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Publicado em NOVA ESCOLA 01 de Março | 2009

Diagnóstico na alfabetização para conhecer a nova turma

Mesmo antes de saber ler e escrever convencionalmente, a criança elabora hipóteses


sobre o sistema de escrita. Descobrir em qual nível cada uma está é um importante passo
para os professores alfabetizadores levarem todas a aprender

Por Anderson Moço

01/03/2009

Foto: Marcos Rosa

MANTENHA O FOCO
A sondagem deve ser individual, o que torna necessário propor ao resto da turma uma
atividade que dispense ajuda.
Nos primeiros dias de aula, o professor alfabetizador tem uma tarefa imprescindível: descobrir o
que cada aluno sabe sobre o sistema de escrita. É a chamada sondagem inicial (ou diagnóstico da
turma), que permite identificar quais hipóteses sobre a língua escrita as crianças têm e com isso
adequar o planejamento das aulas de acordo com as necessidades de aprendizagem. Ela permite
uma avaliação e um acompanhamento dos avanços na aquisição da base alfabética e a definição
das parcerias de trabalho entre os alunos. Além disso, representa um momento no qual as crianças
têm a oportunidade de refletir, com a ajuda do professor, sobre aquilo que escrevem.
No Guia de Planejamento e Orientações Didáticas do programa Ler e Escrever, das secretarias
estadual e municipal de Educação de São Paulo, a sondagem é descrita como uma atividade que
envolve, num primeiro momento, a produção espontânea de uma lista de palavras sem apoio de
outras fontes e pode ou não prever a escrita de algumas frases simples. Essa lista deve,
necessariamente, ser lida pelo aluno assim que terminar de escrevê-la. O guia ressalta também
que é por meio da leitura que o alfabetizador "pode observar se o aluno estabelece ou não
relações entre aquilo que ele escreveu e aquilo que ele lê em voz alta, ou seja, entre a fala e a
escrita".

As pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita, realizadas por Emilia Ferreiro e Ana
Teberosky no fim dos anos 1970 e publicadas no Brasil em 1984, mostraram que as crianças
constroem diferentes ideias sobre a escrita, resolvem problemas e elaboram conceituações. Aí
entra o que pode ser considerado uma palavra, com quantas letras ela é escrita e em qual ordem
as letras devem ser colocadas. "Essas hipóteses se desenvolvem quando a criança interage com
o material escrito e com leitores e escritores que dão informações e interpretam esse material",
conta Regina Câmara, membro da equipe responsável pela elaboração do material do Programa
Ler e Escrever e formadora de professores.

No livro Aprender a Ler e a Escrever, Ana Teberosky e Teresa Colomer ressaltam que as
"hipóteses que as crianças desenvolvem constituem respostas a verdadeiros problemas
conceituais, semelhantes aos que os seres humanos se colocaram ao longo da história da
escrita". E completa: o desenvolvimento "ocorre por reconstruções de conhecimentos anteriores,
dando lugar a novas construções". Diagnosticar o que os alunos sabem, quais hipóteses têm
sobre a língua escrita e qual o caminho que vão percorrer até compreender o sistema e estar
alfabetizados permite ao professor organizar intervenções adequadas à diversidade de saberes
da turma. O desafio é propor atividades que não sejam tão fáceis a ponto de não darem nada a
aprender, nem tão difíceis que se torne impossível para as crianças realizá-las.

As quatro hipóteses
Ferreiro e Teberosky observaram que, na tentativa de compreender o funcionamento da escrita,
as crianças elaboram verdadeiras "teorias" explicativas que assim se desenvolvem: a pré-silábica,
a silábica, a silábico-alfabética e a alfabética. São as chamadas hipóteses. As conclusões desse
estudo são importantes do ponto de vista da prática pedagógica, pois revelam que os pequenos
já começaram a pensar sobre a escrita antes mesmo de ingressar na escola e que não
dependem da autorização do professor para iniciar esse processo. "Todos eles precisam de
oportunidades para pôr em jogo o que sabem para se aproximar pouco a pouco desse objeto
importante da cultura", ressalta Regina.

Aqueles que não percebem a escrita ainda como uma representação do falado têm a hipótese
pré-silábica. Ela se caracteriza em dois níveis. No primeiro, as crianças procuram diferenciar o
desenho da escrita, identificando o que é possível ler. Já no segundo nível, elas constroem dois
princípios organizadores básicos que vão acompanhá-las por algum tempo durante o processo de
alfabetização: o de que é preciso uma quantidade mínima de letras para que alguma coisa esteja
escrita (em torno de três) e o de que haja uma variedade interna de caracteres para que se possa
ler. Para escrever, a criança utiliza letras aleatórias (geralmente presentes em seu próprio nome)
e sem uma quantidade definida.

Foto: Marcos Rosa

COMBINE ANTES
É importante que a criança saiba que ela pode escrever da melhor forma que conseguir,
mesmo que não convencionalmente.

Quando a escrita representa uma relação de correspondência termo a termo entre a grafia e as
partes do falado, a criança se encontra na hipótese silábica. O aluno começa a atribuir a cada parte
do falado (a sílaba oral) uma grafia, ou seja, uma letra escrita.
Essa etapa também pode ser dividida em dois níveis: no primeiro, chamado silábico sem valor
sonoro, ela representa cada sílaba por uma única letra qualquer, sem relação com os sons que ela
representa. No segundo, o silábico com valor sonoro, há um avanço e cada sílaba é representada
por uma vogal ou consoante que expressa o seu som correspondente.
A hipótese silábico-alfabética corresponde a um período de transição no qual a criança trabalha
simultaneamente com duas hipóteses: a silábica e a alfabética. Ora ela escreve atribuindo a cada
sílaba uma letra, ora representando as unidades sonoras menores, os fonemas. Quando a escrita
representa cada fonema com uma letra, diz-se que a criança se encontra na hipótese alfabética.
"Nesse estágio, os alunos ainda apresentam erros ortográficos, mas já conseguem entender a
lógica do funcionamento do sistema de escrita alfabético", explica Regina.
O professor deve realizar a primeira sondagem no início do período letivo e, depois, ao fim de cada
bimestre, mantendo um registro criterioso do processo de evolução das hipóteses de escrita das
crianças. Ao mesmo tempo, é fundamental uma observação cotidiana e atenta do percurso dos
alunos. "A atividade de sondagem representa uma espécie de retrato do processo naquele
momento. E como esse processo é dinâmico e na maioria das vezes evolui muito rapidamente,
pode acontecer de, apenas alguns dias depois da sondagem, um ou vários alunos terem dado um
salto", ressalta Regina. "As sondagens bimestrais são importantes também por representarem
dispositivos de acompanhamento das aprendizagens para os pais, bem como um retrato da
qualidade do ensino para as redes, que podem ajustar seus programas de formação continuada de
professores em regiões onde os resultados mostram que os estudantes não estão evoluindo da
maneira desejada."

Investigação individual
O melhor é que a atividade seja feita individualmente, com o professor chamando um aluno por
vez, que deve tentar escrever algumas palavras e uma frase ditadas. Enquanto isso, o resto da
turma precisa estar envolvido em uma atividade diversificada em que não seja necessária a ajuda
do professor (a cópia de uma cantiga, a produção de um desenho, um jogo etc.). Essa é a estratégia
usada por Eduardo Araújo, na EMEB Helena Zanfelici da Silva, em São Bernardo do Campo, na
Grande São Paulo. Alguns dias após o retorno às aulas, ele deixa as crianças envolvidas com jogos
e brincadeiras sob a supervisão da estagiária que o acompanha em sala. Alfabetizador há mais de
sete anos, Araújo sabe bem o valor da sondagem inicial. "Conhecendo a situação de cada aluno,
consigo pensar melhor como será a rotina do bimestre e quais as intervenções devo fazer para
ajudar os menos avançados a entender a lógica do sistema de escrita."

ADOTE SINAIS
Fazer uma marcação nos textos produzidos é útil para registrar como o aluno lê o
que escreve e se ele se detém ou não em cada letra.

O ditado deve ser iniciado por uma palavra polissílaba, seguida de uma trissílaba, de uma
dissílaba e, por último, de uma monossílaba - sem que o professor, ao ditar, marque a separação
das sílabas (leia no quadro abaixo como preparar a lista de palavras). Após a lista, é preciso ditar
uma frase que envolva pelo menos uma das palavras já mencionadas, para poder observar se o
aluno volta a escrevê-la de forma semelhante, ou seja, se a escrita da palavra permanece estável
mesmo num contexto diferente.
No começo de 2008, a escola onde Araújo leciona passava por grande reforma. Aproveitando a
curiosidade das crianças, ele resolveu trabalhar com uma lista de objetos usados na obra do
prédio. As palavras ditadas foram ferramenta, martelo, ferro e pá. E a frase escolhida foi: usei a
pá na reforma.

Lista bem feita


Na sondagem, a escolha certa das palavras e da frase (e da ordem em que elas serão ditadas) é
essencial. "O ideal é preparar uma lista de termos de um mesmo campo semântico, ou seja,
agregados por uma unidade de sentido, e uma frase adequada ao contexto desse grupo",
recomenda a formadora de professores Regina Câmara, do Programa Ler e Escrever. Deve-se
evitar que as palavras tenham vogais repetidas em sílabas próximas, como ABACAXI, por
exemplo, por causar um grande conflito para as crianças que estão entrando no Ensino
Fundamental, cuja hipótese de escrita talvez faça com que creiam ser impossível escrever algo
com duas ou mais letras iguais. Por exemplo: um aluno com hipótese silábica com valor sonoro
convencional, que utiliza vogais, precisaria escrever AAAI. Os monossílabos ficam para o fim do
ditado. Esse cuidado deve ser tomado porque, no caso de as crianças escreverem segundo a
hipótese do número mínimo de letras, poderão se recusar a escrever se tiverem de começar por
ele.

Observação e registro
Ficar atento às reações dos alunos enquanto escrevem também é fundamental. Anotar o que eles
falam, sobretudo de forma espontânea, pode ajudar a perceber quais as ideias deles sobre o
sistema de escrita. Na sondagem inicial feita com a lista de palavras relacionadas à reforma da
escola, um aluno comentou com o professor Araújo:
- Ferro começa com "fe", de Felipe, não é? E termina com "o". Essa é fácil.
- Agora eu quero que você escreva "pá" - disse o professor.
O aluno parou um instante, tentou contar "as partes" da palavra com os dedos e ficou um pouco
incomodado. Demorou bastante até se manifestar:
- Mas essa não dá para escrever. Fica só uma letra e isso não pode.

Fotos Marcos Rosa


CRIE UMA TABELA

O ideal é construir um quadro para anotar a evolução das hipóteses de cada estudante.

Com o comentário, o professor conseguiu perceber que a criança entrou em conflito, pois
pensava que só se pode ler ou escrever palavras com três ou mais letras e, ao mesmo tempo,
tinha construído a hipótese de que para cada emissão sonora uma letra basta.

Terminado o ditado, é imprescindível pedir que a criança leia o que escreveu. Por meio da
interpretação dela sobre a própria escrita, durante a leitura, é que se pode observar se ela
estabelece ou não relações entre o que escreveu e o que lê em voz alta - ou seja, entre o falado e
o escrito - ou se lê aleatoriamente.

O professor pode anotar em uma folha à parte como ela faz a leitura, se aponta com o dedo cada
uma das letras, se associa aquilo que fala à escrita etc. "Uma lista de palavras produzida pelo
aluno, em situação de sondagem, sem a respectiva leitura, não permite analisar essa produção e
identificar sua hipótese de escrita", afirma Regina.

Se o aluno escreveu LGA para o ditado da palavra martelo e associou cada uma das sílabas
dessa palavra a uma das letras, é necessário registrar abaixo a relação de cada letra com uma
sílaba. Há duas maneiras de fazer esse registro, usando marcação com sinais que indique quais
as associações feitas pela criança:

L G A
(mar) (te) (lo)
Ou ainda:
LGA
|||

É possível que o aluno utilize muitas e variadas letras, sem que o critério de escolha desses
caracteres tenha alguma relação com a palavra falada. Nesse caso, se ele ler sem se deter em
cada uma das letras, é necessário anotar o sentido que ele usou nessa leitura.
LPIEMAN
Esse tipo de marcação é importante, pois permite observar com mais clareza a hipótese que a
criança tem e, posteriormente, os avanços que ela obtém ao longo do ano.

Atividades diversificadas

REGISTRE TUDO

A observação da produção de cada um ao longo do ano mostra com clareza como ele
avançou.

Para que os alunos atinjam o objetivo previsto para o 1º ano - escrever alfabeticamente, ainda que
com erros de ortografia -, o professor precisa acompanhar a evolução de todos, conhecendo os
que demandam mais atenção, quantos têm hipóteses mais avançadas e os que estão
alfabetizados. Esses últimos, particularmente, necessitam de outros conteúdos de ensino, como a
ortografia.
O ideal é que seja construída uma tabela que contenha a evolução das hipóteses de cada um,
comparando quanto evoluiu ao longo do ano. Com frequência, essa comparação traz agradáveis
surpresas em relação aos que, apesar de não escreverem convencionalmente, realizaram avanços
significativos em comparação com sua escrita do início do ano.
Com base nessa tabela, é possível também fazer uma análise crítica da rotina e das atividades que
estão sendo contempladas. Será que todos interagem com outras fontes de texto e, nessa
interação, refletem sobre a escrita e seu uso? Recebem informações de colegas mais experientes,
que os ajudam a compreender o que está envolvido na leitura e na escrita? Têm a oportunidade de
tentar ler por si mesmos? Contam com o apoio do professor, que oferece novas informações sobre
a escrita e orienta seu olhar para os materiais escritos disponíveis na sala de aula, que podem
ajudar no momento de decidir pelo uso de uma determinada letra? Encontram na escola um
ambiente favorável à pesquisa, sendo encorajados a se arriscar e escrever segundo suas
hipóteses?
É por meio das sondagens e da observação cuidadosa e constante das produções dos estudantes
durante o ano que se pode saber em que momento se encontra cada um, se sua abordagem e
rotina estão funcionando, qual a expectativa razoável de evolução para os que ainda se encontram
em hipóteses mais primitivas e como ajustar o planejamento do trabalho para que, ao fim do ano
letivo, todos estejam alfabetizados.

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