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Civilização e Cultura

Tentativa de definição
F. Braudel diz-nos na sua obra «Gramática das Civilizações» que: «Seria
bom poder definir cultura e civilização como se faz com o triângulo ou a recta.».
Desde já podemos perceber que iremos encontrar dificuldades em encontrar uma
definição geral destes dois conceitos.
A primeira vez que é usada a palavra civilização é na França no século
XVIII, de uma forma furtiva e em oposição a ‘barbárie’. Mas a palavra iria sair
das fronteiras francesas e parte para o resto da Europa aliada a outra palavra com
origens ainda mais antigas, cultura. Cultura que inicialmente era usada em
relação ao cultivo da terra passa paulatinamente para o campo dos actos do
espírito. Cultura passa a ser tida como esforço de civilização.
Com efeito a noção de civilização é dupla. Designa ao mesmo tempo
valores morais e materiais. Como distinguiria Marx as infra-estruturas
(materiais) e as superestruturas (espirituais).
Na Alemanha Hegel, na Universidade de Berlim usava indistintamente as
duas palavras. Há no entanto autores que reservam cultura para o espírito e
civilização para o que era material.
Por meados do século XX, na Alemanha a cultura ganha primazia sob
civilização. Civilização passa a ser o conjunto de conhecimentos técnicos, e
cultura, numa última análise, é o próprio espírito.
A primazia de cultura fica bem denotada com a afirmação de Mommsen
(1951) «É hoje dever do Homem não deixar que a civilização destrua a cultura,
nem a técnica o ser humano.». Esta afirmação apresenta-se no contexto da
evolução da II revolução industrial, é então claro que a cultura pertencia ao
homem, enquanto que a civilização assentava na máquina, como nos mostra T.
Mann «Cultura corresponde à verdadeira a civilização está associada à
mecanização.». Mas é através das palavras de Oswald Spengler (1918-1922) que
melhor se constata a hegemonia da Cultura sobre a Civilização: «Cultura é a
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origem, a seiva criadora, a Primavera da civilização […]» enquanto que a «[…]


civilização é o Outono, a repetição, a morte em vida […]».
Na França, como na maioria dos outros países ocidentais, é a civilização
que assume o lugar de destaque, pelo que H. Marrou nos resume o pensamento e
posição francesa distinguindo cultura como o que está reservado para a forma
pessoal da vida do espírito, enquanto que a civilização era o colectivo.
A civilização tem assim como por dizer a maior fatia do ‘bolo’ pelo que é
compreensível a supremacia que lhe é atribuída.
Para os antropólogos anglo-saxónicos cultura, eram as sociedades
primitivas, ao passo que civilização, eram as sociedades desenvolvidas.
Nos E.U.A, PhilipBaghy dizia-nos que devíamos usar a palavra civilização
quando nos referíamos a cidades, para o campo não urbanizado a palavra mais
adequada seria cultura. Já Toynbee apresenta-nos a natureza como uma
dificuldade, um desafio, quando o homem responde a esse desafio e triunfa ao
resultado podemos chamar civilização. Mas se repararmos bem nos pólos gelados
do planeta o homem por várias vezes já respondeu a esse desafio na maioria sai
vitorioso no entanto não podemos dizer que os pólos são civilizações.
Por volta de 1850 na Alemanha surge o adjectivo cultural, que não
apresenta tão dissidentes definições pelo que torna cómoda a sua utilização.
Muitos acusam de “barbara” a sua utilização e de mal formado, no entanto
até surgir um melhor, cultural, continuará com futuro assegurado.

Civilização aparece no plural(civilizações)


Por volta de 1819, a palavra civilização aprece no plural. A partir daí toma
um novo sentido, passa a ser o conjunto de características que apresenta a vida
colectiva de um grupo ou de uma época. Daí se falar em civilização de Atenas no
século V ou na civilização do império romano.
Mas é o plural que prevalece na mentalidade do homem do século XX.
Com efeito o emprego do plural corresponde ao desaparecimento de um conceito
de uma civilização confundida com o progresso em si, reservada a alguns povos
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privilegiados. A civilização no singular perdeu o seu lustro, já não dispões do


elevadíssimo valor moral e intelectual que o século XVIII lhe reconhecia.
A civilização, no singular, é hoje o bem comum que entre si partilham todas
as civilizações.
Perante a ideia de que um dia, todas as civilizações atinjam uma técnica e
valores em tudo semelhantes e passemos só a falar na civilização mundial, todos
os historiadores são categóricos em dizer que durante muito tempo ainda iremos
usar a palavra civilização quer no singular, quer no plural.
Para se poder compreender com alguma clareza o conceito de civilização é
preciso ter em conta que as civilizações são espaços; as civilizações são
sociedades; as civilizações são economias; as civilizações são mentalidades
colectivas e ainda que as civilizações são continuidades.

As civilizações são espaços

As civilizações podem sempre localizar-se num mapa. Uma grande parte da


sua realidade depende dos contra e das vantagens da sua localização geográfica.
Veja-se que essa morada tem sido tratada pelo homem ao longo de séculos e até
mesmo milénios. Não há uma paisagem que ainda não tenha a marca desse
trabalho contínuo, aperfeiçoado ao longo de gerações.
Falar de civilização será falar de espaços, de terras, de relevos, de climas,
de vegetações, de espécies animais, de vantagens dadas ou adquiridas.
Vejamos então no que residem estas vantagens dadas ou adquiridas.
Consoante o espaço onde se encontrem as civilizações dividendo diferentes se
retiram do espaço, a agricultura, a pecuária, os alimentos, as casa, o vestuário, as
comunicações, a industria, etc. O lugar onde se está determina tudo o que acabei
de referir.
É e no desfrutar de vantagens imediatas que nascem as primeiras
civilizações. As civilizações fluviais como a civilização egípcia, em tudo ligada
ao rio Nilo, ou as civilizações talassocráticas, ligadas aos benefícios do mar,
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como as civilizações fenícia, grega, romana, tão dependentes do Mediterrâneo


como a egípcia do Nilo.
O primado destas civilizações é em todas o da circulação, uma vez que
nenhuma civilização vive sem movimento próprio, todas se enriquecem com as
trocas, com os choques proporcionados pelas frutuosas vizinhanças.
Mas os rios, o mar, são vantagens oferecidas pelo lugar geográfico, no
entanto, vencer a hostilidade dos desertos ou as cóleras bruscas do Mediterrâneo,
utilizar os ventos regulares do Oceano Índico, corrigir um rio, isso já são esforços
humanos, e são essas as vantagens adquiridas ou se preferirmos conquistadas.
Todas as civilizações exportam e recebem bens culturais. Tanto se pode
trocar uma técnica de fundição, como a bússola ou um sistema filosófico, uma
religião ou uma música. Hoje, a difusão dos bens culturais acelerou-se
terrivelmente. Já não existe um único ponto no mundo que a civilização
industrial, oriunda da Europa, não tenha já contaminado. Falei da civilização
industrial como podia ter falado do cinema europeu ou americano, que muito
influencia comportamentos em todos aqueles que são seus consumidores, bem
como dar um variadíssimo, quase interminável leque de exemplos.

As civilizações são sociedades

Não há civilizações sem sociedades que as encarnem, as animem com as


suas tensões, com os seus progressos.
A sociedade nunca se pode separar da civilização e vice-versa, as duas
noções referem-se a uma mesma realidade, ou como diz Lévi-Strauss «elas não
correspondem a objectos distintos, mas a duas perspectivas complementares de
um mesmo objecto que se encontra adequadamente descrito, quer por uma, quer
por outra das palavras, conforme o ponto de vista que se adaptar».
Seria fácil descrever uma civilização descrevendo os homens (a sociedade)
que a carregam e a hão-de transmitir.
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Todas as civilizações em substância, retiram as suas luzes essenciais da


“visão do mundo” que adoptam, ora a visão do mundo é sempre a transcrição, as
consequências das tensões sociais dominantes. É então a civilização, como que
um espelho que regista essas tensões e esses esforços.
É com Lévi-Strauss que surge uma tese em que este procura através de
classificações de sociedades distinguir as culturas das civilizações.
As culturas primitivas correspondem assim a uma sociedade que produz
pouca desordem e têm a tendência para se manter indefinidamente no seu estado
inicial, ao passo que as nossas sociedades (civilizações modernas) utilizam no
seu funcionamento diferenças de potencial que se encontram realizadas por
diversas formas de hierarquia social. Ao contrário das culturas primitivas, os
choques nas sociedades das civilizações modernas são constantes e geradores de
desordem e perpétua evolução.
O sinal exterior mais forte destas diferenças entre culturas e civilização é
sem dúvida a presença ou ausência de cidades.
Todavia, as civilizações e sociedades mais brilhantes compreendem em si,
nos seus limites, a existência de culturas, de sociedades elementares. Em todas as
sociedades, o desenvolvimento não atingiu por igual todas as regiões e todas as
camadas da população.
Não devemos confundir as civilizações e as sociedades. A civilização
abarca, implica espaços cronológicos muito mais vastos que uma dada realidade
social. Muda muito mais devagar a sociedade que a comporta ou que acarreta.

As civilizações são economias

Todas as sociedades, todas as civilizações dependem de dados


económicos, tecnológicos, biológicos, demográficos. As condições materiais
pesam infinitamente sobre o destino das civilizações. Aumento ou diminuição do
número de pessoas, saúde ou decadência física, surto ou quebra económica
repercutem-se através quer do edifício cultural quer do social.
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Durante muito tempo o homem foi a única ferramenta, o único motor à


disposição do homem.
Em princípio todo o aumento demográfico favoreceu os surtos
civilizacionais. Mas a sobreabundância de pessoas a princípio benéfica, torna-se
um dia nociva, quando o aumento demográfico é superior ao aumento
económico. É o que hoje se passa na maioria dos países subdesenvolvidos.
O que ocorria na Europa quando a sobreabundância de população era maior
que o crescimento económico era a deterioração dos salários reais, a fome, as
insubordinações populares, sinistras épocas de recuo, em que as epidemias,
aliadas à fome surgiam e mitigavam brutalmente as fileiras demasiado cerradas
dos homens. Após estas catástrofes, os sobreviventes ficavam durante algum
tempo, um pouco mais à vontade e a expansão reata-se, acelera-se até à paragem
seguinte.
Só com a industrialização que este ciclo diabólico se interrompe e é
permitido ao homem, mesmo em sobreabundância, mostrar o seu valor, a
possibilidade de trabalhar e de viver.
A vida económica não cessa de oscilar, em flutuações ora curtas ora longas.
Ao longo dos anos ocorrem ora ondas de bons ou maus tempos económicos, e
sempre as sociedades e as civilizações acusam as consequências disso,
principalmente quando os períodos são prolongados.
Qualquer que seja o sentido da flutuação, a vida económica é quase sempre
criadora de excedentes. Ora, o dispêndio desses excedentes constituíram uma das
condições indispensáveis ao luxo das civilizações, a certas formas de arte. Hoje,
quando contemplamos algumas obras de arte, estamos também a contemplar o
orgulho de uma cidade, de um príncipe ou de um mecenas e o seu bem-estar e
desenvolvimento económico; veja-se como exemplo o renascimento. Na sua
última fase, a civilização na Europa, a partir do século XVI, está sob o signo do
dinheiro e do capitalismo.
A civilização é, por isso, função de uma certa redistribuição do dinheiro.
Mas falamos em dinheiro, e esse luxo é só de uma classe minoritária de
afortunados, e o que caracteriza uma civilização é a sua maioria, as suas bases, e
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esses são pobres e desfavorecidos, têm de suportar as agruras da vida. O acesso


ao ensino, às universidades, o acesso à cultura, à promoção social são conquistas
cheias de consequências do século XIX.
O grande problema, de hoje como de amanhã, é o da criação de uma
civilização que seja ao mesmo de qualidade e de massas.
Se a vida económica criou desigualdades de acesso à civilização entre as
diferentes classes sociais, criou-as também entre diferentes países do mundo.

As civilizações são mentalidades colectivas

Em todas as épocas, há uma certa representação do mundo e das coisas,


uma mentalidade colectiva dominante, que anima; penetra toda a massa da
sociedade. Esta mentalidade que dita as atitudes, orienta as opções, enraíza os
preconceitos, dirige os movimentos de uma sociedade é eminentemente um
factor de civilização.
As mentalidades são fruto de heranças longínquas, de crenças, de medos, de
inquietações antigas muitas vezes quase inconscientes, o verdadeiro fruto de uma
contaminação cujos germes se perderam no passado e são transmitidos de
gerações em gerações.
Estes valores fundamentais, estas estruturas psicológicas são o que as
civilizações têm de menos comunicável de umas para as outras, o que melhor as
isola e distingue. E essas mentalidades variam lentamente, só se transformam no
termo de longas incubações, também estas pouco consistentes.
A religião é a característica mais forte de cerne das civilizações não
europeias. Veja-se o caso do mundo islâmico, é pelo Alcorão que são ditadas as
leis quer religiosas quer políticas. Mas também na Europa o cristianismo, a
principal e mais representada religião, tem as suas consequências, pese embora,
sob uma forma mais dissimulada e quase imperceptível. A forma como os
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europeus encaram o trabalho, a sua existência efémera (a morte), as normas


éticas pelas quais nos regemos, o valor do esforço, o papel da mulher e da
criança, são comportamentos que parecem nada ter com o sentimento cristão e,
no entanto, são seus derivados. Não é por isso menos verdade que a separação
entre o racionalíssimo, herdado dos gregos (Sócrates), nos leve a uma separação
com a vida religiosa.

As civilizações são continuidades

Escusando-me a um debate introdutório directamente chego à conclusão.


Uma civilização não é uma economia dada nem uma dada sociedade, mas
sim o que através das séries de economias, das séries de sociedades, persiste em
viver, só a custo e pouco e pouco se deixa adulterar.
Só se atinge uma civilização a longo prazo, ao longo do tempo, segurando
num fio que não se acaba de desenrolar. Com efeito, é o que um grupo de
homens conseguem conservar ao longo de uma história muitas vezes
tempestuosa, e transmitir de geração em geração.

A plasticidade humana
O homem não é moldado pelo instinto mas sim pelo costume.
Há na natureza sociedade em que o mais pequeno gesto de comportamento
é condicionado por mecanismos biológicos, mas essas sociedades são de insectos
e não de pessoas.
Feliz ou infelizmente, a solução do homem ocupa o pólo oposto. Nada no
homem é transmitido pela célula germinadora. A organização social, a
linguagem, a religião, nada é dependente da nossa origem. Uma criança alemã
que nasça nesse país, mas que desde tenra idade (por exemplo três meses) esteja
em Portugal, os seus pais adoptivos não terão de ir aprender alemão para a
poderem compreender, a criança nasce, e é criada ouvindo a língua portuguesa e
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aprende-la naturalmente, e comporta-se tal como as outras crianças nascidas em


Portugal e cá criadas.
Outro exemplo a dar para fundamentar o conceito de plasticidade humana é
o das crianças selvagens. Em séculos passados, quando se encontravam crianças
que haviam sido abandonadas e se tinham conservado em florestas, separadas de
outros seres humanos, ao serem encontradas apenas na forma física eram
semelhantes a seres humanos, não haviam desenvolvido os órgãos de fala e
tiravam batatas de agua a ferver sem nenhuma expressão de dor, tinham
comportamentos que em muito se assemelhavam aos animais que à sua volta
habitavam.
A cultura não é um complexo que seja transmitido biologicamente.
O que se perde em garantias de segurança é compensado pelas vantagens
de uma maior plasticidade. No homem não se desenvolve uma camada de
gordura por debaixo do pêlo, como no urso para fazer frente ao frio. O homem
teve de aprender a fabricar agasalhos e a construir casas. Pelo que nos relata a
história, a inteligência nas sociedades pré-humanas, como nas humanas, esta
plasticidade, foi o húmus em que o progresso humano começou a crescer e assim
se tem mantido vivo.
Temos de aceitar todas as implicações da nossa herança humana, uma das
maiores das quais é a importância relativa do comportamento biologicamente
transmitido, e o papel enorme do processo cultural da transmissão da tradição.

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