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Porto de Januária [Arquivo Claudionor Carneiro, 1940]

Este artigo, centrado no estudo do passado e na formação da


cidade de Januária, Norte de Minas Gerais, discute o patrimônio
histórico e a identidade como fatores fundamentais para a
manutenção do preservacionismo, pondo em relevo a necessidade
da educação patrimonial como forma de ampliar a compreensão
das relações sociais e econômicas que deram origem à cidade.

Os marcos históricos de Januária foram lançados a partir da


conquista do rio São Francisco pelos bandeirantes, que
percorreram, no início do século XVI e XVII, as regiões do Alto e
Médio São Francisco a procura de riquezas minerais e aí se
estabeleceram mediante a submissão e o uso da força escrava dos
índios. O rio São Francisco, antes de receber esse batismo em
referência ao santo peregrino, era chamado pelos índios tupis de
Opará, o rio-mar. Por esse caminho, milenarmente habitado,
percorreram as principais correntes migratórias do Brasil colonial. A
ocupação territorial foi ocorrendo de forma gradual, com a formação
de fazendas para a criação de gado. O comércio entre as regiões
se formou durante todo o período colonial, e Januária, então
denominada Porto do Brejo do Salgado, Porto do Salgado, Salgado,
tinha o seu porto fluvial como centro fornecedor e de escoamento
de mercadorias, sobretudo no século XIX. A prosperidade do arraial
do Brejo, distante cerca de cinco quilômetros da margem do rio, fez
surgir a cidade de Januária, que foi se desenvolvendo a partir dos
depósitos de mercadorias. Graças às particularidades geográficas
do arraial do Brejo e às características do solo da região, com alta
concentração de salinidade, desenvolveu-se a partir da cana-de-
açúcar uma economia crescente e o porto comercial progrediu.

A economia do Porto do Salgado era assegurada pela troca intensa


dos produtos ali concentrados, oriundos do lugar ou que ali
aportavam, subindo ou descendo o rio. As barcas, grandes ou
pequenas, carregavam cargas e passageiros; além de meio de
transporte, elas funcionavam como um estabelecimento comercial
itinerante.

Findo o vaivém dos vapores, a ausência de uma política para a


navegação fluvial, a construção de ferrovias e o surgimento de
novas rodovias, o porto fluvial de Januária “fechou” praticamente
todo o movimento de passageiros e mercadorias. Ainda assim,
pequenas embarcações trafegam constantemente pelo rio,
principalmente entre Minas e Bahia. Sob essa história econômica e
social é que foram formados os bens representativos da cultura
ribeirinha do Vale do São Francisco.

Patrimônio e identidade

Pierre Nora utiliza as relações entre memória e história,


considerando que os marcos das comunidades são “lugares de
memória”. Esses lugares são destinados a marcar e ampliar a
memória. Nora diz que memória e história não são sinônimas.

Em Januária, praticamente inexiste uma política pública cultural


preservacionista e a sociedade ainda não se sensibilizou para as
questões de identidade e memória. No entanto, a sociedade local
pode apresentar cobrança do cumprimento dos deveres do
município em resguardar o patrimônio histórico cultural, já que
dispõe de lei municipal de proteção – Lei 1.800, de 27 de agosto de
1998, que dispõe sobre a proteção do patrimônio cultural. Desde
1985, portanto, antes da existência da lei local, o município recebe
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais –
IEPHA-MG incentivo para o tombamento e o reconhecimento da
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, localizada na zona rural do
Brejo do Amparo, como patrimônio de excepcional valor histórico.
Está configurada no Livro II do Tombo de Belas Artes e no Livro III
do Tombo Histórico do IEPHA-MG.

Como exemplar arquitetônico, sua importância é um marco na


história do povoamento de Minas e da região. Mesmo sendo
tombada, seu estado de conservação é bastante precário: está
abandonada, quase em ruínas. Ainda sem um aprofundado estudo
investigativo da história da formação do povoado, a origem da igreja
liga-se aos primeiros anos do século XVIII. É tal o estado de ruína
da igreja que já não se realizam missas em seu interior, a
população participa dos cultos do lado de fora da edificação, no
adro, onde são feitos também casamentos coletivos. Outro relato é
encontrado no Processo de Avaliação para o tombamento que
avalia “sua conservação até os nossos dias se deve mais a uma
feliz casualidade do que a qualquer esforço oficial nesse sentido”,
registra o documento do IEPHA-MG.

A campanha “Rio São Francisco Patrimônio Mundial – Expedição


Engenheiro Halfeld”, realizada pela Confederação das Associações
Comerciais do Brasil e executada pela Federação das Associações
Comerciais, Industriais, Agropecuárias e de Serviços do Estado de
Minas Gerais – (Federaminas) percorreu, entre 14 de outubro e 18
de novembro de 2001, o rio e seu entorno para avaliação dos bens
culturais e naturais do Vale do São Francisco. O Relatório de
Participação Técnica, elaborado pela equipe multidisciplinar de
pesquisadores da área de história e de patrimônio.

Quanto ao estado de conservação e à proteção legal, o relatório


aponta para situações extremamente díspares entre si. Em alguns
casos os bens foram tombados, mas deixados abandonados à
própria sorte.

Outro laudo técnico de interesse de proteção cultural foi levantado


pela Promotoria de Justiça de Januária, que, no ano de 2004,
requisitou ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça de Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural,
Urbanismo e Habilitação – CAO – MA, um relatório de avaliação e
levantamento dos bens. O relatório cultural preventivo consta de
mais de duzentas páginas apresentando considerações sobre a
história cultural de Januária e indicações para as ações imediatas
que a Prefeitura Municipal e o Conselho Deliberativo Municipal do
Patrimônio Cultural. Desde a conclusão do Relatório apresentado
pelo Ministério Público, a sociedade januarense ainda não tomou
conhecimento de efetivação das ações cobradas pelo órgão.

A população da cidade precisa cuidar da memória de Januária, pois


somente com informação podem contribuir para que esses acervos
ainda existentes sejam preservados. Certos conjuntos históricos
são lugares em que são guardadas as experiências e as vivências,
valores que se obtém somente com o tempo. Outros aspectos a
serem considerados são: a necessidade de um trabalho de
preservação e conscientização em benefício do aproveitamento do
patrimônio; a falta de interpretação por parte da população, que
ainda não se conscientizou do valor cultural do seu patrimônio nem
desenvolveu com ele uma relação interativa, não tendo portanto
conhecimento dos benefícios garantidos pela lei municipal que
estabelece a proteção desses bens culturais dos cidadãos de
Januária.

O reconhecimento de preservação é revelado, por exemplo, em


entrevista com a Diretora da Casa da Memória do Vale do São
Francisco, Maura Moreira que conta:

“A catedral de Nossa Senhora das Dores foi demolida entre 1971-


1972, quando ela iria completar 100 anos de construção. Sua
arquitetura era muito rica. Por dentro possuía uma nave grande com
corredores laterais sustentados por pilastras em mármore. O altar-
mor era muito trabalhado na madeira. No teto havia pinturas e
imagens. Possuía três torres, duas laterais e uma no meio um
pouco mais alta. A sua demolição foi comunicada pelo bispo da
época – Dom João Batista – que anunciou durante uma reunião
com as autoridades locais. Os representantes da sociedade e o
povo não questionaram a decisão da igreja. Somente uma senhora
chamada Diva Pimenta, que morava na capital, contestou a decisão
da igreja” .
A sociedade local sempre entendeu que o progresso da cidade viria
se fossem demolidas as “casas velhas”. As antigas construções não
representavam prosperidade para a cidade.

Entende-se que a demolição da Matriz é para os moradores de


Januária uma perda de referência no conjunto de construções do
Centro. Contrário a essa idéia de renovação, o artesão Irênio de
Souza, nascido em 1919, relembra o tempo em que freqüentava o
templo católico em Januária, e de sua migração para a Igreja
Maranata, em conseqüência de haver testemunhado em 1940 da
demolição da Capela na praça do Rosário , da Matriz de Nossa
Senhora do Amparo, em 1968, da Igreja da Santa Cruz, em 1971 e
da Matriz da Nossa Senhora das Dores, em 1972.

Essa idéia de renovação, de modernidade, tem a ver com a noção


de um país moderno que se tentou formar no período do governo
de Getúlio Vargas. Naquele momento, em 1972, a nova catedral de
Januária representaria um franco progresso para a cidade,
conforme observado em entrevista respondida por alguns dos
moradores. Passados mais de trinta anos, os mesmos moradores
se ressentem da demolição da catedral, uma perda que foi
antecedida da destruição de três outras Igrejas, como já
mencionado; todas demolidas sob o pretexto de risco de cair.

As sucessivas reconstruções também fazem parte da paisagem do


cais de Januária, conseqüência das enchentes periódicas, que na
maioria das vezes o danificavam. As pilastras do cais Coronel
Rocha foram demolidas na primeira metade da década de 1950,
aparentemente sob o argumento que a construção de um novo cais
seria novidade para a cidade. Outro cais foi construído no lugar, e
posteriormente, esse cais foi demolido dando lugar ao novo cais –
um dique para conter ás águas da enchente – que nos dias atuais
se encontra na avenida beira-rio. Nota-se que, de década em
década, a paisagem urbana sofre modificações lastimáveis. As
praças que contornam o porto igualmente sofrem transformações
que não respeitam o conjunto histórico do cais.

Recentemente, em 2001, o prédio que abrigou o Colégio São João,


tradicional estabelecimento de ensino, referência na região e no
Estado (durante décadas nele vinham estudar alunos do interior da
Bahia e até de Goiás), foi mais uma vítima da demolição. No lugar,
se encontra um lote vago, destinado, segundo previsto, à
construção de um conjunto de lojas. “É a cultura dos condomínios
fechados, das praças privatizadas, do paraíso dos shoppings”,
aponta Almandrade.

O debate da permanência da fachada estendeu-se por cerca de


dois anos. Foi necessário uma ação judicial impetrada pelo próprio
Ministério Público, pela qual se desejava assegurar ao menos a
permanência da fachada, que é de valor simbólico e histórico, foram
derrubados pelo argumento de que não existe o tombamento real
do imóvel, apenas seu inventário.

A cidade de Januária possui aspectos históricos relevantes para a


história do Estado de Minas Gerais. Nas construções, certos
detalhes demonstram a influência que a região recebeu da
arquitetura baiana. As características destas influências estão
impressas no estilo colonial civil português, nos beirais das casas
decorados por rendilhados, esculturas, telhados com acentuado
caimento, proporcionando um cômodo entre o forro e o telhado, nos
florões, frisos, capitéis e outros detalhes modelados em argamassa
nas fachadas de cada casa.Baseando em exemplos de cidades que
realizaram projetos apoiados em incentivos ou isenção fiscal, é
possível constatar que recuperações no patrimônio urbano só se
deram de fato, a partir da decisão e empenho do poder público, da
sociedade, e principalmente das escolas.Não há porque obstar o
crescimento de uma cidade, ele é necessário e bem-vindo, mas as
perdas de referências da população em relação a seu passado
provocam, por exemplo, a perda concomitante da noção de
“pertencimento, princípio e segredo da identidade”, que no nosso
entendimento passa pela educação patrimonial.

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