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PEDAGOGIA

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Aula 11: Pré-História da Escrita
Profa. Dra. Bruna Carvalho

Alfabetização Sob o Enfoque Histórico-Crítico:


o desenvolvimento da linguagem escrita
Profa. Dra. Bruna Carvalho

Introdução
Nesta aula você conhecerá as proposições teóricas acerca do desenvolvimento da língua
escrita na perspectiva da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica.
É importante destacar que, nesta perspectiva teórica, ler e escrever são capacidades
dependentes de um processo mais amplo, isto é, o desenvolvimento do psiquismo (MARTINS,
CARVALHO & DANGIÓ, 2018). Deste modo, “[...] a alfabetização, de partida, é uma
conquista condicionada pelo processo de formação de um psiquismo complexo, tipicamente
humano, cujo principal atributo se revela na capacidade de abstração” (Idem, p. 339).
Desse modo, os estudos de Luria (2014) e Vygotski (2012; 2014) indicam que “o êxito
nessa aquisição não é um dado circunscrito ao momento no qual se ensina a criança a escrever
nem subjugado meramente às estratégias para alfabetização, mas profundamente dependente
daquilo que eles denominaram como pré-história da linguagem escrita” (MARTINS,
CARVALHO & DANGIÓ, 2018, p. 342).

Escrita: capacidade sociocultural e recurso mnemônico


Luria (2014) teceu considerações sobre o desenvolvimento da escrita na criança partindo
do pressuposto que “a história da escrita na criança começa muito antes da primeira vez em que
o professor coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras” (Idem, p. 143). Desse
modo, podemos concluir que quando a criança lê e escreve pela primeira vez, ela “[...] já
aprendeu e assimilou um certo número de técnicas que prepara o caminho para a escrita,
técnicas que a capacitam e que tornam incomensuravelmente mais fácil aprender o conceito e
a técnica da escrita” (LURIA, 2014, p. 143-144).
Em síntese, na perspectiva histórico-crítica, o processo de alfabetização não inicia
apenas quando a criança passa a ser ensinada a traçar e nomear letras, mas a partir do momento
em que nasce e começa a ouvir as primeiras palavras, sendo assim, “[...] quando uma criança
entra na escola, ela já adquiriu um patrimônio de habilidades e destrezas que a habilitará a
aprender a escrever em um tempo relativamente curto” (Idem, p. 144).
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Nesta perspectiva teórica, o processo de aprendizagem da leitura e da escrita não é


natural ou espontâneo, mas sim social. Deste modo, ler e escrever são capacidades, tipicamente
humanas, formadas culturalmente e pela mediação de um ser mais desenvolvido, e na escola,
este ser é o professor.

Diante disso, podemos concluir que não há indivíduos que nascem com mais
ou menos habilidade, aptidão ou dom para aprender a ler e a escrever.
Podemos dizer que todos os seres humanos nascem com uma única aptidão: a
de aprender! Segundo Dehaene (2012), o dualismo entre inato e adquirido é
uma armadilha tendo em vista que a aprendizagem se apoia numa maquinaria
(cérebro) inata e rígida, portanto, a base do adquirido é o inato. Contudo
Vigotskii (2014) alerta que todo processo de aprendizagem é uma fonte de
desenvolvimento que ativa numerosos processos psíquicos, que não se
desenvolveriam por si mesmos sem a aprendizagem (CARVALHO, 2019, p.
140).

A partir desses pressupostos, Luria (2014), objetivando elucidar aspectos sobre e pré-
história da escrita na criança, isto é, caracterizar o “[...] desenvolvimento dos primeiros sinais
do aparecimento de uma relação funcional das linhas e rabiscos na criança, o primeiro uso que
ela faz de tais linha etc. para expressar significados” (Idem, p. 146), elaborou uma pesquisa
cujos sujeitos eram crianças que ainda não haviam aprendido a ler e a escrever. A criança era
“[...] posta em uma situação que lhe [exigia] a utilização de certas operações manuais externas
semelhantes à operação de escrever para retratar ou relembrar um objeto” (Idem p. 147). Nas
palavras de Luria (2014, p. 147) o método era composto pelos seguintes procedimentos:

[...] pegávamos uma criança que não sabia escrever e lhe dávamos a tarefa de
relembrar um certo número de sentenças que lhe tinham sido apresentadas.
Comumente, este número ultrapassava a capacidade mecânica da criança para
recordar. Uma vez que a criança compreendia ser incapaz de lembrar o
número de palavras dado na tarefa, nós lhe entregávamos um pedaço de papel
e lhe dizíamos para tomar nota ou “escrever” as palavras por nós apresentadas.
É claro que, na maioria dos casos, a criança ficava completamente desnorteada
com nossa sugestão. Dizia-nos não saber escrever, não ser capaz de fazê-lo.
Mostrávamos a ela que os adultos escrevem coisas quando devem lembrar-se
de algo e, em seguida, explorando a tendência natural da criança para a
imitação puramente externa, sugeríamos que tentasse inventar alguma coisa e
que escrevesse aquilo que lhe iríamos dizer. Geralmente nosso experimento
começava depois disso e nós apresentávamos à criança várias (quatro ou
cinco) séries de seis ou oito sentenças simples, curtas e não relacionadas umas
com as outras.
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O principal objetivo de Luria (2014) era observar até que ponto a criança era capaz de
usar o papel e o lápis para fazer rabiscos, ou seja, como o lápis e o papel deixavam se der objetos
(brinquedos) de interesse da criança e tornavam-se instrumentos – um meio para atingir um
objetivo – recordar frases que lhe foram apresentadas.
A pesquisa do autor resultou nas seguintes etapas da pré-história da escrita: Pré-
Instrumental; Escrita gráfica não diferenciada; Escrita gráfica diferenciada; Escrita
pictográfica; Escrita simbólica (cultural) (LURIA, 2014). Essas etapas serão detalhadas no item
seguinte.

Etapas da Pré-História da Escrita


Na etapa Pré-Instrumental a criança imita os adultos escreverem, portanto, para ela, a
escrita é uma brincadeira motora e não um instrumento mnemônico (da memória). Além disso,
a relação que a criança estabelece com a escrita é externa, pois há a apropriação da forma
externa (formas de manipular o objeto riscante – lápis, caneta – no papel). Portanto, os rabiscos
traçados pela criança não têm relação com o conteúdo da frase ditada, em suma, a criança não
compreende ainda o sentido e a função da escrita (LURIA, 2014).

Fonte: Luria (2014, p. 151).


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Na imagem anterior temos os rabiscos de uma criança ao tentar escrever as seguintes


frases: 1. Há cinco lápis sobre a mesa. 2. Há dois pratos. 3. Há muitas árvores na floresta. 4. Há
uma coluna no pátio. 5. Há um grande armário. 6. A bonequinha. Sobre este estágio Luria (2014,
p. 155) faz a seguinte reflexão:

Será que o “escrever”, nesse estágio, ajuda a criança a lembrar a mensagem


significativa da sentença ditada? Em quase todos os casos, podemos responder
que não, e este é o traço característicos deste estágio da pré-escrita. A escrita
da criança não desempenha ainda uma função mnemônica, como se tornará
óbvio de examinarmos as “sentenças” escritas pela criança após o ditado.

Para superar a fase pré-instrumental “[...] a criança deverá estabelecer uma relação
sígnica com as marcas no papel, ou seja, o que foi grafado deve expressar um conteúdo
específico que possa ser recuperado posteriormente” (MARTINS, CARVALHO & DANGIÓ,
2018, p. 342).
No estágio da Escrita Não-Diferenciada, apesar dos rabiscos em si não terem nenhum
significado, eles ganham significado na dependência de alguns fatores, como por exemplo, a
posição, situação e relação com outros rabiscos. Luria (2014, p. 157) exemplifica tal fato:

Em algumas sessões, notamos que a criança dispôs seus rabiscos em um padrão que
não correspondia ao de linhas retas. Por exemplo, punham um risco em um canto do
papel e outro em um segundo canto e, ao agir assim, começavam a associar as
sentenças ditadas com suas anotações; esta associação foi posteriormente reforçada
pelo padrão segundo o qual as anotações foram arranjadas: a criança declarou, de
forma bastante enfática, que o rabisco em um canto significava “vaca”, ou que este
outro no alto da folha queria dizer “o lixo da chaminé é preto”.

Na imagem abaixo temos a escrita não-diferenciada para as seguintes sentenças: 1.


Vaca. 2. Uma vaca tem quatro pernas e um rabo. 3. Ontem à tarde choveu. 4. O lixo da chaminé
é preto. 5. Dê-me três velas.
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Fonte: Luria (2014, p. 158)

A escrita não-diferencia é variável, pois após ser usada, a criança pode esquecer a
relação dos rabiscos com a frase ditada. Deste modo, a escrita é utilizada como signo primário,
pois não desvenda o significado do que foi anotado, ou seja, após não conduz a criança de volta
para o conteúdo anotado. Em outras palavras, podemos afirmar que “pelo fato de a escrita não
ser diferenciada, ela é variável. Após tê-la usado uma vez, uma criança pode esquecê-la alguns
dias e revertê-la aos rabiscos mecânicos não-relacionados com a tarefa” (LURIA, 2014, p. 158).
Apesar disso, esse é um momento importante, pois é quando a criança passa a produzir “[...]
marcas topográficas na folha de papel para lembrar-se do que foi ditado a ela” (MARTINS,
CARVALHO & DANGIÓ, 2018, p. 342)
A próxima fase, Escrita Diferenciada, “não revela diferenças significativas em relação
à anterior, contudo os rabiscos passam a ter uma função específica no ato de memorização”
(MARTINS, CARVALHO & DANGIÓ, 2018, p. 343). Esta fase tem como características: o
registro de palavras diferentes com rabiscos diferentes; o ritmo em que a frase é ditada reflete
na marcação gráfica (palavras ou frases curtas: linhas curtas; palavras e frases longas: linhas
longas. Aqui há ausência de registrado do conteúdo da sentença ditada); fatores como número,
quantidade, forma e cor também influenciam no registro dos rabiscos (tal aspecto auxilia no
registro do conteúdo/significado da frase); escrita ainda é confusa e variável (LURIA, 2014).
Segundo o autor,

Embora uma criança possa ser capaz de refletir o ritmo de uma sentença, ainda
não está apta a marcar o conteúdo de um termo que lhe foi apresentado
graficamente. Precisamos esperar o próximo passo, quando sua atividade
gráfica começa a refletir não apenas o ritmo externo das palavras apresentadas,
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mas também seu conteúdo. Isso é, esperamos o momento em que um signo
venha adquirir significado (Idem, p. 163).

Na imagem seguinte temos um exemplo de escrita diferenciada, na qual, o fator


número/quantidade influenciou o registro do conteúdo/significado das frases ditadas: 1. Eis um
homem e ele tem duas pernas. 2. No céu há muitas estrelas. 3. A garça tem uma perna. 4. Brina
tem 20 dentes. 5. A galinha grande e quatro pintinhos.

Fonte: Luria (2014, p. 170)

No próximo estágio, Escrita Pictográfica, o desenho é utilizado como instrumento


mnemônico e não como brincadeira, isto é, a criança desenha para lembrar a sentença ditada.
Deste modo, o desenho espontâneo não desempenha qualquer função mnemônica, todavia, na
escrita pictográfica a criança passa a fazer representação direta do conteúdo da frase ditada e/ou
utiliza traços e marcas que possam representar o conteúdo da sentença (LURIA, 2014). Desta
maneira, a criança consegue registrar substantivos concretos ou termos abstratos. Luria (2014)
esclarece que “uma criança pode desenhar bem, mas não se relacionar com seu desenho como
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um expediente auxiliar. Isto distingue a escrita do desenho e estabelece um limite ao pleno


desenvolvimento da capacidade de ler e escrever pictograficamente, no sentido mais estrito da
palavra” (LURIA, 2014, p. 176).

Fonte: Luria (2014, p. 172)

Na imagem acima temos a escrita pictográfica das seguintes frases: 1. O macaco tem
um rabo comprido. 2. A coluna é alta. 3. A garrafa está sobre a mesa. 4. Há duas árvores. 5. É
frio no inverno. 6. A “meninazinha” quer comer.

Fonte: Luria (2014, p. 187)


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Na imagem anterior temos outro exemplo de escrita pictográfica para registrado das
seguintes sentenças: 1. Há uma coluna. 2. A noite é escura. 3. O pássaro está voando. 4. A
fumaça está saindo pela chaminé. 5. O peixe está nadando. 6. A menina quer comer.
Nos exemplos acima vemos que para representar termos abstrato a criança lançou mão
de diferentes estratégias, todavia, “a representação gráfica por meio de um atributo particular,
contudo, não é fácil para uma criança, cujos poderes de abstração e de discriminação não estão
muito bem-desenvolvidos” (LURIA, 2014, p. 180). Neste momento, a escrita simbólica se
apresenta como uma alternativa à criança para o registro de termos que são difíceis ou quase
impossíveis de serem desenhados. Para Luria (2014, p. 180),

Do momento em que uma criança começa, pela primeira vez, a aprender a


escrever até a hora em que finalmente domina essa habilidade há um longo
período, particularmente interessante para a pesquisa psicológica. Ela está
exatamente no limite entre as formas primitivas de inscrição que vimos
anteriormente, possuidoras de um caráter espontâneo, pré-histórico, e as novas
formas culturais exteriores, introduzidas de maneira organizada no indivíduo.

É importante destacar que, apesar da aparente linearidade no desenvolvimento da


escrita, “[...] sua dinâmica interna encerra inúmeras rupturas e saltos qualitativos, que são
produzidos quando se passa de um estágio para o outro” (MARTINS, CARVALHO &
DANGIÓ, 2018, p. 343). Para as autoras, o principal salto qualitativo ocorre na transição da
escrita pictográfica à escrita simbólica, o que representa um momento crucial para a formação
do simbolismo da escrita. Luria não detalhou o longo período que a criança percorre da escrita
pictográfica à escrita simbólica, todavia, Martins, Carvalho e Dangió (2018) produziram uma
pesquisa e levantaram hipóteses sobre o caminho percorrido pela criança (da escrita pictográfica
à escrita simbólica) ao ser alfabetizada. Você estudará esse aspecto na próxima item.
Neste item você conheceu as seguintes etapas da pré-história da escrita de Luria (2014):
a pré-instrumental; a escrita não-diferenciada; a escrita diferenciada e a escrita pictográfica.
Enfim, Martins, Carvalho & Dangió (2018) identificaram uma lacuna na literatura
histórico-cultural referente aos estudos, especialmente, da transição entre o estágio pictográfico
e escrita simbólica. Diante disso, as autoras buscaram elementos teóricos e práticos que
subsidiassem elucidações sobre tal transição. Elas ponderam que
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No desenvolvimento da escrita há graduações na utilização e diferenciação
das marcas gráficas e dos símbolos, além de mudanças das técnicas adotadas
pelas crianças, que vão desde rabiscos e linhas, passando por figuras, imagens
e registros gráficos com letras. Todavia, os meandros da viragem entre o
estágio pictográfico e a escrita simbólica não foram aprofundados na
caracterização luriana, dado que nos conduziu à análise2 do desempenho de
crianças em situações reais de alfabetização tendo em vista aclarar este
interstício. Considerando que esta transição ocorra, em geral, entre os anos
finais da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, entendemos
que ela tenha grandes implicações para o processo de alfabetização neste
período.

Diante disso, no próximo item, você estudará a etapa escrita simbólica, explicada por
Luria (2014) e as subetapas que a antecedem, apresentadas por Martins, Carvalho & Dangió
(2018).

A Transição entre o Estágio Pictográfico e a Escrita Simbólica


A partir da análise do referencial histórico-crítico e de dados empíricos oriundos da
experiência de duas professoras alfabetizadoras, Martins, Carvalho & Dangió (2018)
constataram que a transição entre o estágio pictográfico e a escrita simbólica ocorre por
intermédio de duas subetapas, denominadas de pré-gráfica e subetapas do simbolismo gráfico.
Na subetapa Pré-Gráfica a criança percebe que cada palavra corresponde uma
representação gráfica, “[...] tal como outrora, no âmbito do desenvolvimento da fala, descobrira
que a cada objeto correspondia determinada denominação” (MARTINS, CARVALHO &
DANGIÓ, 2018, P. 343). Ao descobrir tal aspecto, há um avanço significativo na capacidade
de abstração da criança, todavia, ela ainda não consegue estabelecer relações estáveis entre
símbolos e sons (grafemas e fonemas) (Idem, 2018). As autoras explicam que

No que tange à percepção, a criança precisa captar e discriminar os tipos de


sons que emite para que, a partir de então, lhe seja apresentada a grafia do
som. Trata-se de recuperar a ênfase no mecanismo acústico da fala, pelo qual
o isolamento e posterior aglutinação de sons, conquistou a forma de fonemas,
transpondo-os para seus correlatos gráficos sob a forma de letras (Idem, p.
343).

Nesta subetapa, a intervenção pedagógica do professor deve ter como ponto de partida
a fala, pois ela é um ponto de referência concreto para a criança, além disso, a partir dela, é
possível parear som e letra para análise da palavra. Desse modo, “a palavra deve ser submetida
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à análise, isto é, deve ser decomposta pelos sons que a compõem, a serem representados por
letras em suas formas gráficas correspondentes” (Idem, p. 343).
Em síntese, o processo de ensino e aprendizagem deve ampliar o conhecimento da
criança sobre o léxico1 de sua língua materna, destacando as dimensões morfológicas e
semânticas das palavras, para que a apropriação das correspondências entre os fonemas e os
grafemas seja potencializada e aprendida de maneira contextualizada e significativa. “É, pois,
firmando tais relações que ocorre a gradativa superação desta subetapa, à medida que a criança
vai aprendendo que a cada som corresponde um tipo de símbolo” (Idem, p. 343).
As autoras analisam que a escrita da criança neste momento tem como principal
característica a conexão aleatória e externa entre fonemas e grafemas. Tal particularidade é
exemplificada

[...] por situações nas quais crianças escrevem ou leem silabando corretamente
uma palavra, no entanto, quando perguntadas acerca do que escreveram ou
leram não conseguem dizer. Em situações reais de análise, encontramos
ocorrências do tipo:ao pedirmos à criança para escrever, por exemplo, a
palavra “cavalo”, ela escreve corretamente e quando solicitada a leitura, lê
silabando “ca-va-lo”. Todavia, diante da pergunta: qual palavra você leu, ela
diz não saber ou diz outra palavra, como verificado no caso de uma criança
que após ler silabando corretamente a palavra “rato”, e lhe ter sido perguntado
qual palavra era formada por “ra+to”, a resposta foi “coelho” (MARTINS,
CARVALHO & DANGIÓ, 2018, p. 344).

Nas situações apresentadas pelas pesquisadoras, é possível perceber que apesar das
crianças estabelecerem algumas relações corretas entre grafemas e fonemas, ainda não existia
em seus psiquismos a capacidade necessária aos processos de generalização entre sons e
símbolos, consequentemente, tal fato não lhes permitiram, no momento, a escrita autônoma
(Idem, 2018). Em suma, o que tais crianças escreveram foram sílabas isoladas e não palavras
em suas dimensões morfológicas e semânticas.
Para Vygotski (2014), a palavra desprovida de significado não é palavra, é um som
vazio. Diante disso, o professor alfabetizador deve planejar situações de ensino e aprendizagem
que levem a criança a “ultrapassar a conexão aleatória fonema/grafema convertendo o som em
signo. Trata-se, pois, da compreensão do significado das letras e das sílabas tanto na articulação

1
Léxico é o conjunto de palavras existente em um determinado idioma, que as pessoas têm à disposição para
expressar-se, oralmente ou por escrito em seu contexto.
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da fala quanto da escrita” (MARTINS, CARVALHO & DANGIÓ, 2018, p. 344). Por esse
caminho, a criança passe à subetapa seguinte, a do simbolismo gráfico.
A subetapa Simbolismo Gráfico, conforme as autoras, é o divisor de águas entre a pré-
história da escrita e a escrita simbólica gramatical. A escrita das crianças neste momento tem
como características essenciais os erros gramaticais, ortográficos e as dificuldades na escrita e
leitura de sílabas não-canônicas.

Saiba Mais:
 Sílaba canônica
http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/silaba-canonica

As pesquisadoras explicam que esta subetapa

[....] abarca os mecanismos acústicos necessários à organização léxico-


semântica e a sintaxe, próprias à etapa da escrita simbólica. O domínio do
mecanismo acústico possibilita à criança a identificação da correspondência
entre fonemas e grafemas bem como a correspondência entre o grafema e o
código léxico. Para tanto, os sons são isolados mentalmente e sequencialmente
aglutinados, conquistando significação fonética que orienta a transposição do
fonema em grafema, caminhando para a consolidação das relações
grafofônicas (Idem, p. 344).

Neste momento, o que prevalece na criança, são as ações em detrimento das operações.
E, para que ela alcance a escrita simbólica é preciso inverter tal situação, isto é, as operações
devem predominar em detrimento das ações (MARTINS; CARVALHO & DANGIÓ, 2018).

[...] as ações representam os componentes ou elementos intermediários na


atividade de escrita, e são mobilizadas por uma finalidade específica e
conscientemente orientada. Sob prevalência da ação, a criança atua
decompondo cada uma das letras ou sílabas que compõem a palavra, fazendo-
o, não raro, em voz alta, com a finalidade de, parte a parte, encontrar seu
correspondente gráfico. Trata-se, pois, da realização de uma série de ações
cuja finalidade é o pareamento adequado entre os sons e seus símbolos
gráficos. As ações são também prevalentes no âmbito da leitura, posto que a
consciência da criança, nesta subetapa, subjuga-se à decodificação da relação
entre grafema e fonema, o que ocorre, via de regra, em detrimento do
significado da palavra (Idem, p. 344, grifos nossos).
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Em sumo, para escrever e ler a criança vai silabando, muitas vezes, falando em voz alta
para orientar sua conduta no processo de escrita e de leitura. A criança que está nessa etapa, ao
ler, na maioria das vezes, apenas decodifica (transforma grafemas em fonemas), todavia, não
consegue se atentar ao significado daquilo que está sendo lido, pois, toda a atenção energia da
criança está sendo direcionada para as relações grafofônicas. No entanto, é preciso automatizar
a compreensão e o aprendizado das relações entre grafemas e fonemas, para que a criança possa
dispensar mais atenção e energia aos significados das palavras escritas e lidas.

Portanto, apenas o automatismo desta relação poderá transformar as ações de


escrita e de leitura em operações automatizadas, redirecionando a consciência
para o universo de significados grafados por meio das palavras e, igualmente,
para o uso da escrita como registro do pensamento. Para tanto, destaca-se a
importância dos treinos que visam o automatismo, sem o qual nenhuma ação
se converte em operação. Daí a necessidade da repetição, requerida à
memorização da relação fonema/grafema, bem como da criação do hábito de
escrita, conferindo ênfase aos aspectos técnicos do ato de escrever que, diga-
se de passagem, muitos alfabetizadores tendem a abolir em nome de uma
possível descoberta espontânea por parte da criança (Idem, p. 344).

A escrita simbólica tem início quando as ações são convertidas em operações. Nesta
etapa há o predomínio dos domínios léxicos e gramaticais da língua. “O salto qualitativo
presente nesta etapa é o alcance da atividade de escrita, pela qual ocorre a conversão da
linguagem interna em linguagem externa gráfica, atendendo aos determinantes do pensamento
e das regras gramaticais da língua” (Idem, p. 344).
As autoras explicam que a dinâmica apresentada na aprendizagem da leitura e da escrita
(linguagem oral/textos/frases/palavras/letras) pode gerar a falsa impressão que se trata de um
modelo analítico ou global de interpretação do processo de alfabetização. Contudo, as
pesquisadoras destacam a importância da compreensão da dinâmica figura-fundo no ensino da
língua escrita. Em outras palavras podemos dizer que

no ensino da escrita há que se diferenciar, a cada momento do processo, aquilo


que se impõe como fundo em relação ao que se impõe como figura. A
linguagem oral, os textos e as frases, em suas expressões globais, representam
o fundo sobre o qual a alfabetização ocorre, e tem como figura as relações
entre fonemas e grafemas. A partir do momento em que o domínio da relação
entre grafema e fonema se concretiza, linguagem oral, textos e frases passam
a ser figura no estudo gramatical da linguagem escrita enquanto fonemas e
grafemas tornam-se fundo. Com isso afirmamos o princípio metodológico
dialético para a orientação do ensino da escrita, tendo em vista superar as
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perspectivas que unilateralizam ora enfoques analíticos ora os enfoques
sintéticos em alfabetização (MARTINS; CARVALHO & DANGIÓ, 2018, p.
344).

Saiba Mais:
 CARVALHO, B. A Leitura e a Escrita como Órgãos da Individualidade: a memória
e o automatismo no ato de ler e escrever. In: CARVALHO, B. Ensino da Língua
Escrita no 1º Ano do Ensino Fundamental: orientações didáticas à luz da Psicologia
Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica. 2019, p. 241-257. Disponível
em: <http://hdl.handle.net/11449/190725> Acesso em: 11 out. 2020.

Apoiadas em Luria (2014), as autoras sinalizam que não existe um percurso natural e
linear nas etapas apresentadas, ou seja, as crianças não passarão, necessariamente, por todas as
etapas sequencialmente como apresentadas, pois a apropriação da escrita é social e ocorre sob
a mediação intencional e sistematicamente do professor. Saltos, avanços e retrocessos podem
ser observados nas etapas. Deste modo,

Em anuência com Luria (2016) descartamos que haja um percurso natural e


linear de etapas no que tange à escrita, a exemplo do proposto por Ferreiro e
Teberosky (1985). Para elas, a aquisição da escrita tem um caráter evolutivo
e perpassa a formulação espontânea de hipóteses que a criança elabora em seu
contato com a mesma. Haja vista que a escrita é uma objetivação humana dada
à apropriação pelos sujeitos particulares, portanto, uma aquisição mediada
intencional e sistematicamente pelo outro que a domina, não precisamos nem
devemos esperar que os alunos construam solitária e espontaneamente suas
hipóteses de escritas, pois “... por mais expostas que as crianças estejam ao
universo cultural da escrita, o processo de apropriação deste conhecimento
passa necessariamente pela mediação do outro” (Stemmer, 2010, p. 132), ou
seja, é preciso que os alunos sejam ensinados a ler e a escrever (Idem, p. 344-
345).

Diante disso, destaca-se a importância do planejamento pedagógico no ensino da leitura


e da escrita, considerando a tríade conteúdo-forma-destinatário (MARTINS, 2013).

Isto significa intencionalidade no ato de ensinar, pois levando em conta esta


tríade o professor, para promover o desenvolvimento de seus alunos,
necessita: dominar os conteúdos a serem ensinados, tendo ciência que tais
conteúdos não devem se restringir a aspectos fortuitos e cotidianos, portanto,
trata-se de conteúdos científicos, artísticos e filosóficos; conhecer a zona de
desenvolvimento real e iminente dos aprendizes, ou seja, aquilo que o aluno
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já domina e o que ainda está em vias de formação; e por último, pesquisar e/ou
criar a melhor forma para ensinar, tendo em vista o que e a quem, ou seja, o
que (conteúdo) deve ser ensinado e as especificidades do desenvolvimento e
necessidades de aprendizagem de quem aprende (destinatário) (MARTINS,
CARVALHO, DANGIÓ, 2018, p. 345).

Considerações Finais
Nesta aula, você estudou que a capacidade de ler e escrever é desenvolvida
culturalmente por processos sistematizados de ensino, portanto, trata-se de uma aprendizagem
desenvolvida socialmente e não naturalmente, consequentemente, “[...] a aprendizagem da
leitura e da escrita possui suas raízes na formação cultural do psiquismo, antecipando-se, em
muito, aos atos pedagógicos voltados especificamente para esse fim” (MARTINS,
CARVALHO & DANGIÓ, 2018, p. 339). Além disso, você viu que a escrita é um instrumento
mnemônico, ou seja, um recurso utilizado pelos indivíduos para relembrar, além de ser um meio
de comunicação e expressão do pensamento.
Em seguida, conheceu a pesquisa desenvolvida por Luria (2014) para verificar o
percurso de desenvolvimento da escrita na criança. Entre os estágios estudados, temos: o pré-
instrumental; a escrita não-diferenciada; a escrita diferenciada e a escrita pictográfica.

Vimos que a pré-história da escrita infantil descreve um caminho de gradual


diferenciação dos símbolos usados. No começo, a criança relaciona-se com
coisas escritas sem compreender o significado da escrita, no primeiro estágio,
escrever não é um meio de registrar algum conteúdo específico, mas um
processo autocontido, que envolve a imitação de uma atividade do adulto, mas
que não possui, em si mesmo, significado funcional. Esta fase é caracterizada
por rabiscos não-diferenciados; a criança registra qualquer ideia com
exatamente os mesmos rabiscos. Mais tarde – e vimos como isso se
desenvolve – começa a diferenciação: o símbolo adquire um significado
funcional e começa graficamente a refletir o conteúdo que a criança deve
anotar (LURIA, 2014, p. 181)

No estágio seguinte, a criança passa a desenhar para representar as sentenças ditadas e


até mesmo criam signos para identificar um termo abstrato.
Além disso, você conheceu as subetapas (pré-gráfica e subetapas do simbolismo
gráfico), propostas por Martins, Carvalho & Dangió (2018), que estão entre a etapa da escrita
pictográfica e da escrita simbólica/cultural. Também viu que a disputa entre os métodos e
analíticos secundarizam o movimento dialético do processo alfabetizador. Sendo assim, o
professor precisa estar atento à dinâmica figura-fundo na prática pedagógica alfabetizadora.
PEDAGOGIA
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Aula 11: Pré-História da Escrita
Profa. Dra. Bruna Carvalho

Portanto, as expressões globais da linguagem (linguagem oral, textos e frases) são fundo no
processo de alfabetização quando a criança ainda precisa dominar as relações entre grafemas e
fonemas, que são, no momento, figura no processo. A partir do momento que a criança já se
apropriou do modo de funcionamento do sistema de escrita alfabética, ou seja, que a letras
representam os sons da fala, a linguagem oral, os textos e as frases tornam-se figuras para o
estudo das regras gramaticais da língua escrita, e as relações grafofônicas tornam-se fundo.
Na próxima aula, você estudará as capacidades necessárias à alfabetização e os níveis
da consciência fonológica, por fim, conhecerá possibilidades didáticas para alfabetizar.

Referências

CARVALHO, B. Ensino da Língua Escrita no 1º Ano do Ensino Fundamental: orientações


didáticas à luz da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica. 2019.
Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/190725> Acesso em: 11 out. 2020.

LURIA, A. R. O desenvolvimento da escrita na criança. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A.


R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone,
2014, p. 143-189.

MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à


luz da psicologia histórico cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas, SP: Autores
Associados, 2013.

MARTINS, L. M.; CARVALHO, B.; DANGIÓ, M. C. S. O processo de alfabetização: da


pré-história da escrita a escrita simbólica. Psicologia Escolar e Educacional [online]. 2018,
vol.22, n.2, p. 337-346.

VYGOTSKI, L. S. (2012). Obras escogidas: problemas del desarollo de la psique. Tomo III.
Madri: Machado Libros.

VYGOTSKI, L. S. (2014). Obras escogidas: pensamento y linguaje – conferencias sobre


psicología. Tomo II. Madri: Machado Libros.

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