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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DOCES E BÁRBAROS
UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES
DE IDENTIDADES BAIANAS

CARLOS ANTÔNIO BARROS DE OLIVEIRA

Salvador, Bahia, 2005


1

CARLOS ANTÔNIO BARROS DE OLIVEIRA

DOCES E BÁRBAROS
UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES
DE IDENTIDADES BAIANAS

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA AO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS
SOCIAIS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ORIENTADOR: PROF. DR. MILTON ARAÚJO MOURA

Salvador, Bahia, 2005


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CARLOS ANTÔNIO BARROS DE OLIVEIRA

DOCES E BÁRBAROS
UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES DE IDENTIDADES BAIANAS

Dissertação de Mestrado apresentada ao


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Salvador, 18 de março de 2005.

__________________________________________________

Prof. Dr. MILTON ARAÚJO MOURA (Orientador) – UFBA

__________________________________________________

Prof. Dr. Jocélio Teles dos Santos – UFBA

__________________________________________________

Profa. Dra. Lídia Maria Pires Soares Cardel – UFBA


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AGRADECIMENTOS

ao princípio, o fim e o meio,

a Ana Barros, minha mãe, sempre.

a Milton Moura, o profissional e o amigo.

a Davi Nunes, centro, coração a mil.

a Harlei Eduardo e Déia Ribeiro, uns do meu Bando.

a Marilda Santana, papos “qualquer coisa no ar”.

a Marlon Passos, fé na vida, fé no que virá.

a Ângelo e Carla Miranda, pelos arremates.

às diversas vozes que comigo falaram sobre o tema.

à Música Popular Brasileira.


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Os Mais Doces Bárbaros


(Os Mais Doces dos Bárbaros)

Caetano Veloso
Disco Doces Bárbaros, 1976

Com amor no coração


Preparamos a invasão
Cheios de felicidade
Entramos na cidade amada

Peixe espada, peixe luz


Doce bárbaro Jesus
Sabe bem quem né otário
Peixe no aquário nada

Alto astral, altas transas, lindas canções


Afoxés, astronaves, aves, cordões
Avançando através dos grossos portões
Nossos planos são muito bons

Com a espada de Ogum


E a bênção de Olorum
Como um raio de Iansã
Rasgamos a manhã vermelha

Tudo ainda é tal e qual


E, no entanto, nada igual
Nós cantamos de verdade
E é sempre outra cidade velha

Alto astral, altas transas, lindas canções


Afoxés, astronaves, aves, cordões
Avançando através dos grossos portões
Nossos planos são muito bons
5

RESUMO

A força da música nas representações da sociedade brasileira e baiana aponta


elementos interessantes para estudos sociológicos. A identidade cultural como um texto
composto de variados feixes representacionais tem na produção musical uma grande
expressão, sobretudo se considerarmos alguns artistas especificamente. Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia vêm trabalhando elementos de identidade
cultural em suas práticas artísticas há quase quatro décadas. O acontecimento (show,
disco, filme) Os Doces Bárbaros, em 1976, surge como uma interface de suas carreiras
e momento privilegiado para se contemplar, numa mesma cena, sua atuação
ressignificando a Bahia, a partir de construções identitárias plasmadas nas práticas
artísticas. Performatizando temas que vão da ancestralidade mítica ao som do Carnaval
trieletrizado e passando por identidades negras em construção, Caetano, Gil, Gal e
Bethânia trouxeram para o âmbito da música uma Bahia que se reposicionava,
polarizada entre o tradicional e o moderno nas representações correntes. Os repertórios,
imagens e depoimentos diversos à imprensa são fontes acessíveis para a compreensão
da dinâmica identitária que se percebe nesta obra. Deste modo, cabe considerar a
constituição de tipos baianos a partir de cada um destes artistas, para se chegar às
“Bahias” construídas nos seus trabalhos. Considera-se que o imaginário sobre a
sociedade baiana no cenário das representações da brasilidade foi transfigurado com
esta presença e que uma rede de representações articuladora de textos identitários se
re/trans/configura a partir da prática e das singularidades aqui analisadas.

Palavras-chave: música popular; construções identitárias; singularidade; Bahia; Brasil.


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ABSTRACT

The power of music that is present on all representations of the Brazilian and
Bahian society as well show interesting elements to sociological studies. The cultural
identity, as a text made of varied representational bundles, has a great expression on the
musical production, especially if we consider some specific musicians. Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa and Maria Bethânia have been working on the elements of
cultural identity for almost four decades. The event called Os Doces Bárbaros (the
concert, the album, the picture), in 1976, comes as an interface between their careers
and a privileged moment to contemplate their performance as a means to find a new
meaning to Bahia, starting from identity constructions based on artistic practices.
Caetano, Gil, Gal and Bethânia created a kind of musical that showed Bahia in a new
position, between the modern and the traditional in the current representations,
performing themes that range from the mythical ancestors to the sound of a carnival
with trios elétricos, working on the African Brazilian identity that is under construction.
The repertoires, images and several declarations to the press are accessible sources in
understanding the identity dynamics that can be seen in their work. Thus, it is important
to consider the constitution of the types in Bahia by each of these musicians, to get to
the different Bahias shown in their music. The imaginary on the society of Bahia in the
context of the representations of Brazil is considered to have been changed with these,
and a representative articulating network of texts that work on identity is reset and
reconfigured after the practices and singularities analyzed here.

Key-words: popular music; identity constructions; singularity; Bahia; Brazil.


7

LISTA DE QUADROS

pg.

1 Discografia de Caetano Veloso 179

2 Discografia de Gilberto Gil 181

3 Discografia de Gal Costa 183

4 Discografia de Maria Bethânia 184

5 Discografia Transversalizada de
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia 186

6 Canções Referidas à Bahia na Discografia de Caetano Veloso 190

7 Canções Referidas à Bahia na Discografia de Gilberto Gil 194

8 Canções Referidas à Bahia na Discografia de Gal Costa 198

9 Canções Referidas à Bahia na Discografia de Maria Bethânia 201

10 Cronologia do show/disco/filme Os Doces Bárbaros 205


8

SUMÁRIO

pg.

Apresentação 9

1 Introdução 11

2 A Obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia


como Dinâmica de Construções Identitárias 20
2.1 A Identidade Cultural como Feixes Representacionais
em Textos Múltiplos 21
2.2 A Singularidade como Conformação Relacional
e Reflexivamente Estruturada 41

3 Quatro Trajetórias Artísticas como


Ensaios e Laboratórios Contextualizados 62
3.1 Caetano Veloso 65
3.2 Gilberto Gil 73
3.3 Gal Costa 79
3.4 Maria Bethânia 85
3.5 A Convergência em 1976 91

4 Os Doces Bárbaros como Acontecimento Singular


na Dinâmica de Construção de Identidades Baianas 96
4.1 O Lugar da Bahia entre as Referências Musicais
na Construção da Brasilidade 97
4.2 Doces Bárbaros, Baihunos e Baianos 111
4.3 Continuidades e Descontinuidades
em torno da experiência de Os Doces Bárbaros 133

5 Considerações Finais 163

6 Referências Bibliográficas 172

7 Apêndice: Discografia de Caetano, Gil, Gal e Bethânia


e Cronologia do Show/Disco/Filme Os Doces Bárbaros 178
9

APRESENTAÇÃO

A escolha de tema para um trabalho acadêmico de pesquisa costuma provir do


acercamento do pesquisador com relação à área temática respectiva e da consideração
sobre a própria exeqüibilidade da empresa. Tal proximidade já existia bem antes que eu
pensasse em partir da fruição da música e do colecionamento de fontes e dados para um
empreendimento de pesquisa, mas a ambição desta realização se reforçou há oito anos,
quando passei a cantar profissionalmente.

A idéia de discutir imaginário e representações sociais a partir do trabalho artístico de


Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia apareceu na graduação, quando
me ocorreu a possibilidade de escrever sobre a presença de elementos culturais comumente
reconhecidos como baianos na sua obra artística. O conhecimento ampliado da discografia
destes artistas, a familiaridade com o universo musical e a situação na academia confluíram
para o desejo de concretizar minha relação com o mundo artístico, com a sociedade baiana
e com a academia numa espécie de “complexo matérico” dotado de um sentido mais
objetivo.

Embora na área acadêmica de origem – História – eu pudesse desenvolver um


trabalho que desse conta da problemática, o viés mais contemporâneo, a natureza das
fontes disponíveis e, sobretudo, um olhar mais sociológico que passava a se configurar
para mim como mais adequado a captar melhor as facetas do meu objeto foram me
convencendo de que deveria situar minhas pretensões de pesquisa no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais. Esta opção se confirmou quando me incorporei ao Grupo
de Pesquisa Tradições e Sociabilidades Contemporâneas, do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, e pouco depois ao Grupo de Pesquisa Identidades e Mundo
Contemporâneo, ligado ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade. Nos encontros, debates e seminários promovidos nesses ambientes, foi possível
discutir temáticas relativas à identidade cultural, às práticas artísticas e à etnicidade e
inclusive aprofundar alguns itens acerca de imaginário, representações e identidade
cultural, de modo que a idéia de escrever um ensaio se reconfigurou num projeto de pós-
graduação.
10

Proponho aqui um estudo sobre imaginário e construções identitárias em interlocução


com o aparelho teórico-metodológico das Ciências Sociais, situado nas discussões atuais
sobre identidade cultural e centrado na formação, em 1976, do conjunto Os Doces
Bárbaros. A constituição deste grupo é tida por diversos cronistas como um dos
acontecimentos mais marcantes da vida artística recente no Brasil, como apontam inúmeras
referências na mídia sobre o encontro destes artistas, assim como um dos que mais
fortemente contribuiu para a reelaboração das representações sobre a sociedade baiana, a
partir da música popular.

O que realizo, através desta pesquisa, é situar a obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia
no plano das construções identitárias em torno da Bahia, tal como estas vêm se legitimando
historicamente no âmbito das construções hegemônicas da brasilidade.
11

1 INTRODUÇÃO

Podemos dizer que as representações da sociedade baiana estão situadas de forma


muito peculiar no contexto das representações da sociedade brasileira. A Bahia, como
unidade territorial e cultural, foi construída como tal a partir de um jogo de alteridades
consideravelmente vigoroso. Temos elementos para supor que a Bahia guarda, nos seus
contornos identitários, características de “outros universos” que, por si, não seriam
propriamente brasileiros, mas que passariam a ser justamente pelo fato de estarem contidos
na trama da identidade cultural baiana, como veremos adiante.

Nem todas as formações sócio-culturais parecem elaborar discursos de identidade


cultural tão fortes e paradigmáticos como é o caso da Bahia1. No âmbito das
representações amplamente correntes da sociedade baiana, o baiano é revestido de
elaborações muito especiais em termos de etnicidade, historicidade e ancestralidade. A
Bahia configurou-se, no cenário das representações da sociedade brasileira, como um
nascedouro de tradições. Nesta pesquisa, trata-se de investigar como as representações se
expressam e organizam através das práticas musicais.

Desta forma, o objeto deste estudo corresponde a uma interface2 constituída pela
prática artística de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, devidamente
contextualizada. Nesta interface, a música – e, com a música, as atuações e contextos em
que esta se configura como expressão artística e/ou identitária – é vista ao mesmo tempo
como meio e conteúdo de expressão social; dito de outra forma, de representações de uma
determinada sociedade; no caso, a sociedade baiana. Aqui se trata, especialmente, de como
se cruzam as relações entre tradição e modernidade na sociedade baiana
contemporaneamente.

1
O que não significa dizer que a Bahia “tem mais cultura” que outras formações sociais, como parece se
depreender de certos discursos, inclusive no âmbito oficial.
2
Este termo significa, nesta pesquisa, uma composição de referências e vetores colocados intimamente lado a
lado ou superpostos. O acontecimento Os Doces Bárbaros pode ser considerado uma interface das carreiras
destes artistas; não se tratando de uma síntese das práticas de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, pode ser tomado
como um encontro de trajetórias singulares articuladas e de certa forma convergentes. A origem mais radical
deste termo se encontra na informática, como ponto de contato entre periféricos e unidade de processamento
dos computadores (CPU). A interface, então, é um locus de encontros e colateralidades, esboçando assim um
quadro passível de análise.
12

Vale desde já uma ressalva: o que se chama de sociedade baiana neste estudo está
delimitado a esta formação social geograficamente situada em Salvador e no Recôncavo e
que adquiriu, num feixe de representações em configuração nos contornos da identidade
nacional, a denominação Bahia3. Tal feixe de representações, sendo amplamente divulgado
através da mídia, acabou por estabelecer um lugar da Bahia na configuração que vem a ser,
afinal, o Brasil.

Poder-se-ia adiantar que as inquietações mais relevantes para a empreitada a que me


proponho emergem da tentativa de contribuir para uma compreensão de como a obra de
arte – no caso, a música – constitui-se como expressão tanto de criatividade dos agentes
que a produzem quanto de elementos de imaginário pertencentes a uma dada formação
social. Neste sentido, cabe refletir sobre o que Bourdieu chama de campo artístico, uma
ambiência em que as obras ganham o status de artísticas e os agentes são assumidos como
artistas.

Tratar da arte como vetor social traz consigo uma necessidade de entendimento desta
prática nas suas dimensões internas ao campo artístico e nas suas relações com outros
campos, no sentido de apreender as tensões entre os campos que constituem as formações
sociais. Neste sentido, cabe lembrar uma observação de Elias sobre a arte e sua posição no
mundo social:

Entre as mais interessantes perguntas não respondidas de nosso tempo está a que indaga
quais características estruturais fazem as criações de uma determinada pessoa
sobreviverem ao processo de seleção de uma série de gerações, sendo gradualmente
absorvidas no padrão das obras de arte socialmente aceitas, enquanto as de outras
pessoas caem no mundo sombrio das obras esquecidas (Elias, 1994b, p.52).

Dito isto, proponho como objeto da pesquisa as formulações identitárias constituídas


nas práticas artísticas de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa,
tomando como referência o conjunto formado por estes músicos em 1976, Os Doces
Bárbaros, o que envolve necessariamente uma discussão sobre os eixos sócio-temáticos
que orientam essas representações. Trata-se de compreender como obras que permanecem
significativas realizam/atualizam feixes de representações, redefinindo significados de
narrativas identitárias sobre uma formação social – no caso, a Bahia.

3
Esta identificação entre Recôncavo e Bahia será melhor abordada no Capítulo 4.
13

Um estudo desta natureza não poderia deixar de considerar a trajetória destes artistas
tendo como epicentro4 a formação do grupo Os Doces Bárbaros, em 1976. Iniciando suas
carreiras conjuntamente e seguindo caminhos individualizados por uma década,
propuseram uma estratégia de interfaciamento de seus trabalhos que desaguou num show,
disco e filme que alcança(ra)m significados especiais na história do campo artístico no
Brasil justamente por elegerem, como matéria de sua arte, traços identitários tão relevantes
quanto polêmicos, seja naquele período, seja nos nossos dias.

O conjunto Os Doces Bárbaros, que, como afirmam seus integrantes, surgiu do desejo
de comemorar publicamente o sucesso de suas carreiras individuais, acabou por arranhar
certos traços da brasilidade tradicional que até aquele momento eram intocáveis nas
representações sobre o Brasil – e particularmente sobre a Bahia. Desde o fenômeno da
Tropicália, que desencadeou discussões polêmicas em torno de conceitos como cultura
popular, arte pop, música de qualidade e outras categorias expressivas nos estudos sobre
canção popular no Brasil, estes músicos vêm se emblematizando – e sendo
emblematizados – como atuantes e mesmo propositivos de reorganizações sobre o próprio
ato de fazer música.

Os Festivais da Canção, que nos anos sessenta foram palco do surgimento, diante dos
públicos, de nomes que até hoje fazem sucesso no universo da MPB, constituíram-se
também como espaços de lutas simbólicas destacadas. Era perceptível tanto a
espetacularização midiática dos discursos dos artistas e do público quanto a visualização da
presença do status político das décadas de sessenta e setenta nas manifestações artísticas no
Brasil. A televisão brasileira vivia então um período em que as atenções se voltavam para o
florescimento de novos talentos que passavam pela tela, revelando faces individuais e de
vários lugares do país, fazendo emergir correntes e tendências que viriam a se desenvolver
e desencadear como sucesso a partir do impulso originário dos Festivais.

Longe de considerar a arte como mero reflexo dos acontecimentos políticos-


econômicos, estas observações iniciais pretendem trazer à luz a força da música numa
sociedade que experimentava um regime autoritário, como também nos estimulam a buscar
perceber o quanto se esperava da arte num momento politicamente difícil para um país em

4
Considero tal momento como central para as questões que aqui são colocadas, o que não significa dizer que
Os Doces Bárbaros representa uma centralidade absoluta nas trajetórias de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
Costa e Maria Bethânia.
14

desenvolvimento e que via suas possibilidades de expressão social restritas, muitas vezes,
ao lúdico e ao entretenimento imediato.

A que se destina, então, a pesquisa? Podemos dizer que seu objetivo geral é contribuir
para a compreensão de como elementos de narrativas identitárias presentes na obra de
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia se relacionam com as
representações/narrativas tradicionais sobre a sociedade baiana e se inserem na trama da
produção destas últimas, vindo a tornar-se um dos elementos mais intrigantes na
construção de um sistema de representações ao mesmo tempo tradicional e inovador no
âmbito da formação sócio-cultural baiana e brasileira. Como desdobramentos deste
objetivo, trata-se de identificar a relevância de cada um dos quatro artistas na dinâmica de
narrativas identitárias sobre a sociedade baiana, bem como analisar a relação entre estas
representações presentes na sua obra e as narrativas que organizam com sentido uma
singularidade auto-referida da Bahia enquanto formação social.

O termo narrativa é tomado, nesta pesquisa, no sentido de construção ampla e


socialmente reconhecida, configurada nas práticas que permitem que os indivíduos se
sintam integrados a uma dada formação social. As narrativas organizam feixes de
representações sociais experimentadas nas práticas dos agentes. O termo texto, que será
melhor explicitado adiante, é utilizado de acordo com a formulação de Moura, ao tratar de
temática próxima, qual seja, a baianidade, no quadro da formação das identidades culturais
baianas no Carnaval:

Trato baianidade como um texto, na acepção mesma de tecimento (no gerúndio), tecido (no
particípio) e contextura, tessitura (no infinitivo) de significações e orientações, o nome de
uma doutrina ou de uma cartilha de convivência, de um arranjo civilizatório. Que este seja o
nome de um engodo, uma ideologia, uma estratégia de dominação, segundo tantos de nós,
não arranha a validade de constituí-lo como objeto de uma pesquisa. Neste sentido, alguns
analistas e observadores que, intrigados com o nosso quadro sócio-histórico, afirmam que
a baianidade não existe de fato estão contribuindo para esta discussão da mesma forma
com que estariam caso estivessem polarizados de modo oposto, como adeptos entusiastas
da baianidade. Esta não precisa existir como verdadeira ou válida aos nossos olhos de
apreciadores éticos. Aos efeitos desta pesquisa, importa que exista como objeto de estudo
(Moura, 2001, p. 13).

Por sua vez, o texto identitário é aquele que, especificamente, realiza a asserção
direta da identidade, o anúncio explícito do perfil de um sujeito, seja um modesto
indivíduo, seja uma sociedade de milhões deles (idem, ibidem, p. 12)
15

Voltando à construção do problema desta pesquisa, trata-se de identificar que


representações de sociedade baiana se re/trans/configuram nestas práticas artísticas, ou
seja, que elementos culturais da sociedade baiana podem ser percebidos na arte de Caetano
Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia sobretudo nessa ocasião em que suas
carreiras confluem na mesma estratégia artística e alcançam juntas os mesmos públicos.

Na seqüência, a problemática da pesquisa consiste em compreender como o


acontecimento5 Os Doces Bárbaros se constitui numa interface em que diversas formas de
representação da sociedade baiana – mais precisamente, diversas formas de articular
identidades culturais baianas, que por sua vez desempenham papel relevante na articulação
de identidades culturais brasileiras – se colocam. Dito de outra maneira: como se pode
interpretar o acontecimento Os Doces Bárbaros qual um feixe de representações da
sociedade baiana na sua diversidade e riqueza, situado no âmbito mais amplo da sociedade
brasileira, considerando inclusive a diversidade e riqueza das repercussões que alcançou
junto a diferentes setores sociais?

Arrematando os parágrafos acima, podemos colocar, como hipótese, que Os Doces


Bárbaros corresponde a uma transfiguração do imaginário sobre a Bahia, reconfigurando
representações e narrativas identitárias entre os pólos de tradição e modernidade, ora
remontando a narrativas emblematizadas como a tradição, ora apontando narrativas em
direção ao moderno, num redimensionamento do lugar da Bahia na brasilidade. Bourdieu
(2004) remete à tensão entre posições que caracteriza tradicionalidades e modernizações
expressas nas práticas dos agentes:

A tensão entre as posições, constitutiva da estrutura do campo, é também o que determina


sua mudança, através de lutas a propósito de alvos que são eles próprios produzidos por
essas lutas; mas por maior que seja a autonomia do campo, o resultado dessas lutas nunca
é completamente independente de fatores externos. Assim, as relações de força entre os
“conservadores” e os “inovadores”, os ortodoxos e os heréticos, os velhos e os “novos” (ou
os “modernos”) dependem fortemente do estado das lutas externas e do reforço que uns e
outros possam encontrar fora (Bourdieu, 2004, p. 65).

Desta forma, a transfiguração das narrativas sobre a Bahia na obra de Caetano, Gil,
Gal e Bethânia podem se referenciar em posições tanto no campo artístico como em

5
O termo acontecimento engloba a realização do show, do disco e do filme, além da formação do grupo, ou
conjunto Os Doces Bárbaros. É uma maneira de facilitar a remissão aos fatos. Como o show foi registrado
em disco e filme, e estes estão associados, para falar deste momento das trajetórias destes músicos, utilizo o
termo englobante acontecimento.
16

relação às lutas externas ao âmbito da música, estruturantes dos posicionamentos destes


agentes no cenário musical brasileiro.

Do ponto de vista mais propriamente técnico, um aspecto que vale a pena salientar,
logo de início, é que um trabalho sobre práticas artísticas tem a especificidade de lidar com
fontes variadas e cujo tratamento demanda algumas considerações, a serem aprofundadas
oportunamente.

Tomo como fontes principais:

• a discografia dos quatro artistas, centrada no disco Doces Bárbaros (Doces


Bárbaros, LP Duplo, 1976, Polygram) e no filme homônimo, disponibilizado
na forma de home vídeo;

• os depoimentos de Gil, Caetano, Gal e Bethânia sobre este acontecimento, e


sobre suas carreiras na forma de entrevistas em jornais impressos, TV, home-
videos, DVD’s;

• reflexões consideravelmente posteriores dos mesmos sobre suas carreiras e


principalmente sobre o acontecimento;

• fotografias;

• os sites pessoais e organizados em torno das figuras desses músicos na Internet;

• uma vasta produção jornalística impressa e televisiva; e

• a crônica musical do período, sobretudo no Rio de Janeiro.

A partir deste material, pode-se fazer uma análise abrangente da tessitura de


construções identitárias desencadeadas em torno das carreiras de Caetano, Gil, Gal e
Bethânia e especialmente desse acontecimento chamado Os Doces Bárbaros. A crítica
destas fontes leva em consideração que há interesses variados, tanto na produção das
matérias jornalísticas quanto do material de divulgação de discos e shows. O que pretendo,
ao utilizar este material, é colher informações e construções midiáticas sobre estes artistas,
no sentido de embasar empiricamente as análises sobre as identidades constituídas nestas
trajetórias.
17

A presença de suas obras em meios de ampla divulgação revela traços que dão suporte
às discussões deste trabalho. Cabe, entretanto, considerar a relatividade dessas fontes,
inseridas numa trama eminentemente relacional. Bourdieu (2001; 2003; 2004) utiliza o
conceito de campo artístico no sentido de que a criação não é fruto apenas do criador,
situando outros agentes do campo como promotores da existência das obras, o que remete
à questão (a ser tratada adiante) das trajetórias/biografias dos artistas. As contribuições de
Ribeiro & Lerner (2003) e Velho (2001) possibilitam situar a discussão sobre o aspecto
biográfico relativo aos indivíduos nas sociedades complexas contemporâneas. Neste
sentido, as fontes que utilizo acabam por fazer parte e consistir também nas próprias
criações, remetendo inevitavelmente aos criadores, sem pretensão de atingir “verdades”,
como numa perspectiva epistemológica tendente ao positivismo.

Por outro lado, não se pode desconsiderar que a mídia assume, nos nossos dias, um
papel central no reconhecimento das realidades sociais. Isto não significa que produzem a
realidade, como às vezes se desprende de certos discursos, mas elabora lentes através das
quais se enxergam os fatos, construídos como tais. Canclini nos situa:

A mídia se transformou, até certo ponto, na grande mediadora e mediatizadora e, portanto,


em substituta de outras interações coletivas (...) “Aparecer em público” é hoje ser visto por
muita gente dispersa frente ao televisor familiar ou lendo um jornal em sua casa. Os líderes
políticos ou intelectuais acentuam sua condição de atores teatrais, suas mensagens são
divulgadas se são “notícia”, a “opinião pública” é algo mensurável por pesquisas de opinião.
O cidadão se torna cliente, “público consumidor” (Canclini, 1998, pp. 289-290).

Os repertórios e suas plasmações em discos, entrevistas e materiais de divulgação


constituem a base documental principal desta pesquisa, assim como as matérias, entrevistas
impressas e em filme ou TV possibilitam estrategicamente que se desenvolvam
considerações sobre as construções acerca da Bahia presentes na obra de Caetano, Gil, Gal
e Bethânia, tendo como referência principal o acontecimento de 1976. Afinal, as carreiras
destes artistas foram erigidas sob o emblema marcante da cultura da mídia, ou seja, são
trajetórias efetivadas no cenário midiático por excelência. Na acepção de Kellner (2001), é
através do rádio, da TV, do cinema e de outras formas de produção midiática que os
indivíduos constroem noções de pertencimento, seja à classe, seja ao gênero, seja ainda ao
grupo étnico.

A análise leva em conta tanto as letras quanto os estilos das peças, os momentos em
que foram efetivamente executadas e o impacto causado na mídia e nos públicos. Uma
canção como Atrás do trio elétrico (Caetano Veloso), por exemplo, ultrapassa os limites da
18

cena artística e alcança uma outra magnitude, pois representa a assunção, por parte do
autor, de uma musicalidade que revolucionou o cancioneiro baiano desde Caymmi e passa
a ser matéria de suas elaborações musicais/identitárias. Vejamos:

Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu


Quem já botou pra rachar
Aprendeu que é do outro lado do lado de lá
Do lado que é lá do lado de lá

O sol é seu, o som é meu


Quero morrer, quero morrer já
O som é seu, o sol é meu
Quero viver, quero viver lá
Nem quero saber se o diabo nasceu foi na Bahia, foi na Bahia
O trio eletro-sol rompeu no meio di
No meio dia

Atrás do trio elétrico (Caetano Veloso)


In: CD Caetano Veloso, Universal, 1969.

Por outro lado, as capas e fotografias amplamente publicadas e acessíveis também


podem dar conta do delineamento das singularidades artísticas destes músicos ao longo de
suas fases nas suas trajetórias. Por exemplo, quando Gal Costa passa da figura de cantora
comportada de Bossa Nova na capa do LP Domingo (1967) para uma Gal psicodélica em
Gal (1969) e uma hippie localizada entre tipos oriundos de Salvador e do Rio de Janeiro no
Fa-Tal (1971), não é somente uma mudança musical que se opera. A imagem e o
imaginário sobre esta cantora baiana vão se reconfigurando. Nas palavras de Gal:

Muitas pessoas gritavam: – macaca, piolhenta, por causa do meu visual...


In: Entrevista no Programa do Jô, Rede Globo de Televisão, novembro de 2002.

Vale salientar que um estudo dessa natureza não se propõe a avaliar o show e as
práticas artísticas correspondentes às quatro carreiras em termos propriamente estéticos,
como seria o papel do crítico, do jornalista ou do cronista. Não é demais lembrar que, nesta
pesquisa, a produção desses profissionais é uma fonte aos efeitos de uma discussão
sociológica das representações que entram em jogo – confrontando-se, defrontando-se,
recriando-se –, revelando aspectos importantes na trama da identidade cultural; no caso em
questão, a constituição de uma identidade cultural baiana. Ou seja, o trabalho de Caetano,
Gil, Gal e Bethânia é apreciado em função de sua relevância social, muito mais de que do
seu valor musicológico.
19

A Dissertação se apresenta em forma de crônica sociológica. Ao invés da forma


convencional de colocar as considerações teórico-metodológicas antes da discussão
propriamente temática, optou-se por abordar o objeto desde o início, numa aproximação
em círculos concêntricos, no sentido de tramar passo a passo a experimentação da hipótese,
o que vem coincidir com a construção progressiva do objeto. Para não cansar o leitor com
um número excessivo de citações de repertório, depoimentos e outras fontes, preferiu-se
remeter a maior parte delas ao anexo, apresentado em outro volume impresso, o que
permite o acesso à riqueza desse material sem comprometer a fluidez da leitura6. Preferiu-
se, também, disponibilizar diversas imagens na forma de CDRom, devidamente
legendadas7.

Colocadas estas premissas, uma arquitetura teórico-metodológica precisa então ser


constituída no sentido de operacionalizar as discussões em torno do acontecimento
relevante que é o show/disco/filme Os Doces Bárbaros.

Já no Capítulo 2, a abordagem se dá na direção das construções identitárias na prática


artística de Caetano, Gil, Gal e Bethânia. Trata-se de como se estruturam estes agentes nas
reelaborações identitárias sobre Brasil e Bahia, a partir de suas singularidades. Na
construção desta categoria, central nesta pesquisa, consideram-se sobretudo as
contribuições de Bourdieu, Giddens, Elias e Goffman.

No Capítulo 3, as trajetórias são analisadas à luz de sua constituição enquanto


sistemas de posições singularizadas assumidas e alcançadas por estes agentes.

Finalmente, no Capítulo 4, o acontecimento Os Doces Bárbaros é analisado como


interface de suas carreiras e momento privilegiado para perceber as transformações
operadas nas narrativas que correspondem a reelaborações sobre identidades baianas –
poderíamos dizer, também, brasileiras – nestas práticas artísticas.

6
São três coleções de anexos num mesmo volume: o Anexo Depoimentos – AD, o Anexo Notícia – AN e o
Anexo Letras – AL. Cada chamada no corpo do texto da Dissertação consta da abreviação, seguida do número
de ordem da peça. Ex: [AL 17].
7
O CDRom contém o texto da Dissertação, os diversos anexos acima e ainda o Anexo Internet e as imagens
e entrevistas em áudio com Caetano, Gil, Gal e Bethânia sobre o show Doces Bárbaros e suas
comemorações, bem como a série de diapositivos preparada para fins de exposição.
20

2 A OBRA DE CAETANO, GIL, GAL E BETHÂNIA


COMO DINÂMICA DE CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS

A obra artística como um drama de construções identitárias pode ser observada no


trabalho de inúmeros artistas. Numa figura como Michael Jackson, por exemplo, podemos
perceber a constituição de toda uma cultura midiática pop que remete ao poder, à
fugacidade e ao cosmopolitismo norte-americano. Em Chico Buarque, o Rio de Janeiro e
suas representações sobre a malandragem, malícia e ao mesmo tempo refinamento
intelectual comparecem como que a emoldurar aspectos constituintes do perfil e da
trajetória deste compositor.

Em Caetano, Gil, Gal e Bethânia, temos uma gama de associações possíveis ao


universo do que se chama Bahia no imaginário nacional, bem como à relação entre Bahia e
Brasil. Suas carreiras apontam, desde o final dos anos sessenta até hoje, para uma
elaboração de identidades culturais realizada sob a égide da multiplicidade e da
prerrogativa da Bahia como um território ancestral, sede da lascívia, cadente e moderno,
sendo ao mesmo tempo esteira e gerador de seus trabalhos. Vejamos a declaração de Maria
Bethânia:

A Bahia é muito sensual e não estou falando de mim só, não. O povo baiano tem languidez,
um jeito ali, uma gingada aqui...
In: Revista Playboy, novembro de 1996.

O que temos aí é a reiteração e reconfiguração de narrativas identitárias que se tornam


hegemônicas, principalmente no campo da música, e são elaboradas no trabalho destes
quatro músicos. Pode-se afirmar, inclusive, que diversos vetores identitários são
constituídos nessas trajetórias, ora confluindo, ora discorrendo, ora ressignificando
posições do que se poderia pensar ser baiano nas narrativas que referenciam a
nacionalidade brasileira.

Tomemos rapidamente um episódio interessante aos efeitos de marcar esta


especialidade. Em 1969, ao ser convidado ao exílio, Gilberto Gil compõe uma canção para
o Rio de Janeiro8. Um de seus versos que ficaram mais famosos foi justamente aquele
referente à Bahia. Em “A Bahia já me deu régua e compasso... prá você que me esqueceu,

8
Aquele Abraço [AL 001], de fevereiro de 1969, quando saía do Rio de Janeiro em direção a Salvador,
encaminhando-se para o exílio em Londres, alguns meses depois.
21

aquele abraço”, o compositor afirma, naquele período de exceção, uma assunção da


dimensão tradicional de sua origem regional, como a afrontar os desígnios políticos atuais
aquele momento. Pelo próprio Gil, referindo-se ao vulto midiático e de público que essa
canção tomou:

Hoje eu já canto assim: “pra você que não me esqueceu, aquele abraço...”.
In: Domingão do Faustão. Rede Globo de Televisão, 1997.

Assim, passo agora a discorrer sobre as discussões acerca da dinâmica de formação de


identidades na contemporaneidade como um pano de fundo contra o qual a construção de
identidades baianas na obra destes músicos pode ser mais nitidamente contemplada (2.1).
Em seguida, tomo a categoria da singularidade como um eixo fundamental da discussão
sobre a configuração de narrativas identitárias na obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia,
sobretudo situando-a no pensamento dos grandes autores de síntese do século XX no
âmbito das Ciências Sociais (2.2).

2.1 A IDENTIDADE CULTURAL COMO


FEIXE REPRESENTACIONAL EM TEXTOS MÚLTIPLOS

Podemos formular sociologicamente o problema da identidade, tomada aqui como


feixe representacional múltiplo e diverso, no sentido de situar o objeto deste trabalho como
um drama de construções em que operam referências múltiplas e narrativas transitando
entre tradicionalidades e modernidades reconhecidas como tais na ambiência do senso
comum. Mais do que como uma única narrativa que se estabelece como hegemônica, tomo
identidade como um construto variado e complexo de elementos por vezes díspares, que
organizam a existência socialmente construída com sentido. Cabe colocar algumas balizas
aportadas pelos autores que, nas últimas décadas, vêm discutindo a contemporaneidade9,
sendo que boa parte deles são identificados com a escola de pensamento conhecida como
Estudos Culturais.

9
Costuma-se também colocar o pós-moderno, ou pós-modernidade, como objeto/discussão principal desses
autores.
22

Para Hall (2002), na modernidade tardia, não somente as concepções sobre o sujeito
são modificadas, como também as formulações de identidade cultural. As narrativas que
organizam a identidade tornam-se cada vez mais complexas em decorrência da
multiplicidade crescente de posições sociais ocupadas pelos indivíduos. O sujeito social
não é apenas ou simplesmente a mulher, a operária, a homossexual. Pode ser um amálgama
– uma interface mesmo – destes padrões identitários.

Tal multiplicidade identitária se apresenta no campo da arte, e especificamente nas


carreiras destes quatro agentes. Podemos percebê-la como constitutiva, de maneira muito
especial. Ao artista da música popular no Brasil, o trânsito entre variadas personificações e
construções midiáticas, ao longo do tempo, ajuda a configurar sua própria posição no
cenário da música.

Se considerarmos que Caetano e Gil iniciam suas carreiras de alguma forma


associados a grupos ou movimentos de esquerda e que, em pouco tempo, suas atitudes os
revertem para uma espécie de suspeição política por parte de setores mais ligados às
militâncias político-artísticas, veremos que a multiplicidade identitária, como em Hall
(2002), compõe as práticas artísticas destes agentes desde o começo. Assim, Caetano
lembra das vaias recebidas em diversas ocasiões nos festivais no final dos anos sessenta:

Quando aqueles estudantes nos vaiaram, a mim e a Gil, eles não estavam errados. Nós
sempre fomos suspeitos politicamente...
Caetano Veloso
In: Programa Roda Viva, TV Cultura, 1996.

Sua identificação como revolucionários no âmbito da arte não deixava de remeter


também a revoluções no âmbito político. Naquele momento, esperava-se da música e de
seus artistas uma quase redenção para o obscuro cenário brasileiro, no que as
manifestações de Caetano e Gil acabaram não sendo tão condizentes assim com as
perspectivas da arte militante e engajada, tal como entendiam alguns intelectuais. Como
exemplo, não é demais citar que, ao sair da gravação da canção Baby (Caetano Veloso),
Gal e o próprio Caetano foram interpelados pelo músico Geraldo Vandré num tom de
ironia e agressividade, contrapondo-se ao universo evocado pela peça (Calado, 1997).
Assim:
23

Você precisa saber da piscina


Da margarina, da Carolina
Da gasolina
Você precisa saber de mim
Baby, baby
Eu sei que é assim
Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete, andar com a gente, me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto
Baby, baby
Há quanto tempo
Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais
Não sei, comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul,
Da América do Sul
Você precisa
Não sei, leia na minha camisa
Baby, baby
I love you

Baby (Caetano Veloso)


In: Tropicália ou panis et Circensis, LP, Polygram, 1968.

A noção de identidade, pensada a partir de Hall, nos coloca diante do enigma da


multiplicidade tomando o indivíduo e se apresentando como diversidade cultural, que pode
também ser remetida a uma pós-modernidade10 composta pela mudança intermitente,
sendo que a velocidade assume aí importância privilegiada, em contraste com o que se
opera nas chamadas sociedades tradicionais, como vemos em Giddens (1991).

Observa-se que tanto Caetano e Gil quanto Gal e Bethânia, considerando-se as


particularidades de compositores e intérpretes, desde que saem da Bahia para fazer carreira
no eixo Rio - São Paulo, aparecem como artistas baianos que de alguma forma
apresentavam peculiaridades. O produtor e cronista Nelson Motta chega a afirmar que em
Bethânia11 tudo soava diferente, do sotaque à sexualidade (Motta, 2000), numa referência
ao perfil desta artista, que ficou famosa no final dos anos sessenta por algumas atitudes
reconhecidas como de difícil trato por boa parte da imprensa. Numa entrevistas do filme
Doces Bárbaros, de 1977, abordada a respeito de suas opiniões e especificamente sobre
homossexualismo, Bethânia se apresenta entre irônica e irritada. Vejamos:

10
Termo reconhecidamente problemático, pela inclusão do prefixo “pós”. Não assume aqui um sentido
cronológico simples. Poderia ser substituído por contemporaneidade, como preferem vários autores.
11
Ver depoimento completo em Anexo Depoimentos 01.
24

Suas opiniões pessoais só servem pra você? (Repórter)


É lógico! (Bethânia)
E em relação a lesbianismo, sua opinião pessoal é que...? (Repórter)
É que é igual a você não ser. Ou você é viado, ou você não é viado, as duas coisas são
idênticas! (Bethânia)
Sim, mas certas pessoas têm certos preconceitos, digamos, com determinadas idéias...
(Repórter)
Você tava perguntando a minha, não é? A minha é essa! (Bethânia)
In: Home-vídeo Os Doces Bárbaros. Dir. Jon Tob Azulay. CIC. 1977.

Deste modo, Bethânia aparece como uma intérprete de voz grave e presença que não
correspondia modularmente à imagem de baiana brejeira e doce, como Carmem Miranda
ou as personagens femininas da obra de Caymmi12. Ao mesmo tempo, o vigor de sua
expressão dramática, muitas vezes extrapolando o palco, fez com que a imagem de Maria
Bethânia ficasse cada vez mais associada ao caráter de Iansã, a quem a artista se refere
como sendo seu orixá (Passos, 2004). Pode-se afirmar uma identificação desta figura
artística com uma conformação de mulher forte e pronta para os enfrentamentos, o que –
considerando-se o lugar de passividade normalmente reservado às cantoras no Brasil –
fazia com que a aparição de Bethânia fosse recebida como algo estranho e/ou intrigante.

Caetano e Gil, como compositores/cantores/performers remetidos emblematicamente


como criadores da Tropicália13, são reconhecidos como artistas talentosos, cuja arte
tematizava ora a uma Bahia ancestral e quase mítica, ora a uma modernidade tomando a
frente tanto da Bahia quanto do Brasil. Enquanto as peças Alegria, Alegria (Caetano
Veloso) [AL 002] e Domingo no Parque (Gilberto Gil) [AL 003] colocavam imagens de
cosmopolitismo e guitarras encontrando-se com berimbaus num parque de diversões do
bairro da Ribeira, a canção Beira-mar (Gilberto Gil/Caetano Veloso) [AL 004] é um poema
quase caymmiano sobre as belezas naturais/culturalizadas do mar da Bahia, chegando a ter
provocado reações manifestas de hostilidade, como lembrado por Bethânia:

12
O que, entre outros vetores, a diferencia como baiana de Gal Costa, por exemplo.
13
Esta emblematicidade não deveria levar ao equívoco de afirmar que eles simplesmente “criaram” a
Tropicália, que contou também com a participação decisiva de Torquato Neto, Capinam, Tom Zé e outros
artistas. A propósito, o termo Tropicália foi retirado de uma instalação artística de Hélio Oiticica, que
impressionou Caetano. A sugestão do nome da canção Tropicália (Caetano Veloso) [AL 005] foi dada pelo
cineasta Luís Carlos Barreto e acatada logo pelo produtor Manoel Barenbein e empresário Guilherme Araújo,
que conseguiu fazer Caetano aceitar este nome.
25

O Ronaldo Bôscoli, que era carioca e estava no júri, falava para os jornais: "Ué, o que
esses baianos estão pensando? Eles não conhecem Cabo Frio, Saquarema, Araruama,
Angra dos Reis? Estão falando que o mar da Bahia é que é o mais azul do mundo?” E
Caetano, que já era metido a galo-de-briga, se enfezou. A música foi desclassificada, né?
Maria Bethânia
In: Entrevista à revista Playboy, Novembro de 1996.

Se podemos afirmar que o acontecimento Os Doces Bárbaros foi um momento


especial de transfigurações da idéia de Bahia, também no início das carreiras, procede
inferir que estes artistas já se apresentavam como baianos a inaugurar novos padrões de
tratamento estético tomando a Bahia como motivo.

A imagem pública de Gal Costa, que passa de cantora pós-Bossa Nova a uma espécie
de roqueira hippie da Bahia, é outro exemplo de trânsito identitário importante. Produzida
por Guilherme Araújo – considerado por alguns observadores o grande manager das
carreiras do grupo baiano14 –, Gal se permite colocar na posição de uma artista entre a
interpretação límpida associada ao detalhismo da Bossa Nova e os arroubos modernizantes
da Jovem-Guarda. Caetano Veloso, reportando-se ao momento em que o nome de Gal
muda de Gracinha para Gal Costa, chega a afirmar que Guilherme Araújo queria
transformar a intérprete numa nova Wanderléa, figura emblemática do iê-iê-iê (Veloso,
1997).

Essas referências empíricas nos levam a ponderar sobre a terminologia excludente e


monológica correspondente à fixidez associada a algumas conceituações em torno de
identidade cultural. As pretensões de portar identidades iluministas – no sentido apontado
por Hall – parecem predominar ainda em várias análises de cientistas sociais. Uma
angústia que parece se instalar especialmente em componentes de grupos militantes diz
respeito à afirmação constante de sua alteridade por oposição (Uriarte, 2002).

Ser praticante de culto afro-brasileiro significaria, nesta ótica, não ser católico; ser
mulher significaria não querer (ou não poder) ser dócil com os homens; e assim por diante.
Embora as identidades costumem ser percebidas a partir de oposições relativas, o que se
propõe aqui é a consideração de nuclearizações identitárias não necessariamente
dependentes de um outro antitético (como num binarismo estruturalista simplificador) para

14
Como ficaram conhecidos Caetano, Gil, Gal e Bethânia, desde os idos de 1965-66, ao chegarem ao eixo
Rio-São Paulo, como pode ser atestado em diversas referências, seja em jornais da época, seja na bibliografia
específica sobre música popular brasileira, alguns itens constando neste trabalho.
26

se estabelecer. Neste sentido, dificilmente a afirmação de Albergaria (2002) de uma


identidade baiana forjada de fora para dentro, de cima para baixo e de frente para trás
sustentaria sua validade aos efeitos desta pesquisa.

Enfim, a perspectiva de que a identidade cultural se forma simplesmente por contraste


não dá conta da complexidade da dinâmica da construção de identidades. Quando
Albergaria afirma que a Bahia é construída a partir de uma ótica do eixo Rio - São Paulo,
nega a possibilidade de se engendrarem narrativas identitárias no contexto social baiano
também a partir de sua dinâmica interna, o que não significa que este vetor se mantenha
estanque em relação ao confronto com elaborações exógenas. Ora, se não faz sentido tomar
a identidade como uma essencialidade absoluta, tampouco parece procedente tratar a
construção de identidades como um processo em que a elaboração ocorrida desde o centro-
sul do país se imponha como suficiente sobre uma suposta passividade dos agentes no
mesmo campo correspondente à Bahia. Isto certamente não se aplica às ações exercidas na
prática artística – e construções identitárias – do grupo baiano.

Nos embates pela manutenção da hegemonia das representações e das narrativas


identitárias, os agentes envolvidos estão embebidos de mananciais simbólicos e são
capazes de identificar-se, tanto em relação com outros textos15 (Moura, 1996:2001)
identitários quanto na incorporação do ethos configurado nas próprias relações sociais que
identificam a noção de regionalidade (Bourdieu, 2002). Neste sentido, pode-se tentar
compreender como os próprios baianos se percebem nesta rede de representações que se
configura em torno do texto Bahia. Vejamos:

15
Moura usa o conceito de texto “na acepção mesma de tecimento (no gerúndio), tecido (no particípio) e
contextura, tessitura (no infinitivo) de significações e orientações, o nome de uma doutrina ou de uma
cartilha de convivência, de um arranjo civilizatório” (2001, p. 13). O texto identitário, especificamente, é
“aquele que realiza a asserção direta da identidade, o anúncio explícito do perfil de um sujeito, seja um
modesto indivíduo, seja uma sociedade de milhões deles” (2001, p. 12).
27

Durante todo o ano, e com uma maior intensidade no verão, Salvador é dita pelos quatro
cantos como a cidade onde impera a festa. Seria uma característica nossa o exercício
constante tanto do som quanto da pélvis? E como os baianos vêem essa leitura? Lembro-
me de dois fatos que podem exemplificar de que modo nós reagimos. Um deles foi a
exibição de um programa sobre a Bahia, em que a atriz Regina Casé satirizava o jeito de
ser do baiano com a máxima de que nós quando estamos deitados numa rede não
fazemos nenhum esforço, nem para pegar um pedaço de melancia. (...) O outro fato foi ter
sido eu testemunha ocular da expectativa paulistana dessa representação festiva. Fui
chamado à atenção pelos paulistas por não me comportar como um autêntico
representante da república do acarajé e do dendê. Ou seja, se em alguma festa há um
baiano, necessariamente, ele tem que estar fadado a incorporar algum espírito da festa.
Jocélio Teles dos Santos, Farsa de baiana que não é falsa. In: A Tarde Cultural, Jornal A
Tarde, 01.maio.1999, p.8.

A identidade cultural baiana viria, então, marcada pelo signo da festa e da alegria,
num construto que posiciona como dominantes, determinados padrões de comportamento.
Por outro lado, do mesmo modo que no senso comum é cada vez mais difícil assumir uma
única identidade social, também para a ciência torna-se um problema a definição de qual
identidade unívoca (Uriarte, 2002) pode ser associada a um indivíduo mergulhado em
redes e arranjos sociais. Os sentidos, motivos e identificações que emanam da relação entre
os sujeitos – e suas posições sociais – são complexificadores e componentes invariáveis do
que chamamos identidade cultural.

Neste sentido, os autores dos estudos culturais trazem, como contribuição maior para
essa discussão, uma perspectiva analítica fecunda no tratamento do problema da
construção das identidades. Em Hall (2002), vemos que essa identidade iluminista, tomada
como suficiente na sua capacidade de definição do lugar ocupado pelo ser social, não se
constitui em referência principal para as sociedades ocidentais hoje estudadas pelas
Ciências Humanas. Deste modo,

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no


final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando
nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados (Hall, 2002, p. 9).

Nem o sujeito individual nem o tecido social cabem suficientemente nas definições
analíticas calcadas no parâmetro da univocidade. Em um dos casos citados por Hall, o
negro norte-americano que é juiz, de partido conservador, acusado de molestar
sexualmente a secretária branca pode bem configurar um caso em que a determinação de
identidade está longe de ser simples, inviabilizando a pronta identificação simplesmente
como negro, juiz, norte-americano ou mesmo marginal (Hall, 2002).
28

O contemporâneo e sua característica multiplicidade de referências culturais trazem ao


debate o descentramento do sujeito e, portanto sua localização em diversas dimensões da
sociedade. Do ponto de vista estrutural, ainda no exemplo citado, poderíamos nos
interrogar que capital simbólico (Bourdieu, 2001) teria este sujeito descentrado e como
poderíamos compreender suas interações no meio em que vive. Poderíamos também nos
perguntar como, no campo artístico, os agentes negociam os contornos do self (Goffman,
2003) a cada momento, no contato com empresários, mídia, públicos. Enfim, como o
estudo da ação performativa do interacionismo simbólico poderia contribuir para a
compreensão da constituição da mobilidade identitária, que caracteriza esse
descentramento do sujeito proposto por Hall (2002)?

Numa obra artística como a de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, cabe interrogar como
estes artistas se posicionam e assumem traços identitários nos encontros face-a-face com
seus interlocutores, desde a produção até os públicos finais. A negociação de self
estabelecida por Maria Bethânia com suas gravadoras, empresários e produtores, por
exemplo, acaba se estendendo à forma como conduz sua relação com os públicos. Bethânia
é reconhecida de maneira muito geral e ampla como uma cantora de forte apelo dramático
que impõe suas vontades e caprichos para assegurar seus lugares no campo da música.
Desta forma, desvencilhou-se de uma imagem de cantora de protesto para assumir sua
posição de intérprete do cancioneiro mais tradicional brasileiro entre os anos 20 e 50,
assim como também pôde construir uma carreira em que a Bahia – do candomblé às
canções sobre Nossa Senhora – é matéria de seu canto. Cabe observar que essa marca de
identidade que se plasma a partir de uma pretensão – que se mostrou exeqüível em virtude
da peculiar situação de quem inaugura novas formas de se perceberem as cantoras no
Brasil – esteve em discordância com princípios empresariais que orientavam sua carreira,
como se verificou, por exemplo, quando de seus desentendimentos com Guilherme Araújo,
que a considerava a mais internacional das cantoras brasileiras na década de sessenta
(Calado, 1997). Vejamos:

Após o sucesso estrondoso, entra em cena uma personagem de muita importância na


trajetória dos baianos: o empresário Guilherme Araújo. Ele começou cuidando da carreira
de Bethânia. Mas logo desistiu. Além de assustado com as dificuldades que todos os
iniciantes enfrentam na conquista do mercado, Guilherme teve ainda que enfrentar o
célebre temperamento de sua contratada. (...) O maestro Rogério Duprat, que mais tarde
faria os arranjos do LP “A tua presença”, observa: “Bethânia é antes de tudo, um
espetáculo, onde a desafinação é compensada por sua presença e interpretação”.
In: Os Baianos de novo. Revista Veja, 30 de junho de 1976, p. 79.
29

Deste modo, uma construção identitária em que aquilo que figura como emblema
maior é um temperamento marcante pode conduzir a perceber um estabelecimento de ação
performativa por Bethânia, que define com notável agudeza norteamentos da sua interação
e figuração como artista. No seu caso, a singularidade artística viabilizou o trânsito
identitário pela via de uma auto-imagem (Elias, 1994a) tomada/percebida como própria de
seu “temperamento forte”.

Enfim, a fragmentariedade pode ser tomada, aos efeitos desta pesquisa, como a chave
de compreensão da formação da identidade cultural, que integra uma série de elementos
axiais referenciadores no seu delineamento. Narrativas como the englishness, a
baianidade, a alma latina ou a lusitanidade somente soam procedentes a partir da
confluência de diversos vetores aplicados sobre o mesmo ponto, nem sempre coerentes.
Vetores tangentes e muitas vezes contraditórios e/ou dissonantes compõem os textos
identitários (Moura, 2001) nos nossos dias; ou seja, é justamente o díspar que pode ser
especialmente estratégico para a compreensão do arranjo correspondente à noção de
identidade, do mesmo modo que as narrativas nacionais são formadas na administração
contínua de suas lembranças e esquecimentos, necessários para a configuração do próprio
Estado-Nação moderno (Anderson, 1989).

Por sua vez, Homi Bhabha (1998) procura desvelar esta dinâmica a partir das noções
de performático e pedagógico. A aproximação destes elementos conceituais com a noção
de identidade regional em Bourdieu (2002) parece então plausível, pois o que se opera
nesta rede identitária é uma luta simbólica pelas classificações e pelas hegemonias através
do poder de di-visão preconizado por este autor. Tanto as lembranças e esquecimentos em
torno das narrativas identitárias (Anderson), quanto o aspecto performativo (Bhabha) estão
colocados nas lutas simbólicas pelo estabelecimento das narrativas majoritárias.

Na obra artística de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, temos a predominância de narrativas


baianas singularizadas e que se impuseram como referências, portanto em um campo de
forças em que se promovem classificações e divisões baseadas em territorialidades – no
caso, a idéia de região (Bourdieu, 2001) plasmada no ícone Bahia. Não é difícil entender
como esse processo pôde se efetivar, pois as carreiras destes artistas se constituem numa
relação muito íntima com diversas esferas importantes da cultura pop no Brasil – desde a
Tropicália – assumindo um trabalho de arte industrial, com ampla penetração nos canais da
30

mídia. Ao lado de outros nomes da MPB, foram contratados pela maior multinacional16
fonográfica brasileira nos anos sessenta e setenta, a Polygram, e puderam ter acesso a
condições de gravação, divulgação e presença midiática que lhes possibilitaram a
veiculação de sua arte, e portanto de narrativas identitárias de toda sorte.

Este grupo baiano pôde se tornar dominante num cenário em que muitos tipos de
trabalhos artísticos se mostravam, cada um deles guardando expressivas especificidades.
Na Bahia, os Novos Baianos, Diana Pequeno, os Tincoãs e Raul Seixas são alguns nomes
fortes que surgiram e se impuseram em posições diferentes no campo musical,
identificados com outros aspectos de identidade cultural baiana.

Tomemos brevemente, como contraponto, o caso de Raul Seixas. Sua música traduz
uma irreverência típica do rock que representava os anseios de uma juventude suburbana
e/ou periférica de Salvador, que parecia perceber nesse artista a encarnação de uma
modernidade norte-americana que aportava na Cidade Baixa e adjacências. Esse rock
baiano, se assim podemos chamar, não alcançou terreno maior que uma sensualidade
lasciva também eletrizada de Caetano, Gil e Gal, demonstrando que, no âmbito das lutas
simbólicas, os capitais em jogo são decisivos para determinar uma lógica de ascensão ou
estagnação das ações.

Raul Seixas não logrou estabelecer-se como o artista baiano por excelência e/ou por
definição, a despeito de seu grande sucesso entre alguns públicos jovens, pois não acessou
elementos identitários de assimilação fácil em relação ao imaginário baiano. Sua música
não deixava de ser associada à Bahia (poucos artistas baianos praticam essa
desvinculação), mas o fato de ser rock deixava para trás a referência maior de ser algo
“tipicamente baiano”. Não é demais citar um comentário de Caetano sobre Raul Seixas,
publicado em 1993, no encarte do disco Tropicália 2:

Tudo o que não era americano em Raul Seixas era baiano demais.
Caetano Veloso
In: Caetano e Gil: Tropicália 2. Encarte, CD, Polygram, 1993.

16
Isto é atestado pela quantidade e qualidade publicamente reconhecida dos artistas contratados por esta
empresa desde o final dos anos sessenta, o que se prolongou por toda a década seguinte. A Polygram
realizou, em 1973, um grande festival – o Phono 73, em que reuniu o seu cast, lançando alguns álbuns com
seus shows. O jornalista Tarik de Souza, participando de uma entrevista a Gilberto Gil no programa Roda
Viva, em 1999, afirmou que esta promoção “era uma demonstração de força da Polygram”.
31

Caetano reconhece uma similaridade identitária ao reconhecer a distância manifesta de


Raul do trabalho dos baianos. Ao mesmo tempo, ratifica-se a distância mantida por
Caetano com relação à obra de Raul, celebrada numa canção-homenagem-referência,
gravada no disco Noites do Norte (2000), a faixa Rock’n’Raul (Caetano) [AL 006]. Como se
pode perceber, há uma disputa por lugares neste campo musical e pela hegemonia no
delineamento dos contornos de uma identidade cultural postas na contenda por
legitimidade. Poderíamos alimentar a questão com a pergunta: quem então seria mais
baiano? Caetano ou Raul? Ora, mesmo que não haja tanta pertinência metodológica nesta
indagação, o gosto de querela dos posicionamentos destes dois ícones não deixou de
suscitar estes comentários.

A identidade cultural passa então a ser vista como coincidindo com a elaboração e
cultivo de uma narrativa que, longe de ser simplesmente unificadora, é antes uma
organizadora de superfícies e profundezas que guardam entre si uma relação de tensa
complementaridade. Seus contornos são definidos pela presença de elementos que
interagem inclusive com certas fissuras e marcas irreversíveis de sua processualidade,
como vemos em Bhabha (1998). Neste sentido, a música popular pode ser percebida como
écran de narrativas identitárias, com suas variadas possibilidades de aportes a partir de
muitos artistas, que singularmente expressam feixes de representações remetidos aos
diversos vetores de brasilidade.

Na busca de enriquecer a construção do conceito de identidade cultural, parece


relevante também a contribuição de Gilroy (2001) e sua visão da identidade negra como
um/em trânsito, bem como aquelas de Canclini (1998) e Canevacci (1996) sobre o
hibridismo/sincretismo e ainda de Anderson (1989) sobre as nacionalidades como
comunidades imaginadas, no sentido de ampliar a compreensão dessa dinâmica na
contemporaneidade17.

A perspectiva de Gilroy (2001), assumindo a dianteira na consideração de que as


identidades negras se constituem no trânsito África-Europa-América, pode ser percebida
particularmente no caminho traçado por Gil no que tange sua relação com a negritude. Gil
costuma advogar uma presença de elementos culturais afro-brasileiros (e globais) que se
tornaram emblemáticos de sua obra. Principalmente após o seu exílio em Londres, quando

17
Algumas discussões presentes na obra destes últimos autores serão retomadas no Capítulo 4, quando se
trata da categoria da territorialidade.
32

retorna ao Brasil, a música deste artista passa a ser um veículo de expressões tanto das
sociabilidades baianas/nordestinas, como nos discos Expresso 2222, de 1972, Refazenda,
de 1975, e Refavela18, de 1977, quanto de elaborações sobre negritudes.

O negro identificado em Gilberto Gil, ao longo de sua trajetória – principalmente a


partir de meados da década de setenta – pode ser lido como cosmopolita e ao mesmo
tempo cujas matrizes culturais aparecem muito evidentes. Parece haver uma pretensão de
atingir diversos públicos, portando referências identitárias tendentes aos trânsitos, na
acepção de Gilroy (2001). Canções como Expresso 2222 [AL 007], Oriente [AL 010] e Chuck
Berry Fields Forever [AL 011], todas de Gil, trazem elementos interessantes para discussões
acerca dos lugares existenciais e sociais dos negros no Brasil e mundo. O trabalho deste
artista toca questões importantes sobre a produção musical, chegando à discursividade
além da música. Vejamos do próprio Gil:

O que a mídia chama de "world music", toda música popular criada e produzida na África,
América Central e do Sul e em outras partes do planeta, nasce de uma colisão: a colisão
entre os impulsos pela emancipação, autonomia e identidade dos povos do chamado
Terceiro Mundo, por um lado e, por outro, os interesses do Primeiro Mundo em manter seu
poder (...) A world music é, portanto, um paradoxo contemporâneo: um mundo
heideggeriano, onde todos somos vítimas e algozes, controlados e controladores. Sem nos
darmos conta disso, trabalhamos para a unidade do planeta e, vice-versa, para o
crescimento e a proliferação da diversidade local, que se afirmam em múltiplas
minirrealidades espalhadas como poeira em todo o globo (...) O jazz influencia o samba,
que cria a bossa nova, que, por sua vez, influencia novamente o jazz. O son, a rumba, o
mambo, o merengue influenciaram a música africana. A música africana está presente no
nascimento de gêneros novos como o reggae e o samba-reggae que, por sua vez, tornam
a influenciar os novos movimentos da música africana e a subsidiar também o rock n' roll e
o rhythm 'n blues (...) Os "mercadores do ritmo" partiram com suas novas caravanas,
transportadas por neonavegações, via filmes, rádio, disco e televisão, satélites e
computadores. Nos últimos 50 anos eles estabeleceram um intenso tráfego musical entre
as últimas fronteiras do planeta e o centro euro-americano, criando uma música do mundo
industrial que vai muito além da “world music” tal como definida pelos executivos yuppies
do showbizz (Gil, 1995, p.1-3).
A música do mundo é maior que a world-music. In: O Estado de São Paulo, 1995.
Publicado em www.gilbertogil.com.br, acesso em 15/04/2003.

Deste modo, a identidade tratada como um construto desenvolvido numa negritude


não somente “africana”, no sentido de uma simples remissão ao passado mítico-tradicional,
encontra em Gilroy a referência mais notável dentre os autores dos estudos culturais.
Podemos ver em Gil um exemplo de expressão dessa identidade negra relativamente fluida
enquanto produto das tensões entre colonizadores e colonizados. A world music, como
rótulo de uma música que, sendo originária de países periféricos, faz muito sucesso nos

18
A faixa título homônima encontra-se como AL 009.
33

países hegemônicos, seria uma forma de classificar a produção musical no campo


respectivo, hierarquizando posições entre gêneros musicais e, portanto, posições sociais
dos agentes envolvidos. Ao comentar este rótulo da indústria cultural, Gil vem demonstrar
dialogicamente o que produz em seu trabalho musical, como a apresentação de uma
negritude voltada para o pop, o que é especialmente interessante aos efeitos desta
discussão, pois a cultura pop provém de sociedades hegemônicas, como a inglesa e a norte-
americana. Seu comentário sobre a world music guarda, intertextualmente, certa ligação
com palavras de Gilroy:

Este capítulo também propõe alguns novos cronótopos* que poderiam se adequar a uma
teoria que fosse menos intimidada pelos – e respeitosa dos – limites e integridade dos
estados-nações modernos do que têm sido até agora os estudos culturais ingleses ou
africano-americanos. Decidi-me pela imagem de navios em movimento pelos espaços entre
a Europa, América, África e o Caribe como um símbolo organizador central para este
empreendimento e como meu ponto de partida. A imagem do navio – um sistema vivo,
microcultural e micropolítico em movimento – é particularmente importantes por razões
históricas e teóricas que espero se tornem mais claras a seguir. Os navios imediatamente
concentram a atenção na Middle Passage** (passagem do meio), nos vários projetos de
retorno redentor para uma terra natal africana, na circulação de idéias e ativistas, bem
como no movimento de artefatos culturais e políticos chaves: panfletos, livros, registros
fonográficos e coros (Gilroy, 2001, p. 38).

Em Gil, o negro pode ser baiano, brasileiro, britânico e mesmo africano. Suas
remissões se dão num plano que não cabe na perspectiva de uma classificatória fixa ou
simples. Como vemos em Hall (2002), são identidades negras fragmentadas em
ancestralidades africanas e contemporaneidades luso-americanas. Vejamos um depoimento
do artista comentando a sua realidade familiar, em que a questão negra nunca foi central:

A negritude na minha família começou comigo...


In: Programa Roda Viva, TV Cultura, 1999.

Se o descentramento identitário se mostra em evidência, por outro lado, nas trajetórias


destes artistas, o apelo aos aspectos sincréticos das narrativas identitárias brasileiras não
pode ser deixado de lado. A Tropicália talvez tenha sido o maior exemplo desta afirmação,
pois a geléia geral brasileira representa a busca radical, por parte destes agentes, de
misturar referências de antes, do seu momento e apontando para vanguardas – no sentido
de Bourdieu (2003), como contrapontos dominados para tradicionalidades dominantes –

*
“Uma unidade de análise para estudar textos de acordo com a freqüência e a natureza das categorias
temporais e espaciais representadas... O cronótopo é uma ótica para ler textos como raios X das forças em
atuação no sistema de cultura da qual elas emanam”. M. M. Bakhtin, The Dialogic Imagination, organizado e
traduzido por Michel Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981, p. 426. Nota do autor.
**
A expressão Middle Passage tem uso consagrado na historiografia de língua inglesa e designa o trecho
mais longo – e de maior sofrimento – da travessia do Atlântico realizada pelos navios negreiros (N. do R.)
34

que ajudaram a redefinir rumos no âmbito artístico brasileiro. As canções Marginalia 2 e


Geléia Geral, de Gil e Torquato Neto [AL 013], poderiam ser lidas como manifestos de
compreensão do Brasil como amálgama identitário, em que lutas simbólicas constantes vão
figurando narrativas de brasilidade.

Aos efeitos deste momento da reflexão, a Tropicália pode ser compreendida como um
movimento que viabilizou e favoreceu a percepção do lançamento de capitais simbólicos
reunidos em agentes de diversas procedências sócio-culturais – o grupo baiano, Os
Mutantes, Rogério Duprat, Nara Leão, Capinam, Torquato Neto – que atuaram no sentido
de discutir o Brasil a partir de sua posição de receptor de influências globais, já naquele
período. Pode-se dizer que os tropicalistas assumiram uma brasilidade também fluida e
múltipla (no sentido de Hall), em trânsito constante (como em Gilroy) e, portanto,
sincrética (como em Canevacci).

O hibridismo/sincretismo analisado por Canevacci (1996) como constitutivo das


culturas ocidentais pode ser reconhecido na formação social brasileira, como a justificar a
multiplicidade de origens étnico-raciais-culturais da história nacional, tomada como
narrativa majoritária que organiza a existência do Brasil enquanto tal.

Esta percepção das identidades culturais resultantes de processos híbridos faz sentido
se consideramos a música popular brasileira como articuladora de narrativas identitárias. O
samba, reconhecido unanimemente como gênero máximo e por definição da brasilidade,
pode ser visto (e ouvido...) como o resultado de uma série de sincretismos musicais que
começam com o que se convenciona chamar de semba para alguns músicos e
pesquisadores e deságua em uma variedade enorme de estilos correlatos, como o pagode, o
samba-canção, o partido alto.

Neste sentido, sem menosprezar as lutas pelo poder e pelos lugares ocupados pelos
grupos sociais, podemos conceber as sociedades de hoje como frutos de constantes
processos de sincretismos, sínteses e/ou interfaciamentos. A vida social, principalmente se
considerarmos a cidade como sede e referência da contemporaneidade, não pode ser
interpretada sem que se recorra às transformações operadas no encontro de tradições
culturais diversas. Assim:
35

Como analisar as manifestações que não cabem no culto ou no popular?, que brotam de
seus cruzamentos ou em suas margens? (...) Sem dúvida, a expansão urbana é uma das
causas que intensificaram a hibridação cultural. (...) Passamos de sociedades dispersas em
milhares de comunidades rurais, com culturas tradicionais, locais e homogêneas, em
algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca comunicação com o resto de uma
nação, a uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica
heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes nacionais e
transnacionais de comunicação (Canclini, 1998, p. 283-285).

Na obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, pode-se perceber inúmeras referências ao


que se chama híbrido. Se considerarmos a perspectiva de Canevacci (1996) – todas as
culturas são sincréticas –, a brasilidade e as narrativas baianas constituídas nestas práticas
artísticas são, por excelência, híbridas.

Ao longo destas quatro décadas de carreira, Caetano, Gil, Gal e Bethânia acessaram
capitais simbólicos tradutores de aspectos diversos brasileiros/baianos, como as influências
da música pop internacional (expressão maior em Gil e Caetano), ou a ratificação de textos
tradicionalmente reconhecidos como nacionais (em Bethânia, esse traço fica mais
evidente), bem como uma atenção às variadas formas de utilização da voz em repertórios
bastante ecléticos (como em Gal).

Quando compõe Gênesis [AL 014], em 1976, Caetano Veloso fala da criação de uma
raça, discursivamente abordada em texto da época19, em que se reconhece a pretensão de
referenciar-se numa “horda” de baianos a invadir o centro do Brasil, numa reconfiguração
de emblemas da nacionalidade, revolvendo inclusive o que seria a matriz dos sincretismos
que estruturam o texto-nação Brasil.

A composição de Caetano e Gil, como estilo observável ao longo das carreiras, remete
em muitos momentos às associações entre vetores ora coincidentes, ora em oposição.
Termos como Oslodum (Gil, em canção homônima) [AL 015], ou orgasmaravalha-me
Logun, que Caetano coloca na canção-colagem-barroca Outras Palavras [AL 016] são
comuns em obras cujas temáticas apontam que as identidades do Brasil e da Bahia são
narrativas conforma(ndo-se)das sob a marca da multiplicidade, o que ratifica a procedência
dos paradigmas que atentam para o multiculturalismo, como o de Hall (2002).

A Bahia, como um ícone especialmente constitutivo desta brasilidade, aporta


elementos que sinalizam ancestralidades e origens de uma nacionalidade sedenta de
narrativas que dêem conta de sua unidade. Guarda os contornos ancestrais de “onde o

19
Como será melhor abordado no capítulo 4.
36

Brasil nasceu”, como passado ao mesmo tempo heróico, dos primeiros índios, primeiros
expedicionários e escravos. Ao tratar sobre o tema, bem coloca Gilberto Gil, ao dizer que
Deus resolveu dar à Bahia o primeiro carnaval, o primeiro índio abatido, a primeira missa
e o primeiro pelourinho, como se vê em Toda Menina Baiana, de Gilberto Gil [AL 017],
disco Realce, 1979. Por outro lado, em Milagres do Povo, de Caetano Veloso [AL 018], do
disco Tenda dos Milagres, 1985, foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda
produziu milagres de fé no extremo Ocidente – de certo, um negro atavicamente associado
à Bahia.

Deste modo, a brasilidade, seus sincretismos e interfaces nos convidam a perceber que
a configuração das nacionalidades, tal como concebidas quando da emergência dos estados
nacionais europeus, não parece mais suficiente para responder pela situacionalidade dos
sujeitos sociais nos nossos dias. Tem-se uma rearrumação do nacional de modo que essas
relações tensas, que definem as posições dos grupos nas sociedades, possam vigir20. Os
homossexuais, as mulheres, os negros e outras chamadas minorias representam grupos
heterogêneos que, sob a égide de narrativas nacionais, percebem-se múltiplos e
freqüentemente impelidos a negociar constantemente suas posições nas estruturas sociais
onde atuam. Pois,

(...) a nação se transforma de símbolo da modernidade em sintoma de uma etnografia do


“contemporâneo” dentro da cultura moderna. Tal mudança de perspectiva surge de um
reconhecimento da interpelação interrompida da nação, articulada na tensão entre, por um
lado, significar o povo como uma presença histórica a priori, um objeto pedagógico, e, por
outro lado, construir o povo na performance da narrativa, seu “presente” enunciativo,
marcado na repetição e pulsação do signo nacional. (...) A nação barrada Ela/Própria
(It/Self), alienada de sua eterna autogeração, torna-se um espaço liminar de significação,
que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de
povos em disputa, por autoridades antagônicas e por locais de diferença cultural (Bhabha,
1998, p. 209-210).

Numa perspectiva análoga à de nação – ou do texto nação – como espaço de


liminaridade para significações, podemos atentar para um apelo ou proposição pública de
discussão sobre a identidade homossexual, estabelecida por Gilberto Gil. A canção O
Veado (Gilberto Gil) [AL 019], lançada no disco Extra (1983), tratava a emergência da
figura do homossexual através de uma poética tendendo a um lirismo que subverte a
posição de ridículo geralmente imposta ao termo viado para se referir aos homossexuais.
Como afirmou ao comentar algumas de suas letras, entre elas, O Veado:

20
Com isso não estou afirmando que não haja validade nas narrativas nacionais. O que ocorre é uma
reconfiguração dos textos de nacionalidade/regionalidade por conta do crescimento geométrico de vetores de
identificação no mundo contemporâneo.
37

Naquele momento o tema estava muito associado a nós, artistas que fazíamos a defesa da
estética do androginismo – incorporando inclusive a ornamentália feminina em princípio
proibida ao homem, mas enfim, assumida por nossa geração como forma de afirmação de
autonomia de idéia, proposta, gosto, de contestação do conservadorismo – e que nos
colocávamos contra a histórica perseguição policial e a matança de homossexuais no Rio,
em São Paulo, nas grandes cidades, como resultado de uma intolerância social em relação
a eles. Por tudo isso, ‘O Veado’ é uma música ideológica (Gil, 1996, p. 268).

A androginia apostada como elemento estético por Gil e Caetano é reiterada em


variados momentos, como por ocasião do exílio, em que Caetano simulava um visual em
remissão aos cabelos longos de Gal Costa, que havia ficado no Brasil, e assumiu uma
posição de porta-voz dos dois baianos, quando estavam em Londres. Gilberto Gil,
principalmente nos anos oitenta, passou a se apresentar com roupas consideradas
extravagantes e no limite entre o masculino e o feminino, tal como aceitos
convencionalmente. Por outro lado, a própria Gal, em diversas entrevistas e aparições
públicas, parece (nos anos setenta mais que atualmente) querer subverter certas posturas
tipicamente femininas, como ao sentar-se quase sempre de pernas abertas tanto em shows
quanto em conversas descontraídas na televisão. Este gesto tanto poderia ser interpretado
como uma atitude de mulher mais “selvagem” ou “natural” quanto representar uma
desconsideração dos limites entre gênero masculino ou feminino, pois essa certa
displicência com relação à posição do corpo em público pode ser atribuída comumente ao
masculino.

Nas temporadas de shows como o Fa-tal (1971), Índia (1973) e Cantar (1974), Gal
quase sempre aparece com indumentária hippie estilizada21 e pernas à mostra em poses
nada convencionais para mulheres ainda se acostumando com a famosa revolução sexual
dos anos sessenta. Enfim, o corpo – sobretudo a exposição do corpo – era muito explorado
como linguagem nos anos setenta e estes artistas utilizaram-se da idéia de natureza
esboçada nesta forma de apresentação ao vestir/desvestir-se para seus públicos. Não é à toa
que Ney Matogrosso – o qual revelou ter decidido por sua carreira de cantor ao assistir
Caetano e Gil num show em Brasília (Calado, 1997) – e o grupo Secos e Molhados tanto
representaram em termos comportamentais para o campo da música brasileira nos idos dos
anos setenta, numa troca simbólica muito representativa. Numa declaração do próprio Ney
Matogrosso sobre Gal Costa:

21
Ver anexos de imagens no CDRom.
38

É abusadíssima, um desplante para a época a capa de "Índia". Gal Costa botava a xoxota
na cara da gente. Estava todo mundo desacatando tudo naqueles anos.
In: www.verdadeirabaiana.com.br, acesso em 21/10/2003.

Como complementação, pode-se lembrar que em 1975, na capa do disco Jóia,


Caetano Veloso, sua esposa Dedé Gadelha e seu filho Moreno apareciam nus, numa foto
tão censurada quanto aquela de Gal dois anos antes. Ainda no contexto das remissões aos
papéis do masculino e feminino, a peça Índigo Blue (Gilberto Gil) constrói de maneira
especialmente interessante como o vestir/desvestir de um jeans pode revelar as belezas
indistintamente celebradas pelo autor na mulher e no homem. Vejamos:

(...) Sob o blusão, sob a blusa


Nas encostas lisas do monte do peito
Dedos alegres e afoitos se apressam em busca do pico do peito
De onde os efeitos gozosos das ondas de prazer se propagarão
Por toda essa terra amiga, desde a serra da Barriga
Às grutas do coração (...)
(...) Sob o blusão e a camisa os músculos másculos dizem respeito
A quem por direito carrega essa terra nos ombros
Com todo respeito
E deposita a cada dia num leito de nuvens suspenso no céu
Tornando-se seu abrigo, seu guardião, seu amigo, seu amante fiel! (...)

Gilberto Gil
Índigo Blue. In: Raça Humana. CD. WEA,1984.

Outro elemento que podemos tomar como característico do contemporâneo é o


esvaziamento do tempo e do espaço, que, como percebido por Giddens (1991), encontra
eco na perspectiva de Virilio (1993) ao propor a compreensão da contemporaneidade sob a
égide da velocidade e das transformações operadas a partir deste signo. Na música popular
brasileira, movimentos como a Jovem Guarda e a Tropicália podem ser considerados
especialmente importantes como vetores do signo do veloz em termos artísticos. Tanto o
samba tradicional como a Bossa Nova envergavam uma simbologia não tão fortemente
referenciada nas mudanças urbanas22 em operação no Brasil entre as décadas de sessenta e
setenta. A urbanidade assumida radicalmente, inclusive na sua dimensão de tensão e
transgressão, passa a ser tratada como o lugar da formação social brasileira em termos
artísticos (na música) com canções como Rua Augusta (Hervé Cordovil), ou mesmo Nas
curvas da estrada de Santos (Roberto Carlos/Erasmo Carlos), do repertório da Jovem
Guarda. Nestas peças, ora é a cidade e uma periferia eletrizada pelo rock, ora a velocidade

22
O cenário da Bossa Nova é uma cidade resolvida, linear e sem tensões. Isto pode ser compreendido a partir
da extração social dos intérpretes e compositores da própria Bossa Nova, quase sempre universitários da
classe média carioca/estabelecida no Rio de Janeiro.
39

escancarada em celebração que comparece organizando as narrativas que se estabelecem


nas canções.

Com a Tropicália, a cidade é o lugar onde se desenrolam os fatos e se constrói a


brasilidade. Nos versos: “Vamos passear nos estados unidos do Brasil (...) A Estação
Primeira de Mangueira passa em ruas largas, passa por debaixo da Avenida Presidente
Vargas (...)”, de Caetano Veloso na canção Enquanto seu lobo não vem [AL 020] (1968,
disco Tropicália), aparece nitidamente uma apresentação do cenário em que tudo acontece;
na avenida carioca da Mangueira, das bombas e do passeio, tanto do trivial quanto do não
ordinário tornado vulgar num período de afirmação da ditadura militar.

A dromologia, ou estudo dos acontecimentos na trajetividade, como diz Virilio, refere-


se a esta característica reiterada de velocidade condutora dos rumos atuais. As sucessões de
imagens, veiculando em tempo real os acontecimentos e a virtualidade deste acesso às
informações, parecem causar uma sensação de vazio da realidade que é percebido – muitas
vezes de modo apocalíptico – como sintoma nítido das mudanças ocorridas na relação e na
percepção do tempo e do espaço. Pois,

Se a velocidade é portanto o caminho mais curto de um ponto a outro, a característica


essencialmente redutora de toda representação (sensível e científica) não é nada mais do
que um efeito do real da aceleração, um efeito de ótica da velocidade de propagação,
velocidade metabólica no exemplo das imagens mentais e oculares, velocidade tecnológica
no das formas-imagens da representação fotográfica e cinematográfica, nas imagens
virtuais da infografia e na representação dos lasers óticos (Virilio, 1993, p.94).

Essas imagens projetadas a partir deste real fragmentado e transmitido por meios
diversos metaforizam a fragmentariedade e a virtualidade em tempo/espaço tornado real
em tempos atuais. Enquanto o cinema costuma ser apontado como a arte por excelência da
modernidade, justamente pela sua associação à velocidade23, o clip é tomado por alguns
autores, a exemplo de Canclini (1998), como ícone das representações e da linguagem do
contemporâneo, como emblema da velocidade associada à realidade transfigurada e
manipulada na comunicação de nossos tempos. A partir de Virilio (1993), o clip pode ser
visto como a aceleração e recomposição da obra fílmica a partir de fragmentos de imagens.

O local e o global se relacionam hoje de maneira muito mais densa e intrincada (e


reflexivamente nos damos conta disso), o que torna praticamente impossível qualquer
pureza ou essencialidade. Embora encontremos a identidade fortemente associada à

23
Não deixa de ser emblemática disto a própria etimologia de cinema: em grego, eu movo.
40

alteridade, a definição nítida dos limites entre grupos só se dá mediante uma análise
estrutural. Na singularidade dos agentes, os múltiplos vetores identitários vão se afirmando
no fluxo da vida social, em atualizações e ressignificações que constituem as identidades
culturais, o que de modo algum acontece como um processo separado ou mesmo
independente do delineamento dos contornos das identidades dos agentes.

Deste modo, cabe colocar que as identidades, no contemporâneo, se efetivam também


na esfera do consumo, ou seja, mediante a inclusão no acesso aos bens de consumo.
Remetem-se dramaticamente ao status24, não sendo simplesmente fixadas por condições
inscritas na etnia ou no gênero. É o que podemos chamar de reorganização do mundo
público a partir do consumo (Canclini, 1998). Não se sustentaria, assim, a acusação
imediata de ausência dos conflitos que poderia acontecer como reação ao que aqui se
coloca, considerando que o próprio acesso ao consumo não se dá desvinculado da intensa
rede de relações materiais e simbólicas a que está ligado o sujeito. O contemporâneo
apresenta configurações (na acepção de Elias) em que as essencialidades identitárias, ainda
defendidas em muitos círculos acadêmicos e de movimentos sociais, têm validade vencida.

O que alguns autores chamam de sociedade de consumo pode ser tomada como uma
chave interessante para a compreensão destas mudanças significativas nas próprias
concepções acerca de sociedade. O consumo não é mais encarado como mero reflexo da
produção; passa a ser concebido como fundamental para a reprodução social
(Featherstone, 1997). Neste sentido, o diálogo entre os autores pós-modernos e aqueles que
apostaram numa síntese ou interface das contribuições dos clássicos aporta possibilidades
de interpretação interessantes. Esta sociedade, marcada pela transposição do consumo da
esfera da economia para a vida social, não estaria presente – em dimensões próprias,
evidentemente – na formulação da economia de trocas simbólicas (Bourdieu, 2003)?

No âmbito da música popular brasileira, o traço do consumo como organizador da


vida social pode ser apreendido na própria noção de arte industrial, que vem ter ao Brasil
mais nitidamente em meados dos anos sessenta. Embora a arte tenha tido sempre um
caráter relativamente comercial, pois está a serviço do entretenimento pelo menos desde o
século XVI (Elias, 1994a), este vetor se torna mais evidente nas sociedades
contemporâneas.

24
Principalmente na acepção de Max Weber para o termo: como possibilidade de consumir bens.
41

Concluindo esta discussão sobre a obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia como
construções identitárias, reúno elementos para propor que a reflexão sobre o
contemporâneo arremata, entre teorias mais convencionais e análises mais particularizadas
e originais/recentes, diversas possibilidades de percepção do social. Apresentando-se
menos numa globalidade totalizante e mais como um conjunto de traços fragmentários
articulados entre si, de forma tensa e complementar, pode-se assim tomar o contemporâneo
como uma chave heurística instigante nas narrativas identitárias construídas e
constantemente ressignificadas no âmbito da música popular, em particular na obra destes
artistas.

2.2 A SINGULARIDADE COMO CONFORMAÇÃO RELACIONAL


E REFLEXIVAMENTE ESTRUTURADA

A problematização da identidade como elemento importante no estabelecimento da


obra artística como tal acaba conduzindo a uma outra discussão importante. Neste trabalho,
trato da identidade como conjunto de narrativas, ou textos (Moura, 2001) compostos de
feixes representacionais, ou seja, narrativas que expressam nuclearidades constituídas nos
interstícios dos campos em que se operam as ações sociais. Neste sentido, o que se
pretende é situar o tema das representações até chegarmos ao problema das tipologias de
baianos na obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia. Trata-se da construção teórico-
metodológica que conduz a um item central neste trabalho, qual seja, a singularidade do
agente.

Em Durkheim (2003), representações coletivas são categorias de pensamento


mediante as quais uma sociedade elabora e expressa sua realidade. Pensadas como
conceito norteador de sua sociologia, revelam-se fundamentais na apreciação do seu
arcabouço teórico, viabilizando a concretização de seu método racionalista de pesquisa
sobre o social. Assim, a noção de totalidade social exterior aos indivíduos e generalizante
faz emergir expressões de sua própria característica sui generis que lhes chegam mediante
uma elaboração coletiva – como fato social –, estabelecendo a relação sujeito-objeto a
partir de uma base filosófica em que a sociedade é tomada como um elemento passível de
42

estudos objetivos, desde que o sociólogo se afaste das pré-noções subjetivas e


contaminadoras.

Como fatos sociais, as representações coletivas não são explicadas a partir da natureza
dos indivíduos, mas da natureza da sociedade. A idéia de tecido ou formação social é
provavelmente a mais cara a Durkheim. As representações são tidas como próprias de algo
que não pode se reduzir às suas partes, ou seja, aos indivíduos que compõem a sociedade.
Constituem-se como expressões de uma coletividade, mediando o acesso do sujeito ao
objeto sociológico e efetivando-se como fato social objetivo e exterior às consciências
individuais.

A contribuição de Bourdieu (2002;2004) para o estudo das representações traz à tona


o problema das tensões entre os campos. Como rompe com a dicotomia
indivíduo/sociedade, muito cara a Durkheim, Bourdieu vai adentrar o terreno das práticas
sociais como expressões de lutas simbólicas em campos que, tangenciando-se e
interpenetrando-se, constituem o mundo social. Desta forma, quando se trata de abordar
representações em Bourdieu, cabe inicialmente descartar a premissa de antinomia entre
realidade e representação, pois, no ambiente das lutas simbólicas (onde estão as
representações), o que resulta proeminente é como as representações se fazem verdade
para os agentes situados nas diversas posições no campo. Se, em Durkheim, a sociedade é
uma totalidade exterior aos indivíduos, em Bourdieu, institui-se na tangência e
interpenetração entre os campos. Assim:

Apreender ao mesmo tempo o que é instituído, sem esquecer que se trata somente da
resultante, num dado momento, da luta para fazer existir ou “inexistir” o que existe, e as
representações, enunciados performativos que pretendem que aconteça aquilo que
enunciam, restituir ao mesmo tempo as estruturas objectivas e a relação com estas
estruturas, a começar pela pretensão a transformá-las, é munir-se de um meio de explicar
mais completamente a “realidade”, logo de compreender e de prever mais exactamente as
potencialidades que ela encerra ou, mais precisamente, as possibilidades que ela oferece
às diferentes pretensões subjectivistas (Bourdieu, 2002, p.118).

As representações que se tornam hegemônicas sobre a Bahia no conjunto de


referências da brasilidade dão conta, por um lado, de uma forma como os baianos se
posicionam sobre seu próprio ethos e, ao mesmo tempo, estão ora em conformidade, ora
em contradição com as representações que os brasileiros em geral costumam construir
acerca da Bahia. Do ponto de vista da mídia, tanto radiofônica quanto televisiva, há
constantes encontros e desencontros de perspectivas distintas sobre as representações
acerca da Bahia.
43

Por outro lado, Bourdieu rompe também com a dicotomia entre idéia (como
representação individual) e representação coletiva, abrindo espaço, no caso desta pesquisa,
para a singularidade das representações que se transfiguram na obra artística de Caetano,
Gil, Gal e Bethânia. Neste sentido, as representações sociais são incorporadas como
objetividades pelos agentes e passam a constituir suas visões de mundo,
instrumentalizando-os no sentido de que passem a entrar nas arenas de lutas simbólicas no
campo artístico, o que matiza e significa um avanço na perspectiva de totalidade social em
Durkheim. Se as representações coletivas correspondem à categoria ancestral das
discussões sobre representações, em Bourdieu, a relacionalidade viabiliza a observação do
social em seus diversos âmbitos (campos), em que as oposições comparecem para a
marcação das posições dos agentes. Pode-se admitir, deste modo, que as representações se
constituem no que Bourdieu (2004) chama de espaço social – uma espécie de interseção de
campos – e que, no caso da música popular, se potencializam a partir da
divulgação/produção da mídia. Em se tratando destes artistas, suas particularizações dos
feixes representacionais se tornam referência na constituição de narrativas identitárias
sobre a Bahia, principalmente para o eixo Rio-São Paulo, que funciona como cenário de
exposição/definição de posições em constante e tensa interação. A Bahia acaba por ser
apresentada nesse espaço, tanto na música como em outras linguagens midiáticas
vigorosas, como um outro especial.

Na televisão, é comum o aparecimento de personagens estereotipados em diversas


novelas, tidos como os baianos típicos. Na novela Porto dos Milagres25, por exemplo, a
mãe-de-santo interpretada por Zezé Mota pouco corresponde ao perfil de iyalorixá
conhecido pelos praticantes do candomblé em Salvador, mais se aproximando da imagem
de uma consultora sentimental. Mesmo assim, em termos de senso comum, pode-se dizer
que esse personagem de alguma forma correspondia (do ponto de vista de representações
coletivas e de identidades regionais) a um tipo de mãe-de-santo (como em Weber) e,
assim, identificado com a Bahia. Mesmo não correspondendo a uma realidade empírica
observável no cotidiano, a figura do baiano estava indiretamente representada no texto
desta novela global. Não é à toa que a canção de abertura da obra teledramatúrgica é
Caminhos do Mar (Dorival Caymmi/Danilo Caymmi/Bráulio Tavares) [AL 021], composta
bem ao estilo regional/baiano consagrado na obra de Caymmi. A intérprete da peça é Gal

25
Novela da Rede Globo de Televisão apresentada em 2001, no horário das 21:00h, ambientada numa cidade
fictícia no litoral da Bahia e baseada em dois romances de Jorge Amado: Mar Morto e A Descoberta da
América pelos Turcos.
44

Costa, que revive seus tempos de Gabriela, com mais um tema relativo a uma Bahia
sensual, mítica e faceira.

Neste trabalho, não se trata de considerar os artistas como meros executores de


narrativas identitárias (feixes representacionais) que insurgem do todo social e passam por
seus trabalhos num complexo sistema de posições e lugares ocupados num determinado
campo artístico. Consideram-se as representações sobre a sociedade baiana, como adiantei
na Introdução, transfiguradas na obra artística de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, e a
assertiva principal que se estabelece neste estudo é a de ação. Os artistas são agentes de
suas carreiras e de seus repertórios, tanto quanto de seus discursos veiculados como
componentes de suas práticas artísticas, ao mesmo tempo em que se considera a intrínseca
rede de relações que envolve um artista contemporaneamente, desde empresários,
executivos de gravadoras, jornalistas e críticos, entre outros agentes. Proponho a
compreensão das posições relativas que estes agentes ocupam no campo artístico e de
como suas singularidades dão conta de redefinições nestas mesmas posições, ou como as
singularidades podem significar a aquisição de novos capitais simbólicos,
redimensionando, portanto, as lutas simbólicas do próprio campo.

No tocante à formação social baiana, pode-se afirmar que são representações coletivas
particularizadas que se percebem nas práticas artísticas de Caetano, Gil, Gal e Bethânia,
quando está presente algum elemento identitário reconhecido como baiano.

Como já discutido na seção anterior, toma-se aqui identidade como um feixe


representacional que se articula em textos, como se vê em Moura (1996; 2001) ao tratar do
que vem se convencionando chamar baianidade. Os artistas em questão trabalham ícones
coletivamente emblematizados como baianos. As remissões à religiosidade, ao caráter
ancestral de uma negritude historicamente constituída e construída nos discursos sobre o
ethos baiano, são momentos em que o caráter tradicional de que se reveste a sociedade
baiana aparece e se generaliza como expressões de um “lugar da Bahia” na brasilidade.

Em A Divisão do Trabalho Social, Durkheim situou a arte num plano específico e não
investiu na sua análise, devido ao seu caráter subjetivo. A arte seria imprópria para
sustentar a moral... Entretanto, pode-se identificar, na obra de Caetano, Gil, Gal e
Bethânia, sem maiores problemas, a expressão de representações da Bahia. Os repertórios,
shows, entrevistas – que realizam empiricamente o que chamo de práticas artísticas – dão
45

conta da ventilação de discursos plenos de vetores da coletividade individualizados e


colocados na cena midiática.

A discussão em torno desses feixes identitários na obra artística de Caetano, Gil, Gal e
Bethânia vem apontar uma questão especialmente importante para este estudo. O recurso à
categoria representações não deveria conduzir ao equívoco de considerar a produção dos
artistas apenas na esteira de uma análise sistêmica e estrutural, como poderia se depreender
de alguns continuadores da obra de Durkheim. Se se admite que as práticas artísticas
expressam e, por assim dizer, constituem-se como representações (embora não apenas
como tal), isto só é possível mediante a ação efetiva de seus compositores e intérpretes,
que particularizam e dão novas feições a muitas representações correntes e aceitas pelo
senso comum.

Trazendo à tona a perspectiva da interação simbólica de Goffman (2003), podemos


dizer que há uma negociação constante de contornos de cada self entre os indivíduos
(Caetano, Gil, Gal e Bethânia) e os outros (empresários, mídia, público, etc.), de forma que
são ações dotadas de sentido e orientadas por expectativas que estão em jogo nas análises
deste trabalho. Os artistas veiculam seus repertórios marcados por representações
particularizadas sobre a Bahia e, assim, obtêm respostas de variadas formas tanto de seus
públicos, quanto da mídia que muitas vezes redefine inclusive os rumos de carreiras. Pois:

Resumindo, então, acho que, quando um indivíduo se apresenta diante de outros, terá
muitos motivos para procurar controlar a impressão que estes recebem da situação. (...) O
padrão de ação preestabelecido que se desenvolve durante a representação, e que pode
ser apresentado ou executado em outras ocasiões, pode ser chamado de um “movimento”
ou “prática” (Goffman, 2003, pp. 24-25).

A perspectiva de Goffman dá conta da performance dos agentes diante dos outros, e o


que se coloca aqui é a pertinência em conhecer também as condições em que os agentes
chegam a negociar nestas cenas da vida social, para usar o vocabulário do interacionismo
simbólico. Por conta disso, a relacionalidade em Bourdieu e Elias e a noção de
estruturação em Giddens podem ser muito interessantes aos efeitos de compreender as
práticas artísticas como ações num sentido sociológico.

O que está em pauta é a apreensão, mediante a discussão sobre a formação de tipos


baianos nas práticas de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, de quais seriam as Bahias
construídas ao longo de suas carreiras. As representações sociais da Bahia são os
elementos com os quais estes artistas elaboram discursos artísticos sobre o que é ser
46

baiano, no cenário da brasilidade. Seja uma negritude pop em Gilberto Gil, seja uma
ancestralidade constantemente atualizada em Maria Bethânia, as Bahias interfaciadas nas
obras destes artistas permitem perceber como práticas artísticas podem articular textos
identitários concernentes a uma dada formação social.

Embora, numa de suas famosas notas26, Durkheim admita que as representações se


individualizam, sua orientação não se mostra generosa no sentido de abrir espaço para a
dinâmica intersubjetiva, aspecto fundamental neste estudo. O singular surge nesta
Dissertação como uma questão sociológica que aponta para a visualização de elementos
coletivos individualizados numa prática artística, tida como ação social, apresentando-se
como um instrumento de compreensão de subjetividades dos artistas aqui focalizados.

Quando se coloca a questão da singularidade, o que se quer perceber é também que,


ao contrário de interpretações relacionais simplistas, não basta observar as homologias de
posições no campo para compreender o papel da arte nas formações sociais. Por mais que
se situem num patamar equivalente no cenário da música brasileira, a prática artística de
Gal Costa não pode ser comparada relacionalmente, de forma simplificada, àquela de
Maria Bethânia. São singularidades que correspondem a práticas diferentes. É mais
adequado afirmar que se trata de singularidades históricas e individualizadas que se
tangenciam/interfaciam sem se confundir.

A articulação teórico-metodológica que aqui se opera procura responder basicamente


à questão: que Bahias se re/trans/configuram nas práticas artísticas de Caetano, Gil, Gal e
Bethânia? As representações sociais encontradas neste trabalho artístico têm validade
heurística enquanto puderem responder a esta questão.

Neste momento, o desenho epistemológico desta pesquisa aparece mais nitidamente;


sua orientação principal é conferida pela premissa segundo a qual o que realizam Caetano,
Gil, Gal e Bethânia são práticas, ações sociais na perspectiva weberiana. Desta forma,

26
“Devido ao fato de as crenças em práticas sociais nos chegarem do exterior, não quer dizer que as
recebamos passivamente e sem as submetermos a modificações. Ao pensarmos as instituições coletivas, ao
assimilá-las, individualizamo-las e incutimo-lhes em maior ou menor grau o nosso cunho pessoal; é assim,
que ao pensarmos o mundo sensível, cada um de nós lhe dá um colorido à sua maneira e que sujeitos
diferentes se adaptam de modo diferente a um mesmo meio físico. Eis porque cada um de nós cria, de certo
modo, sua moral, sua religião e sua técnica. Não há conformismo social que não comporte toda uma gama de
matizes individuais, o que não impede que o campo das variações permitidas seja limitado.É nulo ou muito
restrito no âmbito dos fenômenos religiosos e morais, onde a variação se torna facilmente um crime; é mais
vasto no que se refere à vida econômica. Porém, mais cedo ou tarde, se encontra um limite que não pode ser
ultrapassado”. In: As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2003, p.26.
47

devemos saber como elementos identitários (feixes representacionais) são fontes para
ações concretizadas nas práticas artísticas, não deixando de lado os possíveis sentidos
operados por esses agentes nas suas práticas.

O que permite articular representações (na acepção de Durkheim e Bourdieu) com


ações sociais (tal como em Weber) está no que chamo singularidade dos artistas, que
estaria associada, grosso modo, a características idiossincráticas desses agentes, calcada
nas suas “subjetividades”. Podemos perceber esta singularidade precisamente nas suas
práticas artísticas, pautando-se nas posições sociais dos agentes, suas histórias pessoais,
disposições, desejos e projetos. Pode-se considerá-la também como configurada no cenário
dos fenômenos/imagens reticulares (Elias, 1994a), na sua percepção da formação do
indivíduo no meio social. Deste modo, é possível dizer também que a questão está em
reconhecer como este estoque de conhecimento à mão – nos termos de Schutz (1987;1989)
– se transfigura a partir das singularidades aqui consideradas.

Colocadas estas premissas, pode-se afirmar então que o estudo de uma prática artística
remete à singularidade do(s) artista(s), que vai se constituindo num processo envolvendo a
própria formação dos indivíduos nos meios por onde transita(ra)m. Deste modo, a
formação da individualidade numa figura como Maria Bethânia, por exemplo, não deveria
ser construída sociologicamente apenas a partir de sua posição de classe, gênero ou
nacionalidade. Sua singularidade resulta de – e recapitula – uma série de relações
estabelecidas na sua trajetória e interações de que foi/é co-participante. Se em Weber
(1992) percebemos a importância fundamental que o indivíduo assume para o
entendimento das formações sociais, podemos recorrer à contribuição de autores
contemporâneos como Bourdieu (2001/2003), Giddens (1989) e Elias (1994) no sentido de
formular como, superando a dicotomia indivíduo/sociedade, estruturas e agentes
constituem a sociedade.

Continuemos com o caso de Maria Bethânia. A artista pode ser compreendida como
uma singularidade conformada a partir de interações mediadas:

• pela noção de habitus – como objetividades internalizadas – constitutivo de sua


posição como baiana, mulher, nascida em família do interior, no Recôncavo
Baiano, imersa em teias simbólicas em cujo ambiente se forma seu perfil. Esta
sistêmica relacional sociedade/indivíduo é da tradição estrutural-construtivista
48

de Bourdieu (2001; 2003) e encontra em Elias (1994) uma abordagem que dá


uma ênfase maior na historicidade, no processo de longa duração;

• pela capacidade de agir reflexivamente e estruturar suas práticas e, portanto,


redefinir limites e padrões operados pelas internalizações de objetividades,
criando e selecionando inclusive novos padrões de comportamento e de atuação
no mundo27;

• pelas referências trocadas com outras singularidades ao longo de sua história


pessoal. Na gramática de Elias (1994), são as imagens reticulares que estão
relacionadas ao poder de modificação da maneira de pensar e agir de um
indivíduo em relação ao outro. É também o que este autor chama de balança
Nós-Eu, para tratar de como um indivíduo pode conter, no que auto-imagina
como eu, muitos nós, ou resultados de reticularidades historicamente
conformadas nas configurações sociais.

São essas mediações que vão confluir no arranjo teórico-metodológico a que chamo
singularidade, um conjunto de características e subjetividades articuladoras das ações dos
indivíduos, que, no âmbito da arte, se apresenta de forma muito peculiar e vigorosa, como
elemento e parâmetro de análises de narrativas e discursos. Desta forma, analisar uma peça
que se remete à Bahia, no caso do trabalho de Bethânia, pressupõe uma observação da
singularidade desta artista, que atua na veiculação de feixes de representações.

As representações não simplesmente “passam por” Maria Bethânia; são transfiguradas


e individualizadas, o que nos leva a conceber que as formações sociais são reflexivamente
incorporadas e, mediante atuação do agente, podem prosseguir como sociais, sincrônica e
diacronicamente. O que temos é a proposta de compreensão das singularizações das
representações, sem negar que os indivíduos envolvidos são sempre referenciados também
por suas posições relacionais no campo.

O habitus, principalmente na sua acepção de saber incorporado, é vetor presente na


construção da singularidade e estruturante das próprias ações destes agentes. A articulação
que se pode fazer neste caso está na observância da capacidade que os agentes têm – ao
seguir em frente (Giddens, 1989) – de continuar com suas consciências práticas e

27
É nesta capacidade que se sustenta Giddens (1989) para erigir sua teoria da estruturação.
49

discursivas, e, portanto, particularizar suas posições no campo, o que importa sobremaneira


neste estudo.

Enquanto a noção de habitus dota os indivíduos de haveres, capitais sociais que os


posicionam e conduzem a disposições, a reflexividade dos agentes – e também as
reticularidades e interdependências em Elias (1994) – permitem que as posições possam
ser, em muitos momentos, complexificadas, principalmente no âmbito da arte, de que é
característica a ânsia pelas individualidades célebres, pelo menos nas sociedades
modernizadas28.

No sentido de desenvolver as possibilidades heurísticas dessas teorias no que diz


respeito à singularidade, passo então a pontuar as considerações dos três autores de síntese
contemplados neste trabalho. Trata-se de refletir sobre como essas teorias conectam-se ao
estudo sobre a prática artística dos agentes Caetano, Gil, Gal e Bethânia.

As perspectivas de Bourdieu, Giddens e Elias sobre a relação indivíduo/sociedade são


oportunas neste momento, pois as narrativas identitárias constituídas na obra artística
considerada se tornam públicas mediante singularizações de feixes representacionais; em
outras palavras, textos identitários (Moura, 2001).

Cada um destes autores promove, a seu modo, a resolução do problema


agentes/estruturas a partir do afastamento ou projeto de superação da premissa dicotômica
entre esses elementos, comum na sociologia clássica. Observa-se uma postura que clama
pela relacionalidade, procurando resolver a separação estanque entre agentes e estruturas,
pois cada um só existe referido ao outro. Não há propriamente indivíduo sem sociedade,
nem sociedade sem indivíduo. A constituição da sociedade (Giddens), as configurações
(Elias) e os campos (Bourdieu) se estabelecem de tal forma que os indivíduos não são
apenas partes (Durkheim), mas constituem, configuram e marcam posições que definem o
que seja o social.

28
O campo da arte é percebido por Bourdieu como um locus analítico que permite aos indivíduos o exercício
de uma pretensa autonomia relativa, que encontra seus limites na própria lógica do campo. A criatividade,
então, adviria também de uma relacionalidade ligada aos lugares ocupados pelos artistas. Como parto do
suposto de que os artistas são agentes de seus trabalhos, considero a idéia de criatividade como percebida em
Giddens (2002). Embora o campo artístico permita uma ascensão constante da criatividade como valor, nem
todo agente se revela condizente com este valor, seja por não deter quantum de capital simbólico suficiente,
seja por não corresponder às expectativas da própria lógica do campo em que está inserido. As lutas pelas
posições no campo só vêm atestar o que afirmo. Não seria demais dizer, então, que a singularidade se
constitui na formação/interação do agente, a partir de habitus, reflexividade e reticularidade, tal como se
articulam neste trabalho.
50

Enfim, a singularidade dos agentes, nesta pesquisa, resulta de um interfaciamento de


conceitos destes autores. O singular vem, assim, situar a presença dos indivíduos (agentes)
devidamente circunstancializados/contextualizados na elaboração/constituição de
narrativas identitárias que, coletivamente reconhecidas como baianas, foram
reconfiguradas na prática artística de Caetano, Gil, Gal e Bethânia.

Nestes autores, a ação vem assumir uma importância central em termos de construção
teórico-metodológica, pois o que se espera é abordar a maneira como os indivíduos agem
em sociedade, de modo que a constituem e são por ela constituídos29. Assim, interessa
particularmente entender como estes agentes singulares transfiguram feixes identitários,
redefinindo lugares da Bahia num imaginário nacional.

A praxiologia de Bourdieu propõe um arranjo entre os conceitos de habitus e campo


como definidores da dinâmica social. O habitus é a corporificação de objetividades nos
agentes, um modus operandi em estado prático, que não coincide com o axioma
estruturalista convencional de que os indivíduos seriam principalmente portadores passivos
das estruturas. Isso remete à constatação de como regras se fazem homens, ou de como
homens são regras. O habitus é simultaneamente grupo e corpo – e corpo enquanto
história naturalizada, mediante o movimento interiorização-exteriorização (Bourdieu,
2002). Não há, de antemão, um grupo e um corpo. Os limites do indivíduo não se
garantem, pois ele é grupo também, trazendo como constituição relacional as objetividades
em forma de habitus. Em outras palavras:

O habitus vem a ser, portanto, um princípio operador, que leva a cabo a interação entre
dois sistemas de relações, as estruturas objetivas e as práticas. O habitus completa o
movimento de interiorização das estruturas exteriores, ao passo que as práticas dos
agentes exteriorizam os sistemas de disposições incorporadas (Miceli, Introdução: A Força
do Sentido, p.41; In: Bourdieu, 2003).

Bourdieu procura, a partir da praxiologia, superar o que chama de “teoria teórica”, que
seria alheia à prática. O mundo, nessa apreensão, seria escrito a partir de uma gramática
interna do construto teórico – uma leitura interna. A prática artística passa a ser uma tela
por onde se pode perceber a presença de habitus variados, que se operacionalizam no
campo artístico em que operam estes agentes. Caetano, Gil, Gal e Bethânia são
portadores/executores de objetividades incorporadas, estruturadas e estruturantes de

29
É interessante perceber como as malhas da linguagem (como salientam Foucault e Habermas) podem nos
enredar, pois, mesmo que não os consideremos dicotômicos, colocamos sempre os termos nos seus lugares,
como que separados.
51

práticas sociais (no caso, artísticas), atualizando criativamente esquemas geradores de


práticas – no caso, feixes de representações em estado prático, narrativas identitárias
artisticamente trabalhadas.

É no campo artístico que as incorporações se tornam especialmente relevantes aos


efeitos desta pesquisa, pois é aí que assumem posições, nas lutas e práticas. Sendo prática,
a ação se atualiza e permanece; por sua vez, o campo funciona como uma construção
intelectual e sua operacionalidade se dá em sociedades modernizadas. É também percebido
como um locus analítico que permite aos indivíduos o exercício de uma pretensa
autonomia relativa, que encontra seus limites na sua própria lógica. Apenas na
relacionalidade esses princípios práticos norteadores se efetivam: numa racionalidade
prática comum aos integrantes do campo.

As posturas assumidas pelo grupo baiano são referidas às posições destes agentes,
tanto no campo da música popular quanto em relação a outros campos. Tomemos um
exemplo pinçado de uma das primeiras aparições de Caetano na televisão. Quando emerge
como artista pop no programa Esta Noite se Improvisa, da TV Record, em 1967, sua
imagem é prontamente associada à de um rapaz baiano tímido, de sotaque carregado e que
acabava correspondendo a um lugar que facilitou sua aparição e reconhecimento como um
novo ídolo (Calado, 1997). Franzino e retraído, Caetano dá início à sua carreira
correspondendo a uma imagem de menino do interior identificada com uma espécie de
habitus nordestino/baiano associado/remetido à Bahia em muitos círculos midiáticos. Cabe
ponderar, entretanto, que, embora a imagem de uma Bahia mais tradicional seja aquela de
uma negritude e docilidade exaltada, uma certa nordestinidade parecia tomar a dianteira
nos idos dos anos sessenta, e esta imagem de Caetano que o projetou acabava se
coadunando com um posicionamento no campo artístico que alocava os baianos também
como os retirantes nordestinos que ascenderiam no eixo Rio - São Paulo.

O próprio Caetano estranhou essa identificação de Bahia com nordestinidade – como,


aliás, não aceita até hoje (Veloso, 1997) – e somente participou da montagem do show
organizado por Augusto Boal chamado Arena Conta Zumbi (1965) em decorrência de uma
contingência conjuntural. Para Caetano, aquela Bahia não correspondia ao que ele
vivenciava – como habitus – nem em Santo Amaro, nem em Salvador (Calado, 1997). A
Bahia vivida por Caetano não era “retirante” como parecia aquela de Boal, construída no
contexto de uma espécie de habitus da militância política bem comum à época. Por outro
52

lado, quando Caetano passa a assumir uma figura mais próxima do pop e emblematizada
com símbolos de celebridade, como carros e roupas extravagantes, há uma reação do
diretor da TV Record no sentido contrário.

Ao aproveitar a onda midiática em torno da Tropicália, Caetano e Gil compraram


briga com Paulinho Machado de Carvalho, principalmente por estarem rompendo com uma
identificação estabelecida – principalmente no que se refere a Caetano – na relação com
estes artistas, a de que eram baianos emigrados e que deveriam fazer parte do jogo de
construção midiática da TV Record sem muitos arroubos criativos. Vejamos:

Nenhum produtor daqui concordava com a nova imagem criada nos últimos seis meses:
terninho inglês, chofer, Mercedes Bens, camisolão e um apartamento na São Luís. Veloso
deixou de ser o menino simples e querido por esta simplicidade, apontava o chefão da
Record (Calado, 1997, p.186).

Percebe-se um imperativo do campo e de sua lógica na estruturação das ações, e ao


mesmo tempo, há intenções em jogo que acabam tendo conseqüências não esperadas, pelo
menos reflexivamente, pelos agentes.

Deste modo, podemos entender a construção dos campos da arte, da política, da


religião e em vários outros âmbitos da vida social, bem como sua articulação. É importante
notar que há uma substituição da noção de classes pela de campo do poder. Temos uma
variedade de capitais simbólicos em luta pelo poder e, assim, qualquer campo está referido
homologamente ao campo do poder. Mediante o simbólico (no espaço de classificação),
define-se o que é uma força social. O social se vê dimensionado nas interdependências da
instância simbólica. Os agentes seriam, assim, as corporificações dessas lutas simbólicas,
mediante a incorporação de objetividades que é o habitus.

Para Bourdieu, o agente vive sob estado constante de illusio (Bourdieu, 2004), ou seja,
participando de um jogo – no campo – cujas regras são naturalizadas, sentindo sua história
a partir de uma noção de trajetória30, vivida como uma necessidade de organização. Os
agentes são conformados nestas trajetórias; desde o nascimento, a criança se encontra na
intersecção de vários campos, conformando-lhe corporificações. Deste modo, não haveria
uma diferença entre idéia (como individual) e representação coletiva. Este ponto nos
interessa particularmente, pois as narrativas identitárias sobre a Bahia são coletivamente

30
O Capítulo 3, em que se tratará das trajetórias dos agentes deste trabalho, trará uma discussão mais
aprofundada sobre a noção de trajetória ou biografia como concebida por Bourdieu. Este autor tem uma
específica abordagem sobre a temática.
53

reconhecidas como baianas, embora não se faça aqui uma separação dicotômica entre
coletivo e individual.

Nas práticas artísticas de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, podemos perceber atualizações
e redefinições de posicionamentos sociais corporificadas em habitus e operacionalizadas
no campo artístico, em suas lutas características, como a famosa contenda entre baianos e
cearenses31. A arte, nesta apreensão de Bourdieu (2002), funcionaria como
transmissora/executora de formas de classificação dos sistemas simbólicos, ou seja, as
representações que situam o engendramento das divisões sociais, ou o poder de di-visão. A
contribuição deste autor para o tema das representações aponta também para uma
apreensão do imaginário coletivo como somente fazendo sentido nas ações dos agentes
através das internalizações do habitus.

Assim, podemos vislumbrar que o discurso regionalista característico de e/ou


convencionalmente associado às remissões à Bahia na obra dos agentes aqui tratados
dimensiona (e re-trans-dimensiona) limites para lugares sociais de agentes situados como
baianos e brasileiros. Trechos como “A Bahia já me deu régua e compasso”, de Aquele
abraço (Gilberto Gil); “Aqui é o fim do mundo...”, de Marginália 2 (Gil e Torquato Neto)
[AL 012]; “Na minha terra Bahia, entre o mar e a poesia tem um porto Salvador...”, de Água

de Meninos (Gil e Capinam) [AL 022] e “Minha mãe-de-leite sempre me ensinou, meu
tempero é outro, eu sou do azeite”, de Caminho das Índias (Moraes Moreira) [AL 023] –
interpretadas pelos quatro artistas aqui centrais – são exemplos de estetizações que
expressam lugares ocupados nos textos de brasilidade e de identidades culturais baianas,
presentes e constituídas na obra do grupo baiano.

A singularidade parece propor-se bem visivelmente nestes textos, principalmente se


observarmos a relação possível entre habitus e consciência prática (Giddens, 1989; 2002).
Para Bourdieu, a construção dos espaços sociais se dá a partir da observação das relações
de força nos campos. Cada agente tem um quantum de capital simbólico distribuído
desigualmente, o que conduz às diferentes disposições para a ação. Neste momento, é
interessante apontar para a noção de consciência prática em Giddens, como um
correspondente (guardadas as distinções em termos de perspectivas e interesse) da noção
de habitus em Bourdieu, principalmente no que o primeiro chama de caráter recursivo da
vida social (Giddens, 1989). Na maioria dos casos, em Giddens, os agentes atuam em

31
Maiores informações no capítulo 4, ao tratar do acontecimento Os Doces Bárbaros.
54

estado de consciência prática; em Bourdieu, a partir das internalizações em habitus.


Vejamos o que diz o primeiro:

Muitos dos elementos da habilidade de ser capaz de “seguir em frente” são levados ao
nível da consciência prática, incorporada à continuidade das atividades cotidianas. Ela é
parte integrante do monitoramento reflexivo da ação, embora seja “não-consciente”, ao
invés de inconsciente. A maioria das formas de consciência prática não poderia ser “tida
em mente” no decorrer das atividades sociais, pois suas qualidades tácitas ou supostas
constituem a condição essencial que permite que os atores se concentrem nas tarefas pela
frente (Giddens, 2002, p.39).

O que diferencia habitus e consciência prática refere-se então às distintas orientações


epistemológicas dos dois autores. Em Bourdieu, as objetividades são inconscientemente
corporificadas, enquanto, em Giddens, o conceito de reflexividade, bem como o viés mais
ligado à cognoscitividade, colocam uma questão importante, qual seja, a capacidade de
discorrer sobre as práticas. Por Bourdieu:

A teoria da ação que proponho (com a noção de habitus) implica em dizer que a maior
parte das ações humanas tem por base algo diferente da intenção, isto é, disposições
adquiridas que fazem com que a ação possa e deva ser interpretada como orientada em
direção a tal ou qual fim, sem que se possa, entretanto, dizer que ela tenha por princípio a
busca consciente desse objetivo (é aí que o “tudo ocorre como se” é muito importante)
(Bourdieu, 2004, p. 164).

A partir do conceito de razão prática, em Bourdieu, toda a capacidade cognoscitiva


do agente não o habilitaria a discorrer sobre sua prática objetivamente, pois sua
discursividade seria um constituinte também do seu habitus. Para Giddens, embora se
admitam essas práticas em nível não-consciente, o agente pode escolher em quadros de
referência (o que chama de consciência moral) os valores pelos quais se norteará. Há,
portanto, um limite muito tênue entre a consciência discursiva e a consciência prática.

Os agentes no campo da arte atuam em estado de consciência prática, a partir de suas


incorporações e reflexivamente monitorando-se. Não se trata aqui de uma “teoria da
consciência” nem de um idealismo, pois Caetano, Gil, Gal e Bethânia podem ressignificar
narrativas identitárias por conta de suas posições determinadas pela relação habitus-campo
e também em função de suas práticas na liminaridade de discursividade/consciência
prática, sem deixar de levar em consideração o quadro da consciência moral.

A singularidade aponta, então, para uma interface de disposições internalizadas e


reflexivamente monitoradas no espaço de possíveis permitido no campo artístico. Observe-
se que o agente não é alçado a uma posição de “super agente”, nem de ator de um roteiro
prévio, ou mesmo agente idiotizado (Garfinkel, 1967). A singularidade se estrutura, então,
55

na consideração de que os indivíduos atuam em conformidade com suas posições sociais


em monitoramento reflexivo de suas práticas.

Podemos encontrar em Giddens outras pistas no sentido de construir a categoria da


singularidade, observando a centralidade da capacidade cognoscitiva dos agentes como
recurso possível para atuar no mundo. Sua sociologia visa fundamentalmente estudar as
práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo (Giddens, 1989). Os atores sociais recriam
as atividades humanas através de meios pelos quais se expressam como atores. É a
capacidade cognoscitiva constitutiva do agente que, apresentando-se através da
reflexividade, permite operacionalizar suas práticas. A reflexividade corresponderia, então,
ao caráter monitorado do fluxo contínuo da vida social.

É a forma especificamente reflexiva da cognoscitividade dos agentes humanos que está


mais profundamente envolvida na ordenação recursiva das práticas sociais. A continuidade
de práticas presume reflexividade, mas esta, por sua vez, só é possível devido à
continuidade de práticas que as tornam nitidamente “as mesmas” através do tempo e do
espaço. Logo, a reflexividade deve ser entendida não meramente como “autoconsciência”,
mas como o caráter monitorado do fluxo contínuo da vida social (Giddens, 1989, p.2).

A proposta aqui vai também no sentido de fugir tanto às perspectivas objetivistas


quanto às idéias de consciência reguladora das atividades sociais. Giddens trata de uma
reflexividade constituída nos meios sociais, através da recursividade das práticas e que
orienta essas práticas, numa retroalimentação também tendendo à relacionalidade. A teoria
da estruturação parte, então, da situacionalidade e circunstancialidade das ações na relação
tempo/espaço. Os agentes monitoram suas ações desde uma racionalidade constituída na
vida social, e esse monitoramento pode ser compreendido a partir de dois conceitos-chave:
consciência prática e consciência discursiva32. A consciência prática é o saber incorporado
que permite ao agente prosseguir, uma espécie de consciência pré-reflexiva associada a
princípios norteadores que não são problematizados pelos agentes. Em Bourdieu e Elias,
essa consciência prática aparece como objetividades incorporadas, sendo que estes autores
não fazem distinção entre discursividade e consciência prática, atribuindo menos
relevância à capacidade cognoscitiva; a consciência discursiva surge quando se questiona
o agente sobre sua prática.

Os limites entre essas formas de consciência são tênues e sugerem que é nas práticas
sociais que o agente vai constituindo seu senso de segurança ontológica; esta, por sua vez,

32
Outro conceito importante nessa trama é o de consciência moral, que seria a consciência normativa. A
consciência prática seria a apropriação da consciência moral pelo agente.
56

dando sentido às práticas, vai permitindo ao agente prosseguir sem se perguntar a todo
tempo por que age. Deste modo, é sobre a confiança básica que se erige a possibilidade de
vida social e as rotinizações em sociedade. Tanto a segurança ontológica quanto a
confiança básica estão associadas à conformação da capacidade cognoscitiva ontogenética
do agente, enquanto nas atividades cotidianas vai se configurando a base material das
ações humanas.

Nas práticas artísticas aqui tratadas, um caso pode ser ressaltado como exemplar.
Quando estavam para estrear o show do disco Tropicália ou Panis et Circenses, Caetano e
Gil travaram séria discussão por conta da hesitação do segundo em prosseguir com o que à
altura já era um movimento mais amplo. Contestado pelo cantor e compositor Vicente
Celestino por encarnar um Cristo negro na montagem que seria levada ao ar pela TV
Globo, em outubro de 1968, Gil se viu em cheque entre suas ações já realizadas e a
percepção de que estava trilhando caminhos que não mais lhe agradavam (Calado, 1997).
No momento em que pôde exercitar um monitoramento reflexivo discursivo, Gil preferia
não ter mais continuado com o projeto Tropicália, embora tenha prosseguido em função da
interpelação e insistência de Caetano (Veloso, 1997) e de sua própria disposição a seguir
em frente naquela empreitada, num limite muito sutil entre prática e reflexividade.

Nem mesmo a morte repentina de Vicente Celestino interrompeu a atuação de


Caetano, Gil e os outros tropicalistas. Embora conseqüências não previstas tivessem
interferido nas intenções manifestas dos agentes envolvidos, seus propósitos e projetos se
efetivaram mobilizando posições e lugares naquele campo.

Tanto para Giddens como para Bourdieu, é na durée33 que o agente desenvolve sua
cognição, seu monitoramento. O saber incorporado constitui a escolha e a ação, como
saber que estrutura a ação, bem distinto de um conhecimento idealista ou simplesmente
empírico. O agente não é detentor de uma razão isolada34. Em Giddens, a noção de
pensamento é comunicativa, não mentalista (residindo numa consciência reificada), o que
significa que o pensamento válido é aquele que se efetiva na prática social. O agente
monitora suas ações mediante seu estoque de conhecimentos adquirido na prática,
racionaliza as ações e sistematiza os atos. Percebe-se aí o influxo do pensamento de
Weber, principalmente pelo viés da racionalização das ações, que não leva

33
Termo em francês no original inglês. Aponta para o fluxo contínuo da vida social.
34
Neste sentido, Giddens compartilha da perspectiva de Bourdieu, quando este fala de razões práticas.
57

necessariamente ao controle do futuro, mas a conseqüências impremeditadas, embora as


ações sejam coordenadas por sistemas de referência com princípios estruturais, como se
depreende da teoria da estruturação.

Caetano, Gil, Gal e Bethânia são constituídos em singularidades em que a


reflexividade (como monitoramento do fluxo social) colabora no processo de seu
estabelecimento enquanto agentes. Essa singularidade, portanto, vai permitir uma
transignificação tanto de representações coletivamente aceitas como baianas – no campo
da música popular – quanto de narrativas tradicionalmente reportadas à Bahia e ao Brasil,
enquanto construções de identidades culturais.

A teoria da estruturação propõe, deste modo, que a integração social (tal como em
Goffman) constitui o social juntamente com a integração de sistemas (distâncias espacio-
temporais) que estruturam as disposições dos agentes. O indivíduo tem sua reflexividade
regulada por integrações de sistemas sociais por sua vez formados nas práticas sociais e
estruturados nos distanciamentos no tempo e no espaço.

Giddens (1989) conceitua estrutura como uma interseção de presenças e ausências,


como códigos de ação. As estruturas seriam recursos e regras, diferentes dos sistemas que
são referenciais. As regras (equivalentes ao habitus) referenciam os sistemas, enquanto as
instituições são estruturas dotadas de maior extensão espacio-temporais. Neste sentido, as
regras e os recursos são ao mesmo tempo meios de reprodução das práticas. Os agentes não
recebem passivamente estímulos exteriores e se referenciam em sistemas que por sua vez
se remetem a estruturas acomodadas em distensões espacio-temporais consideráveis.

De acordo com perspectivas que tomam o contemporâneo como marcado por


características sui generis, Giddens trata o mundial ou global como um significado que
coordena ações, além de atentar para o que chama de conseqüências impremeditadas das
ações35. Deste modo, a estrutura é dual, encontrando-se nas distensões de tempo-espaço e
nas práticas sociais.

Quando uma artista como Maria Bethânia recusa propostas para gravação de um disco
que não esteja em conformidade com suas idéias sobre seu trabalho, uma referência
estruturante se apresenta para esta agente, como orientação de sua atuação e do quadro de

35
Para Giddens, a criatividade, constituída na reflexividade humana, dá margem à noção de conseqüências
impremeditadas das ações.
58

valores assumidos e reconfigurados num arranjo próprio. Bethânia é singular justamente no


momento em que habitus e consciências prática/discursiva estão em interface,
configurando sua ação no mundo. Recuperando a perspectiva de Weber (1992), os sentidos
que esta agente estabelece para suas ações são estruturados na durée da vida cotidiana em
práticas sociais que vêm delineando os contornos de sua identidade social.

Considerando que os agentes se estabelecem como tais em interações com outros


agentes, podemos, então, nos perguntar como Elias (1994) permite propor a construção da
singularidade, a partir das noções de reticularidade e interdependências. Sua sociologia
parte de um modelo configurativo-processual, em que se expressam interdependências.
Também a relacionalidade é aí primordial e o conceito de sociedade se dilui e recupera
naquele de configuração (Elias, 1994a). O autor se posiciona contra a apreensão
substancialista do social (como em Durkheim) e trata do que chama de interdependências
socio-funcionais, que se evidenciam nas cadeias de dependências mútuas entre os
indivíduos.

O que importa na análise social de Elias é entender as relações nas configurações


sociais estabelecidas nas interdependências em longa duração. Podemos, então, chamar os
indivíduos de “sínteses psíquico-histórico-sociais”, numa remissão ao caráter biológico, e
de uma “psique” que se efetivam na vida social, ou seja, nas interdependências. Deste
modo, a disjunção entre indivíduo/sociedade não faria sentido, pois qualquer criança nasce
no meio de um encadeamento de interdependências intergeracionais36 que funcionam como
ajustes de atos deste indivíduo em formação. À medida que as interdependências se
estabelecem, há uma pressão estruturante dos atos daqueles nelas inscritos.

O conceito de configuração alcança em Elias uma conotação eminentemente


dinâmica. O autor está tratando de processos configuracionais, figurações móveis e
históricas. As configurações dão conta de padrões de ação e intercruzamento de ações, que
expressam teias diferenciadas e funcionais complexas. Os agentes não conseguiriam
estabelecer onde começam e terminam as teias de que são partes, de modo que se pode
inferir que as interdependências se tornam invisíveis para o próprio agente37. A

36
Poderíamos associar essas interdependências intergeracionais à noção de habitus primário em Bourdieu;
cada interdependência em família, por exemplo, pode ser considerada uma objetividade a ser apreendida pela
criança, que vive numa cadeia de interdependência e adquire objetividades que vão se constituir nas
potencialidades do habitus.
37
Essa não-percepção das teias de interdependência pode ser lida como um equivalente, para efeito de
comparação, da noção de illusio em Bourdieu.
59

individualização crescente dos agentes nas sociedades modernizadas se dá na mesma


medida em que essa rede se estende, sendo que o agente é um elemento (poder-se-ia dizer
um fio) desta e participa do jogo social sem decisões individuais isoladas.

Neste sentido, Caetano, Gil, Gal e Bethânia têm suas individualidades em constituição
nas relações de interdependência e formulam auto-imagens que os situam no mundo. Ao
cantar/performatizar canções em discos e shows, apresentam o resultado de estetizações
plasmadas segundo “sua” noção de individualidade. Assim, cada obra pode ser lida tanto
como a interpretação do mundo por estes artistas quanto a atuação destes artistas no
mundo, que se configuram como tais seja no campo artístico em que se colocam, em suas
posições, seja nas relações com outros agentes, numa teia crescente, em função da variação
de escala da rede de interações em questão.

Elias cunha a expressão balança Nós-Eu como uma forma de explicar que cada
indivíduo é formado numa teia de relações que o constitui de tal forma que sua
individualidade (auto-imagem) é resultado de uma cadeia de dependências que, quanto
mais extensa, mais produz a sensação de individualidade e isolamento, o que seria uma
característica crescente nas sociedades modernas. Uma criança, ao nascer, está imersa em
interações sociais e biopsíquicas, sendo pressionada ao ajuste que a configurará como
indivíduo. A criança (como “eu”) vai se reconhecendo em relação a um “nós” que a cerca e
faz parte de seu “eu”. O “nós” vai sempre se configurando como uma imagem grupal, a
partir da família, bairro, cidade, nação, ou seja, os variados meios em que as
interdependências vão se afirmando como motrizes da vida social. Deste modo, o humano
somente o é na condição de existência no social.

Por outro lado, o apelo à noção de reticularidade38 também possibilita entender a


importância dos outros (nós) na relação com o eu (auto-imagem dos agentes) na formação
social. As individualidades, assim, se revelam coletivamente construídas, ou seja, em rede.

38
“A relação entre as pessoas é comumente imaginada como a que existe entre as bolas de bilhar: elas se
chocam e rolam em direções diferentes. Mas a interação entre as pessoas e os “fenômenos reticulares” que
elas produzem são essencialmente diferentes das interações puramente somatórias das substâncias físicas (...)
Tomemos, por exemplo, uma forma relativamente simples de relação humana, a conversa. Um parceiro fala,
o interlocutor retruca. O primeiro responde e o segundo volta a replicar (...) É possível, por exemplo, que eles
cheguem a um certo acordo no correr da conversação. Talvez um convença o outro. Nesse caso, alguma coisa
passa de um para o outro. É assimilada na estrutura individual das idéias deste (...) E é justamente esse fato
de as pessoas mudarem em relação umas às outras e através de sua relação mútua, de se estarem
continuamente moldando e remoldando em relação umas ás outras, que caracteriza o fenômeno reticular em
geral” (Elias, 1994aa, p. 29)
60

A singularidade dos agentes possibilita a visualização destas reticularidades como


estruturantes das ações destes indivíduos, pois cada artista, ao se reconhecer como tal, traz
consigo a inscrição das interações de que é co-participante, ou seja, a troca de experiências
e de sensações de auto-imagens que se encontram também condicionadas às apreensões
reflexivas e habitus dos agentes.

A influência de Gilberto Gil em Caetano Veloso e vice-versa pode ser tratada como
um exemplo nítido das reticularidades em corte sincrônico. Gil é considerado o músico
por excelência do grupo baiano – por sua intimidade com o universo musical tecnicamente
falando – e foi quem não permitiu que Caetano Veloso desistisse da música como
profissão. Caetano se mostra o incentivador de posturas políticas mais nítidas em Gil,
como no caso da aparição no programa tropicalista em 1968, que coincidiu com a morte de
Vicente Celestino (Calado, 1997). Seguindo Elias, podemos dizer que, em Caetano, há
uma presença forte de traços caracterizadores de posturas de Gil, e reciprocamente, em
relação a Caetano. Em longa duração, como propõe Elias, os diversos “nós” que
circundaram estes indivíduos possibilitaram sua afirmação existencial enquanto únicos, ao
mesmo tempo que situados numa rede relacional – portanto, singulares.

Além da reticularidade, em Elias, o conceito de habitus aparece como a experiência


proporcionada nas interdependências, a partir de símbolos do discurso público (fala em
habitus social e na própria categoria nacional) e nas narrativas. Podemos notar, nas
experiências brevemente comentadas acima, diversas categorias de conhecimento que se
evidenciam em lutas sociais. Percebe-se em Elias uma atenção maior às incorporações de
objetividades centradas nas auto-imagens dos agentes, e sua argumentação sobre o habitus
é esclarecedora disto. Assim:

Esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que constitui o solo de que brotam
as características pessoais mediante as quais um indivíduo difere dos outros membros de
sua sociedade. Dessa maneira, alguma coisa brota da linguagem comum que o indivíduo
compartilha com os outros e que é, certamente, um componente do habitus social – um
estilo mais ou menos individual, algo que poderia ser chamado de grafia individual que
brota da escrita social (...) A identidade nós-eu anteriormente discutida é parte integrante
do habitus social de uma pessoa, e como tal, está aberta à individualização. Essa
identidade representa a resposta à pergunta “Quem sou eu” como ser social e individual
(Elias, 1994a, p. 151).

Assim, a perspectiva de Elias tanto conflui com a de Bourdieu, ao considerar a


categoria habitus, como aponta para a singularização de feixes identitários – ao se reportar
ao nacional –, pois os agentes, respondendo à questão “quem sou eu?”, direcionam, em sua
61

escrita social, como as identidades são personificadas relacionalmente nos agentes. Na


obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, essa singularização é um elemento central para as
trans-significações identitárias no âmbito de sua música.

Deste modo, a singularidade pode ser apontada como uma característica relacional
observável nos agentes aqui considerados e que confere a estes indivíduos a capacidade de
transfigurar e reconfigurar narrativas e interpretações nas intersecções dos campos no
espaço social, como veremos com mais ênfase nos capítulos a seguir.
62

3 QUATRO TRAJETÓRIAS ARTÍSTICAS COMO


ENSAIOS E LABORATÓRIOS CONTEXTUALIZADOS

No capítulo anterior, tratamos da construção de narrativas identitárias pelo prisma da


singularidade. Vamos então a uma discussão sobre as trajetórias de Caetano, Gil, Gal e
Bethânia como suporte historiográfico do tratamento do acontecimento que se identifica
com o objeto propriamente dito deste trabalho. A exposição de sua obra como interface de
narrativas identitárias conduz ao desenho das suas trajetórias no campo da música popular
brasileira, no sentido de compreender as singularidades que transfiguram os textos de
identidade cultural baiana/brasileira como tratado nesta pesquisa.

A questão que se põe inicialmente diz respeito à consideração da dimensão biográfica


das trajetórias destes artistas. Parte-se da polarização entre as posturas de Pierre Bourdieu
(2004) e Gilberto Velho (1987); o primeiro nega a possibilidade de sentido de uma
biografia, enquanto o outro abre caminho para a percepção da narrativa biográfica como
meio de situar os agentes no que chama de sociedades complexas. Em não correspondendo
à essencialidade criticada por Bourdieu, as trajetórias de Caetano, Gil, Gal e Bethânia
convidam à análise dos caminhos por eles traçados em diversos momentos de sua atuação
no campo da música popular. Neste sentido, confluem no arranjo construído por Velho, em
seguimento a Dumont (1985).

A apreciação de Gilberto Velho remonta à perspectiva de Dumont sobre a ideologia


do individualismo em sociedades complexas. Tomando como base o estudo do que chama
de holismo, ao tratar da cultura hindu, Dumont trata do indivíduo como unidade empírica
nas sociedades modernizadas. Velho (1987) vai desdobrar essa idéia principal e discutir
como holismo e individualismo se situam no contexto da sociedade brasileira.

A crítica bourdiana ao viés essencialista da biografia se remete à impossibilidade de


unificação entre o que poderíamos tomar como indivíduo e agente. Para Bourdieu (2004),
cada indivíduo somente guardaria como imutável o seu nome, como instrumento de
classificação e diferenciação de uma unidade que assume a vez de vários agentes, em cada
campo considerado. Deste modo, não fugindo ao esquema teórico-metodológico baseado
nos conceitos de habitus e campo, Bourdieu não reconhece a validade da idéia de uma
história de vida; esta se aproximaria de uma ontologia social, que concebe os indivíduos
63

como dotando suas ações de sentido, tal como em Weber e, de modo geral, nos autores da
sociologia compreensiva.

O que Velho (2003) chama de campo de possibilidades abre espaço para a noção de
projeto dos indivíduos, ou seja, ações e intenções de agir dotadas de sentido e que podem
ou não se efetivar numa teia de significados (Geertz, 1978). A ambiência disto pode ser
encontrada no que Velho (1987) chama de cultura complexa, ou contemporânea. Dando
seguimento a Dumont (1985), discute como o individualismo – na relação entre eidos
(visão de mundo) e ethos – se coloca em meio à totalização para que tende a noção de
cultura. Neste sentido, a contribuição de Velho vem se somar no tratamento da questão do
singular como presença das individualidades nos meios sócio-culturais em que ocorrem as
práticas. Assim,

Essa experiência da originalidade da experiência individual constitui um dos pontos centrais


da relação entre ciências sociais e ciências do comportamento individual. Por mais que seja
possível explicar sociologicamente as variáveis que se articulam e atuam sobre biografias
específicas, há sempre algo irredutível, não devido necessariamente a uma essência
individual mas sim a uma combinação única de fatores psicológicos, sociais, históricos,
impossível de ser repetida ipsis litteris. Mas, mesmo que o ator viva a sua experiência como
única, ele de alguma forma reconhece-se nos outros através de semelhanças e
coincidências. Em certas culturas e/ou subculturas, toda a atenção será dada às
diferenças, enquanto em outras o foco privilegiado será a semelhança. Umas serão mais
individualistas do que outras, na medida em que a unidade significativa de experiência for o
indivíduo particular e idiossincrático, com suas peculiaridades sublinhadas (Velho, 1987, p.
28).

As biografias, por outro lado, funcionam, na contemporaneidade, como elementos de


organização para as práticas dos agentes. Como salientam Ribeiro & Lerner (2003), os
indivíduos buscam nas biografias de pessoas famosas39 referências para a construção de
sentido de suas próprias vidas. As motivações, sentidos e, portanto, ações individuais
(Weber, 1992) podem ser vistas como carregadas de significações atribuídas a uma noção
de caminho a seguir na vida. Ler os relatos que dão conta das trajetórias de cantores, atores
e outras “celebridades” pode representar, para diversos tipos de pessoas, a possibilidade de
melhor situá-las nas posições ocupadas no espaço social (Bourdieu, 2003).

Desta feita, os relatos biográficos entram também no terreno das construções da mídia
em torno de figuras singulares/singularizadas a partir da interface gerada por suas

39
Em outro contexto científico importante para esta discussão, Hobsbawm (1999) aponta para a biografia de
pessoas não famosas como expressões de acontecimentos importantes na história ocidental, referindo-se a
trajetórias de artistas de jazz, numa tentativa de concatenar elementos para a construção de uma historiografia
marxista pautada em experiências mais cotidianas.
64

posições/funções em sociedade e o interesse que pode ser despertado por tais indivíduos.
Isso poderia explicar, por exemplo, a importância dada ao noticiar quase que constante do
nascimento e infância de filhos de personalidades famosas, como Sasha (filha de Xuxa); do
casamento de Carlinhos Brown com a filha de Chico Buarque; do costureiro que estaria
trabalhando para o novo show de Gal Costa, etc.

Tal interesse pela vida privada alheia (dos famosos) pode trazer à tona também
compreensões da vida social muito interessantes aos efeitos de contextualizar melhor esta
pesquisa. Quando a sexualidade ou a condição étnico-racial de alguém é
enaltecida/depreciada na mídia através tanto de relatos corriqueiros quanto de verdadeiros
dossiês da imprensa escrita e eletrônica, são capitais simbólicos a respeito das figuras
envolvidas que estão sendo tomados como parâmetros, o que acaba por expor tabus,
entraves e até ressignificações de imaginário.

Recentemente, o filme Os Doces Bárbaros foi relançado nos circuitos comerciais de


exibição. O Ministro da Cultura, Gilberto Gil, ao ser interpelado sobre o fato de se ver na
tela num momento delicado – quando foi detido por porte de maconha –, afirmou não se
sentir preocupado, pois a verdade dos fatos não deveria ser escondida40. A discussão que se
forma em torno deste caso trata justamente dos significados em jogo; afinal, temos um
Ministro que trinta anos atrás fumou maconha e provocou polêmica. Vê-se, então, que a
trajetória de um indivíduo famoso pode servir de plano de fundo para questões mais
coletivas, como a pertinência ou não do debate acerca do uso e dos usuários de maconha.
São emblemas que, transitando entre a moral e a legalidade dos costumes na sociedade
brasileira, vêm se exprimir na biografia de um indivíduo singular.

Ainda em termos da importância tanto das biografias quanto dos indivíduos como
unidades analíticas das culturas complexas, Velho (2001) acena com uma observação
interessante sobre os artistas, constituinte central do objeto desta pesquisa. Deste modo:

De qualquer forma, a mística do artista como indivíduo singular, já anunciando a temática


da genialidade, tem paradigmas elaborados a partir de figuras emblemáticas como Miguel
Ângelo, Leonardo da Vinci e Rafael (Hauser, 1951). (...) Os artistas constituem um exemplo
significativo da crescente importância das ideologias individualistas. (...) Fica cada vez mais
presente a importância da dimensão interna, da subjetividade para a construção de
personagens singulares. Assim, a trajetória individual e a biografia tornam-se cada vez
mais centrais na visão de mundo moderno-ocidental (Velho, 2001, p. 17-18).

40
Em entrevista ao Folha On Line, setembro de 2004.
65

Desta forma, a singularidade dos agentes, tal como considerada neste trabalho,
conduz também a uma necessidade de afirmação de projetos que estão em jogo nas
atuações artísticas destes indivíduos. Se a biografia não é possível para Bourdieu por conta
de sua epistemologia relacional, a perspectiva de Velho procede e ilumina pontos
importantes no que tange à singularidade.

Passo agora a tratar das trajetórias a confluir no acontecimento Os Doces Bárbaros,


considerando cada artista em separado, como unidades bio-sócio-analíticas (de acordo com
a intuição de Velho); em outras palavras, sínteses de suas próprias singularidades.

3.1 CAETANO VELOSO

Caetano Veloso nasceu em Santo Amaro da Purificação, a 7 de agosto de 1942, filho


de uma dona de casa (Dona Canô) e de um funcionário dos Correios (Seu Zeca). As
informações mais correntes dão conta de uma infância em que a leitura e a música sempre
fizeram parte – constituindo habitus primários – do cotidiano deste indivíduo. Por outro
lado, a atmosfera interiorana do Recôncavo Baiano ambientou uma educação rígida do
ponto de vista de valores referentes ao respeito às origens numa convivência familiar
consideravelmente plural41 com muitas pessoas.

A ligação entre Caetano e sua família está presente em inúmeras peças dos anos
sessenta até hoje, como a ratificar sua condição de interiorano de uma região próxima do
mar e ao mesmo tempo com características coloniais ainda marcantes42.

41
Incluindo duas irmãs adotivas, Nicinha e Irene, referidas em diversos momentos em canções ou
depoimentos do artista.
42
Os Velloso se constituem hoje quase como um clã, como ícones da cidade de Santo Amaro da Purificação.
As novenas a Nossa Senhora são comandadas por Dona Canô, cujo nome se faz presente em algumas
canções; na festa de seu aniversário, recebe homenagens de diversos setores da vida social, incluindo
políticos como Antônio Carlos Magalhães, que aumenta sua visibilidade ao se mostrar ao lado de uma figura
que acabou encarnando a matriarca do Recôncavo. As trocas simbólicas experimentadas nesta trama são
inúmeras, como se pode inferir.
66

Sou um mulato nato


No sentido lato
Mulato democrático do litoral

Caetano Veloso
In: Sugar cane fields forever, CD Araçá Azul, 1973, Polygram.

Também em Irene (1969), Nicinha (1975), Trilhos Urbanos (1979) e Genipapo


Absoluto (1989) se observa essa remissão às origens em Santo Amaro como base para sua
trajetória no campo da música. Podemos dizer que, no projeto (Velho, 2003) de Caetano,
cabe apresentar-se como menino do interior que foi à cidade grande e devolveu a Santo
Amaro o brilho midiático alcançado, afirmando-se como um artista polêmico e
reconhecido como importante.

No caso da irmã Maria Bethânia, o próprio Caetano reportou-se, no documentário


Circuladô, em 1992, como tendo trazido o irracional prá dentro de nossa casa. As
referências a Bethânia por Caetano, entretanto, dizem mais respeito à sua atuação como
intérprete, como nas canções Maria Bethânia [AL 024] (1971), Queda d´água [AL 025]
(1980) ou mesmo Reconvexo [AL 026] (1988). Bethânia por Caetano aparece como a artista
do palco, fruto de sua convivência muito mais com a força dramática remetida à irmã,
embora sua raiz familiar não seja elidida43.

Após uma breve passagem pelo Rio de Janeiro, em 1956-57, Caetano Veloso sai deste
círculo sócio-cultural em Santo Amaro, em 1960, para uma Salvador ávida de intensa
elaboração cultural, num momento em que a Universidade Federal da Bahia, se encontrava
sob a regência de Edgar Santos, pretendia consolidar os cursos de artes em como
referências de nível nacional (Rubim, 1996).

Já em Salvador, estudando no Colégio Severino Vieira, Caetano dá prosseguimento às


suas investidas intelectuais – escreve sobre cinema no jornal O Archote, de Santo Amaro –
e envolve-se com literatura e filosofia. Começa a cursar o curso de Filosofia na UFBA, que
não viria a concluir. Junto com Bethânia, que também tinha se mudado para a capital,
começa a freqüentar ambientes artísticos como o Bazarte (bar em que funcionava uma
galeria de arte) e a Escola de Teatro da UFBA. Aí conhece o diretor de teatro Álvaro
Guimarães, que lhe pede para musicar uma peça sua: foi a estréia de Caetano na vida
artística de Salvador. Interessado também no canto de Bethânia, que anunciava a peça

43
Outros comentários sobre o impacto de Bethânia em Caetano Veloso em AD, bem como depoimento de
Chico Buarque pode revelar traços importantes da figura artística de Maria Bethânia.
67

Boca de Ouro cantando Na cadência do samba, de Ataulfo Alves e Paulo Gesta, em 1963,
Álvaro Guimarães proporcionou à cidade conhecer mais proximamente o início das
trajetórias artísticas dos dois irmãos, pelas veredas do teatro e da canção; estas experiências
podem ser compreendidas com mais nitidez se as situamos no clima de efervescência
cultural que caracterizava a Salvador do início dos anos sessenta, sobretudo nos meios
artísticos e universitários.

Diversas figuras relevantes para o desenvolvimento da carreira de Caetano lhe vão


sendo apresentadas nesse período. Entretanto, o encontro em 1963 com Gilberto Gil –
àquela altura já conhecido a partir de um programa de TV em Salvador – pode ser tomado
como acontecimento especialmente significativo. Logo se identificaram no gosto por João
Gilberto e pela Bossa Nova. Os saraus que aconteciam na casa da atriz Maria Muniz
estimularam a convivência entre os dois amigos e outros nomes importantes à época, como
Tom Zé, Fernando Lona, Alcyvando Luz, Orlando Senna, Maria Lígia e o próprio Álvaro
Guimarães.

Já em 1964, Caetano Veloso e a irmã Bethânia, Gilberto Gil e Gal Costa se reúnem no
Teatro Vila Velha para um show de inauguração, junto com outros expoentes em ascensão
na cidade do Salvador. O show Nós, por Exemplo estreou em agosto de 1964. Segundo
Calado (1997), teria ofuscado outras atrações da semana comemorativa.

As sucessivas apresentações, seja com o Nós, por exemplo, seja com os espetáculos
posteriores em grupo e individualmente, possibilitaram o reconhecimento de Caetano e dos
outros três baianos como artistas no mínimo promissores. Caetano começa a aparecer
como uma espécie de líder intelectual do grupo, devido aos seus manifestos excessos
retóricos, aliados a uma vontade – no plano tanto de projeto (Velho, 2003) quanto de
representação do self (Goffman, 2003) – de liderança e direção das carreiras de seus
amigos (Veloso, 1997). O desejo inicial, reiterado por Caetano, de não continuar sua
carreira como cantor e dedicar-se a dirigir artisticamente Gil, Gal e Bethânia, bem como a
retomada de sua decisão por conta da argumentação de Gil, despontam diversas vezes.
68

Eu só queria desistir. Desde o início, só queria desistir. A Gal disse que foi a Dedé que não
deixou ela desistir. Foi o Gil que não me deixou desistir. Ele me disse: se você desistir, eu
paro. Aí eu obedeci, porque prá mim foi um chamado da música, pois pra mim, o Gil é a
própria música. Aí, quando eu quis de novo desistir, veio a ditadura e eu fiquei sem forças e
continuei. Então vocês agradeçam à ditadura.
In: Programa Livre. Entrevista concedida junto com Gal Costa a Serginho Groissman e ao
público, em 1996, durante lançamento do disco Trilha Sonora de Tieta do Agreste, SBT,
1996.

A continuidade da trajetória de Caetano toma uma guinada muito radical quando


Bethânia foi chamada para o Rio de Janeiro para substituir Nara Leão no espetáculo
Opinião, em 1965. Ao chegar aí como acompanhante da irmã, Caetano concorre ao II
Festival Nacional da Música Popular com a canção Boa Palavra (Caetano Veloso) na voz
da cantora Maria Odete; obtém o quinto lugar, o que lhe abre portas no sentido de mostrar
seu trabalho como compositor. Já no disco de Bethânia, a peça É de manhã (Caetano
Veloso) surpreendeu, entre outros, Augusto de Campos, que percebia naqueles versos
onomatopaicos uma inovação interessante na poética da música brasileira (Campos, 2003).

Começando a participar do programa televisivo Esta Noite se Improvisa, Caetano


Veloso passa a se destacar por ganhar a maioria das competições (elaboradas a partir da
lembrança de canções contendo palavras enunciadas pelo apresentador), dividindo com
Chico Buarque os prêmios principais; ambos saíam vitoriosos de quase todas as disputas.
Em 1967, enfim, Caetano chega ao primeiro disco, ao lado de Gal Costa. Em Domingo,
gravado pela Polygram, Caetano e Gal dividem vocais de canções de autoria própria e
outros compositores numa ambiência bossa-novista nítida nos arranjos e referências que
vêm desde a Bahia calma e interiorana – Candeias (Edu Lobo), passando pela cantiga “de
origem” em Onde eu nasci passa um rio (Caetano Veloso), além dos versos referentes a
uma Bahia doce, malemolente e sensual, como em Remelexo [AL 027] e Quem me dera
(ambas de Caetano).

Esse álbum, a despeito de ter sido gravado em horários não muito cômodos, já que os
dois artistas ainda eram iniciantes, revelou para um maior número de pessoas a marca de
João Gilberto nos dois jovens intérpretes. Segundo o próprio Caetano, ao gravar Domingo,
sua inspiração já tendia para outros interesses, o que lhe dava a dimensão exata dos
caminhos que pretendia trilhar com sua arte. Assim:
69

Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração agora está
tendendo pra caminhos muito diferentes dos que segui até aqui. Algumas canções deste
disco são recentes (Um dia, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância
que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer canção. A minha
inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer
incorporar essa saudade num projeto de futuro. Aqui está – acredito que gravei este disco
na hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante do que já fiz e não
tenho vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma nota. Quero apenas poder dizer
tranqüilamente que o risco de beleza que este disco possa correr se deve a Gal, Dori,
Francis, Edu Lobo, Menescal, Sidney Miller, Gil, Torquato, Célio, e também, mais longe, a
Duda, a seu Zezinho Veloso, a Hercília, a Chico Mota, às meninas de Dona Morena, a Dó,
a Nossa Senhora da Purificação e a Lambreta.
Caetano Veloso
In: Contracapa do disco Domingo 1967,CD, Polygram.

Deste modo, a partir de 1967, a música de Caetano começa a aparecer como algo
importante no novo cenário musical de finais dos anos sessenta. Sua participação no III
Festival da Record, com Alegria, alegria, inicia sua consagração como pop star. O final do
ano registra sua ascensão como celebridade quando seu casamento, na Igreja de São Pedro,
em Salvador, é cercado de repórteres e de um público que fez um show à parte na
cerimônia44.

Em 1968, no disco solo Caetano Veloso, a canção Tropicália (Caetano Veloso) evoca
a atmosfera que daí por diante viria a caracterizar a sua produção: a urbanidade já tratada
em Alegria, alegria, junto à poética em que a colagem de imagens e referências ao Brasil
permeado de vetores endógenos e exógenos comparece à letra como a coroar a forma de
escritura deste compositor. São deste álbum Clarice (Caetano Veloso/Capinam), No dia em
que eu vim-me embora (Gilberto Gil/Caetano Veloso) e Ave-Maria (Caetano Veloso), entre
outras.

Ainda em 1968, é lançado o disco coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, que


define em um único trabalho as bases do que veio a ser considerado um movimento
artístico centrado na música, o Tropicalismo. Esta fase costuma ser considerada pelos
críticos como uma das mais férteis, inclusive pela interlocução com o conjunto da música
popular brasileira, por razões que vão das hibridizações propostas por este movimento até
as influências manifestas nas práticas artísticas posteriores, como se pode perceber nas
décadas seguintes na trajetória de artistas e grupos como Novos Baianos, Secos e

44
Há indícios de que o empresário Guilherme Araújo teria informado sobre o casamento para atrair públicos
e testar a popularidade de Caetano após sua explosão midiática inicial com a canção Alegria, alegria.
70

Molhados, Chico Science e Nação Zumbi, a nova música baiana (Axé-Music), Chico
César, Zeca Baleiro e Adriana Calcanhotto, entre outros.

Com a apresentação da peça É proibido proibir (Caetano Veloso) [AL 028] e das vaias
recebidas pelos estudantes inconformados com o uso das guitarras e da alegoria
considerada excessiva daquela performance, Caetano e Gil passam a ser observados pelo
regime militar como figuras não tão inofensivas. Após um show realizado em outubro de
1968 na boate Sucata, São Paulo, e de uma acusação do jornalista Randall Juliano de que
estes artistas teriam feito uma paródia do hino nacional, os dois baianos são presos a 27 de
dezembro de 1968 e seguem para um exílio em Londres.

Em 20 e 21 de julho de 1969, o show Barra 69 é realizado no Teatro Castro Alves, em


Salvador, como despedida. Cada um deles grava seu disco de voz e violão, que
posteriormente recebeu tratamento orquestral a cargo de Rogério Duprat, maestro de
Caetano e Gil desde Tropicália. O disco Caetano Veloso (1969), – cuja capa lembrava a do
chamado “disco branco” dos Beatles, do mesmo ano, – traz uma sonoridade conforme o
padrão musical tropicalista, ao lado de uma certa melancolia associada ao exílio já sentido
por Caetano. Assim:
From the stern to the bow
Oh my boat is empty
Yes, my heart is empty
From the hole to the how (…)
(…) From the east to the west
Oh the stream is long
Yes my dream is wrong
From the birth to the death.

Caetano Veloso
The empty boat. In: Caetano Veloso, CD Caetano Veloso, Polygram, 1969.

No exílio, Caetano começa a escrever para o jornal O Pasquim e grava dois discos. O
álbum Caetano Veloso (1971) mostra um artista deprimido e carrancudo desde a capa,
passando por um repertório que se conclui com a gravação particular e ressentida de Asa
Branca (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira). Em janeiro daquele ano, Caetano voltou ao
Brasil para visitar os pais, a partir de uma negociação intermediada por Maria Bethânia. Ao
chegar, sua presença suscitou o furor dos fãs e suspeitas das autoridades. Foi interrogado
por seis horas45 e se apresentou na TV Globo em 4 de fevereiro, cantando unicamente a

45
Sobre este interrogatório, Caetano ainda se reporta ao episódio da exigência de uma canção para a
Transamazônica (Calado, 1997).
71

peça de Sinval Silva Adeus Batucada [AL 029], de significados evidentes de sua condição
de persona non grata naquele Brasil. Assim, num depoimento revelador de Nelson Motta :

O “Som Livre” tinha a participação fixa de Os Mutantes e das revelações do MAU –


Movimento Artístico Universitário – Gonzaguinha, César Costa Filho, Aldyr Blanc e Ivan
Lins, além de convidados especiais. Alguns especialíssimos, como Caetano Veloso, que
recebeu uma autorização especial do governo para participar do programa e passar uns
poucos dias na Bahia, onde fui entrevistá-lo para a TV Globo e matar saudades. A
entrevista foi meio frustrante: quase tudo o que eu gostaria de perguntar ela não poderia
responder. Mas na gravação do programa, no Rio, ele surpreendeu o auditório jovem e
roqueiro, que esperava dele algo elétrico, pesado, mais próximo de Os Mutantes que de
Elis e Ivan Lins. Ao contrário, sem gritos e nem guitarras, apenas se acompanhando ao
violão, Caetano cantou, radicalmente gilbertiniano, um antigo e belíssimo samba de Synval
Silva, gravado por Carmem Miranda. Um clássico da música brasileira, uma obra-prima
popular que quase ninguém naquele auditório conhecia. Foi um espanto (...) E voltou para
o exílio (Motta, 2000, p. 228).

Em agosto de 1971, por conta de um convite de João Gilberto para um programa na


TV Tupi, Caetano volta ao Brasil e já na chegada é recebido de maneira diferente que
alguns meses antes, aparecendo na tela ao lado de João Gilberto e Gal Costa podendo
voltar a Londres com certo alívio.

Em janeiro de 1972, Caetano volta para o Brasil em definitivo e lança o disco Transa,
trazendo diversas e vigorosas referências à Bahia e ao Brasil, na sonoridade e nas letras,
incluindo a adaptação de Gregório de Mattos (Triste Bahia) [AL 030]; It’s a long way
(Caetano Veloso) [AL 031] contém excertos de cantigas de roda baianas; You don’t know me
(Caetano Veloso) e Neolithic Man (Caetano Veloso) apresentam incursões pelo
cancioneiro tradicional brasileiro/baiano.

Ainda em 1972, acontece o show hoje considerado histórico de Caetano e Chico


Buarque (em Salvador), que se tornou disco ao vivo – Caetano e Chico juntos e ao vivo – e
o show Barra 69, que foi gravado amadoristicamente e acabou sendo lançado pela
Polygram. Tanto o encontro com Chico Buarque quanto o registro do show de despedida
representam a importância que se deu à época à volta do exílio do artista Caetano Veloso.
Diversas remissões em jornais de Salvador demonstram que o clima era de receptividade a
dois emblemas artísticos que retornavam.

Os projetos (Velho, 2003) de que estavam imbuídos, nos termos de uma proposta de
trajetória, desaguaram em conseqüências – muitas impremeditadas, como no vocabulário
de Giddens (1989) – que redefiniram planos e mesmo auto-imagens (Elias, 1994a) que, por
sua vez, nem sempre se ajustaram às expectativas da imprensa e de movimentos políticos
72

naquele contexto. A nominação baihunos46 foi cunhada por Millôr Fernandes nesta época,
pois o clima que se formou, quase transformando Caetano e Gil em heróis de uma espécie
de “ditadura atroz”, não coadunava com os propósitos dos dois artistas, mais interessados
em uma militância artística em que as individualidades ganhavam maior nitidez que num
habitus correspondente aos grupos convencionalmente chamados de esquerda.

Em 1973, o disco Araçá Azul é um trabalho experimental não bem aceito pelo
mercado fonográfico brasileiro, tornando-se um fracasso de vendagens. Na capa, Caetano
olha para o próprio umbigo, o que acabou coroando a idéia de que sua vaidade se
pronunciava bem mais nessa nova fase. Caetano parece ter voltado ao Brasil sem muito
intento na veiculação de discursos com propostas políticas explícitas, embora sua baliza
estética ainda fosse referenciada numa continuidade do Tropicalismo e no apontar de
novos rumos da música no Brasil. Sobre a época em questão, vejamos o depoimento:

Quando musiquei "Triste Bahia", escrevi a Augusto de Campos: "quero que o resultado
pareça ao mesmo tempo folclore e ficção científica". A paixão compartilhada com Gil pela
Banda de Pífaros de Caruaru, desde 1967, era a expressão dessa vontade. O tropicalismo
foi um espernear contra um cercado pequeno. A gravação londrina de "Asa Branca" foi um
primeiro esforço de concentração no sentido de realizar algum som a mais. O "Araçá Azul" -
depois da música para o filme São Bernardo, de Leon Hirshmam - foi o luxo de entrar no
estúdio sem nada e deixar esse desejo fluir para que eu, assim, pudesse testá-lo.
Caetano Veloso
In: Jornal do Brasil, julho de 1977. Recolhido em www.caetanoveloso.com.br, acesso em
15/04/2003.

Em 1974, Caetano produz o disco Cantar, de Gal Costa. Seguiu-se uma série de
shows com Gal e Gil na Bahia, de onde sai o disco Temporada de Verão, cuja ambiência é
hippie e despojada, como o imaginário mesmo sobre o verão soteropolitano. A seqüência
se dá com os discos Qualquer Coisa e Jóia, ambos de 1975 e com sabor de manifesto, que
consolidaram em Caetano Veloso uma singular busca sonora experimental e pop.

Qualquer Coisa parece ser um diálogo mais aberto com o público em geral, enquanto
Jóia [AL 032] já traz uma proposição mais radical, com sons percussivos sutis e um tanto
quanto refinados, se se pode assim definir. No primeiro, o intérprete de composições
alheias emerge em versões de peças dos Beatles, como Eleanor Rigby, For no one e Lady
Madonna, de Lennon e McCartney, além da gravação de Jorge de Capadócia (Jorge Ben)
em que flerta indiretamente com o sincretismo entre este santo católico e os orixás Ogum e
Oxóssi, como no Rio de Janeiro e Bahia, respectivamente. Jóia traz a faixa Guá (Caetano

46
Na seção 4.2, o termo bahiunos será melhor contextualizado.
73

Veloso) e o texto anexo ao disco é sugestivo, em que se lê: inspiração: águas de março.o
sexo dos anjos. e não fazemos por menos. Como já mencionado no Capítulo 2, é neste
disco que a capa estampa Caetano, Dedé e Moreno nus, numa foto censurada e adaptada
posteriormente para o lançamento do LP.

A singularidade de Caetano Veloso é constituída, desta forma, em dez anos de


presença mais marcante na mídia, como um artista propositivo, que discursivamente
(Giddens, 1989) vem elaborando explicações e representações de self (Goffman, 2003)
que, por sua vez, dão conta de um perfil suficientemente configurado a ponto de ser
considerado o líder deste grupo baiano. Elementos mais do que suficientes para que se
reunissem, em 1976, numa temporada de shows como numa comemoração.

3.2 GILBERTO GIL

“Dona” Claudina e “Seu” Zeca viram o nascimento de Gilberto Passos Gil Moreira
em 26 de junho de 1942. O pai médico e a mãe professora primária sempre tiveram muita
preocupação – e condições materiais – para com a educação de seus filhos. Gil e Gildina
estudaram inicialmente na pequena cidade interiorana de Ituaçu, informalmente com a avó
Lídia; cursaram o ginasial em Salvador, já morando com a tia Margarida.

Ainda em Ituaçu, Gil passa a conviver com a música nordestina, principalmente a voz
e a sanfona de Luiz Gonzaga e o som de Jackson do Pandeiro, o que influenciou o menino
e o direcionou para o caminho da música. Na capital, Gil aprende a tocar acordeom e logo
após violão, sob o impacto da batida da Bossa Nova de João Gilberto, como salienta em
diversos momentos de sua carreira, como neste depoimento, sobre a peça Chega de
Saudade (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), um marco do movimento que se inaugurava no
final dos anos cinqüenta:

Esta música me fez tocar violão, me deu a decisão, provocou a decisão em mim de tocar
violão, um instrumento do qual eu tinha medo. Eu tocava acordeom e tinha medo do violão.
Quando eu ouvi Chega de Saudade com João Gilberto, eu disse; eu quero, eu quero essa
novidade, eu quero viver, quero participar de tudo isso que eu sei que vai estar sendo
inaugurado agora a partir dessa canção.
In: 100 anos de música. Programa da Rede Globo de Televisão, 2000.
74

Entre os quatro artistas do grupo baiano, Gil foi o primeiro a dar passos mais rápidos
no sentido de ocupar os espaços da mídia. Já em 1962, suas primeiras aparições se dão na
TV, no programa J S Comanda o Espetáculo. Também alguns jingles foram interpretados
e/ou compostos por Gil naquele período. Percebe-se um perfil musical desde então muito
aberto ao aspecto de entretenimento e de componente comercial da música popular. Na
perspectiva de Calado (1997), Gil passa a considerar o fazer musical como culturalmente
mais amplo a partir da Tropicália, o que não significa um desmerecimento desta
característica constituída, mas um vetor importante para a própria veiculação posterior do
trabalho do grupo baiano como um todo.

Com suas primeiras composições prontas, Gilberto Gil passa a dar mais valor ao
violão e às formas musicais que se desenvolvem a partir da Bossa Nova, principalmente
tendo como referência João Gilberto. Logo se identifica com Caetano quando o conhece,
em 1963, até chegarem ao show Nós, por exemplo. Sua formação acadêmica se completa
em 1964, quando conclui o curso de Administração de Empresas na Universidade Federal
da Bahia e passa a trabalhar na Alfândega; esse período é lembrado de forma jocosa na
canção Cibernética, de 1973. Em 1965, Gil faz um show com Bethânia e Vinícius no Rio
de Janeiro, o que lhe vale maiores reconhecimentos no eixo Rio- São Paulo47.

Desistindo de uma carreira na empresa Gessy Lever como administrador, Gilberto Gil
participa dos shows Arena canta Bahia e Tempo de Guerra (ambos com direção de
Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri) e desdobra a partir de 1966 sua carreira de
compositor, quando Elis Regina e Jair Rodrigues gravam Louvação (Gilberto Gil/Torquato
Neto). Um fato muito curioso tornou mais famosos tanto a peça quanto a figura de Gil.
Quando do incêndio que acometeu os estúdios da Rádio Record, era Louvação que estava
tocando; a lembrança deste momento se expressou em diversas execuções da canção, o que
a tornou quase um hino (Calado, 1997).

Em 1967, Gil chega ao primeiro LP, Louvação, em que ensaia tanto suas influências
da Bossa Nova e do samba mais tradicional, como em Ensaio Geral (Gilberto Gil/Torquato
Neto) e Maria (Gilberto Gil) – dedicada à Maria Bethânia, quanto incursões por temáticas

47
Em depoimento ao autor, em outubro de 1997, Gil revelou que a foto da capa de seu primeiro LP foi tirada
durante este show com Bethânia e Vinícius. Sua remissão afetuosa aponta para a importância deste
acontecimento para o início de sua trajetória. Nas palavras de Gil: “...olha só esta capa, eu com cara de
menino, da época do show com o Vinícius...” Tanto pela emoção demonstrada por Gil, quanto pela
relevância de Vinícius de Moraes como ícone da Bossa Nova, percebe-se que, nesse momento inicial das
carreiras, para Bethânia e Gil, o acolhimento teve importância especial.
75

inovadoras para os padrões da época, como é o caso de Lunik 9 (Gilberto Gil), canção que
antecipa impactos da presença do homem na lua. Gil afirma que seu interesse no tema
estava ligado tanto ao aspecto poético da lua quanto à importância social do fato, como em
outros momentos de sua carreira (Gil, 1996).

Com a Tropicália, Gil assume a posição de diretor musical do grupo baiano e põe em
prática uma série de idéias gestadas quando de sua visita ao Recife meses antes, e que tanto
tinham impressionado Caetano Veloso. Este caráter musical mais expressivo em Gil chama
a atenção de muitos críticos no período, incluindo o poeta Augusto de Campos (2003), que
se tornou um defensor das experiências em curso dos tropicalistas, desde o início. Ao falar
sobre o terceiro Festival de Música Popular de São Paulo, realizado na TV Record, o poeta
e cronista afirma:

Inovação mesmo, e corajosa, no sentido de desprovincianizar a música brasileira, tal como


já o fizera um grande baiano, João Gilberto, é essa que os novos baianos Caetano Veloso
e Gilberto Gil apresentaram no Festival, com Alegria, Alegria e Domingo no Parque, lutando
contra barreiras e preconceitos do público, do júri, dos companheiros da música popular, e
superando-se a si próprios (Campos, 2003, p. 131).

A perspectiva de Campos tornou-se representativa – o que aponta para tensões no


campo artístico – de uma defesa da produção musical de Caetano e Gil. Isto chegou ao
ponto de salientar uma polarização entre estes músicos e Chico Buarque, que no final dos
anos sessenta não perecia interessado nas propostas de modernização vinculadas à
industrialização da arte brasileira, como a discussão proporcionada pela Tropicália
apresentava (Veloso, 1997; Barros e Silva, 2004).

Em 1968, o disco Gilberto Gil é lançado já trazendo na capa um Gilberto multiplicado


em três, referenciando ícones desde um taxista lunático até um imponente literato com o
fardão da Academia Brasileira de Letras. As peças Procissão [AL 033], num arranjo
permeado de guitarras elétricas e vocais modernos dos Mutantes, e Domingo no parque,
ambas de Gil, estão ao lado de outras canções tratadas com uma sonoridade que flertava
com o cancioneiro consagrado e apontava para um Brasil de tardes de domingo
ensolaradas (como em Alegria, alegria, de Caetano), como nos versos de Domingou
(Gilberto Gil/Torquato Neto) [AL 034]. Assim:
76

Da janela a cidade se ilumina


Como nunca mais se iluminou
São três horas da tarde, é domingo
Na cidade, no Cristo Redentor – ê, ê
É domingo no trolley que passa – ê, ê
É domingo na moça e na praça – ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor

Domingou, Gilberto Gil e Torquato Neto, In: LP Gilberto Gil, Polygram, 1968

A Tropicália traz elementos que convidam a pensar que se, por um lado, a ditadura
militar exercia um papel limitador, por outro lado, não era capaz de sufocar totalmente as
expressões poéticas tanto de artistas quanto no próprio cotidiano brasileiro. A cidade do
Rio de Janeiro aparece quase sempre como emblema dos pés da ditadura e o lugar da
redenção e da liberdade a ser conquistada/expressa. Por outro lado, esta fase da trajetória
de Gilberto Gil conta com a participação de poetas muito importantes para sua música,
como Capinam (letrista de Água de Meninos, Miserere Nobis, Soy loco por ti, América,
entre outras) e Torquato Neto, cuja morte prematura em 1972 interrompeu o fluxo de um
rico manancial de idéias e inspirações para Gil e Caetano.

Com o exílio em Londres, Gil passa a desenvolver uma estética mais próxima da
posição de band leader, aprende a tocar guitarra e se insere mais facilmente que Caetano
no círculo artístico inglês. Sua presença chamava atenção de gravadoras britânicas e o
disco Gilberto Gil, de 1971, traz as primeiras parcerias, em tonalidades rockers, com o
poeta Jorge Mautner, um germano-brasileiro que vivia na Europa e desenvolvia estudos de
filosofia clássica, ainda hoje presentes em seu trabalho musical. As peças Mamma
(Gilberto Gil), Crazy Pop Rock (Gilberto Gil/Jorge Mautner) e Nega (Photograph Blues)
(Gilberto Gil) compõem este álbum de exílio, que teria sido sucedido por outro, cuja
feitura foi interrompida pela volta de Gil ao Brasil, em 1972.

Já em seu país, Gil se dedica ao projeto (Velho, 2003) de construção de uma carreira
em que as nuances da música pop estão cada vez mais intensas. A canção Back in Bahia
(Gilberto Gil) [AL 035], composta a partir de uma festa em Santo Amaro em que se faziam
presentes Caetano e Gil, faz uma leitura interessante de como o baiano Gil encarou sua ida
para Londres do final dos anos sessenta. Uma viagem que ocorreu como se ter ido fosse
necessário para voltar tanto mais vivo de vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá... Ou
seja, uma ida que, na volta, já trazia propostas artísticas que, entre outros significados,
também expressava uma militância política que passava longe da imagem de ícones
77

contrários à ditadura numa perspectiva militante/partidária da época. Desde já, o termo


baihunos passa a ser utilizado pelo Pasquim para designar os baianos no Rio de Janeiro.

O disco Expresso 2222 (1972), em que se encontra Back in Bahia, traz também a faixa
título, que se tornou um clássico da obra de Gil, em um ambiente musical que evoca uma
nordestinidade aos moldes de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, eletrificadas em
arranjos como o da canção Sai do Sereno (Onildo Almeida) em que divide os vocais
agudos com Gal Costa, e O sonho acabou (Gilberto Gil), em que, parafraseando John
Lennon, trata do final de uma espécie de era de rebeldia vivida nos anos sessenta pelo
movimento hippie. Assim: O sonho acabou/quem não dormiu num sleeping bag nem
sequer sonhou/foi pesado o sono pra quem não sonhou (...) entoa Gil num momento em
que sua posição no campo artístico brasileiro oscilava entre o compositor/intérprete
inovador que voltou do exílio, e ao mesmo tempo, o artista entregue ao pop e não
direcionado às letras políticas cobradas por parte da imprensa e esquerda da época. Nesse
ano ainda, é lançado o álbum Barra 69, registro do último show realizado por Caetano e
Gil antes de partirem para o exílio.

Em 1973, um disco seu é gravado e não lançado. Cidade do Salvador conta com
material para dois discos pelo menos e algumas canções acabaram sendo utilizadas em
outros álbuns, como Essa é pra tocar no rádio (Gilberto Gil) e Iansã (Gilberto Gil/Caetano
Veloso) [AL 036], interpretada no LP Drama, de Bethânia.

É no ano de 1973 ainda que, no evento da Polygram Phono 73, Gil e Chico Buarque
têm seus microfones emudecidos num ato da censura por conta da canção Cálice (Gilberto
Gil/Chico Buarque), considerada suspeita de conter clamores contra o regime militar. A
essa altura, Gil é considerado um músico em vias de consagração, devido à sua intimidade
com o violão e sua performance ao vivo, como no show realizado no Teatro da
Universidade Católica de São Paulo, que é gravado e se torna o LP Gilberto Gil Ao Vivo
(1974), cujo repertório vai dos experimentalismos de modulações propostos em João
Sabino (Gilberto Gil) até a interpretação de Sim, foi você, composição de Caetano Veloso,
de um período em que o mesmo ainda não tocava violão. O tema da maconha, que vai
custar uma prisão mais à frente para Gil, comparece neste trabalho na faixa Abra o olho
(Gilberto Gil), em que uma mirada no espelho após o trago de um cigarro de maconha se
transforma em uma viagem poético-musical. Ao se reportar a esta peça, diz o autor:
78

Sou eu pondo colírio nos olhos depois de ter fumado um cigarro de maconha, em Manaus.
O hotel ficava fora da cidade, no meio do mato. Fui ao espelho, vi meus olhos vermelhos,
pus colírio e fiz a música. Um diálogo de mim pra mim. O ‘ele’ é o ‘outro’, o outro, eu, o do
espelho. Um pingue-pongue-bumerangue: você joga pra atingir o que está lá, a seta volta e
o atinge. Pelé e Zagallo dão o sentido de contradição e complementaridade yin-yang; um é
África, o outro, Europa (Gil, 1996, p. 155).

Ainda em 1974, sai o disco Temporada de Verão, com Gal e Caetano, gravado em
Salvador, além de Gil deixar de trabalhar com o empresário Guilherme Araújo, uma figura
marcante na elaboração da imagem pública do artista. A contenda envolvendo Gil e Araújo
vai se desdobrar nos anos noventa, quando Gil reclama na justiça os direitos de
comercialização de suas músicas desta fase, pertencentes, por edição, à Guilherme Araújo
Produções Artísticas – GAPA. A imprensa noticiou diversos pronunciamentos dos dois e,
após muitos recursos em juízo, as peças passaram a ser administradas pela GG Produções,
empresa criada por Gil para trato de seus negócios. Este capítulo à parte na relação entre
Gil e Araújo revela a produção artística como um item do campo da música popular que
começa a aparecer mais nitidamente a partir da assunção de uma arte comercial no Brasil.

Desde a época dos cantores de rádio, quando havia registros de patrocínios


interferindo inclusive nas votações populares que consagraram Emilinha Borba e Marlene,
até a emergência de artistas que se auto-gerenciam mercadologicamente, como é este caso
de Gil, o que se tem é a afirmação de uma música com padrões industriais que se
desenvolve no Brasil. Mesmo artistas tidos como engajados politicamente e supostamente
não submetidos às regras do mercado – os chamados artistas alternativos – acabam
entrando nesta trama em que o artista é produtor e produto de um trabalho alocado em
prateleiras, tanto aquelas do mercado quanto aquelas outras relativas aos critérios de
classificação correspondentes aos lugares ocupados no campo (Bourdieu, 2004).

Em 1975, Gil grava um álbum com Jorge Ben, seu ídolo desde os tempos da paixão
pela Bossa Nova. Este registro – Gil Jorge Ogum Xangô – traz a faixa Filhos de Gandhi
(Gilberto Gil) [AL 037], composta como forma de divulgar o Afoxé Filhos de Gandhi, que
impressionou o artista ao sair em 1973 com uma quantidade mínima de associados. Este
LP duplo representou também a reverência mútua entre estes dois artistas e uma jogada
comercial interessante, pois o próprio Gil já manifesta um apelo à negritude brasileira que
encontra no samba-rock de Jorge Ben (hoje Jorge Ben Jor) uma complementaridade que
perpassa suas composições e interpretações.
79

Refazenda (1975) é o título do primeiro LP de uma série que re-visita temáticas da


vida brasileira. Este álbum revela uma busca de Gil por universos introspectivos presentes
na vida de Gil desde o exílio e a macrobiótica, além das leituras sobre cultura oriental e
eubiose, que figuram como material de investigação poética deste artista. Meditação
(Gilberto Gil), Refazenda (Gilberto Gil) [AL 008], Retiros Espirituais (Gilberto Gil) são
peças que se incluem neste rol. Já Lamento Sertanejo (Dominguinhos/Gilberto Gil), Essa é
pra tocar no rádio (Gilberto Gil) e Jeca Total (Gilberto Gil) funcionam como crônicas da
vida brasileira, de um Nordeste associado à estiagem e das transformações operadas no
âmbito do mercado musical, como as fórmulas que devem ser seguidas para expandir
limites de públicos e a presença da TV a reconfigurar o Jeca Tatu em Jeca Total.

Este caminho traçado pelo indivíduo Gilberto Gil, aqui analisado sob a ótica do artista
Gilberto Gil, chega ao show/disco/filme Os Doces Bárbaros trazendo um agente cuja
posição de destaque se estrutura a partir da relação entre memória, projeto e metamorfose,
no sentido proposto por Gilberto Velho.

3.3 GAL COSTA

A trajetória artística de Gal Costa se inicia a partir de uma relação que esta cantora diz
manter com a música desde muito cedo. Filha de uma família de classe média alta de
Salvador, que vem a ficar em situação financeira difícil na década de sessenta, Gracinha –
como era conhecida a cantora nestes tempos – teve uma experiência profissional além do
canto que foi, curiosamente, como vendedora numa loja de discos. Sua mãe manifestava
interesse em que a filha seguisse carreira de cantora lírica, mas a Salvador em que Gal
viveu sua juventude favoreceu mais o acesso à musica popular. A professora de dança Laís
Salgado (Laisinha), também amiga de Dedé e Sandra Gadelha, promove um encontro que
viria a alcançar fundamental importância. É quando Gal, nos idos de 1963, é apresentada a
Caetano Veloso, compositor que, na época, já se dizia cansado de conversar com artistas
que não lhe suscitavam muita euforia. Nas palavras de Caetano:
80

O alvo da Laís era que eu conhecesse a Gal, Dedé era apenas a intermediária. Mas eu
nem me interessei muito pelo encontro porque adorei a Dedé e fiquei pensando assim:
"Puxa, essa menina devia ser minha namorada". Pensei mesmo.(...) E o tal encontro com
Gal, aliás, Maria da Graça, a Gracinha? - Ela veio com Dedé, toda tímida, roendo as unhas,
encanada, esquisita. Aí Dedé mandou que ela pegasse o violão e cantasse. E ela tocou e
cantou ‘Vagamente’. "Só me lembro muito vagamente...", de Menescal e Boscoli. Ainda não
existia o disco da Wanda. E foi engraçado porque a gente botou o apelido dela Gracinha
Vagamente. Depois, saiu o LP da Wanda que se chama Wanda Vagamente. Mas a Gal
cantou, e quando acabou, foi um choque. Aquela voz já era essa voz, cantando lindo. Eu
disse: "Você é a maior cantora do Brasil". Ela: "O quê?" E eu: "Você é a maior cantora do
Brasil, a maior de todas já, não tem dúvida, você é o máximo". O mito Gal Costa nasceria
mais tarde. - Gal é o nome dela. Tem gente que diz que foi inventado por Guilherme Araújo.
Não foi não, é mentira. Toda mulher baiana que se chama Maria da Graça ou das Graças,
no plural ou no singular tem automaticamente o apelido de Gal. Gal é o nome dela, sempre
foi o nome dela. A idéia de botar Gal Costa, de botar um dos sobrenomes como nome
artístico, é que foi do Guilherme. Ele achava que Maria da Graça era nome de fadista, não
condizia com uma coisa moderna. Nós achávamos Gal lindo, achávamos que poderia ser
só Gal. Mas Guilherme odiava e odeia até hoje nome sem sobrenome, acha cafona, que
não é chique. Foi ele que botou Moraes Moreira, Jards Macalé e Gal Costa.
In: Songbook Caetano Veloso. Rio de Janeiro, Ed. Lumiar, 1988.
Disponibilizado em www.caetanoveloso.com.br. Acesso em 12/02/2004.

Com Gal, Caetano pôde interagir desde o momento em que a ouviu até a certeza da
referência comum de ambos no atual momento da música brasileira. Ao ser interpelada
sobre quem seria o maior cantor do Brasil, a cantora iniciante afirmou ser João Gilberto,
estabelecendo-se imediata empatia entre os dois. Nota-se que esta figura tornou-se uma
espécie de estampa para Gil, Caetano e Gal, que o reverenciam desde os momentos
iniciais.

Em 1964, como show Nós, por exemplo, Maria da Graça desponta na interpretação, ao
lado de Maria Bethânia, da peça Sol Negro (Caetano Veloso) [AL 038], cantada entre o
timbre forte da última e a voz doce de Gal. Neste espetáculo, um episódio é narrado48 pela
artista como importante para sua aparição. Ao perceber um acorde tocado por Gilberto Gil
para iniciar a peça Se é tarde me perdoa (Carlos Lyra/Ronaldo Bôscoli) como definindo a
tonalidade em que cantaria, Gal acaba levando a música a uma altura muito maior,
surpreendendo platéia e colegas com a extensão de sua voz, até então não trabalhada nas
suas incursões iniciais na Bossa Nova. Era uma estréia em palcos que apontava estilos
perseguidos por esta cantora futuramente. Em termos de projetos, a elaboração da cantora
que dispõe de recursos amplos para se dedicar a um repertório eclético já aparece desde
essa época.

48
Em entrevista ao Programa Ensaio da TV Cultura, em 1994.
81

Em 1965, ainda como Maria da Graça, participa do primeiro LP de Bethânia,


dividindo a interpretação de Sol Negro, numa retomada do dueto do ano anterior. Nesse
período, é apresentada por Chico Buarque a executivos da Rede Record e começa a
aparecer em programas de sucesso. Em 1967, é sugerida a gravação de seu primeiro LP –
Domingo – em parceria com Caetano Veloso, observando-se aí vigorosa presença do estilo
de João Gilberto. Entre 1965 e 1967, Gal pensou em desistir algumas vezes, em virtude das
dificuldades financeiras, tendo em Caetano e Dedé apoios importantes. Assim:

São Paulo, no início, foi barra. Acontecia tudo com os outros. Comigo, nada. Desanimei,
não vi mais sentido de ficar naquela cidade enorme, perdida, nada acontecendo. Decidi
voltar para a Bahia. Chamei Dedé e disse: “Vou-me embora”. Dedé foi para casa, naquele
tempo na São Luís, contou para Caetano que eu iria embora. Ele, mais do que depressa,
disse: “Diga a ela para não voltar. Ela tem que ficar”. Fiquei.
In: O Globo, 24 de outubro de 2004, Caderno 2.

O disco Tropicália, de 1968, serviu, entre outras coisas, para marcar em definitivo a
presença de Gal como intérprete do Tropicalismo e como projeto de artista pop. A
mudança de nome foi sugerida por Guilherme Araújo. A faixa Baby (Caetano Veloso),
composta a pedido de Maria Bethânia, foi gravada por Gal com grande sucesso. É também
nesse ano que Divino, Maravilhoso (Gilberto Gil/Caetano Veloso) [AL 039] concorre ao
Festival de Música da Record, em 1968, em que Gal aparece então como intérprete mais
agressiva, com uma indumentária nada comum, nem para o período, nem para a própria
imagem até então construída, seja por si própria, seja pelo público e pela imprensa. Com
peruca black power e colares adornando uma veste vermelho-sangue, os agudos de é
preciso estar atento e forte/não temos tempo de perder a morte... mostravam uma nova
fase do trabalho da Gracinha baiana, que se tornou Maria da Graça e chegou enfim a ser
Gal Costa49.

As metamorfoses por que passou a artista se encontram nos campos de possibilidades


contextuais da época, o que leva à compreensão de como a trajetória de Gal pode remeter
às posições ocupadas no campo da música popular.

Quando Gil e Caetano são exilados, Gal Costa passa a ser identificada como a voz a
representá-los na fase pós-Tropicália. Os dois discos gravados em 1969 trazem uma
sonoridade rocker experimental que traduzem esta assunção da estética tropicalista,
colocando-a como uma das primeiras cantoras de rock no Brasil, além das artistas

49
Ver Anexo Depoimentos 02.
82

envolvidas com a Jovem Guarda. Canções como Não identificado (Caetano Veloso) e
Namorinho de portão (Tom Zé) são exemplos de uma poética e de temáticas que
evocavam regionalismos e comportamentos sociais representativos das sociabilidades
baianas de então. A última foi regravada no início dos anos 2000 por uma banda de rock de
Salvador, Penélope, fazendo ainda relativo sucesso.

No disco Gal (1969), aprofunda-se uma estética experimentalista, com peças de Gil,
Caetano e Jorge Ben, já contando com a presença do também experimental Jards Macalé,
que vai acompanhar Gal em diversos shows a partir de então. Em 1970 sai o LP Legal,
com a gravação intimista do samba de Geraldo Pereira – Falsa Baiana [AL 040], que
conclui um repertório que ainda traz Roberto e Erasmo Carlos – Eu sou terrível – e a
guitarra do virtuose Lanny Gordin, muito importante para a música produzida por Gal
neste início dos anos setenta. É interessante considerar que Falsa Baiana tem amplos
significados para a carreira de Gal e para o imaginário acerca da Bahia evocado como
tradicional. A “falsa baiana” que “não samba e não bole” é reconfigurada numa batida
bossa-novista que remete a uma ressignificação do samba operada por João Gilberto e em
continuidade na obra do grupo baiano, tendo a gravação desta peça no álbum Legal um
momento de privilegiada possibilidade de apreciação.

Em 1971, o show e disco Fa-Tal – Gal a todo vapor colocam a artista na posição de
uma das cantoras mais modernas do país, em considerações da imprensa e de outros nomes
da música no Brasil até os dias de hoje. Neste trabalho, entre uma ambiência hippie e
elétrica do rock, surge uma cantora baiana identificada tanto com as praias do Recôncavo,
como Arembepe, quanto com a modernidade do rock que se efetivou no campo musical
brasileiro através da Jovem Guarda e da Tropicália.

A gravação de Vapor Barato (Jards Macalé/Wally Salomão) foi bastante executada


depois de 1996 por estar na trilha do filme Terra Estrangeira, de Walter Salles Júnior, e
pôde relembrar uma época associada ao que se chama comumente de desbunde, que tem na
figura de Gal um ícone coletivamente reconhecido. Em 1972, estréia o show Índia, que se
desdobra em um disco lançado em 1973, cuja sonoridade já traz uma Gal que, além de
experimentalista, mostra-se preocupada também com a limpidez de sua técnica vocal,
como à época do primeiro disco.
83

Dirigida por Wally Salomão, quando desse trabalho, temos uma artista cuja imagem
podia ser associada à sensualidade propalada da mulher baiana, em bustiês e saias
coloridas, num trabalho com o corpo em que uma frugalidade quase displicente revela a
forma como certos artistas da música lidavam com a ditadura militar, traduzindo no
desnudamento do corpo um desvelamento das idéias explícitas contra a supressão de
liberdade.

As imagens do show Índia, bem como a capa do LP (que era comprado num envelope
preto, como as revistas pornográficas) trazem estampadas uma Gal assumindo uma
feminilidade libertária (para os padrões da época, diga-se) e apontando caminhos para
outros artistas. A cantora Marina Lima, por exemplo, afirmou que desejou ser cantora e
voltar ao Brasil quando percebeu a performance de Gal Costa, que trazia um canto
moderno, diferente do que já se tinha feito na música brasileira até então50. Não é à toa que
a primeira artista a gravar uma composição de Marina – Meu doce amor (Marina/Duda
Machado) – é Gal Costa, no LP Caras e Bocas, de 1977.

O LP Cantar, de 1974, é produzido por Caetano Veloso e propõe um retorno da artista


a uma emissão menos agressiva, buscando sutilezas não trabalhadas na fase rocker de Gal.
Com um repertório bem cuidado e cuja sonoridade misturava doses pequenas de
experimentalismo (como na faixa Jóia, de Caetano) com melodias sofisticadas, como em
Canção que morre no ar (Carlos Lyra/Ronaldo Bôscoli), Gal montou um disco não bem
recebido pelo público, que já estava acostumado a uma cantora mais identificada com outra
estética. Como salienta:

Meu primeiro disco, “Domingo”, foi isso: uma comunhão total, nós dois éramos um só, eu
me sentia a voz de Caetano. Creio que ele também sentia isso. Mergulhei com ele no
Tropicalismo, fiz “Fatal”, “Índia”, com forte acentuação desse movimento. Foi quando
resolvemos mudar um pouco a história. Caetano queria que mostrasse a minha essência
de cantora. E veio o “Cantar”. Nem o show nem o disco emplacaram. Foi uma mudança
radical. Neles eu recolhia as minhas feras, as minhas garras, e partia para mostrar um lado
mais legitimamente meu.Com o fracasso do “Cantar” fiquei retraída, entrei em crise, três
anos sem fazer nada.
In: O Globo, 24 de outubro de 2004, Caderno 2.

Ainda em 1974, uma série de shows foi realizada em Salvador, reunindo Caetano, Gil
e Gal, cujo registro está no disco Temporada de Verão (1974). Gal vai pouco a pouco
personificando o ideário de musa dos repertórios de Caetano e Gil e de cantora das mais

50
O depoimento completo pode ser lido em www.verdadeirabaiana.com.br. O acesso se deu no dia
04/02/2004.
84

competentes no Brasil de então. Em 1975, a canção Modinha para Gabriela (Dorival


Caymmi) [AL 041] é tema de abertura da novela Gabriela da Rede Globo, o que coloca a
figura de Gal próxima de um ideal de mulher baiana faceira e tropical, doce e sensual
como a personagem de Jorge Amado.

Em 1976, Roberto Menescal tem a idéia de um espetáculo em que Gal interpretasse o


repertório de Dorival Caymmi, o que deságua do disco Gal Canta Caymmi (1976), fazendo
shows em São Paulo, Rio e Salvador com a presença do próprio Caymmi. Este trabalho
marcou a obra de Gal de tal maneira que pode ser considerado um dos momentos mais
importantes de sua carreira51.

Um aspecto não deve ser elidido nesta observação sobre a singularidade de Gal Costa.
Tratar-se-ia de uma cantora que não costuma decidir sobre os rumos de seu trabalho, em
comparação com seus companheiros baianos. Com efeito, não se vai encontrar, pelo menos
em grande parte de sua trajetória, nem a expressão abundante de Caetano e Gil, nem a
manifestação de temperamento incisivo de Bethânia. Isto levou a crítica e a imprensa em
geral a considerá-la uma artista menos criativa52. Em 1976, com o show Doces Bárbaros,
Gal se reúne mais uma vez aos companheiros de início de trabalho para este espetáculo e
novamente este ponto entra em cena. Vejamos:

Aos 30 anos, psicanalisada, mais falante que nunca, vestindo-se com relativa simplicidade,
Gal afirma que essa imagem de “teleguiada” se formou por que “eu ainda não falava. Mas
sempre decidi sobre o andamento do meu trabalho”.
Os Baianos de novo. Revista Veja, 30 de junho de 1976, p. 80.

De todo modo, essa imagem reiterada nas representações sobre a cantora deve ser
observada à luz das diferenças individuais entre esses agentes. Gal não demonstra suas
decisões de maneira tão evidente, o que não significa necessariamente que uma
“passividade” nos momentos de definição de rumos equivalha à nulidade pessoal. Este
traço menos reflexivo e de elaborações intelectuais mais modestas compõe também os
contornos da construção/configuração social, qual seja a singularidade, deste indivíduo.
Assim, ela não configura menos singularidade que os outros agentes deste campo.

51
Daniela Mercury, que no primeiro de janeiro de 2003 homenageou Gal Costa e Elis Regina num show no
Farol da Barra, afirmou que o disco Gal canta Caymmi foi um dos trabalhos que mais a influenciou na sua
decisão de ser cantora. Conforme depoimento ao autor em abril de 2004.
52
Sua recente posição no mercado fonográfico, em que não comparece mais com a mesma força midiática e
pop, parece reforçar esse imaginário sobre seu perfil artístico.
85

No show Os Doces Bárbaros, Gal aparece assumindo uma feminilidade estilizada,


característica de sua trajetória nos anos setenta, como se perceberá melhor nos capítulos
seguintes.

3.4 MARIA BETHÂNIA

Maria Bethânia nasce a 18 de junho de 1946, numa família de Santo Amaro da


Purificação, sob a égide de um nome extraído de um grande sucesso de Capiba53. Caetano
sugere ao pai o nome da irmã, que veio a substituir opções sugeridas pelos outros irmãos.
Bethânia vive um ambiente em que a música e as artes em geral são estimuladas desde o
pai, admirador das letras de Noel Rosa, pelos irmãos e primas, interessadas em repassar
para os integrantes mais novos da família uma educação numa cidade que, não deixando de
ser provinciana, nem por isso dispensava a atenção a alguns itens da época em termos de
bons modos e refinamento (Veloso, 1997).

A artista Maria Bethânia começa a se constituir desde a adolescência. O palco é uma


aspiração desde cedo54 e, segundo a própria artista em diversas entrevistas, ser atriz era um
desejo inicial. A primeira fase da vida em Santo Amaro já denotava incursões e pequenos
ensaios com o piano e, pouco depois, o violão de Caetano, seu companheiro desde então.
Assim:

(...) eu pensava, quando menina, eu sabia que minha vida ia ser no palco. Eu não sabia se
ia ser como bailarina, como cantora, como atriz, como seria, e depois de um tempo, pela
minha natureza grega-dramática, assim de onde vem, densa e trágica, eu achava que ia
ser uma grande atriz, que ia fazer teatro, personagens (...)
In: www.mariabethania.hpg.ig.com.br. Acesso em 14/10/2004.

53
No álbum Maria Bethânia e Caetano Veloso, a canção Maria Bethânia celebra esta referência. Em 1990,
num trabalho publicitário em homenagem às mulheres, a própria Bethânia canta esta peça, numa remissão ao
caráter senhorial da personagem de Capiba, então já podendo ser fundida à própria imagem constituída da
cantora.
54
Mesmo que a crítica bourdiana esteja centrada justamente nessas tentativas dos biógrafos no sentido de
encontrar sentidos para as trajetórias em retrospectiva, o que se percebe no caso de Bethânia é um projeto de
artista de palco, manifesto e assumido na adolescência, que se ajusta, em metamorfose (Velho, 1987), na
transformação numa intérprete de música popular.
86

A chegada a Salvador, em 1960, não parecia deixá-la feliz. Bethânia não demonstrava
interesse algum em se ambientar na capital (Veloso, 1997). Apenas o Dique do Tororó e as
primeiras experiências com a vida cultural proporcionada nos grupos ligados à
Universidade Federal da Bahia conseguiram fazer com que Bethânia se sentisse integrada
ao universo soteropolitano (Veloso, 1997). Em 1963, chamada por Álvaro Guimarães,
Bethânia inicia um espetáculo cantando Na cadência do samba (Ataulfo Alves / Paulo
Gesta), o que lhe vale certa notoriedade.

Em 1964, quando da sua passagem por Salvador, a cantora Nara Leão ouve uma
gravação do show Nós, por exemplo e, em fevereiro de 1965, em virtude de um problema
vocal, sugere que a iniciante cantora baiana a substitua no espetáculo Opinião, que, então,
já era bem sucedido. Bethânia viaja ao Rio de Janeiro na companhia do irmão Caetano e
inicia sua trajetória artística.

O êxito alcançado pela interpretação de Carcará (João do Valle/José Cândido) tornou-


a em pouco tempo uma intérprete comentada. Desde este período, sua personalidade
considerada forte e decidida transparece, até mesmo no primeiro contato com o diretor
Augusto Boal, que ouve dela uma reclamação pela espera na coxia do teatro para a audição
inicial de Opinião (Calado, 1997). Tentando escapar do rótulo de cantora de protesto,
Bethânia passa certo tempo na Bahia, depois retornando ao Rio de Janeiro para os shows
com os outros integrantes do grupo baiano, desenhando um caminho ao mesmo tempo
intrinsecamente ligado aos colegas e com características independentes de uma estética
necessariamente antenada com as inovações musicais de meados dos anos sessenta.
Interessa-se logo em cantar sucessos antigos, na esteira do repertório de Noel Rosa, de
Dalva de Oliveira e do sambista baiano Batatinha, entre outros.

Maria Bethânia vai se configurando como uma intérprete teatral que se utiliza do
canto para apresentar versões dramatizadas do cancioneiro nacional. Seu estilo forte e
mesmo contraditório tanto em relação à onda da Bossa Nova como da Jovem Guarda
possibilitaram uma visibilidade que chegou ao meio empresarial, como se pode observar
no depoimento de Guilherme Araújo, segundo o qual Bethânia, na época, era a única
artista com uma proposta inovadora na música brasileira: o jeito arrebatado e forte de
cantar, o que o fez pensar: achei que aquilo iria dar certo55.

55
In: História do Rock Brasileiro. Anos 50 e 60. São Paulo. Ed. Abril. 2004, p. 60.
87

Deste modo, passa a figurar no campo da música popular como uma novidade até
certo ponto estranha, pois não coadunava com um imaginário de cantora em que a
feminilidade padronizada era marca comum e cuja relação com a música era, ao que
parece, muito mais pela via do teatro. Vejamos:

Bethânia estreou no Opinião com um visual bem andrógino para os padrões femininos da
época, ainda que no meio alternativo da cultura de protesto. Ela trajava em cena uma calça
de corte masculino, camisa de mangas compridas em estilo social presa por dentro da
calça, o cabelo amarrado à moda coque (Passos, 2004, p.25).

As boites passaram a ser o palco principal de Bethânia, sobretudo entre 1967 e 197056
Vários discos foram gravados. Do primeiro Maria Bethânia (1965), passando por Edu e
Bethânia (1967), este com Edu Lobo e o Recital na Boite Barroco (1968), temos um
caminho em que Bethânia consegue ser reconhecida como um fenômeno popular de
repertórios escolhidos para o estabelecimento de uma empatia como que orgânica com a
platéia, sua marca principal segundo tanto observadores e parceiros próximos como
Caetano e Chico, quanto a crítica especializada.

Em 1969, o disco Maria Bethânia traz arranjos que aproximam Bethânia de uma
estética entre o samba canção tradicional brasileiro e os pontos de candomblé/umbanda que
vão caracterizar boa parte desta fase da cantora. Com a faixa Ponto do Guerreiro Branco
(D. P.) [AL 042], a intérprete se inclui entre aquelas a colocarem no cenário da música
popular cantigas afro-brasileiras ora associadas com tradições do Rio de Janeiro, ora a
evocar raízes baianas estetizadas, como é o caso também de Clara Nunes. Na contracapa
deste álbum, escreve Hermínio Bello de Carvalho:

Neste disco, ela despediu-se das rendas para enfeitar-se de colares, e apegar-se aos
bentos e guias de suas vertigens místicas mais recentes. Mas em seu entendimento da
vida e do amor (e as malhas e tranças dessas tramas) continua lúcida. E se alteia e verga e
se deixa açoitar pelas palavras que profere em seu canto cheio de existencialidade.
Guerreira, ela medita o que foi caminhado e o que está pela frente. Reconhece que se
abriram fendas: os terços revelaram-se inúteis, e é preciso acender velas. Em meio de
saravás, ela risca o chão com pés descalços, arma seus búzios na necessidade de decifrar
a sorte que lhe caberá.
In: LP Maria Bethânia. EMI, 1969.

Enfim, trata-se já de uma cantora de vigorosa expressão, associada a misticismo,


romantismo e uma espécie de “tragédia grega” aos moldes afro-baianos, como capitais
simbólicos a serem utilizados na veiculação e mercantilização deste produto do campo
artístico, qual seja, Maria Bethânia.

56
Ver Anexo Depoimento 03.
88

Em 1970, no álbum Maria Bethânia Ao Vivo, gravado no dia 4 de dezembro de


196957, é a peça Ponto de Iansã (D. P. – adaptação de Maria Bethânia) [AL 043] que abre
um repertório em que sambas-de-roda do Recôncavo são interpretados ao lado de peças
como Nada Além (Custódio Mesquita/Mário Lago) e Meiga Presença (Paulo
Valdez/Octávio de Moraes), da mais tradicional escola musical brasileira de sambas-
canções e boleros da primeira metade do século XX. Bethânia reporta este período como
interessante porque a platéia não dava muita importância à cantora, pois em boites, a
diversão do público poderia deixá-la mais livre, como já abordado.

No final da década de sessenta, incentiva Caetano Veloso a ouvir Roberto Carlos e a


Jovem Guarda. Prossegue lançando seu primeiro álbum pela Polygram – A tua presença
(1971) – em que interpreta sua única gravação em inglês – What’s new (Haggart/Burke),
homenagem à sua referência no universo do jazz, Billie Holiday. Este disco conta ainda
com arranjos de Rogério Duprat, que, depois de sua participação ativa na Tropicália,
passou a trabalhar com outros artistas, como Bethânia e Chico Buarque58. Ainda nesse ano,
sai o disco Vinícius, Bethânia e Toquinho, gravado ao vivo na Argentina, que além de ser
mais um encontro entre a intérprete e Vinícius59 – em 1965 realizaram um show com ao
lado de Gilberto Gil – representava também uma abertura de um mercado internacional
para Bethânia.

Em 1971, acontece o espetáculo e disco que são reconhecidos como importantes por
críticos e pela própria até os dias atuais. O show (e depois disco) Rosa dos Ventos estréia
sob a direção de Fauzi Arap, que desde 1968, no espetáculo Comigo me desavim,
acompanha Bethânia como um de seus diretores mais requisitados. No DVD Maricotinha
Ao Vivo (2002), Bethânia reporta-se à importância deste ator/diretor para sua carreira e das
circunstâncias em que o conheceu60. O Rosa dos Ventos trazia poemas e uma variedade de
gêneros musicais postos em cena, que vão caracterizar diversas outras apresentações em
sua vida artística.

57
Carlos Imperial salienta, na contra-capa do álbum, que esta data tem um significado importante por ser o
dia consagrado à Santa Bárbara/Iansã na tradição afro-brasileira.
58
O arranjo de Construção (Chico Buarque) foi composto por Rogério Duprat para o disco homônimo, de
1971.
59
Segundo Rodrigo Velloso, irmão de Bethânia, foi Vinícius de Moraes quem a aproximou mais
efetivamente do universo das religiões afro-brasileiras, no Rio de Janeiro, nos idos de 1965 (entrevista
concedida ao autor em dezembro de 2004).
60
Fauzi Arap é autor de um dos textos considerados mais emblemáticos ainda hoje da carreira de Bethânia,
que se encontra no LP Pássaro da Manhã (1977).
89

Em 1972, há uma incursão pelo cinema com Chico Buarque e Nara Leão, atuando e
gravando a trilha sonora. Quando o carnaval chegar é de Cacá Diegues, incluindo Baioque
(Chico Buarque), que revela um Chico Buarque mais atento às transformações da música
brasileira e flertando com uma alegoria de rock’n’roll, satiricamente cantado por Bethânia.
No mesmo ano, o disco Drama – Anjo Exterminado, produzido por Caetano Veloso, é
considerado por muitos críticos o início de uma fase mais técnica da artista, com peças de
Batatinha, Caetano Veloso e Jards Macalé.

O show Drama – A Luz da Noite rende outro álbum ao vivo (uma constante na
carreira de Bethânia) que já contém uma gravação de Oração à Mãe Menininha (Dorival
Caymmi) [AL 044], também interpretada no evento Phono 73 ao lado de Gal Costa. Este
momento terminou com um beijo entre as intérpretes, ainda hoje lembrado pela ousadia em
tempos de ditadura. Bethânia passa a trabalhar regularmente com diretores de teatro e a
lapidar um estilo de canto que vai situá-la, no campo da música, entre as grandes
intérpretes da chamada MPB, a partir dos anos setenta. Criticada por sua afinação por
vezes imprecisa, a cantora se afirma pela via da teatralidade e como uma mulher com força
e atitudes associadas ao perfil de Iansã, a quem Bethânia faz referências como sendo a
“dona da cabeça”.

Uma reflexão sobre o sucesso é o tema do disco A cena muda (1974). Desde a capa
até a concepção do roteiro, o brilho do cinema e da música são exaltados neste trabalho.
Faixas como Luzia Luluza (Gilberto Gil) e Luzes da Ribalta, versão de João de Barro e
Antonio Almeida para Limelight (Charles Chaplin/G. Parsons), traduzem a homenagem às
cantoras do rádio assumida por Bethânia no encarte do álbum.

O encontro entre Chico Buarque e Maria Bethânia em palco acontece em 1975, num
show produzido por Caetano Veloso, Rui Guerra e Osvaldo Loureiro. O álbum Chico
Buarque e Maria Bethânia (1975) reúne o compositor da MPB considerado àquela altura
uma espécie de “descendente da poética de Noel Rosa” e a intérprete não convencional em
que se convertera Bethânia. O próprio Chico afirmou que passou a crer no chamado “mito
do palco” ao trabalhar com Bethânia, que, segundo ele, não parecia a mesma pessoa a
conversar antes do início dos espetáculos que realizaram61. Já para Bethânia, a importância
de Chico Buarque é reconhecida, entre outros depoimentos, quando diz que certamente a
impressão, a coisa mais forte que tem da minha chegada à São Paulo é que foi aqui nessa

61
Como se pode constatar no DVD Chico Buarque e as Cidades, de 2000.
90

cidade que eu conheci Chico Buarque de Holanda com seus olhos de mar e suas lindas
canções62.

Canções de Chico Buarque como Olé, Olá e Sem fantasia, bem como sucessos do
cancioneiro tradicional do repertório de Bethânia63, como Camisola do dia (Herivelto
Martins/David Nasser), estão ao lado de destaques como Sinal Fechado (Paulinho da
Viola), que foi também título do disco de intérprete64 que Chico Buarque lançou em 1974
para fugir da perseguição da censura federal. Vejamos:

Quando nos reunimos na casa de Chico para bolar um espetáculo para o Canecão -
Osvaldo Loureiro, Rui Guerra, Chico e eu - várias perguntas surgiram e todas procuravam
um sentido ou uma justificativa para que Bethânia e Chico se apresentassem juntos no
Canecão. Quando eu disse que havia milhões de razões para explicar isso e que eu, de
minha parte, só podia dizer duas (1º; o fato de ser uma boa grana para os dois e 2º; o fato
de Bethânia ser de Gêmeos e de Chico ser de Gêmeos e do show estar para estrear em
Gêmeos), isso não causou nenhum mal-estar na sala (...) Quando o show estreou,
Bethânia estava achando ruim a declaração de Rui Guerra no jornal, porque ali ele
aparentemente tentava se desresponsabilizar do que quer que viesse ser o show e deixava
a "culpa" escorregar para a escolha do repertório dela. O Canecão estava cheio de "Rio de
Janeiro", acho que nunca houve tanto "Rio de Janeiro" no Canecão antes. Muita atenção
para as aspas. O Acaso foi impiedoso: o "desamparo" em que Chico e Berré foram
lançados chegou até à falta de som e o "Rio de Janeiro" presente se viu diante de um pobre
rico palco giratório, uns ladrõezinhos estilizados, um arremedo de escola de samba e a
evidência de Bethânia cantando "Gitã" (sob uma evocação que não parece ter partido da
mesma platéia que reclamava quando o show terminou) quando o show terminou Rui
Guerra me deu um beijo e ele estava alegre e éramos dois leões numa alegria acima do
ego, sem autoria .
Caetano Veloso. Iansã Francisco: Quanta luz. Retirado do texto para o show/disco Chico
Buarque e Maria Bethânia, em 1975. Em: www.caetanoveloso.com.br, acesso em
19/11/2004.

O texto de Caetano aponta para dúvidas e questões que envolvem a discussão sobre os
projetos (Velho, 2003) de carreira tanto de Chico quanto de Bethânia. Como unir dois
artistas tão diferentes de maneira a não parecer simplesmente uma manobra de mercado?
Era isso que parecia explicitado nas críticas e no receio de Rui Guerra com relação ao
repertório de Bethânia, já então considerado relativamente ultrapassado.

No início de 1976, o álbum Pássaro Proibido marca o seu primeiro disco de ouro
(cem mil cópias vendidas) e o êxito da canção de Chico Buarque Olhos nos Olhos, que
consagrou Bethânia na programação das rádios AM, como uma cantora mais popular do
que no início da carreira. Faixas como As Ayabás (Gilberto Gil/Caetano Veloso) [AL 045] e

62
In: CD duplo Maricotinha Ao Vivo, Biscoito Fino, 2002.
63
O repertório de Bethânia passeia em diversos momentos pelas canções gravadas por Dalva de Oliveira, de
quem Bethânia parece ter se inspirado para o estilo dramático de entoar.
64
Diz-se quando o compositor interpreta peças de outros autores.
91

A Bahia te espera (Herivelto Martins/David Nasser) [AL 046] são destaques, além de uma
espécie de lançamento nacional de Gonzaguinha, com uma de suas primeiras composições.
Festa (Gonzaguinha) também compõe o repertório de Pássaro Proibido, além da faixa
título, parceria de Caetano e Bethânia e peça importante no show Doces Bárbaros, a se
realizar meses depois.

Assim, Bethânia protagoniza a primeira década de sua trajetória afirmando-se, a partir


da confluência entre habitus, discursividade e reticularidades, como uma mulher marcada
por um ideal de liberdade individual que transparece no proscênio de sua performance
artística. É interessante evidenciar que a sonoridade de Pássaro Proibido revela um
entrosamento musical importante de Bethânia com Perinho Albuquerque, músico que a
acompanharia até o início dos anos oitenta e pode ser considerado responsável por uma
modernidade revestida de um tom clássico que vai permear seus trabalhos a partir de então.
Em 1976, ocorre ainda o encontro sugerido por Bethânia no sentido de comemorar dez
anos de carreira dos quatro artistas do grupo baiano, o que se concretiza no acontecimento
Os Doces Bárbaros.

3.5 A CONVERGÊNCIA EM 1976

O campo artístico que é contexto para a realização do show/disco/filme Os Doces


Bárbaros envolve tanto a percepção de uma indústria cultural em fortalecimento,
principalmente se considerarmos que a indústria fonográfica neste período fazia da MPB
matéria principal dos negócios das gravadoras majors65 que operavam no Brasil. Deste
modo, uma breve reflexão sobre o mercado fonográfico66 pode situar melhor a posição dos

65
Como se chamam as grandes gravadoras no jargão empresarial na música. Uma observação importante
hoje, quando a pirataria fonográfica está em voga: pequenas gravadoras não associadas a grupos estrangeiros
estão se desenvolvendo no Brasil, como é o caso da Trama e da Biscoito Fino. A primeira noticiou ter
assinado contrato, no início do segundo semestre de 2004, com Gal Costa; a segunda vem realizando
trabalhos considerados “sofisticados”, tendo como sua artista mais famosa Maria Bethânia, que também
lançou um selo fonográfico no final de 2003, o Quitanda. A emergência dessas pequenas gravadoras revela
uma mudança significativa no perfil empresarial do setor. Os grandes conglomerados multinacionais estão
agora competindo com núcleos de produção nacionais, que buscam preencher espaços no campo musical
brasileiro.
66
A indústria fonográfica tem início no Brasil com o empreendimento do tchecoslovaco Frederico Figner,
que, em 1892, se instala no Rio de Janeiro com o fonógrafo, inaugurando um negócio que mais tarde seria
92

artistas na indústria da música no período. Em plenos anos setenta, evidenciava-se a força


comercial de grandes gravadoras no Brasil – com destaque pala a Polygram, marca da
Philips que reunia grande parte dos artistas da MPB –, cujo potencial para a
mercantilização do produto música dava sinais de considerável fôlego.

O vinil, no formato LP, favoreceu sobremaneira a singularização das personalidades


artísticas na música popular, com sua capacidade para conter um número maior de faixas, e
portanto contando com um aparato que permitia a ascensão da figura do artista como o
criador mais elaborado do que se podia perceber nos compactos67 (Dias, 2000). Os artistas
do grupo baiano lançavam tanto compactos como LPs, geralmente uma mídia colaborando
na divulgação da outra. Ainda hoje, há peças lançadas em coletânea, reunindo pequenos
universos de canções que somente foram registradas em compactos, o que dá a dimensão
da sua importância naquele contexto.

Por outro lado, a ditadura militar, ao fazer da censura uma prática onipresente na
relação com o âmbito da mídia, ocasionou que a indústria do disco crescesse, tanto com a
venda de produtos estrangeiros quanto com a valorização do cast nacional, sobretudo
aqueles normalmente perseguidos pela censura. Pode-se dizer que uma espécie de capital
simbólico (Bourdieu, 2004), associado ao caráter restritivo da censura, permitiu que uma
valoração positiva da “criatividade” dos compositores perseguidos fosse utilizada pelas
gravadoras como um atributo a mais na definição desses produtos.

Os artistas que não eram perseguidos, ou pelo menos não tanto, podiam se beneficiar
do status a que chegou a música brasileira chegou no período de exceção; estandarte das
liberdades suspensas no plano político-social. Da mesma forma, puderam ser agentes
importantes do crescimento do mercado fonográfico nacional. Vejamos:

Primeiramente, consolida-se a produção de música popular brasileira e,


conseqüentemente, o seu mercado. A indústria não prescindiu da fertilidade da produção
musical dos anos sessenta, sobretudo a da segunda metade da década, assim como a do
início dos anos setenta, e constituiu casts estáveis, com nomes hoje clássicos da MPB, tais
como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e tantos
outros.(...) À consolidação do mercado, correspondem transformações no conjunto do
processo. Por exemplo, a mentalidade empresarial é desenvolvida e aprimorada, tanto no
mundo do disco como no dos grandes espetáculos (Dias, 2000, p. 55-56).

definitivamente dominado por grandes empresas transnacionais. Na década de setenta, o disco de vinil era
um produto plenamente viável, seja no seu formato em compacto, seja como LP.
67
Este formato de mídia deixou de ser fabricado no Brasil em 1990, sendo que, durante essa década, tentou-
se restaurar a venda de discos menores, com o single, já digital, surgido na era do CD. Não parece que esta
estratégia tenha logrado o êxito esperado, como acontece, por exemplo, no mercado norte-americano.
93

Desde modo, reunir quatro artistas que se estabeleciam neste cenário musical
correspondia a reunir quatro produtos da indústria da música popular em ascensão, além de
promissores em termos de negócios. O show proporcionou ampla visibilidade da dimensão
de grupo destes artistas, desde os momentos iniciais em Salvador. Havia um desejo de
Bethânia68 e a aquiescência dos colegas possibilitou aquele encontro.

Pode-se afirmar que Os Doces Bárbaros representou uma possibilidade tanto de


comemoração de dez anos de carreira quanto de marcação de posições no campo artístico,
importantes aos efeitos de definições e classificações. Caetano se inscreve cada vez mais
como um artista/intelectual que emite freqüentemente declarações/teorizações pautadas por
um estilo contundente e barroco. Gilberto Gil aparece já como um músico antenado com as
transformações globais e espécie de contraparte do intelectualismo de Caetano, pela via de
uma singularidade menos referida a rupturas e mais antenada com o aspecto antropológico
da criação artística. Gal Costa se assenta na imagem de cantora técnica e ao mesmo tempo
diva da juventude entre os hippies, os roqueiros e os amantes de seu canto ora vigoroso,
ora suave, evidenciado nos seus trabalhos até então. Causa estranheza que tenha sido
Bethânia a convocar a reunião, por ser considerada a menos afeita aos movimentos em que
sua individualidade pareça menos evidente, embora tenha se notabilizado como uma das
grandes intérpretes da música no Brasil, com seu perfil entre atriz e cantora. Na
consideração da imprensa à época:

Por certo, havia o receio de que Bethânia, sempre dada a clímaxes musicais apaixonados,
acabasse por não se adaptar ao projetado quarteto vocal.
In: Os Baianos de novo. Revista Veja, 30 de junho de 1976. São Paulo. Ed. Abril p. 78.

Em termos da representatividade deste acontecimento que diz respeito à constituição


de identidades nacionais, um cenário midiático importante se configurava em torno. A
televisão brasileira, principalmente a Rede Globo de Televisão, fazia as vezes de
unificadora de um discurso nacionalista que encontrava nas expressões consideradas
regionais maneiras de se colocar como interface das manifestações brasileiras diversas.
Muito antes de utilizar o atual slogan o Brasil se encontra aqui, a Rede Globo já
direcionava seus programas e as telenovelas para esta finalidade. Ao comentar Bye, Bye
Brasil (Roberto Menescal/Chico Buarque), Fernando de Barros e Silva afirma:

68
É que a gente estava cada um com sua carreira, com sua história bem definida e eu tinha saudade um
pouco daquele jeito da Bahia, quando fazíamos juntos. Maria Bethânia. In: Outros (doces) Bárbaros. DVD.
Biscoito Fino. 2004.
94

“Eu vi um Brasil na TV”, diz e repete a canção. O sonho de uma civilização brasileira ficava
assim reduzido ao tamanho da telinha. A grande obra do regime militar foi a invenção da
Rede Globo como espelho do país – essa a moral da história. Ainda hoje, esse imaginário
permanece como centro de gravidade da cultura nacional (Barros e Silva, 2004, p.89).

Assim, a telenovela Gabriela, com direção de Walter Avancini e baseada no romance


de Jorge Amado, traz uma Bahia dos coronéis do cacau recheada de personagens caricatos
e interpretados como baianos típicos. Outra particularidade dessa obra é a trilha sonora,
emblemática de um momento em que os compositores e intérpretes eram convocados a
gravar peças especialmente criadas para a teledramaturgia. Tanto Bethânia quanto Gal
estão presentes na trilha. Bethânia, com a canção Coração Ateu (Sueli Costa), romântica e
dramática; Gal, com o tema de abertura, Modinha para Gabriela (Dorival Caymmi), que
ajudou a inaugurar nova fase, com o show/disco sobre a obra de Caymmi.

A trilha dessa novela configura uma Bahia ao mesmo tempo tradicional e em vias de
modernização, como nas ressignificações operadas por Caetano, Gil, Gal e Bethânia no
acontecimento de 1976. Estão no disco Guitarra Baiana (Moraes Moreira); Filho da Bahia
(Walter Queiroz), numa interpretação remetida ao ideal de mulher baiana sensual pela voz
de Fafá de Belém; e a faixa Alegre Menina, assinada por Dori Caymmi [AL 047], com letra
correspondente à epígrafe do quarto capítulo de Gabriela, Cravo e Canela, e tema do amor
de Gabriela e Nacib, cantada por Djavan, ainda no início de sua discografia.

Gabriela se faz presente na obra do grupo baiano tanto por Gal, quanto por Gil, que
em Jeca Total, do disco Refazenda (1975), remete-se:

Jeca Total deve ser Jeca Tatu


Presente, passado
Representante da gente no senado
Em plena sessão
Defendendo um projeto
Que eleva o teto
Salarial no sertão

Jeca Total deve ser Jeca Tatu


Doente curado
Representante da gente na sala
Defronte da televisão
Assistindo Gabriela
Viver tantas cores
Dores da emancipação

Jeca Total deve ser Jeca Tatu


Um ente querido
Representante da gente no Olimpo
95

Da imaginação
Imaginacionando o que seria a criação
De um ditado dito popular
Mito da mitologia brasileira
Jeca Total
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Um tempo perdido
Interessante a maneira do tempo
Ter perdição
Quer dizer, se perder no correr
Decorrer da história
Glória, decadência, memória
Era de Aquarius
Ou mera ilusão

Jeca Total deve ser Jeca Tatu


Jorge Salomão
Jeca Total Jeca Tatu Jeca Total Jeca Tatu
Jeca Total Jeca Tatu Jeca Total Jeca Tatu

Jeca Total
In: Refazenda. LP, Polygram, 1975.

Neste ambiente, exposto nessa peça de Gil, em que o Jeca Tatu se transfigura em Jeca
Total, além da mídia televisiva, havia também grupos de artistas que estruturalmente se
posicionavam em pólos diversos e até antagônicos aos rumos da música pop no Brasil. Se
há uma figura como Alceu Valença – que se caracteriza como nordestino e cuja música
parece flertar entre o rock e a música tradicional e emblematicamente regional, com bases
em Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro –, havia também oposições a uma música inserida
no contexto pop e industrial, como se percebe nos posicionamentos de Belchior e Fagner,
que figuravam na mídia como uma espécie de agentes que contradiziam a pretensa
hegemonia dos baianos no cenário musical brasileiro no final dos anos setenta69.

Aí se inserem também as críticas da imprensa ao caráter escorregadio da expressão


política na obra do grupo baiano. O Pasquim, como se verá no próximo capítulo, vai
encampar, através de seu estilo escrachado de humor, uma chacota com relação à presença
dos artistas baianos no Rio de Janeiro, fato que aponta na direção de uma re-trans-
configuração de padrões identitários baianos/brasileiros na obra e posturas públicas de
Caetano, Gil, Gal e Bethânia.

A partir da página seguinte, o acontecimento Os Doces Bárbaros será então


amplamente discutido.

69
Uma discussão sobre os caminhos dessa modernização da música brasileira pode ser contemplada na obra
já citada de Fernando de Barros e Silva: Folha explica Chico Buarque, São Paulo, Ed. Publifolha, 2004.
96

4 OS DOCES BÁRBAROS COMO ACONTECIMENTO SINGULAR


NA DINÂMICA DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES BAIANAS

Este capítulo trata da especificidade do acontecimento Os Doces Bárbaros, a partir da


discussão sobre as balizas que situam a Bahia no texto da brasilidade (Moura, 2001), entre
seus aspectos tradicionais e modernizantes propostos na prática artística de Caetano, Gil,
Gal e Bethânia, nesta confluência/comemoração de dez anos de presença na mídia.

Inicialmente, cabe discutir o que seriam tradição e modernidade em termos de


narrativas identitárias e representações em torno da noção de Bahia, o que leva
necessariamente a discutir o que seria a Bahia no Brasil, no campo da música. Não se trata
aqui de buscar “verdades” objetivas, mas de perceber como este texto de Bahia participa,
no âmbito específico da música popular, da organização de uma identidade cultural
brasileira (4.1).

Em seguida, discorro sobre o acontecimento Os Doces Bárbaros como central nesta


dinâmica de construções identitárias sobre a Bahia (4.2). Finalmente, as decorrências do
momento particular Os Doces Bárbaros são tratadas e os tipos de baianos envergados por
Caetano, Gil, Gal e Bethânia serão constituídos (4.3 e 5).

O objeto deste trabalho se constrói de modo a situar-se no campo da música popular,


tomando a Bahia em termos de tradição e modernidade tal como construída no trabalho
desses quatro artistas, bem como na produção de artistas coetâneos ou que lhes
antecederam. Lisboa Júnior (1990) contribui de forma relevante para a compreensão de
como, no século XX, a Bahia é reportada como um celeiro de ancestralidades,
malemolências, negritudes e religiosidades, num conjunto de narrativas identitárias
musicalmente configuradas. É justamente esse lugar ocupado pela Bahia ao longo do
século XX que vai sendo reconfigurado a partir da obra de alguns artistas baianos. Se
podemos afirmar que a imagem da Bahia vem sendo construída no âmbito da música por
diversos compositores – inclusive não baianos –, como Dorival Caymmi, Ary Barroso,
Vinícius de Moraes e tantos outros, com este grupo baiano que insurge no final dos anos
sessenta, a Bahia é classificada/alocada em outras posições.
97

4.1 O LUGAR DA BAHIA ENTRE AS REFERÊNCIAS MUSICAIS


NA CONSTRUÇÃO DA BRASILIDADE

Tomamos agora os discursos sobre a brasilidade e a situação da Bahia nesta rede de


representações que articula identidades formadoras do texto-nação Brasil. Neste sentido,
enfocamos alguns estudos sócio-antropológicos sobre a temática e a produção musical em
que se encontra um efervescente engendramento de narrativas de identidade, especialmente
acerca do que se chama de Bahia.

Esta reflexão se situa no âmbito da discussão sobre a territorialidade. Não sendo


propriamente objeto desta Dissertação o aprofundamento deste item, podemos brevemente
tomar territorialidade como a extensão da experiência social com sentido. Ou seja, a
extensão da sociabilidade – ou da produção do sentido, dito de outra forma – para além do
físico ou do geográfico na acepção convencional. A territorialidade estaria, desta forma,
associada diretamente a uma noção de pertencimento e/ou remissão identitária do
indivíduo a um determinado lugar. Este lugar pode corresponder a uma circunscrição
local, regional, nacional ou mesmo continental, ou mesmo a uma remissão alegórica,
onírica, fantástica cujo sentido resista minimamente ao tempo. O adjetivo baiano ou
mesmo o substantivo Bahia, assim, estariam sempre situando uma experiência em termos
de territorialidade, para além de uma simples alocação física. Estariam, enfim, revestindo
tal alocação de uma teia de significados que tanto organiza a relação dessa sociedade
consigo mesma quanto com outras, seja a sociedade englobante – o Brasil – , sejam outras
sociedades da mesma categoria de espacialização, como outros lugares no mesmo Brasil.
Por outro lado, o pesquisador deve se precaver diante da tentação fácil de fazer coincidir
uma construção de territorialidade com a definição oficial de uma determinada
territorialização, na esteira do que adverte Bourdieu (2001).

A nacionalidade brasileira, tal como podemos divisar a partir de alguns de seus ícones
mais evidentes, está marcada por sinais de um arranjo de narrativas peculiares. O “texto
majoritário” nacional comparece como organizado em torno de uma representação a que
poderíamos chamar brasilidade. Podemos tomar o século XX, sobretudo a partir de sua
terceira década, como o período em que se consolidou uma narrativa ao mesmo tempo
diversificada e unificadora da nacionalidade brasileira. Neste processo, constatamos a
relevância dos estudos sócio-antropológicos de matriz propriamente nacional.
98

Na constituição desta “narrativa majoritária”, a música, o futebol e a televisão


cumprem papéis muito importantes, pois, para uma nação configurada num cenário em que
o híbrido e o multi-cultural são quase que imperativos, a seleção brasileira, as novelas da
Rede Globo e os cantores/compositores brasileiros, entre outros ícones, são grandes
artífices da idéia de um Brasil múltiplo, evocado como gigantesco, com disparidades mas,
ainda assim, único porque unificado. Nas Ciências Sociais, os autores ao longo do século
passado têm se debruçado para compreender como este país se estrutura como nação e
integra suas diferenças no contexto do que chamamos contemporâneo.

Desde Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, a questão acerca do caráter de


nossa sociedade surge revestida de relevância especial. O ladrilhador ou o semeador? A
casa grande ou a senzala? Esse momento coincide com a proeminência da radiofonia
como a assumir a dianteira na divulgação de uma narrativa nacionalista. Antes mesmo de
haver um discurso de Ciências Sociais propriamente dito no Brasil, diversos autores –
médicos, engenheiros, advogados e jornalistas – pensaram a nacionalidade brasileira, suas
peculiaridades, sua posição no mundo. O que faz com que tenhamos a nossa cara? Que
cara é essa, afinal?

Na virada do século XX, revela-se importante a narrativa de Euclides da Cunha sobre


o sertanejo, em Os Sertões (1995), como um forte e ao mesmo tempo um desvalido, ser
humano entre admirável e deplorável, cuja descrição oscilava entre o acento no rude e no
heróico. Podemos ver aí, no perfil deste brasileiro resistente às agruras da vida no semi-
árido, a própria perplexidade de um intelectual positivista diante dos contrastes da
configuração nacional. Esta obra pode ser tomada como pioneira na explicitação de uma
visão sobre o baiano/nortista que vem a fazer emergir um imaginário oscilante e
contraditório sobre a narrativa Bahia. No século XX, a configuração de baianos ora
corresponde a uma associação com aspectos da negritude marcadamente tipificadas com
força, lascívia e alegria, ora se remete às mazelas do sertão nordestino (também baiano),
que se evidenciaram nas levas de migrantes que acorrem principalmente a São Paulo. Não
é sem razão que aí se chama de baiano o indivíduo vindo do nordeste brasileiro, de forma
generalizante e com as conotações valorativas e muitas vezes estigmatizantes
correspondente a este lugar do Brasil.

É importante perceber como se situam os nordestinos/baianos que migram para


cidades maiores como São Paulo e Rio de Janeiro, a partir de sua posição de liminaridade
99

num território que não é o seu de origem (Cardel, 2003). Estudando as migrações da região
de Olho d’Água, no noroeste baiano, para São Paulo, Cardel trata da constituição das
territorialidades em ambientes ressignificados. Assim como estes migrantes redefinem suas
atividades e padrões de identificação, também promovem a construção de identidades pelo
outro que lhe abriga, o que se verifica nas denominações dos nordestinos em São Paulo. Se
aqui se tem o baiano, seu similar ou correspondente, no Rio de Janeiro, é o paraíba. De
todo modo, o que interessa no campo de representações aberto por esse fenômeno
migratório é compreender como uma Bahia negra e sensual poderia conviver com um
imaginário de baianos pobres e sem rumo próprio que aportam no eixo sul do país. Os
territórios destes baianos ficam divididos, ora nas memórias (Velho, 1987; 2003) dos que
ficaram nesta Bahia que produz migrantes, ora na cidade grande, em seus “espaços”
redefinidos Vejamos:

Estes migrantes fundam no território de acolhida o que Alain Tarrius denomina como
“micro-espaços” ou micro-lugares”. É desta forma que a Vila Císper é apropriada na
atualidade, tanto pelos migrantes que ali fixaram residência há 20 anos, segundo os
informantes, como para os que estão na comunidade, e que guardam os endereços de
seus parentes migrantes como se fossem pequenos tesouros, escritos em letras
caprichadas em parcos pedaços de papel, confinados no recôndito do móvel principal e
zelados pelas matriarcas, donas das cartas e dos objetos enviados pelos que estão de fora
(Cardel, 2003, p.90).

Podemos afirmar, então, que estes territórios, como a Pequena África no Rio de
Janeiro – concentração de baianos como as famosas tias, que ajudaram a reunir os
sambistas a falar da Bahia e, sobretudo, da Bahia no Rio de Janeiro – se estabelecem como
regiões (Bourdieu, 2001) inseridas nos contextos maiores das cidades grandes e funcionam
como espaços de configuração de feixes representacionais e, portanto, de narrativas
identitárias. Não é à toa que Lopes (2003), ao se reportar às origens do samba carioca, trata
de referendar-se nos dados históricos relativos à decadência da cafeicultura no Vale do
Paraíba, que teria empurrado migrantes – muitos negros70 e baianos – para a capital do
Império, a partir da volta de 1860, que, por sua vez, trabalhando na zona portuária e no
comércio, fundam, entre a Pedra do Sal e a Cidade Nova, a comunidade baiana do Rio de
Janeiro, hoje conhecida como Pequena África (Lopes, 2003, p. 31).

Retornemos a Os Sertões. Vemos que esta crônica/epopéia atesta um traço do


contexto republicano nascente que se vincula a um imaginário formado pelas

70
O que certamente ajudou na construção deste imaginário que considera uma metonímia a relação entre
baiano e negro.
100

representações sobre o Norte71 , que incluem uma Bahia paralela àquela que vai se
emblematizar na obra de Gilberto Freyre pela via da família afro-baiana/mestiça e fruto da
integração entre senhores e escravos, bem como na música popular, que consagra a Bahia
como nascedouro de belezas poéticas e matriz do samba; enfim, um berço retro-unificador
de narrativas nacionais.

Nos anos trinta do século XX, ao mesmo tempo em que se consolidavam o romance
regionalista e a expansão do samba pelo rádio72, a partir do Rio de Janeiro, uma literatura
propriamente sócio-antropológica desencadeou a reflexão sistemática sobre a identidade
brasileira. Gilberto Freyre (1994) e sua teoria de um Brasil mestiço destronaram a primazia
da noção de raça, tão forte nas reflexões dos primeiros cronistas sociais. Logo em seguida,
Sérgio Buarque de Holanda (1995) colocou o problema da cultura brasileira em termos
mais políticos, criticando o tipo social que Ribeiro Couto já havia chamado de homem
cordial brasileiro. Na década seguinte, Caio Prado Júnior (1996) inaugurou uma discussão
marxista sobre a civilização brasileira, formatando o problema da identidade em termos de
destino político. Em nossos dias, são vários os cientistas sociais que se dedicam a ao
estudo desta questão.

Aos efeitos desta pesquisa, convém colocar agora a questão: onde precisamente seu
objeto vem se conectar neste feixe de discussões? Ora, na trama da brasilidade, alguns
espaços historicamente construídos como regiões vêm se constituindo como emblemas e
referências de alguns aspectos dessa mesma brasilidade pelo menos desde o final do século
XIX e mais vigorosamente a partir dos anos vinte do século passado. É nesse período que a
radiofonia assume a dianteira na divulgação de um discurso nacionalista. Assim, é da
maior importância considerar essa rede de representações que articula discursos
identitários sobre a sociedade baiana ao mesmo tempo em que se constitui como a própria
brasilidade.

71
O termo Nordeste só é usado com freqüência a partir de décadas posteriores, alcançando vigência própria
principalmente com a implantação da Sudene, como integrante das políticas governamentais correspondentes
ao período desenvolvimentista e, em seguido, à ditadura militar.
72
A primeira estação radiofônica brasileira, a Rádio Clube de Pernambuco, foi inaugurada em 17 de outubro
de 1922. A esse primeiro impulso, segue-se a criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 23 de abril
de 1923, com o intelectual carioca Edgard Roquette Pinto, associado a Henrique Morize. Durante a década de
vinte, e sobretudo a partir dos anos trinta, o rádio passou a ser, juntamente com o teatro, a vitrine maior das
manifestações musicais brasileiras, principalmente com a emergência da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro.
In: História do Samba. Capítulo 2 (Fascículo acompanhado de CD). São Paulo, Editora Globo, 1997.
101

A Bahia, desde meados do século XIX, comparece às narrativas organizadoras da


identidade nacional como um lugar de tradições, uma espécie de relicário de
ancestralidade e familiaridade. A elaboração sobre a historicidade do Recôncavo
favoreceu o desenvolvimento de toda uma série de discursos sobre a Bahia como o
nascedouro do Brasil. A Bahia, assim, configurou-se como uma espécie de sede do étnico,
identificada como o reservatório da negritude brasileira, ao mesmo tempo que sinalizando
quase sempre na direção do passado. Gilberto Freyre, em Bahia e Baianos (1990), afirma
certa “singularidade” dos negros baianos, destacando aí a altivez dos negros da Mina e
conferindo um suporte para uma presença afro-baiana emblematizada como étnica no
componente Bahia das malhas da identidade nacional.

A imigração massiva de baianos para o Rio de Janeiro a partir da segunda metade do


século XIX veio azeitar este processo. Em 1953, segundo o IBGE, num universo de
aproximadamente um milhão e quinhentos mil indivíduos moradores do Distrito Federal,
cerca de vinte e sete mil provinham da Bahia, em menor número apenas que os
pernambucanos, com cerca de vinte e nove mil indivíduos73. Considerando que estes
números referem-se aos moradores estáveis, podemos perceber a importância demográfica
dos baianos na cidade do Rio de Janeiro em meados do século XX, cujo processo de
migração certamente remonta ainda ao século XIX. A literatura e a música desde esse
período foram decisivas na elaboração das representações sobre a Bahia no cenário
nacional. Tanto as baianas dançando numa procissão narrada por Manuel Antônio de
Almeida em Memórias de um Sargento de Milícias (1997) como a figura de Rita Baiana
criada por Aluísio de Azevedo em O Cortiço (1997) já mostram esse padrão de
representações da Bahia – especificamente, das baianas.

Ao longo do século XX, uma legião de compositores e intérpretes, romancistas e


cronistas, jornalistas e cineastas além de outros profissionais do meio artístico/midiático
participaram da elaboração de um sistema consideravelmente rico de representações sobre
a sociedade baiana. Neste rol de escritores, a figura de Jorge Amado aparece de maneira
especial. Ao imortalizar tipos de baianos em obras como Tieta do Agreste, Gabriela Cravo
e Canela, Capitães da Areia, Mar Morto, entre outros, colaborou com uma idéia de Bahia
que se fixou como tradicional nas representações supra citadas em meados do século XX.

73
Conforme dados do Anuário Estatístico do Brasil 1953, Rio de Janeiro: IBGE, v.14, 1953. In: CD-ROM
Estatísticas do Século XX IBGE, 2004.
102

Entre os autores mais recentes que se dedicam a um estudo mais detido nas práticas
artísticas, situa-se a contribuição de Moura (1996; 2001), que analisa a tessitura de uma
representação a que se convencionou chamar de baianidade em torno da familiaridade,
religiosidade e sensualidade, propondo que o principal produto da cidade do Salvador, nos
últimos anos, termina sendo sua própria imagem. Esta tese ora entra em choque, ora se
completa com os diversos pronunciamentos, já comentados no capítulo 2, de Roberto
Albergaria (2002) na televisão e seus (lamentavelmente poucos) escritos publicados.

Um aspecto fundamental neste debate, e que já comparece no terreno da música


popular propriamente, é o que chamamos de territorialidade. O que significam as noções
de lugar e região no que toca à constituição de identidades no âmbito do binômio
Bahia/Brasil? Por que o Recôncavo tomou o posto de Bahia nas representações nacionais?
Poderíamos pensar, à luz do estudo de Cardel (2003), que estes baianos presentes no Rio
de Janeiro (onde se processa esse imaginário majoritariamente hegemônico de Bahia
negra) ajudaram a territorializar, em suas posições de liminaridade, uma “Bahia do
Recôncavo” na antiga capital da república. São questões que se evidenciam inclusive na
própria obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, como se pode perceber numa peça de
Gilberto Gil:

Eu vim, eu vim da Bahia cantar


Eu vim da Bahia contar
Tanta coisa bonita que tem
Na Bahia que é meu lugar
Tem meu chão, tem meu céu, tem meu mar
A Bahia que vive pra dizer
Como é que faz pra viver
Onde a gente não tem pra comer
Mas de fome não morre
Porque na Bahia tem mãe Iemanjá
Do outro lado o Senhor do Bonfim
Que ajuda o baiano a viver
Pra sambar, pra cantar, pra valer
Pra morrer de alegria
Na festa de rua, no samba-de-roda
Na noite de lua, no canto do mar
Eu vim da Bahia, mas eu volto pra lá
Eu vim da Bahia, mas algum dia eu volto pra lá

Gilberto Gil
Eu vim da Bahia
In: Gilberto Gil em Concerto. LP, 1987, WEA
103

Quando diz que veio da Bahia num momento em que sua carreira está apenas
começando74 Gil elenca elementos que situam geográfica e simbolicamente sua posição de
baiano. Trata-se de uma Bahia próxima do mar, centrada em Salvador, nos valores de
religiosidade, ancestralidade e historicidade já entoados e identificados com a Bahia muito
antes da existência do próprio Gil. Essa assunção do tradicional por parte de Gil, Caetano,
Gal e Bethânia nas representações da sociedade baiana vai ser fundamental para
compreender como estes agentes ressignificam, em vários momentos, a própria idéia de
Bahia no universo da brasilidade, ora reforçando essa tradição, ora apontando para o
moderno. Esta canção também foi registrada em disco por João Gilberto, em 1973, numa
troca simbólica singular, pois o compositor referencial para Gil, Caetano e Gal adota a
poética de Gil numa interpretação emoldurada na estética do violão da Bossa Nova75.

A partir do motivo presente na canção acima e diante do que estamos discutindo,


convém voltar ao tema das regiões para tratar das representações e da identidade.
Considerando-se que a construção das narrativas identitárias brasileiras passou por
diversos momentos e foi estudada por diversos autores, convém tentar perceber como estes
textos (Moura, 2001) de identidade cultural confluem no que chamamos de brasilidade
atualmente.

Neste momento, cabe uma reflexão mais cuidadosa sobre a constituição do Recôncavo
como a imagem mais corrente nas representações no campo da música sobre a Bahia.
Embora, do ponto de vista geopolítico, seja a Bahia muito mais ampla que o entorno da
Baía de Todos os Santos, é justamente esta região que vai ser considerada como a
representação máxima do que se chama Bahia nas malhas da identidade nacional. A
historiografia, que dá conta de uma origem dos acontecimentos históricos do Brasil no sul
da Bahia e posteriormente no entorno da cidade do Salvador, justifica uma apreensão desta
microrregião como sendo a Bahia por excelência.

Embora saibamos que o Estado da Bahia engloba muito mais que Salvador e o
Recôncavo, as outras sub-regiões baianas entram numa trama de construção identitária que
se remetem ao Nordeste ou mesmo Minas Gerais (enquanto texto identitário) muito mais

74
Embora a gravação contemplada seja de 1987, esta peça foi composta em meados da década de sessenta e
gravada inicialmente no primeiro compacto de Gal Costa (ainda conhecida como Maria da Graça, em 1965).
75
Vejamos este comentário de Bethânia com relação a Eu vim da Bahia: Sobre Iemanjá, Caymmi já disse
tudo, com toda beleza. Mas Gil, da minha geração, falou sobre todos nós nessa canção (A Tarde, Cad. 2, 1°
de fevereiro de 2003, p. 5).
104

que ao que conhecemos como Bahia. Cidades como Senhor do Bonfim, Vitória da
Conquista, Teixeira de Freitas ou Barreiras estão associadas ao termo Bahia muito mais
pela via política de manutenção territorial ou pela via burocrático-institucional da
organização de serviços. Entretanto, no plano das representações, a Bahia que se assenta e
acentua não é aquela que se compõe, por exemplo, das belezas naturais da Chapada
Diamantina76; esse local é considerado, hoje, atrativo e integra o interessante roteiro de
ecoturismo, mas não parece se emblematizar, pelo menos ainda, como Bahia, tal como esta
é tomada em termos de tradicional.

Em meados do século XX, quando as narrativas de brasilidade faziam emergir a


Bahia, não eram essas as localidades salientadas, por não corresponderem a um ideário de
Bahia gestado no Rio de Janeiro e correspondente a sociabilidades de Salvador e do
Recôncavo. Um caso interessante dessa identificação, que ocorre de maneira um tanto
quanto indireta, está no romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, editado em
1958. A personagem-título é uma retirante sergipana que vai morar em Ilhéus, cujo tipo de
feminilidade pode ser reportado à lascívia, dengo e malemolência muito próximos destes
atributos da morena sestrosa de Ary Barroso, por exemplo, ou à baiana que, entre sambas e
quitutes, vai mostrando o que é que a baiana tem77 [AL 048], como na obra de Caymmi.
Gabriela mostra-se uma mulher próxima do arquétipo geralmente associado ao orixá
Oxum; insinuante e sensual, cuja força estaria na capacidade de seduzir pela beleza e ardor
sexual. Na TV, a atriz Sônia Braga revelou-se adequada ao papel, conseguindo estabelecer
(sendo paranaense) um padrão de interpretação convincente da figura da baiana. Isto aos
olhos de um Brasil que se acostumou a perceber que a Bahia era negra, ancestral,
permeada de conchavos políticos, coronéis, religiosidade e moças do tipo de Gabriela.

No drama da de-finição e di-visão que institui as regiões (Bourdieu, 2001), a Bahia


figura como o lugar do mito de origem da formação cultural brasileira. Isto ocorre não
somente porque aí se elabora originariamente a narrativa sobre o Brasil, como também
porque, quando o centro dinâmico desta elaboração se transfere para o Rio de Janeiro e,
mais tarde, também para São Paulo, a Bahia conserva seu posto de referência fundante,

76
A discussão sobre a liminaridade (Cardel, 2003) dos migrantes nordestinos e de sua imagem em São Paulo
pode ser lembrada a partir do que estamos agora tratando, pois há uma duplicidade no imaginário sobre
baianos/nordestinos no eixo sul. São retirantes e, ao mesmo tempo, negros, alegres, sensuais e festeiros, o
que complexifica ainda mais a questão. Mesmo assim, as narrativas identitárias de Bahia que prevalecem nas
representações correntes, sobretudo na música, são aquelas correspondentes à Bahia de Salvador e do
Recôncavo.
77
Trechos de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e O que é que a baiana tem?, de Dorival Caymmi.
105

sempre compreendida como Salvador e seu Recôncavo. Como num encontro entre o meio
rural e o meio urbano em formação, bem como entre os grupos étnicos genericamente
chamados de brancos, índios e negros, o Recôncavo Baiano assume, como numa
sinédoque amplamente legitimada, o rosto da Bahia nos contornos da construção de uma
identidade cultural brasileira; é nesse rosto que os brasileiros de todas as regiões vão poder
encontrar uma referência como de berço.

No que se refere ao acervo musical, pode-se destacar que as escolas de samba cariocas
são um terreno fértil de proliferação, possibilitando a espetacularização das vivências dos
agentes envolvidos. Compositores como Sinhô, Ismael Silva, além de outros da chamada
Velha Guarda do Samba no Rio de Janeiro, tratam da Bahia como temática de referência
em canções ainda lembradas como clássicas. Vale a pena citar aqui o incômodo que essa
posição ancestral da Bahia causava em certos compositores. É notória a contenda que
envolveu alguns sambistas do círculo de Tia Ciata e Sinhô por conta da ironia deste último
ao dizer que a Bahia é boa, ela lá e eu cá78, o que provocou reações agressivas. Assim:

Herdeiro do entrudo português – à base do jato de água e da farinha na cara – o carnaval


do Rio de Janeiro ia beneficiar-se, no entanto, do refluxo migratório de populações rurais
nordestinas, atraídas para a Corte quando da decadência do café no Vale do Paraíba.
Foram esses contingentes de nordestinos, entre os quais figuravam muitos antigos
escravos e filhos de escravos baianos, que pela primeira vez introduziram no carnaval
carioca um mínimo de organização e sentido grupal (Tinhorão, 1997, p. 88).

As escolas de samba que floresceram no Rio de Janeiro a partir dos anos vinte, vindas
da tradição dos ranchos inaugurados na confluência entre cariocas e baianos desde o século
anterior, desempenham um papel relevante no sentido de plasmar esta marca da Bahia
circunscrita ao Recôncavo e referenciada à presença negra, religiosa e ao mesmo tempo
sensual, de doce malemolência, que caracterizam um texto identitário desta Bahia aqui
considerada no pólo da tradição. Vejamos:

78
Trecho da peça Quem são eles (Sinhô), de 1920.
106

É na própria história do Carnaval carioca que vamos encontrar, de forma mais fartamente
documentada, a presença dos baianos no Rio de Janeiro (...) A importância de relacionar
estes elementos decorre do próprio fato de o texto da baianidade ter se originado do
contraste entre os padrões civilizatórios que se tornaram emblemáticos do Rio de Janeiro e
da Bahia, já no século XIX (...) Não é somente o número dos baianos no Rio de Janeiro, as
qualidades de sua atuação e a freqüência com que são referidos que impressiona; são
também os conteúdos reunidos e organizados por este termo. Seriam todos estes
personagens baianos mesmo? Tratar-se-ia de uma sinédoque que, de tão usual, sequer
parece sê-lo? É nome de que esta palavra? Assim, encontro motivos mais que suficientes
para supor que baiano é, tanto quanto o pátrio de uma província, o nome de um ethos que
acontece, num universo hegemonizado pelo elemento branco, suposta e/ou pretensamente
ocidental, como étnico (Moura, 2001, p. 138).

Assim, a partir do cenário do Carnaval, que se conecta com o campo da música


popular através do samba e marchas compostas para a festa, vai se configurando, num
consórcio imaginário entre artistas e públicos, uma Bahia construída sob os padrões em
que esse território comparece como uma sede de etnias africanas, re-elaboradas na trama
do sincretismo entre as tradições católicas populares e aquelas de origem africana e
tendendo à ruptura de limites entre sagrados e profanos. Não é à toa que, a partir dos
estudos de diversos antropólogos, sabe-se de uma linhagem de caboclos79 baianos, o que
atesta uma identidade configurada numa tipificação (próxima do conceito de Schutz) que
trata a figura do baiano como um outro que, de tão presente, se estabelece como “ente
social” destacado. Deste modo, o carnaval carioca também funcionou como interface em
que se configuraram referências identitárias de diversos tipos de Brasil.

A literatura sobre as origens do samba no Rio de Janeiro dá os baianos migrados para


a então capital federal como fundamentais para a emergência deste gênero que se desdobra
como uma espécie de resultado híbrido (Canevacci, 1996) de manifestações como a
modinha, o lundu e o maxixe. É o caminho seguido pelo samba para se tornar mais tarde a
“música nacional” por excelência.

Xisto Bahia, cantor, compositor, violonista e teatrólogo baiano, nascido na Freguesia


de Além Carmo, em Salvador, percorreu diversos pontos do Brasil em 1858, consolidando-
se então como artista. É o compositor de Isto é bom [AL 049], a primeira canção a ser
gravada no Brasil pelas Casas Edison, em 1902. Ao lado do palhaço Eduardo das Neves,
ajudou a marcar o espaço do lundu como manifestação de sucesso, o que viria contribuir
para a formação do próprio samba mais tarde (Albin, 2003).

79
Entidades cultuadas em certas nações de candomblé e casas de umbanda brasileiras.
107

Temos, assim, uma presença vigorosa de baianos no Rio de Janeiro, desde meados do
século XIX, como demonstra a figura singularizada de Xisto Bahia. São trabalhadores do
porto, vendedores de rua, baianas de acarajé e quitutes afro-brasileiros, que vão se
evidenciando como partícipes da construção da capital brasileira ao mesmo tempo que
engendrando inúmeras representações acerca da Bahia, situando-a como pólo produtor
e/ou referenciador de tradições originárias do Brasil.

Diversos sambas da primeira metade do século XX são emblemáticos desta Bahia


construída no Rio de Janeiro e aceita como tal no senso comum, sendo que na música
popular isto se evidencia a ponto de solidificar-se e ser reconfigurado na obra de Caetano,
Gil, Gal e Bethânia, que vão operar no terreno das ressignificações entre tradição e
modernidade baianas nas construções identitárias percebidas na sua obra artística.

As ressignificações promovidas pelo grupo baiano são possíveis na medida em que


um imaginário sobre a Bahia se instaura, a partir da contribuição de diversas peças
musicais, entre as quais se destacam aquelas referentes à obra de três artistas que figuraram
na chamada Era de Ouro (Albin, 2003) da música brasileira. Ary Barroso, Carmem
Miranda e Dorival Caymmi, ao lado de tantos outros, promoveram uma construção de
Bahia que, nesta pesquisa, comparece como o núcleo do tradicional das representações de
sociedade baiana.

Desde a emergência de Xisto Bahia, compositor da primeira canção gravada de que se


tem conhecimento no Brasil80, passando por inúmeros intérpretes e compositores baianos,
cariocas e mineiros, a Bahia é posicionada numa miríade de referências repletas de vetores
em que a ancestralidade e a originariedade são elementos constantemente trabalhados.

Os sambas-exaltação de Ary Barroso – vários deles tendo a Bahia como tema –


começam a florescer quando do Estado Novo, adequando-se ao clima de construção da
pátria através do rádio, marcado por um conceito de nação unificada inclusive no âmbito
das emoções e disposições pessoais. Em 1939, a peça Aquarela do Brasil (Ary Barroso) é
recebida no teatro pela interpretação de Aracy Cortes, não alcançando muito sucesso. O
cantor Francisco Alves fez o primeiro registro gravado, com arranjo de Radamés Gnattali
(Albin, 2003). Além desta canção, que se constrói numa espécie de cortejo de tipos, dos
caboclos do interior às negras velhas a “embalar o Brasil”, o compositor/radialista mineiro
80
A gravação é do cantor Baiano, figura considerada da maior relevância para a música brasileira, tendo
atuado no Rio de Janeiro no início do século XX (Lisboa Júnior, 1990).
108

ainda compôs Na Baixa do Sapateiro [AL 050], Bahia [AL 051] e Quando eu penso na Bahia
(em parceria com Luiz Peixoto), entre outras.

A portuguesa Carmem Miranda vem para o Brasil com dezoito meses, vindo a fazer
carreira como cantora a partir de 1929, participando de um festival beneficente de música.
Em 1939, a intérprete e o grupo Bando da Lua foram contratados para trabalhos nos
Estados Unidos, perpetuando sua imagem de baiana estilizada que conquistou o cinema
até mesmo na filmografia de Walt Disney, com Você já foi à Bahia ?. Os personagens Pato
Donald e Zé Carioca são protagonistas de uma viagem ao Brasil, tendo Carmem Miranda e
o Bando da Lua como guias turísticos pelas ruas da cidade do Salvador, mostrando “o que
é que a Bahia tinha...” e remetendo um acervo deste território ao mundo do cinema
internacional.

A interpretação de Carmem Miranda que evoca a Bahia e que se tornou mais


emblemática é da canção O que é que a baiana tem? (Dorival Caymmi), também de 1939.
O diretor Wallace Downey escalou Caymmi para substituir Ary Barroso com uma canção
que seria trilha de uma cena de Carmem, pois este compositor teria se desentendido com o
diretor e retirado sua peça do filme Banana da terra. Caymmi aceitou o convite, tendo-se
tornado famosa a versão de que teria ensinado à cantora, por trás das câmeras, o gestual
característico da baiana faceira81 (Albin, 2003). Deste modo:

No início, a moda baiana de Carmem Miranda seria ridicularizada; já em 1933 usava “uma
roupa ousada que expunha a nudez do estômago”, considerada “vulgar e deselegante”.
Mas a incorporação definitiva da Bahia a sua persona só acontece em 1939, quando
Carmem interpreta O que é que a baiana tem?, de Dorival Caymmi, no filme Banana da
terra, produzido pelo americano Wallace Downey. (...) a partir daí, Carmem não mais
abandona a imagem baiana, passando a adotar os trajes, os “gestos sedutores” e a “alegria
tropical (Naves, 1998, p. 181).

Caymmi chega ao Rio de Janeiro com vinte e quatro anos, em 1938, e inicia uma
carreira como compositor e cantor de voz forte e grave, que já de início fez muito sucesso.
Desenvolve uma estética ligada ao cotidiano de uma Salvador do início do século XX
ainda não modernizada pela industrialização que começava a se desenvolver no eixo Rio-
São Paulo. A negritude a que se associa o território baiano nas representações da
brasilidade se consolida sobremaneira, no campo da música, a partir de sua obra. Os negros
“caymmianos” passam em cortejo nas ruas e praias baianas como pescadores, vendedores e
pretas do acarajé, acreditando nos santos católicos e nos orixás.
81
No item 4.3, aborda-se a identificação que se observa numa fase da carreira de Gal Costa com esse
imaginário de baiana trazido por Carmem Miranda.
109

Canções como Canoeiro, O Vento [AL 052], Vatapá [AL 053], O que é que a baiana
tem?, Rainha do Mar [AL 054], Requebra que eu dou um doce [AL 055], Saudade da Bahia
[AL 056], Você já foi à Bahia? [AL 057] e Lá vem a baiana [AL 058], entre outras, são

fundamentais para que se compreenda o imaginário baiano que se assenta a partir dos anos
trinta na música brasileira. Pode-se dizer, então, que Caymmi é um dos pais de variados
mitos sobre a Bahia, inclusive aquele da preguiça, que curiosamente é associado à sua
obra, embora esta comumente se refira à Bahia no âmbito do trabalho, seja de pescadores,
baianas de acarajé, ou de operários no Rio de Janeiro, como na peça Sábado em
Copacabana (Dorival Caymmi / Carlos Guinle) [AL 059]. Deste modo:

É curioso e importante notar na obra de Caymmi uma fidelidade às suas raízes – ao povo
da Bahia, à magia de sua cidade natal e à solidez dos vultos populares que a povoam e lhe
dão caráter. Caymmi talvez seja o maior menestrel que uma cidade brasileira jamais teve e
se pode dizer, com toda certeza, que os mistérios e belezas da Bahia se popularizaram
pelo seu canto (Albin, 2003, p. 132).

A observação de Albin aponta elementos, na obra de Caymmi, que se cristalizaram


como referências identitárias de uma Bahia associada a um passado de religiosidade
popular e de misticismo, que por sua vez coadunam com o aspecto sacro de manifestações
afro-brasileiras associadas à cidade do Salvador e seu entorno, ou seja, a Bahia. Hoje, sua
obra tem sido revisitada por vários intérpretes como a de um velho baiano82, autor de peças
que evocam por certo todo um ideário de Bahia tradicional.

Outro compositor baiano bem sucedido no mercado fonográfico e cujas composições


revelam certos traços que se remetem à Bahia é Assis Valente. Desembarcou no Rio de
Janeiro no final dos anos vinte e conheceu o sambista Heitor dos Prazeres em 1932,
começando uma carreira que teve em Carmem Miranda sua maior intérprete. Morre em
1958, depois de inúmeras tentativas de suicídio. Seus sambas ora flertavam com letras de
ironias bem construídas, como em Tem francesa no morro [AL 060] e E bateu-se a chapa
[AL 061], ora com expressões de uma tristeza comparável, em alguns casos, ao estilo do

também baiano Batatinha. Boas Festas e Alegria [AL 062] são exemplos dessa manifestação
de melancolia e sofisticação do seu trato com a letra de canção. O clássico Brasil
Pandeiro83 talvez seja o que mais se aproxima de um ideário de Bahia que ajudou a

82
A canção Cada tempo em seu lugar (Gilberto Gil) [AL 064] se remete à imagem de velho baiano que tem
se associado a Dorival Caymmi, como revela o próprio Gil (Gil, 1996). Outra peça em que essa referência se
faz generosamente é Buda Nagô [AL 065].
83
Gravado também pelos Novos Baianos no disco Acabou chorare, 1972. Trata-se de um registro dos mais
lembrados, pois esse grupo também promoveu ressignificações tanto de referências de identidades brasileiras
como de identidades baianas.
110

configurar solidamente um texto que organiza os contornos do baiano tradicional, como


Dorival Caymmi, Ary Barroso e Carmem Miranda. Note-se que o Tio Sam da peça vem
conhecer a batucada carioca, que parece ser executada por ioiôs e iaiás baianas, tão comuns
naquele Rio de Janeiro dos anos trinta84.

É interessante assinalar que, além da Bahia, outros espaços vêm sendo estudados
como emblemáticos desse tipo de narrativa identitária, como é o caso do Rio Grande do
Sul e a chamada gauchice, bem como de Minas Gerais e a mineiridade. Enquanto a Bahia
tem referência num passado colonial para sustentar-se como origem do Brasil, os gaúchos,
na análise de Pesavento (1985), apóiam-se fortemente na referência à Revolução
Farroupilha, em suas auto-representações, no sentido de elaborar sua discutida identidade
cultural, ou seja, como fortes, viris e dados à guerra para obter conquistas85. Por sua, vez,
o estudo realizado por Arruda (1990) sobre a mitologia da mineiridade confere atenção
especial às representações que se remetem à emblematicidade histórica de Minas Gerais,
com suas características associadas a uma espécie de temperança no trato com a política;
isto viria culminar na figura do mineiro equilibrado e, nas palavras da autora, de razão
superior .

Essas narrativas voltam a evocar o tema das regionalidades, caro a Bourdieu, como se
vê:

As lutas em torno da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades


(estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem, e dos sinais
duradoiros que lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das
classificações, lutas pelo monopólio do poder de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e
de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social, e por este
meio, de fazer e de desfazer os grupos (Bourdieu, 2001, p. 113).

As regionalidades vistas como lutas no âmbito dos poderes simbólicos em muito


podem ajudar a perceber como os agentes se apropriam dos ícones identitários e estes
passam a realizar-se em forma de narrativas. Caetano, Gil, Gal e Bethânia são

84
Em diversos momentos de sua trajetória, em entrevistas e shows, Caetano Veloso mostra um respeito e
admiração significativos por Assis Valente. No encarte do LP Tropicália II, tece um comentário sobre o
compositor, questionando a qualidade de uma biografia que teria negligenciado o possível bissexualismo de
Valente. Considerando a época em que viveu, alguns cronistas da obra deste último apontam este traço de sua
identidade como uma das possíveis causas de sua depressão, que o levou ao suicídio. Em 2004, no show A
Foreign Sound, com canções norte-americanas, em Salvador, Caetano incluiu Brasil Pandeiro no repertório,
como referência a uma canção brasileira famosa em outras partes do mundo e também como lembrança da
importância do compositor, cuja naturalidade ainda é questionada. Alguns dizem que nasceu em Santo
Amaro da Purificação, o que certamente aumenta a identificação de Caetano consigo.
85
Num senso comum, em ambientes populares, a figura do gaúcho também é associada à imagem do falso
macho, numa representação em tom de gozação com o aspecto da gauchice relativo à virilidade do homem
do Rio Grande do Sul.
111

singularidades ressignificadoras de emblemas que vêm a transitar no imaginário como


elementos marcadores de posições e de status. Esse trânsito delimita novas representações
que promovem uma reciprocidade incessantemente criativa entre tradição e modernidade.

Passamos, então, ao acontecimento Doces Bárbaros, tratado aqui como um elemento


especialmente relevante na trama de ressignificações identitárias na obra dos quatro artistas
baianos.

4.2 DOCES BÁRBAROS, BAIHUNOS E BAIANOS

As representações da Bahia e do Brasil trabalhadas na obra de Caetano, Gil, Bethânia


e Gal encontram no show/disco/filme Os Doces Bárbaros um momento de
interfaciamento, quer dizer, são colocadas juntas à moda de um entrelaçamento, sem
constituir necessariamente uma síntese. São alocadas num mesmo espaço midiático – o
palco, depois o disco e o filme – e podem ser cotejadas numa análise das carreiras, como
que se encontrando em 1976 e seguindo nas trajetórias individualizadas até os momentos
atuais. Vejamos:

Para Caetano, o trabalho que ora desenvolvem juntos não implica na busca da síntese de
cada um. “Só é uma síntese – explicou – na medida em que somos nós mesmos e tudo
que fazemos agora é de certa forma uma síntese do que viemos fazendo”.
In: Jornal A Tarde, 05 de outubro de 1976, cad. 1, p.03.

Caetano, Gil, Gal e Bethânia, sobretudo no show em 1976, transitaram pelo binômio
tradição/inovação num formato muito carregado de significados contraditórios para os
padrões que prevaleciam na época. Numa estratégia de confluência que recapitula o que se
afirmou acima sobre simultaneidade, ousaram levar para o plano midiático diversas
imagens de Bahia que, se reafirmavam sua “vocação” de relicário de tradição, origem
africana, religiosidade popular, sensualidade, familiaridade, proximidade, etc, também
revolviam as teias das identidades culturais baiana e brasileira a partir da enunciação de
elementos inovadores presentes àquela altura na vida sócio-cultural brasileira e baiana.

Em 1976, percorrendo capitais brasileiras com uma proposta nitidamente


comemorativa, colocaram em cena canções que reuniam desde o romantismo de Herivelto
112

Martins ao samba-de-roda estilizado de Wally Salomão, ostentando cabelos revolvidos e


trajando roupas coloridas e inusitadas, lembrando indumentárias de orixás.

A turnê86 teve início em 24 de junho de 1976, no Anhembi, em São Paulo, sendo


interrompida em 7 de julho por conta da prisão de Gilberto Gil e do baterista Chiquinho
Azevedo, em decorrência de porte de maconha. O episódio é relatado no filme com riqueza
de detalhes e numa abordagem estética que sugere um fortalecimento da imagem de Gil
diante das acusações, assumidas integralmente pelo artista. Gil afirmou que o uso da erva
não representava mal para si e foi condenado a um tratamento que se iniciou em
Florianópolis, onde foi preso, e depois no Rio de Janeiro. Em agosto, o grupo retoma os
shows, chegando a Salvador em outubro e lançando o álbum duplo em novembro. Em
1977, o filme, que teria sido pensado inicialmente apenas para os arquivos da Polygram87,
é enfim apresentado, com relativo êxito diante do público. A propósito da prisão de Gil e
do seu afastamento temporário dos palcos, Gal comenta:

Nessa época, em que a gente teve parado quase que um mês, o que a gente sentiu muito
profundamente foi uma sensação de frustração, porque a gente tava ligado num trabalho,
começando um trabalho que pra gente era muito importante, muito forte, e pra o Brasil
também. Então, ser cortado assim, no início, quando a gente tava descobrindo as coisas, a
relação entre a gente, toda a proposta que a gente tinha, que a gente tava começando a
incorporar no trabalho, quando a gente foi castrado, a gente se sentiu muito frustrado. Mas
a gente ficou aqui juntos, os três, quando o Gil não podia estar conosco. A gente tava
sempre perto dele. Os três muito juntos e com muita força, um dando força ao outro,
querendo continuar o trabalho.
In: Home-vídeo Os Doces Bárbaros. Dir. Jon Tob Azulay. CIC. 1977.

O show Os Doces Bárbaros acontece no contexto da reabertura política, durante o


governo do General Ernesto Geisel, que preparou terreno para a anistia. Os arroubos de
liberdade individual expressos neste acontecimento se tornam mais significativos se
colocamos como cenário este Brasil de uma ditadura em vias de agonizar. A canção O seu
amor (Gilberto Gil), por exemplo, composta para o espetáculo, parodia o slogan da própria
ditadura – ame-o ou deixe-o –, o que a situa como uma resposta curiosa aos mandos (e
desmandos) daquele período histórico (Gil, 1996). Os Doces Bárbaros ocorrem, assim,
quando a configuração política brasileira começa a se modificar, dando sinais da
insustentabilidade daquele modelo.

86
Ver o Quadro 10, no Apêndice, pg. 205.
87
Esse fato atesta a expectativa em torno da importância comercial do acontecimento. Além do mais, com a
prisão de Gil, amplamente exposta no filme, o contexto ganhou conotações que fortaleceram a
espetacularização do encontro de Caetano, Gil, Gal e Bethânia.
113

A peça-título do show, Os mais doces bárbaros (Caetano Veloso), ainda falava em


invasão, amor no coração e alto astral. Assim, em Os Doces Bárbaros, Caetano, Gil, Gal
e Bethânia extrapolaram e redefiniram limites já bem delineados no imaginário brasileiro
sobre o lugar da Bahia no cenário nacional. Se a sua Bahia continuava sendo dos feitiços e
da fé, como na peça primeiro gravada por Dalva de Oliveira88, apresentava-se também
como uma Bahia de onde saem artistas que, como um raio de Iansã, rasgam a manhã
vermelha89. A crônica de José Miguel Wisnik nos diz:

“Os mais doces bárbaros”, música de abertura do show, figura uma invasão amada da
cidade (“avançando através dos grossos portões / nossos planos são muito bons”). A
música é tanto uma proposição, quanto uma invocação, o chamado da inspiração e a
tomada do palco enquanto lugar público ( a “cidade”), o umbral que descortina e devassa
os telões, não só os do palco, mas do lugar do carnaval, que é, pelo menos dois milênios, o
espaço de passagem que se instaura entre a vida e a morte, os encontros e as separações,
o poder e a queda, atravessado por essas “troupes” utópicas de saltimbancos, afoxés,
cordões, blocos.(...) A poesia não se paralisa olhando o dia-que-virá: em vez disso, se põe
inteiramente, e em movimento, no tempo que está. Como diz, ambiguamente a letra de “Os
mais doces bárbaros”: “Peixe no aquário nada”, recado sobre o movimento contínuo da
vida, sob todas as limitações.
In: Movimento, no 53, 5 de julho de 1976. Citado em RISÉRIO, Antônio. Expresso 2222.
Salvador. Editora Corrupio. 1982.

Confirmando em alguns momentos elaborações que davam conta de certas idéias


sobre o baiano típico através da referência constante aos ícones de Bahia, assim como
aportando novas possibilidades de se apresentar como baiano, esses artistas lograram se
constituir como referências baianas de outro tipo – não mais fundado apenas no pólo
tradição, mas também no pólo modernização – no concerto da brasilidade, prolongando e
realizando, neste sentido, a proposta tropicalista. Talvez se possa afirmar que a própria
sonoridade presente no show – a experiência de instrumentos elétricos integrando os
arranjos, ao lado de canções de orixá, por exemplo, e a forma de administrá-los – seja a
expressão mais vigorosa e impactante do binômio tradição/inovação vivido
irreverentemente pelos quatro artistas. Há, neste acontecimento toda uma linguagem dita
rocker que permeia e dá a tônica. Caetano comenta:

Rock é nosso tempo, entendeu? Quer dizer, pouco importa. Se você vive o tempo de hoje,
então você tá sendo rock, o que você tá fazendo é rock. A época é de rock mesmo. É a
linguagem do nosso tempo, é o jeitão do nosso tempo.
In: Home-vídeo Os Doces Bárbaros. Dir. Jon Tob Azulay. CIC. 1977.

88
A Bahia te espera, canção de Herivelto Martins e Chianca de Garcia, gravada por Maria Bethânia no LP
Pássaro Proibido, Polygram, 1976.
89
Trechos da canção Os Mais Doces Bárbaros (Os Mais Doces dos Bárbaros), Caetano Veloso, LP Doces
Bárbaros, Polygram, 1976.
114

A irritação presente em certos discursos da crítica especializada à época do show pode


ser lida como um desagravo de um aspecto da brasilidade que fora arranhado: aquela Bahia
não era a mesma dos sambas-enredo das escolas do Rio de Janeiro ou do universo dos
antigos sambistas. Se, por um lado, temos uma reiteração da forma convencional de dizer a
tradição baiana no acontecimento Doces Bárbaros, seus aspectos inovadores contradiziam
o que se esperava da Bahia na trama da identidade nacional. Por outro lado, as posturas
políticas e comportamentais desses artistas também despertavam um certo mal-estar numa
imprensa que procurava situar os ídolos da música como porta-vozes de clamores coletivos
num período de exceção.

Podemos ir mais longe e tentar perceber, num plano mais ampliado, que o sucesso
destes artistas poderia incomodar por não ser coerente com uma imagem de Bahia
cristalizada como um lugar de onde viriam indivíduos associados à pobreza e
hierarquicamente inferiores aos “sulistas”. Numa observação de Francisco de Oliveira:

O conjunto de negatividades postas pela situação de trabalho passa a ser “atributo” dos
baianos: o permanecer operário, a condição de imigrantes, a precariedade de inserção no
mercado de trabalho, as constantes mudanças de um emprego para outro, determinadas
pelo profundo movimento de transformação das estruturas produtivas no Centro-Sul,
passam a ser tidos como componentes intrínsecos do “caráter” dos baianos (Oliveira, 1987,
p.110).

No âmbito musical, essa negatividade não poderia ser associada aos integrantes do
grupo Doces Bárbaros, pois sua produção inserida no contexto da indústria cultural
(Adorno e Horkheimer, 1985) passava longe do imaginário de retirantes pobres muitas
vezes imputado aos brasileiros, cuja origem está acima do Estado do Espírito Santo.
Podemos voltar, então, à questão da territorialidade e da condição de liminaridade do
migrante nordestino nas cidades grandes (Cardel, 2003), pois, ao propor uma verdadeira
invasão da cidade, estes artistas começam justamente por São Paulo, onde as confluências
de diversos vetores de identificação de baianos se estabelece. A invasão ocorre através da
cidade que recebe os nordestinos/baianos e os classifica segundo uma lógica hierárquica
que parece ter sido revolvida e ao mesmo tempo ironizada pelos Doces Bárbaros no
show/disco/filme.

As declarações contidas no filme são de especial relevância e demonstram o clima do


ambiente artístico-midiático no final dos anos setenta. Se a Tropicália tinha dado os
primeiros sinais para a admissão da música como um elemento industrial – que em última
instância coincide com o pop –, incluindo e transfigurando um corpo de tradições culturais
115

brasileiras, com Os Doces Bárbaros percebe-se que a arte industrial, com seus elementos
para consumo, é assumida como possível e desejável, a despeito da hostilidade que se
apresentou por parte de setores da imprensa, como se pode notar, nesta entrevista realizada
em São Paulo à época da estréia do show:

Por que um grupo tão doce, tão açucarado, no atual momento da conjuntura nacional?
(Repórter 1).
Não entendi a sua pergunta (Caetano).
Por que o tão doces? (Repórter 1).
Não é tão doces. É doces bárbaros. O tão é seu, você é que está falando em nome da
conjuntura, então você ponha o tão... (Caetano).
Vai dar um LP dos quatro? (Repórter 2).
Vai, a gente já fez um compacto duplo (Caetano).
Eles já vêm com um esquema comercial montado, não se preocupe (Repórter 1).
Claro! (Caetano).
Não seria mais um produto para consumo imediato? (Diversos repórteres).
Mas é claro que é mais um produto (Caetano).
E vocês estão bem convictos disso. O Gil, agora há pouco, disse que era prá tocar no
rádio, prá vender mesmo (Repórter 1).
Não, claro, como todo mundo. Não conheço ninguém que faça o oposto (Caetano).
Não, porque você me perguntou, disse assim: tem umas músicas que você faz de vez em
quando pra tocar no rádio, e eu disse: não, eu faço todas prá tocar no rádio. Eu não sou
louco. E disse mais: aquela que se chamava Essa é prá tocar no rádio nunca tocou no
rádio (Gil).
In: Home-vídeo Os Doces Bárbaros. Dir. Jon Tob Azulay. CIC. 1977.

Em 2002, nos ensaios para o show realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo,
Caetano argumenta, tendo como interlocutores Gal e Gil, suas dúvidas sobre a validade de
uma espécie de “aura” configurada em torno das carreiras do grupo baiano. É um
momento de interessante reflexão, principalmente se tomada à luz dos questionamentos
dirigidos pela imprensa à época do primeiro encontro. Vejamos:

No livro Verdade Tropical, eu conto que eu olhava todo mundo e me interessava por tudo.
Via as capacidades de diversas pessoas, mas esses quatro via ao mesmo tempo unidos e
mais unidos predestinados a alguma coisa que mais ou menos aconteceu. Mas achei
também que era uma intuição, porque eu sou muito cético, de que a gente tinha aquela
vocação para o estrelato vulgar do comercialismo da sociedade de consumo (Caetano).
E a gente também tem isso na nossa carreira! (Gil).
Sem dúvida tem, mas tem momentos que me dá a impressão de que é só isso, e eu fico
desiludido (Caetano).
Mas o nosso esforço sempre foi para que não seja só isso (Gil).
116

Eu sei, eu estou comentando que é prá não pensar também que tem uma intuição mística,
de que tem uma luz divina, e que a gente corresponde a um destino maravilhoso
(Caetano).
Eu sinto isso (Gal).
Ninguém tá falando disso. Estou falando de intuições humanas, intuição da palavra (Gil).
Ela sente isso, o que eu estou falando parece com isso, tem algo disso, e como eu sou
muito cético e tem momentos em que eu sinto vontade de exercer uma crítica muito cruel a
nosso respeito, então não quero deixar de dizer isso (Caetano).
Eu só estou dizendo que acho que, sem dúvida alguma, essa oscilação é absolutamente
pertinente, tem a ver. Você, por exemplo, é o mais esforçado de todos nós quatro no
sentido de que não tenha sido só isso. Eu tenho confessado várias vezes, digo toda hora
por aí, que se não fosse Caetano, eu provavelmente estaria com música, mas não teria tido
as responsabilidades que tive (Gil).
In: Outros (doces) Bárbaros. DVD. Dir. Andrucha Waddington. Biscoito Fino, 2004.

A questão envolve tanto a exposição à crítica interna do grupo, promovida por


Caetano, quanto à ponderação de Gil90 sobre os próprios limites de um trabalho artístico
realizado sob a égide da indústria cultural. Nas entrevistas em 2002, havia também um
clima de especulação, por parte da imprensa, sobre os possíveis choques entre
personalidades e opiniões dos quatro artistas, o que foi refutado em uníssono – de forma
agressiva por Caetano, irônica por Gal e Gil e mesmo desdenhosa por Bethânia91. O jornal
Folha de S. Paulo, na figura de Pedro Alexandre Sanches, chega a titular uma matéria
sobre o show como Doces (egos) Bárbaros92. Este jornalista vem levantando discussões
situadas no pólo da crítica mais aguda à obra dos quatro artistas, tendo escrito um livro que
procura lançar novas luzes sobre a Tropicália93, além de manifestar um desejo de
desmistificar o sucesso e as posições alcançadas pelo grupo baiano. O que se percebe,
deste modo, é que as trajetórias de Caetano, Gil, Gal e Bethânia ainda provocam
questionamentos que revelam a força da música popular como tela de construções sobre
nossas identificações.

O acontecimento de 1976 pode ser considerado um momento especial e prolongado


(levando-se também em conta que o filme foi amplamente visto), que se constituiu como
interface de diversas práticas artísticas relacionadas à identidade cultural baiana/brasileira.
Lembremos brevemente como o show recapitula os trabalhos de seus protagonistas em
1975/1976.

90
Como se pode ver na reflexão contida na canção Outros Bárbaros, composta por Gil [AL 067] para a
comemoração realizada em 2002. Ver Anexo Letras
91
In: Outros (doces) Bárbaros. Direção Andrucha Waddington, DVD. Biscoito Fino, 2004.
92
Ver Anexo Internet.
93
Tropicália: decadência bonita do samba. São Paulo, Boitempo Editorial 2000.
117

Gal Costa, com o espetáculo Gal canta Caymmi, percorria o Brasil cantando a versão
de Bahia aportada por este compositor; portanto, referência de um outro momento,
marcado sobretudo pela relação próxima com o ambiente marítimo. Este show/disco foi
especialmente representativo para sua carreira, pois estava reverenciando e atualizando o
repertório daquele que, nas suas palavras, é o pai de todos nós baianos94. O disco é
iniciado e finalizado (na sua edição em LP, em 1976) com toques de atabaque remetendo à
Bahia ancestral tão entoada por Caymmi, além de trazer arranjos modernizados. Durante
esse período, Gal foi acompanhada por ele e, em momentos do show, apresentava-se
adornada por uma coroa que lembrava a figura antropomorfizada de Iemanjá.

Maria Bethânia cumpria temporada do show/disco Pássaro Proibido, em que traz uma
espécie de suíte dos orixás, além de mostrar na capa uma fotografia em que aparece vestida
como uma rainha afro, adornada com uma coroa de búzios, estampando na contra-capa
uma imagem de Nossa Senhora da Purificação, padroeira de Santo Amaro. Neste disco,
Bethânia grava As Ayabás (Gilberto Gil/Caetano Veloso), que fez parte do show Doces
Bárbaros, além de registrar uma de suas homenagens a Dalva de Oliveira e à Bahia com A
Bahia te espera (Herivelto Martins/Chianca de Garcia).

Gilberto Gil, em Refazenda, introduzia elementos de uma negritude afro-pop-baiana


em que se percebem nitidamente referências à cultura nordestina, num tributo discreto à
figura de Luiz Gonzaga, bem como a presença de ritmos negros estilizados, com
prenúncios do samba-funk. É um trabalho em que Gilberto Gil se refugia numa estética
minimalista, tanto nas letras que evocam misticismo e introspecção quanto em melodias de
forte apelo sentimental, como é o caso da toada/baião Lamento Sertanejo
(Dominguinhos/Gilberto Gil).

Caetano Veloso lançava Qualquer Coisa e Jóia, em que ensaia uma conexão Rio-
Bahia numa das faixas e se utiliza de um experimentalismo percussivo sutil e significativo.
Como dispunha de muito material recente depois do fracasso comercial de Araçá Azul,
Caetano gravou dois discos, que parecem estar direcionados tanto ao público como à
crítica. Num, percebe-se uma sonoridade e repertório mais acessível comercialmente; no
outro, uma aproximação com experiências sonoras bem ao gosto que vinha desenvolvendo
desde que voltou do exílio. Em Jóia, Caetano faz letra para a melodia de Pipoca Moderna,
da banda de Pífanos de Caruaru, aprofundando e divulgando mais as relações estabelecidas

94
Em depoimento à TV Cultura no ano de 1997, quando do Heineken Concerts.
118

por Gil desde 1967 com as manifestações populares do Recife. Em 2001, durante
temporada do show São João Vivo, com canções de Luiz Gonzaga, Gil participou do filme
Viva São João (dirigido por Andrucha Waddington), em que músicos de Caruaru
executavam a peça, já com a letra escrita por Caetano.

A peça marcou uma atualização daquela manifestação popular tradicional de


Pernambuco e pode ser considerada hoje como elemento moderno incorporado aos
folguedos tradicionais. Também aqui se observa uma interferência que
moderniza/retradicionaliza práticas culturais.

Enfim, Caetano, Gil, Gal e Bethânia podem ser interpretados como quatro vetores de
representação da sociedade baiana que confluem no show/disco/filme Os Doces Bárbaros
para apresentar ao Brasil sua versão múltipla e polifônica de Bahia, que continua a ser
estetizada ao longo das respectivas carreiras.

Estes artistas também evidenciam um traço importante no que diz respeito à


negociação entre órgãos oficiais e artistas, em geral e na Bahia. Como figuras de
importância já reconhecida para a música brasileira pelos acontecimentos aos quais
estavam associados desde o final da década de sessenta, principalmente Caetano Veloso e
Gilberto Gil aparecem como artistas baianos e reconhecidos como ícones da Bahia,
inclusive no discurso oficial. Isto se observou especialmente na forma como se desenrolou
o exílio destes dois, em 1969, quando o Prefeito da cidade do Salvador, Antônio Carlos
Magalhães, veio recepcioná-los no aeroporto para resolução dos trâmites finais aos efeitos
de sua partida para Londres95. Em 2001, Gal se expôs acentuadamente ao apoiar, em
público, Antônio Carlos Magalhães, acusado da fraude no Senado. Quando interpelada
pela imprensa, em diversas ocasiões, a cantora afirmava ter apoiado um amigo, sem
vinculações políticas. Em diversos veículos da imprensa96, noticiou-se que o álbum que
gravou no período – De tantos amores – teria tido seu lançamento atrasado em virtude da
“imagem negativa”, que teria se formado a partir do acontecimento.

No final dos anos oitenta, outro aspecto chama a atenção no plano da relação com os
órgãos oficiais, ou seja, no plano mais propriamente institucional. Quando se colocou a
proposta de cessão de parte do território baiano ao Estado de Pernambuco, a propaganda
veiculada na TV aberta dizia: separar a Bahia é o mesmo que separar Caetano de Veloso,
95
Fato comentado por Gilberto Gil em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, em 1999.
96
Ver Anexo Internet.
119

Gilberto de Gil, Maria de Bethânia e Gal de Costa. Resulta claro que estes artistas
lograram se afirmar como referências tradicionais de uma Bahia modernizada, a partir dos
anos setenta.

Deste modo, a análise do desempenho de Caetano, Gil, Gal e Bethânia leva em


consideração que sua prática artística trouxe elementos identitários reconfigurados de tal
modo que as Bahias trazidas como emblemas por eles não eram reconhecidas no cenário
das representações nacionais como as mesmas Bahias instituídas pelo imaginário das
escolas de samba, do cancioneiro de Dorival Caymmi, dos balangandãs de Carmem
Miranda. Percebe-se que, com as práticas artísticas destes músicos, evidencia-se uma
configuração de sociedade baiana em vias de modernizações, sem desqualificar nem
enterrar um imaginário já constituído tradicionalmente sobre esta formação social.

Vale ressaltar que, desde a Tropicália, a idéia de grupo baiano associada aos quatro
artistas tinha um caráter também de demarcação de limites. Ao transitar entre o acústico da
Bossa Nova e o elétrico do rock, principalmente Caetano, Gil e Gal eram considerados ora
promissores artistas, ora nocivos a uma estética musical brasileira radicalmente refratária à
incorporação de elementos globais. Elis Regina, por exemplo, mostrou-se muito irritada
com o movimento que se iniciava naquela atmosfera de guitarras, berimbaus e alegorias
proporcionada pelos tropicalistas, a ponto de ser acusada de chamar publicamente Gilberto
Gil de “traidor”97 (Calado, 1997).

Embora tenha sido um momento de grande afirmação para a carreira de seus


protagonistas, o show Os Doces Bárbaros também revelou o coroamento de uma invasão
do grupo baiano no centro do Brasil, e ajudou a redefinir – entre a reiteração e a
antropofagia estética – lugares ocupados pela Bahia no imaginário nacional.

A imprensa brasileira, ao se reportar à produção musical dos anos setenta,


freqüentemente polarizava seu discurso a partir de categorias relacionadas ao que se
chamava de “conjuntura nacional”. Os anos de exceção vividos com angústia por grande

97
Essas acusações naquele clima de festival eram muito comuns. Gilberto Gil foi apontado como
incentivador de uma platéia contra Chico Buarque, e de tê-lo chamado de ultrapassado, o que nega até hoje
(Barros e Silva, 2004).
120

parte dos intelectuais militantes se convertiam em discursos que reclamavam dos artistas
brasileiros atitudes revolucionárias98 .

Tanto no âmbito da imprensa comercial quanto naquele da imprensa alternativa, os


artistas considerados “progressistas” compareciam – ou melhor, eram identificados – como
porta-vozes das inquietações da sociedade brasileira diante de seus públicos. O periódico O
Pasquim, dirigido e redigido por figuras como Luís Carlos Maciel, Ziraldo, Chico Anísio e
Paulo Francis, aparecia no final dos anos sessenta como um alternativo em que essas idéias
podiam ser expostas com humor, ironia e criatividade.

Quando de seu exílio em Londres, Caetano Veloso foi um assíduo colaborador do


Pasquim, tratando dos mais diversos assuntos em forma de crônica, ou seja, foi tomado
pelo jornal como uma espécie de intelectual da música em muito identificado com a linha
editorial dessa publicação.

Ao longo da década de setenta, entretanto, a partir do delineamento de trajetórias


artísticas nas quais as práticas musicais não podiam ser associadas imediatamente à
proposta de uma imprensa alternativa, as figuras de Caetano Veloso, Gal Costa, Maria
Bethânia e Gilberto Gil passam a ser adjetivadas pelo termo baihunos99, numa referência
aos invasores bárbaros medievais. Sobre o tema,

Eu me lembro que na época da primeira reunião (do grupo Doce Bárbaros), o jornal O
Pasquim tinha uma linha de ataque contra nós, só pelo fato de sermos baianos. Falavam
que o Rio tinha sido invadido por bárbaros. Daí veio o nome. Também teve um papo na
Praia de Ipanema com Jorge Mautner, que ele falou que Jesus, com sua doçura, conseguiu
derrubar o império dos bárbaros... Então, achamos que o nome era adequado mesmo, diz
Caetano.
In: www.cliquemusic.com.br. Por Mônica Loureiro, 06/12/2002, acesso em 07/12/2002.

Percebe-se, então, que a formação do coletivo Os Doces Bárbaros, em 1976, tem um


duplo caráter que se apresenta como fundamental. O grupo comemorava dez anos de
presença na mídia e também assumia, irônica e subversivamente, as críticas da imprensa e
daquilo que o cineasta Carlos Diegues chamou posteriormente de patrulhas ideológicas.

98
Termo muito freqüente, naqueles anos, para conotar posturas políticas orientadas para a retomada das
liberdades coletivas democráticas, com ou sem a remissão direta a um programa propriamente revolucionário
na acepção marxista-leninista.
99
Este periódico começou, a partir de 1972, e principalmente pela figura de Millôr Fernandes a apontar os
artistas baianos no Rio de Janeiro como Baihunos, os referenciando como bárbaros e invasores no sul do
país. Este fato é lembrado pelo próprio Caetano Veloso ainda hoje como importante para a formação do
grupo Os Doces Bárbaros, cujo nome aparece também como uma espécie de alegorização da própria crítica
feita pelo jornalista do Pasquim.
121

Os Doces Bárbaros aparecem na cena como “baianos bárbaros”, que, além de parecerem
a-políticos aos efeitos de uma perspectiva militante da época, apresentavam uma estética
alegoriza(da)nte a partir de ícones tradicionais do Brasil e da Bahia. Constituindo-se o
show como um acontecimento agregador de quatro artistas famosos, seu nome passou a
designar os integrantes mesmo depois da turnê acabada. Numa entrevista realizada em
1978 (publicada no livro Expresso 2222) por conta do lançamento de Nightingale, seu
disco nos Estados Unidos, Gil se posiciona sobre os questionamentos aos Doces Bárbaros:

Repórter: Parece que os “Doces Bárbaros” catalisaram ainda mais resistências em certos
setores...
Gil: Foi pela nossa atitude mais livre. Um momento em que nos colocamos mais na
disposição de uma liberdade que a gente já tinha em particular. Isso irritava profundamente
certas áreas dessa resistência fascista, e por outro lado porque era mesmo surpreendente.
Era difícil para nós mesmos definirmos os Doces Bárbaros em termos de direção ou
sistemática, intenção, principalmente para as pessoas de fora. E éramos nós quatro
somando todas as indisposições da crítica para com cada um de nós (Gil, s/d, p.186).

A despeito de assumir como verdade os discursos veiculados pelos agentes


envolvidos, é preciso compreender como se situam os depoimentos na trama de
configuração das carreiras e trajetórias consideradas. Caetano Veloso assume uma postura
mais intelectual no grupo e passa a responder a uma série de críticas da imprensa e de
setores das artes no Brasil, principalmente quando sua imagem se torna mais associada a
uma espécie de não-engajamento político, expresso na própria manifestação em tom jocoso
no Pasquim.

Não se evidencia, portanto, uma absoluta verdade nem nos depoimentos dos artistas,
nem nas considerações da mídia e cronistas em volta. O que interessa sobretudo nesta
pesquisa é o jogo de representações que traz à tona narrativas identitárias em que
comparecem imaginários cujos elementos passam por liberdades individuais, brasilidades,
ancestralidades e modernidades brasileiras/baianas, negritudes, tipos de masculinidade e
feminilidade, continuidades e descontinuidades da história recente da música brasileira. Se
pensarmos que o conjunto dos acontecimentos no Brasil à época dava conta de uma lenta
abertura que se consolidaria dez anos depois, talvez seja possível perceber em Os Doces
Bárbaros uma interface também de formas de manifestação política que soavam apolíticas
diante de setores do público e da crítica que, ao mesmo tempo, levou ao palco quatro
singularidades cuja história esteve ligada, de diversas maneiras, à constituição de um
cenário artístico mais ou menos revelador dos caminhos (e descaminhos) sociais no Brasil.
A canção (já citada) de Gilberto Gil – O seu amor – pode demonstrar um nível de
122

apreensão e re-elaboração do momento político que evidencia um tipo de militância


artística que, por sua vez, descende do estilo plasmado na Tropicália, desdobrando-se em
alegorização e transignificação poética. Assim:

O seu amor,
Ame-o e deixe-o
Livre para amar
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ir aonde quiser
O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz

Gilberto Gil. O seu amor.


In: LP Duplo Doces Bárbaros. Polygram, 1976.

O slogan da ditadura – “Ame-o ou Deixe-o” – é revolvido e recolocado numa


mensagem tão aparentemente inofensiva quanto questionadora, em que emergem,
principalmente no contexto do show, pontos importantes sobre a conjuntura política
nacional, reclamada como bandeira também por outros círculos artísticos, principalmente
aqueles de esquerda.

Como a música popular assumiu um caráter de expressão política com mais vigor
durante o regime militar, as posturas artísticas acabaram sendo também policiadas no
sentido de uma categorização; quem era contra e quem era a favor, ou se mantinha neutro,
com relação à ditadura. Caetano, Gil, Gal e Bethânia, numa postura esquiva aos modelos
de contestação política em voga naqueles meados de anos setenta, foram interpretados
como no mínimo alienados, para usar o jargão da época. Por outro lado, os festivais de
música, que espetacularizavam disputas que iam além do aspecto artístico, também
serviram como espaço de interesses comerciais muitas vezes não revelados como parte das
ideologias dos “músicos militantes” da época. Assim:

Boa parte dessa energia oposicionista e esquerdizante que irradiava da cultura havia sido
canalizada para a música, desaguando na chamada “era dos festivais” a partir de 1965.
Mas para lá também convergiam, de um lado, disputas e interesses comerciais crescentes
entre emissoras que se profissionalizavam e descobriam o filão do showbiz e, de outro, as
rivalidades entre os novos astros da MPB, que esses mesmos festivais e TVs começavam
a projetar. O ambiente politizado, que se traduziu primeiro na polarização ideológica entre o
iê-iê-iê e a MPB e, a seguir, entre esta última e o tropicalismo, ofuscou muitas vezes
motivações mais mesquinhas – e certamente mais concretas que aquelas dos ideais em
voga – pelas quais se bateram muitos artistas (Barros e Silva, 2004, p. 37).
123

O aspecto propositivo do show/disco/filme permite acessar elementos para a


compreensão de como estes artistas organizaram feixes emblemáticos das identidades
culturais baianas a partir das práticas musicais colocadas na forma de um conjunto
artístico. Recapitulando, as representações coletivas (Durkheim, 2003) da sociedade
baiana/brasileira são re/trans/configuradas nas práticas artísticas de Caetano, Gil, Gal e
Bethânia, que re-elaboram a dicção de narrativas identitárias incorporadas e tornadas
públicas singularmente. Deste modo, como podemos ver a partir dos próprios depoimentos,

Não queremos dizer que Doces Bárbaros não vai dizer nada. E que Doces Bárbaros não é
nada. Pelo contrário (Caetano).
“Seja onde for que a gente entre/ a gente quer continuar” (Gil).
In: Texto do programa do show Doces Bárbaros, 1976.

O repertório praticado/gravado no show, as entrevistas concedidas e a cena mesmo em


palco/filme são fontes fundamentais para investigar como estes artistas
re/trans/configuraram o imaginário nacional sobre a sociedade baiana/brasileira com seu
trabalho. Considerando que as narrativas sobre a Bahia, até meados do século XX, estavam
relacionadas a aspectos da etnicidade, ancestralidade e familiaridade, e que as práticas
artísticas de Caetano, Gil, Gal e Bethânia ora acentuavam, ora ressignificavam esses
mesmos emblemas, podemos nos perguntar o que representou a trajetória destes músicos
nos seus primeiros dez anos de carreira e, sobretudo, enquanto grupo musical
assumidamente constituído.

A Bahia dos Doces Bárbaros estava, artisticamente, sendo re/trans/elaborada através


do interfaciamento da Bahia ancestral de Caymmi, da imagem de nascedouro do Brasil,
das negras velhas e mães-de-leite, aliadas à percepção da modernidade que chegava pela
emergência de novos modelos estéticos de afirmação negra, do trio elétrico, das alterações
do sistema viário na cidade do Salvador, na modernidade do shopping Iguatemi, do Pólo
Petroquímico de Camaçari e da presença hippie. Enquanto Salvador se tornava cada vez
mais próxima de uma cidade grande nos moldes do centro-sul do país, Os Doces Bárbaros
dimensionavam musicalmente novas representações de Bahia.

Não é imediato pensar que estes artistas elaboraram um projeto de veiculação do


social através de sua música. Para usar o vocabulário de Giddens (1989), não podemos
afirmar que os agentes deliberaram puramente a partir de uma consciência discursiva. O
que se depreende da arte de Caetano, Gil, Gal e Bethânia em Os Doces Bárbaros é uma
atuação que traz elementos da sociedade baiana em estado de estetização. A indumentária
124

do show é caracterizada por signos que vão das saias hippies e colares do candomblé a
collants de dança moderna, postos em cena num roteiro ousado, cujo impacto resultava
menos do apuro técnico de quatro artistas já considerados que da intensidade artístico-
social do show/disco/filme.

Caetano e Gil aparecem artisticamente com uma masculinidade ambivalente – um


negro e um mestiço; dois baianos que, ao lado de duas baianas vestidas como hippies da
praia de Arembepe, travestidas como iaôs do candomblé, são de um apelo enfático nas
referências que de imediato criava uma impressão de alegoria100. O momento em que, no
vídeo, vemos Gilberto Gil dançando e passeando pelo palco ao lado de Caetano na
performance de uma espécie de história negra do rock – Chuck Berry Fields Forever –
como um dançarino lembrando Lennie Dale101 é marcante deste trânsito identitário
proposto neste acontecimento. Com cenários do carnavalesco Flávio do Império, uma
mistura de picadeiro de circo com céu de festa junina, percebe-se um forte apelo nas
roupas, confeccionadas para representar o orixá de cada um dos integrantes.

O próprio Caetano, em entrevista à Folha On line, no final de 2002 afirmou que Os


Doces Bárbaros tinha interesse em imitar os Novos Baianos102, como uma “civilização
inventada”, e que os trajes étnicos compunham essa idéia. A visita de Baby Consuelo e
Paulinho Boca de Cantor ao grupo num dos shows, como se pode ver no filme Os Doces
Bárbaros (1977), é especialmente significativa, principalmente quando a própria Baby
reconhece na atuação de seus colegas uma similaridade com o ambiente criado pelos
Novos Baianos no cenário da música popular brasileira. Por outro lado, Bethânia, ao
comentar o show de comemoração dos Doces Bárbaros em 2002, revela haver
experimentado a mesma sensação daquele pedido de liberdade, aquela maneira de dizer:
sou livre, do primeiro encontro...103, o que pode ser compreendido como uma revisão
crítica da artista e também como certa lembrança do caráter “libertário” que parece ter
acompanhado aquele acontecimento em 1976.

100
Ver Anexo Imagens.
101
Dançarino norte-americano que viveu no Brasil, nos anos setenta e se envolveu em muitos círculos de
cultura popular/midiática, inclusive a música. Seu estilo era associado a uma masculinidade dúbia, como,
aliás, ainda hoje é comum se reportar a muitos dançarinos do sexo masculino.
102
Considerando-se que Os Novos Baianos surgiram em 1969 com uma estética radicalmente hippie e
contemporâneos dos Doces Bárbaros, é interessante perceber que havia um trânsito entre feixes de
formulações de identidade cultural baianas muito fortes em alguns artistas da Bahia nos anos setenta. As
referências à Bahia tanto em Doces Bárbaros quanto em Novos Baianos dão conta de uma trans/configuração
da imagem da Bahia a partir da música. Baianos que são Novos e Bárbaros que são Doces.
103
In: Outros (doces) Bárbaros. DVD. Biscoito Fino, 2004.
125

Comentando o filme e sua importância dois anos depois do acontecimento, assim se


reporta Gil:

O filme possui uma carga de informação meio densa, mas no fim, na última meia hora, ela
flui para um tipo de revista mesmo, uma coisa mais up. Parece que foi bem aceito, tanto em
termos de ocorrência quanto em crítica do público. (...) Eu acho que vai ser um clássico um
dia. Um filme étnico, uma coisa de raça sobre uma tribo, que foi mesmo tudo que a gente
sonhou para os Doces Bárbaros. Não tínhamos a intenção de fazer uma coisa regional,
confinada ao âmbito muito restrito de nossas relações mais privadas. Queríamos que os
Doces Bárbaros fossem uma visão de uma tribo brasileira (Gil, s/d, p.188).

Ao observarmos as afirmações de Gil sobre este caráter étnico do acontecimento Os


Doces Bárbaros e compararmos com a repercussão em certos setores de crítica e imprensa,
como o termo baihunos sugere, podemos compreender que as regionalidades propostas
como textos pelo grupo baiano intencionavam alcançar limites mais amplos, como a
promover um jogo entre as tradições diversas de brasilidade, ou como se fosse da Bahia
para o Brasil, ao mesmo tempo que, englobando o Brasil, numa civilização inventada
(como disse Caetano) doce e bárbara, para tomar termos caros a esses artistas.

Percebe-se ainda, no filme Os Doces Bárbaros, a possibilidade de apreciação, por


exemplo, da performance de Gal e Bethânia interpretando a peça Esotérico (Gilberto Gil)
[AL 068] , numa cena em que os limites entre o amor e hetero e homossexual se diluem em

personagens femininas que estabelecem um diálogo no palco, sugerindo uma relação de


amor. Esse “pedido” de liberdade de que fala Bethânia, vinte e seis anos depois, apontava
também para configurações de identidade particularmente relevantes naqueles anos em que
a revolução sexual normalmente associada aos anos sessenta parecia se consolidar104.

A película é construída sobre os shows realizados no Anhembi, São Paulo, em junho


de 1976 e após a prisão de Gil, quando re-estreiam no Canecão, Rio de Janeiro, em agosto
do mesmo ano. Entre as cenas do espetáculo, há depoimentos dos integrantes do grupo e
de alguns fãs de Florianópolis (em decorrência do episódio da maconha) e a seqüência do
julgamento de Chiquinho Azevedo e Gilberto Gil.

Jon Tob Azulay, como diretor, procura realçar os aspectos festivos, alegóricos e
propositivos de uma liberdade comportamental expressa tanto no contexto daquele
acontecimento musical quanto numa espécie de representação coletiva do que seria o ethos

104
No DVD Outros (doces) Bárbaros, as duas cantoras refazem a performance, mantendo um clima que,
entre trocas de olhares e gestos, evoca uma relação de amor, com sensualidade e ternura. Na cena, enquanto
Gal e Bethânia assumem o centro, Caetano e Gil observam num abraço cenicamente muito significativo.
126

dos anos setenta. Percebe-se também uma defesa da figura de Gil, como que a justificar o
uso da maconha a partir de uma demonstração da idoneidade do artista Gilberto Gil,
embora o próprio, que em diversos momentos do julgamento tem expressões faciais
irônicas, assuma a responsabilidade do ato. Em seqüências seguintes, Gil é também
apresentado como um “homem de família” e “responsável”, como na cena do aniversário
de dois anos de sua filha Preta.

As considerações acima não deveriam levar à inferência de que essas cenas somente
foram inseridas com esse objetivo; por outro lado, naquele momento, no plano das
construções de uma identidade de Gil, foi estrategicamente importante mostrá-lo desta
forma. O desgaste que poderia advir da prisão por porte de drogas foi revertido na
representação de uma personalidade doce e amável que tinha alcançado relevância tanto
pelo seu papel no cenário artístico brasileiro quanto por ser um indivíduo “correto”105.

Deste modo, são muitos os ícones revolvidos nas teias de significação – para
reclamar a contribuição de Geertz (1999) – elaborados no acontecimento Os Doces
Bárbaros que remetem ao que chamo de re-volta da tradição. Nesta reunião, Caetano, Gil,
Gal e Bethânia fizeram-se grupo a partir de uma “identidade de grupo” já reconhecida
publicamente. Mesmo nas trajetórias individuais, não havia dúvidas de que se tratava de
um grupo baiano, que transitou por, traçou/assentou e redefiniu limites nas representações
da sociedade baiana/brasileira.

Esta trama de ressignificações parece ter ecoado entre a admiração e louvações por
parte da imprensa e do público e a rejeição de setores da mídia e música. Para Tuzé de
Abreu, flautista e saxofonista do show/disco/filme Os Doces Bárbaros, estes artistas
estavam se consagrando naquele período e percebia-se uma boa receptividade nas
apresentações da turnê106. Entretanto, apesar de ser um momento culminante para as
carreiras, deve-se notar que, além de O Pasquim, alguns artistas como Raimundo Fagner e
Belchior, ambos cearenses, também se posicionavam contra o grupo baiano por acharem
que estes artistas não permitiam que outras expressões fizessem sucesso. Belchior partiu
para um comentário irônico acerca das performances, ao dizer, em Apenas um rapaz

105
Ainda hoje, Gilberto Gil precisa de um wiver (espécie de perdão) para entrar em território norte-
americano, pois seu visto está associado à prisão por porte de drogas. No DVD Kaya’n’Gan’Daya, Warner
Music, (2002) Gil comenta o fato, que o fez atrasar em dois dias a chegada à Jamaica para as gravações de
seu disco com canções de Bob Marley.
106
Entrevista ao autor concedida em abril de 2004.
127

latino-americano, que Caetano seria um antigo compositor baiano, renegando ainda o


“culto alegórico” tropicalista ao dizer que nada é divino, nada é maravilhoso. Em
entrevista a Ana Maria Bahiana e Aloísio Reis, em dezembro de 1976, o próprio Fagner
diz:

Eu soube de histórias incríveis. Entre os próprios baianos, um perguntava ao outro: “Que é


que você acha do cearense?” O outro respondia: “Cearense, que cearense?” Chegaram a
dizer: “O Belchior tem conteúdo, mas o Fagner é só mau-caráter”. Mas eu também falei
deles, por que é que eles não podem falar de mim? Dou toda razão. Eu acho que a briga tá
pra todo mundo. Se pintou o conflito, todo mundo deve se pronunciar à sua maneira
(Bahiana, 1980, p. 213).

Ainda sobre esta querela entre baianos e cearenses, o próprio Fagner diz que havia
uma panelinha de baianos na gravadora Phonogram. Pondera que o trabalho deles é
maravilhoso, embora também diga que os baianos têm de entender que a música evolui, e
que é fatal que cheguem novos grupos e novas linhas (...) acho que os baianos já tiveram o
seu tempo107. Além de Belchior, Fagner e O Pasquim, o teórico e crítico de arte José
Ramos Tinhorão negou-se a dar qualquer declaração mais elaborada sobre o encontro,
limitando-se a dizer à época: espero não ver108. Sua recusa é coerente com sua expressa
visão sobre a música brasileira, em que não admite interferências estrangeiras nem
inovações consideradas de inspiração exógena. O pesquisador não reconhece tampouco a
validade da Bossa Nova ou qualquer manifestação que fuja ao rótulo de música nacional,
tal como estabelece em vários de seus escritos.

Voltando às manifestações do grupo baiano, num momento interessante em que


aborda de maneira mais agressiva as críticas feitas pelos cariocas, paulistas e cearenses aos
baianos, Gil coloca a discussão num tom quase incomum para seu temperamento que se
manifesta em geral menos incisivo que o de Caetano:

107
In: Os baianos de novo. Revista Veja, 30 de junho de 1976. São Paulo, Ed. Três, p. 82.
108
Idem, p. 82.
128

É esse tipo de negócios, eles ficam falando baiano, baiano e tal, mas o fato é que a Bahia
tem uma cultura muito rica, com muita tradição, com alma, herdada. E isso a gente herda
mesmo. A gente é bacana, é inteligente, é da pesada e acabou. Eles lá é que inventem os
seus caras da pesada. Nós não estamos querendo ocupar espaço de ninguém. Nós
exigimos apenas é o nosso espaço. Porque o nosso espaço é nosso e foi conquistado com
muito suor, muita luta, com lágrimas, sacrifício e muita injustiça em cima. Então nós vamos
dar isso de graça para eles? Prá qualquer batuqueiro, sambistazinho do Rio de Janeiro,
que vem com esse negócio de “Eu faço samba” e coisa e tal? Não quero saber desse papo
não, tá entendendo? A gente é o que é, e isso foi conquistado com muito esforço. A gente
vai lá... Vou lá na Suíça e provoco explosões. Boto quatro mil caras para entrarem num
som da pesada e entram mesmo. Cantam, dançam, se divertem. E saem dali conseguindo
a coisa maior, religiosa que a gente quer conseguir com a música. E os caras vem para
cá... Vão à merda, tá entendendo? (...) João Gilberto já denunciava isso há muitos anos.
Eles têm essa inveja reprimida, meio calada contra os baianos. (...) Panelinha uma banana.
Aquele negócio de Fagner dizer que Caetano não fala nele nas entrevistas... Qual é a
obrigação que Caetano tem de falar de Fagner? Se ele ainda fosse um gênio, coisa que ele
não é. Esse tipo de coisa. É um artista legal, a gente faz muita força, mas... Eu, por
exemplo, iniciei a minha última entrevista à revista Veja dizendo: “ Eu quero é Mel”, que é
uma frase de Luiz Melodia. Quer dizer, estou dando uma força pra ele me identificando com
a forma dele pensar, com a poesia dele. Eu me identifico com tudo. (...) Não é qualquer
boboca que chega por aí fazendo duas ou três músicas e acha que a gente tem que sair
dizendo que ele é genial não. Gênio é Moraes Moreira, que é bom mesmo e acabou.
Agora, é baiano? Ora, e daí? O que eu posso fazer?
In: Correio da Bahia, 23 de janeiro de 1979. Citado em Gil, Gilberto. Expresso 2222. Org.
Antônio Risério. Salvador. Ed. Corrupio. S/d, p. 221-222.

É neste cenário emaranhado e contraditório das reações despertadas pela presença


deste grupo que podemos perceber as canções Os mais doces Bárbaros [AL 069]; Fé cega,
faca amolada [AL 070]; Nós, por exemplo [AL 071]; O seu amor; Gênesis; Um índio [AL 072]
e outras como alguns elementos de uma “dança do moderno” presente neste acontecimento
musical. Todas estas são peças que conotam invasão, corte profundo e ancestralidades
retomadas e lançadas para um futuro além da conjuntura em que estavam109.

Tanto as referências à Bahia quanto ao Brasil são postas em questão por caminhos
poético-musicais que seguem uma via diferente da militância artístico-política dominante
no período. As metáforas são exemplares de uma subjetividade sutilmente marcada por
signos nos quais o social e o individual estão vinculados mediante as atuações no mundo.
Temos remissões às liberdades individuais e comportamentos sexual-afetivos (O seu
amor); ancestralidade e atualidade de ícones mítico-religiosos (As Ayabás110 e Oração a

109
Gil, no texto do programa do show Os Doces Bárbaros (1976), comenta: Tem “Um Índio” que é uma
profecia, tudo no futuro.
110
Nesta canção, os quatro artistas se revezam, cantando para os orixás femininos Iansã, Oba, Ewá e Oxum,
com destaque para a interpretação em uníssono de Gal e Bethânia cantando o trecho que se refere a Iansã.
Entre o som dos atabaques e a letra evocando os caracteres míticos do santo, os vocais simulando o ilá (grito
de guerra) deste orixá faziam parte da cena, remetendo a uma ressignificação marcante, em que duas
mulheres trajadas como se estivessem numa praia da Bahia evocavam, juntas, uma entidade cuja
129

Mãe Menininha) e identidades afro-americanas em composição (Chuck Berry Fields


Forever), entre outras.

Em São João, Xangô Menino (Gilberto Gil/Caetano Veloso), por exemplo, há o


encontro de duas tradições identitárias contíguas, mas não necessariamente contínuas em
território baiano: uma cultura de interior, mais voltada aos folguedos nordestinos do São
João, e a tradição dos orixás do Recôncavo. Há nesta peça um sincretismo proposto pelos
autores que reconhece na cultura popular a integração destes ícones, aqui colocados na
mesma ambiência de invasão e festa dos Doces Bárbaros.

Viva São João, viva o milho verde


Viva São João, viva o brilho verde
Viva São João das matas de Oxossi
Viva São João
Viva São João, viva Refazenda
Viva São João, viva Dominguinhos
Viva São João, viva Qualquer Coisa
Viva São João, Gal canta Caymmi
Viva São João, Pássaro Proibido
Viva São João

Gilberto Gil e Caetano Veloso


In: São João, Xangô Menino, LP Doces Bárbaros, Polygram, 1976.

Como se pode observar, é uma celebração destes encontros culturais e das carreiras e
realizações do grupo baiano, bem ao estilo dos Doces Bárbaros.

Pode-se perceber o impacto histórico deste encontro a partir dos re-encontros


comemorativos, em três ocasiões:

• Em 1994, a partir de uma homenagem oferecida pela Escola de Samba Estação


Primeira de Mangueira, foram realizados dois shows, no Rio de Janeiro e em
Londres, além dos artistas terem desfilado na Escola. A quantidade de matérias
jornalísticas publicadas no período atesta a força, inclusive midiática, que a
união destes artistas ainda possui.

representação corresponde emblematicamente à mulher forte e decidida, que irrompe e domina com a força
dos raios e tempestades. Percebe-se uma feminilidade que se pode compreender também permeando novas
configurações do feminino a se situar na sociedade brasileira, nos anos setenta. Neste mesmo show, a peça
Oração a Mãe Menininha, de Dorival Caymmi, era lembrada como referência de aspectos mais tradicionais
da Bahia, como o poder das matriarcas yalorixás, como é o caso de Dona Menininha do Gantois.
130

• No carnaval baiano de 2001, Caetano, Gil, Gal e Bethânia foram convidados


para uma homenagem a Dorival Caymmi, interpretando composições suas num
trio elétrico.

• Em 2002, com o patrocínio da rede de supermercados Pão de Açúcar,


realizaram-se shows individuais e encerrou-se o projeto Pão Music com um
acontecimento em São Paulo e no Rio de Janeiro. Este espetáculo tornou-se
base para um documentário em DVD dirigido por Andrucha Waddington –
Outros (doces) Bárbaros (2004) – que promoveu uma revisitação
espetacularizada por parte dos artistas daquele encontro inicial de 1976.
Também em 2004, o filme original de 1977 foi relançado em algumas salas de
exibição no Brasil, com cenas que não haviam sido liberadas pela censura.

Desta forma, o acontecimento Os Doces Bárbaros comparece como uma página


fundamental no esboço de uma sociologia das práticas musicais no Brasil que não apenas
leve em conta a importância dos sujeitos e das ações enquanto submetidas às estruturas
sócio-históricas, mas também dê conta da complexidade da relação entre indivíduos e
formação social. Não se extrai da obra artística aqui considerada conhecimento útil às
ciências da sociedade se não se parte do pressuposto de que temos singularidades situadas
espacio-temporalmente que atuam e, assim, são relevantes para a dinâmica social.

O que se pode afirmar, para além do acontecimento Os Doces Bárbaros e tomando-o


como referência principal na constituição deste objeto de pesquisa, no trabalho de Caetano,
Gil, Gal e Bethânia, uma tradição consagrada e nuclearizada em torno da noção de Bahia
passa a ser reconfigurada, para dar lugar a novas conformações de identidade cultural,
numa luta simbólica que, a partir do campo artístico, se projeta para outras esferas no
plano do comportamento, ou em outras esferas do espaço social (Bourdieu, 2004).
Vejamos:

Mas quando eu voltei de Londres falava-se muito no "morro da Gal, nas dunas do barato" e
constatei que Gal Costa tinha criado uma moda, um modo de ser, de vestir, de usar o
cabelo.
Foi mais ou menos nesta época que 'O Pasquim' começou a reclamar como quem reclama
contra a raça. Aliás, uma das canções mais lindas dos Novos Baianos dizia: "Saindo dos
prédios para a praça, uma nova raça..."
Depois, todo mundo viu, na televisão, o Chico Anísio fazendo uma imitação do baiano e eu
acho que ele fazia muito bem, de um modo bonito. De maneira que a gente, aos olhos dos
outros, já era, sem saber, os Doces Bárbaros.
131

Vocês, que me lêem, já ouviram falar em 'supergroups'? Pois bem, Doces Bárbaros é um
subgrupo. No sentido de um grupo étnico. Ha-ha-ha-ha!
E agora eu pergunto a mim mesmo: como será a nossa cara? Queremos ser Doces
Bárbaros assim como o doce de jenipapo é um doce bárbaro! Gilberto Gil disse que ele é
cocada-puxa e que eu sou 'amada', um doce que se faz na Bahia usando gengibre, farinha
de mandioca e rapadura.
Para mim, Gal Costa é centro. O meio de tudo. A voz. A voz da qual nós (inclusive ela -
todos os bárbaros doces) somos apenas vozes.
Mas que horda é esta que vem do planeta terra Bahia, todos os santos?
Está bom. Os ensaios estão bem calmos, nos divertimos e cantamos canções cantáveis. E,
para finalizar, não há nada que eu possa dizer sobre qualquer um de nós que ajude a me
dar, a te dar, a dar a todo mundo uma idéia do que seremos.
Caetano Veloso
In: Revista Ele e Ela nº 86, junho de 1976.

Ao se comemorarem dez anos do grupo baiano, a afirmação de Caetano dá a


dimensão de uma propositividade no sentido de também apresentar uma formação artística
referendada num imaginário sobre a Bahia em nova conformação, seja pelos Doces
Bárbaros, seja pela presença contemporânea dos Novos Baianos. Caetano parece
reconhecer que sua presença e dos companheiros baianos tinha atingido um patamar mais
abrangente que aquele de músicos, numa acepção mais específica.

Ao assumir um discurso sobre o termo doces, Caetano parece também querer


extrapolar sentidos e provocar a imprensa que os associou à barbárie, como que, em
entrelinhas, se posicionando neste lugar de “bárbaros” e “doces”. Ao mesmo tempo, a idéia
de grupo, colocada de maneira mais concreta num espetáculo de comemoração, faz com
que uma Bahia promovida por esta “horda” tenha que ser aceita no contexto de uma arte
produzida industrialmente por estes artistas.

Através das fontes consultadas, incluindo depoimentos destes agentes, podemos


afirmar que Caetano, Gil, Gal e Bethânia vêm trabalhando elementos de identidade cultural
nas suas práticas artísticas há quase quatro décadas. O acontecimento (show, disco, filme)
Os Doces Bárbaros, em 1976, surge como uma interface de suas carreiras e um momento
privilegiado para se contemplar, numa mesma cena, sua atuação ressignificando a Bahia.
Com trajes que evocam orixás, performatizando temas que vão da ancestralidade mítica ao
som do Carnaval trieletrizado, passando por identidades negras em construção, Os Doces
Bárbaros trouxeram para o âmbito da música uma Bahia que se re/trans/posicionava,
polarizada entre o tradicional e o moderno nas representações correntes.
132

Essa proposição de tratamento das temáticas que se remetem à brasilidade comparece


também numa cena interessante, já em 2002, no re-encontro gravado em DVD. Em um dos
ensaios, Bethânia propõe que, como citação ao samba-de-roda Santo Antônio (Jota
Veloso), seja cantada pelos quatro a peça Baianada (Gordurinha) [AL 066] que pode ser lida
ao mesmo tempo como resposta e como provocação às representações tradicionais do
baiano no eixo sul do país, sugestão que é logo aquiescida por Gal. Vejamos:

Eu queria na hora da viola cantar: (Bethânia)


“Um baiano, um coco”.
Dois baianos, dois cocos
Três baianos, uma cocada
Quatro baianos uma baianada”
Ah! Eu juro que queria! (Bethânia)
Ah! Legal, sim, vamos fazer! (Gal)
In: Outros (doces) Bárbaros. DVD, Biscoito Fino, 2004.

Como vemos, as posições no campo (Bourdieu, 2004) ocupadas por estes agentes são
de especial importância para a compreensão do campo de possibilidades em que se
situavam e que permitiu a execução de projetos (Velho, 2003) ao longo das trajetórias
consideradas. Pode-se observar, também, a legitimidade que suas atitudes foram
progressivamente assumindo, no campo mesmo caracterizado pela polêmica. Isto parece
fundamental aos efeito de compreender a construção de narrativas identitárias
emblematizadas nas práticas musicais de projeção midiática vigorosa, como se vê na obra
desses artistas. Esse grupo baiano, ao ressignificar singularmente representações sociais a
partir da capacidade metafórica presente na arte musical, figura como um caso exemplar
tanto da capacidade criativa que a arte tem de apreender e expressar fenômenos e processos
sociais, quanto das repercussões dos ícones pop da música sobre os contextos sociais em
que seus trabalhos são configurados. Após este acontecimento, suas carreiras continuaram
a tematizar, entre outros elementos, ícones baianos, também transitando entre o tradicional
e o moderno, como veremos no próximo item.
133

4.3 CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES


EM TORNO DA EXPERIÊNCIA DE OS DOCES BÁRBAROS

As trajetórias de Caetano, Gil, Gal e Bethânia encaminham-se paralelas e singulares


após o acontecimento Os Doces Bárbaros, e as referências à Bahia continuam reafirmadas
e reconfiguradas no âmbito do binômio tradição/inovações, ao ritmo de cada uma dessas
trajetórias. Por se tratar de um item cuja importância histórica se mostra mais evidente, o
tom de crônica assume a dianteira nesta seção, embora a relevância seja de elementos que
fundamentem as interfaces de Bahia nas carreiras destes artistas, após o acontecimento de
1976.

Caetano prossegue, em 1977, com o espetáculo Bicho Baile Show, cuja sonoridade
remete tanto a minimalismos estéticos quanto ao forte apelo à dança. Esta fase foi criticada
por parte da imprensa, que via aí uma “alienação” do artista, ao instigar a todos no sentido
de dançarem, como na faixa Odara (Caetano Veloso) [AL 073], em que o termo iorubá
aparecia vinculado aos fenômenos da cultura discothéque que aportava no Brasil via São
Paulo e Rio de Janeiro111. Nesse mesmo ano, ao lado de Gil, vai à Nigéria participar do
Festival de Arte Negra, tornando-se a canção Two Naira fifty Kobo (Caetano Veloso)
emblemática de sua aproximação com as estéticas africanas modernas.

Por sua vez, Gil traz o álbum Refavela (1977), cuja temática gira em torno das
construções de identidade dos negros brasileiros, passando da favela carioca ao emblema
do afro-baiano do Ilê Aiyê, ou mesmo ao criar um arranjo com uma dinâmica mais
próxima do som afro-pop americano que da Bossa Nova, como em Samba do Avião (Tom
Jobim). A Bahia comparece como referência de uma negritude brasileira ao mesmo tempo
ancestral, com a presença da peça Patuscada de Gandhi (Afoxé Filhos de Gandhi) [AL 074]
e em modernização, com Ilê Aiyê (Paulinho Camafeu). Um afoxé e um samba a mostrar as
pontes estéticas entre o afro religioso dos Filhos de Gandhi e o movimento de afirmação
política negro da recém criada agremiação.

111
Neste período, os críticos da postura de Caetano chamaram-no e a Carlos Diegues, que na época falava de
uma certa patrulha ideológica das chamadas esquerdas revolucionárias, de patrulha odara, em referência ao
clima happy da canção.
134

Bethânia faz um disco em estúdio entremeado de poemas, Pássaro da Manhã (1977),


trazendo na capa uma indumentária que transita entre um exagero de adereços e a
referência a Menininha do Gantois. No encarte, um camarim que parece um barracão de
santo. Gal busca recuperar públicos hippies do início dos anos setenta e lança um trabalho
recortado por estéticas diversas, Caras e Bocas (1977), que não alcança tanto êxito, além
da gravação de Tigresa (Caetano Veloso) e Negro Amor (Bob Dylan/Caetano
Veloso/Perinho Albuquerque). No show, aparecia com um figurino que quase a travestia
de hiponga. A artista afirma hoje que não se interessa por aquela fase, considerada
equivocada112.

O disco Muitos Carnavais (1977), lançado por Caetano, numa incursão pelas canções
de carnaval baianas entre as marchas e os frevos eletrizados, como Atrás do trio elétrico,
Chuva, suor e cerveja [AL 075] e Qual é baiana?, todas de autoria própria, estabelece um
momento de afirmação mais direta do artista em relação à produção musical carnavalesca,
que ocupa boa parte da sua trajetória. Um dos versos de Tropicália – eu organizo o
carnaval... – faz referência a esse traço distintivo dos interesses de Caetano, sobretudo ao
tratar o tema Bahia em sua obra.

Em 1978, Caetano lança o disco Muito, considerado fraco pela imprensa e cuja capa
traz sua mãe a acariciá-lo ao colo, como uma matriarca bem ao estilo do modelo familiar
cultivado e publicizado pelos Veloso. As faixas Sampa [AL 076] e Terra [AL 077], de muito
sucesso, são particularmente interessantes no que diz respeito à construção identitária, ao
abordar a megalópole na visão de um poeta interiorano e ainda realizar uma reflexão
existencialista que desemboca numa Bahia caymmiana de sacadas de sobrados113. São
João, Xangô Menino, do repertório dos Doces Bárbaros, tem outra gravação num registro
mais contido que na execução anterior, ao vivo.

Com Maria Bethânia, realiza o show Maria Bethânia e Caetano Veloso (1978), que
resulta num disco registrado durante a exibição do espetáculo. As faixas Adeus, meu Santo
Amaro [AL 078] e Tudo de novo [AL 079], ambas de Caetano, reiteram a tradição –
inaugurada na mídia – de uma pequena cidade do Recôncavo que sedia a formação de uma
espécie de clã, a partir do sucesso alcançado pelos irmãos famosos. Em versos como:
Minha mãe, meu pai, meu povo / Eis aqui tudo de novo / A mesma grande saudade, a

112
In: www.galcosta.com.br. Acesso em 15/10/2002.
113
Remissão à peça Você já foi à Bahia? (Dorival Caymmi), num trecho de Terra (Caetano Veloso).
135

mesma grande vontade, minha mãe, meu pai, meu povo / Minha mãe me deu ao mundo de
maneira singular / me dizendo uma sentença / Pra eu sempre pedir licença / Mas nunca
deixar de entrar114, Caetano celebra assim a familiaridade emblematizada nas imagens
dessa microrregião que logrou se estabelecer em diversos âmbitos midiáticos, juntamente
com Salvador, como a Bahia. Essa familiaridade e a freqüente remissão a Santo Amaro
marcam sua performance, em diversos momentos como este, ao lado de Bethânia.

Após o show/disco Refestança (1977), com Rita Lee, que representou um encontro de
imagens tão libertárias quanto o acontecimento Os Doces Bárbaros, Gil realiza três
projetos em 1978: um disco com o paulista Germano Mathias – Antologia do samba choro
–, seu primeiro trabalho internacional (já na gravadora Warner); o álbum Nightingale, de
sonoridade especialmente híbrida, com sambas, maracatus jazzisticamente estilizados e
canções do Refavela revistas em arranjos mais pop; e sua ida ao Festival de Montreux,
resultando num disco ao vivo.

Num dos trabalhos mais populares de sua carreira, Bethânia lança Álibi (1978), que
lhe valeu o primeiro disco de platina, trazendo um dueto celebrado por imprensa e público,
constando em diversas coletâneas: Sonho Meu (D. Ivone Lara/Délcio Carvalho) [AL 080]
com Gal Costa, em que as duas baianas se reúnem celebrando o samba carioca.

Com Água Viva (1978), Gal Costa começa uma fase de peças que se remetem a um
cancioneiro dos anos cinqüenta sobre as referências tradicionais da brasilidade, como em
Olhos Verdes (Vicente Paiva) [AL 081], em direção ao canto de Dalva de Oliveira e
festejando uma Bahia de saborosos cambucais e mulatas cor da mata. Mantendo sua
tradição de ecletismo de repertório, Folhetim (sua primeira gravação de Chico Buarque) e
Qual é, baiana? (Caetano Veloso) apresentam uma cantora que aposta na sensualidade e
na imagem de mulher madura e sedutora, entre Carmem Miranda, as meninas a transitar
pela praia do Porto da Barra e as cantoras de jazz norte-americanas, como se desdobra em
trabalhos posteriores, como o famoso show/disco Gal Tropical (1979), proposto por
Guilherme Araújo para transfigurá-la numa intérprete (tra)vestida como a
rumbeira/baiana/pomba gira, como sugerem as suas aparições neste período. As faixas
Preta do acarajé (Dorival Caymmi) [AL 082] e O bater do tambor (Caetano Veloso)
[AL 083] permitem o cotejamento de duas identidades baianas; uma corresponde à baiana

ancestral, mercando acarajé, à noite, pelas ruas da cidade do Salvador, enquanto a outra

114
Trechos de Tudo de novo (Caetano Veloso).
136

corresponde aos sons de tambores que são ouvidos por entre o elétrico do trio, aspecto
moderno da cultura desta Bahia dos anos setenta115.

O disco Gal Tropical representou um marco na sua carreira, tendo o show ficado um
ano e dois meses em cartaz com lotação quase que completa todas as noites, ou seja, um
momento muito importante da trajetória de Gal.

O álbum Mel (1979) é uma continuidade na fase mais popular vivida por Maria
Bethânia. O estilo apaixonado de interpretação, dado a rompantes, se consolida em faixas
como Grito de alerta (Gonzaguinha) e Loucura (Lupicínio Rodrigues). Embora Bethânia
afirme a intenção de que o show Mel fosse muito mais um recital que um espetáculo de
teatro116, correspondeu à consagração radiofônica da artista em função de sua característica
dramaticidade.

Caetano lança Cinema Transcendental (1979), com imagens de praia na capa, de


Salvador no verão, Rio de Janeiro da Zona Sul e Santo Amaro dos bondes de tempos
antigos. Lua de São Jorge e Oração ao Tempo [AL 084] se destacam como sucessos nesse
álbum. Há ainda Os meninos dançam (uma homenagem aos Novos Baianos), além de
Beleza Pura e Trilhos Urbanos, as duas últimas ambientando-se na negritude afirmativa
nascida nos anos setenta em Salvador e na historicidade santamarense. Nesse disco de
Caetano, vêem-se duas Bahias interfaciadas, a do interior e do litoral do Recôncavo. A
remissão ao Ilê Aiyê e aos Filhos de Gandhi, em Beleza Pura, correspondem a uma
convergência de duas gramáticas de afirmação da negritude no âmbito do Carnaval de
Salvador. Os elementos de uma nova estética musical e visual a que poderíamos chamar o
afro são aí exaltados.

Gil dá vazão ao seu desejo de experimentações sonoras mais voltadas ao brilho e à


purpurina de Realce (1979), inaugurando uma fase de negritude pop que se estabelece a

115
Sobre esta fase da carreira de Gal, vale ler o trecho da matéria de capa da revista Veja: “Logo, e como
convém a uma estrela, no topo de uma escadaria frisada de néons coloridos. Os aplausos quase abafam os
primeiros versos do ‘Samba Rasgado’, que começa a cantar. Sim, porque ali está a gloriosa retribuição por
tanta fila e tanta expectativa. Esguia, decotadíssima, uma rosa cigana nos cabelos, as pernas visíveis entre
escarnados babados à la rumbeira, Gal Costa, bela como jamais esteve, desce então os degraus para envolver
a platéia num rito de amor. Gingando com surpreendente segurança sobre saltos altíssimos, Gal solta a voz
em agudos desconcertantes, vai ser cabrocha, moleca cheia de malícia, preta do acarajé. É verdade que, como
já fazia antes, ainda cruza o palco em alucinante velocidade, cobrindo os 14 metros da boca de cena em dez,
doze vigorosas passadas. Mas, na marcação que exibe agora, não há nada mais que lembre a fase em que
instituiu, como sua marca registrada, estertorosas convulsões, caída no chão”. In: Revista Veja, fevereiro de
1979. São Paulo. Ed. Abril., 1979.
116
Depoimento no DVD Maricotinha Ao Vivo, Biscoito Fino, 2002.
137

partir da faixa-título, de Toda Menina Baiana, Sarará Miolo e Logunedé117 [AL 085], entre
outras. Caymmi é revisitado numa estética samba/jazz/funk com Marina (Dorival
Caymmi) em arranjo tão inovador quanto polêmico. Este álbum foi criticado por uma
espécie de “facilidade pop” reportada por diversos setores da imprensa e mesmo entre os
artistas. Caetano chegou a esboçar comentários negativos e depois se desculpar por uma
não aceitação, a princípio, da estética ali exposta118. Por outro lado, comentários como o de
Luiz Carlos Maciel revelam outras compreensões relativas às identificações contidas no
trabalho:

Mais uma vez, nos últimos anos, a evolução da arte de Gil apresenta uma íntima sintonia
com a experiência da geração: os anos 70 marcaram uma tendência à retratação e ao
aprofundamento interior: esse movimento, contudo, engendra sua resposta dialética na
retomada da ação coletiva. A adoção da parafernália eletrônica nos trabalhos recentes
(Realce, Luar) deve ser compreendida nessa perspectiva. Neles, como no tempo do
Tropicalismo, Interessa a Gil a arte participante. Ele quer, acima de tudo, permanecer
ligado à experiência efetiva de seus contemporâneos.
In: Gilberto Gil MPB Compositores (EP e Fascículo). São Paulo. Ed. Abril, 1982.

Estes aspectos polêmicos do disco são somados à introdução mais efetiva do reggae
em maior escala na música brasileira, através da gravação de Não chore mais, versão de
Gil para a peça No woman, no cry (B. Vincent), de Bob Marley. Suas relações com o
reggae-pop são aprofundadas com os shows que realiza com Jimmy Cliff, em 1980.
Quando interrogado sobre sua atração pelo gênero musical jamaicano, em 1978, diz Gil:

Me atrai pelo coração. Pela identidade física. Como me atraem o reggae, a Jamaica,
aquela cultura, como a Bahia me atrai, o Recife me atrai (Gil, s/d, p. 193).

Em 1980, Maria Bethânia lança o álbum Talismã. Entre faixas de Gilberto Gil,
Gonzaguinha e Marina, é nesse ano que participa de um especial da Rede Globo chamado
Mulher 80, com outras cantoras nacionais, celebradas na trilha sonora do seriado Malu
Mulher119. Nos trechos Eu gosto de ser mulher / Sonhar, arder de amor / Desde que sou
uma menina / De ser feliz ou sofrer / Com quem eu faça calor / Esse querer me ilumina120,
Bethânia reafirma posições sobre o feminino que se encerram na sua obra. Aqui se nota

117
Composta em homenagem ao orixá a quem Gil se reporta como seu.
118
Anos depois, quando do lançamento do disco Velô (1984), Caetano declara à imprensa que agradece a Gil
a existência de Realce, que teria lhe inspirado a realizar seu show/disco naquele período.
119
Estrelado por Regina Duarte, pretendeu estabelecer com mais centralidade o feminismo na teledramaturgia
brasileira.
120
Trechos de O lado quente do ser (Marina/Antônio Cícero). Joyce é outra compositora que tematiza o
feminino e é interpretada por Bethânia; é o caso de Da cor brasileira (disco Mel) e posteriormente Mulheres
do Brasil (disco Maria, 1988).
138

uma mulher feliz com a condição e pronta para os enfrentamentos da vida, como parece ser
a postura publicizada por Bethânia desde os tempos iniciais de sua trajetória artística.

Gal aposta na obra de um único compositor como tema do disco Aquarela do Brasil
(1980), interpretando Ary Barroso. Sua presença torna a evocar uma similaridade com
Carmem Miranda, quando, entre os agudos e arranjos modernizados de Perna Fróes e a
guitarra de Victor Biglione, se percebe um Brasil enaltecido e exaltado, como em Aquarela
do Brasil e Faceira [AL 086]. Nesta última, o imaginário de mulata lasciva que seduz
poderosamente os homens pode ser compreendido na mesma esteira em que se nota aquilo
que Geraldo Pereira denominou, nos anos cinqüenta, de falsa baiana, ao tratar de uma
baiana que não sambava, ou seja, não era “faceira o suficiente”, como na peça de Ary
Barroso. Gal interpreta, desta forma, um ideal de mulher baiana/brasileira muito mais
próxima de um senso comum sobre a feminilidade – principalmente se colocarmos em
paralelo com a produção artística de Bethânia e outras intérpretes, como Ângela Rô Rô e
Joanna, em ascensão neste período. Nesta fase de Gal, conjugam-se Bahia, mulher e
Brasil, numa tríade consagrada na música popular brasileira desde o lundu e a modinha até
produções mais recentes.

Em 1981, dá-se o encontro fonográfico entre Gil, Caetano e João Gilberto. O trabalho
de nome Brasil reuniu os discípulos manifestos e a figura da Bossa-Nova que inaugurou
uma nova maneira de canto no Brasil. Maria Bethânia participa do disco cantando No
tabuleiro da baiana (Ary Barroso). O samba Bahia com H [AL 087], de Dennis Brian, é um
dos maiores sucessos do álbum, evocando a Bahia nos seus aspectos considerados mais
tradicionais, como é comum nas composições deste paulista.

A Bossa Nova de João Gilberto se encontra com a música de Caetano, Gil e Bethânia,
numa reiteração de um lugar da Bahia no campo da música a partir de alguns seus agentes
notabilizados pelo êxito diante da mídia. Assim como se pode estabelecer uma ponte entre
o grupo baiano e a axé music, observa-se essa ponte possível entre este grupo e João
Gilberto, como fazem perceber não somente este disco, mas também os diversos
pronunciamentos destes artistas na imprensa.
139

Gal Costa obtém comentários negativos sobre o show Fantasia121 (1981) e lança um
álbum homônimo cujos grandes sucessos são Canta Brasil ( Alcyr Pires Vermelho / David
Nasser) e Festa do Interior (Moraes Moreira), um frevo eletrizado anda hoje lembrado
como marca da carreira de Gal. Caetano compõe Meu bem, meu mal e Massa real [AL 088]
– mais um frevo – para esse disco. Mais uma vez, um imaginário de baiana aos moldes de
Carmem Miranda se contempla aí. Na abertura do show, um carro alegórico a conduzia da
coxia ao palco, num misto de teatro de revista e elementos de uma estética americana da
Broadway, considerados “exagerados” por parte da crítica.

Caetano trabalha com a poética barroca/contemporânea a partir da colagem proposta


em Outras palavras, faixa-título do disco de 1981. Mostrando-se entre uma cauda de
pavão e um dourado cintilante na capa e falando de cultura negra baiana, inicia a década
de oitenta em apresentações que despertavam especial atenção pela relação com os
músicos de sua banda. Nesta fase, era relativamente comum vê-lo beijando e acariciando
seus músicos, numa espetacularização da fluidez dos comportamentos masculino e
feminino, percebida em sua obra desde a Tropicália.

Na verdade, eu pessoalmente acho que deve haver mais carinho entre os homens, mais
carícia, os homens se beijarem, se abraçarem, se alisarem. E há muito mais hoje. Nos
ambientes que eu freqüento, mesmo pessoas que eu nunca vi se beijam e tudo. Agora, a
homossexualidade não tem mistério. Todo mundo tem, todo mundo é homossexual, eu
acredito nisso. Ou você conhece a sua ou é levado, por circunstâncias, a travar contato
com ela.
In: Revista Ele Ela, maio de 1981. Entrevista a Lúcia Leme, citada em FONSECA, 1993, p.
45-46.

Trazendo no cabelo uma pintura de meia lua e estrela, Gil continua sua incursão pelo
eletro-eletrônico com a musicalidade de Luar (1981), que resulta num filme – Corações a
Mil – registrado durante a turnê. Segundo o compositor, Luar seria uma imitação de Rita
Lee122, numa referência ao som rocker e universalizado produzido por sua companheira
dos Mutantes. A negritude de Axé Babá (Gilberto Gil) [AL 089] e do ijexá pop em Palco
(Gilberto Gil) [AL 090] são exemplos da tradição modernizada na estética de Gil sobre a
figura do negro. Neste período, a Assembléia Legislativa da Bahia faz uma homenagem a

121
Elis Regina solidarizou-se com Gal neste sentido, traçando um paralelo entre essas críticas e os
comentários lançados sobre o show Falso Brilhante, realizado pela própria Elis em 1976. Em 1981, Elis
ainda participou do especial da Globo que tinha Gal como tema.
122
In: Gilberto Gil MPB Compositores (EP e Fascículo). São Paulo. Ed. Abril, 1982, p. 6.
140

Gil, que vai recebê-la usando uma bata africana e com a estrela e a lua pintadas no
cabelo123.

A capa do disco Alteza (1981) traz Bethânia representando uma iaô, molhada numa
trilha de terra, portando uma talha, evocando assim uma ancestralidade afro-baiana que se
desdobra na faixa Caminho das Índias (Moraes Moreira). Realiza ainda o show Estranha
Forma de Vida, novamente dirigida por Fauzi Arap. Com Bibi Ferreira, Bethânia faz uma
parceria para o show Nossos Momentos, cujo registro se encontra em disco lançado em
1982. A canção-título é de Caetano, que grava com Djavan a faixa Sina – um ijexá – no
disco Cores Nomes (1982), em que Caetano interpreta Coqueiro de Itapuã (Dorival
Caymmi) [AL 091] e Um canto de afoxé para o bloco do Ilê (Caetano Veloso/Moreno
Veloso) [AL 092], duas referências à Bahia. Na primeira, remonta a uma tradição
consagrada; na segunda, associa-se à nova linguagem de afirmação da negritude que se
estabelecia no Carnaval de Salvador, o afro124.

Gil faz o show/disco Um Banda Um (1982), com destaque para faixas como Andar
com fé [AL 093] e Afoxé é [AL 094], de sua autoria. São poemas e sonoridades afeitas ao
universo nordestino/baiano/afro, um investimento deste artista no início dos anos oitenta.

Gal traz para o público o disco Minha voz (1982), cantando o frevo baiano Bloco do
prazer (Moraes Moreira/Fausto Nilo) [AL 095] e Pegando fogo125 (José Maria de
Abreu/Francisco Mattoso), dando prosseguimento à sua trajetória de intérprete de canções
de carnaval, que se mantém por mais alguns discos.

Bethânia se mostra interessada em mudar características reconhecidas de seu trabalho


no final dos anos setenta e, em 1983, lança o disco Ciclo, com arranjos acústicos para
peças de Moraes Moreira, Gilberto Gil, Gonzaguinha e Caetano Veloso. O disco traz ainda
Filosofia Pura (Roberto Mendes/Jorge Portugal) [AL 096], uma chula do Recôncavo,
inaugurando uma interpretação quase que constante, a partir de então, de composições do
conterrâneo Roberto Mendes. A faixa conta com a participação de Gal Costa e é dedicada
ao pai126 de Bethânia.

123
Ver Anexo Imagens.
124
O que remonta à proposta de Gil em Refavela, ao gravar Patuscada de Gandhi e Ilê Aiyê.
125
Devido ao sucesso, esta peça foi lançada numa versão em espanhol, pela própria Gal.
126
Seu Zezinho falece no final de 1983.
141

Fadada ao desaparecimento, uma vez que apenas um violeiro da região conhece ainda
todas as maneiras de pontear os violões e criar a cadência, a chula do Recôncavo foi
pacientemente assimilada pelo violonista Roberto Mendes, de Santo Amaro da Purificação,
que cuidou de aprendê-la e manter vivo o acervo. (...) A participação de Gal Costa, além de
obviamente enriquecer o resultado final, liga-se a componentes emocionais profundamente
enraizados e que têm aflorado em determinados momentos marcantes para Bethânia. (Cf.
a gravação de “Sol Negro”, em 1965; “Oração à Mãe Menininha”, em 1973, etc.)
In: Encarte do LP Ciclo, 1983, Polygram.

O disco Ciclo coincide com Uns (1983), álbum de Caetano em que o vemos, na capa,
ao lado de seus irmãos Rodrigo e Roberto, quando adolescentes. A canção Quero ir a
Cuba (Caetano Veloso) [AL 097] aponta semelhanças entre Bahia e Havana, como em
Mamãe eu quero amar / A ilha de Xangô e Iemanjá / Yorubá igual a Bahia. O cenário do
mar do Porto da Barra é evocado na peça Salva Vida (Caetano Veloso) [AL 098]. A beleza
do ambiente de verão de Salvador se soma à de uma figura masculina a protagonizar cenas
naquele espaço: Místico pôr-do-sol no mar da Bahia / E eu já não tenho medo de me
afogar / Conheço um moço lindo que é salva-vida / Vida / Um da turma legal do Salvamar.
Interessante notar que, em outros momentos, a praia e o sol típicos da Bahia tropical
evocada inclusive no discurso turístico são tema de peças de Caetano, como em Farol da
Barra (Galvão/Caetano Veloso)127 e Qual é baiana? (Caetano Veloso).

Em 1972, ao falar de sua relação com Caetano, Gil compôs Ele e eu [AL 099],
referindo-se ao comportamento dos dois também no Porto da Barra. O que se depreende
daí é um reconhecimento daquele lugar como um ícone de identidades baianas ligadas à
tropicalidade e ao sensual, uma Bahia urbana, moderna e marcada pelo signo do prazer.
No álbum Extra (1983), essa Bahia sensual volta à cena em Elá, poeira [AL 100]. A
sonoridade que flerta com o reggae, o funk e o samba (híbridos e negros, como salienta Gil
desde o final dos anos setenta) passa por letras que também se referem à festa e a
movimentos sociais e de comportamento. São desse disco Punk da periferia, Funk-se quem
puder, Mar de Copacabana e Lady Neide128 (Gilberto Gil/Antônio Risério) [AL 101].

127
Gravada pelos Novos Baianos.
128
A faixa Lady Neide traz como tema a figura de Neide, proprietária do Zanzibar, um ponto de encontro de
intelectuais e artistas de Salvador na virada dos anos oitenta. A letra fala de uma africana-baiana-negra-sexy,
como parece ser a imagem cultivada entre seus admiradores..
142

Poeira iá iá, Maria


Leva um dia pra assentar
Por causa dessa magia
Que você deixa no ar

Você quando rodopia


É pior que um furacão
Ainda bem que é de alvenaria
Que é feito meu barracão

Gilberto Gil, Ela, Poeira, LP Extra, Warner, 1983.

Gal Costa faz um show em que se veste de rumbeira para cantar Dora (Dorival
Caymmi), além de Bahia de todas as contas (Gilberto Gil) [AL 102], em Baby Gal (1983).
Neste período, Gal e Tom Jobim são convidados para gravar a trilha sonora do filme
Gabriela, dirigido por Bruno Barreto. As reportagens da época salientavam o encontro
entre Gal e Tom como significativo, principalmente em se tratando da personagem de
Jorge Amado, que já havia sido contemplada com trilha para a TV interpretada por Gal.
Com Sônia Braga e Marcello Mastronianni nos papéis de Gabriela e Nacib, o filme teve
produção internacional. No disco, Gal protagonizou canções como Origens [AL 103] e
Tema de amor de Gabriela, ambas de Tom Jobim, retomando a associação à figura de
Gabriela que vinha desde a telenovela homônima, de 1975.

Ainda em 1983, Caetano, Gil e Gal se apresentam em Roma, numa noite dedicada à
música brasileira, com artistas baianos. Ao lado de Dorival e Nana Caymmi, João Gilberto,
Armandinho, Moraes Moreira, Walter Queiroz, do grupo folclórico Viva Bahia e do
percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, os artistas do grupo baiano protagonizam
um acontecimento de ampla repercussão à época, resultando num filme – Bahia de todos
os sambas – dirigido por Sérgio Saraceni e Leon Hirzsman, apresentado em 1997 no
circuito cinematográfico brasileiro.

É a Roma Negra – a que se referiu Caetano, uma conversa com Caymmi – invadindo a
Roma antiga, com seus novos modos e novos olhares. É um momento grandioso,
registrado, novamente, com simplicidade e fidelidade pelos dois cineastas. Tudo somado,
transforma Bahia de todos os sambas num a obra que está além das escolas definidas. É o
documento de um momento.
In: Jornal A Tarde, 28/07/1997, Cad. 2, p.3.

Em 1984, Cacá Diegues filma o projeto Quilombo, em que Gil e Wally Salomão
respondem pela música. O universo criado pelo cineasta para tratar do tema da negritude é
apropriado para canções como Zumbi, a felicidade guerreira [AL 104] e Quilombo, ambas
de Gil e Wally. Pode-se situar a Bahia, neste momento, como estabelecendo um horizonte
143

de referência ancestral/mítica, tendo como ícones mais evidentes os Orixás, o Brasil


colonial, o desenvolvimento da cultura nagô, que na película é central. Como salienta
Santos (2000), o patrimônio seria negro na origem e baiano na definição, não precisando
que explicitamente haja remissões ao cenário Bahia, para que este território esteja presente
quando se abordam temáticas relativas ao componente negro do Brasil. No filme e na
trilha, a ancestralidade baiana comparece, portanto, como subtexto com relação à narrativa
principal.

Caetano estréia o show Velô (1984), que resultou num disco de estúdio com
sonoridade aos moldes do rock brasileiro dos anos oitenta. O visual gráfico da capa traz
uma foto entrecortada por grafismos geométricos, emoldurando canções como Podres
Poderes, Comeu e Sorvete. A peça Língua, de sua autoria, se destaca como incursão pelo
rap, com a participação de Elza Soares.

Bethânia traz o show A hora da estrela (1984), inspirado na obra de Clarice Lispector,
a base para o disco A Beira e o Mar, do mesmo ano. Canções como A Beira e o Mar
[AL 105] e Esse sonho vai dar, de Roberto Mendes e Jorge Portugal, traçam uma conexão

Nordeste e Bahia; duas chulas/sambas-de-roda/emboladas cujas letras falam de vitórias,


sonhos e amores produzidas para a interpretação de Bethânia por dois compositores que
emergem na cena musical em íntima associação com a obra desta artista.

As sonoridades do reggae e do rock dos anos oitenta tomam a dianteira no show/disco


Raça Humana (1984), em que Gil aprofunda relações com a estética jamaicana, gravando a
faixa Vamos fugir (Gilberto Gil/Liminha) no estúdio Tuff Gong, em Kingston. Entre rocks
como Extra II e Feliz por um triz, Tempo Rei [AL 106] faz uma remissão ao tempo, tal como
visto pelos baianos, na ótica de Gil.

Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos

Gilberto Gil, Tempo Rei, LP Raça Humana, Warner, 1984.

O autor revela que fez essa canção pensando em Caetano, como versão para a
questão colocada em Oração ao tempo, em que a frase-chave para mim é: “Quando eu
tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido” – quer dizer: o tempo
144

desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos


desinventados, portanto (Gil, 1996, p. 285).

A faixa Mão da limpeza (Gilberto Gil) [AL 107] traz um discurso sobre a questão
étnico-racial num tom de resposta ao preconceito no Brasil, a partir do mote de que “preto,
quando não suja na entrada, suja na saída”. Assim:

Ocorriam-me imagens de lavadeiras lavando roupa nas beiras de rios, inúmeros, por que
eu passei no interior da Bahia e outros lugares; de cozinheiras negras, jovens e velhas,
espalhadas pelas cozinhas do Brasil; de várias faxineiras limpando as casas. (...) Quer
dizer, os negros são tão maciçamente empenhados na função da limpeza da comunidade e
acabam sendo acusados de ser os sujões (Gil, 1996, p. 288).

O disco Profana129 (1984) tem na faixa Vaca Profana (Caetano Veloso) o destaque,
correspondente a uma Gal atenta ao rock brasileiro e interpretando sucessos juninos, com a
participação de Luiz Gonzaga130, que celebra, na faixa Tem pouca diferença (Durval
Vieira), que as baianas sabem das coisas..., reconhecendo em Gal uma Bahia mais
próxima do Nordeste, pelo viés da festa e da alegria. Gil, Wally Salomão e Frejat
compõem O revólver do meu sonho [AL 108], com letra que trata de Arembepe e de uma
Bahia mais eletrizada e rock’n’roll, entre hippies e praias alternativas.

Gil se apresenta no Rock in Rio e lança Dia Dorim Noite Néon, em 1985. A faixa
Touche pas à mon pote (Gilberto Gil) é um ijexá pop composto como hino anti-racismo
francês, que figura ao lado de Oração pela libertação da África do Sul131 (Gilberto Gil)
[AL 109] e Barracos (Gilberto Gil/Liminha). Incursões de Gil por “temáticas sociais”

naquele Brasil de redemocratização.

Em 1986, Caetano Veloso estréia na TV Globo um programa ao lado de Chico


Buarque. Chico e Caetano era uma possibilidade de encontro de artistas das mais variadas
cepas da música popular. De Tim Maia a Renato Russo, passando por Paulinho da Viola e
Mercedes Sosa, Chico e Caetano rendeu à Globo um momento considerado no mínimo
especial, como se comenta ainda hoje. Naquele ano, o projeto Luz do Solo convida alguns

129
Primeiro disco de Gal Costa pela gravadora BMG.
130
Interessante perceber que, no disco Raça Humana, Gil gravou Vem Morena (Luiz Gonzaga/Zé Dantas).
Gal gravou Tem pouca diferença (Durval Ferreira) e, em A Beira e o Mar, Bethânia canta ABC do Sertão (Zé
Dantas/Luiz Gonzaga). Três, dos quatro artistas do grupo baiano registraram, de uma maneira ou de outra,
homenagens a Luiz Gonzaga, na mesma época.
131
Esta canção foi gravada anos mais tarde pela Banda Reflexu’s, um dos mais famosos grupos baianos do
final dos anos oitenta, de uma fase da música de carnaval da Bahia em que a negritude era colocada de forma
mais emblemática a partir das questões sociais. É o período da emergência e configuração pop do samba-
reggae.
145

artistas a montarem espetáculos de voz e violão, um dos quais origina o disco Totalmente
Demais, em que Caetano interpreta sucessos como Amanhã (Guilherme Arantes) e Vaca
Profana.

Gil apresenta seu show no projeto Luz do solo também em 1986, além de gravar a
trilha sonora do filme Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos. A faixa Jubiabá (Gilberto
Gil) [AL 110] é destaque, tratando do personagem de Jorge Amado, de uma Bahia da
marginalidade representada em parte das obras deste escritor. Ainda neste ano, Gil é
convidado a participar da festa do movimento SOS Racismo, na França, como
reconhecimento à sua posição e sua representatividade nas questões relativas a etnicidade,
já naquele período.

Bethânia lança o disco Dezembros (1986), com canções de Tom Jobim, Chico
Buarque e Milton Nascimento, além da faixa Yorubahia (Roberto Mendes/Jorge Portugal),
um momento em que Bethânia contempla a negritude soteropolitana nos versos de
Portugal; Ala dos alabês / alados Ilês / banto Gantois / ruas por onde andei / cantando
encantei /encanto a cantar / menina me ninei / sonhos que sonhei / castelos no ar / sons
dos maculelês / é tudo que sei / de tudo que há. O ijexá emoldura a letra que celebra a
Bahia negra e encontrada na tradição ancestral africana. A morte de Menininha do
Gantois, em 1986, é lembrada com a peça Estrela do meu céu (Toninho Horta/Caetano
Veloso). A religiosidade afro-baiana compõe o imaginário em torno de Bethânia desde a
década de setenta, tanto por remissões visuais (colares, amuletos e outros signos do
candomblé por ela utilizados), quanto por sua devoção confessa aos Orixás e a Mãe
Menininha.

Em 1987, Gil toma posse na Fundação Gregório de Mattos, em Salvador, além de


gravar a trilha sonora do filme Um trem para as estrelas, de Cacá Diegues. Mais três
álbuns são lançados nesse ano; Gilberto Gil em Concerto e Gilberto Gil ao Vivo em Tóquio
(comercializado a princípio no Japão), com releituras para peças suas já consagradas132. O
disco Soy loco por ti, América tem lançamento realizado para o mercado internacional,
incluindo a canção Jubiabá.

Com faixas de sucesso como O Ciúme (Caetano Veloso) e Fera ferida (Roberto
Carlos/Erasmo Carlos), o disco Caetano (1987) traz ainda a canção tradicional dos
132
Essa temporada, em que Gil se apresentou no Japão, causou certa polêmica por conta de suas remissões à
Bahia sem considerar explicitamente a brasilidade.
146

candomblés baianos Iá Omin Bum [AL 111], executada com atabaques, numa referência
homenagem ao Orixá Oxum e à então esposa de Caetano, Paula Lavigne. Depois que o Ilê
passar (Miltão) [AL 112] é outra remissão de Caetano ao universo da negritude baiana.

Bethânia elabora um disco com uma mulher negra na capa – representando todas as
Marias do mundo, segundo depoimento da artista à época. Maria (1988) é um trabalho em
que a artista se envolve com a sonoridade africana moderna, fundindo Bahia e África na
faixa Ofá (Roberto Mendes/Jota Veloso) [AL 113], introduzida pela vinheta do samba-
reggae133 E a Terra tremeu (Sacramento) [AL 114]. A figura mítica de Oxóssi é posta ao
lado da poética dos blocos afro de Salvador, num raro momento de aproximação de
Bethânia com a estética do carnaval contemporâneo de Salvador. Cabe ressaltar que
Carlinhos Brown (grafava-se Brau) comparece como percussionista neste álbum134.

Eleito vereador em Salvador135, Gil mantém uma continuidade com suas experiências
musicais afro-pops – com funks, reggaes, sambas e ritmos híbridos – em O Eterno deus
Mu Dança (disco de 1989). Faixas como Baticum (Gilberto Gil/Chico Buarque) [AL 115] e
Réquiem prá Mãe Menininha do Gantois (Gilberto Gil) [AL 116] são destaques; uma trata
da industrialização da cultura, outra uma homenagem à Iyalorixá falecida anos antes.

Caetano explora uma estética rocker/experimental num disco produzido pelo músico
Arto Lindsay. Estrangeiro (1989) tem na faixa-título e em Branquinha [AL 117], um samba
ao estilo Bossa Nova, dois momentos complementares da poesia do autor. Tem-se a
exploração da arguta crítica social/existencial de uma e a ambiência afetiva – em que
Caetano se auto-refere como um velho baiano, um fulano, um Caetano, um mano
qualquer... – encontrada na relação com a esposa. A peça Meia-lua inteira (Carlinhos
Brown) [AL 118] integra a trilha sonora da novela Tieta, da Rede Globo, e é um dos grandes
sucessos radiofônicos daquele ano. Desse período é também a emergência do Candeal136

133
O termo indica o gênero musical plasmado no final dos anos oitenta, a partir da percussão orquestrada
pelo Maestro Neguinho do Samba e, segundo o próprio (em entrevista ao Programa Bahia Revista, de 30 de
janeiro de 2005), foi batizado por Paul Simon quando este veio à Bahia para gravar faixa e clip de seu álbum
naquele período. Em contrapartida, o pesquisador Milton Moura afirma que o nome samba-reggae já era de
uso comum nos ensaios do Olodum e do Muzenza, outro bloco afro de Salvador.
134
Bethânia se reporta a esse período quando fala da participação de Brown como compositor no disco
Âmbar (1996), dizendo; Brown sempre disse que queria ser um artista internacional. É bacana isso!.
Entrevista a Maria Cristina Poli, Programa Metrópolis, TV Cultura, 1996.
135
Seu mandato foi intensamente criticado, inclusive em decorrência de ter se ausentado da Câmara diversas
vezes para realizar shows.
136
Trata-se do Candeal Pequeno, um dos mais pobres setores do bairro de Brotas, em Salvador. A
emergência da Timbalada visibilizou o local e ainda hoje são geradas controvérsias em torno da importância
147

como lugar dos ensaios da incipiente Timbalada, que se plasma definitivamente no início
dos anos noventa. Caetano comparece aos ensaios e vincula sua imagem à figura de
Brown.

Bethânia canta composições de Gerônimo – Salve as folhas (com Ildásio Tavares)


[AL 119] e Guerra no Mar – além do samba-de-roda (com estilizações de samba-reggae)

Reconvexo (Caetano Veloso), no disco Memória da Pele (1989). Como se pode notar, a
aproximação entre Bethânia e a música baiana pós-anos oitenta vem se dando através
daqueles artistas que investem mais nos temas da tradição afro, mais propriamente do
candomblé.

Em 1990, Gal Costa volta a gravar um disco após o fracasso de Lua de Mel como o
diabo gosta (1987). O álbum Plural137 mostra uma cantora que parece querer se
representar como sofisticada e ao mesmo tempo popular, cantando o clássico Cole Porter e
Beto Jamaica, do Olodum, que viria a formar anos depois o grupo Gerasamba. O samba-
reggae baiano entra vigorosamente neste trabalho, celebrado pela crítica como uma
redenção da artista em relação ao insucesso anterior. Adornada com uma coroa de tecido,
lembrando uma rainha afro, Gal era conduzida pelos músicos percussionistas no show.
Vejamos:

Uma Gal Costa com ares de Elis Regina surpreende o público no show Plural, em cartaz no
Palace, em São Paulo. (...) Em vez de lançar mão de sucessos consagrados, Gal se apóia
num repertório pouco conhecido, embora ele inclua monstros sagrados e gênios da música
popular brasileira, como Noel Rosa e Lamartine Babo. Com essa pirueta, Gal, aos 44 anos,
pretende seduzir o público não pela empolgação, mas pela técnica, apostando tudo em sua
exuberância vocal. Consegue seu intento. Em Plural, ela demonstra que hoje, mais do que
um vulcão em cena, é uma excelente cantora. (...) Na terceira parte, Gal conta com a
participação dos percussionistas do bloco baiano Olodum para dar uma amostra da música
forte e mestiça que se faz na Bahia atualmente. Assim, ela interpreta sucessos regionais,
como Salvador não inerte e Ladeira do Pelô, incluídas em seu último LP, e contracena com
a divertida coreografia improvisada do Olodum, cujos percussionistas se mexem no ritmo
da música. João Gabriel de Lima. In Revista Veja, 20/06/1990, extraído de
www.galcosta.com.br, acesso em 21/10/2004.

Uma das faixas que se remetem à Bahia de maneira interessante é A Verdadeira


baiana (Caetano Veloso) [AL 120]; uma espécie de resposta a Falsa Baiana. Caetano fala
de som trieletrikitch, e que a verdadeira baiana sabe ser falsa, num arranjo concebido no

da figura de Brown e de artistas associados naquele lugar. Lá se localiza hoje o estúdio Ilha dos Sapos, um
dos mais requisitados na cidade para gravações musicais.
137
O disco Plural (1991) é importante aos efeitos da ressonância da musicalidade dos blocos afro de
Salvador na obra de Gal. Em 1999, a cantora associou-se ao governo estadual baiano e municipal
soteropolitano nas comemorações dos 450 anos da fundação de Salvador.
148

disco de Gal como uma rumba com percussões emblematizadas com a música de Salvador
no início dos anos noventa. Gal, que já interpretara a falsa baiana de Geraldo Pereira, neste
momento incorpora a baiana modernizada, soteropolitana que samba quando quer, nos
versos de Caetano.

Maria Bethânia comemora vinte e cinco anos de carreira com Maria Bethânia 25 anos
(1990). Com participações de João Gilberto, Almir Satter e Nina Simone, o disco conta
com a faixa Awô (DP)/As Ayabás (Gilberto Gil/Caetano Veloso), interpretada por
Bethânia, Gal Costa, Alcione e Mãe Cleusa do Gantois, num momento em que – ao som de
samplers de trovões e atabaques gravados no Terreiro do Gantois – há uma evocação
polifônica de Oyá-Iansã, e portanto de uma Bahia mitológica, da ancestralidade étnica e
religiosa.
Iansã comanda os ventos
E a força dos elementos
Na ponta do seu florim
É uma menina bonita
Quando o céu se precipita
Sempre o princípio e o fim

Gilberto Gil e Caetano Veloso. As Ayabás. In: Maria Bethânia 25 anos, Polygram, 1990.

Caetano Veloso, em 1991, traz ao público o disco Circuladô , cujos silêncios e pausas
fazem parte da estética semi-acústica e relativamente minimalista deste trabalho. Uma
crítica social em O cu do mundo, de sua autoria [AL 121], apresenta uma Bahia em que o
cujo faz a curva / este nosso sítio / do crime estúpido / criminoso só / substantivo comum /
o fruto espúrio reluz / a sub-sombra desumana dos linchadores, num momento de reflexão
sobre a sociedade baiana/brasileira do início dos anos noventa. Caetano compôs essa
canção se reportando ao número de linchamentos no Estado da Bahia. A mesma Salvador
se encontra na faixa Neide Candolina, em que diz e a cidade / a Bahia da cidade / a
porcaria da cidade tem que reverter o quadro atual / pra lhe ser igual, ou seja reclamando
uma Bahia menos desigual e injusta. O samba-de-roda Boas vindas (Caetano Veloso)
propõe a recepção a seu filho Zeca, nascido nesse período, para uma Bahia menos
agressiva que aquela das outras duas faixas.

Gil lança Parabolicamará em 1992, tendo a faixa título sido tema da novela Renascer,
da Rede Globo, ambientada em Ilhéus, cujo enredo girava em torno de trabalhadores
braçais, coronéis do cacau e sensualidade/sexualidade envolvendo baianos(as) e paulistas.
Este álbum traz uma sonoridade afro-pop amadurecida, em que elementos da world music
149

são configurados, entre ijexás, sambas, funks e desdobramentos de uma estética perseguida
por Gil desde o final dos anos setenta. Serafim (Gilberto Gil) [AL 122] é uma peça em
homenagem ao orixá Exu, adornada por instrumentação elétrica equilibrada com a
pulsação afro-baiana tradicionalmente ouvida nos ambientes de terreiro.

Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai Xangô


Eparrei, ora iêiê – pra Iansã e mãe Oxum
“Oba bi Olorum Koozi”: como Deus não há nenhum.

Gilberto Gil, Serafim, LP Parabolicamará, 1992, Warner.

Em Quero ser teu funk (Gilberto Gil/Liminha/Dé) [AL 123], a importância da Bahia
para o samba carioca é reclamada, como a rememorar os tempos de Donga, João da Baiana
e Tia Ciata, em versos como Mesmo que São Paulo te xingue / porque te cobiça o suingue,
o mar, a preguiça e o calor / lembra da Bahia, que um dia / Já mandou Ciata, a tia / Te
ensinar kizomba nagô. Em Buda Nagô, Dorival Caymmi é homenageado com o samba
cantado ao lado de sua filha Nana – ex-mulher de Gil –, como a figura mítica maior entre
os baianos.

Bethânia lança o disco Olho d’água (1992), sem muito sucesso midiático, mas com
remissões interessantes à ancestralidade afro-baiana. Faixas como Vida vã (Roberto
Mendes/Jorge Portugal), Louvação a Oxum (Roberto Mendes/Ordep Serra) [AL 124] e
Búzio (Roberto Mendes/Jota Velloso) revelam-se nítidas nesta referência. A capa traz
Bethânia adornada com um bracelete de serpente dourada e uma cachoeira estampada na
contra-capa, num apelo visual comum a diversos trabalhos da artista.

Caetano faz o show/disco/vídeo Circuladô Ao Vivo (1992), aproveitando para


comemorar seus cinqüenta anos, com cenas no candomblé do Gantois e em Santo Amaro,
em que apresenta seu filho recém-nascido Zeca à árvore do orixá Iroko e relembra as
reminiscências do canto de sua mãe138 como a fundamentar sua trajetória. Mais uma vez, o
texto identitário aí apresentado se insere no eixo da familiaridade/ancestralidade
tradicionais de uma Bahia do Recôncavo do interior.

Como continuidade ao disco/show Plural, Gal grava um álbum em 1992 – Gal – com
peças do espetáculo anterior e a inclusão de É d’Oxum (Gerônimo/Vevé Calazans)
[AL 125], com participação do Afoxé Filhos de Gandhi. As faixas Revolta Olodum (José

138
Caetano traça da relação com o cantar de D. Canô desde Genipapo Absoluto (disco Estrangeiro), em que
diz: minha mãe é minha voz.
150

Olissan/Domingos Sérgio) [AL 126] e Raiz (Roberto Mendes/Jota Velloso) promovem o


encontro das Bahias afro-moderna e épica dos blocos afro de Salvador e da Bahia mítica
dos Orixás, no caso numa homenagem mais explícita ao Orixá Omolu, que Gal assume
como seu. O disco se inicia e conclui com uma vinheta de atabaques e voz da cantora,
entoando cânticos tradicionais de terreiro, em yorubá.

A Tropicália é relembrada por Caetano e Gil com um CD – Tropicália 2 (1993) – e


shows que percorrem algumas cidades brasileiras com um repertório em que a
musicalidade brasileira, do samba ao rock, comparece como a atualizar a antropofagia
proposta no movimento tropicalista, vinte e cinco anos antes. Falando da importância de
suas figuras para o carnaval da Bahia, tratam de se referendar no próprio tropicalismo:

A importância de Caetano no carnaval da Bahia é citada, e ele se posiciona com modéstia:


“Ajudei um pouquinho, mas não sei até que ponto”. (...) “Eu acho que o carnaval baiano se
misturou muito com o rock pela própria vocação da música elétrica. O Tropicalismo trouxe
muito essa união e o elétrico de Armandinho foi muito influenciado pelo heavy metal” Gil
reforça: “A música Atrás do trio elétrico já tinha aquele solo internacional baiano, misturava
as duas coisas, guitarra baiana com linguagem londrina”
In: Jornal A Tarde, 29 de janeiro de 1993, cad. 2, p.8.

Neste trabalho, além das influências do/para o carnaval, como em Nossa Gente
(Roque Ferreira) [AL 127], sucesso do Olodum e da versão aos moldes do grupo Timbalada
da peça Wait until tomorrow (Jimi Hendrix), há a crítica social de Haiti (Caetano
Veloso/Gilberto Gil), comentada pela imprensa e com clip no programa Fantástico, da
Rede Globo, como conclusão de uma matéria revisionária sobre o Tropicalismo.

O sorriso do gato de Alice (1993) é lançado por Gal Costa como um trabalho em que
o conceito reside na gravação de quatro compositores com peças inéditas. Gil, Caetano,
Jorge Ben Jor e Djavan são interpretados, entre funks, sambas e blues considerados pela
crítica muito bem adequados àquela fase de Gal. Lavagem do Bonfim (Gilberto Gil)
[AL 128] e Alkahool (Jorge Ben Jor) remetem aos ritmos afro-pops e à temática da

identidade cultural baiana, como se apresenta na peça de Gil. A canção Bahia, minha preta
(Caetano Veloso) [AL 151] faz uma homenagem à Bahia, aos seus aspectos tradicionais e
modernos, tratando inclusive a axé music como uma expressão importante da música
popular.
151

Fiz para Gal cantar. Não ficou muito conhecida, mas é uma canção muito bonita. Faz uma
defesa direta da música de Carnaval da Bahia, da mais comercial, que ficou conhecida
como axé music. Por isso há nela, também, uma briga com o meu querido Waly Salomão,
que tinha falado numa entrevista contra a axé music, esculhambando com aquela “música
vulgar” da Bahia. Ele dizia também que o termo usado para lhe dar nome era um
desrespeito com a palavra “axé”, que significava, em iorubá, entre outras coisas, “segredo”.
E eu, na letra, digo o contrário, e exorto a Bahia a expandir seu axé e “não esconder nada”,
indo, portanto, contra o argumento de Waly (Veloso, 2003, p. 27).

O show O sorriso do gato de Alice causou polêmica por conta da exposição – em


certo momento do espetáculo – dos seios de Gal Costa, que, dirigida pelo controverso
Gerald Thomas, assumia uma postura diferente da que vinha tendo ao longo de outros de
seus trabalhos.

Eu quis incorporar uma atmosfera nova no meu trabalho. Seria muito fácil eu entrar no
palco com a barriguinha de fora, sorrindo, seduzindo a platéia. Eu quis, também, acima de
qualquer coisa, que tudo que estivesse a minha volta, toda a atmosfera em torno me desse
um suporte, por que neste espetáculo eu queria mostrar a essência radical do meu canto.
Mostrar o que eu sei fazer de melhor. Ser cantora. Cantar bem, que é o que eu faço.(...) No
momento em que eu canto Tropicália, fazendo o gesto de mostrar os seios, é justamente
para trazer à memória das pessoas um momento que houve no Brasil de revolução dentro
da música brasileira, que foi o Tropicalismo, que foi uma revolução não só estética do
padrão musical, mas também de comportamento. Quebra de estruturas.
Entrevista de Gal Costa , in: Jornal A Tarde, 14 de abril de 1994, cad. 2, p.1.

Bethânia lança o disco As canções que você fez pra mim (1993), com repertório
extraído da obra de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, com mais de um milhão de cópias
vendidas, relembrando os tempos de Álibi e Mel, seus recordes de mercado. É neste show
que a peça Adeus Bye, Bye, canção do Ilê Aiyê interpretada pela Banda Eva ainda com
Ivete Sangalo, é executada na apresentação em Salvador, deixando surpresos imprensa e
público. O registro ao vivo deste show – Maria Bethânia Ao Vivo139 (1995), – traz
referências à Bahia, principalmente nas faixas Atrás da verde e rosa só não vai quem já
morreu (David Corrêa / Paulinho Carvalho / Carlos Sena / Bira do Ponto) [AL 129], Eu e
água [AL 131], Tudo de Novo e Reconvexo, todas de Caetano Veloso.

Em 1994, a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira presta uma homenagem


a Caetano, Gil, Gal e Bethânia, com o enredo Atrás da verde e rosa só não vai quem já
morreu, citando os quatro artistas como os Doces Bárbaros tematizados naquele carnaval.
Em janeiro desse ano, um show é realizado na quadra da Escola e posteriormente, em
Londres, no Albert Hall, também com a participação da bateria verde e rosa. Esta

139
Este trabalho substituiu a proposta inicial da gravadora de um disco com boleros, rejeitado por Bethânia.
A negociação concluiu-se com este álbum ao vivo e o encerramento do contrato da artista com a Polygram.
152

homenagem é a primeira que lembra o encontro inicial dos artistas em 1976,


entusiasticamente comentado pela mídia impressa e televisiva. Caetano compõe Onde o
Rio é mais baiano [AL 131], traçando uma ponte entre Salvador e Rio a partir das festas
populares, falando do grupo baiano e de Jamelão como presenças baianas no Rio e vice-
versa. Esta composição é uma paráfrase de Onde o Rio é mais carioca, de Zé Kéti e Elton
Medeiros, que fez sucesso nos anos sessenta pela voz de Dalva de Oliveira.

O reencontro em palco dos Doces Bárbaros seria histórico em qualquer hora e espaço.
Mas, ao acontecer no último sábado, dia 15, na quadra da escola de samba Mangueira, no
Rio, ele ganhou ares de celebração religiosa. O programa “Doces Bárbaros na Mangueira”,
dirigido por Roberto de Oliveira, traz a íntegra do espetáculo e cenas da entrevista coletiva,
e do ensaio ocorridos um dia antes. (...) No final, os quatro (mais pretos do que nunca,
depois de férias na Bahia) atacam de “Os mais Doces Bárbaros”, canção alusiva ao show
de 18 anos atrás, Exaltação à Mangueira e o novo samba-enredo da escola. Os baianos
ganharam cadeira perpétua na escola e na história.
In: Jornal Folha de S. Paulo, 22 de janeiro de 1994.

Deste modo, a homenagem da Mangueira salienta tanto aspectos ligados às trajetórias


individuais dos quatro artistas como remissões à Bahia e às posições, naquele momento, de
ícones já tradicionais de um território imaginado no Brasil como uma das sedes do samba,
gênero da maior relevância para o carnaval carioca.

Unplugged (1994) insere Gilberto Gil no rol de artistas brasileiros a gravarem no


formato acústico, pela rede de televisão americana MTV. Registrado na Sala Cecília
Meireles, no Rio de Janeiro, num formato camerístico, este disco/show proporciona ao
artista rever peças como Beira Mar e Realce, esta última em arranjo abolerado e muito
diferente da sonoridade eletro-eletrônica da versão original. A faixa Toda Menina Baiana é
reinterpretada com uma ambiência próxima do samba-reggae pop do carnaval baiano.

Caetano Veloso realiza um projeto – Fina estampa (1994) – com canções hispânicas,
das memórias de sua infância em Santo Amaro e de um tempo em que os boleros,
guarânias e demais gêneros latinos eram ouvidos freqüentemente nas rádios brasileiras.
Logo na abertura do LP, a faixa Rumba Azul (Armando Orefiche) flerta com a música
caribenha e com o ijexá/samba-reggae, num arranjo construído sobre percussões e sopros
muito semelhantes àqueles de orquestras cubanas140 (de onde se origina a composição)
quanto com os naipes de metais de bandas de carnaval baianas. Em 1995, o disco/vídeo
Fina estampa ao vivo é lançado com relativo sucesso de público e crítica.

140
Observa-se uma influência vigorosa da sonoridade caribenha na música de carnaval baiana a partir de
meados da década de oitenta.
153

Gal trabalha o álbum/show Mina d’água do meu canto (1995), com canções de Chico
Buarque e Caetano Veloso; um recital, muito diferente do show anterior. Mais técnica e
preocupada com o alcance da perfeição vocal, a artista inicia uma fase em que sua
inquietação artística passa a dar lugar a um objetivo mais voltado à consolidação do lugar
de diva. Seus cinqüenta anos são celebrados pela imprensa e a sua posição artística à época
é vinculada à maturidade. A faixa Milagres do povo (Caetano Veloso) é gravada neste
disco, como uma remissão a uma Bahia épica da negritude. A canção foi composta e
interpretada por Caetano para a trilha da minissérie da Rede Globo Tenda dos Milagres
(1985), baseada na obra de Jorge Amado.

Em 1996, Bethânia comemora cinqüenta anos convidando alguns compositores de


gerações mais recentes a comporem para seu álbum. Âmbar traz canções de Arnaldo
Antunes, Carlinhos Brown, Orlando de Morais, Adriana Calcanhotto e Chico César, ao
lado de peças de Sílvio Caldas, Vicente Paiva, Caetano Veloso e Ary Barroso. A faixa
Iluminada (Roberto Mendes/Jorge Portugal), originalmente um samba-de-roda
santamarense, ganha arranjo vocal, com três cantoras belgo-africanas, do grupo Zap
Mamma, além de dividir com Chico Buarque a faixa Quando eu penso na Bahia (Ary
Barroso). O desenho gráfico do disco, de Gringo Cardia, interfacia elementos da Índia com
a Bahia; peças que lembram o ouro de Shiva e de Oxum, com peixes, colares de contas,
coroas, fios de palha-da-costa e roupas de cetim. Segundo Bethânia, Gringo soube captar
os meus cinqüenta anos, o fato de eu ser baiana, misturou Índia com Bahia141. Isto
resultou numa capa/encarte reveladores das temáticas principais do disco – luz, Nossa
Senhora e, em conseqüência, na expressão de fé publicizada por Bethânia (Passos, 2004),
Oxum. Mais uma vez, uma Bahia ancestral e senhorial comparece na performance desta
artista.

Caetano e Gal se reúnem para registrar a trilha sonora do filme Tieta do Agreste, de
Cacá Diegues, em 1996. Com a participação de Zezé Motta e da Banda Didá, o disco traz
canções de Caetano e temas incidentais arranjados por Jacques Morelembaum. A Banda
Didá, capitaneada por Neguinho do Samba e formada somente por mulheres, foi
apresentada com especial ênfase por Caetano na divulgação televisiva deste trabalho
conjunto. O filme foi comentado por alguns setores da imprensa, inclusive no aspecto da
reciprocidade entre os baianos envolvidos; um livro de Jorge Amado, com música de

141
Entrevista no programa Sem Censura, TVE, 1996.
154

Caetano Veloso, interpretada por Gal Costa, etc. Quando interpelado sobre a possível
baianidade do disco e as influências do Tropicalismo sobre a geração da axé music, e vice-
versa, responde Caetano:

Claro que sim. No disco Tropicália II, eu e Gil gravamos uma música do Olodum, Nossa
Gente, mais conhecida como “Avisa lá”. Gravei com o Ilê. A Gal gravou com o Olodum. No
caso do filme, eu queria de todo modo que Tieta tivesse o som das ruas da Bahia de hoje.
Me apresentaram às meninas da Banda Didá, que são geniais. Dá conta da relação entre a
atualidade do filme e da Bahia de hoje. Há também motivos tradicionais da Bahia e do
Nordeste, já que Santana do Agreste faz quase fronteira com Sergipe. O refrão de A luz de
Tieta, que alguns jornalistas burros daqui do sul criticaram, faz referência a um refrão do
Olodum (Êta! Êta! Êta! Taratatá!). Lembra? Esse êta! Veio de lá. O que mais adoro nessa
música é justamente o refrão. Ela ecoa a música do Olodum. Depois, trata-se de uma rima
rica, de uma interjeição com um substantivo próprio, além de fazer eco com o refrão do
tema de Xica da Silva, de Cacá Diegues. Mas alguns jornalistas, burros e incultos, acham
que é uma rima pobre.
In: Jornal A Tarde, 13 de setembro de 1996, cad. 2, p. 8.

Neste momento, além das discussões possíveis a respeito das configurações de Bahia,
pode-se contemplar mais uma vez o vínculo de Caetano com o cinema, desde sua
juventude, passando pela experiência de seu filme Cinema Falado (1986), até a
participação constante em diversas produções.

Quanta é o título do disco de Gilberto Gil lançado em 1997, com temática girando em
torno das relações entre ciência, religião e filosofia, com canções inéditas suas e
regravações de seu repertório, além de peças de outros autores, referentes à música
popular, arte e conhecimento intelectual. Opachorô [AL 132] e De Ouro e Marfim [AL 133],
ambas de Gil, são remissões à Bahia no aspecto da religiosidade e da ancestralidade afro-
baiana, sendo a segunda uma homenagem também a Tom Jobim, falecido em 1994. Neste
disco, Gil celebra a tecnologia em Pela Internet [AL 134], uma paráfrase de Pelo telefone,
samba de Donga gravado em 1917.

Maria Bethânia percorre o Brasil com um show em que retoma sua parceria com o
diretor Fauzi Arap. Mais uma vez, Bethânia é tratada pela crítica como intérprete apurada
de temas que vão da passionalidade dos versos de Adelino Moreira, em Negue, ao
regionalismo baiano/nordestino. Se em Viramundo (Gilberto Gil/Capinam) relembra os
tempos iniciais da carreira, com a presença do universo do Nordeste de luta pela
sobrevivência, em Quixabeira (D.P./ Carlinhos Brown/Bernard Von Der Weid/Afonso
Machado) [AL 135], o samba-de-roda do Recôncavo toma a dianteira. Esta canção foi
155

gravada no mesmo período por Bethânia, Caetano, Gil e Gal, no disco de Carlinhos Brown,
Alfagamabetizado (1996).

Caetano lança o disco Livro (1997) no mesmo ano em que publica o livro Verdade
Tropical, fazendo sua versão literária para o Tropicalismo. O disco aposta numa
sonoridade percussiva142. Entre letras que tratam tanto da literatura quanto da figura de
Alexandre Magno – Alexandre (Caetano Veloso) – , há um registro afro-baiano-pop do
poema O Navio negreiro, de Castro Alves. Carlinhos Brown participa, compondo o arranjo
para percussão. Interpretada ao lado de Maria Bethânia, configura-se num tom de grande
eloqüência ao resultado final. As faixas Onde o Rio é mais baiano (Caetano Veloso) e How
beautifuil could a being be (Moreno Veloso) se remetem à Bahia pela letra da primeira e
na musicalidade de samba-de-roda da segunda, com um único verso que se repete entre
palmas, violões e falsetes de Caetano e seu filho mais velho.

Em 1998, com o show Quanta gente veio ver, Gilberto Gil é vencedor do Grammy de
world music, com disco gravado ao vivo, e em que há três faixas-bônus de temática sobre o
carnaval da Bahia. Doce de Carnaval (Gilberto Gil) [AL 136] e Pretinha (Gilberto Gil/Kátia
Falcão/João Donato) [AL 137] se destacam. A primeira traz uma referência às ruas da cidade
do Salvador e às meninas pretas que são cortejadas na festa. Percebe-se aí a fugacidade das
relações durante o período de verão na Bahia, do mesmo modo que os interesses de turistas
de várias partes do mundo que acorrem à Salvador em busca de mulheres nativas. Em
Doce de Carnaval143, é prestada uma homenagem ao som produzido no Candeal, num
arranjo eletrônico, com a participação de Lulu Santos. Lamento de carnaval (Gilberto Gil)
propõe uma reflexão sobre a festa, inserindo-se na polêmica em torno de suas conotações
políticas e respondendo a certo tipo de crítica à fruição do mundo carnavalesco,
freqüentemente emblematizado como baiano por setores da imprensa e das esquerdas.

142
Desde o disco/show Circuladô, Caetano vem inserindo uma sonoridade de percussão afro-baiana,
geralmente executada por músicos do carnaval da Bahia, principalmente do Candeal, de onde Carlinhos
Brown arregimenta seu trabalho como instrumentista.
143
O sub título desta canção é Candy All, numa brincadeira assumida pelo compositor à época com o termo
doce em inglês, além de tudo, como se fosse tudo doce. O trânsito simbólico aí presente é especialmente
interessante.
156

Para muitos é um pecado, ô, ô, ô


Que do imposto que pagamos ao estado
E do lucro que damos ao mercado
Um pedaço seja destinado ao carnaval

Para outros no entanto, ô,ô,ô


Da magia do tambor, da cor, do canto
É que vem o calor que seca o pranto
Em seus olhos já cansados de ver tanto mal

Hoje é dia de folia


Hoje eu canto pra esquecer
Que a escola do bairro está sem professor
Amanhã depois da festa
A cidade que protesta
Entrará pela fresta da porta do corredor
Não adianta fugir
Não adianta fugir, seu doutor
Não adianta trancar a porta
Não adianta fugir, seu doutor

Para alguém neste momento, ô,ô,ô


Sua condição de dor e sofrimento
Deve ser cimentada com o cimento
Do rancor, do desespero e da exasperação

Para um outro, o lamento, ô,ô,ô


Da triste canção levada pelo vento
Pode ser uma luz no firmamento
Uma noite ilustrada em seu coração

Gilberto Gil. Lamento de carnaval, in: Quanta gente veio ver, CD, Warner, 1998.

Nesse período, a presença de Gil no carnaval aumenta consideravelmente, tanto em


virtude de seu interesse pessoal quanto da eficiência de sua empresária/esposa Flora Gil.
Ao lado de Caetano, há uma relação com a festa e os músicos a ela associados. As imagens
desses artistas da nova música baiana remetidas a Caetano e Gil (em alguns momentos,
também é o caso de Gal) podem ser recebidas como reiteração de uma referência de
identidade cultural baiana que coaduna com o discurso oficial do turismo na Bahia. A idéia
de terra da felicidade e do prazer, como se percebe nas representações correntes, é
atualizada nestas trocas simbólicas entre a nova geração da axé-music e artistas baianos
consagrados. Suas presenças como ícones baianos já tradicionais reforça todo um
imaginário alimentado pelos órgãos oficiais de que a Bahia é um lugar paradisíaco, da
alegria e da festa, como se esperaria de um discurso governamental interessado no fomento
do turismo e na consolidação de sua popularidade. Pode-se perceber, então, que as figuras
de Caetano e Gil resultam vigorosas quando remetidas ao universo da música baiana a
partir dos anos oitenta.
157

Gal lança Aquele frevo axé (1998), disco construído para associá-la a uma sonoridade
mais contemporânea, utilizando-se de orquestração eletro-eletrônica. Milton Nascimento
divide a interpretação de A voz do tambor (Celso Fonseca/Ronaldo Bastos). A faixa-título,
de Caetano e César Mendes [AL 138], aborda a mesma fugacidade dos amores de carnaval
comentada anteriormente, tomando a Praça Castro Alves como cenário de um encontro
proporcionado ao som do axé elétrico (como o frevo) do carnaval da Bahia. Assim: Que
fazer, meu coração está preso aquele carnaval / volto a pisar este chão / enceno um drama
banal / tento refazer a trama / mas o desfecho é igual, são versos significativos desta
relação com uma Bahia onde amores se constituem e desfazem na velocidade de uma
cidade para a festa, como se percebe nessas representações singularizadas por Caetano e
Gal neste momento. Incursões pelo universo sincrético de sereias, Araketu e patuscadas de
Gandhi são percebidas na faixa Aguarte Agora (Carlinhos Brown/César Mendes) [AL 139],
um ijexá pop com arranjo permeado pela programação de bateria de Ramiro Musotto144.

Caetano alcança grande sucesso midiático com a gravação de Sozinho (Peninha) no


disco Prenda Minha (1998), resultado ao vivo do show Livro. No álbum, além de Atrás da
verde e rosa só não vai quem já morreu, tema da Escola de Samba da Mangueira, Vida boa
(Armandinho/Fausto Nilo) [AL 140] encerra o trabalho, com um frevo elétrico do carnaval
baiano. Em 1999, lança o disco Omaggio a Giulietta e Frederico, em homenagem ao
cineasta italiano Frederico Fellini.

Bethânia lança o disco A força que nunca seca (1999), com a gravação de Luar do
Sertão (Catulo da Paixão Cearense) e o sucesso sertanejo É o amor (Zezé di Camargo). A
Bahia comparece como referência em Abracei o mar (Vevé Calazans/Gerônimo) [AL 141] e
em Gema (Caetano Veloso), com remissões à percussão do samba-reggae, construída pelo
baterista Marcelo Costa.

“Este é um disco interiorano”, define Maria Bethânia, no disco-release que enviou para a
imprensa. “Ele revela, com meu olhar interiorano, o Brasil, o meu país, particularmente a
minha cidade” (Santo Amaro da Purificação).
In: Jornal A Tarde, 2 de março de 1999, Cad. 2, p.6.

Em 2000, Gal e Bethânia realizam um show, em módulo de projeto especial, de curta


duração, além de dividirem o palco com Luciano Pavarotti, em abril do mesmo ano, em
Salvador, como parte das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil.
144
Este músico vem trabalhando com artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Daniela Mercury desde o
início da década de noventa. É dele a programação de bateria e samplers da faixa Haiti (Caetano
Veloso/Gilberto Gil), que simula um samba-reggae do Olodum para concluir a faixa.
158

Gil concretiza a idéia, já de algum tempo, de se reunir a Milton Nascimento num


encontro em que disse ser entre Bahia e Minas, passando pelo Rio, em depoimentos à
imprensa, na época. O disco Gilberto Gil e Milton Nascimento (2000) rende uma
temporada de shows pelo Brasil e foi muito comentado pela imprensa. A faixa Sebastian
(Gilberto Gil/Milton Nascimento) é um ijexá composto em homenagem à cidade do Rio de
Janeiro, cujo clip mostra os artistas vestidos como dois reis negros, aos moldes das nações
africanas, com motivos populares afro-brasileiros, como numa ponte estética entre a
África, a Bahia e o Rio de Janeiro, através da figura de São Sebastião.

Sebastian, Sebastião
Diante de tua imagem
Tão castigada e tão bela
Penso na tua cidade
Peço que olhes por ela
Cada parte do teu corpo
Cada flecha envenenada
Flechada por pura inveja
É um pedaço de bairro
É uma praça do Rio
Enchendo de horror quem passa
Oô cidade, oô menino
Que me ardem de paixão
Eu prefiro que essas flechas
Saltem pra minha canção
Livrem da dor meus amados
Que na cidade tranqüila
Sarada cada ferida
Tudo se transforme em vida
Canteiro cheio de flores
Pra que só chorem querido
Tu e a cidade de amores

Gilberto Gil e Milton Nascimento. Sebastian, in: Gilberto Gil e Milton Nascimento, CD,
Warner, 2000.

Esta ponte, sugerida sutilmente no clip, se plasma mais efetivamente na gravação de


Ponta de Areia (Milton Nascimento/Fernando Brant), com a referência à ponta de areia,
ponto final / da Bahia-Minas, estrada natural / que ligava Minas ao porto, ao mar /
caminho de ferro / mandaram arrancar.

No mesmo ano, há um reencontro entre Gil e Bethânia, que fazem uma série de shows
pelo Brasil com um repertório que vai de Fé cega, faca amolada, de Os Doces Bárbaros,
até Sem Fantasia (Chico Buarque), numa releitura da peça antes gravada por Bethânia com
o próprio Chico Buarque. As remissões à Bahia se dão principalmente através de canções
de Caymmi e da própria referência ao acontecimento Os Doces Bárbaros.
159

O filme Eu, tu, eles, de Andrucha Waddington, é lançado em 2000, com trilha sonora
interpretada por Gil. Com três peças de sua autoria e baseado em canções do repertório de
Luiz Gonzaga, o show de divulgação da trilha alcançou grande sucesso em uma turnê
registrada no filme-documentário Viva São João (2001), do mesmo diretor.

Caetano lança o CD Noites do Norte (2000), cujo tema central é a afirmação da


negritude brasileira, como se percebe tanto nos desdobramentos das sonoridades
provenientes de seus discos anteriores (pelo menos desde o Circuladô), quanto nas letras
de peças como Zumbi (Jorge Ben), Zera a Reza e 13 de maio [AL 142], ambas de Caetano.
A última trata das comemorações realizadas em Santo Amaro da Purificação no 13 de
maio, quando os pretos celebravam o fim da escravidão, e ainda o fazem, segundo o
compositor prá saudar Isabel, ô Isabé / pra saudar Isabé. A faixa título é um trecho do
livro Minha formação, de Joaquim Nabuco, musicado por Caetano.

Bethânia lança o CD Diamante Verdadeiro em 2000145, como registro do show A


força que nunca seca, num trabalho muito bem divulgado na imprensa. O samba-de-roda
Recôncavo (Márcio Valverde) [AL 143] merece destaque pela resposta em forma de música
à peça Reconvexo, de anos antes.

Num projeto promocional para o Esporte Clube Bahia, o CD Doces Bárbaros Bahia é
lançado em 2000, trazendo os quatro artistas interpretando o hino do clube de futebol e
vinhetas sobre o time tricolor. As imagens de Caetano, Gil, Gal e Bethânia são remetidas
ao acontecimento de 1976 e assim associadas ao Esporte Clube Bahia.

Gal Costa passa por problemas relacionados a sua imagem em 2001, por conta da
aparição em apoio a Antônio Carlos Magalhães, no episódio envolvendo o então Senador
numa fraude política. Seu disco deste ano é adiado pela BMG, e quando é lançado, vem
com a carga de uma exposição negativa proporcionada pelo acontecimento (como já citado
na seção 4.2). De tantos amores traz como faixa-bônus a peça Caminhos do Mar (Danilo
Caymmi/Dudu Falcão/Dorival Caymmi), tema de abertura da novela da Rede Globo Porto
dos Milagres.

Em 2001, Bethânia lança o CD Maricotinha [AL 144], cujo título retira de uma canção
homônima de Dorival Caymmi, que responde, em termos de representações, à baiana
menina e faceira que se incorpora neste momento da carreira de Bethânia. Assim, em
145
Um CD em homenagem à Nossa Senhora da Purificação também chega ao mercado neste ano.
160

versos como diga a Maricotinha que eu mandei dizer que eu não vou / não tô / não vou e
se fizer bom tempo amanhã eu vou / mas se por exemplo chover / mas se por exemplo
chover / não vou, Bethânia assume uma personificação de Bahia caprichosa, quase infantil,
nos seus desejos de menina, como se percebe nos tons das entrevistas deste período.
Promovendo uma revisão de sua carreira, ainda encontra a possibilidade de retornar à
infância em Santo Amaro, celebrada neste trabalho com esta faixa.

Gil faz uma homenagem a Bob Marley no disco Kaya’n’Gan’daya (2002), viajando à
Jamaica para gravar o trabalho e cenas para um DVD lançado no mesmo período. A
relação com a Bahia e o Brasil é percebida nas sonoridades ora a evocar a tradição da
música jamaicana, ora a ressoar ritmos baianos, como no encerramento da peça Waiting in
vain (Bob Marley), em que se ouve um cavaquinho simular uma transição do reggae para o
pagode produzido na Bahia nos anos noventa. O disco é finalizado com Lick Samba (Bob
Marley), numa referência ao modo de vida dos habitantes da zona rural na Jamaica, e
transignificado como elemento de ligação entre o Brasil e a Jamaica.

Caetano se une a Jorge Mautner e num disco/show em que a irreverência reconhecida


publicamente do segundo comparece em faixas como Todo Errado e Urge Dracon. Na
faixa Feitiço (Caetano Veloso), uma resposta ao samba Feitiço da Vila [AL 145], de Noel
Rosa, traça paralelos entre a Bahia dos anos vinte e nos dias atuais, reafirmando o que é o
samba da Bahia para o Brasil.

Nosso samba
Tem feitiço
Tem farofa
Tem vela e tem vintém
E tem também
Guitarra de rock’n’roll
Batuque de candomblé

Zabé come zumbi


Zumbi come Zabé
Zabé come zumbi
Zumbi come Zabé
Tem Mangue-Bit, berimbau
Tem hip-hop, Vigário Geral
Tem meu Muquiço, meu Largo do Tanque
Tem funk, o feitiço decente
Que solta a gente

Caetano Veloso, Feitiço, in: Eu não peço desculpa, CD, Polygram, 2002.
161

Gal lança o disco Gal Bossa Tropical (2002) gravando a faixa Cada macaco no seu
galho (Riachão) e apostando numa sonoridade simples, com apenas quatro músicos a
acompanhá-la, como num “disco de férias”. Pode-se contemplar o clima de verão da
Bahia, como representado coletivamente no imaginário nacional, até na capa, em que Gal
passeia por uma praia no Rio de Janeiro, mas evocando uma identidade baiana (como
salientou durante os shows deste disco) através da guitarra de Armandinho. O show do
reveillon deste ano em Salvador é realizado por Gal, pautada no repertório deste trabalho.
Ao final, pôde-se ver Gal Ivete Sangalo e Margareth Menezes cantando juntas Ari Barroso
e Tenisson Del Rey, com Na baixa do sapateiro e Cabelo raspadinho. Um encontro
interessante aos efeitos das análises de trocas simbólicas ora operadas nesta Dissertação.

Bethânia lança Maricotinha Ao Vivo (2002), revendo diversos sucessos de sua


trajetória e registrando o show em DVD, pela gravadora nacional Biscoito Fino. Em 2003,
grava o CD Brasileirinho, comentado positivamente na mídia e alcançando sucesso com a
visão da artista sobre um Brasil tradicional. No show, promove uma ponte entre este Brasil
e um outro acentuadamente urbano com seus problemas sociais, ao interpretar Miséria e
Comida, rocks do repertório do grupo Titãs. A Bahia de Brasileirinho comparece como o
esteio da religiosidade e da força da ancestralidade, como em Salve as folhas
(Gerônimo/Vevé Calazans), Capitão do Mato (Vicente Barreto/Paulo César Pinheiro) [AL
146], e na épica Yá Yá Massemba (Roberto Mendes/Capinam) [AL 147].

Gal mantém uma linha mais contida nas interpretações no álbum Todas as coisas e eu
(2004) e não tem mais a mesma projeção na mídia que décadas antes. Gil, já como
Ministro da Cultura146, lança um CD ao vivo – Eletracústico –, trabalhando sonoridades
percussivas e elétricas numa ambiência voltada ao experimento com instrumentação

146
A figura de Gilberto Gil toma uma proporção mais diretamente ligada à vida pública. Em 1988, foi
protagonista de uma contenda política com o governador Waldir Pires por conta da pretensão à Prefeitura de
Salvador. Como não obteve o apoio de Waldir, Gil candidatou-se a vereador, elegendo-se e exercendo um
mandato polêmico, muito criticado pelas inúmeras ausências para shows, bem como por depoimentos
demasiadamente irônicos. A disposição de participar diretamente da vida política se manifesta em Gil, hoje,
em termos de uma investidura institucional bem mais radical. Uma referência curiosa e emblemática pode ser
trazida à tona aqui agora, quando, em 1979, Gil responde às críticas aos baianos com uma tirada irônica e
intensificada, considerando-se sua presença atualmente no cenário nacional; Repórter: “Por falar em Glauber,
o que você acha da proposta dele de se colocar um intelectual no Ministério da Educação?” Gil: “Eu achei
legal. A provocação de Glauber eu achei perfeita, porque acabou surtindo efeito. O Eduardo Portela, diga-se
o que disser é um pouco isso. Representa mais ou menos isso. Pode não ser o que o Glauber quisesse, mas de
qualquer forma é uma coisa desse tipo. Estou de acordo com o Glauber. A gente tem que cuidar das coisas da
gente. O mesmo problema da arte industrial é o da arte política. Da mesma forma que ela é industrial ela é
política”. Repórter: “E o Ministro é baiano, né?” Gil: “Pois é. Daqui a pouco vão dizer que foi Glauber que
gritou e já ganhou um ministério para a Bahia. Mas se tivesse um carioca ou paulista que gritasse antes,
talvez o ministério saísse para lá (risos)” (Gil, s/d, p.223).
162

alternativa, como a inclusão da máquina de ritmo. Caetano faz uma homenagem ao


repertório em língua inglesa que teve e tem representatividade no Brasil. Promove um
encontro entre ritmos latinos e baianidade na faixa The Carioca (Edward Eliscu/Gus
Kanh/Vincent Youmans).

O disco traz ainda The Carioca (Eliscu/Kahn/Youmans) – “Uma falsa música de país
tropical, levada por uma percussão baiana que é um ritmo tropical inventado”, comenta.
In: cliquemusic.com.br, acesso em 22/12/2004.

No final de 2004, é lançado o DVD Outros (doces) Bárbaros, com o registro dos
bastidores e de trechos do show Doces Bárbaros, realizado em dezembro de 2002,
comemorando o acontecimento de 1976. No início de 2005, Bethânia lança o álbum Que
falta você me faz, com canções de Vinícius de Moraes, um parceiro relevante na sua
trajetória.

Depois deste breve resumo dos desempenhos e referências/remissões dos quatro


artistas à Bahia após o acontecimento Os Doces Bárbaros, passemos agora, como arremate
final deste trabalho, à reconstituição dos tipos de Bahia envergados nas trajetórias de
Caetano, Gil, Gal e Bethânia, compreendendo que Bahias se re-trans-configuram nesta
obra artística.
163

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os tipos baianos que podemos reconstituir nas carreiras artísticas de Caetano, Gil, Gal
e Bethânia são agora melhor observados, no caminho da compreensão de que Bahias estão
dinamicamente propostas/aportadas em suas práticas. Considerando-se que o imaginário
sobre a sociedade baiana no cenário das representações da brasilidade foi relativamente
reconfigurado com o impacto destes artistas diante dos públicos, pode-se afirmar que uma
rede de representações articuladora de textos identitários se re/trans/configura com o
advento destas singularidades.

A partir da análise das trajetórias e tomando como referência central o acontecimento


– o show/disco/filme Os Doces Bárbaros, sua gênese e seus desdobramentos –, podemos
então discorrer sobre a constituição de uma tipologia de baianos na obra desses artistas.
Tal tipologia, por sua vez, acontece aqui como instrumento para a apreensão de
construções histórico-sociais. Cabe interrogar, enfim: que Bahias se vêem, se ouvem, se
depreendem? O recurso à metodologia de Weber (1992) permite compreender as
características empíricas constituídas nessas práticas, considerando tanto sua
multiplicidade temática como sua singularidade.

O acontecimento Os Doces Bárbaros, tomado como central aos efeitos desta


Dissertação, permite perceber a descontinuidade promovida, no cenário das representações
e construções identitárias sobre Bahia. Estes artistas estabeleceram novas referências de
representações de Bahia, interfaciando o mar de Caymmi, o elétrico do rock, o samba-de-
roda dos caboclos de candomblé, Mãe Menininha do Gantois, o carnaval moderno e as
liberdades clamadas no período da ditadura, entre outros elementos associados às
formulações de identidade cultural baiana/brasileira. Inseriram novos fios na plasmação de
feixes de representação sobre a sociedade baiana/brasileira, relativizando os contornos do
que seria o velho e o novo nas Bahias a que se referem freqüentemente, tanto reiterando
tradições como apontando outros caminhos. Tanto em Os Doces Bárbaros, como
acontecimento especialmente nuclearizante, quanto no conjunto de suas trajetórias
artísticas, lograram emblematizar-se como baianos polarizados entre o tradicional e o
moderno, apresentando-se como referenciais complexos deste lugar (Bourdieu, 2002).
164

A análise das carreiras de Caetano, Gil, Gal e Bethânia permitiu acessar variadas
personificações (representações individuais, na acepção de Goffman; auto-imagens, para
Elias), em momentos nos quais elementos de identificação se apresentam com maior ou
menor força. O tipo pode, assim, abarcar diversos instantes das carreiras, viabilizando o
delineamento de baianos constituídos nas práticas destes agentes.

Tornou-se fundamental, para a elaboração desta tipologia, discutir também a


constituição das singularidades consideradas, tomando as trajetórias dos artistas como o
écran em que se manifestam suas particularidades.

A noção de singularidade permite compreender como os tipos de baiano construídos a


partir da obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia mantêm uma relação estrita com dados
empíricos capturados nas fontes citadas. Cada artista, como agente reflexivo (Giddens,
1989; 2002), apresenta um elenco de caracteres/disposições publicados em entrevistas,
plasmados nas discografias, nas notícias, releases e outras inúmeras formas de divulgação
de seus trabalhos, que indicam veredas para a elaboração de singularidades como
delineamentos de atuações em fluxo e em continuidade147.

Cabe salientar que a singularidade não existe fixamente nas individualidades dos
agentes, como ente reificado. Configura-se como uma construção também tipológica, que
dá conformação para a constituição do baiano na obra destes artistas. A singularidade,
deste modo, pode ser construída com base numa análise minuciosa das carreiras
publicizadas, cumprindo a função de categoria-chave na definição do singular como
elemento da prática artística destes agentes e, portanto, no entendimento da
individualização das representações.

Inicialmente, a posição dos artistas enquanto agentes sociais foi tomada como
premissa principal para as considerações deste trabalho. A partir do conceito de
reflexividade dos agentes em Giddens (1989), considerou-se que Caetano, Gil, Gal e
Bethânia partem de consciências práticas e discursivas, como base para o tratamento
artístico das temáticas presentes em seu trabalho. Isso não significa dizer que as canções,
posições assumidas publicamente e a prática artística como um todo sejam planejadas, a

147
É importante tratar as singularidades como delineamentos das performances que pretendem captar,
tipologicamente, contornos de disposições para a ação, e não como reificações de consciências plenas e
imóveis, constituintes daquilo que poderia ser considerado uma espécie de “super agente”.
165

todo tempo e racionalmente, apenas no sentido de produzir textos identitários148. A


intenção, neste caso, não precisa ser nítida, consciente ou percebida reflexivamente para
que a ação seja considerada como tal149. A composição de uma peça como Nós, por
exemplo, de Gilberto Gil, bem como sua interpretação, não tem necessariamente que vir
acompanhada de uma reflexão, pelo autor, de sentidos e motivações para ser encarada
como fruto de uma prática construída entre o mero desejo de fruição artística ou
entretenimento e as expectativas de recepção do público150. As interpretações, incluindo a
que se desenvolveu ao longo desta Dissertação, pretendem situar a canção no contexto de
sua produção e execução. Embora o próprio Gilberto Gil assuma publicamente, muitas
vezes, suas intenções ao compor esta e outras peças, nem sempre é preciso que os autores e
intérpretes experimentem permanentemente uma consciência discursiva para que
possamos tratar suas práticas artísticas como ações.

Em Caetano Veloso, há um tipo baiano tendente a uma expressa e reiterada


reflexividade151. O baiano Caetano Veloso é narcísico com relação à sua origem e
argumenta em torno disto. Sua prática artística mostra uma Bahia que se pensa e se diz de
si própria. Uma Bahia apontando para o moderno, crítica, valorizando sua historicidade e,
também, estabelecendo nexos discursivos acerca de suas mazelas. Como a faixa título do
show Doces Bárbaros (Os Mais Doces Bárbaros), da versão musicada de Triste Bahia
(poema de Gregório de Mattos), Beleza Pura [AL 148] e Haiti (em parceria com Gilberto
Gil) [AL 149], a canção Neide Candolina é exemplar neste sentido:

148
Mesmo porque, ao tomar os conceitos de consciência prática e consciência discursiva de Giddens,
devemos manter em mente que o autor não situa os agentes como a todo tempo pensando sobre suas práticas.
Grande parte das ações da vida social são realizadas em estado de consciência prática, sem uma
reflexividade constante. O que fica como questão reside na sua assertiva de que, se indagados, os agentes são
capazes de explicar (a partir de suas consciências reflexivas) suas práticas. Neste sentido, a singularidade
pode ser delineada tomando por base também esta competência sócio-ontológica reclamada por Giddens.
149
O conceito de consciência prática em Giddens é oportuno aqui aos efeitos desta compreensão. Os agentes
atuam, na maioria dos casos, de maneira não consciente (o que não é sinônimo de inconsciente), ou seja, na
recursividade das práticas sociais.
150
Isto coloca a prática artística também no campo das representações do eu, na acepção de Goffman, pois
Gil compõe e entrega a um público o resultado de seu trabalho artístico. É também uma forma de representar-
se para os outros, como crê o interacionismo simbólico.
151
Caetano acaba por assumir, deste modo, uma espécie de liderança do grupo baiano, também teorizando
sobre suas presenças na música brasileira. Ver Anexo Depoimentos 04.
166

Preta Sã, ela é filha de Iansã


Ela é muito cidadã
Ela tem trabalho e tem carnaval
(...) E a cidade,
A Bahia da cidade,
A porcaria da cidade
tem que reverter o quadro atual
Pra lhe ser igual...
E eu, e eu, e eu, e eu, e eu, e eu , e eu
Sem ela
Nobreza brown
Nobreza brown...

Caetano Veloso. Neide Candolina. In: Circuladô. CD, 1991. Polygram

A Bahia dessa composição se mostra referencial sem que se coloque acima de


problematizações. Alguns estudiosos consideram a poética de Caetano como pertencente à
escola de Gregório de Mattos, pelo encadeamento das palavras e dos versos, como pelo
tom instigante e provocativo de várias de suas letras; uma espécie de interface entre o
barroco e o contemporâneo. Então:

Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas.


Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não
tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot dogs, como em todas as cidades
grandes.
Texto e entrevista de Carlos Acuio na Revista Manchete - 16/12/1967.
In: www.caetanoveloso.com.br, acesso em 21/10/2003.

Uma sonoridade permeada por referências à moderna percussão da Bahia pode ser
percebida nos trabalhos de Caetano, principalmente a partir da década de noventa, como
nos álbuns Livro e Noites do Norte. Isto parece apontar a importância que sua figura teve e
tem para o carnaval de Salvador, compondo frevos aos moldes de Dodô & Osmar desde
1969 (Atrás do Trio Elétrico), fazendo-se presente e discutindo com a imprensa os rumos
da nova música baiana e da própria festa, ao lado de Gilberto Gil. No cenário das
representações, portanto, o baiano, em Caetano, é também o folião moderno, antenado
com a música da festa, engendrando discursos para e sobre ela.

Uma negritude pop, centrada na remissão à africanidade baiana e voltada para a cena
universalizada, compõe o que poderíamos considerar o núcleo duro do baiano em Gilberto
Gil. Trata-se de um artista cujo diálogo como compositor e cantor está intimamente
relacionado à presença de Caetano e que também trabalha discursos (estéticos no sentido
mais amplo possível) que, por sua vez, argumentam uma Bahia mais centrada nos seus
aspectos étnicos.
167

O baiano que se pode reconstituir em Gilberto Gil está voltado para o cenário do
brilho pop, da aparição na cena, seja no carnaval (como em Filhos de Gandhi152), seja na
elaboração de uma africanidade eletrificada em Banda Um, canções que trazem em comum
a figura do negro altivo153 e urbano, com uma apresentação fincada entre o ancestral e o
moderno154. No show Doces Bárbaros, a canção Chuck Berry Fields Forever ensaia uma
história negra do rock’n roll, que começa com os ritmos afro-latinos e deságua no metal
das guitarras. No álbum Refavela, de 1977, há pontes entre o tradicional e o moderno,
personificadas no negro da favela carioca como naquele tocador de marimba dos
Camarões. No mesmo álbum, temos o Ilê Aiyê, bloco afro de Salvador formado em 1974,
transfigurado por uma estética próxima da moderna música africana. Em Banda Um,
podemos observar uma fusão tanto lingüística como cultural; o negro zanzibárbaro, a loura
blumenáutica, como emblemas de identidades culturais brasileiras e baianas assentadas no
hibridismo/sincretismo:

Banda pra tocar por aí


No Zanzibar
Pro negro zanzibárbaro dançar
Pra agitar o Baixo Leblon
O cariri
Pra loura blumenáutica
Dançar
Banda Um
Banda Um
Banda Um Banda Um Banda Um
Banda ô iê
Zanzibárbaro Malê!

Gilberto Gil. Banda Um. In Um Banda Um. 1982. WEA

Sobre a peça Banda Um, reporta-se Gilberto Gil:

O sentido universalista da umbanda como uma cisão do culto fechado das religiões, seja o
candomblé, seja a católica, ambas monísticas, cada uma com a sua verdade; o panteísmo
necessário da umbanda, uma religião que não é uma mas “todas”, misturando o
kardecismo, o catolicismo, o politeísmo africano. E Banda Um é uma música-síntese com
uma intenção e um conceito panculturalista, uma canção que cultiva as idéias de música,
de juventude, de comportamento, de consumo, de vários nacionalismos. E, ao mesmo
tempo, o fato de sermos um pouco a Banda do Zé Pretinho [Gil se refere aqui ao grupo de
Jorge Ben Jor, ao qual compara o seu]: “Banda Um” é como se fosse o nosso hino, o nosso
prefixo musical (Gil, 1996, p. 98).

152
A composição desta peça foi motivada pela situação em que se encontrava o Afoxé Filhos de Gandhi, em
1973, como uma maneira de revigorar a entidade (Gil, 1996).
153
Como na representação fotográfica de Pierre Verger.
154
Uma negritude, portanto, muito próxima daquela da proposta teórico-metodológica de Gilroy (2001),
como já discutido no capítulo 2.
168

As intérpretes Gal Costa e Maria Bethânia155 também apresentam nas suas práticas
artísticas elementos que permitem reconstituir uma tipologia coerente com os propósitos
deste texto.

A baiana, em Maria Bethânia, está situada numa cadeia de ancestralidade


constantemente atualizada. A Bahia que se percebe no seu trabalho está ligada ao mundo
dos orixás, da devoção católica popular do Recôncavo, dos sambas-de-roda, das canções
épicas e enaltecedoras de um caráter magnânimo desta localidade (como em A Bahia te
espera, de Herivelto Martins e Chianca de Garcia, ou mesmo em Reconvexo, de Caetano
Veloso). Ao longo de sua carreira, podemos encontrar remissões a uma sociedade baiana
de antes, sempre idealizada como uma Bahia, poderíamos dizer... senhorial.

É significativo desta forma de representar a sociedade baiana, na obra de Bethânia, a


distância manifesta com a sonoridade correspondente à axé music156. Embora se utilize, em
alguns trabalhos, da própria rítmica do samba-reggae, como em sua regravação de Gema
(Caetano Veloso), em 1999, Bethânia não se mostra afeita ao universo da axé music, como
Caetano, Gil e Gal. O que se nos apresenta como sua matéria de trabalho, no que diz
respeito à Bahia, é o que pulsa como raiz, como história viva. No show Doces Bárbaros, é
na sua voz que a canção Um Índio, de Caetano, emerge como uma narrativa mítica que
reúne índios, afoxés e a força da modernidade de Bruce Lee, num arranjo musical
acompanhado em coro pelos demais integrantes do espetáculo. Trata-se de uma tradição
lançada para a “frente”, no sentido de constituir uma identidade voltada para elementos do
antigo que compõem o novo. Mesmo o que costuma ser reconhecido como moderno
acontece, em Bethânia, de alguma forma aristocratizado. A propósito, revela-se uma
artista que pretende ter um pleno domínio da sua arte, como podemos ver no depoimento:

Eu sou muito do lado da interpretação, a minha linha é diferente daquela coisa melódica e
esmiuçada da Gal e da Nana. Eu sou o teatro, a ópera, o drama grego. Quando eu cito
alguns compositores é porque me sinto próxima e, como já disse, posso acrescentar com a
minha criação alguma coisa.
Maria Bethânia. In: www.diamanteverdadeiro.com.br, acesso em 04/06/2004

155
Tanto Maria Bethânia quanto Gal Costa têm composições assinadas em parcerias com Caetano Veloso e
Gilberto Gil, embora não se possa considerar que sejam propriamente compositoras, até porque não se
assumem como tal.
156
Sua relação com esse estilo musical tem sido discutida por alguns setores da imprensa e arte baianas, e a
própria Maria Bethânia tem feito em algumas entrevistas considerações esclarecedoras, através das quais diz
não renegar a Axé Music, sem, entretanto achar que este tipo musical lhe caiba para interpretar. Nas palavras
de Bethânia em entrevista ao Jornal Hoje, da Rede Globo, em 1997: Sou intérprete, tenho que me preocupar
com o que estou dizendo. Essa música tem muito barulho, é muito forte. O canto, o trabalho de cantora eu
deixo pra Gal, Zizi, Nana... Eu sou intérprete.
169

No álbum Brasileirinho (2003), Bethânia recupera peças do cancioneiro que falam de


um Brasil tomado como base para as transformações contemporâneas. Um Brasil que tem
na Bahia sua marca de fundação. Enfim, a prática artística de Maria Bethânia nos remete a
uma Bahia que convive com o moderno sem se desvincular do tradicional, sendo que a
remissão ao seu mundo originário – o Recôncavo, as festas religiosas, a ancestralidade
festejada – soa mais emblemática.

A tipologia que pode corresponder à figura de Gal Costa congrega elementos que vão
da sensualidade propalada da mulher baiana, passando pelas referências ao universo
religioso do candomblé e, sobretudo, no visível ecletismo de feixes representacionais que
fazem parte de sua prática artística. Sua carreira começa com um forte apelo à Bossa Nova;
encaminha-se então pelo rock, pela música pop, pelo cancioneiro clássico da MPB. Enfim,
sua prática artística traz como vetor característico, do ponto de vista técnico, o
monitoramento da voz para variados caminhos. Isso se observa nas representações da
sociedade baiana em seu trabalho. Seus agudos despontavam, junto à sua indumentária
entre hippie e iaô, no acontecimento Os Doces Bárbaros, como a baiana jovem, brejeira e
lasciva, de feminilidade em destaque.

Num depoimento da própria Gal:

Meu trabalho sempre teve muito essa característica, de diversificação, acho isso uma coisa
boa. É como aquela frase que diz assim: “Os caminhos da música brasileira são vários”. Eu
prefiro todos! Tem as coisas do Norte, que fazem parte da minha vida, eu sou de lá. Tem a
Bossa-Nova, que também faz... Eu não sou uma cantora essencialmente romântica,
roqueira ou, enfim, essas coisas. O meu lance é cantar e pronto! É isso que eu gosto de
fazer e sei fazer. Sem muitas elucubrações em volta. Cantar bem, cantar direito, é isso que
sei fazer.
(Rádio X, 1990) In: www.verdadeirabaiana.com.br, acesso em 04/06/2004

Enfim, a baiana Gal Costa pode ser percebida como a soteropolitana aberta ao mundo,
de uma Bahia contemporânea, focada na cotidianidade, que flerta com o samba, com a
negritude, com a religiosidade múltipla, com o carnaval. Sua singularidade permite
perceber que tanto a axé music quanto os clássicos da MPB podem ser matéria musical.
Assim como, em 1975, a televisão veiculava a novela Gabriela ao som de sua
interpretação de Modinha para Gabriela, de Caymmi, em 1996, o filme Tieta do Agreste
trazia na trilha sonora Gal e Caetano157. Ainda na esteira da percepção de uma cantora

157
Muito curiosa e convergindo no mesmo sentido de um tipo de Bahia mais eclética e aberta é uma
declaração de Gilberto Gil sobre Gal Costa, publicada no site www.verdadeirabaiana.com.br: Ela tem uma
qualidade sonora tão excepcional, dessas que aparecem muito raramente, aliada a um grande talento
170

cujas possibilidades artísticas se colocam mais abertas à renovação e experiências, num


show na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, Salvador, em maio de 2002, vemos uma
Gal Costa cantando – com arranjo evocando o jazz – Cabelo raspadinho (Tenisson Del
Rey/Edu Casanova) [AL 150], sucesso da banda Chiclete com Banana, para espanto,
admiração, estranhamento e escândalo de setores do público e mídia.

Deste modo, uma tipologia de baiano na obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia nos
leva à compreensão da arquitetura de identidades culturais múltiplas e de Bahias que se
interfaciam, principalmente se considerarmos a multiplicidade de representações possíveis
nesta prática artística.

Creio reunir elementos para afirmar Os Doces Bárbaros como um acontecimento


especialmente rico, interface tanto de representações da sociedade baiana/brasileira quanto
das trajetórias destes quatro artistas. Do mesmo modo, apresenta intrigações
contemporâneas sobre a identidade: a multiplicidade de sua constituição e a percepção da
insuficiência das grandes narrativas teórico-metodológicas – tomadas isoladamente – para
organizá-la, principalmente no que tange à questão da identidade cultural como um feixe
de sentido. Este último item poderia se constituir num desdobramento do tipo de reflexão
sobre as singularidades no campo artístico.

As trajetórias destes artistas e a relevância central do acontecimento Os Doces


Bárbaros nos conduzem à percepção de que sua Bahia – ou melhor, suas Bahias – estão
associadas às construções de identidade cultural, compostas de diversos feixes, ventiladas
como tônica do contemporâneo por diversos autores aqui contemplados. As
singularizações construídas a partir de elementos de representações amplamente coletivas
produzem narrativas que dão conta de interfaces de Bahias negras, ancestrais, barrocas,
carnavalizadas, atentas ao global, etc.

Em Caetano, Gil, Gal e Bethânia, a Bahia aparece polifônica e ao mesmo tempo se


encontrando em uma interface de narrativas constituída como identidade cultural baiana,
que pode ser compreendida como um construto sócio-histórico a se plasmar seja no âmbito
da própria sociedade baiana, seja em outros âmbitos em que a Bahia acontece como
referência e/ou remissão. Nas Bahias de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, encontramos um

musical. Ela é uma baiana mais abrangente, tem uma coisa de carioquice baiana com gosto por coisa
internacional.
171

caso exemplar de tessitura identitária em que a unidade pretendida se constrói mediante a


compatibilização e complementação de vetores múltiplos e tangentes.
172

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178

7 APÊNDICE:
DISCOGRAFIA DE CAETANO VELOSO,
GILBERTO GIL, GAL COSTA E MARIA BETHÂNIA
E CRONOLOGIA DO SHOW/DISCO/FILME OS DOCES BÁRBAROS

Este apêndice aporta em diferentes formatos a discografia


dos quatro artistas correspondentes ao objeto da
Dissertação.

Os Quadros 1 a 4 apresentam a discografia de cada um


dos artistas, por ordem cronológica de edição do álbum. Os
marcadores indicam tanto a natureza do suporte de cada
álbum como a disponibilidade do mesmo para esta
pesquisa.

Vinil coleção própria


Vinil coleção associada
CD coleção própria
CD coleção associada
Cassete coleção própria
DVD
Home Vídeo

O Quadro 5 transversaliza a produção dos quatro artistas


por ordem cronológica.

Os Quadros 6 a 9 apresentam as canções referidas à


Bahia na obra de cada artista, pela ordem cronológica de
edição do respectivo álbum.

Finalmente, o Quadro 10 apresenta uma cronologia do


show/disco/filme Os Doces Bárbaros

Todos os quadros foram elaborados pelo autor.


179

QUADRO 1
DISCOGRAFIA DE CAETANO VELOSO

1967 Domingo – com Gal Costa


1968 Caetano Veloso
1968 Tropicália ou Panis et Circenses - com Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Capinam,
Nara Leão, Os Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat
1969 Caetano Veloso
1971 Caetano Veloso
1972 Barra 69 – Caetano e Gil Ao Vivo na Bahia
1972 Transa
1972 Caetano e Chico juntos ao vivo
1973 Araçá Azul
1974 Temporada de verão - com Gal Costa e Gilberto Gil (ao vivo na Bahia)
1975 Qualquer coisa
1975 Jóia
1976 Doces Bárbaros - com Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia (ao vivo)
1977 Muitos Carnavais
1977 Bicho
1978 Maria Bethânia e Caetano Veloso
1978 Muito
1979 Cinema Transcendental
1981 Outras Palavras
1981 Brasil – com João Gilberto, Gilberto Gil e Maria Bethânia
1982 Cores Nomes
1983 Uns
1983 Montreux 83 – com João Bosco e Ney Matogrosso
1984 Velo
1986 Totalmente Demais
1986 Os Melhores Momentos de Chico e Caetano
1987 Caetano
1989 Estrangeiro
1990 Caetano Veloso
1991 Circuladô
1992 Circuladô ao Vivo
1993 Tropicália 2 – com Gilberto Gil
1994 Fina Estampa
1995 Fina Estampa ao Vivo
1996 Trilha sonora do filme Tieta do Agreste
– com Gal Costa, Zezé Motta e Banda Feminina Didá
1997 Livro
1997 Prenda Minha
1999 Omaggio a Giulietta e Frederico
2000 Noites do Norte
2001 Noites do Norte ao Vivo
2002 Eu Não Peço Desculpas – com Jorge Mautner
180

2004 A Foreign Sound


2004 Outros (doces) Bárbaros – com Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia
181

QUADRO 2
DISCOGRAFIA DE GILBERTO GIL

1962-3 Gilberto Gil*


1967 Louvação
1968 Gilberto Gil
1968 Tropicália ou Panis et Circenses - com Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé,
Capinam,
Nara Leão, Os Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat
1969 Gilberto Gil
1971 Gilberto Gil
1972 Expresso 2222
1972 Barra 69 – Caetano e Gil Ao Vivo na Bahia
1973 Cidade do Salvador**
1974 Temporada de verão - com Gal Costa e Caetano Veloso (ao vivo na Bahia)
1974 Gil Ao Vivo
1975 Refazenda
1975 Gil e Jorge Ogum Xangô
1975 Gilberto Gil e Jorge Bem
1976 Doces Bárbaros - com Gal Costa, Caetano Veloso e Maria Bethânia (ao vivo)
1977 Refavela
1977 Refestança
1978 Antologia do samba-choro - Gilberto Gil e Germano Mathias
1978 Gilberto Gil Nightingale*
1979 Realce
1981 Gilberto Gil em Montreux
1981 Brasil – com João Gilberto, Caetano Veloso e Maria Bethânia
1981 Luar – A gente precisa ver o luar
1982 Um Banda Um
1983 Extra
1984 Raça Humana
1984 Trilha Sonora do Filme Quilombo*
1985 Dia Dorim Noite Néon
1987 Ao Vivo em Tóquio
1987 Trilha sonora de Um trem para as estrelas
1987 Soy loco por ti, América
1987 Gilberto Gil em Concerto
1989 O Eterno deus Mu dança
1992 Parabolicamará
1993 Tropicália 2 – com Caetano Veloso

*
Lançado em 2003 a partir de pesquisa de Marcelo Fróes em arquivos da Warner.
**
Lançado em 1998 em caixa Geléia Geral, resultado de projeto e gravações realizadas em 1973.
182

1994 Unplugged
1997 Quanta
1998 Quanta gente veio ver
2000 As canções de Eu, Tu, Eles
2000 Gilberto Gil e Milton Nascimento
2001 São João Vivo
2002 Kaya n´ Gan Daya
2003 Kaya n´Gan Daya Ao Vivo
2003 It´s good to be alive*
2003 To be alive is good*
2004 EletrAcústico
2004 Outros (doces) Bárbaros – com Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia

*
Lançado em 2003 a partir de pesquisa de Marcelo Fróes em arquivos da Warner.
183

QUADRO 3
DISCOGRAFIA DE GAL COSTA

1967 Domingo – com Caetano Veloso


1968 Tropicália ou Panis et Circenses - com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Capinam,
Nara Leão, Os Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat
1969 Gal Costa
1969 Gal Costa
1970 Legal
1971 Fa-tal Gal a Todo Vapor
1973 Índia
1974 Cantar
1974 Temporada de verão - com Caetano Veloso e Gilberto Gil (ao vivo na Bahia)
1976 Gal canta Caymmi
1976 Doces Bárbaros – com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia (ao vivo)
1977 Caras e Bocas
1978 Água Viva
1979 Gal Tropical
1980 Aquarela do Brasil
1981 Fantasia
1982 Minha Voz
1983 Baby Gal
1983 Trilha sonora do filme Gabriela
1984 Profana
1985 Bem Bom
1987 Lua de mel como o diabo gosta
1990 Plural
1992 Gal
1993 O sorriso do gato de Alice
1995 Mina d´água do meu canto
1996 Trilha sonora do filme Tieta do Agreste
– com Caetano Veloso, Zezé Motta e Banda Feminina Didá
1997 Acústico MTV
1998 Aquele Frevo Axé
1999 Gal Costa canta Tom Jobim Ao Vivo
2001 De Tantos Amores
2002 Gal Bossa Tropical
2003 Todas as Coisas e Eu
2004 Outros (doces) Bárbaros – com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia
184

QUADRO 4
DISCOGRAFIA DE MARIA BETHÂNIA

1965 Maria Bethânia


1967 Edu Lobo e Maria Bethânia
1968 Recital na Boite Barroco
1969 Maria Bethânia
1970 Maria Bethânia Ao Vivo
1971 A tua presença
1971 Rosa dos Ventos
1972 Quando o Carnaval chegar – com Chico Buarque e Nara Leão
1972 Drama
1973 Drama - Luz da Noite
1974 A cena muda
1975 Chico Buarque e Maria Bethânia
1976 Pássaro Proibido
1976 Doces Bárbaros – com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa (ao vivo)
1977 Pássaro da Manhã
1978 Maria Bethânia e Caetano Veloso
1978 Álibi
1979 Mel
1980 Talismã
1981 Brasil – com João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil
1981 Alteza
1982 Nossos Momentos
1983 Ciclo
1984 A Beira e o Mar
1986 Dezembros
1988 Maria
1989 Memória da Pele
1990 Maria Bethânia 25 Anos
1992 Olho d´Água
1993 As canções que você fez pra mim
1995 Maria Bethânia Ao Vivo
1996 Âmbar
1997 Imitação da Vida
1999 A força que nunca seca
2000 Diamante Verdadeiro
2000 Cânticos Preces Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu
na voz de Maria Bethânia
2001 Maricotinha
2002 Maricotinha Ao Vivo
2003 Cânticos Preces Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu
na voz de Maria Bethânia (relançamento)
2003 Brasileirinho
185

2004 Brasileirinho Ao Vivo (DVD)


2004 Outros (doces) Bárbaros – com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa
2005 Que falta você me faz
186

QUADRO 5
DISCOGRAFIA TRANSVERSALIZADA DE
CAETANO VELOSO, GILBERTO GIL, GAL COSTA E MARIA BETHÂNIA

CAETANO VELOSO GILBERTO GIL GAL COSTA MARIA BETHÂNIA

1965 Maria Bethânia

1967 Domingo Louvação Domingo Edu Lobo e Maria Bethânia

1968 Caetano Veloso Gilberto Gil Tropicália Recital na Boite Barroco


Tropicália Tropicália

1969 Caetano Veloso Cérebro eletrônico Gal Costa Maria Bethânia


Gal Costa

1970 Legal Maria Bethânia Ao Vivo

1971 Caetano Veloso Gilberto Gil Fa-Tal A tua presença


Rosa dos ventos

1972 Transa Expresso 2222 Drama


Caetano e Chico juntos e Ao Vivo Barra 69 Quando o carnaval chegar
Barra 69

1973 Araçá Azul Índia Drama-Luz da Noite

1974 Temporada de Verão Gil Ao Vivo Cantar A cena muda


Temporada de Verão Temporada de Verão
187

CAETANO VELOSO GILBERTO GIL GAL COSTA MARIA BETHÂNIA

1975 Jóia Refazenda Chico Buarque e Maria Bethânia


Qualquer Coisa Gil e Jorge Ogum Xangô
Gilberto Gil e Jorge Bem

1976 Doces Bárbaros Doces Bárbaros Gal canta Caymmi Pássaro Proibido
Doces Bárbaros Doces Bárbaros

1977 Bicho Refavela Caras e Bocas Pássaro da Manhã


Muitos carnavais Refestança

1978 Muito Nightingale Água Viva Maria Bethânia e Caetano Veloso


Maria Bethânia e Caetano Veloso Álibi

1979 Cinema Transcendental Realce Gal Tropical Mel

1980 Aquarela do Brasil Talismã

1981 Outras Palavras Gilberto Gil em Montreux Fantasia Alteza


Brasil Brasil Brasil
Luar

1982 Cores Nomes Um Banda Um Minha Voz Nossos Momentos

1983 Uns Extra/Quilombo Baby Gal/ Gabriela Ciclo

1984 Velô Raça Humana Profana A beira e o mar

1985 Dia Dorim Noite Néon Bem Bom


188

CAETANO VELOSO GILBERTO GIL GAL COSTA MARIA BETHÂNIA

1986 Totalmente Demais Dezembros


Caetano Veloso
Os Melhores Momentos
de Chico e Caetano

1987 Caetano Ao Vivo em Tóquio Lua de mel como o diabo gosta


Gilberto Gil em Concerto
Soy loco por ti, América
Trilha de Um Trem para as
estrelas

1988 Maria

1989 Estrangeiro O Eterno deus Mu Dança Memória da Pele

1990 Caetano Veloso Plural Maria Bethânia 25 Anos

1991 Circuladô

1992 Circuladô Ao Vivo Parabolicamará Gal Olho d’ água

1993 Tropicália 2 Tropicália 2 O sorriso do gato de Alice As canções que você fez pra mim

1994 Fina estampa Unplugged

1995 Fina Estampa Ao Vivo Mina d’ água do meu canto Maria Bethânia Ao Vivo

1996 Trilha de Tieta Trilha de Tieta Âmbar

Livro Quanta Acústico MTV Imitação da Vida


1997 Prenda Minha
189

CAETANO VELOSO GILBERTO GIL GAL COSTA MARIA BETHÂNIA

1998 Aquele Frevo Axé

1999 Omaggio a Frederico e Giulietta Gal Costa canta Tom Jobim ao A força que nunca seca
Vivo

2000 Noites do Norte As canções de Eu, Tu, Eles Diamante Verdadeiro


Gilberto Gil e Milton Nascimento Cânticos, súplicas...

2001 Noites do Norte Ao Vivo São João Vivo De Tantos Amores Maricotinha

2002 Eu não peço desculpas Kaya’n Gan Daya Gal Bossa Tropical Maricotinha Ao Vivo

2003 Kaya n’ Gan Daya Ao Vivo Todas as coisas e eu Cânticos, súplicas...


(rel)/Brasileirinho

2004 A foreign sound EletrAcústico Brasileirinho Ao Vivo (DVD)

2005 Que falta você me faz


190

QUADRO 6
CANÇÕES REFERIDAS À BAHIA
NA DISCOGRAFIA DE CAETANO VELOSO

Ano Álbum Canções

1967 Domingo Onde eu nasci passa um rio


Candeias
Remelexo
Quem me dera

1968 Caetano Veloso Clarice


No dia em que eu vim-me embora
Tropicália

1968 Tropicália ou Panis et circenses Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia


Batmacumba

1969 Caetano Veloso Marinheiro só


Atrás do trio elétrico
Irene*
Não identificado

1971 Caetano Veloso A little more blue


Maria Bethânia

1972 Transa Triste Bahia


It’s a long way
You don’t know me
Neolithic man

1972 Barra 69 Cinema Olympia


Madalena
Atrás do trio elétrico
Domingo no Parque
Hino do Esporte Clube Bahia
Aquele Abraço

1972 Caetano e Chico juntos e ao vivo (não há remissões diretas)

1973 Araçá azul Viola, meu bem


Sugar cane fields forever
De palavra em palavra
Épico

1974 Temporada de verão na Bahia O conteúdo

1975 Qualquer coisa Qualquer coisa


Drume negrinha (drume negrita)
A tua presença morena
Nicinha

1975 Jóia Guá


191

1976 Doces Bárbaros Os mais doces bárbaros


Nós, por exemplo
São João, Xangô menino
Um índio
Tárasca Guidon

1977 Muitos carnavais Atrás do trio elétrico


Qual é baiana?
Um frevo novo
La barca
Deus e o diabo
Hora da razão

1977 Bicho Odara

1978 Muito Sampa


Terra
São João, Xangô menino

1978 Maria Bethânia e Caetano Veloso Tudo de novo


Reino Antigo/Adeus meu santo amaro

1979 Cinema Transcendental Lua de São Jorge


Oração ao Tempo
Beleza Pura
Trilhos Urbanos
Badauê
Os meninos dançam

1981 Outras palavras Outras palavras


Sim/Não

1981 Brasil Bahia com H


No tabuleiro da baiana
Milagre
Cordeiro de Nanã

1982 Cores, nomes Coqueiro de Itapoã


Um canto de afoxé para o bloco do Ilê
Cavaleiro de Jorge
Ele me deu um beijo na boca e disse

1983 Montreux 83 Brazil Night Terra


Maria Bethânia
Odara

1983 Uns Quero ir à Cuba


Salva-vida

1984 Velô Vivendo em paz


Sorvete
Língua

1986 Totalmente demais Vaca Profana


192

1986 Caetano Veloso Trilhos Urbanos


Odara
Terra

1986 Os melhores momentos de (não há remissões diretas)


Chico e Caetano

1987 Caetano Depois que o Ilê passar


“Vamo” comer
O ciúme
Iá omin bum

1989 Estrangeiro Meia lua inteira


Genipapo absoluto
Branquinha
Este amor

1991 Circuladô Fora da ordem


O cu do mundo
Boas vindas
Santa Clara Padroeira da Televisão
Itapuã

1992 Circuladô Vivo A tua presença morena


Disseram que eu voltei americanizada
Quando eu penso na Bahia
Jokerman
Itapuã
Os mais doces bárbaros
A filha da chiquita/chuva,suor e cerveja
Sampa

1993 Tropicália 2 Haiti


Cinema Novo
Nossa gente
Cada macaco no seu galho
Tradição
Baião atemporal

1994 Fina Estampa Rumba azul

1995 Fina estampa ao Vivo Haiti


Itapuã
Soy loco por ti, América

1996 Trilha de Tieta A luz de Tieta


Vento
Venha cá
Miragem de carnaval
193

1997 Livro Livros


Os passistas
Onde o rio é mais baiano
Doideca
How beautiful could a being be
Navio Negreiro
Não enche
Alexandre
Na baixa do sapateiro

1998 Prenda minha Jorge de Capadócia


Meditação
Terra
Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu
Odara
A luz de Tieta
Vida boa

1999 Omaggio a Giulietta e Frederico Trilhos Urbanos=

2000 Noites do Norte Zera a reza


13 de maio
Zumbi
Rock’n Raul

2001 Noites do norte ao vivo Sugar cane fields forever


Two naira fifty cobo
13 de maio
Zumbi
Haiti
Mimar você
Zera a reza
Língua
Meia lua inteira
Rock’n Raul

2002 Eu não peço desculpas Feitiço


O namorado

2004 A foreign sound Carioca


Come as you are
Diana

2004 Outros (doces) Bárbaros Outros bárbaros


Um índio
Santo Antônio
Os mais doces bárbaros
Saudade da Bahia
194

QUADRO 7
CANÇÕES REFERIDAS À BAHIA
NA DISCOGRAFIA DE GILBERTO GIL

Ano Álbum Canções

1962-1963 Gilberto Gil (compilação)* Povo petroleiro

1967 Louvação Procissão


Beira Mar
Água de Meninos

1968 Gilberto Gil Domingo no Parque


Procissão

1968 Tropicália ou panis et circenses Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia


Batmacumba

1969 Gilberto Gil Volks-Volkswagem blue


Aquele Abraço

1971 Gilberto Gil Volkswagem blue

1972 Expresso 2222 Back in Bahia


Ele e eu
Chiclete com banana

1972 Barra 69 Cinema Olympia


Madalena
Atrás do trio elétrico
Domingo no Parque
Hino do Esporte Clube Bahia
Aquele Abraço

1973 Cidade do Salvador** Tradição


Minha nega na janela
Ó Maria
Ladeira da preguiça
Rainha do mar
Iansã
Cidade do Salvador

1974 Temporada de Verão O conteúdo

1974 Gil Ao Vivo João Sabino

1975 Refazenda (não há remissões diretas)

1975 Gil e Jorge Ogum Xangô Filhos de Gandhi

1975 Gilberto Gil e Jorge Ben Filhos de Gandhi


195

1976 Doces Bárbaros Os mais doces bárbaros


Nós, por exemplo
São João, Xangô menino
Um índio
Tárasca Guidon

1977 Refavela Ilê Aiyê


Refavela
Babá Alapalá
Balafon
Patuscada de Gandhi

1977 Refestança Odara


Domingo no Parque
Back in Bahia

1978 Antologia do samba-choro Minha nega na janela

1978 Gilberto Gil Nightingale Bah-Lah-Fon


Alapala
Samba de Los Angeles

1979 Realce Tradição


Toda menina baiana
Logunedé
Sarará miolo

1981 Gilberto Gil em Montreux São João, Xangô Menino


Batmacumba
Procissão
Atrás do trio elétrico
Chuck Berry Fields Forever

1981 Brasil Bahia com H


No tabuleiro da baiana
Milagre
Cordeiro de Nanã

1981 Luar Palco


Cara Cara
Axé Babá

1982 Um Banda Um Banda Um


Afoxé é
Andar com fé
Ê Menina

1983 Extra E lá poeira


Lady Neide

1984 Raça Humana A mão da limpeza

Zumbi, a felicidade guerreira


1984 Alujá do rei Xangô
Trilha do filme Quilombo Saída para a guerra
Tambores esquentam
196

1985 Dia Dorim Noite Néon Touche pas à mon pote


Oração pela libertação da África do Sul

1987 Trilha sonora de Um trem para as estrelas Um trem para as estrelas

1987 Ao Vivo em Tóquio Aquele Abraço


Banda Um
Touche pás à mon pote
Toda menina baiana
Sarará miolo

1987 Gilberto Gil em Concerto Eu vim da Bahia


Procissão
Domingo no Parque
Filhos de Gandhi

1987 Soy loco por ti América Aquele Abraço


Babá Alapalá
Jubiabá

1989 O eterno deus Mu Dança De Bob Dylan a Bob Marley


Cada tempo em seu lugar
Mon thiers monde
Requiem pra mãe Menininha

1991 Parabolicamará Madalena


Parabolicamará
Serafim
Buda Nagô
Quero ser teu funk
Neve na Bahia
Yá Olokun

1993 Tropicália 2 Haiti


Cinema Novo
Nossa gente
Cada macaco no seu galho
Tradição
Baião atemporal

1994 Unplugged Beira Mar


Sampa
Parabolicamará
Aquele Abraço
Toda menina baiana
Sítio do pica-pau amarelo

1997 Quanta Água benta


Opachorô
Pela Internet
De ouro e marfim
La lune de Gorée
197

1998 Quanta gente veio ver Palco


Refavela
Pela internet
Opachorô
O Gandhi
De ouro e marfim
Doce de carnaval
Lamento de carnaval
Pretinha

2000 As canções de Eu, Tu, Eles (não há remissões diretas)

2000 Gilberto Gil e Milton Nascimento Sebastian


Palco
Ponta de areia

2001 São João Vivo Madalena


Toda menina baiana

2002 Kaya N’ Gan Daya Waiting in vain


Kaya N’ Gan Daya
Eleve-se alto ao céu
Lick Samba

2003 Kaya N’ Gan Daya Ao Vivo Waiting in vain


Kaya N’ Gan Daya
Alagados
Toda menina baiana

2003 It’s good to be alive Afrolodumultimídia


Pela Internet
Buda nagô
Aquele Abraço

2003 To be alive is good Afoxé badauê


Oxalá
Serafim
Todo dia de manhã
Pode, Waldir?

2004 Outros (doces) Bárbaros Outros bárbaros


Um índio
Santo Antônio
Os mais doces bárbaros
Saudade da Bahia
198

QUADRO 8
CANÇÕES REFERIDAS À BAHIA
NA DISCOGRAFIA DE GAL COSTA

Ano Álbum Canções

1967 Domingo Onde eu nasci passa um rio


Candeias
Remelexo
Quem me dera

1968 Tropicália ou Panis et Circenses Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia


Batmacumba

1969 Gal Costa Não-identificado

1969 Gal Costa Cultura e civilização


Meu nome é Gal
Cinema Olympia

1970 Legal Língua do P


Minimistério
Deixa sangrar
Falsa baiana

1971 Fa-Tal Fruta Gogóia


Falsa baiana
Bota a mão nas cadeiras
Maria Bethânia
Chuva, suor e cerveja

1973 Índia (não há remissões diretas)

1974 Cantar (não há remissões diretas)

1974 Temporada de Verão O conteúdo

1976 Gal Canta Caymmi Rainha do mar


Vatapá
Canoeiro
O vento
Festa no mar

1976 Doces Bárbaros Os mais doces bárbaros


Nós, por exemplo
São João, Xangô menino
Um índio
Tárasca Guidon

1977 Caras e Bocas (não há remissões diretas)


199

1978 Água Viva Olhos verdes


O bem do mar
A mulher
Qual é, baiana?

1979 Gal Tropical A preta do acarajé


Balancê
O bater do tambor
Meu nome é Gal

1980 Aquarela do Brasil Na baixa do sapateiro


No tabuleiro da baiana

1981 Fantasia Roda baiana


Festa do interior
Tapete mágico
Massa real

1982 Minha Voz Bloco do prazer


Pegando fogo

1983 Baby Gal Bahia de todas as contas


Grande Final

1983 Trilha sonora do Filme Gabriela Origens

1984 Profana Vaca profana


O revólver do meu sonho

1985 Bem Bom (não há remissões diretas)

1987 Lua de mel como o diabo gosta


(não há remissões diretas)

1990 Plural Salvador não inerte


Ladeira do Pelô
A verdadeira baiana
Brilho de Beleza
Zanzando

1992 Gal Saudação aos povos africanos/Ingena


Revolta Olodum
Tropicália
Raiz
É d’Oxum

1993 O sorriso do gato de Alice Bahia, minha preta


Lavagem do Bonfim
Mãe da Manhã

1995 Mina d’água do meu canto Odara


Milagres do povo
O ciúme
Samba do grande amor
Língua
200

1996 Trilha de Tieta A luz de Tieta


Vento
Venha cá
Miragem de carnaval

1997 Acústico MTV Não identificado


Teco-teco
Falsa baiana

1998 Aquele Frevo Axé A voz do tambor


Aquele frevo axé
Aguarte agora

1999 Gal Costa canta Tom Jobim Ao Vivo (não há remissões diretas)

2001 De tantos amores Caminhos do mar

2002 Gal Bossa Tropical Cada macaco no seu galho

2003 Todas as coisas e eu Linda flor

2004 Outros (doces) Bárbaros Outros bárbaros


Um índio
Santo Antônio
Os mais doces bárbaros
Saudade da Bahia
201

QUADRO 9
CANÇÕES REFERIDAS À BAHIA
NA DISCOGRAFIA DE MARIA BETHÂNIA

Ano Álbum Canções

1965 Maria Bethânia Só eu sei


No carnaval
Sol negro

1967 Edu Lobo e Maria Bethânia

1968 Recital na boite Barroco (não há remissões diretas)

1969 Maria Bethânia Ye-Mele


Ponto do guerreiro branco
Dois de fevereiro

1970 Maria Bethânia Ao Vivo Ponto de Iansã


Samba de roda/Marinheiro só
Irene
Ponto de Oxóssi

1971 A tua presença Dia 4 de dezembro


A tua presença morena

1971 Rosa dos ventos Ponto de Oxum


O mar
Suíte dos pescadores
Imitação
Hora da razão
Cantigas de roda
Não identificado
Movimento dos barcos

1972 Quando o carnaval chegar (não há remissões diretas)

1972 Drama Ponto


Iansã

1973 Drama – Luz da Noite Movimento dos barcos


Quem vem pra beira do mar
A lenda do Abaeté
Oração de Mãe menininha
Filhos de Gandhi
Iansã

1974 A Cena Muda Taturamo


Disseram que voltei americanizada

1975 Chico Buarque e Maria Bethânia


(não há remissões diretas)
202

1976 Pássaro Proibido As Ayabás


A Bahia te espera

1976 Doces Bárbaros Os mais doces bárbaros


Nós, por exemplo
São João, Xangô menino
Um índio
Tárasca Guidon

1977 Pássaro da Manhã Cabocla Jurema

1978 Maria Bethânia e Caetano Veloso Tudo de novo


Reino Antigo/Adeus meu santo amaro

1978 Álibi (não há remissões diretas)

1979 Mel (não há remissões diretas)

1980 Talismã Alguém me avisou


Gema

1981 Brasil Bahia com H


No tabuleiro da baiana
Milagre
Cordeiro de Nana

1981 Alteza Purificar o Subaé


Alteza
Caminho das Índias

1982 Nossos momentos Maria Bethânia

1983 Ciclo Motriz


Filosofia pura

1984 A beira e o mar A beira e o mar

1986 Dezembros Estrela do meu céu


Yorubahia

1988 Maria Ofá


O ciúme
Eu e água
Noite de cristal

1989 Memória da pele Reconvexo


Salve as folhas
Guerra no mar
Paiol do ouro

1990 Maria Bethânia 25 anos Linda flor


Awô
Iansã
Palavra
203

1992 Olho d’água Vida vã


Ilumina
Medalha de São Jorge
Louvação à Oxum
Rainha Negra
Búzio

1993 As canções que você fez pra mim (não há remissões diretas)

1995 Maria Bethânia Ao Vivo Eu e água


Genipapo Absoluto
Tudo de novo
Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu
Onde o rio é mais baiano
Faixa de cetim
Reconvexo

1996 Âmbar Quando eu penso na Bahia


Iluminada
Ave Maria

1997 Imitação da Vida Imitação


Cantigas de roda
Iluminada
Quixabeira

1999 A força que nunca seca Gema


Agradecer e abraçar

2000 Diamante verdadeiro Senhora do vento norte


Gema
O mar
Morena do mar/Suíte dos pescadores
Dois de fevereiro
Agradecer e abraçar
Recôncavo
As ayabás
Iansã
Texto de Castro Alves
Um índio

2000 Cânticos Preces, Súplicas à Senhora... Ave Maria


Ladainha de Santo Amaro
Hino de Nossa Senhora da Purificação

2001 Maricotinha Água e pão (Bahia)


Maricotinha

2002 Maricotinha Ao Vivo Maricotinha


Texto Boites/Sábado em Copacabana

2003 Cânticos Preces, Súplicas à Senhora dos Ave Maria


Ladainha de Santo Amaro
Jardins do Céu na voz de Maria Bethânia Hino de Nossa Senhora da Purificação
204

2003 Brasileirinho Salve as folhas


Yá Yá Massemba
Capitão do mato
Cabocla Jurema
Ponto de Janaína (1)
Santo Antônio
São João Xangô Menino
Ponto de Xangô
Purificar o Subaé
Cantiga para Janaína (2)

2004 Brasileirinho Ao Vivo (DVD) Salve as folhas


Yá Yá Massemba
Capitão do mato
Cabocla Jurema
Ponto de Janaína (1)
Santo Antônio
São João Xangô Menino
Ponto de Xangô
Purificar o Subaé
Cantiga para Janaína (2)

2004 Outros (doces) Bárbaros Outros bárbaros


Um índio
Santo Antônio
Os mais doces bárbaros
Saudade da Bahia
205

QUADRO 10
CRONOLOGIA DO SHOW/DISCO/FILME OS DOCES BÁRBAROS

9. junho. 1976 Começam os ensaios.


24.junho Estréia no Anhembi, São Paulo. Acompanhados por um quinteto,
fazem quatro apresentações. Seguem para Curitiba.
5.julho Chegam a Florianópolis e se hospedam no Hotel Ivoram.
A polícia passa a seguí-los por denúncias de uso de drogas.
7.julho A PM invade os quartos dos músicos e encontra maconha
em posse de Gil e do baterista Chiquinho Azevedo.
Caetano não é preso, pois só portava comprimidos de Valium.
Os músicos são liberados temporariamente para o show
no Clube 12 de agosto, na mesma noite,
para um público de 1.500 pessoas.
9.julho Gil e Chiquinho são internados
no Manicômio Judiciário de Florianópolis.
Dois shows que seriam realizados em Porto Alegre são cancelados.
Gil argumenta que o uso de drogas se destinava a
auxiliar na introspecção mística.
20.julho Gil e Chiquinho viajam de Florianópolis para o Rio de Janeiro,
onde são internados no Sanatório de Botafogo.
Gil afirma não são sentir culpado.
27.julho Gil e Chiquinho recebem alta.
agosto/setembro Os Doces Bárbaros retomam a excursão e
realizam temporada de dois meses no Canecão, no Rio de Janeiro.
Problemas de som prejudicam o espetáculo.
outubro Apresentam-se no Teatro Castro Alves, em Salvador.
novembro É lançado o álbum duplo pela Polygram.
1977 É lançado o filme Os Doces Bárbaros, com direção de Jon Tob Azulay.

Fontes: Jornal Folha de S. Paulo, 15 de janeiro de 1994.


Jornal A Tarde, 05 de outubro de 1976.
GIL, Gilberto, Todas as letras. Org. Carlos Rennó. Cia das Letras. São Paulo. 1996.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DOCES E BÁRBAROS
UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES
DE IDENTIDADES BAIANAS

ANEXOS

CARLOS ANTÔNIO BARROS DE OLIVEIRA

Salvador, Bahia, 2005


1

Este volume contém os seguintes anexos:

Anexo Letras – AL
Anexo Depoimentos – AD

Sua disponibilização em outro volume


ocorre no sentido de facilitar o manuseio
da própria Dissertação pelo leitor.
2

SUMÁRIO DOS ANEXOS

Pg.

Anexo Letras 03

Anexo Depoimentos 94
3

ANEXO LETRAS

Nas páginas seguintes,


segue a relação das composições
cuja chamada se encontra no corpo da Dissertação,
com a página respectiva que ocupam neste volume.
4

Código Composição Pg.

AL 001 Aquele abraço 010

AL 002 Alegria, alegria 010

AL 003 Domingo no parque 011

AL 004 Beira mar 012

AL 005 Tropicália 013

AL 006 Rock’n Raul 014

AL 007 Expresso 2222 014

AL 008 Refazenda 015

AL 009 Refavela 016

AL 010 Oriente 017

AL 011 Chuck Berry fields forever 017

AL 012 Marginália 2 017

AL 013 Geléia geral 018

AL 014 Gênesis 019

AL 015 Oslodum 019

AL 016 Outras palavras 020

AL 017 Toda menina baiana 020

AL 018 Milagres do povo 021

AL 019 O veado 022

AL 020 Enquanto seu lobo não vem 023

AL 021 Caminhos do mar 023

AL 022 Águas de meninos 024

AL 023 Caminho das Índias 024

AL 024 Maria Bethânia 025

AL 025 Queda d’água 025

AL 026 Reconvexo 026


5

Código Composição Pg.

AL 027 Remelexo 026

AL 028 É proibido proibir 027

AL 029 Adeus batucada 027

AL 030 Triste Bahia 028

AL 031 It’s a long way 028

AL 032 Jóia 029

AL 033 Procissão 029

AL 034 Domingou 030

AL 035 Back in Bahia 030

AL 036 Iansã 031

AL 037 Filhos de Gandhi 031

AL 038 Sol negro 032

AL 039 Divino, maravilhoso 032

AL 040 Falsa baiana 033

AL 041 Modinha para Gabriela 033

AL 042 Ponto do guerreiro branco 034

AL 043 Ponto de Iansã 034

AL 044 Oração a Mãe Menininha 035

AL 045 As Ayabás 035

AL 046 A Bahia te espera 036

AL 047 Alegre menina 036

AL 048 O que é que a baiana tem? 037

AL 049 Isto é bom 037

AL 050 Na Baixa do Sapateiro 038

AL 051 Bahia 038

AL 052 O vento 039


6

Código Composição Pg.

AL 053 Vatapá 039

AL 054 Rainha do mar 039

AL 055 Requebra que eu dou um doce 040

AL 056 Saudades da Bahia 040

AL 057 Você já foi à Bahia? 041

AL 058 Lá vem a baiana 041

AL 059 Sábado em Copacabana 042

AL 060 Tem francesa no morro 042

AL 061 E bateu-se a chapa 043

AL 062 Alegria 043

AL 063 Brasil pandeiro 044

AL 064 Cada tempo em seu lugar 044

AL 065 Buda nagô 045

AL 066 Baianada 046

AL 067 Outros bárbaros 046

AL 068 Esotérico 047

AL 069 Os mais doces bárbaros 047

AL 070 Fé cega, faca amolada 048

AL 071 Nós, por exemplo 048

AL 072 Um índio 049

AL 073 Odara 050

AL 074 Patuscada de Gandhi 050

AL 075 Chuva, suor e cerveja 051

AL 076 Sampa 051

AL 077 Terra 052

AL 078 Adeus, meu Santo Amaro 053


7

Código Composição Pg.

AL 079 Tudo de novo 053

AL 080 Sonho meu 054

AL 081 Olhos verdes 054

AL 082 A preta do acarajé 055

AL 083 O bater do tambor 055

AL 084 Oração ao tempo 056

AL 085 Logunedé 056

AL 086 Faceira 057

AL 087 Bahia com H 057

AL 088 Massa real 057

AL 089 Axé Babá 058

AL 090 Palco 058

AL 091 Coqueiro de Itapoá 058

AL 092 Um canto de afoxé para o bloco do Ilê 059

AL 093 Andar com fé 059

AL 094 Afoxé é 059

AL 095 Bloco do prazer 060

AL 096 Filosofia pura 060

AL 097 Quero ir a Cuba 060

AL 098 Salva vida 061

AL 099 Ele e eu 061

AL 100 Elá, poeira 061

AL 101 Lady Neide 062

AL 102 Bahia de todas as contas 062

AL 103 Origens 063

AL 104 Zumbi, a felicidade guerreira 063


8

Código Composição Pg.

AL 105 A beira e o mar 064

AL 106 Tempo rei 064

AL 107 A mão da limpeza 065

AL 108 O revólver do meu sonho 065

AL 109 Oração pela libertação da África do Sul 066

AL 110 Jubiabá 066

AL 111 Iá omim bum 067

AL 112 Depois que o Ilê passar 067

AL 113 Ofá 067

AL 114 E a terra tremeu 068

AL 115 Baticum 068

AL 116 Réquiem para Mãe Menininha do Gantois 069

AL 117 Branquinha 070

AL 118 Meia lua inteira 070

AL 119 Salve as folhas 071

AL 120 A verdadeira baiana 071

AL 121 O cu do mundo 072

AL 122 Serafim 072

AL 123 Quero ser teu funk 073

AL 124 Louvação a Oxum 074

AL 125 É d’Oxum 074

AL 126 Revolta Olodum 075

AL 127 Nossa gente 075

AL 128 Lavagem do Bonfim 076

AL 129 Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu 076

AL 130 Eu e água 077


9

Código Composição Pg.

AL 131 Onde o Rio é mais baiano 077

AL 132 Opachorô 078

AL 133 De ouro e marfim 078

AL 134 Pela Internet 079

AL 135 Quixabeira 079

AL 136 Doce de Carnaval 080

AL 137 Pretinha 080

AL 138 Aquele frevo axé 081

AL 139 Aguarte agora 081

AL 140 Vida boa 082

AL 141 Abracei o mar 082

AL 142 13 de maio 083

AL 143 Recôncavo 083

AL 144 Maricotinha 084

AL 145 Feitiço da Vila 084

AL 146 Capitão do mato 085

AL 147 YaYá Massemba 086

AL 148 Beleza pura 087

AL 149 Haiti 088

AL 150 Cabelo raspadinho 089

AL 151 Bahia minha preta 089


10

AL 001
Aquele Abraço
Gilberto Gil
O Rio de Janeiro continua lindo Alô, moça da favela – aquele abraço!
O Rio de Janeiro continua sendo Todo mundo da Portela – aquele abraço
O Rio de Janeiro, fevereiro e março Todo mês de fevereiro – aquele passo!
Alô, Banda de Ipanema – aquele abraço!
Alô, alô, Realengo – aquele abraço!
Alô, torcida do Flamengo – aquele abraço Meu caminho pelo mundo
Eu mesmo traço
Chacrinha continua balançando a pança A Bahia já me deu régua e compasso
E buzinando a moça e comandando a massa Quem sabe de mim sou eu – aquele abraço!
E continua dando as ordens no terreiro Pra você que me esqueceu – aquele abraço!

Alô, alô, seu Chacrinha – velho guerreiro Alô, Rio de Janeiro – aquele abraço!
Alô, alô Terezinha, Rio de Janeiro Todo povo brasileiro – aquele abraço!
Alô, alô, seu Chacrinha – velho palhaço
Alô, alô, Terezinha – aquele abraço!

AL 002
Alegria, alegria
Caetano Veloso
Caminhando contra o vento Ela pensa em casamento
Sem lenço e sem documento E eu nunca mais fui à escola
No sol de quase dezembro Sem lenço sem documento
Eu vou Eu vou
O sol se reparte em crimes Eu tomo uma coca-cola
Espaçonaves guerrilhas Ela pensa em casamento
Em Cardinales bonitas E uma canção me consola
Eu vou Eu vou

Em caras de presidentes Por entre fotos e nomes


Em grandes beijos de amor Sem livros e sem fuzil
Em dentes pernas bandeiras Sem fome e sem telefone
Bomba e Brigitte Bardot No coração do Brasil
O sol nas bancas de revista Ela nem sabe até pensei
Me enche de alegria e preguiça Em cantar na televisão
Quem lê tanta notícia? O sol é tão bonito
Eu vou Eu vou

Por entre fotos e nomes Sem lenço sem documento


Os olhos cheios de cores Nada no bolso ou nas mãos
O peito cheio de amores vãos Eu quero seguir vivendo amor
Eu vou Eu vou
Por que não? Por que não? Por que não? Por que não?
11

AL 003
Domingo no Parque
Gilberto Gil
O rei da brincadeira – ê, José O sorvete e a rosa – ô, José
O rei da confusão – ê João A rosa e o sorvete – ô José
Um trabalhava na feira – ê José Oi, dançando no peito – ô José
Outro na construção – ê João Do José brincalhão – ô José

A semana passada, no fim da semana O sorvete e a rosa – ô José


João resolveu não brigar A rosa e o sorvete – ô José
No domingo de tarde saiu apressado Oi, girando na mente – ô José
E não foi pra Ribeira jogar Do José brincalhão – ô José
Capoeira
Não foi pra lá pra Ribeira Juliana girando – oi, girando
Foi namorar Oi, na roda gigante – oi, girando
OI, na roda gigante – oi, girando
O José como sempre no fim da semana O amigo João – oi, João
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo um passeio no parque O sorvete é morango – é vermelho
Lá perto da Boca do Rio Oi, girando, e a rosa – é vermelha
Foi no parque que ele avistou Oi, girando, girando – é vermelha
Juliana Oi, girando, girando – olha a faca!
Foi que ele viu Olha o sangue na mão – ê, José
Juliana no chão – ê, José
Juliana na roda com João Outro corpo caído – ê, José
Uma rosa e um sorvete na mão Seu amigo João – ê, José
Juliana, seu sonho uma ilusão
Juliana e o amigo João Amanhã não tem feira – ê, José
O espinho da rosa feriu Zé Não tem mais construção – ê João
E o sorvete gelou seu coração
Não tem mais brincadeira – ê José
Não tem mais confusão – ê João
12

AL 004
Beira Mar
Caetano Veloso / Gilberto Gil
Na terra em que o mar não bate Mar que em todo mundo exista
Não bate o meu coração Ou melhor, é o mar do mundo
O mar onde o céu flutua De um certo ponto de vista
Onde morre o sol e a lua De onde só se avista o mar
E acaba o caminho do chão
Nasci numa onda verde E a ilha de Itaparica
Na espuma me batizei A Bahia é que é o cais
Vim trazido numa rede A praia, a beira, a espuma
Na areia me enterrarei E a Bahia só tem uma
Na areia me enterrarei Costa clara, litoral
Costa clara, litoral
Ou então nasci na palma É por isso que é o azul
Palha da palma no chão Cor de minha devoção
Tenho a alma de água clara Não qualquer azul, azul
Meu braço espalhado em praia De qualquer céu, qualquer dia
Meu braço espalhado em praia O azul de qualquer poesia
E o mar na palma da mão De samba tirado em vão

No cais, na beira do cais É o azul que a gente fita


Senti meu primeiro amor No azul do mar da Bahia
E num cais que era só cais É a cor que lá principia
Somente mar ao redor , E que habita em meu coração
somente mar ao redor E que habita em meu coração
Mas o mar não é todo mar
13

AL 005
Tropicália
Caetano Veloso
Sobre a cabeça os aviões Viva a Maria-ia-ia
Sob meus pés os caminhões Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
Aponta contra os chapadões Viva a Maria-ia-ia
Meu nariz Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval No pulso esquerdo bang-bang
Eu inauguro o monumento no planalto central do país Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração balança ao samba de um tamborim
Viva a bossa-sa-sa Emite acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça Senhoras e senhores ele põe os olhos grandes sobre
Viva a bossa-sa-sa mim
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
Viva Iracema-ma-ma
O monumento é de papel crepom e prata Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Os olhos verdes da mulata Viva Iracema-ma-ma
A cabeleira esconde atrás da verde mata Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
O luar do sertão
O monumento não tem porta Domingo é o Fino da Bossa
A entrada é uma rua antiga estreita e torta Segunda-feira está na fossa
E no joelho uma criança sorridente, Terça-feira vai à roça, porém
feia e morta estende a mão O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Viva a mata-ta-ta Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
Viva a mata-ta-ta Viva a banda-da-da
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta Carmem Miranda-da-da-da-da
Viva a banda-da-da
No pátio interno há uma piscina Carmem Miranda-da-da-da-da
Com água azul de amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando uma eterna primavera
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira
entre os girassóis
14

AL 006
Rock’n’Raul
Caetano Veloso
Quando eu passei por aqui Hoje qualquer ze-mané
A minha luta foi exibir Qualquer Caetano
Uma vontade felá-da-puta Pode dizer
De ser americano Que na Bahia
(E hoje olha os mano) Meu Krig-Há Bandolo
É puro ouro de tolo
de ficar só no Arkansas (E o lobo bolo)
Esbórnia na Califórnia
Dias ruins em New Orleans Mas minha alegria
O grande mago em Chicago Minha ironia
É bem maior que essa porcaria
Ter um rancho de éter no Texas
Uma plantation de maconha no Wyoming Ter um rancho de éter no Texas
Nada de axé, Dodô e Curuzu Uma plantation de maconha no Wyoming
A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul Nada de axé, Dodô e Curuzu
A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul
Rock’n’me
Rock’n’you Rock’n’me
Rock’n’roll Rock’n’you
Rock’n’Raul Rock’n’roll
Rock’n’Raul

AL 007
Expresso 2222
Gilberto Gil
Começou a circular o expresso 2222 Dizem que parece o bonde do morro
Que parte direto de Bonsucesso pra depois Do Corcovado daqui
Começou a circular o expresso 2222 Só que não se pega e entra e senta e anda
Da Central do Brasil O trilho é feito um brilho que não tem fim
Que parte direto de Bonsucesso Oi, que não tem fim
Pra depois do ano 2000 Que não tem fim
OI, menina, que não tem fim
Dizem que tem muita gente de agora
Se adiantando, partindo pra lá Nunca se chega no Cristo concreto
Pra 2001 e 2 e tempo afora De matéria ou qualquer coisa real
Até onde essa estrada do tempo vai dar Depois de 2001 e 2 e tempo afora
Do tempo vai dar O Cristo é como que foi visto subindo ao céu
Do tempo vai dar, menina do tempo vai Subindo ao céu
Num véu de nuvem brilhante subindo ao céu
Segundo quem já andou no expresso
Lá pelo ano 2000 fica a tal
Estação final do percurso-vida
Na terra-mãe concebida
De vento, de fogo, de água e sal
De água e sal
De água e sal
Ô, menina, de água e sal
15

AL 008
Refazenda
Gilberto Gil
Abacateiro Abacateiro
Acataremos seu ato Serás meu parceiro solitário
Nós também somos do mato Nesse itinerário da leveza pelo ar
Como o pato e o leão Abacateiro
Aguardaremos Saiba que na refazenda
Brincaremos no regato Tu me ensina a fazer renda
Até que nos tragam frutos Que eu te ensino a namorar
Teu amor, teu coração
Refazendo tudo
Abacateiro Refazenda
Teu recolhimento é justamente o significado Refazenda toda
Da palavra temporão Guariroba
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão

Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Por que todo tamarindo tem
O seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro
Doce manga venha ser também

AL 009
Refavela
Gilberto Gil
Iaiá, kiriê A refavela
Kiriê, iaiá Revela o choque entre a favela-inferno e o céu
A refavela Baby-blue-rock
Revela aquela que desce o morro e vem transar Sobre a cabeça de um povo chocolate e mel
O ambiente efervescente A refavela
De uma cidade a cintilar Revela o sonho de minha alma, meu coração
A refavela De minha gente, minha semente
Revela o salto que o preto pobre tenta dar Preta Maria, Zé, João
Quando se arranca do seu barraco
Prum bloco do BNH A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó A refavela
Alegoria
A refavela Elegia, alegria e dor
Revela a escola de samba paradoxal Rico brinquedo de samba-enredo
Brasileirinho pelo sotaque Sobre medo, segredo e amor
Mas de língua internacional A refavela
A refavela Batuque puro
Revela o passo De samba duro de marfim
Com que caminha a geração Marfim da costa
Do black jovem De uma Nigéria
Do black-Rio Miséria, roupa de cetim
Da nova dança do salão Iaiá, kiriê
Iaiá, kiriê Kiriê, iaiá
Kiriê, iaiá
16

AL 010
Oriente
Gilberto Gil
Se oriente, rapaz Onde o sol se esconde
Pela constelação do Cruzeiro do Sul Vê se compreende
Se oriente, rapaz Pela simples razão de que tudo depende
Pela constatação de que a aranha De determinação
Vive do que tece Determine, rapaz
Vê se não se esquece Onde vai ser seu curso de pós-graduação
Pela simples razão de que tudo merece Se oriente, rapaz
Consideração Pela rotação da Terra em torno do Sol
Considere, rapaz Sorridente, rapaz
A possibilidade de ir pro Japão Pela continuidade do sonho de Adão
Num cargueiro do Lloyd lavando porão
Pela curiosidade de ver

AL 011
Chuck Berry Fields Forever
Gilberto Gil
Trazidos d’Àfrica pra Américas de Norte e Sul Rock and roll
Tambor de tinto timbre tanto tom tocou Capítulo um
E neve, garça branca, valsa do Danúbio azul Versículo vinte
Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou -Sículo vinte
Século vinte e um
Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o Sol Versículo vinte
Rachado em mil raios pelo machado de Xangô -Sículo vinte
E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o Século vinte e um
rhythm’n’blues
Tornaram-se os ancestrais, os pais do rock’n’roll

Rock é nosso tempo, baby


Rock’n’roll é isso
Chucky Berry fields forever
Os quatro cavaleiros do após-calipso
O após-calipso
17

AL 012
Marginália 2
Gilberto Gil / Torquato Neto
Eu, brasileiro, confesso Aqui é o fim do mundo
Minha culpa, meu pecado Aqui é o fim do mundo
Meu sonho desesperado Aqui é o fim do mundo
Meu bem guardado segredo
Minha aflição Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Eu brasileiro, confesso Da fome, do medo e muito
Minha culpa, meu degredo Principalmente da morte
Pão seco de cada dia Olelê, lalá
Tropical melancolia
Negra solidão A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Aqui, o Terceiro Mundo Oh, yes, nós temos banana
Pede a benção e vai dormir Até pra dar e vender
Entre cascatas, palmeiras Olelê, lalá
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui, meu pânico e glória Aqui é o fim do mundo
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na Lua cheia
E termina antes do fim
18

AL 013
Geléia Geral
Gilberto Gil / Torquato Neto
Um poeta desfolha a bandeira Três destaques da Portela
E a manhã tropical se inicia Carne-seca na janela
Resplandente, cadente, fagueira Alguém que chora por mim
Num calor girassol com alegria Um carnaval de verdade
Na geléia geral brasileira Hospitaleira amizade
Que o Jornal do Brasil anuncia Brutalidade jardim

Ê bumba-yê-yê-boi Ê bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi Ano que vem, mês que foi
Ê bumba-yê-yê-yê Ê bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi É a mesma dança, meu boi
Plurialva, contente e brejeira
A alegria é a prova dos nove Miss linda Brasil diz “bom dia”
E a tristeza é teu porto seguro E outra moça também, Carolina
Minha terra é onde o Sol é mais limpo Da janela examina a folia
E Mangueira onde o samba é mais puro Salve o lindo pendão dos seus olhos
Tumbadora na selva-selvagem E a saúde que o olhar irradia
Pindorama, país do futuro
Ê bumba-yê-yê-boi
Ê bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi
Ano que vem, mês que foi Ê bumba-yê-yê-yê
Ê bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha a bandeira
É a mesma dança na sala E eu me sinto melhor colorido
No Canecão, na TV Pego um jato, viajo, arrebento
E quem não dança não fala Com o roteiro do sexto sentido
Assiste a tudo e se cala Voz do morro, pilão de concreto
Não vê no meio da sala Tropicália, bananas ao vento
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada Ê bumba-yê-yê-boi
Um LP de Sinatra Ano que vem, mês que foi
Maracujá, mês de abril Ê bumba-yê-yê-yê
Santo barroco baiano É a mesma dança, meu boi
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
19

AL 014
Génesis
Caetano Veloso
Primeiro não havia nada Diz que existe essa tribo
Nem gente nem parafuso De gente que toma um vinho
O céu era tão confuso Num determinado dia
E não havia nada E vê a cara da jia
Mas o espírito de tudo Gente que toma um vinho
Quanto ainda não havia Que torna os tempos imóveis
Tomou forma de uma jia Diz que existe essa gente
Espírito de tudo Dizem que tudo é sagrado
E dando o primeiro pulo Devem se adorar as jias
Tornou-se o verso e o reverso E as coisas que não são jias
De tudo que é universo Diz que tudo é segredo
Dando o primeiro pulo E não havia nada
Assim que passou a haver Espírito de tudo
Tudo quanto não havia Dando o primeiro pulo
Tempo pedra peixe dia Assim passou a haver
Assim passou a haver Diz que existe essa tribo
Dizem que existe uma tribo Gente que toma um vinho
De gente que sabe o modo Diz que existe essa gente
De ver esse fado todo Diz que tudo é sagrado

AL 015
Oslodum
Gilberto Gil

Eu vou prá Oslo Eu vou prá Oslo aprender


Prá sair no Oslodum Um canto prá Xangô
Um bloco afro Que lá se chama Thor
Na terra do bacalhau O filho do trovão
Que todo ano
Caia neve ou faça sol Eu vou prá Oslo cantar
Vai prá avenida Eu vou prá Oslo encantar
No dia do Carnaval Aquela moça
A mais bonita do lugar
Eu vou prá Oslo Do pelourinho lourinho
Prá ver Da cabecinha lourinha
A turma do Pelô
Do Pelourinho Do coração igual ao nosso a palpitar
Pé lourinha
Pé lourão
20

AL 016
Outras palavras
Caetano Veloso
Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca Quase João Gil Ben muito bem mas barroco como eu
Travo trava mãe e papai alma buena dicha loca Cérebro maquina palavras sentidos corações
Neca dese sono de nunca jamais nem never more Hiperestesia Buarque voila tu sais de cor
Sim dizer que sim pra Cilu pra Dedé pra Dadi e Dó Tinjo-me romântico mas sou vadio computador
Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza: Só que sofri tanto que grita porém daqui pra frente:
Outras palavras Outras palavras

Tudo seu azul tudo céu tudo azul e furtacor Parafins gatins alphaluz sexonhei la guerrapaz
Tudo meu amor tudo mel tudo amor e ouro e sol Ouraxé palávora driz okê Cris expacial
Na televisão na palavra no átimo no chão Projeitinho imanso ciumortevida vidavid
Quero essa mulher solamente pra mim mas muito mais Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me Logun
Rima pra que faz tanto mais tudo dor amor e gozo: Homenina nel parais de felicidadania:
Outras palavras Outras palavras

Nem vem que não tem vem que tem coração tamanho
trem
Como na palavra palavra a palavra estou em mim
E fora de mim quando você parece que não dá
Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir
Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha:
Outras palavras

AL 017
Toda Menina Baiana
Gilberto Gil
Toda menina baiana tem um santo, que Deus dá
Toda menina baiana tem encanto, que Deus dá
Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá
Toda menina baiana tem defeito também que Deus dá

Que Deus deu


Que Deus dá

Que Deus entendeu de dar a primazia


Pro bem, pro mal, primeira mão na Bahia
Primeira missa, primeiro índio abatido também
Que Deus deu

Que Deus entendeu de dar toda magia


Pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia
Primeiro carnaval, primeiro pelourinho também
Que Deus deu

Que Deus deu


Que Deus dá
21

AL 018
Milagres do povo
Caetano Veloso
Quem é ateu É no xaréu
E viu milagres como eu Que brilha a prata luz do céu
Sabe que os deuses sem Deus Que o povo negro entendeu
Não cessam de brotar Que o grande vencedor
Nem cansam de esperar Se ergue além da dor
E o coração que é soberano e que é senhor Tudo chegou sobrevivente num navio
Não cabe na escravidão Quem descobriu o Brasil
Não cabe no seu não Foi o negro que viu
Não cabe em si de tanto sim A crueldade bem de frente e ainda produziu milagres
É pura dança e sexo e glória De fé no extremo Ocidente
E paira para além da história
Ojuobá ia lá e via
Ojuobá ia lá e via Ojuobahia
Ojuobahia Xangô manda chamar
Xangô manda chamar Obatalá guia
Obatalá guia Mamãe Oxum chora
Mamãe Oxum chora Lagrimalegria
Lagrimalegria Pétala de Iemanjá
Pétala de Iemanjá Iansã-Oiá ria
Iansã-Oiá ria Ojuobahia lá e via
Ojuobahia lá e via Ojuobahia
Ojuobahia Obá
Obá

AL 019
O Veado
Gilberto Gil
O veado Ó veado
Como é lindo Quanto tato
Escapulindo, pulando Preciso pra chegar perto
Evoluindo Ando tanto
Correndo evasivo Querendo o teu pulo certo
Ei-lo do outro lado Teu encanto
Quase parado um instante Teu porte esperto, delgado
Evanescente
Quase que olhando pra gente Ser veado
Evaporante Ser veado
Eva pirante Ter as costelas à mostra
E uma delas
O veado Tê-la extraída das costas
Greta Garbo Tê-la Eva bem exposta
Garbo a palavra mais justa Tê-la Eva bem à vista
Que me gusta
Que me ocorre Eva Eva Evaporante
Para explicar um veado Eva Eva Eveado
Quando corre
Garbo o esplendor de uma dama
Das camélias
Garbo vertiqualidade
Animália
Anamélia
22

AL 020
Enquanto seu lobo não vem
Caetano Veloso

Vamos passear na floresta escondida, meu amor Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear na avenida Vamos passear escondidos
Vamos passear nas veredas no alto, meu amor Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
Há uma cordilheira sob o asfalto Vamos por debaixo das ruas

(Os clarins da banda militar...) (Os clarins da banda militar...)


A Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas Debaixo das bombas, das bandeiras
(Os clarins da banda militar...) (Os clarins da banda militar...)
Passa por debaixo da avenida Presidente Vargas Debaixo das botas
(Os clarins da banda militar...) (Os clarins da banda militar...)
Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas Debaixo das rosas, dos jardins
(Os clarins da banda militar...)
Debaixo da lama
(Os clarins da banda militar...)
Debaixo da cama

AL 021
Caminhos do Mar
Danilo Caymmi / Dudu Falcão / Dorival Caymmi

Iemanjá, Odoiá, Odoiá, rainha do mar Quem ouve desde menino


Iemanjá, Odoiá, Odoiá, rainha do mar Aprende a acreditar
Que o vento sopra os destinos
O canto vinha de longe Pelos caminhos do mar
De lá do meio do mar O pescador que conhece
Não era canto de gente As histórias do lugar
Bonito de admirar Morre de medo e vontade de encontrar Iemanjá
O corpo todo estremece
Muda a cor do céu, do luar Iemanjá, Odoiá, Odoiá, rainha do mar
Um dia ela ainda aparece Iemanjá, Odoiá, Odoiá, rainha do mar
É a rainha do mar

Iemanjá, Odoiá, Odoiá, rainha do mar


Iemanjá, Odoiá, Odoiá, rainha do mar
23

AL 022
Água de Meninos
Gilberto Gil / Capinam

Na minha terra, Bahia A feira nem bem sabia


Entre o mar e a poesia Se ia pro mar ou sumia
Tem um porto, Salvador E nem o povo queria
As ladeiras da cidade Escolher outro lugar
Descem das nuvens pro mar Enquanto a feira não via
E num tempo que passou A hora de se mudar
Toda a cidade descia Tocaram fogo na feira
Vinha pra feira comprar Ai, me diga, minha sinhá
Pra onde correu o povo?
Água de Meninos, quero morar Pra onde correu a moça
Quero rede e tangerina Vinda de Taperoá?
Quero peixe desse mar
Quero vento dessa praia Água de Meninos chorou
Quero azul, quero ficar Caranguejo correu pra lama
Com a moça que chegou Saveiro ficou na costa
Vestida de rendas ô A moringa rebentou
Vinda de Taperoá Dos olhos do barraqueiro
Muita água derramou
Por cima da feira, as nuvens
Atrás da feira, a cidade Água de Meninos acabou
Na frente da feira, o mar Quem ficou foi a saudade
Atrás do mar, a marinha Da noiva dentro da moça
Atrás da marinha, o moinho Vinda de Taperoá
Atrás do moinho, o governo Vestida de rendas, ô
Que quis a feira acabar Abre a roda pra sambar

Dentro da feira, o povo Moinho da Bahia queimou


Dentro do povo, a moça Moinho da Bahia queimou
Dentro da moça, a noiva Abre a roda pra sambar
Vestida de rendas ô
Abre a roda pra sambar

Moinho da Bahia queimou


Queimou, deixa queimar
Abre a roda pra sambar

AL 023
Caminho das Índias
Moraes Moreira

Minha mãe-de-leite sempre me ensinou Caminho das Índias, caminho do mar


Meu tempero é outro, eu sou do azeite, O vento e a vela, cravo e canela
Pimenta-de-cheiro, pitadas de amor O ouro do rei na mesma panela
Sal da terra, salve, salva, Salvador Deixa cozinhar, que eu fico contente
Ai, meu coração, preciso de amparo Canta, minha gente, rapaz se oriente
Busco em Santo Amaro, purificação Eu sou a semente que veio de lá
24

AL 024
Maria Bethânia
Caetano Veloso

Everybody knows that our cities were built to be destroyed Maria Bethânia, please send me a letter
You get annoyed, you buy a flat, you hide behind the mat I wish to now things
But I know she was born to do everything wrong Are getting better
with all of that Better, better, Beta, beta, Bethânia
Please, send me a letter
Maria Bethânia, please send me a letter I wish to know things are getting better
I wish to now things
Are getting better Everybody knows that it’s so hard
Better, better, Beta, beta, Bethânia to dig and get to the root
Please, send me a letter You eat the fruit, you go ahead,
I wish to know things are getting better you wake up on your bed
But I love her face ‘cause
She was given her soul to the devil it has nothing to do with all I said
but the devil gave his soul to God
Before the flood, after the blood, before you can see
She has given her soul to the devil
And bought a flat by the sea

AL 025
Queda d’água
Caetano Veloso

A queda d’água ergueu-se à minha frente


De repente
Tudo ficou de pé eternamente
A floresta, a pedra, o vento vertical do abismo
E o senhor que anima esse ambiente
Ficou comigo
Eu sou potente e contenho a visão
Da queda erguida d’água-vida tão contente e são
Havia ali
A presença toda sã
De minha irmã e (coisa mais que azul)
A lua
Sobre um pinheiro do Sul
25

AL 026
Reconvexo
Caetano Veloso

Eu sou a chuva (o vento) que lança a areia do Saara Eu sou um preto norte-americano forte
Sobre os automóveis de Roma Com um brinco de ouro na orelha
Eu sou a sereia que dança Eu sou a flor da primeira música
A destemida Iara A mais velha
Água e folha da Amazônia A mais nova espada e seu corte
Sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra Sou o cheiro dos livros desesperados
Você não me pega Sou Gita Gogóia
Você nem chega a me ver Seu olho me olha mas não me pode alcançar
Meu som te cega, careta, quem é você? Não tenho escolha, careta, vou descartar
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador Quem não rezou a novena de Dona Cano
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô Quem não seguiu o mendigo Joãosinho Beija-Flor
E que não riu com a risada de Andy Warhol Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Que não, que não e nem disse que não Quem não é Recôncavo e nem pode ser reconvexo

AL 027
Remelexo
Caetano Veloso

Que menina é aquela Ninguém sabe onde ela mora


Que entrou na roda agora? Ninguém sabe sua janela
Eu quero falar com ela Ninguém sabe sua porta
Ninguém sabe onde ela mora Quem sabe se ela é donzela?
Por ela bate o pandeiro Quem sabe se ela namora?
Por ela canta a viola E depois o samba acaba
Enquanto ela está sambando E ela fica na memória
Ninguém mais entra na roda Por ela bate meu o peito
Enquanto ela samba Por ela a viola chora
As outras ficam do lado de fora Que menina é aquela
E quando ela pára Que entrou na roda agora?
O samba se acaba na mesma hora Ninguém sabe nessa terra
Valha-me, Deus, Me contar a sua estória
Se ela pára o samba e vai-se embora Que menina é aquela
Eu quero falar com ela Que entrou na roda agora?
Ela tem um remelexo
Que valha-me, Deus,
Nossa Senhora!
26

AL 028
É proibido proibir
Caetano Veloso

A mãe da virgem diz que não Me dê um beijo, meu amor


E o anúncio da televisão Eles estão nos esperando
E estava escrito no portão Os automóveis ardem em chamas
E o maestro Derrubar as prateleiras
Ergueu o dedo As estantes, as estátuas
E além da porta há o porteiro, sim As vidraças, louças, livros, sim
Eu digo não E eu digo sim
Eu digo não ao não E eu digo não ao não
E eu digo Eu digo
É proibido proibir É proibido proibir
É proibido proibir É proibido proibir
É proibido proibir É proibido proibir
É proibido proibir É proibido proibir

AL 029
Adeus, batucada
Synval Silva

Adeus E do meu grande amor


Adeus Sempre me despedi sambando
Meu pandeiro do samba Mas, da batucada
Tamborim de bamba Agora me despeço chorando
Já é de madrugada Guardo no lenço
Vou-me embora chorando Esta lágrima sentida
Com meu coração sorrindo Adeus, batucada
E vou deixar todo mundo Adeus, batucada querida
Valorizando a batucada

Em criança
Com samba vivia sonhando
Acordava
Estava tristonho, chorando
Jóia que se perde no mar
Só se encontra no fundo
Sambai, mocidade
Sambando se goza neste mundo
27

AL 030
Triste Bahia
Gregório de Mattos/Caetano Veloso

Triste Bahia! Oh, quão dessemelhante Triste, oh! Quão dessemelhante


Estás, e estou do nosso antigo estado! Ê o galo cantou
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, O galo cantou, camará
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante. Ê cocorocó, ê cocorocó, camará
Ê triste Bahia, ê triste Bahia, camará
A ti trocou-te a máquina mercante
Que em tua larga barra tem entrado Bandeira Branca enfiada em pau forte
A mim foi-me trocando, e tem trocado Afoxé lei, lei leô
Tanto negócio e tanto negociante Bandeira branca enfiada em pau forte
O vapor de Cachoeira não navega mais no mar
Triste Bahia, oh! Quão dessemelhante, triste... Triste Recôncavo, oh! Quão dessemelhante
Pastinha já foi à África Maria pegue o mato, é hora
Pastinha já foi à África Arriba a saia e vamo-nos embora
Pra mostrar capoeira do Brasil Pé dentro, pé fora,
Eu já vivo tão cansado Quem tiver pé pequeno vai embora
De viver aqui na terra
Minha mãe, eu vou pra lua Oh! Virgem Mãe puríssima
Eu mais a minha mulher Bandeira branca enfiada em pau forte
Vamos fazer um ranchinho Trago no peito a estrea do norte
Todo feito de sapé, minha mãe, eu vou pra lua Bandeira branca enfiada em pau forte
E seja o que Deus quiser
28

AL 031
It’s a long way
Caetano Veloso

Woke up this morning A água com areia brinca na beira do mar


Singing an old, old Beatles song A água passa e a areia fica no lugar
We’re not that strong, my lord
You know we ain’t that strong (It’são a hard way)
I hear my voiced among others
In the break of day e se não tivesse o amor
Hey brothers e se não tivesse essa dor
Say brothers e se não tivesse o sofrer
It’s a long long long long way e se não tivesse o chorar
e se não tivesse o amor
Os olhos da cobra verde
Hoje foi que arreparei no Abaeté tem uma lagoa escura
E se arreparasse há mais tempo Arrodeada de areia branca
Não amava quem amei

Arrenego de quem diz


Que o nosso amor se acabou
Ele agora está mais firme
Do que quando começou
29

AL 032
Jóia
Caetano Veloso

Beira de mar, beira de mar Copacabana, Copacabana


Beira de maré na América do Sul Louca, total e completamente louca
Um selvagem levanta o braço A menina muito contente
Abre a mão e tira um caju Toca a coca-cola na boca
Um momento de grande amor Um momento de puro amor
De grande amor De puro amor

AL 033
Procissão
Gilberto Gil

Olha lá vai passando a procissão Só que acho que ele se esqueceu


Se arrasando que nem cobra pelo chão De dizer que na Terra a gente tem
As pessoas que nela vão passando Que arranjar um jeitinho pra viver
Acreditam nas coisas lá do céu Muita gente se arvora a ser Deus
As mulheres cantando tiram verso E promete tanta coisa pro sertão
E os homens escutando tiram o chapéu Que vai dar um vestido pra Maria
Eles vivem penando aqui na Terra E promete um roçado pro João
Esperando o que Jesus prometeu Entra ano, sai ano e nada vem
E Jesus prometeu coisa melhor Meu sertão continua ao Deus-dará
Pra quem vive neste mundo sem amor Mas se existe Jesus no firmamento
Só depois de entregar o corpo ao chão Cá na Terra isso tem que se acabar
Só depois de morrer neste sertão
Eu também to do lado de Jesus
30

AL 034
Domingou
Gilberto Gil/Torquato Neto

Da janela a cidade se ilumina Quem tiver coração mais aflito


Como nunca jamais se iluminou Quem quiser encontrar seu amor
São três horas da tarde, é domingo Dê uma volta na praça do Lido
Na cidade, no Cristo Redentor, ê ê Ô skindô, Ô skindô, skindô lê lê
É domingo no trolley que passa, ê, ê
É domingo na moça e na praça, ê, ê Quem quiser procurar residência
É domingo ê, ê Quem está noivo e já pensa em casar
Domingou meu amor Pode olhar o jornal, paciência
Tra lá lá tra lá lá ,ê ê
Hoje é dia de feira, é domingo
Quanto custa hoje em dia o feijão O jornal de manhã chega cedo
São três horas da tarde, é domingo Mas não traz o que eu quero saber
Em Ipanema e no meu coração ê,ê As notícias que leio eu conheço
É domingo no Vietnã, ê, ê Já sabia antes mesmo de ler ê, ê
Na Austrália, em Itapuã, ê, ê Qual o filme que você quer ver, ê, ê
É domingo ê, ê Que saudade, preciso esquecer ê, ê
Domingou meu amor É domingo ê, ê
Domingou meu amor

Olha a rua, meu bem, meu benzinho


Tanta gente que vai e que vem
São três horas da tarde, é domingo
Vamos dar um passeio também, ê, ê
O bondinho viaja tão lento, ê, ê
Olha o tempo passando, olha o tempo, ê, ê
É domingo ê, ê
Domingou meu amor

AL035
Back in Bahia
Gilberto Gil

Lá em Londres vez em quando me sentia longe daqui Cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar
Vez em quando, quando me sentia longe dava por mim Tão diferente do verde também tão lindo dos gramados
Puxando o cabelo Campos de lá
Nervoso, querendo ouvir Celly Campelo Ilha do Norte
Pra não cair naquela fossa Onde não sei se por sorte ou por castigo dei de parar
Em que vi um camarada meu de Portobello cair Por algum tempo
Naquela falta de juízo que eu não tinha Que afinal passou depressa como tudo tem de passar
Nenhuma razão pra curtir Hoje eu me sinto como se ter ido
Naquele ausência de calor, Fosse necessário para voltar
De cor, de sal, de sol, de coração pra sentir Tanto mais vivo
Tanta saudade preservada De vida mais vivida
Num velho baú de prata dentro de mim Dividida pra lá e pra cá
Digo num baú de prata por que prata é a luz do luar
Do luar que tanta falta me fazia junto com o mar
Mar da Bahia
31

AL 036
Iansã
Gilberto Gil / Caetano Veloso

Senhora das nuvens de chumbo Eu sou um céu para tuas tempestades


Senhora do mundo Um céu partido ao meio no meio da tarde
Dentro de mim Eu sou um céu para tuas tempestades
Rainha dos raios Deusa pagã dos relâmpagos
Rainha dos raios Das chuvas de todo ano
Rainha dos raios Dentro de mim
Tempo bom
Tempo ruim

Senhora das chuvas de junho


Senhora de tudo
Dentro de mim
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Tempo bom
Tempo ruim

AL 037
Filhos de Gandhi
Gilberto Gil

Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim
Todo o pessoal Chama o pessoal
Manda descer pra ver Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi Filhos de Gandhi

Iansã, Iemanjá, chama Xangô Oh! Meu Deus do céu, na terra é carnaval
Oxóssi também Chama o pessoal
Manda descer pra ver Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi Filhos de Gandhi

Mercador, Cavaleiro de Bagdá


Oh!, Filhos de Obá
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
32

AL 038
Sol Negro
Caetano Veloso

Na minha voz trago a noite e o mar


O meu canto é a luz de um sol negro em dor
É o amor que morreu na noite do mar
Valha Nossa Senhora, há quanto tempo ele foi-se embora
Para bem longe, prá além do mar
Para além dos braços de Iemanjá
Adeus!

AL 039
Divino, maravilhoso
Caetano Veloso / Gilberto Gil

Atenção Atenção
Ao dobrar uma esquina Tudo é perigoso
Uma alegria Tudo é divino maravilhoso

Atenção menina Atenção para o refrão


Você vem É preciso estar atento e forte
Quantos anos você tem? Não temos tempo de temer a morte

Atenção Atenção
Precisa ter olhos firmes Para as janelas no alto
Pra esse sol, para essa escuridão
Atenção
Atenção Ao pisar o asfalto mangue
Tudo é perigoso Atenção
Tudo é divino maravilhoso Para o sangue sobre o chão

Atenção para o refrão É preciso estar atento e forte


É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte
Não temos tempo de temer a morte

Atenção
Para a estrofe e pra o refrão
Pra o palavrão, para a palavra de ordem

Atenção
Para o samba exaltação
33

AL 040
Falsa baiana
Geraldo Pereira

Baiana que entra no samba e só fica parada A falsa baiana


Não samba, não mexe, não bole nem nada Quando entra no samba
Não sabe deixar a mocidade louca Ninguém se incomoda
Baiana é aquela que entra no samba Ninguém bate palmas,
De qualquer maneira Ninguém abre a roda
Que mexe, remexe, dá nó nas cadeiras Ninguém grita oba!
E deixa a moçada com água na boca Salve a Bahia!
Mas a gente gosta é quando
Uma baiana samba direitinho
De cima em baixo,
Revira os olhinhos
Dizendo: eu sou filha de São Salvador!

AL 041
Modinha para Gabriela
Dorival Caymmi

Quando eu vim para este mundo Pouco me importou


Eu não atinava em nada É assim que eu sou
Hoje eu sou Gabriela Gabriela, sempre Gabriela
Gabriela, ô, meus camarada Eu sou desigual
Eu nasci assim Não desejo mal
Eu cresci assim Amo natural
E sou mesmo assim Etcetera e tal
Vou ser sempre assim Gabriela, sempre Gabriela
Gabriela, sempre Gabriela
Quem me batizou
Quem me nomeou
34

AL 042
Ponto do Guerreiro Branco
D. P.

Eu disse camarada que eu vinha


Na sua aldeia camarada um dia
Izá, Izá, Izá
Boa noite, meus senhores
Izá, Izá, Izá
Boa noite peço licença
Izá, Izá, Izá
Boa noite, meus senhores
Izá, Izá, Izá
Boa noite peço licença
Oh! Deus vos salve, essa casa santa
Oh! Deus vos salve espada de guerreiro
Bandeira branca enfiada em pau forte
Trago no peito são estrela do norte

AL 043
Ponto de Iansã
D. P.

Oyá, Oyá Oyá ê


Oyá Matamba de cacurucaia zinguê
Oyá, Oyá Oyá ê
Oyá Matamba de cacurucaia zinguê Ô
35

AL 044
Oração à Mãe Menininha
Dorival Caymmi

Ai, minha mãe Olorum quem mandou


Minha mãe Menininha Essa filha de Oxum
Ai, minha mãe Tomar conta da gente
Menininha do Gantois E de tudo cuidar
Olorum quem mandou
A estrela mais linda Ora iê iê ô
Tá no Gantois
E o sol mais brilhante
Tá no gantois
A beleza do mundo, hein?
Tá no Gantois
E a mão da doçura, hein?
Tá no Gantois
O consolo da gente, Hein?
Tá no Gantois
E o consolo da gente, hein?
Tá no Gantois
36

AL 045
As Ayabás
Caetano Veloso / Gilberto Gil

Nenhum outro som no ar Euá, Euá


Pra que todo mundo ouça É uma moça cismada que se esconde na mata
Eu agora vou cantar E não tem medo de nada
Para todas as moças Euá, Euá
Eu agora vou bater Não tem medo de nada; o chão os bichos, as folhas, o
Para todas as moças céu
Para todas ayabás Euá, Euá
Para todas elas Virgem da mata virgem
Da mata virgem dos lábios de mel
Iansã comanda os ventos
E a força dos elementos Oxum
Na ponta do seu florim Oxum
É uma menina bonita Doce mãe dessa gente morena
Questão**uando o céu se precipita Oxum
Sempre o princípio e o fim Água dourada, lagoa serana
Oxum
Obá Oxum
Não tem homem que enfrente Beleza da força da beleza da força da beleza
Obá Oxum
A guerreira mais valente Oxum
Obá
Não sei se me deixo mudo
Obá
Numa mão rédeas e escudo
Obá
Não sei se canto ou se não
Obá
A espada na outra mão
Obá
Não sei se canto ou se calo
Obá
De pé sobre seu cavalo
37

AL 046
A Bahia te espera
Herivelto Martins / Chianca de Garcia

A Bahia da magia Vem, vem, vem


Dos feitiços e da fé Vem em busca da Bahia
Bahia que tem tanta Igreja Cidade da tentação
Que tem tanto candomblé Onde o meu feitiço impera
Vem
Para te buscar Se me trazes o teu coração
Nosos saveiros já partiram para o mar Vem
Iá iá Eufrásia Que a Bahia te espera
Na beira do Sobradão Bahia!
Tá preparando seu candomblé Bahia!
Velha Damásia da ladeira do mamão Bahia!
Tá preparando acarajé Bahia!

Para te buscar
Nossos saveiros já partiram para o mar
Nossas morenas, roupas novas vão comprar
Se tu vieres, virá
Provar o meu vatapá
Se tu vieres, viverás, nos meus braços
A Festa de Iemanjá

AL 047
Alegre Menina
Jorge Amado / Dori Caymmi

O que fizeste, Sultão, de minha alegre menina? De prata prá repousar


Só desejava o amor
Palácio real lhe dei Dos homens prá bem amar
Um trono de pedrarias O que fizeste, Sultão, de minha alegre menina?
Sapato bordado a ouro No baile real levei
Esmeraldas e rubis A tua alegre menina
Ametistas para os dedos Vestida de realeza
Vestidos de diamante Com princesas conversou
Escravos para servi-la Com doutores praticou
Um lugar no meu dossel Dançou a dança faceira
E a chamei de rainha Bebeu o vinho mais caro
E a chamei de rainha Mordeu fruta estrangeira
O que fizeste, Sultão, de minha alegre menina? Caiu nos braços do rei
Só desejava a campina Rainha mais verdadeira
Colher as flores do mato O que fizeste, Sultão, de minha alegre menina?
Só desejava o espelho
De vidro prá se mirar
Só desejava do sol
Calor para bem viver
Só desejava o luar
38

AL 048
O que é que a baiana tem?
Dorival Caymmi

O que é que a baiana tem? O que é que a baiana tem?


O que é a baiana tem? Que é que a baiana tem?
Tem torço de seda, tem em torço de seda, tem
Tem brincos de ouro, tem Tem brincos de ouro, tem
Tem pano-da-costa, tem Tem pano-da-costa, tem
Tem bata rendada, tem Tem bata rendada, tem
Tem pulseira de ouro, tem Tem pulseira de ouro, tem
Tem saia engomada, tem Tem saia engomada, tem
Tem graça como ninguém
Como ela requebra bem Só vai no Bonfim quem tem
Só vai no Bonfim quem tem
Quando você se requebrar
Caia por cima de mim Um rosário de ouro
Caia por cima de mim Uma bolota assim
Caia por cima de mim Quem não tem balangandãs
Ô não vai no Bonfim
Ô não vai no Bonfim

AL 049
Isto é bom
Xisto Bahia

O inverno é rigoroso Minha mulata bonita


Bem dizia a minha avó Vamos ao mundo girar
Quem não dorme junto tem frio Vamos ver a nossa sorte
Quanto mais quem dorme só Que Deus tem para nos dar

Isto é bom, isto é bom Isto é bom...


Isto é bom que dói
Isto é bom, isto é bom Minha mulata bonita
Isto é bom que dói Quem te deu tamanha sorte
Foi um soldado de mina
Se eu brigar com meus amores Do Rio Grande do Norte
Não se intrometa ninguém
Que acabado as arrufos Isto é bom...
Ou eu vou, ou ela vem
Minha viola de pinho
Isto é bom... Que eu mesmo fiz o pinheiro
Quem quiser ver coisa boa
Quem ver mulata bonita Não tenha dó de dinheiro
Bater no chão com pezinho
No sapateado a meio
Mata meu coraçãozinho

Isto é bom...
39

AL 050
Na baixa do sapateiro
Ary Barroso

Na Baixa do Sapateiro Ai, amor, ai, ai


Eu encontrei um dia Amor, bobagem que a gente não explica, ai, ai
A morena mais frajola da Bahia Prova um bocadinho, ô
Pedi um beijo, não deu Fica envenenado, ô
Um abraço, sorriu E pro resto da vida é um tal de sofrer
Pedi-lhe a mão Ô lará, ô lerê
Não quis dar
Fugiu Ai, Bahia, Iaiá
Bahia que não me sai do pensamento
Bahia, terra da felicidade Ouve meu lamento
Morena, eu ando louco de saudade Na desesperança
Meu Senhor do Bonfim De encontrar nesse mundo
Arranje outra morena O amor que eu perdi
Igualzinha pra mim Na Bahia
Vou contar...

AL 051
Bahia
Ary Barroso

Bahia, terra do coco babaçu Terra de jongo e do batuque


Bahia, que tem moqueca e umbu A batucar nas noites de reis
Baiana tem mandinga Eu prá Bahia hei de voltar
Baiana tem feitiço Juro por Deus
Eu sou da Bahia E não tem talvez
E mereço o sacrifício

Quem da Bahia tiver saudade


E pegue o pandeiro
E cai no choro
Roda o samba
Bate a chinela
Cai no desafio
Enfezando com...
40

AL 052
O Vento
Dorival Caymmi

Curimã, ê
Vamos chamar o vento Curimã lambaio
Vamos chamar o vento Curimã, ê
Curimã lambaio
Vento que dá na vela
Vela que leva o barco
Barco que leva gente
Gente que pega o peixe
Peixe que dá dinheiro
Curimã

AL 053
Vatapá
Dorival Caymmi

Bota a castanha de caju


Quem quiser vatapá, ô Um bocadinho mais
Que procure fazer Pimenta malagueta
Primeiro o fubá Um bocadinho mais
Depois o dendê Bota a castanha de caju
Procure uma nega baiana, ô Um bocadinho mais
Que saiba mexer Pimenta malagueta
Que saiba mexer Um bocadinho mais
Que saiba mexer
Não para de mexer, ô Amendoim, camarão
Que é prá não embolar Rala um coco
Panela no fogo Na hora de machucar
Não deixa queimar Sal com gengibre e cebola, Iaiá
Com qualquer dez mil réis Na hora de temperar
E uma nega, ô
Se faz um vatapá
Se faz um vatapá
Se faz um vatapá
41

AL 054
Rainha do Mar
Dorival Caymmi

Minha sereia, rainha do mar


Minha sereia, rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar

Minha sereia é moça bonita


Minha sereia é moça bonita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Nas ondas do mar aonde ela habita

Oh, tem dó de ver o meu penar


Oh, tem dó de ver o meu penar

AL 055
Requebra que dou um doce
Dorival Caymmi

Requebra que eu dou um doce Morena, balance as contas


Requebra que eu quero ver Não para de peneirar
Requebra meu bem que eu trouxe Eu vim prá lhe ver sambando
Um chinelo prá você Eu vim prá lhe ver sambar
Que é prá você requebrar A roda da tua saia
Moreninha da sandália do pompom grená Da barra de tafetá
Me põe a cabeça à roda
Quando acabar com essa sandália de lá Moreninha da sandália do pompom grená
Venha buscar essa sandália de cá
Prá não parar de sambar
Prá não parar de sambar

AL 056
Saudade da Bahia
Dorival Caymmi

Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia Ponha-se no meu lugar


Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia E veja como sofre um homem infeliz
Bem, não vá deixar a sua mãe aflita Que teve de desabafar
A gente faz o que o coração dita Dizendo a todo mundo o que ninguém diz
Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão
Veja que situação
Ai, se eu escutasse hoje eu não sofria E veja como sofre um pobre coração
Ai, essa saudade dentro do meu peito Pobre de quem acredita
Ai, se ter saudade é ter algum defeito Na glória e no dinheiro para ser feliz
Eu pelo menos mereço o direito
De ter alguém com quem eu possa me confessar
42

AL 057
Você já foi à Bahia?
Dorival Caymmi

Você já foi à Bahia, nega? Nas sacadas dos sobrados


Não? Então vá Da velha São Salvador
Quem vai ao Bonfim, minha nega A lembrança de donzelas
Nunca mais quer voltar Do tempo do imperador
Muita sorte teve Tudo, tudo na Bahia
Muita sorte tem Faz a gente querer bem
Muita sorte terá A Bahia tem um jeito
Você já foi à Bahia, nega? Que nenhuma terra tem
Não? Então vá
Você já foi à Bahia, nega?
Lá tem vatapá Não? Então vá
Então vá
Lá tem caruru
Então vá
Lá tem mungunzá
Então vá
Se quiser sambar
Então vá

AL 058
Lá vem a baiana
Dorival Caymmi

Lá vem a baiana Pode jogar seu quebranto que eu não vou


De saia rodada, sandália bordada Pode invocar o seu Sant que eu não vou
Vem me convidar para sambar Pode esperar sentada, baiana
Mas eu não vou Que eu não vou

Lá vem a baiana Não vou porque não posso resistir à tentação


Coberta de contas, pisando nas pontas Se ela sambar eu vou sofrer
Achando que eu sou o seu Ioiô Esse diabo sambando é mais mulher
Mas eu não vou E seu eu deixar
Ela faz o que bem quer
Lá vem a baiana Não vou, não vou, não vou
Mostrando os encantos Nem amarrado porque eu sei
Falando nos santos Lá lá lá lá lá lá lá lá
Dizendo que é filha do Senhor do Bonfim
Mas prá cima de mim?...
43

AL 059
Sábado em Copacabana
Dorival Caymmi

Depois de trabalhar toda a semana Depois dançar


Meu sábado não vou desperdiçar Um bom lugar, Copacabana
Já fiz o meu programa pra esta noite Pra passear à beira-mar, Copacabana
E já sei por onde começar A noite passa tão depressa
Um bom lugar Mas vou voltar lá pra semana
Para encontrar, Copacabana Se eu encontrar um novo amor
Pra se amar, um só lugar, Copacabana Copacabana
Depois um bar á meia-luz
Copacabana
Eu esperei por essa noite uma semana

AL 060
Tem francesa no morro
Assis Valente

Donê muá si vu plê Dance Iôiô


Lonér de dance avec muá Dance iáiá
Dance Iôiô Si vu nê nê pá dance
Dance iáiá Pardon, ma cherrie
Si vu freqüente macumbe Adieu, je me vá
Entre na virada e fini pur samba Dance Iôiô
Dance Iôiô Dance iáiá
Dance iáiá Vian, petite francesa
Vian, petite francesa Dancê Le Classique
Dancê Le Classique En cime de mesa
En cime de mesa
Quando la dance comence
On dance ici, on dance aculá
44

AL 061
E bateu-se a chapa
Assis Valente

E bateu-se a chapa, meu bem Olhe que eu te estranho


Nessa posição E mando a navalha
Eu com a cabeça pendida no teu coração E corto esse chapéu de palha
E hoje quando passas por mim E essa calça de flanela
Nem me dás valor, eu sei Que fui eu quem deu
Mas eu vou contar a todo mundo É por isso que bateu-se a chapa, meu bem
Que já fui o teu amor Não sei se te lembras, amor
E bateu-se a chapa, meu bem Qual foi a razão
Acho muita graça, meu bem Que a minha cabeça
Quando você passa cheio de grandeza Ficou em cima do teu coração
Que até parece mais um rei A minha cabeleira ficou despenteada
Só prá esconder
Tua camisa de malandro toda esmolambada
É por isso que bateu-se a chapa, meu bem

AL 062
Alegria
Assis Valente / Durval Maia

Alegria prá cantar a batucada Da tristeza não quero saber


As morenas vão sambar A tristeza me faz padecer
Quem samba tem alegria Vou deixar a cruel nostalgia
Minha gente era triste, amargurada Vou fazer batucada de noite e de dia
Inventou a batucada Vou cantar
Prá deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer Esperando a felicidade
Para ver se eu vou melhorar
Vou cantando, fingindo alegria
Para a humanidade não me ver chorar
45

AL 063
Brasil Pandeiro
Assis Valente

Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor Brasil, esquentai vossos pandeiros
Eu fui à Penha Iluminai os terreiros
Fui pedir à padroeira para me ajudar Que nós queremos sambar!
Salve o Morro do Vintém Há quem sambe diferente
Pendura-Saia, que eu ver Noutras terras, outra gente
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro Um batuque de matar
para o mundo sambar
Batucada reuni nossos valores
O tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada Pastorinhas e cantores
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato Expressão que não tem par
Vai entrar no cuscuz Oh! Meu Brasil!
Acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de Brasil, esquentai vossos pandeiros
Iôiô e Iáiá Iluminai os terreiros
Que nós queremos sambar!

Há quem sambe diferente


Noutras terras
Outra gente num batuque de matar

AL 064
Cada tempo em seu lugar
Gilberto Gil

Preciso refrear um pouco Agora, deve estar chegando a hora


O meu desejo de ajudar De ir descansar
Não vou mudar um mundo louco Um velho sábio da Bahia
Dando socos para o ar Recomendou: “devagar”.
Não posso me esquecer que a pressa Não posso me esquecer que um dia
É a inimiga da perfeição Houve em que eu nem estava aqui
Se eu ando o tempo todo a jato Se eu ando por aí correndo
Ao menos, aprendi a ser o último a sair do avião Ao menos eu vou aprender o jeito
Preciso me livrar do ofício De não ter mais aonde ir
De ter que ser sempre bom Ôôôô
Bondade pode ser um vício Cada tempo em seu lugar
Levar a lugar nenhum Ôôôô
Não posso me esquecer que o açoite A velocidade, quando for bom
Também foi usado por Jesus A saudade, quando for melhor
Se eu ando o tempo todo aflito Solidão: quando a desilusão chegar
Ao menos, aprendi a dar meu grito
E a carregar a minha cruz
Ôôôô
Cada coisa em seu lugar
Ôôôô
A bondade, quando for bom ser bom
A justiça, quando for melhor
O perdão: se for preciso perdoar
46

AL 065
Buda nagô
Gilberto Gil

Dorival é ímpar Dorival é Eva


Dorival é par Dorival Adão
Dorival é terra Dorival é lima
Dorival é mar Dorival limão
Dorival tá no pé Dorival é a mãe
Dorival tá na mão Dorival é o pai
Dorival tá no céu Dorival é o pião
Dorival tá no chão Balança mas não cai
Dorival é belo
Dorival é bom Dorival é um monge chinês
Dorival é tudo Nascido na Roma negra, Salvador
Que estiver no tom Se é que ele fez fortuna
Dorival vai cantar Ele a fez apostando tudo
Dorival em CD Na carta do amor
Dorival vai sambar Ases, damas e reis
Dorival na TV Ele teve e passou (Iaiá)
Teve tudo aos seus pés (Ioiô)
Dorival é um Buda nagô Ele viu, nem ligou (Iaiá)
Filho da casa real da inspiração Seguidores fiéis (Ioiô)
Como príncipe, principiou E ele se adiantou (Iaiá)
A nova idade de ouro da canção Só levou seus pincéis (Ioiô)
Mas um dia, Xangô A viola e uma flor
Deu-lhe a iluminação
Lá na beira do mar (foi?) Dorival é índio
Na praia de Armação (foi não) Desse que anda nu
Lá na beira do mar (foi?) Que bebe garapa
Na praia de Armação (foi não) Que come beiju
Lá no Jardim de Alá (foi?) Dorival no Japão
Lá no alto Sertão (foi não). Dorival samurai
Lá na mesa de um bar (foi?) Dorival é a nação
Dentro do coração. Balança mas não cai
47

AL 066
Baianada
Gordurinha

Um baiano é uma boa pedida


Dois baianos é uma coisa divertida
Três baianos, uma conversa comprida
Quatro baianos, um comício na avenida

O baiano nasceu prá falar:


Na Bahia tem muito doutor
O Brasil foi descoberto na Bahia
E o resto é interior

É por isso que eu nem ligo


E é até cartaz prá mim
Quando a turma de São Paulo ou do Rio de Janeiro
Começa a cantar assim
Olhe aqui

Um baiano, um coco
Dois baianos, dois cocos
Três baianos, uma cocada
Quatro baianos, uma baianada
(Vamo lá)

AL 067
Outros bárbaros
Gilberto Gil

Será que ainda temos o que fazer na cidade?


Em nossos corações ainda resta um quê
De ansiedade
Apesar de ter sido um grande prazer para todos
Resta saber se ainda queremos seguir
Querendo-nos mútuo prazer

Outros bárbaros, tão doces, tão cruéis


Seguem vindo
Vivendo seus papéis de mocinhos e de bandidos
Será que ainda temos o que fazer na cidade?
Em nossos corações já reside um quê
De saudade
48

AL 068
Esotérico
Gilberto Gil

Não adianta nem me abandonar


Porque mistérios sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu prá você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões
Todos iguais

Até que nem tanto esotérico assim


Se eu sou algo incompreensível
Meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí

Não adianta nem me abandonar


Nem ficar tão apaixonada
Que não sabe nadar
Que morre afogada por mim

AL 069
Os mais doces bárbaros
Caetano Veloso

Com amor no coração Com a espada de Ogum


Preparamos a invasão E as benção de Olorum
Cheios de felicidade Como um raio de Iansã
Entramos na cidade amada Rasgamos a manhã vermelha

Peixe espada, peixe luz Tudo ainda é tal e qual


Doce bárbaro, Jesus E, no entanto, nada igual
Sabe bem quem né otário Nós cantamos de verdade
Peixe no aquário nada E é sempre outra cidade velha

Alto astral, altas transas, lindas canções


Afoxés, astronaves, aves, cordões
Avançando através dos grossos portões
Nossos planos são muito bons
49

AL 070
Fé cega, faca amolada
Milton Nascimento / Ronaldo Bastos

Agora não pergunto mais prá onde vai a estrada Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia
Agora não espero mais aquela madrugada Beber o vinho e renascer na luz de todo dia
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, A fé, a fé, paixão e fé, a fé
Vai ser faca amolada Faca amolada
Um brilho cego de paixão e fé O chão, o chão, o sal da terra, o chão
Faca amolada Faca amolada

Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranqüilo Deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia
Deixar o seu amor crescer e ser muito tranqüilo Deixar o seu amor crescer na luz de cada dia
Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar Vai ser, vai ser, vai ter de ser
Faca amolada Vai ser muito tranqüilo
Irmão, irmã, irmã, irmão de fé Um brilho cego de paixão e fé
Faca amolada Faca amolada

AL 071
Nós, por exemplo
Gilberto Gil

Nós somos apenas vozes Nós somos apenas vozes...


Nós somos apenas nós Nós somos apenas vozes
Por exemplo Do que foi chamado de “a grande expansão”
Apenas vozes da voz Pé no chão da fé
Somos nós, por exemplo Fé no céu aberto da imensidão
Apenas vozes da voz Nós, por exemplo, com muita paixão
Nós, por exemplo, com muita paixão
Nós somos apenas vozes
Ecos imprecisos do que for preciso Nós somos apenas vozes...
Impreciso agora
Impreciso tão preciso amanhã
Nós, por exemplo, já temos Iansã

Nós somos apenas vozes...


Nós somos apenas vozes
Do que quer que seja
Luz no cor de rosa
Cor da luz da brasa
Gás no que sustenta a asa no ar
Nós, por exemplo, queremos cantar
50

AL 072
Um índio
Caetano Veloso

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante Virá


De uma estrela que virá numa velocidade estonteante Impávido que nem Muhammad Ali
E pousará no coração do hemisfério sul Virá que eu vi
Na América, num claro instante Apaixonadamente como Peri
Depois de exterminada a última nação indígena Virá que eu vi
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida Tranqüilo e infalível como Bruce Lee
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas Virá que eu vi
Das tecnologias O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Virá que eu vi Surpreenderá a todos
Apaixonadamente como Peri Não por ser exótico
Virá que eu vi Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Tranqüilo e infalível como Bruce Lee Quando terá sido o óbvio
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico


Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som
magnífico
Num ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandescente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito
51

AL 073
Odara
Caetano Veloso

Deixa eu dançar
Pro meu corpo ficar odara
Minha cara, minha cuca ficar odara
Deixa eu cantar
Que é pro mundo ficar odara
Pra ficar tudo jóia rara
Qualquer coisa que se sonhara
Canto e danço que dará

AL 074
Patuscada de Gandhi
Afoxé Filhos de Gandhi

Aonde vai papai Ojô?


Vou depressa por aí
Vou fazer minha folia
Com os Filhos de Gandhi
Que a nossa turma
É alinhada
Sai no meu bloco
Pra fazer a patuscada
Emori, moriô
Babá
Babá ô kiloxê
Jocô
Emori, moriô
Babá
Babá ô kiloxê
Jocô
52

AL 075
Chuva, suor e cerveja (rain, sweat and beer)
Caetano Veloso

Não se perca de mim A gente se embala, se embola, s’imbora


Não se esqueça de mim Só para na porta da igreja
Não desapareça A gente se olha, se beija e se molha
A chuva tá caindo De chuva, suor e cerveja
E quando a chuva começa
Eu acabo de perder a cabeça

Não saia do meu lado


Segure o meu pierrot molhado
E vamos se embolar ladeira abaixo
Acho que a chuva ajuda a gente se ver
Venha, veja, deixa, beija, seja
O que Deus quiser

AL 076
Sampa
Caetano Veloso

Alguma coisa acontece no meu coração Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
Da dura poesia concreta de tuas esquinas Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
Da deselegância discreta de tuas meninas Tuas oficinas de florestas
Ainda não havia para mim Rita Lee Teus deuses da chuva
A tua mais completa tradução Panaméricas de Áfricas utópicas
Alguma coisa acontece no meu coração Túmulo do samba
Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto E novos baianos te podem curtir numa boa
Chamei de mau gosto o que vi, de maus gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Por que és o avesso do avesso do avesso do avesso
53

AL 077
Terra
Caetano Veloso

Quando eu me encontrava preso Eu sou um leão de fogo


Na cela de uma cadeia Sem ti me consumiria
Foi que eu vi pela primeira vez A mim mesmo, eternamente
As tais fotografias E de nada valeria
Em que apareces inteira Acontecer de eu ser gente
Porém lá não estavas nua E gente é outra alegria
E sim coberta de nuvens Diferente das estrelas

Terra, Terra Terra, Terra...


Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria De onde nem tempo nem espaço
Que a força mande coragem
Ninguém suponha morena Prá gente te dar carinho
Dentro da estrela azulada Durante toda a viagem
Na vertigem do cinema Que realizas no nada
Manda um abraço prá ti, Através do qual carregas
Pequenina como se eu fosse O nome da tua carne
O saudoso poeta
E fosses a Paraíba Terra, Terra...

Terra, Terra... Nas sacadas dos sobrados


Da velha São Salvador
Eu estou apaixonado A lembrança de donzelas
Por uma menina Terra Do tempo do imperador
Signo de elemento Terra Tudo, tudo na Bahia
Do mar, se diz “Terra à vista” Faz a gente querer bem
Terra para o pé firmeza A Bahia tem um jeito
Terra para a mão carícia
Outros astro lhe são guia Terra, Terra...

Terra, Terra...
54

AL 078
Adeus, meu Santo Amaro
Caetano Veloso

Adeus, meu Santo Amaro


Que eu dessa terra vou me ausentar
Eu vou pra Bahia
Eu vou viver, eu vou morar
Eu vou viver, eu vou morar
Adeus meu tempo de chorar
E não saber por que chorar
Adeus, minha cidade
Adeus felicidade
Adeus, tristeza de ter paz
Adeus, não volto nunca mais
Adeus, eu vou me embora
Adeus e canto agora
O que eu cantava sem chorar

AL 079
Tudo de novo
Caetano Veloso

Minha mãe, meu pai, meu povo Grande como a dor do mundo
Eis aqui tudo de novo Me acompanha aonde eu vou
A mesma grande saudade Meu povo, sofremos tanto
A mesma grande vontade Mas sabemos o que é bom
Minha mãe, meu pai, meu povo Vamos fazer uma festa
Noites assim como esta
Minha mãe me deu ao mundo Podem nos levar pra o tom
De maneira singular
Me dizendo uma sentença
Pra eu sempre pedir licença
Mas nunca deixar de entrar
Meu pai me mandou pra vida
Num momento de amor
E o bem daquele segundo
55

AL 080
Sonho Meu
D. Ivone Lara / Délcio Carvalho

Sonho meu Sinto o canto da noite na boca do vento


Sonho meu Fazer a dança das flores no meu pensamento
Vai buscar quem mora longe Traz a pureza de um samba sentido
Sonho meu marcado de mágoas de amor
um samba que mexe o corpo da gente
Vai mostrar esta saudade e o vento vadio embalando a flor
Sonho meu Sonho meu
Com a sua liberdade
Sonho meu
No meu céu a estrela guia se perdeu
A madrugada fria só me traz melancolia
Sonho meu

AL 081
Olhos Verdes
Vicente Paiva

Vem de uma remota batucada


Numa cadência bem marcada
Que uma baiana tem andar
E nos seus requebros e maneiras
Na graça toda das palmeiras
Esguias altaneiras a balançar
São da cor do mar
Da cor da mata
Os olhos verdes da mulata
São cismadores e fatais
Fatais
E um beijo ardente e perfumado
Conserva o travo do pecado
De saborosos cambucais
56

AL 082
A Preta do acarajé
Dorival Caymmi

Dez horas da noite Todo mundo gosta de acarajé


Na rua deserta O trabalho que dá prá fazer é que é
A preta mercando Todo mundo gosta de abará
Parece um lamento Ninguém quer saber o trabalho que dá

Na sua gamela Ê, abará...


Tem molho cheiroso
Pimenta da costa Dez horas da noite
Tem acarajé Na rua deserta
Quanto mais distante
Ô, acarajé ecô Mais triste o lamento
Ô lalaiô
Vem benzer, hein, tá quentinho

AL 083
O bater do tambor
Caetano Veloso

Toda eletricidade
Trio elétrico e o seu gerador
Toda energia quer magnetiza a cidade
Pára pra deixar ouvir o bater do tambor
Mão de preto no couro
E o Brasil grita em coro
Ê mori mori ô babá
Ê mori mori ô
57

AL 084
Oração ao Tempo
Caetano Veloso

És um senhor tão bonito O que usaremos pra isso


Quanto a cara do meu filho Fica guardado em sigilo
Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido Apenas contigo e migo
Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo

Compositor de destinos E quando eu tiver saído


Tambor de todos os ritmos Para fora do Teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo Não terei nem terá sido
Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo

Por seres tão inventivo Ainda assim acredito


E pareceres contínuo Ser possível reunirmo-nos
Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais limpos Num outro nível de vínculo
Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo

Que sejas ainda mais vivo Por tanto peço-te aquilo


No som do meu estribilho E te ofereço elogios
Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo
Ouve bem o que te digo Nas rimas do meu estilo
Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo Tempo

AL 085
Logunedé
Gilberto Gil

É de Logunedé a doçura Logunedé é depois


Filho de Oxum, Logunedé Que Oxóssi encontra a mulher
Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé Que a mulher decide ser
Tanta ternura A mãe de todo prazer
Logunedé é depois
É de Logunedé a riqueza
Filho de Oxum, Logunedé É pra Logunedé a carícia
Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé Filho de Oxum, Logunedé
Tanta beleza Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé
É delícia
Logunedé é demais
Sabido, puxou aos pais
Astúcia de caçador
Paciência de pescador
Logunedé é demais
58

AL 086
Faceira
Ary Barroso

Foi no samba E desceste lá do morro


Que te conheci faceira Pra viver cá na cidade
Foi num samba de gente bamba, ô Deixando os companheiros quase loucos de saudade
Gente bamba Linda criança
Que eu te conheci, faceira Tenho fé, tenho esperança
Fazendo visagem Que algum dia hás de voltar
Passando rasteira Direitinho ao teu lugar
Que bom
Que bom
Que bom

AL 087
Bahia com H
Dennis Brian

Dá licença, dá licença, meu senhor Sou amigo que volta feliz


Dá licença, dá licença prá Ioiô Prá teus braços abertos, Bahia
Eu sou amante da gostosa Bahia Sou poeta e não quero ficar assim
Porém, prá saber seus segredos Longe de tua magia
Serei baiano também
Deixa ver teus sobrados, igrejas
Dá licença de gostar um pouquinho só Teus santos, ladeiras e montes
A Bahia eu não vou roubar, tem dó Tal qual um postal
E já disse um poeta que terra mais linda não há Dá licença de rezar pró Senhor do Bonfim
Isso é velho Salve a santa Bahia imortal
É do tempo em que a gente escrevia Bahia com H Bahia dos sonhos mil
Eu fico contente da vida
Quero ver com os meus olhos de amante saudoso Em saber que a Bahia é Brasil
A Bahia do meu coração
Quero ver Baixa do Sapateiro
Charriot, Barroquinha, Calçada, Taboão
59

AL 088
Massa real
Caetano Veloso
60

AL 089
Axé babá
Gilberto Gil

Meu pai Oxalá


Dai-nos a luz do teu dia
De noite a estrela guia
Da tua paz, dentro de nós

Meu pai Oxalá


Dai-nos a felicidade
O dom da vitalidade
Do teu axé, do teu amor
Do teu axé, do teu amor

Ôôôôôôô
Axé Babá
Ôôôôôôô
Axé Babá

AL 090
Palco
Gilberto Gil

Subo nesse palco Venho para a festa


Minha alma cheira a talco Sei que muitos têm na testa
Como bumbum de bebê O deus sol como um sinal
Minha aura clara Eu como um devoto trago
Só quem é clarividente pode ver Um cesto de alegrias de quintal
Trago a minha banda Há também um cântaro
Só que sabe onde é Luanda Quem manda é deusa música
Saberá lhe dar valor Pedindo pra deixar
Vale quanto pesa Derramar o bálsamo
Pra quem presa o louco bum bum do tambor Fazer o cântaro cantar o cantar

Fogo eterno pra afugentar Fogo eterno pra afugentar


O inferno pra outro lugar O inferno pra outro lugar
Fogo eterno pra consumir Fogo eterno pra consumir
O inferno fora daqui O inferno fora daqui
61

AL 091
Coqueiro de Itapoã
Dorival Caymmi

Coqueiro de Itapoá Ó vento


Coqueiro Que faz cantiga nas folhas
Areia de Itapoã No alto do coqueiral
Areia Ó vento que ondula as águas
Morena de Itapoá Eu nunca tive saudade igual
Morena Me traga boas notícias
Saudade de Itapoá Daquela terra toda manhã
Me deixa E jogue uma flor no colo
De uma morena de Itapoá

AL 092
Um canto de afoxé para o bloco do Ilê
Caetano Veloso / Moreno Veloso

Ilê Aiyê
Como você é bonito de se ver
Ilê Aiyê
Que beleza mais bonita de se ter
Ilê Aiyê
Sua beleza se transforma em você
Ilê Aiyê
Que maneira mais feliz de viver

AL 093
Andar com fé
Gilberto Gil

Andar com fé eu vou A fé tá na manhã


Que a fé não costuma faia A fé tá no anoitecer
Andar com fé eu vou Ô, ô no calor do verão
Que a fé não costuma faia A fé tá viva e sã
A fé também tá pra morrer
Que a fé tá na mulher Ô, ô, Triste na solidão
A fé tá na cobra coral
Ô ô, num pedaço de pão Andar com fé...
A fé tá na maré
Na lâmina de um punhal Certo ou errado até
Ô, ô, na luz, na escuridão A fé vai onde quer que eu vá
Ô, ô, a pé, ou de avião
Andar com fé... Mesmo a quem não tem fé
A fé costuma acompanhar
Ô, ô, pelo sim, pelo não
62

AL 094
Afoxé é
Gilberto Gil

Êôêô O afoxé, seu caminho


Êôêô Sempre se fez, sempre se fará
É bom pra iôiô Por onde estiver o povo
É bom pra iáiá Esperando pra dançar
O afoxé vai seguindo
O afoxé é da gente Sempre seguiu, sempre seguirá
Foi de quem quis Com a devoção do negro
É de quem quiser E a benção de Oxalá
Tem que botar fé no bloco
Tem que gostar de andar a pé
Tem que agüentar sol a pino
Tem que passar no terreiro
E carregar o menino ó, ó
Tem que tomar aguaceiro
Tem que saber cada hino
E cantar o tempo inteiro, ó

AL 095
Bloco do prazer
Moraes Moreira / Fausto Nilo

Pra libertar meu coração Quero ser mandarim


Eu quero muito mais Cheirando gasolina
Que o som da marcha lenta E a fina flor do meu jardim
Eu quero um novo balance Assim como o carmim
O bloco do prazer Das bocas das meninas
Que a multidão comenta Que a vida arrasa e contamina
Não quero oito nem oitenta O gás que embala o balancê
Eu quero o bloco do prazer
E quem não vai querer Vem, meu amor
Feito louca
Mama Que a vida tá pouca e eu quero muito mais
Mamãe Mais que a paixão que arrebenta
Eu quero sim A paixão violenta
Oitenta carnavais
63

AL 096
Filosofia Pura
Roberto Mendes / Jorge Portugal

Quanto mais a gente ensina Pois trocar vida com vida é somar na dividida
Mais aprende o que ensinou Multiplicando o amor
Ê á, Ê ô Pra que o sonho dessa gente
Ê á, Ê ô Não seja mais afluente
E o desejo da menina Do medo em que desaguou
Quando seu corpo fulmina
Acende o fogo do amor
Ê á, Ê ô
Ê á, Ê ô
Ê á, Ê ô
E a sensação divina de dominar quem domina
É que cura qualquer dor
Ê á, Ê ô
Ê á, Ê ô

AL 097
Quero ir à Cuba
Caetano Veloso

Mamãe, eu quero ir à Cuba


Quero ver a vida lá
Lãs sueño uma perla encendida sobre la mar
Mamãe, eu quero amar
A ilha de Xangô e Iemanjá
Iorubá, igual à Bahia

Desde Célia Cruz cuando yo era um nino de Jesus


E a revolução
Que também tocou meu coração
Cuba seja aqui
Essa ouvi dos lábios de Peti

Desde o cha cha cha


Mamãe, eu quero ir à Cuba
E quero voltar
64

AL 098
Salva Vida
Caetano Veloso

Místico pôr-do-sol no mar da Bahia Onda nova


E eu já não tenho medo de me afogar Nova vida
Conheço um moço lindo que é salva vida Vem do novo mar
Vida Sólido simples
Um da turma legal do Salvamar Vindo ele vem bem Jorge
Que é fera na doçura Límpido movimento
Na força e na graça Me faz pensar
Ai, ai Que profissão bonita
Quem dera pra um homem jovem
Que eu também pertencera jovem
A essa raça Amar de mesmo
Salva vida A gente, a água e a areia
No dia da rainha das águas
No presente
Ai, ai
Luzia a firmeza dourada dessa gente

AL 099
Ele e eu
Gilberto Gil

Ele vive calmo Eu vivo calmargalarga, abertamente


E na hora do Porto da Barra fica elétrico Bem mais louco
Eu vivo elétrico Porque espero pelo beijo arrependido
E na hora do Porto da Barra fico calmo Da serpente do começo
E na hora do Porto da Barra
Ele vive eletriconsumida, consumada ou mudamente Fico aflito
E na hora do Porto da Barra
Bem mais calmo Fico aflito
Porque curte cada golpe do martelo
Na bigorna do destino
E na hora do Porto da Barra
Fica firme
65

AL 100
Elá, poeira
Gilberto Gil / Banda Um

Elá, poeira Elá, poeira


Elá, poeira Elá, poeira
Poeira, Iaiá, Maria Poeira, Iaiá, Maria
Poeira que levantou Leva um dia prá assentar
Por causa da ventania Por causa dessa magia
Que seu samba provocou Que você deixa no ar
Você quando rodopia Você quando rodopia
É pior que furacão É pior que furacão
Ainda bem que vem da alegria Ainda bem que é de alvenaria
A poeira desse chão Que é feito meu barracão

AL 101
Lady Neide
Gilberto Gil / Antônio Risério

Lady Neide
Pivete dengosa
Candeia de azeite
Escurinha gostosa

Pandeiro de pele de gata


É chinfra de malê, Iawô
Persona muitíssimo grata
Convido-te para um melo

Chispa da rua do Fogo


E vai me ver no meu barracão
Lá na ladeira do Caminho Novo
Bate o tambor no meu coração
66

AL 102
Bahia de todas as contas
Gilberto Gil

Rompeu-se a guia de todos os santos Rompeu-se a guia de todos os santos...


Foi Bahia prá todos os cantos
Foi Bahia Prá cada canto, uma conta
Prá cada canto uma conta Prá cada santo, uma mata
Prá nação de ponta a ponta Uma estrela, um rio, um mar
O sentimento bateu E onde quer que houvesse gente
Daquela terra provinha Brotavam como sementes
Tudo que esse povo tinha As contas desse colar
De mais puro e de mais seu Hoje, a raça está formada
Hoje já ninguém duvida Nossa aventura plantada
Está na alma, está na vida Nossa cultura é raiz
Está na boca do país É ternura nossa folha
É o gosto da comida É doçura nossa fruta
É a praça colorida É assim porque Deus quis
É assim porque Deus quis
Olorum se mexeu
Olorum se mexeu

AL 103
Origens
Tom Jobim

Vim do Norte, vim de longe


De um lugar que já não há
Vim
Vim parar nesse lugar

Meu cheiro é de cravo


Minha cor de canela
A minha bandeira
É verde e amarela

Gabriela
Sempre Gabriela
67

AL 104
Zumbi, a felicidade guerreira
Gilberto Gil / Waly Salomão

Zumbi, comandante guerreiro Em cada estalo, em todo estopim


Ogunhê, ferreiro mor capitão No pó do motim
Da capitania da minha cabeça Em cada intervalo da guerra sem fim
Mandai alforria pro meu coração Eu canto, eu canto, eu canto
Minha espada espalha o sol da guerra Eu canto, eu canto, eu canto
Rompe mato, varre céus e terra Assim:
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
Do maracatu, do maculelê A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
do moleque bamba A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
Minha espada espalha o sol da guerra
Meu quilombo incandescendo a serra Brasil, meu Brasil brasileiro
Tal e qual o leque Meu grande terreiro
O sapateado do mestre escola de samba Meu berço e nação
Tombo-de-ladeira Zumbi protetor
Rabo-de-arraia Guardião padroeiro
Fogo de liamba Mandai alforria pro meu coração

AL 105
A Beira e o Mar
Roberto Mendes / Jorge Portugal

Mesmo que desamanheça e o mundo possa parar No fim dessa brincadeira


Nem nada mais se pareça Quando a poeira assentar
Invento outro lugar Solto o nó do remelexo e
Faço subir à cabeça Deixo você dançar
O meu poder de sonhar Quem não deu tem que dar amor
Faço que a mão obedeça Quem não quer mais voltar chegou
O que o coração mandar Quem cansou de esperar nadou
Mesmo que inda que tarde Já nadou nesse mar
Não tarde por esperar Se você quer me amar, eu sou
Dou um nó cego em seu remelexo Se você me chamar, eu estou
E o deixo sem ar Se quiser que eu seja não sou
Rodo a baiana ligeira Tudo que me mandar
Faço esse mundo girar No fim dessa brincadeira
Mas estarei sempre inteira Quando a poeira assentar
Se você despedaçar Solto o nó do remelexo e
Você será sempre a beira Deixo você dançar
E eu toda água do mar
Mesmo que você não queira
Quero e assim será
68

AL 106
Tempo Rei
Gilberto Gil

Não me iludo Pensamento


Tudo permanecerá do jeito que tem sido Mesmo o fundamento singular do ser humano
Transcorrendo, transformando De um momento para o outro
Tempo e espaço navegando todos os sentidos Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos

Pães de açúcar, Corcovados Mães zelosas, pais corujas


Fustigados pela chuva e pelo eterno vento Vejam como as águas de repente ficam sujas

Água mole, pedra dura Não se iludam, não me iludo


Tanto bate que nem restará nem pensamento Tudo agora mesmo pode estar por um segundo

Tempo Rei, ó Tempo Rei, ó Tempo Rei Tempo Rei...


Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

AL 107
A Mão da limpeza
Gilberto Gil

O branco inventou que o negro Negra é a vida consumida


Quando não suja na entrada Ao pé do fogão
Vai sujar na saída, ê Negra é a mão
Imagina só Nos preparando a mesa
Vai sujar na saída, ê Limpando as manchas do mundo
Imagina só Com água e sabão
Que mentira danada, ê Negra é a mão
De imaculada nobreza
Na verdade, a mão escrava
Passava a vida limpando Na verdade, a mão escrava
O que o branco sujava ê Passava a vida limpando
Imagina só O que o branco sujava, ê
O que o branco sujava ê Imagina só
Imagina só O que o branco sujava, ê
O que o negro penava ê Imagina só
Eta branco sujão
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida
Esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
69

AL 108
O revolver do meu sonho
Frejat / Waly Salomão / Gilberto Gil

Você por acaso esqueceu O revólver do meu sonho atirava


A buzina do vapor barato? Atirava no que via
Apagou a fita daquela canção Mas não matava o desejo
“A casa do Sol nascente”? Do que ainda não existia
Enfiou a tesoura na transação?
Passou a gilete na ligação? Interfone, blitz, joaninha, computador
Meteu a borracha no traço de união O futuro comum de hoje em dia
Ocidente – Oriente? Que eu, cigana, já pressentia
Mas você não percebia
Passado – futuro – presente No espelho retrovisor
Fundido e confundido na minha mente O revólver dos Beatles
A todo o vapor Disparava nas paradas
Barato era tudo muito mais Me assustava, me encantava e movia
E eu ia, e eu ia, e eu ia
“As curvas da estrada de Santos” E ricocheteava
O motor fervia, o carro rugia, meu amor
O coração batia tão feroz Arembepe
Mas o mundo corria muito mais veloz que nós Woodstock
Mais veloz que nós Píer
Verão da Bahia

AL 109
Oração pela libertação da África do Sul
Gilberto Gil

Se o rei Zulu já não pode andar nu Senhor irmão de Tupã


Se o rei Zulu já não pode andar nu Fazei com que o chicote seja por fim pendurado
Salve a batina do bispo Tutu Revogai da intolerância a lei
Salve a batina do bispo Tutu Devolvei o chão a quem no chão foi criado

Ó Deus do céu da África do Sul Ó Cristo Rei branco de Oxalufã


Do céu azul da África do Sul Ó Cristo Rei branco de Oxalufã
Tornai vermelho todo céu azul Zelai por nossa negra flor pagã
Tornai vermelho todo céu azul Zelai por nossa negra flor pagã

Já que vermelho tem sido todo sangue derramado Sabei que o papa já pediu perdão
Todo corpo, todo irmão chicoteado Sabei que o papa já pediu perdão
Iô Varrei do mapa toda escravidão
Senhor da selva africana Varrei do mapa toda escravidão
Irmã da selva americana
Nossa selva brasileira de Tupã
70

AL 110
Jubiabá
Gilberto Gil

Negro Balduíno Tinha a guia


Belo negro Baldo Que lhe deu Jubiabá
Filho malcriado de uma velha tia Que lhe deu Jubiabá
Via com seus olhos de menino esperto A guia
Luzes onde luzes não havia
Cresce, vira um forte Negro Balduíno
Evita a morte breve Belo negro Baldo
Leve, gira o pé na capoeira Saldo de uma conta da história crua
Luta Rua
Bruta como a pedra Pé descalço
Sua vida inteira Liberdade nua
Cheira a manga espada Um rei
E maresia Para o reino da alegria

Tinha a guia Tinha a guia


Que lhe deu Jubiabá Que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá Que lhe deu Jubiabá
A guia A guia

Trava com o destino


Uma batalha cega
Pega da navalha
E retalha a barriga fofa
Tão inchada e cheia de lombriga
Da monstra miséria da Bahia
Leva uma trombada do amor cigano
Entra pelo cano do esgoto e pula
Chula na quadrilha da festa junina
Todo santo de vida vadia

AL 111
Ia Omin Bum
D. P.

Iá Omin Bum
Omirô Dorixá O Iê Iê
Iá Omin Bum Ê
Omirô Dorixá O Iê Iê
71

AL 112
Depois que o Ilê passar
Miltão

Rebentou Não me pegue


Ilê Aiyê, Curuzu Não me toque
Toque de Angola, ijexá Por favor, não me provoque
Vamos pra cama meu bem Eu só quero é ver o Ilê passar
Me pegue agora
Me de~e um beijo gostoso Quero ver você, Ilê Aiyê
Pode até me amassar Passar por aqui
Mas me solte quando o Ilê passar

Quero ver você, Ilê Aiyê


Passar por aqui

AL 113
Ofá
Roberto Mendes / Jota Velloso

Seu grito me orgulhou


Sou filha do vencedor
Que nunca me esqueceu
Ofá na mão o protegeu
A paz da cor do céu, do céu
Ele em mim, ele sou eu
Contas, condão que me envolveu
Que me envolveu
E sua flecha percorreu
Guiada pelas mãos de Deus
E o mal do mundo estremeceu
Guerreiro negro
Que Olorum
Que Olorum
Que Olorum nos deu
72

AL 114
E a terra tremeu
Sacramento

E a terra tremeu, tremeu, tremeu, tremeu


O céu mudou de cor
Mudou de cor, mudou de cor
Jamaica, Salvador...

AL 115
Baticum
Gilberto Gil / Chico Buarque

Bia falou “ah, claro que eu vou” Aquela noite quem tava lá na praia viu
Clara ficou até o sol raiar E quem não viu jamais verá
Dadá também saracoteou Mas se você quiser saber
Didi tomou o que era prá tomar A Warner gravou e a Globo vai passar
Ainda bem que Isa me arrumou
Um barco bom prá gente chegar lá Bia falou “ah, claro que eu vou”
Lelê também foi e apreciou Clara ficou até o sol raiar
O baticum lá na beira do mar Dadá também saracoteou
Didi tomou o que era prá tomar
Aquela noite tinha do bom e do melhor Isso é que é, Pepe se chegou
Tô lhe contando que é prá lhe dar água na boca Pelé pintou
Só que não quis ficar
Veio Mane da Consolação O campeão da fórmula um
Veio o barão de lá do Ceará No baticum lá na beira do mar
Um professor falando alemão
Um avião veio do Canadá Aquela noite tinha do bom e do melhor
Monsieur Dupont trouxe o dossier Tô lhe contando que é prá lhe dar água na boca
E a Benetton topou patrocinar
A Sanyo garantiu o som Zeca pensou: “antes que era bom”
Do baticum lá na beira do mar Mano cortou: “brother, que é que há”
Foi à GE quem iluminou
Aquela noite quem tava lá na praia viu E a MacIntosh entrou com o vatapá
E quem não viu jamais verá O JB fez a crítica
Mas se você quiser saber E o cardeal deu ordem prá fechar
A Warner gravou e a Globo vai passar O Carrefour, digo, o baticum
Da Benetton, não, da beira do mar
73

AL 116
Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois
Gilberto Gil

Foi Vemos
Minha mãe se foi Vivo
Minha mãe se foi O brilho da tua luz
Sem deixar de ser Iluminando nossos corações
Oraiêiê ô Ouve nossa oração
Escuta a demanda de cada um
Dói Manda teu doce axé
Minha alma ainda dói Recomenda ao santo o teu candomblé
Minha alma ainda dói Fala com cada um
Sem deixar doer Fala com cada um
Oraieiê ô Fala com cada filho fiel
Canta prá todos nós
Foi Derrama sobre todos
Tão boa prá nós O teu mel
Tão boa prá nós
Não deixa de ser Foi
Oraieiê ô Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Mãe Sem deixar de ser
Do orum do céu A Rainha do Trono Dourado
Do orum do céu De Oxum
Me ajuda a viver Sem deixar de ser
Neste Ilê Aiyê Mãe de cada um
Dos filhos prá quem eternamente
Rara Sempre haverá
Ouro Mãe Menininha
Guarda o tesouro prá nós Mãe Menininha
Mãe Menininha
Riso Mãe Menininha
Puro Mãe Menininha
Porto Seguro prá nós
74

AL 117
Branquinha
Caetano Veloso

Eu sou apenas um velho baiano Este mulato franzino


Um fulano, um caetano Menino
Um mano qualquer Destino de nunca ser homem não
Vou contra a via Este macaco complexo
Canto contra a melodia Este sexo equívoco
Nado contra a maré Este mico leão
Que é que tu vê? Namorando a lua
Que é que tu quer? E repetindo “a lua é minha”
Tu que é tão rainha?
Branquinha
Branquinha Pororoquinha
Carioca de luz própria, luz Guerreiro é
Só minha Rainha
Quando todos os seus rosas nus De janeiro do Rio do onde é
Todinha Sozinha
Carnação da canção que compus Mão no leme
Quem conduz vem seduz Pé no furacão
Meu irmão
Neste mundo vão
Mão no leme
Pé no Carnaval
Meu igual
Neste mundo mau

AL 118
Meia lua inteira
Carlinhos Brown

Meia lua inteira Bimba, biriba, a mim que diga


Sopapo na cara do fraco Taco de arame, cabaça, barriga
Estrangeiro gozador São din-dão-dão São Bento
Coca de coqueiro baixo Grande homem de movimento
Quando engano se enganou Nunca foi um marginal
São din-dão-dão São Bento Sumiu da praça a tempo
Grande homem de movimento Camihando contra o vento
Martelo de tribunal Sobre a própria capital
Sumiu na mata adentro
Foi pego sem documento Capoeira larará
No terreiro regional Capoeira larará
Terça feira capoeira larará
Capoeira larará
Capoeira larará
Terça feira capoeira larará
Tô no pé de onde der, lararará
Verdadeiro larará
Derradeiro larará
Não me impede de cantar lararará
Tô no pé de onde der, lararará
75

AL 119
Salve as folhas
Gerônimo / Ildásio Tavares

Cosi Ewê Quem é você


Cosi Orixá E o que faz por aqui
Ewê ô Eu guardo a luz das estrelas
Ewê Orixá A alma de cada folha
Sou Aroni
Sem folha não tem sonho
Ewê ô
Ewê Orixá
Sem folha não tem festa
Ewê ô
Ewê Orixá
Sem folha não tem vida
Ewê ô
Ewê Orixá
Sem folha não tem nada

AL 120
A verdadeira baiana
Caetano Veloso

A verdadeira baiana sabe ser falsa A verdadeira baiana


Salsa, valsa e samba quando quer Não marca o samba
A verdadeira baiana é transafricana! Com a cocaína
É pós americana, Rum, Pi, drum machine, Lê Da vinheta de TV
Rum, Pi, drum machine Lé Sabe fazê-lo
Rum, Pi, drum machine Lê Mas segue atrás do mais belo
A verdadeira é baiana O trieletrikitch som não se vê
A verdadeira é baiana é Rum, Pi, drum machine Lé
A verdadeira é baiana Rum, Pi, drum machine Lê
A verdadeira é baiana é A verdadeira é baiana
A verdadeira é baiana é
A verdadeira é baiana , A verdadeira é baiana
A outra é falsa A verdadeira é baiana é
É a falsa falsa,
Falta pedigree e axé A verdadeira baiana
A verdadeira baiana é a matriarca Transmuda o mundo
A menina homem, Neo-asiática
O deus mulher Ela é supra lusitana
Rum, Pi, drum machine Lé É verdadeira e falsa quando quer
Rum, Pi, drum machine Lê Rum, Pi, drum machine Lé
A verdadeira é baiana Rum, Pi, drum machine Lê
A verdadeira é baiana é A verdadeira é baiana
A verdadeira é baiana A verdadeira é baiana é
A verdadeira é baiana é A verdadeira é baiana
A verdadeira é baiana é
76

AL 121
O cu do mundo

O furto estupro A mais triste nação


O rapto pútrido Na época mais podre
O fétido seqüestro Compõe-se de possíveis
O adjetivo esdrúxulo Grupos de linchadores
Em um
Onde o cujo faz a curva
O cu do mundo
Este nosso sítio
Do crime estúpido
O criminoso só
Substantivo comum
O fruto espúrio reluz
A sub-sombra desumana
Dos linchadores

AL 122
Serafim
Gilberto Gil

Quando o agogô Será sempre axé


Soar ao som do ferro Será paz, será guerra, Serafim
Sobre o ferro Através das travessuras de Exu
Será como o berro do carneiro Apesar da travessia ruim
Sangrado em agrado ao grande Ogum
Há de ser assim
Quando a mão tocar no tambor Há de ser sempre pedra sobre pedra
Será pele sobre pele Há de ser tijolo sobre tijolo
vida e morte para que se zele Meu consolo é saber que não tem fim
pelo Orixá e pelo egun
Kabiecilê
Kabiecilê Vai cantando o ijexá pro pai Xangô
Vai cantando o ijexá pro pai Xangô Eparrei e Oraiêiê
Eparrei e Oraiêiê Pra Iansã e mãe Oxum
Pra Iansã e mãe Oxum Opabi olorum kosi – como Deus não há nenhum
Opabi olorum kosi – como Deus não há nenhum
77

AL 123
Quero ser teu funk
Gilberto Gil

Quero ser teu funk Funk do teu morro


Já sou teu fã n. 1 Funk do socorro
Agora quero ser teu funk Que o pivete espera de alguém
Já sou teu fã. 1 Rio de Janeiro
Sou teu companheiro
Quero ser teu funk Mesmo que não fique ninguém
Já sou teu fã n. 1 Mesmo que São Paulo te xingue
Agora quero ser teu funk Porque te cobiça o suingue
Já – já que sou teu fã n. 1 O mar, a preguiça e o calor
Lembra da Bahia que um dia
Funk do teu samba Já mandou Ciata, a tia
Funk do teu choro Te ensinar kizomba nagô
Funk do teu primeiro amor
Rio de janeiro Quero ser teu funk
Bela Guanabara Já sou teu fã n. 1
Quem te viu primeiro, pirou Agora quero ser teu funk
Já sou teu fã. 1
Chefe Araribóia
Que andava de Araruama a Itaipava Quero ser teu funk
Não cansava de te adorar Já sou teu fã n. 1
Depois te fizeram cidade Agora quero ser teu funk
Te fizeram tanta maldade Já – já que sou teu fã n. 1
E um Cristo pra te guardar
Funk da madruga
Quero ser teu funk Funk qualquer hora
Já sou teu fã n. 1 Funk do teu eterno fã
Agora quero ser teu funk Funk do portuga
Já sou teu fã. 1 Que te amava outrora – e agora
Funk da turista alemã
Quero ser teu funk Rio de Janeiro, Rocinha
Já sou teu fã n. 1 Sempre a te zelar, Pixinguinha
Agora quero ser teu funk Jamelão, Vadico e Noel
Já – já que sou teu fã n. 1 Funk são teus arcos da Lapa
Funk é tua foto na capa
Da revista Amiga do céu
78

AL 124
Louvação à Oxum
Roberto Mendes / Ordep Serra

Karê ô Eu saúdo quem rompe na guerra


Declaro aos de casa que Senhora das águas que correm caladas
Estou chegando Oxum das águas de todo som
Quem sabe venha buscar-me em festa Água da aurora
Orarei a Oxum Do mar agora
Que adoro Oxum, sei que sim Bela Mãe da grinalda de flores
Xinguinxi comigo Alegria da minha manhã

Oxum que cura com água fresca Ipondá que se oculta no escuro
Sem gota de sangue De longe me chega a cintilação dos seus cílios
Dona do oculto Oxum é água que aparta a morte
A que sabe e cala Oxum melhora a cabeça ruim
No puro frescor de sua morada A Yê Yê orarei
Oh! Minha Mãe, Rainha dos Rios Bendita onda que inunda a casa do traidor
Água que faz crescer as crianças
Dona da brisa de lagos Oxum eu bendigo na boca do dia
Corpo divino Oxum que eu adoro
Sem osso nem sangue Rica de dons
Riqueza dos rios
Orarei a Oxum Oxum que chamei
Que adoro Oxum, sei que sim Que não chamei
Xinguinxi comigo Adé Okô
Senhora das águas

AL 125
É d’ Oxum
Gerônimo / Vevé Calazans

Nessa cidade, todo mundo é d’Oxum A força que mora n’água


Homem, menino, menina, mulher Não faz distinção de cor
Toda cidade irradia magia E toda cidade é d’Oxum

Presente na água doce É d’Oxum


Presente na água salgada É d’Oxum
E toda cidade brilha Eu vou navegar
Eu vou navegar nas ondas do mar
Seja tenente ou filho de pescador Eu vou navegar nas ondas do mar
Ou importante desembargador
Se der presente, é tudo uma coisa só
79

AL 126
Revolta Olodum
José Olissam / Domingos Sérgio

Retirante ruralista Ô, Corisco,


Lavrador Maria Bonita mandou lhe chamar
Nordestino Lampião Ô, Corisco
Salvador Maria Bonita mandou lhe chamar
Pátria sertaneja
Independente É o vingador
Antônio Conselheiro De Lampião
Em Canudos, presidente É o vingador
Zumbi, em Alagoas, comandou De Lampião
Exército de ideais
Libertador Êta, êta
Sou Mandinga, Balaiada Êta ta ra ta tá
Sou Malê Êta, êta
Sou Bùzios, sou revolta Êta ta ra ta tá
Arerê

AL 127
Nossa Gente
Roque Carvalho

Avisa lá que eu vou chegar mais tarde oh yeah Os deuses igualando todo encanto, toda a transa
Vou me juntar ao Olodum que é da alegria Os rataplãs dos tambores gratificam
É denominado de vulcão Quem fica não pensa em voltar
O estampido ecoou nos quatro cantos Afeição à primeira vista
Do mundo O beijo – o batom que não vai mais soltar
Em menos de um minuto A expressão do rosto identifica
Em segundos Avisa lá, avisa lá
Nossa gente é quem bem diz Avisa lá ô, ô
É quem mais dança Avisa lá que eu vou
Os gringos se afinavam na folia
80

AL 128
Lavagem do Bonfim
Gilberto Gil

Lavagem do Bonfim, quinta-feira Timbau, pandeiro, som de guitarra


Sai da Conceição da Praia a primeira Tanta roupa branca
Talagada de batida na Praça Cairu Tanta algazarra
Levanta a pista ao alto Lacerda Zona franca de folia
Mais parece um corredor que envereda De fé, de devoção
Uma pista de corrida Foto de lambe-lambe, alegria
Correr pro céu azul Vai passar pelo Moinho da Bahia
Olha a vertigem Virgem Maria! Mais de trinta graus de calor, amor e emoção
Te segura, criatura que o dia Lembra bem dos degraus da igreja
Inda tá menino moço Guarda um pouco de suor pra que seja
Que o almoço inda tá cru Misturado às águas e às mágoas de lavar o chão
Segura bem na mão da menina Faz tempo que passou da Calçada
Poupa o coração Segura os joelhos nessa chegada
Que é só na Colina Que o peito arde de paixão
Que o santo serve o caruru

AL 129
Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu
David Côrrea/Paulinho Carvalho/Carlos Sena/Bira do Ponto

Me leva que eu vou


Sonho meu Caetano e Gil
Atrás da verde e rosa Com a Tropicália no olhar
Só não vai quem já morreu Doces Bárbaros ensinando a brisa a bailar
A meiguice de uma voz
Bahia é luz de poeta ao luar Uma canção
Misticismo de um povo No teatro Opinião
Salve todos os Orixás Bethânia explode coração
Quem me mandou
Estrela de lá Domingo no Parque, amor
Foi São Salvador Alegria, alegria que eu vou
Pra noite brilhar A flor da festa do interior
Mangueira Seu nome é Gal
Mandando flores pelo ar
Se encantou com a musa que a Bahia dá Aplausos ao cancioneiro
É carnaval
Oba, berimbau, ganzá É Rio de Janeiro
Ô, capoeira, joga os versos pra Iáiá
Oba, berimbau, ganzá
Ô, capoeira, joga os versos pra Iáiá
81

AL 130
Eu e água
Caetano Veloso

A água arrepiada pelo vento O mar total e eu dentro do eterno ventre


A água e seu cochicho E a voz de meu pai, voz de muitas águas
A água e seu rugido Depois, o rio passa
A água e seu silêncio Eu e água, eu e água
Eu
A água me contou muitos segredos
Guardou os meus segredos Cachoeira, lago, onda, gota
Refez os meus desenhos Chuva miúda, fonte, neve, mar
Trouxe e levou meus medos A vida que me é dada
Eu e água
A grande mãe me viu num quarto cheio d’água
Num enorme quarto lindo e cheio d’água Água
E eu nunca me afogava Lava as mazelas do mundo
E lava a minha alma

AL 131
Onde o Rio é mais baiano
Caetano Veloso

A Bahia E agora estamos aqui


Estação primeira do Brasil Do outro lado do espelho
Ao ver a Mangueira Com o coração na mão
Nela inteira se viu Pensando em Jamelão no Rio vermelho
Exibiu-se sua face verdadeira Todo ano, todo ano
Que alegria Na festa de Iemanjá
Não ter sido em vão que ela expediu Presente no dois de fevereiro
As Ciatas pra trazerem o samba pro Rio Nós aqui e ele lá
(Pois o mito surgiu dessa maneira) Isso é a confirmação de que a Mangueira
É onde o Rio é mais baiano
82

AL 132
Opachorô
Gilberto Gil

Oxalá Deus queira De Todos os Santos


Oxalá tomara Ou da Guanabara
Haja uma maneira Tantos mares, tantos
Desse meu Brasil melhorar Que as baías possam guardar
Santa Clara queira Todos os encantos
Queira Santa Clara Tanta coisa rara
Falte uma besteira Pra enxugar os prantos
Pr’este céu de anil clarear Santa Clara clareia o sol
Clarão do sol
Oxalá paz Queira Deus
Opachorô Oxalá
Haja bem mais
Opachorô
Oxalá nós
Opachorô
Nos banhemos de luz
De luz
De luz

AL 133
De Ouro e Marfim
Gilberto Gil

Aqui estamos reunidos


À beira mar
Nesta noite de ano novo
Nessa festa de Iemanjá
Pra prestar nossa homenagem
De coração
Ao patrono dessa ordem
Venerável da canção
Curumim da mata virgem
De ouro e marfim
Brasileiro de Almeida
Antônio Carlos Jobim
Ê Babá ê babá ê
Antônio Carlos Jobim
83

AL 134
Pela internet
Gilberto Gil

Criar meu web site Eu quero entrar na rede


Fazer minha home page Promover um debate
Com quantos gigabytes Juntar via Internet
Se faz uma jangada Um grupo de tietes de Connecticut
Um barco que veleje
De Connecticut acessar
Que veleje nesse infomar O chefe da Macmilícia de Milão
Que aproveite a vazante da infomaré Um hacker mafioso acaba de soltar
Que leve um oriki do meu velho orixá Um vírus prá atacar programas no Japão
Ao porto de um disquete de um micro em Taipe
Eu quero entrar na rede prá contactar
Um barco que veleje nesse infomar Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que aproveite a vazante da infomaré Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que leve meu e-mail até Calcutá Que lá na praça Onze
Depois de um hot-link Tem um videopôquer para se jogar
Num site de Helsinque
Para abastecer

AL 135
Quixabeira
D.P./Carlinhos Brown/Bernard von Der Weid/Afonso Machado

Amor de longe, benzinho Na ida levei tristeza


É favor não me querer, benzinho Na volta trouxe alegria
Dinheiro eu não tenho, benzinho Passei pela Quixabeira
Mas carinho eu sei fazer até demais Mané me deu uma carreira
Que até hoje corria
Fui de viagem, passei em Barreiros
Fui de viagem, passei em Barreiros Tu não faz como passarinho
Avisa meus companheiros, sou eu, Que fez o ninho e avoou
Mané de Isaías Voou, voou, voou, voou
Mas eu fiquei sozinho
Sem teu carinho
Sem teu amor
84

AL 136
Doce de carnaval (candy all)
Gilberto Gil

A primeira vez que pai me trouxe Fui batizado com doce


Pra que eu fosse batizado Doce no lugar de sal
Na religião pagã do carnaval Papapai cedo me trouxe
Eu pedi que mãe me desse um doce Pra brincar o carnaval
Pra que o batizado fosse Mamamãe me deu um doce
Mais gostoso que o batizado com sal Doce com mel e etcetera
com mel e etecetera e tal
Eu tive uma febre aquele dia
De alegria de euforia Ôôô
de prazer de viver e coisa e tal Ôôô
Pai me trouxe, mãe me deu um doce Ôôô
Fosse lá qual fosse o doce Do candeal eu sou
Nunca, nunca, nunca mais fiquei normal Pro carnaval eu vou

Nunca, nunca, nunca,nunca, nunca


Nunca mais perdi o gosto do doce de carnaval
Nunca, nunca, nunca,nunca, nunca
Nunca mais perdi o bloco que desce do candeal

AL 137
Pretinha
Gilberto Gil / Kátia Falcão / João Donato

Eu queria te encontrar em Salvador


Eu queria te falar desse calor
Minha Preta gostosinha do Pelô
Me diga que você é meu amor
Por que não consigo viver sem você
Eu sei que você sente isso também
Pretinha, venha logo viver comigo essa emoção
Cada vez que eu te vejo
Bate forte o meu coração!
Cada vez que eu te amo
Bate forte o meu coração
85

AL 138
Aquele frevo axé
Caetano Veloso / César Mendes

Que fazer, meu pensamento está preso aquele carnaval Meu amor, ando na praça vazia
Volto a pisar este chão E espero o sol se pôr
Enceno um drama banal Deixo o clarão se extinguir
Tento refazer a trama Por trás da mão do poeta
Mas o desfecho é igual Nosso amor não vai sumir
E você Veja onde a gente se achou
Será que canta calada aquele frevo axé Estrelas já vão, luzir
Que não me deixa dormir Na noite da Bahia preta
Ou terá perdido a fé Queria tanto você aqui
No que ficou prometido
Sem nos falarmos sequer?

AL 139
Aguarte Agora
Carlinhos Brown / César Mendes

Oceano de agora Canta, minha sereia


Quero sim aguarte agora Venta, canção de amor
De onde vens com essas ondas E o sol é quem bronzeia
Essa vinda é de dar onda Em todo o seu esplendor
Mar que é de levar
Mar que é de guardar Vem cá, minha sereia
Para a história Me diz o que é o amor
O que for lenda E guie minha Bahia
Mar que é de levar Pela idade do som
Mar que é de guardar
Diz a ela que ela lembra Ilê Olodu Maré
Em areia, estou grão Ilê Timbalada
Sei içar do mar Ilê Akaketu ê
Sob as pedras que serena Ê tudo que for patuscada
Onde a sereia cantar Ê tudo que for patuscada
Ê tudo que for patuscada
Ê tudo que for patuscada
86

AL 140
Vida boa
Armandinho / Fausto Nilo

Lua no mar, vendo a canoa passear Olê, olá, que é prá canoa não virar
Que a vida boa passa no real que há E a vida boa é na cabeça vadiar
Coração, é a vida boa Coração é a vida boa
Na paz depois Na paz depois
Depois na paz eu quero paz Depois na paz eu quero paz
Aonde o sonho vai, meu sonho vai Aonde você vai, meu sonho vai
Meus sonhos vão Meus sonhos são
A parte quente de repente tá na mão A parte quente que pressente a sua mão
Meu coração Meu coração
Você que faz a minha vida variar Você que faz a minha vida variar

Tá na luz que passa pelo ar Tá na luz que passa pelo ar


Passa também pelo seu olhar Passa também pelo seu olhar
Ai, morena, faça o que eu sonhar Ai, morena, abraça se eu chorar
Que mágica boa, meu amor Que mágica doida, meu amor
Cadê você, olê, olê, olá Cadê você, olê, olê, olá
Ei, você, olê, olá Ei, você, olê, olá

AL 141
Abracei o mar
Gerônimo / Vevé Calazans

Abracei o mar E nada pediu


Na lua cheia abracei E o dia sorriu
Abracei o mar Uma dúzia de rosas
Escolhi melhor Cheiro de alfazema
Os pensamentos Presentes eu fui levar
Pensei E nada pedi
Abracei o mar Entreguei ao mar
É festa no céu E nada pedi
É lua cheia eu sonhei Me molhei no mar
Abracei o mar Ao agradeci
E na hora marcada
Dona alvorada
Chegou para se banhar
E nada pediu
Cantou pro mar
E nada pediu
Conversou com o mar
87

AL 142
13 de maio
Caetano Veloso

Dia 13 de maio em Santo Amaro Tanta pindoba!


Na Praça do Mercado Lembro do aluá
Os pretos celebravam Lembro da maniçoba
(Talvez hoje inda o façam) Foguetes no ar
o fim da escravidão
Da escravidão Pra saudar Isabel
O fim da escravidão Ô Isabé
Pra saudar Isabé

AL 143
Recôncavo
Márcio Valverde

Se queres saber de tudo Bahia de todos os santos


De tudo, então saberás Dos santos de todos ais
Sou índio de sangue latino Um rio que corta minha vida
Sou negro dos canaviais Cortou-me para nunca mais
Eu sou da nação da cana Sou varanda dividida
Da Bahia suburbana Mourão que segura a viga
Do samba, em linhas gerais Pedra que sustenta o cais
Eu sou da nação da cana Sou varanda dividida
DBahia suburbana Mourão que segura a viga
Do samba, em linhas gerais Pedra que sustenta o cais

Luz que ilumina Luz que ilumina


Iluminai Iluminai
Iluminai os meus olhos Iluminai os meus olhos
Meus olhos Meus olhos
Iluminai Iluminai
88

AL 144
Maricotinha
Dorival Caymmi

Se fizer bom tempo amanhã


Eu vou
Mas, se por exemplo, chover
não vou
Diga a Maricotinha
Que eu mandei dizer que eu
Não tô
Não tô... não vou

Uma chuvinha redinha, cotinha


Aí... piorou
Nem tô... nem vou
Se fizer bom tempo...

AL 145
Feitiço da Vila
Noel Rosa / Vadico

Quem nasce lá na Vila O sol da Vila é triste


Nem sequer vacila Samba não assiste
Ao abraçar o samba Porque a gente implora
Que faz dançar os galhos do arvoredo “Sol, pelo amor de Deus
E faz a lua nascer mais cedo Não venha agora
Que as morenas vão logo embora”
Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel Eu sei tudo que faço
Não tem medo de bamba Sei por onde passo
São Paulo dá café, Minas dá leite Paixão não me aniquila
E a Vila Isabel dá samba Mas tenho que dizer
Modéstia à parte
A vila tem um feitiço sem farofa Meus senhores
Sem vela e sem vintém Eu sou da Vila
Que nos faz bem
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente
89

AL 146
Capitão do Mato
Vicente Barreto / Paulo César Pinheiro

Eu cheguei vestido rei


Quem me chamou?
Eu cheguei vestido de rei
Mutalambô

Eu vi que o vento zuniu


Eu vi que a folha caiu
Eu vi que relâmpiou

Eu vi que a mata rompeu


Eu vi que a flecha correu
Eu vi que a porta bateu
Chegou meu pai caçador
90

AL 147
Yá Yá Massemba
Roberto Mendes / Capinam

Que noite mais funda, calunga Quem me pariu


No porão de um navio negreiro Foi o ventre de um navio
Que viagem mais longa, candonga Quem me ouviu
Ouvindo o batuque das ondas Foi o vento no vazio
Com passo de um coração de pássaro Do ventre escuro de um porão
No fundo do cativeiro Vou baixar no seu terreiro
Êpa raio machado trovão
É o semba do mundo, calunga Êpa justiça de guerreiro
Batendo samba em meu peito
Kawô Kabiê cilê Ê semba ê
Kawô ô ô Ê samba á
Okê aro okê É o céu que cobriu
Nas noites de frio
Quem me pariu Minha solidão
Foi o ventre de um navio Ê semba ê
Quem me ouviu Ê samba á
Foi o vento no vazio É oceano sem fim
Do ventre escuro de um porão Sem amor, sem irmão
Vou baixar no seu terreiro É Kawô
Êpa raio machado trovão Quero ser seu tambor
Êpa justiça de guerreiro Ê semba ê
Ê samba á
Ê semba ê Eu faço a lua brilhar
Ê samba á O esplendor e clarão
No balanço das ondas Luar de Luanda
Okê arô No meu coração
Me ensinou a bater seu tambor
Ê semba ê Umbigo da cor
Ê samba á Abrigo da dor
No escuro porão A primeira umbigada
Eu vi o clarão Massemba yayá
Do giro do mundo Massemba
É o samba que dá
Que noite mais funda, calunga
No porão de um navio negreiro Vou aprender a ler
Que viagem mais longa, candonga Prá ensinar meus camaradas
Ouvindo o batuque das ondas
Com passo de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro

É o semba do mundo, calunga


Batendo samba em meu peito
Kawô Kabiê cilê
Kawô ô ô
Okê aro okê
91

AL 148
Beleza Pura
Caetano Veloso

Não me amarra dinheiro não Não me amarra dinheiro não


Mas formosura Mas a cultura
Dinheiro não Dinheiro não
A carne dura Moço lindo do Badauê
Dinheiro não Beleza pura
Do Ilê Aiyê
Moça preta do Curuzu Beleza pura
Beleza Pura Dinheiro yeah
Federação Beleza pura
Beleza Pura Dinheiro não
Boca do Rio Dentro daquele turbante do Filho de Gandhi
Beleza Pura É o que há
Dinheiro não Tudo é chique demais
Quando essa preta começa a tratar do cabelo Tudo é muito elegante
É de se olhar Manda botar
Tem*oda trama da trança Fina palha da costa e que tudo se trance
A transa do cabelo Todos os búzios
Conchas do mar Todos os ócios
Ela manda buscar pra botar no cabelo Não me amarra dinheiro não
Toda minucia Mas os mistérios
Toda delicia
Não me amarra dinheiro não
Mas elegância
92

AL 149
Haiti
Caetano Veloso / Gilberto Gil

Quando você for convidado E na TV se você vir


Prá subir no adro da Fundação Um deputado
Casa de Jorge Amado Em pânico mal dissimulado
Prá ver do alto Diante de qualquer
A fila de soldados Mas qualquer mesmo
Quase todos pretos Qualquer qualquer
Dando porrada na nuca Plano de educação
De malandros pretos Que pareça fácil
De ladrões mulatos Que pareça fácil e rápido
E outros quase brancos E vá representar
Tratados como pretos Uma ameaça de democratização
Só prá mostrar aos outros quase pretos Do ensino de primeiro grau
(E são quase todos pretos) E se esse mesmo deputado
E aos quase brancos Defender a adoção
Pobres como pretos Da pena capital
Como é que pretos, pobres e mulatos E o venerável cardeal disser
E quase brancos, quase pretos Que vê tanto espírito no feto
De tão pobres são tratados E nenhum no marginal
E não importa se olhos do mundo inteiro E se, ao furar o sinal
Possam estar por um momento O velho sinal vermelho habitual
Voltados para o Largo Notar um homem mijando
Onde os escravos eram castigados Na esquina da rua
E hoje um batuque, um batuque Sobre um saco brilhando
Com a pureza de meninos uniformizados De lixo do Leblon
De escola secundária E quando ouvir
Em dia de parada O silêncio sorridente de São Paulo
E a grandeza épica Diante da chacina
De um povo em formação 111 presos
Nos atrai, nos deslumbra e estimula Presos indefesos
Não importa nada Mas presos
Nem o traço do sobrado São quase todos pretos
Nem a lente do Fantástico Ou quase pretos
Nem o disco de Paul Simon Ou quase brancos
Ninguém Quase pretos
Ninguém é cidadão De tão pobres
Se você for ver a festa do Pelô E pobres são como podres
E se você não for E todos sabem
Pense no Haiti Como se tratam os pretos
Reze pelo Haiti E quando você for
O Haiti é aqui Dar uma volta no Caribe
O Haiti não é aqui E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente
No bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
93

AL 150
Cabelo raspadinho
Tenisson Del Rey / Edu Casanova

Cabelo raspadinho É no cabelo a raiz


Estilo Ronaldinho É na cabeça feliz
Cabelo pintado ou V.O. Fazer a paz, fazer amor, fazer o bom
Cabelo embaraçado, encaracolado Qual é a sua, meu rei?
Rastafari e rock’n’roll Eu só quero passar
Bota a mão na cabeça e deixa o corpo rolar
Tranqüilidade na cabeça
Quem é da paz tem sangue bom Eu quero ouvir o índio cantando
É no cabelo a raiz Fumando o cachimbo da paz
É na cabeça feliz E a sua cabeleira beleza
Fazer a paz, fazer amor, fazer o bom É chique, chique, chique demais!

AL 151
Bahia, minha preta
Caetano Veloso

Bahia, minha preta Te chamo de senhora


Como será Opô Afonjá
Se tua seta acerta o caminho e chega lá? Eros, Dona Lina, Agostinho e Edgar
E a curva linha reta Te chamo Menininha do Gantois
Se ultrapassar esse negro azul que te mura Candolina, Marta, Didi, Dodô e Osmar
O mar, o mar? Na linha romântico
Cozinha este cântico Teu novo mundo
Comprar o equipamento e saber usar O mundo conhecerá
Vender o talento e saber cobrar, lucrar E o que está escondido no fundo emergirá
Insiste no que é lindo e o mundo verá E a voz mediterrânica e florestal
Tu voltares rindo ao lugar que é teu no globo azul Lança muito além a civilização ora em tom boreal
Rainha do Atlântico Sul Rainha do Atlântico Austral

Ê ô! Bahia fonte mítica, encantada Ê ô! Bahia fonte mítica, encantada


Ê, ô! Expande o teu axé, não esconde nada Ê, ô! Expande o teu axé, não esconde nada
Teu canto (grito) de alegria ecoa longe, tempo e espaço Teu canto (grito) de alegria ecoa longe, tempo e
Rainha do Atlântico espaço
Rainha do Atlântico
94

ANEXO DEPOIMENTOS
95

DEPOIMENTO 01

No Rio, foi anunciado que Nara sairia do show “Opinião” e seria substituída por uma
jovem cantora de 18 anos, que a própria Nara tinha conhecido e escolhido na Bahia.
Naquela noite, na última semana de 1964, subi as escadas rolantes que não rolavam até o
teatro de Arena e me juntei à multidão para a reestréia de “Opinião”, o maior sucesso
teatral do ano. Com os cabelos crespos puxados para trás e com as mesmas calças cáqui e
camisa masculina vermelha de Nara, com seu nariz adunco e suas mãos de dedos longos e
expressivos, vi Maria Bethânia pela primeira vez. Como poucos, achei-a de estranha e
misteriosa beleza, entre muitos que se espantaram com a dureza de seus traços. (...) Maria
Bethânia se tornou uma estrela da noite para o dia no Rio de Janeiro, no início de 1965.
Tudo nela era diferente de todas as outras, muito diferente: voz, figura, gestos, sexualidade,
sotaque baiano. Atitude.

Nelson Motta. In: MOTTA, Nelson. Noites Tropicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
96

DEPOIMENTO 02

“Guilherme Araújo precisou conversar um pouco com Gal para convencê-la a se


aproximar mais das primeiras fileiras da platéia, enquanto cantasse Divino, Maravilhoso.
Naquela noite de 9 de dezembro, desde que chegara ao camarim do Teatro Paramount, para
a finalíssima do festival da TV Record, ela não parara de repetir:“Tô com medo...”

Porém, já no palco, quando sentiu que grande parte da platéia estava do seu lado, Gal
se soltou. Só quem conhecia há mais tempo a tímida e calada Gracinha, que cantava bossa
nova como ninguém, poderia perceber a enorme transformação que estava acontecendo
com aquela garota, vestida com uma túnica indiana vermelha, bordada com espelhos de
metal e colares de miçangas – outro modelo de Regina Boni. Gal cantou emocionada e
ofegante, dando gritos à Janis Joplin, enquanto andava pela passarela que circundava o
fosso da orquestra.

Carlos Calado, in: CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução


musical. São Paulo: Ed. 34,1997, p. 248.
97

DEPOIMENTO 03

“Quando eu cheguei no Rio de Janeiro, em 65, foi Copacabana que me recebeu com
seu cheiro de batata-frita e gasolina, as suas tardes de raios e trovões inesperados e as suas
noites inesquecíveis, mágicas de puro glamour. O Teatro Opinião onde estreei ao lado de
João do Valle e Zé Kéti fica em Copacabana, e também as boites todas da cidade, a
maioria pelo menos. E eu cantei em quase todas elas, e eu ficava fascinada com a
novidade, a riqueza da noite em Copacabana. Podia-se ver na boite Cangaceiro Elizeth
Cardoso, Nara Leão no Barroco, Chico Buarque e MPB 4 no Arpege, Murilinho de
Almeida no Girau, Silvinha Telles, Rosinha de Valença no Zun Zun, ou no Bateau... Quer
dizer, isso é muito pra uma menina chegando e poder assistir tudo isso e participar de tudo
isso. E eu cantei em quase todas as casas, em quase todas as boites eu cantei, de
Copacabana, e eu adorava fazer shows de boite. E eu adorava fazer por que público de
boite é um pouquinho diferente. Não é um público assim de teatro ou de uma casa de
espetáculo. É um público mais mole, mais molinho, a gente leva melhor assim, por que
bebe um pouquinho, namora muito e esquece um pouco da cantora lá no canto dela. E foi
bacana pra mim porque eu aprendi tudo cantando em boite. Aprendi com os grandes
músicos que trabalhavam nesses espetáculos, aprendi com os grandes compositores,
poetas, cantores que faziam esses shows. Eu adorava, me lembro bem disso, de cantar
assim, a sensação mesmo assim: eu estou aprendendo o meu ofício. A disciplina e o
prazer(...)”

Maria Bethânia, in: Maricotinha Ao Vivo, CD, Biscoito Fino, 2002.


98

DEPOIMENTO 04

“É claro que eu não me via realizando essa aventura poética em meu próprio nome.
O senso de grupo que eu tinha era imensamente forte. Quando Rogério, ouvindo-me
argumentar entusiasmado, provocou-me dizendo que eu era apenas um apóstolo e que Gil é
que era o profeta, pareceu-me que ele lia meus pensamentos mais recônditos. Eu me sentia
responsável por uma grande e bela tarefa, pois Gil e Gal (e também Bethânia, apesar de seu
grito de independência) necessitariam sempre de minha orientação, direta ou indireta, mas
a verdadeira mensagem poética se daria através do grupo – e a partir de Gil. Nunca foi, em
nenhum nível, obscuro para mim que o grupo coeso ao qual eu pertencia era formado por
nós quando, acontecesse o que acontecesse (...) Duda e Wally e Torquato e mesmo Rogério
foram meus amigos num grau de intimidade que minhas relações pessoais com Gil ou Gal
nunca atingiram. Mas a visão que eu tinha da unidade de destino de nós quatro, a certeza
de que éramos companheiros num nível de luta que os outros não conheceriam, destacava
o quarteto. Talvez fosse apenas a captação da vocação para o estrelato – e quantas vezes, ai
de mim, passados muitos anos desses dias heróicos, não pensei que talvez tudo não tivesse
passado de uma mera atração para o estrelato mais vazio! –, mas o fato é que eu via uma
luz intensa sobre nós que não parecia pousar sobre os outros. Eu não vivia o que se me
apresentava como o preenchimento de ambições individuais minhas. Na verdade, minha
convicção íntima era de que, uma vez atingido o ponto de não-retorno, eu deixaria os três à
sua própria sorte – Gil, o verdadeiro músico; Gal, a verdadeira cantora; Bethânia, a
verdadeira estrela dramática do canto – e procuraria meu caminho como cineasta ou na
literatura. “Em um ano, um ano e meio, estarei livre”, pensava.”.

Caetano Veloso, in: VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 245-6.
ANEXO NOTÍCIAS

• Pavarotti, Bethânia e Gal juntos em Salvador

O tenor italiano Luciano Pavarotti e as cantoras baianas Maria Bethânia e Gal


Costa apresentaram-se juntos em Salvador, o show Pavarotti na Bahia. O evento,
em homenagem aos 500 anos do descobrimento, aconteceu na Bahia Marina e foi
a única apresentação do tenor Lno país.
No palco, ao lado dos cantores, tocou a Orquestra Sinfônica da Bahia. Os 7 mil
ingressos esgotaram-se em três horas. O roteiro do show foi escolhido para unir
um grande nome da música internacional ao talento de duas das maiores
intérpretes da Música Popular Brasileira.
A abertura foi feita pela Orquestra Sinfônica da Bahia tocando Guarany . Maria
Bethânia, abriu o show cantando "Terezinha", "Fera Ferida", "Rosa dos Ventos",
Explode Coração" e Canção da Manhã Feliz". Depois entrou Gal Costa cantando
"Nada Mais", "Garota de Ipanema", "Canta Brasil" e "Se todos fossem iguais a
você". Chegou então ao palco Pavarotti onde cantou seus sucessos; em
português cantou Manhã de Carnaval ao lado de Maria Bethânia e Aquarela do
Brasil com Gal Costa, encerrando o espetáculo.
"A festa que comemora os 500 anos do Brasil é um momento especial e tenho o
prazer de dividir o palco com duas maravilhosas artistas", diz Pavarotti.
"O Brasil é uma expressão incrível da humanidade", completa.
Para as duas cantoras, esta foi a primeira oportunidade de cantar diretamente
com um astro da música lírica.
"Quando vejo Pavarotti com os olhos cheios de lágrimas ao cantar, fico
emocionada", diz Bethânia.
"Ele é the Best", completa Gal.
Ao todo foram cerca de 300 profissionais envolvidos diretamente na produção do
evento, que teve como cenografia o Pelourinho, o mundialmente conhecido centro
histórico da capital baiana. A arquitetura barroca das casas e das igrejas serviu
como cenário para um palco de 450 metros quadrados.

In: www.galcosta.com.br, acesso em 21/06/2002.


• Pavarotti, Gal e Bethânia inauguram as
festividades dos 500 anos do Brasil
Agence France Presse

O início das celebrações dos 500 anos do Brasil começa com um europeu, o tenor
italiano Luciano Pavarotti, abrindo os festejos, este sábado, dia 8, em Salvador,
com um concerto composto por músicas brasileiras, acompanhado das cantoras
Gal Costa e Maria Bethânia.

"Vamos fazer uma apresentação muito especial, incluindo músicas brasileiras,


porque estamos celebrando os 500 anos deste país, o que é uma data muito
especial", assegurou esta sexta-feira o tenor ao chegar a Salvador, cidade que
visita pela primeira vez.

Pavarotti garante que vem ouvindo há meses discos de Gal e Bethânia, com quem
vai cantar na Marina de Salvador.

"São duas vozes magníficas, duas cantoras muito completas, que conquistaram
um êxito merecido", elogiou o tenor.

Este espetáculo será o início de uma extensa programação de eventos que o


governo brasileiro preparou para comemorar o quinto centenário do
Descobrimento do Brasil.

Jornal O Globo, 08/04/2000


• Doces egos bárbaros

04-12-2002

Caetano, Gal, Gil e Bethânia se reagrupam no palco para reproduzir projeto de


1976

PEDRO ALEXANDRE SANCHES


ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Os palcos ao ar livre do parque Ibirapuera (SP) e da praia de Copacabana (Rio)


estarão pesados neste final de semana. Dois shows gratuitos colocarão em cima
deles, tudo ao mesmo tempo, as músicas, a história, a estatura artística e os egos
dos baianos Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia.

Trata-se da volta, 26 anos mais tarde, do quarteto Doces Bárbaros, formado em


1976 por idéia e inspiração de Bethânia (justamente a única dos quatro que nunca
se filiou ao tropicalismo).
Em várias e rápidas ocasiões eles estiveram e cantaram juntos depois, mas pela
primeira vez se reagruparão no palco quase o tempo todo, num show conjunto.

Suas gravadoras já se assanham. A Universal (de Caetano) e a independente


Biscoito Fino (de Bethânia) entraram em acordo: o show virará, em 2003, CD da
Universal e DVD da Biscoito.
Segundo o gerente artístico da Universal, Ricardo Moreira, o acordo está selado,
sem objeções das gravadoras que ficaram de fora, Warner (de Gil) e MZA/Abril
(de Gal). "Só não digo que é certeza que os produtos saiam porque só quem pode
decidir e dizer sim ou não são os artistas", diz.

Devido à complexidade de gravar um show na praia e/ou na praça e


considerado o dado de apenas sete ensaios ao longo desta semana reunirem os
quatro artistas até o show final, pode-se até duvidar da concretização do projeto
gravado. Mas Caetano, 60, recém-chegado de turnê internacional, trata de
dissipar a dúvida, brincalhão: "O grupo que teve coragem de lançar aquele
primeiro show gravado ao vivo, em 76, não deve temer lançar este de agora". Gal,
57, intercepta o colega, concordando: "É, o som daquele disco não é bom, não".

Se a versão 1 aconteceu espontaneamente, os quatro admitem agora a


profissionalização de suas vontades. "Nos reunimos por convite do Grupo Pão de
Açúcar", simplifica Gil, 60.

"Da primeira vez sugeri porque sentia saudade de nosso começo, quando
fazíamos juntos na Bahia o show "Nós, por Exemplo". Aqui, foi um convite de fora,
que inclui a alegria do reencontro. É muita emoção. Todo mundo está mais velho,
mas o tempo não passa só para o mal", descreve Bethânia, 56 anos.

A apoteose dos Doces Bárbaros encerra o projeto 2002 da empresa, que ao


longo do segundo semestre levou aos megapalcos do Rio e de São Paulo shows
individuais dos quatro baianos. Os artistas aceitaram o convite e assinaram o
contrato, somente.

Eles admitem que encontros grupais são raríssimos para eles. "É mais comum
nos encontrarmos de três a três, mas coincidirem os quatro é raro", diz Gil, ao que
Gal atalha, rindo: "Sempre foi três a três".

O roteiro não deve incluir surpresas. "Um dos conceitos da reunião foi que
iríamos recuperar o repertório histórico da gente, não só dos Doces Bárbaros, mas
principalmente deles", diz Gil.

Diretor musical do reencontro (como em 1976), ele fornece a única canção


inédita prometida, "Outros Bárbaros". O núcleo da banda de apoio vem de Gil
também, com acréscimo de dois músicos de Bethânia. A de Caetano, que
acompanhava Caetano em sua turnê mundial até outro dia, estará ausente.

"Eu preferia que houvesse mais inéditas, mas saí do show com Jorge Mautner
para o avião e do avião para o ensaio dos Doces Bárbaros", lamenta Caetano.

Política, festa, ego

Se em 76 os Doces Bárbaros foram recebidos com críticas pelo tom escapista


que adotavam, na contracorrente da resistência da MPB ao regime militar, hoje
eles se reencontram no clima de festa política popular da chegada de Lula à
Presidência.

"Vou fazer tudo para que o Brasil dê certo. Nós, cantores, temos chance de
fortalecer isso, é o que pode nos salvar", diz Bethânia, que em seu show individual
no projeto Pão Music incluiu, em tom de prece, a canção "Sonho Impossível",
usada pela campanha de Lula sob sua autorização. "Com Lula no poder, o povo
se sente no poder", concorda Gal.

"Os Doces Bárbaros eram muito festa e celebração, no tom, nas roupas, nas
músicas. A gente já se considerava bastante medalhão na época, agora somos
mais ainda", afirma Caetano, que teve episódio de conflito com o comando petista
quando apareceu cantando "Amanhã" na campanha, sem tê-la autorizado.

"Fiz questão de dizer que estava neutro nessa eleição. Minha voz foi usada sem
autorização, mas depois José Dirceu me ligou, se desculpou e explicou que foi
uma confusão", contemporiza.
Os figurinos hippies de 76 não serão repetidos, eles prometem. "Isso vai ser
livre. Gal até brincou, perguntou se ia ter farda", ri Bethânia. "Os figurinos eram
fantasiosos, eu tinha uma roupa amarela linda. Algumas eram bonitas, outras eu
achava feias já na época", diz Caetano. "Eu usava um collant branco", evoca Gil,
levando os quatro às gargalhadas.

Reagem instantaneamente à pergunta sobre se discussões há de pintar por aí,


já que são quatro egos avantajados reunidos no mesmo espaço.

"Não, não, não. Estamos harmônicos", sentencia Gal. "Quando um não quer,
quatro não brigam", dita Gil. "Este grupo de pessoas não é muito de briga, não",
exagera Caetano.

Citada a palavra ego, Caetano se inflama, eleva o tom de voz e interpreta o solo
exasperado de toda entrevista: "Esse negócio de ego é uma coisa muito cafona.
Pensam que porque o cara é artista tem ego enorme, quer derrubar o outro. Não,
isso é burrice, ignorância, cafonice intelectual".

Gil tenta discordar: "O ego é um pouco um elemento, um Red Bull [bebida
energética] do "star system'". Caetano captura: "Ego é só para vender disco e
jornal. Não serve para nada".
O palco dirá, no fim de semana.

(© Folha de S. Paulo)

In: www.galcosta.com.br, acesso em 12/12/2002.


• Canções trocam política por festa e hippismo
DO ENVIADO AO RIO

Doces Bárbaros foi o nome que Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria
Bethânia adotaram ao se reunirem em turnê nacional que se transformou no
álbum duplo homônimo de 1976.

O tom era de revisitação à tropicália, oficialmente encerrada em 68 com o exílio


de Caetano e Gil, e de absorção da estética hippie a que Gal, especialmente,
havia se entregado na ausência dos parceiros. Hippies, festivas e metafóricas, as
canções evitavam qualquer menção política, contrariando nesse ponto o espírito
tropicalista de nove anos antes.

Os discos ao vivo ainda eram raros na época, e o registro sonoro deficiente era
compensado por farto material inédito. Havia releituras como a do clássico antigo
"Atiraste uma Pedra" e uma maioria de canções compostas especialmente por
Caetano e Gil, sozinhos ou em dupla.

Caso raro, Bethânia e Gal apareciam como autoras -uma dividindo "Pássaro
Proibido" com o irmão e a outra homenageando Rita Lee em "Quando", composta
com Caetano e Gil. A lista de canções que devem ser relidas trazia "Chuck Berry
Fields Forever", "Esotérico", "Um Índio" e o hino hippie/tropicalista de (re)tomada
de poder "Os Mais Doces Bárbaros".

A excursão original do quarteto teve uma interrupção imprevista, em


Florianópolis: os quatro artistas foram revistados no hotel por suspeita de
consumo de drogas; Gil foi preso, julgado e condenado por porte de maconha.

Os quatro se contradizem quanto a lembrarem do episódio durante os


reencontros. "A gente fica lembrando...", divaga Gal. "Que horror, ninguém fica
lembrando, não. Aquilo foi horrível", protesta Bethânia, ao mesmo tempo em que
Gil desmente: "Nos lembramos, sim, conversamos sobre aquilo".
Caetano, que estava viajando, dá o veredicto: "Bethânia não estava presente
quando conversamos sobre isso". E encerra, em tom de blague: "Mas pode ter
certeza de que esse episódio não vai acontecer de novo". (PAS)

(© Folha de S. Paulo)

In: www.galcosta.com.br, acesso em 12/12/2002.


• Os Doces Bárbaros, juntos 26 anos depois

Caetano, Gil, Gal e Bethânia se reúnem para duas únicas apresentações, uma em
São Paulo, outra no Rio. Os shows serão gravados e podem virar CD e DVD

São Paulo - Vinte e seis anos depois de sua criação - e de seu fim -, o conjunto
Os Doces Bárbaros volta à cena, para duas únicas apresentações. No sábado, o
grupo, formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia,
canta na Praça da Paz do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a partir das 18
horas, com entrada franca. No domingo, sempre de graça, os quatro baianos
reprisam o espetáculo no Rio de Janeiro, no Posto 3 da Praia de Copacabana,
com o espetáculo começando às 19h30.

Os espetáculos serão gravados ao vivo - imagem e som. Pretende-se que


resulte num CD (com selo da gravadora Universal) e num DVD (que sairá pela
gravadora Biscoito Fino, juntando o espetáculo original e o de agora). Não é
garantido que saiam CD e DVD. Vai depender da qualidade das apresentações.
"Se bem que para um grupo que lançou aquele elepê (do show original dos Doces
Bárbaros, em 1976, gravado ao vivo, no Canecão, no Rio) não pode ser muito
exigente", brincou Caetano Veloso, durante entrevista coletiva do grupo, na
segunda-feira.

O registro do show original dos Doces Bárbaros é, de fato, precário. Até pelas
condições técnicas da época, a qualidade da gravação ao vivo não ficou tão boa
quanto poderia. Mas foi um sucesso. O elepê duplo bateu recordes de venda. O
show lotou casas de espetáculo em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto
Alegre, Rio e Salvador. Mais apresentações houvesse, mais casas ficariam
lotadas. No entanto, o grupo se desfez para que seus integrantes seguissem com
as respectivas carreiras.

A idéia de juntar os quatro foi de Maria Bethânia - logo dela, que não gosta de
participar de grupos, movimentos. "Pois é, nem no disco da Tropicália ela entrou,
por ser avessa a esses rótulos", lembrou Caetano Veloso. "É, mas cada um de
nós tinha já sua história definida e eu tinha saudade do tempo em que tocávamos
juntos, em Salvador", Bethânia explica.

"Aqui, agora, há a alegria do reencontro, e é bom, diferente, emocionante",


prossegue Bethânia. Gil aparteia: "Nos ensaios, tenho sentido muita emoção" - e
Bethânia confessa que, no primeiro ensaio da atual temporada, chegou a ficar
nervosa, como uma iniciante: "Depois, não, foi tranqüilo."

Serão, ao todo, oito ensaios, com Gilberto Gil assumindo a responsabilidade dos
arranjos - um diretor musical. "Como sempre foi, desde o nosso início, lá na
Bahia", diz ele. "Eu sou o que mais transita nesse campo específico de músico."
Bethânia explica: "Ele sabe traduzir muito bem o que nós queremos, sabe
transformar nossas intenções musicais em realidade."

Esse é um dos motivos pelos quais a banda que vai acompanhar o grupo nos
dois shows do fim de semana é, basicamente, a de Gilberto Gil, formada por Jorge
Gomes (bateria), Arthur Maia (contrabaixo), Gustavo de Dalva e Leonardo Reis
(percussões), Claudinho Andrade (teclados), Sérgio Chiavazzoli (guitarra) e Carlos
Malta (sopro). Dois músicos da banda de Maria Bethânia também participam - o
violonista Jaime Alem e o pianista João Carlos Coutinho. Por lembrança de
Bethânia, completa a formação a percussionista Mônica Millet. Vem a ser a única
instrumentista que participou da banda de 1976.

Para o reencontro, Gilberto Gil compôs uma canção nova, chamada Outros
Bárbaros. Caetano Veloso gostaria de ter composto, também, música nova. "Mas
não tive tempo", diz ele. "Queria que houvesse umas quatro ou cinco novidades;
queria compor uma canção sozinho, escrever outra em parceria com o Gil... mas
estive gravando o disco (o CD recém-lançado Eu não Peço Desculpa) e fazendo
shows com o Jorge Mautner, depois fui para Nova York e não consegui nem voltar
a tempo para o primeiro ensaio dos Doces Bárbaros." E Bethânia faz questão de
cantar uma música que não estava no roteiro original, Santo Antônio, de seu
sobrinho J. Velloso - mas a música não foi feita especialmente para o show e não
é inédita.

A idéia, de fato, era resgatar o repertório original. "Eu até achei, quando vi o
roteiro, que todas as canções, e quase só elas, fossem do primeiro show dos
Doces Bárbaros", diz Caetano. Mas, ao longo dos últimos anos, os quatro
músicos, dois a dois, fizeram vários trabalhos juntos - Gal e Bethânia, Gil e
Caetano, Caetano e Bethânia e assim por diante. Alguma coisa desses encontros
deverá ser mostrada no espetáculos. Ainda assim, Gil explica, na maior parte do
tempo, os quatro estarão em cena.

Juntos, como poucas vezes estiveram desde aquele 1976. Nos anos 90,
reuniram-se, em Londres; depois, desfilaram juntos - na qualidade de
homenageados - na Mangueira. Há três anos, subiram ao trio elétrico que, no
carnaval baiano, fazia homenagem a Jorge Amado. "Não era um trio elétrico, era
um trio alegórico", Gil brinca. "Nós nos vemos sempre, mas não os quatro",
continua ele. "Encontro mais Caetano; Gal é minha vizinha em Salvador, vai
sempre à minha casa" - e os irmãos Caetano e Bethânia encontram-se na cidade
natal, Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano.

Dessa vez, a idéia do reencontro não foi deles, mas do grupo Pão de Açúcar,
que promoveu shows individuais de cada um, sempre no Ibirapuera e em
Copacabana, ao longo do ano, para culminar com a reedição do grupo.
"Aceitamos o convite", diz Gil. "Mas eu não sabia que haveria um DVD; fiquei
sabendo há pouco." Caetano acrescenta: "Eu não sabia nem do CD. Acabo de
saber."
Em 1976, quando os Doces Bárbaros excursionavam, houve episódios menos
alegres do que a música no palco faria pressupor. No pior deles, a polícia invadiu
os quartos de hotel onde os integrantes estavam hospedados, pretensamente em
busca de drogas. Vivia-se, ainda, tempo de repressão política, e os baianos -
Caetano e Gil haviam voltado do exílio cinco anos antes - eram olhados com
muita, muita desconfiança.

Quando alguém lembra o episódio, Gal Costa reage: "Que horror, a gente não
lembrou disso, não" - eles estão em festa. E Caetano não vê o primeiro encontro
como uma manifestação política: "Já naquela época nossa idéia era de
celebração, já era uma brincadeira sobre nós mesmos, nós já éramos medalhões."

Os tempos políticos são outros, também, e Gil os comenta: "Hoje, de fato, o


encontro é mais festivo, pelo fato de o País ter manifestado sua vontade de ter um
rosto, de ser percebido" - o rosto seria o de Lula, presidente eleito, que veio do
povo? "A gente percebe a alegria nas ruas e deve fortalecer essa alegria", diz
Bethânia. "É importante o fato de o País querer estar contente" - "Ter sua
personalidade", acrescenta Gil. "É precisamos fortalecer isso, mas com juízo",
repõe Bethânia que, no show que fez, no Ibirapuera, em novembro (um dos quatro
espetáculos que preparavam a volta dos Doces Bárbaros), pediu ao público que
cantasse, pelo País, a canção Sonho Impossível, de Chico Buarque.

"É, mas agora vou cantar Viramundo, que é música um pouco mais arretada",
ela diz. Viramundo é canção de Gil ainda dos anos 60, uma composição que pode
ser enquadrada no modelo da então chamada música de protesto: "Sou
viramundo virado/ Na roda das maravilhas/ Cortando a faca e facão/ Os desafios
da vida/ Gritando para assustar/ A coragem da inimiga/ Pulando pra não ser preso/
Pelas cadeias da intriga/ Prefiro ter toda vida/ A vida como inimiga/ A ter na morte
da vida/ Minha sorte decidida" - para terminar assim: "Ainda viro esse mundo/ Em
festa, trabalho e pão."

Gente que sempre se pronunciou politicamente - com grande repercussão,


principalmente quando a fala vinha de Caetano e Gil -, o quarteto declara-se
tranqüilo e esperançoso com o governo que terá início em janeiro. Gil fez
campanha de Lula. Caetano preferiu permanecer neutro e chegou a pedir ao PT
que tirasse uma música sua do programa eleitoral. "Mas porque eles não haviam
solicitado a minha autorização, e eu fiz questão de parecer neutro", disse. "O Zé
Dirceu (presidente nacional do PT) me ligou, pediu desculpas, não houve briga",
acrescenta.

"Eu já pedi para participar de campanha", lembra Caetano. "Foi em 1989,


quando os candidatos eram Brizola, Lula e Collor. Eu pedi para participar da
campanha do Brizola e, no segundo turno, votei no Lula" - mais tarde, votaria em
Fernando Henrique Cardoso. Bethânia acrescenta: "Eu sempre votei no Lula." Gal
Costa não se manifestou.
Os figurinos do encontro original dos Doces Bárbaros eram coloridos e
desafiadores - Gil usava um collant branco com um pano na cabeça: "Um super-
Xangô", como define. Os outros, de barriga de fora, sentiram frio em algumas
cidades por onde passaram - mas tudo era festa. "Cada um fazia o seu figurino",
diz Bethânia. "Eu tinha seis roupas diferentes... que exagero!" Como será, agora?
Bem, de novo, cada um bolou sua roupa. E quem assistir aos shows, saberá.

Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Gilberto Gil. Sábado, às 18 horas.
Entrada franca. Praça da Paz/Parque do Ibirapuera. Avenida Pedro Álvares
Cabral, s/n.º, São Paulo, tel. 0800-115060. Patrocínio: Grupo Pão de Açúcar.
(Mauro Dias)

(© estadao.com.br)

In: www.galcosta.com.br, acesso em 12/12/2002.


• Coletiva dos "Doces Bárbaros" no Rio de Janeiro
Nos dias 7 e 8 de dezembro, os palcos do Pão Music no Rio de Janeiro e em São
Paulo sustentarão uma parte importante da história, com a apresentação do show
dos Doces Bárbaros. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa
vão se reunir depois de 26 anos, pela primeira vez num show em conjunto, para
relembrar os sucessos que consagraram o quarteto como ícones da Música
Popular Brasileira.

Na terça-feira, dia 3 de dezembro, os quatros baianos receberam os jornalistas no


estúdio de Gilberto Gil, onde estão ensaiando com uma dezena de músicos. Eles
contaram como estão os preparativos para o espetáculo.

Num clima de muita descontração e gargalhadas, os quatro relembraram alguns


dos detalhes do tempo em que eram os "Doces Bárbaros". O início do grupo
surgiu com um convite de Maria Bethânia para que todos se reunissem num
trabalho único.
"Gilberto Gil interrompeu a excursão do ´Refazenda´ e os outros estavam em
trabalhos semelhantes de conclusão ou início de projetos", lembra Caetano.

Maria Bethânia contou que Gilberto Gil continua o mesmo de 1976, fazendo o
papel de diretor musical dos Doces Bárbaros. "Desde lá, na Bahia, ele já dirigia o
grupo musicalmente. Qualquer dúvida, sempre perguntávamos ao Gil."

Gil, Gal e Bethânia descobriram que não sabiam sobre origem do nome "Doces
Bárbaros" e ficaram surpresos quando Caetano revelou que o nome surgiu de
uma conversa com Jorge Mautner, na praia de Ipanema. "Contei ao Jorge que
iríamos nos reunir e sugeri o nome Doces Bárbaros. E ele me disse: `Jesus, o
Nazareno, ele sim é que é o doce bárbaro. Os outros bárbaros invadiram Roma de
maneira violenta e não conseguiram um milésimo do que Jesus conseguiu para a
decadência do Império Romano, com a doçura, como o perdão e a compaixão´." E
Caetano ainda ressaltou: "É por isso que coloquei Jesus na letra da música "Os
Mais Doces Bárbaros", por causa de Mautner.

Entre as músicas preferidas do grupo estão "Os mais Doces Bárbaros", "O seu
amor", "Gênesis", "Pé quente, cabeça fria", "Chuckberry fields forever" e "Fé cega,
faca amolada". Os quatro prometem cantar as principais músicas do disco "Doces
Bárbaros" e recuperar algumas canções de cada um.

Quando perguntados se usariam roupa semelhante àquela época, Caetano


afirmou que os "Doces Bárbaros" eram festa e celebração, no tom, nas músicas e
nas roupas. "As roupas não eram hippies, eram estilizadas, eram fantasias de
palco, variadas, uma civilização inventada. Era um pouco cafona, uma brincadeira.
Era na verdade uma paródia dos novos baianos. Nós já éramos os velhos
baianos."
Para o show do próximo final de semana, cada músico fará dois solos. A novidade
fica para a inédita "Outros Bárbaros", especialmente composta por Gil para o
show. A banda será formada pelos músicos de Gil e de Bethânia.

Ao ser questionado sobre a possibilidade de o grupo se reunir em ocasiões


futuras, Gil respondeu: "O encontro só foi possível por causa do Grupo Pão de
Açúcar".

Os Doces Bárbaros encerram a temporada do projeto Pão Music 2002 no dia 7 de


dezembro, às 18 horas, na Praça da Paz do Parque Ibirapuera, em São Paulo, e
no dia 8, às 19h30, no posto 3 da Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. A
apresentação é gratuita.

In: www.galcosta.com.br, acesso em 05/01/2003.


• Reencontro dos Doces Bárbaros é histórico na MPB
AUGUSTO PINHEIRO
free-lance para a Folha Online

O reencontro dos Doces Bárbaros, grupo formado em 1976 por Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, em um show no parque do Ibirapuera,
em São Paulo, foi daqueles momentos que vão ficar marcados na memória e na
história da MPB. Até o temporal que atingiu a cidade no final do show pareceu ter
vindo para abençoar os cantores.

Super à vontade e trocando carinhos mútuos, as quatro estrelas baianas cantaram


juntas, em duplas e sozinhas. A platéia vip estava apinhada de famosos, da
prefeita Marta Suplicy a Fernanda Torres, passando por Raí e João Paulo Diniz.

Grande parte do repertório foi tirada do LP duplo lançado pelo grupo, em 1976,
pela Philips, como a música "Fé Cega, Faca Amolada", de Milton Nascimento e
Ronaldo Bastos, que abriu o show do Ibirapuera cantada pelos quatro juntos -
assim como no disco.

Já o visual estava bem distante dos tempos hippies dos Bárbaros: Caetano e Gal
estavam de branco -ela com um conjunto de calça e blusa da Maria Bonita e uma
capa toda recortada, e ele com uma camisa de piquê de uma linha lançada pelo
ator norte-americano John Malkovich e uma calça com bolsos na frente.

Gil estava à vontade em calça e camisa azuis de Armani, e Maria Bethânia estava
de calça e camisa verdes, compradas na Europa, com um colete de paetê azul.

A segunda canção do espetáculo, "Outros Bárbaros", a única inédita, foi composta


por Gilberto Gil especialmente para este show, o do reencontro, que será repetido
ainda no Rio de Janeiro e em outras capitais. "Trata do nosso amor, da nossa
relação de afeto. Foi feita para os Doces Bárbaros de então, de hoje e sempre",
disse Gil.

Enquanto cantavam, o telão passava imagens do documentário do grupo feito em


1976 por Jom Tob Azulay, com registros de shows, bastidores e entrevistas.

Depois os quatro entoaram "Atiraste uma Pedra", também do disco "Doces


Bárbaros". Gal e Bethânia saíram para que Caetano e Gil cantassem outra do
mesmo LP, o rock "Chuckberry Fields Forever", com Caetano rebolando na frente
da guitarra de Gil.

Caetano estreou os momentos solos da noite cantando uma composição de Gil,


"Drão", com seu violão de design moderno. Depois, mostrou uma música sua,
"Trilhos Urbanos".
A seguir, o palco ficou feminino com Bethânia e Gal em momento apaixonado. As
duas cantaram "Esotérico", do repertório dos Doces Bárbaros, olhos nos olhos,
com direito a um selinho no final.

Os quatro se juntaram novamente para cantar as animadas "São João Xangô


Menino" (Gil e Caetano) e "Santo Antonio", com direito a dancinha de Gal e
Caetano.

Bethânia iniciou sua vez sozinha no palco com "Viramundo", de Gilberto Gil e
Capinam. "É maravilhoso encontrar Gil, Caetano e Gal. É comovente de uma
maneira que não sei contar", disse a cantora ao público. E completou: "Bravo para
vocês que estão aqui embaixo de chuva".

Chacoalhando as pulseiras douradas, entoou umas das mais belas canções do


irmão, "Um Índio". Gil, Caetano e Gal chegaram, com semblantes sérios, para
cantar o refrão, em uma das poucas encenações do espetáculo. Com uma bateria
vibrante, foi um dos pontos altos do show.
Como também foi "Seu Amor", do LP "Doces Bárbaros", com sua letra tocante,
cantada pelos quatro alternadamente, com Gil e Caetano nos violões.
Chegou a vez de Gal ficar sozinha. Começou com "Eu Te Amo", de Caetano
Veloso, e terminou com "Lanterna dos Afogados", música do Paralamas do
Sucesso, que gravou no seu CD acústico, com um arranjo um tanto brega de
saxofone.
Gal desfilou suas havaianas cor-de-laranja e cantou, com Caetano, "Tieta", que,
com batuque à la Timbalada, levantou o público. Até a banda, com dez
integrantes, dançou junto.
Para abrir seu momento solo, Gil anunciou: "Vou cantar uma música 'nova' para
vocês". E começou o sambinha "Máquina e Ritmo", em um dos poucos momentos
minimalistas do show.
Depois iniciou a sessão forró do espetáculo, com "Esperando na Janela" e "Asa
Branca", um dos hinos da música popular nordestina, em dupla com Bethânia. A
sanfona foi substituída pela flauta.
"Saudade da Bahia" reuniu novamente os quatro no palco, que acabaram o show
com a alto-astral "O Mais Doce dos Bárbaros", que traz imagens dos quatro em
começo de carreira. Foi o momento mais carinhoso da noite, com abraços, afagos
e beijinhos -como um "selinho" na boca entre Gal e Caetano.
O bis, com "Gente" (Gente é pra brilhar/Não para morrer de fome), foi o momento
mais forte da noite. Com os quatro na frente do palco coberto, começou um
temporal que invadiu o palco e molhou os Doces Bárbaros. Mas tudo era festa, e
eles cantaram na chuva. E o público terminou o show ensopado, mas feliz.

In: www.folhaonline.com.br, acesso em 08/12/2002.


• Outros bárbaros, mas ainda doces
Quarteto baiano se reencontra em Copacabana

Vagner Fernandes

Repórter do JB
Evandro Teixeira

Caetano, Bethânia, Gal e Gil negam possibilidade de guerra de egos e reafirmam


a sua sintonia

Quando Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil subirem,
domingo, no palco montado na altura do Posto 3, em Copacabana, não estarão
celebrando apenas os 26 anos dos Doces Bárbaros, mas recuperando parte da
história do grupo que mudou a estética da música brasileira. O quarteto encerra a
10ª edição do projeto Pão Music que, este ano, homenageia o grupo com toda a
pompa e circunstância.
Explica-se: o espetáculo, que, inicialmente, foi idealizado para concluir o último
ciclo da série, será convertido em CD e em DVD - produzido pela Conspiração
Filmes -, a serem lançados no início do ano.

Em meio a um clima descontraído, os quatro se reuniram anteontem, no estúdio


de Gil, na Estrada da Gávea, para um bate-papo informal, pontuado por
gargalhadas, brincadeiras, doces recordações e uma certa dose de nostalgia.

- Estamos mais velhos, mas o vigor profissional e o companheirismo permanecem


os mesmos - disse Bethânia.

Ela foi a responsável por reunir o grupo, pela primeira vez, em meados da década
de 70.

- Nós já tínhamos carreiras definidas, mas lembro que, na época, fiquei com uma
vontade tremenda de resgatar aquele clima de quando éramos do interior, ainda
desconhecidos. Bateu saudade - confessa.

No show de domingo, praticamente todo o repertório do espetáculo original será


revisitado. Esotérico, Um índio e Os mais Doces Bárbaros , canções que
anestesiavam platéias dos quatro cantos do país, obviamente, são cartas
marcadas no roteiro que vem sendo discutido minuciosamente pelos quatro
artistas durante os ensaios.

- Algumas canções serão apresentadas com nova roupagem, como São João,
Xangô Menino - diz Gil, que compôs a inédita Outros bárbaros para marcar o
reencontro.
Exausto pela recente turnê que fez pelos Estados Unidos, Caetano bem que
tentou compor algumas inéditas, mas contou que foi vencido pelo cansaço.

- Pensei em umas cinco ou seis músicas novas, mas não tive condições. Depois
deste show vou parar por alguns dias para recuperar o fôlego.

Tranqüilo e entusiasmado pelo reencontro com os amigos, o cantor, no entanto,


acabou perdendo a paciência ao ser questionado sobre um possível choque de
egos entre os companheiros.

- O conceito de ego é mal definido pela elite intelectualizada. Isso é cafona, uma
imbecilidade. Quando falam em ego, na verdade insinuam que vivemos brigando.
Isso nunca aconteceu. Temos divergências, mas tudo é resolvido pacificamente -
retrucou, irritado.

Ao ver o amigo começando a ficar exaltado, Gal tentou amainar os ânimos,


ratificando que o quarteto sempre trabalhou em perfeita harmonia. - Por que
haveríamos de brigar? - perguntou, encerrando o assunto.

In: www.galcosta.com.br, acesso em 12/12/2002.


• Pão Music faz 10 anos com Doces Bárbaros

São Paulo - O projeto Pão Music está comemorando dez anos de apresentações
de shows gratuitos e, para tal ocasião, vai reunir nos palcos do Rio e de São
Paulo, no começo de dezembro, os Doces Bárbaros - Caetano Veloso, Gal Costa,
Maria Bethânia e Gilberto Gil -, que há 25 anos não se apresentam juntos. Durante
este ano, cada um desses quatro cantores fez shows individuais com convidados,
uma espécie de preparação para a esperada reunião.
O projeto do Grupo Pão de Açúcar utiliza os benefícios da Lei Rouanet há quatro
anos, o que ajudou o Pão Music a ter como estimativa fechar sua história, por
enquanto, com um público estimado em 6 milhões de pessoas. Para o ano que
vem, o diretor de Marketing do Grupo Pão de Açúcar, Eduardo Romero, diz que
haverá um aumento de investimentos. Não revela o valor nem as próximas
atrações - "Estamos ainda planejando o projeto de 2003" -, mas indica o aumento
dizendo que o Pão Music será permanente em Curitiba, Brasília, Fortaleza, Recife
e Bauru, além de São Paulo (onde ocorre desde o início) e Rio (já há quatro anos
recebendo o projeto).
Outra novidade será oferecer na capital paulista um novo equipamento de alta
tecnologia desenvolvido estritamente para shows ao ar livre, importado da
Alemanha. Em parceria com a Prefeitura de São Paulo, o Grupo Pão de Açúcar
deixará o novo palco permanentemente no Parque do Ibirapuera - numa
colaboração com o "processo de embelezamento da cidade", como comenta
Romero. O Pão de Açúcar também importou mais outros dois palcos como esse:
um ficará no Rio e o outro percorrerá as outras cidades que o projeto engloba e
que englobará a partir do próximo ano.
A série de shows gratuitos ao ar livre teve início em São Paulo, no Vale do
Anhangabaú e até 1996 o projeto era chamado de Sampa Show. Desde aquela
época, a idéia principal era oferecer apresentações de diversos nomes da Música
Popular Brasileira de um jeito comunitário, para todas as classes sociais. "A
música tem esse poder de aglutinar pessoas, como num movimento pacífico", diz
o diretor de Marketing do Pão de Açúcar. "O projeto promove shows sem onerar o
setor público, já que é feito pela iniciativa privada, ganha prestígio entre os artistas
já que os remunera, ganha a credibilidade com o público que assiste a uma
apresentação de qualidade que muitas vezes só é montada em casas especiais
de shows", defende Romero.
Com todas essas características, o Pão Music - esse nome começou a ser usado
em 1997 - foi se estendendo e hoje pode contar que promoveu shows tanto no
eixo Rio-São Paulo quanto em Fortaleza e Brasília. "No ano passado, em
Fortaleza, reunimos mais de 100 mil pessoas."
Para citar alguns entre tantos cantores e bandas brasileiras - e alguns
estrangeiros convidados - de todos os estilos, já participaram do projeto Ed Motta,
Elba Ramalho, Martinho da Vila, Titãs, Djavan, Luiz Melodia, Milton Nascimento,
Leandro & Leonardo, Julio Iglesias, Tonny Bennett, Maestro Zubin Mehta, Rita
Lee, Tim Maia e Marisa Monte - essa, aliás, primeiro e segundo recordes de
público (no ano passado, 190 mil pessoas assistiram a seu show e em 1989,
foram 180 mil pessoas). Agora, finalizando 2002 com a apresentação dos Doces
Bárbaros, há uma estimativa de fechar o ano com público de 1 milhão e 800
pessoas em todas as cidades onde ocorreu.
Eduardo Romero diz que o Pão Music de 2002 utilizou menos os incentivos da Lei
Rouanet do que os anos anteriores. Cerca de 70 a 80% dos recursos utilizados no
projeto são de capital próprio do Grupo Pão de Açúcar, que teve faturamento bruto
em 2001 de R$ 9, 9 bilhões - "o incentivo para nós estimula o investimento, já que
o projeto proporciona qualidade de vida. Os shows são no parque e nas praias,
lugares de lazer. Por isso, o projeto é aprovado há tantos anos", diz Eduardo
Romero.
Além do projeto de shows gratuitos, o Pão de Açúcar também patrocina ONGs,
atividades circenses e projetos de cinema e teatro, como os de Guel Arraes, entre
outros. O diretor de Marketing diz que a empresa investiu aproximadamente R$
5,5 milhões em cultura neste ano.

Camila Molina

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In: www.galcosta.com.br.
• Volta dos Doces Bárbaros reúne 110 mil;
hoje, show é no Rio
CIRO BONILHA
DEBORA MIRANDA
do Agora SP

Quando o quarteto subiu ao palco do parque Ibirapuera (zona sul de São Paulo),
às 18h32 de ontem, e começou a cantar a primeira música -"Fé Cega, Faca
Amolada", de Milton Nascimento-, a primeira pancada de chuva já tinha acabado,
mas as nuvens escuras permaneciam e a ameaça de um temporal também.

O mesmo show será apresentado hoje no Rio de Janeiro, na praia de


Copacabana.

A água havia chegado cerca de meia hora antes, exatamente quando as pessoas
se dirigiam ao parque Ibirapuera, e durado menos de dez minutos -tempo que se
revelou insuficiente para assustar os fãs dos baianos.

Segundo a Guarda Civil Metropolitana, às 19h o público chegava a 110 mil


pessoas.

Não foi suficiente, porém, para bater o recorde do parque -190 mil pessoas,
público que em 1997 presenciou o show de Marisa Monte e Carlinhos Brown-,
como previam os organizadores.

Foi a primeira apresentação do grupo Doces Bárbaros -composto por Caetano


Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia- desde 1976, quando estiveram
em São Paulo no Anhembi.

Eles interpretaram mais de 22 canções, entre elas a inédita "Outros Bárbaros",


composta por Gilberto Gil especialmente para esse show.

Além de cantarem juntos, os artistas se revezaram no palco para interpretar seus


sucessos. Gil, por exemplo, fez todo mundo dançar com o forró "Esperando na
Janela".

O repertório do show contou ainda com "Esotérico", "Saudade da Bahia", "Os Mais
Doces Bárbaros", entre outros sucessos, muitos acompanhados pelo público.

Na hora do bis, com a canção "Gente", interpretada pelo quarteto, finalmente a


tempestade desabou sobre o Ibirapuera. A chuva forte fez as pessoas dançarem
ainda mais animadas, para só depois correr para casa.

PÃO MUSIC - Show de reencontro dos Doces Bárbaros, com Caetano Veloso, Gal
Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia
Onde e quando: praia de Copacabana (Rio), domingo, às 19h30
Quanto: grátis
Patrocinador: Grupo Pão de Açúcar

Leia mais:

Reencontro dos Doces Bárbaros é histórico na MPB; saiba como foi

Doces Bárbaros cantam 21 músicas em show no Ibirapuera

Marta dançou forró com o namorado no show dos Doces Bárbaros


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In: www.bol.com.br, acesso em 08/12/2004.


• Gil, Bethânia, Caetano e Gal juntos
em mais um "Doces Bárbaros"

Quatro nomes que dispensam apresentações estarão juntos novamente para


presentear os amantes da música brasileira. Amigos de longa data, Gilberto Gil,
Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gal Costa farão um revival do show 'Doces
Bárbaros', encerrando o projeto Pão Music. Eles se apresentarão neste fim de
semana (sábado em São Paulo e domingo no Rio) para fechar muito bem o ano.

A amizade realmente conta na harmonia deste quarteto. Todos reconhecem as


inúmeras diferenças de personalidade e como isso influencia para que eles se
identifiquem cada vez mais. Nem mesmos o ego que, às vezes, parece
transbordar de Caetano atrapalha a relação entre os quatro. Na verdade, isso é
um tempero a mais, segundo Gil.

O clima de proximidade é tanta que nenhum deles vê a reunião com grande


emoção, a não ser Gil, que tomou as rédeas da organização do encontro e
manteve a base do repertório original, com pequenas modificações e algumas
novidades.

Mesmo assim, os quatro querem desse espetáculo Muito mais do que a simples
releitura do 'Doces Bárbaros' de 26 anos atrás. Os cantores pretendem fazer um
balanço das carreiras de cada um, que convergem ou propositalmente (como
neste show) ou pela relação mantida entre eles.

Ao contrário das outras reuniões, geralmente melancólicas e arrecadadoras de


fundos, que vêm tomando conta do cenário musical, esta tem tudo para ser uma
festa alegre e representativa para a música brasileira. Até porque estão todos
ainda muito ativos.

In: Época Online, com informações de O Globo

Edição 237 - 02/12/02


• Doces Bárbaros

A gente (eu, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa) nem sabe direito porque se
juntou para fazer este 'show' em conjunto. Porque a gente já é há tanto tempo... O
engraçado é que a gente agora virou os quatros sob um nome só: Doces
Bárbaros.
Outro dia, conversando com Gilberto Gil, eu disse: "Acho que a gente agora é um
grupo porque foi ficando cada vez mais parecidos uns com os outros, até
fisicamente".
Quando eu era menino, e mesmo quando adolescente, eu e Maria Bethânia não
éramos dois irmãos parecidos: até o contrário, éramos desses irmãos de tipos
diferentes dentro de uma família de muitos irmãos.
E no entanto, hoje em dia, na contra-capa do 'long-play' de Gal e Caymmi, eu vi
uma foto de Gal em que eu achei ela parecida comigo.
Quando eu e Maria Bethânia viemos para São Paulo em 1965 e que Bethânia foi
fazer o espetáculo Opinião, Gilberto Gil já estava morando lá e Gal foi passar uns
tempos conosco.
Gal tinha o cabelo curto e fisicamente era completamente diferente de Maria
Bethânia. Mas as pessoas viam Gal na rua, apontavam o dedo para ela e diziam:
"Olha lá a Maria Bethânia".
A gente ficava assustado porque achava que Gal e Maria Bethânia eram duas
pessoas totalmente diferentes. Que as pessoas deviam achar uma parecida com a
outra assim como a gente acha um japonês parecido com o outro.
Gil, por sua vez, era gordo, não tinha ângulo nenhum no corpo e comia muito,
muitíssimo.
Depois, ele fez macrobiótica, emagreceu e foi ficando com o corpo muito parecido
com o meu, que é muito parecido com o corpo de Bethânia.
Tempos mais tardes, quando apareceu o grupo Novos Baianos, a gente (eu, Gal,
Gil e Bethânia) ainda não se achava parecido.
Mas quando eu voltei de Londres falava-se muito no "morro da Gal, nas dunas do
barato" e constatei que Gal Costa tinha criado uma moda, um modo de ser, de
vestir, de usar o cabelo.
Foi mais ou menos nesta época que 'O Pasquim' começou a reclamar como quem
reclama contra a raça. Aliás, uma das canções mais lindas dos Novos Baianos
dizia: "Saindo dos prédios para a praça, uma nova raça..."
Depois, todo mundo viu, na televisão, o Chico Anísio fazendo uma imitação do
baiano e eu acho que ele fazia muito bem, de um modo bonito. De maneira que a
gente, aos olhos dos outros, já era, sem saber, os Doces Bárbaros.
Mas não só a gente mesmo não se achava parecida ainda, como também estava
mais do que nunca cada um individualizando tudo o que fazia. Talvez foi por isso
mesmo que a gente tenha conseguido agora se tornar capaz de ser um grupo,
resultado de nossas vivências comuns e separadas durante todos esses anos em
que fazemos música.
De modo que Doces Bárbaros é uma coisa que se formou em nós, através de nós
e até mesmo a despeito de nós. É uma nova raça.
As músicas que iremos tocar e cantar são todas nossas, com exceção de algumas
de outros autores, como Caymmi, Milton Nascimento e Herivelto Martins. A partir
do 'show', gravaremos um 'Long-play'. Gostaria também de mencionar todos os
músicos que vão tocar com a gente. Na guitarra, Perinho Santana, no contrabaixo,
Arnaldo Brandão, na bateria, Chiquinho Azevedo, no piano, Tomás, na percussão,
Djalma Correia, na flauta e saxofone, Tuzé e Mauro.
Se eu fosse lembrar a nossa história, digo, a história de Gal Costa, Gilberto Gil,
Maria Bethânia e eu, eu teria de falar no Teatro Vila Velha, de Salvador, em uma
porção de coisas que todo mundo já sabe e talvez até em algumas que ninguém
sabe.
Ia falar também em Roberto Santana, que me apresentou a Gilberto Gil, em Álvaro
Guimarães, que faz cinema e teatro e, de uma certa forma, me levou a fazer
música, em Maria Muniz, em mil outras gentes.
Mas se eu quiser mesmo contar ou resumir a história dos Doces Bárbaros, vou ter
que falar talvez em outros planetas, em outras dimensões, em coisas que nem
sei...
Mas para as pessoas que já nos vêem como um grupo há tanto tempo, ou seja,
como um punhado de gente que tem características comuns, mesmo físicas,
Doces Bárbaros não é senão o óbvio. Para nós, é a maior novidade. E é tudo
igual.
Somos muito diferentes uns dos outros. Todo mundo sabe que fui eu que escolhi o
nome de Maria Bethânia. Eu tinha quatro anos quando ela nasceu. Por isso, ela,
necessariamente, aprendeu muito comigo. Mas ela é estruturalmente uma rebelde
e terminou me ensinando as coisas fundamentais desta vida.
Gal, eu encontrei pronta. Uma vez, há tanto tempo que nem me lembro mais, ela
cantou uma música qualquer e eu disse que ela era a maior cantora que já surgiu
no Brasil.
Quando morava na Bahia, eu ouvia João Gilberto dia e noite e ela ouvia João
Gilberto dia e noite. Quando nos vimos pela primeira vez, já eramos,
musicalmente irmãos.
Hoje em dia, Gilberto Gil está refazendo a cabeça de todo mundo. Um dia,
Rogério Duarte (que também teve grande importância nesta história toda) falou
que Gil era o profeta e eu o apóstolo. Entre outras coisas, acho que a gente
trabalhar em grupo está sendo maravilhoso, porque nós três vamos aprender e
estamos aprendendo muito com Gil. Acho que ele é mesmo o mestre. Gilberto Gil
faz e refaz a cabeça de todo mundo.
Vocês, que me lêem, já ouviram falar em 'supergroups'? Pois bem, Doces
Bárbaros é um subgrupo. No sentido de um grupo étnico. Ha-ha-ha-ha!
E agora eu pergunto a mim mesmo: como será a nossa cara? Queremos ser
Doces Bárbaros assim como o doce de jenipapo é um doce bárbaro! Gilberto Gil
disse que ele é cocada-puxa e que eu sou 'amada', um doce que se faz na Bahia
usando gengibre, farinha de mandioca e rapadura.
Para mim, Gal Costa é centro. O meio de tudo. A voz. A voz da qual nós (inclusive
ela - todos os bárbaros doces) somos apenas vozes.
Mas que horda é esta que vem do planeta terra bahia, todos os santos? Está bom.
Os ensaios estão bem calmos, nos divertimos e cantamos canções cantáveis. E,
para finalizar, não há nada que eu possa dizer sobre qualquer um de nós que
ajude a me dar, a te dar, a dar a todo mundo uma idéia do que seremos.

Caetano Veloso
Revista "Ele e Ela"
junho de 1976
In: www.diamanteverdadeiro.hpg.ig.com.br, acesso em 06/05/2002.
• Acaba a excursão de Doces Bárbaros,
de novo, sozinho, recomecei a compor. E é principalmente das canções que
surgiram nesse período que se compõe o repertório deste novo disco. A primeira
que pintou foi a que veio a se chamar "Gente". Fiz primeiro a música, pensando
em colocar sobre ela uma letra qualquer que pudesse ser cantada por mim e por
um coro feminino, em cima de uma base rítmica gostosa. Estava querendo fazer
um disco todo de melodias doces sobre ritmo quente. E coloquei, de fato, uma
letra qualquer. Depois de pronta eu achei louca. Hoje acho que "Gente" é uma
canção linda e emocionante e louca como Doces Bárbaros e a considero uma
homenagem à experiência que Doces Bárbaros foi pra mim.
"Gente" ainda não estava de todo pronta quando fiz, sem pensar, a melodia do
que veio a se chamar "Tigresa". Algumas pessoas estavam conversando aqui na
sala de som da minha casa e eu não estava a fim de prestar atenção na conversa
delas. Fiquei tocando violão e assoviando e cantarolando qualquer coisa. Fui
dormir sem planos de voltar a pensar nela, uma vez que meu projeto era compor
canções doces e swingadas. Mas a música era linda mesmo e resolvi fazer uma
letra. Mas não sabia o que dizer com palavras, uma coisa que ficasse dentro do
clima que já era pra nós essa melodia. Mas também não quis forçar muito a
cabeça. Um dia estava com Moreno vendo um seriado de televisão, onde
apareciam uns meninos indianos que andavam com um elefante, e encontravam
um outro menino que era selvagem e não sabia falar e reagia como um felino.
Quando eles tentavam se aproximar do menino selvagem, um grande tigre vinha
protegê-lo. O menino tinha sido criado por aquele tigre que, na verdade, era
fêmea. O fato é que pensei que tigre fêmea diz-se tigresa, e aí estava a palavra.
Dessa palavra parti prá inventar uma letra que mantivesse o clima da música.
Imaginei logo uma mulher e queria algo assim como uma história. Essa mulher foi
se nutrindo de imagens de mulheres que conheço e conheci, e essa história foi se
nutrindo de histórias que vivo.
Terminou pintando também, um pouco de História, uma vez que o interesse que
as pessoas da minha classe e da minha geração uma vez demonstraram pelo
assunto política, aparece datado. Mil pessoas me perguntaram quem é a
"Tigresa", ou pra quem a música foi feita. Pois bem. Depois da mamãe Tigresa da
televisão, a primeira imagem de mulher que veio à minha cabeça foi a de Zezé
Mota, e isto está bem evidente nas unhas e na pele. Mas terminei descobrindo
que os olhos cor de melão da Sônia Braga, embora não deixem de ter um
parentesco com os cabelos da menina Maribel. Mas Bethânia e Gal já estavam lá.
E Norma Bengell, Clarice, Claudinha, Helena Inês, Maria Ester, Silvinha Hippy,
Marina, muitas outras meninas que eram bebês em 1966, Suzana e Dedé. Por fim
a "Tigresa" sou eu mesmo. É minha primeira canção parecida um pouco com Bob
Dylan.
Voltando ao projeto das músicas doces swingadas, apareceu a melodia de
"Odara", que é uma palavra que aprendi com Wali Salomão. Digo que aprendi
com Wali que essa palavra passou pra mim com o valor semântico que tem na
letra da canção. Claro que já tinha ouvido na voz de Clara Nunes num desses
sambas sobre religião negra. Também nos ambientes de candomblé essa palavra
é usada. Mas não sei exatamente em que sentido, em Itapoã, "Odara" quer dizer
bom - bonito - bacana. Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de
que "Odara" era a mais bonita das canções que eu tinha feito ultimamente. Até
hoje não encontrei bons argumentos em contrário.
Fiz "Leãozinho" para Dadi. Gosto de chamá-lo de Leãozinho por que ele é um
lindo menino do signo de leão, que é também o meu signo. Disse a ele: "Vou fazer
uma música pra você". Aí comecei a fazer uma melodia em cima do título já
escolhido. A letra saiu quase que ao mesmo tempo que a música.
Sempre tive (e talvez tenha hoje mais que nunca) a vontade de ampliar o
repertório de possibilidades sonoras dentro do campo de criação de música
popular no Brasil. Quando musiquei "Triste Bahia", escrevi a Augusto de Campos:
"quero que o resultado pareça ao mesmo tempo folclore e ficção científica". A
paixão compartilhada com Gil pela Banda de Pífaros de Caruaru, desde 1967, era
a expressão dessa vontade. O tropicalismo foi um espernear contra um cercado
pequeno. A gravação londrina de "Asa Branca" foi um primeiro esforço de
concentração no sentido de realizar algum som a mais. O "Araçá Azul" - depois da
música para o filme São Bernardo, de Leon Hirshmam - foi o luxo de entrar no
estúdio sem nada e deixar esse desejo fluir para que eu, assim, pudesse testá-lo.
O nordestino fanhoso, o negro rouco, o índio, o marciano, o árabe, o indiano, o
roqueiro distorcido, os Smetaks, o insólito - tudo isso é a minha identificação. A
letra para a pipoca moderna. O chinês, o japonês, o baiano. Havia planejado fazer
muitos sons "de índio". Queria fazer um disco de canções doces com swingue e
queria trabalhar em casa uns sons "primitivos".
Assim, sobre uns sons de assovios superpostos que eu havia armado aqui,
procurei colocar umas palavras e usei como tema ou pretexto um desenho que
tinha feito com lápis de cor e que veio a ser escolhido depois por mim pra ser a
capa do disco. A música se chamou a Grande Borboleta. Two Naira Fifty Kobo foi
o apelido que o pessoal deu ao motorista que trabalhava pra gente em Lagos. Ele
ouvia música dia e noite. É uma figura inesquecível. Fiz uma melodia em Lagos
mesmo, sentindo o clima das músicas que ouvia por lá. Quando cheguei à Bahia,
depois do carnaval, fui pondo as palavras que, afinal, ficaram tão bonitinhas. Two
Naira Fifty Kobo é a minha canção da Refavela.
"Frases" foi a primeira música de Jorge Ben que me impressionou profundamente.
Achava tudo aquilo que veio antes muito lindo e agradável, mas "Frases" me
impressionou pela força de poesia, pela liberdade de linguagem. Isso em 1966.
Bem antes do tropicalismo. Acho que essa foi uma composicão inaugural da nova
poesia de Jorge Ben, da nova poesia brasileira. E agora eu a gravei.
O disco chama-se "Bicho". Principalmente por causa do desenho que escolhi pra
capa. Eu já tinha feito esse desenho e o achava bonito. Quando fui olhando para o
repertório que gravaria, vi que tinha muitos nomes de animais envolvidos. Aí
pensei em qualquer coisa de animal, Guilherme Araújo me disse: "Esse seu disco
será um jardim zoológico". Eu olhava para o desenho daquela borboleta astral e
pensava: "Bicho da vida, esse é o bicho da vida". Quase coloco o nome do disco
de "Bicho da Vida". Depois reduzi prá "Bicho". Achei mais sintético, menos
retórico. Acredito que o fato dos músicos brasileiros se tratarem, uns aos outros,
de bicho, e também o fato da palavra estar em toda caricatura que se faz de hippy
nas novelas e nos humoristicos da televisão, e também ser nome de jornalzinho
de cartoon e comics, tudo isso se enriquece com esta minha redescoberta da
palavra que, por sua vez, sai também enriquecida de tudo isso. Palavra gasta,
palavra intacta.
Caetano Veloso
07/77 - Jornal do Brasil
In: www.caetanoveloso.com.br, acesso em 06/05/2002.
• Com chuva e sem emoção,
Doces Bárbaros se reencontram no palco
Caetano, Gal, Gil e Maria Bethânia repetiram o encontro original, que aconteceu
em 1976.

Pedro Alexandre Sanches/AF - São Paulo (SP)

O palco do parque Ibirapuera suportou tudo no sábado dos Doces Bárbaros, da


distância emocional que Maria Bethânia, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa
mantiveram uns dos outros ao dilúvio que quase afogou artistas e público já no
bis, quando o quarteto cantava “Gente”. Partituras voando e Gal correndo contra a
chuva foram imagens inesperadas que coroaram o reencontro, após a já simpática
versão de “Os Mais Doces Bárbaros”, repleta de erros e desencontros de Caetano
e Bethânia.
O repertório seguiu à risca sem maiores surpresas, centrando-se mesmo nas
canções do encontro original de 1976. Derrapada solitária aconteceu no solo de
Gal, quando ela resolveu intrometer “Lanterna dos Afogados”, dos Paralamas do
Sucesso, dentro do repertório hippie-festeiro dos Doces Bárbaros. Bethânia, por
seu turno, acertou ao trazer para os colegas “Santo Antônio”, de seu sobrinho J.
Velloso, canção que conquistou a gigantesca platéia com uma profissão de fé em
Santo Antônio (Carlos Magalhães?, podia-se provocar) contaminada de auto-ironia
baiana. Foi, de fato, a única do show todo que os quatro cantaram com igual (e
grande) entusiasmo. Porque no resto eles estiveram pouco mais que
compenetrados, embora em graus variáveis.
Gil destacava-se pela concentração de regente do espetáculo inteiro,
organizando o movimento e puxando a atenção de Bethânia em todas as (várias)
vezes em que ela esquecia suas deixas. Bethânia não estava num grande dia,
mas contava com o benefício de ser a dos quatro que mais conta com a empatia
do público em situações de show. Fez sua parte com certo desinteresse, mas
conquistando o público a cada trovejada de voz. Mano Caetano estava num dia
esquisito. Ultraprofissional o tempo inteiro, ainda assim não deixou de parecer
mal-humorado, distante. Talvez não se adaptasse ao tom excessivamente junino,
meio Luiz Gonzaga e meio “Refazenda”, dos arranjos de Gil e de sua banda.
Dia inspirado Sobrou para Gal, portanto. Foi ela que, estando num dia
particularmente inspirado, aproveitou a maior parte dos ganchos que a situação
emocionante e o público disponível proporcionavam. Não só, é claro, porque ela
própria foi à luta. Foi a única que enfrentou um figurino que dialogasse
minimamente com o espírito hippie dos Doces Bárbaros, qual uma hippie-perua de
maquiagem agressiva, quase Secos & Molhados. Concentradíssima, fazia o
semblante sério compor um quadro com a roupa de furos e os olhos pintados de
preto. Quando abria a garganta, os inesquecíveis agudos da doce bárbara
voltavam joviais, tornando arrepiantes “Fé Cega, Faca Amolada” e, sobretudo, o
jogral quatro por quatro “O Seu Amor”.
Foi Gal quem tomou para si a garra que podia justificar tal reencontro -o que é
grata surpresa, dado o desânimo com que ela vinha se conduzindo nos últimos
anos. Tentando interagir com os demais, intimidou-se frente a Bethânia em
“Esotérico” e encontrou a barreira da rigidez de Caetano e de Gil. Um show que
poderia ser histórico terminou redondo, mas não mais que correto. Ainda assim
parecia quase inacreditável ver os quatro unidos de novo, tanta vivência junta num
espaço só. Só podia chover mesmo.
VEJA A REFERÊNCIA COMPLETA: VOCÊ TEM ESSA MATÉRIA IMPRESSA.
O reencontro dos "Doces Bárbaros" em São Paulo

Histórico! Essa é a definição do megashow Pão Music para os “Doces Bárbaros”


realizado no sábado (7 de dezembro) pelo Grupo Pão de Açúcar na Praça da Paz
no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

O evento ancorou também a campanha do "Natal Sem Fome". Uma ação da


Prefeitura de São Paulo, que incentivou a doação de 1 quilo de alimento não
perecível por pessoa. Três caminhões ficaram a disposição do público para a
coleta das doações. Antes do final do espetáculo duas toneladas já haviam sido
arrecadadas.

Aproximadamente 110 mil pessoas assistiram gratuitamente o reencontro dos


“Doces Bárbaros”, Gil, Caetano, Gal e Bethânia. O Megashow mereceu um palco
especial importado da Alemanha, com cobertura de alumínio, um video wall no
fundo do palco, dois telões de 8m x 6m nas laterais e mais 14 toneladas de
equipamentos estruturais e material de som.

A área VIP contou com prestígio de ilustres convidados entre eles a prefeita de
São Paulo, Marta Suplicy, os empresários Abílio Diniz e Ana Maria Diniz, as
atrizes Paula Lavigne e Fernanda Torres, os apresentadores Serginho Groisman e
Astrid Fontenelle, Rogério Gallo diretor da Tv Bandeirantes, entre outros.

A batucada e o ritmo do grupo Meninos do Morumbi abriram o Pão Music "Doces


Bárbaros". A música “Fé Cega, Faca amolada” foi a primeira cantada pelos quatro
Doces Bárbaros, que agitaram o público que logo reconheceu na música a
transferência de carinho e felicidade.

A estudante de 19 anos, Rita de Cássia Amaral Rodrigues, funcionária do IPT


(Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo) se surpreendeu. “Um encontro
de quatro personalidades, a união do público foi transferida pelos artistas que
estavam no palco. Adorei! Acho que a união deles é um exemplo e a população
acompanhou mesmo com a chegada da chuva!”

O roteiro do show foi subdivido em apresentações solo, duplas e dos quatro juntos
que relembraram músicas do álbum “Doces Bárbaros” de 1976 e outras mais
atuais. Caetano cantou “Drão”, Gal e Bethânia “Esotérico”, Caetano e Gil juntos
“Chuckberry fields forever” e seguiram viajando com "Os mais Doces Bárbaros",
"O seu amor", "Gênesis", "Pé quente, cabeça fria" entre outras. A novidade ficou
para a inédita "Outros Bárbaros", especialmente composta por Gil para o show. A
música “Gente” cantada pelos quatro bárbaros baianos finalizou o espetáculo.

O histórico reencontro dos Doces Bárbaros no Pão Music será imortalizado em


DVD e em CD e estarão nas lojas no próximo ano.
Jeane Angélica Pinheiro Meira é pedagoga, ela acompanhou todos os cinco
shows do Pão Music apresentados em São Paulo. “Assisti a todos os shows do
Pão Music, essa atitude do Pão de Açúcar deve ser seguida por todas as
empresas, dividir cultura é uma forma de enriquecer o povo! Parabéns! “

Para a jornalista Cláudia Freitas funcionária da Fundação Getúlio Vargas, o show


foi inédito. “Eu gostei muito, inédito os quatro juntos, a chuva não atrapalhou, foi
na verdade uma bênção!”

O projeto Pão Music Doces Bárbaros prevê duas apresentações, uma em São
Paulo e outra Rio de Janeiro. A banda que acompanha o grupo é formada por
Gustavo de Dalva e Leonardo Reis (percussões), Claudinho Andrade (teclados),
Jorge Gomes (bateria), Arthur Maia (contrabaixo), Sérgio Chiavazzoli (guitarra) e
Carlos Malta (sopro). Dois músicos da banda de Maria Bethânia também
participam: o violonista Jaime Alem e o pianista João Carlos Coutinho. A
percussionista Mônica Millet é a única que fez parte da primeira formação do
grupo em 1976.

www.paomusic.com.br
• Doces Bárbaros no Rio de Janeiro
Cerca de cem mil pessoas, segundo os cálculos da PM, compareceram ontem à
noite à Praia de Copacabana, em frente ao Lido, para assistir ao show dos Doces
Bárbaros, no encerramento do projeto Pão Music, que, na versão 2002,
homenageou Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa. Na
platéia, um encontro de gerações entre antigos fãs e quem nem era nascido
quando o espetáculo foi realizado pela primeira vez, há 26 anos.

— Meus amigos vieram mais por causa dos últimos sucessos do Gil e do Caetano,
mas eu sou fã mesmo das músicas antigas — disse Bianca Esteves, de 19 anos,
que foi ao show com a mãe, Teresa Cristina, de 56 anos.

Para o evento, foram deslocados 350 policiais do 19 BPM (Copacabana) e 40


homens da Guarda Municipal. De acordo com a Guarda, o público foi chegando
aos poucos. Nas primeiras músicas, apenas metade dos cem mil espectadores
havia chegado.

“Fé cega, faca amolada” abre o show

O quarteto subiu ao palco às 20h e abriu o show com uma animada interpretação
de “Fé cega, faca amolada”, exatamente como no espetáculo original. Depois, eles
se alternaram em dupla ou solo. Sozinho, Gil mostrou a inédita “Outros bárbaros”,
que ele compôs especialmente para a ocasião. Na letra da canção, ele anuncia
que “Outros bárbaros tão doces tão cruéis / Seguem vindo”.

Com Bethânia, Gil lembrou “Asa branca”, de Luiz Gonzaga, e com Caetano,
“Chuckberry fields forever”. O roteiro teve ainda “Drão”, “O seu amor”, “Esotérico”
e “Os mais doces bárbaros”, entre outras.

Com “Um índio”, Bethânia incendiou a platéia, que empolgou-se também com
“Lanterna dos afogados”, na voz de Gal. Mas o ponto alto da noite foi “A luz de
Tieta”, com Gal e Caetano. Já no bis, o quarteto improvisou “Exaltação à
Mangueira”. Há a possibilidade de os Doces Bárbaros reunirem-se novamente. A
produção está sendo negociado um show com o quarteto no fim de ano na Bahia.

Elisa Torres e Tom Leão


O Globo on line - 09/12/2002
Maria Bethânia subiu pela primeira vez num trio elétrico anteontem à noite. O
motivo: juntar-se a Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil para homenagear o
compositor Dorival Caymmi, saudado no carnaval de Salvador deste ano como
símbolo da música baiana. A festa mágica contagiou as milhares de pessoas que
viam o desfile na passarela do Campo Grande e passaram o dia ouvindo a música
estridente dos trios.O Bloco dos 500 Anos, comandado pela cantora Margareth
Menezes, entrou na passarela por volta das 20h20, com Dori e Danilo Caymmi,
filhos de Dorival e a neta Alice cantando "Maracangalha", um dos maiores
sucessos do mestre. Logo depois, os "Doces Bárbaros" começaram a cantar em
cima do trio, as músicas de Caymmi. Primeiro foi "Senhor dos Navegantes",
seguida de "Milagre" e "Dois de Fevereiro". Os artistas se derramaram em elogios,
agredeceram a "devolveram a batuta" à família Caymmi que cantou "Promessa de
Pescador". Margareth Menezes encerrou o show interpretando um pout-porri do
compositor. Caymmi que mora no Rio de Janeiro desde a década de 30 não pode
comparecer à homenagem por problemas de saúde. Pelo mesmo motivo, a filha
dele Nana Caymmi teve que cancelar a viagem para Salvador, embora tenha sido
a mais entusiasmada da família ao saber da homenagem que seria prestada.

Jornal O Estado de São Paulo - 27/02/2001


• O cavaleiro zen e a dama do drama

Em show popular lotado, Gilberto Gil e Maria Bethânia discutem no palco mas
arrebatam a platéia com clássicos da MPB

De um lado Maria Bethânia, a grande dama do carisma e do drama. De outro


Gilberto Gil, o cavaleiro zen-cool do após-calipso. Vai dar liga? Em apresentação
única dentro da série Concertos BR, a preços populares num Canecão cheio em
plena noite de terça, a conexão funcionou, empolgou o público, mas não deixou de
expelir algumas faíscas. A dupla quase se desentende a propósito da data de
Balada do lado sem luz. Depois de cantá-la, Bethânia elogiou a composição ''que
Gil fez pra mim um pouco antes do show dos Doces Bárbaros''. O autor bateu pé.
''Foi durante a temporada'' - que reuniu sob esse nome o quarteto formado pelo
duo e mais Gal Costa e Caetano Veloso, em 1976. Diplomático, Gil fecha a
discussão num sorriso: ''Ela cantando fica bonito''.

O horário quase matutino (19h30) não espantou as estrelas. De Zezé Motta a


Renata Sorrah mais Betty Faria, Maria Zilda e Alcione com a cabeleira em tons de
vermelho, estavam todas lá tietando os baianos. Parceiro recente em disco e
longa lista de shows, Milton Nascimento, como é de seu feitio discreto, chegou
com a luz apagada e retirou-se antes do final com o público de pé carnavalizando
os dois bis. Um deles, um tanto apelativo, o velho hino Cidade maravilhosa,
composto por André Filho quando o adjetivo era pleonástico, no Rio de 1934. O
outro, também excessivo para um jogo ganho, fez todo mundo sambar em O que
é o que é, de Gonzaguinha. O do refrão ''a vida é bonita/ é bonita/ é bonita''. Bom
para levantar o astral em rodinha de violão no escurinho do apagão.

Pot-pourri - Fé cega, faca amolada cortou o ar abrindo os trabalhos numa das


evocações do repertório dos supracitados Doces Bárbaros, que contribuiriam
ainda com Esotérico e São João, Xangô menino, sempre nos números cantados
em dupla. Gil, todo de branco, combinava o traje com os cabelos já prateados, e
Bethânia vestia calça brilhante cinza, paletó preto em sintonia com a juba
esvoaçante, a todo momento domada por gestos teatrais. Depois de evocar os
Filhos de Ghandi, GG & MB dividiram um pout-pourri de Dorival Caymmi incluindo
Festa de rua, Milagre e Dois de fevereiro. Diálogo de frases, alguns uníssonos, a
voz da cantora sempre ferindo mais as notas, algumas insinuadas, outras não
alcançadas pelo cantor. O reiterativo Palco introduziu o solo de quatro números de
Gil. Ele viajou de Bob Marley (Is this love, numa versão incandescente
preparatória do adiado tributo que prestará ao rei do reggae) ao baladão Drão, em
homenagem à ex-mulher Sandra Gadelha, também na platéia, como a atual Flora.

Solo - E mais: A novidade e Estrela, esta uma canção do desprezado álbum duplo
Quanta, daquelas que vão estourando aos poucos, tanto que a platéia cantou
junto. Mais uma passagem da dupla na difícil sincronia dos versos divergentes de
Sem fantasia (Chico Buarque) e Bethânia fica sozinha no palco. Sola e pontifica, já
que a banda é comandada por seu fiel maestro Jaime Além. Vai aos cumes da
versão Sonho impossível, dramatiza Fera ferida (Roberto/ Erasmo Carlos) com a
empunhadura de seu mestre teatral Fauzi Arap e desembesta num dos textos de
Drama, Luz da noite, prefaciando Esse cara. ''Essa canção do Caetano é linda
demais'', desabafa.

Aquele tipo de balada com escadinha para o clímax, da lavra de Gonzaguinha


(Grito de alerta, Explode coração), permite a Bethânia empolgar mais ainda a
platéia arrebatada em seguida pelo velho clássico de Isaurinha Garcia Mensagem
(Cícero Nunes/ Aldo Cabral). A impressão é de que a abelha rainha tinha levado a
colméia para casa, mas Gil trazia na manga sua fileira de forrós escudado no
magnífico trabalho de sopros de Carlos Malta (flauta, pífanos) e retomou o público
em Oia eu aqui de novo, Baião da Penha, Qui nem jiló e o recente megasucesso
do filme Eu tu eles, o xote Esperando na janela. Foi o aceno para a apoteose final
com a volta de Bethânia (magnífica no xaxado/maracatu Festa, outra do
onipresente Gonzaguinha), além de Asa branca num pique de quadrilha junina. E
mais Lamento sertanejo, Viramundo e os dois bis mencionados. A dupla, que já
brigou no passado, mostrou-se capaz de somar divergências num (máximo)
denominador comum. Hoje afastada da mídia principal, a combalida MPB
agradece.

TÁRIK DE SOUZA
Jornal do Brasil, 31/05/2001
• Bárbaros agridoces de novo
João Pimentel

Ao aceitar a proposta do cineasta Andrucha Waddington para assinar a direção


musical do filme "Eu tu eles", Gilberto Gil esperava apenas estar realizando o
sonho de emprestar sua assinatura ao cancioneiro de Luiz Gonzaga. Não foi bem
assim. Um atraso no lançamento do filme, que deveria estrear juntamente com o
seu show, em junho, fez de Gil uma espécie de outdoor itinerante da fita. E o que
seria um trabalho extra - o previsto era o já iniciado álbum com Milton Nascimento,
adiado por problemas vocais do cantor mineiro - virou disco de carreira; a música
"Esperando na janela", um sucesso; e mais, o trabalho feito sobre o repertório do
Rei do Baião agradou tanto que incentivou sua antiga companheira dos Doces
Bárbaros, Maria Bethânia, a voltar a dividir o palco com ele depois de quase 25
anos.

Eles cantaram juntos, no mês passado, em dois shows fechados em São Paulo, e
ensaiam para outros três, que abrem um projeto de parcerias chamado Encontros
Ourocard, dias 27 (em Recife) e 29 de setembro (em Fortaleza) e 7 de outubro
(em Salvador). Essa reunião da dupla representa um fecho de ouro para a turnê.

- O Gil vive um momento especial e estou feliz em poder me unir a ele - comemora
a cantora. - Mas vamos fazer apenas esses três shows, já que ele vai retomar o
trabalho com o Milton e eu, o meu disco de carreira.

Foi montado um roteiro especial que, musicalmente, conta um pouco da vida dos
dois. Mas a base é a mesma do show de "Eu tu eles" que rodou o país.

- Vamos cantar um pouco da nossa história, desde Salvador, no início dos anos
60, passando pelos Doces Bárbaros e chegando ao Rio - explica o compositor.

Bethânia, que levou alguns músicos de sua banda para se juntar ao grupo de Gil,
deu palpites no repertório, privilegiando músicas de temática nordestina:

- É muito bom voltar ao mundo do Gil. Cantarei algumas coisas dele que gravei e
adoro, como "Viramundo" e "Balada de um lado sem luz", e também outras que
gostaria de ter gravado - comenta.

Dupla diverge sobre o primeiro encontro, em Salvador

Esse reencontro remete os dois ao início dos anos 60, em Salvador. Mas as
referências, locais e de época, só fazem sentido para Gil, Bethânia e pessoas
próximas deles.
- Eu acho que nosso primeiro encontro foi na casa de Maria, filha de Prisciliano.
Estávamos eu e o Roberto Santana, e o Caetano levou você junto - diz Gil.
- Eu me lembro de ter conversado contigo na Sorveteria Primavera - discorda
Bethânia.

Independentemente do local, o certo é que pouco tempo depois se reencontrariam


no Rio. Em 13 de fevereiro de 1965, Bethânia substituiu Nara Leão no show
"Opinião", juntando-se a Zé Kéti e João do Valle. Meses depois, Gil a encontraria
em palcos como o da Boate Cangaceiro e do Teatro Opinião, na montagem de
"Arena canta a Bahia".

Os dois, ao contrário do que aparentam aos olhos do público, juram que são
parecidos. Bethânia diz que ambos têm a mesma percepção e sentimento de
palco. Gil ressalta o prazer e a paixão comum pelo canto.

- As pessoas têm uma visão, até real, de que o Gil é mais à vontade e eu mais
tensa, fechada. Mas, no fundo, o nosso impulso é o mesmo. Nem ele é tão livre,
nem eu tão presa - relativiza Bethânia.

Mas também existem muitas diferenças. Diferenças que, aliás, já geraram muitos
boatos de briga dos dois.

- Eu sou errático, tenho mesmo essa coisa inquieta dos anos 60. Gosto da
discussão política e social da arte. Gosto de firmar minha posição sobre as coisas
- explica Gil.

- Sou mais de me expressar no palco, que é a minha tribuna. Gil e Caetano


transitam em diversos espaços. Sou parecida com o Chico e o Caymmi. De cinco
em cinco anos me manifesto - retruca Bethânia.

Gil acredita que esse reencontro é um momento que, assim como o seu show,
terá um papel importante na divulgação da cultura nordestina:

- Nos anos 60 era o ZiCartola, hoje é a Feira de São Cristóvão. Esse é um


processo cíclico, pluralizador, que valoriza a cultura diante da comodidade do
consumo.

Bethânia intervém para ressaltar que o disco do filme, a exemplo do CD ao vivo


"Quanta gente veio ver", saiu pelo selo Geléia Geral, de Gil, em parceria com a
Warner.
- É importante para os artistas buscarem caminhos que facilitem a realização
de seus trabalhos, parcerias que permitam uma autonomia de projetos. No
caso desses discos, a gravadora não demonstrou interesse, então produzi,
realizei o projeto e a Warner ficou com a distribuição - completa Gil, que
está lançando uma loja virtual na Internet para vender os lançamentos da
Geléia Geral.

Jornal O Globo, 20/09/2000


• Nordeste terá encontro de ouro entre
Gil e Bethânia
JANAINA ROCHA

Sem perceber a presença da reportagem do Estado, Gilberto Gil e Maria Bethânia


procederam, mais do que naturalmente, musicalmente: cantarolaram,
acompanhados pelo maestro e músico de Bethânia, Jayme Álem, a Balada do
Lado sem Luz, de Gil. A música serviu de cumprimento entre os dois. Uma
saudação espontânea, regada à melodia e poesia.

Mas a união não foi tão informal. Estavam ali para pegar duro no trabalho, ensaiar
para uma curta turnê juntos, chamada Encontros Ourocard, iniciada com um
"aperitivo", no mês passado: um espetáculo só para convidados no Credicard Hall.
Os dois baianos não dividiam o palco desde 1994, quando reviveram a proposta
do show Doces Bárbaros (disco antológico lançado em 1976), ao lado de Caetano
Veloso e Gal Costa, na quadra da Mangueira.

"Milton (Nascimento) faria comigo aquele show do Credicard Hall e não pôde, por
causa de uma faringite, então eu sugeri que convidassem Bethânia, que logo
aceitou", conta Gil. "Era só uma noite em São Paulo, mas a Maria Luiza Juncá
(produtora cultural) tinha esse projeto de encontros `de ouro' e nos propôs a
continuidade", afirma Bethânia. "Ela sempre me convida para ser madrinha de
algum projeto, assim foi com o Caixa Acústica - Mulheres, em Salvador e agora
com esse encontro de duplas; adorei a idéia."

Para Gil, a reaproximção no palco fez com que revisitassem situações do início
das carreiras e não viviam há muitos anos. "Pudemos falar, discutir música, trocar
informações sobre nossos novos trabalhos", acredita. "O interessante é que a
situação se repetiu, pois foi assim no nosso primeiro encontro, quando nos
conhecemos no meio musical e teatral para conversar sobre arte." Os dois contam
que têm poucas oportunidades para isso.

Apesar de "viciada em palcos divididos", Bethânia só não havia feito isso com Gil.
Nos anos 70, elaborou shows nos quais se apresentava com o irmão e com Chico
Buarque. Dos quatro bárbaros, segundo Bethânia, é com Gil que possui maior
semelhança. Ele também concorda. "Nós temos uma coisa parecida na maneira
de exercer o nosso ofício", diz. "A gente projeta nossas dimensões carismáticas
de forma parecida, na forma de transformar isso no gestual, na coisa cênica, na
presença do palco", analisa Gil. "Lidamos também de forma semelhante com a
solicitação do público."

Bethânia exemplifica o "profundidade do elo" com Gil quando fez o show Nossos
Momentos, em 1982. "Eu tive uma ruptura com o meu maestro e foi a Gil que
recorri para fazer a direção musical", conta. "A direção musical de um show é
diferente de qualquer outra, tudo o que faço é muito próprio, muito meu", diz ela.
"Entreguei isso na mão de Gil, um autor, e ele fez a direção, ensaiou todos os dias
comigo, escreveu arranjos, deu idéias, escreveu vocais, isso revela uma
identificação muito profunda; a minha relação é muito mais forte com Gil do que
com qualquer um dos outros (bárbaros)."

Gil conta que Bethânia é sua maior influência no que diz respeito ao lado cênico,
no palco. "Ela é meu espelho, por mais estranho que possa parecer, já disse isso
muitas vezes a Caetano, venho dizendo há muitos anos que, quando ela sobe no
palco, eu aprendo coisas, ali entendo coisas", informa.

"É intuitivo."

Com o passar dos anos, eles observam uma "suavização" na forma de conduzir a
música. "Está tudo igual, só que suave, bem mais suave", diz ela. "As dobras do
tempo vão dobrando as coisas, os temperamentos; vai fazendo com que as coisas
fiquem mais ondulares", completa Gil. "Tem uma música minha que diz `com
mãos bem mais sutis, nossos desejos vão tornando nossos beijos mais azuis,
menos carmins', é a mesma coisa para esse momento."

Estão cantando juntos Esotérico e Fé Cega, Faca Amolada, músicas dos Doces
Bárbaros, e Balada do Lado sem Luz, canção que deveria ser desse disco e
Bethânia gravou depois. Eles também vão cantar músicas de "Eu Tu Eles", o
recente CD de Gil.

Para o show, que será realizado só no Recife, em Fortaleza e Salvador, uniram as


duas bandas. Os dois antecipam que não está nos planos imediatos a gravação
de um CD. Gil acabou de fazer um disco com Milton, ainda inédito, e Bethânia, em
fevereiro, entra em estúdio para gravar o CD comemorativo de 35 anos de carreira
- deve ter alguma música de Vinícius, é só o que ela arrisca contar. "Estou
trabalhando nisso e já pedi ajuda ao Gil", afirma ela. Juntos, os dois também
participarão de um antigo projeto de Elba Ramalho, em homenagem à Nossa
Senhora.

Bethânia pergunta a ele se o novo CD ficou bom. Ele diz que sim. "Só participaram
Sandy e Júnior, eles cantam uma letra do Milton que fala sobre a geração que
contempla a próxima, um tema relativo à nossa biografia", conta Gil. "É
impressionante como Sandy canta bem", comenta Bethânia.

Jornal O Estado de São Paulo, 20/09/2000


• Gal e Bethânia 2000

Formalmente, Maria Bethânia e Gal Costa cantaram juntas, ao vivo, apenas outras
duas vezes: em 1964, em Salvador, no show Nós, por Exemplo, que marcou a
estréia profissional delas duas e de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé e, em
1976, no espetáculo Doces Bárbaros.

Fora isso estiveram juntas, eventualmente, em programas de televisão - ou


cantaram duetos, em discos de Maria Bethânia. Sempre nos de Bethânia: "Eu a
convido para gravar comigo, mas ela nunca me convidou", diz Bethânia, que não
está reclamando, mas achando graça da constatação.

De fato. Gal Costa, aliás, gravou pela primeira vez num disco de Bethânia,
fazendo dueto com ela na linda e tristíssima canção Sol Negro, que Caetano
Veloso escreveu para as duas.

Cantos opostos - Sol Negro, naturalmente, é um dos números do show que fazem
juntas, amanhã e domingo, no Credicard Hall. Em 1964, quando cantaram a
música pela primeira vez ("Na minha voz/Trago a noite e o mar/O meu canto é a
luz/De um sol negro", cantava Bethânia, o grave rasgando noite e mar; Gal Costa,
ainda conhecida como Maria da Graça, respondia: "Valha, Nossa Senhora/Há
quanto tempo ele foi-se embora/Foi pra bem longe, para além do mar/Para além
dos braços de Iemanjá/Adeus"), obedeciam a uma disposição de palco
determinada pelo autor: uma em cada extremo da cena, Gal de preto, Bethânia de
branco.

A disposição foi mantida e Gal continua de preto. Bethânia trocou o branco pelo
prateado. O show de amanhã e depois é o mesmo que foi apresentado para casa
lotada, no Rio, no fim de semana passado. Elas abrem juntas o espetáculo, com
Os mais Doces Bárbaros, de Caetano Veloso, e Oração para Mãe Meninha, de
Dorival Caymmi. Gal sai, Bethânia canta meia hora. "Não É A Força Que nunca
Seca, nada formal; canto coisas que gosto de cantar, posso dizer um texto ou não
dizer nenhum", conta. "Devo cantar Sampa: me faz bem cantar Sampa em São
Paulo", adianta.

Estranha força - Depois Gal Costa volta e as duas cantam mais dois números.
Bethânia sai, Gal apresenta uma versão reduzida do espetáculo dedicado à
música de Tom Jobim. Para encerrar, cantam juntas mais quatro músicas. A
última delas é Força Estranha, feita por Caetano para Roberto Carlos.

Mauro Dias
sobre o show: Gal Costa e Maria Bethânia
Rio de Janeiro - São Paulo 02/2000

In: www.galcosta.com.br, acesso em 12/06/2003


• Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa,
Maria Bethânia e 50 integrantes da Mangueira
chacoalharam Londres anteontem.
Cantando para uma platéia de 5.000 pessoas (a maioria brasileiros), os quatro
baianos se beijaram e abraçaram no palco, emocionados com a reunião na cidade
onde Gil e Caetano viveram exilados. Voltaram como verdadeiros embaixadores.

O show começou com Gal e Bethânia cantando "Esotérico", acompanhadas por


Caetano e Gil ao violão, revivendo a turnê "Doces Bárbaros", de 76.

Gal vestia o famoso vestido vermelho com rosa no cabelo, Bethânia de branco,
Caetano de terno preto e camisa verde-amarela e Gil de terno branco.

Depois entrou a banda de Bethânia e ela cantou quatro músicas sozinha. "Explode
Coração" provocou gritos descontrolados na platéia. Que aumentaram ainda mais
quando Caetano substituiu a irmã no palco e, ao violão, cantou "Sampa".

"Esta canção é como se Londres fosse São Paulo", disse ele, comparando a
cidade do exílio com a cidade considerada "túmulo do samba".

Cantou ainda "Leãozinho", "Você é Linda" e encerrou sua participação solo com
"Qualquer Coisa". Saiu com a platéia aplaudindo-o de pé.

Entraram Gil, Gal e a banda de Gil, com Moreno Veloso, filho de Caetano, na
percussão. Atacaram de "Falsa Baiana" e "Meu Nome é Gal".

A platéia delirou com Gal cantando "Aquarela do Brasil". Quase todos se


levantaram para ouvir o hino nacional de Ary Barroso na voz da baiana e Gil,
acompanhando-a na guitarra.

Voltou Caetano e os três atacaram de Axé Music. "Avisa Lá" levou os três a
pularem pelo palco como moleques alegres. Bethânia, a mais sóbria dos
Bárbaros, não apareceu.

Gil ficou sozinho no palco. "Aquele Abraço", que ele compôs pouco antes de sair
do Brasil em 69, deixou a platéia de expatriados de pé e arrepiada. Para quem
mora em Londres, "o Rio de Janeiro continua lindo".

As dançantes "Palco" e "Toda Menina Baiana" serviram de miniapoteose para a


festa final da Mangueira. Até senhoras inglesas arranharam um sacolejo.

No camarote do embaixador brasileiro, Rubens Barbosa, o Duque de Kent (primo


da rainha Elizabeth 2ª) e a duquesa foram os convidados de honra. Aproveitaram
para balançar na cadeira ao som dos baianos e da Mangueira. No mesmo
camarote estava Olívia Harrison, mulher do ex-Beatle George Harrison. Ele avisou
que não pôde ir por problema de saúde.

Os quatro Doces Bárbaros se juntaram de novo no palco para cantar "O Seu
Amor", um perfeito hino hippie pregando o amor livre, e "Os Doces Bárbaros".

Aí entrou a Mangueira, abalando o Royal Albert Hall com uma bateria afinada e
puxadores de samba estridentes.

Cantaram com os baianos o samba-enredo deste ano, "Atrás da Verde-e-Rosa só


não Vai Quem já Morreu".

Depois a escola ficou sozinha no palco, desfilando suas próprias baianas, mulatas
e porta-bandeiras.

Caetano, Gil, Gal e Bethânia voltaram ao palco ao final da apresentação da


Mangueira para se despedirem e a platéia aplaudiu o máximo que pôde.

Eles tiveram que voltar para um bis. Repetiram "O Seu Amor" e ficaram
emocionados.

Os quatro deixaram seus microfones e foram se juntando no palco.

Primeiro Bethânia abraçou Caetano, que foi beijada por Gal, que beijou Bethânia,
que foi abraçada por Gil.

No final, os quatro estavam juntinhos, cantando espremidos no palco vazio

SÉRGIO MALBERGIER
Folha de São Paulo - 03/06/94

In: www.galcosta.com.br, acesso em 23/01/2003.


• Bethânia por Caetano
"O perfil de Bethania é um dos mais belos perfis de mulher que já houve. Sua
testa avança numa convexidade incomum e o homem superior logo nota que ali se
guarda um cérebro incomum. Sob a testa, cujo arrojo estanca na linha
descendente da sobrancelha, que é como que uma versão suave da máscara da
tragédia, desenha-se o nariz espantoso: é o nariz do chefe indígena norte-
americano, é o nariz da bruxa, o nariz de Cleópatra e, no entanto, é o único nariz
assim " os outros são apenas uma referência a ele. Se esse nariz na vanguarda
de uma batalha que o homem superior adivinhou tramar-se no cérebro por trás
daquela testa, aponta orgulhosamente para o futuro da beleza, a boca parece
desmentir a armada: emergindo a um tempo brusca e suavemente à flor do visível,
ela anuncia o mel que destilará e consumirá: em palavras, em beijos, em mel. Sim,
porque se os olhos traem o corpo por serem uma revelação do espírito inscrita na
carne, a boca trai o corpo por ser uma revelação do próprio corpo. Insondáveis
são os mistérios do espírito e olhos que vêem, inquietam-se diante de olhos que
vêem. Mas os mistérios do corpo não são menos insondáveis e a boca, esse
transbordamento do lado de dentro de um corpo vivo para o seu exterior, é um
pequeno escândalo permanente. Assim, a boca de Maria Bethania, vista aqui de
perfil, primeiro parece negar e depois explica e aprofunda a informação plástica
estampada na parte superior de sua cabeça: traduz em doçura e amargor o que
fora enunciado em dureza e alegria. O que seu queixo arremata numa curva
fresca de felicidade infantil. Uma esfinge, um pierrô, uma astronave. Apenas o
rosto de uma mulher, desta mulher, pequena e franzina, que deixa o espírito sair
pela boca e queima a carne com a luz dos olhos. Que nos dá as costas para falar
com alguém do outro lado e depois se volta, agora de frente pra nós, indecifrável.
Rodrigo, nosso irmão mais velho, sempre achou Bethania lindíssima. Outro dia,
uma mulher que eu conheço pouco me encontrou no Baixo e me perguntou: "O
que foi que aconteceu com Bethania? Quando ela apareceu logo eu via vocês no
Cervantes e achava ela horrorosa, agora eu acho que ela é uma das mulheres
mais bonitas do Brasil.” Eu respondi: "Com Bethania não aconteceu nada, você
que era burra." A moça não gostou de ser chamada de burra e disse: "Digamos
que eu era insensível." Eu falei: "Insensível é pior que burra."Ela riu.
Mais ou menos aí pelo meio da década de 70, Bethania me pediu para dirigir um
show para ela. Ela ainda não tinha passado para a faixa AM, como se diz, mas eu
já percebia (ou antevia) na sua trajetória um brilho de grande estrelato e bolei um
show que ao mesmo tempo o assumisse gritantemente e o criticasse
honestamente. Escolheríamos uma grande casa de espetáculos (o Municipal?) e
faríamos três dias de grande gala com grande orquestra , uma bateria de escola
de samba, um pequeno conjunto elétrico pesado, atabaquistas de candomblé,
iluminação de Ziembinski, um repertório cheio de mudanças de clima com fortes
efeitos e, com esses elementos, comentaríamos os temas da riqueza, do poder e
da vitória. Cheguei a esboçar uma canção violenta sobre o dinheiro. Bethania me
ouvia reticente e, por fim, chamou o Fauzi para conversarmos. Este me ouviu
ainda mais reticentemente e eu comecei a achar meu projeto ridículo. Era e não
era. Um espetáculo assim, então, teria sido um corte brusco na construção natural
do estrelato de Bethania e ela, que também o desejava e o criticava ao seu modo,
deve ter achado que tudo isso pareceria muito presunçoso. Creio que foi o show
chamado "Cena Muda" que terminou resultando daí: Fauzi incorporou a temática
do dinheiro e do poder a um espetáculo para sala pequena e longa temporada,
como Bethania e ele vinham fazendo habitualmente. Ele tem repetido
incessantemente (com palavras e atos) que esse é o elemento de Bethania, que
foi em teatro pequeno que ela surgiu e aí que ela se dá melhor, que ela não é filha
das emissoras de televisão nem das grandes gravadoras. E ninguém poderia em
sã consciência dizer que ele está errado. Ressalte-se também que essa posição
não nasce de um preconceito que ele porventura nutra contra artistas que se
tenham identificação com a TV ou o disco: Fauzi partilha comigo de uma
admiração e um carinho por Elis Regina onde o fato de ela ter sido lançada pela
televisão não só não é esquecido como surge até determinando em parte os
sentimentos. Não. É a especificidade da arte e da pessoa de Maria Bethania que
ele procura captar da melhor maneira possível, quando age e fala como o faz. Por
isso, me enterneço quando leio no programa do "Estranha Forma de Vida" que ele
se sente talvez no lugar do "Mano Caetano", ao dirigir Bethania. De fato eu dirigi o
primeiro show dela. Foi na Bahia, no Teatro Vila Velha e chamava-se "Mora na
Filosofia". Era composto com canções e textos. Fauzi não viu. Mas quando eu
assisti a "Rosa dos Ventos" cheguei a perceber nele uma espécie de
mediunidade. Não que houvesse qualquer semelhança exterior entre o que eu
tinha feito e o que ele estava fazendo: era uma coisa mais funda de sacação dos
climas secretos. Na verdade, nós somos muito diferentes e é claro que eu
desgosto de alguns lances: achei que beirava a demagogia aquela cena no Cine
Show Madureira onde Bethania ironizava "a voz de uma pessoa vitoriosa" (assim
como meu antigo plano de supershow beirava a pretensão e o suicídio artístico),
não me identifico com esse sentimento de que o artista é o marginal inadaptado e
não consigo gostar da Geni do Chico ( perdão, Glauber), apesar de comentá-la
através do "Se Eu Quiser Falar com Deus" de Gil (canção de que eu também não
sou o maior fã). Por outro lado, adoro ver Bethania em situações diferentes (o
show com o Chico no Canecão, o show dirigido por Wally, Doces Bárbaros, etc.)
e, sinceramente, ainda gosto mais do show "Fantasia" de Gal-Guilherme do que
do "Estranha Forma de Vida". Ambos são shows magníficos, mas como disse
Marina, o "Fantasia" é mais minha cabeça e minha cultura. Contudo, o mais
importante é que, para além da cultura e da cabeça, Fauzi Arap atinge o
fundamental da arte e da pessoa de Bethania, através de uma espécie de magia.
"Estranha Forma de Vida" é, de fato, um claro instante na história da relação
amorosa que há em Fauzi e Bethania. Relação da qual eu tenho um ciúme cheio
de orgulho, cuja intensidade pode ser medida pelo espaço que ele terminou
tomando neste escrito.
Eu sempre achei que Bethania é a filha favorita de minha mãe. Dizem que Freud
escreveu que um "mother’s baby" terá sempre sucesso. Tenho tido muita inveja de
Bethania porque na minha fantasia os acontecimentos da vida dela possuem uma
espécie de inteireza diante da qual a minha própria vida parece consistir numa
série de imprecisões e transparências. Roberto, o nosso irmão imediatamente
mais velho do que eu, me disse que inveja em Bethania o modo intenso como ela
vive suas emoções. Não me lembro de ter tido ciúmes quando, aos 4 anos, "vi"
Bethania nascer. Como se sabe, escolhi o nome para ela, contra toda a família, e
considero isso uma profecia: é mais do que óbvio que ela só se podia chamar
assim. Ela foi a única adolescente rebelde da família e, nessa altura, eu interferi a
seu favor, o que me pôs na posição de meio-tutor e meio-cúmplice. Aprendi,
então, com ela, a vivência da rebeldia. Eu tinha inteligência: conferia legibilidade e
legitimidade a seus atos e acessos aparentemente desarrazoados. Data dessa
época o companheirismo que há entre nós e que só morreu uma vez para
renascer em outro nível, mais forte. Hoje somos macabos, gêmeos, dois leões, a
mesma pessoa (como disse Cortazar e gente muito mais importante do que ele). E
representamos bastante bem, para um número enorme de pessoas, o amargor e a
doçura de Santo Amaro, a beleza de meu pai e minha mãe, o talento de Nicinha,
Rodrigo e Mabel, a integridade de Clara Maria, o brilho de Roberto, a franqueza de
Irene, o mal e o mel da Purificação.
João Gilberto disse pra mim e pra Gil, depois da gravação de que Bethania
participou no "Brasil": "Que lindo Maria Bethania!...Ela veio, brincou com a gente
mas não saiu do trono dela." Perna Fróes (também geminiano como João e ela)
falou uma vez: "Beta, você não vai errar nunca." Chico Buarque declarou que a ela
ele obedece cegamente. Eu, Gil e Gal podemos discutir as atitudes e posturas,
mas com relação a Bethania há sempre um respeito aristocrático que o ritmo de
seu comportamento exige. E nós estamos sempre aprendendo com ela algo desta
majestade, sem nunca se meter em movimentos ou projetos de grupo, sem ser um
líder intelectual. Ela é para nós uma espécie de guru. Assim, o espetáculo "Doces
Bárbaros", que nós fizemos juntos, foi primeiro uma coisa dela e depois algo com
que ela não tinha nada a ver. Agora quando a vemos vir ressurgindo lentamente
no palco, por detrás das lindas cortinas transparentes que o adorável Flávio
Império desenhou para sua volta aos pequenos teatros, no ritmo poeticamente
perfeito que Fauzi encontrou para instaurar o clima de concentração e cuidado
requeridos pelo tipo de espetáculo que eles escolhem fazer, somos levados a
pensar mais uma vez: Bethania é uma deusa da sabedoria."
Caetano Veloso
Publicado originalmente na revista "Careta" de 18/08/81

In: www.caetanoveloso.com.br, acesso em 15/10/2003.


DVD de "Os Doces Bárbaros"
deve ser lançado até o Natal
Da Redação
Divulgação
07/10/2004 - 22h45

O registro histórico da turnê dos Doces Bárbaros em 1976 vai ganhar


edição em DVD, que deve sair até o Natal, disse o diretor do
documentário Jom Tob Azulay.

O filme "Os Doces Bárbaros" estréia nesta sexta apenas em São Paulo
em cópia nova, com som remasterizado e com cenas censuradas pela
ditadura militar.

O DVD do filme, além das cenas cortadas pelo governo (que totalizam
dez minutos), terá extras como sobras do longa e entrevistas que não
entraram na versão para cinema. O filme foi exibido no Brasil em 1978.

"Os Doces Bárbaros" custou o equivalente a US$ 100 mil, "numa época
em que as pornochanchadas custavam em média US$ 50 mil", segundo
o diretor.

A recuperação e remasterização do som do "novo" longa foi financiado


pela BR Distribuidora e custou R$ 196 mil, incluindo o custo de
lançamento do filme.

Segundo Azulay, a idéia de fazer um documentário sobre os Doces


Bárbaros -Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia- foi
de Roberto Menescal, então diretor da gravadora Phonogram (hoje
Universal), gravadora dos quatro baianos pela qual foi lançado o LP
duplo "Doces Bárbaros".

"Ele me sugeriu filmar o ensaio no Canecão (RJ) e a estréia do que seria


a turnê nacional em São Paulo, no Anhembi", diz Azulay, 62, ex-
diplomata e hoje superintendente de assuntos estratégicos da área
internacional da Ancine (Agência Nacional do Cinema, ligada ao MinC).

Azulay filmou um pouco mais do que isso. O grupo estreou em junho de


1976 no Anhembi, depois seguiu para Curitiba (sem registros no filme) e
Florianópolis, onde Gilberto Gil e o baterista Chiquinho (Francisco
Azevedo) foram presos por porte de maconha.
O show de Santa Catarina não foi filmado, mas Azulay embarcou para
Florianópolis depois da prisão do atual ministro da Cultura, que "me
mandou para lá". Estão no filme o julgamento do cantor (um dos
melhores momentos do filme, uma mistura de Kafka e "Z", de Costa-
Gavras) e depoimentos dos policiais que fizeram a busca no quarto do
hotel, hippies fãs da banda e dos outros "bárbaros".

"A prisão de Gil (ele ficou no Sanatório Botafogo, no Rio, por um mês)
meio que abortou a idéia da turnê nacional dos Doces Bárbaros", afirma
Azulay. "Depois de Florianópolis, eles foram para o Rio, onde fizeram
uma temporada bem-sucedida de dois meses no Canecão."

Ao "Jornal do Brasil" de 22 de julho de 1976, Gil disse, ao chegar ao


sanatório, que "mente como qualquer pessoa", mas que tinha falado a
verdade (sobre a maconha) para os policiais que o revistaram "por uma
decisão intuitiva".

No dia 8 de julho do mesmo ano, o jornal "O Dia", com linha editorial
mais popularesca do que a que adota hoje, estampou na primeira
página: "Gal e Betânia com pó de pemba. Presos Caetano e Gilberto Gil.

Publicado em www.galcosta.com.br, acesso em 21/10/2004


ZERO HORA - Porto Alegre, 06 de novembro de 2004. Edição nº 14321
Cinema

• Invasão doce bárbara

Documentário "Os Doces Bárbaros" é relançado com trilha sonora


restaurada digitalmente e com cenas cortadas pela Censura Federal
quando o filme estreou, em 1978
RENATO MENDONÇA

Imagine um tempo em que não havia Internet, os microfones tinham


fios, era moda deixar o cabelo crescer para todos os lados, havia
censura, não se elegiam diretamente prefeitos e governadores. Mas o
documentário Os Doces Bárbaros, em cartaz no Unibanco Arteplex
(confira no roteiro da página 4), lembra que a trilha sonora da época, ao
menos, era bárbara.

Doces Bárbaros foi o nome de batismo do supergrupo formado por


Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Gilberto Gil em 1976.
Usando a canção Os Mais Doces Bárbaros como hino, o quarteto
prometia "Alto astral, altas transas, lindas canções / Afoxés, astronaves,
aves, cordões / Avançando através de grossos portões / Nossos planos
são muito bons".

As canções eram mais que lindas, mas os planos tinham de ser


realmente caprichados. Os grossos portões incluíam a ditadura militar,
fechadíssima àquele tempo, mas também o patrulhamento ideológico à
esquerda.

O filme dirigido por Jom Tob Azulay exibe democraticamente os dois


lados. Numa coletiva, durante a estréia em São Paulo, a imprensa
fustigava os Doces Bárbaros perguntando se o som do grupo não era
açucarado demais para o momento.

Quando a turnê passou por Florianópolis, a porrada veio da direita.


Gilberto Gil e o baterista Chiquinho Azevedo foram detidos pela polícia
por posse de maconha, e o indiciamento de Gil virou espetáculo
midiático.

Na cópia que está sendo relançada, aparece uma cena cortada pela
Censura quando o filme estreou em 1978: Gil, no quarto da clínica onde
foi internado para reabilitação, diz que "nada disso pode nos abalar
muito, quer dizer, pode nos abalar além, digamos assim, das superfícies
do corpo e da alma, porque no fundo mesmo, do espírito da gente, a
gente tá forte". Na época, eram necessárias várias meias palavras para
se entender.

E havia as músicas. Tocadas em instrumentos precários, com uma


iluminação risível, elas ainda se impunham: Gal Costa (lindíssima) e
Bethânia cantando Esotérico, a irmã de Caetano pondo a tribo em pé de
guerra com Um Índio, Cae e Gil saltitando em Chuckberry Fields
Forever, Gal emocionando em Eu te Amo. Quem prestasse atenção
perceberia os Doces Bárbaros contestando o regime à sua maneira
barbaramente doce: em O seu Amor, a letra faz referência ao bordão
"Ame-o ou Deixe-o", em voga no Brasil dos anos 70. Mas os versos de
Gil pregavam "O seu amor / Ame-o e deixe-o / Ser o que ele é/ ... / Ir
aonde quiser".

Agora, Gil é ministro da Cultura, Caetano está dando continuidade a sua


carreira internacional, Bethânia foi um dos primeiros artistas do país a
criar sua própria gravadora e Gal vai gravar um novo CD produzido por
Cesar Camargo Mariano. O DVD Os Doces Bárbaros deve ser lançado até
o Natal, com vários extras. Ninguém lembra sequer do escrivão de
Florianópolis que não sabia soletrar a palavra lídimo, mas sempre vale a
pena conhecer e lembrar daquele tempo doce e bárbaro ao mesmo
tempo.
A gente(eu, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa) nem sabe direito porque
se juntou para fazer este 'show' em conjunto. Porque a gente já é há tanto tempo...
O engraçado é que a gente agora virou os quatros sob um nome só: Doces
Bárbaros.
Outro dia, conversando com Gilberto Gil, eu disse: "Acho que a gente agora é um
grupo porque foi ficando cada vez mais parecidos uns com os outros, até
fisicamente".
Quando eu era menino, e mesmo quando adolescente, eu e Maria Bethânia não
eramos dois irmãos parecidos: até o contrário, eramos desses irmãos de tipos
diferentes dentro de uma família de muitos irmãos.
E no entanto, hoje em dia, na contra-capa do 'long-play' de Gal e Caymmi, eu vi
uma foto de Gal em que eu achei ela parecida comigo.
Quando eu e Maria Bethânia viemos para São Paulo em 1965 e que Bethânia foi
fazer o espetáculo Opinião, Gilberto Gil já estava morando lá e Gal foi passar uns
tempos conosco.
Gal tinha o cabelo curto e fisicamente era completamente diferente de Maria
Bethânia. Mas as pessoas viam Gal na rua, apontavam o dedo para ela e diziam:
"Olha lá a Maria Bethânia".
A gente ficava assustado porque achava que Gal e Maria Bethânia eram duas
pessoas totalmente diferentes. Que as pessoas deviam achar uma parecida com a
outra assim como a gente acha um japonês parecido com o outro.
Gil, por sua vez, era gordo, não tinha ângulo nenhum no corpo e comia muito,
muitíssimo.
Depois, ele fez macrobiótica, emagreceu e foi ficando com o corpo muito parecido
com o meu, que é muito parecido com o corpo de Bethânia.
Tempos mais tardes, quando apareceu o grupo Novos Baianos, a gente (eu, Gal,
Gil e Bethânia) ainda não se achava parecido.
Mas quando eu voltei de Londres falava-se muito no "morro da Gal, nas dunas do
barato" e constatei que Gal Costa tinha criado uma moda, um modo de ser, de
vestir, de usar o cabelo.
Foi mais ou menos nesta época que 'O Pasquim' começou a reclamar como quem
reclama contra a raça. Aliás, uma das canções mais lindas dos Novos Baianos
dizia: "Saindo dos prédios para a praça, uma nova raça..."
Depois, todo mundo viu, na televisão, o Chico Anísio fazendo uma imitação do
baiano e eu acho que ele fazia muito bem, de um modo bonito. De maneira que a
gente, aos olhos dos outros, já era, sem saber, os Doces Bárbaros.
Mas não só a gente mesmo não se achava parecida ainda, como também estava
mais do que nunca cada um individualizando tudo o que fazia. Talvez foi por isso
mesmo que a gente tenha conseguido agora se tornar capaz de ser um grupo,
resultado de nossas vivências comuns e separadas durante todos esses anos em
que fazemos música.
De modo que Doces Bárbaros é uma coisa que se formou em nós, através de nós
e até mesmo a despeito de nós. É uma nova raça.
As músicas que iremos tocar e cantar são todas nossas, com exceção de algumas
de outros autores, como Caymmi, Milton Nascimento e Herivelto Martins. A partir
do 'show', gravaremos um 'Long-play'. Gostaria também de mencionar todos os
músicos que vão tocar com a gente. Na guitarra, Perinho Santana, no contrabaixo,
Arnaldo Brandão, na bateria, Chiquinho Azevedo, no piano, Tomás, na percussão,
Djalma Correia, na flauta e saxofone, Tuzé e Mauro.
Se eu fosse lembrar a nossa história, digo, a história de Gal Costa, Gilberto Gil,
Maria Bethânia e eu, eu teria de falar no Teatro Vila Velha, de Salvador, em uma
porção de coisas que todo mundo já sabe e talvez até em algumas que ninguém
sabe.
Ia falar também em Roberto Santana, que me apresentou a Gilberto Gil, em Álvaro
Guimarães, que faz cinema e teatro e, de uma certa forma, me levou a fazer
música, em Maria Muniz, em mil outras gentes.
Mas se eu quiser mesmo contar ou resumir a história dos Doces Bárbaros, vou ter
que falar talvez em outros planetas, em outras dimensões, em coisas que nem
sei...
Mas para as pessoas que já nos vêem como um grupo há tanto tempo, ou seja,
como um punhado de gente que tem características comuns, mesmo físicas,
Doces Bárbaros não é senão o óbvio. Para nós, é a maior novidade. E é tudo
igual.
Somos muito diferentes uns dos outros. Todo mundo sabe que fui eu que escolhi o
nome de Maria Bethânia. Eu tinha quatro anos quando ela nasceu. Por isso, ela,
necessariamente, aprendeu muito comigo. Mas ela é estruturalmente uma rebelde
e terminou me ensinando as coisas fundamentais desta vida.
Gal, eu encontrei pronta. Uma vez, há tanto tempo que nem me lembro mais, ela
cantou uma música qualquer e eu disse que ela era a maior cantora que já surgiu
no Brasil.
Quando morava na Bahia, eu ouvia João Gilberto dia e noite e eu ouvia João
Gilberto dia e noite. Quando nos vimos pela primeira vez, já eramos,
musicalmente irmãos.
Hoje em dia, Gilberto Gil está refazendo a cabeça de todo mundo. Um dia,
Rogério Duarte (que também teve grande importância nesta história toda) falou
que Gil era o profeta e eu o apóstolo. Entre outras coisas, acho que a gente
trabalhar em grupo está sendo maravilhoso, porque nós três vamos aprender e
estamos aprendendo muito com Gil. Acho que ele é mesmo o mestre. Gilberto Gil
faz e refaz a cabeça de todo mundo.
Vocês, que me lêem, já ouviram falar em 'supergroups'? Pois bem, Doces
Bárbaros é um subgrupo. No sentido de um grupo étnico. Ha-ha-ha-ha!
E agora eu pergunto a mim mesmo: como será a nossa cara? Queremos ser
Doces Bárbaros assim como o doce de jenipapo é um doce bárbaro! Gilberto Gil
disse que ele é cocada-puxa e que eu sou 'amada', um doce que se faz na Bahia
usando gengibre, farinha de mandioca e rapadura.
Para mim, Gal Costa é centro. O meio de tudo. A voz. A voz da qual nós (inclusive
ela - todos os bárbaros doces) somos apenas vozes.
Mas que horda é esta que vem do planeta terra bahia, todos os santos?
Está bom. Os ensaios estão bem calmos, nos divertimos e cantamos canções
cantáveis. E, para finalizar, não há nada que eu possa dizer sobre qualquer um de
nós que ajude a me dar, a te dar, a dar a todo mundo uma idéia do que seremos.
Caetano Veloso
In: Revista "Ele e Ela" nº 86, 06/76

In: www.caetanoveloso.com.br, acesso em 23/04/2004.


Doces Bárbaros, apenas nós

Quando nós, do grupo Doces Bárbaros, íamos para o Galeão para a nossa
primeira viagem, o automóvel de Elizete Cardoso emparelhou com o nosso e ela
nos sorriu de lá, acenando. Nós saímos para a excursão abençoados. Não é
sempre que acontece a gente poder harmonizar tantas energias numa luz clara. E
não é fácil. O que Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e eu estamos
conseguindo agora é isso. Saímos por aí sem intenção de criar ou resolver
problemas, esmiuçar polêmicas ou aceitar provocações, Bob Marley: "Don't deal
with dark things". João Donato e Jorge Ben. Gente de fé reconquistada, mostrando
com simplicidade a poesia e a música da vida, do que vive, do que está vivendo -
os Orixás, as pessoas boas, bonitas e fortes, os peixes e a esperança. Dentro das
nossas possibilidades imediatas, o nosso trabalho, é bom. É o que nos basta. Ao
resto. Por exemplo: a cidade de Florianópolis (nome que deram à cidade de
Desterro) não deveria constar da lista de cidades visitadas porque a produção não
considerava uma boa praça (180 mil habitantes). Por insistência minha e de Gil é
que ela entrou. Gal não queria e Bethânia teve um quase pressentimento de
nossa ida lá não seria boa. Quando os policiais interromperam o nosso sono e a
nossa alegria, eu disse a Gal: "Parece que ter vindo a Florianópolis foi um gesto
livre demais e isso subiu à cabeça do delegado". De fato, conhecidos meus de lá
me diziam: "Eu não acreditava que vocês viessem até que vi vocês aqui". Um
chegou a me perguntar: "Por que vocês incluíram Florianópolis no roteiro?!" - "Por
amor", eu respondi. A polícia entrou no apartamento de Gal Costa, Maria
Bethânia, Lea Millon, Eunice Oliveira, Maria Pia de Araújo, Guilherme Araújo,
Chiquinho Azevedo, Djalma Correia, Arnaldo Brandão, Perinho Santana, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Tuzé Abreu, Mauro Genise, Tomás Improta, Daniel e, ainda,
nos dos técnicos de som e luz, alegando ter recebido uma denúncia de Curitiba.
Contra quem, contra todos esses nomes? Eles conseguiram levar Gil e Chiquinho.
Nós não saímos pra discutir as leis nem a moral. Nem a religião, nem a política,
nem a estética. Nós não saímos pra discutir. E não discutiremos. Mas saímos com
uma imensa carga de luz de vida, com amor no coração. É muito difícil alguém
chegar a poder dizer isto, mas eu digo que nós somos um grupo de gente que saiu
por aí trabalhando pelo Bem. E quem quer que - na polícia, na imprensa, no
inferno - queira atacar ou nos atrapallar, estará trabalhando para o Mal.
Caetano Veloso
1976
A Praça Castro Alves é do povo como o céu é do condor. O céu é azul. O
azul é incrível. O vermelho é incrível. O mar da Bahia fica acima do nível do mar.
Mandei fazer pra você, Maria, uma fantasia de papel crepon. Mas pra você sair na
rua tem que a previsão dizer que o tempo é bom. Amarelo. O sol underground.
Cerveja ferro na boneca antártica a cerveja brahma nossa amaralina. Amaralina,
para quem está por fora da geografia, fica longe, muito longe da Praça Castro
Alves. Mas pra quem está por dentro da geografia Amaralina fica também ali
embora Amaralina seja o lugar onde o mar está ao nível do mar e a terra está ao
nível do mar e o céu também enquanto na Praça Castro Alves o mar está acima
do nível da mão do poeta e não há geografia que explique que descreva que
estude o azul é do povo como o vermelho e o amarelo. O sol, dizia eu,
underground sobem flores losangos cotovelângulos eu só posso falar com você
sobre o que você não entende numa forma que você não entenda. O branco.
Como o negro é do condor. Fui telefonar pra o meu amor, disquei o número mas
não fui atendido. Eu metia o dedo, tirava o dedo, já estava com o dedo ferido.
Carnava. Ladeira, águas bruscas, sacasacasaca sacarolha. Eu quero é couro. Na
rua do ouro. Barbarracas Sé. Oi, todo dia eu tomo banho. Minha rolinha do mesmo
tamanho. Severiano Mudança do Garcia Internacionais. Tororó da janela da casa
Clara Tororó Lay tio Lay Clara janela Tororó. Garcia. Mais um, mais um, Bahia.
Filhos de Gandhi. Relógio certo atrasado de São Pedro Relógio de São Pedro
atrasado preguiça Cabeça Anjo Azul Fantoches da Eutherpe. O Fantoches é do
povo como o céu é da rolinha.

Fantoches: coxas. Quem sabe, sabe. Doutora Lu, Doutor Lulu. Voltando ao sol,
cuidem de mim correndo paladeira morrendo atrás do trielétri. Não tem doutor pra
lhe curar, não tem padre pra lhe salvar, não tem polícia militar pra lhe prender, não
tem juiz pra lhe julgar, não tem ladrão pra lhe roubar. Quero morrer, quero morrer
já. Fui curado de cansaço e medo por um doutor. Quero viver, quero viver lá.
Policiais vigiando. Iate Clube da Bahia Baiano Associação Atlética Coqueijo a
onça moça ninguém entra Iate Clube carteirinha penetra Iate Clube ninguém
também lá dentro é tão. Misericórdia. Sé. Cada ano sai pior. Cada ano sai melhor
no sábado será que é o Cada Ano Sai Pior que no sábado cada ano sai melhor?
Reco-recordações. Recor-recordações. O sal da terra. O sal batendo nos telhados
cor da pele. O Teatro Castro Alves é do corvo como parto é dos com dor.
Barroquinha, barracas, brahmas, beijos. Maria, Jota. O sol da terra. Tororó. Fui
beber água e achei até cerveja e feijoada no ano que eu estava com dor de dente
todo o mundo está a fim de te ajudar no teu karmaval. Ai ai ai ai, está chegando a
hora. Cielito lindo. Sabes que me estás matando, que estás acabando con mi
corazón. Manhã, tão bonita manhã. Qual a marcha de maior sucesso qual o
samba aguardo cartas. Eu não sei de nada. Eu não sou daqui. Sai de cima dessa
nega que essa nega tá de Pata, pata. Boi, boi, boi, boi da cara preta, vem comer
Gracinha que tem medo de careta. Oi, todo dia eu tomo banho. Digão, cadê o
dragão? Não adianta se o Recife está longe e a saudade é tão grande que eu.

Caetano Veloso
Pasquim, 02 a 09/04/70
Ta - Ta - Ta
Gil contando o que Dominguinhos disse. Gil confirmando o que Perinho
Albuquerque contava sobre Dominguinhos. Dominguinhos lembrando as
conversas atravessadas de meu pai e minha mãe: eu ficava ouvindo: minha mãe
olhando pra o infinito e meu pai olhando pra o outro lado. Só um filme conseguiu
captar isso: Vidas Secas. Dominguinhos contando ao povo no Teatro Tereza
Raquel. A vida entre poetas. Não fui ao Teatro pra ver Dominguinhos e Perinho e
Moacir. Fiquei em casa assistindo televisão e chorei vendo o enterro de Juscelino
porque o povo cantava "Peixe Vivo" e em Brasília milhares de automóveis
brilhavam e logo depois eu estava apaixonado por um garoto falando sobre a
Coca-Cola, um garoto tão carioca que pronuncia os cês da palavra coca-cola
como se fossem gês e os as breves lusitanamente fechados, quase mudos, de
modo que a palavra coca-cola fica quase reduzida à palavra gole, um garoto muito
gostoso. A vida entre artistas. Eu cheio de preguiça, dentro da violência do mundo.
No gravador, a voz linda do poeta Augusto de Campos, cantando o samba do Sr.
Eurico. O poeta Waly Salomão 76 comenta a semelhança do canto de Augusto
com a de Paulinho da Viola. A vida entre músicos. Augusto me disse uma vez que
era um Kamikasi. O radicalismo da viagem literária em que ele e seus amigos se
meteram levou seu nome ao fogo das batalhas de uma guerra de beleza sem
razão. A doçura impecável de sua voz me faz agora entrar em contato com a
solidão do guerreiro, a sua felicidade escondida como uma saudade escondida,
voz de alguém que só canta assim porque nunca canta assim a não ser quando o
faz, alguém que está em outra, completamente nesta, alguém que está em outra
dimensão. A peça é idêntica a um perfeito antique - o piano e o samba do Sr.
Eurico, Augusto cantando com uma voz aguda cristalina afinadíssima como alguns
cantores dos anos trinta - e, no entanto, não parece com nada. Deve ser um
grande momento íntimo de um grande poeta. E ele que me considera um poeta. A
vida entre os homens. Tome conta do destino, Xangô! O que é que você faz
quando sua mulher está de saco cheio de você e ela declarou recentemente que a
meu lado não tem mais prazer? Há pessoas com nervos de aço. Jorge Mautner
fala tanto num novo sistema nervoso. Eu ando com a memória consideravelmente
mais fraca do que antigamente. Jorge Salomão disse que falta de memória é sinal
de muito boa saúde. Lembro que, na época em que eu fiz o circuito universitário
no interior de São Paulo, eu cantava "Tudo se transformou" e "Nervos de Aço" e
"Tenho Ciúme de Tudo" e coisas assim de mágoas de amor, um tema que
estivera sempre fora de meu repertório. Não sei se era pra encarar, constatar,
exorcisar ou tudo isso ao mesmo tempo. Quer dizer, esse tema sempre estivera
fora do meu repertório, não essas canções, que eu as conheço e canto 'há horas',
como diz Tuti Moreno. Mas eu lembro mais ou menos que nessa época era lindo
cantá-las. Parecia um poeta cantando, um guerreiro cantando, com um novo
sistema nervoso. Acho que hoje em dia não sei mais explicar. Acho que nunca
soube. O que é que faz seu espírito eleger uma mulher pra você? O que leva você
a olhar no olho dessa mulher e dizer pra si mesmo: isso é alto astral, aconteça o
que quer que esteja acontecendo, esse olho castanho sempre me fará bem? Que
ponto é esse do amor, para além das emoções do amor, das vãs paixões
humanas, para além das dificuldades objetivas de se construir um
companheirismo genuíno entre um homem e uma mulher? Que ponto é esse que
parece se mostrar invulnerável aos feitiçcos e às maldições? Não tem onde caiba:
eu te amo. A vida entre os deuses. Nosso filhote cantando a "Casinha na
Marambaia" - só a voz de Gal às vezes chega lá. E Donato. E a poesia de Jorge
Ben. A crítica de música (não a grossura dos dragões e tinhorões da dependência
do samba - camuflados ou não - mas a crítica mais inteligente) quebra a cara
diante da música de Donato porque ela, de tão essencial, é igual ao supérfluo.
Não há dúvida de que os complicados (o excelente Egberto e mesmo o genial
Hermeto) são mais 'fáceis' para a crítica do que Donato. No anteprojeto dos
"Doces Bárbaros", Walter Smetak estava incluído. Ele terminou não participando
porque a Universidade da Bahia não podia lhe dar licença demasiado longa e os
componentes do dito grupo, então em formação, não tiveram determinação
suficiente pra forçar mais essa barra, uma vez que eles estavam forçando tantas,
dentro e fora deles mesmos. Acredito que foi uma medida natural de economia do
organismo do grupo e, apesar da conseqüente frustação, um sinal de saúde. Por
falar em Doces Bárbaros: em nenhuma reportagem sobre o assunto se falou em
"Arena Canta Bahia", um espetáculo que Gil, Bethânia, Caetano e Gal fizeram
juntos em São Paulo (mais Tom Zé e Piti), sob a direção de Augusto Boal. Eu, na
época, não gostava do espetáculo, mas Boal gostava e, sob muitos aspectos, seu
trabalho era brilhante e foi importante na formação dos atuais componentes dos
Doces Bárbaros. De todo modo, o espetáculo existiu e nem a Veja se referiu a ele.
No mais, tudo na mais perfeita paz, como dizia um antigo compositor baiano. Digo
isso porque nessa transação de Doces Bárbaros a gente tá imitando um bocado
os Novos Baianos. Como falou o Belchior, é sinal de admiração, vinho quanto +
antigo etc. E como os Novos Baianos foram Doces Bárbaros antes... Xica da Silva
de Cacá e Zezé e Walmor e etc. é um grande barato. Rogério me lembra (minha
memória está ótima!) que o papo da letra de "Um índio" rolou aqui entre ele e eu,
antes da música ser feita. Lindo que ele esteja sempre nas transas. Fantástico.
Que coisa genial, não é, Gláuber? E Gláuber está incrível. Desta vez encontrei
com ele mais de verdade. Um pessoal dessas revistas mais novas falou que o
jornalismo feito em tom pessoal morreu nos anos sessenta. Se for assim a gente
se fala, pessoalmente. A vida entre os monstros.

Caetano Veloso
dezembro de 1976
Publicado em www.caetanoveloso.com.br
Acesso em 30/05/2004
Caetano de ouvir cantar
Sielington foi procurar o amigo Caetano, em casa, com uma novidade:

- Você precisa ir comigo ao Clube Uirapuru. Tem um disco que é uma coisa louca,
me lembrei logo de você, você vai gostar à beça. A música se chama "Desafinado"
e o cantor canta totalmente desafinado. A orquestra vai para um lado, ele vai para
o outro. É uma loucura. Você vai gostar, é a sua cara.

Caetano Veloso foi, ouviu e adorou:

- Quase caí duro pra trás. Achei lindo, gostei muito mais do que ele esperava e lhe
disse na hora: "Você está enganado, ele não é desafinado, é afinadíssimo. Não
tem nada de ele pra um lado e a orquestra para o outro. Acho que nunca ouvi
coisa tão certa.... e tão estranha.

Era 1959 e a modernidade acabava de desembarcar em Santo Amaro da


Purificação na voz e no violão do também baiano João Gilberto. Até o nome do
disco era um toque: Chega de Saudade. O toque bateu forte no baiano Caetano
Emanuel Viana Telles Veloso, pouco mais do que um adolescente de 17 anos, já
pronto, naquele final de década, para por os pés na estrada.:

- Quando apareceu João Gilberto, aquilo me deu critérios totais. Fiquei alucinado,
foi uma ligação imediata. Tinha todas as coisas da modernidade que me atraíram
em Maysa, mesmo em Nora Ney, nos Cariocas, em Lucio Alves, em Dick Farney.
Mas João centrou uma coisa que era vaga, embrionária e dispersa. Foi uma
virada.

Mas se alguém pensa que Caetano é simplesmente moderno, se enganou, meu


bem. É eterno. Antes de João, de Maysa, de todas as novidades, havia velhas
canções e antigos carnavais:

- O carnaval deixa uma espécie de Nino Rota na cabeça da gente. As canções


ficavam na minha cabeça. Quando eu era menino, menino mesmo, o carnaval
passava e eu ficava com umas melodias... Acordava de manhãzinha e, daqui a
pouco vinha um pedaço de melodia que não se explicava.

Outras melodias já faziam a cabeça do menino. Lá pelos três, quatro anos,


colocou a música definitivamente na família Veloso:

- Eu adorava a canção de Nelson Gonçalves de "Maria Bethânia". Adorava, sabia


cantar, e quando Bethânia nasceu, exigi botar o nome dela por causa da canção.

Surpreendente é que o menino das margens do Subaé gostava do vozeirão de


Vicente Celestino e vivia a cantarolar:
- Noite alta, céu risonho
A quietude é quase um sonho
O luar cai sobre a mata...
E começava a enfrentar os críticos. Dentro de casa:
- Eu me lembro que o Rodrigo e minhas irmãs mais velhas me sacaneavam por
que eu gostava de Vicente Celestino, que realmente era meio indigesto com
aquela voz querendo ser de ópera.
Quando cresceu um pouco, também ele já não gostava tanto. Mas passou a
alimentar uma admiração, que ainda se mantém: Luiz Gonzaga. Criança de sete
anos, só ia dormir depois de ouvir no rádio o programa do Rei do Baião.
Um pouco mais tarde, ali pelos nove anos, começou a viver outra experiência de
olhar crítico, também dentro de casa. O pai José, funcionário dos Correios e
Telégrafos, era incapaz de cantar ou sequer assobiar uma música, mas ouvia com
carinho Dorival Caymmi e Noel Rosa, cantado por Aracy de Almeida.
- Isso era uma coisa que eu ouvia na vitrola de minha casa, inclusive com a
influência crítica e os comentários de meu pai, que gostava muito de Noel. Meu
pai, que era inteligente, comentava as letras e isso me impressionava. Me lembro
de que eu me impressionava muito com a letra de Três Apitos, achava que aquilo
era uma coisa tão bem feita, as idéias se encaixavam todas tão bem, os apitos, as
rimas, a fábrica. Eu acho aquilo deslumbrante até hoje.
Outra influência familiar foi ainda mais decisiva na sua formação musical:
- Minha mãe cantava muito para mim e me ensinava a cantar, isso desde que eu
me entendo e sempre. Ao lado do rádio e dessas outras figuras, tem sempre a
minha mãe, a voz da minha mãe. Ela cantava canções antigas. Tem muitas
canções que aprendi com ela, nem sei quem cantava.
Não é à toa que, aos 46 anos, o filho famoso de dona Canô continua
incondicionalmente apaixonado pela canção:
- Eu vejo tudo preferencialmente através da canção, primeiramente passando pela
canção. Eu adoro o canto. Gosto mais de música cantada do que de música
instrumental, na área de música popular sobretudo.
Caetano vive se perguntando sobre a importância da canção na história da arte.
Acha a música popular, "por mais sofisticada que seja, trabalha com os restos do
que a música já fez, com o lixo musical do passado e do presente", mas desconfia
que "tem muito mistério nessa coisa toda":
- De repente, uma coisa que é feita numa área superbanal termina informando
áreas mais densas. O interesse musical intectualmente mais exigente pode buscar
no banal o que os artistas pop procuraram nos quadrinhos, nas latas de sopa para
aumentar o repertório das artes plásticas sérias. É uma atitude da arte sofisticada
de ir procurar o banal.
Não se pense que o banal não possa ser sublime:
- Não sei se Pavarotti é necessariamente melhor que Frank Sinatra, se é que ele é
um bom cantor de ópera, coisa de que eu não entendo. Não conheço muito
música erudita para saber, mas será que os irmãos Gershwin e Cole Porter não
são alguma coisa?
A pergunta já lhe valeu uma decepção:
- O único livro de história da música que eu li na minha vida foi aquele de Otto
Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música, que é um livro muito inteligente,
muito interessante. Mas ele fala do Gershwin, por exemplo, de um jeito que me
deu raiva. Numa frase rápida, diz que ele realmente era um talento e tal, mas que
não chegava a ter tanto valor porque infelizmente dedicou a maior parte do tempo
à música popular, é que a coisa de Gershwin parece mais linda. As mais lindas
canções dos irmãos Gershwin, as canções do Cole Porter, de Rodgers e Hart, de
Irving Berlin ou mesmo uma grande canção de Duke Ellington - mas sobretudo,
Cole Porter e os irmãos Gershwin - não têm realmente nada a dizer na história da
música?
Caetano tem outras perguntas:
- A Ave Maria, de Schubert, por exemplo, eu acho linda. É deslumbrante, mas por
que aquelas repetições de fim de versos para completar a melodia? Por quê não é
perfeitinho, redondo, que nem uma canção de Gershwin? Aquilo não tem graça, é
tudo perfeito: a relação das notas, dos tempos e das palavras, a adequação
prosódica.
Nem só a música popular o emociona:
_ Uma vez, eu e o Moreno tivemos uma emoção muito forte, juntos, com o
‘Concerto para Violino’, de Beethoven. Estávamos indo para a Barra da Tijuca
para uma gravação na casa do Guto Graça Mello. Moreno ia mexendo no rádio, aí
gostou e ficou ouvindo. Eu disse: "Eu conheço essa música. Isso é Beethoven."
Chegamos, mas ficamos parados na porta da casa do Guto para ouvir até
terminar, querendo saber o que era e também porque estávamos gostando
demais da música. Moreno ficou apaixonado. Depois, eu comprei gravações
desse ‘Concerto’ para ele. Ele já ouviu inúmeras vezes. Aquilo é lindo, é lindo, é
uma coisa linda. A gente fica emocionado. Tem uma tal noção de sentimento
estético, de grandeza, de sobriedade ao mesmo tempo, junto com uma esperança,
sem palavras, é uma coisa linda. E é uma coisa mais acessível, que, por exemplo,
os ‘Quartetos’.
O menino Caetano, que tantas canções ouviu de dona Canô, também povoa de
sons a cabeça do filho Moreno:
- Até botei os Quartetos para o Moreno ouvir. São maravilhosos, os últimos são
incríveis. São estranhíssimos. Ele achou bonito, mas é meio pesado pra ele. Ficou
um pouco demais talvez. Não sei por que, não é uma questão de estranheza.
Afinal, ele gosta muito de música experimental comtemporânea. Ele ouvira com
muito agrado Weber, ou coisas ultracomtemporâneas, coisas de John Cage ou
então essas coisas cheias de ruídos de John Zorn. Moreno é louco por John Zorn,
ele é que foca ouvindo. Mas o Quarteto, de Beethoven, não é só uma questão de
modernidade, de estranheza, é questão de densidade.
Toda e qualquer viagem não o tira do mundo da canção. Ele mesmo respode às
perguntas a que não lhe deram resposta:
- Para mim, Ella Fitzgerald cantando Cole Porter é o máximo da música.
E tem uma nova e mais intrigante dúvida:
- Ou será que, para quem sabe mesmo muito, aquilo já era? Será que só tem um
valor de coisa agradável e banal, com um desenhozinho de ilustração?
A resposta é uma declaração de amor:
- Para mim não. Para mim, João Gilberto cantando Retrato em Branco e Preto é o
máximo.
João, sempre João. Caetano ouve João nos discos, no rádio, nos shows tão raros,
no telefone. Ouve João falando e cantando. E fala de João, fala sem parar,
compara João com cada uma de suas outras paixões musicais. Por exemplo:
- Adoro ouvir Ella Fitzgerald, adoro ouvir Sarah Vaughan, idolatro Ray Charles,
mas sobretudo João Gilberto.
Ou:
- Adoro Stevie Wonder, mas sobretudo João Gilberto, Chet Baker e Billie Holiday.
Mas nada se compara com João:
- No João, parece que é tudo mais justo, necessário: a melodia, as vogais, as
consoantes, os sentimentos, o respeito por aquela forma, que ele reconheceu ali,
o jeito daquelas coisas se expressarem esteticamente. João Gilberto - e só ele. E
não muda nada. Ao contrário, ele vai mais fundo na música do que o autor, do que
as outras pessoas que já cantaram. "Águas de Março", quando João canta, é
muito mais "Águas de Março" do que em qualquer outro lugar. Não há nada tão
"Águas de Março". E é totalmente João Gilberto.
Mas voltemos à década de cinquenta em Santo Amaro da Purificação, quando o
amor desmedido de Caetano pela canção ainda se construía e lá não havia
chegado nem a modernidade que desembocaria nos anos sessenta nem João
Gilberto, sua mais completa tradução:
- Naquele período, ao lado de Caymmi e de Noel, havia o lixo todo que vinha pelo
rádio, que era a mistura total. Tinha muita coisa caribenha na Bahia. Aliás, hoje de
novo se consome muita coisa do Caribe na Bahia, não só o reggae, que lá é muito
mais cultuado pela população do que no resto do Brasil, mas também coisas
cubanas, músicas das Antilhas, de Porto Rico e salsa, lambada, merengue. Mas
eu me lembro que Celia Cruz era uma figura importante para mim nessa infância
dos anos cinquenta, em Santo Amaro.
Na salada musical, que mais tarde vai virar matéria prima do Tropicalismo, não
podia ficar de fora a Rádio Nacional, é claro. E Caetano foi ver de perto o
fenômeno quando morou um ano no Rio, em 1956, lá em Guadalupe, "entre
Marechal Hermes e Deodoro", como já contou numa clássica entrevista ao
Bondinho.
- Então, ia sempre ao programa, fosse Manuel Barcelos, César de Alencar, Paulo
Gracindo. Foi uma das únicas vezes que vi Dolores Duran pessoalmente, na
platéia e no palco. E eu gostava imensamente dela. E vi todo o pessoal. Via a
Emilinha Borba, milhares de vezes, no programa César de Alencar... falando "que
maravilha, hein César, que beleza!" E Marlene, fazendo as maiores lou-cu- ras...
Pegava o cabelo, botava em cima do microfone, fechava todo o rosto, com
microfone e tudo, e cantava dentro, fazendo gestos incríveis, coisas
absolutamente geniais. E... Linda e Dircinha Batista. E Heleninha Costa, que eu
gostava muito. Vi Caubi Peixoto ser atacado pelas fãs violentamente.
De volta a Santo Amaro, em 1957, uma lição de vida:
- Havia um culto muito grande, entre os amigos de minhas irmãs, do Sílvio Caldas,
que é uma figura de quem eu gosto imensamente até hoje. Quando voltei do Rio,
todo mundo estava superfeliz porque o Sílvio Caldas tinha saído com todos eles e
cantando junto depois do show que fez no cinema em Santo Amaro. Falavam que
ele era muito simples, que falava com todo mundo. Eu adorava isso. Isso até me
influenciou depois que eu me tornei uma pessoa famosa. Eu achava lindo esse
comportamento do Sílvio Caldas.
Caetano sabia que toda aquela simpatia pelo seresteiro vinha mais do lado boa
praça, caboclinho querido brasileiro do que da música e da voz, potente e boa,
mas ultrapassada pela maior limpeza de um Orlando Silva ou um Nelson
Gonçalves. A influência crítica já vinha de fora de casa, de um amigo chamado
Binu, muito mais velho do que ele:
- Ele gostava mais de Orlando e Nelson do que de Silvio Caldas e eu entendia.
Mais tarde, quando eu já estava maior, ele veio a gostar mais de Dick Farney e
Lúcio Alves. E eu me lembro que a Dick Farney, a Lúcio Alves e aos Cariocas,
minha mãe oferecia uma certa resistência estética. Ela achava estranho, achava
um pouco chatos e esquisitos aqueles acordes dissonamentes dos Cariocas.
E nessa época, embora fizesse sucesso nas festas do colégio cantando Caymmi e
fados, procurando até imitar o sotaque português, Caetano tem os primeiros
contatos com o rock:
- Tinha ‘Rock Around the Clock’, que Nora Ney lançou aqui, mas já tinha também
as gravações americanas, tinha as versões.
Mas forte mesmo foi o choque com Chega de Saudade. Com a irmã Bethânia e os
amigos Chico Mota e Ercília, ouvia o disco todos os dias, várias vezes, não mais
no clube Uirapuru:
- Bubu, um cara que tinha um bar, um botequim assim de esquina, comprou o
disco e punha pra ouvir. Era o gosto dele, dono de botequim, um tipo popular. Eu
nem o conhecia direito, nem entrava no botequim, mas aí passamos a ir lá todos
os dias. Quando a gente chegava, o Bubu botava o disco inteiro, várias vezes.
Um ano depois, em 1960, foi para Salvador:
- A cidade vivia, nesse período do final dos anos cinquenta até 1964, uma
efervescência na área de alta cultura, propiciada pela Universidade, que era algo
realmente maravilhoso. Havia uma convivência que faz muita falta hoje. A Bahia,
de uma maneira terrivelmente provinciana, oferece muita reação à convivência
com os produtores culturais de centros maiores do Brasil e mesmo do mundo.
Nessa época, era o contrário. O desejo era justamente de convivência.
Caetano havia trocado o velho piano da casa de Santo Amaro por um novo violão
comprado por Dona Canô. Ficava horas tocando e cantando com Bethânia.
Começou a badalar discretamente nos bares da cidade agitada pelos artigos
apaixonados de Glauber Rocha sobre cinema e pela turma de Escola de Teatro da
Universidade da Bahia. Descobriu a música americana.
- Com algumas pessoas com quem travei conhecimento, ouvi discos de Ella
Fitzgerald, depois um disco que se chama ‘The Blues in Modern Jazz’, ouvia
coisas de Jimmy Giuffre, gostava muito de ouvir Thelonious Monk, tinha long-
plays de Miles Davis, ouvia sem para ‘Sketches of Spain’.
Fez outra descoberta fundamental para os ouvidos e o coração:
- Ouvi Chet Baker, que era uma espécie de João Gilberto, mais purificada, aquela
coisa americana, mais límpida, mas também mais ingênua. Uma coisa que João
Gilberto tem de superior a uma figura como Chet Baker, que é grandíssimo e eu
idolatro sobretudo pelo que fez com o canto embora fosse essencialmente um
trompetista, é a inteligência. Comparado com o João, Chet Baker resulta ingênuo.
É que João, um gênio, tira vantagem da dificuldade de ser brasileiro:
- A própria média americana já é mais alta. Todo mundo já é mais afinado, mais
moderno, lá tudo já é mais o tempo todo, tem quinhentas mil pessoas tocando
trompete, tem quinhentas mil pessoas tocando saxofone bem, todo mundo sabe
aquelas escalas de improvisação. Então, parece que Chet Baker se torna possível
como uma vaga, uma marola daquele oceano de coisas. E o João Gilberto tem
que ser um guerreiro brutal para chegar além daquilo no ambiente brasileiro. E
não é uma coisa de eu estar dizendo isso porque eu sei que o João Gilberto é
brasileiro e o Chet Baker é americano. Isso transparece na música, na voz, no
canto, na seleção, no repertório, no que foi acontecendo, no passar dos anos. O
João foi ficando cada vez mais radical, mais profundo.
Foi lá mesmo, em Salvador, que conheceu outro guerreiro baiano, mais tarde
parceiro de música e de vida.
- O Gil já aparecia na televisão, à tarde, num programa local, tocando violão e
cantando. Eu adorava. O Roberto Santana prometeu, então, me apresentar a ele.
Um dia, em 63, eu ia andando pela rua Chile e o Roberto Santana vinha de lá,
com o Gil. Aí, nos apresentou, eu fiquei assim meio tímido. Mas não durou três
minutos a timidez, porque eu vi que o Gil era super boa praça, limpeza, não
causava constragimento nenhum. Ficamos imediatamente amigos mesmo, muito
amigos. Foi muito rápida a coisa da gente gostar um do outro.
Começou, então, a convivência que iria influir decisivamente na música popular
brasileira. Encontravam-se sempre, ficavam tocando violão e cantando:
- Eu gostava da convivência e de aprender vendo-o tocar o violão. Aprendi como é
que se faziam as posições. Ele me impressionava com a facilidade que tirava as
harmonias das músicas da Bossa Nova. E eu mal sabia fazer dó maior, lá menor,
aquelas coisas básicas do violão quando a gente aprende assim mal aprendido.
Aprendi vendo o Gil tocar. Não é que ele me explicasse. Eu ia olhando e
entendendo com a cabeça as funções que aquelas posições exerciam no
encadeamento harmônico das canções.
Um pouco depois, outra pessoa entra na roda:
- A Maria Laís, que era professora de dança me disse: "Caetano, eu conheci uma
menina que canta lindo e estou louca que você a ouça cantar. Ela é vizinha de
uma aluna minha e e eu vou pedir pra minha aluna marcar o encontro. Elas são
jovens, as mães não deixam sair de noite, mas quero ver se marco um encontro."
Um dia, ela marcou no teatro. Fui lá e encontrei a tal aluna. Era a Dedé. O alvo da
Laís era que eu conhecesse a Gal, Dedé era apenas a intermediária. Mas eu nem
me interessei muito pelo encontro porque adorei a Dedé e fiquei pensando assim:
"Puxa, essa menina devia ser minha namorada". Pensei mesmo. Olhei pra ela e
achei isso. Imediatamente. Gostei dela, achei a maior graça, toda animada, direta,
linda. Era linda, tinha dezesseis anos.
E o tal encontro com Gal, aliás, Maria da Graça, a Gracinha?
- Ela veio com Dedé, toda tímida, roendo as unhas, encanada, esquisita. Aí Dedé
mandou que ela pegasse o violão e cantasse. E ela tocou e cantou ‘Vagamente’.
"Só me lembro muito vagamente...", de Menescal e Bóscoli. Ainda não existia o
disco da Wanda. E foi engraçado porque a gente botou o apelido dela Gracinha
Vagamente. Depois, saiu o LP da Wanda que se chama Wanda Vagamente. Mas
a Gal cantou, e quando acabou, foi um choque. Aquela voz já era essa voz,
cantando lindo. Eu disse: "Você é a maior cantora do Brasil". Ela: "O quê?" E eu:
"Você é a maior cantora do Brasil, a maior de todas já, não tem dúvida, você é o
máximo".
O mito Gal Costa nasceria mais tarde.
- Gal é o nome dela. Tem gente que diz que foi inventado por Guilherme Araújo.
Não foi não, é mentira. Toda mulher baiana que se chama Maria da Graça ou das
Graças, no plural ou no singular tem automaticamante o apelido de Gal. Gal é o
nome dela, sempre foi o nome dela. A idéia de botar Gal Costa, de botar um dos
sobrenomes como nome artístico, é que foi do Guilherme. Ele achava que Maria
da Graça era nome de fadista, não condizia com uma coisa moderna. Nós
achávamos Gal lindo, achávamos que poderia ser só Gal. Mas Guilherme odiava e
odeia até hoje nome sem sobrenome, acha cafona, que não é chique. Foi ele que
botou Moraes Moreira, Jards Macalé e Gal Costa.
Bethânia, Gal, Gil e Caetano - estavam prontos os Doces Bárbaros que, muitos
anos depois, cheios de felicidade e amor no coração, entrariam nas cidades,
rasgando a manhã, avançando através dos grossos portões. Ali em Salvador, em
1964, ano em que a ditadura se instala no país, o quarteto se junta com Tom Zé e
faz o show ‘Nós, por exemplo'. Era a arrancada para o profissionalismo. Gil já
pensava em mudar para São Paulo. Caetano foi ao Rio para acompanhar a mana
Bethânia, convidada para substituir Nara Leão, estrela e musa da Bossa Nova, no
show ‘Opinião’. Voltou a Salvador decidido:
- Olha, Gil, eu pretendo fazer outra coisa. Vou ficar por perto, quero acompanhar
vocês, mas Bethânia já está lançada. Gal necessariamente será uma cantora e
você é que é o homem da música mesmo. Eu vou gradativamente me afastando.
Não quero fazer música, não me sinto músico.
Mais tarde, logo depois do Tropicalismo, Caetano teria uma recaída e, de novo,
quis deixar a música para fazer cinema e bolar projetos para Bethânia, Gal e Gil:
- Eu queria fazer outra coisa pra não ficar entrar no trabalho direto com música e
não atrapalhar os músicos de verdade. Mas o Gil, nas duas oportunadades que
lhe falei disso, me dissuadiu desesperadamente. Reagiu nas duas ocasiões como
se fosse uma coisa inaceitável. E me disse claramente que, se eu não fizesse
música, ele deixava de fazer. Então, eu pensava: para mim, Gil é a própria
música. Então, era a música me dizendo que eu tinha que fazer alguma coisa.
E fez. Afinal, quando levou aquele primeiro papo, na volta do Rio para Salvador,
Caetano já era um compositor e, dentro de pouco tempo, lançaria "Domingo", um
disco lindo e delicado, dividido com a ainda Maria da Graça. Mas não o encantam
os ecos joãogilbertianos em "Domingo":
- "Domingo" é sub-Bossa Nova. A única coisa que não é sub ali é a voz da Gal. É
bonito, tem alguma graça, mas desde aquela época eu achava isso mesmo.
Caetano preparava o salto para o Tropicalismo. Já queria muito, mesmo que
parecesse modesto:
- Tem uma história que o Augusto de Campos conta sobre música, um modo de
interpretar a atuação de Erick Satie na história da música, que é como se o Erick
Satie tivesse visto que o Debussy já tinha feito tudo. Eu acho que o Erick Satie
chegou mesmo a dizer isso, não sei, ou é o Augusto que diz ou é alguém que diz
e o Augusto me contou, mas, enfim, o Satie viu, que, naquela direção, a música de
Debussy era tão deslumbrante, concebida, tão realizada, que ele tinha de fazer o
avesso. Ele parte para uma simplicidade exagerada, depois para a entrada do
ruído, para as dissonâncias, para a ampliação do trabalho com as notas musicais
no Ocidente. De certa forma, guardadas todas as proporções e as diferenças
também, o lance do tropicalismo em relação à Bossa Nova foi isso. A gente não
queria ficar fazendo sub-Bossa Nova depois do João e do Tom.

E, pouco antes de "Domingo", ou quase simultâneo, o reconhecimento do trabalho


da Jovem Guarda, cuja principal expressão era o programa semanal comandado
por Roberto Carlos na TV Record. Depois da descoberta da música norte-
americana em Salvador, "a próxima coisa fortemente determinante" para os
ouvidos de Caetano, alertados pelas antenas ligadíssimas de Maria Bethânia, foi a
Jovem Guarda:
- Era um tipo de poesia que inconscientemente surgia, ali, mais forte do que o que
a gente estava fazendo na área que hoje a gente chama de música popular
brasileira.
Curtir esse novo amor exigia uma certa disposição para briga. Era um tempo de
guerra ideológica, Deus e o Diabo movimentavam hordas maniqueístas no mundo
da canção, que começava a se dar conta da existência de uma realidade chamada
mercado:
- Houve uma tal onda na TV Record de fazer uma tal Frente Ampla da Música
Popular Brasileira contra o ié-ié-ié e a música internacionalizante. Era uma
questão de marketing do Paulinho Machado de Carvalho e da TV Record, mas os
artistas se imbuíram daquele nacionalismo e aquilo tomou também os estudantes.
O programa, com esse nome de Frente Ampla da Música Popular Brasileira, foi
bolado para substituir o Fino da Bossa, que estava perdendo audiência, de
porrada, para a Jovem Guarda.
Convidado por Gil, que se revezaria com Geraldo Vandré, Elis Regina e outros
artistas no comando semanal de cada edição do novo programa, Caetano foi a
uma reunião com Paulinho Machado de Carvalho - sem direito a voz e voto,
apenas para ouvir e depois aconselhar o amigo. Não esquece, até hoje, a
participação de uma suave guerreira:
- Todo mundo fez imensos discursos, aquela retórica inflamada e nacionalista, até
que a Nara Leão falou e disse umas quatro ou cinco palavras super- objetivas.
Lembrou ao Paulinho que ele queria fazer o novo programa "porque a televisão
tem que manter a audiência" e trouxe as coisas para um realismo que, aos olhos
daquelas pessoas esquerdizantes, parecia algo completamente absurdo, alienado,
era uma coisa meio surpreendente.
Na saída. Caetano conversou muito com Gil:
- Para mim, quem falou tudo foi a Nara Leão.
Caetano, já desconfiado do ranço passadista daquele tipo de manifestação,
ganharia ainda mais força de Nara, quando, juntos, viram passar em frente ao
Hotel Danúbio, onde estavam hospedados, a passeata de artistas e estudantes
que trombeteavam as virtudes da música brasileira e os pecados do ié-ié-ié rumo
ao Teatro Paramount, da Record.
- Eu disse: "Nara, acho isso esquisito". E ela: "Esquisito? Isso é um horror. Isso
parece uma passeato do Partido Integralista. Isso é fascismo." Aquele comentário
me deu coragem porque eu sentia que não gostava daquilo, já tinha gostado do
modo como ela se comportou na reunião, não fui à passeata, não iria mesmo, mas
não tinha uma formação crítica tão nítida do que era aquilo. Hoje, é muito óbvio,
mas na hora não era tão óbvio assim. É só ver quantos artistas participaram. O Gil
foi, o Chico Buarque fez uma presença, mas a Nara teve clareza.
Foi ali, inconscientemente, que Nara Leão marcou seu embarque no trem que viria
a se chamar de Tropicalismo:
- O que ela falou me deu uma segurança em relação àquele negócio que eu e Gil
planejamos fazer um ataque interno no dia do programa.
Era mesmo um tempo de guerra e guerrilhas no "show-business":
- Bethânia, que era quem gostava mais do Roberto Carlos e quem mais tinha feito
minha cabeça e a do Gil para atentarmos à Jovem Guarda. Adorava a música
"Querem Acabar Comigo". Eu escrevi um texto violento a favor da força cultural do
Roberto Carlos. A idéia era que ela, de minissaia e bota, lesse o texto e cantasse
"Querem Acabar Comigo" no programa.
Não houve humor na reação:
- Isso, não sei como, chegou aos ouvidos do Geraldo Vandré, que também estava
hospedado no Hotel Danúbio. Ele teve um verdadeiro ataque. Veio ao quarto da
gente, esmurrava o ar, dizia que ia quebrar tudo, garantia que aquilo não ia
acontecer. Foi uma coisa tão violenta, uma coisa tão louca! Houve uma reação
geral e a Bethânia ficou assustada, terminou se retraindo. A idéia se diluiu, alguma
coisa ficou, não me lembro se saíram a canção, o texto, e ficou só a roupa, se
saíram o texto, a roupa, e ficou a canção descaracterizada, meio sumida, ou se
ficou só a roupa ou algo da roupa. Ficou muito pouco. Ficou um vestígio
imperceptível. Esse ia ser o primeiro impacto do Tropicalismo. Ia ser uma
superporrada tropicalista.
Já não faz mal que não tenha sido naquele instante. Outros sons, para muito além
do ié-ié-ié simplificado da Jovem Guarda, zuniam em outras cabeças. Foi nessa
época que Gil chamou a atenção do parceiro de aventura para a música dos
Beatles:
- Já conhecia, não desgostava, mas foi o Gil que começou a falar dos Beatles
como uma coisa moderna, um lance de cultura de massas, um lance emergente
em contraponto à fraqueza da chamada MPB na ocasião. E coincidiu do Gil
começar a falar dos Beatles, com esse tipo de visão, na véspera da saída do
"Sargeant Pepper’s Lonely Heart’s Club Band". Foi uma dentro total. Parecia que o
disco era a confirmação de tudo aquilo que a gente havia percebido. Na verdade,
para ser sincero, era como se a gente quisesse fazer aquilo, era como se tivesse
visto que o que eles significavam tinha que dar uma coisa como aquela. E a gente
ia fazer também alguma coisa assim, mas no nosso lance, com a música
brasileira, com o tango, com Vicente Celestino. Mas a gente não sabia que eles
mesmos iam fazer uma coisa tão consciente do que era aquele papel que eles
representavam. O disco nos animou e a gente saiu arrepiando.
Outros passageiros continuavam embarcando para a viagem rumo ao
Tropicalismo. Ao vigor da Jovem Guarda, junta-se o rigor da poesia concreta. Os
baianos conhecem e convivem com os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e
Décio Pignatari. Novas gentes, novos sons:
- O Rogério Duprat era ligado a esse pessoal por causa do negócio da Música
Nova, aquela experiência de modernos grupos musicais de São Paulo, de que eu
não tinha nem notícia, mas fiquei conhecendo através dos poetas concretos.
Então houve uma aproximação meio por aí e o Rogério ficou mais ligado, no
início, ao Gil, com quem se entendia melhor, porque ele era mais musical, mas tão
interessado no meu trabalho e no resultado das coisas em geral quanto no Gil. Foi
ele que aproximou os Mutantes do Gil e de nós. Aí, deu a base do som
Tropicalista: Gil, Rogério Duprat e Mutantes.
Curiosamente, não há a marca de Rogério Duprat, tão forte e inconfundível no LP
coletivo Tropicália, no primeiro disco individual de Caetano. Outros integrantes do
erudito Música Nova, como os maestros Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e
Sandino Hohagem, trabalharam com ele. A parceria com Rogério Duprat ficou pra
mais tarde, quando Caetano já estava confinado em Salvador, de partida para
Londres, e mandava para o maestro arranjar em São Paulo as fitas que gravava
só com voz e violão, tocado por Gil. Era o disco branco, de despedida. Mas Duprat
foi sempre importante:
- Ele foi o mais bacana desses caras de música da área erudita que se
aproximaram da gente. E foi o que mais próximo ficou, e o que mais entendeu e
se interessou pelo nosso trabalho. E é uma das pessoas mais diretas que eu já
conheci, muito íntegro, muito bacana mesmo. É muito radical, mas ao mesmo
tempo é uma pessoa até muito tolerante com as outras.
O Tropicalismo já era uma viagem sem volta. Junto com os Beatles, depois da
descoberta da força da Jovem Guarda, outros sons de rock internacional
invadiram a cabeça e as preocupações dos baianos, que iriam realmente ampliar
o marasmo da música popular brasileira naqueles anos, primeiro com "Alegria,
Alegria", de Caetano, e "Domingo no Parque", de Gil, e depois com "É Proibido
Proibir", de Caetano, e "Questão de Ordem", de Gil. No meio, a criação coletiva
era uma bandeira desfraldada: o LP "Tropicália ou Panis et Circensis".
A música brasileira nunca tinha levado susto tão grande. Mas que outro resultado
poderia dar aquela mistura de sons que habitava a cabeça de Caetano desde a
infância em Santo Amaro da Purificação e que agora era alargada pelo que de
mais novo faziam os músicos populares em todo o mundo?
- Quando entraram os Beatles, entraram os Rolling Stones, The Mothers of
Invention, Bob Dylan. Eu ainda morava no Solar da Fossa, no Rio, mas ia e vinha
a São Paulo. Quem me apresentou uma porção de coisa dessa área, na época e
depois, foi o Antônio Peticov. Me apresentou Traffic, Cream, Jimi Hendrix.
Também em São Paulo, tomamos contato com os Mutantes, que conheciam
profundamente a música dos Beatles. Eu nunca cheguei a conhecer a música dos
Beatles como eles conheciam. Adoro, mas não sou especialista em nada. Não sei
nada muito, não sei nada tudo de uma coisa.
Foi a época de outro fascínio:
- Nessa altura, ouvi muito Bob Dylan, mas não entendia nada de inglês. E o inglês
dele é rápido e difícil. Os Beatles foram mais presentes também porque era mais
fácil entender as letras. Eram mais pop, tinham mais clareza, representavam uma
coisa mais rigorosa. Bob Dylan era um gênio, mais inteligente, mais informado,
mas não tinha um design de coisa facilmente visível. É muito bonito, mas não tem
aquele design de modernidade, aquela economia que os Beatles tinham. Talvez
Bob Dylan seja o músico de rock-and-roll que tenha mais textura, naquele sentido
a que Mick Jagger se refere como existente no jazz, na música erudita e não
frequentemente no rock. Mas os discos dos Beatles são um show de design
sonoro. Aquilo me informava mais. Bob Dylan não me levou para perto de uma
poesia moderna, rigorosa, nítida, desvinculada da idéia de genialidade confusa e
obscuridade romântica. Os Beatles, sim:
Numa época de tantas descobertas e fascínios, há um encontro que - poderia ter
sido um desencontro:
- Quando Milton Nascimento apareceu em São Paulo, o Gil caiu duro. Eu,
sinceramente, no meio do festival, a orquestra tocando, um monte de gente em
volta, não percebi aquela beleza. O Gil, com o ouvido musical, ficou falando: "Isso
é que é, esse cara é o máximo". Fez a Elis Regina gravar a "Canção de Sal".
Buzinou no ouvido da Elis violentamente. Ele percebeu rápido que o Milton era
uma coisa grandiosa. Foi logo na música. O Milton foi logo música pra ele. Pra
mim, foi a pessoa. A pessoa chegou antes que a música.
Os dois - ou os três - tinham posto os pés na estrada, mas em trilhas diferentes:
- Não é fácil ouvir o Milton a primeira vez e também não é fácil ficar ouvindo muito.
E é lindo. Eu reouvi agora porque fui botar a canção Cais no meu show e ouvi pra
aprender, tirar a harmonia, passar para os músicos. Peguei o long-play duplo e fui
ouvindo. É deslumbrante, tem tanta canção linda, coisas lindas, o jeito, tudo. Eu já
achei que era uma coisa de peso na altura em que o álbum saiu, mas eu não tinha
essa clareza. Eu não sabia onde colocar aquilo criticamente. Aquilo era lindo, mas
não estava em nossa lista de interesses nos anos sessenta. Parecia que a música
tinha terminado e aquilo ainda era música.
Milton andava por um caminho muito pessoal, "fazia outra coisa, propunha um
novo programa":
- Não é que ele pensasse isso, mas o que ele fazia propunha uma outra coisa, que
realmente se desencadeou. E não necessariamente tudo o que liga com aquilo e
os interesses que se interligam dentro daquele mundo são as coisas que mais me
interessam. Por exemplo: eu não sou um grande ouvinte o Weather Report ou de
fusion-music em geral. Pelo contrário: tenho um pouco de dificuldade de aguentar
esse tipo de coisa, essa música que é de gente jovem suficiente para estar
acostumada com rock, mas meio contrabandeia o jazz pelo rock, o rock pelo jazz.
Nem é propriamente da química que Caetano desgosta:
- É da música que resulta que eu não gosto.
Afinal, misturar também é uma de suas peculiaridades:
- Na verdade, a gente faz isso, bota umas coisas no lugar das outras, faz
contrabandos outros.
Mas Milton paira, único, sobre tudo isso:
- Ele tem uma coisa que levou esses músicos todos a desbundarem no mundo
inteiro, que é sem dúvida o que foi visto imediatamente por Gil e o que eu percebi
na pessoa dele e é aquilo que transparece na relação do Brasil com ele, como
notou Rogério Duarte quando disse: "O Milton é um mistério que o povo brasileiro
soube decifrar". É incrível. Ele é rico musicalmente e tem todo esse lado de fusion
que uma grande ala de uma geração estava querendo e precisando, mas é
superatávico, é uma pessoa muito única, muito sozinha. A figura, a história, a
formação pessoal e cultural de Milton resultam numa coisa única. Ele traz uma
formação atávica da formação do Brasil, uma coisa dos cantos gregorianos, dos
negros, a gente vê a cultura católica se armando, vê todos esses fantasmas. O
timbre de voz, o falsete do Milton já dizem tanta coisa. É uma sereia, uma sereia
que te leva a um lugar pagão e católico, a um meio misterioso de viver. Milton são
tantas coisas.
Nisso, nessa quantidade enorme de uns e um, por mias distantes, como eles se
parecem! Eram bem diferentes, porém, os seus caminhos no fim dos anos
sessenta.
Depois de pregar um susto na música popular brasileira, Caetano e Gil levam
outro muito maior, armado pelos podres poderes dos ridículos tiranos de plantão
naquele fim de década: a cadeia e o exílio.
A caminho de Londres, Caetano manda notícias de Lisboa, pelo Pasquim:
- Eu agora também vou bem, obrigado. Obrigado a ver outras paisagens, senão
melhores, pelo menos mais clássicas, e de qualquer forma, outras.
Escapole de Londres para fazer um programa de televisão com Gal e João
Gilberto, aqui no Brasil, e aproveita a temporada no exílio para acrescentar dois
discos ao seu currículo. Tinha deixado mais um antes de embarcar.
Quando volta definitivamente ao Brasil, no começo de 1972, é um cidadão do
mundo, como se ter ido fosse mesmo necessário para voltar. Faz um disco e um
show com Chico Buarque, um parceiro tão diferente e tão próximo, de quem
tantos amigos quiseram apartá-lo enquanto rolavam "aqueles projetos totais de
transvaloração dos anos sessenta":
- Eu tinha discussões com pessoas próximas, nunca com Gil, que jamais teve
essa coisa, mas com pessoas que faziam música e outras que não faziam, mas
que falavam do Chico, durante o Tropicalismo, como se fosse uma coisa passada.
Eu não achava mesmo isso. Nunca achei. Eu achava que nossas informações
eram uma virada importante, mas provisória, que aquelas coisas iam reaparecer
depois, reavivadas até. O que era realmente lindo ia aparecer de uma maneira
mais afirmada, inclusive o Chico. Eu achava mais bonito as coisas que ele fazia do
que o que eu fazia, em muitos sentidos: adequação das palavras, uma coisa mais
límpida de objeto bem acabado e equilibrado, como o Chico sempre fez e eu não
estava fazendo. Eu achava absolutamente necessário que estivesse outra pessoa
ali, segurando aquilo.
Quando depois entra no estúdio, é para gravar Araçá Azul, paradoxalmente um
disco muito relax e bastante experimental, que na época assustou os fãs e
principalmente os lojistas, mas acabou sendo redescoberto e relançado já nos
anos oitenta.
Redescobrir Caetano Veloso é uma espécie de rotina nacional. Há pouco tempo,
quando ele voltou a cantar É Proibido Proibir, de que nunca falou com muito
orgulho, houve quem achasse que atéo próprio Caetano havia se adequado a
mania de redescobri-lo. Não foi nada disso:
- Não mudei de opinão. Não acho É Proibido Proibir uma grande canção. Gosto
daquela coisa de sim e não, do jeito que está ali, mas é uma canção bem
fraquinha. Ela ficou legal pelo que aconteceu em torno dela, mas não pela canção
em si. Tanto que nunca foi um sucesso. Agora, cantar de novo também é
engraçado porque ela havia sendo só pensada como um pretexto para aqueles
discursos, discussões, vaias, escândalos, e de repente, passados muitos anos, eu
canto num show e ela fica ali. Aí a gente pensa nas coisas e pensa na canção,
meio que limpa a canção daquilo e também torna a pensar naquilo. Enfim, acho
que teve uma graça. Mas não acho uma grande canção.
Pode ser, mas Caetano frequentemente exagera quando olha criticamente sua
própria música. Ele reconhece que tem feito, depois de Araçá Azul, um movimento
de retorno ao território que tanto ama na música popular, o das canções. E se
encara com naturalidade os elogios a tantas a tantas obras-primas desde
Domingo até o último Caetano, implica com algumas preferências do distinto
público:
- Não gosto tanto de Velô, gosto mais de Caetano. Aliás, quando eu acabei de
fazer o Velô, já sabia que gostava mais de Uns, que é o disco imediatamente
anterior, o que não é uma coisa muito frequente de acontecer com um artista. Tem
uma porção de coisas no Velô que, para mim, pesam. Infelizmente, não sou
suficientemente violento para romper coisas que eu vejo. Todo disco meu é sujo.
Não sou violento. A minha visão é mais radical, mas a minha ação é mais
comprometida.
De novo, João na cabeça. Caetano quase inveja o radicalismo brutal de João
Gilberto na hora de gravar ou cantar. Até o amigo Wally Salomão já disse que o
projeto de Caetano Veloso é ser o João Gilberto de sua geração. Será?
- Eu não tenho a concentração de João Gilberto. Sou disperso em muitas coisas.
O João se dedica mesmo a isso. Isso é tudo dele. E depois ele tem muito mais
talento musical do que eu. A música flui mais nele. Mas eu tenho essa admiração
pelo João Gilberto. Então, de certa forma, devo vir procurando também isso, já
que adorei João Gilberto tanto, desde que ouvi. Alguma coisa disso deve também
acontecer comigo.
Caetano vê seu trabalho de compositor com um certo distanciamento, temperado
com a modéstia tão frequente em sua autocrítica, para surpresa dos críticos
oficiais:
- A minha música tem um aspecto muito marcante de carnaval e dos jingles. São
pequenas canções comemorativas de alguma coisa, têm que se utilizar de
elementos bastante reduntantes da forma musical, bastante conhecidos, têm que
ter uma marca melódica forte, difícil de esquecer.
Para algum desavisado que possa achar suas letras mais elaboradas do que suas
músicas, uma surpresa do poeta Caetano Veloso:
- Se eu fosse escrever poesia, botar no papel, fazer poesia para livro, não seria o
que eu faço com letra de música. Em letra de música, eu uso os recursos mais
gastos do encantamento poético: a rima, a métrica, uma certa elegância
prosódica, mas também uma certa deselegância.
Mas, atenção, pois nem tudo é o que apenas parece:
- Também tem todo um lado que não é só isso. Tem um lado de ruído em tudo.
Quer dizer: meu trabalho tem algo de hino, da música do carnaval e do jingle, mas
não é só isso. Eu não faço esse tipo de música todo o tempo e nenhuma das
minhas músicas é apenas isso, mas esse aspecto é trinecessário. E é preciso que
se fale, que se saiba disso e se saiba também que eu sei disso. Mas também há o
lado que talvez esteja mais perto da busca daquilo que eu chamei Nino Rota do
que deste aspecto jingle da canção de carnaval.
São complexos os caminhos que percorrem, em sua música, os sons do carnaval
que ainda martelam e encantam a cabeça desse baiano que curte a folia de
maneira personalíssima:
- Eu adoro, às vezes, músicas que ouço na Praça Castro Alves. A gente fica num
estado bem diferente. Eu não bebo, mesmo no carnaval. Às vezes, só na terça
feira, eu bebo. Mas não gosto de beber porque tenho ressaca. Não bebo, não
tomo droga, não cheiro lança perfume porque uma vez, em Santo Amaro, cheirei,
fiquei morrendo de medo, odiei. Mas a gente fica num estado mental muito
diferente, estando dentro da Praça Castro Alves, estando dentro do carnaval. Não
precisa beber mesmo. Fica numa excitação! São tantas as solicitações, o ritmo,
alguns medos, uma alegria, uma mistura, é uma sensação indescritível, que eu
gosto, eu preciso, que todo ano quero voltar a sentir. Às vezes, vou à praça e nem
sei direito o que é. Aí, chego lá e digo: "é isso". Sinto qual é o lance. É um estado
mental diferente.
Vem de longe essa emoção cada vez mais forte:
- Isso acontecia também quando eu era menino em Santo Amaro. Mas, na praça
Castro Alves, é mais forte, porque aquilo é uma coisa enorme. Às vezes, ouço
uma melodia que já conhecia e ela ganha outra dimensão. Às vezes, eu choro.
Sempre eu choro. Sempre eu choro no carnaval, só por causa da música.
Esta carga de emoção tão dionisíaca, que transforma o carnaval baiano numa
celebração quase íntima para Caetano, não o impede de enxergar com lucidez a
importância cultural da festa. Ele se alegra também porque o carnaval da Bahia se
rendeu às facilidades turísticas:
- Eu sempre quis que o carnaval baiano fosse uma referência estética no Brasil. E
tem sido, mais do que realmente um atrativo turístico. Nesse sentido, até caiu.
Houve um primeiro momento, no início dos anos setenta, depois que nós voltamos
de Londres, em que era geral o fascínio de ir passar o carnaval na Bahia. Mas,
naquele tempo, havia mais turistas desbundados do que hoje, havia mais
desbundados em geral do que há hoje. Então, muita gente ia. Mas o carnaval da
Bahia vem sendo uma referência forte para quem faz música e se interessa por
cultura no Brasil, e nesses anos todos, não se tornou uma coisa como é o
carnaval no Rio e até mesmo chegou a ser o carnaval do Recife, que ainda é mais
ou menos considerado tradicionalmente como uma atração turística. Isso é
maravilhoso.
As bandas e os grupos baianos, que agitam o carnaval, refazem a ligação perdida
entre a cidade de Salvador e a cultura de fora:
- Eles promovem a redesprovincianização da cidade e sua reavaliação como
importância cultural no Brasil e no mundo, uma coisa que Salvador já teve, tem e
pode vir a ter mais efetivamente. Nos anos sessenta, essa visão
desprovincianizada foi estimulada pela Universidade, através do reitor Edgar
Santos e de alguns intelectuais que foram inteligentes o suficiente para participar
disso de uma maneira aberta. Depois do golpe de 1964, estranhamente ou não
estranhamente, essa força cultural da Bahia começou a aparecer do outro lado, do
lado não-elite, do lado popular, do lado negro. Foi a Bahia negra que cresceu e
que espalha a presença da cidade no Brasil e no mundo. Você vai a Nova York e
conversa com as mais importantes figuras da música popular do mundo e do que
é que eles falam? Do Olodum, da Banda Reflexus, do Araketu, do Ilê-Aiê e do trio
elétrico.
Alegra-se também Caetano ao constatar que o parceiro Gilberto Gil é uma ponte
entre estes dois momentos tão distantes que marcam a abertura da cultura baiana
para as influências do mundo:
- O Gil, curiosamente, representa as duas forças que têm essa visão da Bahia
desprovincianizada. Ele tem ligação direta com os movimentos da década de
sessenta e com a efervescência da música negra de agora. Ele está diretamente
ligado, por exemplo, ao renascimento dos Filhos de Gandhi, por causa daquela
canção e da participação pessoal dele no bloco. É por juntar essas duas pontas
que só a mera possibilidade da candidatura dele à prefeitura já tem um enorme
valor simbólico.
Mas o caminho percorrido por Gil também semeou dúvidas que afligem o parceiro
Caetano:
- Hoje, eu fico espantado como o Gil, de uma certa forma até mais do que eu,
abdicou da música. Não estou dizendo isso porque agora ele entrou para a
política, pois isso não o fez parar de fazer música. Mas é que ele, que é um
músico de verdade, procurou ficar além da música ou aquém da música ou ao
lado da música - enfim, fora da música. É uma coisa estranha. Falo dele não
mimar o talento musical que tem, de escamoteá-lo até boicotá-lo. Isso tem a ver
com a atitude marcadamente metalinguística que apareceu na música e nas artes
com as pessoas da minha geração. Gil tem sido um caminho para o comentário da
música popular, o comentário da produção industrial da música. É um sair para
fora da música, tal como aparece em alguns de seus discos de um tempo para cá.
Ele quer testar, experimentar, comentar e ao mesmo tempo criticar. Ele procura
levantar o nível de atenção, no Brasil, para essa coisa de produção, do negócio,
das relações da música com o capitalismo moderno, sempre com uma tirada
crítica. É uma coisa difícil de acompanhar e muito rica porque há algo de moderno
em tudo isso, mas é como se um grande músico carregasse, de certa forma, algo
de antimúsico. É complexo, não é uma coisa inteiriça como Milton Nascimento,
como Tim Maia ou como Jorge Ben.
Caetano lamenta, mas se fascina:
- É uma coisa com muitos níveis que precisam ser lidos ao mesmo tempo, que se
comentam uns aos outros. Pode ser que não se crie uma firmeza e uma harmonia
constantes, num caminho determinado. Ele próprio me disse, há alguns anos, que
quer terminar batendo um tambor, o mais simples e primal possível. Ele quer que
a música dele chegue a isso.
Tão reticente em admitir-se músico, Caetano também se reconhece na viagem
paramusical de Gil:
- É uma coisa que eu também tenho e que nós, de uma certa forma,
representamos no Brasil desde que aparecemos. A instância crítica está muito
mais exposta e presente na produção. Mas eu sou mais um não-músico, que me
dediquei a trabalhar com música, e o Gil é um supermúsico que se dedicou a
escapar dela para poder olhá-la de diversos ângulos.
Tão diferentes, tão iguais. Ou será: tão iguais, tão diferentes? Une-os, até onde
essa estrada do tempo vai dar, algo além - ou aquém ou ao lado? - da música. É a
paixão pela modernidade, que em Caetano se revela, cristalina, no que houve, vê,
ou curte nos últimos tempos:
- Eu gosto muito de todo esse renascimento do rock, do fim dos anos setenta até
esses anos oitenta, que começou com a new wave, cresceu com os punks da
Inglaterra, bateu aqui, renasceu no mundo todo. Eu me sinto bem com isso, eu me
sinto bem quando acontecem essas coisas.
Gostou do Camisa de Vênus logo de cara, quando viu um dos primeiros shows do
grupo em Salvador, adora os Titãs, mas tem uma preferência:
- O disco de rock brasileiro que mais me toca é o primeiro do Barão Vermelho. É o
que mais me impressionou quando saiu. O disco é lindíssimo, é assim fundo de
garagem, muito mais do que os que hoje são produzidos para parecerem fundo de
garagem. É mesmo, foi gravado em duas noites, é lindo.
Paixão mesmo, daquelas de fazer bater mais forte o coração e mexer com a
cabeça, é outra:
- Adoro o Prince. Logo que vi, gostei. É uma coisa que só podia soar agora, não
podia ter aparecido antes. Parece um resultado, muito verdadeiro, da situação
cultural do mundo agora. Ele tem aquela coisa da tradição do músico negro norte-
americano, mas com umas discrepâncias que dão um estranhamento que faz dele
algo diferente do que é, por exemplo, Michael Jackson, que é maravilhoso, ou
ainda Stevie Wonder, que é ainda mais maravilhoso. Mas ambos soam como o
aprimoramento, a modernização, o progresso de uma linhagem de música negra
norte-americana, agradável, mas sem estranhamento, não se sai daquilo, não se
sai daquele mundo de agrado sonoro. Prince, não. Tem discrepâncias, até pela
própria condição racial dele, que não é bem um negro americano comum.
Prince faz a ligação com outras referências musicais que encantam Caetano:
- A música e a postura artística dele são totalmente vinculadas às coisas de que
eu mais gosto. Ele tem muita coisa que herdou do movimento punk inglês dos
anos setenta. Ele tem a ver com Jimi Hendrix, com Little Richard, com Mick
Jagger, com os Rolling Stones em geral, com a tradição americana do rythm and
blues, soul e funk. Mas isso tudo tem uma atualidade que imediatamente se
percebe.
Prince é o exemplo máximo da presença e do significado que têm as conquistas
do que se chama modernidade em mentes e talentos de artistas de massa, gente
de baixo nível cultural em termos de formação acadêmica ou escolar, ou mesmo
livresca autodidata. Às vezes, eu brinco porque ele é over e digo: é punk-funk-
rococó. São tantos milhões de coisas.
Outros músicos da vanguarda novaiorquina fazem a cabeça do garoto que, aos
três anos, caiu na música embalado pela voz de Nelson Gonçalves:
- Achei o máximo o disco Greed, dos Ambitious Lovers, que tem uma ligação com
o Brasil porque o Arto Linsay viveu em Pernambuco, canta uma música do
Paulinho da Viola, diz umas coisas em português e usa percussão de escola de
samba em algumas faixas. É um disco deslumbrante, mas é bem branco, de
branco que gosta de funk. É como se fosse alguma coisa entre o Prince e os
Talking Heads, um lugar original encontrado a meio caminho desses dois pólos.
Os Talking Heads também o comoveram:
- Eu os admiro muito e adorei vê-los e ouvi-los naquele filme Stop Making Sense,
do Jonathan Demme, sobre o show. Acho o David Byrne, que eu conheço
pessoalmente, um sujeito inteligentíssimo e com um certo ar moderno, bacana.
Mas já é um cara culto, diferente do Prince, que realmente arrebenta, extrapola,
transborda.
Caetano gosta de outras coisas, mas sem entusiasmo:
- Eu gostei do Graceland, do Paul Simon, mas não tem riscos. É muito bonito, mas
sem riscos, embora soe menos domado do que o Sting depois que saiu do Police.
Eu gostava muito do Police e acho Sting muito talentoso, com uma voz linda. Mas
eu vi o show dele em Paris, aquele Bring on the Night, e achei tudo muito certinho,
muito defendido. Tudo é o melhor: o melhor contrabaixista, a melhor seda, a
melhor luz, a melhor corda, o melhor tecladista, o melhor baterista. Achei isso
meio chato. Parece que ele telefona, tem na lista: "Quem é o melhor? Manda
chamar". Eu fico mais entusiasmado vendo uma coisa como Stop Making Sense.
Eu me lembro de Oswald de Andrade, que dizia algo assim: "fulano de tal erra na
gramática, em ritmo, em estilo. Eu não erro em nada disso porque não me
interesso por nada disso" . O Sting não erra em nada disso, mas se interessa por
tudo isso.
A mais atual chave da modernidade na música popular está mesmo com Prince,
segundo Caetano:
- Ele inverte alguns conceitos intelectuais. Ao contrário de ser um exemplo de
como as conquistas da modernidade vieram a se banalizar na cultura de massas,
ele é a comprovação da assimilação profunda do que os grandes artistas de
vanguarda do início do século fizeram. Ele dá a impressão de como,
assustadoramente, o fundamento daquela vanguarda está sendo realizado hoje
por algumas pessoas de grande talento. São pessoas que entraram em sintonia
profunda com o fundamento do desejo em relação à arte e à vida daqueles
pioneiros da modernidade. Não é um cara que conhece Duchamp, pensa sobre
Picasso, o feio e o bonito. É uma pessoa genial, que parece evidenciar o que
fundamentalmente estava sendo mexido por aqueles artistas. É alguma coisa que
virou vida e com a qual a vida tem de saber contar. E que, de volta, virou arte.
Assim é também, eternamente moderno, o garoto que, desde as margens do
Subaé, amava João Gilberto mais do que os Beatles e os Rolling Stones, o
cidadão de Santo Amaro da Purificação de Salvador, do Rio, de São Paulo, de
Londres, o companheiro de Dedé e de Paula, pai de um concretíssimo Moreno e
de uma talvez Júlia, soma de tantos e tão variados sons e sotaques, tantos ele
mesmo, tantos e único, indivisível cantor popular de um planeta chamado Brasil,
um homem nu com sua música, afora isso somente amor.
Roberto Benevides
Songbook Caetano Veloso - Editora Lumiar, 1988

In caetanoveloso.com.Br, acesso em 12/10/2004.


Outros (doces) Bárbaros (DVD)
Doces Bárbaros
Após 25 anos ao lançamento dos Doces Bárbaros, que reuniu em um
mesmo LP Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa, a
gravadora Biscoito Fino e a Conspiração Filmes lançam numa co-
produção independente o DVD Outros (doces) Bárbaros. Os bárbaros
não são mais “selvagens indomáveis”; são hoje referências de nossa
cultura popular.

Com direção de Andrucha Waddington, o mesmo diretor de Eu, Tu Eles e


do documentário Viva São João e entrevistas e roteiro coordenados pelo
sociólogo Hermano Viana, o DVD traz o histórico reencontro da trupe
baiana, dentro da série Pão Music, do grupo Pão de Açúcar, ocorrido em
São Paulo e no Rio de Janeiro no final de 2002. O filme vai ser lançado
exclusivamente no formato DVD, não vai virar CD, não será exibido nos
cinemas e nem se trata da simples transposição dos shows para o vídeo.

O filme traz imagens das duas apresentações realizadas na Praça da Paz


do Parque do Ibirapuera e no posto 3 da praia de Copacabana, nos dias
7 e 8 de dezembro de 2002, respectivamente. Em meio às imagens dos
shows, Andrucha optou por inserir cenas dos nove dias de ensaios
gravados no estúdio Palco, no Rio, e trechos do filme Os Doces
Bárbaros, dirigido por Jom Tob Azulay, em 1976. A idéia de mesclar as
imagens dos bastidores com as do show era justamente captar a
familiaridade e o entrosamento dos artistas. Trata-se de um retrato
singelo e cinematográfico dos quatro baianos apresentados na
intimidade, comentando histórias do passado, preferências estéticas e
celebrando o reencontro.

Os quatro formam em cena uma espécie de unidade, ainda que cada um


tenha seguido caminhos artísticos específicos. O DVD permite não só
reviver canções que marcaram os anos 70, como testemunhar os
depoimentos dos artistas sobre a relação com a música naqueles
tempos. Vale lembrar que Caetano e Gil haviam retornado do exílio há
apenas quatro anos quando gravaram o álbum. Com visual hippie, ainda
sob forte impacto da revolução Tropicalista, os Doces Bárbaros
subverteram a ordem do Brasil de Geisel e abriram espaço para uma
nova geração de artistas ousados em suas propostas estéticas.

A contestação daqueles anos já não é mais a mesma nos dias de hoje,


mas as músicas interpretadas pelo grupo ainda transmitem a ousadia de
seus integrantes. Em entrevista a jornalistas, Caetano lembra que o
nome Doces Bárbaros nasceu a partir da provocação do jornal O
Pasquim, que acusava os baianos de terem invadido o Rio de Janeiro e
subvertido o cenário da música popular. Recorda-se da vitalidade da
turma do iê iê iê da Jovem Guarda e do preconceito que sofriam por
bossa novistas e pelos adeptos do samba jazz, entre eles, Elis Regina.

Bethânia, por sua vez, aponta ter sido sua a idéia de formar os Doces
Bárbaros. A cantora sentia saudades dos anos na Bahia antes do
estrelato, quando realizavam shows juntos ainda sob forte influência da
Bossa Nova.

No DVD, que conta com 12 faixas, os baianos reviveram canções como


Fé Cega, Faca Amolada, Os Mais Doces Bárbaros, O Seu Amor, Esotérico
- além das inéditas, compostas por Gil, Máquina de Ritmo e Outros
Bárbaros. Foram acrescentadas ainda as músicas Viramundo e Santo
Antônio que não integravam a trilha sonora original do álbum. O DVD
inclui também três faixas extras: Saudade da Bahia, Gênesis e Um
Índio, a primeira de autoria de Dorival Caymmi e as demais de Caetano
Veloso, compostas originalmente para o LP dos Doces Bárbaros.
Esotérico, de Gil, ganhou também um clipe inédito.

Publicado em www.biscoitofino.com.br
Acesso em 0212/2004.
Na lente do tempo
DVD documenta a reunião dos Doces Bárbaros
em filme superior ao show

A morna apresentação do grupo Doces Bárbaros na praia de


Copacabana, na noite de 8 de dezembro de 2002, resultou num DVD
caloroso, enfim nas lojas, dois anos após a reunião do quarteto. O
mérito é do diretor Andrucha Waddington, que, em vez de apresentar o
show na íntegra, optou por fazer documentário sobre o reencontro nos
palcos de Caetano Veloso, Gal Gosta, Gilberto Gil e Maria Bethânia.
Editado pela Biscoito Fino, o DVD Outros (Doces) Bárbaros costura
fragmentos do show com imagens dos ensaios do grupo e trechos da
entrevista coletiva dada pelos baianos para promover o show, realizado
também em São Paulo.

O vídeo capta o equilíbrio delicado entre quatro estrelas de


temperamentos fortes. Obviamente, a presença das câmeras no estúdio
inibiu eventuais egotrips, mas é uma delícia poder testemunhar as
pequenas discussões entre Gil e Bethânia para definir que parte caberia
a cada artista na apresentação da música Os Mais Doces Bárbaros. Gil,
aliás, contribuiu para o roteiro do show com duas inéditas. Apresentado
no DVD no ensaio, com Gil se acompanhando ao violão, o samba
sacudido Máquina de Ritmo, que cita nomes como Bando da Lua e
Kassin na letra, não é dos mais inspirados do compositor. A inspiração
se fez mais presente na melodiosa Outros Bárbaros, apresentada no
DVD em take dos ensaios e também em número do show carioca, nas
vozes dos quatro astros.
No estúdio, sem maquiagem e mais à vontade, os bárbaros discorrem
docemente sobre afinidades estéticas enquanto passam músicas como
Eu te Amo e O Seu Amor, do disco duplo editado em 1976 com o
registro de estúdio da turnê realizada naquele ano e que geraria
documentário de Jon Tob Azulay, restaurado e relançado nos cinemas
este ano. Aliás, o vídeo confronta imagens do filme de Azulay com takes
do reencontro de 2002, o que involuntariamente realça o tom
burocrático da reunião. Não foi à toa que o CD ao vivo com o registro do
show foi abortado pela gravadora Universal.

Outro confronto acontece no afetuoso dueto de Bethânia e Gal em


Esotérico, com Gil ao violão e Caetano, terno, pousado sobre os ombros
do amigo. Fora da esfera do palco, o DVD oferece cenas hilariantes
como a conversa no avião em que o quarteto avalia o show que fizera
em São Paulo. “Eu errei à pampa, mas gostei do show”, opina Bethânia,
já um pouco alta.

Em 74 minutos (os extras incluem Saudade da Bahia, Gênesis e Um


Índio), as lentes atentas de Andrucha Waddington mostram que os
Doces Bárbaros já são outros. Nisso reside o maior mérito do bem-vindo
DVD.

Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 15/12/2004.
PRODUZIDO POR DANIEL FILHO, NOVO DISCO DA
CANTORA FOI ADIADO DEVIDO AO APOIO AO ENTÃO
SENADOR ACM
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Amor e política são os dois pesos da balança no ato de lançamento de "Gal de


Tantos Amores", a mais nova obra artística da cantora baiana ex-tropicalista Gal
Costa, 55.
Tentando voltar a soar conceitual, ela chamou o diretor televisivo global Daniel
Filho para ajudá-la, com o arranjador Wagner Tiso, a centrar na palavra-chave
"amor" a escolha das 12 canções que decidiu interpretar, nenhuma delas inédita.
Foi o diretor de TV (e agora produtor musical) que sugeriu o amor como conceito.
Politicamente, Gal adicionou como bônus a única faixa inédita do CD, "Caminhos
do Mar", que não fala de amor, mas faz sucesso como tema de abertura da novela
também global das oito.
Mais política veio de enxurrada, desde que Gal se obrigou a adiar o lançamento
do álbum (sairia em junho passado), baqueada pela má reação pública a seu
apoio também público ao então arruinado senador Antonio Carlos Magalhães.
Política de arte e comércio fecha a equação. Acomodado entre repertório pouco
ambicioso, arranjos orquestrais emotivos e suaves tons interioranos, o disco é
pensado para reaproximar Gal, tida como intérprete sofisticada, de um público
brutalizado que parou de ouvir a sagrada MPB para consumir axé e pagode
romântico.
Seus discos têm vendido pouco, se se comparar com outras fases de Gal e com
os vendedores de milhão da era axé/pagode. Declarados pela gravadora BMG,
foram 480 mil exemplares do "Acústico MTV" (97), 140 mil de "Aquele Frevo Axé"
(98) e 330 mil de "Gal Costa Canta Tom Jobim" (99). Mais expressiva que as
vendagens é a relativa ausência de uma de nossas melhores cantoras do
imaginário popular recente do país.
Para complicar, uma Gal política de comportamento inocente útil associou ao
imaginário de sua arte o das falcatruas políticas que hoje dominam o Brasil. Seu
disco não será mais lido como mera e pura arte (ou comércio?), o que é uma
pena, se não um equívoco.
Mas, de onde está agora, Gal se faz metáfora viva, coberta pela inocência útil de
arranjos, melodias e letras de amor convencionais. A primeira faixa, por exemplo,
é a grande "Outra Vez", de Isolda, que Roberto Carlos tornou hino nacional de
amor em 77/78, embalando outra novela global dirigida por Daniel Filho.
Secundada por orquestra bem comportada, Gal canta "Outra Vez" num tom
sorridente de voz (se é que isso pode haver). O vocal emoldura um sorriso bobo,
que pode ser de amor ou paixão, mas pode ser também o de quem não pensa
bem no que está cantando ou falando. A ausência volta a assombrar o pacto entre
ela e nós.
Tudo se move aos solavancos, e o instante posterior ao de "Outra Vez" desfaz de
todo o sorriso bobo. Sem truques de orquestra, "A Última Estrofe" (de Cândido das
Neves, sucesso do início do outro século com Orlando Silva) vem em arranjo de
regional, com Henrique Cazes ao cavaquinho e muita delicadeza picando a voz da
dama. Ali Gal se esbalda, transborda, revalida o pacto.
Pena, também, é que momentos como o de "A Última Estrofe" sejam tão poucos
no CD. Algo parecido, mas com menor intensidade, até se dá na releitura de "O
Amor" (de Caetano sobre poema de Maiakóvski, gravado por ela em 81), em sua
adesão à parceria de Jorge Ben e Toquinho em "Que Maravilha" (71), talvez em
"Folhetim" (de Chico Buarque, que já cantara em 78).
De resto, os arranjos "amorosos" antiquados são de um desânimo atroz, mais
evidente ainda quando Gal reinterpreta dardos tropicalistas como a guarânia
"Índia" (já é a terceira vez) e a obra-prima de Jorge Ben "Que Pena (Ela Já Não
Gosta Mais de Mim)".
Extirpando de tais canções os gritos lancinantes que elas guardavam nos 60 e 70
e transformando "Que Pena" em reggaezinho fuleiro, é ela que suscita malvadas
comparações, não somos nós.
O descompasso acaba sendo de fundo conceitual, mesmo. Oculta-se a diva
tropicalista (essa nunca deixará de existir) atrás de uma cafonice calculada, que
possa ser vendida tanto como chique quanto como kitsch.
Em outras palavras, ela acende duas velas, em "Gal de Tantos Amores", e espera
ter Deus, o Diabo e a patuléia inscritos em seu fã-clube. Não dá certo, porque Gal
é dum tempo em que já existiam o amor e as posições políticas, mas os fãs
elegiam seus ídolos, e não o contrário. Volta, grande cantora.

Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 12/06/2004.
PUBLICADO PELA IMPRIMA COMUNICAÇÃO EDITORIAL LTDA.

ANO - 1981

DIRETORES
Oswaldo Biancardi Sobrinho
Vitor Biancardi
Reginaldo Ramos Moura

DIRETOR
Reginaldo Ramos Moura

JORNALISTA RESPONSÁVEL
Oswaldo Biancardi Sobrinho

CRIAÇÃO E PRODUÇÃO DE TEXTO


Carole Chidiac

COORDENAÇÃO DE REDAÇÃO
Edu Cruz

UMA NOVA GAL

Antes mesmo de surgir como a grande dama da tropicália, Gal Costa já havia sido
apontada por João Gilberto e Caetano Veloso como a maior cantora brasileira dos
últimos tempos. O público, assim que teve oportunidade de tomar contato com
Gal, não teve dúvidas em endossar a opinião dos dois mestres.
Unindo técnica vocal, sensualidade e desenvoltura em palco a um arrebatamento
confessadamente inspirado em Janis Joplin, Gal Costa conseguiu transformar-se
em ídolo da inquieta geração dos anos 60, além de intérprete predileta de Caetano
e Gil. E nessa posição de ídolo manteve-se até meados da década de 70.
Entretanto, recentemente, Gal parece ter preferido endereçar seu canto a um
outro tipo de público. Mais madura, sempre sensual e buscando nos antigos
mestres da MPB, material para seu atual repertório, ela atingiu uma camada mais
conservadora, menos afeita aos rompantes de palco e de letras. " GAL TROPICAL
" e " FANTASIA " - seus dois últimos espetáculos; em contraste com " FA-TAL ",
reconhecidamente seu mais expressivo show - primaram por uma produção
elaborada e cara, justificando as preferências de seu novo e bem pagante público.
Mudando basicamente o repertório e pisando palcos superproduzidos, Gal Costa
conseguiu acertar em novo alvo. Mas, como um tiro que sai pela culatra, acabou
desagradando a seus antigos admiradores que a preferiam em palcos mais
simples, mais acessíveis, interpretando canções que fossem mais ao encontro de
suas inquietações.
Ressalvadas as preferências de público, há, no entanto, que se reconhecer um
fato ainda incontestável: seja lá qual for o ouvinte para o qual ela tem se dirigido,
Gal continua sendo uma das melhores cantoras brasileiras.
Editado por - Ana Paula Ribeiro Maia em 23/03/2004 00:18:15

CONTINUAÇÃO DA PUBLICAÇÃO DA REVISTA IMPRIMA COMUNICAÇÃO


EDITORIAL LTDA.

QUANDO ELA ACABOU DE CANTAR, JOÃO GILBERTO DISSE:


" VOCÊ É A MAIOR CANTORA DO BRASIL "

Queria ser engenheira. Quem sabe até trocadora de ônibus. Mas sonho mesmo,
desses de ficar horas pensando sobre, desses que a gente deseja tanto que
acaba sendo realizado, era só um: ser cantora.

Um sonho incentivado muito por D. Mariah, sua mãe, que, sempre que tem
oportunidade, conta ter passado os nove meses de gravidez ouvindo rádio. Foram
mais ou menos assim os primeiros anos de sua vida de Maria da Graça Costa
Penna Burgos.

Não tinha cachorro, nem gato. Que se lembre, animal de estimação era uma
galinha chamada " boazinha ". Amarrava-a num barbante meio comprido e saía a
passear com ela pelas ruas do bairro da Graça, em Salvador.

Quando as coisas começaram a ficar difíceis, Gracinha teve que trabalhar. Não foi
ser trocadora de ônibus, também não tinha diploma de engenheira, mas nunca
deixou de ouvir seu rádio, e a paixão pela música foi crescendo com ela.

E quando resolveu que ia trabalhar pra ajudar nas despesas da casa, pintou um
emprego em uma loja de discos. Para Maria da Graça, juntou-se o útil ao
agradável. Na loja - pertencente ao Roni, que muitos, mas muitos anos depois,
promoveria na capital baiana o show Caetano & Chico - ela ficava sabendo de
tudo que era novidade dentro da música e dos lançamentos de discos.

Silvio Lamenha trabalhava como colunista social em Salvador. Um dia apareceu


na casa de Sandra e Dedé contando que estava com João Gilberto. A notícia
atingiu Gracinha como um raio. Aflita, pediu a Silvio que a levasse até João. E ele
concordou.

" Chegando lá eu o encontrei no pátio do prédio em que morava. Fui apresentada


a ele, que já tinha ouvido falar de mim. Perguntou-me se eu tinha um violão e eu
disse que sim. Propôs então que fôssemos para a casa de Silvio. Depois de
conversarmos um pouco, João pegou o violão e começou a dedilhá-lo. Eu,
extasiada com aquilo tudo, fiquei hipinotizada com o som que ele estava tirando.
Depois ele virou pra mim e disse para eu cantar " Mangueira ". E, por coincidência,
essa era uma música que eu estava cantando muito naquela época, assim de ficar
cantando em casa. Depois perguntou meu tom, eu disse Lá, aí eu cantei e ele não
disse nada, mandou eu cantar outra música e eu fui cantando. Quase todas do
repertório dele que eu conhecia de cor, com arranjos e tudo. Aí eu cantei, cantei,
cantei, e ele não dizia nada. E eu cantando, cantando... nervosa! E no final ele
disse assim: " Você é a maior cantora do Brasil. Se eu pudesse eu te levaria para
os Estados Unidos fazer um trabalho com você, mas agora não posso. "

" Ainda nesse dia, ele me levou pra casa, conheceu minha mãe, indagou se mais
alguém na família era ligado à música, pra saber aquela coisa de hereditariedade
musical e tal. Depois ele viajou e me escreveu uma carta dos Estados Unidos. Só
vim a encontrá-lo muitos anos depois, no Rio de Janeiro. Telefonei para o hotel
em que estava hospedado e pedi pra falar com ele. Perguntaram-me quem era e
eu disse " Gal Costa " ( porque eu já era cantora famosa ). Depois de esperar um
bom tempo; João atendeu o telefone e disse: " Gracinha! " Como sempre me
chamou. Perguntou onde eu estava, dei o endereço da minha casa e ele disse que
estava indo pra lá. Eram quatro horas da tarde. Chegou a uma hora da
madrugada. "

COMEÇO DE CARREIRA COM ALGUMAS DIFICULDADES. CHICO BUARQUE


DEU UMA FORÇA, LEVANDO-A ATÉ MARCOS LÁZARO.

E foi também, mais ou menos na época em que Gracinha conheceu João Gilberto
na Bahia, que ela veio a conhecer uma outra pessoa, também ligado à música,
mas nem um pouco famoso quanto João. Chamava-se Caetano Veloso.

" Foi porque a laisinha ( conta Caetano ) que era professora de dança de Dedé,
queria me apresentar uma menina que cantava bem. E aí marcou para eu ir
encontrar a Dedé, pra eu conhecer a vizinha dela que cantava bem. E então eu
fiquei conhecendo as duas. Elas contam que no princípio ficavam pensando com
quem eu iria namorar. As duas falavam que queriam namorar comigo. "

E este novo amigo ou futuro namorado de Gracinha teve de cara algo em comum
com João Gilberto. Os dois pensaram a mesma coisa a seu respeito, como conclui
Caetano: " No mesmo dia em que conheci Gal, logo que eu vi cantar eu disse: "
Você é a melhor cantora do Brasil. "

Depois de Caetano Veloso, Maria da Graça veio conhecer sua irmã, Maria
Bethânia; um outro rapaz que a esta altura já cantava na televisão nos programas
de Carlos Coquejo, chamado Gilberto Gil e a maioria das pessoas que transavam
música em Salvador.

" Na Bahia formávamos um grupo e já havíamos feito dois shows e estávamos nos
preparando pra fazer o terceiro. Foi exatamente quando Nara chegou à Bahia,
conheceu Bethânia, ficou encantada com ela e resolveu chamá-la para substití-la
no " Opinião ". Coincidentemente eu já tinha passagem comprada para ir ao Rio
de Janeiro. Não para trabalhar. Ia pra passear, fazer turismo. Eu só havia ido ao
Rio uma vez na vida, quando eu tinha seis anos. E a vontade de conhecer direito
era muito grande. "

" Foi então que Bethânia começou a trabalhar, a fazer sucesso e eu,
automaticamente, fui conhecendo as pessoas ligadas à música no Rio. Realmente
foi por causa de Bethânia. Foi ela quem puxou o grupo. Eu gravei uma música
com ela - " Sol negro " - em seu primeiro disco. Era uma música que Caetano
Veloso havia feito pra gente cantar e que nós duas já cantávamos nos shows da
Bahia ."

Com a música " Minha senhora " ( Gilberto Gil e Torquato Neto ), ela participou do
I festival internacional da canção. Seu primeiro LP aconteceu pela Philips, onde
cantava algumas faixas do disco Domingo em que também participava Caetano
Veloso. Antes disso, relembra: " Fizemos um espetáculo teatral, em São Paulo,
dirigido por Augusto Boal, onde Bethânia era a estrela principal e todos nós
participávamos como cantores e atores ( 1965 - Teatro brasileiro de comédia - "
Arena canta Bahia " ).

Uma época sombria surgiu para Gracinha. Quase que ela não agüenta e larga
tudo; desiste e volta prá Bahia. As coisas não estavam fáceis, o dinheiro era
pouco, nem dava pro aluguel. E, de repente, a angústia pintava brava. Chico
Buarque foi um dos que ajudaram-na muito. Levou-a até Marcos Lázaro que, por
sua vez, acertou vários programas para que ela participasse na TV Record de São
Paulo. Entre eles, " O fino da bossa " e " Aguinaldo Rayol show ".

Aí Guilherme Araújo achou que Maria da Graça não era nome de cantora. Pelo
menos não era um nome assim meio com pinta de nome de cantora. E optou por
Gal. Gal Burgos, não dava. Gal Penna também não. O que combinava mesmo era
Gal Costa.

No III festival de música da TV Record, Caetano Veloso e Gilberto Gil deram a Gal
uma música chamada " Divino maravilhoso ".

" Eu tinha uma tendência à busca do canto perfeccionista. Aquela coisa de João
Gilberto, né? Com o tropicalismo eu procurei explorar exatamente o outro lado do
meu canto, que era o canto rasgado, emocionado. Nessa época o que me
influenciou muito foi ter conhecido o trabalho de Janis Joplin, através do disco
Kosmic Blues.

" Junto com Caetano e Gil eu precisei também buscar uma coisa nova. Assim
como a bossa-nova deu outra visão para meu canto, o tropicalismo também veio
mexer comigo. Como eu estava começando a levar uma vida profissional, eu senti
mesmo uma necessidade de inovação ".
" Lembro-me que Gil quando estava fazendo o arranjo de " Divino maravilhoso "
perguntou-me de que maneira eu queria cantar a música. Eu disse que queria o
oposto do que vinha fazendo. Queria uma coisa explosiva. Fomos então para uma
salinha, escolhemos o tom. Gil começou a fazer o outro ensaio - já na TV Record -
ele se espantou. Disse: O que? quem é? Essa é Gal? Não é não! ".

1972: COMEÇA O SUCESSO NACIONAL

Mas era. E foi mais, como chamou a crítica " a primeira dama do tropicalismo ".
Gal Costa, como " Divino maravilhoso ", alcançou a popularidade de principal
intérprete do movimento tropicalista e o terceiro lugar naquele festival.

Só depois de tudo isso é que, finalmente, Gal Costa teve seu primeiro LP
individual lançado pela Philips. Depois, show em São Paulo, no Teatro de Arena,
produzido por Guilherme Araújo.

Seguiram-se uma temporada na boite sucata, no Rio de Janeiro e uma série de


espetáculos em várias cidades do país. Voltou a apresentar-se em São Paulo em
fins de ' 69, cantando ao lado de Macalé, no Teatro Oficina, em show que teve
produção de Capinam.

Perseguidos, presos e de cabelos raspados, seus amigos Caetano e Gil


amargaram uma solitária que durou dois meses no Rio de Janeiro. Tiveram ainda
seis meses de prisão domiciliar na cidade de Salvador. Fim do tropicalismo.
Instituição do AI-5. Um show de despedida no Teatro Castro Alves e os dois
principais compositores de Gal deixavam o país. Exilados.

" Eu me senti perdida, me senti violada, roubada. Muita angústia, tristeza, raiva. E
risco. Lembro-me que fiquei muito abalada. Lembro-me também que eu cantava a
música " Se você pensa " em homenagem
a eles ".

Mas eu sentia que cantava muito em nome deles também. Como se estivesse
gritando por eles. Uma coisa muito de irmão mesmo. Isso estava muito claro pra
mim, pra minha cabeça. Eu sempre ia lá, visitá-los. Sempre ficava assim por uns
dois meses. Na primeira vez que revi Caetano ele cantou " London, London ". Eu
me apaixonei e trouxe para gravar ".

Editado por - Ana Paula Ribeiro Maia em 06/04/2004 01:35:39

De volta ao Brasil, nova apresentação na boite sucata, no Rio, lançando com êxito
a música "London, London". Seu LP Legal teve nesta e na música "Deixa sangrar"
dois de seus maiores sucessos.
Paulo Lima, Hélio Oiticica e Duda transaram para Gal o show "Deixa sangrar" que
estreou no teatro opinião, no Rio de Janeiro. Depois, foi encenado em diversas
capitais, entre elas São Paulo, no teatro vereda.

Em uma de suas visitas no Brasil, João Gilberto concordou em fazer um programa


musical para a televisão Tupi. Foi um dos maiores encontros de música popular
brasileira na época, já que dele também participaram Caetano Veloso, chegado de
Londres para breve estada no Brasil, e Gal Costa. O que lamenta-se hoje em dia é
que o tape deste importante documento músico-cultural, não se encontra mais nos
arquivos da emissora, que ainda quando funcionava declarou que o tape "havia
sido apagado", dando uma prova de total falta de respeito à memória cultural do
Brasil, que sempre foi paupérrima.

1972 foi o ano que todos são unânimes em afirmar como marco para a carreira de
Gal Costa, que conseguiu seu amadurecimento como artista quando esteve em
cartaz no Rio de Janeiro com o show "FA-TAL", dirigido por Waly Salomão.

"De certa forma, Waly Salomão foi responsável por meu impulso teatral, assim
como de certa forma Bethânia também foi responsável. Porque, na época que eu
fiz "FA-TAL", ela estava fazendo "Rosa dos ventos". Ela estreou antes de mim, e
quando eu assisti ao seu show fiquei louca. E passei a assistí-lo praticamente
todas as noites. Pô! Mas eu chorava tanto! Era a coisa mais linda que eu tinha
visto na minha vida. Bethânia me deu muita coisa pra fazer o "FA-TAL". Coisa de
pique mesmo. Assim como Janis me deu na época do tropicalismo".

Esse propalado amadurecimento musical se confirmaria no seu próximo show:


"India", também com direção de Waly Salomão e supervisão geral de Guilherme
Araújo. Entre outras, Gal cantava as músicas "Maracatú atômico", "Ave Maria no
morro" e "Desafinado". Consciente de sua sensualidade em palco, ela a mesclava
à sua técnica e à percussão de Alberto das Neves para interpretar "Milho verde"
(Folclore português), que deixava a platéia em transe.

A época também coincidia com um espetáculo de música popular brasileira, então,


promovido pela gravadora Phonogram. Chamava-se "Phono 73". Nele, Gal Costa
apresentou uma nova roupagem para a música "Trem das onze" de Adoniran
Barbosa. Alcançou um estrondoso sucesso em todo o Brasil. Tão grande quanto a
gravação antiga, originalmente feita pelos Demônios da Garoa.

Afora isso, pela primeira vez depois de consagradas, Gal e Bethânia


apresentaram-se juntas: foi na música "Oração à Mãe Menininha", do também
baiano e genial Caymmi. A exemplo de "Trem das onze", a música era tocada
incessantemente em todas as rádios. Novo sucesso das baianas.

"Caetano ia dirigir o "India". Já estava tudo acertado. Mas, na última hora, ele não
pôde. Nem me lembro direito quais foram as razões. Mas ele acabou dando
muitas idéias para o show. Sugeriu que eu cantasse "India", que meu pai cantava
muito. Mandou algumas músicas da Bahia como "Da maior importância" e fez
"Relance" junto com Pedrinho Novis, especialmente prá mim".

Depois Gal Costa jogou-se corajosamente em uma das maiores maratonas de sua
carreira: um circüito universitário que compreendeu a maioria das cidades do
interior paulista e do Paraná.

Voltando ao Rio com grande popularidade, Gal lança então o disco Cantar que
não chegou a fazer o mesmo sucesso de India e que, segundo Gal, não foi muito
entendido por seu público.

"Cantar" era um show que eu gostava muito e é um disco que até hoje adoro;
quando ouço me emociono. Mas foi uma fase difícil na minha carreira. Foi o disco
que menos vendeu e o show que mais críticas contrárias recebeu e, se não me
engano, também foi o show que menos público teve".

"Eu mostrava um lado da cantora que sou e que o grande público desconhecia.
Naquela época meu público era constituído 99% de jovens. E eles conheciam o
outro lado do meu canto que era o "FA-TAL" e aquelas coisas extrovertidas que eu
fazia. Então meu público, de uma maneira geral, rejeitou aquele espetáculo. Não
gostou. Mas foi uma fase importante, porque desde "FA-TAL", passando por
"India" e chegando a "Cantar", houve uma transição muito clara em minha
carreira".

Publicado em www.galcosta.com.br, acesso em 15/06/2004.


O Fuxico
02/09/2003

Gal Costa canta sucesso do Chiclete com Banana

Gal Costa mostra porque é uma cantora completa. Após perder a cantora para a
Indie Records, a BMG vai lançar um CD com pérolas que foram gravadas por Gal
entre os anos de 1984 e 2001. Um dos destaques é a música "Cabelo
Raspadinho", cantada pelo Chiclete com Banana, que foi eleita a melhor música
do Carnaval de Salvador, no melhor estilo da axé music, além de "Alto Lá", um
samba de Zeca Pagodinho.

Por: AT

Publicado em www.galcosta.com.br, acesso em 15/06/2004.


Musibrasil.net
27/04/2003

Recensioni CD & Cronache concerti


Giangiacomo Gandolfi

Difficile dire cosa sia esattamente che provoca il fallimento degli ultimi album di Gal
Costa, da qualche anno a questa parte. Le aspettative alte, forse. Oppure una
indubbia perdita di originalità nella scelta del repertorio e negli arrangiamenti.
Certamente la scelta di difendere la proprie posizione di icona sacra del pop
brasiliano evitando i rischi, le scommesse, il mettersi in gioco come a inizio
carriera. E’ il caso anche di questo "Bossa Tropical", in cui Gal si trincera dietro la
solita ricetta eclettica di mescolare vecchi classici ("O Amor em Paz", "The Fool on
the Hill"), vecchio rock ("Mulher" di Narinha), nuovo rock ("Socorro" di Antunes),
umori bahiani ("Cada Macaco no seu Galho") e strizzate d’occhio agli standard
americani ("As Time goes by"). Apparentemente non ci sono grossi salti rispetto
alla politica tropicalista ortodossa e forse il punto è proprio questo: al mutare del
contesto, all’evolvere della tecnica e della sensibilità di pubblico e compagni
musicisti, questo eccesso di staticità uccide arte e fantasia. Non ha senso
riproporre ora il cocktail di sempre: suona stonato, datato, conservatore. E
purtuttavia qualche cambiamento, l’impietosa patina degli anni, si avverte. La voce
di Gal, più matura e controllata, si è però come inacidita, inspessita, ha perso
quella sua incantatoria dolcezza e trasparenza cristallina. Triste doverlo
constatare. Detto questo, il lettore può avere avuto l’impressione che "Bossa
Tropical" sia un album brutto, da evitare. Non è così. Si tratta solo di un album che
non aggiunge nulla, un pochino sottrae, ma resta in buona sostanza piacevole e
ascoltabile, a patto di non richiamare alla memoria i capolavori degli Anni ’60 e ’70
e qualche perla episodica dei decenni successivi. Un album come potrebbero
produrlo molte altre cantanti attuali del panorama brasiliano, ed è forse questo che
rimane difficile da perdonare. "Mulher", "Cada Macaco no seu Galho" e "Epitafio" di
Chico Cesar sono gli episodi più felici e tentano come possono di riscattare l’alone
di sottile opacità che aleggia su tutte le track.

Traduçao Giorgio/Itália

Difícil dizer o que é exatamente que provoca a falha dos últimos álbuns de Gal
Costa, há alguns anos. As altas expetativas talvez. Ou uma clara perda de
originalidade na escolha do repertório e nos arranjos. Certamente a decisão de
defender a própria posição de ícone sagrado do pop brasileiro, evitando os riscos,
as apostas, e colocar-se no jogo como no começo da carreira. É o caso também
desse 'Bossa Tropical' em que Gal se entrincheira atrás da habitual receita
eclética de misturar velhos clássicos ("O Amor em Paz", "The Fool on the Hill"),
velho rock ("Mulher" de Narinha), novo rock ("Socorro" de Antunes), jeito baiano
("Cada Macaco no seu Galho") e piscadas de olho aos standards americanos ("As
Time goes by"). Aparentemente não há grandes saltos a respeito da política
tropicalista ortodoxa e talvez o ponto esteja próprio aqui: mudando o contexto,
desenvolvendo-se tanto a técnica quanto a sensibilidade do público e dos colegas
músicos, esse excesso de estatismo mata a arte e a fantasia. Não tem sentido
tornar a propor agora o cocktail de sempre: toca desafinado, datado, conservador.
E contudo percebe-se alguma mudança, a impiedosa pátina dos anos. A voz de
Gal, mais madura e conferida, é mais grossa; perdeu a sua doçura encantadora e
a sua transparência cristalina. É uma triste constatação. Tudo isso não quer dizer
que 'Bossa Tropical' é um CD feio: não é assim! Trata-se apenas de um álbum
que não acrescenta nada de novo, um pouco subtrai sim, mas sustancialmente
permanece agradável, com quanto que não se lembre as obras primas dos anos
60 e 70 e alguma pérola episódica das décadas seguintes. O que talvez seja difícil
de perdoar é que esse é um álbum que poderia ser realizado por uma qualquer
das outras cantoras brasileiras de hoje. "Mulher", "Cada Macaco no seu Galho" e
"Epitáfio" são os episódios mais felizes e que podem resgatar o elo entre todas as
outras músicas.

Publicado em www.galcosta.com.br

Acesso em 17/07/2004.
O Dia
Coluna Estúdio - Mauro Ferreira
25/02/2003

Phono 73 em DVD
As imagens do histórico show Phono 73 - que reuniu em 1973 todo o elenco da
antiga gravadora Phonogram, incluindo Caetano Veloso, Chico Buarque, Elis
Regina, Gal Costa e Maria Bethânia - estão sendo recuperadas para lançamento
em DVD. Em 1997, a gravação do show - feita ao vivo no Palácio das Convenções
do Parque Anhembi, em São Paulo (SP) - foi reeditada em coleção de três CDs.
Um dos antológicos números musicais foi o dueto de Gal e Bethânia em Oração
de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi.
O GLOBO
SEGUNDO CADERNO

Rio, 24 de outubro de 2004 Versão impressa

Depois da meia-noite
Antonio Carlos Miguel

Uma insuspeitada memorialista está quicando na área, mas tão cedo seus textos
não devem virar livro. Textos como os que o GLOBO publica com exclusividade e
aos quais Gal Costa tem dedicado muito de suas madrugadas.— Nunca durmo
antes das quatro da manhã, e quando a casa se acalma, depois da meia-noite,
fico no computador escrevendo — conta Gal, que, menina, gostava de fazer
redações, mas só retomou o hábito nos últimos anos, quando aderiu ao
computador e à internet. — Escrevo há algum tempo, sem uma ordem
cronológica. São fragmentos da memória que separo por temas. Não sei como
será o livro, alguém terá que organizar os textos, mas é cedo, só pretendo editá-lo
quando ficar velha (risos) . Antes disso tenho muitos projetos.

Projetos que, provavelmente, renderão muitas outras histórias para o futuro livro.
Empolgada com os novos rumos de sua carreira, a cantora, que na semana que
vem, entre os dias 28 e 31 de outubro, volta ao Canecão com o show “Todas as
coisas e eu”, no momento negocia sua transferência para a gravadora Trama e
planeja um novo disco.

— Depois de dois meses de conversas, o contrato está pronto, chegamos a um


acordo e devo assiná-lo na semana que vem. Já tenho o próximo disco delineado,
mas fico com medo de falar, o que posso adiantar é que será com repertório
inédito, estou pedindo músicas às pessoas — diz Gal, que em seu CD anterior,
que dá nome ao show atual, reviu clássicos da canção brasileira pré-bossa nova,
mas filtrados pela batida do violão e pelo canto de João Gilberto.

A experiência de mergulhar no passado — tanto musicalmente quanto nos textos


memorialísticos — parece funcionar como uma auto-análise e pode explicar muito
da boa fase da cantora. Mas usar da escrita para superar suas dúvidas e
frustrações não é novidade, e sim algo que Gal já experimentara na juventude,
antes de sair de Salvador:

— Eu tinha uns 19 anos, estava com Caetano, Dedé e Piti na Rural Willys de um
amigo, quando furou o pneu e o carro rolou pela ribanceira — conta. — Como a
gente vinha devagar, ninguém se machucou, mas fiquei muito traumatizada com o
acidente. Então, outro amigo sugeriu que fizesse algumas sessões de análise,
mas como eu ficava completamente travada e não conseguia falar nada, o
psicanalista pediu que eu escrevesse. Passei a registrar tudo, inclusive os meus
sonhos. Certo dia, Caetano me viu com uns papéis na mão, perguntou o que era,
pediu para ler e adorou, disse que escrevia muito bem e que deveria continuar
com aquilo.

Gal não seguiu o conselho do amigo — que depois iria se tornar seu principal
compositor — mas se o Brasil perdeu naquela época uma escritora promissora,
ganhou uma de suas melhores cantoras. Nos trechos de suas memórias ela revela
a premonição que teve na adolescência de que seria famosa, e conta que até hoje
tem antevisões. Um dom que, no entanto, não costumava falar para ninguém,
“porque receio que, se contar, essa espécie de encantamento poderá se partir e
impedir a sua realização”.

Histórias de suas primeiras experiências profissionais em São Paulo, quando foi


apresentada por Chico Buarque a empresários da época; de como deu sua
guinada tropicalista, surpreendendo até Caetano; ou da cumplicidade dos Doces
Bárbaros, que, juntos, formariam “uma quinta energia”; são lembradas, num estilo
que mistura leveza e profundidade. Como na letra da canção “Divino maravilhoso”,
o que se revela a partir desses textos é uma Gal Costa atenta e forte.

— Está sendo maravilhoso, escrever é um prazer indescritível — garante.

Perdida em São Paulo, Gal pensou em voltar para Salvador

A QUASE FUGA São Paulo no início foi barra. Acontecia tudo com os outros.
Comigo nada. Desanimei, não vi mais sentido de ficar naquela cidade enorme,
perdida, nada acontecendo. Decidi voltar para a Bahia. Chamei Dedé e disse:
“Vou-me embora”.Dedé foi para casa, naquele tempo na São Luís, contou para
Caetano que eu iria embora. Ele, mais do que depressa, disse: “Diga a ela para
não voltar. Ela tem que ficar”. Fiquei.

OS DOCES MONGES Gil disse uma vez que nós quatro, Gil, Bethânia, Caetano e
eu, somos um. Os Doces Bárbaros. As quatro entidades são independentes, mas
juntas, formamos uma entidade única. Somos os quatro fortemente
espiritualizados. Temos uma estranha comunhão de espírito. Juntos, formamos
uma quinta energia. Com Caetano, principalmente, parece que nos conhecemos
há 180 anos. Ou há milênios. Digamos até em vidas passadas, quem sabe?Num
programa de TV, nos anos 80, Caetano disse que nós tínhamos uma identificação
musical: como se dois monges tivessem uma iluminação ao mesmo tempo e não
precisassem dizer nada um ao outro para serem entendidos. E essa iluminação,
esse ponto de luz, de contato, seria João Gilberto, nossa origem musical.Meu
primeiro disco, “Domingo”, foi isso: uma comunhão total, nós dois éramos um só,
eu me sentia a voz de Caetano. Creio que ele também sentia isso.Mergulhei com
ele no tropicalismo, fiz “Fatal”, “Índia”, com forte acentuação desse movimento. Foi
quando resolvemos mudar um pouco a história. Caetano queria que mostrasse a
minha essência de cantora. E veio o “Cantar”. Nem o show nem o disco
emplacaram. Foi uma mudança radical. Neles eu recolhia as minhas feras, as
minhas garras, e partia para mostrar um lado mais legitimamente meu.Com o
fracasso do “Cantar” fiquei retraída, entrei em crise, três anos sem fazer nada.Foi
quando Roberto Menescal me sugeriu cantar Caymmi. Deu certíssimo. Levamos o
show a Buenos Aires. Lá estava Guilherme Araújo, que, durante o show, teve a
idéia de realizar o “Gal tropical”, que viria a dar um rumo definitivo na minha
carreira. Ao mesmo tempo eu tinha mais uma das minhas premonições: a certeza
de que o show iria ficar um ano em cartaz. Ficou um ano e dois meses no
Rio.Caetano estava de férias na Bahia e veio ao Rio assistir ao show. Chegou aos
prantos ao camarim. Aos soluços. Não conseguia falar uma palavra. Tempos
depois me telefona dizendo querer falar comigo. Em casa, os dois sentados na
minha cama em posição de lótus, ele me dizia que não gostara, que o show era
careta, mas que não poderia comentar isso em público, pois o “Tropical” era uma
unanimidade nacional e não ficava bem para ele ir contra a corrente.Fiquei
arrasada. Apesar de toda a crítica ter posto o show nas alturas, de todos os meus
amigos, meus colegas, todos me cobrirem de elogios, Caetano ali na minha frente,
justo ele que era a opinião mais importante para mim, dizia não ter gostado.Só
agora, mais de 20 anos depois, entendo as lágrimas dele no camarim. Naquela
hora ele percebeu que nascia uma nova Gal, que ele perdia a sua criatura, que eu
poderia partir para sempre sendo eu mesma. Como um pai que via a sua filha sair
de casa. Livre e independente.Livres e independentes, mas ainda juntos
iluminados. Como dois monges. (Gal Costa)

Janela da Graça

Gal Costa

Uma vez, quando criança, tive uma premonição muito forte. Morava na Graça
numa casa muito simples. Dedé e Sandra (irmãs que foram casadas,
respectivamente, com Caetano Veloso e Gilberto Gil) moravam em frente. Tinha
duas janelas e um portão. Estava sentada numa das janelas lendo um gibi,
quando passou do outro lado da rua um rapaz, um cantor, que cantava na
televisão local da Bahia. Era uma televisão bem irregular com programas ruins e
alguns bons, como o do Carlos Coqueijo, por exemplo.

Eu me lembro que a rua toda correu, meus amigos, meus colegas, todos correram
para o cara com pedaços de papel na mão pedindo autógrafos. E pensava: “Que
coisa sem sentido. Um pedaço de papel, que importância tem a assinatura de um
cara num pedaço de papel? Que coisa ridícula”.

Ao mesmo tempo explodiu uma intuição que me mostrou exatamente na situação


dele, dando autógrafos. Foi uma premonição extraordinária. Deveria ter uns 12, 11
anos, talvez menos. Foi um acontecimento muito forte. Mas não comentei com
ninguém. Guardei dentro de mim porque achava que as pessoas poderiam achar
loucura. Como essa, tive muitas outras antevisões. Tenho até hoje. E até hoje não
conto para ninguém porque receio que, se contar, essa espécie de encantamento
poderá se partir e impedir a sua realização.
BOLINHO DE FUBÁ Chico (Buarque) não se lembra de nada. Mas foi ele mesmo
que me introduziu à diretoria da TV Record. Naqueles dias, Chico e Nara faziam
“”Pra ver a banda passar”, um dos vários programas de música popular brasileira
que a Record exibia semanalmente.

Cheguei ao Rio com a minha mãe em férias, coincidindo com a estréia de


Bethânia no lendário show “Opinião”. Lembro-me que assisti aos prantos.
Bethânia era magra e, carregada de emoção, vergava o corpo com uma
flexibilidade de vara verde, parecia que ia quebrar. A platéia enlouquecia. Voltei
para a Bahia só pensando em vir para o Rio morar. Pedi um dinheiro emprestado
a um primo que, quando soube que era para eu vir para o Rio virar cantora,
recusou. Outro primo, porém, foi mais justo e lá vim eu com trezentos e poucos
não sei o quê. Nossa moeda já mudou tanto que não sei precisar.

Feliz da vida, consegui uma vaga numa kitchenette na Sá Ferreira onde só podia
dormir e tomar banho. O resto do dia era passado em casa de primos, amigos e
da turma da MPB.

Chico apresentou-me então o seu empresário Roberto Colossi e, por sua


indicação, lá fui eu a São Paulo mais Chico falar com o bambambã da Record, o
Marcos Lázaro, uma figura gorda, argentino, fumava um charutão com aquela
presença dominadora dos nossos vizinhos do sul. Chico havia me aconselhado a
pedir um bom cachê. Mas com aquela presença grandalhona e forte à minha
frente, tímida como eu era, aceitei a merrequinha de cachê que me ofereceram.
Fiz o programa do Chico com a Nara, depois o “Fino da Bossa”, com o Jair
Rodrigues e a Elis Regina, e um programa do Agnaldo Rayol... Enfim, conseguia
um dinheirinho. Com isso saí da vaga da Sá Ferreira e aluguei um quarto — só
para mim — no Solar da Fossa. O banheiro era fora. Moravam lá: Caetano,
Paulinho da Viola, Rogério Duarte... Foi um início difícil mas que me traz boas
recordações, por mais difíceis que possam ter sido. Como o dia em que não tinha
nada para comer, dinheiro nenhum, apenas um vale de casco vazio de uma Coca-
Cola. Foi o que me salvou: com ele consegui um leite gelado e um bolinho de
fubá...

O DIVINO MARAVILHOSO Naquela época convivia com todo o ambiente


tropicalista. Só falávamos dos movimentos novos que surgiam no mundo. Gil
ouvia Hendrix o dia inteiro. Janis Joplin não saía da minha cabeça. Aquele som,
aquele rasgo de voz foi me tomando de uma forma que criou em mim uma
necessidade de fazer alguma coisa diferente do que eu acreditava, de tudo o que
já fizera e de como eu entendia a música até então. Eu era muito radical, gostava
de pouquíssima coisa. João (Gilberto) era meu ídolo e nada, quase nada passava
pela minha peneira. Não gostava de iê-iê-iê, nem da jovem guarda, de nada.
Precisava fazer alguma coisa para me expressar, botar pra fora o que eu sentia,
com força, atitude, e que, falando francamente, chamasse a atenção sobre mim.

Gil e Caetano envolveram-se de corpo e alma com essas novas experiências da


música popular brasileira. E dentre essas pesquisas me deparei com “Divino
maravilhoso”, uma canção que mexeu comigo. Caetano convidou-me para cantá-
la no Festival da Record e Gil se propôs a fazer o arranjo. Ele foi tão perspicaz
que me perguntou como é que eu queria cantá-la. Expliquei que queria cantar de
uma forma nova, explosiva, de uma outra maneira. Queria mostrar uma outra
mulher que há em mim. Uma outra Gal além daquela que cantava quietinha num
banquinho a bossa nova. Queria cantar explosivamente. Para fora.

Gil fez então o arranjo para o “Divino maravilhoso”.

Quando Caetano me viu pisar o palco cheia de penduricalhos e espelhinhos


pendurados no meu pescoço, aquela cabeleira afro armada por Dedé, quase
morreu de susto. Ele não sabia de nada. Não tinha escutado o arranjo do Gil,
nada, nada. Cantei com toda a fúria e força que havia em mim. Metade da platéia
se levantou para vaiar. A outra metade aplaudiu ferozmente. Um homem na minha
frente berrava insultos. Foi então que me veio ainda uma força maior que me
atirou contra ele. Eu cantava diretamente para ele: “É preciso estar atento e forte,
não temos tempo de temer a morte!” Cantava com tanta força e tanta violência
que o homenzinho foi se aquietando, encolhendo-se, e sumiu dentro de si mesmo.
Foi a primeira vez que senti o que era dominar uma platéia. E uma platéia
enfurecida como aquela. Naquele tempo de polarização política, a música era a
única forma de expressão. Despertava paixões, verdadeiras guerras. Saí do
“Divino maravilhoso” fortalecida, crescida. Acho que naquela noite entrei no palco
adolescente, menina, e saí mulher. Sofrida, arrebentada, mas vitoriosa.

IN: www.galcosta.com.br, acesso em 26 de outubro de 2004.


" A brasileira GAL COSTA, 40, é o modelo perfeito de cantora
contemporânea. O Diminutivo GAL, como ela é conhecida, mistura ritmos
brasileiros tradicionais com o "Soft rock" para criar um som forte chamado
"Tropicália". Nos 18 LPs durante duas décadas, sua voz cristalina, que pode
alcançar bem mais que duas oitavas, igualou a alta sociedade com os
trabalhadores. Uma cantora auto-ditada, vinda do estado nordestino da Bahia, ela
ganhou oito Discos De Ouro e três de platina desde 1968: cada álbum continha
pelo menos um compacto bem colocado nas paradas. Seu último álbum, BEM
BOM, vendeu 380.000 cópias em três meses. Embora cante quase que
exclusivamente em português, GAL se adapta às tendências internacionais: no LP
de 1984, PROFANA, ela incorporou o hit de Stevie Wonder "Lately". Ela é tão
popular no Brasil que frequentemente se apresenta para multidões de 10.000
pessoas ou mais. "Fora do palco sou muito quieta", diz ela. "Mas no palco eu sou
toda. Eu estou com vigor e brilho total".

A VOICE TO THE WORLD


GAL Costa é a nossa "melhor voz para exportar". E o sucesso que tem alcançado
em palcos da Europa e Estados Unidos ratificam suas possibilidades como
cantora. A grande virada de GAL aconteceu em 1984, quando lançou PROFANA,
o 17º Lp de sua carreira, o primeiro na RCA, em que retoma o clima da tropicália.
A RCA lançou PROFANA na Argentina, Japão e França. Os contratos para
apresentações no exterior começaram a chover. Na época, GAL COSTA explicou
que não estava trabalhando uma carreira no exterior, mas apenas aceitando
convites que há cinco anos havia recusado. Em maio de 85, apresentou-se em
Buenos Aires, na Argentina, onde lotou durante cinco dias o Teatro Rex, em seus
3.200 lugares, sendo saudada como "la voz del Brasil".Em junho deste mesmo
ano apresenta-se no Carnigie Hall, merecendo o seguinte comentário da Revista
Time: "Uma das grandes divas da música pop atual", ao estilo de nomes como
Sade Adu, Kate Bush e Whitney Houston. Em julho de 85, participou de Jzaa de
Montreaux.
A GRANDE ESTRELA DA MPB
Com BEM BOM 18º LP e o segundo na RCA, lançado em dezembro de 85, GAL
COSTA assume o seu lugar de grande dama da voz. GAL COSTA iniciou o ano de
1986 com mais de 600 mil cópias vendidas de BEM BOM e com o LP PROFANA
esgotado na Argentina. Com exceção do Rio e de São Paulo, excursiona por todo
o Brasil, e atendeu a convites para shows no exterior. E, julho de 1986, GAL
apresentou-se no Festival "Couleurs Brésil", que inaugurou o projeto cultural
França-Brasil, ao lado de Djavan, numa noite memorável. Apresentou-se em
seguida em Portugal, alcançando um grande sucesso. "Um Dia De Domingo",
faixa que divide com Tim Maia e que consta do LP de 86, permaneceu em
primeiro lugar das paradas portuguesas durante meses. Um fato inédito no top
portugês, pois nenhum outro artista havia antes conseguido tal façanha. Em
Portugal, muitos presentes, aplauso do público e da crítica e diversas
homenagens. Ela recebe, da Câmara Municipal do Porto, a MEDALHA DE
PÓVOA DO VARZIM e, por vendagens superiores a 60 mil cópias de BEM BOM,
GAL COSTA OBTÉM um Disco de Prata, um disco de Ouro e um de Platina.
Atualmente, esse número gira em torno das 80 mil cópias. O ano de 86 não podia
terminar melhor. Convidada por Tom Jobim, apresentou-se com ele, no dia, no dia
1º de dezembro, no Festival "Jazzvision", onde também se apresentaram outros
artistas de renome internacional. O Jazzvision aconteceu em Los Angeles, no
Wiltern Theatre, em duas etapas: a primeira de 01 a 05 de dezembro e a outra de
08 a 12 de dezembro. Em 1987 GAL excursionou pelo Brasil, foi a Portugal, se
apresentou em Buenos Aires, e, ao lado de Tom Jobim, brilhou no Lincoln Center
em Nova York, na noite de novembro que marcou os 25 anos da primeira
apresentação da Bossa Nova nos Estados Unidos. Nesse momento, GAL é uma
das maiores vendedoras de discos na Argentina e Portugal. Nesses dois países,
GAL lidera as pesquisas de vendagem e de execução.
Até o momento, foram lançados no exterior, os seguintes discos:
PROFANA:
Argentina(1985), Japão(1985), Venezuela(1985), Espanha(1985), Itália(1985)
Israel(1985), Portugal(1985),, Chile(1985), Uruguai(1985), Perú(1985),
França(1986).
BEM BOM:
Argentina(1986), Portugal(1986), México(1986), Espanha(1986), Israel(1986),
Uruguai(1986), Venezuela(1986), França(1987), Japão(1986).
LUA DE MEL COMO O DIABO GOSTA:
Portugal, Argentina e Estados Unidos.
PLURAL:
U.S.A, Portugal, Argentina, Venezuela, Espanha, Porto Rico.
Reportagem de 07 de Abril de 1986.

Publicado em www.galcosta.com.br

Acesso em 15/11/2003
ISTOÉ -
Gal Costa e Caetano Veloso (Metropolitan, Rio de Janeiro, dia 8, e Concha
Acústica do TCA, Salvador, 14 e 15) - Não é sempre que se tem oportunidade de
ver reunidos no mesmo palco duas das maiores estrelas da música brasileira. A
chance veio a propósito do lançamento da trilha sonora do filme Tieta do Agreste,
de autoria de Caetano com participação de Gal. Todo o show é feito em cima de
músicas marcantes do cinema nacional. Tem desde a trilha em questão, passando
por uma revigorada À flor da pele, em ritmo acelerado pelos ótimos tambores da
Didá Banda Feminina, até a belíssima música de Porto das caixas, composta por
Tom Jobim. Caetano Veloso, sempre um ótimo cantor, poderia muito bem poupar
a platéia da chatice de comentários dispensáveis. Sua atitude só confirma o que a
partir da terceira música se desconfia. O espetáculo é de Gal Costa, a melhor
cantora. Principalmente depois que ela interpreta, com os arranjos originais, as
definitivas Vapor barato e Baby.
VALE A PENA

Publicado em www.galcosta.com.br

Acesso em 02/03/2004.
Gal Costa diz em Nova York que gravadoras
desprezam a MPB
LUÍS ANTÔNIO GIRON
Enviado especial a Nova York
A cantora baiana Gal Costa, 49, mostra hoje, no Carnegie Hall de Nova York, seu
show ``Mina d'Água do meu Canto". Os ingressos para o espetáculo se esgotaram
há uma semana.
É uma das maiores atrações do JVC Jazz Festival, tradicional evento de verão
que anima a cidade durante dez dias.
``Já tenho um público cativo aqui", diz Gal, no lobby do flat Del Monico, na rua 59,
perto do Central Park. ``Já não fico ansiosa com uma estréia. É como se eu viesse
para cá fazer uma festa. Não é como no Brasil, onde temos uma história, e cada
show tem um enorme significado."
O espetáculo compreende um repertório de clássicos de Caetano Veloso e Chico
Buarque. Uma banda de sete músicos dá conta de arranjos camerísticos,
tendendo para o orquestral, a cargo do diretor artístico do show, o violoncelista
Jaques Morelenbaum.
``Mina d'Água do meu Canto" é também o nome do novo CD de Gal, que foi
lançado com o show em 10 de maio no teatro Castro Alves em Salvador,
percorreu o Nordeste e aterrissou em San Francisco no último sábado. Gal cantou
lá para 2.000 pessoas.
``Tinha muito americano na platéia", comenta. ``Nas minhas turnês tenho notado
que os estrangeiros vão aprendendo aos poucos a cantar nossa música em
português. A MPB ensina os outros povos a falar português. A música brasileira
vai salvar o português do esquecimento porque difunde a língua através das
canções."
Apesar do sucesso de público e da carreira consolidada, Gal não viu seu disco
nas lojas de San Francisco.
``Fiquei chateada porque noto que as gravadoras não se dão conta da importância
da música brasileira no exterior. É o nosso grande produto de exportação, mas as
gravadoras desprezam o que têm. Elas deveriam investir nos lançamentos dos
CDs brasileiros no exterior, mas não o fazem."
Ficou de olhar se o novo CD está nas lojas de Nova York no passeio que faz hoje
pela cidade. ``O que eu mais gosto daqui é a sensação de anonimato", sorri.
``Ando pelas ruas sem que ninguém me reconheça. Quando alguém nota é
argentino."
O espetáculo vai à Europa em julho e estréia em São Paulo, no Palace, em 14 de
setembro.
É a terceira vez que Gal se apresenta no teatro que lançou internacionalmente a
bossa nova em 1962, com o show protagonizado por Tom Jobim e João Gilberto
(modelos estéticos da cantora). O primeiro show foi há dez anos.
Mas é a primeira vez que canta na cidade sem a companhia de Tom, morto em
Nova York em dezembro do último ano: ``Esta era a cidade do Tom, e para mim é
muito triste não encontrá-lo mais aqui".
Em memória do mestre, Gal canta hoje três músicas de Tom. Quer também
apresentar ao público a faixa-título do disco, composição de Caetano e Chico em
homenagem ao maestro.
Outra modificação do show é a exigência do intervalo e da luz branca, sem
cenário. ``O Carnegie Hall mantém a tradição de casa de concerto", diz Gal. ``E eu
não deixo de me mostrar como uma concertista, despida dos ornamentos de um
show habitual."

Publicado em www.galcosta.com.br

Acesso em 21/10/2004.
ENTREVISTA COM DANIEL FILHO, EM 2001:
ISTOÉ – Gal Costa envolveu-se numa polêmica ao defender publicamente o
senador Antônio Carlos Magalhães, acusado de violar o painel de votação secreta.
Isso pode afetar a carreira do disco Gal de tantos amores?
Daniel – Gal, Bahia, ACM, tudo isso é um mundo inteiramente à parte. A Gal é
muito fiel à amizade. É capaz até de cometer um pecado para se manter fiel.
Temos que ser mais democratas, a posição da Gal é exclusivamente dela e, na
minha opinião, não afeta a artista. A manifestação é sincera, ela fez sem pensar
uma, duas vezes. Foi levada pelo instinto. Nem sei se prestou atenção no que
estava fazendo. De qualquer forma é impossível deixar de ouvir a Gal. É uma
coisa nova pra mim, nunca tinha feito um disco com uma cantora da envergadura
de Gal Costa. E vi a dificuldade que é arranjar novas músicas, boas letras... Mas,
no final, ficou tudo maravilhoso. O disco é lindo. Se a polêmica vai atrapalhar, não
sei, não é um problema meu, é da gravadora BMG.

Publicado em www.galcosta.com.br

Acesso em 14/10/2004.
MAIS SOM, MENOS FRUFRU (Veja, 20/06/1990)
"Gal Costa agrada num espetáculo em que as corridinhas brejeiras foram
substituídas pela técnica vocal"

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Uma Gal Costa com ares de Elis Regina surpreende o público no show PLURAL,
em cartaz no Palace, em São Paulo. O espetáculo, que deverá ficar em cartaz por
quase dois meses e fará escalas em capitais da América Latina antes de
desembarcar no Rio de Janeiro, em outubro, representa uma virada na carreira da
cantora. O sucesso dos shows de Gal Costa sempre se apoiou na inclusão de
músicas estouradas nas rádios - como "Massa Real" ou "Festa do Interior" - e na
alta voltagem conseguida pela cantora no palco, contagiando a platéia com seu
desempenho vulcânico. PLURAL segue numa direção diferente. Em vez de lançar
mão de sucessos consagrados, Gal se apóia num repertório pouco conhecido,
embora ele inclua monstros sagrados e gênios da música popular brasileira, como
Noel Rosa e Lamartine Babo. Com essa pirueta, Gal, aos 44 anos, pretende
seduzir o público não pela empolgação mas pela técnica, apostando tudo em sua
exuberância vocal. Consegue seu intento. Em PLURAL, ela demonstra que hoje,
mais do que um vulcão em cena, é uma excelente cantora.

Outra novidade de PLURAL, que também aproxima Gal de Elis Regina, é que se
trata do primeiro show da cantora baiana que tem uma idéia por trás, com três
blocos distintos divididos em função do repertório. Esses blocos são tão
independentes e definidos que é como se o espectador assistisse a três shows
diferentes pelo preço de um. O primeiro é o mais radical. Nele, Gal Costa deixa de
lado as roupas e coreografias esfuziantes, as freqüentes corridinhas em cena, os
frufrus, joujous e balangandãs de folclórica baianidade que sempre foram sua
marca registrada e se faz acompanhar apenas do violão do virtuose Rafael
Rabello. É um bloco para se ouvir de olhos fechados. Dialogando com o incrível
violão de Rafael, que parece trazer um contrabaixo embutido nas cordas graves e
um piano nas agudas, Gal recria, em um clima intimista, músicas como CORDAS
DE AÇO, de Cartola - o arranjo é o mesmo usado por Rabello para acompanhar
Luís Melodia no Lp "Bate Outra Vez"... -, e CAMISA AMARELA, o clássico de Ary
Barroso. Nesse momento do show, o palco fica quase às escuras e Gal mal olha
para a platéia, concentrada em suas interpretações.

A FALSA BAIANA, que se tornou conhecida na voz de João Gilberto, encerra a


primeira parte emendando com A VERDADEIRA BAIANA, de Caetano Veloso, e
essa colagem dá início à segunda parte do show. Nela, o palco às escuras e o
violão intimista são repentinamente trocados por uma parafernália de luzes
coloridas, cenários exuberantes e a banda que acompanha a cantora no disco
PLURAL. A partir daí, ela interpreta as músicas do LP novo, recria alguns
sucessos antigos - como AÇAÍ, de Djavan, que canta preguiçosamente deitada no
palco, numa brincadeira com a letra da música, que fala do amanhecer -, e é feita
uma homenagem ao tropicalismo dos anos 60. Nessa homenagem, Gal Costa
emenda a revolucionária COISAS NOSSAS, de Noel Rosa - música de versos de
mais de vinte sílabas que parecem querer escapar a toda hora da melodia -, com
o clássico dos anos 60 TROPICÁLIA, de Caetano Veloso. o efeito, que ressalta a
incrível modernidade da música de Noel no confronto com o tropícalismo, é
sensacional. Nesse momento do show, Gal está perfeitamente à vontade para
improvisar, dialogando com os instrumentos, como fazia em músicas como "Meu
Nome é Gal".

Na terceira parte, Gal conta com a participação dos percussionistas do bloco


baiano Olodum para dar uma amostra da música forte e mestiça que se faz na
Bahia atualmente. Assim, ela interpreta sucessos regionais, como SALVADOR
NÃO INERTE e LADEIRA DO PELÔ, incluídas em seu último LP, e contracena
com a divertida coreografia improvisada do Olodum, cujos percussionistas se
mexem no ritmo da música. A percussão irresistível faz desse o momento de
maior empolgação do show. Mais uma vez, Gal surpreende: em vez de encerrar o
espetáculo no ápice do entusiasmo com a participação do Olodum, termina
PLURAL em tom de serenata com uma recriação da valsa EU SONHEI QUE TU
ESTAVAS TÃO LINDA, de Lamartine Babo e Francisco Matoso. O novo show
deixa claro que a fase da Gal esfuziante terminou com o enfadonho e açucarado
"Lua de Mel Como o Diabo Gosta", show de 1988 que não chegou a empolgar o
público. A julgar pela exibição de virtuosismo técnico que desfila em PLURAL, sem
contudo cair na frieza tecnicista, Gal Costa a partir de agora não se contenta em
fazer sucesso e manter a legião de fãs que arrebanhou. Ela busca uma meta mais
ambiciosa em sua carreira: suceder Elis Regina no trono de melhor cantora do
Brasil. Está no caminho certo.

JOÃO GABRIEL DE LIMA

In: www.galcosta.com.br, acesso em 26/10/2004.


EM PLURAL, GAL COSTA SE FAZ DIVINA (O DIA, 10/11/90)

Antológico. O desempenho de cantora de Gal Costa no super-show PLURAL, que


está apresentando no Canecão. Há muito o Rio de Janeiro não escutava tamanho
deslumbramento. Em bases comparativas só recordo performances semelhantes
de Elizeth Cardoso e Elis Regina, em termos vocais. Na afinação, técnica e
sentimento. Lógico que ela só pode atingir este estágio de maravilha por estar
integrada em espetáculo singularmente bem proposto e realizado. Aparentemente
simples, é resultado de complexo trabalho de criação. Do diretor Waly Sailormoon,
também autor do roteiro ao lado de Maria Carmem Barbosa, do cenógrafo Luciano
Figueiredo e iluminador Maneco Quinderé. E, principalmente, da assinatura
musical de Cristóvão Bastos nos arranjos e regência da banda. Repete o que já
tinha feito, entre outros, com Chico Buarque e Paulinho da Viola. Tudo que toca
fica, ao mesmo tempo, forte e macio. Na soma de qualidades, uma apresentação
imprescindível a qualquer brasileiro por ser um grande momento de nossa melhor
arte.

Este fascinante trabalho confirma também uma tradição na carreira de Gal Costa.
De alternar shows catastróficos com deslumbramentos. Em seguida. Quem está
hoje no palco do Canecão nem parece parente da artista que a todos espantou há
dois anos no Scala com pífios repertório e interpretações. Agora atinge
exatamente o extremo oposto. Felizmente. Seu PLURAL começa com uma
saudação do grupo Raízes do Pelô, que na temporada carioca substitui o Olodum,
que se apresentou com ela em São Paulo. Com um traje controverso, muito bem
feito, mas que a engorda por excesso de panos, inicia sua fulgurante trajetória
vocal no espetáculo que dura exatamente uma hora e quarenta e cinco minutos.
Durante este tempo não abandona uma vez sequer o palco e nem toma um copo
de água para refrescar a garganta. Vai ver não precisa mesmo, é privilegiada
demais.

Ela trabalha muito bem, com técnica e emoção. Que reafirma logo de início ao
lado apenas de Marco Pereira, o substituto no Rio de Rafael Rabello,
interpretando CORDAS DE AÇO, de Cartola; CAMISA AMARELA, de Ary Barroso;
ÚLTIMO DESEJO, de Noel Rosa; e FALSA BAIANA, de Geraldo Pereira. De tirar
o fôlego o cristal de sua voz. Não precisava, apenas, ficar se agarrando com os
músicos, pois a imagem não fica bonita. Depois dos clássicos, uma quente mistura
com a banda. Com destaque para composições de João Donato, a engraçada
RUMBA DE JACAREPAGUÁ, de Haroldo Barbosa; os boleros ALGUÉM ME
DISSE, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia; MIL PERDÕES, de Chico Buarque,
cortados pelo incomparável samba FEITIO DE ORAÇÃO, de Noel Rosa. Do
mesmo autor se excede em COISAS NOSSAS. Apenas HOLOFOTES , de João
Bosco, Waly Sailormoon e Antonio Cícero e AÇAÍ, de Djavan, destoam do nível
geral. Mas é de arrepiar o que faz com TROPICÁLIA, de Caetano Veloso. Sem
saudosismos. Descrição épica de realidade imutável.
O final é notável. Com o grupo Raízes do Pelô retorna e se prova verdadeira
baiana. Negra na alma. Quando voltam ao Brasil nossos artistas são realmente
universais. O corte final é com EU SONHEI QUE TU ESTAVAS TÃO LINDA, de
Lamartine Babo. No bis, BRASIL, de Cazuza. Fascinante, cristalino, fecundo.
fundamental para nós este momento em que Gal Costa se torna divina.

MARIA HELENA DUTRA


In: www.galcosta.com.br, acesso em 26/10/2004.
GAL COSTA AO VIVO

José Augusto Lemos, Revista Bizz, setembro 1990.

A vida é curta e depois a gente morre, e raras são as vezes que se tem o privilégio
de estar no lugar certo, na hora certa.
A Gal que entra em cena é a Musa Misteriosa que canta Caymmi e Macalé, Noel
Rosa e Luiz Melodia, Guarânia e Samba-Canção e Afoxé e Rock N'Roll; a
brasileira entre as grandes damas da canção (como Billie Holiday, Aretha Franklin,
Dione Warwick, Mavis Staples, Mahalia Jackson, Marion Willians). Que me
perdoem os órfãos de Elis Regina, os tietes de Marisa monte e derivados.
O espetáculo ilumina, contrasta e surpreende, com forte consciência cênica.
É epifania pura e a razão que talvez me leve a este show pela quarta, quinta vez.
No show, prioridades são invertidas e é a banda que, sutilmente, faz a cama para
o ritmo vir à frente e detonar o transe. A lei da gravidade deixa de vigorar no
auditório e o Olimpo de Gal recebe os tambores, os sintetizadores e nós,
seduzidos sem misericórdia. Queimo as pestanas tentando lembrar onde e
quando, se é que vi/ouvi algo assim nas duas últimas décadas. Só chegam perto
os breves instantes de MISÉRIA, dos Titãs, em que surgem Mauro e Quitéria. Um
território quase virgem, o futuro da música brasileira. Graças aos bons deuses
ainda existem artistas como Gal, Waly, Olodum, Muzenza, para iluminar um
caminho cuja bússola não veio regulada pelo GMMC (Grande Monstro do
Marketing Corporativo). Graças aos bons deuses, estão cogitando um novo
PLURAL gravado ao vivo. Que seja, então, um álbum duplo com o ESPETÁCULO
COMPLETO. E ainda é pouco: o show merece um vídeo com câmeras e edição
do nível de NEW TOWN, registro da última turnê européia de Bryan Ferry - que
aliás, junto com T.S.Eliot, nasceu no mesmo dia (26 de setembro) que esta
hipnótica/convulsiva/alucinógena/afrodisíaca/fatal/tropical/plural/verdadeira/falsa
baiana universal cujo nome é Gal.

In: www.galcosta.com.br, acesso em 26/10/2004.


GAL VOLTA AO TRONO E CAI DE BOCA NA BAIANIDADE
(Carlos Calado, Folha de São Paulo, 09/06/1990)

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Quem chegou a sugerir que o trono das cantoras brasileiras estaria em disputa,
pode desistir. No show que estreou anteontem, no Palace, Gal Costa não deixa
qualquer dúvida que o cetro continua sendo seu. GAL PLURAL mostra não só
uma cantora completa e a todo vapor vocal. Após alguns anos mais colada nos
hits banais de rádio, ela encontra uma nova cara caindo de boca na negra
baianidade dos blocos afros de Salvador.

A direção de Waly Salomão é evidente na articulação das canções, climas e até


uma certa gestualidade na performance de Gal. Abrir o show com oito
percussionistas do bloco baiano Olodum, comandados pelo inventivo Neguinho do
Samba na instrumental "Saudação Olodum", já é em si um fator de impacto (não
deixe de prestar atenção nas coreografias dos "negões", fantásticas). Mas fechá-lo
com um bloco de outros cinco sambas-reggaes marca e reforça uma guinada
estética.

O dedo de Waly Salomão opera requintes. Em REVOLTA OLODUM, Gal chega a


parafrasear movimentos coreográficos do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol"
(de Glauber Rocha), numa dança marcadamente afro (e pendurada no alto do
cenário, uma reprodução gigantesca do quadro "A Negra", da modernista Tarsila
do Amaral). Outra citação retrô de efeito mais forte ainda sobre a platéia, é o
arranjo pop e grandiloqüente da canção-manifesto TROPICÁLIA, (de Caetano
Veloso). Em tom quase dramático, Gal percorre o palco com toques épicos.

O primeiro bloco de canções também deixa a platéia sem respirar. Em vez da


tradicional sessão banquinho e violão, a voz de Gal divide a cena com as cordas.
A luz meio expressionista e as texturas dos cenários levam a uma atmosfera
teatral. Apoiada no violonista, Gal acaricia sambas clássicos como CAMISA
AMARELA (de Ary Barroso), ÚLTIMO DESEJO (Noel Rosa) e FALSA BAIANA
(Geraldo Pereira). Tudo é colocado no lugar certo: a clássica FALSA BAIANA é
seguida pela recente A VERDADEIRA BAIANA, de Caetano Veloso. O SAPO
serve de vinheta para um delicioso e suingado "bloco João Donato", incluindo A
RÃ e a nova NUA IDÉIA.

O roteiro também tem a coragem de dispensar apelações de repertório. De velhos


hits, só mesmo AÇAÍ (de Djavan), mesmo assim com inovações no arranjo. O
resgate de canções como a romântica MIL PERDÕES (de Chico Buarque) e o
samba COISAS NOSSAS (Noel Rosa) ou do "standard" BEGIN THE BEGUINE
(Cole Porter) são tiros certeiros. Não é à toa que o grande momento do show vem
com o samba-reggae BRILHO DE BELEZA. Em meio às polirritmias do Olodum,
Gal veste seu turbante, meio África, meio mãe-de-santo. Uma coroa perfeita para
a nova fase da rainha.
O MERECIDO SUCESSO DE PLURAL. O MELHOR
RETRATO CANTADO ATUAL DE NOSSA CULTURA - O
Dia, RJ, 1991.
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Fundamental. No próximo sábado, dia 6, Gal Costa estará apresentando seu show
PLURAL, na Alemanha. Já no domingo seguinte ele será a principal atração da
famosa noite brasileira do Festival de Montreux, na Suíça. Depois segue para o
México onde o apresentará em outro encontro internacional que reunirá grandes
nomes da música latina diante de platéia de notáveis e presidentes de muitas
nações desta origem. Convites merecidos pela cantora brasileira e
desenvolvimento natural da carreira de um show que só conheceu sucesso por
aqui e já mesmo no exterior, como na Argentina. Um caso de justiça, pois é uma
das mais importantes expressões de nossa cultura nos últimos tempos.

E que começou essa carreira de sucesso num momento muito importante para as
nossas tristes cabeças subdesenvolvidas. No final de 90, quando ela estreou em
São Paulo, a mídia e a opinião pública da desastrada elite brasileira tinham
determinado que a tradicional música popular da terra era uma espécie em
extinção. Bom mesmo era o "rock in Brazil", atitude gozada até pela imprensa
norte-americana que ficou pasma de trocarmos o melhor refrigerante do mundo,
como eles chamam o natural guaraná, por qualquer água negra naquele
espantoso e humilhante festival do Maracanã para os ricos, enquanto os pobres
não deviam sair do gueto sertanejo e brega. Motivo de deboches só suplantado
em gargalhadas pelo contrabando explícito de lambadas e ritmos baianos para o
exterior. Achavam que os contraventores eram otários.

Nesse panorama colorido de arrogância, estupidez e nenhuma intelectualidade,


surgiu Gal Costa e seu PLURAL. De total perfeição, como ato de verdadeira
cultura. Sem medo de ser rotulada de antiga, ela canta no espetáculo sambas da
maior qualidade. O agonizante e sempre mais rejeitado ritmo pela mídia mostra na
sua voz quem realmente tem a força. Pois "sambar é chorar de alegria, é sorrir de
nostalgia, dentro da melodia", talvez dos mais lindos versos de nossa música, que
conclui "o samba na realidade não vem do morro nem lá da cidade. E quem
suportar uma paixão saberá que o samba então nasce do coração". A letra maior
de Noel Rosa para a inspirada melodia de Vadico em FEITIO DE ORAÇÃO.

Junto a esta afirmação muitas interpretações de gênios como Chico Buarque,


Cartola, CORDAS DE AÇO é obra-prima deste com o recentemente falecido
Aloísio da Mangueira, e outros ilustres. Que deságuam na TROPICÁLIA de
Caetano Veloso. A música emblemática, e aqui a palavra da moda tem razão de
ser, de todas as diluídas dores e paradoxos do país. Nunca mais repetiu dose tão
gigantesca de compreensão de sua terra. E finalmente a baianada final quando os
tambores mostram como o Pelourinho engole o mundo, a África e Jamaica.
Mas é lógico que nada disso teria importância se esse retrato cantado de nossa
cultura não fosse tão bem realizado. Do espetáculo concebido por Waly Salomão
e Maria Carmem Barbosa à direção musical de Cristóvão Bastos tudo é uma
conjugação de felicidades e competência. Para o maior brilho da estrela Gal Costa
que, repetindo o que disse na estréia do espetáculo em PLURAL se faz Divina.
Por seu cantar, interpretações e presença de palco.

Tomara que todo esse sucesso dê muitos frutos. No campo estritamente musical
para que deixemos de ser exportadores de matéria-prima e voltemos a ser
Primeiro Mundo nessa arte. E ajude a cultura nacional, pois só haverá
desenvolvimento entre nós quando a compreendermos melhor. É o único pacote
que pode funcionar em mentalidades e corações.

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MARIA HELENA DUTRA

In: www.galcosta.com.br, acesso em 26/10/2004.


O ASTRO NA INTIMIDADE - Gal Costa.

Desde quinta-feira e até o dia 18 deste mês, Gal Costa exibe a afinação
irretocável de sua voz no espetáculo PLURAL, que chega ao Canecão depois do
grande sucesso da temporada paulista e das apresentações em Buenos Aires que
emocionaram até o Presidente da Argentina, Carlos Menem. PLURAL registra
uma virada das mais importantes na carreira de Gal, que decidiu mudar o formato
de seus shows com o objetivo de valorizar ainda mais o ato de cantar.

"Refleti muito sobre mim mesma e cheguei à conclusão que precisava dar esse
pulo, abandonar algumas coisas mecânicas da profissão e sair da crise
existencial"

Os resultados vieram mais cedo até do que ela esperava e justificando a


repercussão excelente de público e crítica onde já foi mostrado.

"Quando se passa por um processo de reformulação de conceitos semelhantes ao


que vivi, tudo muda e até as relações com a profissão, com o próximo e com o
mundo se transformam. Disso tudo sempre nascem valores novos e mais ricos."

BRASIL - É um país lindo, que apesar desta pobreza é muito rico e talvez não
tenha noção de todo o seu potencial.

PERSONALIDADE - John Lennon.

TELEVISÃO - Assisto sempre aos telejornais e aos programas de entrevistas do


tipo "Jô Soares Onze e Meia" e "Cara a Cara". Também adorava o "TV Pirata" e
lamento que tenha saído do ar.

ÍDOLO - João Gilberto.

ATRIZ/ATOR - Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Lima Duarte, Gianfrancesco


Guarnieri e Marcos Palmeira, entre outros bons nomes da nova geração.

CANTOR/CANTORA - Diana Washington, Maria Bethânia, Alcione, Stevie


Wonder, João Gilberto, Caetano, Milton e mais um bolo de gente que adoro.

RIO DE JANEIRO - Não tem jeito, é mesmo a cidade mais linda do mundo.

ATLETA - Pelé.

MULHER CHARMOSA - Ingrid Bergman.

HOMEM ELEGANTE - David Bowie.


FIM DE SEMANA - No meu sítio, com cheiro de mato e ouvindo o canto dos
passarinhos.

CIDADE - São muitas: Salvador, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Veneza e Paris.

AFAZERES DOMÉSTICOS - Cozinhar, ás vezes. Faço empadões de camarão e


um frango à Martinica muito gostosos.

LIVRO DE CABECEIRA - A autobiografia de Yogananda.

MANIA - Nenhuma.

PRATO PREFERIDO - Sou a chamada boa de boca. Se estiver gostosinho, eu


traço legal.

VESTUÁRIO - Moderno e descontraído.

PROVÉRBIO - "Quem desdenha quer comprar."

SIGNO - Libra, vivo pondo tudo na balança, procurando equilíbrio.

SUPERSTIÇÃO - Não bater na madeira.

BOA COMPANHIA - Uma pessoa bonita que me atraia e me seduza.

FRUSTRAÇÃO - Não ter estudado dança.

VIAGEM SONHADA - Conhecer a Grécia.

PAIXÃO - Pelo palco e pelo meu sítio quando estou plantando ouvindo o silêncio
da natureza.

VAIDADE - Já fui mais vaidosa, hoje estou mais relax, mas sempre preocupada
em manter o peso ideal e me sentir bonita.

MAIOR DEFEITO - Confiar demais nas pessoas.

PRINCIPAL QUALIDADE - Ser honesta, fiel e muito leal.

HOBBY - Jogar bilhar, cartas e plantar no meu sítio.

VELHICE - Não sei ainda, mas prefiro lembrar da sabedoria e da experiência que
se adquire.

FILOSOFIA DE VIDA - Só fazer o que quero e na hora que quero.


BREGA - Não me preocupo em saber o que é.

FELICIDADE - Ouvir música sempre me faz feliz.

ABORRECIMENTO - Aturar gente chata e receber trotes pelo telefone.

BEIJO - Mando para todos os meus fãs, brasileiros ou brasileiras.

SONHO - Ter um filho e sempre seguir cantando com esta mesma vitalidade, mas
sujeita a mudanças e transformações que me façam mais feliz.

In: www.galcosta.com.br, acesso em 14/01/2004.


"Gal canta Caymmi"é o 8 LP de Gal Costa na Philips é o 2
produzido por Perinho de Albuquerque, baiano como Gal.Gal Costa
começoua gravar este disco em fins de dezembro do ano passando
ainda no estúdio Havaí, em 8 canais.Com a mudança da Phonogram
para as novas instalações na Barra da Tijuca, Gal e Perinho regravaram
algumas partes do disco, passando para 16 canais. Além da mudança,
um outro fator contribui para o atraso do lançamento. Gal precisou
interrompera gravação para começar os ensaios do show com Caymmi.
E o próprio show fez com que Gal descobrisse coisas novas, que quis
colocar no disco.
Gal e Caymmi fizeram temporada no Río, no mes de fevereiro, no Teatro
João Caetano. Repetiram o encontro em Salvador e fazem mais tres
apresentações em São Paulo nos próximos dias , 23 , 24 e 25 no
Anhembi.A seguir publicamos a entrevista de Gal Costa (GC) concedida
ao Departamento de Imprensa Philips (DIP) em março deste ano.

DIP- Você sempre se ligou na música de Caymmi?


GC- Sempre, desde pequena.
DIP- Há quem diga que você começou a fazer este disco há doze anos
atras, é verdade?
GC- Pode ser que seja verdade.Naquele tempo eu não sabia que tinha
começado a fazer o disco. Só sei que há doze anos atras eu vi, pela
primeira vez, Caymmi cantar ao vivo. Fiquei fascinada. Aliás, Caetano e
Bethania que estavam comigo tambem ficaram. Nós tres não resistimos
e esperamos o show terminar para irmos cumprimentar Caymmi. Dei
um beijo e um abraço nele. Foi quando nos conhecemos.
DIP- De quem foi a ideia de fazer um disco só com as músicas de
Caymmi?
GC- A sugestão partiu da Philips, mais precisamente do Menescal.
Baseando-se naturalmente nos meus dois mais recentes sucessos que
foram músicas de Caymmi: "Modinha pra Gabriela"e "Mãe Meneninha de
Gantois".
DIP- E como você reagiu a proposta?
GC- A principio fiquei meio preocupada, porque achei que podia ser o
obvio. Já que minha imagem estava muito ligada a Caymmi. Resisti a
ideia, mas em momento algum cheguei a negá-la.
DIP- E a partir do convite como as coisas se encaminharam?
GC- Recolhi todos os discos de Caymmi, inclusive alguns mais antigos
que pedí emprestado ao Herminio Belo de Carvalho e comecei a
escutalos em casa, com calma e sem qualquer compromisso. E tudo foi
nascendo muito naturalmente.
DIP- Você então tinha aceito a proposta do Menescal?
GC- Ainda não. Fiquei ouvindo, ouvindo, ouvindo e fui redescobrindo
Caymmi de uma forma nova, sei lá talvez mais madura. Na verdade eu
nunca tinha parado para ouvir o trabalho de Caymmi com atenção. E
desta vez fiz assim e por isso descobri um Caymmi que me fascinou,
principalmente aquela coisa negra que Caymmi tem, aquela coisa de
cantar a Bahia, de forma brejeira, dengosa e ao mesmo tempo pura.
DIP- Antes de você se decidir a Cantar Caymmi, você tinha pensado em
fazer outro disco?
GC- Em principio eu tinha na cabeça a ideia de fazer um disco alegre,
com muito ritmo, um trabalho que as pessoas ouvissem e ficassem
contentes, cantassem e dançassem. Na medida em que eu pegava o
violão e cantava, percebia que as músicas de Caymmi possibilitavam
esse clima.
DIP- Numa entrevista recente você declarou estar apaixonada pela vida.
A ideia de fazer um disco alegre reflete seu estado emocional?
GC- Eu sempre fui uma pessoa apaixonada. Talvez esteja mais agora
depois deste disco. Foi um trabalho que me gratificou muitos, sobretudo
porque foi um trabalho muito pessoal. Na criação, nos arranjos, não que
tenha feito algum, pois não tenho condições para isso, talvez ate seja
um pouco limitada em relação a música, a organização de sons. Mas
esse disco tem muito a ver comigo. Escolhi o repertório inteiro.
Na medida em que escutava as músicas ia dando o clique e logo
passava o clima para os músicos. Foi um trabalho muito meu, feito com
muita emoção.
DIP- Você considera esse disco uma continuação dos trabalhos
anteriores ou é um trabalho especial na sua carreira?
GC- Eu acho que ele tem uma ligação muito forte com as coisas
anteriores. com o "Fa-tal", com "India", com o "Cantar" nem tanto,
porque foi uma coisa de emoção forte, pra fora, quase explosiva.E ao
mesmo tempo considero especial na minha carreira. Em
prinicipio.Porque estou cantando a obra somente de um autor, e isso
com relação ao meu trabalho de interprete fica um pouco limitado.
Tanto que depois quero fazer um disco cantando vários compositores
para o meu trabalhose expandir mais.
DIP- E você faria um novo disco ainda este ano?
GC- Penso que não vai dar tempo. Porque depois das minhas
apresentações com Caymmi ( ainda faltam tres dias em São Paulo)
tenho encontro marcado com Caetano, Bethania e Gil.
DIP- Você falava que "Gal Canta Caymmi" é especial na sua carreira
GC- Claro, é especial também porque encontrei Caymmi, redescobri-lo
de uma forma nova, atual, e encontra-lo foi realmente um barato, uma
coisa especial na minha vida e consequentemente na minha carreira.
Inclusive, pra mim, esse disco veio no momento certo.
Gal por um momento interrompe a entrevista e se dirige a Caymmi.
-Caymmi, você tem um hall's? Mê dê um? pede Gal.
-Dou não- responde Caymmi, imitando a voz dengosa da companheira.
DIP- Você tem problema de garganta?
GC- Não, mas é que o ar condicionado resseca muito.
E com não trouxe o meu umedecedor o jeito é chupar drops para aliviar.
DIP- Até que ponto "Gal Canta Caymmi" faz parte de uma avaliação
critica do seu trabalho?
GC- Sempre avaliei meu trabalho. Em determinado momento eu sempre
pego os meus discos, e também dos amigos, e ouço mais uma vez, para
ver o que ficou, o que valeu a pena. Agora mesmo fiz isso, quando ouvi
o disco depois de pronto. Achei que valeu. Escutei-lo com muita
empolgação. Na verdade este trabalho é como se eu tivesse parado pra
pensar e fosse um ponto de partida para outras coisas.
DIP- Você se sente pressionada pela crítica e pelo público para
apresentar um trabalho novo, inédito?
GC- Isso acontecia muito comigo aqui, na época em que Caetano e Gil
estavam fora do Brasil. O que acontecia de mais forte, de mais violento
na música era o que eu fazia, então as pessoas me cobravam muito o
novo. E isso sem dúvida oprime muito a gente. E a gente tem que ter
um minimo de sensibilidade para se safar dessa, para não se
comprometer muito com o compromisso que as pessoas cobram de
você.
DIP- O repertório do disco é basicamente igual ao do show que você e
Caymmi apressentaram no João Caetano?
GC- Todas as músicas do disco eu canto no show. Só que no show
algumas eu divido com Caymmi e no disco naturalmente eu canto
sozinha.
DIP- E a idéia de juntar você e Caymmi num palco também foi de
Menescal?
GC- O pai do disco é o Menescal, mas o pai do show é o Guillerme
Araujo, que a principio chamou o Caymmi apenas pra tirar a foto da
contracapa do disco. Mas depois a ideia evoluiu e Guillerme acabou
convidando Caymmi pra fazer algumas apresentações comigo, quando
do lançamento do disco. No final o show saiu primeiro do que o próprio
disco.
DIP- E porque o show durou tão pouco tempo?
GC- Guilherme e eu tinhamos a mesma opinião. O forte do nosso
encontro foi o tempo curto. As pessoas viram um acontecimento e
pronto.
A coisa acabou e acho que ficou na cabeça do público como uma coisa
boa, bonita. Depois parece que Caymmi não gosta muito de trabalhar,
sem contar ainda com o trabalho de grupo, que me espera e que desde
já me parece uma coisa fascinante.
DIP- O Caymmi outro dia nos disse que gosta das suas músicas, como
gosta dos seus filhos. Tudo por igual, você é da mesma opinião?
GC- O resultado de "Festa de rua"é um dos mais bonitos. De "O
canoeiro" também gosto muito. É explosivo e por isso tem ligação com
as coisas que jé fiz, no tempo do "Fa-tal", assim meio pop, meio funky,
que gosto, curto e que faz parte de mim. Adoro "Rainha do mar" e gosto
muito de "O vento".
Roberto Menescal (RM) entra na sala e se junta ao nosso papo.
RM- Há uma semana estou tentando falar com você. Vou pra tua terra.
GC- Junto com Gil e Caetano?
RM- Eu nem sabia que eles estavam indo pra Bahia. Vou para Prado,
entre Nova Viçosa e Caravela, descansar um pouco a cuca.
GC- Vai pescar?
RM- É vou dar uns mergulhinhos por aquelas bandas de lá.
GC- Então pega um tubarão pra mim?
RM- Como é que vão as coisas?
GC- Estamos aqui trabalhando preguiçosamente.
RM- Naquele conhecido regime baiano. Acho que a gente tem que
colocar um produtor gaucho trabalhando com vocês. Pra dá aquele
contraste.
GC- Além de produtor ser baiano, a situação se agrava ainda mais com
a presença do acreano João Donato. Dizem que ele consegue ser mais
preguiçoso do que os baianos.
RM- Sabe, é um negocio de clima mesmo. Você chega na região das
Caraibas, ninguem se mexe. Já na Suécia está todo mundo ligado.
GC- Pra trabalhar eu não sou preguiçosa. Chega a me irritar um pouco
essa história de marcar gravação para uma hora e só começar duas
horas depois. Tenho que me controlar, porque sou super profissional.
E além do mais adoro trabalhar.
DIP- Me parece que o fato de ter muita gente acaba atrapalhando. Cada
cabeça, a cada hora, lançando uma nova idéia e ainda mais o entra e sai
constante de pessoas que não tem nada a ver com o trabalho.
RM- O trabalho desses baianos sempre foi assim. Sempre sugeriu muita
chacrinha, em gravação ou ensaio. Muita loucura, muito não sei o quê e
na realidade vocês são exatamente contrários a esse tumulto.
GC- Na época do Deixa Sangrar, no Fatal nem tanto porque já controlei,
teve um dia meu irmão, que eu tava ensaiando, Macalé, fazia a direção
musical, de repente olhei e tava o teatro lotado de pessoas assistindo o
ensaio.
RM- Eu me lembro desse dia, tinha tanta gente que nem pude falar com
você.
DIP- Além de tumultar vocês ficam pouco a vontade.
GC- O problema não é de constrangimento. É mais grave. Você fica
dispersa com mil pessoas falando, comentando, que acaba interfirindo
no rendimento do trabalho.
RM- Eu me lembro , Gal, uma vez com Gil, num estúdio lá em São Paulo
que fui obrigado a interromper a gravação.
GC- Apareceu muita gente?
RM- Nossa! Virou um circo, Eu falei: vocês me desculpem, não sei quem
é quem aqui, mas não dá pra trabalhar desse jeito.
GC- Dessa vez eu não deixei entrar ninguem. Gravei na maior
tranquilidade. Por falar em disco, mostrei o meu para Caetano e Gil, e
eles amaram.
RM- Vai dar maior pé.
GC- Eu fiquei tão contente, Caetano disse que esse disco é
surpreendente. E é mesmo , sabia?
RM- A principio Caetano, quando falei com ele pela primeira vez, antes
mesmo de falar com você, ficou indeciso e me disse: "Ë pode ser uma
boa ideia. Gal é que vai saber se ela vai gostar de fazer ou não". Tenho
certeza de que ela não sentiu muito o negocio.
GC- Mas quando você me falou eu também não senti. Eu até resisti a
idéia, você se lembra, não é? Achava que não seria possivel fazer uma
coisa nova em cima do trabalho de Caymmi, não que não seja forte.
RM- Eu sei, entendo.
GC- Mas dentro da minha linguagem. Quando ouvi, ouvi, ouvi, senti que
Caymmi é um barato absoluto. Ele tem tudo. É rock, é mambo é rumba,
é negro, é tudo junto. Uma maravilha, Fiquei perdida e ao mesmo
tempo animada para fazer o disco.
RM- Quando encontrei Caetano, já de uma outra vez, ele estava
inclusive com Gil, ele já se referiu ao disco de uma outra maneira-
"olha, rapaz, sabe que estou gostando daquela idéia, tou curtindo
demais"
DIP- A Gal já tinha começado a gravar?
RM- Não, estava ainda se preparando.
GC- Quando entrei no estúdio, Menescal sabia que não tinha nenhum
compromisso da minha parte. Se eu conseguisse fazer uma coisa boa,
tudo bem. Do contrário a idéia do disco seria abandonada.
RM- A gente realmente transou nessa base.
GC- Deu pé porque o nosso amigo não é fácil ( e aponta para Caymmi
que entra) (DC)
DC- Roberto Menescal, como vai o senhor?
RM- sem..............
DC- Sem compromisso. "O barquino vai e a tardinha cai". (cantando)
Que coisa linda.
Muitos risos.
GC- Caymmi é um curtidor.
Menescal e Caymmi se despedem vão embora e voltamos a conversar
com a filha de Iansã.
DIP- Você sempre teve contato com Caymmi?
GC- Não muito. Encontrei Caymmi, depois daquele encontro que lhe
falei, algumas outras vezes, mas só na base do alo, oba tudo bem?
Pessoalmente um convivio maior é a primeira vez que tenho. É uma
criatura fascinante.
DIP- Há quanto tempo você saiu da Bahia?
GC- Há uns dez anos. Fui primeiro para São Paulo e depois é que vim
para o Rio. srá que já tem dez anos? Acho que sim porque faço dez anos
de carreira agora em 76.
DIP- Você tem dez anos de carreira e quantos de vida?
GC- Tenho trinta.
DIP- Trinta?
GC- Parece menos, não é?
DIP- Isso é privilegio de baiano?
GC- Sei não, só sei que as pessoas se assustam quando sabem a idade
que tenho. Principalmente porque me veem na televisão e me acham
mais velha, e depois me conhecem de perto e me acham uma menina.
DIP- Além de ter sangue baiano, você não acha que cultivar a cabeça
fria protege das rugas?
GC- Claro, é fundamental.

Transcrita por fã no site www.galcosta.com.br

Acesso em 23/04/2004.
Seu nome é Gal
A cantora Brasileira Gal Costa, veio ao país pela terceira vez. Nesta
oportunidade oferecera sete shows na sala do Gran Rex. Tambem vai
aproveitar a viagem pra passar uma semana em Las Leñas e para
percorrer Buenos Aires e suas lojas de antiguedades. Numa reportagem
concedida a "La semana" se definiu como uma mulher "intimamente
sensual" espontanea e absolutamente moderna.

Se recosta no sofá e nos olha com olhos entrefechados, nos disse com o
olhar que tem vontade de dormir uma sesta. "Sou dorminhoca e
infinitamente sensual" explica. Cumprimenta com um sorriso que inunda
sua cara e borra todo deixo de tristeza.Quando Gal Costa sorrí, todo
parece andar bem.
A famosa cantora brasileira faz por terceira vez sua visita á Argentina.
Vem a apressentar seu ultimo disco "Lua de mel como o diabo gosta". E
desidiu estrear seu show no nosso país. Depois lhe espera uma turnê de
quasi seis meses, onde vai pra Japão, Espanha, França,Portugal,
Estados Unidos, e Venezuela.
Vem galardoada do Brasil como a melhor cantora do ano da MPB.
Gal arruma seus cabelos pretos, dentro do chapeu e acaricia a pena
sobre a asa, faz um simpatico piscar e da por começada a reportagem.

-La Semana: Qual é o motivo pra começar o show na Argentina?


-Gal Costa: Se arrumó a turnê de esta forma e gosto que assim seja
porque Buenos Aires é um lugar onde sempre me senti confortavel.

-La Semana: É o publico argentino um publico que a faz sentir bem?


-Gal Costa: Sim, o publico argentino é muito quente e muito sabio, sabe
assistir a um espetaculo e sabe ouvir. Aplaude nos momentos certos. Eu
adoro cantar aqui.

-La Semana: Não é mais quente o publico brasileiro?


-Gal Costa: Não, comigo isso não acontece.Tal vez o publico argentino
seja mais formal que o brasileiro. Mas comigo é gente que dança e
canta e se diverte muito. É muito lindo como os argentinos demonstram
que lhes gosta um artista. No Brasil, existe publico quente mas tambem
tem outro que é frio e distante.

-La Semana: Como vê a mulher argentina?


-Gal Costa: Não tenho muitas amigas argentinas, não tenho muito
contato com a mulher argentina, mas acho que são mais formais que as
brasileiras.
O povo argentino tem uma cultura muito europea, uma forma de vestir
muito elegante, um estilo muito parisiense. O brasileiro é mais informal.

-La Semana: A que pensa que se deve isto?


-Gal Costa: Temos um clima muito tropical, muita praia, mar, e sol. Eu
acho que a mulher brasileira, ao estar mais em contato com o calido,é
mais sensual que a mulher argentina. A mulher brasileira é
espontaneamente sensual, em especial a mulher de Rio de Janeiro, ou
do norte do Brasil.

-La Semana: É dificil ser mulher nesta sociedade?


-Gal Costa: Desde sempre a mulher estive muito oprimida e é dificil
sobrepor-se a isso. Estamos num mundo machista. Eu não sou feminista
de nenhum movimento, simplesmente sei que é difícil para a mulher
conquistar um espaço, mas é importante poder consegui-lo. Eu sou uma
mulher independente.

-La Semana: Tem que ver sua independencia com que nunca tenha
establecido um lar?
-Gal Costa: É dificil conciliar uma vida de familia com o meu estilo de
vida. Eu vivo viajando, de turnê em turnê. Acho que tem um momento
para tudo na vida e que é questão de vontade.
Acho que em algum momento vai se dar.

-La Semana: Esta apaixonada?


-Gal Costa: Não, não estou apaixonada por ninguem em especial.

-La Semana: Da vida?


-Gal Costa: Sim, da vida sempre, da música tambem. E tambem sou
uma apaixonada do ser humano.

-La Semana: Que é o que você sente que lhe transmite ao publico que
vai pra ve-la?
-Gal Costa: Lhe transmito minha energia, minha vontade de viver. Eu
acho que ésta é minha missão na vida, cantar e atraves da minha
música, distrae-los, diverti-los. O que eu tenho é uma capacidade para
transmiti-lhes as pessoas alegria atraves das minhas canções. Eu acho
que a música tem a ventagem de não ter barreiras idiomaticas, é um
idioma universal, sem fronteiras, Por otra parte, sinto que alento as
pessoas para determinadas coisas: mando uma mensagem de paz e
tranquilidade em um mundo tão convulsionario e caotico como no que
temos que viver.

-La Semana:E que música é a que você gosta?


-Gal Costa: Adoro a música brasileira: Chico Buarque, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Rita Lee, María Bethania...

-La Semana: E que lhe gosta da música argentina?


-Gal Costa: Eu gosto muito de Mercedes Sosa. Ouvi pouca música
argentina, não a conheço em profundidade.
Também gosto muito de Astor Piazzolla, acho que é um musico
estraordinario.

-La Semana: Gostaria saber como é, como se definiria?


-Gal Costa: Simples e complicada. Não sou um tipo de pessoa que
suporta qualquer coisa establecida. Acho que para crecer a gente tem
que transformar seu medio ambiente. Gosto das mudanças. Não
acredito na coherencia infinita. Sou como é minha casa, um
apartamento moderno, con paredes brancas: limpo e claro.

-La Semana: É gulosa?


-Gal Costa: Siiiiiiiiiiim!!

-La Semana: Se cuida na comida?


-Gal Costa: Sim, se não me cuido engordo.
Tenho que me cuidar muito. É uma pena porque eu adoro comer arroz,
batatas, batata doce, pão..

-La Semana: Tem habitos particulares de comida?


-Gal Costa: Não, como de tudo na realidade. Numa época deixei de
comer carne por sete anos. Tambem fui macrobiotica, mas não por
convicçoes, senão como forma de me sentir mais sadia. Foi bom porque
com essas costumes a gente aprende a comer bem e equilibradamente.

-La Semana: Faz gimnasia, ioga, ou exercicio físico em geral?


-Gal Costa: Geralmente sim. Num momento fiz ioga como forma de
relax. Agora gosto de digitopuntura. É bom estar relaxado para cantar.

-La Semana: A que dedica mais tempo na sua vida?


-Gal Costa: A ensaiar, atuar, cantar.

-La Semana: Esta vez viajou com sua mãe, é algo que acotence as
vezes?
- Gal Costa: Sim, quando posso ela vem comigo, não temos muito
tempo de estar juntas. Ultimamente não tinha viajado muito comigo, as
duas gostamos de ter tempo de estar juntas. Temos uma relação muito
boa.

-La Semana: E com Guto, seu irmão?


-Gal Costa: Temos uma relação exelente. Ele é meu representante.
Quasi estamos obrigados a entendermos.(risos)

-La Semana: No Brasil, em que parte mora atualmente?


-Gal Costa: Em São Conrado, que é um bairro de Rio de Janeiro.

-La Semana: Tem saudades da Bahia?


-Gal Costa: Sim, eu gosto de morar no Rio, já estou acostumada. As
vezes, sinto uma saudade ao lembrar da Bahia, foi onde passei minha
infancia e tenho umas lembranças maravilhosas de esses momentos.
Pasava o dia na rua e tinha muitos amigos, e sempre andava cantando.
As vezes quando sinto falta da Bahia faço uma viagem. Eu acho que em
algum momento voltarei a morar na Bahia.

-La Semana: Quando forme um lar?


-Gal Costa: Quem sabe....

-La Semana: Esta vez veio pro um tempo muito comprido , por que?
-Gal Costa: Vim com mais tempo porque como estreio o show, tenho
que ensaiar. Nunca tive muito tempo pra percorrer a cidade, mas
reconheço que é muito atrativa. Estive por San Telmo, na feria.

-La Semana: Já foi de compras?


-Gal Costa: Não, gosto de antiguedades e são muito mais baratas que
lá. Estive olhando, nada mais. A semana que vem vou passar uns dias a
Las Leñas. Gosto mais de conhecer gente do que lugares. Buenos Aires
me lembra a Paris, o pouco que olhei gostei muito, mas o que me faz
voltar é o calor das pessoas.

-La Semana: Como vê a música no mundo com todos os avances


tecnologicos que foram incorporados?
-Gal Costa: Acho que a música do mundo esta em decadencia. Os
músicos europeus, salvo os ingleses, no lugar de tentar criar, copiam a
música de exito dos Estados Unidos, esquecendose do swing. No Brasil,
esse tipo de música já tem nome proprio: música brega, é uma
calamidade de laboratorio. É um estilo que pensa num exito, vai pro
estudio e o logra e isso lhe tira creatividade aos músicos.

-La Semana: Y como é sua música?


-Gal Costa: Se basa em sensações e isso é o que quero transmitir. É
bom criar e a gente isso não pode deixar de lado nunca.

-La Semana: É feliz?


-Gal Costa: A felicidade é efímera, são momentos que se dão, o
importante é vivi-los na plenitude, saber disfruta-los. E também
aprender dos momentos não tão bons. É muito grande a palavra
felicidade, gosto de estar bem como cualquer um, e acho que uma das
coisas que melhor me fazem, é ter a possibilidade de fazer o que eu
gosto: cantar

-La Semana: Como pensa seu futuro?


-Gal Costa: Eu não sei, gosto de vivir o presente. Por agora minha vida
é a música, as turnês, os discos, os amigos, é o que quero, amanhã não
sei que é o que vou querer.

A gata brasileira coloca nos seus ombros seu sobretudo de pele, seu
cabelo preto voltam a cair sobre sua frente. É cordial e nos fala que a
entrevista tocou seu fim, a gente se imagina a esta morena arrassando
num palco, mas ela se encarrega de lembar--lo quando na sua cara
volta a aparecer esse radiante sorriso que seduz ate o mais
despervenido.

Silvina Schuchner
Revista La Semana- Junho 1988- Argentina
In: www.galcosta.com.br, acesso em 26/10/2004.
Gal enfrenta a alegria -e a tristeza
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Ela voltou, a grande cantora. Nesse tempo em que andou ameaçando se perder
de todas as coisas e de si, a artista Gal Costa, 58, anestesiou também uma série
de sentidos: tato, paladar, audição, visão, faro...
Interrompeu contato com parte de seu público (eram várias as cadeiras vazias na
estréia de "Todas as Coisas e Eu", quinta, enquanto lá em casa "Celebridade"
quase acabava). Fechou olhos e ouvidos para repertórios, arranjos e modos novos
de ser Gal Costa. Hoje, corre com gana atrás do prejuízo, de seis ou sete
sentidos.
O resultado é um espetáculo todo errado, todo certo. Um acerto interrompe um
erro que substitui um acerto que se muda num erro. Zune um código morse
nervoso. A grande cantora se despe assustada, mas viva, muito viva.
Fotografa o próprio medo quando, ao cantar "Um Favor", de Lupicinio Rodrigues
(que desde 77 é dela, muito dela), erra a letra feito uma colegial, cantora imatura
em primeiro show. Estava ao violão ex-abandonado; pelada, se desculpa à platéia:
"Que situação cantar e tocar, né?".
Tem a seu favor um roteiro que enfrenta um ponto nevrálgico de sua história
recente: o ruído entre alegria e tristeza mal localizadas -equívoco central do CD
(todo errado) que deu origem ao show.
Agora, começa o show à capela, com "Alguém Cantando" (Caetano Veloso, 77),
tornando mais aguda (e bela) a melancolia inerente à canção. Revela que a Bahia
também é triste, público segredo.
Pelo começo canta a carta de suicídio "Três da Madrugada" (Torquato Neto e
Carlos Pinto, 73). Captura todo o desespero do poeta maldito; acerta. Pelo final
avança uma hora no tempo e festeja o "galo cantou às quatro da manhã" de "Na
Linha do Mar" (Paulinho da Viola, 73). Faz sambinha alegre, ignorando que "vou-
me embora desse mundo de ilusão" também é suicídio; erra.
Acerta: canta a brejeira "Imbalança" (Luiz Gonzaga e Zé Dantas, 52), ri e sorri.
Erra: canta a fatalista "Fim de Caso" (Dolores Duran, 59), ri e sorri. Tenta colocar a
alegria em seu devido lugar, na pedra fundadora da Bahia "Alegria" (Assis
Valente, 37). Não consegue ser tão alegre como a letra queria; acerta em cheio,
errando. Nua.
Ao revisitar o mais fino de sua obra, veste-se da capa transparente da grossa
melancolia. Nessa noite "Um Favor", "Assum Preto" (Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira, 50, dela desde 71), "Vapor Barato" (Jards Macalé e Waly Salomão, 71) e
"Força Estranha" (Caetano, 78, de Roberto Carlos e dela desde então) são as
coisas mais lindas que já existiram.
São tristes, tristes, tristíssimas. Ostentam o semblante sério da maturidade, não o
riso de Alice da juventude. Obrigado por ter voltado, grande cantora.
Como é difícil se despir, a mulher ainda se protege no artifício, no show que
soluça. Os sambas-canção sabotam a fluência; um tosco montinho em que sobe
para "Nada Além" (Custódio Mesquita e Mário Lago, 38, dela desde já) ameaça
literalmente derrubá-la.
A cenografia de Bia Lessa entra em colapso no clímax de "Vapor Barato" -velas
sobem e descem histericamente, inconformadas com o que está acontecendo: o
reencontro da artista consigo. Nos uivos finais de sua canção-mito, a expressão se
convulsiona e retorce; Gal se curva, vira loba, bicho, fera ferida. Esquece de temer
a perda da beleza, escancara os cabelos brancos na fronte da artista.
Ao final, subiu feito onça uma montanha, não o telhado de gata de 93. A gente não
se satisfaz, quer sempre mais, fica com vontade de ouvir discos e shows feitos só
de vapores baratos. Não podemos exigir-lhe isso, mas ela já usa quatro ou cinco
sentidos em prol da causa. Até amanhã, Gal.
Matéria de julho de 2004, Folha de S. Paulo

Publicada em www.galcosta.com.br

Acesso em 05/08/2004.
Gal Costa estréia novo show em SP
Thiago Marques Luiz

A cantora, que estava há cinco anos sem estrear novo show, marcou nesta quinta-
feira a abertura de sua turnê “Todas as Coisas e Eu”, com repertório baseado no
seu último disco, lançado no final do ano passado...

O público já estava com saudades e ela que, para muitos, é a maior cantora do
Brasil, continua esbanjando beleza, talento e um poder vocal intocável. A estréia
do novo show de Gal Costa, no Directv Music Hall, em São Paulo, na última
quinta-feira, surpreendeu o público e a crítica que a vinha tachando de repetitiva.

Primeiro porque o repertório do show é de um bom gosto ímpar e foge


absolutamente do óbvio, ou seja, não vem com os sucessos que pontuaram sua
carreira (com exceção de Vapor Barato). Traz dez músicas do último disco
(Alguém Como Tu, E Daí e Linda Flor, entre outras), canções obscuras - no
melhor sentido –, do seu repertório dos anos 70, clássicos de sempre e duas
inéditas: uma de Lenine e Sérgio Natureza (Caribantu) e outra de José Miguel
Wisnick e Luiz Tatit (Baião de Quatro Toques).

A abertura é marcada pelo lirismo de sua voz. Gal, já no palco, entoa à capela
Alguém Cantando, composição de Caetano. Em seguida, revive os tempos pós-
tropicália (os memoráveis shows “Fatal” de 1971, “Índia” de 1973, e “Cantar” de
1974) tocando violão e cantando Herivelto Martins (Nega Manhosa), Lupicínio
Rodrigues (Um Favor) e Torquato Neto (Três da Madrugada, canção menos
conhecida, gravada em compacto na época).

O cenário traz elementos simples e realçados pela boa iluminação (folhas secas
pelo chão e algumas que caem pelo palco durante o show, galhos secos
suspensos no ar, assim como as dezenas de velas acesas que descem e sobem a
partir do momento em que a cantora revive a clássica Ave Maria do Morro) e o
acompanhamento musical é totalmente intimista e acústico (violão, contra-baixo,
bateria/percussão e sopro). Ou seja: a comprovação da velha teoria de que o
simples e bem feito pode se tornar algo extremamente elegante.

Os toques dados pela boa direção de Bia Lessa (profissional com extenso
currículo na área teatral) deixou Gal mais solta e mais perto do público, inclusive
em momentos que a platéia interage, como em Nada Além (Custódio Mesquita e
Mário Lago), com acompanhamento apenas do contra-baixo e dos estalos dos
dedos dos músicos, da cantora e do público. Momento muito aplaudido, assim
como em Nossos Momentos (tema da novela “Celebridade”), que puxou a
vendagem do seu novo CD e garantiu a ele 100 mil cópias vendidas, hoje o
equivalente a disco de ouro duplo.
Enfim, Gal Costa continua mostrando-se única e que a verdade é só uma: tudo o
que faltava nos seus últimos trabalhos era uma boa direção. Isso ela já conseguiu
e o público foi e tem sido a melhor resposta.

http://www.olhao.com.br/musica.shtml
Crítica do Estado de Sao Paulo: 26 de junho de 2004:

GAL REPISA FOLHAS SECAS EM SHOW RETRÔ


LAURO LISBOA GARCIA

Nada do que foi será,mas ainda há uma força estranha que leva Gal Costa a
cantar. Um simples passar de olhos no roteiro era de entusiasmar os mais
incrédulos,aqueles que já desistiram de
esperar dela arroubos de ousadia.
Grandes canções,alguns clássicos irretocáveis,jóias escondidas.Que seria retrô
todo mundo sabia. A questão era o que iria resultar daquele repertório.
E alguém cantando muito, cantando bem surgiu por detrás da
cortina a se levantar, espalhando beleza, a capella, muito bom de se ouvir.
O início promissor do show Todas as Coisas e Eu, aos poucos, deu
lugar a decepções, constrangimentos e equívocos.
Mas como pancadas de ondas intermitentes, Gal também fez por merecer créditos
dos que a conservam na ala das grandes cantoras. E bota
conservadorismo nisso.
Num segundo movimento, empunhou o violão, para arranhá-lo, como nos velhos
tempos,tirando do baú pepitas de Lado B setentistas, como a fusão de Nega
Manhosa (Herivelto Martins)com Samba-Rubro Negro (Wilson
Baptista/Jorge de Castro) e a linda e incompreendida Três da Madrugada
(Torquato Neto/Carlos Pinto).
Tomou um baile da letra de Um Favor (Lupicínio Rodrigues), mas livrou-
se da trapalhada com um arremate bem-humorado. “Que situação
tocar e cantar, hein?”, brincou.
O clima de intimismo e felicidade mudaria repentinamente, com uma mal colocada
programação eletrônica em Caribantu (Lenine/SérgioNatureza),
vinheta que abriria um desnecessário bloco de baiões. Uma árvore
morta suspensa no teto e uma chuva de folhas secas,juntando se às do chão,
introduzem seqüências constrangedoras de cenários bregas, que fazem alusões
redundantes às letras das canções, variando como as estações do ano. Quem
está por trás disso é Bia Lessa, que também assina a direção (!).
Quando Gal canta Camisa Amarela (Ary Barroso), o clima é de primavera,
então logo a tal árvore ganha pencas de flores. Fácil adivinhar
de qual cor, não? Em Ave-Maria no Morro (Herivelto Martins),
lamparinas acesas descem do teto no momento em que ela entoa ...E
quando o céu escurece/E levo a Deus uma prece.Osobe-e-desce das chamas
continuaria por Assum Preto (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), provocando risos.
Pouco antes, Gal teve de pagar o mico de subir numa
minúscula plataforma coberta de folhas e quase caiu dos saltos.
Meio desequilibrada,mandou dali, acompanhada só de contrabaixo e de estalar de
dedos, um dos momentos mais bonitos do show: o fox Nada além (Custódio
Mesquita/Mário Lago).
Outro grande achado foi o bolero Dama do Cassino (Caetano Veloso),
gravado por Ney Matogrosso e Jussara Silveira, que Gal cantou
radiante e sinuosa.É certo que nem todas as canções foram interpretadas como
mesmo brilho.Em algumas delas, Gal parecia ligada
no piloto automático, esbanjando técnica, deslumbrada com a realeza
da própria voz, mas sem entrar na célula da canção.Oh,sim,eu estou
tão cansado/ Mas não pra dizer/Que eu não acredito mais em você: é a
contundente Vapor Barato (Jards Macalé/Waly Salomão)que se perde no meio do
trajeto. Na Linha do Mar(PaulinhodaViola)foi um desanimador anticlímax.Deu
saudade de Clara Nunes.
Transitar sorrindo pela doída Fim de Caso (Dolores Duran), porém,
foi mero detalhe entre os equívocos. Pouco, diante da interferência do sax pastoso
de Zé Canuto, culpado por melar os arranjos de boa
parte do repertório. Poderia ficar só na flauta como bem o fez em outras.
Gal não precisa muito mais do que um bom violão,como provou no bis
com Força Estranha (Caetano).Mas Bia Lessa tinha de fazê-la cantar
Folhas Secas (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito) pisoteando as
próprias.E ela aceitou. (L.L.G.)

In: www.galcosta.com.br, acesso em 05/07/2004.


1

ANEXO IMAGENS

(AI01)

(AI02)

(AI03) Cenas do show


Doces Bárbaros (1976).
2

(AI04)

(AI05)

(AI06) Cenas do show Doces Bárbaros


em 2002
3

(AI07)

(AI08) Cenas da Homenagem a Dorival


Caymmi num trio elétrico no carnaval
de 2001, em Salvador.
4

(AI09)

(AI12)

(AI10)

(AI11) Imagens de ensaios e promoções do show Doces Bárbaros em 1976.


A idéia de grupo era a mais veiculada em relação a esses artistas.
5

(AI13) Encarte do disco Doces Bárbaros, Polygram, 1976.

(AI14) Programa do show Doces Bárbaros, 1976.


6

( AI15)

(AI16)

(AI17) Imagens do show Doces Bárbaros, 1976.


7

(AI18) Julgamento de Gil por porte de maconha


durante a turnê dos Doces Bárbaros, em 1976.

(AI19) Na delegacia, à época da prisão,


em Florianópolis (1976).
8

(AI20) Repercussão na imprensa


do re-encontro em 2002.

(AI21) Spot publicitário do DVD


Outros (doces) Bárbaros, lançado em 2004, pela gravadora Biscoito Fino.
9

(AI22) Caetano e Gal


à época dos Festivais no final dos anos sessenta.

(AI23) Cena do show Nós, por exemplo,


Salvador,Teatro Vila Velha, 1964.
10

(AI24) Ensaio para a capa do disco


Tropicália ou Panis et Circensis (1968).

(AI25) Cena do Programa Divino, Maravilhoso (1968),


TV Record, apresentado por Caetano, Gil e Gal. Caetano planta bananeira,
lembrando o gesto já realizado por João Gilberto.
11

(AI26) Gil e Bethânia no período dos programas de televisão,


meados dos anos sessenta.

(AI27) Gil com Jair Rodrigues e Elis Regina no programa O fino da Bossa,
meados dos anos sessenta. Gil transitava bem nos meios do chamado samba-jazz, além
de estar ligado aos círculos da Bossa Nova.
12

(AI28) Gil e Os Mutantes, defendendo a canção


Domingo no Parque No III Festival da Record (1967).

(AI29) O visual tropicalista de Gil e Caetano que chocava mídia e público.


Que baianos são esses?
13

(AI30) Gal, em ensaio na época do Tropicalismo.

(AI31) Gal durante apresentação da peça


Divino, Maravilhoso (1968). Essa apresentação representou uma primeira guinada na
carreira de Gal, a colocando como intérprete inovadora e posteriormente um ícone
jovem.
14

(AI32) Gal e o Divino, Maravilhoso.

(AI33) Gal na época do disco Índia (1973).


Uma indumentária hippie e ligada ao desbunde.
15

(AI34) Gal na época do show Índia (1973).

(AI35) Sônia Braga com Gal, final da década de setenta. Em 1975, sua imagem foi
associada à Gabriela, por conta do folhetim da Rede Globo baseado na obra de Jorge
Amado. Cogitava-se que Gal interpretasse a personagem dada sua identificação com a
brejeirice baiana naqueles tempos.
16

(AI36) Gal com Dorival Caymmi, com quem realizou


uma turnê em 1976. O show chamava-se Gal canta Caymmi.

(AI37) No show Com a boca no mundo (1977). Gal queria voltar a atingir um público
hippie no final dos anos setenta e realizou um espetáculo como que travestida de
hiponga. Hoje a cantora diz não gostar da experiência, que, segundo ela, foi
“equivocada”.
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(AI38) Ensaio fotográfico para o disco Gal Tropical (1979).

(AI39) Gal é capa da revista Veja pelo


sucesso do show Tropical (1979).
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(AI40) O beijo famoso entre Gal e Bethânia ao final da apresentação


de Oração à Mãe Menininha, no Phono 73.

(AI41) Bethânia e Gal, nos tempos do início das carreiras.


O visual de Bethânia não correspondia ao de baiana faceira.
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(AI42) O visual displicente nos seus muitos


shows nos anos setenta.

(AI43) Em 2002, com os músicos Davi Moraes e Márcio Vítor,


assumindo a liderança de uma formação de banda com sonoridade
afro-elétrico-baiana
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(AI44) Ensaio para o show Doces Bárbaros em 2002.

(AI45) Gal e Bethânia cantando Esotérico, no show de 2002. O


clima do primeiro encontro se manteve, com a teatralidade de uma
cena de flerte.

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