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Editora dl Univanldad* da Sijiado Confio

a noção
de cultura nas
c n c a s socas
Coordenação Editorial
Irmã JacintaTurolo Garcia

Assessoria Administrativa
Irmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria Comercial Denys Cuche


Irmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção Verbum


Luiz Eugênio Véscio

Tradução
Viviane Ribeiro

VERBUM
Introdução

A jiucíu? de cultura nus ciências sociais


"O problema da cultura, ou ainda, das culturas,
passa por uma atualização, tanto no plano inte-
lectual, devido à vitalidade do cultüralismo ame-
ricano, quanto no plano político. Na França, ao
menos, nunca se falou tanto de cultura quanto
- hoje (com relação à mídia, à juventude, aos imi-
grantes) e esta utilização da palavra, por mais
sem controle que seja, constitui por si mesma
um dado etnológico."
Marc AUGE [1988]*

A noção de cultura c inerente à reflexão


das ciências sociais. Ela é necessária, de^cerfã
manejra, para pensaria unidade da ííumaríítiatlé
lia diversidade além dos

questão da diferença entre os povos, uma vez


que a resposta "racial" está cada ve^ mais desa-
creditada, à medida que há avanços da genética
das populações humanas.
O homemj essencialmente um ser de cul-
tu£|_._0 longo^ processo de^ hpminização, come-
çado há mais ou menos quinze milhões de anos,

* As referências entre colchetes remetem à bibli-


ografia no final
consistiu fundamentalmente >assaeem de
*—_. *-*
gicas particulares como, por exemplo, a diferen-
meio ambienfeTiatlf ça de sexo, não podem ser jamais observadas
_ cuIturalJAo longo destã~évo- "em estado bruto" (natural) pois, por assim di-
lução, que resulta no Homo sapiens sapiens, o zer, a cultura se apropria delas "imediatamente":
primeiro homem, houve uma formidável regres- a divisão sexual dos papéis e das tarefas nas so-
jgão^gs.instintQs,.^siibstítuídos""progrcssÍvamen- ciedades resulta fundamentalmente da cultura e
^te_pela cultura/isto é, por esta adaptação imagi- por isso varia de uma sociedade para outra..
nada e controlada pelo homem que se revela Nada é puramente natural no homem.
muito mais funcional que a adaptação genética Mesmo as funções humanas que correspoiT'
por ser muito mais flexível, mais fácil e rapida- dem a ncc^ssiaa'3êrHsiofógicgs, como_ a tome,
mente transmissível. A cultura permite ao ' ò~"sono, o deseio.sgxu^^tc^, sà^o informados
homem não somente adaptar-se a seu meio, pelã"cultura:-as sociedades não dão exatamen-
jnasjarnb_ém_adaptar este meiojao jpropnp Tio1" te as mesmas respostas a estas necessidades. ,4
jnenUa suas necessidades e seus projetos. Em domínios em que não há constran-
suma, a cultura torna possível a transformação gimento biológico,' os comportamentos são
da natureza. orientados pela cultura. Por isso, a ordem; "Seja
Se todas as "populações" humanas pos- natural", freqüentemente feita às crianças, em
suem a mesma carga genética, elas se diferen- particular nos meios burgueses, significa, na
ciam por suas escolhas culturais, cada uma in- realidade: "Aja de acordo com o modelo da cul-
ventando soluções originais para os problemas tura que lhe foi transmitido".
que lhe são colocados. No entanto, estas diferen- A noção de cultura, compreendida em seu
ças não são irredutíveis umas às outras pois, sentido vasto, que remete aos modos de vida e de
considerando a unidade genética da humanida- pensamento, é hoje bastante aceita, apesar da
de, elas representam aplicações de princípios existência de certas ambigüidades. Esta aceitação
culturais universais, princípios .suscetíveis de nem sempre existiu. .Desde seu aparecimento no
evoluções e até de transformações. séciüo XVIII, aJd^taJiiQdeglâ^Ç^uí^1 suscitou
A noção de cultura se revela então o ins-, constantemente debates acirradosjjualquer que
trumento adequado para acabar com as cxplica- seja o sentido preciso que possa ter sido dado à
jgões; naturalizantes dos comportamentos huma- palavra - e não faltaram definições de cultura -
nosj-A natureza, no homem, e^inTêifãmenfeTn- sempre subsistiram desacordos sobre sua aplica-
terpretada pela cultura. As diferenças que pode- ção a esta ou àquela realidade. O uso da noção de
riam parecer mais ligadas a propriedades bioló- cultura leva diretamente à ordem simbólica, ao
que se refere ao sentido, isto é, ao ponto sobre o Apresentaremos em seguida a invenção
qual è mais difícil de entrar em acordo. propriamente dita do conceito científico de cul-
As ciências sociais, apesar de seu desejo de tura, implicando a passagem de uma definição
autonomia epistemológica, nunca foram comple- normativa a uma definição descritiva. Contra-;
tamente independentes dos contextos intelec- riamente à^nocãp de^oTiéTlãctg>maÍs oujasnos
tuais e lingüísticos em que elaboram seus esque- riyainomesmo campo semântico, a noção de
mas teóricos e conceituais. Esta é a razão pela cultura se aplica unicamente ao que é humano.
qual o exame do conceito científico de cultura E ela oferece a possibilidade de conceber a uni-
implica o estudo de sua evolução histórica, dire- dade do homem .na diversidade de seus modos
tamente ligada à gênese social da idéia moderna de vida e de crença, enfatizando, de acordo com
de cultura. Esta gênese revela que, sob as diver- os pesquisadores, jajunidade^iHi a diversidade
gências semânticas sobre a justa definição a ser (capítulo II).
dada à palavra, dissimulam-se desacordos sociais Desde a introdução do conceito nas ciên-
e nacionais (capítulo I). As lutas de definição são, cias do homem, assiste-se a um notável desen-
em realidade, lutas sociais, e o sentido a ser dado volvimento das pesquisas sobre a questão das
às palavras revelam questões socjaisjtmdamen- variações culturais, particularmente nas ciên-
tais. Como cias sociais americanas por razões que não
acontecem por acaso e que são analisadas aqui.
Assim se pode rctraçar paralelamente à história Pesquisas sobre sociedades extremamente di-
da semântica, isto é, à gênese das diferentes sig- versas fizeram aparecer a coerência simbólica
nificações da noção de cultura, a história social (jamais absoluta, no entanto) do conjunto das
destas significações: as mudanças semânticas, práticas (sociais, econômicas, políticas, religi-
aparentemente de natureza puramente simbóli- osas, etc.) de uma coletividade particular ou de
ca, correspondem em realidade a mudanças de um grupo de indivíduos (capítulo III).
uma outra ordem. Correspondem a mudanças O estudo_atento do encontro das culturas
na estrutura das relações de força entre, de um ^revela que este encontre-se realiza segundo mo-
lado, os grupos sociais no seio de uma mesma _
__dalídades ^ ^ ^
muito rariad^aj e^lea^a^jesultados ex-
sociedade e, de outro lado, as sociedades em re- tremamente contrastados, segundo as situações
lação de interação, isto é, mudanças nas posi- de contato, As pesquísa_s sobre a "aculturação"
ções ocupadas pelos diferentes parceiros inte- permitiram ultcapassai-várias idéias preconcebi
ressados em definições diferentes de cultura das sobre as propriedades da cj.iltura e renovar
[1987, p. 25]. profundamente o conceito de cultura. A aculuT
ração aparece não como um fenômeno ocasi- pnr^
l, jde^efeitos. deyastadüres,jmas_^rrip uma ' dade,que esconde freqüentemente uma tentati-
va
jas_madalid_ade£ habituais íteJniPí^Çls^ÍmfeÓÍÍ£íUSeJa n° campo polí-
tico ou religioso, na empresa ou em relação aos
O encontro das culturas não se produz so- imigrantes, a cultura não se decreta; ela não
mente entre sociedades globais, mas também pode ser manipulada como um instrumento vul-
entre grupos sociais pertencentes a uma mesma gar, pois ela está relacionada a processos extre-
sociedade complexa. Como estes grupos são mamente complexos e, na maior parte das ve-
hierarquizados entre si, percebe-se que as hi- zes, inconscientes (capítulo VII).
erarquias sociais determinam as hierarquias cul- Não seria possível, no contexto desta obra,
turais, o que não significa que a cultura do apresentar todos os usos que foram feitos da no-
grupo dominante determine o caráter das cultu- ção de cultura nas ciências humanas e sociais. A
ras dos grupos socialmente dominados. As cul- sociologia e a antropologia foram então privile-
turas das classes populares não são desprovidas giadas mas, outras disciplinas recorrem também
de autonomia nem de capacidade de resistência ao conceito de cultura: a psicologia e sobretudo
(capítulo V). a psicologia social, a psicanálise, a lingüística, a
A ..defesa da autononi ia cultural é muito li- história, a economia, etc. Além das ciências so-
gada à Dreser^açãp^daJdentida^^leíivâT^COl^ ciais, a noção é igualmente utilizada, em particu-
_tura "e "identidade " sãp^conceitos que remetem lar pelos filósofos. Por não poder ser exaustivo,
a uma
.•.i* i i n. j TTT^mesma
W
j realidade,
Jo»r^jBiHj*,--j'aw^rs»
r J;^TOI>^_Í; a_ - ^.vista 4
por dois ângulos
*^
pareceu-me legítimo concentrar o estudo sobre
diferentes. Uma concepção, essencialista da um certo número de aquisições fundamentais
identidade não resiste mais a um exame do que da análise cultural.
uma concepção essencialista da cultura, A iden-
tidade cultural de um gn^Qrsó^ad&-secj:pjn;.
""preelidida ao^se^estudaj" suas relações com og
grupos vizinhos (capítulo VI).
"-"^yjj^jisg^u^,^ conserva, atualmente,
toda a sua pertinência e se revela sempre apta a
dar conta das lógicas simbólicas em jogo no
mundo contemporâneo, desde que não se negli-
genciem os ensinamentos das ciências sociais.
JVão basta tomar emprestado destas ciências a
Gênese Social da Palavra e da
Idéia de Cultura

As palavras"têm"~uma história e, de certa


maneira também, as palavras fazem a história. Se
isto é verdadeiro para todas as palavras, é parti-
cularmente verificável no caso do termo "cultu-
ra". O "peso das palavras", para retomar uma ex-
pressão da mídia, é grandemente influenciado
por esta relação com a história, a história que as
fez e a história para a qual elas contribuem.
S^-'

í As palavras aparecem para responder a al-


fíumas interrogações, a certos problemas que se
Y colocam em períodos históricos determinados
C_Ê em contextos sociais e políticos específicos.
Nomear é ao mesmo tempo colocar o problema
e, de certa maneira, já resolvê-lo.
A invenção da noção de cultura é em si
mesma reveladora de um aspecto fundamental
da cultura no seio da qual pôde ser feita esta in-
venção e que chamaremos, por falta de um ter-
mo mais adequado, a cultura ocidental. Inversa-
mente, é significativo que a palavra "cultura"não
tenha equivalente,na maior parte das línguas
orais das sociedades quedos etnólogos estudam
habitualmentejlsto não implica, evidentemente
(ainda que esta evidência não seja universalmen-
te compartilhada!) que estas sociedades não te-
nham cultura, mas que elas não se colocam a
questão de saber se têm ou não uma cultura e - que permitirá em seguida a invenção do con-
ajnclâ menos de clêhnir suã^áaria cultura,^ ceito - sejjroduziu na língua francesa do século
Por esta razão, se quisermos compreender das Luzes, antes de se difundir por empréstimo
o sentido atual do conceito de cultura e seu uso lingüístico em outras línguas vizinhas (inglês,
nas ciências sociais, é indispensável que se re- alemão).
constitua sua gênese social, sua genealogia. Isto Se o século XVIII pode ser considerado
é, trata-se de examinar como foi formada a pala- como o período de formação do sentido moder-
vra, e em seguida, o conceito científico que dela i
no dajgalavra, cm 1700. no entanto, "culturã"já
depende, logo, localizar sua origem e sua evolu- é uma palavra antiga no vocabulário francês. \
ção semântica. Não se trata de se entregar aqui a jo latim cultura que ^
uma análise lingüística, mas de evidenciar os la- dispensado ao campo ou ao ^agp^cla aparece
ços que existem entre a história da palavra "cul- nos fins do século XIII para designar uma parcc-
tura" e a história das idéias. A evolução de uma la_dg_terra cultivada (sobre este ponto e os se-
palavra deve-se, de fato, a inúmeros fatores que guintes, ver Bénéton, [1975]).
não são todos de ordem lingüística. Sua herança No começo do século XVI, ela não signifi-
semântica cria uma certa dependência em rela- ca mais um estado (da coisa cultivada), mas uma
ção ao passado nos seus usos contemporâneos. ação, ou seja o fato de cultivar a terra. Somente
Do itinerário da palavra "cultura" tomare- no meio do século XVI se forma o_ sentido fígu-
mos apenas os aspectos que esclareçam a for- :-radg e_"cultura" pode designar então a cultura
mação do conceito tal como é utilizado nas de uma faculdade, isto é, o fato de trabalhar para
ciências sociais. A palavra foi, e continua a ser, ..desenvolvê-la., Mas este sentido figurado será
aplicada a realidades tão diversas (cultura da ter- pouco conhecido até a metade do século XVII,
ra, cultura microbiana, cultura física...) e com obtendo pouco reconhecimento acadêmico e
tantos sentidos diferentes que é quase impossí- não figurando na maior parte dos dicionários
vel rctraçar-^aqui sua história completa. da época.
Até o século XVIILa evolução do conte-
Evolução da palavra na língua francesa údo semântico da palavra se deve principalmen-
da Idade Mgjlia^ aoseculo X1X_ te,^ movimento natural da língua e não ao mo-
vjmentQ das idéias, taue procede, por um lado
É legítimo analisarmos particularmente o a cultura como estado à cul-
exemplo francês do uso de "cultura", pois pare- tura como ação), por outro lado
ce que a evolução semântica decisiva da palavra Cda cultura da terra à cultura do espírito'), imi-
tando nisso seu modelt Cultura, consa- jque concebem a cultura como um Caráter distin-
grado pelo latim clásgiçpjlQ-gentido figurado^ 1 tiro da espécieihumana. A_cultura, para eles, é a
O termo "cultura" no sentido figurado J soma dos saberes acumulados e transmitidos
meça a se imporjiojéculo XVIII. Ele faz sua en- | pela humanidade, considerada como totalidade,
trada com-este sentido no Dicionário da Acade- ão, longo de sua história.
mia Frahcesa (edição de 1718) e é então quase Nojréculo XVHI." cultura" é sempre empre-
sempre seguido de um complemento: fala-se da gada no singular, o que reflete o universalismo e
"cultura das artes" , da "cultura das letras" , da "cul- o humanismo dos filósofos: a cultura é própria
tura das ciências", como se fosse preciso que a do Homem (com maiúscula), além de toda_dis-
coisa cultivada estivesse explicitada. tinção de povos ou de classes. "CultunTse ins-
A palavra faz parte do vocabulário dajm- creve então plenamente na ideologia do Ilumi-
gua doL-Duminismo^ sern^ser, no entanto, muito nismo: aj)a^waéa^s^aad^àsjdéias de progres-
utUJzada_Rglos fílósofos^A Enciclopédia, que re- so, de evolução, de educação, de razão que estão
serva um longo artigo para a "cultura das terras", no centro_doj?ensamento da érjoça. gg_Q_movi-
não dedica nenhum artigo específico ao sentido mento Uurainista nasceu na Inglaterra, ele j?n-
figurado de "cultura". Entretanto, ela não o igno- controu sua língua e seu vocabulário^ na Francai,
ra, pois o utiliza em outros artigos ("Educação", ele terá uma grande repercussão em toda a Eu-
"Espírito", "Letras", "Filosofia", "Ciências") . ropa Ocidental, sobretudo nas grandes metró-
Progressivamente, "cultura" se libera de poles como Amsterdam, Berlim, Milão, Madri,
jeus complementos e acaba por ser empregada Lisboa e até São Petersburgo.A idéia de cultura
só. para designar a "formação ", a. " educação " do participa do otimismo do momento, baseado na
^espírito. fòepois, em um movimento inverso ao confiança no futuro perfeito do ser humano. O^
observado anteriormente; pjagsa-se de "cultura" progrejSj^aacc^ajnstmcãG.isto ê. da cultura,
_ como ação (ação dejnstruir) a"cultura" comc^es- cada vezm^s_abrangente.
tadojestado do espírito^ cultivado ggbjnstru- "£ü!íjjra^_jgstá então muito gróxima de
cão^estado do indivíduo "que tem cultura^ Este uma palavra que vai ter um grande sucesso (até
uso é consagrado, no fim do século, pelo Dici- maior que o de "cultura") no vocabuláríojran-
onário da Academia (edição de 1798) que estig- cês do século XVIII: "civilização"4As duas pala-
matiza "um vras pertencem ao mesmo campo semântico^rei
nhando com esta expressão a oposição concei- fletem osjTiesmas cgn^epcõgsjiindamentaisj Às
tuai entre "natureza" e "cultura.". Esta oposição é vezes associadas, elas não são, no entanto, equi-
rfundamental para ojsjjensadores do Iluminismo" valentes. "Cultura" evoca príncipalmcntejjs pró

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gressos individuais, "civilização", osprogressos "Civilização" é tão ligada a esta concepção pro-
coletivos. Como sua homóloga "cultura c pelas gressista da história que os que se mostram cé-
mesmas razões, "civilização" é um conceito uni- •tícos^com relação a ela, como Rousseau ou
tário .e só é usado então no singular. Ela sejibc- Voltaire, evitarão utilizar este termo por serem
rajapidamente, junto aos filósofos reformistas, jmnoritâriÕs^fe não estarem em condições de im-
de seu sentido original recente (a palavra apare- por uma outra concepção mais relativista.
ce somente no século XVlII)^quedes^gna^^afl.- OJJSQ de "cultura"c de "civilizaçâo"no sé-
namento^dos costumes, e sjgnjflãrpara elesjx culcOCVIII marca
processo nova concepção(^sga^cralizâ3ãida
cia" e da irracionalidade. preconizando esta nova 3í>fía-(daJiistQriaj-se-libera._dajeologia (da histó-
acepção de "civilização", os pensadores burgue- ria). As idéias otimistas de progresso, inscritas
ses reformadores, utilizando-se de sua influência nas noções de "cultura" e "civilização" podem ser
política, impõem seu conceito de governo da consideradas como uma forma deCsucedâneo* de
sociedade quê, segundo eles, deve se apoiar na esperança religiosa. A partir de então, o homem
razão e nos conhecimentos. está colocado no centro da reflexão e no centro
A civilização é então definida_çQrnp um do universo. Aparece a idéia da possi5iir3ãgê~ae
processo de melhoria das, instituições, dajegis- jjma^ciencia do homem"; a expressão é empre-
"Jação, da educação. A civilização é ummovimen- gada pela primeira vez por Diderot ern^l755 (no
to longe de j^star_acabadp^q.ue_e.preciso apoiar artigo "Enciclopédia" da Encyclopédié). E, em
e que afeta a socidade comojum todo, começan>
* ___ -^ * ~ - " " - •—n---— __ i^l "^
1 787, Alexandre de Chavannes cria o termo "et-
do pelo Estado, que deve se liberaf_dc tudo o nologia" ,
j]ue é áínclâ" irracional em seu funcionamentOj ^estuda a "história dos progressos dos povos cm
Finalmente, a civilização r>odc c deve se esten- direção à
der a todos os povos que compõem a humani-
dade. Se alguns povos estão mais avançados-que O debate francoaleniíio sobre a cultura
Doutros neste movimento, se alguns (a França ou a imtíteseVcultura" - "civilização"
particularmente) estão tão avançados que já po- (século XIX - início do século XX)
dem ser considerados como "civilizados", todos
os povos, mesmo os mais "selvagens", têm voca- Kulturno sentido figurado aparece na lín-
ção para entrar no mesmo movimento de civili- gua alemã no século XVIII e parece ser a trans-
zação, e os mais avançados têm o dever de aju- posiçãoexãta da palavra francesa.;O prestígio
dar os mais atrasados a diminuir esta defasagem. da língua francesa - o uso do francês é então a

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marca distintiva das classes superiores na Ale- abandonar as artes e a literatura e consagrar a
manha - e a influência do pensamento Iluminis- maior parte de seu tempo ao cerimonial da cor-
ta são muito grandes na época e explicam este te, preocupados demais em imitar as maneiras
empréstimo lingüístico. "civilizadas" da corte francesa. Duas palavras
No entanto, Kultur vai evoluir muito rapi- vão lhes pmTiitirLrlffinir esta-ftj^-^ão"cIÕTjnteis
damente em um sentido mais restritivo que sua sistemas de valores: tudo o que é autêntico e
homóloga francesa e vai obter, desde a segunda que Contribui "pãrao enriquecimento intelec-
metade do século XVIII, um sucesso de público tual e espiritual será considerado como vindo
que "cultura" não teria ainda, já que "civilização" dã~cültUfa; ao contrário, OTjue é somente ãpa"-
era a preferida no vocabulário dos pensadores TéncJa"brilhante, leviandade, refinamento super-
franceses. Conforme explica Norbert Elias ficial, pertence a civilização* A cultura se opõe
[19391, este sucesso c deyjdQ_à_adQcão do ter- então ã civilização corno a profundidade se
mo pela burgucsiaintelectual alemã e ao uso opõe à superfícialidade. Para a intelligentsia
la faz delc^nasua oposição à aristocracia burguesa alemã, a nobreza da corte, se ela é ci-
^dacorte^De'iato, contrariamente à situação fran- vilizada, tem singularmente uma grande falta de
cesa, burguesia e aristocracia não têm laços es- cultura. Como o povo simples também não tem
treitos na Alemanha. A nobreza é relativamente esta cultura, a intelligentsia se considera de cer-
isolada em relação às classes médias, as cortes ta maneira investida da missão de desenvolver e
principescas são muito fechadas, a burguesia é fazer irradiar a cultura alemã.
afastada, em certa medida, da qualquer ação po- Por esta tomada de consciência, a ênfase
lítica. Esta distância social alimenta um certo da antítese cultura"^- "civilizacãõ^se desfocar
ressentimento, sobretudo entre muitos intelec- pouco a pouco da oposição social paraaoposf-
tuais que, na segunda metade do século, vão ção nacional [Elias, 1939]^Diversos fatos con-
opor os valores chamados "espirituais", ba- vergentes vão permitir este deslocamento. De
seados na ciência, na arte, na filosofia e também um lado, reforça-se a convicção dos laços estrei-
na religião, aos valores "corteses" da aristocracia. tos que unem os costumes civilizados das cor-
A seus olhos, somente os primeiros são valores tes alemãs à vida de corte francesa, e isto será
autênticos, profundos; os outros são superficiais denunciado como urna forma de alienação. Por
e desprovidos de sinceridade. outro lado, aparece cada vez mais a vontade de
Estes intelectuais, freqüentemente saídos reabilitar a língua alemã (a vanguarda intelec-
do meio universitário, criticam os príncipes que tual se expressa somente nesta língua) e de de-
governam os diferentes Estados alemães, por finir, no domínio do espírito, o que é especifica-
mente alemão. Como a unidade nacional alemã certeza, ela é a expressão de uma consciência
não estava ainda realizada e não parecia possível nacional que se questiona sobre o caráter espe-
então no plano político, a intelligentsia que cífico do povo alemão que não conseguiu ainda
tem uma idéia cada vez mais forte de "missão na- sua unificação política. Diante do poder dos Es-
cional", vai procurar esta unidade no plano da tados vizinhos, a França e a Inglaterra em parti-
cultura. cular, a "nação"alemã, enfraquecida pelas divi-
A ascensão progressiva desta camada so- sões políticas, esfacelada em múltiplos principa-
cial anteriormente sem influência que conse- dos, procura afirmar sua existência glorificando
guiu fazer-se reconhecer como porta-voz da sua cultura.
consciência nacional alemã transforma então os Estaca razão pela qual a noção alemã de
dados e a escala do problema da antítese "cultu- Kultur^yaLtender, cada yezmais, a partir do"gé-
ra" - "civilização". Na Alemanha, às vésperas da culo XIX, para a delimitação e a consolidação
Revolução Francesa, o lei das diferenças nacionajs^rata-se então de uma
sua conotação aristocrática alemã e passa a evo- noção particularista que_s_e opõe à noção fran-
car a França e "de uma mãheira~geral, as potên- cesa universalista de "civilização", que é a ex-
cias ocidentais .Da mesma maneira, a "cultura", pressão de uma nação cuja unidade nacional
de marca distintiva da burguesia intelectual ale- aparece como conquistada há muito tempo.
mã no século XVIII, vai jscr" convertida, no sécu- Já em 1774, mas de maneira ainda relativa-
lo XIX, ejfrTinarca distintiva da nação alemã intei- mente isolada, Johann Gottfried Herder, em um
"rãTNps texto polêmico fundamental, em nome do "gê-
^-<j traços s carãcterístSõT da classe intelêc-
tual, que manifestavam sua cultura, como a sin- nio nacional" de cada povo(yolksgeisf), tomava
ceridade, a profundidade, a espiritualidade, vão pãTtidó pelã~dÍversKlãdc dê~culturas, riqueza dlT
ser a partir de então considerados como especi- humãniSãde e contra o universalismo uniformi-
ficamente alemães. ^zante do Iluminismotque ele considerava empo-
Atrás desta evolução se esconde, segundo brecedor. Diante do que ele via como um impe-
Elias, um mesmo mecanismÕ^ícõloglco~Kgado rialismo intelectual da filosofia
a um sentimento de inferioridade ffiinHalilelmh Tninismo, Herder pretendia devolver a cada
de cultura é criada pela classe média que duvi- povo seu orgulho, começando pelo povo ale-
dajiela mesma, que se sente maisTm menos aff- mão. Para Herder, na realidade, çada,GQvo, atra-
jada_do pòdèr^_das honras e que procura para yès de sua cultuia.própria, tem um destino^espe-
jsi_umaoutra^rrnT3è~lSglHmíarãdie social'.-^Êsten- cífico ajgalizar. Pois cada cultura exprime à sua
dida à "nação" alemã, ela participa da mesma in- maneira um aspecto da humanidade .^ua coh-

X,
f"-.
T

cepção de cultura caracterizada pela desconti- Estas conquistas do espírito não devem ser
nmdade^que não cxcluíaT^oentantõ, iimjTpõs^ confundidas com as realizações técnicas, ligadas
sível__c_omunicação_entre-Qsw£ovos, era baseada ao progresso industrial e emanadas de um raci-
em Uma outra filosofia da história (título de onalismo sem alma. De maneira cada vez mais
seu livro de 1774). dife_rent_e,da_filpsofía. do Ilu- marcada ao longo do século XIX, os autores ro-
minismoyigpr isso,Herder pode ser considerà3õ7 mânticos alemães opõem a cultura, expressão
comj ustiça, prccursõTdõ conceito relatívistai de da alma profunda de um povo, à civilização de-
"cultura"; "Foi Herder quem nos abriu os olhos finida a partir de então pelo progresso material
sobre as culturas" [Dumont, 1986,p. 134]. ligado ao desenvolvimento econômico e técni-
Depois da derrota na batalha de lena, em co. Esta idéia essencialista e particularista da
1806, e a ocupação das tropas de Napoleão, a cultura está em perfeita adequação com o con-
consciência alemã vai conhecer uma renovação ceito étnico-racial de nação - comunidade de in-
do nacionalismo que se expressará através de divíduos de mesma origem - que se desenvolve
uma acentuação da jnterpretação particularista- no mesmo momento na Alemanha e que servirá
da cjuitucLalerfla.jp esforço para definir o "cará- de fundamento à constituição do Estado-nação
ter alemão"se intensifica. Não_é_somente a origi- alemão [Dumont, 1991].
nalidade, na_singularidade absoluta, da cultura -—~ Na França, a evolução da palavra no sécu-
alemã que é afirmada, mas também sua supe-
_ L*___ __ „ '—'— . - . _*_
lo XDÍ e um pouco diferente. Um certo interes-
rioridadex Desta afirmação, certos ideólogos se nos círculos cultos pela filosofia e as letras
concluem que existe uma missão específica do alemãsÃêm pleno desenvolvimento contfíEüíli
povo alemão com relação à humanidade. talvez para ampliar a acepção da palavra france-
A idéia alemã de cultura evolui então pou- sa. "Cultura" se enriqueceu com uma dimensão
co no século XEK sob a influência do nacionalis- colejtivacnã^ej;eferiajnais^somente aocíesen-
mo. Ela se liga cada vez mais ao conceito de "na- jTOtvimgnto intelectual do ^indivíduo. Passou a
_ção". A cultura vem da alma, do gênio de um designar também um conjunto decaracteres
povo. A nação cultural precede e chama a nação próprios de um'ã~cl>mumdade, mas em um sen-
política. A-^eultura. aparece como unLcontunto tidoj»ej*almente vasto e impreciso. Encontra-se
de^conquistas Artísticas, intelectuais e morais expressões como "cultura francesa" (ou alemã)
que^ constituem o patrimônio" de uma .nação, ou "cultura da humanidade". ^Cultura" está mui-
considerado coriífi^dquirido definitivamente e to próxima da palavra "civilização' e às vezes é
fundador de sua unmacle. "X substituível por ela. ' " ~" --'
O conceito francês continua
-B«HSa335S™S?' -———~
marcado pela
---—a., i .^ franceses replicam pretendendo ser os cam-
idéia d e d f e dogênero humano,, Entre os explica' ò ^ "
séculos XVin e XIX na França, há a cpntinuida- clínio, no iníciõ^dõséculo XX, na França, do uso
de do pensamento universalista.iA cultura, no de "cultura" na sua acepção coletiva, pois a ide-
sentido coletivo, é antes de tudo a "cultura da ologia nacionalista francesa deveria se diferen-
humanidade". Apesar da influência alemã, a ciar claramente, até em seu vocabulário, de sua
idéia de unidade suplantada consciência_da_di- rival alemã. No entanto, o conflito das palavras
versidade: além das diferenças que sepodeobT se prolongará até depois do fim do conflito das
" ™ ^-""""""
jiervar entr^cultura alemã" e "cultura francesa^, armas, revelando uma oposição ideológica pro-
^há a unidade da "cultura humana".Em uma céle- funda que não se pode reduzir a uma simples
bre conferência ]pro1runciã!3ãnnãsorbonne em propaganda de guerra.
1882, O que é uma nação?, Ernest Renan afir- O debate íranco-alemão do século XVIII
mava sua convicção: "Antes da cultura francesa, ao século XX é /arquetípicoNdas duas concep-
da cultura alemã, da cultura italiana, existe a cul- ções de cultura, uma^parfJtTtfarista, a outra uni-
tura humana." versalista^que estão na base das duas maneiras
Os particularismos culturais são minimiza- de definir o conceito de cultura nas ciências so-
dos. Oslntelectuais nãp^^m^nr^cõncepção ciais contemporâneas.
defuma cultura nacional antes de tudo, assim
como recusam a
enjr£^cujtura[^eji^ ___ __
tá francj^^da-cultura-acompanha a concepção
,jelejtiva^de_naçãqí surgida na Revolução: perten-
cem à nação francesa, explicará Renan, todos os
que se reconhecem nela, quaisquer que sejam
suas origens.
No sécuÍQ_-XX,AJivalÍdade dos nacionalis-
_mos francês^e alemão^e^seujenfrentament^Bru^
talna gi^rlfS^delpl^^-S vão exacerbar o de-
^
bate ideológico £ntre as duas~íõlíÕêpcoêT^è
,_., ^._~n!-C'"~-í^»~ ... ,^ ^ f
* _

"cultura. As_i*--—~
palavras tornam-se^slògãns_utili?ados
—t—-— ~—*
como armas. Aos alemães, que dizem defender a
cultura (no sentido em que eles a entendem), os
A Invenção do Conceito
Científico de Cultura

Ao longo do século XIX, a adoção de um


procedimento positivo na reflexão sobre o ho-
mem e a sociedade resulta na criação da soci-
ologia e da etnologia como disciplinas científi-
cas. ^TetnÕíõiaí por sua vez, vai tentar dar uma

ensar a especifícfflã3ê"hllmana
ovos e dos"costuffi"esa'?To-

Iham ummesmo nosjA.jla.do: ojjostulado da uni-


dade do homgrn, hermcj.^^dji^^^os^íj^donimii-
nismoj Para eles, a dificuldade será então pensar
a diversidade na unidade
Mas com a questão colocada desta manei-
ra, eles não podem se contentar com uma res-
posta biológica. Se eles reivindicam uma nova
ciência, é para dar uma outra explicação à diver-
sidade humana, diferente da existência de "ra-
ças" diferentes. Dois caminhos vão ser explora-
dosjjirnultânea e CQ^correntemelTte^pcI^gtTró-
logos: oqucrpYivjl^ía a unjdad^ jmmmizaj._di-
versidade, reduzindo a uma diversidade "tempo-
«^^^BÈttKaeEHÍ^ l • !!•• •" •' "l l •.,11.. lm..t . --||||,,,*_

rária", segundo um esquema evolucionista; e o


Doutro caminho que, ao contrário, dãTtõda a inT"
portância à diversidade, preocup ando-se "enTcÍer
.. ^_^~^«or-ri^wi Mí_.-r—íi—E-*»,.. — -T-í
monstrarque ela não é contraditória com a uni- (as culturas), ern^
pãHícüfacístãT-
Um conceito vai emergir como instrumen-
to privilegiado para pensarjgste_rjrpblema e ex- JVIor c a concepção universalista
plorar as diferentes respostas j^ossiveis da cultura
ceito de "cultura". A palavra está em voga, mas é
utlfizãcia, ria maior parte dos casos, tanto na
França quanto na Alemanha, com um sentido rã é devida ao antropólogo britânico Edward
jiQrjnatiyo. OsJundadores^ da .,gtngjoj^a_yjojhe ,BurnettTylorI1832- ^ ™ ™
dar um j:onteúdoj3urjmiente descritivcr^Nãojig
trata, para eles,jgsim com^pjraos fílósoíbs, de Cultura e civilização, tomadus em seu sentido
dizer o aue deve ser a cultura, mas de descrever
--- 1 i..ll"l¥|——"="*«=<L— • ---- m^ -- •- •, , _ _..__^- 0,^,-f^. *^*í-tf - — ' etnológico mais vasto, são um conjunto comple-
oj^ue ela, é, t alcomo arweccjias_sociedad.es, xo que inclui o conhecimento, as crenças, a
humanas^. arte, a moral, o direito, os costumes e as outras
No entanto, a etnologia iniciante não esca- capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem
pará completamente às ambigüidades e não se enquanto membro da sociedade [1871, p- 1].
^livrará facilmente deJulgament!3,^de_yalor ou de
implicaçõesjdgslégiças^ Mas por se tratar de Esta definição, clara e simples, exige, no en-
uma disciplina que começava a se constituir e tanto, alguns comentários. Pode-se ver que ela
por isso mesmo não poderia exercer uma in-
IÍ£^OT^&J^^Sn^^^^SÍJ^^--Q^ÍFt'va e
fluência determinante no campo intelectual da ao normativa/Por outro lado, ela rompe com as
época, permitiu que uma reflexão sobre a ques- definições restritivas ^indmduatistas de cultür
tão da^cultura escapasse, em parte, à pròblemá- arpãraTyTolffit^ totalida-
ticado debate passional que opunha "cultura" e de da vida social do homem/ Ela se caracteriza
t
^Tri-iinM-nrnr-"-nu , i M inn -- —"m—— • C-pjLjmi» n «H hi^i
"civilização" e conservou uma relativa^ autono- tl

por sua dimensão coletiva. Enfim, a cultura é ad-


'"iiirii LJIIII »«iinin"TrT—T—™' ^^y.-..~- ir.'- ••**—>,
^mia epistemológica.» cjuirida e não depende da hereditariedade bioló-
A introdução do conceito de cultura se gica. No entanto, se a cultura
fará com desigual sucesso nos diferentes países origem ej>eu caráter são,
onde nasce a etnologia. Porjxitro lado, riãojia- conscientes.
verájejntendimento entre as diferentes "escolas" SeTylor é o primeiro a propor uma defini-
sobre a questão de saber se é preciso utilizar o ção conceituai de cultura, ele não foi exatamen-
conceito no singular (a Cultura) ou no plural, te o primeiro a utilizar o termo em etnologia.
Ele mesmo, no uso que faz desta palavra, foi in- rentes: segundo ele, em condições idênticas, o
fluenciado diretamente por etnólogos alemães espírito humano operava em toda a parte de
que lera e, sobretudo por Gustave Klemm que, maneira semelhante. Herdeiro do Iluminismo,
de acordo com a tradição romântica germânica, ele aderiu igualmente à concepção universalista
utilizava Kultur com um sentido objetivo, prin- da cultura dos filósofos do século XVIII.
cipalmente por se referir à cultura material. Ele tentava conciliar em uma mesma expli-
Para Tylor, a hesitação entre "cultura" e "ci- cação a evolução da cultura e sua universalida-
vilização" é característica do contexto da época. de. Em seu livro Cultura Primitiva, lançado em
Se ele privilegia finalmente "cultura", é por com- 1871 e logo em seguida traduzido em francês
preender que "civilização", mesmo se tomada (em 1876), obra considerada como o momento
em um sentido puramente descritivo, perde seu em que é fundada a etnologia enquanto ciência
caráter de conceito operatório desde o momen- autônoma, Tylor examina as "origens da cultura"
to em que é aplicado às sociedades"primitivas". (título do primeiro tomo) e os mecanismos de
A etimologia da palavra civilização remete à sua evolução. Ele foi o primeiro etnólogo a abor-
constituição das cidades e o sentido que a pala- dar efetivamente os fatos culturais sob uma óti-
vra tomou nas ciências históricas designa prin- ca geral e sistemática. Ele foi também o primei-
cipalmente as realizações materiais, pouco de- ro a se dedicar ao estudo da cultura em todos os
senvolvidas nessas sociedades. "Cultura", para tipos de sociedade e sob todos os aspectos, ma-
Tylor, na nova definição dada, tem a vantagem teriais, simbólicos e até corporais.
de ser uma palavra neutra que permite pensar Após um temporada passada no México,
toda a humanidade e romper com uma certa Tylor elaborou seu método de estudos da evolu-
abordagem dos "primitivos11 que os transforma- ção da cultura pelo exame das "sobrevivèncias"
va em seres à parte. culturais. No México, ele pudera observar a coe-
Não é surpreendente que a invenção do xistência de costumes ancestrais e traços cultu-
conceito deva-se a Edward Tylor, livre pensador, rais recentes. Pelo estudo das "sobrevivèncias",
para quem sua condição minoritária de quaker ele pensava que deveria ser possível retornar ao
fechara as portas da universidade inglesa. Ele ti- conjunto cultural original e reconstituí-lo. Gene-
nha fé na capacidade do homem de progredir e ralizando este princípio metodológico, chegou
partilhava dos postulados evolucionistas de seu à conclusão de que a cultura dos povos primiti-
tempo. Ele não duvidava tampouco da unidade vos contemporâneos representava globalmente
psíquica da humanidade, que explicava as simi- a cultura original da humanidade: ela era uma
litudes observadas em sociedades muito dife- sobrevivência das primeiras fases da evolução
cultural, fases pelas quais a cultura dos povos ci- de cultural, rara na sua época. Além do mais, sua
vilizados teria passado necessariamente. concepção do evolucionismo não era nada rígi-
O método de exame das sobrevivências le- da: ele não estava totalmente persuadido que
vava logicamente à adoção do método compara- houvesse um paralelismo absoluto na evolução
tivo que lyior introduziu então na etnologia. cultural das diferentes sociedades. Por isso, ele
Para ele, o estudo das culturas singulares não considerava também, em certos casos, a hipóte-
poderia ser feito sem a comparação entre elas, se difusionista.Uma simples similitude entre tra-
pois estavam ligadas umas às outras em um mo- ços culturais de duas culturas diferentes não era
vimento de progresso cultural. Pelo método suficiente, segundo ele, para provar que elas es-
comparativo, ele tinha como objetivo estabele- tivessem situadas no mesmo nível da escala de
cer ao menos uma escala grosseira dos estágios desenvolvimento cultural: poderia ter havido
da evolução da cultura.Tylor desejava provar a uma difusão de uma em direção à outra. De uma
continuidade entre a cultura primitiva e a cultu- maneira geral, fiel a seu desejo de objetividade
ra mais avançada. Contra os que estabeleciam científica, ele se mostrava prudente em suas in-
uma ruptura entre o homem selvagem e pagão terpretações.
e o homem civilizado e monoteísta, ele se esfor- Devido a sua obra e suas preocupações me-
çava para demonstrar o elo essencial que os todológicas, Edward Tylor é considerado, com
unia e a inevitável caminhada do selvagem em justiça, o fundador da antropologia britânica. É
direção ao civilizado. Entre primitivos e civiliza- aliás a ele que se deve o reconhecimento desta
dos, não há uma diferença de natureza mas sim- ciência como disciplina universitária: eíe se tor-
plesmente de grau de avanço no caminho da naria em 1883, na Universidade de Oxford, o pri-
cultura. Tylor combateu com ardor a teoria da meiro titular de uma cátedra de antropologia na
degenerescência dos primitivos, inspirada por Grã Bretanha.
teólogos que não podiam imaginar que Deus ti-
vesse criado seres tão "selvagens", teoria que Franz Boas e a concepção particuiarista
permitia não reconhecer nos primitivos, seres de cultura
humanos como os outros. Para ele, ao contrário,
todos os humanos eram totalmente seres de cul- Se Tylor é o "inventor" do conceito científi-
tura, e a contribuição de cada povo para o pro- co de cultura, Boas será o primeiro antropólogo
gresso em digna de estima. a fazer pesquisas in situ para observação direta
Pode-se perceber que o evolucionismo de e prolongada das culturas primitivas. Neste sen-
Tylor não excluía um certo sentido da relativida- tido, é ele o inventor da etnografía.
Franz Boas (1858 - 1942) era oriundo de ção de "raça". Em um estudo de grande reper-
uma família judia alemã de espírito liberal. Sen- cussão, feito sobre uma população de imigran-
sível à questão do racismo, ele mesmo fora víti- tes chegados aos Estados Unidos entre 1908 e
ma do anti-semitismo de alguns de seus colegas 1910 (no total 17 821 pessoas), demonstrou, re-
de universidade. Estudou em diversas universi- correndo ao método estatístico, a extrema rapi-
dades da Alemanha, primeiramente cursando fí- dez (o espaço de uma geração apenas) da varia-
sica, depois matemática e finalmente geografia ção dos traços morfológicos (em particular a
(física e humana). Esta última disciplina o levou forma do crânio) sob a pressão de um ambiente
à antropologia. Em 1883 - 1884, ele participou novo. Segundo ele, o conceito pseudocientífico
de uma expedição entre aos Esquimós da terra de "raça humana", concebida como um conjun-
de Baffín. Ele partiu como geógrafo, com pre- to permanente de traços físicos específicos de
ocupações de geógrafo (estudar o efeito do um grupo humano, não resiste a um exame rigo-
meio físico sobre a sociedade esquimó) e perce- roso. As pretensas "raças" não são estáveis, não
beu que a organização social era determinada há caracteres raciais imutáveis. É então impossí-
mais pela cultura do que pelo ambiente físico. vel definir uma "raça" com precisão, mesmo re-
Retornou à Alemanha decidido a se consagrar, a correndo ao chamado método das médias. A ca-
partir de então, principalmente à antropologia. racterística dos grupos humanos no plano físico
Em 1886, Boas partiu novamente para a é a sua plasticidade, sua instabilidade, sua mesti-
América do Norte, desta vez para realizar pes- çagem. Por suas conclusões, ele antecipava as
quisas etnográficas de campo sobre os índios da descobertas posteriores da genética das popula-
costa noroeste, na Colúmbia Britânica. De 1886 ções humanas.
a 1889, passou longas temporadas entre os Por outro lado, Boas também se dedicou a
Kwakiutl, os Chinook e os Tsimshian. Em 1887, mostrar o absurdo da idéia de uma ligação entre
decidiu estabelecer-se nos Estados Unidos e traços físicos e traços mentais, dominante na
adotar a nacionalidade americana. época e implícita na noção de "raça". Para ele, era
Toda a obra de Boas é uma tentativa de evidente que os dois aspectos dependiam de
pensar a diferença. Para ele, a diferença funda- análises completamente diferentes. E, precisa-
mental entre os grupos humanos é de ordem mente por se opor a esta idéia, ele adotou o con-
cultural e não racial. Formado em antropologia ceito de cultura que lhe parecia o mais apropria-
física, manifestou um certo interesse por esta do para dar conta da diversidade humana. Para
disciplina, mas dedicou-se a desmontar o que ele, não há diferença de "natureza" (biológica)
constituía, na época, sua conceito central: a no- entre primitivos e civilizados, somente diferen-
ças de cultura, adquiridas e logo, não inatas. É cla- rigor científico, ele recusava qualquer generali-
ro que para Boas, contrariamente à idéia de mui- zação que não pudesse ser demonstrada empi-
tos, o conceito de cultura não funciona como ricamente. Cético, mais analista do que teórico,
um eufemismo do conceito de "raça", pois ele ele nunca teve a ambição de fundar uma esco-
o construiu precisamente para opor-se a esta la de pensamento. \
idéia. Ele foi um dos primeiros cientistas sociais Pelo contrário, ele ficará na história da an-
a abandonar o conceito de "raça" na explicação tropologia como fundador do método indutivo
dos comportamentos humanos. e intensivo de campo. Boas concebia a etnolo-
Ao contrário de Tylor, de quem ele havia gia como uma ciência de observação direta: se-
no entanto tomado a definição de cultura, Boas gundo ele, no estudo de uma cultura particular,
tinha como objetivo o estudo "das culturas"e tudo deve ser anotado, até o detalhe do detalhe.
não "da Cultura". Muito reticente em relação às Na sua preocupação de contato com a realida-
grandes sínteses especulativas, em particular à de, não apreciava muito o recurso a informan-
teoria evolucionista unilinear então dominante tes. O etnólogo, se ele quer conhecer e com-
no campo intelectual, apresentou em uma co- preender uma cultura, deve aprender a língua
municação de 1896,o que considerava os "limi- em uso. E, ao invés de apenas realizar entrevis-
tes do método comparativo em antropologia". tas formais em maior ou menor grau - a situação
Ele recusa o comparatismo imprudente da de entrevista pode modificar as respostas -, deve
maioria dos autores evolucionistas. Para ele, ha- estar atento principalmente a tudo o que se diz
via pouca esperança de descobrir leis universais nas conversas "espontâneas", e acrescenta, até
de funcionamento das sociedades e das culturas "escutar atrás das portas".Tudo isso supõe que
humanas e ainda menos chance de encontrar se permaneça por longo tempo junto ã popula-
leis gerais da evolução das culturas. Ele fez uma ção cuja cultura está sendo estudada.
crítica radical do chamado método de "periodi- Em certos aspectos, Boas é o inventor do
zação" que consiste em reconstituir os diferen- método monográfico em antropologia. Mas,
tes estágios de evolução da cultura a partir de como ele levava ao extremo sua preocupação
pretensas origens. com o detalhe e exigia um conhecimento
Boas duvidava também, e pelas mesmas exaustivo da cultura estudada antes de qualquer
ratões, das teses difusionistas baseadas em re- conclusão geral, não realizou nenhuma mono-
construções pseudo-históricas. De maneira ge- grafia no sentido pleno do termo. Ele chegava
ral, ele rejeitava qualquer teoria que pretendes- mesmo a pensar que toda descrição sistemática
se poder explicar tudo. Preocupando-se com o de uma cultura comporta necessariamente uma
dose de especulação. E era precisamente isso quisadores. Para ele, cada cultura representava
que ele não se permitia fazer, apesar de ter ade- uma totalidade singular e todo seu esforço con-
rido à idéia de que cada cultura forma um todo sistia em pesquisar o que fazia sua unidade. Daí
coerente e funcional. sua preocupação de não somente descrever os
Devemos a Boas a concepção antropológi- fatos culturais, mas de compreendê-los juntan-
ca do "relativismo cultural", mesmo que não te- do-os a um conjunto ao qual eles estavam liga-
nha sido ele o primeiro a pensar a relatividade dos. Um costume particular só pode ser explica-
cultural nem o criador desta expressão que apa- do se relacionado ao seu contexto cultural.Tra-
recerá apenas mais tarde. Para ele, o relativismo ta-se assim de compreender como se formou a
cultural é antes de tudo um princípio metodoló- síntese original que representa cada cultura e
gico. A fim de escapar de qualquer forma de et- que faz a sua coerência.
nocentrismo no estudo de uma cultura particu- Cada cultura é dotada de um "estilo" parti-
lar, recomendava abordá-la sem a prtori, sem cular que se exprime através da língua, das cren-
aplicar suas próprias categorias para interpretá- ças, dos costumes, também da arte, mas não ape-
la, sem compará-la prematuramente a outras cul- nas desta maneira. Este estilo, este "espírito" pró-
turas. Ele aconselhava a prudência, a paciência, prio a cada cultura influi sobre o comportamen-
os "pequenos passos" na pesquisa. Tinha cons- to dos indivíduos. Boas pensava que a tarefa do
ciência da complexidade da cada sistema cultu- etnólogo era também elucidar o vínculo que
ral e julgava que somente o exame metódico de liga o indivíduo à sua cultura.
um sistema cultural em si mesmo poderia che- Sem dúvida há um vínculo estreito entre o
gar ao fundo de sua complexidade. relativismo cultural como princípio metodológi-
Além do princípio metodológico, o relati- co e como princípio epistemológico levando a
vismo cultural de Boas implicava também uma uma concepção relativista da cultura. A escolha
concepção relativista da cultura. De origem ale- do método de observação sem preconceito,
mã, formado em diversas universidades alemãs, prolongada e sistemática, de uma entidade cul-
ele não poderia não ter sido influenciado pela tural determinada leva progressivamente a con-
noção partícularista alemã de cultura. Para ele, siderar esta entidade como autônoma. A trans-
cada cultura é única, específica. Sua atenção era formação de uma etnografia de viajantes "que
espontaneamente voltada para o que fazia a ori- apenas passam" em uma etnografia de estada de
ginalidade de uma cultura. Quase nunca, antes longa duração modificou completamente a
dele, as culturas particulares tinham sido objeto apreensão das culturas particulares.
de tal tratamento autônomo por parte dos pes-
No fim da sua vida, Boas insistia em outro A atitude assim descrita parece bem universal,
aspecto do relativismo cultural. Um aspecto que sob formas diversas segundo as sociedades.
poderia talvez ser um princípio ético que afirma Como escreveu Lévi-Strauss, os homens tem
a dignidade de cada cultura e exalta o respeito sempre dificuldade de encarar a diversidade
e a tolerância em relação a culturas diferentes. das culturas como um "fenômeno natural, resul-
Na medida em que cada cultura exprime um tante das relações diretas ou indiretas entre as
modo único de ser homem, ela tem o direito à sociedades" [1952] .A maiocia-dos povos chama-
estima e à proteção, se estiver ameaçada. dos de "primitivos" considera que a humanida-
Considerando a obra de Boas em sua rica de acaba em suas fronteiras cínicas ou lingüís-
diversidade e nas inúmeras hipóteses sobre os ticas e é por isso que eles se denominam fre-
fatos culturais que ela propõe, descobre-se nela qüentemente usando um etnônimo que signifi-
o anúncio de toda a antropologia cultural norte- ca, segundo o caso, ''os homens", "os excelen-
americana que virá a ser desenvolvida. tes" ou ainda "os verdadeiros", em oposição aos
estrangeiros que não são reconhecidos como
seres humanos completos.
Quanto às sociedades chamadas "históricas",
Ftnoeentiismo elas têm a mesma dificuldade para conceber a
idéia da unidade da humanidade na diversidade
A palavra foi criada pelo sociólogo americano
cultural.
Willian G. Summer e apareceu pela primeira O mundo greco-romano antigo qualificava de
vez em 1906 em seu livro Folkways. Segundo "bárbaros "todos os que não participavam da
sua definição "o etnoccntrismo é o termo técni- cultura greco-romana. Em seguida, na Europa
co para esta visão das coisas segundo a qual Ocidental, o termo "selvagem" será utilizado no
nosso próprio grupo é o centro de todas as coi- mesmo sentido, para jogar para fora da cultura
sas e todos os outros grupos são medidos e ava- e, em outras palavras, da natureza, os que não
liados em relação a ele [...]. Cada grupo alimen- pertenciam à civilização ocidental. Com esta
ta seu próprio orgulho e vaidade, considera-se atitude, os "civilizados" se comportam então
superior, exalta suas próprias divindades e olha exatamente como os "bárbaros" ou os "selva-
com desprezo as estrangeiras. Cada grupo pen- gens". No final das contas, não estaríamos no
sa que seus próprios costumes (Folkways) são direito de pensar, como Lévi-Strauss que "o bár-
os únicos válidos e se ele observa que outros baro é primeiramente o homem que acredita
grupos têm outros costumes, encara-os com na barbárie" [1952]?
desdém." (citado por Simon [1993, p. 57])
O etnocentrismo pode tomar formas extremas mente, este pioneirismo vai provocar um atraso
de intolerância cultural, religiosa c até política. na fundação da etnologia francesa. Em um pri-
Pode também assumir formas sutis e racionais. meiro momento, pode-se dizer que a sociologia
No domínio das ciências sociais, pode-se agir ocupa todo o espaço da pesquisa-sobre as soci-
como se houvesse o reconhecimento do fenô- edades humanas. A etnologia - seria mais corre-
meno da diversidade cultural e ao mesmo tem- to dizer a etnografía - está então reduzida ao sta-
po conceber a variedade das culturas como tus de ramo anexo da sociologia. A "questão so-
uma simples expressão das diferentes etapas de cial" domina e oblitera a "questão cultural".
um único processo de civilização. Deste modo,
o evolucionismo do século XIX, ao imaginar os Uma constatação: a ausência do
"estágios" de um desenvolvimento social uniii- conceito cientifico de cultura no
near, permitia a classificação das culturas parti- início da pesquisa francesa
culares em uma mesma escala de civilização. A
diferença cultural, nesta perspectiva, era so- Na França, no século XIX e no começo do
mente uma aparência: ela estaria condenada a século XX, nas ciências sociais, os pesquisado-
desaparecer, cedo ou tarde. res se conformavam com o uso lingüístico en-
Em ruptura total com esta concepção, a antro- tão dominante e usavam correntemente o ter-
pologia cultural introduz a idéia de relatividade mo "civilização", já consagrado pelos historia-
das culturas e de sua impossível hierarquização dores e praticamente nunca o termo "cultura"
a priori . E ela recomenda, para escapar a qual- num sentido coletivo e descritivo. Apesar de es-
quer etnocentrismo na pesquisa, a aplicação do tarem informados sobre os trabalhos científicos
método de observação participante. alemães, eles recusavam geralmente a tradução
de Kultur por sua homóloga francesa e prefe-
riam "civilização". Do mesmo modo, a obra de
Tylor, Primitive Culture teve uma certa reper-
A idéia de cultura entre os fundadores cussão na comunidade científica na França, mas
da etnologia francesa o título da versão francesa foi: La Civttisation
Primitive (A Civilização Primitiva).
Em relação a seus vizinhos, a França mani- O termo "cultura" para os pesquisadores
festa uma originalidade no desenvolvimento das franceses continuava geralmente ligado a sua
ciências sociais. É na França que nasce a socio- acepção tradicional no campo intelectual naci-
logia como disciplina científica. Mas, paradoxal- onal: ele se referia unicamente ao campo do es-
pírito e só era compreendido em um sentido eli- em relação à sociologia e constrói seus próprios
tista restrito e em um sentido individualista (a instrumentos conceituais.A confrontação direta
cultura de uma pessoa "culta"). e prolongada com a alteridade e a pluralidade
É evidente que o contexto ideológico pró- das culturas favorece o surgimento do conceito
prio da França do século XIX bloqueou o surgi- de cultura através da introdução de um certo re-
mento do conceito descritivo de cultura. So- lativismo cultural.
ciólogos e etnólogos estavam eles mesmos mui- Mas este surgimento do conceito se dá
to impregnados do universalismo abstrato do apenas progressivamente na França e, inclusive
Iluminismo para pensar a pluralidade cultural na literatura etnológica, "civilização" resistirá e
nas sociedades humanas dissociada da referên- chegará, às vezes, a ser utilizada indistintamente
cia à "civilização". É certo que o contexto histó- com o termo cultura, até os anos sessenta. A
rico não levava a uma interrogação sobre esta obra clássica de Ruth Benedict, Pattems of
questão. A epopéia colonial se fazia em nome da Culture seria traduzido em 1950 com o título
missão"civüizatória" da França. A rivalidade e os (infeliz sob qualquer ponto de vista) de Amos-
conflitos com a Alemanha opunham dois na- tras de civilizações.
cionalismos que se serviam das noções de
Kultur e de "civilização" como armas de propa- Durkheim e a abordagem imitam
ganda. Enfim, o Estado-nação francês, confronta- dos fatos de cultura
do ao rápido desenvolvimento da imigração es-
trangeira no último terço do século XIX, adota- Emile Durkheim (1858 - 1917), por uma
va uma política cultural claramente assimila- curiosa coincidência, nasceu no mesmo ano
cionista destas populações, de acordo com o que Franz Boas. Como Boas na antropologia
modelo centralista que já havia produzido seus americana, Durkheim ocupará uma posição
efeitos sobre as culturas regionais do país. "fundadora" na antropologia francesa. Mais so-
Na etnologia francesa iniciante, o que cha- ciólogo do que etnólogo, Durkheim não deixa-
ma a atenção é a ausência de conceito de cultu- va, no entanto, de desenvolver uma sociologia
ra. Seria necessário atingir o desenvolvimento com orientação antropológica. De fato, tinha
de uma etnologia de campo, nos anos trinta, como ambição compreender o social em todas
para que seu uso começasse a aparecer, espe- as suas dimensões e sob todos os seus aspectos,
cialmente entre os pesquisadores africanistas, inclusive na dimensão cultural, através de todas
como Mareei Griaule ou Michel Leiris.A etnolo- as formas de sociedade.
gia adquire naqueles anos uma certa autonomia
Com a criação em 1897 da revista O Ano nha uma estreita colaboração, era ainda mais ex-
Sociológico, Durkheim contribuiu para fundar a plícito desde 1901:
etnologia francesa e assegurar seu reconheci-
mento nacional e internacional. A revista publi- A civilização de um povo não c nada além de
cou» em suas sucessivas edições, numerosas mo- um conjunto de seus fenômenos sociais; e falar
nografias etnográficas e diversas resenhas de de povos incultos, "sem civilização", de povos
obras etnológicas, em geral estrangeiras. "naturais" (Naturvõlker), é falar de coisas que
Durkheim não utilizava quase nunca o não existem (O Ano Sociológico, tomo IV,
conceito de cultura. Em sua própria revista,"cul- 1901,p. 141).
tura" em língua estrangeira era quase sempre
traduzida por "civilização71. Mas, se ele recorria O famoso artigo, escrito por Durkheim e
apenas excepcionalmente ao conceito de cultu- Mauss em 1902, Algumas formas primitivas de
ra, não era por se desinteressar pelos fenôme- classificação, pretendia demonstrar que os pri-
nos culturais. Para ele, os fenômenos sociais têm mitivos são perfeitamente aptos para o pensa-
necessariamente uma dimensão cultural pois mento lógico. Durkheim não mudara a respeito
são também fenômenos simbólicos. deste ponto. Mais tarde, em As Formas elemen-
Durkheim contribuiu muito para extrair tares da vida religiosa, ele confirmará sua posi-
do conceito de civilização os pressupostos ção inicial, recorrendo pela primeira vez à no-
ideológicos implícitos em maior ou menor grau. ção de cultura:
Em uma "Nota sobre a noção de civilização", re-
digida conjuntamente com Mareei Mauss e lan- [...], o pensamento conceituai é contemporâ-
çada em 1913, ele se esforçava para propor uma neo da humanidade. Nós nos recusamos então
concepção objetiva e não normativa da civiliza- a vê-lo como um produto de uma cultura tardia
ção que incluía a idéia da pluralidade das civili- em maior ou menor grau [1912].
zações sem enfraquecer, com isso, a unidade do
homem. Para ele, não havia dúvida de que a hu- Se Durkheim partilhava de certos aspectos
manidade é uma, que todas as civilizações parti- da teoria evolucionista, ele recusava, no entan-
culares contribuem para a civilização humana. to, suas teses mais redutoras e sobretudo a tese
Ele não concebia diferenças de natureza entre do esquema unilinear de evolução que seria co-
primitivos e civilizados. Mauss, que partilhava mum a todas as sociedades. Em uma resenha de
do pensamento de Durkheim com quem manti- um livro alemão que tratava da "psicologia dos
povos", ciência então muito em voga na Alema-

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nha, Durkheim escreveria, em desacordo com a Anos mais tarde, em 1929, em um estilo
tese central da obra que apresentava a idéia de mais polêmico e mais explícito, Mauss prolonga-
um futuro idêntico para toda a humanidade: ria o pensamento de Durkheim, em uma confe-
rência sobre "as civilizações":
Nada nos autoriza a acreditar que os diferentes
tipos de povos vão todos no mesmo sentido; al- Os homens de Estado, os filósofos, o público, e
guns seguem caminhos muito diversos. O de- sobretudo os jornalistas, falam da civilização.
senvolvimento humano deve ser ilustrado não Em período nacionalista, a civilização, é sem-
sob a forma de uma linha em que as sociedades pre a sua cultura, a de sua nação, pois eles ig-
viriam se colocar umas depois das outras como noram geralmente a civilização dos outros. Em
se as mais avançadas não fossem senão a conti- período racionalista e geralmente universalista
nuação e a seqüência das mais rudimentares, e cosmopolita [...] a Civilização constitui uma
mas como uma árvore com ramos múltiplos e espécie de estado de coisas ideal e real ao mes-
divergentes. Nada nos diz que a civilização de mo tempo, racionai e natural simultaneamente,
amanhã será apenas o prolongamento da exis- causai e final num mesmo momento, que seria
tente atualmente para uma mais elevada; talvez, liberado aos poucos por um progresso indubi-
ao contrário, ela terá como agentes povos que tável [...].
nós julgamos inferiores como a China, por Esta perfeita essência nunca foi nada além de
exemplo, e que lhe darão uma direção nova e um mito, de uma representação coletiva. Esta
inesperada (OAno Sociológico, tomo XII, 1913, crença universalista e nacionalista ao mesmo
p. 60-61). tempo é um traço de nossas civilizações inter-
nacionais e nacionais do Ocidente Europeu e
O pensamento de Durkheim era então im- da América não indígena [1930, p. 103 - 104].
pregnado de uma grande sensibilidade em rela-
ção à relatividade cultural, que provinha de sua Para manter sua própria lógica, Durkheim
concepção geral da sociedade e da normalidade chegou a privilegiar um uso flexível da noção
social. Ele abordava esta questão adotando uma de civilização que ele fazia funcionar como um
atitude relativista: a normalidade é relativa a cada conceito "de geometria variável". Na Nota sobre
sociedade e ao seu nível de desenvolvimento. a noção de civilização, escrita com Mauss, ele
Sua concepção da normalidade pretendia ser pu- se dedicava a tirar a noção da generalidade im-
ramente descritiva e baseada em uma espécie de precisa que a caracterizava então e a dar-lhe
"média" própria a cada tipo de sociedade. uma conteúdo conceituai operatório:"a" civiliza-
cão não se confunde com a humanidade e seu Contra as teses individualistas que ele refu-
futuro, tampouco com uma nação em particu- tava por serem dominadas pelo psicologismo,
lar; o que existe, o que se pode observar e estu- Durkheim afirmava a prioridade da sociedade
dar, são diferentes civilizações. E é preciso en- sobre o indivíduo. Sua concepção dos fenôme-
tender "civilização" como um conjunto de nos era feita, no entanto, do mesmo holismo me-
todológico. Em As Formas Elementares da Vida
fenômenos sociais que não estão ligados a um Religiosa, sobretudo, mas desde O Suicídio
organismo social particular; estes fenômenos se (1897), ele desenvolvia uma teoria da "consciên-
estendem sobre áreas que ultrapassam um ter- cia coletiva" que é uma forma de teoria cultural.
ritório nacional, ou ainda se desenvolvem em Para ele, existe em todas as sociedades uma
períodos de tempo que ultrapassam a história "consciência coletiva", feita das representações
de uma só sociedade [1913, p. 47]. coletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimen-
tos comuns a todos os seus indivíduos. Esta
Esta definição levava à teoria difusionista a consciência coletiva precede o indivíduo, im-
noção de "área"e ao mesmo tempo, introduzia na põe-se a ele, é exterior e transcendente a ele: há
teoria evolucionista a noção de "período", mes- descontinuidade entre a consciência coletiva e
mo que Durkheim se opusesse às reconstítuições a consciência individual, e a primeira é "supe-
históricas imprecisas das duas escolas. Preocupa- rior" à segunda, por ser mais complexa e inde-
do em fundar um método rigoroso de estudo dos terminada. É a consciência coletiva que realiza a
fatos sociais, ele apenas reconhecia como válido unidade e a coesão de uma sociedade.
o procedimento empírico e recusava qualquer As hipóteses de Durkheim sobre a cons-
forma de comparatismo especulativo. ciência coletiva seguramente exerceram uma
Não se deve procurar junto a Durkheim influência sobre a teoria da cultura como "super
uma teoria sistemática da cultura. Sua reflexão organismo" de Alfred Kroeber [1917]. Pode-se
sobre a cultura não forma um conjunto unifica- também fazer uma aproximação entre a noção
do.A preocupação central de sua obra era deter- de consciência coletiva - à qual Durkheim atri-
minar a natureza do vínculo social. No entanto, buía características espirituais - e as noções de
sua concepção da sociedade como totalidade pattern cultural e de "personalidade básica" pró-
orgânica determinava sua concepção de cultura prias aos antropólogos culturalistas americanos.
ou de civilização: para ele, as civilizações consti- O próprio Durkheim utilizava às vezes a expres-
tuem "sistemas complexos e solidários". são "personalidade coletiva", em um sentido
muito próximo da "consciência coletiva".
Se o conceito de cultura é praticamente Desde 1910, com o livro As Funções Men-
ausente da antropologia de Durkheim, isto não tais nas Sociedades Inferiores, Lévy-Bruhl colo-
o impediu de propor interpretações dos fenô- ca a diferença cultural no centro de sua refle-
menos freqüentemente chamados de "culturais" xão. Ele se interroga sobre as diferenças de
pelas ciências sociais. "mentalidade" que podem existir entre os po-
vos. Esta noção de "mentalidade" não era muito
Lévy-Bruhl e a abordagem distante da acepção etnológica de "cultura", ter-
diferencial mo que ele praticamente não utilizava.
Todo esforço de Lévy-Bruhl consistia em
Ainda que a obra de Lucien Lévy-Bruhl refutar a teoria do evolucionismo unilinear e a
(1857 - 1939) não tenha tido a mesma repercus- tese do progresso mental. De uma maneira ge-
são ou exercido a mesma influência que a obra ral, ele se opunha à própria idéia de "primiti-
de Durkheim, pode-se observar que na seu iní- vos", ainda que ele mesmo tivesse utilizado este
cio, através de dois de seus fundadores, a etno- termo várias vezes, devido ao contexto da épo-
logia francesa hesitava entre duas concepções ca. Para ele, os indivíduos das sociedades de cul-
de cultura, uma unitária, a outra, diferencial. A tura oral não eram "crianças grandes" que teriam
confrontação destas duas concepções em um o mesmo tipo de interrogações que os "civiliza-
debate científico às vezes acirrado, contribuiria dos", vistos como adultos, dando a estas ques-
muito para o desenvolvimento da etnologia tões respostas ingênuas, "infantis". Na Mentali-
francesa. É legítimo considerar Lévy-Bruhl como dade Primitiva, ele afirmava:
um dos fundadores da disciplina etnológica na
França. De fato, ele foi um dos primeiros pesqui- [Sc] a atividade mental dos primitivos [não for
sadores a consagrar uma grande parte de seus maisj interpretada a priori como uma forma ru-
dimentar da nossa, como infantil e quase pato-
trabalhos ao estudo das culturas primitivas.
Além do mais, no plano institucional, é a ele que lógica. [...] ela aparecera ao contrário, como
devemos a criação, em 1925, do Instituto de Et- normal nas condições em que é exercida, como
nologia da Universidade de Paris, onde será for- complexa e desenvolvida à sua maneira [1922,
mada a primeira geração de etnólogos de cam- p.15-16].
po sob a responsabilidade de Mareei Mauss e de
Paul Rivet, a quem ele confiou o secretariado ge- Lévy-Bruhl contestava também uma certa
ral do Instituto. concepção de unidade do psiquismo humano
que implicava um modo único de funcionamen- buição. Pode-se então perguntar as razões que
to. Ele não partilhava das teses de Tylor sobre o levaram esta contribuição a ser mal compreen-
animismo dos primitivos (paraTylor, o animismo dida, deturpada, rejeitada e finalmente esqueci-
constituía a forma mais antiga de crença religio- da em sua maior parte.
sa, isto é, a crença na existência e na imortalida- Dominique Merllié [1993] responde a es-
de da alma e, logo, em seres espirituais, baseada ta pergunta e propõe uma nova leitura, sem o
na interpretação dos sonhos): ele criticava sua a príori, deste autor. Contrariamente à apresen-
insistência excessiva para demonstrar o caráter tação que é comumente feita de sua obra, ela
"razoável" desta crença. Pelas mesmas razões, ele não é etnocentrista. Foi assim qualificada para
discordava de Durkheim, criticando-o por que- ser mais desacreditada enquanto todo o esforço
rer provar que os homens têm, em todas as so- de Lévy-Bruhl consistia justamente em uma ten-
ciedades, uma mentalidade "lógica" que obede- tativa de pensar a diferença a partir de catego-
ceria necessariamente às mesmas leis da razão. rias adequadas. Mas esta tentativa entrava em
Por outro lado, Durkheim não admitia a contradição com o universalismo (abstrato) do
distinção que Lévy-Bruhl estabelecia entre Iluminismo e seus princípios éticos que serviam
"mentalidade primitiva" e "mentalidade civiliza- de referência à maioria dos intelectuais france-
da". Mas a crítica que ele fazia em 1912, em sua ses do início do século.
resenha, para O Ano Sociológico, do primeiro li- O que chamamos de tese de Lévy-Bruhl
vro de Lévy-Bruhl sobre esta questão, foi marca- era apresentada por ele mesmo como uma "hi-
da por um evolucionismo bastante redutor: pótese de trabalho", como nos lembra Merllié.
Se ele tentava dar conta da diferença das menta-
Estas duas formas de mentalidade humana, por lidades, isto não o impedia de afirmar a unidade
mais diferentes que sejam, ao invés de derivar psíquica humana. Para ele, a unidade da humani-
de origens diferentes, nasceram uma da outra e dade era mais fundamental que a diversidade. O
são dois momentos de uma mesma evolução. conceito de "mentalidade primitiva" ("pré-lógi-
ca") não era nada além de um instrumento para
Estas discordáncias entre Lévy-Bruhl e pensar a diferença. Seu procedimento, que se
seus pares eram apenas a expressão de um de- servia explicitamente das pesquisas de campo,
bate científico muito animado sobre a questão era tudo, exceto dogmático.
da alteridade e da identidade culturais.A este de- Aliás, segundo este autor, a diferença não
bate, Lévy-Bruhl trouxe uma importante contri- exclui a comunicação entre os grupos huma-
nos, que continua possível devido ao fato de Á noção de "mentalidade" terá maior su-
pertencerem a uma humanidade comum. Não cesso junto aos historiadores, sobretudo os da
há então um corte absoluto entre as diferentes escola conhecida como "desAnnales". É verda-
"mentalidades", que não são feitas de lógicas de que esta noção foi utilizada por eles em uma
contraditórias. O que difere entre os grupos são acepção geralmente menos globalizante e me-
os modos de exercício do pensamento e não nos psicologizante, já que em geral, eles estavam
suas estruturas psíquicas profundas . interessados na diferenciação social em uma
Lévy-Bruhl pensava também que "mentali- mesma sociedade.
dade pré-lógica" e "mentalidade lógica" não são
incompatíveis e coexistem em todas as socieda-
des; mas a preeminência de uma sobre a outra
pode variar segundo os casos, o que explica a di-
versidade de culturas. Recorrendo ao conceito
de "mentalidade", ele não afirmava que os siste-
mas de representações e os modos de raciocí-
nio no interior de uma mesma cultura formam
um conjunto perfeitamente estável e homogê-
neo. Mas pensava indicar assim a orientação ge-
ral de uma dada cultura.
O conceito de "mentalidade" não chegará a
se impor entre os etnólogos, talvez por causa das
críticas injustas contra Lévy-Bmhl que não estão
dissociadas das críticas dirigidas mais tarde aos
culturalistas, como observa Dominique Merllié:

Há talvez alguma coisa de comparável na for-


ma de descrédito um pouco sistemático que
atingiu os trabalhos dos "culturalistas". Lévy-
Bruhl esboça, aliás, análises muito próximas
das dos antropólogos culturalistas [,..] [1993,
nota 26,p.7J-

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