Arte de 1922, ainda engatinha-
va como ilustrador de uma revista carioca, com um tra-
çado sinuoso e feminino do Art-Nouveau, mas fazendo
sua primeira exposição em São Paulo no mesmo ano
que Anita Malfatti. Foi ele também o ilustrador que fez a
capa do catálogo da exposição da Semana de Arte Mo-
derna de 1922. Mas sua arte só obteria maior repercus-
são na fase subsequente, quando ela passa a expressar
as tendências da busca do elemento nacional dentro de
uma ótica pontuada pelas questões sociais.
O mesmo se dá com Vicente do Rego Monteiro, cuja
formação e atuação nos primeiros anos de sua vida pro-
fissional ainda não apontavam para aquele trabalho
tendente a uma angulação ortogonal e esquemática, pe-
lo qual ficaria conhecido, como se verá adiante. Esses
artistas, como ainda Oswaldo Goeldi (1895-1961), serão
vistos mais à frente, mas é importante registrar-se que
já atuavam naqueles anos primevos de surgimento da
Arte Moderna.

O desenvolvimento da arte nos anos de 1920


A década de 1920 apresenta um sentido simbólico para
a história da modernidade no Brasil, sendo o momento
de eclosão de várias tendências e acontecimentos artís-
ticos de relevância para o ambiente de transformação
da arte praticada na velha Escola de Belas-Artes. Não
se trata apenas da Semana de Arte Moderna, ocorrida
em fevereiro de 1922 na capital bandeirante, mas do
surgimento de trabalhos já totalmente diferentes das
práticas tradicionais herdadas da antiga Academia ao
longo daqueles anos.
A descoberta do escultor Victor Brecheret (1894-1955),
então atuante no Rio de Janeiro, por um grupo de artis-
tas e intelectuais, teve importância para a evolução da
arte no seu tempo em direção ao modernismo. Em ja-
neiro de 1920, Brecheret recebeu a visita em seu ateliê
de Oswald de Andrade, Hélios Seelinger e Di Cavalcanti,
sendo sua obra ainda elogiada na sequência pelo escri-
tor Menotti del Picchia (1892-1988) e pelo próprio Mon-
teiro Lobato, agora interessado pela obra de outro mo-
Ilustração 12 - Vítor Brecheret, dernista, mas sem aquele ranço crítico que pontuara
"Cabeça de Cristo", 1920, bron- sua visão crítica sobre o trabalho de Anita.
ze, 33,5 x 13,5 x 23,5 cm
O trabalho de Brecheret, que havia estudado no Liceu
de Artes e Ofícios de São Paulo e, na Itália, com Arturo
Dazzi (1882-1971), parte de uma simplificação das for-
mas inspiradas na obra do escultor romeno Constantin
Brancusi (1876-1957), alcançando, todavia, uma per-
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Arte Moderna brasileira 14

sonalidade que é de seu trabalho. Rapidamente, sua ar-


te evolui para o esquema vigoroso de contornos precisos
e de importância da linha como elemento preponderan-
te da obra.
Sua arte é dum refinamento erudito e sensível, como se
vê na obra “Cabeça de cristo”, realizada ainda antes da
Semana de Arte Moderna de 1922. Há estilização nesta
cabeça, mas sem perder o caráter expressivo da compo-
sição, dum Cristo que vocifera a Palavra que transfor-
maria o mundo.

Ilustração 13 - Vítor Brecheret, Monumento às Bandeiras, 1920 (projeto) - 1926-1953 (construção)


Granito cinza, parte frontal: 600 x 845 x 4400, parte post. 290 x 580. (Foto Lucas Salles, foto disponí-
vel em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Monumento_%C3%A0s_Bandeiras_01.jpg

Deste mesmo ano, data o projeto do monumento aos


Bandeirantes, que seria construído a partir de meados
da década seguinte, só se encerrando em 1953. É a
mais importante obra de Vitor Brecheret, com um im-
pacto estético que renderia sua inclusão no universo i-
conográfico da capital paulista.
A tendência do artista com a estilização da forma pela
simplificação dos partidos avançou nas soluções geome-
trizantes, especialmente pelo emprego do arco discipli-
nado, como se vê na “Portadora de Perfume”, escultura
cuja sensualidade expõe sistemas curvilíneos rítmicos e
dinâmicos.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 15

Ilustração 14 Vitor Brecheret - "Portadora de Perfume", 1924 - Pina-


coteca do Estado de São Paulo

Esse gosto pela simplificação das soluções formais ado-


tadas pelo artista não é uma característica estrita do
universo da escultura, nem menos de Brecheret. Trata-
se de uma tendência verificada no início do século XX,
como reflexo de um processo histórico de avanço das
práticas industriais, cuja base é o pensamento racional,
num contexto histórico europeu e americano. O reflexo
nas artes se fazia sentir desde o Pós-impressionismo,
com Cézanne, mas atingirá um de seus vértices com o
Cubismo, o De Stijl, o Sincretismo, até a abstração
construtivista.

Semana de Arte Moderna de 1922


O grande advento que marca a década de 1920 no Bra-
sil em direção à modernidade é a Semana de Arte Mo-
derna, organizada no Teatro Municipal de São Paulo en-
tre os dias 11 a 16 de fevereiro de 1922. Vários artistas,
intelectuais e músicos participaram do evento, como foi

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 16

o caso de Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de


Andrade (1890-1954), Tarsila do Amaral (1890-1973),
Di Cavalcanti, este o maior animador do evento, Vicente
do Rego Monteiro, Vítor Brecheret, Ferrignac, pseudô-
nimo de Inácio da Costa Ferreira (1892-1958), Zina Aita
(1900-1968), John Graz (1891-1980), suíço que partici-
pou da mostra, mas com importância menor.
A Semana de Arte Moderna receberia influência de um
“Futurismo não ortodoxo”, para usar os termos de Gra-
ça Aranha, bem como de outras vanguardas artísticas
em desenvolvimento desde fins do século anterior, com
menor ou maior repercussão nas artes visuais brasilei-
ras. O Futurismo foi um estilo que eclodira nos fins da
primeira década na Itália e que influenciou tanto as Ar-
tes Visuais como a Literatura, sendo marcado por um
sentimento de niilismo com relação a todos os valores
do mundo ocidental.
Um aspecto tão importante para o clima de ruptura que
a Semana acabaria consagrando foi o caráter de inter-
disciplinaridade que ela obteve, reunindo, num mesmo
evento, a arquitetura, a escultura, a pintura, a ilustra-
ção, a poesia e a música, embora tivesse deixado de fora
expressões como o teatro e o cinema.
É importante assinalar-se que as repercussões desse
encontro, que causou algum reboliço no meio cultural
paulistano, foi pequeno nos demais estados, especial-
mente no Rio de Janeiro, onde encontravam-se entrin-
cheirados e indiferentes os segmentos mais tradicionais
da arte brasileira.
Além disso, trabalho de alguns artistas não teve conti-
nuidade mais tarde, ficando sua participação na Sema-
na de Arte Moderna marcada praticamente apenas pela
singularidade daquela participação. Alguns ficaram no
esquecimento, como foi o caso de Martim Ribeiro, Fer-
rignac, João Fernando de Almeida Prado e Paim Vieira.
Os grandes artistas, todavia, perseveraram no amadu-
recimento de sua arte tempo afora, como foi o caso de
Brecheret, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, cuja obra agora
demonstra o abalo da artista pelas críticas que recebera
na exposição de 1917, Vicente do Rego Monteiro, Me-
notti del Picchia, que também atua nas artes plásticas.
Todos esses artistas ainda não apresentariam, nesse
evento, uma obra que já tivesse consolidado a caracte-
rística principal pela qual ficariam conhecidos mais tar-
de.
De todas as pinturas que estiveram expostas na Sema-
na de Arte Moderna, merece destaque o trabalho da ar-
tista mineira de origem italiana Zina Aita (1900-1967),
intitulado “Homens trabalhando”, que é de 1922.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 17

Ilustração 15 – Zina Aita, “Homens trabalhando”, 1922, óleo sobre tela, 22 x 29 cm.
Col. Yan de Almeida Prado
A artista havia estudado em Florença, mantendo-se a-
tenta as vanguardas parisienses, se bem que nem sem-
pre de forma sistematizada, o que dificultou a compre-
ensão de seu trabalho por críticos da época, como foi o
caso de Sérgio Milliet, que asseverou ser seu trabalho
“mais bizarro do que original”. Mas suas obras apresen-
tavam um cromatismo marcado por um acento moder-
no, pela intensidade das cores e pela fatura vibrante,
onde os contornos se fragmentam, numa alusão ao di-
visionismo neo-impressionista tardio. A temática apoia-
va-se no vocabulário realista, com sensibilidade à valo-
rização do trabalhador, dentro de uma perspectiva que
antecedia a vaga da iconografia humanística que assi-
nalou a arte brasileira nas décadas de 1930 e de 1940.
É imprescindível a referência à capa do catálogo da Se-
mana, elaborada pelo artista e ilustrador Emiliano Di
Cavalcanti, pela importância emblemática que adquiriu
com o tempo, transformando-se em ícone dessa exposi-
ção de arte, um símbolo do surgimento do Modernismo
no Brasil. Foi Di Cavalcanti também o principal promo-
tor, junto com o mecenas Almeida Prado, do evento em
causa.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 18

Ilustração 16 - Capa da exposição da Semana de Arte


Moderna, 1922, de Emiliano Di Cavalcanti

A década de 1920 foi importante para o desenvolvimen-


to da Arte Moderna, o surgimento de alguns artistas no
período. Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) é um
pintor de origem pernambucana que trabalhará sua ar-
te na vertente de uma tendência racionalista, nesse
momento em que o país procura novos rumos de sua
modernidade. Vindo do Nordeste, Vicente do Rego Mon-
teiro estuda em Paris na Academia Julian, alternando
sua permanência entre Rio de Janeiro, Paris e Recife,
cidade na qual acabou por se estabelecer como profes-
sor da Escola de Belas-Artes daquela localidade. En-
quanto morou na capital francesa, Vicente do Rego
Monteiro foi um artista que granjeou prestigiosa nome-
ada entre os artistas estrangeiros, sendo um dos pri-
meiros pintores modernos a dar visibilidade à arte bra-
sileira no exterior.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 19

Ilustração 17 - Vicente do Rego Monteiro - Adoração dos Reis Magos,


1925 - Coleção Gilberto Chateaubriand / MAM-RJ

Neste quadro que retrata a Natividade, prepondera a


tendência geometrizante, pela organização do espaço a
partir de matrizes ortogonais e pelo senso de equilíbrio
bem marcado. As figuras sugerem um viés escultórico,
lembrando relevo em cada unidade compositiva do tra-
balho – as figuras humanas, os bichos, o esquadrinha-
mento dos elementos do fundo, a manjedoura.
Muito embora esse artista tenha produzido trabalhos
antes da semana de Arte Moderna como “Nascimento de
Mani”, onde se preocupa em buscar temática nativista,
é apenas ao longo da década de 1920 que sua arte aca-
baria por adquirir o formato definitivo da racionalidade
esquemática.
Vicente do Rego Monteiro é o principal pintor nordesti-
no a participar dos momentos pioneiros do processo de
renovação da arte sobre novas bases estéticas. Não se
trata apenas da Semana de Arte Moderna, mas de uma
atuação fluida e contínua ao longo da década de 1920,
como observaria, em 1969, Gilberto Freyre.
“Seria inútil pretender-se apagar a presença do Recife nos
movimentos de renovação da cultura – inclusive da arte – que
marcou, no Brasil, a década de 1920. Não teve o brilho da
presença paulista, nem houve aqui um Graça Aranha, já glo-
rioso ao tornar-se modernista. Nem por isso deixou de partir
do Recife, naqueles dias todo um vigoroso ímpeto de renova-
ção ou de modernização das letras, dos estudos e das artes
nacionais. Nas artes plásticas – pintura e escultura – houve
um pioneiro magnífico saído do Recife e formado em Paris:
Vicente do Rego Monteiro. (...) Nenhum artista dentre os que,
historicamente, pertencem à famosa Semana de 22 é mais

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 20

merecedor de admiração do que esse recifense-parisiense, a


quem nunca faltou o sentimento de pan-brasileiro.”10

O Grupo dos Cinco e a Antropofagia


A principal artista dessa etapa é Tarsila do Amaral, que
pode ser vista, ao lado de Di Cavalcanti e de Anita Mal-
fatti, como uma das figuras centrais do modernismo
brasileiro de primeira hora. Tarsila iniciou sua carreira
de artista depois dos 30 anos de idade, tendo tido uma
formação preliminar em escultura e, na pintura, estu-
dou com artistas acadêmicos, como o paulista Pedro A-
lexandrino (1856-1942). Esse mestre de Tarsila era um
artista de visão acadêmica, mas que soube, a exemplo
do que fizera o acadêmico Charles Gleyre na França em
relação aos impressionistas, ensinar e incentivar, no
rumo da modernidade, pintores como Anita Malfatti,
Tarsila e Aldo Bonadei (1906-1974).
Viaja a Paris, onde estuda na Academia Julian e com o
retratista Émile Renard, passando, na sequência, a fre-
qüentar o ateliê de André Lhote (1885-1962), de que
herda a estrutura cromática e esquemática de suas pai-
sagens, Albert Gleizes (1881-1953) e, especialmente,
Fernand Léger (1881-1955), seu mestre de coração, cu-
jas formas curvilíneas e tubulares parecem ter deixado
marcas indeléveis no trabalho da pintora paulista, à
qual se mantém ligado por laços de amizade.
É destas últimas influências, ligadas ao cubismo sinté-
tico, em que Tarsila se abebera na constituição de uma
arte que se voltaria, já no regresso ao Brasil, para a
procura das cores e dos valores nacionais em sua pin-
tura.
Ao lado de Anita Malfatti, Mário e Oswald de Andrade e
de Menotti del Picchia – o Grupo dos Cinco, como fica-
ria conhecido –, procurou interferir na progressão do
pensamento moderno brasileiro, participando da elabo-
ração conceitual do movimento. Isto é um dado impor-
tante para a valoração da obra de Tarsila do Amaral, já
que a arte, na maior parte das vezes, vem, por assim di-
zer, a reboque das formulações nascidas sob a égide do
pensamento literário. Basta analisar a história das van-
guardas europeias, para se perceber, na maior parte
das vezes, a hegemonia que a Literatura desempenha
como carro-chefe dos movimentos, formulando-lhes os
conceitos.
Na Semana Santa de 1924, na companhia de vários in-
telectuais, entre os quais contava-se a figura celebrada
de Blaise Cendrars (1887-1961), poeta de origem suíça

10 FREYRE, Gilberto. Um grande pintor brasileiro, Diário de Pernambuco, Recife, 22 jun. 1969.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 21

mas naturalizado francês desde a Primeira Grande


Guerra, Tarsila percorre o interior de Minas Gerais, to-
ma contato com as origens de uma arte que pressagia
uma identidade nacional. Tarsila vivencia o Barroco e o
Rococó, sente a intensidade das cores e o caráter pictó-
rico da arte e da arquitetura da fase colonial, anotando
depois este depoimento:
“Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensi-
naram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão
do gosto apurado... Mas depois vinguei-me da opressão, pas-
sando-as para minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo,
amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou
menos fortes, conforme a mistura de branco. Pintura limpa,
sobretudo, sem medo de cânones convencionais.”11
A partir desse episódio, a artista envereda-se pela senda
da busca da “brasilidade” dentro de um viés moderno,
desaguando nas formulações do movimento do “Pau-
brasil”, marcado, em suas pinturas, por uma aborda-
gem despojada de qualquer afetação erudita e por um
gosto benfazejo pelo exótico, numa composição aqssina-
lada por um cromatismo vivo e de efeito inexoravelmen-
te alegre.
Neste “Vendedor de frutas”, o desejo de concepção de
uma obra de inspiração nativista é inequívoco. As cores
da bandeira nacional dominam o quadro, com tons de
amarelo cromo, azul cobalto e verde, num jogo vibrante
de superfícies cromáticas que dialogam entre si. O jo-
vem vendedor, com seu rosto feminino, sua tez trigueira
e seus traços acaboclados, domina o centro da compo-
sição. Ao fundo, uma paisagem dum colorido simples,
evoca os idos coloniais, a natureza e a atmosfera tropi-
cal imersa em luz.
A modernidade de Tarsila do Amaral trouxe uma forma
inventiva e direta de revelar, dentro de uma visão alegó-
rica, os elementos que configuraram, em seu tempo, a
especificidade do caráter brasileiro. Até então, quando
se falava na busca do elemento nacional, havia prepon-
Ilustração 19 - Tarsila do Ama- derado o arquétipo romântico, em que o índio desempe-
ral, "Vendedor de frutas", óleo nhara sempre uma função simbólica de elemento autóc-
sobre tela.
tone, quer dizer, próprio da terra e dela mesma repre-
sentante.
O movimento do Pau-brasil não foi apenas uma tentati-
va de se delinearem os aspectos constitutivos do caráter
nacional, mas foi também, ele próprio, uma reflexão crí-
tica sobre o passado do país, uma época de redescober-
tas da era colonial, um momento em que se semeava o
processo que redundaria na criação do próprio IPHAN.

11 AMARAL, Tarsila. Pintura, pau-brasil e antropofagia. Revista Anual do Salão de Maio, São Paulo,
1939.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 22

Ilustração 20 - Tarsila do Amaral. "A negra", 1923. Col. MAC-USP

O quadro “A negra” é uma representação voltada tam-


bém para a busca do elemento nacional, a partir da
constituição étnica da população brasileira, onde se fala
de uma diversidade que a arte até então ignorara. Pre-
domina, todavia, a ideia da mestiçagem desse povo, ali
figurado na imagem robusta da modelo, a um tempo re-
al e tangível e, a outro, suspensa no quadro de repre-
sentações imaginadas da sociedade brasileira.
A partir de 1928, Tarsila já se vê envolvida com os apor-
tes da representação desta brasilidade, assinalada tam-
bém pela reapropriação livre da herança dos influxos
estrangeiros em nossa formação histórico-cultural e que
ficaria conhecido como movimento “antropofágico”, on-
de vicejam os símbolos da representação do imaginário
tropical, a que não são estranhas as formulações extra-
ídas do vocabulário surreal, como bem ilustraria a obra
“Abaporu” (1928), infelizmente vendida para coleciona-
dor estrangeiro.
A obra “Antropofagia” é da mesma fase do “Abaporu” e
traz várias soluções da etapa anterior. As cores intensas
e abertas, a tendência à racionalização, pela busca da
síntese, das formas e espaços retratados, a temática de
inspiração nativista, são da etapa “pau-brasil”. Mas a
figuração estilizada, com tendência à acentuação do pe-
so das mãos e dos pés, aumenta desproporcionadamen-
te nesta fase “antropofágica”, ao mesmo tempo em que
se afirma a representação dos ambientes tropicais en-
cantados, onde transitam figuras improváveis, agigan-
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Arte Moderna brasileira 23

tadas pelo delírio surreal e colhidas no emaranhado de


valores estéticos e culturais que o olhar da artista cap-
ta.

Ilustração 21 - Tarsila do Amaral, "Antropofagia", 1928

A questão social e a continuidade da influência ex-


pressionista
Um outro artista de importância fundamental para a
História da Arte brasileira a trilhar os caminhos da Mo-
dernidade é Lasar Segall, já aqui referido. Muito embora
tivesse visitado o Brasil em 1912 e exposto no ano se-
guinte, é apenas durante a década de 1920, após seu
estabelecimento em definitivo no Brasil (1923), e, espe-
cialmente, os anos 30, que sua arte iria de fato se inte-
grar no ambiente cultural local.
De origem russa, esse artista estudou nas academias de
arte de Berlim, deixando-se influenciar pelas vanguar-
das expressionistas, especialmente durante sua perma-
nência em Dresden, onde atuava o grupo Die Brucke,

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 24

uma tendência estética de um expressionismo mais in-


tenso que se estabelece desde 1905, como bem ilustram
as obras de Emil Nolde (1867-1956), Ernst Kirchner
(1880-1938) e outros.
Como já foi assinalado, muito embora se deva reconhe-
cer que Lasar Segall foi o primeiro artista estrangeiro a
expor obras expressionistas ao público brasileiro, o que
lhe confere relevo na História da Arte moderna, não é
nesta época ainda que seu trabalho atinge a maturida-
de e a preocupação em retratar as grandes questões
não apenas sociais mas humanas que mobilizaram ar-
tistas e intelectuais do Brasil e do mundo. Portanto, na
seleção de quadros de autoria desse artista como repre-
sentativos da sua contribuição para o movimento mo-
derno brasileiro, interessam-nos menos os testemunhos
da primazia da exposição de 1913 do que aqueles ou-
tros que o situam como um cidadão do mundo, debru-
çado sobre os grandes temas internacionais e que mar-
caram a década de 1930 e 1940.
Veja-se por exemplo a tela “Navio de imigrantes”, de
1939, a retratar a realidade desumana do imigrante, fu-
gitivo de sua terra natal premido, pela iminência da
Guerra, dos problemas sociais, das ideologias que eli-
minavam o ser humano como base dos projetos políti-
cos de governo, e aceitava viajar em condições sub-
humanas, em troca de uma oportunidade condigna pa-
ra viver. O tema era muito recorrente no contexto euro-
peu de início do século XX, marcando um momento
dramático da História da humanidade.

Ilustração 22 - Lasar Segall, "Navio de imigrantes", 1939, Acervo


Museu Lasar Segall

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 25

A tela é cortada de forma triangular por duas linhas de


força a delimitar o bordo da proa do navio, em meio à
qual veem-se cordames, respiradouros, vigas de madei-
ra e pessoas comprimidas sobre o convés, em volta do
qual revolve um mar tormentoso, tratado por um dese-
nho vibrante e expressivo. Ao fundo, um horizonte osci-
lante nada tem de promissor na visão pessimista do ar-
tista, que retrata a dura experiência dos emigrantes em
busca de uma perspectiva mais generosa do que seu
destino até então lhe reservara. O cromatismo de tom
terroso acentua a sobriedade e o clima de tensão que o
quadro revela ao observador.
Dentro desta mesma temática, vê-se a obra “Êxodo II”,
que retrata a diáspora judaica, onde aparece a figura
humana dilacera pelo preconceito, pelas ideologias tota-
Ilustração 23 - Lasar Segall, litárias, pela indigência social do século XX, atirando
"Êxodo II", acervo Museu Na- essa enorme massa de degredados gerada pela Segunda
cional de Belas-Artes, 1949.
Guerra ao léu da insensatez e do abandono do mundo
moderno. Não por acaso a Alemanha de Hitler organi-
zou uma exposição intitulada de “Arte degenerada”, on-
de o trabalho deste e de outros artistas expressionistas
são apresentados ao público.
O expressionismo de Lasar Segall não permanece ads-
trito a um contexto social específico de uma sociedade,
de um país, mas volta-se para as grandes questões que
atingem a humanidade, especialmente para os proble-
mas das perseguições do povo judeu na ascenção do
nazismo.
Lasar Segall integra-se também ao meio nacional e sua
pintura passa a retratar cenas urbanas de cabaré, pros-
tituição, marinheiros notívagos, favelas etc. Essa temá-
tica seria também abordada por vários artistas brasilei-
ros.
Já foi aqui referida a importância da obra de Di Caval-
canti, pintor que atuaria na organização da semana de
Arte Moderna, e que se consagraria, ao lado de Cândido
Portinari (1903-1962), como dos grandes representan-
tes do modernismo brasileiro.
Ao contrário de Tarsila do Amaral, que fez seus estudos
em Paris e recebeu influência de André Lhote e de Fer-
nand Leger, este último seu amigo pessoal e mestre que
lhe conferiu os ensinamentos perceptíveis em sua arte
radiosa e com preocupações de busca da identidade da
cultura brasileira, Di Cavalcanti, da mesma forma que
Cândido Portinari, assimilará a ascendência fortíssima
de Pablo Picasso (1881-1973), voltando-se para uma ar-
te de caráter universal, onde se vê a denúncia das desi-
gualdades sociais.
Atuando inicialmente como ilustrador da revista Fon-
Fon, mas desejoso de intervir no processo de afirmação
Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Arte Moderna brasileira 26

da Arte Moderna brasileira, Di Cavalcanti desempenhou


relevante papel, arregimentando esforços e insuflando
ações concorrentes aos seus propósitos transformado-
res: estimulou Anita a expor em 1917, descobriu a di-
vulgou Vítor Brecheret, recém chegado de sua formação
européia, apresentou o gravador Oswaldo Goeldi (1895-
1961), com suas paisagens e cenas urbanas noturnas e
solitárias.
Sua atuação profissional é essencial para se compreen-
der uma das vertentes tomadas pela Arte Moderna, que
é o expressionismo e, na sequência, a evolução de seu
trabalho para captar o tipo popular. Sua pintura apre-
sentará também uma tendência à estruturação esque-
mática do desenho, derivado de remissões longínquas
ao cubismo.

Ilustração 24 - Di Cavalcanti, "Carnaval", 1924, óleo sobre tela, 90 x


75 cm, Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Alvares Pen-
teado – FAAP

A obra “Carnaval” apresenta o gosto pela composição


matizada de tonalidades intensas, com a representação
do ambiente urbano como espaço público de fruição co-
letiva. O trabalho procura retratar o movimento e a far-
sa das máscaras na festa popular, numa alegoria à ale-
gria do carnaval, que se espelha na desordem do grupo
compacto.
A pintura “Cinco moças de Guaratinguetá” faz remis-
sões sutis ao cubismo sintético, por sua tendência à ge-
ometrização das formas, com o emprego de cores vivas e
a constituição de ambiente alegre, com uma espaciali-
dade captada de maneira intuitiva e as formas huma-
nas assinaladas por soluções curvilíneas.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 27

Seu desenho acabaria incorporando a solidez e expres-


sividade de Diogo Rivera (1886-1957) e de outros artis-
tas ligados ao grupo do Muralismo Mexicano, voltados
aos temas sociais e preocupados com os desdobramen-
tos políticos do país. Na obra “Ciganos”, de Di Cavalcan-
ti, pertencente ao acervo do MNBA, encontra-se um e-
xemplo claro dessa influência, depreendendo-se certa
sensualidade das figuras, um cromatismo vivaz, mas
sem descambar para os excessos da abordagem emi-
nentemente expressionista. Ao contrário, as figuras
compartilham, com o observador, um clima de sereni-
dade e volúpia, sob uma visão otimista do artista sobre
o mundo.

Ilustração 25 - Di Cavalcanti,
“Cinco moças de Guaratingue-
tá”, 1930,

Ilustração 26 - DI CAVALCANTI, Emiliano Colonos, 1940, óleo sobre


tela, 97 x 130 cm, assinada EDC 1940

Todos esses aspectos formais presentes na obra do ar-


tista carioca acabam por configurar motivadores para
se proceder ao tombamento das pinturas acima referi-
das, considerando-se que Di Cavalcanti não apenas a-
presentou papel de destaque nos movimentos iniciais
de eclosão das primeiras manifestações artísticas mo-
dernas no Brasil, como também refletiu, de uma forma
crítica, a assimilação das tendências artísticas do cu-
bismo e do expressionismo na sua obra.

Três artistas marcados pelo Surrealismo


Mas não foi apenas na descendência do expressionismo
e do cubismo que a influência das vanguardas europei-
as se deu entre os artistas brasileiros. O movimento do
Surrealismo, que havia marcado profundamente as Ar-
tes Visuais, a Literatura e o Cinema, deixará suas mar-

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 28

cas também na arte brasileira, ainda que dentro de a-


bordagens menos radicais do que ocorrera na arte de
Max Ernst (1891-1976) ou Joan Miró (1893-1983) na
Europa. Já se viu que Tarsila do Amaral havia feito alu-
sões em suas pinturas da fase antropofágica à surreali-
dade, mas o movimento adquiriu ainda maior impor-
tância na História da Arte brasileira.
Dentro dessa linha, alguns nomes representativos da
influência direta ou indireta do Surrealismo no contexto
cultural brasileiro devem ser apontados, a começar por
Ismael Nery (1900-1934), atuante no Rio de Janeiro,
cuja morte ainda muito novo interrompeu o que talvez
fosse uma das carreiras mais fecundas na arte brasilei-
ra de seu tempo. Ao lado de Cícero Dias (1907-2003) e
de Oswaldo Goeldi (1895-1961), ele marcaria a década
de 1920 com suas composições de profundas implica-
ções poéticas.
Companheiro de Murilo Mendes (1901-1975) numa re-
partição pública e casado com Adalgisa Nery (1905-
1980), Ismael teve seu trabalho marcado pela poesia.
Em Paris, onde residiu em 1920 e frequentou a Acade-
mia Julian, sentiu-se atraído pelo grupo dos surrealis-
tas, chegando a fazer amizade com André Breton (1896-
1966), que lançara o manifesto anos antes. Após trilhar
uma bem-sucedida experiência pelo cubismo, que as-
simila em seus trabalhos através da representação obs-
tinada da figura humana, Ismael Nery começou a traba-
lhar com a matriz surrealista, especialmente tocado pe-
lo trabalho de Marc Chagall (1887-1885), no qual ob-
serva a composição com justaposição inesperada de fi-
guras e emprego duma palheta radiosa e leve, constru-
indo uma realidade improvável e até delirante.
É o caso de seu “Autorretrato”, pintado em 1930, por-
tanto já posteriormente à sua estada em Paris, perten-
Ilustração 27 - Ismael Nery, cente à coleção Assis Chateaubriand albergada como
"Autorretrato", 1930, Col. Assis
Chateaubriand, MAM-RJ acervo do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro. Na
obra, cenários do Rio e de Paris se misturam, numa
composição a que não é de todo indiferente ao cubismo,
mas que caminham na direção da construção de uma
realidade onírica, permeada de figuras flutuantes de
transparência que caminha na direção da espiritualida-
de.
Ismael Nery é um artista que transcende o fazer plástico
pela prática da poesia literária, numa tentativa de in-
termediar o mundo objetivo pelo olhar crítico de práti-
cas simbólicas de seu inconsciente.
Outro artista importante, cuja arte testemunha a pre-
sença do Surrealismo no Brasil é o pernambucano Cíce-
ro Dias (1907-2003). Sua pintura nasce de uma abor-
dagem primitivista e tende a uma visão cosmopolita do

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 29

mundo à época em que reside no Rio de Janeiro. A par-


tir de 1937, passa a residir em Paris e por lá permanece
por longos períodos, deixando sua arte influenciar-se
pela Escola de Paris, adotando o caráter mágico das vi-
sões oníricas, como também um cromatismo de inten-
sidade remissível aos fauves.
A obra “Eu vi o mundo: ele começava em Recife”, pinta-
da em 1931, apresenta-se já como uma narrativa de
sua experiência de vida, com uma visão feérica que o
consagraria. Gravemente danificada ao longo do tempo
por ter sido guardada de forma inadequada, foi restau-
rada pelos técnicos do Museu Nacional de Belas-Artes e
recolocada no circuito expositivo. Tempos depois, sem
ser incorporada ao acervo público, acabaria sendo ex-
portada e vendida para o exterior. Antes da perda do
“Abaporu”, a exportação desta obra foi uma das grandes
perdas da cultura nacional.

Ilustração 28 - Cícero Dias, "Sonho de Prostituta", aquarela e nan-


quim sobre papel, 56,5 x 51,5 cm.

No “Sonho de Prostituta”, Cícero Dias trabalha com um


cromatismo intenso, num desenho de espontânea ex-
pressão criativa, com a representação simultânea de
um problema de natureza social, abordado por uma lin-
guagem surrealista. Uma fila de homens alinha-se entre
encruzilhadas e sob cabeças de cavalos que flutuam,

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 30

sob o olhar de uma prostituta solitária e sonhadora.


Sua materialidade parece ser questionada pelo arco de
lâmpadas colocadas sobre a cabeceira da cama, como
se fosse penteadeira de camarim, a sugerir uma vida de
representações, assumindo seu corpo o reflexo de uma
imagem que talvez ela não queira de fato sonhar para
si.
Na gravura, Oswaldo Goeldi destaca-se com uma ação
inteiramente transformadora em seu tempo, assumindo
radicalmente a obra gráfica como frente de manifesta-
ção do pensamente moderno na arte e criando cenas de
profundas significações simbólicas, a que não é estra-
nha a representação da solidão humana, como na gra-
vura “Paisagem Noturna”.

Ilustração 29 - GOELDI, Oswaldo “Paisagem noturna”, xilogravura,


8,7 x 9,2 cm (área impressa); 15,7 x 15,7 cm (suporte), sem assina-
tura, Col. Museu Nacional de Belas-Artes

Goeldi só começa a gravar a partir de 1924, depois de


aprender a técnica com o gravador paulista Ricardo
Bampi, editando, em 1930, um álbum de xilogravuras,
prefaciado por Manuel Bandeira (1886-1968). Seguiu
para a Europa naquele mesmo ano e lá conheceu pes-
soalmente seu correspondente desde 1927, Alfred Ku-
bin, a quem deveria influência em sua vida de artista.
A ideia de abandono presente na arte de Goeldi, sob o
manto escuro de suas noites imensas, sugere as ima-

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Arte Moderna brasileira 31

gens ermas e melancólicas de Giorgio De Chirico (1888-


1978), embora estas representem ambientes ensolara-
dos e vazios, simultaneamente remissível aos lugares
urbanos, mas abandonados na própria solidão que as
cidades parecem impor ao homem do século XX.
A primeira vez que Goeldi usa o colorido em suas obras
é no conjunto de gravuras executadas para ilustrar o
poema Cobra Norato de Raul Bopp (1898-1984), escrita
em 1928, conforme anota Afrânio Coutinho12, mas pu-
blicada em 1931. Trata-se do principal trabalho desse
poeta ligado ao movimento antropofágico, estando seus
versos ambientados na Amazônia, cenário de peripécias
do herói, que sai em busca da amada pelo caminho de
um sonho. A obra, de natureza folclórica, é escrita para
crianças e apresenta uma narrativa lírica, eivada de a-
chados surrealistas tão típicos dos ambientes oníricos
imaginados pelos que sonham.
É de se considerar que o ambiente feérico da Amazônia,
com uma flora e fauna exuberantes que Goeldi conhecia
de perto, não apenas por ser filho do naturalista Emílio
Goeldi (1859-1917), mas por ter ele próprio residido na-
quela região, tivesse pesado em favor da decisão do ar-
tista em adotar as cores nessas gravuras, as quais, ali-
ás, eram destinadas ao público infantil.
A gravura “Sol vermelho”, por sua vez, é outra imagem a
ser apontada como depositária do espírito de renovação,
agora mais marcada pelo gosto visionário e mágico, que
Ilustração 30 - GOELDI, Oswal- ocorre em sua arte durante a década de 1930. Elemen-
do - Onça, ilustração para o tos marinhos, pássaros e astros celestiais movimentam-
livro Cobra Norato, de Raul
Bopp, xilogravura, 27,5 x 20,7 se freneticamente sobre um fundo escuro. Na imagem,
cm (área impressa) 30,8 x 23,6 tudo parece mover-se dentro de uma lógica caótica em
cm (suporte), sem assinatura, que a vida acontece. Não há intenção do artista em
acervo MNBA constituir um discurso coerente no plano das aparên-
cias. O inimaginável é seu desafio maior.

12 COUTINHO, Afrânio; BLAKE, Sacramento. Enciclopédia de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro:


MEC-FAE, 1990. p. 440, v. 1

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 32

Ilustração 31 - GOELDI, Oswaldo Sol vermelho, xilogravura, 23 x 41,1 cm (área impressa); 30,8 x 49,1
cm (suporte), sem assinatura

O período de afirmação do modernismo no Brasil


O período de 1931 ao início dos anos 40, palco da Se-
gunda Grande Guerra compreende uma época impor-
tante para a história do modernismo no Brasil, pois a-
barca um momento de afirmação de uma arte com sen-
sibilidade ao registro da paisagem social num país divi-
dido por contrastes muito expressivos.
A década de 1930 inicia-se vivendo uma crise econômi-
ca sem precedentes, herdada da crise americana de
1929, desembocando num contexto de instabilidades
políticas e sociais. Alguns fatores pesaram para que isto
acontecesse desta forma. A Revolução de 30, ocorrida
na esteira do clima de inquietações políticas instituídas
pelos militares de baixa patente – os tenentes – rompe-
ria com as práticas econômicas e políticas da Velha Re-
pública, por meio das quais se alternavam no poder as
oligarquias mineira e paulista. Essas práticas vinham
impedindo a industrialização do país, seu avanço edu-
cacional e tecnológico e reproduzindo um sistema polí-
tico marcado pelos vícios herdados da fase histórica
monárquica.
A época histórica inaugurada por Getúlio Vargas (1882-
1954) permitirá simultaneamente a ruptura com a re-
produção do poder dentro de um sistema vicioso eleito-
ral, como também permitirá o avanço das práticas eco-
nômicas e sociais, responsáveis pela industrialização do

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 33

país.
Tanto no plano científico quanto no cultural, mudanças
significativas estão acontecendo. As universidades do
Distrito Federal (Rio de Janeiro) e de São Paulo são
fundadas em 1934, enquanto grandes intérpretes da
cultura e da história brasileiras fazem escola, como
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Gilberto Freire
(1900-1987) e Caio Prado Júnior (1907-1990).
No Rio de Janeiro, a construção do prédio do Ministério
da Educação e Saúde (1936-1945) e, em Belo Horizonte,
a do conjunto da Pampulha, testificam um momento de
incentivo que o próprio Estado dará aos artistas, enco-
mendando-lhes obras e edifícios públicos. Nesses como
em outros imóveis modernos, veem-se técnicas artísti-
cas tenderem à unidade, com a pintura mural, a escul-
tura, os painéis de azulejos, da mesma forma que acon-
teceu na era barroca.
A própria escola começava a se transformar e recepcio-
na em sua direção Lúcio Costa (1902-1998), que leva
outros arquitetos e artistas, como Gregori Warchavchik
(1896-1972), Celso Antônio (1896-1984) e Leo Putz
(1869-1940), sem retirar os antigos mestres de seus
cargos. Como reflexo dessa atitude conciliadora, vemos
Ilustração 32 – Prédio do antigo o Salão de Belas Artes de 1931, que congrega obras de
Ministério da Educação e Saú- artistas modernos, ao lado de outros ligados à tradição
de, de Lúcio Costa e outros. do ensino acadêmico. Foi a XXXVIII Exposição Geral de
(1937-1945)
Belas-Artes.
Essa exposição, conhecida também como Salão Revolu-
cionário ou Salão dos Tenentes, exerceria importância
capital sobre a arte brasileira, porquanto tenha tido
uma repercussão mais amadurecida e abrangente da
questão da modernidade no Brasil13. Lúcio Costa refe-
riu-se ao Salão Revolucionário como “um milagre”, que
viera renovar o ambiente das exposições gerais de be-
las-artes para além do continuísmo em que se encon-
travam as mostras oficiais.14
Se a Semana de Arte Moderna pode ser considerada um
marco da modernidade no Brasil, sem desconhecer os
antecedentes renovadores do advento de 1922, é apenas
a partir da década de 1930 que esse espírito renovador
começa definitivamente a ganhar corpo e a afirmar-se
como fato histórico.
O papel desse salão foi fundamental para a afirmação
da Arte Moderna do país. A Semana de 1922 havia sido
um evento de importância mais simbólica do que pro-

13 Cf. VIEIRA, Lucia Gouvêa. Salão de 1931: marco da revelação da Arte Moderna em nível nacional.
Rio de Janeiro: Funarte, 1984.
14 Ibidem, p. 65.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 34

priamente fática no contexto do desenvolvimento da ar-


te brasileira. Suas repercussões ficaram adstritas à ca-
pital bandeirante, com reverberações pontuais também
no tempo. O meio artístico carioca pouco se interessaria
por esse acontecimento, já que a antiga Escola de Be-
las-Artes continuava fechada com seus modelos antigos
de reprodução e de transmissão do saber artístico.
O Salão de 1931 foi bastante diferente. Ele abriu um
universo de possibilidades dentro da instituição que até
então havia oferecido, com sua indiferença e silêncio,
resistência às mudanças que a Semana de 22 havia
propugnado. Embora tivesse havido algum boicote por
parte do segmento mais conservador da ENBA, a verda-
de é que o Salão teve repercussão mais profunda e du-
radoura do que a Semana de 1922, tendo-se em vista o
contexto histórico em que ele ocorre. Ele foi a semente
do clima de debate que se instaurou entre os estudan-
tes na década de 1940 e que se estenderia até 1960,
onde a persistência do gosto acadêmico foi uma marca
até ser definitivamente sobrepujada.
Lucia Gouvêa destaca que
“O que torna o Salão de 31 mais do que uma simples conse-
qüência da Semana de 1922 é não apenas o contexto político-
cultural no qual ele ocorre, mas também o significado artísti-
co diante da formação artística brasileira o Estatuto da Esco-
la de Belas-Artes, palco dos acontecimentos. O que ocorreu
em 31 foi uma ruptura institucional mais do que artística.
“Antes de 31, as obras de arte tinham circulação precária,
sem formalização cultural, ao passo que a partir de 31 a pro-
dução cria um círculo patrocinado pelo estado.
“Mais do que um evento artístico de destaque, assumiu um
significado político-cultural revelador da Arte Moderna em ní-
vel nacional.
“Se a Semana de 22 realizou o trabalho de choque, o Salão de
31 sedimentou e irradiou o novo.”
Nessa mostra expuseram os artistas cujo trabalho já vi-
nha se afirmando ao longo dos anos 20, como Anita
Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Lasar Segall,
Ismael Nery, Vítor Brecheret, Celso Antônio, aos quais
se ajuntou Eugênio Proença Sigaud (1899-1979), Edson
Ilustração 33 - Alberto da Veiga Motta (1910-1981), Flávio de Carvalho (1899-1973), Al-
Guignard, "Família de fuzileiro berto da Veiga Guignard (1896-1962) e Orlando Teruz
naval", 1938, Col. IEB - USP (1902-1984), Paulo Rossi Osir (1890-1959), além de ou-
tros.
Guignard estava praticamente iniciando-se no meio ar-
tístico nacional, pois que se havia formado na Real Aca-
demia de Belas-Artes de Munique e voltara ao Rio de
Janeiro no ano de 1929. Mário de Andrade o saúda em
artigo onde o considera como a “grande revelação” do
salão.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 35

Muito embora sua estreia numa exposição de importân-


cia histórica tenha acontecido no Salão de 1931, as o-
bras que aqui se destacam são de sua fase madura, on-
de o trabalho apresenta o resultado final do processo de
depuração contínua da trajetória artística desse autor.
A pintura desse artista apresenta-se entre aqueles ou-
tros que aderem ao modernismo já nos primeiros anos
de atuação profissional. Embora a intensidade das co-
res o coloque como um artista tocado de perto pelo ex-
pressionismo, como se pode notar na obra “Família de
fuzileiro naval”, é importante se notar que seu trabalho
evolui para o campo de uma suavidade que bordeja o
terreno do lirismo.
A pintura “As gêmeas” (Lea e Maura) mostra-nos como o
artista conseguiu valorizar o tema criando uma obra de
efeito harmonioso, dentro de uma atmosfera delicada e
envolta num lirismo facilmente sentido ao observador.
Por outro lado, há um ar de familiar interpretação do
artista, que nos revela, nessas gêmeas, duas personali-
dades bastante distintas, como se tivesse conseguido
penetrar nas almas humanas que tinha diante de si.

Ilustração 34 - Alberto da Veiga Guignard, “As gêmeas”, 1940, 111 x


130 cm, óleo sobre tela, MEC

Um aspecto primordial que caracteriza a obra de Guig-


nard é ter sido ele o que levou os influxos da Arte Mo-
derna para Minas Gerais, em cuja capital dirigiu uma
escola de arte de caráter transformador em relação ao
que se tinha produzido no meio até então. Esse papel
de difusor da Arte Moderna numa importante capital
confere-lhe uma importância não apenas artística, mas

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 36

também histórica ao se valorar a obra deste pintor.


A obra “O último abraço”, realizada em 1930 por Flávio
de Carvalho, merece aqui o destaque pela importância
que ela apresenta no universo artístico brasileiro. Antes
de qualquer coisa, é necessário fazer-se a alusão devida
às disparidades existentes quanto ao nome correto da
obra. Lúcia Gouvêa informa tratar-se de “À beira da
morte”15, enquanto que, na exposição retrospectiva ha-
vida no CCBB (Rio de Janeiro), cuja curadoria ficaria a
cargo de Denise Mattar, consta esse trabalho como de-
nominado “Autorretrato psicológico”.16 Ao que tudo in-
dica, todavia, o nome correto dessa obra seria “O último
abraço” (1930) e foi feita como monumento funerário
para o jazigo da sua família no cemitério de Araçá, em
São Paulo e depois exposta no Salão de 1931. A história
dessa obra é narrada por um de seus biógrafos, que te-
ria colhido um depoimento do próprio Flávio de Carva-
lho, segundo o qual o pai do artista encomendou uma
escultura para ser colocada no mausoléu da família.
Mas, o trabalho do artista não conseguiu agradar ao
gosto do pai.17
Era compreensível esse choque de gosto entre duas ge-
rações distintas. Trata-se de um trabalho de escultura
concebido dentro de uma linguagem muito progressista
para seu tempo. Até aquele ano, nenhum trabalho es-
cultórico recebeu a influência do cubismo de maneira
tão clara como essa escultura de Flávio de Carvalho. A
tendência à simplificação das formas e a busca pela
síntese na representação da obra de Brecheret não che-
gou a se configurar numa apropriação de todo cubista.
Seguindo pela vertente do cubismo analítico, a compo-
sição era assinalada pelo racionalismo, com a prepon-
derância de traçados retilíneos, mas sem perder a ênfa-
se que o artista quis assinalar pela expressão do gesto
da escultura.
Flávio de Carvalho era formado em Engenharia e pode
parecer sintomático, senão óbvio, que sua obra saísse
Ilustração 35 - Flávio de Carva- assinalada por uma corrente estilística tomada tão pro-
lho, "O último abraço", 1930, ximamente pela ascendência cubista, estilo marcado
gesso, Museu de Arte Moderna,
Salvador pela razão. Todavia, na pintura e no desenho, as obras
de Flávio de Carvalho adquirem os tons dramáticos do
expressionismo, como bem ilustra a série de desenhos
trágicos sobre a morte de sua mãe.

15 Cf. GOUVÊA, Lucia. Op. cit. p. 54


16 Cf. MATTAR, Denise. Flávio de Carvalho: 100 anos de um revolucionário romântico. Rio de Janeiro:
CCBB, 1999. p. 15.
17 Cf. SANGIRARDI Jr. Flávio de Carvalho: o revolucionário romântico. Rio de Janeiro: Philobiblion,
1985. p. 84-85

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Arte Moderna brasileira 37

Os grupos alternativos de arte


Várias entidades nessa época são criadas, como a
SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna), que durou de ja-
neiro de 1932 a março de 1934, procurando apoio fi-
nanceiro, organizando bailes de carnaval e promovendo
duas exposições, onde atuou Segall, além de outros, e o
CAM (Clube dos Artistas Modernos), que tinha Flávio de
Carvalho à frente, Di Cavalcanti e outros. O Clube dos
Artistas Modernos surgiu com o propósito de organizar
exposições de artistas modernos e de vender suas obras
de arte, promoveu uma exposição da artista expressio-
nista alemã Kaethe Kolwitz (1867-1945) e atividades te-
atrais de impacto, como foi o caso da peça ‘Bailado do
Deus Morto’, de Flávio de Carvalho, fechada pela polícia
logo na sequência da sua estreia. O CAM encerrou suas
atividades em 1933. A partir de 1937, o Salão de Maio
iniciou suas atividades, indo até 1939.
A criação do Instituto de Artes dentro da Universidade
do Distrito Federal, sob o pensamento de Anísio Teixei-
ra, foi um exemplo da abertura de um espaço de ensino
de arte alternativo em relação ao que existia na Escola
de Belas-Artes. Lendo-se os estatutos dessa escola per-
cebe-se o modelo da Bauhaus (1919-1933) como refe-
rência, considerando-se que o estabelecimento de ensi-
no defendia a “inclusão das artes industriais, especial-
mente as auxiliares da arquitetura, as gráficas e as de
indumentária, como processo de renovação do gosto do
ensino profissional no Rio”18. Observe-se que a arte en-
trava como fator coadjuvante, dentro da filosofia da es-
cola alemã de buscar a convergência de todos os gêne-
ros de expressão com vistas a enriquecer o processo
criativo arquitetônico. Nesse sentido entende-se a “ên-
Ilustração 36 - Anísio Teixeira
fase especial à pintura mural e à escultura monumen-
tal”19 valorizada pela escola em seus estatutos.
O Instituto, de vida breve, contou com a participação de
artistas ligados às vanguardas modernas, como era o
caso de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Celso Antônio
(1896-1984), Guignard, Lúcio Costa, Cândido Portinari,
além de outros. A Universidade do Brasil, que estava
sendo então organizada, concentrou as atenções das
autoridades do poder público federal, que não apoiaram
o projeto da universidade de arte de Anísio Teixeira.

O Núcleo Bernardelli
Outra iniciativa que caracterizou a tendência difusa e

18 KELLY, Celso. Implantação da Arte Moderna no Rio. II Congresso Nacional dos Críticos de Arte, São
Paulo, 12 e 15 de dezembro de 1961 apud. ZANINI, Walter. Arte contemporânea. In: ______.
História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Fundação Walter Moreira Salles, 1983. p. 570
19 Idem.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 38

descentralizadora do ensino da arte durante a década


de 1930, por meio da qual a velha Escola de Belas-Artes
ia perdendo sua hegemonia no ensino de uma arte tra-
dicional, foi a organização do Núcleo Bernardelli (1931-
1940). Vários artistas participaram desse grupo, que
não chegou a se estabelecer como uma escola tradicio-
nal de arte, mas exerceu influência mesmo na formação
de seus agremiados, pela atuação dos artistas mais ex-
perientes em relação àqueles menos tarimbados. Os ar-
tistas que tiveram ascendência sobre os demais foram
Bruno Lechowsky (1887-1941) e Manuel Santiago
(1897-1987), este último ex-bolsista brasileiro em Paris,
de sólida formação acadêmica, que lecionaria no Núcleo
a partir de 1934. O grupo foi deveras importante, pela
envergadura de artistas dali egressos e significativos
para a História da Arte brasileira.
José Roberto Teixeira Leite20, ao fazer significar o relevo
histórico do agrupamento, informa que os artistas do
grupo ali desenvolveram um conhecimento técnico de
pintura extremado, sendo também o Núcleo a sementei-
ra da formação de dois grandes nomes de nossa arte,
como Milton Dacosta (1915-1988) e José Pancetti
(1902-1958).
Outros artistas desse grupo enveredaram-se pela ten-
dência à valorização dos temas sociais, onde a imagem
do trabalhador é bem demarcada e valorizada. Foi uma
tendência nacional, que influenciará longamente a arte
brasileira a partir da década de 1930 até meados do sé-
culo, quando a abstração começa a se afirmar. Eugênio
Proença Sigaud (1889-1979) e Quirino Campofiorito
(1902-1993), eleito presidente do Núcleo em 1938, fo-
ram os mais notáveis intérpretes dessa tendência no
grupo.
Sigaud, que se notabilizou como o “pintor dos operá-
rios”, possui, no acervo do MNBA, a importante tela “A-
cidente de trabalho”, talvez sua obra mais copiosamente
reproduzida nos livros de arte brasileira. Trata-se de
um trabalho com forte apelo dramático, pela sobriedade
Ilustração 37 - Eugênio Proen- dos tons e pelo clima de consternação dos trabalhado-
ça Sigaud, "Acidente de traba- res que observam o corpo estendido no chão. A tela foi
lho", 1944, 132 x 95 cm, Acer- executada fora da época do Núcleo Bernardelli, mas po-
vo MNBA
de ser vista como a expressão da maturidade do artista,
cuja formação ele deve aos seus confrades do Núcleo.
Deve-se ver esse trabalho pelo caráter difuso com que o
interesse pela iconografia humanística se afirmou na
arte e na literatura brasileira, como um processo coleti-
vo e típico de uma época, afetando a vários artistas e

20 LEITE, José Roberto. Núcleo Bernardelli. Núcleo Bernardelli. In: In: ARTE no Brasil. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. p. 763, v. 2

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Arte Moderna brasileira 39

não apenas a um ou a um grupo reduzido. No Brasil,


essa tendência encontraria eco através de obras de ar-
tistas como Cândido Portinari, Orlando Teruz, Lívio A-
bramo (1903-1992), Djanira da Motta e Silva (1914-
1979), Tiziana Bonazola (1921), os gravadores do Clube
de Gravura do Rio Grande do Sul e os de Bagé, além de
outros.
Quirino Campofiorito, por sua vez, é outro artista a a-
presentar uma arte, em seu tempo de pintor do Núcleo
Bernardelli, comprometida com o resgate dos mais es-
senciais valores humanos. Ele também demonstra-se
sensível à temática exaltada pelo realismo social, movi-
mento desencadeado a partir da década de 1930 e que
iria sensibilizar vários artistas e intelectuais da América
Latina.
Seu ingresso no Núcleo Bernardelli ocorreu logo após o
regresso da Europa (1935), onde estivera aperfeiçoando-
se depois de conquistar o prêmio de viagem ao estran-
geiro, em concurso, quando aluno da ENBA. Datam
dessa época suas pinturas intituladas “Operário” (1933,
Museu Nacional de Belas-Artes), “Aquecendo a comida
dos camaradas” (Ministério do Trabalho), e ainda o pro-
jeto para pintura mural “Operários” (1939).
Entre as obras produzidas nesta fase, destaca-se “Ope-
rario”, pertencente ao acervo do MNBA. Trata-se de
uma obra de um cromatismo sóbrio, luminosidade fe-
chada num ambiente quase tenebrista, de onde avulta a
figura altiva dum trabalhador braçal.
Sobre este assunto, Quirino Campofiorito teve oportu-
nidade de declarar, em entrevista concedida ao crítico
de arte Frederico de Morais (O Globo, 12/09/82): “O
operário, como figura ou imagem, é um símbolo, a re-
presentação de alguma coisa que se alia às minhas i-
déias. A pintura é um métier; devemos apurá-la no sen-
tido de fazer com que ela atenda a todas as nossas ne-
cessidades de dizer as coisas.”
Seu trabalho depois perderia esse caráter doutrinário
que os anos de sua juventude consignou. Ele partiria
para a elaboração de naturezas-mortas, retratos, e so-
luções marcadas pela busca de novos caminhos, embo-
ra jamais perdesse seu compromisso com as questões
sociais que fundamentaram a arte de sua primeira fase.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 40

Ilustração 38 - Quirino Campofiorito, Operario, 1932, óleo


sobre tela

Entre os artistas do núcleo, deve ser apontado também


Edson Motta, em razão de seu envolvimento com o es-
forço de artistas e intelectuais de seu tempo ligados à
modernidade e empenhados na proteção do patrimônio
cultural brasileiro. Porque, embora tenha havido, a e-
xemplo do que representou a figura de Tarsila no cená-
rio cultural brasileiro, artistas-teóricos sobre a questão
da busca da identidade nacional, semente conceitual
que permitiria a criação de um órgão como o IPHAN em
1937, houve também aqueles outros, como Edson Mot-
ta, que transformaram esse projeto de construção da
memória do país em realidade, através de um trabalho
silencioso e pertinaz na restauração de bens culturais
do Brasil.
Assim, Edson Motta representou, na pintura, o mesmo
que Lúcio Costa foi na área de bens edificados. Muito
embora sua pintura fosse de uma modernidade contida,
como de resto o próprio grupo Bernardelli foi em relação
à modernidade, o papel desse artista junto ao esforço
que se desencadeou na década de 1930 e mais sensi-
velmente na seguinte, especialmente após a criação do

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro


Arte Moderna brasileira 41

IPHAN, é emblemático na área dos estudos e das pesqui-


sas voltadas à restauração de bens móveis.

Ilustração 39 - Edson Motta, "Árvores no Campo de Santana ", 1937,


óleo sobre tela, acervo MNBA

Dois outros artistas do grupo Bernardelli devem ser a-


pontados ainda nesta relação, já agora não mais por
sua representatividade da fase histórica sob influxo do
Realismo Social, nem pelo contributo trazido ao terreno
da restauração, mas sim pelo inegável importância de-
sempenhada no próprio contexto da pintura moderna
brasileira. São eles José Pancetti e Milton Dacosta.
José Pancetti viveu um tempo na Itália, antes de se alis-
tar, em 1922, na Marinha de Guerra do Brasil, onde
permaneceu até 1946, quando se reformou como 2º te-
nente. Em 1933, Pancetti ingressou no Núcleo Berna-
delli, estudando com Bruno Lechowsky, de quem rece-
beu viva influência, pela forma despojada de pintar su-
as paisagens. Lechowsky foi um artista emigrado que
atuou, ao lado de Manuel Santiago, como professor de
vários artistas que ali praticavam. Sua obra “Ilha das
Cobras” é um dos melhores exemplos de marinhas mo-
dernas da arte brasileira, pintada com despojamento e
com uma riqueza expressiva muito grande também.

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Arte Moderna brasileira 42

Ilustração 40 - Bruno Lechowsky, “Ilha das cobras”, 1933, Col Museu Naval do Ministerio da Marinha

Pancetti segue-lhe de perto a influência, apresentando


um trabalho cuja importância maior encontra-se na
produção entre 1936 e 1949. Seu desenho tende à sim-
plificação das formas, enquanto ziguezagueiam linhas
diagonais e paralelas, numa composição dinâmica de
agradável efeito plástico.
A ligação do artista com o mar é determinada por um
espírito de viajante, percorrendo os vários cantos do
mundo atrás de luzes que sua palheta pudesse registrar
com suavidade e sensibilidade. Declara ser um apaixo-
nado pela pintura, atividade que fazia com sensibilidade
e indisfarçável amor.
Entre os pintores paisagistas brasileiros, Pancetti mar-
cou época, apresentando um trabalho de enorme quali-
dade técnica, revelando um olhar sensível sobre o mun-
do azul pelo qual ele se encantava.

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Arte Moderna brasileira 43

Ilustração 41 - José Pancetti, Oficinas, 1940, 74 x 94 cm, Col. MEC

Artista da mesma importância foi Milton Dacosta, que


desenvolveu um trabalho marcado por uma linearidade
geométrica, mas sem excessos racionalistas. Ao contrá-
rio, suas soluções apresentam elipses, círculos, curvas
e contracurvas sinuosas, tendente a uma sensualidade
maior com a maturidade. Na época em que atua no Nú-
cleo Bernardelli, sua obra ainda tende ao emprego das
linhas retas dispostas em traçados ortogonais e oblí-
quos, que sugerem superfícies distintas, num jogo de
luzes e sombras suaves que ora se opõem, ora se en-
contram num clima de harmonia.

Ilustração 42 - Milton Dacosta, "Natureza-morta", 1949, óleo sobre


tela, 73 x 92

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Arte Moderna brasileira 44

É este o caso da “Natureza-morta” do acervo do Museu


de Arte Contemporânea de São Paulo, onde os elemen-
tos da composição – a faca, o saleiro, a panela, o lampi-
ão, a malga, o ovo, a garrafa ao fundo – arranjam-se em
meio a superfícies geométricas que se encaixam como
num quebra-cabeça de tons ocres e suaves. Esse traba-
lho já adianta o caminho que sua arte viria a trilhar
tempos depois, refletindo a transição de sua formação
para a maturidade.

A década de 1940 e a figura emblemática de Portinari


A obra de Cândido Portinari afirma-se no contexto da
Arte Moderna brasileira ao longo da década de 1930,
após seu regresso da Europa, onde estivera aperfeiço-
ando-se como bolsista do governo brasileiro, depois de
sólida formação na antiga Escola Nacional de Belas-
Artes. Portinari percebe e assimila avanços definidos no
terreno da pintura moderna brasileira, acrescentando-
lhes, todavia, outros elementos ricos que o colocariam
no cimo das atenções da crítica de arte.
Sua figura emblemática acabou por atrair a atenção do
poder estabelecido, que lhe fez várias encomendas para
decorar espaços de edifícios públicos, como se verá adi-
ante. Mas é importante destacar que esse envolvimento
com o Estado brasileiro não o afastou de suas convic-
ções ideológicas, que o colocam como o principal pintor
voltado à representação dos grandes temas nacionais,
em especial daqueles direcionados às agudas contradi-
ções sociais do país.
A primeira obra a ser destacada desse pintor paulista
de origem humilde é “Café”, pertencente ao acervo do
MNBA. Nessa obra, percebe-se uma de suas grandes
fontes estéticas em que se abebera: o Muralismo Mexi-
cano. As figuras têm solidez, transparecendo, em cada
uma, o caráter étnico nacional, mestiço por excelência.
A base da economia do país ali se encontra representa-
da como um valor que se polariza às contradições soci-
ais perscrutada pela visão do artista, sensível aos pro-
blemas sociais do país.

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Arte Moderna brasileira 45

Ilustração 43 - Cândido Portinari, "Café", 1935, 130 x 195 cm, Col. MNBA

Outra obra importante desse artista é o grande painel


“Jogos infantis”, que decora o salão do andar do gabine-
te do ministro do prédio do MEC, no Rio de Janeiro. A
pintura parietal tem 4,77 x 12,90 metros, e apresenta
nítida influência do pintor espanhol Pablo Picasso, au-
tor de “Guernica” (1937). Neste trabalho, as imagens se
organizam sob duas grandes linhas oblíquas, sob as
quais crianças brincam de roda, numa referência sutil
às linhas que compõe o pavilhão nacional. A cena cen-
tral é de extrema riqueza, porque as crianças que brin-
cam de roda dão-se as mãos, num gesto lúdico, mas
também remissivo à etimologia da palavra educar, que
significa, entre vários sentidos, a palavra “conduzir”. A
obra é de um encantamento ímpar e serve como uma
grande alegoria às brincadeiras infantis que se pratica-
va no Brasil na década de 1940.

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Arte Moderna brasileira 46

Ilustração 44 - Cândido Portinari, "Jogos infantis", 1944, 477 x 1290 cm.

Considerações finais
Convencionou-se dizer que se encerra o período da Arte
Moderna brasileira com o advento da pintura abstrata,
que ocorre a partir da década de 1950. Desde seu sur-
gimento, no final do século XIX, até meados do XX, vá-
rios artistas atuam dentro de tendências díspares, refle-
tindo estilos distintos da arte europeia.
Entre as grandes tendências que se verificam no Mo-
dernismo, observa-se, já na fase que antecede a Sema-
na de 22, o Realismo, o Impressionismo, o Pré-
rafaelismo, o Simbolismo e, ao longo do século XX, o
Expressionismo, o Futurismo, o Cubismo, o Surrealis-
mo, além de outras tendências estilísticas.
Dada a sua diversidade, é muito difícil fazer-se uma
tentativa de caracterização formal de um estilo moderno
no Brasil. No entanto, um fator histórico pode ser apon-
tado como um elemento que une todos os estilos que
compõe a Arte Moderna brasileira: o desejo de suplan-
tar uma forma acadêmica de representação do mundo
real e de ensino da arte.

Marcus Tadeu Daniel Ribeiro

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