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alfabetizacao
Publicado em NOVA ESCOLA 28 de Março | 2023

Ambiente alfabetizador

Como estimular a leitura


desde o início da
alfabetização
Atividades que trabalham a compreensão da escrita como
prática social ajudam no processo de alfabetização e na
inserção efetiva no mundo letrado
Jonas Carvalho

É importante que as crianças possam interagir em um ambiente com


diversidade de materiais de escrita, explica professora. Foto: Getty Images
O desenvolvimento da leitura, uma das dimensões do letramento, deve estar
presente antes mesmo do início do processo de alfabetização. No livro
Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever, a educadora e
pesquisadora Magda Soares (1932-2023), referência em alfabetização no Brasil,
explica que, “para ler, a criança precisa desenvolver consciência grafofonêmica:
relacionar as letras do alfabeto [grafemas] com os fonemas [sons] que elas
representam.”
O desenvolvimento dessa consciência envolve também o letramento, que é, de
acordo com a mesma obra, “a capacidade de uso da escrita para inserir-se nas
práticas sociais e pessoais que a envolvem”.
Fernando Rodrigues de Oliveira, docente do Departamento de Educação da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que, atualmente, o processo de
letramento é compreendido de uma maneira mais ampla, para além do
contexto escolar, conforme trabalhos de pesquisadores como Ângela Kleiman e
Brian Street.
“Essa compreensão permite pensar de que maneira, nas práticas escolares,
pensamos em leitura, escrita, usos orais [da língua] e mesmo na literatura para
além do cumprimento do currículo, para tornar o sujeito cada vez mais apto,
fluente e com domínio e autonomia para fazer uso da língua nas diferentes
situações em que ele esteja”, afirma.
Leitura e letramento
Fernando acredita que essa amplitude também ajuda a superar o pensamento
equivocado, em sua opinião, de que o letramento só acontece após o domínio
do sistema de escrita. “Ainda existe uma ideia de que é preciso, primeiro, saber
ler e escrever, para depois aprender os usos sociais [da língua]. Mas, fora da
escola, as pessoas lidam com a linguagem cotidianamente, em uma placa de
rua ou rótulo de supermercado.”
Ao entender o letramento a partir desse repertório, o professor pode pensar de
que maneira é possível ampliar e enriquecer o domínio que a criança já
apresenta sobre a língua por meio de recursos que, se não forem aprendidos
em uma relação de ensino e aprendizagem, dificilmente vão se desenvolver.
“Esse é o papel da escola: partir desse contexto [das crianças] para ampliar e
transformar as condições de uso da língua”, destaca.
Kelly de Abreu Silva, professora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na EM
Dona Santinha, em Lagoa Santa (MG), considera que proporcionar situações de
leitura e letramento desde a Educação Infantil gera um impacto imenso no
decorrer da vida escolar. “Incentiva a linguagem, amplia a capacidade criativa e
ajuda na concentração, na memória e no raciocínio. E desde cedo é possível
oferecer livros infantis e rodas de leitura que ajudem na alfabetização e no
letramento.”
Leia também: Alfabetização em Lagoa Santa (MG): quando a teoria
encontra a prática
Letramento na Educação Infantil
Cris Mori, docente do curso de Pedagogia do Instituto Singularidades, afirma
que há um consenso de que o processo propriamente dito de alfabetização não
deve ocorrer na etapa da Educação Infantil. No entanto, é possível para a
criança “ler sem saber ler e escrever sem saber escrever”. “Quando criam
narrativas a partir de ilustrações de um livro, elas ocupam o papel de leitores
ao fazer de conta que estão lendo”, exemplifica.
Outra situação que contribui com o letramento nessa etapa são as antecipações
e inferências que as crianças também podem fazer, principalmente aquelas que
já tiveram mais contato com ambientes letrados.
“Isso ocorre quando a criança arrisca, supõe o que está escrito. Ela pode inferir,
por exemplo, que uma palavra é ‘cachorro’, porque está diante de um livro no
qual a palavra começa com ‘CA’ ou a ilustração mostra cachorros. Ela usa essas
pistas para antecipar o que está escrito ali”, comenta a docente.
“É preciso compreender que, nesse período, a expectativa não é que a criança
saia da escola sabendo o alfabeto ou o nome dos pais. O foco é propiciar o
contato com diferentes formas de uso da língua, seja pela oralidade, a leitura de
textos ou a observação de impressos”, acrescenta Fernando.
“Paira uma ideia de que, quanto antes se começa a trabalhar a perspectiva de
escrita, mais rapidamente se alfabetiza uma criança. Na verdade, essa
antecipação é prejudicial”, salienta o especialista. “Isso porque ela substitui o
contato da criança com múltiplas formas de uso da língua em diversos
contextos por práticas de alfabetização limitadas à relação letra-som, o que leva
a uma relação mecânica com a língua.”

Três formas de estimular práticas de leitura e


letramento na Educação Infantil
Cris Mori, do Instituto Singularidades, sugere três ações
Ler para as crianças diariamente;
Gerar oportunidades para as crianças lerem por si mesmas, conforme
seu repertório e respeitando seus conhecimentos prévios;
Ser escriba, ou seja, permitir às crianças ditarem o que será escrito e,
depois, ler o texto para a turma reconhecer as informações que foram
relatadas.

Também é importante observar o comportamento leitor e escritor,


complementa a especialista. “É essencial entender, por exemplo, se as
crianças sabem buscar livros na sala de aula, se elas brincam com as
obras, a forma como o seguram e se compreendem a direção correta
para virar as páginas.”

Letramento no 1º e 2º ano do Ensino Fundamental


Se na Educação Infantil não há o compromisso formal com a alfabetização, o 1º
e 2º ano são o momento para a consolidação desses processos. “É chegada a
hora de oportunizar às crianças o domínio da tecnologia da escrita e da leitura e
escrita propriamente ditas”, explica Cris Mori.
“As crianças que ainda não atingiram a hipótese silábico-alfabética precisam de
intervenções planejadas para que a alcancem e aprendam a ler e a escrever,
ganhem fluência na leitura e entendam as suas diferentes funções, como se
informar (ao ler um jornal) ou resolver problemas do cotidiano (ao ler uma
receita de bolo, por exemplo)”, complementa.
A especialista do Instituto Singularidades lembra ainda que é preciso, nessa
etapa de ensino, realizar sondagens não apenas de escrita, mas também de
leitura, para saber as estratégias que as crianças utilizam para ler frases,
mesmo que não seja de maneira fluida e convencional. Essa observação deve
ocorrer em diversos momentos durante a rotina escolar (como na leitura
individual ou em duplas), e não apenas no momento da avaliação.
Fernando também entende que o período é uma oportunidade para ampliar as
experiências de leitura e os aprendizados do letramento. “Nesse ciclo, espera-se
que a criança compreenda, de forma mais plena, a relação entre leitura, escrita
e oralidade. Isso, obviamente, sempre atrelado às práticas de letramento. Afinal,
é preciso entender como as palavras, dentro de determinados contextos, geram
sentido”, destaca.
“Quando recebo, no 1º ano, crianças que já tiveram contato com a leitura, noto
que elas já chegam com mais gosto por esse processo, o que contribui para que
sejam boas leitoras e tenham maior entendimento dos textos”, considera a
professora Kelly.
Letramento no 3º ao 5º ano do Fundamental
Nesses anos, o objetivo é a consolidação de todo o processo de alfabetização. A
ideia, segundo Fernando, não é que o aluno esteja totalmente alfabetizado, sem
precisar de outras aprendizagens, mas que o conhecimento sobre a língua seja
aprofundado. “É possível trabalhar gêneros textuais mais complexos e ampliar a
capacidade de compreensão de usos da língua para além da escola.”
De acordo com Cris Mori, o que está em jogo aqui é a ampliação dos gêneros
explorados, a sofisticação e o aprimoramento da capacidade leitora dos alunos.
“Isso para que eles leiam não apenas para compreensão, mas também de
forma ativa, dialogando criticamente com os textos e estabelecendo relações
entre eles, além de entender também os seus contextos de produção”, observa.
Leia também: Alfabetização no 2º e 3º ano do Fundamental: estratégias
para o cenário atual

Ficha de critérios avaliativos para leitura


A NOVA ESCOLA elaborou uma ficha de critérios avaliativos para ajudar
os professores a observar comportamentos relacionados à leitura.
Maria José Nóbrega, a Mazé, formadora de professores e consultora
em metodologia de Língua Portuguesa da NOVA ESCOLA, explica o
objetivo do documento e traz dicas para promover avanços no
letramento e leitura da turma:
“A ficha de critérios avaliativos visa auxiliar os professores a registrar os
avanços e as necessidades da turma em aspectos fundamentais para a
atividade leitora, essencial no processo de alfabetização.
Ela apresenta alguns indicadores que permitem acompanhar o avanço
das crianças que ainda não leem com autonomia, porque não decifram
os sinais gráficos ou ainda não compreendem as regularidades
ortográficas e, assim, não convertem o grafema em fonema na
velocidade esperada.
Em geral, pela natureza do instrumento – uma prova escrita –, as
matrizes produzidas pelos diferentes sistemas de ensino para avaliar a
compreensão leitora não conseguem capturar o que as crianças sabem
na fase inicial de alfabetização.
Os descritores da ficha a seguir, então, partem do princípio de que os
estudantes ainda não têm autonomia para decifrar os sinais gráficos,
com o propósito de investigar a compreensão global, a recuperação de
informações e a elaboração de uma interpretação, o que implica a
produção de relações e inferências e a reflexão sobre o conteúdo e a
forma do texto.
Repare que, se o texto e as atividades avaliativas forem lidos em voz
alta pelo professor, as crianças da fase inicial de alfabetização têm
como demonstrar sua compreensão em uma roda de conversa sobre o
texto.
Por essa razão, é fundamental alfabetizar letrando, como defende
Magda Soares: selecionando textos mais simples que as crianças são
capazes de ler e compreender facilmente e textos mais complexos para
situações de leitura compartilhada, de modo a ampliar a capacidade de
interagir com os textos de diferentes gêneros que circulam nos
diversos campos sociais.”
ACESSE A FICHA DE CRITÉRIOS AVALIATIVOS DE
LEITURA

Planejando situações de leitura com


intencionalidade pedagógica
Na hora do planejamento de situações de leitura, é recomendável que os
professores entendam primeiro as habilidades que desejam explorar para
depois definir os textos mais apropriados para esse desenvolvimento. “E, na
sequência, estabelecer o conjunto de atividades que podem ser propostas em
torno do texto a partir dos objetivos de aprendizagem”, orienta Fernando.
Para ele, além da avaliação diagnóstica na alfabetização, deve-se observar não
apenas a relação grafofonêmica das crianças com a língua, mas também como
elas se relacionam com a compreensão da informação após ouvir um texto lido,
como captam a ideia central e como conseguem recuperar informações, seja
pela memória ou consultando o próprio texto escrito.
Durante o planejamento, o professor também deve pensar em um trabalho
progressivo com diferentes habilidades, mesmo que elas não sejam totalmente
desenvolvidas pelas crianças na Educação Infantil. “É possível considerar
atividades que incidem sobre os pontos que as crianças não conseguiram
desenvolver articulando-as com habilidades e competências nas quais elas já
apresentam algum desenvolvimento”, aponta o professor da Unifesp.
“Se já observei no diagnóstico que a turma tem consolidada a habilidade que
envolve a localização de uma informação explícita, posso incorporá-la a um
trabalho com a habilidade de inferência, seja em um mesmo texto ou em uma
sequência de atividades, caso esta ainda esteja em desenvolvimento”,
exemplifica o especialista.
Outra possibilidade é usar um cartaz para a localização de uma informação
explícita e, depois, buscar nele a compreensão global da informação. A partir
disso, é possível propor às crianças que observem elementos como a relação
entre imagem e texto verbal e questioná-las sobre aspectos que não tinham
observado. “Isso faz com que comecem a ampliar o sentido previamente
estabelecido sobre o cartaz”, completa.
Sugestões de prática de leitura e letramento
Carla Garcia, professora de Educação Infantil da CEI Professor José Flora, em
São Joaquim da Barra (SP), e integrante do Time de Formadores da NOVA
ESCOLA, trabalha com rodas de conversa para exercitar a escuta ativa e, dessa
maneira, detectar as necessidades de letramento da turma.
Após esse processo, ela procura apresentar, desde a Educação Infantil,
diferentes suportes textuais, como livros de receitas, propagandas em revistas
ou manuais com regras de brincadeiras. “É importante que as crianças possam
interagir em um ambiente com diversidade de materiais de escrita, conviver e
explorar os usos sociais desses materiais”, afirma.
Além disso, ela prioriza os campos de experiências Escuta, Fala, Pensamento e
Imaginação na Educação Infantil e, nas etapas seguintes, práticas de linguagem
como oralidade, leitura compartilhada e leitura autônoma. “A própria Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) estrutura os gêneros discursivos com os
quais o professor pode trabalhar para esses objetivos. Mas a questão principal
é permitir que a criança construa a sua compreensão sobre o funcionamento
da linguagem escrita e, principalmente, faça uso social disso”, acrescenta.
Carla compartilha uma experiência de leitura e letramento que desenvolveu
com crianças da Educação Infantil, que fizeram um brigadeiro de cenoura com o
acompanhamento das merendeiras da escola. Além de destacar o envolvimento
dos pequenos com aspectos lúdicos da receita e o contexto da região rural, a
educadora reforça o desenvolvimento da leitura durante a atividade.
“As crianças já haviam feito o plantio, a rega e a colheita da cenoura [graças a
um projeto de horta da escola ] e depois, para fazer o brigadeiro, tomaram
decisões, experimentaram e fizeram descobertas durante essa sequência
didática”, conta.
“Durante o preparo, tiveram contato com os rótulos dos ingredientes e ouviram
a leitura das merendeiras para a elaboração da receita, que é um gênero
discursivo que pode ser trabalhado tanto na Educação Infantil quanto no 1º e 2º
ano.”
Exemplo de atividade com contos africanos
Para o desenvolvimento dessas atividades, é essencial conhecer bem tanto a
proposta curricular quanto as habilidades da BNCC relacionadas a letramento e
leitura.
“A partir disso, o professor pode estabelecer quais direitos de aprendizagem ele
pretende trabalhar com a criança. Se o alfabetizador, por exemplo, deseja que
as crianças ampliem seu repertório sobre contos africanos em atividades como
sequências didáticas ou em atividades permanentes, como rodas de leitura,
deve pensar nas capacidades de leitura e de produção de texto que quer
desenvolver nas crianças”, aponta Cris Mori.
A especialista diz que, se a ideia é contribuir para o desenvolvimento de
estratégias de leitura, como a antecipação dos conteúdos e a checagem de
hipóteses, o professor precisa se preparar para saber em qual momento da
história ele deve interromper a leitura para fazer uma pergunta planejada.
Assim, ele permite que as crianças antecipem o que pode acontecer na
sequência da narrativa.
Depois, ao continuar com a leitura e a situação na história ser mostrada, o
professor deve novamente parar a leitura para checar as hipóteses levantadas
pelas crianças e, assim, ajudá-las a compreender se a antecipação estava
correta ou não.
Ainda é possível, segundo a docente, trabalhar com diferentes versões de
contos de encantamento, sejam eles histórias tradicionais (como Chapeuzinho
Vermelho ou Bela Adormecida) ou versões de outras mitologias, como a
africana e a indígena.
“Além de apontar semelhanças e diferenças entre contos, é possível também
propiciar a produção de recontos ou de uma versão criada pelas crianças.
Nesse processo, elas terão inúmeras situações de leitura, seja a que o professor
faz para elas, seja na leitura individual ou em dupla, com a ajuda do professor
ou de outra criança que está em um nível mais avançado de leitura”, afirma.
Consultoria pedagógica: Mazé Nóbrega, consultora de Língua Portuguesa e
professora da pós-graduação do Instituto Vera Cruz, em São Paulo (SP).
Esta reportagem faz parte do Especial Alfabetização. Confira aqui os demais
conteúdos.

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