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Anpuh Rio de Janeiro

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Mosaicos da Escravidão:
africanos e crioulos no Recôncavo da Guanabara (1780-1790)

Nielson Rosa Bezerra1

Através do presente artigo pretendo problematizar sobre o debate da escravidão no Brasil com o
objetivo central de definir um contexto no qual se desenvolveu a vida escrava durante a derradeira parte
do período colonial e a primeira metade do século XIX. Para tanto, torna-se necessário considerar as
reconstruções culturais do mundo do cativeiro, tendo em vista os limites e as possibilidades sociais
impostos e permitidas pelo regime escravista, bem como os espaços de sociabilidade que os escravos
teciam entre eles e com agentes de outros segmentos da sociedade. Assim, o estudo das relações sociais
protagonizadas por africanos e crioulos torna-se fundamental para as nossas indagações, pois a
investigação sobre as diferentes formas de sociabilidade entre os escravos que vivenciaram a
compulsória travessia do Atlântico e aqueles que eram considerados “cria” da terra é importante para se
construir uma perspectiva de análise sobre a experiência escrava.
Um estudo sobre o conjunto de sociabilidades desenvolvido pelos escravos crioulos e africanos
2
precisa levar em conta as diferenças étnicas e culturais entre eles. Desta forma, tal investigação se
voltará para a diversidade social e cultural que se configurou na região do Recôncavo da Guanabara,
considerando os padrões de africanidade e os níveis de crioulização entre os escravos que compunham
os segmentos sociais marginalizados das freguesias que se situavam no entorno da Baía de Guanabara.
As relações sociais baseadas do Regime Escravista que se desenvolveram desde o período
colonial que tiveram lugar na região que atualmente denominamos por Baixada Fluminense3 teve
origem no processo de ocupação portuguesa ocorrida no entorno da Baía de Guanabara. Tal região logo

1
Doutorando em História (UFF)
2
É importante assinalar das dificuldades do estudo sobre as formações étnicas de africanos no Brasil colonial. Em função
disso, Mariza de Carvalho Soares desenvolveu o conceito de “grupos de procedência”, a partir das idéias de “grupos
étnicos” apresentadas pelo antropólogo Fredrick Barth, que serão nossas principais referências conceituais.
3
A região que atualmente denomina-se de Baixada Fluminense pode ser definida como o conjunto de municípios limítrofes
ao norte da atual Cidade do Rio de Janeiro, formando com ela parte do Grande Rio. Mesmo nos referindo à região onde se
localizava as vilas de Magé, Iguaçu e Estrela como Baixada Fluminense, evitei esta terminologia, tendo em vista que este é
um conceito utilizado para identificar a região de acordo com sua configuração atual, ou seja, muitas vezes confundida com
o subúrbio desta capital. Sendo assim, quando me refiro às freguesias estudadas como região ou em conjunto utilizarei os
termos Recôncavo da Guanabara ou Recôncavo Guanabarino, de forma que distinguir a região no tempo, utilizando uma
terminologia diferente, mesmo estando conscientes dos problemas que esta definição também apresenta.
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assumiu um importante papel na conjuntura econômica da Capitania do Rio de Janeiro, haja vista que
servia como entreposto entre o litoral e o interior. 4
Durante o século XVII a economia que se efetivou com a exploração da região foi marcada pela
produção de cana de açúcar, pela manufatura do açúcar e aguardente, largamente utilizada no comércio
de africanos em Angola5, e a produção e a comercialização de alimentos6, complementadas por uma
larga exploração vegetal, além dos trabalhos em olarias. Outra importante característica da ocupação
européia no Recôncavo do Rio de Janeiro foi a utilização da disposição hidrográfica para o transporte e
o escoamento das mercadorias para o porto da cidade do Rio de Janeiro. Estas características da
ocupação portuguesa na região assemelham-se com a forma como foi efetivada a colonização no
Recôncavo Baiano, como apresenta Stuart Schwartz. 7
Durante este período, os rios Iguaçu, Sarapuí, Pilar, Inhomirim, Suruí, entre outros, além de vias
de transporte, também foram os marcos naturais para a delimitação das propriedades e freguesias
fundadas na região. Assim, pode-se perceber a função estratégica que a eles eram emprestadas, pois
exerceram a função de “estradas”, sendo vitais do ponto de vista econômico, para o escoamento de
mercadorias, bem como do ponto de vista social, pois através deles circulavam pessoas, informações,
tradições culturais, expressões artísticas, etc. Estas perspectivas remetem às reflexões de Joseph Miller
que afirmou que a travessia do Atlântico não era apenas de mão de obra, mas que o tráfico de escravos
também propiciava o deslocamento de tradições culturais, hábitos e costumes que foram
ressignificados na América. 8
A inserção da região do Recôncavo da Guanabara, atualmente conhecida por Baixada
Fluminense na economia colonial se deu no século XVII (com a produção de aguardente) e,
principalmente durante o século XVIII, quando foi encontrado ouro em Minas Gerais. Com a
necessidade do escoamento do ouro e o abastecimento da província mineira, bem como uma ligação
direta com o porto mais próximo das regiões auríferas, a região do Recôncavo Guanabarino teve os
seus rios utilizados com tal objetivo, além de ter o seu território cortado por estradas e caminhos com o

4
Ver: BEZERRA, Nielson Rosa. “Iguaçu e Estrela: a Baixada no meio do Caminho”. Em: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio de Janeiro. Ano 13. Nº 13, 2005.
5
Ver: ALENCASTRO, Luís Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil do Atlântico Sul. São Paulo: Cia da
Letras, 2000, p. 109 e 314.
6
É importante destacar a diferença que fazemos em produção de subsistência e produção de alimentos, pois ambas tratam-
se de arroz, milho, feijão, etc. Entretanto, no caso da produção de alimentos, era para o consumo e a comercialização.
7
SCHUARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo:
Companhia da Letras, 1988.
8
Ver: MILLER, J.C. Way of Death: Merchant Capitalism and the Engolan Slave Trade (1730-1830). Madison: University
of Wisconsin Press, 1988.
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objetivo de se alcançar Minas Gerais. Assim, a região que ora conhecemos como Baixada
Fluminense, tornou-se uma importante área de passagem entre o litoral e o interior do Rio de Janeiro e
Minas Gerias. Em função disso, iniciou-se a intensificação do surgimento de localidades e freguesias
no entorno dos portos fluviais da região e ao longo desses caminhos e estradas, o que leva a perceber
que além de passagem, tal região serviu como entreposto comercial e constituíram lugares de descanso
e pouso para tropeiros, viajantes e autoridades.
Analisando os relatos de Monsenhor Pizarro, por conta de suas visitas pastorais na região
durante os séculos XVII e XVIII, percebe-se o surgimento de diversas freguesias, como Nossa Senhora
da Piedade do Iguaçu (1759), Nossa Senhora do Pilar (1717), Nossa Senhora da Piedade do Inhomirim
(1696), Nossa Senhora da Piedade de Magé (1657), Santo Antônio da Jacutinga (1657), São João
Batista de Trairaponga (1647), Nossa Senhora da Conceição de Marapicu (1737), Nossa Senhora da
Guia de Pacobaíba (1722), São Nicolau do Suruí (1683)10. Estas freguesias, que surgiram ao longo dos
séculos XVII e XVIII, deram origem as vilas de Magé (1789), de Iguaçu (1833) e Estrela (1846). Seria
interessante assinalar que as freguesias da região antes da formação das suas referidas vilas,
administrativamente estavam subjugadas aos termos da cidade do Rio de Janeiro ou de Niterói.
Ainda se deve destacar que durante o século XVIII, o porto do Rio de Janeiro tornou-se a
11
principal porta de entrada de africanos no Brasil, principalmente os que procediam de Angola.
Assim, a proximidade geográfica do Recôncavo Guanabarino com a cidade do Rio de Janeiro, permite
sugerir sobre um imediato abastecimento de mão de obra escrava africana para as freguesias do entorno
da Guanabara. Uma leitura preliminar nas fontes referentes a batismos, casamentos e óbitos de escravos
que viviam na freguesia do Pilar demonstrou uma recorrência de angolas e benguelas. Contudo,
diversos são os grupos de procedência12, tais como gentios da guiné, majangano, manjolo, baça, rebolo,
cassange e moçambique. Em tal leitura preliminar, a diversidade, em detrimento a unidade, tem me
chamado a atenção, o que permite uma problematização sobre as trocas culturais e as complexidades

9
O Caminho Novo de Garcia Pais (1704) , o Caminho Novo de Bernardo Soares Proença (1723) e a Estrada do Comércio
(1822) construída pela Junta Real do Comércio são exemplos dos eixos de ligação entre o litoral e o interior que cortavam
as freguesias do Recôncavo da Guanabara.
10
ARAÚJO, José de Souza A. Pizarro. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Vol. 3. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1945.
11
FLORENTINO, M. G. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro
(Séculos XVIII E XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1994.
12
Ver: SOARES, M. C. Devotos da cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 117.
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sociais construídas no mundo do cativeiro, tendo em vista a variabilidade étnica que formava mosaicos
que bem representam o mundo do cativeiro africano no Brasil. 13
A variação cultural, o processo de interação entre os escravos de diferentes procedências e as
relações com crioulos e libertos, podem ser explicadas por ser o Recôncavo da Guanabara uma região
secundária na produção agrícola e também por não ser uma região de características urbanas. Portanto,
esta também era uma região secundária em relação ao abastecimento de mão de obra escrava, o que
dificultaria a padronização de benguelas, angolas e luandas. Por conta disso, o padrão de africanidade e
os níveis de crioulização poderia não corresponder aos da cidade do Rio de Janeiro e os do interior.
Nesse sentido, pode-se supor que independente da quantidade da escravaria, por ser uma região de
passagem, de ligação ou de confluência entre o mundo rural e o mundo urbano, a experiência escrava
se deu em uma situação de assimetria social, ou seja, sem muitas delineações, o que dificulta pensar as
relações sociais (casamento, compadrio, etc) protagonizadas por escravos de forma esquemática,
restringindo o campo de ação dos escravos.
Iniciei este debate durante minha pesquisa de mestrado, quando me prontifiquei em estudar uma
região de passagem, que, embora fosse marcada por uma produção agrícola voltada para o
abastecimento regional, também se caracterizava por uma parte considerada dos escravos empregados
no setor de transporte. Por estar situada entre o litoral e o interior, a escravidão no Recôncavo da
Guanabara guardava características de confluências do mundo rural e do mundo urbano. 14
A partir do que está sendo focalizado, pretendo iluminar uma nova questão para a historiografia
brasileira sobre as relações sociais escravistas, que ao longo dos anos tem sido dicotomizada em
escravidão rural e escravidão urbana. Acredito que seria possível estudar uma sociedade escravista
constituída em uma região de passagem, onde a referências de trabalho, de identificações sociais, de
expressões culturais dos escravos, bem como de outros segmentos sociais se engendram e confundem
por um caráter de confluência de elementos de mundos diferentes da escravidão que se encontram e se
confundem, recriando as relações sociais com características próprias.
Como já foi dito, a historiografia brasileira sobre a escravidão pode ser dividida entre os estudos
que privilegiaram as relações sociais escravistas rurais e outros estudos que se marcaram por uma
investigação mais detalhada na escravidão que existiu no espaço urbano. Assim, imagino que neste
momento seria interessante pontuar algumas obras que podem representar esta distinção com o objetivo
de identificar as características de cada uma dessas duas modalidades de interpretação sobre o assunto.

13
Arquivo da Diocese de Petrópolis. Livro de Batismos de Escravos. Freguesia de Nossa Senhora do Pilar (1809-1835).
14
Ver: BEZERRA, Nielson Rosa. As confluências da Escravidão no Recôncavo da Guanabara: Iguaçu e Estrela (1833-
1888). Dissertação de Mestrado. Vassouras: USS, 2004.
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Esta distinção pode ser iniciada com Gilberto Freyre que elaborou estudos sobre a sociedade
patriarcal do mundo rural, mas que também não se furtou de estudar como se davam as relações sociais
do Brasil durante uma época da escravidão marcada pelo espaço urbano. 15
Ao longo do século XX, diversas obras apareceram como importantes contribuições para a
historiografia brasileira, porém, algumas foram como divisores de águas, que ao longo do tempo
tornaram-se imprescindíveis, cujas reflexões são indispensáveis para qualquer estudo que tenha como
objeto algum aspecto da escravidão no Brasil. Entre estas obras, a principal referência para a
escravidão urbana no Brasil está a produção de Mary Karach, que descreveu e analisou os mais
diferentes ângulos da vida dos escravos que viviam na cidade do Rio de Janeiro, nos brindando com
aspectos variados do mundo escravista urbano.16 Obra de importância correspondente para a escravidão
rural é o trabalho de Robert Slenes, sobre as recordações e as esperanças na formação da família
escrava no sudeste brasileiro, pois suas reflexões, oferece a possibilidade de trabalhar com um
contraponto em relação às interpretações que até então existiam a respeito da vida sexual e afetiva dos
escravos.17 Nesta mesma trajetória, também pode-se identificar o trabalho de Hebe Maria Mattos que
analisou a trama social escravista através dos vários significados que liberdade podia receber dentro da
lógica dos escravos.18
Outras referências que demarcam a dicotomia da produção historiográfica sobre a escravidão no
Brasil são os trabalhos de Luiz Carlos Soares19 e de Maria Helena P. T. Machado20, que se debruçaram
sobre a questão da autonomia escrava, apresentando interpretações inovadoras para o contexto
historiográfico de suas produções. A contribuição de Soares está voltada para o espaço urbano do Rio
de Janeiro, onde se preocupa em estudar a escravidão de ganho, uma importante modalidade de
trabalho tipicamente da cidade. Já Machado, volta-se para a questão da autonomia dos escravos no
entorno da roça, onde conquistavam avanços nas interações entre eles e com outros agentes sociais. Da

15
Neste momento, as referências são as obras clássicas: FREYRE, G. Casa Grande e Senzala: formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal. 17ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. FREYRE, G. Sobrados e
mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.
16
Ver: KARACH, M. A vida escrava no Rio de Janeiro (1808-1850). S. Paulo: Companhia da Letras, 2000.
17
Cf.: SLENES, R. Na senzala uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava (Brasil – Sudeste,
século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
18
MATTOS, H. M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil – Século XIX. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
19
SOARES, L. C. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX. Em: Revista Brasileira de História – Escravidão.
Número 16. Anpuh, 1988, p. 107-142. Neste artigo, podemos identificar as idéias centrais de sua tese de doutorado.
SOARES, L. C. Urban slavery in nineteenth century. Rio de Janeiro, Londres, University College, tese de Ph. D, 1988.
20
MACHADO, M. H. P. T. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão. Em:
Em: Revista Brasileira de História – Escravidão. Número 16. Anpuh, 1988, p. 143-160. Além deste artigo, suas idéias
podem ser apreendidas através de: MACHADO, M. H. P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas (1830-1888).São Paulo: Brasiliense, 1987.
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mesma forma, podem-se apontar os trabalhos de Sidney Chalhoub e de Flávio Gomes que se
aprofundaram nas relações sociais subterrâneas que os escravos vivenciavam na luta cotidiana pela
liberdade. Chalhoub enfocou as visões próprias dos escravos em relação ao cativeiro e a liberdade,
criando o conceito de cidade esconderijo, tendo como espaço privilegiado a centro do Rio de Janeiro. 21
Flávio dos Santos Gomes22, se voltando para o interior da Província do Rio de Janeiro, destacou e
analisou as múltiplas formas de resistência escrava, da fuga em massa até a formação de quilombos,
que formavam redes de solidariedades voltadas para o sucesso de suas ações rebeldes.
Como se pode perceber, a historiografia brasileira sobre a escravidão, desde os tempos de
Gilberto Freyre vem se caracterizando por uma lacuna, muito em função da dicotomia que os
historiadores criaram quando deram preferência aos estudos do meio rural e do meio urbano. O mais
grave é que não existe nenhum trabalho difundido que tenha sido desenvolvido com a preocupação em
debater as conexões e as confluências entre o mundo da escravidão rural e o mundo da escravidão
urbana.
Ao prosseguir com as pesquisas que venho desenvolvendo, através deste projeto, pretendo
iluminar esta questão de forma mais sistemática, pois este trabalho será voltado não apenas para a
composição dos grupos de procedências dos africanos do Recôncavo da Guanabara, mas também suas
relações sejam interativas ou conflituosas com outros escravos crioulos, como libertos e com agentes
de outros segmentos sociais. O próprio processo de composição da escravaria já terá esta preocupação,
tendo em visto que além do exame de livros eclesiásticos, também será analisado a distribuição dos
escravos que eram enviados para o interior, sobretudo os que eram desembarcados no porto do Rio de
Janeiro.
A ocupação portuguesa no Recôncavo da Guanabara, a formação de freguesias e fazendas, as
atividades voltadas para o setor de transporte (importante na região) criaram uma demanda para a mão
de obra escrava, suscitando uma demografia escrava que não pode ser considerada de grande escala,
sobretudo porque a maior parte dos escravos desembarcados para o Rio de Janeiro era encaminhada
para Minas Gerais e, posteriormente para o Vale do Paraíba (regiões de agricultura de exportação).
Contudo, verificando a obra de Flávio dos Santos Gomes, pode-se inferir que o número de escravos nas
freguesias onde se situavam os quilombos por ele estudados, entre 1779 e 1840, os escravos sempre

21
CHALHOUB, S. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
22
GOMES, F. S. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – Século XIX.
Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1992.
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foram superior a 50% do total da população. Assim percebe-se que mesmo não se tratando de uma
escravaria que pudesse ser inserida no conjunto das maiores concentrações de escravos, o coeficiente
expressivo e sua crescente durante o período que se pretende estudar, pode ser um indicativo
interessante para considerar um importante estudo sobre a escravidão no Brasil através de uma análise
desta sociedade escravista.
A historiografia recente tem apontado para o crescimento dos fluxos comerciais entre os portos
africanos e o Rio de Janeiro durante o século XVIII. Tal crescimento tem sido confirmado em função
das demandas por mão de obra escrava de africanos pelos mercados mineiros. Desta forma, sugeri-se
que nesta região se criou uma demanda para a construção de propriedade e freguesias durante este
período, também aumentou a demanda para o trabalho escravo. Por se tratar de uma região limítrofe
com o Rio de Janeiro, ligada diretamente com o seu porto através de embarcações que atravessavam a
Baía de Guanabara, não seria difícil problematizar sobre o abastecimento de escravos africanos para
trabalhar na produção agrícola e no setor de transporte, considerando que esta região situava-se “no
meio do caminho” entre o litoral e o interior do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Com a perspectiva apresentada pretendo pesquisar sobre a formação social das freguesias
situadas no Recôncavo do Rio de Janeiro, considerando a sociabilidade escrava através de uma análise
intensiva sobre os padrões de africanidade e os níveis de crioulização na sociedade local, de forma que
possamos contribuir com o debate sobre as relações sociais baseadas no regime escravista no Brasil.
Assim, pretende-se construir uma amostragem das relações entre as Áfricas e o Rio de Janeiro
analisando uma região periférica além de investigar a relação entre o interior e o litoral.
Ao se buscar identificar os padrões de africanidade e os níveis de crioulização de uma sociedade
escravista, intenciona-se verificar a diversidade africana, não apenas em uma perspectiva social, mas
também se voltando para as reconstruções culturais que eram realizadas após a travessia do Atlântico.
Assim, a investigação sobre os laços e estratégias de sociabilidade escrava através de redes de
solidariedade será de importância singular para a feitura o trabalho ora proposto.
Um estudo sobre a sociedade escravista que se constitui na região do Recôncavo da Guanabara
durante o período colonial e o século XIX, pode oferecer instrumentos para identificar a formação do
grande percentual de afro-descendentes que constitui a população dos municípios da região

23
Por conta da delimitação de sua pesquisa Flávio Gomes não estudou a demografia de todas as freguesias da região,
limitando-se a Piedade do Iguaçu, Pilar, Trairaponga (Meriti), Marapicu e Jacutinga. O autor utilizou o relatório do Marque
de Lavradio (1779-89) onde inferiu que 54,9% da população eram de escravos. Posteriormente já de posse de Censos do
Império, confirmara que em 1821 era de 59, 7% e 1840, 62% da população era formada por cativos africanos e crioulos.
Ver: GOMES, F. S. Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX.
Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1992, p. 56-7.
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metropolitana do Rio de Janeiro. Desta forma, seria possível contribuir para a reconstrução histórica
dessa parcela da população brasileira, cujas informações seriam imprescindíveis para a reflexão sobre
as potencialidades e as problemáticas sociais do presente. Assim, se poderia pensar na possibilidade de
um processo de construção de uma identidade local, baseada nas perspectivas históricas com o objetivo
de se estudar o passado para explicar o presente.
Ao longo das últimas décadas vários estudos historiográficos e de outras áreas do conhecimento
sobre a região que atualmente se conhece sobre a Baixada Fluminense foram produzidas. Entretanto,
uma importante lacuna ainda precisa ser preenchida. Trata-se de um estudo profundo sobre as relações
sociais escravista durante o século XVIII e a primeira metade do século XIX, haja vista a ausência
completa de um estudo interessado na escravidão. Tal estudo não seria justificado apenas pela região,
mas, sobretudo, por sua importante relação com a cidade do Rio de Janeiro e a função fundamental que
tal região ocupou no tabuleiro da economia, da sociedade e da cultura fluminense desde o período
colonial.

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