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LUANDA, “UMA NOVA ALEXANDRIA”:

do tráfico de escravos ao comércio “lícito”

OLIVEIRA, Vanessa S. Slave Trade and Abolition: Gender, Commerce and


Economic Transition in Luanda. Madison: University of Wisconsin Press,
2021. 272 p.

Slave Trade and Abolition, publi- vivências cotidianas experimentadas


cado em 2021, é a mais recente pelos comerciantes de escravos em
obra de Vanessa Oliveira. O livro Luanda, sem perder de vista as
analisa as estratégias adotadas pelos conexões atlânticas dos seus resi-
comerciantes sediados em Luanda dentes. Semelhante metodologia
face ao processo de transição do pode ser observada na obra Cross-
tráfico transatlântico de escravos cultural Exchange in the Atlantic
para o comércio “lícito” de produtos World, de Roquinaldo Ferreira,
tropicais. A obra presta particular na qual o autor evidencia os fortes
atenção às interações sociais entre laços culturais e outros que interli-
estrangeiros e a população local gavam Brasil e Angola na época do
nas esferas do comércio, casamento tráfico de escravos.1
e da exploração da mão de obra O marco cronológico estende-se
africana. Trata-se do estudo social de 1808 a 1867, data da transferência
e económico mais aprofundado e da família real portuguesa para o
abrangente sobre Luanda no período
do tráfico de escravos e após a
1 Roquinaldo Amaral Ferreira, Cross-
abolição. No livro, a autora procura, cultural Exchange in the Atlantic World:
Angola and Brazil during the Era of the
com base na micro-história conec-
Slave Trade, Nova York: Cambridge
tada à história global, desvendar as University Press, 2012, p. 262.

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Brasil até a data registrada como nem deixa de parte o conjunto
saída do último navio negreiro da documental recolhido nos arquivos
costa Centro-Ocidental de África. acima mencionados, entre os quais
Como os comerciantes de boletins oficiais, correspondências
escravos em Luanda sobreviveram de governadores, relatórios adminis-
à transição económica do tráfico de trativos, processos judicias de
escravos para o comércio “lícito” reivindicação e resgate da liberdade,
de produtos tropicais? De que forma processos judiciais comerciais,
as mulheres locais se beneficiaram e contratos de casamento, registros
participaram da expansão do comércio de propriedade, passaportes, pleitos
de escravos? Que papel as mulheres judiciais entre autoridades locais e a
desempenharam nesse processo de administração colonial portuguesa e
transição e que importância tiveram documentos religiosos.
na economia da região? São as No desenrolar dos seis capítulos
principais questões que a historiadora que conformam o livro, a autora
Vanessa Oliveira tenta responder na conecta de modo interessante as
obra de fácil leitura e compreensão, vivências experimentadas por impor-
mas nem por isso simplista. tantes agentes históricos da sociedade
O livro, amplamente documen- colonial luandense no período da
tado, faz recurso, para além das fontes abolição do tráfico. “Ilustres represen-
históricas existentes nos arquivos tantes” do poder e da administração
e bibliotecas portuguesas (Arquivo colonial portuguesa, chefes locais,
Nacional da Torre do Tombo, homens e mulheres locais, livres e
Sociedade de Geografia, Biblioteca escravizados inter-relacionam-se nas
Nacional de Portugal), a fontes histó- narrativas de Oliveira. O palco das
ricas existentes em Angola (Arquivo narrativas é a sociedade colonial de
Nacional de Angola, Biblioteca Luanda, e o pano de fundo são os
Municipal de Luanda, Arquivo processos globais e locais, o tráfico
do Bispado de Luanda), o que lhe transatlântico de escravos e a escra-
confere singularidade. vidão urbana.
A autora não mede esforços em No primeiro capítulo, intitulado
exaustivos debates historiográficos, “Luanda and the Transatlantic Slave

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Trade”, a autora faz uma abordagem Como exemplo, Vanessa Oliveira
sobre a vida urbana da cidade no traz a trajetória de algumas, dentre
século XIX, organização e consti- elas Dona Ana Joaquina dos Santos
tuição da população. Mostra a Silva e Dona Ana Ifigénia da Rocha.
configuração da cidade, os principais Retrata o importante papel que
serviços administrativos e sociais essas mulheres desempenharam
existentes. Destaca a divisão de como agentes socioeconômicas e
Luanda (cidade alta e cidade baixa), como estas deixaram a sua marca
a partir da qual estavam distribuídos no tráfico de escravos, no comércio
os serviços públicos, entre os quais “lícito” de mercadorias tropicais e
câmara municipal, igreja, hospital, como criaram conexões atlânticas.
terreiro público, armazéns e Em oposição ao importante papel
quitandas. Neste capítulo, a autora desempenhado por mulheres na
mostra Luanda como capital da sociedade colonial de Luanda, neste
colônia de Angola, primeira cidade capítulo a autora observa pelas fontes
e mais importante porto de saída o esforço empenhado em “silenciar”
de pessoas cativas da costa Centro- a presença feminina num contexto
Ocidental de África. dominado pela presença masculina.
O segundo capítulo, designado A expansão do comércio no Atlântico
“Donas, Foreign Merchants, and the Sul, ancorado nas uniões formais e
Expansion of the Slave Trade in informais, espontâneas ou forçadas
the South Atlantic”, versa sobre as entre os residentes, é também parte
relações e uniões, com particular da discussão neste capítulo.
atenção para aquelas que envolviam No capítulo seguinte, intitulado
mulheres africanas ou luso-africanas “Feeding the Residents of Luanda and
e comerciantes estrangeiros, estes Provisioning Slave Ships”, a autora
maioritariamente portugueses e brasi- faz uma abordagem sobre a produção
leiros. Tais relações foram vistas agrícola e a criação animal entre os
como parte do Mundo Atlântico, residentes de Luanda na era do tráfico
durante e depois da era do tráfico de de escravos e após a abolição deste.
escravos. Na sequência, o capítulo Refere-se à produção vinculada ao
trata das “Donas de Luanda”. consumo local, ao aprovisionamento

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dos navios negreiros e à exportação a repressão britânica e portuguesa.
de produtos tropicais lícitos. Faz uma Além disso, evidencia as relações
incursão aos principais produtos da atlânticas entre Brasil e “a capital dos
dieta alimentar na capital da colônia, dois reinos” (Angola e Benguela),
bem como o consumo destes produtos como Luanda era conhecida.
em função da condição social e o No penúltimo capítulo,
estatuto jurídico dos residentes de denominado “Meeting the Challenges
Luanda. Além disso, analisa o perfil of the Transition”, a autora trata dos
dos produtores, proprietários de agentes do tráfico (comerciantes e a
terra, arimos e fazendas e seus depen- população local envolvida direta ou
dentes, livres e escravos. indiretamente). Ressalta o compor-
O capítulo 4, designado “Selling tamento adotado pelos agentes do
People Illegally”, trata da abolição do tráfico, que conseguiram ultrapassar
tráfico e analisa a exportação ilegal situações contrárias e em muitos
de pessoas cativas. O processo de casos contaram com a “vista grossa” e
abolição do tráfico de escravos desen- participação das autoridades coloniais
cadeou a supervisão e o patrulhamento portuguesas. Neste capítulo, a autora
dos mares no Atlântico Sul pelos britâ- mostra como o capital acumulado
nicos e portugueses. Nesse contexto, com o então comércio ilícito foi
a autora faz referência às novas rotas investido no comércio “lícito”.
e portos clandestinos explorados e Além de abordar a origem do
controlados maioritariamente por capital investido no novo comércio,
agentes locais até 1860. Este capítulo discute os principais detentores do
explora o impacto da abolição e da capital investido no novo comércio e
clandestinidade do tráfico sobre os o papel desempenhado pelos comer-
agentes e comerciantes de escravos ciantes e companhias brasileiras
sediados em Luanda. Analisa a sediados em Luanda.
conduta adotada pelos comerciantes O último capítulo da obra
para mitigar o impacto da abolição e intitula-se “Living With the Enslaved”.
aborda as estratégias e técnicas empre- Neste capítulo a autora trata do
gadas nos portos e rotas clandestinos desenvolvimento da capital da
do tráfico negreiro para contornar colônia de Angola na segunda

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metade do século XIX. Refere-se Roquinaldo Ferreira e Mariana
ao progresso económico e social Candido, dão razão ao argumento de
de Luanda alavancado pelo amplo partida da obra, de que o comércio
emprego e exploração da mão de “lícito” e o processo de transição para
obra escravizada, sobretudo após a nova etapa de exploração colonial
proibição de exportação de cativos receberam menos atenção dos
para o Brasil. Por outro lado, mostra historiadores em comparação com o
a adaptação da população e da cidade comércio transatlântico de escravos.
a uma presença maior de pessoas Principalmente tratando-se das estra-
escravizadas, também fruto do fim tégias adotadas pelos comerciantes
da exportação de cativos. Analisa as de escravos face as mudanças econô-
experiências vivenciadas por cativos micas no período posterior à abolição
e libertos nos espaços domésticos, da exportação de pessoas cativas na
evidenciando a profunda assimetria e colônia de Angola.
violência nas relações entre senhores Em relação às mulheres, um dos
e seus dependentes livres e escravi- principais tópicos do livro, Vanessa
zados. Para além disso, mostra novas Oliveira tem buscado, desde o
formas de exploração e instrumenta- seu trabalho doutoral intitulado
lização dos escravizados ganharem “The Donas of Luanda c. 1770-1867:
corpo no período após a abolição. From Atlantic Slave Trading to
Os senhores investiram na instrução Legitimate Commerce”, uma melhor
de seus escravos, proporcionando a perceção do protagonismo feminino na
estes um ofício especializado para era do tráfico de escravos. Focaliza na
que pudessem tirar maior proveito participação das mulheres em áreas
dessa mão de obra, alugando os seus que durante muito tempo foram
serviços ou mesmo vendendo-os. apenas relegadas aos homens pela
Importantes estudos sobre o historiografia africana, o que de fato
comércio transatlântico de escravos contrasta com o que a autora coloca em
na e a partir da África Centro- evidência para a capital da colônia de
Ocidental, realizados por pesquisa- Angola, quando afirma que “Luanda
dores como Joseph Miller, José Curto, tornou-se uma sociedade dominada por
John Thorton, Linda Heywood, mulheres” (p. 21). Mas se as habilidades

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agrícolas, uniões com estrangeiros e o econômica. No entanto, essas
capital cultural foram excelentes para conclusões não se encontram distan-
as mulheres alcançarem o sucesso, ciadas dos estudos sobre mulheres
este seria ainda limitado. locais e luso-africanas de Benguela.2
A obra de Oliveira mostra, a partir Tratava-se, por sinal, do segundo
das fontes arquivísticas, a indubitável maior porto de saída de pessoas
presença de mulheres africanas e cativas sob domínio português,
luso-africanas nas redes atlânticas depois de Luanda, na costa Centro-
de comércio e tráfico de escravos, Ocidental de África. Essas pesquisas
na produção de alimentos e na sobre mulheres, nas duas principais
diligência pelo acumulo de bens cidades coloniais portuguesas
e riquezas. Não obstante mostra da África (Benguela e Luanda),
também que menos de 10% da formam um conjunto valioso para a
actividade mercantil documentada compreensão do papel econômico e
era produzida por mulheres. Dona Ana social delas nas sociedades coloniais
Joaquina dos Santos Silva, convocada atlânticas na era do tráfico negreiro e
no livro, é um bom exemplo da um importante contributo para histo-
presença feminina em áreas vistas riografia africana. Por outro lado,
como tradicionalmente masculinas aviva a necessidade de semelhantes
(pp. 33-35). Contudo, sem desatenção
2 Vide estudos de Mariana P. Candido sobre
de que se tratava de uma sociedade Benguela e arredores na era do tráfico
escravista, estruturalmente pater- de escravos, por exemplo, An African
Slaveing Port and the Atlantic World:
nalista e fortemente hierarquizada, Benguela and Its Hinterland, Nova York:
na qual as mulheres ocupavam um Cambridge University Press, 2013;
“Marriage, Concubinage, and Slavery
lugar subalterno em relação aos in Benguela, ca. 1750-1850” in Nadine
Hunt e Olatunji Ojo (orgs.), Slavery and
homens e os africanos em relação Africa and the Caribbean: A History of
aos europeus (p. 7). As conclusões Enslavement and Identity since the 18th
century (Londres: I. B. Tauris, 2012),
de Oliveira sobre o tópico oferecem pp. 65-83; “Poderosas Nativas”, Revista
contrastes interessantes com os de História da Biblioteca Nacional, n. 15
(2011), pp. 34-37; “Aguida Gonçalves
estudos sobre o papel das mulheres da Silva, une dona à Benguela à la fin
du XVIIIe siécle”, Brésil(s), Sciences
africanas em outras partes da costa
Humaines et Sociales, n. 1 (2012),
atlântica no período da transição pp. 33-53 .

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estudos para outros espaços e heterogeneidade do espaço e a “resis-
períodos no litoral e no interior da tência” dos mesmos agentes diante
antiga colônia de Angola. de processos globais, como foram
Sebastian Conrad, na sua obra a abolição do tráfico de escravos e a
O que é a história global? menciona transição para o comércio “lícito”,
que “as questões mais fascinantes são, e o modo como estes condicionaram
com frequência, aquelas que nascem o espaço da ação humana individual e
da interação entre os processos colectiva, ou as estratégias e o modo de
globais e as suas manifestações adaptação dos traficantes de escravos
locais” (p. 159).3 No que se refere à face ao novo comércio.
interação entre processos globais e Um dos principais argumentos da
locais, a obra de Oliveira não deixa obra é que, de fato, os comerciantes
nada ao acaso, pois avança no conhe- sediados em Luanda conseguiram
cimento de como os processos globais adaptar-se às mudanças que sofreu
e locais de mudanças afetaram as o comércio de escravos no Atlântico
oportunidades e capacidades de se Sul na segunda metade do século XIX
adaptar dos comerciantes de escravos (pp. 68-69). Demostra na pesquisa
sediados em Luanda, face às trans- que a maioria dos grandes comer-
formações econômicas e sociais ciantes de escravos sobreviveram à
provocadas pela abolição da expor- supressão do tráfico e tornaram-se
tação de pessoas cativas. financiadores do novo comércio,
Ademais, a pesquisa de Oliveira investindo dinheiro e aplicando o
alcança todos os níveis da sociedade antigo sistema de crédito usado no
e diferentes agentes de Luanda. tráfico de escravos ao comércio de
As microperspetivas identificadas nos produtos lícitos (p.70).
diversos agentes convocados no livro Outrossim, demonstra que muito
(governadores, comerciantes, donas, dos comerciantes residentes em
escravos, chefes locais etc.) seguem a Luanda, implicados no tráfico ilegal
corrente de reações locais e revelam a de pessoas cativas, na realidade eram
agentes comerciais de empresas
sediadas no Rio de Janeiro (p. 61).
3 Sebastian Conrad, O que é a história
global?, Lisboa: Almedina, 2019, p. 310. Nesse processo as autoridades

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coloniais portuguesas acreditavam combater o tráfico nas regiões supos-
que a alternativa seria comercializar tamente sob controle, como bem
mercadorias tropicais que tinham refere a autora.
potencial para substituir os escravos. Diferentemente dos outros
No entanto, numa primeira fase os espaços coloniais portugueses,
dois tipos de comércio foram reali- Angola era uma colônia com um
zados em simultâneo e um serviu de território que se estendia da costa
complemento para o outro (p.68). para o interior, com uma população
Contudo, comparados aos bastante diversa, com várias formas
demais europeus, os portugueses de organização política e com
apresentaram ainda na era do tráfico diferentes práticas sociais, culturais
a peculiaridade de almejarem uma e normativas. Não foi incluído na
ocupação territorial efetiva, que foi pesquisa todo espaço físico e social
cada vez mais crescente. Para isso da transição para o comércio “lícito”,
contou com uma significativa presença bem como, as políticas africanas que
de súditos da coroa portuguesa, foram principalmente afetadas neste
fossem os vindos do reino, fossem processo. Esses espaços incluíam
os luso-africanos e luso-brasileiros. fazendas com mão de obra africana
Esses súditos, cuja maioria estava escravizada e grupos de populações
com grande probabilidade envolvida sob a autoridade de chefes locais
direta ou indiretamente no tráfico independentes do poder colonial.
transatlântico de escravos, devem ser Contudo, tal vazio é compreensível,
levados em consideração, pois, prova- considerando que esses espaços se
velmente, obstaculizaram a transição encontram pouco documentados.
do fim do tráfico de pessoas cativas Oliveira nos apresenta uma
(que persistiu até a década de 1860) Luanda do século XIX rica, majestosa,
para o novo comércio “lícito”. diversa e cosmopolita, ao ponto de ser
Podemos juntar a isso a dispersão pensada como “uma nova Alexandria”
do tráfico de escravos, a procura por na obra de Joaquim Lopes Lima,
portos afastados e clandestinos e a intitulada Ensaio sobre a Statística
fraca capacidade militar da adminis- das Possessões Portuguesas no
tração colonial portuguesa para Ultramar. Angola e Benguella e suas

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Dependências, publicada em 1846. outros espaços coloniais atlânticos
No entanto, de maneira nenhuma para reflexão sobre a construção de
a cidade pode ser entendida como um futuro africano sem coloniza-
mais igualitária, sobretudo para os dores, sem escravos nem senhores,
grupos subalternizados. sem dependentes nem servilismo.
Esta interessante obra Nas conclusões da obra, Vanessa
impulsiona-nos a olhar de modo Oliveira chama atenção (embora
diferente para as pesquisas sobre numa perspetiva diferente) para uma
os espaços urbanos nas colônias discussão pertinente que ganhou novos
africanas. Entendemos que este holofotes em 2020, quando estátuas de
olhar deva ser também direcionado traficantes de africanos e de agentes
para outros espaços coloniais no do colonialismo na África foram
contexto atlântico. Grande parte dos derrubadas em diferentes partes do
estudos retrata os espaços coloniais mundo. Constitui o móbil da chamada
africanos, urbanos ou não, como de atenção da autora a ausência quase
simples lugares de exploração de que total de lugares de memória do
seres humanos, de bens e recursos. passado escravista na atual cidade de
Urge mostrar o lugar das sociedades Luanda, por um lado, e por outro lado,
atlânticas africanas no quadro global, o “silêncio” em relação à participação
no qual o continente africano tem sido africana no comércio de escravos.
esquecido de modo geral, como se A necessidade de lugares
vivesse a reboque de uma “evolução” de memória e de uma memória
que decorreu e decorre em paralelo, individual e coletiva que remonte o
fora ou à margem dele. Os estudos mais amplamente possível e desvele
sobre as cidades coloniais angolanas os enigmas do passado, sem que
enquadram-se bem na situação que partes continuem a serem ignoradas
acabamos de referir, genericamente, ou silenciadas, não é uma demanda
para o continente. Tais pesquisas própria de um país ou de uma coleti-
encontram-se ainda acorrentadas vidade específica; pelo  contrário,
pelos grilhões do tráfico de escravos essa demanda atravessa diversos
e da escravidão. Portanto, faz-se cada países que compartilham os impactos
vez mais urgente o conhecimento de da longa história de tráfico, escravidão,

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racismo e outras formas de opressão. tráfico transatlântico de escravos,
No caso das populações negras e escravidão urbana, passado das socie-
africanas, as políticas de memória dades africanas e comércio “lícito”.
podem e devem converter-se em A obra de Vanessa Oliveira constitui,
estratégias para reconhecimento, com certeza, a mais abrangente e
afirmação, combate ao racismo e às profunda investigação sobre Luanda
profundas desigualdades sociais. no século XIX e representa um avanço
Trata-se, portanto, de uma significativo no processo de (re)escrita
obra de leitura obrigatória para os da História de África, de modo geral e
interessados nas temáticas sobre o de Angola em particular.

Juelma de Matos Ngãla


Max Planck Institute for
Legal History and Legal Theory

doi: 10.9771/aa.v0i65.48542

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