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A Invenção do Conceito

Científico de Cultura

Ao longo do século XIX, a adoção de um


procedimento positivo na reflexão sobre o ho-
mem e a sociedade resulta na criação da soci-
ologia e da etnologia como disciplinas científi-
cas. ^TetnÕíõiaí por sua vez, vai tentar dar uma

ensar a especifícfflã3ê"hllmana
ovos e dos"costuffi"esa'?To-

Iham ummesmo nosjA.jla.do: ojjostulado da uni-


dade do homgrn, hermcj.^^dji^^^os^íj^donimii-
nismoj Para eles, a dificuldade será então pensar
a diversidade na unidade
Mas com a questão colocada desta manei-
ra, eles não podem se contentar com uma res-
posta biológica. Se eles reivindicam uma nova
ciência, é para dar uma outra explicação à diver-
sidade humana, diferente da existência de "ra-
ças" diferentes. Dois caminhos vão ser explora-
dosjjirnultânea e CQ^correntemelTte^pcI^gtTró-
logos: oqucrpYivjl^ía a unjdad^ jmmmizaj._di-
versidade, reduzindo a uma diversidade "tempo-
«^^^BÈttKaeEHÍ^ l • !!•• •" •' "l l •.,11.. lm..t . --||||,,,*_

rária", segundo um esquema evolucionista; e o


Doutro caminho que, ao contrário, dãTtõda a inT"
portância à diversidade, preocup ando-se "enTcÍer
.. ^_^~^«or-ri^wi Mí_.-r—íi—E-*»,.. — -T-í
monstrarque ela não é contraditória com a uni- (as culturas), ern^
pãHícüfacístãT-
Um conceito vai emergir como instrumen-
to privilegiado para pensarjgste_rjrpblema e ex- JVIor c a concepção universalista
plorar as diferentes respostas j^ossiveis da cultura
ceito de "cultura". A palavra está em voga, mas é
utlfizãcia, ria maior parte dos casos, tanto na
França quanto na Alemanha, com um sentido rã é devida ao antropólogo britânico Edward
jiQrjnatiyo. OsJundadores^ da .,gtngjoj^a_yjojhe ,BurnettTylorI1832- ^ ™ ™
dar um j:onteúdoj3urjmiente descritivcr^Nãojig
trata, para eles,jgsim com^pjraos fílósoíbs, de Cultura e civilização, tomadus em seu sentido
dizer o aue deve ser a cultura, mas de descrever
--- 1 i..ll"l¥|——"="*«=<L— • ---- m^ -- •- •, , _ _..__^- 0,^,-f^. *^*í-tf - — ' etnológico mais vasto, são um conjunto comple-
oj^ue ela, é, t alcomo arweccjias_sociedad.es, xo que inclui o conhecimento, as crenças, a
humanas^. arte, a moral, o direito, os costumes e as outras
No entanto, a etnologia iniciante não esca- capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem
pará completamente às ambigüidades e não se enquanto membro da sociedade [1871, p- 1].
^livrará facilmente deJulgament!3,^de_yalor ou de
implicaçõesjdgslégiças^ Mas por se tratar de Esta definição, clara e simples, exige, no en-
uma disciplina que começava a se constituir e tanto, alguns comentários. Pode-se ver que ela
por isso mesmo não poderia exercer uma in-
IÍ£^OT^&J^^Sn^^^^SÍJ^^--Q^ÍFt'va e
fluência determinante no campo intelectual da ao normativa/Por outro lado, ela rompe com as
época, permitiu que uma reflexão sobre a ques- definições restritivas ^indmduatistas de cultür
tão da^cultura escapasse, em parte, à pròblemá- arpãraTyTolffit^ totalida-
ticado debate passional que opunha "cultura" e de da vida social do homem/ Ela se caracteriza
t
^Tri-iinM-nrnr-"-nu , i M inn -- —"m—— • C-pjLjmi» n «H hi^i
"civilização" e conservou uma relativa^ autono- tl

por sua dimensão coletiva. Enfim, a cultura é ad-


'"iiirii LJIIII »«iinin"TrT—T—™' ^^y.-..~- ir.'- ••**—>,
^mia epistemológica.» cjuirida e não depende da hereditariedade bioló-
A introdução do conceito de cultura se gica. No entanto, se a cultura
fará com desigual sucesso nos diferentes países origem ej>eu caráter são,
onde nasce a etnologia. Porjxitro lado, riãojia- conscientes.
verájejntendimento entre as diferentes "escolas" SeTylor é o primeiro a propor uma defini-
sobre a questão de saber se é preciso utilizar o ção conceituai de cultura, ele não foi exatamen-
conceito no singular (a Cultura) ou no plural, te o primeiro a utilizar o termo em etnologia.
Ele mesmo, no uso que faz desta palavra, foi in- rentes: segundo ele, em condições idênticas, o
fluenciado diretamente por etnólogos alemães espírito humano operava em toda a parte de
que lera e, sobretudo por Gustave Klemm que, maneira semelhante. Herdeiro do Iluminismo,
de acordo com a tradição romântica germânica, ele aderiu igualmente à concepção universalista
utilizava Kultur com um sentido objetivo, prin- da cultura dos filósofos do século XVIII.
cipalmente por se referir à cultura material. Ele tentava conciliar em uma mesma expli-
Para Tylor, a hesitação entre "cultura" e "ci- cação a evolução da cultura e sua universalida-
vilização" é característica do contexto da época. de. Em seu livro Cultura Primitiva, lançado em
Se ele privilegia finalmente "cultura", é por com- 1871 e logo em seguida traduzido em francês
preender que "civilização", mesmo se tomada (em 1876), obra considerada como o momento
em um sentido puramente descritivo, perde seu em que é fundada a etnologia enquanto ciência
caráter de conceito operatório desde o momen- autônoma, Tylor examina as "origens da cultura"
to em que é aplicado às sociedades"primitivas". (título do primeiro tomo) e os mecanismos de
A etimologia da palavra civilização remete à sua evolução. Ele foi o primeiro etnólogo a abor-
constituição das cidades e o sentido que a pala- dar efetivamente os fatos culturais sob uma óti-
vra tomou nas ciências históricas designa prin- ca geral e sistemática. Ele foi também o primei-
cipalmente as realizações materiais, pouco de- ro a se dedicar ao estudo da cultura em todos os
senvolvidas nessas sociedades. "Cultura", para tipos de sociedade e sob todos os aspectos, ma-
Tylor, na nova definição dada, tem a vantagem teriais, simbólicos e até corporais.
de ser uma palavra neutra que permite pensar Após um temporada passada no México,
toda a humanidade e romper com uma certa Tylor elaborou seu método de estudos da evolu-
abordagem dos "primitivos11 que os transforma- ção da cultura pelo exame das "sobrevivèncias"
va em seres à parte. culturais. No México, ele pudera observar a coe-
Não é surpreendente que a invenção do xistência de costumes ancestrais e traços cultu-
conceito deva-se a Edward Tylor, livre pensador, rais recentes. Pelo estudo das "sobrevivèncias",
para quem sua condição minoritária de quaker ele pensava que deveria ser possível retornar ao
fechara as portas da universidade inglesa. Ele ti- conjunto cultural original e reconstituí-lo. Gene-
nha fé na capacidade do homem de progredir e ralizando este princípio metodológico, chegou
partilhava dos postulados evolucionistas de seu à conclusão de que a cultura dos povos primiti-
tempo. Ele não duvidava tampouco da unidade vos contemporâneos representava globalmente
psíquica da humanidade, que explicava as simi- a cultura original da humanidade: ela era uma
litudes observadas em sociedades muito dife- sobrevivência das primeiras fases da evolução
cultural, fases pelas quais a cultura dos povos ci- de cultural, rara na sua época. Além do mais, sua
vilizados teria passado necessariamente. concepção do evolucionismo não era nada rígi-
O método de exame das sobrevivências le- da: ele não estava totalmente persuadido que
vava logicamente à adoção do método compara- houvesse um paralelismo absoluto na evolução
tivo que lyior introduziu então na etnologia. cultural das diferentes sociedades. Por isso, ele
Para ele, o estudo das culturas singulares não considerava também, em certos casos, a hipóte-
poderia ser feito sem a comparação entre elas, se difusionista.Uma simples similitude entre tra-
pois estavam ligadas umas às outras em um mo- ços culturais de duas culturas diferentes não era
vimento de progresso cultural. Pelo método suficiente, segundo ele, para provar que elas es-
comparativo, ele tinha como objetivo estabele- tivessem situadas no mesmo nível da escala de
cer ao menos uma escala grosseira dos estágios desenvolvimento cultural: poderia ter havido
da evolução da cultura.Tylor desejava provar a uma difusão de uma em direção à outra. De uma
continuidade entre a cultura primitiva e a cultu- maneira geral, fiel a seu desejo de objetividade
ra mais avançada. Contra os que estabeleciam científica, ele se mostrava prudente em suas in-
uma ruptura entre o homem selvagem e pagão terpretações.
e o homem civilizado e monoteísta, ele se esfor- Devido a sua obra e suas preocupações me-
çava para demonstrar o elo essencial que os todológicas, Edward Tylor é considerado, com
unia e a inevitável caminhada do selvagem em justiça, o fundador da antropologia britânica. É
direção ao civilizado. Entre primitivos e civiliza- aliás a ele que se deve o reconhecimento desta
dos, não há uma diferença de natureza mas sim- ciência como disciplina universitária: eíe se tor-
plesmente de grau de avanço no caminho da naria em 1883, na Universidade de Oxford, o pri-
cultura. Tylor combateu com ardor a teoria da meiro titular de uma cátedra de antropologia na
degenerescência dos primitivos, inspirada por Grã Bretanha.
teólogos que não podiam imaginar que Deus ti-
vesse criado seres tão "selvagens", teoria que Franz Boas e a concepção particuiarista
permitia não reconhecer nos primitivos, seres de cultura
humanos como os outros. Para ele, ao contrário,
todos os humanos eram totalmente seres de cul- Se Tylor é o "inventor" do conceito científi-
tura, e a contribuição de cada povo para o pro- co de cultura, Boas será o primeiro antropólogo
gresso em digna de estima. a fazer pesquisas in situ para observação direta
Pode-se perceber que o evolucionismo de e prolongada das culturas primitivas. Neste sen-
Tylor não excluía um certo sentido da relativida- tido, é ele o inventor da etnografía.
Franz Boas (1858 - 1942) era oriundo de ção de "raça". Em um estudo de grande reper-
uma família judia alemã de espírito liberal. Sen- cussão, feito sobre uma população de imigran-
sível à questão do racismo, ele mesmo fora víti- tes chegados aos Estados Unidos entre 1908 e
ma do anti-semitismo de alguns de seus colegas 1910 (no total 17 821 pessoas), demonstrou, re-
de universidade. Estudou em diversas universi- correndo ao método estatístico, a extrema rapi-
dades da Alemanha, primeiramente cursando fí- dez (o espaço de uma geração apenas) da varia-
sica, depois matemática e finalmente geografia ção dos traços morfológicos (em particular a
(física e humana). Esta última disciplina o levou forma do crânio) sob a pressão de um ambiente
à antropologia. Em 1883 - 1884, ele participou novo. Segundo ele, o conceito pseudocientífico
de uma expedição entre aos Esquimós da terra de "raça humana", concebida como um conjun-
de Baffín. Ele partiu como geógrafo, com pre- to permanente de traços físicos específicos de
ocupações de geógrafo (estudar o efeito do um grupo humano, não resiste a um exame rigo-
meio físico sobre a sociedade esquimó) e perce- roso. As pretensas "raças" não são estáveis, não
beu que a organização social era determinada há caracteres raciais imutáveis. É então impossí-
mais pela cultura do que pelo ambiente físico. vel definir uma "raça" com precisão, mesmo re-
Retornou à Alemanha decidido a se consagrar, a correndo ao chamado método das médias. A ca-
partir de então, principalmente à antropologia. racterística dos grupos humanos no plano físico
Em 1886, Boas partiu novamente para a é a sua plasticidade, sua instabilidade, sua mesti-
América do Norte, desta vez para realizar pes- çagem. Por suas conclusões, ele antecipava as
quisas etnográficas de campo sobre os índios da descobertas posteriores da genética das popula-
costa noroeste, na Colúmbia Britânica. De 1886 ções humanas.
a 1889, passou longas temporadas entre os Por outro lado, Boas também se dedicou a
Kwakiutl, os Chinook e os Tsimshian. Em 1887, mostrar o absurdo da idéia de uma ligação entre
decidiu estabelecer-se nos Estados Unidos e traços físicos e traços mentais, dominante na
adotar a nacionalidade americana. época e implícita na noção de "raça". Para ele, era
Toda a obra de Boas é uma tentativa de evidente que os dois aspectos dependiam de
pensar a diferença. Para ele, a diferença funda- análises completamente diferentes. E, precisa-
mental entre os grupos humanos é de ordem mente por se opor a esta idéia, ele adotou o con-
cultural e não racial. Formado em antropologia ceito de cultura que lhe parecia o mais apropria-
física, manifestou um certo interesse por esta do para dar conta da diversidade humana. Para
disciplina, mas dedicou-se a desmontar o que ele, não há diferença de "natureza" (biológica)
constituía, na época, sua conceito central: a no- entre primitivos e civilizados, somente diferen-
ças de cultura, adquiridas e logo, não inatas. É cla- rigor científico, ele recusava qualquer generali-
ro que para Boas, contrariamente à idéia de mui- zação que não pudesse ser demonstrada empi-
tos, o conceito de cultura não funciona como ricamente. Cético, mais analista do que teórico,
um eufemismo do conceito de "raça", pois ele ele nunca teve a ambição de fundar uma esco-
o construiu precisamente para opor-se a esta la de pensamento. \
idéia. Ele foi um dos primeiros cientistas sociais Pelo contrário, ele ficará na história da an-
a abandonar o conceito de "raça" na explicação tropologia como fundador do método indutivo
dos comportamentos humanos. e intensivo de campo. Boas concebia a etnolo-
Ao contrário de Tylor, de quem ele havia gia como uma ciência de observação direta: se-
no entanto tomado a definição de cultura, Boas gundo ele, no estudo de uma cultura particular,
tinha como objetivo o estudo "das culturas"e tudo deve ser anotado, até o detalhe do detalhe.
não "da Cultura". Muito reticente em relação às Na sua preocupação de contato com a realida-
grandes sínteses especulativas, em particular à de, não apreciava muito o recurso a informan-
teoria evolucionista unilinear então dominante tes. O etnólogo, se ele quer conhecer e com-
no campo intelectual, apresentou em uma co- preender uma cultura, deve aprender a língua
municação de 1896,o que considerava os "limi- em uso. E, ao invés de apenas realizar entrevis-
tes do método comparativo em antropologia". tas formais em maior ou menor grau - a situação
Ele recusa o comparatismo imprudente da de entrevista pode modificar as respostas -, deve
maioria dos autores evolucionistas. Para ele, ha- estar atento principalmente a tudo o que se diz
via pouca esperança de descobrir leis universais nas conversas "espontâneas", e acrescenta, até
de funcionamento das sociedades e das culturas "escutar atrás das portas".Tudo isso supõe que
humanas e ainda menos chance de encontrar se permaneça por longo tempo junto ã popula-
leis gerais da evolução das culturas. Ele fez uma ção cuja cultura está sendo estudada.
crítica radical do chamado método de "periodi- Em certos aspectos, Boas é o inventor do
zação" que consiste em reconstituir os diferen- método monográfico em antropologia. Mas,
tes estágios de evolução da cultura a partir de como ele levava ao extremo sua preocupação
pretensas origens. com o detalhe e exigia um conhecimento
Boas duvidava também, e pelas mesmas exaustivo da cultura estudada antes de qualquer
ratões, das teses difusionistas baseadas em re- conclusão geral, não realizou nenhuma mono-
construções pseudo-históricas. De maneira ge- grafia no sentido pleno do termo. Ele chegava
ral, ele rejeitava qualquer teoria que pretendes- mesmo a pensar que toda descrição sistemática
se poder explicar tudo. Preocupando-se com o de uma cultura comporta necessariamente uma
dose de especulação. E era precisamente isso quisadores. Para ele, cada cultura representava
que ele não se permitia fazer, apesar de ter ade- uma totalidade singular e todo seu esforço con-
rido à idéia de que cada cultura forma um todo sistia em pesquisar o que fazia sua unidade. Daí
coerente e funcional. sua preocupação de não somente descrever os
Devemos a Boas a concepção antropológi- fatos culturais, mas de compreendê-los juntan-
ca do "relativismo cultural", mesmo que não te- do-os a um conjunto ao qual eles estavam liga-
nha sido ele o primeiro a pensar a relatividade dos. Um costume particular só pode ser explica-
cultural nem o criador desta expressão que apa- do se relacionado ao seu contexto cultural.Tra-
recerá apenas mais tarde. Para ele, o relativismo ta-se assim de compreender como se formou a
cultural é antes de tudo um princípio metodoló- síntese original que representa cada cultura e
gico. A fim de escapar de qualquer forma de et- que faz a sua coerência.
nocentrismo no estudo de uma cultura particu- Cada cultura é dotada de um "estilo" parti-
lar, recomendava abordá-la sem a prtori, sem cular que se exprime através da língua, das cren-
aplicar suas próprias categorias para interpretá- ças, dos costumes, também da arte, mas não ape-
la, sem compará-la prematuramente a outras cul- nas desta maneira. Este estilo, este "espírito" pró-
turas. Ele aconselhava a prudência, a paciência, prio a cada cultura influi sobre o comportamen-
os "pequenos passos" na pesquisa. Tinha cons- to dos indivíduos. Boas pensava que a tarefa do
ciência da complexidade da cada sistema cultu- etnólogo era também elucidar o vínculo que
ral e julgava que somente o exame metódico de liga o indivíduo à sua cultura.
um sistema cultural em si mesmo poderia che- Sem dúvida há um vínculo estreito entre o
gar ao fundo de sua complexidade. relativismo cultural como princípio metodológi-
Além do princípio metodológico, o relati- co e como princípio epistemológico levando a
vismo cultural de Boas implicava também uma uma concepção relativista da cultura. A escolha
concepção relativista da cultura. De origem ale- do método de observação sem preconceito,
mã, formado em diversas universidades alemãs, prolongada e sistemática, de uma entidade cul-
ele não poderia não ter sido influenciado pela tural determinada leva progressivamente a con-
noção partícularista alemã de cultura. Para ele, siderar esta entidade como autônoma. A trans-
cada cultura é única, específica. Sua atenção era formação de uma etnografia de viajantes "que
espontaneamente voltada para o que fazia a ori- apenas passam" em uma etnografia de estada de
ginalidade de uma cultura. Quase nunca, antes longa duração modificou completamente a
dele, as culturas particulares tinham sido objeto apreensão das culturas particulares.
de tal tratamento autônomo por parte dos pes-
No fim da sua vida, Boas insistia em outro A atitude assim descrita parece bem universal,
aspecto do relativismo cultural. Um aspecto que sob formas diversas segundo as sociedades.
poderia talvez ser um princípio ético que afirma Como escreveu Lévi-Strauss, os homens tem
a dignidade de cada cultura e exalta o respeito sempre dificuldade de encarar a diversidade
e a tolerância em relação a culturas diferentes. das culturas como um "fenômeno natural, resul-
Na medida em que cada cultura exprime um tante das relações diretas ou indiretas entre as
modo único de ser homem, ela tem o direito à sociedades" [1952] .A maiocia-dos povos chama-
estima e à proteção, se estiver ameaçada. dos de "primitivos" considera que a humanida-
Considerando a obra de Boas em sua rica de acaba em suas fronteiras cínicas ou lingüís-
diversidade e nas inúmeras hipóteses sobre os ticas e é por isso que eles se denominam fre-
fatos culturais que ela propõe, descobre-se nela qüentemente usando um etnônimo que signifi-
o anúncio de toda a antropologia cultural norte- ca, segundo o caso, ''os homens", "os excelen-
americana que virá a ser desenvolvida. tes" ou ainda "os verdadeiros", em oposição aos
estrangeiros que não são reconhecidos como
seres humanos completos.
Quanto às sociedades chamadas "históricas",
Ftnoeentiismo elas têm a mesma dificuldade para conceber a
idéia da unidade da humanidade na diversidade
A palavra foi criada pelo sociólogo americano
cultural.
Willian G. Summer e apareceu pela primeira O mundo greco-romano antigo qualificava de
vez em 1906 em seu livro Folkways. Segundo "bárbaros "todos os que não participavam da
sua definição "o etnoccntrismo é o termo técni- cultura greco-romana. Em seguida, na Europa
co para esta visão das coisas segundo a qual Ocidental, o termo "selvagem" será utilizado no
nosso próprio grupo é o centro de todas as coi- mesmo sentido, para jogar para fora da cultura
sas e todos os outros grupos são medidos e ava- e, em outras palavras, da natureza, os que não
liados em relação a ele [...]. Cada grupo alimen- pertenciam à civilização ocidental. Com esta
ta seu próprio orgulho e vaidade, considera-se atitude, os "civilizados" se comportam então
superior, exalta suas próprias divindades e olha exatamente como os "bárbaros" ou os "selva-
com desprezo as estrangeiras. Cada grupo pen- gens". No final das contas, não estaríamos no
sa que seus próprios costumes (Folkways) são direito de pensar, como Lévi-Strauss que "o bár-
os únicos válidos e se ele observa que outros baro é primeiramente o homem que acredita
grupos têm outros costumes, encara-os com na barbárie" [1952]?
desdém." (citado por Simon [1993, p. 57])
O etnocentrismo pode tomar formas extremas mente, este pioneirismo vai provocar um atraso
de intolerância cultural, religiosa c até política. na fundação da etnologia francesa. Em um pri-
Pode também assumir formas sutis e racionais. meiro momento, pode-se dizer que a sociologia
No domínio das ciências sociais, pode-se agir ocupa todo o espaço da pesquisa-sobre as soci-
como se houvesse o reconhecimento do fenô- edades humanas. A etnologia - seria mais corre-
meno da diversidade cultural e ao mesmo tem- to dizer a etnografía - está então reduzida ao sta-
po conceber a variedade das culturas como tus de ramo anexo da sociologia. A "questão so-
uma simples expressão das diferentes etapas de cial" domina e oblitera a "questão cultural".
um único processo de civilização. Deste modo,
o evolucionismo do século XIX, ao imaginar os Uma constatação: a ausência do
"estágios" de um desenvolvimento social uniii- conceito cientifico de cultura no
near, permitia a classificação das culturas parti- início da pesquisa francesa
culares em uma mesma escala de civilização. A
diferença cultural, nesta perspectiva, era so- Na França, no século XIX e no começo do
mente uma aparência: ela estaria condenada a século XX, nas ciências sociais, os pesquisado-
desaparecer, cedo ou tarde. res se conformavam com o uso lingüístico en-
Em ruptura total com esta concepção, a antro- tão dominante e usavam correntemente o ter-
pologia cultural introduz a idéia de relatividade mo "civilização", já consagrado pelos historia-
das culturas e de sua impossível hierarquização dores e praticamente nunca o termo "cultura"
a priori . E ela recomenda, para escapar a qual- num sentido coletivo e descritivo. Apesar de es-
quer etnocentrismo na pesquisa, a aplicação do tarem informados sobre os trabalhos científicos
método de observação participante. alemães, eles recusavam geralmente a tradução
de Kultur por sua homóloga francesa e prefe-
riam "civilização". Do mesmo modo, a obra de
Tylor, Primitive Culture teve uma certa reper-
A idéia de cultura entre os fundadores cussão na comunidade científica na França, mas
da etnologia francesa o título da versão francesa foi: La Civttisation
Primitive (A Civilização Primitiva).
Em relação a seus vizinhos, a França mani- O termo "cultura" para os pesquisadores
festa uma originalidade no desenvolvimento das franceses continuava geralmente ligado a sua
ciências sociais. É na França que nasce a socio- acepção tradicional no campo intelectual naci-
logia como disciplina científica. Mas, paradoxal- onal: ele se referia unicamente ao campo do es-
pírito e só era compreendido em um sentido eli- em relação à sociologia e constrói seus próprios
tista restrito e em um sentido individualista (a instrumentos conceituais.A confrontação direta
cultura de uma pessoa "culta"). e prolongada com a alteridade e a pluralidade
É evidente que o contexto ideológico pró- das culturas favorece o surgimento do conceito
prio da França do século XIX bloqueou o surgi- de cultura através da introdução de um certo re-
mento do conceito descritivo de cultura. So- lativismo cultural.
ciólogos e etnólogos estavam eles mesmos mui- Mas este surgimento do conceito se dá
to impregnados do universalismo abstrato do apenas progressivamente na França e, inclusive
Iluminismo para pensar a pluralidade cultural na literatura etnológica, "civilização" resistirá e
nas sociedades humanas dissociada da referên- chegará, às vezes, a ser utilizada indistintamente
cia à "civilização". É certo que o contexto histó- com o termo cultura, até os anos sessenta. A
rico não levava a uma interrogação sobre esta obra clássica de Ruth Benedict, Pattems of
questão. A epopéia colonial se fazia em nome da Culture seria traduzido em 1950 com o título
missão"civüizatória" da França. A rivalidade e os (infeliz sob qualquer ponto de vista) de Amos-
conflitos com a Alemanha opunham dois na- tras de civilizações.
cionalismos que se serviam das noções de
Kultur e de "civilização" como armas de propa- Durkheim e a abordagem imitam
ganda. Enfim, o Estado-nação francês, confronta- dos fatos de cultura
do ao rápido desenvolvimento da imigração es-
trangeira no último terço do século XIX, adota- Emile Durkheim (1858 - 1917), por uma
va uma política cultural claramente assimila- curiosa coincidência, nasceu no mesmo ano
cionista destas populações, de acordo com o que Franz Boas. Como Boas na antropologia
modelo centralista que já havia produzido seus americana, Durkheim ocupará uma posição
efeitos sobre as culturas regionais do país. "fundadora" na antropologia francesa. Mais so-
Na etnologia francesa iniciante, o que cha- ciólogo do que etnólogo, Durkheim não deixa-
ma a atenção é a ausência de conceito de cultu- va, no entanto, de desenvolver uma sociologia
ra. Seria necessário atingir o desenvolvimento com orientação antropológica. De fato, tinha
de uma etnologia de campo, nos anos trinta, como ambição compreender o social em todas
para que seu uso começasse a aparecer, espe- as suas dimensões e sob todos os seus aspectos,
cialmente entre os pesquisadores africanistas, inclusive na dimensão cultural, através de todas
como Mareei Griaule ou Michel Leiris.A etnolo- as formas de sociedade.
gia adquire naqueles anos uma certa autonomia
Com a criação em 1897 da revista O Ano nha uma estreita colaboração, era ainda mais ex-
Sociológico, Durkheim contribuiu para fundar a plícito desde 1901:
etnologia francesa e assegurar seu reconheci-
mento nacional e internacional. A revista publi- A civilização de um povo não c nada além de
cou» em suas sucessivas edições, numerosas mo- um conjunto de seus fenômenos sociais; e falar
nografias etnográficas e diversas resenhas de de povos incultos, "sem civilização", de povos
obras etnológicas, em geral estrangeiras. "naturais" (Naturvõlker), é falar de coisas que
Durkheim não utilizava quase nunca o não existem (O Ano Sociológico, tomo IV,
conceito de cultura. Em sua própria revista,"cul- 1901,p. 141).
tura" em língua estrangeira era quase sempre
traduzida por "civilização71. Mas, se ele recorria O famoso artigo, escrito por Durkheim e
apenas excepcionalmente ao conceito de cultu- Mauss em 1902, Algumas formas primitivas de
ra, não era por se desinteressar pelos fenôme- classificação, pretendia demonstrar que os pri-
nos culturais. Para ele, os fenômenos sociais têm mitivos são perfeitamente aptos para o pensa-
necessariamente uma dimensão cultural pois mento lógico. Durkheim não mudara a respeito
são também fenômenos simbólicos. deste ponto. Mais tarde, em As Formas elemen-
Durkheim contribuiu muito para extrair tares da vida religiosa, ele confirmará sua posi-
do conceito de civilização os pressupostos ção inicial, recorrendo pela primeira vez à no-
ideológicos implícitos em maior ou menor grau. ção de cultura:
Em uma "Nota sobre a noção de civilização", re-
digida conjuntamente com Mareei Mauss e lan- [...], o pensamento conceituai é contemporâ-
çada em 1913, ele se esforçava para propor uma neo da humanidade. Nós nos recusamos então
concepção objetiva e não normativa da civiliza- a vê-lo como um produto de uma cultura tardia
ção que incluía a idéia da pluralidade das civili- em maior ou menor grau [1912].
zações sem enfraquecer, com isso, a unidade do
homem. Para ele, não havia dúvida de que a hu- Se Durkheim partilhava de certos aspectos
manidade é uma, que todas as civilizações parti- da teoria evolucionista, ele recusava, no entan-
culares contribuem para a civilização humana. to, suas teses mais redutoras e sobretudo a tese
Ele não concebia diferenças de natureza entre do esquema unilinear de evolução que seria co-
primitivos e civilizados. Mauss, que partilhava mum a todas as sociedades. Em uma resenha de
do pensamento de Durkheim com quem manti- um livro alemão que tratava da "psicologia dos
povos", ciência então muito em voga na Alema-

5 i>
*2
nha, Durkheim escreveria, em desacordo com a Anos mais tarde, em 1929, em um estilo
tese central da obra que apresentava a idéia de mais polêmico e mais explícito, Mauss prolonga-
um futuro idêntico para toda a humanidade: ria o pensamento de Durkheim, em uma confe-
rência sobre "as civilizações":
Nada nos autoriza a acreditar que os diferentes
tipos de povos vão todos no mesmo sentido; al- Os homens de Estado, os filósofos, o público, e
guns seguem caminhos muito diversos. O de- sobretudo os jornalistas, falam da civilização.
senvolvimento humano deve ser ilustrado não Em período nacionalista, a civilização, é sem-
sob a forma de uma linha em que as sociedades pre a sua cultura, a de sua nação, pois eles ig-
viriam se colocar umas depois das outras como noram geralmente a civilização dos outros. Em
se as mais avançadas não fossem senão a conti- período racionalista e geralmente universalista
nuação e a seqüência das mais rudimentares, e cosmopolita [...] a Civilização constitui uma
mas como uma árvore com ramos múltiplos e espécie de estado de coisas ideal e real ao mes-
divergentes. Nada nos diz que a civilização de mo tempo, racionai e natural simultaneamente,
amanhã será apenas o prolongamento da exis- causai e final num mesmo momento, que seria
tente atualmente para uma mais elevada; talvez, liberado aos poucos por um progresso indubi-
ao contrário, ela terá como agentes povos que tável [...].
nós julgamos inferiores como a China, por Esta perfeita essência nunca foi nada além de
exemplo, e que lhe darão uma direção nova e um mito, de uma representação coletiva. Esta
inesperada (OAno Sociológico, tomo XII, 1913, crença universalista e nacionalista ao mesmo
p. 60-61). tempo é um traço de nossas civilizações inter-
nacionais e nacionais do Ocidente Europeu e
O pensamento de Durkheim era então im- da América não indígena [1930, p. 103 - 104].
pregnado de uma grande sensibilidade em rela-
ção à relatividade cultural, que provinha de sua Para manter sua própria lógica, Durkheim
concepção geral da sociedade e da normalidade chegou a privilegiar um uso flexível da noção
social. Ele abordava esta questão adotando uma de civilização que ele fazia funcionar como um
atitude relativista: a normalidade é relativa a cada conceito "de geometria variável". Na Nota sobre
sociedade e ao seu nível de desenvolvimento. a noção de civilização, escrita com Mauss, ele
Sua concepção da normalidade pretendia ser pu- se dedicava a tirar a noção da generalidade im-
ramente descritiva e baseada em uma espécie de precisa que a caracterizava então e a dar-lhe
"média" própria a cada tipo de sociedade. uma conteúdo conceituai operatório:"a" civiliza-
cão não se confunde com a humanidade e seu Contra as teses individualistas que ele refu-
futuro, tampouco com uma nação em particu- tava por serem dominadas pelo psicologismo,
lar; o que existe, o que se pode observar e estu- Durkheim afirmava a prioridade da sociedade
dar, são diferentes civilizações. E é preciso en- sobre o indivíduo. Sua concepção dos fenôme-
tender "civilização" como um conjunto de nos era feita, no entanto, do mesmo holismo me-
todológico. Em As Formas Elementares da Vida
fenômenos sociais que não estão ligados a um Religiosa, sobretudo, mas desde O Suicídio
organismo social particular; estes fenômenos se (1897), ele desenvolvia uma teoria da "consciên-
estendem sobre áreas que ultrapassam um ter- cia coletiva" que é uma forma de teoria cultural.
ritório nacional, ou ainda se desenvolvem em Para ele, existe em todas as sociedades uma
períodos de tempo que ultrapassam a história "consciência coletiva", feita das representações
de uma só sociedade [1913, p. 47]. coletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimen-
tos comuns a todos os seus indivíduos. Esta
Esta definição levava à teoria difusionista a consciência coletiva precede o indivíduo, im-
noção de "área"e ao mesmo tempo, introduzia na põe-se a ele, é exterior e transcendente a ele: há
teoria evolucionista a noção de "período", mes- descontinuidade entre a consciência coletiva e
mo que Durkheim se opusesse às reconstítuições a consciência individual, e a primeira é "supe-
históricas imprecisas das duas escolas. Preocupa- rior" à segunda, por ser mais complexa e inde-
do em fundar um método rigoroso de estudo dos terminada. É a consciência coletiva que realiza a
fatos sociais, ele apenas reconhecia como válido unidade e a coesão de uma sociedade.
o procedimento empírico e recusava qualquer As hipóteses de Durkheim sobre a cons-
forma de comparatismo especulativo. ciência coletiva seguramente exerceram uma
Não se deve procurar junto a Durkheim influência sobre a teoria da cultura como "super
uma teoria sistemática da cultura. Sua reflexão organismo" de Alfred Kroeber [1917]. Pode-se
sobre a cultura não forma um conjunto unifica- também fazer uma aproximação entre a noção
do.A preocupação central de sua obra era deter- de consciência coletiva - à qual Durkheim atri-
minar a natureza do vínculo social. No entanto, buía características espirituais - e as noções de
sua concepção da sociedade como totalidade pattern cultural e de "personalidade básica" pró-
orgânica determinava sua concepção de cultura prias aos antropólogos culturalistas americanos.
ou de civilização: para ele, as civilizações consti- O próprio Durkheim utilizava às vezes a expres-
tuem "sistemas complexos e solidários". são "personalidade coletiva", em um sentido
muito próximo da "consciência coletiva".
Se o conceito de cultura é praticamente Desde 1910, com o livro As Funções Men-
ausente da antropologia de Durkheim, isto não tais nas Sociedades Inferiores, Lévy-Bruhl colo-
o impediu de propor interpretações dos fenô- ca a diferença cultural no centro de sua refle-
menos freqüentemente chamados de "culturais" xão. Ele se interroga sobre as diferenças de
pelas ciências sociais. "mentalidade" que podem existir entre os po-
vos. Esta noção de "mentalidade" não era muito
Lévy-Bruhl e a abordagem distante da acepção etnológica de "cultura", ter-
diferencial mo que ele praticamente não utilizava.
Todo esforço de Lévy-Bruhl consistia em
Ainda que a obra de Lucien Lévy-Bruhl refutar a teoria do evolucionismo unilinear e a
(1857 - 1939) não tenha tido a mesma repercus- tese do progresso mental. De uma maneira ge-
são ou exercido a mesma influência que a obra ral, ele se opunha à própria idéia de "primiti-
de Durkheim, pode-se observar que na seu iní- vos", ainda que ele mesmo tivesse utilizado este
cio, através de dois de seus fundadores, a etno- termo várias vezes, devido ao contexto da épo-
logia francesa hesitava entre duas concepções ca. Para ele, os indivíduos das sociedades de cul-
de cultura, uma unitária, a outra, diferencial. A tura oral não eram "crianças grandes" que teriam
confrontação destas duas concepções em um o mesmo tipo de interrogações que os "civiliza-
debate científico às vezes acirrado, contribuiria dos", vistos como adultos, dando a estas ques-
muito para o desenvolvimento da etnologia tões respostas ingênuas, "infantis". Na Mentali-
francesa. É legítimo considerar Lévy-Bruhl como dade Primitiva, ele afirmava:
um dos fundadores da disciplina etnológica na
França. De fato, ele foi um dos primeiros pesqui- [Sc] a atividade mental dos primitivos [não for
sadores a consagrar uma grande parte de seus maisj interpretada a priori como uma forma ru-
dimentar da nossa, como infantil e quase pato-
trabalhos ao estudo das culturas primitivas.
Além do mais, no plano institucional, é a ele que lógica. [...] ela aparecera ao contrário, como
devemos a criação, em 1925, do Instituto de Et- normal nas condições em que é exercida, como
nologia da Universidade de Paris, onde será for- complexa e desenvolvida à sua maneira [1922,
mada a primeira geração de etnólogos de cam- p.15-16].
po sob a responsabilidade de Mareei Mauss e de
Paul Rivet, a quem ele confiou o secretariado ge- Lévy-Bruhl contestava também uma certa
ral do Instituto. concepção de unidade do psiquismo humano
que implicava um modo único de funcionamen- buição. Pode-se então perguntar as razões que
to. Ele não partilhava das teses de Tylor sobre o levaram esta contribuição a ser mal compreen-
animismo dos primitivos (paraTylor, o animismo dida, deturpada, rejeitada e finalmente esqueci-
constituía a forma mais antiga de crença religio- da em sua maior parte.
sa, isto é, a crença na existência e na imortalida- Dominique Merllié [1993] responde a es-
de da alma e, logo, em seres espirituais, baseada ta pergunta e propõe uma nova leitura, sem o
na interpretação dos sonhos): ele criticava sua a príori, deste autor. Contrariamente à apresen-
insistência excessiva para demonstrar o caráter tação que é comumente feita de sua obra, ela
"razoável" desta crença. Pelas mesmas razões, ele não é etnocentrista. Foi assim qualificada para
discordava de Durkheim, criticando-o por que- ser mais desacreditada enquanto todo o esforço
rer provar que os homens têm, em todas as so- de Lévy-Bruhl consistia justamente em uma ten-
ciedades, uma mentalidade "lógica" que obede- tativa de pensar a diferença a partir de catego-
ceria necessariamente às mesmas leis da razão. rias adequadas. Mas esta tentativa entrava em
Por outro lado, Durkheim não admitia a contradição com o universalismo (abstrato) do
distinção que Lévy-Bruhl estabelecia entre Iluminismo e seus princípios éticos que serviam
"mentalidade primitiva" e "mentalidade civiliza- de referência à maioria dos intelectuais france-
da". Mas a crítica que ele fazia em 1912, em sua ses do início do século.
resenha, para O Ano Sociológico, do primeiro li- O que chamamos de tese de Lévy-Bruhl
vro de Lévy-Bruhl sobre esta questão, foi marca- era apresentada por ele mesmo como uma "hi-
da por um evolucionismo bastante redutor: pótese de trabalho", como nos lembra Merllié.
Se ele tentava dar conta da diferença das menta-
Estas duas formas de mentalidade humana, por lidades, isto não o impedia de afirmar a unidade
mais diferentes que sejam, ao invés de derivar psíquica humana. Para ele, a unidade da humani-
de origens diferentes, nasceram uma da outra e dade era mais fundamental que a diversidade. O
são dois momentos de uma mesma evolução. conceito de "mentalidade primitiva" ("pré-lógi-
ca") não era nada além de um instrumento para
Estas discordáncias entre Lévy-Bruhl e pensar a diferença. Seu procedimento, que se
seus pares eram apenas a expressão de um de- servia explicitamente das pesquisas de campo,
bate científico muito animado sobre a questão era tudo, exceto dogmático.
da alteridade e da identidade culturais.A este de- Aliás, segundo este autor, a diferença não
bate, Lévy-Bruhl trouxe uma importante contri- exclui a comunicação entre os grupos huma-

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