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DOCES E BÁRBAROS
UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES
DE IDENTIDADES BAIANAS
DOCES E BÁRBAROS
UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES
DE IDENTIDADES BAIANAS
DOCES E BÁRBAROS
UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES DE IDENTIDADES BAIANAS
__________________________________________________
__________________________________________________
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AGRADECIMENTOS
Caetano Veloso
Disco Doces Bárbaros, 1976
RESUMO
ABSTRACT
The power of music that is present on all representations of the Brazilian and
Bahian society as well show interesting elements to sociological studies. The cultural
identity, as a text made of varied representational bundles, has a great expression on the
musical production, especially if we consider some specific musicians. Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa and Maria Bethânia have been working on the elements of
cultural identity for almost four decades. The event called Os Doces Bárbaros (the
concert, the album, the picture), in 1976, comes as an interface between their careers
and a privileged moment to contemplate their performance as a means to find a new
meaning to Bahia, starting from identity constructions based on artistic practices.
Caetano, Gil, Gal and Bethânia created a kind of musical that showed Bahia in a new
position, between the modern and the traditional in the current representations,
performing themes that range from the mythical ancestors to the sound of a carnival
with trios elétricos, working on the African Brazilian identity that is under construction.
The repertoires, images and several declarations to the press are accessible sources in
understanding the identity dynamics that can be seen in their work. Thus, it is important
to consider the constitution of the types in Bahia by each of these musicians, to get to
the different Bahias shown in their music. The imaginary on the society of Bahia in the
context of the representations of Brazil is considered to have been changed with these,
and a representative articulating network of texts that work on identity is reset and
reconfigured after the practices and singularities analyzed here.
LISTA DE QUADROS
pg.
5 Discografia Transversalizada de
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia 186
SUMÁRIO
pg.
Apresentação 9
1 Introdução 11
APRESENTAÇÃO
O que realizo, através desta pesquisa, é situar a obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia
no plano das construções identitárias em torno da Bahia, tal como estas vêm se legitimando
historicamente no âmbito das construções hegemônicas da brasilidade.
11
1 INTRODUÇÃO
Desta forma, o objeto deste estudo corresponde a uma interface2 constituída pela
prática artística de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, devidamente
contextualizada. Nesta interface, a música – e, com a música, as atuações e contextos em
que esta se configura como expressão artística e/ou identitária – é vista ao mesmo tempo
como meio e conteúdo de expressão social; dito de outra forma, de representações de uma
determinada sociedade; no caso, a sociedade baiana. Aqui se trata, especialmente, de como
se cruzam as relações entre tradição e modernidade na sociedade baiana
contemporaneamente.
1
O que não significa dizer que a Bahia “tem mais cultura” que outras formações sociais, como parece se
depreender de certos discursos, inclusive no âmbito oficial.
2
Este termo significa, nesta pesquisa, uma composição de referências e vetores colocados intimamente lado a
lado ou superpostos. O acontecimento Os Doces Bárbaros pode ser considerado uma interface das carreiras
destes artistas; não se tratando de uma síntese das práticas de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, pode ser tomado
como um encontro de trajetórias singulares articuladas e de certa forma convergentes. A origem mais radical
deste termo se encontra na informática, como ponto de contato entre periféricos e unidade de processamento
dos computadores (CPU). A interface, então, é um locus de encontros e colateralidades, esboçando assim um
quadro passível de análise.
12
Vale desde já uma ressalva: o que se chama de sociedade baiana neste estudo está
delimitado a esta formação social geograficamente situada em Salvador e no Recôncavo e
que adquiriu, num feixe de representações em configuração nos contornos da identidade
nacional, a denominação Bahia3. Tal feixe de representações, sendo amplamente divulgado
através da mídia, acabou por estabelecer um lugar da Bahia na configuração que vem a ser,
afinal, o Brasil.
Tratar da arte como vetor social traz consigo uma necessidade de entendimento desta
prática nas suas dimensões internas ao campo artístico e nas suas relações com outros
campos, no sentido de apreender as tensões entre os campos que constituem as formações
sociais. Neste sentido, cabe lembrar uma observação de Elias sobre a arte e sua posição no
mundo social:
Entre as mais interessantes perguntas não respondidas de nosso tempo está a que indaga
quais características estruturais fazem as criações de uma determinada pessoa
sobreviverem ao processo de seleção de uma série de gerações, sendo gradualmente
absorvidas no padrão das obras de arte socialmente aceitas, enquanto as de outras
pessoas caem no mundo sombrio das obras esquecidas (Elias, 1994b, p.52).
3
Esta identificação entre Recôncavo e Bahia será melhor abordada no Capítulo 4.
13
Um estudo desta natureza não poderia deixar de considerar a trajetória destes artistas
tendo como epicentro4 a formação do grupo Os Doces Bárbaros, em 1976. Iniciando suas
carreiras conjuntamente e seguindo caminhos individualizados por uma década,
propuseram uma estratégia de interfaciamento de seus trabalhos que desaguou num show,
disco e filme que alcança(ra)m significados especiais na história do campo artístico no
Brasil justamente por elegerem, como matéria de sua arte, traços identitários tão relevantes
quanto polêmicos, seja naquele período, seja nos nossos dias.
O conjunto Os Doces Bárbaros, que, como afirmam seus integrantes, surgiu do desejo
de comemorar publicamente o sucesso de suas carreiras individuais, acabou por arranhar
certos traços da brasilidade tradicional que até aquele momento eram intocáveis nas
representações sobre o Brasil – e particularmente sobre a Bahia. Desde o fenômeno da
Tropicália, que desencadeou discussões polêmicas em torno de conceitos como cultura
popular, arte pop, música de qualidade e outras categorias expressivas nos estudos sobre
canção popular no Brasil, estes músicos vêm se emblematizando – e sendo
emblematizados – como atuantes e mesmo propositivos de reorganizações sobre o próprio
ato de fazer música.
Os Festivais da Canção, que nos anos sessenta foram palco do surgimento, diante dos
públicos, de nomes que até hoje fazem sucesso no universo da MPB, constituíram-se
também como espaços de lutas simbólicas destacadas. Era perceptível tanto a
espetacularização midiática dos discursos dos artistas e do público quanto a visualização da
presença do status político das décadas de sessenta e setenta nas manifestações artísticas no
Brasil. A televisão brasileira vivia então um período em que as atenções se voltavam para o
florescimento de novos talentos que passavam pela tela, revelando faces individuais e de
vários lugares do país, fazendo emergir correntes e tendências que viriam a se desenvolver
e desencadear como sucesso a partir do impulso originário dos Festivais.
4
Considero tal momento como central para as questões que aqui são colocadas, o que não significa dizer que
Os Doces Bárbaros representa uma centralidade absoluta nas trajetórias de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
Costa e Maria Bethânia.
14
desenvolvimento e que via suas possibilidades de expressão social restritas, muitas vezes,
ao lúdico e ao entretenimento imediato.
A que se destina, então, a pesquisa? Podemos dizer que seu objetivo geral é contribuir
para a compreensão de como elementos de narrativas identitárias presentes na obra de
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia se relacionam com as
representações/narrativas tradicionais sobre a sociedade baiana e se inserem na trama da
produção destas últimas, vindo a tornar-se um dos elementos mais intrigantes na
construção de um sistema de representações ao mesmo tempo tradicional e inovador no
âmbito da formação sócio-cultural baiana e brasileira. Como desdobramentos deste
objetivo, trata-se de identificar a relevância de cada um dos quatro artistas na dinâmica de
narrativas identitárias sobre a sociedade baiana, bem como analisar a relação entre estas
representações presentes na sua obra e as narrativas que organizam com sentido uma
singularidade auto-referida da Bahia enquanto formação social.
Trato baianidade como um texto, na acepção mesma de tecimento (no gerúndio), tecido (no
particípio) e contextura, tessitura (no infinitivo) de significações e orientações, o nome de
uma doutrina ou de uma cartilha de convivência, de um arranjo civilizatório. Que este seja o
nome de um engodo, uma ideologia, uma estratégia de dominação, segundo tantos de nós,
não arranha a validade de constituí-lo como objeto de uma pesquisa. Neste sentido, alguns
analistas e observadores que, intrigados com o nosso quadro sócio-histórico, afirmam que
a baianidade não existe de fato estão contribuindo para esta discussão da mesma forma
com que estariam caso estivessem polarizados de modo oposto, como adeptos entusiastas
da baianidade. Esta não precisa existir como verdadeira ou válida aos nossos olhos de
apreciadores éticos. Aos efeitos desta pesquisa, importa que exista como objeto de estudo
(Moura, 2001, p. 13).
Por sua vez, o texto identitário é aquele que, especificamente, realiza a asserção
direta da identidade, o anúncio explícito do perfil de um sujeito, seja um modesto
indivíduo, seja uma sociedade de milhões deles (idem, ibidem, p. 12)
15
Desta forma, a transfiguração das narrativas sobre a Bahia na obra de Caetano, Gil,
Gal e Bethânia podem se referenciar em posições tanto no campo artístico como em
5
O termo acontecimento engloba a realização do show, do disco e do filme, além da formação do grupo, ou
conjunto Os Doces Bárbaros. É uma maneira de facilitar a remissão aos fatos. Como o show foi registrado
em disco e filme, e estes estão associados, para falar deste momento das trajetórias destes músicos, utilizo o
termo englobante acontecimento.
16
Do ponto de vista mais propriamente técnico, um aspecto que vale a pena salientar,
logo de início, é que um trabalho sobre práticas artísticas tem a especificidade de lidar com
fontes variadas e cujo tratamento demanda algumas considerações, a serem aprofundadas
oportunamente.
• fotografias;
A presença de suas obras em meios de ampla divulgação revela traços que dão suporte
às discussões deste trabalho. Cabe, entretanto, considerar a relatividade dessas fontes,
inseridas numa trama eminentemente relacional. Bourdieu (2001; 2003; 2004) utiliza o
conceito de campo artístico no sentido de que a criação não é fruto apenas do criador,
situando outros agentes do campo como promotores da existência das obras, o que remete
à questão (a ser tratada adiante) das trajetórias/biografias dos artistas. As contribuições de
Ribeiro & Lerner (2003) e Velho (2001) possibilitam situar a discussão sobre o aspecto
biográfico relativo aos indivíduos nas sociedades complexas contemporâneas. Neste
sentido, as fontes que utilizo acabam por fazer parte e consistir também nas próprias
criações, remetendo inevitavelmente aos criadores, sem pretensão de atingir “verdades”,
como numa perspectiva epistemológica tendente ao positivismo.
Por outro lado, não se pode desconsiderar que a mídia assume, nos nossos dias, um
papel central no reconhecimento das realidades sociais. Isto não significa que produzem a
realidade, como às vezes se desprende de certos discursos, mas elabora lentes através das
quais se enxergam os fatos, construídos como tais. Canclini nos situa:
A análise leva em conta tanto as letras quanto os estilos das peças, os momentos em
que foram efetivamente executadas e o impacto causado na mídia e nos públicos. Uma
canção como Atrás do trio elétrico (Caetano Veloso), por exemplo, ultrapassa os limites da
18
cena artística e alcança uma outra magnitude, pois representa a assunção, por parte do
autor, de uma musicalidade que revolucionou o cancioneiro baiano desde Caymmi e passa
a ser matéria de suas elaborações musicais/identitárias. Vejamos:
Vale salientar que um estudo dessa natureza não se propõe a avaliar o show e as
práticas artísticas correspondentes às quatro carreiras em termos propriamente estéticos,
como seria o papel do crítico, do jornalista ou do cronista. Não é demais lembrar que, nesta
pesquisa, a produção desses profissionais é uma fonte aos efeitos de uma discussão
sociológica das representações que entram em jogo – confrontando-se, defrontando-se,
recriando-se –, revelando aspectos importantes na trama da identidade cultural; no caso em
questão, a constituição de uma identidade cultural baiana. Ou seja, o trabalho de Caetano,
Gil, Gal e Bethânia é apreciado em função de sua relevância social, muito mais de que do
seu valor musicológico.
19
6
São três coleções de anexos num mesmo volume: o Anexo Depoimentos – AD, o Anexo Notícia – AN e o
Anexo Letras – AL. Cada chamada no corpo do texto da Dissertação consta da abreviação, seguida do número
de ordem da peça. Ex: [AL 17].
7
O CDRom contém o texto da Dissertação, os diversos anexos acima e ainda o Anexo Internet e as imagens
e entrevistas em áudio com Caetano, Gil, Gal e Bethânia sobre o show Doces Bárbaros e suas
comemorações, bem como a série de diapositivos preparada para fins de exposição.
20
A Bahia é muito sensual e não estou falando de mim só, não. O povo baiano tem languidez,
um jeito ali, uma gingada aqui...
In: Revista Playboy, novembro de 1996.
8
Aquele Abraço [AL 001], de fevereiro de 1969, quando saía do Rio de Janeiro em direção a Salvador,
encaminhando-se para o exílio em Londres, alguns meses depois.
21
Hoje eu já canto assim: “pra você que não me esqueceu, aquele abraço...”.
In: Domingão do Faustão. Rede Globo de Televisão, 1997.
9
Costuma-se também colocar o pós-moderno, ou pós-modernidade, como objeto/discussão principal desses
autores.
22
Para Hall (2002), na modernidade tardia, não somente as concepções sobre o sujeito
são modificadas, como também as formulações de identidade cultural. As narrativas que
organizam a identidade tornam-se cada vez mais complexas em decorrência da
multiplicidade crescente de posições sociais ocupadas pelos indivíduos. O sujeito social
não é apenas ou simplesmente a mulher, a operária, a homossexual. Pode ser um amálgama
– uma interface mesmo – destes padrões identitários.
Quando aqueles estudantes nos vaiaram, a mim e a Gil, eles não estavam errados. Nós
sempre fomos suspeitos politicamente...
Caetano Veloso
In: Programa Roda Viva, TV Cultura, 1996.
10
Termo reconhecidamente problemático, pela inclusão do prefixo “pós”. Não assume aqui um sentido
cronológico simples. Poderia ser substituído por contemporaneidade, como preferem vários autores.
11
Ver depoimento completo em Anexo Depoimentos 01.
24
Deste modo, Bethânia aparece como uma intérprete de voz grave e presença que não
correspondia modularmente à imagem de baiana brejeira e doce, como Carmem Miranda
ou as personagens femininas da obra de Caymmi12. Ao mesmo tempo, o vigor de sua
expressão dramática, muitas vezes extrapolando o palco, fez com que a imagem de Maria
Bethânia ficasse cada vez mais associada ao caráter de Iansã, a quem a artista se refere
como sendo seu orixá (Passos, 2004). Pode-se afirmar uma identificação desta figura
artística com uma conformação de mulher forte e pronta para os enfrentamentos, o que –
considerando-se o lugar de passividade normalmente reservado às cantoras no Brasil –
fazia com que a aparição de Bethânia fosse recebida como algo estranho e/ou intrigante.
12
O que, entre outros vetores, a diferencia como baiana de Gal Costa, por exemplo.
13
Esta emblematicidade não deveria levar ao equívoco de afirmar que eles simplesmente “criaram” a
Tropicália, que contou também com a participação decisiva de Torquato Neto, Capinam, Tom Zé e outros
artistas. A propósito, o termo Tropicália foi retirado de uma instalação artística de Hélio Oiticica, que
impressionou Caetano. A sugestão do nome da canção Tropicália (Caetano Veloso) [AL 005] foi dada pelo
cineasta Luís Carlos Barreto e acatada logo pelo produtor Manoel Barenbein e empresário Guilherme Araújo,
que conseguiu fazer Caetano aceitar este nome.
25
O Ronaldo Bôscoli, que era carioca e estava no júri, falava para os jornais: "Ué, o que
esses baianos estão pensando? Eles não conhecem Cabo Frio, Saquarema, Araruama,
Angra dos Reis? Estão falando que o mar da Bahia é que é o mais azul do mundo?” E
Caetano, que já era metido a galo-de-briga, se enfezou. A música foi desclassificada, né?
Maria Bethânia
In: Entrevista à revista Playboy, Novembro de 1996.
A imagem pública de Gal Costa, que passa de cantora pós-Bossa Nova a uma espécie
de roqueira hippie da Bahia, é outro exemplo de trânsito identitário importante. Produzida
por Guilherme Araújo – considerado por alguns observadores o grande manager das
carreiras do grupo baiano14 –, Gal se permite colocar na posição de uma artista entre a
interpretação límpida associada ao detalhismo da Bossa Nova e os arroubos modernizantes
da Jovem-Guarda. Caetano Veloso, reportando-se ao momento em que o nome de Gal
muda de Gracinha para Gal Costa, chega a afirmar que Guilherme Araújo queria
transformar a intérprete numa nova Wanderléa, figura emblemática do iê-iê-iê (Veloso,
1997).
Ser praticante de culto afro-brasileiro significaria, nesta ótica, não ser católico; ser
mulher significaria não querer (ou não poder) ser dócil com os homens; e assim por diante.
Embora as identidades costumem ser percebidas a partir de oposições relativas, o que se
propõe aqui é a consideração de nuclearizações identitárias não necessariamente
dependentes de um outro antitético (como num binarismo estruturalista simplificador) para
14
Como ficaram conhecidos Caetano, Gil, Gal e Bethânia, desde os idos de 1965-66, ao chegarem ao eixo
Rio-São Paulo, como pode ser atestado em diversas referências, seja em jornais da época, seja na bibliografia
específica sobre música popular brasileira, alguns itens constando neste trabalho.
26
15
Moura usa o conceito de texto “na acepção mesma de tecimento (no gerúndio), tecido (no particípio) e
contextura, tessitura (no infinitivo) de significações e orientações, o nome de uma doutrina ou de uma
cartilha de convivência, de um arranjo civilizatório” (2001, p. 13). O texto identitário, especificamente, é
“aquele que realiza a asserção direta da identidade, o anúncio explícito do perfil de um sujeito, seja um
modesto indivíduo, seja uma sociedade de milhões deles” (2001, p. 12).
27
Durante todo o ano, e com uma maior intensidade no verão, Salvador é dita pelos quatro
cantos como a cidade onde impera a festa. Seria uma característica nossa o exercício
constante tanto do som quanto da pélvis? E como os baianos vêem essa leitura? Lembro-
me de dois fatos que podem exemplificar de que modo nós reagimos. Um deles foi a
exibição de um programa sobre a Bahia, em que a atriz Regina Casé satirizava o jeito de
ser do baiano com a máxima de que nós quando estamos deitados numa rede não
fazemos nenhum esforço, nem para pegar um pedaço de melancia. (...) O outro fato foi ter
sido eu testemunha ocular da expectativa paulistana dessa representação festiva. Fui
chamado à atenção pelos paulistas por não me comportar como um autêntico
representante da república do acarajé e do dendê. Ou seja, se em alguma festa há um
baiano, necessariamente, ele tem que estar fadado a incorporar algum espírito da festa.
Jocélio Teles dos Santos, Farsa de baiana que não é falsa. In: A Tarde Cultural, Jornal A
Tarde, 01.maio.1999, p.8.
A identidade cultural baiana viria, então, marcada pelo signo da festa e da alegria,
num construto que posiciona como dominantes, determinados padrões de comportamento.
Por outro lado, do mesmo modo que no senso comum é cada vez mais difícil assumir uma
única identidade social, também para a ciência torna-se um problema a definição de qual
identidade unívoca (Uriarte, 2002) pode ser associada a um indivíduo mergulhado em
redes e arranjos sociais. Os sentidos, motivos e identificações que emanam da relação entre
os sujeitos – e suas posições sociais – são complexificadores e componentes invariáveis do
que chamamos identidade cultural.
Neste sentido, os autores dos estudos culturais trazem, como contribuição maior para
essa discussão, uma perspectiva analítica fecunda no tratamento do problema da
construção das identidades. Em Hall (2002), vemos que essa identidade iluminista, tomada
como suficiente na sua capacidade de definição do lugar ocupado pelo ser social, não se
constitui em referência principal para as sociedades ocidentais hoje estudadas pelas
Ciências Humanas. Deste modo,
Nem o sujeito individual nem o tecido social cabem suficientemente nas definições
analíticas calcadas no parâmetro da univocidade. Em um dos casos citados por Hall, o
negro norte-americano que é juiz, de partido conservador, acusado de molestar
sexualmente a secretária branca pode bem configurar um caso em que a determinação de
identidade está longe de ser simples, inviabilizando a pronta identificação simplesmente
como negro, juiz, norte-americano ou mesmo marginal (Hall, 2002).
28
Numa obra artística como a de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, cabe interrogar como
estes artistas se posicionam e assumem traços identitários nos encontros face-a-face com
seus interlocutores, desde a produção até os públicos finais. A negociação de self
estabelecida por Maria Bethânia com suas gravadoras, empresários e produtores, por
exemplo, acaba se estendendo à forma como conduz sua relação com os públicos. Bethânia
é reconhecida de maneira muito geral e ampla como uma cantora de forte apelo dramático
que impõe suas vontades e caprichos para assegurar seus lugares no campo da música.
Desta forma, desvencilhou-se de uma imagem de cantora de protesto para assumir sua
posição de intérprete do cancioneiro mais tradicional brasileiro entre os anos 20 e 50,
assim como também pôde construir uma carreira em que a Bahia – do candomblé às
canções sobre Nossa Senhora – é matéria de seu canto. Cabe observar que essa marca de
identidade que se plasma a partir de uma pretensão – que se mostrou exeqüível em virtude
da peculiar situação de quem inaugura novas formas de se perceberem as cantoras no
Brasil – esteve em discordância com princípios empresariais que orientavam sua carreira,
como se verificou, por exemplo, quando de seus desentendimentos com Guilherme Araújo,
que a considerava a mais internacional das cantoras brasileiras na década de sessenta
(Calado, 1997). Vejamos:
Deste modo, uma construção identitária em que aquilo que figura como emblema
maior é um temperamento marcante pode conduzir a perceber um estabelecimento de ação
performativa por Bethânia, que define com notável agudeza norteamentos da sua interação
e figuração como artista. No seu caso, a singularidade artística viabilizou o trânsito
identitário pela via de uma auto-imagem (Elias, 1994a) tomada/percebida como própria de
seu “temperamento forte”.
Enfim, a fragmentariedade pode ser tomada, aos efeitos desta pesquisa, como a chave
de compreensão da formação da identidade cultural, que integra uma série de elementos
axiais referenciadores no seu delineamento. Narrativas como the englishness, a
baianidade, a alma latina ou a lusitanidade somente soam procedentes a partir da
confluência de diversos vetores aplicados sobre o mesmo ponto, nem sempre coerentes.
Vetores tangentes e muitas vezes contraditórios e/ou dissonantes compõem os textos
identitários (Moura, 2001) nos nossos dias; ou seja, é justamente o díspar que pode ser
especialmente estratégico para a compreensão do arranjo correspondente à noção de
identidade, do mesmo modo que as narrativas nacionais são formadas na administração
contínua de suas lembranças e esquecimentos, necessários para a configuração do próprio
Estado-Nação moderno (Anderson, 1989).
Por sua vez, Homi Bhabha (1998) procura desvelar esta dinâmica a partir das noções
de performático e pedagógico. A aproximação destes elementos conceituais com a noção
de identidade regional em Bourdieu (2002) parece então plausível, pois o que se opera
nesta rede identitária é uma luta simbólica pelas classificações e pelas hegemonias através
do poder de di-visão preconizado por este autor. Tanto as lembranças e esquecimentos em
torno das narrativas identitárias (Anderson), quanto o aspecto performativo (Bhabha) estão
colocados nas lutas simbólicas pelo estabelecimento das narrativas majoritárias.
mídia. Ao lado de outros nomes da MPB, foram contratados pela maior multinacional16
fonográfica brasileira nos anos sessenta e setenta, a Polygram, e puderam ter acesso a
condições de gravação, divulgação e presença midiática que lhes possibilitaram a
veiculação de sua arte, e portanto de narrativas identitárias de toda sorte.
Este grupo baiano pôde se tornar dominante num cenário em que muitos tipos de
trabalhos artísticos se mostravam, cada um deles guardando expressivas especificidades.
Na Bahia, os Novos Baianos, Diana Pequeno, os Tincoãs e Raul Seixas são alguns nomes
fortes que surgiram e se impuseram em posições diferentes no campo musical,
identificados com outros aspectos de identidade cultural baiana.
Tomemos brevemente, como contraponto, o caso de Raul Seixas. Sua música traduz
uma irreverência típica do rock que representava os anseios de uma juventude suburbana
e/ou periférica de Salvador, que parecia perceber nesse artista a encarnação de uma
modernidade norte-americana que aportava na Cidade Baixa e adjacências. Esse rock
baiano, se assim podemos chamar, não alcançou terreno maior que uma sensualidade
lasciva também eletrizada de Caetano, Gil e Gal, demonstrando que, no âmbito das lutas
simbólicas, os capitais em jogo são decisivos para determinar uma lógica de ascensão ou
estagnação das ações.
Raul Seixas não logrou estabelecer-se como o artista baiano por excelência e/ou por
definição, a despeito de seu grande sucesso entre alguns públicos jovens, pois não acessou
elementos identitários de assimilação fácil em relação ao imaginário baiano. Sua música
não deixava de ser associada à Bahia (poucos artistas baianos praticam essa
desvinculação), mas o fato de ser rock deixava para trás a referência maior de ser algo
“tipicamente baiano”. Não é demais citar um comentário de Caetano sobre Raul Seixas,
publicado em 1993, no encarte do disco Tropicália 2:
Tudo o que não era americano em Raul Seixas era baiano demais.
Caetano Veloso
In: Caetano e Gil: Tropicália 2. Encarte, CD, Polygram, 1993.
16
Isto é atestado pela quantidade e qualidade publicamente reconhecida dos artistas contratados por esta
empresa desde o final dos anos sessenta, o que se prolongou por toda a década seguinte. A Polygram
realizou, em 1973, um grande festival – o Phono 73, em que reuniu o seu cast, lançando alguns álbuns com
seus shows. O jornalista Tarik de Souza, participando de uma entrevista a Gilberto Gil no programa Roda
Viva, em 1999, afirmou que esta promoção “era uma demonstração de força da Polygram”.
31
A identidade cultural passa então a ser vista como coincidindo com a elaboração e
cultivo de uma narrativa que, longe de ser simplesmente unificadora, é antes uma
organizadora de superfícies e profundezas que guardam entre si uma relação de tensa
complementaridade. Seus contornos são definidos pela presença de elementos que
interagem inclusive com certas fissuras e marcas irreversíveis de sua processualidade,
como vemos em Bhabha (1998). Neste sentido, a música popular pode ser percebida como
écran de narrativas identitárias, com suas variadas possibilidades de aportes a partir de
muitos artistas, que singularmente expressam feixes de representações remetidos aos
diversos vetores de brasilidade.
17
Algumas discussões presentes na obra destes últimos autores serão retomadas no Capítulo 4, quando se
trata da categoria da territorialidade.
32
retorna ao Brasil, a música deste artista passa a ser um veículo de expressões tanto das
sociabilidades baianas/nordestinas, como nos discos Expresso 2222, de 1972, Refazenda,
de 1975, e Refavela18, de 1977, quanto de elaborações sobre negritudes.
O que a mídia chama de "world music", toda música popular criada e produzida na África,
América Central e do Sul e em outras partes do planeta, nasce de uma colisão: a colisão
entre os impulsos pela emancipação, autonomia e identidade dos povos do chamado
Terceiro Mundo, por um lado e, por outro, os interesses do Primeiro Mundo em manter seu
poder (...) A world music é, portanto, um paradoxo contemporâneo: um mundo
heideggeriano, onde todos somos vítimas e algozes, controlados e controladores. Sem nos
darmos conta disso, trabalhamos para a unidade do planeta e, vice-versa, para o
crescimento e a proliferação da diversidade local, que se afirmam em múltiplas
minirrealidades espalhadas como poeira em todo o globo (...) O jazz influencia o samba,
que cria a bossa nova, que, por sua vez, influencia novamente o jazz. O son, a rumba, o
mambo, o merengue influenciaram a música africana. A música africana está presente no
nascimento de gêneros novos como o reggae e o samba-reggae que, por sua vez, tornam
a influenciar os novos movimentos da música africana e a subsidiar também o rock n' roll e
o rhythm 'n blues (...) Os "mercadores do ritmo" partiram com suas novas caravanas,
transportadas por neonavegações, via filmes, rádio, disco e televisão, satélites e
computadores. Nos últimos 50 anos eles estabeleceram um intenso tráfego musical entre
as últimas fronteiras do planeta e o centro euro-americano, criando uma música do mundo
industrial que vai muito além da “world music” tal como definida pelos executivos yuppies
do showbizz (Gil, 1995, p.1-3).
A música do mundo é maior que a world-music. In: O Estado de São Paulo, 1995.
Publicado em www.gilbertogil.com.br, acesso em 15/04/2003.
18
A faixa título homônima encontra-se como AL 009.
33
Este capítulo também propõe alguns novos cronótopos* que poderiam se adequar a uma
teoria que fosse menos intimidada pelos – e respeitosa dos – limites e integridade dos
estados-nações modernos do que têm sido até agora os estudos culturais ingleses ou
africano-americanos. Decidi-me pela imagem de navios em movimento pelos espaços entre
a Europa, América, África e o Caribe como um símbolo organizador central para este
empreendimento e como meu ponto de partida. A imagem do navio – um sistema vivo,
microcultural e micropolítico em movimento – é particularmente importantes por razões
históricas e teóricas que espero se tornem mais claras a seguir. Os navios imediatamente
concentram a atenção na Middle Passage** (passagem do meio), nos vários projetos de
retorno redentor para uma terra natal africana, na circulação de idéias e ativistas, bem
como no movimento de artefatos culturais e políticos chaves: panfletos, livros, registros
fonográficos e coros (Gilroy, 2001, p. 38).
Em Gil, o negro pode ser baiano, brasileiro, britânico e mesmo africano. Suas
remissões se dão num plano que não cabe na perspectiva de uma classificatória fixa ou
simples. Como vemos em Hall (2002), são identidades negras fragmentadas em
ancestralidades africanas e contemporaneidades luso-americanas. Vejamos um depoimento
do artista comentando a sua realidade familiar, em que a questão negra nunca foi central:
*
“Uma unidade de análise para estudar textos de acordo com a freqüência e a natureza das categorias
temporais e espaciais representadas... O cronótopo é uma ótica para ler textos como raios X das forças em
atuação no sistema de cultura da qual elas emanam”. M. M. Bakhtin, The Dialogic Imagination, organizado e
traduzido por Michel Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981, p. 426. Nota do autor.
**
A expressão Middle Passage tem uso consagrado na historiografia de língua inglesa e designa o trecho
mais longo – e de maior sofrimento – da travessia do Atlântico realizada pelos navios negreiros (N. do R.)
34
Aos efeitos deste momento da reflexão, a Tropicália pode ser compreendida como um
movimento que viabilizou e favoreceu a percepção do lançamento de capitais simbólicos
reunidos em agentes de diversas procedências sócio-culturais – o grupo baiano, Os
Mutantes, Rogério Duprat, Nara Leão, Capinam, Torquato Neto – que atuaram no sentido
de discutir o Brasil a partir de sua posição de receptor de influências globais, já naquele
período. Pode-se dizer que os tropicalistas assumiram uma brasilidade também fluida e
múltipla (no sentido de Hall), em trânsito constante (como em Gilroy) e, portanto,
sincrética (como em Canevacci).
Esta percepção das identidades culturais resultantes de processos híbridos faz sentido
se consideramos a música popular brasileira como articuladora de narrativas identitárias. O
samba, reconhecido unanimemente como gênero máximo e por definição da brasilidade,
pode ser visto (e ouvido...) como o resultado de uma série de sincretismos musicais que
começam com o que se convenciona chamar de semba para alguns músicos e
pesquisadores e deságua em uma variedade enorme de estilos correlatos, como o pagode, o
samba-canção, o partido alto.
Neste sentido, sem menosprezar as lutas pelo poder e pelos lugares ocupados pelos
grupos sociais, podemos conceber as sociedades de hoje como frutos de constantes
processos de sincretismos, sínteses e/ou interfaciamentos. A vida social, principalmente se
considerarmos a cidade como sede e referência da contemporaneidade, não pode ser
interpretada sem que se recorra às transformações operadas no encontro de tradições
culturais diversas. Assim:
35
Como analisar as manifestações que não cabem no culto ou no popular?, que brotam de
seus cruzamentos ou em suas margens? (...) Sem dúvida, a expansão urbana é uma das
causas que intensificaram a hibridação cultural. (...) Passamos de sociedades dispersas em
milhares de comunidades rurais, com culturas tradicionais, locais e homogêneas, em
algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca comunicação com o resto de uma
nação, a uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica
heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes nacionais e
transnacionais de comunicação (Canclini, 1998, p. 283-285).
Ao longo destas quatro décadas de carreira, Caetano, Gil, Gal e Bethânia acessaram
capitais simbólicos tradutores de aspectos diversos brasileiros/baianos, como as influências
da música pop internacional (expressão maior em Gil e Caetano), ou a ratificação de textos
tradicionalmente reconhecidos como nacionais (em Bethânia, esse traço fica mais
evidente), bem como uma atenção às variadas formas de utilização da voz em repertórios
bastante ecléticos (como em Gal).
Quando compõe Gênesis [AL 014], em 1976, Caetano Veloso fala da criação de uma
raça, discursivamente abordada em texto da época19, em que se reconhece a pretensão de
referenciar-se numa “horda” de baianos a invadir o centro do Brasil, numa reconfiguração
de emblemas da nacionalidade, revolvendo inclusive o que seria a matriz dos sincretismos
que estruturam o texto-nação Brasil.
A composição de Caetano e Gil, como estilo observável ao longo das carreiras, remete
em muitos momentos às associações entre vetores ora coincidentes, ora em oposição.
Termos como Oslodum (Gil, em canção homônima) [AL 015], ou orgasmaravalha-me
Logun, que Caetano coloca na canção-colagem-barroca Outras Palavras [AL 016] são
comuns em obras cujas temáticas apontam que as identidades do Brasil e da Bahia são
narrativas conforma(ndo-se)das sob a marca da multiplicidade, o que ratifica a procedência
dos paradigmas que atentam para o multiculturalismo, como o de Hall (2002).
19
Como será melhor abordado no capítulo 4.
36
Brasil nasceu”, como passado ao mesmo tempo heróico, dos primeiros índios, primeiros
expedicionários e escravos. Ao tratar sobre o tema, bem coloca Gilberto Gil, ao dizer que
Deus resolveu dar à Bahia o primeiro carnaval, o primeiro índio abatido, a primeira missa
e o primeiro pelourinho, como se vê em Toda Menina Baiana, de Gilberto Gil [AL 017],
disco Realce, 1979. Por outro lado, em Milagres do Povo, de Caetano Veloso [AL 018], do
disco Tenda dos Milagres, 1985, foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda
produziu milagres de fé no extremo Ocidente – de certo, um negro atavicamente associado
à Bahia.
Deste modo, a brasilidade, seus sincretismos e interfaces nos convidam a perceber que
a configuração das nacionalidades, tal como concebidas quando da emergência dos estados
nacionais europeus, não parece mais suficiente para responder pela situacionalidade dos
sujeitos sociais nos nossos dias. Tem-se uma rearrumação do nacional de modo que essas
relações tensas, que definem as posições dos grupos nas sociedades, possam vigir20. Os
homossexuais, as mulheres, os negros e outras chamadas minorias representam grupos
heterogêneos que, sob a égide de narrativas nacionais, percebem-se múltiplos e
freqüentemente impelidos a negociar constantemente suas posições nas estruturas sociais
onde atuam. Pois,
20
Com isso não estou afirmando que não haja validade nas narrativas nacionais. O que ocorre é uma
reconfiguração dos textos de nacionalidade/regionalidade por conta do crescimento geométrico de vetores de
identificação no mundo contemporâneo.
37
Naquele momento o tema estava muito associado a nós, artistas que fazíamos a defesa da
estética do androginismo – incorporando inclusive a ornamentália feminina em princípio
proibida ao homem, mas enfim, assumida por nossa geração como forma de afirmação de
autonomia de idéia, proposta, gosto, de contestação do conservadorismo – e que nos
colocávamos contra a histórica perseguição policial e a matança de homossexuais no Rio,
em São Paulo, nas grandes cidades, como resultado de uma intolerância social em relação
a eles. Por tudo isso, ‘O Veado’ é uma música ideológica (Gil, 1996, p. 268).
Nas temporadas de shows como o Fa-tal (1971), Índia (1973) e Cantar (1974), Gal
quase sempre aparece com indumentária hippie estilizada21 e pernas à mostra em poses
nada convencionais para mulheres ainda se acostumando com a famosa revolução sexual
dos anos sessenta. Enfim, o corpo – sobretudo a exposição do corpo – era muito explorado
como linguagem nos anos setenta e estes artistas utilizaram-se da idéia de natureza
esboçada nesta forma de apresentação ao vestir/desvestir-se para seus públicos. Não é à toa
que Ney Matogrosso – o qual revelou ter decidido por sua carreira de cantor ao assistir
Caetano e Gil num show em Brasília (Calado, 1997) – e o grupo Secos e Molhados tanto
representaram em termos comportamentais para o campo da música brasileira nos idos dos
anos setenta, numa troca simbólica muito representativa. Numa declaração do próprio Ney
Matogrosso sobre Gal Costa:
21
Ver anexos de imagens no CDRom.
38
É abusadíssima, um desplante para a época a capa de "Índia". Gal Costa botava a xoxota
na cara da gente. Estava todo mundo desacatando tudo naqueles anos.
In: www.verdadeirabaiana.com.br, acesso em 21/10/2003.
Gilberto Gil
Índigo Blue. In: Raça Humana. CD. WEA,1984.
22
O cenário da Bossa Nova é uma cidade resolvida, linear e sem tensões. Isto pode ser compreendido a partir
da extração social dos intérpretes e compositores da própria Bossa Nova, quase sempre universitários da
classe média carioca/estabelecida no Rio de Janeiro.
39
Essas imagens projetadas a partir deste real fragmentado e transmitido por meios
diversos metaforizam a fragmentariedade e a virtualidade em tempo/espaço tornado real
em tempos atuais. Enquanto o cinema costuma ser apontado como a arte por excelência da
modernidade, justamente pela sua associação à velocidade23, o clip é tomado por alguns
autores, a exemplo de Canclini (1998), como ícone das representações e da linguagem do
contemporâneo, como emblema da velocidade associada à realidade transfigurada e
manipulada na comunicação de nossos tempos. A partir de Virilio (1993), o clip pode ser
visto como a aceleração e recomposição da obra fílmica a partir de fragmentos de imagens.
23
Não deixa de ser emblemática disto a própria etimologia de cinema: em grego, eu movo.
40
alteridade, a definição nítida dos limites entre grupos só se dá mediante uma análise
estrutural. Na singularidade dos agentes, os múltiplos vetores identitários vão se afirmando
no fluxo da vida social, em atualizações e ressignificações que constituem as identidades
culturais, o que de modo algum acontece como um processo separado ou mesmo
independente do delineamento dos contornos das identidades dos agentes.
O que alguns autores chamam de sociedade de consumo pode ser tomada como uma
chave interessante para a compreensão destas mudanças significativas nas próprias
concepções acerca de sociedade. O consumo não é mais encarado como mero reflexo da
produção; passa a ser concebido como fundamental para a reprodução social
(Featherstone, 1997). Neste sentido, o diálogo entre os autores pós-modernos e aqueles que
apostaram numa síntese ou interface das contribuições dos clássicos aporta possibilidades
de interpretação interessantes. Esta sociedade, marcada pela transposição do consumo da
esfera da economia para a vida social, não estaria presente – em dimensões próprias,
evidentemente – na formulação da economia de trocas simbólicas (Bourdieu, 2003)?
24
Principalmente na acepção de Max Weber para o termo: como possibilidade de consumir bens.
41
Concluindo esta discussão sobre a obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia como
construções identitárias, reúno elementos para propor que a reflexão sobre o
contemporâneo arremata, entre teorias mais convencionais e análises mais particularizadas
e originais/recentes, diversas possibilidades de percepção do social. Apresentando-se
menos numa globalidade totalizante e mais como um conjunto de traços fragmentários
articulados entre si, de forma tensa e complementar, pode-se assim tomar o contemporâneo
como uma chave heurística instigante nas narrativas identitárias construídas e
constantemente ressignificadas no âmbito da música popular, em particular na obra destes
artistas.
Como fatos sociais, as representações coletivas não são explicadas a partir da natureza
dos indivíduos, mas da natureza da sociedade. A idéia de tecido ou formação social é
provavelmente a mais cara a Durkheim. As representações são tidas como próprias de algo
que não pode se reduzir às suas partes, ou seja, aos indivíduos que compõem a sociedade.
Constituem-se como expressões de uma coletividade, mediando o acesso do sujeito ao
objeto sociológico e efetivando-se como fato social objetivo e exterior às consciências
individuais.
Apreender ao mesmo tempo o que é instituído, sem esquecer que se trata somente da
resultante, num dado momento, da luta para fazer existir ou “inexistir” o que existe, e as
representações, enunciados performativos que pretendem que aconteça aquilo que
enunciam, restituir ao mesmo tempo as estruturas objectivas e a relação com estas
estruturas, a começar pela pretensão a transformá-las, é munir-se de um meio de explicar
mais completamente a “realidade”, logo de compreender e de prever mais exactamente as
potencialidades que ela encerra ou, mais precisamente, as possibilidades que ela oferece
às diferentes pretensões subjectivistas (Bourdieu, 2002, p.118).
Por outro lado, Bourdieu rompe também com a dicotomia entre idéia (como
representação individual) e representação coletiva, abrindo espaço, no caso desta pesquisa,
para a singularidade das representações que se transfiguram na obra artística de Caetano,
Gil, Gal e Bethânia. Neste sentido, as representações sociais são incorporadas como
objetividades pelos agentes e passam a constituir suas visões de mundo,
instrumentalizando-os no sentido de que passem a entrar nas arenas de lutas simbólicas no
campo artístico, o que matiza e significa um avanço na perspectiva de totalidade social em
Durkheim. Se as representações coletivas correspondem à categoria ancestral das
discussões sobre representações, em Bourdieu, a relacionalidade viabiliza a observação do
social em seus diversos âmbitos (campos), em que as oposições comparecem para a
marcação das posições dos agentes. Pode-se admitir, deste modo, que as representações se
constituem no que Bourdieu (2004) chama de espaço social – uma espécie de interseção de
campos – e que, no caso da música popular, se potencializam a partir da
divulgação/produção da mídia. Em se tratando destes artistas, suas particularizações dos
feixes representacionais se tornam referência na constituição de narrativas identitárias
sobre a Bahia, principalmente para o eixo Rio-São Paulo, que funciona como cenário de
exposição/definição de posições em constante e tensa interação. A Bahia acaba por ser
apresentada nesse espaço, tanto na música como em outras linguagens midiáticas
vigorosas, como um outro especial.
25
Novela da Rede Globo de Televisão apresentada em 2001, no horário das 21:00h, ambientada numa cidade
fictícia no litoral da Bahia e baseada em dois romances de Jorge Amado: Mar Morto e A Descoberta da
América pelos Turcos.
44
Costa, que revive seus tempos de Gabriela, com mais um tema relativo a uma Bahia
sensual, mítica e faceira.
No tocante à formação social baiana, pode-se afirmar que são representações coletivas
particularizadas que se percebem nas práticas artísticas de Caetano, Gil, Gal e Bethânia,
quando está presente algum elemento identitário reconhecido como baiano.
Em A Divisão do Trabalho Social, Durkheim situou a arte num plano específico e não
investiu na sua análise, devido ao seu caráter subjetivo. A arte seria imprópria para
sustentar a moral... Entretanto, pode-se identificar, na obra de Caetano, Gil, Gal e
Bethânia, sem maiores problemas, a expressão de representações da Bahia. Os repertórios,
shows, entrevistas – que realizam empiricamente o que chamo de práticas artísticas – dão
45
A discussão em torno desses feixes identitários na obra artística de Caetano, Gil, Gal e
Bethânia vem apontar uma questão especialmente importante para este estudo. O recurso à
categoria representações não deveria conduzir ao equívoco de considerar a produção dos
artistas apenas na esteira de uma análise sistêmica e estrutural, como poderia se depreender
de alguns continuadores da obra de Durkheim. Se se admite que as práticas artísticas
expressam e, por assim dizer, constituem-se como representações (embora não apenas
como tal), isto só é possível mediante a ação efetiva de seus compositores e intérpretes,
que particularizam e dão novas feições a muitas representações correntes e aceitas pelo
senso comum.
Resumindo, então, acho que, quando um indivíduo se apresenta diante de outros, terá
muitos motivos para procurar controlar a impressão que estes recebem da situação. (...) O
padrão de ação preestabelecido que se desenvolve durante a representação, e que pode
ser apresentado ou executado em outras ocasiões, pode ser chamado de um “movimento”
ou “prática” (Goffman, 2003, pp. 24-25).
baiano, no cenário da brasilidade. Seja uma negritude pop em Gilberto Gil, seja uma
ancestralidade constantemente atualizada em Maria Bethânia, as Bahias interfaciadas nas
obras destes artistas permitem perceber como práticas artísticas podem articular textos
identitários concernentes a uma dada formação social.
26
“Devido ao fato de as crenças em práticas sociais nos chegarem do exterior, não quer dizer que as
recebamos passivamente e sem as submetermos a modificações. Ao pensarmos as instituições coletivas, ao
assimilá-las, individualizamo-las e incutimo-lhes em maior ou menor grau o nosso cunho pessoal; é assim,
que ao pensarmos o mundo sensível, cada um de nós lhe dá um colorido à sua maneira e que sujeitos
diferentes se adaptam de modo diferente a um mesmo meio físico. Eis porque cada um de nós cria, de certo
modo, sua moral, sua religião e sua técnica. Não há conformismo social que não comporte toda uma gama de
matizes individuais, o que não impede que o campo das variações permitidas seja limitado.É nulo ou muito
restrito no âmbito dos fenômenos religiosos e morais, onde a variação se torna facilmente um crime; é mais
vasto no que se refere à vida econômica. Porém, mais cedo ou tarde, se encontra um limite que não pode ser
ultrapassado”. In: As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2003, p.26.
47
devemos saber como elementos identitários (feixes representacionais) são fontes para
ações concretizadas nas práticas artísticas, não deixando de lado os possíveis sentidos
operados por esses agentes nas suas práticas.
Colocadas estas premissas, pode-se afirmar então que o estudo de uma prática artística
remete à singularidade do(s) artista(s), que vai se constituindo num processo envolvendo a
própria formação dos indivíduos nos meios por onde transita(ra)m. Deste modo, a
formação da individualidade numa figura como Maria Bethânia, por exemplo, não deveria
ser construída sociologicamente apenas a partir de sua posição de classe, gênero ou
nacionalidade. Sua singularidade resulta de – e recapitula – uma série de relações
estabelecidas na sua trajetória e interações de que foi/é co-participante. Se em Weber
(1992) percebemos a importância fundamental que o indivíduo assume para o
entendimento das formações sociais, podemos recorrer à contribuição de autores
contemporâneos como Bourdieu (2001/2003), Giddens (1989) e Elias (1994) no sentido de
formular como, superando a dicotomia indivíduo/sociedade, estruturas e agentes
constituem a sociedade.
Continuemos com o caso de Maria Bethânia. A artista pode ser compreendida como
uma singularidade conformada a partir de interações mediadas:
São essas mediações que vão confluir no arranjo teórico-metodológico a que chamo
singularidade, um conjunto de características e subjetividades articuladoras das ações dos
indivíduos, que, no âmbito da arte, se apresenta de forma muito peculiar e vigorosa, como
elemento e parâmetro de análises de narrativas e discursos. Desta forma, analisar uma peça
que se remete à Bahia, no caso do trabalho de Bethânia, pressupõe uma observação da
singularidade desta artista, que atua na veiculação de feixes de representações.
27
É nesta capacidade que se sustenta Giddens (1989) para erigir sua teoria da estruturação.
49
28
O campo da arte é percebido por Bourdieu como um locus analítico que permite aos indivíduos o exercício
de uma pretensa autonomia relativa, que encontra seus limites na própria lógica do campo. A criatividade,
então, adviria também de uma relacionalidade ligada aos lugares ocupados pelos artistas. Como parto do
suposto de que os artistas são agentes de seus trabalhos, considero a idéia de criatividade como percebida em
Giddens (2002). Embora o campo artístico permita uma ascensão constante da criatividade como valor, nem
todo agente se revela condizente com este valor, seja por não deter quantum de capital simbólico suficiente,
seja por não corresponder às expectativas da própria lógica do campo em que está inserido. As lutas pelas
posições no campo só vêm atestar o que afirmo. Não seria demais dizer, então, que a singularidade se
constitui na formação/interação do agente, a partir de habitus, reflexividade e reticularidade, tal como se
articulam neste trabalho.
50
Nestes autores, a ação vem assumir uma importância central em termos de construção
teórico-metodológica, pois o que se espera é abordar a maneira como os indivíduos agem
em sociedade, de modo que a constituem e são por ela constituídos29. Assim, interessa
particularmente entender como estes agentes singulares transfiguram feixes identitários,
redefinindo lugares da Bahia num imaginário nacional.
O habitus vem a ser, portanto, um princípio operador, que leva a cabo a interação entre
dois sistemas de relações, as estruturas objetivas e as práticas. O habitus completa o
movimento de interiorização das estruturas exteriores, ao passo que as práticas dos
agentes exteriorizam os sistemas de disposições incorporadas (Miceli, Introdução: A Força
do Sentido, p.41; In: Bourdieu, 2003).
Bourdieu procura, a partir da praxiologia, superar o que chama de “teoria teórica”, que
seria alheia à prática. O mundo, nessa apreensão, seria escrito a partir de uma gramática
interna do construto teórico – uma leitura interna. A prática artística passa a ser uma tela
por onde se pode perceber a presença de habitus variados, que se operacionalizam no
campo artístico em que operam estes agentes. Caetano, Gil, Gal e Bethânia são
portadores/executores de objetividades incorporadas, estruturadas e estruturantes de
29
É interessante perceber como as malhas da linguagem (como salientam Foucault e Habermas) podem nos
enredar, pois, mesmo que não os consideremos dicotômicos, colocamos sempre os termos nos seus lugares,
como que separados.
51
As posturas assumidas pelo grupo baiano são referidas às posições destes agentes,
tanto no campo da música popular quanto em relação a outros campos. Tomemos um
exemplo pinçado de uma das primeiras aparições de Caetano na televisão. Quando emerge
como artista pop no programa Esta Noite se Improvisa, da TV Record, em 1967, sua
imagem é prontamente associada à de um rapaz baiano tímido, de sotaque carregado e que
acabava correspondendo a um lugar que facilitou sua aparição e reconhecimento como um
novo ídolo (Calado, 1997). Franzino e retraído, Caetano dá início à sua carreira
correspondendo a uma imagem de menino do interior identificada com uma espécie de
habitus nordestino/baiano associado/remetido à Bahia em muitos círculos midiáticos. Cabe
ponderar, entretanto, que, embora a imagem de uma Bahia mais tradicional seja aquela de
uma negritude e docilidade exaltada, uma certa nordestinidade parecia tomar a dianteira
nos idos dos anos sessenta, e esta imagem de Caetano que o projetou acabava se
coadunando com um posicionamento no campo artístico que alocava os baianos também
como os retirantes nordestinos que ascenderiam no eixo Rio - São Paulo.
lado, quando Caetano passa a assumir uma figura mais próxima do pop e emblematizada
com símbolos de celebridade, como carros e roupas extravagantes, há uma reação do
diretor da TV Record no sentido contrário.
Nenhum produtor daqui concordava com a nova imagem criada nos últimos seis meses:
terninho inglês, chofer, Mercedes Bens, camisolão e um apartamento na São Luís. Veloso
deixou de ser o menino simples e querido por esta simplicidade, apontava o chefão da
Record (Calado, 1997, p.186).
Para Bourdieu, o agente vive sob estado constante de illusio (Bourdieu, 2004), ou seja,
participando de um jogo – no campo – cujas regras são naturalizadas, sentindo sua história
a partir de uma noção de trajetória30, vivida como uma necessidade de organização. Os
agentes são conformados nestas trajetórias; desde o nascimento, a criança se encontra na
intersecção de vários campos, conformando-lhe corporificações. Deste modo, não haveria
uma diferença entre idéia (como individual) e representação coletiva. Este ponto nos
interessa particularmente, pois as narrativas identitárias sobre a Bahia são coletivamente
30
O Capítulo 3, em que se tratará das trajetórias dos agentes deste trabalho, trará uma discussão mais
aprofundada sobre a noção de trajetória ou biografia como concebida por Bourdieu. Este autor tem uma
específica abordagem sobre a temática.
53
reconhecidas como baianas, embora não se faça aqui uma separação dicotômica entre
coletivo e individual.
Nas práticas artísticas de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, podemos perceber atualizações
e redefinições de posicionamentos sociais corporificadas em habitus e operacionalizadas
no campo artístico, em suas lutas características, como a famosa contenda entre baianos e
cearenses31. A arte, nesta apreensão de Bourdieu (2002), funcionaria como
transmissora/executora de formas de classificação dos sistemas simbólicos, ou seja, as
representações que situam o engendramento das divisões sociais, ou o poder de di-visão. A
contribuição deste autor para o tema das representações aponta também para uma
apreensão do imaginário coletivo como somente fazendo sentido nas ações dos agentes
através das internalizações do habitus.
de Meninos (Gil e Capinam) [AL 022] e “Minha mãe-de-leite sempre me ensinou, meu
tempero é outro, eu sou do azeite”, de Caminho das Índias (Moraes Moreira) [AL 023] –
interpretadas pelos quatro artistas aqui centrais – são exemplos de estetizações que
expressam lugares ocupados nos textos de brasilidade e de identidades culturais baianas,
presentes e constituídas na obra do grupo baiano.
31
Maiores informações no capítulo 4, ao tratar do acontecimento Os Doces Bárbaros.
54
Muitos dos elementos da habilidade de ser capaz de “seguir em frente” são levados ao
nível da consciência prática, incorporada à continuidade das atividades cotidianas. Ela é
parte integrante do monitoramento reflexivo da ação, embora seja “não-consciente”, ao
invés de inconsciente. A maioria das formas de consciência prática não poderia ser “tida
em mente” no decorrer das atividades sociais, pois suas qualidades tácitas ou supostas
constituem a condição essencial que permite que os atores se concentrem nas tarefas pela
frente (Giddens, 2002, p.39).
A teoria da ação que proponho (com a noção de habitus) implica em dizer que a maior
parte das ações humanas tem por base algo diferente da intenção, isto é, disposições
adquiridas que fazem com que a ação possa e deva ser interpretada como orientada em
direção a tal ou qual fim, sem que se possa, entretanto, dizer que ela tenha por princípio a
busca consciente desse objetivo (é aí que o “tudo ocorre como se” é muito importante)
(Bourdieu, 2004, p. 164).
Os limites entre essas formas de consciência são tênues e sugerem que é nas práticas
sociais que o agente vai constituindo seu senso de segurança ontológica; esta, por sua vez,
32
Outro conceito importante nessa trama é o de consciência moral, que seria a consciência normativa. A
consciência prática seria a apropriação da consciência moral pelo agente.
56
dando sentido às práticas, vai permitindo ao agente prosseguir sem se perguntar a todo
tempo por que age. Deste modo, é sobre a confiança básica que se erige a possibilidade de
vida social e as rotinizações em sociedade. Tanto a segurança ontológica quanto a
confiança básica estão associadas à conformação da capacidade cognoscitiva ontogenética
do agente, enquanto nas atividades cotidianas vai se configurando a base material das
ações humanas.
Nas práticas artísticas aqui tratadas, um caso pode ser ressaltado como exemplar.
Quando estavam para estrear o show do disco Tropicália ou Panis et Circenses, Caetano e
Gil travaram séria discussão por conta da hesitação do segundo em prosseguir com o que à
altura já era um movimento mais amplo. Contestado pelo cantor e compositor Vicente
Celestino por encarnar um Cristo negro na montagem que seria levada ao ar pela TV
Globo, em outubro de 1968, Gil se viu em cheque entre suas ações já realizadas e a
percepção de que estava trilhando caminhos que não mais lhe agradavam (Calado, 1997).
No momento em que pôde exercitar um monitoramento reflexivo discursivo, Gil preferia
não ter mais continuado com o projeto Tropicália, embora tenha prosseguido em função da
interpelação e insistência de Caetano (Veloso, 1997) e de sua própria disposição a seguir
em frente naquela empreitada, num limite muito sutil entre prática e reflexividade.
Tanto para Giddens como para Bourdieu, é na durée33 que o agente desenvolve sua
cognição, seu monitoramento. O saber incorporado constitui a escolha e a ação, como
saber que estrutura a ação, bem distinto de um conhecimento idealista ou simplesmente
empírico. O agente não é detentor de uma razão isolada34. Em Giddens, a noção de
pensamento é comunicativa, não mentalista (residindo numa consciência reificada), o que
significa que o pensamento válido é aquele que se efetiva na prática social. O agente
monitora suas ações mediante seu estoque de conhecimentos adquirido na prática,
racionaliza as ações e sistematiza os atos. Percebe-se aí o influxo do pensamento de
Weber, principalmente pelo viés da racionalização das ações, que não leva
33
Termo em francês no original inglês. Aponta para o fluxo contínuo da vida social.
34
Neste sentido, Giddens compartilha da perspectiva de Bourdieu, quando este fala de razões práticas.
57
A teoria da estruturação propõe, deste modo, que a integração social (tal como em
Goffman) constitui o social juntamente com a integração de sistemas (distâncias espacio-
temporais) que estruturam as disposições dos agentes. O indivíduo tem sua reflexividade
regulada por integrações de sistemas sociais por sua vez formados nas práticas sociais e
estruturados nos distanciamentos no tempo e no espaço.
Quando uma artista como Maria Bethânia recusa propostas para gravação de um disco
que não esteja em conformidade com suas idéias sobre seu trabalho, uma referência
estruturante se apresenta para esta agente, como orientação de sua atuação e do quadro de
35
Para Giddens, a criatividade, constituída na reflexividade humana, dá margem à noção de conseqüências
impremeditadas das ações.
58
36
Poderíamos associar essas interdependências intergeracionais à noção de habitus primário em Bourdieu;
cada interdependência em família, por exemplo, pode ser considerada uma objetividade a ser apreendida pela
criança, que vive numa cadeia de interdependência e adquire objetividades que vão se constituir nas
potencialidades do habitus.
37
Essa não-percepção das teias de interdependência pode ser lida como um equivalente, para efeito de
comparação, da noção de illusio em Bourdieu.
59
Neste sentido, Caetano, Gil, Gal e Bethânia têm suas individualidades em constituição
nas relações de interdependência e formulam auto-imagens que os situam no mundo. Ao
cantar/performatizar canções em discos e shows, apresentam o resultado de estetizações
plasmadas segundo “sua” noção de individualidade. Assim, cada obra pode ser lida tanto
como a interpretação do mundo por estes artistas quanto a atuação destes artistas no
mundo, que se configuram como tais seja no campo artístico em que se colocam, em suas
posições, seja nas relações com outros agentes, numa teia crescente, em função da variação
de escala da rede de interações em questão.
Elias cunha a expressão balança Nós-Eu como uma forma de explicar que cada
indivíduo é formado numa teia de relações que o constitui de tal forma que sua
individualidade (auto-imagem) é resultado de uma cadeia de dependências que, quanto
mais extensa, mais produz a sensação de individualidade e isolamento, o que seria uma
característica crescente nas sociedades modernas. Uma criança, ao nascer, está imersa em
interações sociais e biopsíquicas, sendo pressionada ao ajuste que a configurará como
indivíduo. A criança (como “eu”) vai se reconhecendo em relação a um “nós” que a cerca e
faz parte de seu “eu”. O “nós” vai sempre se configurando como uma imagem grupal, a
partir da família, bairro, cidade, nação, ou seja, os variados meios em que as
interdependências vão se afirmando como motrizes da vida social. Deste modo, o humano
somente o é na condição de existência no social.
38
“A relação entre as pessoas é comumente imaginada como a que existe entre as bolas de bilhar: elas se
chocam e rolam em direções diferentes. Mas a interação entre as pessoas e os “fenômenos reticulares” que
elas produzem são essencialmente diferentes das interações puramente somatórias das substâncias físicas (...)
Tomemos, por exemplo, uma forma relativamente simples de relação humana, a conversa. Um parceiro fala,
o interlocutor retruca. O primeiro responde e o segundo volta a replicar (...) É possível, por exemplo, que eles
cheguem a um certo acordo no correr da conversação. Talvez um convença o outro. Nesse caso, alguma coisa
passa de um para o outro. É assimilada na estrutura individual das idéias deste (...) E é justamente esse fato
de as pessoas mudarem em relação umas às outras e através de sua relação mútua, de se estarem
continuamente moldando e remoldando em relação umas ás outras, que caracteriza o fenômeno reticular em
geral” (Elias, 1994aa, p. 29)
60
A influência de Gilberto Gil em Caetano Veloso e vice-versa pode ser tratada como
um exemplo nítido das reticularidades em corte sincrônico. Gil é considerado o músico
por excelência do grupo baiano – por sua intimidade com o universo musical tecnicamente
falando – e foi quem não permitiu que Caetano Veloso desistisse da música como
profissão. Caetano se mostra o incentivador de posturas políticas mais nítidas em Gil,
como no caso da aparição no programa tropicalista em 1968, que coincidiu com a morte de
Vicente Celestino (Calado, 1997). Seguindo Elias, podemos dizer que, em Caetano, há
uma presença forte de traços caracterizadores de posturas de Gil, e reciprocamente, em
relação a Caetano. Em longa duração, como propõe Elias, os diversos “nós” que
circundaram estes indivíduos possibilitaram sua afirmação existencial enquanto únicos, ao
mesmo tempo que situados numa rede relacional – portanto, singulares.
Esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que constitui o solo de que brotam
as características pessoais mediante as quais um indivíduo difere dos outros membros de
sua sociedade. Dessa maneira, alguma coisa brota da linguagem comum que o indivíduo
compartilha com os outros e que é, certamente, um componente do habitus social – um
estilo mais ou menos individual, algo que poderia ser chamado de grafia individual que
brota da escrita social (...) A identidade nós-eu anteriormente discutida é parte integrante
do habitus social de uma pessoa, e como tal, está aberta à individualização. Essa
identidade representa a resposta à pergunta “Quem sou eu” como ser social e individual
(Elias, 1994a, p. 151).
Deste modo, a singularidade pode ser apontada como uma característica relacional
observável nos agentes aqui considerados e que confere a estes indivíduos a capacidade de
transfigurar e reconfigurar narrativas e interpretações nas intersecções dos campos no
espaço social, como veremos com mais ênfase nos capítulos a seguir.
62
como dotando suas ações de sentido, tal como em Weber e, de modo geral, nos autores da
sociologia compreensiva.
O que Velho (2003) chama de campo de possibilidades abre espaço para a noção de
projeto dos indivíduos, ou seja, ações e intenções de agir dotadas de sentido e que podem
ou não se efetivar numa teia de significados (Geertz, 1978). A ambiência disto pode ser
encontrada no que Velho (1987) chama de cultura complexa, ou contemporânea. Dando
seguimento a Dumont (1985), discute como o individualismo – na relação entre eidos
(visão de mundo) e ethos – se coloca em meio à totalização para que tende a noção de
cultura. Neste sentido, a contribuição de Velho vem se somar no tratamento da questão do
singular como presença das individualidades nos meios sócio-culturais em que ocorrem as
práticas. Assim,
Desta feita, os relatos biográficos entram também no terreno das construções da mídia
em torno de figuras singulares/singularizadas a partir da interface gerada por suas
39
Em outro contexto científico importante para esta discussão, Hobsbawm (1999) aponta para a biografia de
pessoas não famosas como expressões de acontecimentos importantes na história ocidental, referindo-se a
trajetórias de artistas de jazz, numa tentativa de concatenar elementos para a construção de uma historiografia
marxista pautada em experiências mais cotidianas.
64
posições/funções em sociedade e o interesse que pode ser despertado por tais indivíduos.
Isso poderia explicar, por exemplo, a importância dada ao noticiar quase que constante do
nascimento e infância de filhos de personalidades famosas, como Sasha (filha de Xuxa); do
casamento de Carlinhos Brown com a filha de Chico Buarque; do costureiro que estaria
trabalhando para o novo show de Gal Costa, etc.
Tal interesse pela vida privada alheia (dos famosos) pode trazer à tona também
compreensões da vida social muito interessantes aos efeitos de contextualizar melhor esta
pesquisa. Quando a sexualidade ou a condição étnico-racial de alguém é
enaltecida/depreciada na mídia através tanto de relatos corriqueiros quanto de verdadeiros
dossiês da imprensa escrita e eletrônica, são capitais simbólicos a respeito das figuras
envolvidas que estão sendo tomados como parâmetros, o que acaba por expor tabus,
entraves e até ressignificações de imaginário.
Ainda em termos da importância tanto das biografias quanto dos indivíduos como
unidades analíticas das culturas complexas, Velho (2001) acena com uma observação
interessante sobre os artistas, constituinte central do objeto desta pesquisa. Deste modo:
40
Em entrevista ao Folha On Line, setembro de 2004.
65
Desta forma, a singularidade dos agentes, tal como considerada neste trabalho,
conduz também a uma necessidade de afirmação de projetos que estão em jogo nas
atuações artísticas destes indivíduos. Se a biografia não é possível para Bourdieu por conta
de sua epistemologia relacional, a perspectiva de Velho procede e ilumina pontos
importantes no que tange à singularidade.
A ligação entre Caetano e sua família está presente em inúmeras peças dos anos
sessenta até hoje, como a ratificar sua condição de interiorano de uma região próxima do
mar e ao mesmo tempo com características coloniais ainda marcantes42.
41
Incluindo duas irmãs adotivas, Nicinha e Irene, referidas em diversos momentos em canções ou
depoimentos do artista.
42
Os Velloso se constituem hoje quase como um clã, como ícones da cidade de Santo Amaro da Purificação.
As novenas a Nossa Senhora são comandadas por Dona Canô, cujo nome se faz presente em algumas
canções; na festa de seu aniversário, recebe homenagens de diversos setores da vida social, incluindo
políticos como Antônio Carlos Magalhães, que aumenta sua visibilidade ao se mostrar ao lado de uma figura
que acabou encarnando a matriarca do Recôncavo. As trocas simbólicas experimentadas nesta trama são
inúmeras, como se pode inferir.
66
Caetano Veloso
In: Sugar cane fields forever, CD Araçá Azul, 1973, Polygram.
Após uma breve passagem pelo Rio de Janeiro, em 1956-57, Caetano Veloso sai deste
círculo sócio-cultural em Santo Amaro, em 1960, para uma Salvador ávida de intensa
elaboração cultural, num momento em que a Universidade Federal da Bahia, se encontrava
sob a regência de Edgar Santos, pretendia consolidar os cursos de artes em como
referências de nível nacional (Rubim, 1996).
43
Outros comentários sobre o impacto de Bethânia em Caetano Veloso em AD, bem como depoimento de
Chico Buarque pode revelar traços importantes da figura artística de Maria Bethânia.
67
Boca de Ouro cantando Na cadência do samba, de Ataulfo Alves e Paulo Gesta, em 1963,
Álvaro Guimarães proporcionou à cidade conhecer mais proximamente o início das
trajetórias artísticas dos dois irmãos, pelas veredas do teatro e da canção; estas experiências
podem ser compreendidas com mais nitidez se as situamos no clima de efervescência
cultural que caracterizava a Salvador do início dos anos sessenta, sobretudo nos meios
artísticos e universitários.
Já em 1964, Caetano Veloso e a irmã Bethânia, Gilberto Gil e Gal Costa se reúnem no
Teatro Vila Velha para um show de inauguração, junto com outros expoentes em ascensão
na cidade do Salvador. O show Nós, por Exemplo estreou em agosto de 1964. Segundo
Calado (1997), teria ofuscado outras atrações da semana comemorativa.
As sucessivas apresentações, seja com o Nós, por exemplo, seja com os espetáculos
posteriores em grupo e individualmente, possibilitaram o reconhecimento de Caetano e dos
outros três baianos como artistas no mínimo promissores. Caetano começa a aparecer
como uma espécie de líder intelectual do grupo, devido aos seus manifestos excessos
retóricos, aliados a uma vontade – no plano tanto de projeto (Velho, 2003) quanto de
representação do self (Goffman, 2003) – de liderança e direção das carreiras de seus
amigos (Veloso, 1997). O desejo inicial, reiterado por Caetano, de não continuar sua
carreira como cantor e dedicar-se a dirigir artisticamente Gil, Gal e Bethânia, bem como a
retomada de sua decisão por conta da argumentação de Gil, despontam diversas vezes.
68
Eu só queria desistir. Desde o início, só queria desistir. A Gal disse que foi a Dedé que não
deixou ela desistir. Foi o Gil que não me deixou desistir. Ele me disse: se você desistir, eu
paro. Aí eu obedeci, porque prá mim foi um chamado da música, pois pra mim, o Gil é a
própria música. Aí, quando eu quis de novo desistir, veio a ditadura e eu fiquei sem forças e
continuei. Então vocês agradeçam à ditadura.
In: Programa Livre. Entrevista concedida junto com Gal Costa a Serginho Groissman e ao
público, em 1996, durante lançamento do disco Trilha Sonora de Tieta do Agreste, SBT,
1996.
Esse álbum, a despeito de ter sido gravado em horários não muito cômodos, já que os
dois artistas ainda eram iniciantes, revelou para um maior número de pessoas a marca de
João Gilberto nos dois jovens intérpretes. Segundo o próprio Caetano, ao gravar Domingo,
sua inspiração já tendia para outros interesses, o que lhe dava a dimensão exata dos
caminhos que pretendia trilhar com sua arte. Assim:
69
Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração agora está
tendendo pra caminhos muito diferentes dos que segui até aqui. Algumas canções deste
disco são recentes (Um dia, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância
que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer canção. A minha
inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer
incorporar essa saudade num projeto de futuro. Aqui está – acredito que gravei este disco
na hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante do que já fiz e não
tenho vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma nota. Quero apenas poder dizer
tranqüilamente que o risco de beleza que este disco possa correr se deve a Gal, Dori,
Francis, Edu Lobo, Menescal, Sidney Miller, Gil, Torquato, Célio, e também, mais longe, a
Duda, a seu Zezinho Veloso, a Hercília, a Chico Mota, às meninas de Dona Morena, a Dó,
a Nossa Senhora da Purificação e a Lambreta.
Caetano Veloso
In: Contracapa do disco Domingo 1967,CD, Polygram.
Deste modo, a partir de 1967, a música de Caetano começa a aparecer como algo
importante no novo cenário musical de finais dos anos sessenta. Sua participação no III
Festival da Record, com Alegria, alegria, inicia sua consagração como pop star. O final do
ano registra sua ascensão como celebridade quando seu casamento, na Igreja de São Pedro,
em Salvador, é cercado de repórteres e de um público que fez um show à parte na
cerimônia44.
Em 1968, no disco solo Caetano Veloso, a canção Tropicália (Caetano Veloso) evoca
a atmosfera que daí por diante viria a caracterizar a sua produção: a urbanidade já tratada
em Alegria, alegria, junto à poética em que a colagem de imagens e referências ao Brasil
permeado de vetores endógenos e exógenos comparece à letra como a coroar a forma de
escritura deste compositor. São deste álbum Clarice (Caetano Veloso/Capinam), No dia em
que eu vim-me embora (Gilberto Gil/Caetano Veloso) e Ave-Maria (Caetano Veloso), entre
outras.
44
Há indícios de que o empresário Guilherme Araújo teria informado sobre o casamento para atrair públicos
e testar a popularidade de Caetano após sua explosão midiática inicial com a canção Alegria, alegria.
70
Molhados, Chico Science e Nação Zumbi, a nova música baiana (Axé-Music), Chico
César, Zeca Baleiro e Adriana Calcanhotto, entre outros.
Com a apresentação da peça É proibido proibir (Caetano Veloso) [AL 028] e das vaias
recebidas pelos estudantes inconformados com o uso das guitarras e da alegoria
considerada excessiva daquela performance, Caetano e Gil passam a ser observados pelo
regime militar como figuras não tão inofensivas. Após um show realizado em outubro de
1968 na boate Sucata, São Paulo, e de uma acusação do jornalista Randall Juliano de que
estes artistas teriam feito uma paródia do hino nacional, os dois baianos são presos a 27 de
dezembro de 1968 e seguem para um exílio em Londres.
Caetano Veloso
The empty boat. In: Caetano Veloso, CD Caetano Veloso, Polygram, 1969.
No exílio, Caetano começa a escrever para o jornal O Pasquim e grava dois discos. O
álbum Caetano Veloso (1971) mostra um artista deprimido e carrancudo desde a capa,
passando por um repertório que se conclui com a gravação particular e ressentida de Asa
Branca (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira). Em janeiro daquele ano, Caetano voltou ao
Brasil para visitar os pais, a partir de uma negociação intermediada por Maria Bethânia. Ao
chegar, sua presença suscitou o furor dos fãs e suspeitas das autoridades. Foi interrogado
por seis horas45 e se apresentou na TV Globo em 4 de fevereiro, cantando unicamente a
45
Sobre este interrogatório, Caetano ainda se reporta ao episódio da exigência de uma canção para a
Transamazônica (Calado, 1997).
71
peça de Sinval Silva Adeus Batucada [AL 029], de significados evidentes de sua condição
de persona non grata naquele Brasil. Assim, num depoimento revelador de Nelson Motta :
Em janeiro de 1972, Caetano volta para o Brasil em definitivo e lança o disco Transa,
trazendo diversas e vigorosas referências à Bahia e ao Brasil, na sonoridade e nas letras,
incluindo a adaptação de Gregório de Mattos (Triste Bahia) [AL 030]; It’s a long way
(Caetano Veloso) [AL 031] contém excertos de cantigas de roda baianas; You don’t know me
(Caetano Veloso) e Neolithic Man (Caetano Veloso) apresentam incursões pelo
cancioneiro tradicional brasileiro/baiano.
Os projetos (Velho, 2003) de que estavam imbuídos, nos termos de uma proposta de
trajetória, desaguaram em conseqüências – muitas impremeditadas, como no vocabulário
de Giddens (1989) – que redefiniram planos e mesmo auto-imagens (Elias, 1994a) que, por
sua vez, nem sempre se ajustaram às expectativas da imprensa e de movimentos políticos
72
naquele contexto. A nominação baihunos46 foi cunhada por Millôr Fernandes nesta época,
pois o clima que se formou, quase transformando Caetano e Gil em heróis de uma espécie
de “ditadura atroz”, não coadunava com os propósitos dos dois artistas, mais interessados
em uma militância artística em que as individualidades ganhavam maior nitidez que num
habitus correspondente aos grupos convencionalmente chamados de esquerda.
Em 1973, o disco Araçá Azul é um trabalho experimental não bem aceito pelo
mercado fonográfico brasileiro, tornando-se um fracasso de vendagens. Na capa, Caetano
olha para o próprio umbigo, o que acabou coroando a idéia de que sua vaidade se
pronunciava bem mais nessa nova fase. Caetano parece ter voltado ao Brasil sem muito
intento na veiculação de discursos com propostas políticas explícitas, embora sua baliza
estética ainda fosse referenciada numa continuidade do Tropicalismo e no apontar de
novos rumos da música no Brasil. Sobre a época em questão, vejamos o depoimento:
Quando musiquei "Triste Bahia", escrevi a Augusto de Campos: "quero que o resultado
pareça ao mesmo tempo folclore e ficção científica". A paixão compartilhada com Gil pela
Banda de Pífaros de Caruaru, desde 1967, era a expressão dessa vontade. O tropicalismo
foi um espernear contra um cercado pequeno. A gravação londrina de "Asa Branca" foi um
primeiro esforço de concentração no sentido de realizar algum som a mais. O "Araçá Azul" -
depois da música para o filme São Bernardo, de Leon Hirshmam - foi o luxo de entrar no
estúdio sem nada e deixar esse desejo fluir para que eu, assim, pudesse testá-lo.
Caetano Veloso
In: Jornal do Brasil, julho de 1977. Recolhido em www.caetanoveloso.com.br, acesso em
15/04/2003.
Em 1974, Caetano produz o disco Cantar, de Gal Costa. Seguiu-se uma série de
shows com Gal e Gil na Bahia, de onde sai o disco Temporada de Verão, cuja ambiência é
hippie e despojada, como o imaginário mesmo sobre o verão soteropolitano. A seqüência
se dá com os discos Qualquer Coisa e Jóia, ambos de 1975 e com sabor de manifesto, que
consolidaram em Caetano Veloso uma singular busca sonora experimental e pop.
Qualquer Coisa parece ser um diálogo mais aberto com o público em geral, enquanto
Jóia [AL 032] já traz uma proposição mais radical, com sons percussivos sutis e um tanto
quanto refinados, se se pode assim definir. No primeiro, o intérprete de composições
alheias emerge em versões de peças dos Beatles, como Eleanor Rigby, For no one e Lady
Madonna, de Lennon e McCartney, além da gravação de Jorge de Capadócia (Jorge Ben)
em que flerta indiretamente com o sincretismo entre este santo católico e os orixás Ogum e
Oxóssi, como no Rio de Janeiro e Bahia, respectivamente. Jóia traz a faixa Guá (Caetano
46
Na seção 4.2, o termo bahiunos será melhor contextualizado.
73
Veloso) e o texto anexo ao disco é sugestivo, em que se lê: inspiração: águas de março.o
sexo dos anjos. e não fazemos por menos. Como já mencionado no Capítulo 2, é neste
disco que a capa estampa Caetano, Dedé e Moreno nus, numa foto censurada e adaptada
posteriormente para o lançamento do LP.
“Dona” Claudina e “Seu” Zeca viram o nascimento de Gilberto Passos Gil Moreira
em 26 de junho de 1942. O pai médico e a mãe professora primária sempre tiveram muita
preocupação – e condições materiais – para com a educação de seus filhos. Gil e Gildina
estudaram inicialmente na pequena cidade interiorana de Ituaçu, informalmente com a avó
Lídia; cursaram o ginasial em Salvador, já morando com a tia Margarida.
Ainda em Ituaçu, Gil passa a conviver com a música nordestina, principalmente a voz
e a sanfona de Luiz Gonzaga e o som de Jackson do Pandeiro, o que influenciou o menino
e o direcionou para o caminho da música. Na capital, Gil aprende a tocar acordeom e logo
após violão, sob o impacto da batida da Bossa Nova de João Gilberto, como salienta em
diversos momentos de sua carreira, como neste depoimento, sobre a peça Chega de
Saudade (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), um marco do movimento que se inaugurava no
final dos anos cinqüenta:
Esta música me fez tocar violão, me deu a decisão, provocou a decisão em mim de tocar
violão, um instrumento do qual eu tinha medo. Eu tocava acordeom e tinha medo do violão.
Quando eu ouvi Chega de Saudade com João Gilberto, eu disse; eu quero, eu quero essa
novidade, eu quero viver, quero participar de tudo isso que eu sei que vai estar sendo
inaugurado agora a partir dessa canção.
In: 100 anos de música. Programa da Rede Globo de Televisão, 2000.
74
Entre os quatro artistas do grupo baiano, Gil foi o primeiro a dar passos mais rápidos
no sentido de ocupar os espaços da mídia. Já em 1962, suas primeiras aparições se dão na
TV, no programa J S Comanda o Espetáculo. Também alguns jingles foram interpretados
e/ou compostos por Gil naquele período. Percebe-se um perfil musical desde então muito
aberto ao aspecto de entretenimento e de componente comercial da música popular. Na
perspectiva de Calado (1997), Gil passa a considerar o fazer musical como culturalmente
mais amplo a partir da Tropicália, o que não significa um desmerecimento desta
característica constituída, mas um vetor importante para a própria veiculação posterior do
trabalho do grupo baiano como um todo.
Com suas primeiras composições prontas, Gilberto Gil passa a dar mais valor ao
violão e às formas musicais que se desenvolvem a partir da Bossa Nova, principalmente
tendo como referência João Gilberto. Logo se identifica com Caetano quando o conhece,
em 1963, até chegarem ao show Nós, por exemplo. Sua formação acadêmica se completa
em 1964, quando conclui o curso de Administração de Empresas na Universidade Federal
da Bahia e passa a trabalhar na Alfândega; esse período é lembrado de forma jocosa na
canção Cibernética, de 1973. Em 1965, Gil faz um show com Bethânia e Vinícius no Rio
de Janeiro, o que lhe vale maiores reconhecimentos no eixo Rio- São Paulo47.
Desistindo de uma carreira na empresa Gessy Lever como administrador, Gilberto Gil
participa dos shows Arena canta Bahia e Tempo de Guerra (ambos com direção de
Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri) e desdobra a partir de 1966 sua carreira de
compositor, quando Elis Regina e Jair Rodrigues gravam Louvação (Gilberto Gil/Torquato
Neto). Um fato muito curioso tornou mais famosos tanto a peça quanto a figura de Gil.
Quando do incêndio que acometeu os estúdios da Rádio Record, era Louvação que estava
tocando; a lembrança deste momento se expressou em diversas execuções da canção, o que
a tornou quase um hino (Calado, 1997).
Em 1967, Gil chega ao primeiro LP, Louvação, em que ensaia tanto suas influências
da Bossa Nova e do samba mais tradicional, como em Ensaio Geral (Gilberto Gil/Torquato
Neto) e Maria (Gilberto Gil) – dedicada à Maria Bethânia, quanto incursões por temáticas
47
Em depoimento ao autor, em outubro de 1997, Gil revelou que a foto da capa de seu primeiro LP foi tirada
durante este show com Bethânia e Vinícius. Sua remissão afetuosa aponta para a importância deste
acontecimento para o início de sua trajetória. Nas palavras de Gil: “...olha só esta capa, eu com cara de
menino, da época do show com o Vinícius...” Tanto pela emoção demonstrada por Gil, quanto pela
relevância de Vinícius de Moraes como ícone da Bossa Nova, percebe-se que, nesse momento inicial das
carreiras, para Bethânia e Gil, o acolhimento teve importância especial.
75
inovadoras para os padrões da época, como é o caso de Lunik 9 (Gilberto Gil), canção que
antecipa impactos da presença do homem na lua. Gil afirma que seu interesse no tema
estava ligado tanto ao aspecto poético da lua quanto à importância social do fato, como em
outros momentos de sua carreira (Gil, 1996).
Com a Tropicália, Gil assume a posição de diretor musical do grupo baiano e põe em
prática uma série de idéias gestadas quando de sua visita ao Recife meses antes, e que tanto
tinham impressionado Caetano Veloso. Este caráter musical mais expressivo em Gil chama
a atenção de muitos críticos no período, incluindo o poeta Augusto de Campos (2003), que
se tornou um defensor das experiências em curso dos tropicalistas, desde o início. Ao falar
sobre o terceiro Festival de Música Popular de São Paulo, realizado na TV Record, o poeta
e cronista afirma:
Domingou, Gilberto Gil e Torquato Neto, In: LP Gilberto Gil, Polygram, 1968
A Tropicália traz elementos que convidam a pensar que se, por um lado, a ditadura
militar exercia um papel limitador, por outro lado, não era capaz de sufocar totalmente as
expressões poéticas tanto de artistas quanto no próprio cotidiano brasileiro. A cidade do
Rio de Janeiro aparece quase sempre como emblema dos pés da ditadura e o lugar da
redenção e da liberdade a ser conquistada/expressa. Por outro lado, esta fase da trajetória
de Gilberto Gil conta com a participação de poetas muito importantes para sua música,
como Capinam (letrista de Água de Meninos, Miserere Nobis, Soy loco por ti, América,
entre outras) e Torquato Neto, cuja morte prematura em 1972 interrompeu o fluxo de um
rico manancial de idéias e inspirações para Gil e Caetano.
Com o exílio em Londres, Gil passa a desenvolver uma estética mais próxima da
posição de band leader, aprende a tocar guitarra e se insere mais facilmente que Caetano
no círculo artístico inglês. Sua presença chamava atenção de gravadoras britânicas e o
disco Gilberto Gil, de 1971, traz as primeiras parcerias, em tonalidades rockers, com o
poeta Jorge Mautner, um germano-brasileiro que vivia na Europa e desenvolvia estudos de
filosofia clássica, ainda hoje presentes em seu trabalho musical. As peças Mamma
(Gilberto Gil), Crazy Pop Rock (Gilberto Gil/Jorge Mautner) e Nega (Photograph Blues)
(Gilberto Gil) compõem este álbum de exílio, que teria sido sucedido por outro, cuja
feitura foi interrompida pela volta de Gil ao Brasil, em 1972.
Já em seu país, Gil se dedica ao projeto (Velho, 2003) de construção de uma carreira
em que as nuances da música pop estão cada vez mais intensas. A canção Back in Bahia
(Gilberto Gil) [AL 035], composta a partir de uma festa em Santo Amaro em que se faziam
presentes Caetano e Gil, faz uma leitura interessante de como o baiano Gil encarou sua ida
para Londres do final dos anos sessenta. Uma viagem que ocorreu como se ter ido fosse
necessário para voltar tanto mais vivo de vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá... Ou
seja, uma ida que, na volta, já trazia propostas artísticas que, entre outros significados,
também expressava uma militância política que passava longe da imagem de ícones
77
O disco Expresso 2222 (1972), em que se encontra Back in Bahia, traz também a faixa
título, que se tornou um clássico da obra de Gil, em um ambiente musical que evoca uma
nordestinidade aos moldes de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, eletrificadas em
arranjos como o da canção Sai do Sereno (Onildo Almeida) em que divide os vocais
agudos com Gal Costa, e O sonho acabou (Gilberto Gil), em que, parafraseando John
Lennon, trata do final de uma espécie de era de rebeldia vivida nos anos sessenta pelo
movimento hippie. Assim: O sonho acabou/quem não dormiu num sleeping bag nem
sequer sonhou/foi pesado o sono pra quem não sonhou (...) entoa Gil num momento em
que sua posição no campo artístico brasileiro oscilava entre o compositor/intérprete
inovador que voltou do exílio, e ao mesmo tempo, o artista entregue ao pop e não
direcionado às letras políticas cobradas por parte da imprensa e esquerda da época. Nesse
ano ainda, é lançado o álbum Barra 69, registro do último show realizado por Caetano e
Gil antes de partirem para o exílio.
Em 1973, um disco seu é gravado e não lançado. Cidade do Salvador conta com
material para dois discos pelo menos e algumas canções acabaram sendo utilizadas em
outros álbuns, como Essa é pra tocar no rádio (Gilberto Gil) e Iansã (Gilberto Gil/Caetano
Veloso) [AL 036], interpretada no LP Drama, de Bethânia.
É no ano de 1973 ainda que, no evento da Polygram Phono 73, Gil e Chico Buarque
têm seus microfones emudecidos num ato da censura por conta da canção Cálice (Gilberto
Gil/Chico Buarque), considerada suspeita de conter clamores contra o regime militar. A
essa altura, Gil é considerado um músico em vias de consagração, devido à sua intimidade
com o violão e sua performance ao vivo, como no show realizado no Teatro da
Universidade Católica de São Paulo, que é gravado e se torna o LP Gilberto Gil Ao Vivo
(1974), cujo repertório vai dos experimentalismos de modulações propostos em João
Sabino (Gilberto Gil) até a interpretação de Sim, foi você, composição de Caetano Veloso,
de um período em que o mesmo ainda não tocava violão. O tema da maconha, que vai
custar uma prisão mais à frente para Gil, comparece neste trabalho na faixa Abra o olho
(Gilberto Gil), em que uma mirada no espelho após o trago de um cigarro de maconha se
transforma em uma viagem poético-musical. Ao se reportar a esta peça, diz o autor:
78
Sou eu pondo colírio nos olhos depois de ter fumado um cigarro de maconha, em Manaus.
O hotel ficava fora da cidade, no meio do mato. Fui ao espelho, vi meus olhos vermelhos,
pus colírio e fiz a música. Um diálogo de mim pra mim. O ‘ele’ é o ‘outro’, o outro, eu, o do
espelho. Um pingue-pongue-bumerangue: você joga pra atingir o que está lá, a seta volta e
o atinge. Pelé e Zagallo dão o sentido de contradição e complementaridade yin-yang; um é
África, o outro, Europa (Gil, 1996, p. 155).
Ainda em 1974, sai o disco Temporada de Verão, com Gal e Caetano, gravado em
Salvador, além de Gil deixar de trabalhar com o empresário Guilherme Araújo, uma figura
marcante na elaboração da imagem pública do artista. A contenda envolvendo Gil e Araújo
vai se desdobrar nos anos noventa, quando Gil reclama na justiça os direitos de
comercialização de suas músicas desta fase, pertencentes, por edição, à Guilherme Araújo
Produções Artísticas – GAPA. A imprensa noticiou diversos pronunciamentos dos dois e,
após muitos recursos em juízo, as peças passaram a ser administradas pela GG Produções,
empresa criada por Gil para trato de seus negócios. Este capítulo à parte na relação entre
Gil e Araújo revela a produção artística como um item do campo da música popular que
começa a aparecer mais nitidamente a partir da assunção de uma arte comercial no Brasil.
Em 1975, Gil grava um álbum com Jorge Ben, seu ídolo desde os tempos da paixão
pela Bossa Nova. Este registro – Gil Jorge Ogum Xangô – traz a faixa Filhos de Gandhi
(Gilberto Gil) [AL 037], composta como forma de divulgar o Afoxé Filhos de Gandhi, que
impressionou o artista ao sair em 1973 com uma quantidade mínima de associados. Este
LP duplo representou também a reverência mútua entre estes dois artistas e uma jogada
comercial interessante, pois o próprio Gil já manifesta um apelo à negritude brasileira que
encontra no samba-rock de Jorge Ben (hoje Jorge Ben Jor) uma complementaridade que
perpassa suas composições e interpretações.
79
Este caminho traçado pelo indivíduo Gilberto Gil, aqui analisado sob a ótica do artista
Gilberto Gil, chega ao show/disco/filme Os Doces Bárbaros trazendo um agente cuja
posição de destaque se estrutura a partir da relação entre memória, projeto e metamorfose,
no sentido proposto por Gilberto Velho.
A trajetória artística de Gal Costa se inicia a partir de uma relação que esta cantora diz
manter com a música desde muito cedo. Filha de uma família de classe média alta de
Salvador, que vem a ficar em situação financeira difícil na década de sessenta, Gracinha –
como era conhecida a cantora nestes tempos – teve uma experiência profissional além do
canto que foi, curiosamente, como vendedora numa loja de discos. Sua mãe manifestava
interesse em que a filha seguisse carreira de cantora lírica, mas a Salvador em que Gal
viveu sua juventude favoreceu mais o acesso à musica popular. A professora de dança Laís
Salgado (Laisinha), também amiga de Dedé e Sandra Gadelha, promove um encontro que
viria a alcançar fundamental importância. É quando Gal, nos idos de 1963, é apresentada a
Caetano Veloso, compositor que, na época, já se dizia cansado de conversar com artistas
que não lhe suscitavam muita euforia. Nas palavras de Caetano:
80
O alvo da Laís era que eu conhecesse a Gal, Dedé era apenas a intermediária. Mas eu
nem me interessei muito pelo encontro porque adorei a Dedé e fiquei pensando assim:
"Puxa, essa menina devia ser minha namorada". Pensei mesmo.(...) E o tal encontro com
Gal, aliás, Maria da Graça, a Gracinha? - Ela veio com Dedé, toda tímida, roendo as unhas,
encanada, esquisita. Aí Dedé mandou que ela pegasse o violão e cantasse. E ela tocou e
cantou ‘Vagamente’. "Só me lembro muito vagamente...", de Menescal e Boscoli. Ainda não
existia o disco da Wanda. E foi engraçado porque a gente botou o apelido dela Gracinha
Vagamente. Depois, saiu o LP da Wanda que se chama Wanda Vagamente. Mas a Gal
cantou, e quando acabou, foi um choque. Aquela voz já era essa voz, cantando lindo. Eu
disse: "Você é a maior cantora do Brasil". Ela: "O quê?" E eu: "Você é a maior cantora do
Brasil, a maior de todas já, não tem dúvida, você é o máximo". O mito Gal Costa nasceria
mais tarde. - Gal é o nome dela. Tem gente que diz que foi inventado por Guilherme Araújo.
Não foi não, é mentira. Toda mulher baiana que se chama Maria da Graça ou das Graças,
no plural ou no singular tem automaticamente o apelido de Gal. Gal é o nome dela, sempre
foi o nome dela. A idéia de botar Gal Costa, de botar um dos sobrenomes como nome
artístico, é que foi do Guilherme. Ele achava que Maria da Graça era nome de fadista, não
condizia com uma coisa moderna. Nós achávamos Gal lindo, achávamos que poderia ser
só Gal. Mas Guilherme odiava e odeia até hoje nome sem sobrenome, acha cafona, que
não é chique. Foi ele que botou Moraes Moreira, Jards Macalé e Gal Costa.
In: Songbook Caetano Veloso. Rio de Janeiro, Ed. Lumiar, 1988.
Disponibilizado em www.caetanoveloso.com.br. Acesso em 12/02/2004.
Com Gal, Caetano pôde interagir desde o momento em que a ouviu até a certeza da
referência comum de ambos no atual momento da música brasileira. Ao ser interpelada
sobre quem seria o maior cantor do Brasil, a cantora iniciante afirmou ser João Gilberto,
estabelecendo-se imediata empatia entre os dois. Nota-se que esta figura tornou-se uma
espécie de estampa para Gil, Caetano e Gal, que o reverenciam desde os momentos
iniciais.
Em 1964, como show Nós, por exemplo, Maria da Graça desponta na interpretação, ao
lado de Maria Bethânia, da peça Sol Negro (Caetano Veloso) [AL 038], cantada entre o
timbre forte da última e a voz doce de Gal. Neste espetáculo, um episódio é narrado48 pela
artista como importante para sua aparição. Ao perceber um acorde tocado por Gilberto Gil
para iniciar a peça Se é tarde me perdoa (Carlos Lyra/Ronaldo Bôscoli) como definindo a
tonalidade em que cantaria, Gal acaba levando a música a uma altura muito maior,
surpreendendo platéia e colegas com a extensão de sua voz, até então não trabalhada nas
suas incursões iniciais na Bossa Nova. Era uma estréia em palcos que apontava estilos
perseguidos por esta cantora futuramente. Em termos de projetos, a elaboração da cantora
que dispõe de recursos amplos para se dedicar a um repertório eclético já aparece desde
essa época.
48
Em entrevista ao Programa Ensaio da TV Cultura, em 1994.
81
São Paulo, no início, foi barra. Acontecia tudo com os outros. Comigo, nada. Desanimei,
não vi mais sentido de ficar naquela cidade enorme, perdida, nada acontecendo. Decidi
voltar para a Bahia. Chamei Dedé e disse: “Vou-me embora”. Dedé foi para casa, naquele
tempo na São Luís, contou para Caetano que eu iria embora. Ele, mais do que depressa,
disse: “Diga a ela para não voltar. Ela tem que ficar”. Fiquei.
In: O Globo, 24 de outubro de 2004, Caderno 2.
O disco Tropicália, de 1968, serviu, entre outras coisas, para marcar em definitivo a
presença de Gal como intérprete do Tropicalismo e como projeto de artista pop. A
mudança de nome foi sugerida por Guilherme Araújo. A faixa Baby (Caetano Veloso),
composta a pedido de Maria Bethânia, foi gravada por Gal com grande sucesso. É também
nesse ano que Divino, Maravilhoso (Gilberto Gil/Caetano Veloso) [AL 039] concorre ao
Festival de Música da Record, em 1968, em que Gal aparece então como intérprete mais
agressiva, com uma indumentária nada comum, nem para o período, nem para a própria
imagem até então construída, seja por si própria, seja pelo público e pela imprensa. Com
peruca black power e colares adornando uma veste vermelho-sangue, os agudos de é
preciso estar atento e forte/não temos tempo de perder a morte... mostravam uma nova
fase do trabalho da Gracinha baiana, que se tornou Maria da Graça e chegou enfim a ser
Gal Costa49.
Quando Gil e Caetano são exilados, Gal Costa passa a ser identificada como a voz a
representá-los na fase pós-Tropicália. Os dois discos gravados em 1969 trazem uma
sonoridade rocker experimental que traduzem esta assunção da estética tropicalista,
colocando-a como uma das primeiras cantoras de rock no Brasil, além das artistas
49
Ver Anexo Depoimentos 02.
82
envolvidas com a Jovem Guarda. Canções como Não identificado (Caetano Veloso) e
Namorinho de portão (Tom Zé) são exemplos de uma poética e de temáticas que
evocavam regionalismos e comportamentos sociais representativos das sociabilidades
baianas de então. A última foi regravada no início dos anos 2000 por uma banda de rock de
Salvador, Penélope, fazendo ainda relativo sucesso.
No disco Gal (1969), aprofunda-se uma estética experimentalista, com peças de Gil,
Caetano e Jorge Ben, já contando com a presença do também experimental Jards Macalé,
que vai acompanhar Gal em diversos shows a partir de então. Em 1970 sai o LP Legal,
com a gravação intimista do samba de Geraldo Pereira – Falsa Baiana [AL 040], que
conclui um repertório que ainda traz Roberto e Erasmo Carlos – Eu sou terrível – e a
guitarra do virtuose Lanny Gordin, muito importante para a música produzida por Gal
neste início dos anos setenta. É interessante considerar que Falsa Baiana tem amplos
significados para a carreira de Gal e para o imaginário acerca da Bahia evocado como
tradicional. A “falsa baiana” que “não samba e não bole” é reconfigurada numa batida
bossa-novista que remete a uma ressignificação do samba operada por João Gilberto e em
continuidade na obra do grupo baiano, tendo a gravação desta peça no álbum Legal um
momento de privilegiada possibilidade de apreciação.
Em 1971, o show e disco Fa-Tal – Gal a todo vapor colocam a artista na posição de
uma das cantoras mais modernas do país, em considerações da imprensa e de outros nomes
da música no Brasil até os dias de hoje. Neste trabalho, entre uma ambiência hippie e
elétrica do rock, surge uma cantora baiana identificada tanto com as praias do Recôncavo,
como Arembepe, quanto com a modernidade do rock que se efetivou no campo musical
brasileiro através da Jovem Guarda e da Tropicália.
Dirigida por Wally Salomão, quando desse trabalho, temos uma artista cuja imagem
podia ser associada à sensualidade propalada da mulher baiana, em bustiês e saias
coloridas, num trabalho com o corpo em que uma frugalidade quase displicente revela a
forma como certos artistas da música lidavam com a ditadura militar, traduzindo no
desnudamento do corpo um desvelamento das idéias explícitas contra a supressão de
liberdade.
As imagens do show Índia, bem como a capa do LP (que era comprado num envelope
preto, como as revistas pornográficas) trazem estampadas uma Gal assumindo uma
feminilidade libertária (para os padrões da época, diga-se) e apontando caminhos para
outros artistas. A cantora Marina Lima, por exemplo, afirmou que desejou ser cantora e
voltar ao Brasil quando percebeu a performance de Gal Costa, que trazia um canto
moderno, diferente do que já se tinha feito na música brasileira até então50. Não é à toa que
a primeira artista a gravar uma composição de Marina – Meu doce amor (Marina/Duda
Machado) – é Gal Costa, no LP Caras e Bocas, de 1977.
Meu primeiro disco, “Domingo”, foi isso: uma comunhão total, nós dois éramos um só, eu
me sentia a voz de Caetano. Creio que ele também sentia isso. Mergulhei com ele no
Tropicalismo, fiz “Fatal”, “Índia”, com forte acentuação desse movimento. Foi quando
resolvemos mudar um pouco a história. Caetano queria que mostrasse a minha essência
de cantora. E veio o “Cantar”. Nem o show nem o disco emplacaram. Foi uma mudança
radical. Neles eu recolhia as minhas feras, as minhas garras, e partia para mostrar um lado
mais legitimamente meu.Com o fracasso do “Cantar” fiquei retraída, entrei em crise, três
anos sem fazer nada.
In: O Globo, 24 de outubro de 2004, Caderno 2.
Ainda em 1974, uma série de shows foi realizada em Salvador, reunindo Caetano, Gil
e Gal, cujo registro está no disco Temporada de Verão (1974). Gal vai pouco a pouco
personificando o ideário de musa dos repertórios de Caetano e Gil e de cantora das mais
50
O depoimento completo pode ser lido em www.verdadeirabaiana.com.br. O acesso se deu no dia
04/02/2004.
84
Um aspecto não deve ser elidido nesta observação sobre a singularidade de Gal Costa.
Tratar-se-ia de uma cantora que não costuma decidir sobre os rumos de seu trabalho, em
comparação com seus companheiros baianos. Com efeito, não se vai encontrar, pelo menos
em grande parte de sua trajetória, nem a expressão abundante de Caetano e Gil, nem a
manifestação de temperamento incisivo de Bethânia. Isto levou a crítica e a imprensa em
geral a considerá-la uma artista menos criativa52. Em 1976, com o show Doces Bárbaros,
Gal se reúne mais uma vez aos companheiros de início de trabalho para este espetáculo e
novamente este ponto entra em cena. Vejamos:
Aos 30 anos, psicanalisada, mais falante que nunca, vestindo-se com relativa simplicidade,
Gal afirma que essa imagem de “teleguiada” se formou por que “eu ainda não falava. Mas
sempre decidi sobre o andamento do meu trabalho”.
Os Baianos de novo. Revista Veja, 30 de junho de 1976, p. 80.
De todo modo, essa imagem reiterada nas representações sobre a cantora deve ser
observada à luz das diferenças individuais entre esses agentes. Gal não demonstra suas
decisões de maneira tão evidente, o que não significa necessariamente que uma
“passividade” nos momentos de definição de rumos equivalha à nulidade pessoal. Este
traço menos reflexivo e de elaborações intelectuais mais modestas compõe também os
contornos da construção/configuração social, qual seja a singularidade, deste indivíduo.
Assim, ela não configura menos singularidade que os outros agentes deste campo.
51
Daniela Mercury, que no primeiro de janeiro de 2003 homenageou Gal Costa e Elis Regina num show no
Farol da Barra, afirmou que o disco Gal canta Caymmi foi um dos trabalhos que mais a influenciou na sua
decisão de ser cantora. Conforme depoimento ao autor em abril de 2004.
52
Sua recente posição no mercado fonográfico, em que não comparece mais com a mesma força midiática e
pop, parece reforçar esse imaginário sobre seu perfil artístico.
85
(...) eu pensava, quando menina, eu sabia que minha vida ia ser no palco. Eu não sabia se
ia ser como bailarina, como cantora, como atriz, como seria, e depois de um tempo, pela
minha natureza grega-dramática, assim de onde vem, densa e trágica, eu achava que ia
ser uma grande atriz, que ia fazer teatro, personagens (...)
In: www.mariabethania.hpg.ig.com.br. Acesso em 14/10/2004.
53
No álbum Maria Bethânia e Caetano Veloso, a canção Maria Bethânia celebra esta referência. Em 1990,
num trabalho publicitário em homenagem às mulheres, a própria Bethânia canta esta peça, numa remissão ao
caráter senhorial da personagem de Capiba, então já podendo ser fundida à própria imagem constituída da
cantora.
54
Mesmo que a crítica bourdiana esteja centrada justamente nessas tentativas dos biógrafos no sentido de
encontrar sentidos para as trajetórias em retrospectiva, o que se percebe no caso de Bethânia é um projeto de
artista de palco, manifesto e assumido na adolescência, que se ajusta, em metamorfose (Velho, 1987), na
transformação numa intérprete de música popular.
86
A chegada a Salvador, em 1960, não parecia deixá-la feliz. Bethânia não demonstrava
interesse algum em se ambientar na capital (Veloso, 1997). Apenas o Dique do Tororó e as
primeiras experiências com a vida cultural proporcionada nos grupos ligados à
Universidade Federal da Bahia conseguiram fazer com que Bethânia se sentisse integrada
ao universo soteropolitano (Veloso, 1997). Em 1963, chamada por Álvaro Guimarães,
Bethânia inicia um espetáculo cantando Na cadência do samba (Ataulfo Alves / Paulo
Gesta), o que lhe vale certa notoriedade.
Em 1964, quando da sua passagem por Salvador, a cantora Nara Leão ouve uma
gravação do show Nós, por exemplo e, em fevereiro de 1965, em virtude de um problema
vocal, sugere que a iniciante cantora baiana a substitua no espetáculo Opinião, que, então,
já era bem sucedido. Bethânia viaja ao Rio de Janeiro na companhia do irmão Caetano e
inicia sua trajetória artística.
Maria Bethânia vai se configurando como uma intérprete teatral que se utiliza do
canto para apresentar versões dramatizadas do cancioneiro nacional. Seu estilo forte e
mesmo contraditório tanto em relação à onda da Bossa Nova como da Jovem Guarda
possibilitaram uma visibilidade que chegou ao meio empresarial, como se pode observar
no depoimento de Guilherme Araújo, segundo o qual Bethânia, na época, era a única
artista com uma proposta inovadora na música brasileira: o jeito arrebatado e forte de
cantar, o que o fez pensar: achei que aquilo iria dar certo55.
55
In: História do Rock Brasileiro. Anos 50 e 60. São Paulo. Ed. Abril. 2004, p. 60.
87
Deste modo, passa a figurar no campo da música popular como uma novidade até
certo ponto estranha, pois não coadunava com um imaginário de cantora em que a
feminilidade padronizada era marca comum e cuja relação com a música era, ao que
parece, muito mais pela via do teatro. Vejamos:
Bethânia estreou no Opinião com um visual bem andrógino para os padrões femininos da
época, ainda que no meio alternativo da cultura de protesto. Ela trajava em cena uma calça
de corte masculino, camisa de mangas compridas em estilo social presa por dentro da
calça, o cabelo amarrado à moda coque (Passos, 2004, p.25).
As boites passaram a ser o palco principal de Bethânia, sobretudo entre 1967 e 197056
Vários discos foram gravados. Do primeiro Maria Bethânia (1965), passando por Edu e
Bethânia (1967), este com Edu Lobo e o Recital na Boite Barroco (1968), temos um
caminho em que Bethânia consegue ser reconhecida como um fenômeno popular de
repertórios escolhidos para o estabelecimento de uma empatia como que orgânica com a
platéia, sua marca principal segundo tanto observadores e parceiros próximos como
Caetano e Chico, quanto a crítica especializada.
Em 1969, o disco Maria Bethânia traz arranjos que aproximam Bethânia de uma
estética entre o samba canção tradicional brasileiro e os pontos de candomblé/umbanda que
vão caracterizar boa parte desta fase da cantora. Com a faixa Ponto do Guerreiro Branco
(D. P.) [AL 042], a intérprete se inclui entre aquelas a colocarem no cenário da música
popular cantigas afro-brasileiras ora associadas com tradições do Rio de Janeiro, ora a
evocar raízes baianas estetizadas, como é o caso também de Clara Nunes. Na contracapa
deste álbum, escreve Hermínio Bello de Carvalho:
Neste disco, ela despediu-se das rendas para enfeitar-se de colares, e apegar-se aos
bentos e guias de suas vertigens místicas mais recentes. Mas em seu entendimento da
vida e do amor (e as malhas e tranças dessas tramas) continua lúcida. E se alteia e verga e
se deixa açoitar pelas palavras que profere em seu canto cheio de existencialidade.
Guerreira, ela medita o que foi caminhado e o que está pela frente. Reconhece que se
abriram fendas: os terços revelaram-se inúteis, e é preciso acender velas. Em meio de
saravás, ela risca o chão com pés descalços, arma seus búzios na necessidade de decifrar
a sorte que lhe caberá.
In: LP Maria Bethânia. EMI, 1969.
56
Ver Anexo Depoimento 03.
88
Em 1971, acontece o espetáculo e disco que são reconhecidos como importantes por
críticos e pela própria até os dias atuais. O show (e depois disco) Rosa dos Ventos estréia
sob a direção de Fauzi Arap, que desde 1968, no espetáculo Comigo me desavim,
acompanha Bethânia como um de seus diretores mais requisitados. No DVD Maricotinha
Ao Vivo (2002), Bethânia reporta-se à importância deste ator/diretor para sua carreira e das
circunstâncias em que o conheceu60. O Rosa dos Ventos trazia poemas e uma variedade de
gêneros musicais postos em cena, que vão caracterizar diversas outras apresentações em
sua vida artística.
57
Carlos Imperial salienta, na contra-capa do álbum, que esta data tem um significado importante por ser o
dia consagrado à Santa Bárbara/Iansã na tradição afro-brasileira.
58
O arranjo de Construção (Chico Buarque) foi composto por Rogério Duprat para o disco homônimo, de
1971.
59
Segundo Rodrigo Velloso, irmão de Bethânia, foi Vinícius de Moraes quem a aproximou mais
efetivamente do universo das religiões afro-brasileiras, no Rio de Janeiro, nos idos de 1965 (entrevista
concedida ao autor em dezembro de 2004).
60
Fauzi Arap é autor de um dos textos considerados mais emblemáticos ainda hoje da carreira de Bethânia,
que se encontra no LP Pássaro da Manhã (1977).
89
Em 1972, há uma incursão pelo cinema com Chico Buarque e Nara Leão, atuando e
gravando a trilha sonora. Quando o carnaval chegar é de Cacá Diegues, incluindo Baioque
(Chico Buarque), que revela um Chico Buarque mais atento às transformações da música
brasileira e flertando com uma alegoria de rock’n’roll, satiricamente cantado por Bethânia.
No mesmo ano, o disco Drama – Anjo Exterminado, produzido por Caetano Veloso, é
considerado por muitos críticos o início de uma fase mais técnica da artista, com peças de
Batatinha, Caetano Veloso e Jards Macalé.
O show Drama – A Luz da Noite rende outro álbum ao vivo (uma constante na
carreira de Bethânia) que já contém uma gravação de Oração à Mãe Menininha (Dorival
Caymmi) [AL 044], também interpretada no evento Phono 73 ao lado de Gal Costa. Este
momento terminou com um beijo entre as intérpretes, ainda hoje lembrado pela ousadia em
tempos de ditadura. Bethânia passa a trabalhar regularmente com diretores de teatro e a
lapidar um estilo de canto que vai situá-la, no campo da música, entre as grandes
intérpretes da chamada MPB, a partir dos anos setenta. Criticada por sua afinação por
vezes imprecisa, a cantora se afirma pela via da teatralidade e como uma mulher com força
e atitudes associadas ao perfil de Iansã, a quem Bethânia faz referências como sendo a
“dona da cabeça”.
Uma reflexão sobre o sucesso é o tema do disco A cena muda (1974). Desde a capa
até a concepção do roteiro, o brilho do cinema e da música são exaltados neste trabalho.
Faixas como Luzia Luluza (Gilberto Gil) e Luzes da Ribalta, versão de João de Barro e
Antonio Almeida para Limelight (Charles Chaplin/G. Parsons), traduzem a homenagem às
cantoras do rádio assumida por Bethânia no encarte do álbum.
O encontro entre Chico Buarque e Maria Bethânia em palco acontece em 1975, num
show produzido por Caetano Veloso, Rui Guerra e Osvaldo Loureiro. O álbum Chico
Buarque e Maria Bethânia (1975) reúne o compositor da MPB considerado àquela altura
uma espécie de “descendente da poética de Noel Rosa” e a intérprete não convencional em
que se convertera Bethânia. O próprio Chico afirmou que passou a crer no chamado “mito
do palco” ao trabalhar com Bethânia, que, segundo ele, não parecia a mesma pessoa a
conversar antes do início dos espetáculos que realizaram61. Já para Bethânia, a importância
de Chico Buarque é reconhecida, entre outros depoimentos, quando diz que certamente a
impressão, a coisa mais forte que tem da minha chegada à São Paulo é que foi aqui nessa
61
Como se pode constatar no DVD Chico Buarque e as Cidades, de 2000.
90
cidade que eu conheci Chico Buarque de Holanda com seus olhos de mar e suas lindas
canções62.
Canções de Chico Buarque como Olé, Olá e Sem fantasia, bem como sucessos do
cancioneiro tradicional do repertório de Bethânia63, como Camisola do dia (Herivelto
Martins/David Nasser), estão ao lado de destaques como Sinal Fechado (Paulinho da
Viola), que foi também título do disco de intérprete64 que Chico Buarque lançou em 1974
para fugir da perseguição da censura federal. Vejamos:
Quando nos reunimos na casa de Chico para bolar um espetáculo para o Canecão -
Osvaldo Loureiro, Rui Guerra, Chico e eu - várias perguntas surgiram e todas procuravam
um sentido ou uma justificativa para que Bethânia e Chico se apresentassem juntos no
Canecão. Quando eu disse que havia milhões de razões para explicar isso e que eu, de
minha parte, só podia dizer duas (1º; o fato de ser uma boa grana para os dois e 2º; o fato
de Bethânia ser de Gêmeos e de Chico ser de Gêmeos e do show estar para estrear em
Gêmeos), isso não causou nenhum mal-estar na sala (...) Quando o show estreou,
Bethânia estava achando ruim a declaração de Rui Guerra no jornal, porque ali ele
aparentemente tentava se desresponsabilizar do que quer que viesse ser o show e deixava
a "culpa" escorregar para a escolha do repertório dela. O Canecão estava cheio de "Rio de
Janeiro", acho que nunca houve tanto "Rio de Janeiro" no Canecão antes. Muita atenção
para as aspas. O Acaso foi impiedoso: o "desamparo" em que Chico e Berré foram
lançados chegou até à falta de som e o "Rio de Janeiro" presente se viu diante de um pobre
rico palco giratório, uns ladrõezinhos estilizados, um arremedo de escola de samba e a
evidência de Bethânia cantando "Gitã" (sob uma evocação que não parece ter partido da
mesma platéia que reclamava quando o show terminou) quando o show terminou Rui
Guerra me deu um beijo e ele estava alegre e éramos dois leões numa alegria acima do
ego, sem autoria .
Caetano Veloso. Iansã Francisco: Quanta luz. Retirado do texto para o show/disco Chico
Buarque e Maria Bethânia, em 1975. Em: www.caetanoveloso.com.br, acesso em
19/11/2004.
O texto de Caetano aponta para dúvidas e questões que envolvem a discussão sobre os
projetos (Velho, 2003) de carreira tanto de Chico quanto de Bethânia. Como unir dois
artistas tão diferentes de maneira a não parecer simplesmente uma manobra de mercado?
Era isso que parecia explicitado nas críticas e no receio de Rui Guerra com relação ao
repertório de Bethânia, já então considerado relativamente ultrapassado.
No início de 1976, o álbum Pássaro Proibido marca o seu primeiro disco de ouro
(cem mil cópias vendidas) e o êxito da canção de Chico Buarque Olhos nos Olhos, que
consagrou Bethânia na programação das rádios AM, como uma cantora mais popular do
que no início da carreira. Faixas como As Ayabás (Gilberto Gil/Caetano Veloso) [AL 045] e
62
In: CD duplo Maricotinha Ao Vivo, Biscoito Fino, 2002.
63
O repertório de Bethânia passeia em diversos momentos pelas canções gravadas por Dalva de Oliveira, de
quem Bethânia parece ter se inspirado para o estilo dramático de entoar.
64
Diz-se quando o compositor interpreta peças de outros autores.
91
A Bahia te espera (Herivelto Martins/David Nasser) [AL 046] são destaques, além de uma
espécie de lançamento nacional de Gonzaguinha, com uma de suas primeiras composições.
Festa (Gonzaguinha) também compõe o repertório de Pássaro Proibido, além da faixa
título, parceria de Caetano e Bethânia e peça importante no show Doces Bárbaros, a se
realizar meses depois.
65
Como se chamam as grandes gravadoras no jargão empresarial na música. Uma observação importante
hoje, quando a pirataria fonográfica está em voga: pequenas gravadoras não associadas a grupos estrangeiros
estão se desenvolvendo no Brasil, como é o caso da Trama e da Biscoito Fino. A primeira noticiou ter
assinado contrato, no início do segundo semestre de 2004, com Gal Costa; a segunda vem realizando
trabalhos considerados “sofisticados”, tendo como sua artista mais famosa Maria Bethânia, que também
lançou um selo fonográfico no final de 2003, o Quitanda. A emergência dessas pequenas gravadoras revela
uma mudança significativa no perfil empresarial do setor. Os grandes conglomerados multinacionais estão
agora competindo com núcleos de produção nacionais, que buscam preencher espaços no campo musical
brasileiro.
66
A indústria fonográfica tem início no Brasil com o empreendimento do tchecoslovaco Frederico Figner,
que, em 1892, se instala no Rio de Janeiro com o fonógrafo, inaugurando um negócio que mais tarde seria
92
Por outro lado, a ditadura militar, ao fazer da censura uma prática onipresente na
relação com o âmbito da mídia, ocasionou que a indústria do disco crescesse, tanto com a
venda de produtos estrangeiros quanto com a valorização do cast nacional, sobretudo
aqueles normalmente perseguidos pela censura. Pode-se dizer que uma espécie de capital
simbólico (Bourdieu, 2004), associado ao caráter restritivo da censura, permitiu que uma
valoração positiva da “criatividade” dos compositores perseguidos fosse utilizada pelas
gravadoras como um atributo a mais na definição desses produtos.
Os artistas que não eram perseguidos, ou pelo menos não tanto, podiam se beneficiar
do status a que chegou a música brasileira chegou no período de exceção; estandarte das
liberdades suspensas no plano político-social. Da mesma forma, puderam ser agentes
importantes do crescimento do mercado fonográfico nacional. Vejamos:
definitivamente dominado por grandes empresas transnacionais. Na década de setenta, o disco de vinil era
um produto plenamente viável, seja no seu formato em compacto, seja como LP.
67
Este formato de mídia deixou de ser fabricado no Brasil em 1990, sendo que, durante essa década, tentou-
se restaurar a venda de discos menores, com o single, já digital, surgido na era do CD. Não parece que esta
estratégia tenha logrado o êxito esperado, como acontece, por exemplo, no mercado norte-americano.
93
Desde modo, reunir quatro artistas que se estabeleciam neste cenário musical
correspondia a reunir quatro produtos da indústria da música popular em ascensão, além de
promissores em termos de negócios. O show proporcionou ampla visibilidade da dimensão
de grupo destes artistas, desde os momentos iniciais em Salvador. Havia um desejo de
Bethânia68 e a aquiescência dos colegas possibilitou aquele encontro.
Por certo, havia o receio de que Bethânia, sempre dada a clímaxes musicais apaixonados,
acabasse por não se adaptar ao projetado quarteto vocal.
In: Os Baianos de novo. Revista Veja, 30 de junho de 1976. São Paulo. Ed. Abril p. 78.
68
É que a gente estava cada um com sua carreira, com sua história bem definida e eu tinha saudade um
pouco daquele jeito da Bahia, quando fazíamos juntos. Maria Bethânia. In: Outros (doces) Bárbaros. DVD.
Biscoito Fino. 2004.
94
“Eu vi um Brasil na TV”, diz e repete a canção. O sonho de uma civilização brasileira ficava
assim reduzido ao tamanho da telinha. A grande obra do regime militar foi a invenção da
Rede Globo como espelho do país – essa a moral da história. Ainda hoje, esse imaginário
permanece como centro de gravidade da cultura nacional (Barros e Silva, 2004, p.89).
A trilha dessa novela configura uma Bahia ao mesmo tempo tradicional e em vias de
modernização, como nas ressignificações operadas por Caetano, Gil, Gal e Bethânia no
acontecimento de 1976. Estão no disco Guitarra Baiana (Moraes Moreira); Filho da Bahia
(Walter Queiroz), numa interpretação remetida ao ideal de mulher baiana sensual pela voz
de Fafá de Belém; e a faixa Alegre Menina, assinada por Dori Caymmi [AL 047], com letra
correspondente à epígrafe do quarto capítulo de Gabriela, Cravo e Canela, e tema do amor
de Gabriela e Nacib, cantada por Djavan, ainda no início de sua discografia.
Gabriela se faz presente na obra do grupo baiano tanto por Gal, quanto por Gil, que
em Jeca Total, do disco Refazenda (1975), remete-se:
Da imaginação
Imaginacionando o que seria a criação
De um ditado dito popular
Mito da mitologia brasileira
Jeca Total
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Um tempo perdido
Interessante a maneira do tempo
Ter perdição
Quer dizer, se perder no correr
Decorrer da história
Glória, decadência, memória
Era de Aquarius
Ou mera ilusão
Jeca Total
In: Refazenda. LP, Polygram, 1975.
Neste ambiente, exposto nessa peça de Gil, em que o Jeca Tatu se transfigura em Jeca
Total, além da mídia televisiva, havia também grupos de artistas que estruturalmente se
posicionavam em pólos diversos e até antagônicos aos rumos da música pop no Brasil. Se
há uma figura como Alceu Valença – que se caracteriza como nordestino e cuja música
parece flertar entre o rock e a música tradicional e emblematicamente regional, com bases
em Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro –, havia também oposições a uma música inserida
no contexto pop e industrial, como se percebe nos posicionamentos de Belchior e Fagner,
que figuravam na mídia como uma espécie de agentes que contradiziam a pretensa
hegemonia dos baianos no cenário musical brasileiro no final dos anos setenta69.
69
Uma discussão sobre os caminhos dessa modernização da música brasileira pode ser contemplada na obra
já citada de Fernando de Barros e Silva: Folha explica Chico Buarque, São Paulo, Ed. Publifolha, 2004.
96
A nacionalidade brasileira, tal como podemos divisar a partir de alguns de seus ícones
mais evidentes, está marcada por sinais de um arranjo de narrativas peculiares. O “texto
majoritário” nacional comparece como organizado em torno de uma representação a que
poderíamos chamar brasilidade. Podemos tomar o século XX, sobretudo a partir de sua
terceira década, como o período em que se consolidou uma narrativa ao mesmo tempo
diversificada e unificadora da nacionalidade brasileira. Neste processo, constatamos a
relevância dos estudos sócio-antropológicos de matriz propriamente nacional.
98
num território que não é o seu de origem (Cardel, 2003). Estudando as migrações da região
de Olho d’Água, no noroeste baiano, para São Paulo, Cardel trata da constituição das
territorialidades em ambientes ressignificados. Assim como estes migrantes redefinem suas
atividades e padrões de identificação, também promovem a construção de identidades pelo
outro que lhe abriga, o que se verifica nas denominações dos nordestinos em São Paulo. Se
aqui se tem o baiano, seu similar ou correspondente, no Rio de Janeiro, é o paraíba. De
todo modo, o que interessa no campo de representações aberto por esse fenômeno
migratório é compreender como uma Bahia negra e sensual poderia conviver com um
imaginário de baianos pobres e sem rumo próprio que aportam no eixo sul do país. Os
territórios destes baianos ficam divididos, ora nas memórias (Velho, 1987; 2003) dos que
ficaram nesta Bahia que produz migrantes, ora na cidade grande, em seus “espaços”
redefinidos Vejamos:
Estes migrantes fundam no território de acolhida o que Alain Tarrius denomina como
“micro-espaços” ou micro-lugares”. É desta forma que a Vila Císper é apropriada na
atualidade, tanto pelos migrantes que ali fixaram residência há 20 anos, segundo os
informantes, como para os que estão na comunidade, e que guardam os endereços de
seus parentes migrantes como se fossem pequenos tesouros, escritos em letras
caprichadas em parcos pedaços de papel, confinados no recôndito do móvel principal e
zelados pelas matriarcas, donas das cartas e dos objetos enviados pelos que estão de fora
(Cardel, 2003, p.90).
Podemos afirmar, então, que estes territórios, como a Pequena África no Rio de
Janeiro – concentração de baianos como as famosas tias, que ajudaram a reunir os
sambistas a falar da Bahia e, sobretudo, da Bahia no Rio de Janeiro – se estabelecem como
regiões (Bourdieu, 2001) inseridas nos contextos maiores das cidades grandes e funcionam
como espaços de configuração de feixes representacionais e, portanto, de narrativas
identitárias. Não é à toa que Lopes (2003), ao se reportar às origens do samba carioca, trata
de referendar-se nos dados históricos relativos à decadência da cafeicultura no Vale do
Paraíba, que teria empurrado migrantes – muitos negros70 e baianos – para a capital do
Império, a partir da volta de 1860, que, por sua vez, trabalhando na zona portuária e no
comércio, fundam, entre a Pedra do Sal e a Cidade Nova, a comunidade baiana do Rio de
Janeiro, hoje conhecida como Pequena África (Lopes, 2003, p. 31).
70
O que certamente ajudou na construção deste imaginário que considera uma metonímia a relação entre
baiano e negro.
100
representações sobre o Norte71 , que incluem uma Bahia paralela àquela que vai se
emblematizar na obra de Gilberto Freyre pela via da família afro-baiana/mestiça e fruto da
integração entre senhores e escravos, bem como na música popular, que consagra a Bahia
como nascedouro de belezas poéticas e matriz do samba; enfim, um berço retro-unificador
de narrativas nacionais.
Nos anos trinta do século XX, ao mesmo tempo em que se consolidavam o romance
regionalista e a expansão do samba pelo rádio72, a partir do Rio de Janeiro, uma literatura
propriamente sócio-antropológica desencadeou a reflexão sistemática sobre a identidade
brasileira. Gilberto Freyre (1994) e sua teoria de um Brasil mestiço destronaram a primazia
da noção de raça, tão forte nas reflexões dos primeiros cronistas sociais. Logo em seguida,
Sérgio Buarque de Holanda (1995) colocou o problema da cultura brasileira em termos
mais políticos, criticando o tipo social que Ribeiro Couto já havia chamado de homem
cordial brasileiro. Na década seguinte, Caio Prado Júnior (1996) inaugurou uma discussão
marxista sobre a civilização brasileira, formatando o problema da identidade em termos de
destino político. Em nossos dias, são vários os cientistas sociais que se dedicam a ao
estudo desta questão.
Aos efeitos desta pesquisa, convém colocar agora a questão: onde precisamente seu
objeto vem se conectar neste feixe de discussões? Ora, na trama da brasilidade, alguns
espaços historicamente construídos como regiões vêm se constituindo como emblemas e
referências de alguns aspectos dessa mesma brasilidade pelo menos desde o final do século
XIX e mais vigorosamente a partir dos anos vinte do século passado. É nesse período que a
radiofonia assume a dianteira na divulgação de um discurso nacionalista. Assim, é da
maior importância considerar essa rede de representações que articula discursos
identitários sobre a sociedade baiana ao mesmo tempo em que se constitui como a própria
brasilidade.
71
O termo Nordeste só é usado com freqüência a partir de décadas posteriores, alcançando vigência própria
principalmente com a implantação da Sudene, como integrante das políticas governamentais correspondentes
ao período desenvolvimentista e, em seguido, à ditadura militar.
72
A primeira estação radiofônica brasileira, a Rádio Clube de Pernambuco, foi inaugurada em 17 de outubro
de 1922. A esse primeiro impulso, segue-se a criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 23 de abril
de 1923, com o intelectual carioca Edgard Roquette Pinto, associado a Henrique Morize. Durante a década de
vinte, e sobretudo a partir dos anos trinta, o rádio passou a ser, juntamente com o teatro, a vitrine maior das
manifestações musicais brasileiras, principalmente com a emergência da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro.
In: História do Samba. Capítulo 2 (Fascículo acompanhado de CD). São Paulo, Editora Globo, 1997.
101
73
Conforme dados do Anuário Estatístico do Brasil 1953, Rio de Janeiro: IBGE, v.14, 1953. In: CD-ROM
Estatísticas do Século XX IBGE, 2004.
102
Entre os autores mais recentes que se dedicam a um estudo mais detido nas práticas
artísticas, situa-se a contribuição de Moura (1996; 2001), que analisa a tessitura de uma
representação a que se convencionou chamar de baianidade em torno da familiaridade,
religiosidade e sensualidade, propondo que o principal produto da cidade do Salvador, nos
últimos anos, termina sendo sua própria imagem. Esta tese ora entra em choque, ora se
completa com os diversos pronunciamentos, já comentados no capítulo 2, de Roberto
Albergaria (2002) na televisão e seus (lamentavelmente poucos) escritos publicados.
Gilberto Gil
Eu vim da Bahia
In: Gilberto Gil em Concerto. LP, 1987, WEA
103
Quando diz que veio da Bahia num momento em que sua carreira está apenas
começando74 Gil elenca elementos que situam geográfica e simbolicamente sua posição de
baiano. Trata-se de uma Bahia próxima do mar, centrada em Salvador, nos valores de
religiosidade, ancestralidade e historicidade já entoados e identificados com a Bahia muito
antes da existência do próprio Gil. Essa assunção do tradicional por parte de Gil, Caetano,
Gal e Bethânia nas representações da sociedade baiana vai ser fundamental para
compreender como estes agentes ressignificam, em vários momentos, a própria idéia de
Bahia no universo da brasilidade, ora reforçando essa tradição, ora apontando para o
moderno. Esta canção também foi registrada em disco por João Gilberto, em 1973, numa
troca simbólica singular, pois o compositor referencial para Gil, Caetano e Gal adota a
poética de Gil numa interpretação emoldurada na estética do violão da Bossa Nova75.
Neste momento, cabe uma reflexão mais cuidadosa sobre a constituição do Recôncavo
como a imagem mais corrente nas representações no campo da música sobre a Bahia.
Embora, do ponto de vista geopolítico, seja a Bahia muito mais ampla que o entorno da
Baía de Todos os Santos, é justamente esta região que vai ser considerada como a
representação máxima do que se chama Bahia nas malhas da identidade nacional. A
historiografia, que dá conta de uma origem dos acontecimentos históricos do Brasil no sul
da Bahia e posteriormente no entorno da cidade do Salvador, justifica uma apreensão desta
microrregião como sendo a Bahia por excelência.
Embora saibamos que o Estado da Bahia engloba muito mais que Salvador e o
Recôncavo, as outras sub-regiões baianas entram numa trama de construção identitária que
se remetem ao Nordeste ou mesmo Minas Gerais (enquanto texto identitário) muito mais
74
Embora a gravação contemplada seja de 1987, esta peça foi composta em meados da década de sessenta e
gravada inicialmente no primeiro compacto de Gal Costa (ainda conhecida como Maria da Graça, em 1965).
75
Vejamos este comentário de Bethânia com relação a Eu vim da Bahia: Sobre Iemanjá, Caymmi já disse
tudo, com toda beleza. Mas Gil, da minha geração, falou sobre todos nós nessa canção (A Tarde, Cad. 2, 1°
de fevereiro de 2003, p. 5).
104
que ao que conhecemos como Bahia. Cidades como Senhor do Bonfim, Vitória da
Conquista, Teixeira de Freitas ou Barreiras estão associadas ao termo Bahia muito mais
pela via política de manutenção territorial ou pela via burocrático-institucional da
organização de serviços. Entretanto, no plano das representações, a Bahia que se assenta e
acentua não é aquela que se compõe, por exemplo, das belezas naturais da Chapada
Diamantina76; esse local é considerado, hoje, atrativo e integra o interessante roteiro de
ecoturismo, mas não parece se emblematizar, pelo menos ainda, como Bahia, tal como esta
é tomada em termos de tradicional.
76
A discussão sobre a liminaridade (Cardel, 2003) dos migrantes nordestinos e de sua imagem em São Paulo
pode ser lembrada a partir do que estamos agora tratando, pois há uma duplicidade no imaginário sobre
baianos/nordestinos no eixo sul. São retirantes e, ao mesmo tempo, negros, alegres, sensuais e festeiros, o
que complexifica ainda mais a questão. Mesmo assim, as narrativas identitárias de Bahia que prevalecem nas
representações correntes, sobretudo na música, são aquelas correspondentes à Bahia de Salvador e do
Recôncavo.
77
Trechos de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e O que é que a baiana tem?, de Dorival Caymmi.
105
sempre compreendida como Salvador e seu Recôncavo. Como num encontro entre o meio
rural e o meio urbano em formação, bem como entre os grupos étnicos genericamente
chamados de brancos, índios e negros, o Recôncavo Baiano assume, como numa
sinédoque amplamente legitimada, o rosto da Bahia nos contornos da construção de uma
identidade cultural brasileira; é nesse rosto que os brasileiros de todas as regiões vão poder
encontrar uma referência como de berço.
No que se refere ao acervo musical, pode-se destacar que as escolas de samba cariocas
são um terreno fértil de proliferação, possibilitando a espetacularização das vivências dos
agentes envolvidos. Compositores como Sinhô, Ismael Silva, além de outros da chamada
Velha Guarda do Samba no Rio de Janeiro, tratam da Bahia como temática de referência
em canções ainda lembradas como clássicas. Vale a pena citar aqui o incômodo que essa
posição ancestral da Bahia causava em certos compositores. É notória a contenda que
envolveu alguns sambistas do círculo de Tia Ciata e Sinhô por conta da ironia deste último
ao dizer que a Bahia é boa, ela lá e eu cá78, o que provocou reações agressivas. Assim:
As escolas de samba que floresceram no Rio de Janeiro a partir dos anos vinte, vindas
da tradição dos ranchos inaugurados na confluência entre cariocas e baianos desde o século
anterior, desempenham um papel relevante no sentido de plasmar esta marca da Bahia
circunscrita ao Recôncavo e referenciada à presença negra, religiosa e ao mesmo tempo
sensual, de doce malemolência, que caracterizam um texto identitário desta Bahia aqui
considerada no pólo da tradição. Vejamos:
78
Trecho da peça Quem são eles (Sinhô), de 1920.
106
É na própria história do Carnaval carioca que vamos encontrar, de forma mais fartamente
documentada, a presença dos baianos no Rio de Janeiro (...) A importância de relacionar
estes elementos decorre do próprio fato de o texto da baianidade ter se originado do
contraste entre os padrões civilizatórios que se tornaram emblemáticos do Rio de Janeiro e
da Bahia, já no século XIX (...) Não é somente o número dos baianos no Rio de Janeiro, as
qualidades de sua atuação e a freqüência com que são referidos que impressiona; são
também os conteúdos reunidos e organizados por este termo. Seriam todos estes
personagens baianos mesmo? Tratar-se-ia de uma sinédoque que, de tão usual, sequer
parece sê-lo? É nome de que esta palavra? Assim, encontro motivos mais que suficientes
para supor que baiano é, tanto quanto o pátrio de uma província, o nome de um ethos que
acontece, num universo hegemonizado pelo elemento branco, suposta e/ou pretensamente
ocidental, como étnico (Moura, 2001, p. 138).
79
Entidades cultuadas em certas nações de candomblé e casas de umbanda brasileiras.
107
Temos, assim, uma presença vigorosa de baianos no Rio de Janeiro, desde meados do
século XIX, como demonstra a figura singularizada de Xisto Bahia. São trabalhadores do
porto, vendedores de rua, baianas de acarajé e quitutes afro-brasileiros, que vão se
evidenciando como partícipes da construção da capital brasileira ao mesmo tempo que
engendrando inúmeras representações acerca da Bahia, situando-a como pólo produtor
e/ou referenciador de tradições originárias do Brasil.
ainda compôs Na Baixa do Sapateiro [AL 050], Bahia [AL 051] e Quando eu penso na Bahia
(em parceria com Luiz Peixoto), entre outras.
A portuguesa Carmem Miranda vem para o Brasil com dezoito meses, vindo a fazer
carreira como cantora a partir de 1929, participando de um festival beneficente de música.
Em 1939, a intérprete e o grupo Bando da Lua foram contratados para trabalhos nos
Estados Unidos, perpetuando sua imagem de baiana estilizada que conquistou o cinema
até mesmo na filmografia de Walt Disney, com Você já foi à Bahia ?. Os personagens Pato
Donald e Zé Carioca são protagonistas de uma viagem ao Brasil, tendo Carmem Miranda e
o Bando da Lua como guias turísticos pelas ruas da cidade do Salvador, mostrando “o que
é que a Bahia tinha...” e remetendo um acervo deste território ao mundo do cinema
internacional.
No início, a moda baiana de Carmem Miranda seria ridicularizada; já em 1933 usava “uma
roupa ousada que expunha a nudez do estômago”, considerada “vulgar e deselegante”.
Mas a incorporação definitiva da Bahia a sua persona só acontece em 1939, quando
Carmem interpreta O que é que a baiana tem?, de Dorival Caymmi, no filme Banana da
terra, produzido pelo americano Wallace Downey. (...) a partir daí, Carmem não mais
abandona a imagem baiana, passando a adotar os trajes, os “gestos sedutores” e a “alegria
tropical (Naves, 1998, p. 181).
Caymmi chega ao Rio de Janeiro com vinte e quatro anos, em 1938, e inicia uma
carreira como compositor e cantor de voz forte e grave, que já de início fez muito sucesso.
Desenvolve uma estética ligada ao cotidiano de uma Salvador do início do século XX
ainda não modernizada pela industrialização que começava a se desenvolver no eixo Rio-
São Paulo. A negritude a que se associa o território baiano nas representações da
brasilidade se consolida sobremaneira, no campo da música, a partir de sua obra. Os negros
“caymmianos” passam em cortejo nas ruas e praias baianas como pescadores, vendedores e
pretas do acarajé, acreditando nos santos católicos e nos orixás.
81
No item 4.3, aborda-se a identificação que se observa numa fase da carreira de Gal Costa com esse
imaginário de baiana trazido por Carmem Miranda.
109
Canções como Canoeiro, O Vento [AL 052], Vatapá [AL 053], O que é que a baiana
tem?, Rainha do Mar [AL 054], Requebra que eu dou um doce [AL 055], Saudade da Bahia
[AL 056], Você já foi à Bahia? [AL 057] e Lá vem a baiana [AL 058], entre outras, são
fundamentais para que se compreenda o imaginário baiano que se assenta a partir dos anos
trinta na música brasileira. Pode-se dizer, então, que Caymmi é um dos pais de variados
mitos sobre a Bahia, inclusive aquele da preguiça, que curiosamente é associado à sua
obra, embora esta comumente se refira à Bahia no âmbito do trabalho, seja de pescadores,
baianas de acarajé, ou de operários no Rio de Janeiro, como na peça Sábado em
Copacabana (Dorival Caymmi / Carlos Guinle) [AL 059]. Deste modo:
É curioso e importante notar na obra de Caymmi uma fidelidade às suas raízes – ao povo
da Bahia, à magia de sua cidade natal e à solidez dos vultos populares que a povoam e lhe
dão caráter. Caymmi talvez seja o maior menestrel que uma cidade brasileira jamais teve e
se pode dizer, com toda certeza, que os mistérios e belezas da Bahia se popularizaram
pelo seu canto (Albin, 2003, p. 132).
também baiano Batatinha. Boas Festas e Alegria [AL 062] são exemplos dessa manifestação
de melancolia e sofisticação do seu trato com a letra de canção. O clássico Brasil
Pandeiro83 talvez seja o que mais se aproxima de um ideário de Bahia que ajudou a
82
A canção Cada tempo em seu lugar (Gilberto Gil) [AL 064] se remete à imagem de velho baiano que tem
se associado a Dorival Caymmi, como revela o próprio Gil (Gil, 1996). Outra peça em que essa referência se
faz generosamente é Buda Nagô [AL 065].
83
Gravado também pelos Novos Baianos no disco Acabou chorare, 1972. Trata-se de um registro dos mais
lembrados, pois esse grupo também promoveu ressignificações tanto de referências de identidades brasileiras
como de identidades baianas.
110
É interessante assinalar que, além da Bahia, outros espaços vêm sendo estudados
como emblemáticos desse tipo de narrativa identitária, como é o caso do Rio Grande do
Sul e a chamada gauchice, bem como de Minas Gerais e a mineiridade. Enquanto a Bahia
tem referência num passado colonial para sustentar-se como origem do Brasil, os gaúchos,
na análise de Pesavento (1985), apóiam-se fortemente na referência à Revolução
Farroupilha, em suas auto-representações, no sentido de elaborar sua discutida identidade
cultural, ou seja, como fortes, viris e dados à guerra para obter conquistas85. Por sua, vez,
o estudo realizado por Arruda (1990) sobre a mitologia da mineiridade confere atenção
especial às representações que se remetem à emblematicidade histórica de Minas Gerais,
com suas características associadas a uma espécie de temperança no trato com a política;
isto viria culminar na figura do mineiro equilibrado e, nas palavras da autora, de razão
superior .
Essas narrativas voltam a evocar o tema das regionalidades, caro a Bourdieu, como se
vê:
84
Em diversos momentos de sua trajetória, em entrevistas e shows, Caetano Veloso mostra um respeito e
admiração significativos por Assis Valente. No encarte do LP Tropicália II, tece um comentário sobre o
compositor, questionando a qualidade de uma biografia que teria negligenciado o possível bissexualismo de
Valente. Considerando a época em que viveu, alguns cronistas da obra deste último apontam este traço de sua
identidade como uma das possíveis causas de sua depressão, que o levou ao suicídio. Em 2004, no show A
Foreign Sound, com canções norte-americanas, em Salvador, Caetano incluiu Brasil Pandeiro no repertório,
como referência a uma canção brasileira famosa em outras partes do mundo e também como lembrança da
importância do compositor, cuja naturalidade ainda é questionada. Alguns dizem que nasceu em Santo
Amaro da Purificação, o que certamente aumenta a identificação de Caetano consigo.
85
Num senso comum, em ambientes populares, a figura do gaúcho também é associada à imagem do falso
macho, numa representação em tom de gozação com o aspecto da gauchice relativo à virilidade do homem
do Rio Grande do Sul.
111
Para Caetano, o trabalho que ora desenvolvem juntos não implica na busca da síntese de
cada um. “Só é uma síntese – explicou – na medida em que somos nós mesmos e tudo
que fazemos agora é de certa forma uma síntese do que viemos fazendo”.
In: Jornal A Tarde, 05 de outubro de 1976, cad. 1, p.03.
Caetano, Gil, Gal e Bethânia, sobretudo no show em 1976, transitaram pelo binômio
tradição/inovação num formato muito carregado de significados contraditórios para os
padrões que prevaleciam na época. Numa estratégia de confluência que recapitula o que se
afirmou acima sobre simultaneidade, ousaram levar para o plano midiático diversas
imagens de Bahia que, se reafirmavam sua “vocação” de relicário de tradição, origem
africana, religiosidade popular, sensualidade, familiaridade, proximidade, etc, também
revolviam as teias das identidades culturais baiana e brasileira a partir da enunciação de
elementos inovadores presentes àquela altura na vida sócio-cultural brasileira e baiana.
Nessa época, em que a gente teve parado quase que um mês, o que a gente sentiu muito
profundamente foi uma sensação de frustração, porque a gente tava ligado num trabalho,
começando um trabalho que pra gente era muito importante, muito forte, e pra o Brasil
também. Então, ser cortado assim, no início, quando a gente tava descobrindo as coisas, a
relação entre a gente, toda a proposta que a gente tinha, que a gente tava começando a
incorporar no trabalho, quando a gente foi castrado, a gente se sentiu muito frustrado. Mas
a gente ficou aqui juntos, os três, quando o Gil não podia estar conosco. A gente tava
sempre perto dele. Os três muito juntos e com muita força, um dando força ao outro,
querendo continuar o trabalho.
In: Home-vídeo Os Doces Bárbaros. Dir. Jon Tob Azulay. CIC. 1977.
86
Ver o Quadro 10, no Apêndice, pg. 205.
87
Esse fato atesta a expectativa em torno da importância comercial do acontecimento. Além do mais, com a
prisão de Gil, amplamente exposta no filme, o contexto ganhou conotações que fortaleceram a
espetacularização do encontro de Caetano, Gil, Gal e Bethânia.
113
“Os mais doces bárbaros”, música de abertura do show, figura uma invasão amada da
cidade (“avançando através dos grossos portões / nossos planos são muito bons”). A
música é tanto uma proposição, quanto uma invocação, o chamado da inspiração e a
tomada do palco enquanto lugar público ( a “cidade”), o umbral que descortina e devassa
os telões, não só os do palco, mas do lugar do carnaval, que é, pelo menos dois milênios, o
espaço de passagem que se instaura entre a vida e a morte, os encontros e as separações,
o poder e a queda, atravessado por essas “troupes” utópicas de saltimbancos, afoxés,
cordões, blocos.(...) A poesia não se paralisa olhando o dia-que-virá: em vez disso, se põe
inteiramente, e em movimento, no tempo que está. Como diz, ambiguamente a letra de “Os
mais doces bárbaros”: “Peixe no aquário nada”, recado sobre o movimento contínuo da
vida, sob todas as limitações.
In: Movimento, no 53, 5 de julho de 1976. Citado em RISÉRIO, Antônio. Expresso 2222.
Salvador. Editora Corrupio. 1982.
Rock é nosso tempo, entendeu? Quer dizer, pouco importa. Se você vive o tempo de hoje,
então você tá sendo rock, o que você tá fazendo é rock. A época é de rock mesmo. É a
linguagem do nosso tempo, é o jeitão do nosso tempo.
In: Home-vídeo Os Doces Bárbaros. Dir. Jon Tob Azulay. CIC. 1977.
88
A Bahia te espera, canção de Herivelto Martins e Chianca de Garcia, gravada por Maria Bethânia no LP
Pássaro Proibido, Polygram, 1976.
89
Trechos da canção Os Mais Doces Bárbaros (Os Mais Doces dos Bárbaros), Caetano Veloso, LP Doces
Bárbaros, Polygram, 1976.
114
Podemos ir mais longe e tentar perceber, num plano mais ampliado, que o sucesso
destes artistas poderia incomodar por não ser coerente com uma imagem de Bahia
cristalizada como um lugar de onde viriam indivíduos associados à pobreza e
hierarquicamente inferiores aos “sulistas”. Numa observação de Francisco de Oliveira:
O conjunto de negatividades postas pela situação de trabalho passa a ser “atributo” dos
baianos: o permanecer operário, a condição de imigrantes, a precariedade de inserção no
mercado de trabalho, as constantes mudanças de um emprego para outro, determinadas
pelo profundo movimento de transformação das estruturas produtivas no Centro-Sul,
passam a ser tidos como componentes intrínsecos do “caráter” dos baianos (Oliveira, 1987,
p.110).
No âmbito musical, essa negatividade não poderia ser associada aos integrantes do
grupo Doces Bárbaros, pois sua produção inserida no contexto da indústria cultural
(Adorno e Horkheimer, 1985) passava longe do imaginário de retirantes pobres muitas
vezes imputado aos brasileiros, cuja origem está acima do Estado do Espírito Santo.
Podemos voltar, então, à questão da territorialidade e da condição de liminaridade do
migrante nordestino nas cidades grandes (Cardel, 2003), pois, ao propor uma verdadeira
invasão da cidade, estes artistas começam justamente por São Paulo, onde as confluências
de diversos vetores de identificação de baianos se estabelece. A invasão ocorre através da
cidade que recebe os nordestinos/baianos e os classifica segundo uma lógica hierárquica
que parece ter sido revolvida e ao mesmo tempo ironizada pelos Doces Bárbaros no
show/disco/filme.
brasileiras, com Os Doces Bárbaros percebe-se que a arte industrial, com seus elementos
para consumo, é assumida como possível e desejável, a despeito da hostilidade que se
apresentou por parte de setores da imprensa, como se pode notar, nesta entrevista realizada
em São Paulo à época da estréia do show:
Por que um grupo tão doce, tão açucarado, no atual momento da conjuntura nacional?
(Repórter 1).
Não entendi a sua pergunta (Caetano).
Por que o tão doces? (Repórter 1).
Não é tão doces. É doces bárbaros. O tão é seu, você é que está falando em nome da
conjuntura, então você ponha o tão... (Caetano).
Vai dar um LP dos quatro? (Repórter 2).
Vai, a gente já fez um compacto duplo (Caetano).
Eles já vêm com um esquema comercial montado, não se preocupe (Repórter 1).
Claro! (Caetano).
Não seria mais um produto para consumo imediato? (Diversos repórteres).
Mas é claro que é mais um produto (Caetano).
E vocês estão bem convictos disso. O Gil, agora há pouco, disse que era prá tocar no
rádio, prá vender mesmo (Repórter 1).
Não, claro, como todo mundo. Não conheço ninguém que faça o oposto (Caetano).
Não, porque você me perguntou, disse assim: tem umas músicas que você faz de vez em
quando pra tocar no rádio, e eu disse: não, eu faço todas prá tocar no rádio. Eu não sou
louco. E disse mais: aquela que se chamava Essa é prá tocar no rádio nunca tocou no
rádio (Gil).
In: Home-vídeo Os Doces Bárbaros. Dir. Jon Tob Azulay. CIC. 1977.
Em 2002, nos ensaios para o show realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo,
Caetano argumenta, tendo como interlocutores Gal e Gil, suas dúvidas sobre a validade de
uma espécie de “aura” configurada em torno das carreiras do grupo baiano. É um
momento de interessante reflexão, principalmente se tomada à luz dos questionamentos
dirigidos pela imprensa à época do primeiro encontro. Vejamos:
No livro Verdade Tropical, eu conto que eu olhava todo mundo e me interessava por tudo.
Via as capacidades de diversas pessoas, mas esses quatro via ao mesmo tempo unidos e
mais unidos predestinados a alguma coisa que mais ou menos aconteceu. Mas achei
também que era uma intuição, porque eu sou muito cético, de que a gente tinha aquela
vocação para o estrelato vulgar do comercialismo da sociedade de consumo (Caetano).
E a gente também tem isso na nossa carreira! (Gil).
Sem dúvida tem, mas tem momentos que me dá a impressão de que é só isso, e eu fico
desiludido (Caetano).
Mas o nosso esforço sempre foi para que não seja só isso (Gil).
116
Eu sei, eu estou comentando que é prá não pensar também que tem uma intuição mística,
de que tem uma luz divina, e que a gente corresponde a um destino maravilhoso
(Caetano).
Eu sinto isso (Gal).
Ninguém tá falando disso. Estou falando de intuições humanas, intuição da palavra (Gil).
Ela sente isso, o que eu estou falando parece com isso, tem algo disso, e como eu sou
muito cético e tem momentos em que eu sinto vontade de exercer uma crítica muito cruel a
nosso respeito, então não quero deixar de dizer isso (Caetano).
Eu só estou dizendo que acho que, sem dúvida alguma, essa oscilação é absolutamente
pertinente, tem a ver. Você, por exemplo, é o mais esforçado de todos nós quatro no
sentido de que não tenha sido só isso. Eu tenho confessado várias vezes, digo toda hora
por aí, que se não fosse Caetano, eu provavelmente estaria com música, mas não teria tido
as responsabilidades que tive (Gil).
In: Outros (doces) Bárbaros. DVD. Dir. Andrucha Waddington. Biscoito Fino, 2004.
90
Como se pode ver na reflexão contida na canção Outros Bárbaros, composta por Gil [AL 067] para a
comemoração realizada em 2002. Ver Anexo Letras
91
In: Outros (doces) Bárbaros. Direção Andrucha Waddington, DVD. Biscoito Fino, 2004.
92
Ver Anexo Internet.
93
Tropicália: decadência bonita do samba. São Paulo, Boitempo Editorial 2000.
117
Gal Costa, com o espetáculo Gal canta Caymmi, percorria o Brasil cantando a versão
de Bahia aportada por este compositor; portanto, referência de um outro momento,
marcado sobretudo pela relação próxima com o ambiente marítimo. Este show/disco foi
especialmente representativo para sua carreira, pois estava reverenciando e atualizando o
repertório daquele que, nas suas palavras, é o pai de todos nós baianos94. O disco é
iniciado e finalizado (na sua edição em LP, em 1976) com toques de atabaque remetendo à
Bahia ancestral tão entoada por Caymmi, além de trazer arranjos modernizados. Durante
esse período, Gal foi acompanhada por ele e, em momentos do show, apresentava-se
adornada por uma coroa que lembrava a figura antropomorfizada de Iemanjá.
Maria Bethânia cumpria temporada do show/disco Pássaro Proibido, em que traz uma
espécie de suíte dos orixás, além de mostrar na capa uma fotografia em que aparece vestida
como uma rainha afro, adornada com uma coroa de búzios, estampando na contra-capa
uma imagem de Nossa Senhora da Purificação, padroeira de Santo Amaro. Neste disco,
Bethânia grava As Ayabás (Gilberto Gil/Caetano Veloso), que fez parte do show Doces
Bárbaros, além de registrar uma de suas homenagens a Dalva de Oliveira e à Bahia com A
Bahia te espera (Herivelto Martins/Chianca de Garcia).
Caetano Veloso lançava Qualquer Coisa e Jóia, em que ensaia uma conexão Rio-
Bahia numa das faixas e se utiliza de um experimentalismo percussivo sutil e significativo.
Como dispunha de muito material recente depois do fracasso comercial de Araçá Azul,
Caetano gravou dois discos, que parecem estar direcionados tanto ao público como à
crítica. Num, percebe-se uma sonoridade e repertório mais acessível comercialmente; no
outro, uma aproximação com experiências sonoras bem ao gosto que vinha desenvolvendo
desde que voltou do exílio. Em Jóia, Caetano faz letra para a melodia de Pipoca Moderna,
da banda de Pífanos de Caruaru, aprofundando e divulgando mais as relações estabelecidas
94
Em depoimento à TV Cultura no ano de 1997, quando do Heineken Concerts.
118
por Gil desde 1967 com as manifestações populares do Recife. Em 2001, durante
temporada do show São João Vivo, com canções de Luiz Gonzaga, Gil participou do filme
Viva São João (dirigido por Andrucha Waddington), em que músicos de Caruaru
executavam a peça, já com a letra escrita por Caetano.
Enfim, Caetano, Gil, Gal e Bethânia podem ser interpretados como quatro vetores de
representação da sociedade baiana que confluem no show/disco/filme Os Doces Bárbaros
para apresentar ao Brasil sua versão múltipla e polifônica de Bahia, que continua a ser
estetizada ao longo das respectivas carreiras.
No final dos anos oitenta, outro aspecto chama a atenção no plano da relação com os
órgãos oficiais, ou seja, no plano mais propriamente institucional. Quando se colocou a
proposta de cessão de parte do território baiano ao Estado de Pernambuco, a propaganda
veiculada na TV aberta dizia: separar a Bahia é o mesmo que separar Caetano de Veloso,
95
Fato comentado por Gilberto Gil em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, em 1999.
96
Ver Anexo Internet.
119
Gilberto de Gil, Maria de Bethânia e Gal de Costa. Resulta claro que estes artistas
lograram se afirmar como referências tradicionais de uma Bahia modernizada, a partir dos
anos setenta.
Vale ressaltar que, desde a Tropicália, a idéia de grupo baiano associada aos quatro
artistas tinha um caráter também de demarcação de limites. Ao transitar entre o acústico da
Bossa Nova e o elétrico do rock, principalmente Caetano, Gil e Gal eram considerados ora
promissores artistas, ora nocivos a uma estética musical brasileira radicalmente refratária à
incorporação de elementos globais. Elis Regina, por exemplo, mostrou-se muito irritada
com o movimento que se iniciava naquela atmosfera de guitarras, berimbaus e alegorias
proporcionada pelos tropicalistas, a ponto de ser acusada de chamar publicamente Gilberto
Gil de “traidor”97 (Calado, 1997).
97
Essas acusações naquele clima de festival eram muito comuns. Gilberto Gil foi apontado como
incentivador de uma platéia contra Chico Buarque, e de tê-lo chamado de ultrapassado, o que nega até hoje
(Barros e Silva, 2004).
120
parte dos intelectuais militantes se convertiam em discursos que reclamavam dos artistas
brasileiros atitudes revolucionárias98 .
Eu me lembro que na época da primeira reunião (do grupo Doce Bárbaros), o jornal O
Pasquim tinha uma linha de ataque contra nós, só pelo fato de sermos baianos. Falavam
que o Rio tinha sido invadido por bárbaros. Daí veio o nome. Também teve um papo na
Praia de Ipanema com Jorge Mautner, que ele falou que Jesus, com sua doçura, conseguiu
derrubar o império dos bárbaros... Então, achamos que o nome era adequado mesmo, diz
Caetano.
In: www.cliquemusic.com.br. Por Mônica Loureiro, 06/12/2002, acesso em 07/12/2002.
98
Termo muito freqüente, naqueles anos, para conotar posturas políticas orientadas para a retomada das
liberdades coletivas democráticas, com ou sem a remissão direta a um programa propriamente revolucionário
na acepção marxista-leninista.
99
Este periódico começou, a partir de 1972, e principalmente pela figura de Millôr Fernandes a apontar os
artistas baianos no Rio de Janeiro como Baihunos, os referenciando como bárbaros e invasores no sul do
país. Este fato é lembrado pelo próprio Caetano Veloso ainda hoje como importante para a formação do
grupo Os Doces Bárbaros, cujo nome aparece também como uma espécie de alegorização da própria crítica
feita pelo jornalista do Pasquim.
121
Os Doces Bárbaros aparecem na cena como “baianos bárbaros”, que, além de parecerem
a-políticos aos efeitos de uma perspectiva militante da época, apresentavam uma estética
alegoriza(da)nte a partir de ícones tradicionais do Brasil e da Bahia. Constituindo-se o
show como um acontecimento agregador de quatro artistas famosos, seu nome passou a
designar os integrantes mesmo depois da turnê acabada. Numa entrevista realizada em
1978 (publicada no livro Expresso 2222) por conta do lançamento de Nightingale, seu
disco nos Estados Unidos, Gil se posiciona sobre os questionamentos aos Doces Bárbaros:
Repórter: Parece que os “Doces Bárbaros” catalisaram ainda mais resistências em certos
setores...
Gil: Foi pela nossa atitude mais livre. Um momento em que nos colocamos mais na
disposição de uma liberdade que a gente já tinha em particular. Isso irritava profundamente
certas áreas dessa resistência fascista, e por outro lado porque era mesmo surpreendente.
Era difícil para nós mesmos definirmos os Doces Bárbaros em termos de direção ou
sistemática, intenção, principalmente para as pessoas de fora. E éramos nós quatro
somando todas as indisposições da crítica para com cada um de nós (Gil, s/d, p.186).
Não se evidencia, portanto, uma absoluta verdade nem nos depoimentos dos artistas,
nem nas considerações da mídia e cronistas em volta. O que interessa sobretudo nesta
pesquisa é o jogo de representações que traz à tona narrativas identitárias em que
comparecem imaginários cujos elementos passam por liberdades individuais, brasilidades,
ancestralidades e modernidades brasileiras/baianas, negritudes, tipos de masculinidade e
feminilidade, continuidades e descontinuidades da história recente da música brasileira. Se
pensarmos que o conjunto dos acontecimentos no Brasil à época dava conta de uma lenta
abertura que se consolidaria dez anos depois, talvez seja possível perceber em Os Doces
Bárbaros uma interface também de formas de manifestação política que soavam apolíticas
diante de setores do público e da crítica que, ao mesmo tempo, levou ao palco quatro
singularidades cuja história esteve ligada, de diversas maneiras, à constituição de um
cenário artístico mais ou menos revelador dos caminhos (e descaminhos) sociais no Brasil.
A canção (já citada) de Gilberto Gil – O seu amor – pode demonstrar um nível de
122
O seu amor,
Ame-o e deixe-o
Livre para amar
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ir aonde quiser
O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz
Como a música popular assumiu um caráter de expressão política com mais vigor
durante o regime militar, as posturas artísticas acabaram sendo também policiadas no
sentido de uma categorização; quem era contra e quem era a favor, ou se mantinha neutro,
com relação à ditadura. Caetano, Gil, Gal e Bethânia, numa postura esquiva aos modelos
de contestação política em voga naqueles meados de anos setenta, foram interpretados
como no mínimo alienados, para usar o jargão da época. Por outro lado, os festivais de
música, que espetacularizavam disputas que iam além do aspecto artístico, também
serviram como espaço de interesses comerciais muitas vezes não revelados como parte das
ideologias dos “músicos militantes” da época. Assim:
Boa parte dessa energia oposicionista e esquerdizante que irradiava da cultura havia sido
canalizada para a música, desaguando na chamada “era dos festivais” a partir de 1965.
Mas para lá também convergiam, de um lado, disputas e interesses comerciais crescentes
entre emissoras que se profissionalizavam e descobriam o filão do showbiz e, de outro, as
rivalidades entre os novos astros da MPB, que esses mesmos festivais e TVs começavam
a projetar. O ambiente politizado, que se traduziu primeiro na polarização ideológica entre o
iê-iê-iê e a MPB e, a seguir, entre esta última e o tropicalismo, ofuscou muitas vezes
motivações mais mesquinhas – e certamente mais concretas que aquelas dos ideais em
voga – pelas quais se bateram muitos artistas (Barros e Silva, 2004, p. 37).
123
Não queremos dizer que Doces Bárbaros não vai dizer nada. E que Doces Bárbaros não é
nada. Pelo contrário (Caetano).
“Seja onde for que a gente entre/ a gente quer continuar” (Gil).
In: Texto do programa do show Doces Bárbaros, 1976.
do show é caracterizada por signos que vão das saias hippies e colares do candomblé a
collants de dança moderna, postos em cena num roteiro ousado, cujo impacto resultava
menos do apuro técnico de quatro artistas já considerados que da intensidade artístico-
social do show/disco/filme.
100
Ver Anexo Imagens.
101
Dançarino norte-americano que viveu no Brasil, nos anos setenta e se envolveu em muitos círculos de
cultura popular/midiática, inclusive a música. Seu estilo era associado a uma masculinidade dúbia, como,
aliás, ainda hoje é comum se reportar a muitos dançarinos do sexo masculino.
102
Considerando-se que Os Novos Baianos surgiram em 1969 com uma estética radicalmente hippie e
contemporâneos dos Doces Bárbaros, é interessante perceber que havia um trânsito entre feixes de
formulações de identidade cultural baianas muito fortes em alguns artistas da Bahia nos anos setenta. As
referências à Bahia tanto em Doces Bárbaros quanto em Novos Baianos dão conta de uma trans/configuração
da imagem da Bahia a partir da música. Baianos que são Novos e Bárbaros que são Doces.
103
In: Outros (doces) Bárbaros. DVD. Biscoito Fino, 2004.
125
O filme possui uma carga de informação meio densa, mas no fim, na última meia hora, ela
flui para um tipo de revista mesmo, uma coisa mais up. Parece que foi bem aceito, tanto em
termos de ocorrência quanto em crítica do público. (...) Eu acho que vai ser um clássico um
dia. Um filme étnico, uma coisa de raça sobre uma tribo, que foi mesmo tudo que a gente
sonhou para os Doces Bárbaros. Não tínhamos a intenção de fazer uma coisa regional,
confinada ao âmbito muito restrito de nossas relações mais privadas. Queríamos que os
Doces Bárbaros fossem uma visão de uma tribo brasileira (Gil, s/d, p.188).
Jon Tob Azulay, como diretor, procura realçar os aspectos festivos, alegóricos e
propositivos de uma liberdade comportamental expressa tanto no contexto daquele
acontecimento musical quanto numa espécie de representação coletiva do que seria o ethos
104
No DVD Outros (doces) Bárbaros, as duas cantoras refazem a performance, mantendo um clima que,
entre trocas de olhares e gestos, evoca uma relação de amor, com sensualidade e ternura. Na cena, enquanto
Gal e Bethânia assumem o centro, Caetano e Gil observam num abraço cenicamente muito significativo.
126
dos anos setenta. Percebe-se também uma defesa da figura de Gil, como que a justificar o
uso da maconha a partir de uma demonstração da idoneidade do artista Gilberto Gil,
embora o próprio, que em diversos momentos do julgamento tem expressões faciais
irônicas, assuma a responsabilidade do ato. Em seqüências seguintes, Gil é também
apresentado como um “homem de família” e “responsável”, como na cena do aniversário
de dois anos de sua filha Preta.
As considerações acima não deveriam levar à inferência de que essas cenas somente
foram inseridas com esse objetivo; por outro lado, naquele momento, no plano das
construções de uma identidade de Gil, foi estrategicamente importante mostrá-lo desta
forma. O desgaste que poderia advir da prisão por porte de drogas foi revertido na
representação de uma personalidade doce e amável que tinha alcançado relevância tanto
pelo seu papel no cenário artístico brasileiro quanto por ser um indivíduo “correto”105.
Deste modo, são muitos os ícones revolvidos nas teias de significação – para
reclamar a contribuição de Geertz (1999) – elaborados no acontecimento Os Doces
Bárbaros que remetem ao que chamo de re-volta da tradição. Nesta reunião, Caetano, Gil,
Gal e Bethânia fizeram-se grupo a partir de uma “identidade de grupo” já reconhecida
publicamente. Mesmo nas trajetórias individuais, não havia dúvidas de que se tratava de
um grupo baiano, que transitou por, traçou/assentou e redefiniu limites nas representações
da sociedade baiana/brasileira.
Esta trama de ressignificações parece ter ecoado entre a admiração e louvações por
parte da imprensa e do público e a rejeição de setores da mídia e música. Para Tuzé de
Abreu, flautista e saxofonista do show/disco/filme Os Doces Bárbaros, estes artistas
estavam se consagrando naquele período e percebia-se uma boa receptividade nas
apresentações da turnê106. Entretanto, apesar de ser um momento culminante para as
carreiras, deve-se notar que, além de O Pasquim, alguns artistas como Raimundo Fagner e
Belchior, ambos cearenses, também se posicionavam contra o grupo baiano por acharem
que estes artistas não permitiam que outras expressões fizessem sucesso. Belchior partiu
para um comentário irônico acerca das performances, ao dizer, em Apenas um rapaz
105
Ainda hoje, Gilberto Gil precisa de um wiver (espécie de perdão) para entrar em território norte-
americano, pois seu visto está associado à prisão por porte de drogas. No DVD Kaya’n’Gan’Daya, Warner
Music, (2002) Gil comenta o fato, que o fez atrasar em dois dias a chegada à Jamaica para as gravações de
seu disco com canções de Bob Marley.
106
Entrevista ao autor concedida em abril de 2004.
127
Ainda sobre esta querela entre baianos e cearenses, o próprio Fagner diz que havia
uma panelinha de baianos na gravadora Phonogram. Pondera que o trabalho deles é
maravilhoso, embora também diga que os baianos têm de entender que a música evolui, e
que é fatal que cheguem novos grupos e novas linhas (...) acho que os baianos já tiveram o
seu tempo107. Além de Belchior, Fagner e O Pasquim, o teórico e crítico de arte José
Ramos Tinhorão negou-se a dar qualquer declaração mais elaborada sobre o encontro,
limitando-se a dizer à época: espero não ver108. Sua recusa é coerente com sua expressa
visão sobre a música brasileira, em que não admite interferências estrangeiras nem
inovações consideradas de inspiração exógena. O pesquisador não reconhece tampouco a
validade da Bossa Nova ou qualquer manifestação que fuja ao rótulo de música nacional,
tal como estabelece em vários de seus escritos.
107
In: Os baianos de novo. Revista Veja, 30 de junho de 1976. São Paulo, Ed. Três, p. 82.
108
Idem, p. 82.
128
É esse tipo de negócios, eles ficam falando baiano, baiano e tal, mas o fato é que a Bahia
tem uma cultura muito rica, com muita tradição, com alma, herdada. E isso a gente herda
mesmo. A gente é bacana, é inteligente, é da pesada e acabou. Eles lá é que inventem os
seus caras da pesada. Nós não estamos querendo ocupar espaço de ninguém. Nós
exigimos apenas é o nosso espaço. Porque o nosso espaço é nosso e foi conquistado com
muito suor, muita luta, com lágrimas, sacrifício e muita injustiça em cima. Então nós vamos
dar isso de graça para eles? Prá qualquer batuqueiro, sambistazinho do Rio de Janeiro,
que vem com esse negócio de “Eu faço samba” e coisa e tal? Não quero saber desse papo
não, tá entendendo? A gente é o que é, e isso foi conquistado com muito esforço. A gente
vai lá... Vou lá na Suíça e provoco explosões. Boto quatro mil caras para entrarem num
som da pesada e entram mesmo. Cantam, dançam, se divertem. E saem dali conseguindo
a coisa maior, religiosa que a gente quer conseguir com a música. E os caras vem para
cá... Vão à merda, tá entendendo? (...) João Gilberto já denunciava isso há muitos anos.
Eles têm essa inveja reprimida, meio calada contra os baianos. (...) Panelinha uma banana.
Aquele negócio de Fagner dizer que Caetano não fala nele nas entrevistas... Qual é a
obrigação que Caetano tem de falar de Fagner? Se ele ainda fosse um gênio, coisa que ele
não é. Esse tipo de coisa. É um artista legal, a gente faz muita força, mas... Eu, por
exemplo, iniciei a minha última entrevista à revista Veja dizendo: “ Eu quero é Mel”, que é
uma frase de Luiz Melodia. Quer dizer, estou dando uma força pra ele me identificando com
a forma dele pensar, com a poesia dele. Eu me identifico com tudo. (...) Não é qualquer
boboca que chega por aí fazendo duas ou três músicas e acha que a gente tem que sair
dizendo que ele é genial não. Gênio é Moraes Moreira, que é bom mesmo e acabou.
Agora, é baiano? Ora, e daí? O que eu posso fazer?
In: Correio da Bahia, 23 de janeiro de 1979. Citado em Gil, Gilberto. Expresso 2222. Org.
Antônio Risério. Salvador. Ed. Corrupio. S/d, p. 221-222.
Tanto as referências à Bahia quanto ao Brasil são postas em questão por caminhos
poético-musicais que seguem uma via diferente da militância artístico-política dominante
no período. As metáforas são exemplares de uma subjetividade sutilmente marcada por
signos nos quais o social e o individual estão vinculados mediante as atuações no mundo.
Temos remissões às liberdades individuais e comportamentos sexual-afetivos (O seu
amor); ancestralidade e atualidade de ícones mítico-religiosos (As Ayabás110 e Oração a
109
Gil, no texto do programa do show Os Doces Bárbaros (1976), comenta: Tem “Um Índio” que é uma
profecia, tudo no futuro.
110
Nesta canção, os quatro artistas se revezam, cantando para os orixás femininos Iansã, Oba, Ewá e Oxum,
com destaque para a interpretação em uníssono de Gal e Bethânia cantando o trecho que se refere a Iansã.
Entre o som dos atabaques e a letra evocando os caracteres míticos do santo, os vocais simulando o ilá (grito
de guerra) deste orixá faziam parte da cena, remetendo a uma ressignificação marcante, em que duas
mulheres trajadas como se estivessem numa praia da Bahia evocavam, juntas, uma entidade cuja
129
Como se pode observar, é uma celebração destes encontros culturais e das carreiras e
realizações do grupo baiano, bem ao estilo dos Doces Bárbaros.
representação corresponde emblematicamente à mulher forte e decidida, que irrompe e domina com a força
dos raios e tempestades. Percebe-se uma feminilidade que se pode compreender também permeando novas
configurações do feminino a se situar na sociedade brasileira, nos anos setenta. Neste mesmo show, a peça
Oração a Mãe Menininha, de Dorival Caymmi, era lembrada como referência de aspectos mais tradicionais
da Bahia, como o poder das matriarcas yalorixás, como é o caso de Dona Menininha do Gantois.
130
Mas quando eu voltei de Londres falava-se muito no "morro da Gal, nas dunas do barato" e
constatei que Gal Costa tinha criado uma moda, um modo de ser, de vestir, de usar o
cabelo.
Foi mais ou menos nesta época que 'O Pasquim' começou a reclamar como quem reclama
contra a raça. Aliás, uma das canções mais lindas dos Novos Baianos dizia: "Saindo dos
prédios para a praça, uma nova raça..."
Depois, todo mundo viu, na televisão, o Chico Anísio fazendo uma imitação do baiano e eu
acho que ele fazia muito bem, de um modo bonito. De maneira que a gente, aos olhos dos
outros, já era, sem saber, os Doces Bárbaros.
131
Vocês, que me lêem, já ouviram falar em 'supergroups'? Pois bem, Doces Bárbaros é um
subgrupo. No sentido de um grupo étnico. Ha-ha-ha-ha!
E agora eu pergunto a mim mesmo: como será a nossa cara? Queremos ser Doces
Bárbaros assim como o doce de jenipapo é um doce bárbaro! Gilberto Gil disse que ele é
cocada-puxa e que eu sou 'amada', um doce que se faz na Bahia usando gengibre, farinha
de mandioca e rapadura.
Para mim, Gal Costa é centro. O meio de tudo. A voz. A voz da qual nós (inclusive ela -
todos os bárbaros doces) somos apenas vozes.
Mas que horda é esta que vem do planeta terra Bahia, todos os santos?
Está bom. Os ensaios estão bem calmos, nos divertimos e cantamos canções cantáveis. E,
para finalizar, não há nada que eu possa dizer sobre qualquer um de nós que ajude a me
dar, a te dar, a dar a todo mundo uma idéia do que seremos.
Caetano Veloso
In: Revista Ele e Ela nº 86, junho de 1976.
Como vemos, as posições no campo (Bourdieu, 2004) ocupadas por estes agentes são
de especial importância para a compreensão do campo de possibilidades em que se
situavam e que permitiu a execução de projetos (Velho, 2003) ao longo das trajetórias
consideradas. Pode-se observar, também, a legitimidade que suas atitudes foram
progressivamente assumindo, no campo mesmo caracterizado pela polêmica. Isto parece
fundamental aos efeito de compreender a construção de narrativas identitárias
emblematizadas nas práticas musicais de projeção midiática vigorosa, como se vê na obra
desses artistas. Esse grupo baiano, ao ressignificar singularmente representações sociais a
partir da capacidade metafórica presente na arte musical, figura como um caso exemplar
tanto da capacidade criativa que a arte tem de apreender e expressar fenômenos e processos
sociais, quanto das repercussões dos ícones pop da música sobre os contextos sociais em
que seus trabalhos são configurados. Após este acontecimento, suas carreiras continuaram
a tematizar, entre outros elementos, ícones baianos, também transitando entre o tradicional
e o moderno, como veremos no próximo item.
133
Caetano prossegue, em 1977, com o espetáculo Bicho Baile Show, cuja sonoridade
remete tanto a minimalismos estéticos quanto ao forte apelo à dança. Esta fase foi criticada
por parte da imprensa, que via aí uma “alienação” do artista, ao instigar a todos no sentido
de dançarem, como na faixa Odara (Caetano Veloso) [AL 073], em que o termo iorubá
aparecia vinculado aos fenômenos da cultura discothéque que aportava no Brasil via São
Paulo e Rio de Janeiro111. Nesse mesmo ano, ao lado de Gil, vai à Nigéria participar do
Festival de Arte Negra, tornando-se a canção Two Naira fifty Kobo (Caetano Veloso)
emblemática de sua aproximação com as estéticas africanas modernas.
Por sua vez, Gil traz o álbum Refavela (1977), cuja temática gira em torno das
construções de identidade dos negros brasileiros, passando da favela carioca ao emblema
do afro-baiano do Ilê Aiyê, ou mesmo ao criar um arranjo com uma dinâmica mais
próxima do som afro-pop americano que da Bossa Nova, como em Samba do Avião (Tom
Jobim). A Bahia comparece como referência de uma negritude brasileira ao mesmo tempo
ancestral, com a presença da peça Patuscada de Gandhi (Afoxé Filhos de Gandhi) [AL 074]
e em modernização, com Ilê Aiyê (Paulinho Camafeu). Um afoxé e um samba a mostrar as
pontes estéticas entre o afro religioso dos Filhos de Gandhi e o movimento de afirmação
política negro da recém criada agremiação.
111
Neste período, os críticos da postura de Caetano chamaram-no e a Carlos Diegues, que na época falava de
uma certa patrulha ideológica das chamadas esquerdas revolucionárias, de patrulha odara, em referência ao
clima happy da canção.
134
O disco Muitos Carnavais (1977), lançado por Caetano, numa incursão pelas canções
de carnaval baianas entre as marchas e os frevos eletrizados, como Atrás do trio elétrico,
Chuva, suor e cerveja [AL 075] e Qual é baiana?, todas de autoria própria, estabelece um
momento de afirmação mais direta do artista em relação à produção musical carnavalesca,
que ocupa boa parte da sua trajetória. Um dos versos de Tropicália – eu organizo o
carnaval... – faz referência a esse traço distintivo dos interesses de Caetano, sobretudo ao
tratar o tema Bahia em sua obra.
Em 1978, Caetano lança o disco Muito, considerado fraco pela imprensa e cuja capa
traz sua mãe a acariciá-lo ao colo, como uma matriarca bem ao estilo do modelo familiar
cultivado e publicizado pelos Veloso. As faixas Sampa [AL 076] e Terra [AL 077], de muito
sucesso, são particularmente interessantes no que diz respeito à construção identitária, ao
abordar a megalópole na visão de um poeta interiorano e ainda realizar uma reflexão
existencialista que desemboca numa Bahia caymmiana de sacadas de sobrados113. São
João, Xangô Menino, do repertório dos Doces Bárbaros, tem outra gravação num registro
mais contido que na execução anterior, ao vivo.
Com Maria Bethânia, realiza o show Maria Bethânia e Caetano Veloso (1978), que
resulta num disco registrado durante a exibição do espetáculo. As faixas Adeus, meu Santo
Amaro [AL 078] e Tudo de novo [AL 079], ambas de Caetano, reiteram a tradição –
inaugurada na mídia – de uma pequena cidade do Recôncavo que sedia a formação de uma
espécie de clã, a partir do sucesso alcançado pelos irmãos famosos. Em versos como:
Minha mãe, meu pai, meu povo / Eis aqui tudo de novo / A mesma grande saudade, a
112
In: www.galcosta.com.br. Acesso em 15/10/2002.
113
Remissão à peça Você já foi à Bahia? (Dorival Caymmi), num trecho de Terra (Caetano Veloso).
135
mesma grande vontade, minha mãe, meu pai, meu povo / Minha mãe me deu ao mundo de
maneira singular / me dizendo uma sentença / Pra eu sempre pedir licença / Mas nunca
deixar de entrar114, Caetano celebra assim a familiaridade emblematizada nas imagens
dessa microrregião que logrou se estabelecer em diversos âmbitos midiáticos, juntamente
com Salvador, como a Bahia. Essa familiaridade e a freqüente remissão a Santo Amaro
marcam sua performance, em diversos momentos como este, ao lado de Bethânia.
Após o show/disco Refestança (1977), com Rita Lee, que representou um encontro de
imagens tão libertárias quanto o acontecimento Os Doces Bárbaros, Gil realiza três
projetos em 1978: um disco com o paulista Germano Mathias – Antologia do samba choro
–, seu primeiro trabalho internacional (já na gravadora Warner); o álbum Nightingale, de
sonoridade especialmente híbrida, com sambas, maracatus jazzisticamente estilizados e
canções do Refavela revistas em arranjos mais pop; e sua ida ao Festival de Montreux,
resultando num disco ao vivo.
Num dos trabalhos mais populares de sua carreira, Bethânia lança Álibi (1978), que
lhe valeu o primeiro disco de platina, trazendo um dueto celebrado por imprensa e público,
constando em diversas coletâneas: Sonho Meu (D. Ivone Lara/Délcio Carvalho) [AL 080]
com Gal Costa, em que as duas baianas se reúnem celebrando o samba carioca.
Com Água Viva (1978), Gal Costa começa uma fase de peças que se remetem a um
cancioneiro dos anos cinqüenta sobre as referências tradicionais da brasilidade, como em
Olhos Verdes (Vicente Paiva) [AL 081], em direção ao canto de Dalva de Oliveira e
festejando uma Bahia de saborosos cambucais e mulatas cor da mata. Mantendo sua
tradição de ecletismo de repertório, Folhetim (sua primeira gravação de Chico Buarque) e
Qual é, baiana? (Caetano Veloso) apresentam uma cantora que aposta na sensualidade e
na imagem de mulher madura e sedutora, entre Carmem Miranda, as meninas a transitar
pela praia do Porto da Barra e as cantoras de jazz norte-americanas, como se desdobra em
trabalhos posteriores, como o famoso show/disco Gal Tropical (1979), proposto por
Guilherme Araújo para transfigurá-la numa intérprete (tra)vestida como a
rumbeira/baiana/pomba gira, como sugerem as suas aparições neste período. As faixas
Preta do acarajé (Dorival Caymmi) [AL 082] e O bater do tambor (Caetano Veloso)
[AL 083] permitem o cotejamento de duas identidades baianas; uma corresponde à baiana
ancestral, mercando acarajé, à noite, pelas ruas da cidade do Salvador, enquanto a outra
114
Trechos de Tudo de novo (Caetano Veloso).
136
corresponde aos sons de tambores que são ouvidos por entre o elétrico do trio, aspecto
moderno da cultura desta Bahia dos anos setenta115.
O disco Gal Tropical representou um marco na sua carreira, tendo o show ficado um
ano e dois meses em cartaz com lotação quase que completa todas as noites, ou seja, um
momento muito importante da trajetória de Gal.
O álbum Mel (1979) é uma continuidade na fase mais popular vivida por Maria
Bethânia. O estilo apaixonado de interpretação, dado a rompantes, se consolida em faixas
como Grito de alerta (Gonzaguinha) e Loucura (Lupicínio Rodrigues). Embora Bethânia
afirme a intenção de que o show Mel fosse muito mais um recital que um espetáculo de
teatro116, correspondeu à consagração radiofônica da artista em função de sua característica
dramaticidade.
115
Sobre esta fase da carreira de Gal, vale ler o trecho da matéria de capa da revista Veja: “Logo, e como
convém a uma estrela, no topo de uma escadaria frisada de néons coloridos. Os aplausos quase abafam os
primeiros versos do ‘Samba Rasgado’, que começa a cantar. Sim, porque ali está a gloriosa retribuição por
tanta fila e tanta expectativa. Esguia, decotadíssima, uma rosa cigana nos cabelos, as pernas visíveis entre
escarnados babados à la rumbeira, Gal Costa, bela como jamais esteve, desce então os degraus para envolver
a platéia num rito de amor. Gingando com surpreendente segurança sobre saltos altíssimos, Gal solta a voz
em agudos desconcertantes, vai ser cabrocha, moleca cheia de malícia, preta do acarajé. É verdade que, como
já fazia antes, ainda cruza o palco em alucinante velocidade, cobrindo os 14 metros da boca de cena em dez,
doze vigorosas passadas. Mas, na marcação que exibe agora, não há nada mais que lembre a fase em que
instituiu, como sua marca registrada, estertorosas convulsões, caída no chão”. In: Revista Veja, fevereiro de
1979. São Paulo. Ed. Abril., 1979.
116
Depoimento no DVD Maricotinha Ao Vivo, Biscoito Fino, 2002.
137
partir da faixa-título, de Toda Menina Baiana, Sarará Miolo e Logunedé117 [AL 085], entre
outras. Caymmi é revisitado numa estética samba/jazz/funk com Marina (Dorival
Caymmi) em arranjo tão inovador quanto polêmico. Este álbum foi criticado por uma
espécie de “facilidade pop” reportada por diversos setores da imprensa e mesmo entre os
artistas. Caetano chegou a esboçar comentários negativos e depois se desculpar por uma
não aceitação, a princípio, da estética ali exposta118. Por outro lado, comentários como o de
Luiz Carlos Maciel revelam outras compreensões relativas às identificações contidas no
trabalho:
Mais uma vez, nos últimos anos, a evolução da arte de Gil apresenta uma íntima sintonia
com a experiência da geração: os anos 70 marcaram uma tendência à retratação e ao
aprofundamento interior: esse movimento, contudo, engendra sua resposta dialética na
retomada da ação coletiva. A adoção da parafernália eletrônica nos trabalhos recentes
(Realce, Luar) deve ser compreendida nessa perspectiva. Neles, como no tempo do
Tropicalismo, Interessa a Gil a arte participante. Ele quer, acima de tudo, permanecer
ligado à experiência efetiva de seus contemporâneos.
In: Gilberto Gil MPB Compositores (EP e Fascículo). São Paulo. Ed. Abril, 1982.
Estes aspectos polêmicos do disco são somados à introdução mais efetiva do reggae
em maior escala na música brasileira, através da gravação de Não chore mais, versão de
Gil para a peça No woman, no cry (B. Vincent), de Bob Marley. Suas relações com o
reggae-pop são aprofundadas com os shows que realiza com Jimmy Cliff, em 1980.
Quando interrogado sobre sua atração pelo gênero musical jamaicano, em 1978, diz Gil:
Me atrai pelo coração. Pela identidade física. Como me atraem o reggae, a Jamaica,
aquela cultura, como a Bahia me atrai, o Recife me atrai (Gil, s/d, p. 193).
Em 1980, Maria Bethânia lança o álbum Talismã. Entre faixas de Gilberto Gil,
Gonzaguinha e Marina, é nesse ano que participa de um especial da Rede Globo chamado
Mulher 80, com outras cantoras nacionais, celebradas na trilha sonora do seriado Malu
Mulher119. Nos trechos Eu gosto de ser mulher / Sonhar, arder de amor / Desde que sou
uma menina / De ser feliz ou sofrer / Com quem eu faça calor / Esse querer me ilumina120,
Bethânia reafirma posições sobre o feminino que se encerram na sua obra. Aqui se nota
117
Composta em homenagem ao orixá a quem Gil se reporta como seu.
118
Anos depois, quando do lançamento do disco Velô (1984), Caetano declara à imprensa que agradece a Gil
a existência de Realce, que teria lhe inspirado a realizar seu show/disco naquele período.
119
Estrelado por Regina Duarte, pretendeu estabelecer com mais centralidade o feminismo na teledramaturgia
brasileira.
120
Trechos de O lado quente do ser (Marina/Antônio Cícero). Joyce é outra compositora que tematiza o
feminino e é interpretada por Bethânia; é o caso de Da cor brasileira (disco Mel) e posteriormente Mulheres
do Brasil (disco Maria, 1988).
138
uma mulher feliz com a condição e pronta para os enfrentamentos da vida, como parece ser
a postura publicizada por Bethânia desde os tempos iniciais de sua trajetória artística.
Gal aposta na obra de um único compositor como tema do disco Aquarela do Brasil
(1980), interpretando Ary Barroso. Sua presença torna a evocar uma similaridade com
Carmem Miranda, quando, entre os agudos e arranjos modernizados de Perna Fróes e a
guitarra de Victor Biglione, se percebe um Brasil enaltecido e exaltado, como em Aquarela
do Brasil e Faceira [AL 086]. Nesta última, o imaginário de mulata lasciva que seduz
poderosamente os homens pode ser compreendido na mesma esteira em que se nota aquilo
que Geraldo Pereira denominou, nos anos cinqüenta, de falsa baiana, ao tratar de uma
baiana que não sambava, ou seja, não era “faceira o suficiente”, como na peça de Ary
Barroso. Gal interpreta, desta forma, um ideal de mulher baiana/brasileira muito mais
próxima de um senso comum sobre a feminilidade – principalmente se colocarmos em
paralelo com a produção artística de Bethânia e outras intérpretes, como Ângela Rô Rô e
Joanna, em ascensão neste período. Nesta fase de Gal, conjugam-se Bahia, mulher e
Brasil, numa tríade consagrada na música popular brasileira desde o lundu e a modinha até
produções mais recentes.
Em 1981, dá-se o encontro fonográfico entre Gil, Caetano e João Gilberto. O trabalho
de nome Brasil reuniu os discípulos manifestos e a figura da Bossa-Nova que inaugurou
uma nova maneira de canto no Brasil. Maria Bethânia participa do disco cantando No
tabuleiro da baiana (Ary Barroso). O samba Bahia com H [AL 087], de Dennis Brian, é um
dos maiores sucessos do álbum, evocando a Bahia nos seus aspectos considerados mais
tradicionais, como é comum nas composições deste paulista.
A Bossa Nova de João Gilberto se encontra com a música de Caetano, Gil e Bethânia,
numa reiteração de um lugar da Bahia no campo da música a partir de alguns seus agentes
notabilizados pelo êxito diante da mídia. Assim como se pode estabelecer uma ponte entre
o grupo baiano e a axé music, observa-se essa ponte possível entre este grupo e João
Gilberto, como fazem perceber não somente este disco, mas também os diversos
pronunciamentos destes artistas na imprensa.
139
Gal Costa obtém comentários negativos sobre o show Fantasia121 (1981) e lança um
álbum homônimo cujos grandes sucessos são Canta Brasil ( Alcyr Pires Vermelho / David
Nasser) e Festa do Interior (Moraes Moreira), um frevo eletrizado anda hoje lembrado
como marca da carreira de Gal. Caetano compõe Meu bem, meu mal e Massa real [AL 088]
– mais um frevo – para esse disco. Mais uma vez, um imaginário de baiana aos moldes de
Carmem Miranda se contempla aí. Na abertura do show, um carro alegórico a conduzia da
coxia ao palco, num misto de teatro de revista e elementos de uma estética americana da
Broadway, considerados “exagerados” por parte da crítica.
Na verdade, eu pessoalmente acho que deve haver mais carinho entre os homens, mais
carícia, os homens se beijarem, se abraçarem, se alisarem. E há muito mais hoje. Nos
ambientes que eu freqüento, mesmo pessoas que eu nunca vi se beijam e tudo. Agora, a
homossexualidade não tem mistério. Todo mundo tem, todo mundo é homossexual, eu
acredito nisso. Ou você conhece a sua ou é levado, por circunstâncias, a travar contato
com ela.
In: Revista Ele Ela, maio de 1981. Entrevista a Lúcia Leme, citada em FONSECA, 1993, p.
45-46.
Trazendo no cabelo uma pintura de meia lua e estrela, Gil continua sua incursão pelo
eletro-eletrônico com a musicalidade de Luar (1981), que resulta num filme – Corações a
Mil – registrado durante a turnê. Segundo o compositor, Luar seria uma imitação de Rita
Lee122, numa referência ao som rocker e universalizado produzido por sua companheira
dos Mutantes. A negritude de Axé Babá (Gilberto Gil) [AL 089] e do ijexá pop em Palco
(Gilberto Gil) [AL 090] são exemplos da tradição modernizada na estética de Gil sobre a
figura do negro. Neste período, a Assembléia Legislativa da Bahia faz uma homenagem a
121
Elis Regina solidarizou-se com Gal neste sentido, traçando um paralelo entre essas críticas e os
comentários lançados sobre o show Falso Brilhante, realizado pela própria Elis em 1976. Em 1981, Elis
ainda participou do especial da Globo que tinha Gal como tema.
122
In: Gilberto Gil MPB Compositores (EP e Fascículo). São Paulo. Ed. Abril, 1982, p. 6.
140
Gil, que vai recebê-la usando uma bata africana e com a estrela e a lua pintadas no
cabelo123.
A capa do disco Alteza (1981) traz Bethânia representando uma iaô, molhada numa
trilha de terra, portando uma talha, evocando assim uma ancestralidade afro-baiana que se
desdobra na faixa Caminho das Índias (Moraes Moreira). Realiza ainda o show Estranha
Forma de Vida, novamente dirigida por Fauzi Arap. Com Bibi Ferreira, Bethânia faz uma
parceria para o show Nossos Momentos, cujo registro se encontra em disco lançado em
1982. A canção-título é de Caetano, que grava com Djavan a faixa Sina – um ijexá – no
disco Cores Nomes (1982), em que Caetano interpreta Coqueiro de Itapuã (Dorival
Caymmi) [AL 091] e Um canto de afoxé para o bloco do Ilê (Caetano Veloso/Moreno
Veloso) [AL 092], duas referências à Bahia. Na primeira, remonta a uma tradição
consagrada; na segunda, associa-se à nova linguagem de afirmação da negritude que se
estabelecia no Carnaval de Salvador, o afro124.
Gil faz o show/disco Um Banda Um (1982), com destaque para faixas como Andar
com fé [AL 093] e Afoxé é [AL 094], de sua autoria. São poemas e sonoridades afeitas ao
universo nordestino/baiano/afro, um investimento deste artista no início dos anos oitenta.
Gal traz para o público o disco Minha voz (1982), cantando o frevo baiano Bloco do
prazer (Moraes Moreira/Fausto Nilo) [AL 095] e Pegando fogo125 (José Maria de
Abreu/Francisco Mattoso), dando prosseguimento à sua trajetória de intérprete de canções
de carnaval, que se mantém por mais alguns discos.
123
Ver Anexo Imagens.
124
O que remonta à proposta de Gil em Refavela, ao gravar Patuscada de Gandhi e Ilê Aiyê.
125
Devido ao sucesso, esta peça foi lançada numa versão em espanhol, pela própria Gal.
126
Seu Zezinho falece no final de 1983.
141
Fadada ao desaparecimento, uma vez que apenas um violeiro da região conhece ainda
todas as maneiras de pontear os violões e criar a cadência, a chula do Recôncavo foi
pacientemente assimilada pelo violonista Roberto Mendes, de Santo Amaro da Purificação,
que cuidou de aprendê-la e manter vivo o acervo. (...) A participação de Gal Costa, além de
obviamente enriquecer o resultado final, liga-se a componentes emocionais profundamente
enraizados e que têm aflorado em determinados momentos marcantes para Bethânia. (Cf.
a gravação de “Sol Negro”, em 1965; “Oração à Mãe Menininha”, em 1973, etc.)
In: Encarte do LP Ciclo, 1983, Polygram.
O disco Ciclo coincide com Uns (1983), álbum de Caetano em que o vemos, na capa,
ao lado de seus irmãos Rodrigo e Roberto, quando adolescentes. A canção Quero ir a
Cuba (Caetano Veloso) [AL 097] aponta semelhanças entre Bahia e Havana, como em
Mamãe eu quero amar / A ilha de Xangô e Iemanjá / Yorubá igual a Bahia. O cenário do
mar do Porto da Barra é evocado na peça Salva Vida (Caetano Veloso) [AL 098]. A beleza
do ambiente de verão de Salvador se soma à de uma figura masculina a protagonizar cenas
naquele espaço: Místico pôr-do-sol no mar da Bahia / E eu já não tenho medo de me
afogar / Conheço um moço lindo que é salva-vida / Vida / Um da turma legal do Salvamar.
Interessante notar que, em outros momentos, a praia e o sol típicos da Bahia tropical
evocada inclusive no discurso turístico são tema de peças de Caetano, como em Farol da
Barra (Galvão/Caetano Veloso)127 e Qual é baiana? (Caetano Veloso).
Em 1972, ao falar de sua relação com Caetano, Gil compôs Ele e eu [AL 099],
referindo-se ao comportamento dos dois também no Porto da Barra. O que se depreende
daí é um reconhecimento daquele lugar como um ícone de identidades baianas ligadas à
tropicalidade e ao sensual, uma Bahia urbana, moderna e marcada pelo signo do prazer.
No álbum Extra (1983), essa Bahia sensual volta à cena em Elá, poeira [AL 100]. A
sonoridade que flerta com o reggae, o funk e o samba (híbridos e negros, como salienta Gil
desde o final dos anos setenta) passa por letras que também se referem à festa e a
movimentos sociais e de comportamento. São desse disco Punk da periferia, Funk-se quem
puder, Mar de Copacabana e Lady Neide128 (Gilberto Gil/Antônio Risério) [AL 101].
127
Gravada pelos Novos Baianos.
128
A faixa Lady Neide traz como tema a figura de Neide, proprietária do Zanzibar, um ponto de encontro de
intelectuais e artistas de Salvador na virada dos anos oitenta. A letra fala de uma africana-baiana-negra-sexy,
como parece ser a imagem cultivada entre seus admiradores..
142
Gal Costa faz um show em que se veste de rumbeira para cantar Dora (Dorival
Caymmi), além de Bahia de todas as contas (Gilberto Gil) [AL 102], em Baby Gal (1983).
Neste período, Gal e Tom Jobim são convidados para gravar a trilha sonora do filme
Gabriela, dirigido por Bruno Barreto. As reportagens da época salientavam o encontro
entre Gal e Tom como significativo, principalmente em se tratando da personagem de
Jorge Amado, que já havia sido contemplada com trilha para a TV interpretada por Gal.
Com Sônia Braga e Marcello Mastronianni nos papéis de Gabriela e Nacib, o filme teve
produção internacional. No disco, Gal protagonizou canções como Origens [AL 103] e
Tema de amor de Gabriela, ambas de Tom Jobim, retomando a associação à figura de
Gabriela que vinha desde a telenovela homônima, de 1975.
Ainda em 1983, Caetano, Gil e Gal se apresentam em Roma, numa noite dedicada à
música brasileira, com artistas baianos. Ao lado de Dorival e Nana Caymmi, João Gilberto,
Armandinho, Moraes Moreira, Walter Queiroz, do grupo folclórico Viva Bahia e do
percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, os artistas do grupo baiano protagonizam
um acontecimento de ampla repercussão à época, resultando num filme – Bahia de todos
os sambas – dirigido por Sérgio Saraceni e Leon Hirzsman, apresentado em 1997 no
circuito cinematográfico brasileiro.
É a Roma Negra – a que se referiu Caetano, uma conversa com Caymmi – invadindo a
Roma antiga, com seus novos modos e novos olhares. É um momento grandioso,
registrado, novamente, com simplicidade e fidelidade pelos dois cineastas. Tudo somado,
transforma Bahia de todos os sambas num a obra que está além das escolas definidas. É o
documento de um momento.
In: Jornal A Tarde, 28/07/1997, Cad. 2, p.3.
Em 1984, Cacá Diegues filma o projeto Quilombo, em que Gil e Wally Salomão
respondem pela música. O universo criado pelo cineasta para tratar do tema da negritude é
apropriado para canções como Zumbi, a felicidade guerreira [AL 104] e Quilombo, ambas
de Gil e Wally. Pode-se situar a Bahia, neste momento, como estabelecendo um horizonte
143
Caetano estréia o show Velô (1984), que resultou num disco de estúdio com
sonoridade aos moldes do rock brasileiro dos anos oitenta. O visual gráfico da capa traz
uma foto entrecortada por grafismos geométricos, emoldurando canções como Podres
Poderes, Comeu e Sorvete. A peça Língua, de sua autoria, se destaca como incursão pelo
rap, com a participação de Elza Soares.
Bethânia traz o show A hora da estrela (1984), inspirado na obra de Clarice Lispector,
a base para o disco A Beira e o Mar, do mesmo ano. Canções como A Beira e o Mar
[AL 105] e Esse sonho vai dar, de Roberto Mendes e Jorge Portugal, traçam uma conexão
Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
O autor revela que fez essa canção pensando em Caetano, como versão para a
questão colocada em Oração ao tempo, em que a frase-chave para mim é: “Quando eu
tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido” – quer dizer: o tempo
144
A faixa Mão da limpeza (Gilberto Gil) [AL 107] traz um discurso sobre a questão
étnico-racial num tom de resposta ao preconceito no Brasil, a partir do mote de que “preto,
quando não suja na entrada, suja na saída”. Assim:
Ocorriam-me imagens de lavadeiras lavando roupa nas beiras de rios, inúmeros, por que
eu passei no interior da Bahia e outros lugares; de cozinheiras negras, jovens e velhas,
espalhadas pelas cozinhas do Brasil; de várias faxineiras limpando as casas. (...) Quer
dizer, os negros são tão maciçamente empenhados na função da limpeza da comunidade e
acabam sendo acusados de ser os sujões (Gil, 1996, p. 288).
O disco Profana129 (1984) tem na faixa Vaca Profana (Caetano Veloso) o destaque,
correspondente a uma Gal atenta ao rock brasileiro e interpretando sucessos juninos, com a
participação de Luiz Gonzaga130, que celebra, na faixa Tem pouca diferença (Durval
Vieira), que as baianas sabem das coisas..., reconhecendo em Gal uma Bahia mais
próxima do Nordeste, pelo viés da festa e da alegria. Gil, Wally Salomão e Frejat
compõem O revólver do meu sonho [AL 108], com letra que trata de Arembepe e de uma
Bahia mais eletrizada e rock’n’roll, entre hippies e praias alternativas.
Gil se apresenta no Rock in Rio e lança Dia Dorim Noite Néon, em 1985. A faixa
Touche pas à mon pote (Gilberto Gil) é um ijexá pop composto como hino anti-racismo
francês, que figura ao lado de Oração pela libertação da África do Sul131 (Gilberto Gil)
[AL 109] e Barracos (Gilberto Gil/Liminha). Incursões de Gil por “temáticas sociais”
129
Primeiro disco de Gal Costa pela gravadora BMG.
130
Interessante perceber que, no disco Raça Humana, Gil gravou Vem Morena (Luiz Gonzaga/Zé Dantas).
Gal gravou Tem pouca diferença (Durval Ferreira) e, em A Beira e o Mar, Bethânia canta ABC do Sertão (Zé
Dantas/Luiz Gonzaga). Três, dos quatro artistas do grupo baiano registraram, de uma maneira ou de outra,
homenagens a Luiz Gonzaga, na mesma época.
131
Esta canção foi gravada anos mais tarde pela Banda Reflexu’s, um dos mais famosos grupos baianos do
final dos anos oitenta, de uma fase da música de carnaval da Bahia em que a negritude era colocada de forma
mais emblemática a partir das questões sociais. É o período da emergência e configuração pop do samba-
reggae.
145
artistas a montarem espetáculos de voz e violão, um dos quais origina o disco Totalmente
Demais, em que Caetano interpreta sucessos como Amanhã (Guilherme Arantes) e Vaca
Profana.
Gil apresenta seu show no projeto Luz do solo também em 1986, além de gravar a
trilha sonora do filme Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos. A faixa Jubiabá (Gilberto
Gil) [AL 110] é destaque, tratando do personagem de Jorge Amado, de uma Bahia da
marginalidade representada em parte das obras deste escritor. Ainda neste ano, Gil é
convidado a participar da festa do movimento SOS Racismo, na França, como
reconhecimento à sua posição e sua representatividade nas questões relativas a etnicidade,
já naquele período.
Bethânia lança o disco Dezembros (1986), com canções de Tom Jobim, Chico
Buarque e Milton Nascimento, além da faixa Yorubahia (Roberto Mendes/Jorge Portugal),
um momento em que Bethânia contempla a negritude soteropolitana nos versos de
Portugal; Ala dos alabês / alados Ilês / banto Gantois / ruas por onde andei / cantando
encantei /encanto a cantar / menina me ninei / sonhos que sonhei / castelos no ar / sons
dos maculelês / é tudo que sei / de tudo que há. O ijexá emoldura a letra que celebra a
Bahia negra e encontrada na tradição ancestral africana. A morte de Menininha do
Gantois, em 1986, é lembrada com a peça Estrela do meu céu (Toninho Horta/Caetano
Veloso). A religiosidade afro-baiana compõe o imaginário em torno de Bethânia desde a
década de setenta, tanto por remissões visuais (colares, amuletos e outros signos do
candomblé por ela utilizados), quanto por sua devoção confessa aos Orixás e a Mãe
Menininha.
Com faixas de sucesso como O Ciúme (Caetano Veloso) e Fera ferida (Roberto
Carlos/Erasmo Carlos), o disco Caetano (1987) traz ainda a canção tradicional dos
132
Essa temporada, em que Gil se apresentou no Japão, causou certa polêmica por conta de suas remissões à
Bahia sem considerar explicitamente a brasilidade.
146
candomblés baianos Iá Omin Bum [AL 111], executada com atabaques, numa referência
homenagem ao Orixá Oxum e à então esposa de Caetano, Paula Lavigne. Depois que o Ilê
passar (Miltão) [AL 112] é outra remissão de Caetano ao universo da negritude baiana.
Bethânia elabora um disco com uma mulher negra na capa – representando todas as
Marias do mundo, segundo depoimento da artista à época. Maria (1988) é um trabalho em
que a artista se envolve com a sonoridade africana moderna, fundindo Bahia e África na
faixa Ofá (Roberto Mendes/Jota Veloso) [AL 113], introduzida pela vinheta do samba-
reggae133 E a Terra tremeu (Sacramento) [AL 114]. A figura mítica de Oxóssi é posta ao
lado da poética dos blocos afro de Salvador, num raro momento de aproximação de
Bethânia com a estética do carnaval contemporâneo de Salvador. Cabe ressaltar que
Carlinhos Brown (grafava-se Brau) comparece como percussionista neste álbum134.
Eleito vereador em Salvador135, Gil mantém uma continuidade com suas experiências
musicais afro-pops – com funks, reggaes, sambas e ritmos híbridos – em O Eterno deus
Mu Dança (disco de 1989). Faixas como Baticum (Gilberto Gil/Chico Buarque) [AL 115] e
Réquiem prá Mãe Menininha do Gantois (Gilberto Gil) [AL 116] são destaques; uma trata
da industrialização da cultura, outra uma homenagem à Iyalorixá falecida anos antes.
Caetano explora uma estética rocker/experimental num disco produzido pelo músico
Arto Lindsay. Estrangeiro (1989) tem na faixa-título e em Branquinha [AL 117], um samba
ao estilo Bossa Nova, dois momentos complementares da poesia do autor. Tem-se a
exploração da arguta crítica social/existencial de uma e a ambiência afetiva – em que
Caetano se auto-refere como um velho baiano, um fulano, um Caetano, um mano
qualquer... – encontrada na relação com a esposa. A peça Meia-lua inteira (Carlinhos
Brown) [AL 118] integra a trilha sonora da novela Tieta, da Rede Globo, e é um dos grandes
sucessos radiofônicos daquele ano. Desse período é também a emergência do Candeal136
133
O termo indica o gênero musical plasmado no final dos anos oitenta, a partir da percussão orquestrada
pelo Maestro Neguinho do Samba e, segundo o próprio (em entrevista ao Programa Bahia Revista, de 30 de
janeiro de 2005), foi batizado por Paul Simon quando este veio à Bahia para gravar faixa e clip de seu álbum
naquele período. Em contrapartida, o pesquisador Milton Moura afirma que o nome samba-reggae já era de
uso comum nos ensaios do Olodum e do Muzenza, outro bloco afro de Salvador.
134
Bethânia se reporta a esse período quando fala da participação de Brown como compositor no disco
Âmbar (1996), dizendo; Brown sempre disse que queria ser um artista internacional. É bacana isso!.
Entrevista a Maria Cristina Poli, Programa Metrópolis, TV Cultura, 1996.
135
Seu mandato foi intensamente criticado, inclusive em decorrência de ter se ausentado da Câmara diversas
vezes para realizar shows.
136
Trata-se do Candeal Pequeno, um dos mais pobres setores do bairro de Brotas, em Salvador. A
emergência da Timbalada visibilizou o local e ainda hoje são geradas controvérsias em torno da importância
147
como lugar dos ensaios da incipiente Timbalada, que se plasma definitivamente no início
dos anos noventa. Caetano comparece aos ensaios e vincula sua imagem à figura de
Brown.
Reconvexo (Caetano Veloso), no disco Memória da Pele (1989). Como se pode notar, a
aproximação entre Bethânia e a música baiana pós-anos oitenta vem se dando através
daqueles artistas que investem mais nos temas da tradição afro, mais propriamente do
candomblé.
Em 1990, Gal Costa volta a gravar um disco após o fracasso de Lua de Mel como o
diabo gosta (1987). O álbum Plural137 mostra uma cantora que parece querer se
representar como sofisticada e ao mesmo tempo popular, cantando o clássico Cole Porter e
Beto Jamaica, do Olodum, que viria a formar anos depois o grupo Gerasamba. O samba-
reggae baiano entra vigorosamente neste trabalho, celebrado pela crítica como uma
redenção da artista em relação ao insucesso anterior. Adornada com uma coroa de tecido,
lembrando uma rainha afro, Gal era conduzida pelos músicos percussionistas no show.
Vejamos:
Uma Gal Costa com ares de Elis Regina surpreende o público no show Plural, em cartaz no
Palace, em São Paulo. (...) Em vez de lançar mão de sucessos consagrados, Gal se apóia
num repertório pouco conhecido, embora ele inclua monstros sagrados e gênios da música
popular brasileira, como Noel Rosa e Lamartine Babo. Com essa pirueta, Gal, aos 44 anos,
pretende seduzir o público não pela empolgação, mas pela técnica, apostando tudo em sua
exuberância vocal. Consegue seu intento. Em Plural, ela demonstra que hoje, mais do que
um vulcão em cena, é uma excelente cantora. (...) Na terceira parte, Gal conta com a
participação dos percussionistas do bloco baiano Olodum para dar uma amostra da música
forte e mestiça que se faz na Bahia atualmente. Assim, ela interpreta sucessos regionais,
como Salvador não inerte e Ladeira do Pelô, incluídas em seu último LP, e contracena com
a divertida coreografia improvisada do Olodum, cujos percussionistas se mexem no ritmo
da música. João Gabriel de Lima. In Revista Veja, 20/06/1990, extraído de
www.galcosta.com.br, acesso em 21/10/2004.
da figura de Brown e de artistas associados naquele lugar. Lá se localiza hoje o estúdio Ilha dos Sapos, um
dos mais requisitados na cidade para gravações musicais.
137
O disco Plural (1991) é importante aos efeitos da ressonância da musicalidade dos blocos afro de
Salvador na obra de Gal. Em 1999, a cantora associou-se ao governo estadual baiano e municipal
soteropolitano nas comemorações dos 450 anos da fundação de Salvador.
148
disco de Gal como uma rumba com percussões emblematizadas com a música de Salvador
no início dos anos noventa. Gal, que já interpretara a falsa baiana de Geraldo Pereira, neste
momento incorpora a baiana modernizada, soteropolitana que samba quando quer, nos
versos de Caetano.
Maria Bethânia comemora vinte e cinco anos de carreira com Maria Bethânia 25 anos
(1990). Com participações de João Gilberto, Almir Satter e Nina Simone, o disco conta
com a faixa Awô (DP)/As Ayabás (Gilberto Gil/Caetano Veloso), interpretada por
Bethânia, Gal Costa, Alcione e Mãe Cleusa do Gantois, num momento em que – ao som de
samplers de trovões e atabaques gravados no Terreiro do Gantois – há uma evocação
polifônica de Oyá-Iansã, e portanto de uma Bahia mitológica, da ancestralidade étnica e
religiosa.
Iansã comanda os ventos
E a força dos elementos
Na ponta do seu florim
É uma menina bonita
Quando o céu se precipita
Sempre o princípio e o fim
Gilberto Gil e Caetano Veloso. As Ayabás. In: Maria Bethânia 25 anos, Polygram, 1990.
Caetano Veloso, em 1991, traz ao público o disco Circuladô , cujos silêncios e pausas
fazem parte da estética semi-acústica e relativamente minimalista deste trabalho. Uma
crítica social em O cu do mundo, de sua autoria [AL 121], apresenta uma Bahia em que o
cujo faz a curva / este nosso sítio / do crime estúpido / criminoso só / substantivo comum /
o fruto espúrio reluz / a sub-sombra desumana dos linchadores, num momento de reflexão
sobre a sociedade baiana/brasileira do início dos anos noventa. Caetano compôs essa
canção se reportando ao número de linchamentos no Estado da Bahia. A mesma Salvador
se encontra na faixa Neide Candolina, em que diz e a cidade / a Bahia da cidade / a
porcaria da cidade tem que reverter o quadro atual / pra lhe ser igual, ou seja reclamando
uma Bahia menos desigual e injusta. O samba-de-roda Boas vindas (Caetano Veloso)
propõe a recepção a seu filho Zeca, nascido nesse período, para uma Bahia menos
agressiva que aquela das outras duas faixas.
Gil lança Parabolicamará em 1992, tendo a faixa título sido tema da novela Renascer,
da Rede Globo, ambientada em Ilhéus, cujo enredo girava em torno de trabalhadores
braçais, coronéis do cacau e sensualidade/sexualidade envolvendo baianos(as) e paulistas.
Este álbum traz uma sonoridade afro-pop amadurecida, em que elementos da world music
149
são configurados, entre ijexás, sambas, funks e desdobramentos de uma estética perseguida
por Gil desde o final dos anos setenta. Serafim (Gilberto Gil) [AL 122] é uma peça em
homenagem ao orixá Exu, adornada por instrumentação elétrica equilibrada com a
pulsação afro-baiana tradicionalmente ouvida nos ambientes de terreiro.
Em Quero ser teu funk (Gilberto Gil/Liminha/Dé) [AL 123], a importância da Bahia
para o samba carioca é reclamada, como a rememorar os tempos de Donga, João da Baiana
e Tia Ciata, em versos como Mesmo que São Paulo te xingue / porque te cobiça o suingue,
o mar, a preguiça e o calor / lembra da Bahia, que um dia / Já mandou Ciata, a tia / Te
ensinar kizomba nagô. Em Buda Nagô, Dorival Caymmi é homenageado com o samba
cantado ao lado de sua filha Nana – ex-mulher de Gil –, como a figura mítica maior entre
os baianos.
Bethânia lança o disco Olho d’água (1992), sem muito sucesso midiático, mas com
remissões interessantes à ancestralidade afro-baiana. Faixas como Vida vã (Roberto
Mendes/Jorge Portugal), Louvação a Oxum (Roberto Mendes/Ordep Serra) [AL 124] e
Búzio (Roberto Mendes/Jota Velloso) revelam-se nítidas nesta referência. A capa traz
Bethânia adornada com um bracelete de serpente dourada e uma cachoeira estampada na
contra-capa, num apelo visual comum a diversos trabalhos da artista.
Como continuidade ao disco/show Plural, Gal grava um álbum em 1992 – Gal – com
peças do espetáculo anterior e a inclusão de É d’Oxum (Gerônimo/Vevé Calazans)
[AL 125], com participação do Afoxé Filhos de Gandhi. As faixas Revolta Olodum (José
138
Caetano traça da relação com o cantar de D. Canô desde Genipapo Absoluto (disco Estrangeiro), em que
diz: minha mãe é minha voz.
150
Neste trabalho, além das influências do/para o carnaval, como em Nossa Gente
(Roque Ferreira) [AL 127], sucesso do Olodum e da versão aos moldes do grupo Timbalada
da peça Wait until tomorrow (Jimi Hendrix), há a crítica social de Haiti (Caetano
Veloso/Gilberto Gil), comentada pela imprensa e com clip no programa Fantástico, da
Rede Globo, como conclusão de uma matéria revisionária sobre o Tropicalismo.
O sorriso do gato de Alice (1993) é lançado por Gal Costa como um trabalho em que
o conceito reside na gravação de quatro compositores com peças inéditas. Gil, Caetano,
Jorge Ben Jor e Djavan são interpretados, entre funks, sambas e blues considerados pela
crítica muito bem adequados àquela fase de Gal. Lavagem do Bonfim (Gilberto Gil)
[AL 128] e Alkahool (Jorge Ben Jor) remetem aos ritmos afro-pops e à temática da
identidade cultural baiana, como se apresenta na peça de Gil. A canção Bahia, minha preta
(Caetano Veloso) [AL 151] faz uma homenagem à Bahia, aos seus aspectos tradicionais e
modernos, tratando inclusive a axé music como uma expressão importante da música
popular.
151
Fiz para Gal cantar. Não ficou muito conhecida, mas é uma canção muito bonita. Faz uma
defesa direta da música de Carnaval da Bahia, da mais comercial, que ficou conhecida
como axé music. Por isso há nela, também, uma briga com o meu querido Waly Salomão,
que tinha falado numa entrevista contra a axé music, esculhambando com aquela “música
vulgar” da Bahia. Ele dizia também que o termo usado para lhe dar nome era um
desrespeito com a palavra “axé”, que significava, em iorubá, entre outras coisas, “segredo”.
E eu, na letra, digo o contrário, e exorto a Bahia a expandir seu axé e “não esconder nada”,
indo, portanto, contra o argumento de Waly (Veloso, 2003, p. 27).
Eu quis incorporar uma atmosfera nova no meu trabalho. Seria muito fácil eu entrar no
palco com a barriguinha de fora, sorrindo, seduzindo a platéia. Eu quis, também, acima de
qualquer coisa, que tudo que estivesse a minha volta, toda a atmosfera em torno me desse
um suporte, por que neste espetáculo eu queria mostrar a essência radical do meu canto.
Mostrar o que eu sei fazer de melhor. Ser cantora. Cantar bem, que é o que eu faço.(...) No
momento em que eu canto Tropicália, fazendo o gesto de mostrar os seios, é justamente
para trazer à memória das pessoas um momento que houve no Brasil de revolução dentro
da música brasileira, que foi o Tropicalismo, que foi uma revolução não só estética do
padrão musical, mas também de comportamento. Quebra de estruturas.
Entrevista de Gal Costa , in: Jornal A Tarde, 14 de abril de 1994, cad. 2, p.1.
Bethânia lança o disco As canções que você fez pra mim (1993), com repertório
extraído da obra de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, com mais de um milhão de cópias
vendidas, relembrando os tempos de Álibi e Mel, seus recordes de mercado. É neste show
que a peça Adeus Bye, Bye, canção do Ilê Aiyê interpretada pela Banda Eva ainda com
Ivete Sangalo, é executada na apresentação em Salvador, deixando surpresos imprensa e
público. O registro ao vivo deste show – Maria Bethânia Ao Vivo139 (1995), – traz
referências à Bahia, principalmente nas faixas Atrás da verde e rosa só não vai quem já
morreu (David Corrêa / Paulinho Carvalho / Carlos Sena / Bira do Ponto) [AL 129], Eu e
água [AL 131], Tudo de Novo e Reconvexo, todas de Caetano Veloso.
139
Este trabalho substituiu a proposta inicial da gravadora de um disco com boleros, rejeitado por Bethânia.
A negociação concluiu-se com este álbum ao vivo e o encerramento do contrato da artista com a Polygram.
152
O reencontro em palco dos Doces Bárbaros seria histórico em qualquer hora e espaço.
Mas, ao acontecer no último sábado, dia 15, na quadra da escola de samba Mangueira, no
Rio, ele ganhou ares de celebração religiosa. O programa “Doces Bárbaros na Mangueira”,
dirigido por Roberto de Oliveira, traz a íntegra do espetáculo e cenas da entrevista coletiva,
e do ensaio ocorridos um dia antes. (...) No final, os quatro (mais pretos do que nunca,
depois de férias na Bahia) atacam de “Os mais Doces Bárbaros”, canção alusiva ao show
de 18 anos atrás, Exaltação à Mangueira e o novo samba-enredo da escola. Os baianos
ganharam cadeira perpétua na escola e na história.
In: Jornal Folha de S. Paulo, 22 de janeiro de 1994.
Caetano Veloso realiza um projeto – Fina estampa (1994) – com canções hispânicas,
das memórias de sua infância em Santo Amaro e de um tempo em que os boleros,
guarânias e demais gêneros latinos eram ouvidos freqüentemente nas rádios brasileiras.
Logo na abertura do LP, a faixa Rumba Azul (Armando Orefiche) flerta com a música
caribenha e com o ijexá/samba-reggae, num arranjo construído sobre percussões e sopros
muito semelhantes àqueles de orquestras cubanas140 (de onde se origina a composição)
quanto com os naipes de metais de bandas de carnaval baianas. Em 1995, o disco/vídeo
Fina estampa ao vivo é lançado com relativo sucesso de público e crítica.
140
Observa-se uma influência vigorosa da sonoridade caribenha na música de carnaval baiana a partir de
meados da década de oitenta.
153
Gal trabalha o álbum/show Mina d’água do meu canto (1995), com canções de Chico
Buarque e Caetano Veloso; um recital, muito diferente do show anterior. Mais técnica e
preocupada com o alcance da perfeição vocal, a artista inicia uma fase em que sua
inquietação artística passa a dar lugar a um objetivo mais voltado à consolidação do lugar
de diva. Seus cinqüenta anos são celebrados pela imprensa e a sua posição artística à época
é vinculada à maturidade. A faixa Milagres do povo (Caetano Veloso) é gravada neste
disco, como uma remissão a uma Bahia épica da negritude. A canção foi composta e
interpretada por Caetano para a trilha da minissérie da Rede Globo Tenda dos Milagres
(1985), baseada na obra de Jorge Amado.
Caetano e Gal se reúnem para registrar a trilha sonora do filme Tieta do Agreste, de
Cacá Diegues, em 1996. Com a participação de Zezé Motta e da Banda Didá, o disco traz
canções de Caetano e temas incidentais arranjados por Jacques Morelembaum. A Banda
Didá, capitaneada por Neguinho do Samba e formada somente por mulheres, foi
apresentada com especial ênfase por Caetano na divulgação televisiva deste trabalho
conjunto. O filme foi comentado por alguns setores da imprensa, inclusive no aspecto da
reciprocidade entre os baianos envolvidos; um livro de Jorge Amado, com música de
141
Entrevista no programa Sem Censura, TVE, 1996.
154
Caetano Veloso, interpretada por Gal Costa, etc. Quando interpelado sobre a possível
baianidade do disco e as influências do Tropicalismo sobre a geração da axé music, e vice-
versa, responde Caetano:
Claro que sim. No disco Tropicália II, eu e Gil gravamos uma música do Olodum, Nossa
Gente, mais conhecida como “Avisa lá”. Gravei com o Ilê. A Gal gravou com o Olodum. No
caso do filme, eu queria de todo modo que Tieta tivesse o som das ruas da Bahia de hoje.
Me apresentaram às meninas da Banda Didá, que são geniais. Dá conta da relação entre a
atualidade do filme e da Bahia de hoje. Há também motivos tradicionais da Bahia e do
Nordeste, já que Santana do Agreste faz quase fronteira com Sergipe. O refrão de A luz de
Tieta, que alguns jornalistas burros daqui do sul criticaram, faz referência a um refrão do
Olodum (Êta! Êta! Êta! Taratatá!). Lembra? Esse êta! Veio de lá. O que mais adoro nessa
música é justamente o refrão. Ela ecoa a música do Olodum. Depois, trata-se de uma rima
rica, de uma interjeição com um substantivo próprio, além de fazer eco com o refrão do
tema de Xica da Silva, de Cacá Diegues. Mas alguns jornalistas, burros e incultos, acham
que é uma rima pobre.
In: Jornal A Tarde, 13 de setembro de 1996, cad. 2, p. 8.
Neste momento, além das discussões possíveis a respeito das configurações de Bahia,
pode-se contemplar mais uma vez o vínculo de Caetano com o cinema, desde sua
juventude, passando pela experiência de seu filme Cinema Falado (1986), até a
participação constante em diversas produções.
Quanta é o título do disco de Gilberto Gil lançado em 1997, com temática girando em
torno das relações entre ciência, religião e filosofia, com canções inéditas suas e
regravações de seu repertório, além de peças de outros autores, referentes à música
popular, arte e conhecimento intelectual. Opachorô [AL 132] e De Ouro e Marfim [AL 133],
ambas de Gil, são remissões à Bahia no aspecto da religiosidade e da ancestralidade afro-
baiana, sendo a segunda uma homenagem também a Tom Jobim, falecido em 1994. Neste
disco, Gil celebra a tecnologia em Pela Internet [AL 134], uma paráfrase de Pelo telefone,
samba de Donga gravado em 1917.
Maria Bethânia percorre o Brasil com um show em que retoma sua parceria com o
diretor Fauzi Arap. Mais uma vez, Bethânia é tratada pela crítica como intérprete apurada
de temas que vão da passionalidade dos versos de Adelino Moreira, em Negue, ao
regionalismo baiano/nordestino. Se em Viramundo (Gilberto Gil/Capinam) relembra os
tempos iniciais da carreira, com a presença do universo do Nordeste de luta pela
sobrevivência, em Quixabeira (D.P./ Carlinhos Brown/Bernard Von Der Weid/Afonso
Machado) [AL 135], o samba-de-roda do Recôncavo toma a dianteira. Esta canção foi
155
gravada no mesmo período por Bethânia, Caetano, Gil e Gal, no disco de Carlinhos Brown,
Alfagamabetizado (1996).
Caetano lança o disco Livro (1997) no mesmo ano em que publica o livro Verdade
Tropical, fazendo sua versão literária para o Tropicalismo. O disco aposta numa
sonoridade percussiva142. Entre letras que tratam tanto da literatura quanto da figura de
Alexandre Magno – Alexandre (Caetano Veloso) – , há um registro afro-baiano-pop do
poema O Navio negreiro, de Castro Alves. Carlinhos Brown participa, compondo o arranjo
para percussão. Interpretada ao lado de Maria Bethânia, configura-se num tom de grande
eloqüência ao resultado final. As faixas Onde o Rio é mais baiano (Caetano Veloso) e How
beautifuil could a being be (Moreno Veloso) se remetem à Bahia pela letra da primeira e
na musicalidade de samba-de-roda da segunda, com um único verso que se repete entre
palmas, violões e falsetes de Caetano e seu filho mais velho.
Em 1998, com o show Quanta gente veio ver, Gilberto Gil é vencedor do Grammy de
world music, com disco gravado ao vivo, e em que há três faixas-bônus de temática sobre o
carnaval da Bahia. Doce de Carnaval (Gilberto Gil) [AL 136] e Pretinha (Gilberto Gil/Kátia
Falcão/João Donato) [AL 137] se destacam. A primeira traz uma referência às ruas da cidade
do Salvador e às meninas pretas que são cortejadas na festa. Percebe-se aí a fugacidade das
relações durante o período de verão na Bahia, do mesmo modo que os interesses de turistas
de várias partes do mundo que acorrem à Salvador em busca de mulheres nativas. Em
Doce de Carnaval143, é prestada uma homenagem ao som produzido no Candeal, num
arranjo eletrônico, com a participação de Lulu Santos. Lamento de carnaval (Gilberto Gil)
propõe uma reflexão sobre a festa, inserindo-se na polêmica em torno de suas conotações
políticas e respondendo a certo tipo de crítica à fruição do mundo carnavalesco,
freqüentemente emblematizado como baiano por setores da imprensa e das esquerdas.
142
Desde o disco/show Circuladô, Caetano vem inserindo uma sonoridade de percussão afro-baiana,
geralmente executada por músicos do carnaval da Bahia, principalmente do Candeal, de onde Carlinhos
Brown arregimenta seu trabalho como instrumentista.
143
O sub título desta canção é Candy All, numa brincadeira assumida pelo compositor à época com o termo
doce em inglês, além de tudo, como se fosse tudo doce. O trânsito simbólico aí presente é especialmente
interessante.
156
Gilberto Gil. Lamento de carnaval, in: Quanta gente veio ver, CD, Warner, 1998.
Gal lança Aquele frevo axé (1998), disco construído para associá-la a uma sonoridade
mais contemporânea, utilizando-se de orquestração eletro-eletrônica. Milton Nascimento
divide a interpretação de A voz do tambor (Celso Fonseca/Ronaldo Bastos). A faixa-título,
de Caetano e César Mendes [AL 138], aborda a mesma fugacidade dos amores de carnaval
comentada anteriormente, tomando a Praça Castro Alves como cenário de um encontro
proporcionado ao som do axé elétrico (como o frevo) do carnaval da Bahia. Assim: Que
fazer, meu coração está preso aquele carnaval / volto a pisar este chão / enceno um drama
banal / tento refazer a trama / mas o desfecho é igual, são versos significativos desta
relação com uma Bahia onde amores se constituem e desfazem na velocidade de uma
cidade para a festa, como se percebe nessas representações singularizadas por Caetano e
Gal neste momento. Incursões pelo universo sincrético de sereias, Araketu e patuscadas de
Gandhi são percebidas na faixa Aguarte Agora (Carlinhos Brown/César Mendes) [AL 139],
um ijexá pop com arranjo permeado pela programação de bateria de Ramiro Musotto144.
Bethânia lança o disco A força que nunca seca (1999), com a gravação de Luar do
Sertão (Catulo da Paixão Cearense) e o sucesso sertanejo É o amor (Zezé di Camargo). A
Bahia comparece como referência em Abracei o mar (Vevé Calazans/Gerônimo) [AL 141] e
em Gema (Caetano Veloso), com remissões à percussão do samba-reggae, construída pelo
baterista Marcelo Costa.
“Este é um disco interiorano”, define Maria Bethânia, no disco-release que enviou para a
imprensa. “Ele revela, com meu olhar interiorano, o Brasil, o meu país, particularmente a
minha cidade” (Santo Amaro da Purificação).
In: Jornal A Tarde, 2 de março de 1999, Cad. 2, p.6.
Sebastian, Sebastião
Diante de tua imagem
Tão castigada e tão bela
Penso na tua cidade
Peço que olhes por ela
Cada parte do teu corpo
Cada flecha envenenada
Flechada por pura inveja
É um pedaço de bairro
É uma praça do Rio
Enchendo de horror quem passa
Oô cidade, oô menino
Que me ardem de paixão
Eu prefiro que essas flechas
Saltem pra minha canção
Livrem da dor meus amados
Que na cidade tranqüila
Sarada cada ferida
Tudo se transforme em vida
Canteiro cheio de flores
Pra que só chorem querido
Tu e a cidade de amores
Gilberto Gil e Milton Nascimento. Sebastian, in: Gilberto Gil e Milton Nascimento, CD,
Warner, 2000.
No mesmo ano, há um reencontro entre Gil e Bethânia, que fazem uma série de shows
pelo Brasil com um repertório que vai de Fé cega, faca amolada, de Os Doces Bárbaros,
até Sem Fantasia (Chico Buarque), numa releitura da peça antes gravada por Bethânia com
o próprio Chico Buarque. As remissões à Bahia se dão principalmente através de canções
de Caymmi e da própria referência ao acontecimento Os Doces Bárbaros.
159
O filme Eu, tu, eles, de Andrucha Waddington, é lançado em 2000, com trilha sonora
interpretada por Gil. Com três peças de sua autoria e baseado em canções do repertório de
Luiz Gonzaga, o show de divulgação da trilha alcançou grande sucesso em uma turnê
registrada no filme-documentário Viva São João (2001), do mesmo diretor.
Num projeto promocional para o Esporte Clube Bahia, o CD Doces Bárbaros Bahia é
lançado em 2000, trazendo os quatro artistas interpretando o hino do clube de futebol e
vinhetas sobre o time tricolor. As imagens de Caetano, Gil, Gal e Bethânia são remetidas
ao acontecimento de 1976 e assim associadas ao Esporte Clube Bahia.
Gal Costa passa por problemas relacionados a sua imagem em 2001, por conta da
aparição em apoio a Antônio Carlos Magalhães, no episódio envolvendo o então Senador
numa fraude política. Seu disco deste ano é adiado pela BMG, e quando é lançado, vem
com a carga de uma exposição negativa proporcionada pelo acontecimento (como já citado
na seção 4.2). De tantos amores traz como faixa-bônus a peça Caminhos do Mar (Danilo
Caymmi/Dudu Falcão/Dorival Caymmi), tema de abertura da novela da Rede Globo Porto
dos Milagres.
Em 2001, Bethânia lança o CD Maricotinha [AL 144], cujo título retira de uma canção
homônima de Dorival Caymmi, que responde, em termos de representações, à baiana
menina e faceira que se incorpora neste momento da carreira de Bethânia. Assim, em
145
Um CD em homenagem à Nossa Senhora da Purificação também chega ao mercado neste ano.
160
versos como diga a Maricotinha que eu mandei dizer que eu não vou / não tô / não vou e
se fizer bom tempo amanhã eu vou / mas se por exemplo chover / mas se por exemplo
chover / não vou, Bethânia assume uma personificação de Bahia caprichosa, quase infantil,
nos seus desejos de menina, como se percebe nos tons das entrevistas deste período.
Promovendo uma revisão de sua carreira, ainda encontra a possibilidade de retornar à
infância em Santo Amaro, celebrada neste trabalho com esta faixa.
Gil faz uma homenagem a Bob Marley no disco Kaya’n’Gan’daya (2002), viajando à
Jamaica para gravar o trabalho e cenas para um DVD lançado no mesmo período. A
relação com a Bahia e o Brasil é percebida nas sonoridades ora a evocar a tradição da
música jamaicana, ora a ressoar ritmos baianos, como no encerramento da peça Waiting in
vain (Bob Marley), em que se ouve um cavaquinho simular uma transição do reggae para o
pagode produzido na Bahia nos anos noventa. O disco é finalizado com Lick Samba (Bob
Marley), numa referência ao modo de vida dos habitantes da zona rural na Jamaica, e
transignificado como elemento de ligação entre o Brasil e a Jamaica.
Nosso samba
Tem feitiço
Tem farofa
Tem vela e tem vintém
E tem também
Guitarra de rock’n’roll
Batuque de candomblé
Caetano Veloso, Feitiço, in: Eu não peço desculpa, CD, Polygram, 2002.
161
Gal lança o disco Gal Bossa Tropical (2002) gravando a faixa Cada macaco no seu
galho (Riachão) e apostando numa sonoridade simples, com apenas quatro músicos a
acompanhá-la, como num “disco de férias”. Pode-se contemplar o clima de verão da
Bahia, como representado coletivamente no imaginário nacional, até na capa, em que Gal
passeia por uma praia no Rio de Janeiro, mas evocando uma identidade baiana (como
salientou durante os shows deste disco) através da guitarra de Armandinho. O show do
reveillon deste ano em Salvador é realizado por Gal, pautada no repertório deste trabalho.
Ao final, pôde-se ver Gal Ivete Sangalo e Margareth Menezes cantando juntas Ari Barroso
e Tenisson Del Rey, com Na baixa do sapateiro e Cabelo raspadinho. Um encontro
interessante aos efeitos das análises de trocas simbólicas ora operadas nesta Dissertação.
Gal mantém uma linha mais contida nas interpretações no álbum Todas as coisas e eu
(2004) e não tem mais a mesma projeção na mídia que décadas antes. Gil, já como
Ministro da Cultura146, lança um CD ao vivo – Eletracústico –, trabalhando sonoridades
percussivas e elétricas numa ambiência voltada ao experimento com instrumentação
146
A figura de Gilberto Gil toma uma proporção mais diretamente ligada à vida pública. Em 1988, foi
protagonista de uma contenda política com o governador Waldir Pires por conta da pretensão à Prefeitura de
Salvador. Como não obteve o apoio de Waldir, Gil candidatou-se a vereador, elegendo-se e exercendo um
mandato polêmico, muito criticado pelas inúmeras ausências para shows, bem como por depoimentos
demasiadamente irônicos. A disposição de participar diretamente da vida política se manifesta em Gil, hoje,
em termos de uma investidura institucional bem mais radical. Uma referência curiosa e emblemática pode ser
trazida à tona aqui agora, quando, em 1979, Gil responde às críticas aos baianos com uma tirada irônica e
intensificada, considerando-se sua presença atualmente no cenário nacional; Repórter: “Por falar em Glauber,
o que você acha da proposta dele de se colocar um intelectual no Ministério da Educação?” Gil: “Eu achei
legal. A provocação de Glauber eu achei perfeita, porque acabou surtindo efeito. O Eduardo Portela, diga-se
o que disser é um pouco isso. Representa mais ou menos isso. Pode não ser o que o Glauber quisesse, mas de
qualquer forma é uma coisa desse tipo. Estou de acordo com o Glauber. A gente tem que cuidar das coisas da
gente. O mesmo problema da arte industrial é o da arte política. Da mesma forma que ela é industrial ela é
política”. Repórter: “E o Ministro é baiano, né?” Gil: “Pois é. Daqui a pouco vão dizer que foi Glauber que
gritou e já ganhou um ministério para a Bahia. Mas se tivesse um carioca ou paulista que gritasse antes,
talvez o ministério saísse para lá (risos)” (Gil, s/d, p.223).
162
O disco traz ainda The Carioca (Eliscu/Kahn/Youmans) – “Uma falsa música de país
tropical, levada por uma percussão baiana que é um ritmo tropical inventado”, comenta.
In: cliquemusic.com.br, acesso em 22/12/2004.
No final de 2004, é lançado o DVD Outros (doces) Bárbaros, com o registro dos
bastidores e de trechos do show Doces Bárbaros, realizado em dezembro de 2002,
comemorando o acontecimento de 1976. No início de 2005, Bethânia lança o álbum Que
falta você me faz, com canções de Vinícius de Moraes, um parceiro relevante na sua
trajetória.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os tipos baianos que podemos reconstituir nas carreiras artísticas de Caetano, Gil, Gal
e Bethânia são agora melhor observados, no caminho da compreensão de que Bahias estão
dinamicamente propostas/aportadas em suas práticas. Considerando-se que o imaginário
sobre a sociedade baiana no cenário das representações da brasilidade foi relativamente
reconfigurado com o impacto destes artistas diante dos públicos, pode-se afirmar que uma
rede de representações articuladora de textos identitários se re/trans/configura com o
advento destas singularidades.
A análise das carreiras de Caetano, Gil, Gal e Bethânia permitiu acessar variadas
personificações (representações individuais, na acepção de Goffman; auto-imagens, para
Elias), em momentos nos quais elementos de identificação se apresentam com maior ou
menor força. O tipo pode, assim, abarcar diversos instantes das carreiras, viabilizando o
delineamento de baianos constituídos nas práticas destes agentes.
Cabe salientar que a singularidade não existe fixamente nas individualidades dos
agentes, como ente reificado. Configura-se como uma construção também tipológica, que
dá conformação para a constituição do baiano na obra destes artistas. A singularidade,
deste modo, pode ser construída com base numa análise minuciosa das carreiras
publicizadas, cumprindo a função de categoria-chave na definição do singular como
elemento da prática artística destes agentes e, portanto, no entendimento da
individualização das representações.
Inicialmente, a posição dos artistas enquanto agentes sociais foi tomada como
premissa principal para as considerações deste trabalho. A partir do conceito de
reflexividade dos agentes em Giddens (1989), considerou-se que Caetano, Gil, Gal e
Bethânia partem de consciências práticas e discursivas, como base para o tratamento
artístico das temáticas presentes em seu trabalho. Isso não significa dizer que as canções,
posições assumidas publicamente e a prática artística como um todo sejam planejadas, a
147
É importante tratar as singularidades como delineamentos das performances que pretendem captar,
tipologicamente, contornos de disposições para a ação, e não como reificações de consciências plenas e
imóveis, constituintes daquilo que poderia ser considerado uma espécie de “super agente”.
165
148
Mesmo porque, ao tomar os conceitos de consciência prática e consciência discursiva de Giddens,
devemos manter em mente que o autor não situa os agentes como a todo tempo pensando sobre suas práticas.
Grande parte das ações da vida social são realizadas em estado de consciência prática, sem uma
reflexividade constante. O que fica como questão reside na sua assertiva de que, se indagados, os agentes são
capazes de explicar (a partir de suas consciências reflexivas) suas práticas. Neste sentido, a singularidade
pode ser delineada tomando por base também esta competência sócio-ontológica reclamada por Giddens.
149
O conceito de consciência prática em Giddens é oportuno aqui aos efeitos desta compreensão. Os agentes
atuam, na maioria dos casos, de maneira não consciente (o que não é sinônimo de inconsciente), ou seja, na
recursividade das práticas sociais.
150
Isto coloca a prática artística também no campo das representações do eu, na acepção de Goffman, pois
Gil compõe e entrega a um público o resultado de seu trabalho artístico. É também uma forma de representar-
se para os outros, como crê o interacionismo simbólico.
151
Caetano acaba por assumir, deste modo, uma espécie de liderança do grupo baiano, também teorizando
sobre suas presenças na música brasileira. Ver Anexo Depoimentos 04.
166
Uma sonoridade permeada por referências à moderna percussão da Bahia pode ser
percebida nos trabalhos de Caetano, principalmente a partir da década de noventa, como
nos álbuns Livro e Noites do Norte. Isto parece apontar a importância que sua figura teve e
tem para o carnaval de Salvador, compondo frevos aos moldes de Dodô & Osmar desde
1969 (Atrás do Trio Elétrico), fazendo-se presente e discutindo com a imprensa os rumos
da nova música baiana e da própria festa, ao lado de Gilberto Gil. No cenário das
representações, portanto, o baiano, em Caetano, é também o folião moderno, antenado
com a música da festa, engendrando discursos para e sobre ela.
Uma negritude pop, centrada na remissão à africanidade baiana e voltada para a cena
universalizada, compõe o que poderíamos considerar o núcleo duro do baiano em Gilberto
Gil. Trata-se de um artista cujo diálogo como compositor e cantor está intimamente
relacionado à presença de Caetano e que também trabalha discursos (estéticos no sentido
mais amplo possível) que, por sua vez, argumentam uma Bahia mais centrada nos seus
aspectos étnicos.
167
O baiano que se pode reconstituir em Gilberto Gil está voltado para o cenário do
brilho pop, da aparição na cena, seja no carnaval (como em Filhos de Gandhi152), seja na
elaboração de uma africanidade eletrificada em Banda Um, canções que trazem em comum
a figura do negro altivo153 e urbano, com uma apresentação fincada entre o ancestral e o
moderno154. No show Doces Bárbaros, a canção Chuck Berry Fields Forever ensaia uma
história negra do rock’n roll, que começa com os ritmos afro-latinos e deságua no metal
das guitarras. No álbum Refavela, de 1977, há pontes entre o tradicional e o moderno,
personificadas no negro da favela carioca como naquele tocador de marimba dos
Camarões. No mesmo álbum, temos o Ilê Aiyê, bloco afro de Salvador formado em 1974,
transfigurado por uma estética próxima da moderna música africana. Em Banda Um,
podemos observar uma fusão tanto lingüística como cultural; o negro zanzibárbaro, a loura
blumenáutica, como emblemas de identidades culturais brasileiras e baianas assentadas no
hibridismo/sincretismo:
O sentido universalista da umbanda como uma cisão do culto fechado das religiões, seja o
candomblé, seja a católica, ambas monísticas, cada uma com a sua verdade; o panteísmo
necessário da umbanda, uma religião que não é uma mas “todas”, misturando o
kardecismo, o catolicismo, o politeísmo africano. E Banda Um é uma música-síntese com
uma intenção e um conceito panculturalista, uma canção que cultiva as idéias de música,
de juventude, de comportamento, de consumo, de vários nacionalismos. E, ao mesmo
tempo, o fato de sermos um pouco a Banda do Zé Pretinho [Gil se refere aqui ao grupo de
Jorge Ben Jor, ao qual compara o seu]: “Banda Um” é como se fosse o nosso hino, o nosso
prefixo musical (Gil, 1996, p. 98).
152
A composição desta peça foi motivada pela situação em que se encontrava o Afoxé Filhos de Gandhi, em
1973, como uma maneira de revigorar a entidade (Gil, 1996).
153
Como na representação fotográfica de Pierre Verger.
154
Uma negritude, portanto, muito próxima daquela da proposta teórico-metodológica de Gilroy (2001),
como já discutido no capítulo 2.
168
As intérpretes Gal Costa e Maria Bethânia155 também apresentam nas suas práticas
artísticas elementos que permitem reconstituir uma tipologia coerente com os propósitos
deste texto.
Eu sou muito do lado da interpretação, a minha linha é diferente daquela coisa melódica e
esmiuçada da Gal e da Nana. Eu sou o teatro, a ópera, o drama grego. Quando eu cito
alguns compositores é porque me sinto próxima e, como já disse, posso acrescentar com a
minha criação alguma coisa.
Maria Bethânia. In: www.diamanteverdadeiro.com.br, acesso em 04/06/2004
155
Tanto Maria Bethânia quanto Gal Costa têm composições assinadas em parcerias com Caetano Veloso e
Gilberto Gil, embora não se possa considerar que sejam propriamente compositoras, até porque não se
assumem como tal.
156
Sua relação com esse estilo musical tem sido discutida por alguns setores da imprensa e arte baianas, e a
própria Maria Bethânia tem feito em algumas entrevistas considerações esclarecedoras, através das quais diz
não renegar a Axé Music, sem, entretanto achar que este tipo musical lhe caiba para interpretar. Nas palavras
de Bethânia em entrevista ao Jornal Hoje, da Rede Globo, em 1997: Sou intérprete, tenho que me preocupar
com o que estou dizendo. Essa música tem muito barulho, é muito forte. O canto, o trabalho de cantora eu
deixo pra Gal, Zizi, Nana... Eu sou intérprete.
169
A tipologia que pode corresponder à figura de Gal Costa congrega elementos que vão
da sensualidade propalada da mulher baiana, passando pelas referências ao universo
religioso do candomblé e, sobretudo, no visível ecletismo de feixes representacionais que
fazem parte de sua prática artística. Sua carreira começa com um forte apelo à Bossa Nova;
encaminha-se então pelo rock, pela música pop, pelo cancioneiro clássico da MPB. Enfim,
sua prática artística traz como vetor característico, do ponto de vista técnico, o
monitoramento da voz para variados caminhos. Isso se observa nas representações da
sociedade baiana em seu trabalho. Seus agudos despontavam, junto à sua indumentária
entre hippie e iaô, no acontecimento Os Doces Bárbaros, como a baiana jovem, brejeira e
lasciva, de feminilidade em destaque.
Meu trabalho sempre teve muito essa característica, de diversificação, acho isso uma coisa
boa. É como aquela frase que diz assim: “Os caminhos da música brasileira são vários”. Eu
prefiro todos! Tem as coisas do Norte, que fazem parte da minha vida, eu sou de lá. Tem a
Bossa-Nova, que também faz... Eu não sou uma cantora essencialmente romântica,
roqueira ou, enfim, essas coisas. O meu lance é cantar e pronto! É isso que eu gosto de
fazer e sei fazer. Sem muitas elucubrações em volta. Cantar bem, cantar direito, é isso que
sei fazer.
(Rádio X, 1990) In: www.verdadeirabaiana.com.br, acesso em 04/06/2004
Enfim, a baiana Gal Costa pode ser percebida como a soteropolitana aberta ao mundo,
de uma Bahia contemporânea, focada na cotidianidade, que flerta com o samba, com a
negritude, com a religiosidade múltipla, com o carnaval. Sua singularidade permite
perceber que tanto a axé music quanto os clássicos da MPB podem ser matéria musical.
Assim como, em 1975, a televisão veiculava a novela Gabriela ao som de sua
interpretação de Modinha para Gabriela, de Caymmi, em 1996, o filme Tieta do Agreste
trazia na trilha sonora Gal e Caetano157. Ainda na esteira da percepção de uma cantora
157
Muito curiosa e convergindo no mesmo sentido de um tipo de Bahia mais eclética e aberta é uma
declaração de Gilberto Gil sobre Gal Costa, publicada no site www.verdadeirabaiana.com.br: Ela tem uma
qualidade sonora tão excepcional, dessas que aparecem muito raramente, aliada a um grande talento
170
Deste modo, uma tipologia de baiano na obra de Caetano, Gil, Gal e Bethânia nos
leva à compreensão da arquitetura de identidades culturais múltiplas e de Bahias que se
interfaciam, principalmente se considerarmos a multiplicidade de representações possíveis
nesta prática artística.
musical. Ela é uma baiana mais abrangente, tem uma coisa de carioquice baiana com gosto por coisa
internacional.
171
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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sua origem até hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
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176
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3º edição.
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Karina. Mediação, Cultura e Política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 13-28.
----. Letra só; Sobre as letras. São Paulo. Cia das Letras, 2003.
7 APÊNDICE:
DISCOGRAFIA DE CAETANO VELOSO,
GILBERTO GIL, GAL COSTA E MARIA BETHÂNIA
E CRONOLOGIA DO SHOW/DISCO/FILME OS DOCES BÁRBAROS
QUADRO 1
DISCOGRAFIA DE CAETANO VELOSO
QUADRO 2
DISCOGRAFIA DE GILBERTO GIL
*
Lançado em 2003 a partir de pesquisa de Marcelo Fróes em arquivos da Warner.
**
Lançado em 1998 em caixa Geléia Geral, resultado de projeto e gravações realizadas em 1973.
182
1994 Unplugged
1997 Quanta
1998 Quanta gente veio ver
2000 As canções de Eu, Tu, Eles
2000 Gilberto Gil e Milton Nascimento
2001 São João Vivo
2002 Kaya n´ Gan Daya
2003 Kaya n´Gan Daya Ao Vivo
2003 It´s good to be alive*
2003 To be alive is good*
2004 EletrAcústico
2004 Outros (doces) Bárbaros – com Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia
*
Lançado em 2003 a partir de pesquisa de Marcelo Fróes em arquivos da Warner.
183
QUADRO 3
DISCOGRAFIA DE GAL COSTA
QUADRO 4
DISCOGRAFIA DE MARIA BETHÂNIA
QUADRO 5
DISCOGRAFIA TRANSVERSALIZADA DE
CAETANO VELOSO, GILBERTO GIL, GAL COSTA E MARIA BETHÂNIA
1976 Doces Bárbaros Doces Bárbaros Gal canta Caymmi Pássaro Proibido
Doces Bárbaros Doces Bárbaros
1988 Maria
1991 Circuladô
1993 Tropicália 2 Tropicália 2 O sorriso do gato de Alice As canções que você fez pra mim
1995 Fina Estampa Ao Vivo Mina d’ água do meu canto Maria Bethânia Ao Vivo
1999 Omaggio a Frederico e Giulietta Gal Costa canta Tom Jobim ao A força que nunca seca
Vivo
2001 Noites do Norte Ao Vivo São João Vivo De Tantos Amores Maricotinha
2002 Eu não peço desculpas Kaya’n Gan Daya Gal Bossa Tropical Maricotinha Ao Vivo
QUADRO 6
CANÇÕES REFERIDAS À BAHIA
NA DISCOGRAFIA DE CAETANO VELOSO
QUADRO 7
CANÇÕES REFERIDAS À BAHIA
NA DISCOGRAFIA DE GILBERTO GIL
QUADRO 8
CANÇÕES REFERIDAS À BAHIA
NA DISCOGRAFIA DE GAL COSTA
1999 Gal Costa canta Tom Jobim Ao Vivo (não há remissões diretas)
QUADRO 9
CANÇÕES REFERIDAS À BAHIA
NA DISCOGRAFIA DE MARIA BETHÂNIA
1993 As canções que você fez pra mim (não há remissões diretas)
QUADRO 10
CRONOLOGIA DO SHOW/DISCO/FILME OS DOCES BÁRBAROS
DOCES E BÁRBAROS
UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES
DE IDENTIDADES BAIANAS
ANEXOS
Anexo Letras – AL
Anexo Depoimentos – AD
Pg.
Anexo Letras 03
Anexo Depoimentos 94
3
ANEXO LETRAS
AL 001
Aquele Abraço
Gilberto Gil
O Rio de Janeiro continua lindo Alô, moça da favela – aquele abraço!
O Rio de Janeiro continua sendo Todo mundo da Portela – aquele abraço
O Rio de Janeiro, fevereiro e março Todo mês de fevereiro – aquele passo!
Alô, Banda de Ipanema – aquele abraço!
Alô, alô, Realengo – aquele abraço!
Alô, torcida do Flamengo – aquele abraço Meu caminho pelo mundo
Eu mesmo traço
Chacrinha continua balançando a pança A Bahia já me deu régua e compasso
E buzinando a moça e comandando a massa Quem sabe de mim sou eu – aquele abraço!
E continua dando as ordens no terreiro Pra você que me esqueceu – aquele abraço!
Alô, alô, seu Chacrinha – velho guerreiro Alô, Rio de Janeiro – aquele abraço!
Alô, alô Terezinha, Rio de Janeiro Todo povo brasileiro – aquele abraço!
Alô, alô, seu Chacrinha – velho palhaço
Alô, alô, Terezinha – aquele abraço!
AL 002
Alegria, alegria
Caetano Veloso
Caminhando contra o vento Ela pensa em casamento
Sem lenço e sem documento E eu nunca mais fui à escola
No sol de quase dezembro Sem lenço sem documento
Eu vou Eu vou
O sol se reparte em crimes Eu tomo uma coca-cola
Espaçonaves guerrilhas Ela pensa em casamento
Em Cardinales bonitas E uma canção me consola
Eu vou Eu vou
AL 003
Domingo no Parque
Gilberto Gil
O rei da brincadeira – ê, José O sorvete e a rosa – ô, José
O rei da confusão – ê João A rosa e o sorvete – ô José
Um trabalhava na feira – ê José Oi, dançando no peito – ô José
Outro na construção – ê João Do José brincalhão – ô José
AL 004
Beira Mar
Caetano Veloso / Gilberto Gil
Na terra em que o mar não bate Mar que em todo mundo exista
Não bate o meu coração Ou melhor, é o mar do mundo
O mar onde o céu flutua De um certo ponto de vista
Onde morre o sol e a lua De onde só se avista o mar
E acaba o caminho do chão
Nasci numa onda verde E a ilha de Itaparica
Na espuma me batizei A Bahia é que é o cais
Vim trazido numa rede A praia, a beira, a espuma
Na areia me enterrarei E a Bahia só tem uma
Na areia me enterrarei Costa clara, litoral
Costa clara, litoral
Ou então nasci na palma É por isso que é o azul
Palha da palma no chão Cor de minha devoção
Tenho a alma de água clara Não qualquer azul, azul
Meu braço espalhado em praia De qualquer céu, qualquer dia
Meu braço espalhado em praia O azul de qualquer poesia
E o mar na palma da mão De samba tirado em vão
AL 005
Tropicália
Caetano Veloso
Sobre a cabeça os aviões Viva a Maria-ia-ia
Sob meus pés os caminhões Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
Aponta contra os chapadões Viva a Maria-ia-ia
Meu nariz Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval No pulso esquerdo bang-bang
Eu inauguro o monumento no planalto central do país Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração balança ao samba de um tamborim
Viva a bossa-sa-sa Emite acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça Senhoras e senhores ele põe os olhos grandes sobre
Viva a bossa-sa-sa mim
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
Viva Iracema-ma-ma
O monumento é de papel crepom e prata Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Os olhos verdes da mulata Viva Iracema-ma-ma
A cabeleira esconde atrás da verde mata Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
O luar do sertão
O monumento não tem porta Domingo é o Fino da Bossa
A entrada é uma rua antiga estreita e torta Segunda-feira está na fossa
E no joelho uma criança sorridente, Terça-feira vai à roça, porém
feia e morta estende a mão O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Viva a mata-ta-ta Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
Viva a mata-ta-ta Viva a banda-da-da
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta Carmem Miranda-da-da-da-da
Viva a banda-da-da
No pátio interno há uma piscina Carmem Miranda-da-da-da-da
Com água azul de amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando uma eterna primavera
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira
entre os girassóis
14
AL 006
Rock’n’Raul
Caetano Veloso
Quando eu passei por aqui Hoje qualquer ze-mané
A minha luta foi exibir Qualquer Caetano
Uma vontade felá-da-puta Pode dizer
De ser americano Que na Bahia
(E hoje olha os mano) Meu Krig-Há Bandolo
É puro ouro de tolo
de ficar só no Arkansas (E o lobo bolo)
Esbórnia na Califórnia
Dias ruins em New Orleans Mas minha alegria
O grande mago em Chicago Minha ironia
É bem maior que essa porcaria
Ter um rancho de éter no Texas
Uma plantation de maconha no Wyoming Ter um rancho de éter no Texas
Nada de axé, Dodô e Curuzu Uma plantation de maconha no Wyoming
A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul Nada de axé, Dodô e Curuzu
A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul
Rock’n’me
Rock’n’you Rock’n’me
Rock’n’roll Rock’n’you
Rock’n’Raul Rock’n’roll
Rock’n’Raul
AL 007
Expresso 2222
Gilberto Gil
Começou a circular o expresso 2222 Dizem que parece o bonde do morro
Que parte direto de Bonsucesso pra depois Do Corcovado daqui
Começou a circular o expresso 2222 Só que não se pega e entra e senta e anda
Da Central do Brasil O trilho é feito um brilho que não tem fim
Que parte direto de Bonsucesso Oi, que não tem fim
Pra depois do ano 2000 Que não tem fim
OI, menina, que não tem fim
Dizem que tem muita gente de agora
Se adiantando, partindo pra lá Nunca se chega no Cristo concreto
Pra 2001 e 2 e tempo afora De matéria ou qualquer coisa real
Até onde essa estrada do tempo vai dar Depois de 2001 e 2 e tempo afora
Do tempo vai dar O Cristo é como que foi visto subindo ao céu
Do tempo vai dar, menina do tempo vai Subindo ao céu
Num véu de nuvem brilhante subindo ao céu
Segundo quem já andou no expresso
Lá pelo ano 2000 fica a tal
Estação final do percurso-vida
Na terra-mãe concebida
De vento, de fogo, de água e sal
De água e sal
De água e sal
Ô, menina, de água e sal
15
AL 008
Refazenda
Gilberto Gil
Abacateiro Abacateiro
Acataremos seu ato Serás meu parceiro solitário
Nós também somos do mato Nesse itinerário da leveza pelo ar
Como o pato e o leão Abacateiro
Aguardaremos Saiba que na refazenda
Brincaremos no regato Tu me ensina a fazer renda
Até que nos tragam frutos Que eu te ensino a namorar
Teu amor, teu coração
Refazendo tudo
Abacateiro Refazenda
Teu recolhimento é justamente o significado Refazenda toda
Da palavra temporão Guariroba
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão
Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Por que todo tamarindo tem
O seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro
Doce manga venha ser também
AL 009
Refavela
Gilberto Gil
Iaiá, kiriê A refavela
Kiriê, iaiá Revela o choque entre a favela-inferno e o céu
A refavela Baby-blue-rock
Revela aquela que desce o morro e vem transar Sobre a cabeça de um povo chocolate e mel
O ambiente efervescente A refavela
De uma cidade a cintilar Revela o sonho de minha alma, meu coração
A refavela De minha gente, minha semente
Revela o salto que o preto pobre tenta dar Preta Maria, Zé, João
Quando se arranca do seu barraco
Prum bloco do BNH A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó A refavela
Alegoria
A refavela Elegia, alegria e dor
Revela a escola de samba paradoxal Rico brinquedo de samba-enredo
Brasileirinho pelo sotaque Sobre medo, segredo e amor
Mas de língua internacional A refavela
A refavela Batuque puro
Revela o passo De samba duro de marfim
Com que caminha a geração Marfim da costa
Do black jovem De uma Nigéria
Do black-Rio Miséria, roupa de cetim
Da nova dança do salão Iaiá, kiriê
Iaiá, kiriê Kiriê, iaiá
Kiriê, iaiá
16
AL 010
Oriente
Gilberto Gil
Se oriente, rapaz Onde o sol se esconde
Pela constelação do Cruzeiro do Sul Vê se compreende
Se oriente, rapaz Pela simples razão de que tudo depende
Pela constatação de que a aranha De determinação
Vive do que tece Determine, rapaz
Vê se não se esquece Onde vai ser seu curso de pós-graduação
Pela simples razão de que tudo merece Se oriente, rapaz
Consideração Pela rotação da Terra em torno do Sol
Considere, rapaz Sorridente, rapaz
A possibilidade de ir pro Japão Pela continuidade do sonho de Adão
Num cargueiro do Lloyd lavando porão
Pela curiosidade de ver
AL 011
Chuck Berry Fields Forever
Gilberto Gil
Trazidos d’Àfrica pra Américas de Norte e Sul Rock and roll
Tambor de tinto timbre tanto tom tocou Capítulo um
E neve, garça branca, valsa do Danúbio azul Versículo vinte
Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou -Sículo vinte
Século vinte e um
Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o Sol Versículo vinte
Rachado em mil raios pelo machado de Xangô -Sículo vinte
E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o Século vinte e um
rhythm’n’blues
Tornaram-se os ancestrais, os pais do rock’n’roll
AL 012
Marginália 2
Gilberto Gil / Torquato Neto
Eu, brasileiro, confesso Aqui é o fim do mundo
Minha culpa, meu pecado Aqui é o fim do mundo
Meu sonho desesperado Aqui é o fim do mundo
Meu bem guardado segredo
Minha aflição Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Eu brasileiro, confesso Da fome, do medo e muito
Minha culpa, meu degredo Principalmente da morte
Pão seco de cada dia Olelê, lalá
Tropical melancolia
Negra solidão A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Aqui, o Terceiro Mundo Oh, yes, nós temos banana
Pede a benção e vai dormir Até pra dar e vender
Entre cascatas, palmeiras Olelê, lalá
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui, meu pânico e glória Aqui é o fim do mundo
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na Lua cheia
E termina antes do fim
18
AL 013
Geléia Geral
Gilberto Gil / Torquato Neto
Um poeta desfolha a bandeira Três destaques da Portela
E a manhã tropical se inicia Carne-seca na janela
Resplandente, cadente, fagueira Alguém que chora por mim
Num calor girassol com alegria Um carnaval de verdade
Na geléia geral brasileira Hospitaleira amizade
Que o Jornal do Brasil anuncia Brutalidade jardim
Ê bumba-yê-yê-boi Ê bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi Ano que vem, mês que foi
Ê bumba-yê-yê-yê Ê bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi É a mesma dança, meu boi
Plurialva, contente e brejeira
A alegria é a prova dos nove Miss linda Brasil diz “bom dia”
E a tristeza é teu porto seguro E outra moça também, Carolina
Minha terra é onde o Sol é mais limpo Da janela examina a folia
E Mangueira onde o samba é mais puro Salve o lindo pendão dos seus olhos
Tumbadora na selva-selvagem E a saúde que o olhar irradia
Pindorama, país do futuro
Ê bumba-yê-yê-boi
Ê bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi
Ano que vem, mês que foi Ê bumba-yê-yê-yê
Ê bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha a bandeira
É a mesma dança na sala E eu me sinto melhor colorido
No Canecão, na TV Pego um jato, viajo, arrebento
E quem não dança não fala Com o roteiro do sexto sentido
Assiste a tudo e se cala Voz do morro, pilão de concreto
Não vê no meio da sala Tropicália, bananas ao vento
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada Ê bumba-yê-yê-boi
Um LP de Sinatra Ano que vem, mês que foi
Maracujá, mês de abril Ê bumba-yê-yê-yê
Santo barroco baiano É a mesma dança, meu boi
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
19
AL 014
Génesis
Caetano Veloso
Primeiro não havia nada Diz que existe essa tribo
Nem gente nem parafuso De gente que toma um vinho
O céu era tão confuso Num determinado dia
E não havia nada E vê a cara da jia
Mas o espírito de tudo Gente que toma um vinho
Quanto ainda não havia Que torna os tempos imóveis
Tomou forma de uma jia Diz que existe essa gente
Espírito de tudo Dizem que tudo é sagrado
E dando o primeiro pulo Devem se adorar as jias
Tornou-se o verso e o reverso E as coisas que não são jias
De tudo que é universo Diz que tudo é segredo
Dando o primeiro pulo E não havia nada
Assim que passou a haver Espírito de tudo
Tudo quanto não havia Dando o primeiro pulo
Tempo pedra peixe dia Assim passou a haver
Assim passou a haver Diz que existe essa tribo
Dizem que existe uma tribo Gente que toma um vinho
De gente que sabe o modo Diz que existe essa gente
De ver esse fado todo Diz que tudo é sagrado
AL 015
Oslodum
Gilberto Gil
AL 016
Outras palavras
Caetano Veloso
Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca Quase João Gil Ben muito bem mas barroco como eu
Travo trava mãe e papai alma buena dicha loca Cérebro maquina palavras sentidos corações
Neca dese sono de nunca jamais nem never more Hiperestesia Buarque voila tu sais de cor
Sim dizer que sim pra Cilu pra Dedé pra Dadi e Dó Tinjo-me romântico mas sou vadio computador
Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza: Só que sofri tanto que grita porém daqui pra frente:
Outras palavras Outras palavras
Tudo seu azul tudo céu tudo azul e furtacor Parafins gatins alphaluz sexonhei la guerrapaz
Tudo meu amor tudo mel tudo amor e ouro e sol Ouraxé palávora driz okê Cris expacial
Na televisão na palavra no átimo no chão Projeitinho imanso ciumortevida vidavid
Quero essa mulher solamente pra mim mas muito mais Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me Logun
Rima pra que faz tanto mais tudo dor amor e gozo: Homenina nel parais de felicidadania:
Outras palavras Outras palavras
Nem vem que não tem vem que tem coração tamanho
trem
Como na palavra palavra a palavra estou em mim
E fora de mim quando você parece que não dá
Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir
Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha:
Outras palavras
AL 017
Toda Menina Baiana
Gilberto Gil
Toda menina baiana tem um santo, que Deus dá
Toda menina baiana tem encanto, que Deus dá
Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá
Toda menina baiana tem defeito também que Deus dá
AL 018
Milagres do povo
Caetano Veloso
Quem é ateu É no xaréu
E viu milagres como eu Que brilha a prata luz do céu
Sabe que os deuses sem Deus Que o povo negro entendeu
Não cessam de brotar Que o grande vencedor
Nem cansam de esperar Se ergue além da dor
E o coração que é soberano e que é senhor Tudo chegou sobrevivente num navio
Não cabe na escravidão Quem descobriu o Brasil
Não cabe no seu não Foi o negro que viu
Não cabe em si de tanto sim A crueldade bem de frente e ainda produziu milagres
É pura dança e sexo e glória De fé no extremo Ocidente
E paira para além da história
Ojuobá ia lá e via
Ojuobá ia lá e via Ojuobahia
Ojuobahia Xangô manda chamar
Xangô manda chamar Obatalá guia
Obatalá guia Mamãe Oxum chora
Mamãe Oxum chora Lagrimalegria
Lagrimalegria Pétala de Iemanjá
Pétala de Iemanjá Iansã-Oiá ria
Iansã-Oiá ria Ojuobahia lá e via
Ojuobahia lá e via Ojuobahia
Ojuobahia Obá
Obá
AL 019
O Veado
Gilberto Gil
O veado Ó veado
Como é lindo Quanto tato
Escapulindo, pulando Preciso pra chegar perto
Evoluindo Ando tanto
Correndo evasivo Querendo o teu pulo certo
Ei-lo do outro lado Teu encanto
Quase parado um instante Teu porte esperto, delgado
Evanescente
Quase que olhando pra gente Ser veado
Evaporante Ser veado
Eva pirante Ter as costelas à mostra
E uma delas
O veado Tê-la extraída das costas
Greta Garbo Tê-la Eva bem exposta
Garbo a palavra mais justa Tê-la Eva bem à vista
Que me gusta
Que me ocorre Eva Eva Evaporante
Para explicar um veado Eva Eva Eveado
Quando corre
Garbo o esplendor de uma dama
Das camélias
Garbo vertiqualidade
Animália
Anamélia
22
AL 020
Enquanto seu lobo não vem
Caetano Veloso
Vamos passear na floresta escondida, meu amor Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear na avenida Vamos passear escondidos
Vamos passear nas veredas no alto, meu amor Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
Há uma cordilheira sob o asfalto Vamos por debaixo das ruas
AL 021
Caminhos do Mar
Danilo Caymmi / Dudu Falcão / Dorival Caymmi
AL 022
Água de Meninos
Gilberto Gil / Capinam
AL 023
Caminho das Índias
Moraes Moreira
AL 024
Maria Bethânia
Caetano Veloso
Everybody knows that our cities were built to be destroyed Maria Bethânia, please send me a letter
You get annoyed, you buy a flat, you hide behind the mat I wish to now things
But I know she was born to do everything wrong Are getting better
with all of that Better, better, Beta, beta, Bethânia
Please, send me a letter
Maria Bethânia, please send me a letter I wish to know things are getting better
I wish to now things
Are getting better Everybody knows that it’s so hard
Better, better, Beta, beta, Bethânia to dig and get to the root
Please, send me a letter You eat the fruit, you go ahead,
I wish to know things are getting better you wake up on your bed
But I love her face ‘cause
She was given her soul to the devil it has nothing to do with all I said
but the devil gave his soul to God
Before the flood, after the blood, before you can see
She has given her soul to the devil
And bought a flat by the sea
AL 025
Queda d’água
Caetano Veloso
AL 026
Reconvexo
Caetano Veloso
Eu sou a chuva (o vento) que lança a areia do Saara Eu sou um preto norte-americano forte
Sobre os automóveis de Roma Com um brinco de ouro na orelha
Eu sou a sereia que dança Eu sou a flor da primeira música
A destemida Iara A mais velha
Água e folha da Amazônia A mais nova espada e seu corte
Sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra Sou o cheiro dos livros desesperados
Você não me pega Sou Gita Gogóia
Você nem chega a me ver Seu olho me olha mas não me pode alcançar
Meu som te cega, careta, quem é você? Não tenho escolha, careta, vou descartar
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador Quem não rezou a novena de Dona Cano
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô Quem não seguiu o mendigo Joãosinho Beija-Flor
E que não riu com a risada de Andy Warhol Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Que não, que não e nem disse que não Quem não é Recôncavo e nem pode ser reconvexo
AL 027
Remelexo
Caetano Veloso
AL 028
É proibido proibir
Caetano Veloso
AL 029
Adeus, batucada
Synval Silva
Em criança
Com samba vivia sonhando
Acordava
Estava tristonho, chorando
Jóia que se perde no mar
Só se encontra no fundo
Sambai, mocidade
Sambando se goza neste mundo
27
AL 030
Triste Bahia
Gregório de Mattos/Caetano Veloso
AL 031
It’s a long way
Caetano Veloso
AL 032
Jóia
Caetano Veloso
AL 033
Procissão
Gilberto Gil
AL 034
Domingou
Gilberto Gil/Torquato Neto
AL035
Back in Bahia
Gilberto Gil
Lá em Londres vez em quando me sentia longe daqui Cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar
Vez em quando, quando me sentia longe dava por mim Tão diferente do verde também tão lindo dos gramados
Puxando o cabelo Campos de lá
Nervoso, querendo ouvir Celly Campelo Ilha do Norte
Pra não cair naquela fossa Onde não sei se por sorte ou por castigo dei de parar
Em que vi um camarada meu de Portobello cair Por algum tempo
Naquela falta de juízo que eu não tinha Que afinal passou depressa como tudo tem de passar
Nenhuma razão pra curtir Hoje eu me sinto como se ter ido
Naquele ausência de calor, Fosse necessário para voltar
De cor, de sal, de sol, de coração pra sentir Tanto mais vivo
Tanta saudade preservada De vida mais vivida
Num velho baú de prata dentro de mim Dividida pra lá e pra cá
Digo num baú de prata por que prata é a luz do luar
Do luar que tanta falta me fazia junto com o mar
Mar da Bahia
31
AL 036
Iansã
Gilberto Gil / Caetano Veloso
AL 037
Filhos de Gandhi
Gilberto Gil
Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim
Todo o pessoal Chama o pessoal
Manda descer pra ver Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi Filhos de Gandhi
Iansã, Iemanjá, chama Xangô Oh! Meu Deus do céu, na terra é carnaval
Oxóssi também Chama o pessoal
Manda descer pra ver Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi Filhos de Gandhi
AL 038
Sol Negro
Caetano Veloso
AL 039
Divino, maravilhoso
Caetano Veloso / Gilberto Gil
Atenção Atenção
Ao dobrar uma esquina Tudo é perigoso
Uma alegria Tudo é divino maravilhoso
Atenção Atenção
Precisa ter olhos firmes Para as janelas no alto
Pra esse sol, para essa escuridão
Atenção
Atenção Ao pisar o asfalto mangue
Tudo é perigoso Atenção
Tudo é divino maravilhoso Para o sangue sobre o chão
Atenção
Para a estrofe e pra o refrão
Pra o palavrão, para a palavra de ordem
Atenção
Para o samba exaltação
33
AL 040
Falsa baiana
Geraldo Pereira
AL 041
Modinha para Gabriela
Dorival Caymmi
AL 042
Ponto do Guerreiro Branco
D. P.
AL 043
Ponto de Iansã
D. P.
AL 044
Oração à Mãe Menininha
Dorival Caymmi
AL 045
As Ayabás
Caetano Veloso / Gilberto Gil
AL 046
A Bahia te espera
Herivelto Martins / Chianca de Garcia
Para te buscar
Nossos saveiros já partiram para o mar
Nossas morenas, roupas novas vão comprar
Se tu vieres, virá
Provar o meu vatapá
Se tu vieres, viverás, nos meus braços
A Festa de Iemanjá
AL 047
Alegre Menina
Jorge Amado / Dori Caymmi
AL 048
O que é que a baiana tem?
Dorival Caymmi
AL 049
Isto é bom
Xisto Bahia
Isto é bom...
39
AL 050
Na baixa do sapateiro
Ary Barroso
AL 051
Bahia
Ary Barroso
AL 052
O Vento
Dorival Caymmi
Curimã, ê
Vamos chamar o vento Curimã lambaio
Vamos chamar o vento Curimã, ê
Curimã lambaio
Vento que dá na vela
Vela que leva o barco
Barco que leva gente
Gente que pega o peixe
Peixe que dá dinheiro
Curimã
AL 053
Vatapá
Dorival Caymmi
AL 054
Rainha do Mar
Dorival Caymmi
AL 055
Requebra que dou um doce
Dorival Caymmi
AL 056
Saudade da Bahia
Dorival Caymmi
AL 057
Você já foi à Bahia?
Dorival Caymmi
AL 058
Lá vem a baiana
Dorival Caymmi
AL 059
Sábado em Copacabana
Dorival Caymmi
AL 060
Tem francesa no morro
Assis Valente
AL 061
E bateu-se a chapa
Assis Valente
AL 062
Alegria
Assis Valente / Durval Maia
AL 063
Brasil Pandeiro
Assis Valente
Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor Brasil, esquentai vossos pandeiros
Eu fui à Penha Iluminai os terreiros
Fui pedir à padroeira para me ajudar Que nós queremos sambar!
Salve o Morro do Vintém Há quem sambe diferente
Pendura-Saia, que eu ver Noutras terras, outra gente
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro Um batuque de matar
para o mundo sambar
Batucada reuni nossos valores
O tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada Pastorinhas e cantores
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato Expressão que não tem par
Vai entrar no cuscuz Oh! Meu Brasil!
Acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de Brasil, esquentai vossos pandeiros
Iôiô e Iáiá Iluminai os terreiros
Que nós queremos sambar!
AL 064
Cada tempo em seu lugar
Gilberto Gil
AL 065
Buda nagô
Gilberto Gil
AL 066
Baianada
Gordurinha
Um baiano, um coco
Dois baianos, dois cocos
Três baianos, uma cocada
Quatro baianos, uma baianada
(Vamo lá)
AL 067
Outros bárbaros
Gilberto Gil
AL 068
Esotérico
Gilberto Gil
AL 069
Os mais doces bárbaros
Caetano Veloso
AL 070
Fé cega, faca amolada
Milton Nascimento / Ronaldo Bastos
Agora não pergunto mais prá onde vai a estrada Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia
Agora não espero mais aquela madrugada Beber o vinho e renascer na luz de todo dia
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, A fé, a fé, paixão e fé, a fé
Vai ser faca amolada Faca amolada
Um brilho cego de paixão e fé O chão, o chão, o sal da terra, o chão
Faca amolada Faca amolada
Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranqüilo Deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia
Deixar o seu amor crescer e ser muito tranqüilo Deixar o seu amor crescer na luz de cada dia
Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar Vai ser, vai ser, vai ter de ser
Faca amolada Vai ser muito tranqüilo
Irmão, irmã, irmã, irmão de fé Um brilho cego de paixão e fé
Faca amolada Faca amolada
AL 071
Nós, por exemplo
Gilberto Gil
AL 072
Um índio
Caetano Veloso
AL 073
Odara
Caetano Veloso
Deixa eu dançar
Pro meu corpo ficar odara
Minha cara, minha cuca ficar odara
Deixa eu cantar
Que é pro mundo ficar odara
Pra ficar tudo jóia rara
Qualquer coisa que se sonhara
Canto e danço que dará
AL 074
Patuscada de Gandhi
Afoxé Filhos de Gandhi
AL 075
Chuva, suor e cerveja (rain, sweat and beer)
Caetano Veloso
AL 076
Sampa
Caetano Veloso
Alguma coisa acontece no meu coração Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
Da dura poesia concreta de tuas esquinas Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
Da deselegância discreta de tuas meninas Tuas oficinas de florestas
Ainda não havia para mim Rita Lee Teus deuses da chuva
A tua mais completa tradução Panaméricas de Áfricas utópicas
Alguma coisa acontece no meu coração Túmulo do samba
Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto E novos baianos te podem curtir numa boa
Chamei de mau gosto o que vi, de maus gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Por que és o avesso do avesso do avesso do avesso
53
AL 077
Terra
Caetano Veloso
Terra, Terra...
54
AL 078
Adeus, meu Santo Amaro
Caetano Veloso
AL 079
Tudo de novo
Caetano Veloso
Minha mãe, meu pai, meu povo Grande como a dor do mundo
Eis aqui tudo de novo Me acompanha aonde eu vou
A mesma grande saudade Meu povo, sofremos tanto
A mesma grande vontade Mas sabemos o que é bom
Minha mãe, meu pai, meu povo Vamos fazer uma festa
Noites assim como esta
Minha mãe me deu ao mundo Podem nos levar pra o tom
De maneira singular
Me dizendo uma sentença
Pra eu sempre pedir licença
Mas nunca deixar de entrar
Meu pai me mandou pra vida
Num momento de amor
E o bem daquele segundo
55
AL 080
Sonho Meu
D. Ivone Lara / Délcio Carvalho
AL 081
Olhos Verdes
Vicente Paiva
AL 082
A Preta do acarajé
Dorival Caymmi
AL 083
O bater do tambor
Caetano Veloso
Toda eletricidade
Trio elétrico e o seu gerador
Toda energia quer magnetiza a cidade
Pára pra deixar ouvir o bater do tambor
Mão de preto no couro
E o Brasil grita em coro
Ê mori mori ô babá
Ê mori mori ô
57
AL 084
Oração ao Tempo
Caetano Veloso
AL 085
Logunedé
Gilberto Gil
AL 086
Faceira
Ary Barroso
AL 087
Bahia com H
Dennis Brian
AL 088
Massa real
Caetano Veloso
60
AL 089
Axé babá
Gilberto Gil
Ôôôôôôô
Axé Babá
Ôôôôôôô
Axé Babá
AL 090
Palco
Gilberto Gil
AL 091
Coqueiro de Itapoã
Dorival Caymmi
AL 092
Um canto de afoxé para o bloco do Ilê
Caetano Veloso / Moreno Veloso
Ilê Aiyê
Como você é bonito de se ver
Ilê Aiyê
Que beleza mais bonita de se ter
Ilê Aiyê
Sua beleza se transforma em você
Ilê Aiyê
Que maneira mais feliz de viver
AL 093
Andar com fé
Gilberto Gil
AL 094
Afoxé é
Gilberto Gil
AL 095
Bloco do prazer
Moraes Moreira / Fausto Nilo
AL 096
Filosofia Pura
Roberto Mendes / Jorge Portugal
Quanto mais a gente ensina Pois trocar vida com vida é somar na dividida
Mais aprende o que ensinou Multiplicando o amor
Ê á, Ê ô Pra que o sonho dessa gente
Ê á, Ê ô Não seja mais afluente
E o desejo da menina Do medo em que desaguou
Quando seu corpo fulmina
Acende o fogo do amor
Ê á, Ê ô
Ê á, Ê ô
Ê á, Ê ô
E a sensação divina de dominar quem domina
É que cura qualquer dor
Ê á, Ê ô
Ê á, Ê ô
AL 097
Quero ir à Cuba
Caetano Veloso
AL 098
Salva Vida
Caetano Veloso
AL 099
Ele e eu
Gilberto Gil
AL 100
Elá, poeira
Gilberto Gil / Banda Um
AL 101
Lady Neide
Gilberto Gil / Antônio Risério
Lady Neide
Pivete dengosa
Candeia de azeite
Escurinha gostosa
AL 102
Bahia de todas as contas
Gilberto Gil
AL 103
Origens
Tom Jobim
Gabriela
Sempre Gabriela
67
AL 104
Zumbi, a felicidade guerreira
Gilberto Gil / Waly Salomão
AL 105
A Beira e o Mar
Roberto Mendes / Jorge Portugal
AL 106
Tempo Rei
Gilberto Gil
AL 107
A Mão da limpeza
Gilberto Gil
AL 108
O revolver do meu sonho
Frejat / Waly Salomão / Gilberto Gil
AL 109
Oração pela libertação da África do Sul
Gilberto Gil
Já que vermelho tem sido todo sangue derramado Sabei que o papa já pediu perdão
Todo corpo, todo irmão chicoteado Sabei que o papa já pediu perdão
Iô Varrei do mapa toda escravidão
Senhor da selva africana Varrei do mapa toda escravidão
Irmã da selva americana
Nossa selva brasileira de Tupã
70
AL 110
Jubiabá
Gilberto Gil
AL 111
Ia Omin Bum
D. P.
Iá Omin Bum
Omirô Dorixá O Iê Iê
Iá Omin Bum Ê
Omirô Dorixá O Iê Iê
71
AL 112
Depois que o Ilê passar
Miltão
AL 113
Ofá
Roberto Mendes / Jota Velloso
AL 114
E a terra tremeu
Sacramento
AL 115
Baticum
Gilberto Gil / Chico Buarque
Bia falou “ah, claro que eu vou” Aquela noite quem tava lá na praia viu
Clara ficou até o sol raiar E quem não viu jamais verá
Dadá também saracoteou Mas se você quiser saber
Didi tomou o que era prá tomar A Warner gravou e a Globo vai passar
Ainda bem que Isa me arrumou
Um barco bom prá gente chegar lá Bia falou “ah, claro que eu vou”
Lelê também foi e apreciou Clara ficou até o sol raiar
O baticum lá na beira do mar Dadá também saracoteou
Didi tomou o que era prá tomar
Aquela noite tinha do bom e do melhor Isso é que é, Pepe se chegou
Tô lhe contando que é prá lhe dar água na boca Pelé pintou
Só que não quis ficar
Veio Mane da Consolação O campeão da fórmula um
Veio o barão de lá do Ceará No baticum lá na beira do mar
Um professor falando alemão
Um avião veio do Canadá Aquela noite tinha do bom e do melhor
Monsieur Dupont trouxe o dossier Tô lhe contando que é prá lhe dar água na boca
E a Benetton topou patrocinar
A Sanyo garantiu o som Zeca pensou: “antes que era bom”
Do baticum lá na beira do mar Mano cortou: “brother, que é que há”
Foi à GE quem iluminou
Aquela noite quem tava lá na praia viu E a MacIntosh entrou com o vatapá
E quem não viu jamais verá O JB fez a crítica
Mas se você quiser saber E o cardeal deu ordem prá fechar
A Warner gravou e a Globo vai passar O Carrefour, digo, o baticum
Da Benetton, não, da beira do mar
73
AL 116
Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois
Gilberto Gil
Foi Vemos
Minha mãe se foi Vivo
Minha mãe se foi O brilho da tua luz
Sem deixar de ser Iluminando nossos corações
Oraiêiê ô Ouve nossa oração
Escuta a demanda de cada um
Dói Manda teu doce axé
Minha alma ainda dói Recomenda ao santo o teu candomblé
Minha alma ainda dói Fala com cada um
Sem deixar doer Fala com cada um
Oraieiê ô Fala com cada filho fiel
Canta prá todos nós
Foi Derrama sobre todos
Tão boa prá nós O teu mel
Tão boa prá nós
Não deixa de ser Foi
Oraieiê ô Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Mãe Sem deixar de ser
Do orum do céu A Rainha do Trono Dourado
Do orum do céu De Oxum
Me ajuda a viver Sem deixar de ser
Neste Ilê Aiyê Mãe de cada um
Dos filhos prá quem eternamente
Rara Sempre haverá
Ouro Mãe Menininha
Guarda o tesouro prá nós Mãe Menininha
Mãe Menininha
Riso Mãe Menininha
Puro Mãe Menininha
Porto Seguro prá nós
74
AL 117
Branquinha
Caetano Veloso
AL 118
Meia lua inteira
Carlinhos Brown
AL 119
Salve as folhas
Gerônimo / Ildásio Tavares
AL 120
A verdadeira baiana
Caetano Veloso
AL 121
O cu do mundo
AL 122
Serafim
Gilberto Gil
AL 123
Quero ser teu funk
Gilberto Gil
AL 124
Louvação à Oxum
Roberto Mendes / Ordep Serra
Oxum que cura com água fresca Ipondá que se oculta no escuro
Sem gota de sangue De longe me chega a cintilação dos seus cílios
Dona do oculto Oxum é água que aparta a morte
A que sabe e cala Oxum melhora a cabeça ruim
No puro frescor de sua morada A Yê Yê orarei
Oh! Minha Mãe, Rainha dos Rios Bendita onda que inunda a casa do traidor
Água que faz crescer as crianças
Dona da brisa de lagos Oxum eu bendigo na boca do dia
Corpo divino Oxum que eu adoro
Sem osso nem sangue Rica de dons
Riqueza dos rios
Orarei a Oxum Oxum que chamei
Que adoro Oxum, sei que sim Que não chamei
Xinguinxi comigo Adé Okô
Senhora das águas
AL 125
É d’ Oxum
Gerônimo / Vevé Calazans
AL 126
Revolta Olodum
José Olissam / Domingos Sérgio
AL 127
Nossa Gente
Roque Carvalho
Avisa lá que eu vou chegar mais tarde oh yeah Os deuses igualando todo encanto, toda a transa
Vou me juntar ao Olodum que é da alegria Os rataplãs dos tambores gratificam
É denominado de vulcão Quem fica não pensa em voltar
O estampido ecoou nos quatro cantos Afeição à primeira vista
Do mundo O beijo – o batom que não vai mais soltar
Em menos de um minuto A expressão do rosto identifica
Em segundos Avisa lá, avisa lá
Nossa gente é quem bem diz Avisa lá ô, ô
É quem mais dança Avisa lá que eu vou
Os gringos se afinavam na folia
80
AL 128
Lavagem do Bonfim
Gilberto Gil
AL 129
Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu
David Côrrea/Paulinho Carvalho/Carlos Sena/Bira do Ponto
AL 130
Eu e água
Caetano Veloso
AL 131
Onde o Rio é mais baiano
Caetano Veloso
AL 132
Opachorô
Gilberto Gil
AL 133
De Ouro e Marfim
Gilberto Gil
AL 134
Pela internet
Gilberto Gil
AL 135
Quixabeira
D.P./Carlinhos Brown/Bernard von Der Weid/Afonso Machado
AL 136
Doce de carnaval (candy all)
Gilberto Gil
AL 137
Pretinha
Gilberto Gil / Kátia Falcão / João Donato
AL 138
Aquele frevo axé
Caetano Veloso / César Mendes
Que fazer, meu pensamento está preso aquele carnaval Meu amor, ando na praça vazia
Volto a pisar este chão E espero o sol se pôr
Enceno um drama banal Deixo o clarão se extinguir
Tento refazer a trama Por trás da mão do poeta
Mas o desfecho é igual Nosso amor não vai sumir
E você Veja onde a gente se achou
Será que canta calada aquele frevo axé Estrelas já vão, luzir
Que não me deixa dormir Na noite da Bahia preta
Ou terá perdido a fé Queria tanto você aqui
No que ficou prometido
Sem nos falarmos sequer?
AL 139
Aguarte Agora
Carlinhos Brown / César Mendes
AL 140
Vida boa
Armandinho / Fausto Nilo
Lua no mar, vendo a canoa passear Olê, olá, que é prá canoa não virar
Que a vida boa passa no real que há E a vida boa é na cabeça vadiar
Coração, é a vida boa Coração é a vida boa
Na paz depois Na paz depois
Depois na paz eu quero paz Depois na paz eu quero paz
Aonde o sonho vai, meu sonho vai Aonde você vai, meu sonho vai
Meus sonhos vão Meus sonhos são
A parte quente de repente tá na mão A parte quente que pressente a sua mão
Meu coração Meu coração
Você que faz a minha vida variar Você que faz a minha vida variar
AL 141
Abracei o mar
Gerônimo / Vevé Calazans
AL 142
13 de maio
Caetano Veloso
AL 143
Recôncavo
Márcio Valverde
AL 144
Maricotinha
Dorival Caymmi
AL 145
Feitiço da Vila
Noel Rosa / Vadico
AL 146
Capitão do Mato
Vicente Barreto / Paulo César Pinheiro
AL 147
Yá Yá Massemba
Roberto Mendes / Capinam
AL 148
Beleza Pura
Caetano Veloso
AL 149
Haiti
Caetano Veloso / Gilberto Gil
AL 150
Cabelo raspadinho
Tenisson Del Rey / Edu Casanova
AL 151
Bahia, minha preta
Caetano Veloso
ANEXO DEPOIMENTOS
95
DEPOIMENTO 01
No Rio, foi anunciado que Nara sairia do show “Opinião” e seria substituída por uma
jovem cantora de 18 anos, que a própria Nara tinha conhecido e escolhido na Bahia.
Naquela noite, na última semana de 1964, subi as escadas rolantes que não rolavam até o
teatro de Arena e me juntei à multidão para a reestréia de “Opinião”, o maior sucesso
teatral do ano. Com os cabelos crespos puxados para trás e com as mesmas calças cáqui e
camisa masculina vermelha de Nara, com seu nariz adunco e suas mãos de dedos longos e
expressivos, vi Maria Bethânia pela primeira vez. Como poucos, achei-a de estranha e
misteriosa beleza, entre muitos que se espantaram com a dureza de seus traços. (...) Maria
Bethânia se tornou uma estrela da noite para o dia no Rio de Janeiro, no início de 1965.
Tudo nela era diferente de todas as outras, muito diferente: voz, figura, gestos, sexualidade,
sotaque baiano. Atitude.
Nelson Motta. In: MOTTA, Nelson. Noites Tropicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
96
DEPOIMENTO 02
Porém, já no palco, quando sentiu que grande parte da platéia estava do seu lado, Gal
se soltou. Só quem conhecia há mais tempo a tímida e calada Gracinha, que cantava bossa
nova como ninguém, poderia perceber a enorme transformação que estava acontecendo
com aquela garota, vestida com uma túnica indiana vermelha, bordada com espelhos de
metal e colares de miçangas – outro modelo de Regina Boni. Gal cantou emocionada e
ofegante, dando gritos à Janis Joplin, enquanto andava pela passarela que circundava o
fosso da orquestra.
DEPOIMENTO 03
“Quando eu cheguei no Rio de Janeiro, em 65, foi Copacabana que me recebeu com
seu cheiro de batata-frita e gasolina, as suas tardes de raios e trovões inesperados e as suas
noites inesquecíveis, mágicas de puro glamour. O Teatro Opinião onde estreei ao lado de
João do Valle e Zé Kéti fica em Copacabana, e também as boites todas da cidade, a
maioria pelo menos. E eu cantei em quase todas elas, e eu ficava fascinada com a
novidade, a riqueza da noite em Copacabana. Podia-se ver na boite Cangaceiro Elizeth
Cardoso, Nara Leão no Barroco, Chico Buarque e MPB 4 no Arpege, Murilinho de
Almeida no Girau, Silvinha Telles, Rosinha de Valença no Zun Zun, ou no Bateau... Quer
dizer, isso é muito pra uma menina chegando e poder assistir tudo isso e participar de tudo
isso. E eu cantei em quase todas as casas, em quase todas as boites eu cantei, de
Copacabana, e eu adorava fazer shows de boite. E eu adorava fazer por que público de
boite é um pouquinho diferente. Não é um público assim de teatro ou de uma casa de
espetáculo. É um público mais mole, mais molinho, a gente leva melhor assim, por que
bebe um pouquinho, namora muito e esquece um pouco da cantora lá no canto dela. E foi
bacana pra mim porque eu aprendi tudo cantando em boite. Aprendi com os grandes
músicos que trabalhavam nesses espetáculos, aprendi com os grandes compositores,
poetas, cantores que faziam esses shows. Eu adorava, me lembro bem disso, de cantar
assim, a sensação mesmo assim: eu estou aprendendo o meu ofício. A disciplina e o
prazer(...)”
DEPOIMENTO 04
“É claro que eu não me via realizando essa aventura poética em meu próprio nome.
O senso de grupo que eu tinha era imensamente forte. Quando Rogério, ouvindo-me
argumentar entusiasmado, provocou-me dizendo que eu era apenas um apóstolo e que Gil é
que era o profeta, pareceu-me que ele lia meus pensamentos mais recônditos. Eu me sentia
responsável por uma grande e bela tarefa, pois Gil e Gal (e também Bethânia, apesar de seu
grito de independência) necessitariam sempre de minha orientação, direta ou indireta, mas
a verdadeira mensagem poética se daria através do grupo – e a partir de Gil. Nunca foi, em
nenhum nível, obscuro para mim que o grupo coeso ao qual eu pertencia era formado por
nós quando, acontecesse o que acontecesse (...) Duda e Wally e Torquato e mesmo Rogério
foram meus amigos num grau de intimidade que minhas relações pessoais com Gil ou Gal
nunca atingiram. Mas a visão que eu tinha da unidade de destino de nós quatro, a certeza
de que éramos companheiros num nível de luta que os outros não conheceriam, destacava
o quarteto. Talvez fosse apenas a captação da vocação para o estrelato – e quantas vezes, ai
de mim, passados muitos anos desses dias heróicos, não pensei que talvez tudo não tivesse
passado de uma mera atração para o estrelato mais vazio! –, mas o fato é que eu via uma
luz intensa sobre nós que não parecia pousar sobre os outros. Eu não vivia o que se me
apresentava como o preenchimento de ambições individuais minhas. Na verdade, minha
convicção íntima era de que, uma vez atingido o ponto de não-retorno, eu deixaria os três à
sua própria sorte – Gil, o verdadeiro músico; Gal, a verdadeira cantora; Bethânia, a
verdadeira estrela dramática do canto – e procuraria meu caminho como cineasta ou na
literatura. “Em um ano, um ano e meio, estarei livre”, pensava.”.
Caetano Veloso, in: VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 245-6.
ANEXO NOTÍCIAS
O início das celebrações dos 500 anos do Brasil começa com um europeu, o tenor
italiano Luciano Pavarotti, abrindo os festejos, este sábado, dia 8, em Salvador,
com um concerto composto por músicas brasileiras, acompanhado das cantoras
Gal Costa e Maria Bethânia.
Pavarotti garante que vem ouvindo há meses discos de Gal e Bethânia, com quem
vai cantar na Marina de Salvador.
"São duas vozes magníficas, duas cantoras muito completas, que conquistaram
um êxito merecido", elogiou o tenor.
04-12-2002
"Da primeira vez sugeri porque sentia saudade de nosso começo, quando
fazíamos juntos na Bahia o show "Nós, por Exemplo". Aqui, foi um convite de fora,
que inclui a alegria do reencontro. É muita emoção. Todo mundo está mais velho,
mas o tempo não passa só para o mal", descreve Bethânia, 56 anos.
Eles admitem que encontros grupais são raríssimos para eles. "É mais comum
nos encontrarmos de três a três, mas coincidirem os quatro é raro", diz Gil, ao que
Gal atalha, rindo: "Sempre foi três a três".
O roteiro não deve incluir surpresas. "Um dos conceitos da reunião foi que
iríamos recuperar o repertório histórico da gente, não só dos Doces Bárbaros, mas
principalmente deles", diz Gil.
"Eu preferia que houvesse mais inéditas, mas saí do show com Jorge Mautner
para o avião e do avião para o ensaio dos Doces Bárbaros", lamenta Caetano.
"Vou fazer tudo para que o Brasil dê certo. Nós, cantores, temos chance de
fortalecer isso, é o que pode nos salvar", diz Bethânia, que em seu show individual
no projeto Pão Music incluiu, em tom de prece, a canção "Sonho Impossível",
usada pela campanha de Lula sob sua autorização. "Com Lula no poder, o povo
se sente no poder", concorda Gal.
"Os Doces Bárbaros eram muito festa e celebração, no tom, nas roupas, nas
músicas. A gente já se considerava bastante medalhão na época, agora somos
mais ainda", afirma Caetano, que teve episódio de conflito com o comando petista
quando apareceu cantando "Amanhã" na campanha, sem tê-la autorizado.
"Fiz questão de dizer que estava neutro nessa eleição. Minha voz foi usada sem
autorização, mas depois José Dirceu me ligou, se desculpou e explicou que foi
uma confusão", contemporiza.
Os figurinos hippies de 76 não serão repetidos, eles prometem. "Isso vai ser
livre. Gal até brincou, perguntou se ia ter farda", ri Bethânia. "Os figurinos eram
fantasiosos, eu tinha uma roupa amarela linda. Algumas eram bonitas, outras eu
achava feias já na época", diz Caetano. "Eu usava um collant branco", evoca Gil,
levando os quatro às gargalhadas.
"Não, não, não. Estamos harmônicos", sentencia Gal. "Quando um não quer,
quatro não brigam", dita Gil. "Este grupo de pessoas não é muito de briga, não",
exagera Caetano.
Citada a palavra ego, Caetano se inflama, eleva o tom de voz e interpreta o solo
exasperado de toda entrevista: "Esse negócio de ego é uma coisa muito cafona.
Pensam que porque o cara é artista tem ego enorme, quer derrubar o outro. Não,
isso é burrice, ignorância, cafonice intelectual".
Gil tenta discordar: "O ego é um pouco um elemento, um Red Bull [bebida
energética] do "star system'". Caetano captura: "Ego é só para vender disco e
jornal. Não serve para nada".
O palco dirá, no fim de semana.
(© Folha de S. Paulo)
Doces Bárbaros foi o nome que Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria
Bethânia adotaram ao se reunirem em turnê nacional que se transformou no
álbum duplo homônimo de 1976.
Os discos ao vivo ainda eram raros na época, e o registro sonoro deficiente era
compensado por farto material inédito. Havia releituras como a do clássico antigo
"Atiraste uma Pedra" e uma maioria de canções compostas especialmente por
Caetano e Gil, sozinhos ou em dupla.
Caso raro, Bethânia e Gal apareciam como autoras -uma dividindo "Pássaro
Proibido" com o irmão e a outra homenageando Rita Lee em "Quando", composta
com Caetano e Gil. A lista de canções que devem ser relidas trazia "Chuck Berry
Fields Forever", "Esotérico", "Um Índio" e o hino hippie/tropicalista de (re)tomada
de poder "Os Mais Doces Bárbaros".
(© Folha de S. Paulo)
Caetano, Gil, Gal e Bethânia se reúnem para duas únicas apresentações, uma em
São Paulo, outra no Rio. Os shows serão gravados e podem virar CD e DVD
São Paulo - Vinte e seis anos depois de sua criação - e de seu fim -, o conjunto
Os Doces Bárbaros volta à cena, para duas únicas apresentações. No sábado, o
grupo, formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia,
canta na Praça da Paz do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a partir das 18
horas, com entrada franca. No domingo, sempre de graça, os quatro baianos
reprisam o espetáculo no Rio de Janeiro, no Posto 3 da Praia de Copacabana,
com o espetáculo começando às 19h30.
O registro do show original dos Doces Bárbaros é, de fato, precário. Até pelas
condições técnicas da época, a qualidade da gravação ao vivo não ficou tão boa
quanto poderia. Mas foi um sucesso. O elepê duplo bateu recordes de venda. O
show lotou casas de espetáculo em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto
Alegre, Rio e Salvador. Mais apresentações houvesse, mais casas ficariam
lotadas. No entanto, o grupo se desfez para que seus integrantes seguissem com
as respectivas carreiras.
A idéia de juntar os quatro foi de Maria Bethânia - logo dela, que não gosta de
participar de grupos, movimentos. "Pois é, nem no disco da Tropicália ela entrou,
por ser avessa a esses rótulos", lembrou Caetano Veloso. "É, mas cada um de
nós tinha já sua história definida e eu tinha saudade do tempo em que tocávamos
juntos, em Salvador", Bethânia explica.
Serão, ao todo, oito ensaios, com Gilberto Gil assumindo a responsabilidade dos
arranjos - um diretor musical. "Como sempre foi, desde o nosso início, lá na
Bahia", diz ele. "Eu sou o que mais transita nesse campo específico de músico."
Bethânia explica: "Ele sabe traduzir muito bem o que nós queremos, sabe
transformar nossas intenções musicais em realidade."
Esse é um dos motivos pelos quais a banda que vai acompanhar o grupo nos
dois shows do fim de semana é, basicamente, a de Gilberto Gil, formada por Jorge
Gomes (bateria), Arthur Maia (contrabaixo), Gustavo de Dalva e Leonardo Reis
(percussões), Claudinho Andrade (teclados), Sérgio Chiavazzoli (guitarra) e Carlos
Malta (sopro). Dois músicos da banda de Maria Bethânia também participam - o
violonista Jaime Alem e o pianista João Carlos Coutinho. Por lembrança de
Bethânia, completa a formação a percussionista Mônica Millet. Vem a ser a única
instrumentista que participou da banda de 1976.
Para o reencontro, Gilberto Gil compôs uma canção nova, chamada Outros
Bárbaros. Caetano Veloso gostaria de ter composto, também, música nova. "Mas
não tive tempo", diz ele. "Queria que houvesse umas quatro ou cinco novidades;
queria compor uma canção sozinho, escrever outra em parceria com o Gil... mas
estive gravando o disco (o CD recém-lançado Eu não Peço Desculpa) e fazendo
shows com o Jorge Mautner, depois fui para Nova York e não consegui nem voltar
a tempo para o primeiro ensaio dos Doces Bárbaros." E Bethânia faz questão de
cantar uma música que não estava no roteiro original, Santo Antônio, de seu
sobrinho J. Velloso - mas a música não foi feita especialmente para o show e não
é inédita.
A idéia, de fato, era resgatar o repertório original. "Eu até achei, quando vi o
roteiro, que todas as canções, e quase só elas, fossem do primeiro show dos
Doces Bárbaros", diz Caetano. Mas, ao longo dos últimos anos, os quatro
músicos, dois a dois, fizeram vários trabalhos juntos - Gal e Bethânia, Gil e
Caetano, Caetano e Bethânia e assim por diante. Alguma coisa desses encontros
deverá ser mostrada no espetáculos. Ainda assim, Gil explica, na maior parte do
tempo, os quatro estarão em cena.
Juntos, como poucas vezes estiveram desde aquele 1976. Nos anos 90,
reuniram-se, em Londres; depois, desfilaram juntos - na qualidade de
homenageados - na Mangueira. Há três anos, subiram ao trio elétrico que, no
carnaval baiano, fazia homenagem a Jorge Amado. "Não era um trio elétrico, era
um trio alegórico", Gil brinca. "Nós nos vemos sempre, mas não os quatro",
continua ele. "Encontro mais Caetano; Gal é minha vizinha em Salvador, vai
sempre à minha casa" - e os irmãos Caetano e Bethânia encontram-se na cidade
natal, Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano.
Dessa vez, a idéia do reencontro não foi deles, mas do grupo Pão de Açúcar,
que promoveu shows individuais de cada um, sempre no Ibirapuera e em
Copacabana, ao longo do ano, para culminar com a reedição do grupo.
"Aceitamos o convite", diz Gil. "Mas eu não sabia que haveria um DVD; fiquei
sabendo há pouco." Caetano acrescenta: "Eu não sabia nem do CD. Acabo de
saber."
Em 1976, quando os Doces Bárbaros excursionavam, houve episódios menos
alegres do que a música no palco faria pressupor. No pior deles, a polícia invadiu
os quartos de hotel onde os integrantes estavam hospedados, pretensamente em
busca de drogas. Vivia-se, ainda, tempo de repressão política, e os baianos -
Caetano e Gil haviam voltado do exílio cinco anos antes - eram olhados com
muita, muita desconfiança.
Quando alguém lembra o episódio, Gal Costa reage: "Que horror, a gente não
lembrou disso, não" - eles estão em festa. E Caetano não vê o primeiro encontro
como uma manifestação política: "Já naquela época nossa idéia era de
celebração, já era uma brincadeira sobre nós mesmos, nós já éramos medalhões."
"É, mas agora vou cantar Viramundo, que é música um pouco mais arretada",
ela diz. Viramundo é canção de Gil ainda dos anos 60, uma composição que pode
ser enquadrada no modelo da então chamada música de protesto: "Sou
viramundo virado/ Na roda das maravilhas/ Cortando a faca e facão/ Os desafios
da vida/ Gritando para assustar/ A coragem da inimiga/ Pulando pra não ser preso/
Pelas cadeias da intriga/ Prefiro ter toda vida/ A vida como inimiga/ A ter na morte
da vida/ Minha sorte decidida" - para terminar assim: "Ainda viro esse mundo/ Em
festa, trabalho e pão."
Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Gilberto Gil. Sábado, às 18 horas.
Entrada franca. Praça da Paz/Parque do Ibirapuera. Avenida Pedro Álvares
Cabral, s/n.º, São Paulo, tel. 0800-115060. Patrocínio: Grupo Pão de Açúcar.
(Mauro Dias)
(© estadao.com.br)
Maria Bethânia contou que Gilberto Gil continua o mesmo de 1976, fazendo o
papel de diretor musical dos Doces Bárbaros. "Desde lá, na Bahia, ele já dirigia o
grupo musicalmente. Qualquer dúvida, sempre perguntávamos ao Gil."
Gil, Gal e Bethânia descobriram que não sabiam sobre origem do nome "Doces
Bárbaros" e ficaram surpresos quando Caetano revelou que o nome surgiu de
uma conversa com Jorge Mautner, na praia de Ipanema. "Contei ao Jorge que
iríamos nos reunir e sugeri o nome Doces Bárbaros. E ele me disse: `Jesus, o
Nazareno, ele sim é que é o doce bárbaro. Os outros bárbaros invadiram Roma de
maneira violenta e não conseguiram um milésimo do que Jesus conseguiu para a
decadência do Império Romano, com a doçura, como o perdão e a compaixão´." E
Caetano ainda ressaltou: "É por isso que coloquei Jesus na letra da música "Os
Mais Doces Bárbaros", por causa de Mautner.
Entre as músicas preferidas do grupo estão "Os mais Doces Bárbaros", "O seu
amor", "Gênesis", "Pé quente, cabeça fria", "Chuckberry fields forever" e "Fé cega,
faca amolada". Os quatro prometem cantar as principais músicas do disco "Doces
Bárbaros" e recuperar algumas canções de cada um.
O reencontro dos Doces Bárbaros, grupo formado em 1976 por Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, em um show no parque do Ibirapuera,
em São Paulo, foi daqueles momentos que vão ficar marcados na memória e na
história da MPB. Até o temporal que atingiu a cidade no final do show pareceu ter
vindo para abençoar os cantores.
Grande parte do repertório foi tirada do LP duplo lançado pelo grupo, em 1976,
pela Philips, como a música "Fé Cega, Faca Amolada", de Milton Nascimento e
Ronaldo Bastos, que abriu o show do Ibirapuera cantada pelos quatro juntos -
assim como no disco.
Já o visual estava bem distante dos tempos hippies dos Bárbaros: Caetano e Gal
estavam de branco -ela com um conjunto de calça e blusa da Maria Bonita e uma
capa toda recortada, e ele com uma camisa de piquê de uma linha lançada pelo
ator norte-americano John Malkovich e uma calça com bolsos na frente.
Gil estava à vontade em calça e camisa azuis de Armani, e Maria Bethânia estava
de calça e camisa verdes, compradas na Europa, com um colete de paetê azul.
Bethânia iniciou sua vez sozinha no palco com "Viramundo", de Gilberto Gil e
Capinam. "É maravilhoso encontrar Gil, Caetano e Gal. É comovente de uma
maneira que não sei contar", disse a cantora ao público. E completou: "Bravo para
vocês que estão aqui embaixo de chuva".
Vagner Fernandes
Repórter do JB
Evandro Teixeira
Quando Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil subirem,
domingo, no palco montado na altura do Posto 3, em Copacabana, não estarão
celebrando apenas os 26 anos dos Doces Bárbaros, mas recuperando parte da
história do grupo que mudou a estética da música brasileira. O quarteto encerra a
10ª edição do projeto Pão Music que, este ano, homenageia o grupo com toda a
pompa e circunstância.
Explica-se: o espetáculo, que, inicialmente, foi idealizado para concluir o último
ciclo da série, será convertido em CD e em DVD - produzido pela Conspiração
Filmes -, a serem lançados no início do ano.
Ela foi a responsável por reunir o grupo, pela primeira vez, em meados da década
de 70.
- Nós já tínhamos carreiras definidas, mas lembro que, na época, fiquei com uma
vontade tremenda de resgatar aquele clima de quando éramos do interior, ainda
desconhecidos. Bateu saudade - confessa.
- Algumas canções serão apresentadas com nova roupagem, como São João,
Xangô Menino - diz Gil, que compôs a inédita Outros bárbaros para marcar o
reencontro.
Exausto pela recente turnê que fez pelos Estados Unidos, Caetano bem que
tentou compor algumas inéditas, mas contou que foi vencido pelo cansaço.
- Pensei em umas cinco ou seis músicas novas, mas não tive condições. Depois
deste show vou parar por alguns dias para recuperar o fôlego.
- O conceito de ego é mal definido pela elite intelectualizada. Isso é cafona, uma
imbecilidade. Quando falam em ego, na verdade insinuam que vivemos brigando.
Isso nunca aconteceu. Temos divergências, mas tudo é resolvido pacificamente -
retrucou, irritado.
São Paulo - O projeto Pão Music está comemorando dez anos de apresentações
de shows gratuitos e, para tal ocasião, vai reunir nos palcos do Rio e de São
Paulo, no começo de dezembro, os Doces Bárbaros - Caetano Veloso, Gal Costa,
Maria Bethânia e Gilberto Gil -, que há 25 anos não se apresentam juntos. Durante
este ano, cada um desses quatro cantores fez shows individuais com convidados,
uma espécie de preparação para a esperada reunião.
O projeto do Grupo Pão de Açúcar utiliza os benefícios da Lei Rouanet há quatro
anos, o que ajudou o Pão Music a ter como estimativa fechar sua história, por
enquanto, com um público estimado em 6 milhões de pessoas. Para o ano que
vem, o diretor de Marketing do Grupo Pão de Açúcar, Eduardo Romero, diz que
haverá um aumento de investimentos. Não revela o valor nem as próximas
atrações - "Estamos ainda planejando o projeto de 2003" -, mas indica o aumento
dizendo que o Pão Music será permanente em Curitiba, Brasília, Fortaleza, Recife
e Bauru, além de São Paulo (onde ocorre desde o início) e Rio (já há quatro anos
recebendo o projeto).
Outra novidade será oferecer na capital paulista um novo equipamento de alta
tecnologia desenvolvido estritamente para shows ao ar livre, importado da
Alemanha. Em parceria com a Prefeitura de São Paulo, o Grupo Pão de Açúcar
deixará o novo palco permanentemente no Parque do Ibirapuera - numa
colaboração com o "processo de embelezamento da cidade", como comenta
Romero. O Pão de Açúcar também importou mais outros dois palcos como esse:
um ficará no Rio e o outro percorrerá as outras cidades que o projeto engloba e
que englobará a partir do próximo ano.
A série de shows gratuitos ao ar livre teve início em São Paulo, no Vale do
Anhangabaú e até 1996 o projeto era chamado de Sampa Show. Desde aquela
época, a idéia principal era oferecer apresentações de diversos nomes da Música
Popular Brasileira de um jeito comunitário, para todas as classes sociais. "A
música tem esse poder de aglutinar pessoas, como num movimento pacífico", diz
o diretor de Marketing do Pão de Açúcar. "O projeto promove shows sem onerar o
setor público, já que é feito pela iniciativa privada, ganha prestígio entre os artistas
já que os remunera, ganha a credibilidade com o público que assiste a uma
apresentação de qualidade que muitas vezes só é montada em casas especiais
de shows", defende Romero.
Com todas essas características, o Pão Music - esse nome começou a ser usado
em 1997 - foi se estendendo e hoje pode contar que promoveu shows tanto no
eixo Rio-São Paulo quanto em Fortaleza e Brasília. "No ano passado, em
Fortaleza, reunimos mais de 100 mil pessoas."
Para citar alguns entre tantos cantores e bandas brasileiras - e alguns
estrangeiros convidados - de todos os estilos, já participaram do projeto Ed Motta,
Elba Ramalho, Martinho da Vila, Titãs, Djavan, Luiz Melodia, Milton Nascimento,
Leandro & Leonardo, Julio Iglesias, Tonny Bennett, Maestro Zubin Mehta, Rita
Lee, Tim Maia e Marisa Monte - essa, aliás, primeiro e segundo recordes de
público (no ano passado, 190 mil pessoas assistiram a seu show e em 1989,
foram 180 mil pessoas). Agora, finalizando 2002 com a apresentação dos Doces
Bárbaros, há uma estimativa de fechar o ano com público de 1 milhão e 800
pessoas em todas as cidades onde ocorreu.
Eduardo Romero diz que o Pão Music de 2002 utilizou menos os incentivos da Lei
Rouanet do que os anos anteriores. Cerca de 70 a 80% dos recursos utilizados no
projeto são de capital próprio do Grupo Pão de Açúcar, que teve faturamento bruto
em 2001 de R$ 9, 9 bilhões - "o incentivo para nós estimula o investimento, já que
o projeto proporciona qualidade de vida. Os shows são no parque e nas praias,
lugares de lazer. Por isso, o projeto é aprovado há tantos anos", diz Eduardo
Romero.
Além do projeto de shows gratuitos, o Pão de Açúcar também patrocina ONGs,
atividades circenses e projetos de cinema e teatro, como os de Guel Arraes, entre
outros. O diretor de Marketing diz que a empresa investiu aproximadamente R$
5,5 milhões em cultura neste ano.
Camila Molina
In: www.galcosta.com.br.
• Volta dos Doces Bárbaros reúne 110 mil;
hoje, show é no Rio
CIRO BONILHA
DEBORA MIRANDA
do Agora SP
Quando o quarteto subiu ao palco do parque Ibirapuera (zona sul de São Paulo),
às 18h32 de ontem, e começou a cantar a primeira música -"Fé Cega, Faca
Amolada", de Milton Nascimento-, a primeira pancada de chuva já tinha acabado,
mas as nuvens escuras permaneciam e a ameaça de um temporal também.
A água havia chegado cerca de meia hora antes, exatamente quando as pessoas
se dirigiam ao parque Ibirapuera, e durado menos de dez minutos -tempo que se
revelou insuficiente para assustar os fãs dos baianos.
Não foi suficiente, porém, para bater o recorde do parque -190 mil pessoas,
público que em 1997 presenciou o show de Marisa Monte e Carlinhos Brown-,
como previam os organizadores.
O repertório do show contou ainda com "Esotérico", "Saudade da Bahia", "Os Mais
Doces Bárbaros", entre outros sucessos, muitos acompanhados pelo público.
PÃO MUSIC - Show de reencontro dos Doces Bárbaros, com Caetano Veloso, Gal
Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia
Onde e quando: praia de Copacabana (Rio), domingo, às 19h30
Quanto: grátis
Patrocinador: Grupo Pão de Açúcar
Leia mais:
Mesmo assim, os quatro querem desse espetáculo Muito mais do que a simples
releitura do 'Doces Bárbaros' de 26 anos atrás. Os cantores pretendem fazer um
balanço das carreiras de cada um, que convergem ou propositalmente (como
neste show) ou pela relação mantida entre eles.
A gente (eu, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa) nem sabe direito porque se
juntou para fazer este 'show' em conjunto. Porque a gente já é há tanto tempo... O
engraçado é que a gente agora virou os quatros sob um nome só: Doces
Bárbaros.
Outro dia, conversando com Gilberto Gil, eu disse: "Acho que a gente agora é um
grupo porque foi ficando cada vez mais parecidos uns com os outros, até
fisicamente".
Quando eu era menino, e mesmo quando adolescente, eu e Maria Bethânia não
éramos dois irmãos parecidos: até o contrário, éramos desses irmãos de tipos
diferentes dentro de uma família de muitos irmãos.
E no entanto, hoje em dia, na contra-capa do 'long-play' de Gal e Caymmi, eu vi
uma foto de Gal em que eu achei ela parecida comigo.
Quando eu e Maria Bethânia viemos para São Paulo em 1965 e que Bethânia foi
fazer o espetáculo Opinião, Gilberto Gil já estava morando lá e Gal foi passar uns
tempos conosco.
Gal tinha o cabelo curto e fisicamente era completamente diferente de Maria
Bethânia. Mas as pessoas viam Gal na rua, apontavam o dedo para ela e diziam:
"Olha lá a Maria Bethânia".
A gente ficava assustado porque achava que Gal e Maria Bethânia eram duas
pessoas totalmente diferentes. Que as pessoas deviam achar uma parecida com a
outra assim como a gente acha um japonês parecido com o outro.
Gil, por sua vez, era gordo, não tinha ângulo nenhum no corpo e comia muito,
muitíssimo.
Depois, ele fez macrobiótica, emagreceu e foi ficando com o corpo muito parecido
com o meu, que é muito parecido com o corpo de Bethânia.
Tempos mais tardes, quando apareceu o grupo Novos Baianos, a gente (eu, Gal,
Gil e Bethânia) ainda não se achava parecido.
Mas quando eu voltei de Londres falava-se muito no "morro da Gal, nas dunas do
barato" e constatei que Gal Costa tinha criado uma moda, um modo de ser, de
vestir, de usar o cabelo.
Foi mais ou menos nesta época que 'O Pasquim' começou a reclamar como quem
reclama contra a raça. Aliás, uma das canções mais lindas dos Novos Baianos
dizia: "Saindo dos prédios para a praça, uma nova raça..."
Depois, todo mundo viu, na televisão, o Chico Anísio fazendo uma imitação do
baiano e eu acho que ele fazia muito bem, de um modo bonito. De maneira que a
gente, aos olhos dos outros, já era, sem saber, os Doces Bárbaros.
Mas não só a gente mesmo não se achava parecida ainda, como também estava
mais do que nunca cada um individualizando tudo o que fazia. Talvez foi por isso
mesmo que a gente tenha conseguido agora se tornar capaz de ser um grupo,
resultado de nossas vivências comuns e separadas durante todos esses anos em
que fazemos música.
De modo que Doces Bárbaros é uma coisa que se formou em nós, através de nós
e até mesmo a despeito de nós. É uma nova raça.
As músicas que iremos tocar e cantar são todas nossas, com exceção de algumas
de outros autores, como Caymmi, Milton Nascimento e Herivelto Martins. A partir
do 'show', gravaremos um 'Long-play'. Gostaria também de mencionar todos os
músicos que vão tocar com a gente. Na guitarra, Perinho Santana, no contrabaixo,
Arnaldo Brandão, na bateria, Chiquinho Azevedo, no piano, Tomás, na percussão,
Djalma Correia, na flauta e saxofone, Tuzé e Mauro.
Se eu fosse lembrar a nossa história, digo, a história de Gal Costa, Gilberto Gil,
Maria Bethânia e eu, eu teria de falar no Teatro Vila Velha, de Salvador, em uma
porção de coisas que todo mundo já sabe e talvez até em algumas que ninguém
sabe.
Ia falar também em Roberto Santana, que me apresentou a Gilberto Gil, em Álvaro
Guimarães, que faz cinema e teatro e, de uma certa forma, me levou a fazer
música, em Maria Muniz, em mil outras gentes.
Mas se eu quiser mesmo contar ou resumir a história dos Doces Bárbaros, vou ter
que falar talvez em outros planetas, em outras dimensões, em coisas que nem
sei...
Mas para as pessoas que já nos vêem como um grupo há tanto tempo, ou seja,
como um punhado de gente que tem características comuns, mesmo físicas,
Doces Bárbaros não é senão o óbvio. Para nós, é a maior novidade. E é tudo
igual.
Somos muito diferentes uns dos outros. Todo mundo sabe que fui eu que escolhi o
nome de Maria Bethânia. Eu tinha quatro anos quando ela nasceu. Por isso, ela,
necessariamente, aprendeu muito comigo. Mas ela é estruturalmente uma rebelde
e terminou me ensinando as coisas fundamentais desta vida.
Gal, eu encontrei pronta. Uma vez, há tanto tempo que nem me lembro mais, ela
cantou uma música qualquer e eu disse que ela era a maior cantora que já surgiu
no Brasil.
Quando morava na Bahia, eu ouvia João Gilberto dia e noite e ela ouvia João
Gilberto dia e noite. Quando nos vimos pela primeira vez, já eramos,
musicalmente irmãos.
Hoje em dia, Gilberto Gil está refazendo a cabeça de todo mundo. Um dia,
Rogério Duarte (que também teve grande importância nesta história toda) falou
que Gil era o profeta e eu o apóstolo. Entre outras coisas, acho que a gente
trabalhar em grupo está sendo maravilhoso, porque nós três vamos aprender e
estamos aprendendo muito com Gil. Acho que ele é mesmo o mestre. Gilberto Gil
faz e refaz a cabeça de todo mundo.
Vocês, que me lêem, já ouviram falar em 'supergroups'? Pois bem, Doces
Bárbaros é um subgrupo. No sentido de um grupo étnico. Ha-ha-ha-ha!
E agora eu pergunto a mim mesmo: como será a nossa cara? Queremos ser
Doces Bárbaros assim como o doce de jenipapo é um doce bárbaro! Gilberto Gil
disse que ele é cocada-puxa e que eu sou 'amada', um doce que se faz na Bahia
usando gengibre, farinha de mandioca e rapadura.
Para mim, Gal Costa é centro. O meio de tudo. A voz. A voz da qual nós (inclusive
ela - todos os bárbaros doces) somos apenas vozes.
Mas que horda é esta que vem do planeta terra bahia, todos os santos? Está bom.
Os ensaios estão bem calmos, nos divertimos e cantamos canções cantáveis. E,
para finalizar, não há nada que eu possa dizer sobre qualquer um de nós que
ajude a me dar, a te dar, a dar a todo mundo uma idéia do que seremos.
Caetano Veloso
Revista "Ele e Ela"
junho de 1976
In: www.diamanteverdadeiro.hpg.ig.com.br, acesso em 06/05/2002.
• Acaba a excursão de Doces Bárbaros,
de novo, sozinho, recomecei a compor. E é principalmente das canções que
surgiram nesse período que se compõe o repertório deste novo disco. A primeira
que pintou foi a que veio a se chamar "Gente". Fiz primeiro a música, pensando
em colocar sobre ela uma letra qualquer que pudesse ser cantada por mim e por
um coro feminino, em cima de uma base rítmica gostosa. Estava querendo fazer
um disco todo de melodias doces sobre ritmo quente. E coloquei, de fato, uma
letra qualquer. Depois de pronta eu achei louca. Hoje acho que "Gente" é uma
canção linda e emocionante e louca como Doces Bárbaros e a considero uma
homenagem à experiência que Doces Bárbaros foi pra mim.
"Gente" ainda não estava de todo pronta quando fiz, sem pensar, a melodia do
que veio a se chamar "Tigresa". Algumas pessoas estavam conversando aqui na
sala de som da minha casa e eu não estava a fim de prestar atenção na conversa
delas. Fiquei tocando violão e assoviando e cantarolando qualquer coisa. Fui
dormir sem planos de voltar a pensar nela, uma vez que meu projeto era compor
canções doces e swingadas. Mas a música era linda mesmo e resolvi fazer uma
letra. Mas não sabia o que dizer com palavras, uma coisa que ficasse dentro do
clima que já era pra nós essa melodia. Mas também não quis forçar muito a
cabeça. Um dia estava com Moreno vendo um seriado de televisão, onde
apareciam uns meninos indianos que andavam com um elefante, e encontravam
um outro menino que era selvagem e não sabia falar e reagia como um felino.
Quando eles tentavam se aproximar do menino selvagem, um grande tigre vinha
protegê-lo. O menino tinha sido criado por aquele tigre que, na verdade, era
fêmea. O fato é que pensei que tigre fêmea diz-se tigresa, e aí estava a palavra.
Dessa palavra parti prá inventar uma letra que mantivesse o clima da música.
Imaginei logo uma mulher e queria algo assim como uma história. Essa mulher foi
se nutrindo de imagens de mulheres que conheço e conheci, e essa história foi se
nutrindo de histórias que vivo.
Terminou pintando também, um pouco de História, uma vez que o interesse que
as pessoas da minha classe e da minha geração uma vez demonstraram pelo
assunto política, aparece datado. Mil pessoas me perguntaram quem é a
"Tigresa", ou pra quem a música foi feita. Pois bem. Depois da mamãe Tigresa da
televisão, a primeira imagem de mulher que veio à minha cabeça foi a de Zezé
Mota, e isto está bem evidente nas unhas e na pele. Mas terminei descobrindo
que os olhos cor de melão da Sônia Braga, embora não deixem de ter um
parentesco com os cabelos da menina Maribel. Mas Bethânia e Gal já estavam lá.
E Norma Bengell, Clarice, Claudinha, Helena Inês, Maria Ester, Silvinha Hippy,
Marina, muitas outras meninas que eram bebês em 1966, Suzana e Dedé. Por fim
a "Tigresa" sou eu mesmo. É minha primeira canção parecida um pouco com Bob
Dylan.
Voltando ao projeto das músicas doces swingadas, apareceu a melodia de
"Odara", que é uma palavra que aprendi com Wali Salomão. Digo que aprendi
com Wali que essa palavra passou pra mim com o valor semântico que tem na
letra da canção. Claro que já tinha ouvido na voz de Clara Nunes num desses
sambas sobre religião negra. Também nos ambientes de candomblé essa palavra
é usada. Mas não sei exatamente em que sentido, em Itapoã, "Odara" quer dizer
bom - bonito - bacana. Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de
que "Odara" era a mais bonita das canções que eu tinha feito ultimamente. Até
hoje não encontrei bons argumentos em contrário.
Fiz "Leãozinho" para Dadi. Gosto de chamá-lo de Leãozinho por que ele é um
lindo menino do signo de leão, que é também o meu signo. Disse a ele: "Vou fazer
uma música pra você". Aí comecei a fazer uma melodia em cima do título já
escolhido. A letra saiu quase que ao mesmo tempo que a música.
Sempre tive (e talvez tenha hoje mais que nunca) a vontade de ampliar o
repertório de possibilidades sonoras dentro do campo de criação de música
popular no Brasil. Quando musiquei "Triste Bahia", escrevi a Augusto de Campos:
"quero que o resultado pareça ao mesmo tempo folclore e ficção científica". A
paixão compartilhada com Gil pela Banda de Pífaros de Caruaru, desde 1967, era
a expressão dessa vontade. O tropicalismo foi um espernear contra um cercado
pequeno. A gravação londrina de "Asa Branca" foi um primeiro esforço de
concentração no sentido de realizar algum som a mais. O "Araçá Azul" - depois da
música para o filme São Bernardo, de Leon Hirshmam - foi o luxo de entrar no
estúdio sem nada e deixar esse desejo fluir para que eu, assim, pudesse testá-lo.
O nordestino fanhoso, o negro rouco, o índio, o marciano, o árabe, o indiano, o
roqueiro distorcido, os Smetaks, o insólito - tudo isso é a minha identificação. A
letra para a pipoca moderna. O chinês, o japonês, o baiano. Havia planejado fazer
muitos sons "de índio". Queria fazer um disco de canções doces com swingue e
queria trabalhar em casa uns sons "primitivos".
Assim, sobre uns sons de assovios superpostos que eu havia armado aqui,
procurei colocar umas palavras e usei como tema ou pretexto um desenho que
tinha feito com lápis de cor e que veio a ser escolhido depois por mim pra ser a
capa do disco. A música se chamou a Grande Borboleta. Two Naira Fifty Kobo foi
o apelido que o pessoal deu ao motorista que trabalhava pra gente em Lagos. Ele
ouvia música dia e noite. É uma figura inesquecível. Fiz uma melodia em Lagos
mesmo, sentindo o clima das músicas que ouvia por lá. Quando cheguei à Bahia,
depois do carnaval, fui pondo as palavras que, afinal, ficaram tão bonitinhas. Two
Naira Fifty Kobo é a minha canção da Refavela.
"Frases" foi a primeira música de Jorge Ben que me impressionou profundamente.
Achava tudo aquilo que veio antes muito lindo e agradável, mas "Frases" me
impressionou pela força de poesia, pela liberdade de linguagem. Isso em 1966.
Bem antes do tropicalismo. Acho que essa foi uma composicão inaugural da nova
poesia de Jorge Ben, da nova poesia brasileira. E agora eu a gravei.
O disco chama-se "Bicho". Principalmente por causa do desenho que escolhi pra
capa. Eu já tinha feito esse desenho e o achava bonito. Quando fui olhando para o
repertório que gravaria, vi que tinha muitos nomes de animais envolvidos. Aí
pensei em qualquer coisa de animal, Guilherme Araújo me disse: "Esse seu disco
será um jardim zoológico". Eu olhava para o desenho daquela borboleta astral e
pensava: "Bicho da vida, esse é o bicho da vida". Quase coloco o nome do disco
de "Bicho da Vida". Depois reduzi prá "Bicho". Achei mais sintético, menos
retórico. Acredito que o fato dos músicos brasileiros se tratarem, uns aos outros,
de bicho, e também o fato da palavra estar em toda caricatura que se faz de hippy
nas novelas e nos humoristicos da televisão, e também ser nome de jornalzinho
de cartoon e comics, tudo isso se enriquece com esta minha redescoberta da
palavra que, por sua vez, sai também enriquecida de tudo isso. Palavra gasta,
palavra intacta.
Caetano Veloso
07/77 - Jornal do Brasil
In: www.caetanoveloso.com.br, acesso em 06/05/2002.
• Com chuva e sem emoção,
Doces Bárbaros se reencontram no palco
Caetano, Gal, Gil e Maria Bethânia repetiram o encontro original, que aconteceu
em 1976.
A área VIP contou com prestígio de ilustres convidados entre eles a prefeita de
São Paulo, Marta Suplicy, os empresários Abílio Diniz e Ana Maria Diniz, as
atrizes Paula Lavigne e Fernanda Torres, os apresentadores Serginho Groisman e
Astrid Fontenelle, Rogério Gallo diretor da Tv Bandeirantes, entre outros.
O roteiro do show foi subdivido em apresentações solo, duplas e dos quatro juntos
que relembraram músicas do álbum “Doces Bárbaros” de 1976 e outras mais
atuais. Caetano cantou “Drão”, Gal e Bethânia “Esotérico”, Caetano e Gil juntos
“Chuckberry fields forever” e seguiram viajando com "Os mais Doces Bárbaros",
"O seu amor", "Gênesis", "Pé quente, cabeça fria" entre outras. A novidade ficou
para a inédita "Outros Bárbaros", especialmente composta por Gil para o show. A
música “Gente” cantada pelos quatro bárbaros baianos finalizou o espetáculo.
O projeto Pão Music Doces Bárbaros prevê duas apresentações, uma em São
Paulo e outra Rio de Janeiro. A banda que acompanha o grupo é formada por
Gustavo de Dalva e Leonardo Reis (percussões), Claudinho Andrade (teclados),
Jorge Gomes (bateria), Arthur Maia (contrabaixo), Sérgio Chiavazzoli (guitarra) e
Carlos Malta (sopro). Dois músicos da banda de Maria Bethânia também
participam: o violonista Jaime Alem e o pianista João Carlos Coutinho. A
percussionista Mônica Millet é a única que fez parte da primeira formação do
grupo em 1976.
www.paomusic.com.br
• Doces Bárbaros no Rio de Janeiro
Cerca de cem mil pessoas, segundo os cálculos da PM, compareceram ontem à
noite à Praia de Copacabana, em frente ao Lido, para assistir ao show dos Doces
Bárbaros, no encerramento do projeto Pão Music, que, na versão 2002,
homenageou Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa. Na
platéia, um encontro de gerações entre antigos fãs e quem nem era nascido
quando o espetáculo foi realizado pela primeira vez, há 26 anos.
— Meus amigos vieram mais por causa dos últimos sucessos do Gil e do Caetano,
mas eu sou fã mesmo das músicas antigas — disse Bianca Esteves, de 19 anos,
que foi ao show com a mãe, Teresa Cristina, de 56 anos.
O quarteto subiu ao palco às 20h e abriu o show com uma animada interpretação
de “Fé cega, faca amolada”, exatamente como no espetáculo original. Depois, eles
se alternaram em dupla ou solo. Sozinho, Gil mostrou a inédita “Outros bárbaros”,
que ele compôs especialmente para a ocasião. Na letra da canção, ele anuncia
que “Outros bárbaros tão doces tão cruéis / Seguem vindo”.
Com Bethânia, Gil lembrou “Asa branca”, de Luiz Gonzaga, e com Caetano,
“Chuckberry fields forever”. O roteiro teve ainda “Drão”, “O seu amor”, “Esotérico”
e “Os mais doces bárbaros”, entre outras.
Com “Um índio”, Bethânia incendiou a platéia, que empolgou-se também com
“Lanterna dos afogados”, na voz de Gal. Mas o ponto alto da noite foi “A luz de
Tieta”, com Gal e Caetano. Já no bis, o quarteto improvisou “Exaltação à
Mangueira”. Há a possibilidade de os Doces Bárbaros reunirem-se novamente. A
produção está sendo negociado um show com o quarteto no fim de ano na Bahia.
Em show popular lotado, Gilberto Gil e Maria Bethânia discutem no palco mas
arrebatam a platéia com clássicos da MPB
Solo - E mais: A novidade e Estrela, esta uma canção do desprezado álbum duplo
Quanta, daquelas que vão estourando aos poucos, tanto que a platéia cantou
junto. Mais uma passagem da dupla na difícil sincronia dos versos divergentes de
Sem fantasia (Chico Buarque) e Bethânia fica sozinha no palco. Sola e pontifica, já
que a banda é comandada por seu fiel maestro Jaime Além. Vai aos cumes da
versão Sonho impossível, dramatiza Fera ferida (Roberto/ Erasmo Carlos) com a
empunhadura de seu mestre teatral Fauzi Arap e desembesta num dos textos de
Drama, Luz da noite, prefaciando Esse cara. ''Essa canção do Caetano é linda
demais'', desabafa.
TÁRIK DE SOUZA
Jornal do Brasil, 31/05/2001
• Bárbaros agridoces de novo
João Pimentel
Eles cantaram juntos, no mês passado, em dois shows fechados em São Paulo, e
ensaiam para outros três, que abrem um projeto de parcerias chamado Encontros
Ourocard, dias 27 (em Recife) e 29 de setembro (em Fortaleza) e 7 de outubro
(em Salvador). Essa reunião da dupla representa um fecho de ouro para a turnê.
- O Gil vive um momento especial e estou feliz em poder me unir a ele - comemora
a cantora. - Mas vamos fazer apenas esses três shows, já que ele vai retomar o
trabalho com o Milton e eu, o meu disco de carreira.
Foi montado um roteiro especial que, musicalmente, conta um pouco da vida dos
dois. Mas a base é a mesma do show de "Eu tu eles" que rodou o país.
- Vamos cantar um pouco da nossa história, desde Salvador, no início dos anos
60, passando pelos Doces Bárbaros e chegando ao Rio - explica o compositor.
Bethânia, que levou alguns músicos de sua banda para se juntar ao grupo de Gil,
deu palpites no repertório, privilegiando músicas de temática nordestina:
- É muito bom voltar ao mundo do Gil. Cantarei algumas coisas dele que gravei e
adoro, como "Viramundo" e "Balada de um lado sem luz", e também outras que
gostaria de ter gravado - comenta.
Esse reencontro remete os dois ao início dos anos 60, em Salvador. Mas as
referências, locais e de época, só fazem sentido para Gil, Bethânia e pessoas
próximas deles.
- Eu acho que nosso primeiro encontro foi na casa de Maria, filha de Prisciliano.
Estávamos eu e o Roberto Santana, e o Caetano levou você junto - diz Gil.
- Eu me lembro de ter conversado contigo na Sorveteria Primavera - discorda
Bethânia.
Os dois, ao contrário do que aparentam aos olhos do público, juram que são
parecidos. Bethânia diz que ambos têm a mesma percepção e sentimento de
palco. Gil ressalta o prazer e a paixão comum pelo canto.
- As pessoas têm uma visão, até real, de que o Gil é mais à vontade e eu mais
tensa, fechada. Mas, no fundo, o nosso impulso é o mesmo. Nem ele é tão livre,
nem eu tão presa - relativiza Bethânia.
Mas também existem muitas diferenças. Diferenças que, aliás, já geraram muitos
boatos de briga dos dois.
- Eu sou errático, tenho mesmo essa coisa inquieta dos anos 60. Gosto da
discussão política e social da arte. Gosto de firmar minha posição sobre as coisas
- explica Gil.
Gil acredita que esse reencontro é um momento que, assim como o seu show,
terá um papel importante na divulgação da cultura nordestina:
Mas a união não foi tão informal. Estavam ali para pegar duro no trabalho, ensaiar
para uma curta turnê juntos, chamada Encontros Ourocard, iniciada com um
"aperitivo", no mês passado: um espetáculo só para convidados no Credicard Hall.
Os dois baianos não dividiam o palco desde 1994, quando reviveram a proposta
do show Doces Bárbaros (disco antológico lançado em 1976), ao lado de Caetano
Veloso e Gal Costa, na quadra da Mangueira.
"Milton (Nascimento) faria comigo aquele show do Credicard Hall e não pôde, por
causa de uma faringite, então eu sugeri que convidassem Bethânia, que logo
aceitou", conta Gil. "Era só uma noite em São Paulo, mas a Maria Luiza Juncá
(produtora cultural) tinha esse projeto de encontros `de ouro' e nos propôs a
continuidade", afirma Bethânia. "Ela sempre me convida para ser madrinha de
algum projeto, assim foi com o Caixa Acústica - Mulheres, em Salvador e agora
com esse encontro de duplas; adorei a idéia."
Para Gil, a reaproximção no palco fez com que revisitassem situações do início
das carreiras e não viviam há muitos anos. "Pudemos falar, discutir música, trocar
informações sobre nossos novos trabalhos", acredita. "O interessante é que a
situação se repetiu, pois foi assim no nosso primeiro encontro, quando nos
conhecemos no meio musical e teatral para conversar sobre arte." Os dois contam
que têm poucas oportunidades para isso.
Apesar de "viciada em palcos divididos", Bethânia só não havia feito isso com Gil.
Nos anos 70, elaborou shows nos quais se apresentava com o irmão e com Chico
Buarque. Dos quatro bárbaros, segundo Bethânia, é com Gil que possui maior
semelhança. Ele também concorda. "Nós temos uma coisa parecida na maneira
de exercer o nosso ofício", diz. "A gente projeta nossas dimensões carismáticas
de forma parecida, na forma de transformar isso no gestual, na coisa cênica, na
presença do palco", analisa Gil. "Lidamos também de forma semelhante com a
solicitação do público."
Bethânia exemplifica o "profundidade do elo" com Gil quando fez o show Nossos
Momentos, em 1982. "Eu tive uma ruptura com o meu maestro e foi a Gil que
recorri para fazer a direção musical", conta. "A direção musical de um show é
diferente de qualquer outra, tudo o que faço é muito próprio, muito meu", diz ela.
"Entreguei isso na mão de Gil, um autor, e ele fez a direção, ensaiou todos os dias
comigo, escreveu arranjos, deu idéias, escreveu vocais, isso revela uma
identificação muito profunda; a minha relação é muito mais forte com Gil do que
com qualquer um dos outros (bárbaros)."
Gil conta que Bethânia é sua maior influência no que diz respeito ao lado cênico,
no palco. "Ela é meu espelho, por mais estranho que possa parecer, já disse isso
muitas vezes a Caetano, venho dizendo há muitos anos que, quando ela sobe no
palco, eu aprendo coisas, ali entendo coisas", informa.
"É intuitivo."
Com o passar dos anos, eles observam uma "suavização" na forma de conduzir a
música. "Está tudo igual, só que suave, bem mais suave", diz ela. "As dobras do
tempo vão dobrando as coisas, os temperamentos; vai fazendo com que as coisas
fiquem mais ondulares", completa Gil. "Tem uma música minha que diz `com
mãos bem mais sutis, nossos desejos vão tornando nossos beijos mais azuis,
menos carmins', é a mesma coisa para esse momento."
Estão cantando juntos Esotérico e Fé Cega, Faca Amolada, músicas dos Doces
Bárbaros, e Balada do Lado sem Luz, canção que deveria ser desse disco e
Bethânia gravou depois. Eles também vão cantar músicas de "Eu Tu Eles", o
recente CD de Gil.
Bethânia pergunta a ele se o novo CD ficou bom. Ele diz que sim. "Só participaram
Sandy e Júnior, eles cantam uma letra do Milton que fala sobre a geração que
contempla a próxima, um tema relativo à nossa biografia", conta Gil. "É
impressionante como Sandy canta bem", comenta Bethânia.
Formalmente, Maria Bethânia e Gal Costa cantaram juntas, ao vivo, apenas outras
duas vezes: em 1964, em Salvador, no show Nós, por Exemplo, que marcou a
estréia profissional delas duas e de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé e, em
1976, no espetáculo Doces Bárbaros.
De fato. Gal Costa, aliás, gravou pela primeira vez num disco de Bethânia,
fazendo dueto com ela na linda e tristíssima canção Sol Negro, que Caetano
Veloso escreveu para as duas.
Cantos opostos - Sol Negro, naturalmente, é um dos números do show que fazem
juntas, amanhã e domingo, no Credicard Hall. Em 1964, quando cantaram a
música pela primeira vez ("Na minha voz/Trago a noite e o mar/O meu canto é a
luz/De um sol negro", cantava Bethânia, o grave rasgando noite e mar; Gal Costa,
ainda conhecida como Maria da Graça, respondia: "Valha, Nossa Senhora/Há
quanto tempo ele foi-se embora/Foi pra bem longe, para além do mar/Para além
dos braços de Iemanjá/Adeus"), obedeciam a uma disposição de palco
determinada pelo autor: uma em cada extremo da cena, Gal de preto, Bethânia de
branco.
A disposição foi mantida e Gal continua de preto. Bethânia trocou o branco pelo
prateado. O show de amanhã e depois é o mesmo que foi apresentado para casa
lotada, no Rio, no fim de semana passado. Elas abrem juntas o espetáculo, com
Os mais Doces Bárbaros, de Caetano Veloso, e Oração para Mãe Meninha, de
Dorival Caymmi. Gal sai, Bethânia canta meia hora. "Não É A Força Que nunca
Seca, nada formal; canto coisas que gosto de cantar, posso dizer um texto ou não
dizer nenhum", conta. "Devo cantar Sampa: me faz bem cantar Sampa em São
Paulo", adianta.
Estranha força - Depois Gal Costa volta e as duas cantam mais dois números.
Bethânia sai, Gal apresenta uma versão reduzida do espetáculo dedicado à
música de Tom Jobim. Para encerrar, cantam juntas mais quatro músicas. A
última delas é Força Estranha, feita por Caetano para Roberto Carlos.
Mauro Dias
sobre o show: Gal Costa e Maria Bethânia
Rio de Janeiro - São Paulo 02/2000
Gal vestia o famoso vestido vermelho com rosa no cabelo, Bethânia de branco,
Caetano de terno preto e camisa verde-amarela e Gil de terno branco.
Depois entrou a banda de Bethânia e ela cantou quatro músicas sozinha. "Explode
Coração" provocou gritos descontrolados na platéia. Que aumentaram ainda mais
quando Caetano substituiu a irmã no palco e, ao violão, cantou "Sampa".
"Esta canção é como se Londres fosse São Paulo", disse ele, comparando a
cidade do exílio com a cidade considerada "túmulo do samba".
Cantou ainda "Leãozinho", "Você é Linda" e encerrou sua participação solo com
"Qualquer Coisa". Saiu com a platéia aplaudindo-o de pé.
Entraram Gil, Gal e a banda de Gil, com Moreno Veloso, filho de Caetano, na
percussão. Atacaram de "Falsa Baiana" e "Meu Nome é Gal".
Voltou Caetano e os três atacaram de Axé Music. "Avisa Lá" levou os três a
pularem pelo palco como moleques alegres. Bethânia, a mais sóbria dos
Bárbaros, não apareceu.
Gil ficou sozinho no palco. "Aquele Abraço", que ele compôs pouco antes de sair
do Brasil em 69, deixou a platéia de expatriados de pé e arrepiada. Para quem
mora em Londres, "o Rio de Janeiro continua lindo".
Os quatro Doces Bárbaros se juntaram de novo no palco para cantar "O Seu
Amor", um perfeito hino hippie pregando o amor livre, e "Os Doces Bárbaros".
Aí entrou a Mangueira, abalando o Royal Albert Hall com uma bateria afinada e
puxadores de samba estridentes.
Depois a escola ficou sozinha no palco, desfilando suas próprias baianas, mulatas
e porta-bandeiras.
Eles tiveram que voltar para um bis. Repetiram "O Seu Amor" e ficaram
emocionados.
Primeiro Bethânia abraçou Caetano, que foi beijada por Gal, que beijou Bethânia,
que foi abraçada por Gil.
SÉRGIO MALBERGIER
Folha de São Paulo - 03/06/94
O filme "Os Doces Bárbaros" estréia nesta sexta apenas em São Paulo
em cópia nova, com som remasterizado e com cenas censuradas pela
ditadura militar.
O DVD do filme, além das cenas cortadas pelo governo (que totalizam
dez minutos), terá extras como sobras do longa e entrevistas que não
entraram na versão para cinema. O filme foi exibido no Brasil em 1978.
"Os Doces Bárbaros" custou o equivalente a US$ 100 mil, "numa época
em que as pornochanchadas custavam em média US$ 50 mil", segundo
o diretor.
"A prisão de Gil (ele ficou no Sanatório Botafogo, no Rio, por um mês)
meio que abortou a idéia da turnê nacional dos Doces Bárbaros", afirma
Azulay. "Depois de Florianópolis, eles foram para o Rio, onde fizeram
uma temporada bem-sucedida de dois meses no Canecão."
No dia 8 de julho do mesmo ano, o jornal "O Dia", com linha editorial
mais popularesca do que a que adota hoje, estampou na primeira
página: "Gal e Betânia com pó de pemba. Presos Caetano e Gilberto Gil.
Na cópia que está sendo relançada, aparece uma cena cortada pela
Censura quando o filme estreou em 1978: Gil, no quarto da clínica onde
foi internado para reabilitação, diz que "nada disso pode nos abalar
muito, quer dizer, pode nos abalar além, digamos assim, das superfícies
do corpo e da alma, porque no fundo mesmo, do espírito da gente, a
gente tá forte". Na época, eram necessárias várias meias palavras para
se entender.
Quando nós, do grupo Doces Bárbaros, íamos para o Galeão para a nossa
primeira viagem, o automóvel de Elizete Cardoso emparelhou com o nosso e ela
nos sorriu de lá, acenando. Nós saímos para a excursão abençoados. Não é
sempre que acontece a gente poder harmonizar tantas energias numa luz clara. E
não é fácil. O que Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e eu estamos
conseguindo agora é isso. Saímos por aí sem intenção de criar ou resolver
problemas, esmiuçar polêmicas ou aceitar provocações, Bob Marley: "Don't deal
with dark things". João Donato e Jorge Ben. Gente de fé reconquistada, mostrando
com simplicidade a poesia e a música da vida, do que vive, do que está vivendo -
os Orixás, as pessoas boas, bonitas e fortes, os peixes e a esperança. Dentro das
nossas possibilidades imediatas, o nosso trabalho, é bom. É o que nos basta. Ao
resto. Por exemplo: a cidade de Florianópolis (nome que deram à cidade de
Desterro) não deveria constar da lista de cidades visitadas porque a produção não
considerava uma boa praça (180 mil habitantes). Por insistência minha e de Gil é
que ela entrou. Gal não queria e Bethânia teve um quase pressentimento de
nossa ida lá não seria boa. Quando os policiais interromperam o nosso sono e a
nossa alegria, eu disse a Gal: "Parece que ter vindo a Florianópolis foi um gesto
livre demais e isso subiu à cabeça do delegado". De fato, conhecidos meus de lá
me diziam: "Eu não acreditava que vocês viessem até que vi vocês aqui". Um
chegou a me perguntar: "Por que vocês incluíram Florianópolis no roteiro?!" - "Por
amor", eu respondi. A polícia entrou no apartamento de Gal Costa, Maria
Bethânia, Lea Millon, Eunice Oliveira, Maria Pia de Araújo, Guilherme Araújo,
Chiquinho Azevedo, Djalma Correia, Arnaldo Brandão, Perinho Santana, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Tuzé Abreu, Mauro Genise, Tomás Improta, Daniel e, ainda,
nos dos técnicos de som e luz, alegando ter recebido uma denúncia de Curitiba.
Contra quem, contra todos esses nomes? Eles conseguiram levar Gil e Chiquinho.
Nós não saímos pra discutir as leis nem a moral. Nem a religião, nem a política,
nem a estética. Nós não saímos pra discutir. E não discutiremos. Mas saímos com
uma imensa carga de luz de vida, com amor no coração. É muito difícil alguém
chegar a poder dizer isto, mas eu digo que nós somos um grupo de gente que saiu
por aí trabalhando pelo Bem. E quem quer que - na polícia, na imprensa, no
inferno - queira atacar ou nos atrapallar, estará trabalhando para o Mal.
Caetano Veloso
1976
A Praça Castro Alves é do povo como o céu é do condor. O céu é azul. O
azul é incrível. O vermelho é incrível. O mar da Bahia fica acima do nível do mar.
Mandei fazer pra você, Maria, uma fantasia de papel crepon. Mas pra você sair na
rua tem que a previsão dizer que o tempo é bom. Amarelo. O sol underground.
Cerveja ferro na boneca antártica a cerveja brahma nossa amaralina. Amaralina,
para quem está por fora da geografia, fica longe, muito longe da Praça Castro
Alves. Mas pra quem está por dentro da geografia Amaralina fica também ali
embora Amaralina seja o lugar onde o mar está ao nível do mar e a terra está ao
nível do mar e o céu também enquanto na Praça Castro Alves o mar está acima
do nível da mão do poeta e não há geografia que explique que descreva que
estude o azul é do povo como o vermelho e o amarelo. O sol, dizia eu,
underground sobem flores losangos cotovelângulos eu só posso falar com você
sobre o que você não entende numa forma que você não entenda. O branco.
Como o negro é do condor. Fui telefonar pra o meu amor, disquei o número mas
não fui atendido. Eu metia o dedo, tirava o dedo, já estava com o dedo ferido.
Carnava. Ladeira, águas bruscas, sacasacasaca sacarolha. Eu quero é couro. Na
rua do ouro. Barbarracas Sé. Oi, todo dia eu tomo banho. Minha rolinha do mesmo
tamanho. Severiano Mudança do Garcia Internacionais. Tororó da janela da casa
Clara Tororó Lay tio Lay Clara janela Tororó. Garcia. Mais um, mais um, Bahia.
Filhos de Gandhi. Relógio certo atrasado de São Pedro Relógio de São Pedro
atrasado preguiça Cabeça Anjo Azul Fantoches da Eutherpe. O Fantoches é do
povo como o céu é da rolinha.
Fantoches: coxas. Quem sabe, sabe. Doutora Lu, Doutor Lulu. Voltando ao sol,
cuidem de mim correndo paladeira morrendo atrás do trielétri. Não tem doutor pra
lhe curar, não tem padre pra lhe salvar, não tem polícia militar pra lhe prender, não
tem juiz pra lhe julgar, não tem ladrão pra lhe roubar. Quero morrer, quero morrer
já. Fui curado de cansaço e medo por um doutor. Quero viver, quero viver lá.
Policiais vigiando. Iate Clube da Bahia Baiano Associação Atlética Coqueijo a
onça moça ninguém entra Iate Clube carteirinha penetra Iate Clube ninguém
também lá dentro é tão. Misericórdia. Sé. Cada ano sai pior. Cada ano sai melhor
no sábado será que é o Cada Ano Sai Pior que no sábado cada ano sai melhor?
Reco-recordações. Recor-recordações. O sal da terra. O sal batendo nos telhados
cor da pele. O Teatro Castro Alves é do corvo como parto é dos com dor.
Barroquinha, barracas, brahmas, beijos. Maria, Jota. O sol da terra. Tororó. Fui
beber água e achei até cerveja e feijoada no ano que eu estava com dor de dente
todo o mundo está a fim de te ajudar no teu karmaval. Ai ai ai ai, está chegando a
hora. Cielito lindo. Sabes que me estás matando, que estás acabando con mi
corazón. Manhã, tão bonita manhã. Qual a marcha de maior sucesso qual o
samba aguardo cartas. Eu não sei de nada. Eu não sou daqui. Sai de cima dessa
nega que essa nega tá de Pata, pata. Boi, boi, boi, boi da cara preta, vem comer
Gracinha que tem medo de careta. Oi, todo dia eu tomo banho. Digão, cadê o
dragão? Não adianta se o Recife está longe e a saudade é tão grande que eu.
Caetano Veloso
Pasquim, 02 a 09/04/70
Ta - Ta - Ta
Gil contando o que Dominguinhos disse. Gil confirmando o que Perinho
Albuquerque contava sobre Dominguinhos. Dominguinhos lembrando as
conversas atravessadas de meu pai e minha mãe: eu ficava ouvindo: minha mãe
olhando pra o infinito e meu pai olhando pra o outro lado. Só um filme conseguiu
captar isso: Vidas Secas. Dominguinhos contando ao povo no Teatro Tereza
Raquel. A vida entre poetas. Não fui ao Teatro pra ver Dominguinhos e Perinho e
Moacir. Fiquei em casa assistindo televisão e chorei vendo o enterro de Juscelino
porque o povo cantava "Peixe Vivo" e em Brasília milhares de automóveis
brilhavam e logo depois eu estava apaixonado por um garoto falando sobre a
Coca-Cola, um garoto tão carioca que pronuncia os cês da palavra coca-cola
como se fossem gês e os as breves lusitanamente fechados, quase mudos, de
modo que a palavra coca-cola fica quase reduzida à palavra gole, um garoto muito
gostoso. A vida entre artistas. Eu cheio de preguiça, dentro da violência do mundo.
No gravador, a voz linda do poeta Augusto de Campos, cantando o samba do Sr.
Eurico. O poeta Waly Salomão 76 comenta a semelhança do canto de Augusto
com a de Paulinho da Viola. A vida entre músicos. Augusto me disse uma vez que
era um Kamikasi. O radicalismo da viagem literária em que ele e seus amigos se
meteram levou seu nome ao fogo das batalhas de uma guerra de beleza sem
razão. A doçura impecável de sua voz me faz agora entrar em contato com a
solidão do guerreiro, a sua felicidade escondida como uma saudade escondida,
voz de alguém que só canta assim porque nunca canta assim a não ser quando o
faz, alguém que está em outra, completamente nesta, alguém que está em outra
dimensão. A peça é idêntica a um perfeito antique - o piano e o samba do Sr.
Eurico, Augusto cantando com uma voz aguda cristalina afinadíssima como alguns
cantores dos anos trinta - e, no entanto, não parece com nada. Deve ser um
grande momento íntimo de um grande poeta. E ele que me considera um poeta. A
vida entre os homens. Tome conta do destino, Xangô! O que é que você faz
quando sua mulher está de saco cheio de você e ela declarou recentemente que a
meu lado não tem mais prazer? Há pessoas com nervos de aço. Jorge Mautner
fala tanto num novo sistema nervoso. Eu ando com a memória consideravelmente
mais fraca do que antigamente. Jorge Salomão disse que falta de memória é sinal
de muito boa saúde. Lembro que, na época em que eu fiz o circuito universitário
no interior de São Paulo, eu cantava "Tudo se transformou" e "Nervos de Aço" e
"Tenho Ciúme de Tudo" e coisas assim de mágoas de amor, um tema que
estivera sempre fora de meu repertório. Não sei se era pra encarar, constatar,
exorcisar ou tudo isso ao mesmo tempo. Quer dizer, esse tema sempre estivera
fora do meu repertório, não essas canções, que eu as conheço e canto 'há horas',
como diz Tuti Moreno. Mas eu lembro mais ou menos que nessa época era lindo
cantá-las. Parecia um poeta cantando, um guerreiro cantando, com um novo
sistema nervoso. Acho que hoje em dia não sei mais explicar. Acho que nunca
soube. O que é que faz seu espírito eleger uma mulher pra você? O que leva você
a olhar no olho dessa mulher e dizer pra si mesmo: isso é alto astral, aconteça o
que quer que esteja acontecendo, esse olho castanho sempre me fará bem? Que
ponto é esse do amor, para além das emoções do amor, das vãs paixões
humanas, para além das dificuldades objetivas de se construir um
companheirismo genuíno entre um homem e uma mulher? Que ponto é esse que
parece se mostrar invulnerável aos feitiçcos e às maldições? Não tem onde caiba:
eu te amo. A vida entre os deuses. Nosso filhote cantando a "Casinha na
Marambaia" - só a voz de Gal às vezes chega lá. E Donato. E a poesia de Jorge
Ben. A crítica de música (não a grossura dos dragões e tinhorões da dependência
do samba - camuflados ou não - mas a crítica mais inteligente) quebra a cara
diante da música de Donato porque ela, de tão essencial, é igual ao supérfluo.
Não há dúvida de que os complicados (o excelente Egberto e mesmo o genial
Hermeto) são mais 'fáceis' para a crítica do que Donato. No anteprojeto dos
"Doces Bárbaros", Walter Smetak estava incluído. Ele terminou não participando
porque a Universidade da Bahia não podia lhe dar licença demasiado longa e os
componentes do dito grupo, então em formação, não tiveram determinação
suficiente pra forçar mais essa barra, uma vez que eles estavam forçando tantas,
dentro e fora deles mesmos. Acredito que foi uma medida natural de economia do
organismo do grupo e, apesar da conseqüente frustação, um sinal de saúde. Por
falar em Doces Bárbaros: em nenhuma reportagem sobre o assunto se falou em
"Arena Canta Bahia", um espetáculo que Gil, Bethânia, Caetano e Gal fizeram
juntos em São Paulo (mais Tom Zé e Piti), sob a direção de Augusto Boal. Eu, na
época, não gostava do espetáculo, mas Boal gostava e, sob muitos aspectos, seu
trabalho era brilhante e foi importante na formação dos atuais componentes dos
Doces Bárbaros. De todo modo, o espetáculo existiu e nem a Veja se referiu a ele.
No mais, tudo na mais perfeita paz, como dizia um antigo compositor baiano. Digo
isso porque nessa transação de Doces Bárbaros a gente tá imitando um bocado
os Novos Baianos. Como falou o Belchior, é sinal de admiração, vinho quanto +
antigo etc. E como os Novos Baianos foram Doces Bárbaros antes... Xica da Silva
de Cacá e Zezé e Walmor e etc. é um grande barato. Rogério me lembra (minha
memória está ótima!) que o papo da letra de "Um índio" rolou aqui entre ele e eu,
antes da música ser feita. Lindo que ele esteja sempre nas transas. Fantástico.
Que coisa genial, não é, Gláuber? E Gláuber está incrível. Desta vez encontrei
com ele mais de verdade. Um pessoal dessas revistas mais novas falou que o
jornalismo feito em tom pessoal morreu nos anos sessenta. Se for assim a gente
se fala, pessoalmente. A vida entre os monstros.
Caetano Veloso
dezembro de 1976
Publicado em www.caetanoveloso.com.br
Acesso em 30/05/2004
Caetano de ouvir cantar
Sielington foi procurar o amigo Caetano, em casa, com uma novidade:
- Você precisa ir comigo ao Clube Uirapuru. Tem um disco que é uma coisa louca,
me lembrei logo de você, você vai gostar à beça. A música se chama "Desafinado"
e o cantor canta totalmente desafinado. A orquestra vai para um lado, ele vai para
o outro. É uma loucura. Você vai gostar, é a sua cara.
- Quase caí duro pra trás. Achei lindo, gostei muito mais do que ele esperava e lhe
disse na hora: "Você está enganado, ele não é desafinado, é afinadíssimo. Não
tem nada de ele pra um lado e a orquestra para o outro. Acho que nunca ouvi
coisa tão certa.... e tão estranha.
- Quando apareceu João Gilberto, aquilo me deu critérios totais. Fiquei alucinado,
foi uma ligação imediata. Tinha todas as coisas da modernidade que me atraíram
em Maysa, mesmo em Nora Ney, nos Cariocas, em Lucio Alves, em Dick Farney.
Mas João centrou uma coisa que era vaga, embrionária e dispersa. Foi uma
virada.
Bethânia, por sua vez, aponta ter sido sua a idéia de formar os Doces
Bárbaros. A cantora sentia saudades dos anos na Bahia antes do
estrelato, quando realizavam shows juntos ainda sob forte influência da
Bossa Nova.
Publicado em www.biscoitofino.com.br
Acesso em 0212/2004.
Na lente do tempo
DVD documenta a reunião dos Doces Bárbaros
em filme superior ao show
Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 15/12/2004.
PRODUZIDO POR DANIEL FILHO, NOVO DISCO DA
CANTORA FOI ADIADO DEVIDO AO APOIO AO ENTÃO
SENADOR ACM
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 12/06/2004.
PUBLICADO PELA IMPRIMA COMUNICAÇÃO EDITORIAL LTDA.
ANO - 1981
DIRETORES
Oswaldo Biancardi Sobrinho
Vitor Biancardi
Reginaldo Ramos Moura
DIRETOR
Reginaldo Ramos Moura
JORNALISTA RESPONSÁVEL
Oswaldo Biancardi Sobrinho
COORDENAÇÃO DE REDAÇÃO
Edu Cruz
Antes mesmo de surgir como a grande dama da tropicália, Gal Costa já havia sido
apontada por João Gilberto e Caetano Veloso como a maior cantora brasileira dos
últimos tempos. O público, assim que teve oportunidade de tomar contato com
Gal, não teve dúvidas em endossar a opinião dos dois mestres.
Unindo técnica vocal, sensualidade e desenvoltura em palco a um arrebatamento
confessadamente inspirado em Janis Joplin, Gal Costa conseguiu transformar-se
em ídolo da inquieta geração dos anos 60, além de intérprete predileta de Caetano
e Gil. E nessa posição de ídolo manteve-se até meados da década de 70.
Entretanto, recentemente, Gal parece ter preferido endereçar seu canto a um
outro tipo de público. Mais madura, sempre sensual e buscando nos antigos
mestres da MPB, material para seu atual repertório, ela atingiu uma camada mais
conservadora, menos afeita aos rompantes de palco e de letras. " GAL TROPICAL
" e " FANTASIA " - seus dois últimos espetáculos; em contraste com " FA-TAL ",
reconhecidamente seu mais expressivo show - primaram por uma produção
elaborada e cara, justificando as preferências de seu novo e bem pagante público.
Mudando basicamente o repertório e pisando palcos superproduzidos, Gal Costa
conseguiu acertar em novo alvo. Mas, como um tiro que sai pela culatra, acabou
desagradando a seus antigos admiradores que a preferiam em palcos mais
simples, mais acessíveis, interpretando canções que fossem mais ao encontro de
suas inquietações.
Ressalvadas as preferências de público, há, no entanto, que se reconhecer um
fato ainda incontestável: seja lá qual for o ouvinte para o qual ela tem se dirigido,
Gal continua sendo uma das melhores cantoras brasileiras.
Editado por - Ana Paula Ribeiro Maia em 23/03/2004 00:18:15
Queria ser engenheira. Quem sabe até trocadora de ônibus. Mas sonho mesmo,
desses de ficar horas pensando sobre, desses que a gente deseja tanto que
acaba sendo realizado, era só um: ser cantora.
Um sonho incentivado muito por D. Mariah, sua mãe, que, sempre que tem
oportunidade, conta ter passado os nove meses de gravidez ouvindo rádio. Foram
mais ou menos assim os primeiros anos de sua vida de Maria da Graça Costa
Penna Burgos.
Não tinha cachorro, nem gato. Que se lembre, animal de estimação era uma
galinha chamada " boazinha ". Amarrava-a num barbante meio comprido e saía a
passear com ela pelas ruas do bairro da Graça, em Salvador.
Quando as coisas começaram a ficar difíceis, Gracinha teve que trabalhar. Não foi
ser trocadora de ônibus, também não tinha diploma de engenheira, mas nunca
deixou de ouvir seu rádio, e a paixão pela música foi crescendo com ela.
E quando resolveu que ia trabalhar pra ajudar nas despesas da casa, pintou um
emprego em uma loja de discos. Para Maria da Graça, juntou-se o útil ao
agradável. Na loja - pertencente ao Roni, que muitos, mas muitos anos depois,
promoveria na capital baiana o show Caetano & Chico - ela ficava sabendo de
tudo que era novidade dentro da música e dos lançamentos de discos.
" Ainda nesse dia, ele me levou pra casa, conheceu minha mãe, indagou se mais
alguém na família era ligado à música, pra saber aquela coisa de hereditariedade
musical e tal. Depois ele viajou e me escreveu uma carta dos Estados Unidos. Só
vim a encontrá-lo muitos anos depois, no Rio de Janeiro. Telefonei para o hotel
em que estava hospedado e pedi pra falar com ele. Perguntaram-me quem era e
eu disse " Gal Costa " ( porque eu já era cantora famosa ). Depois de esperar um
bom tempo; João atendeu o telefone e disse: " Gracinha! " Como sempre me
chamou. Perguntou onde eu estava, dei o endereço da minha casa e ele disse que
estava indo pra lá. Eram quatro horas da tarde. Chegou a uma hora da
madrugada. "
E foi também, mais ou menos na época em que Gracinha conheceu João Gilberto
na Bahia, que ela veio a conhecer uma outra pessoa, também ligado à música,
mas nem um pouco famoso quanto João. Chamava-se Caetano Veloso.
" Foi porque a laisinha ( conta Caetano ) que era professora de dança de Dedé,
queria me apresentar uma menina que cantava bem. E aí marcou para eu ir
encontrar a Dedé, pra eu conhecer a vizinha dela que cantava bem. E então eu
fiquei conhecendo as duas. Elas contam que no princípio ficavam pensando com
quem eu iria namorar. As duas falavam que queriam namorar comigo. "
E este novo amigo ou futuro namorado de Gracinha teve de cara algo em comum
com João Gilberto. Os dois pensaram a mesma coisa a seu respeito, como conclui
Caetano: " No mesmo dia em que conheci Gal, logo que eu vi cantar eu disse: "
Você é a melhor cantora do Brasil. "
Depois de Caetano Veloso, Maria da Graça veio conhecer sua irmã, Maria
Bethânia; um outro rapaz que a esta altura já cantava na televisão nos programas
de Carlos Coquejo, chamado Gilberto Gil e a maioria das pessoas que transavam
música em Salvador.
" Na Bahia formávamos um grupo e já havíamos feito dois shows e estávamos nos
preparando pra fazer o terceiro. Foi exatamente quando Nara chegou à Bahia,
conheceu Bethânia, ficou encantada com ela e resolveu chamá-la para substití-la
no " Opinião ". Coincidentemente eu já tinha passagem comprada para ir ao Rio
de Janeiro. Não para trabalhar. Ia pra passear, fazer turismo. Eu só havia ido ao
Rio uma vez na vida, quando eu tinha seis anos. E a vontade de conhecer direito
era muito grande. "
" Foi então que Bethânia começou a trabalhar, a fazer sucesso e eu,
automaticamente, fui conhecendo as pessoas ligadas à música no Rio. Realmente
foi por causa de Bethânia. Foi ela quem puxou o grupo. Eu gravei uma música
com ela - " Sol negro " - em seu primeiro disco. Era uma música que Caetano
Veloso havia feito pra gente cantar e que nós duas já cantávamos nos shows da
Bahia ."
Com a música " Minha senhora " ( Gilberto Gil e Torquato Neto ), ela participou do
I festival internacional da canção. Seu primeiro LP aconteceu pela Philips, onde
cantava algumas faixas do disco Domingo em que também participava Caetano
Veloso. Antes disso, relembra: " Fizemos um espetáculo teatral, em São Paulo,
dirigido por Augusto Boal, onde Bethânia era a estrela principal e todos nós
participávamos como cantores e atores ( 1965 - Teatro brasileiro de comédia - "
Arena canta Bahia " ).
Uma época sombria surgiu para Gracinha. Quase que ela não agüenta e larga
tudo; desiste e volta prá Bahia. As coisas não estavam fáceis, o dinheiro era
pouco, nem dava pro aluguel. E, de repente, a angústia pintava brava. Chico
Buarque foi um dos que ajudaram-na muito. Levou-a até Marcos Lázaro que, por
sua vez, acertou vários programas para que ela participasse na TV Record de São
Paulo. Entre eles, " O fino da bossa " e " Aguinaldo Rayol show ".
Aí Guilherme Araújo achou que Maria da Graça não era nome de cantora. Pelo
menos não era um nome assim meio com pinta de nome de cantora. E optou por
Gal. Gal Burgos, não dava. Gal Penna também não. O que combinava mesmo era
Gal Costa.
No III festival de música da TV Record, Caetano Veloso e Gilberto Gil deram a Gal
uma música chamada " Divino maravilhoso ".
" Eu tinha uma tendência à busca do canto perfeccionista. Aquela coisa de João
Gilberto, né? Com o tropicalismo eu procurei explorar exatamente o outro lado do
meu canto, que era o canto rasgado, emocionado. Nessa época o que me
influenciou muito foi ter conhecido o trabalho de Janis Joplin, através do disco
Kosmic Blues.
" Junto com Caetano e Gil eu precisei também buscar uma coisa nova. Assim
como a bossa-nova deu outra visão para meu canto, o tropicalismo também veio
mexer comigo. Como eu estava começando a levar uma vida profissional, eu senti
mesmo uma necessidade de inovação ".
" Lembro-me que Gil quando estava fazendo o arranjo de " Divino maravilhoso "
perguntou-me de que maneira eu queria cantar a música. Eu disse que queria o
oposto do que vinha fazendo. Queria uma coisa explosiva. Fomos então para uma
salinha, escolhemos o tom. Gil começou a fazer o outro ensaio - já na TV Record -
ele se espantou. Disse: O que? quem é? Essa é Gal? Não é não! ".
Mas era. E foi mais, como chamou a crítica " a primeira dama do tropicalismo ".
Gal Costa, como " Divino maravilhoso ", alcançou a popularidade de principal
intérprete do movimento tropicalista e o terceiro lugar naquele festival.
Só depois de tudo isso é que, finalmente, Gal Costa teve seu primeiro LP
individual lançado pela Philips. Depois, show em São Paulo, no Teatro de Arena,
produzido por Guilherme Araújo.
" Eu me senti perdida, me senti violada, roubada. Muita angústia, tristeza, raiva. E
risco. Lembro-me que fiquei muito abalada. Lembro-me também que eu cantava a
música " Se você pensa " em homenagem
a eles ".
Mas eu sentia que cantava muito em nome deles também. Como se estivesse
gritando por eles. Uma coisa muito de irmão mesmo. Isso estava muito claro pra
mim, pra minha cabeça. Eu sempre ia lá, visitá-los. Sempre ficava assim por uns
dois meses. Na primeira vez que revi Caetano ele cantou " London, London ". Eu
me apaixonei e trouxe para gravar ".
De volta ao Brasil, nova apresentação na boite sucata, no Rio, lançando com êxito
a música "London, London". Seu LP Legal teve nesta e na música "Deixa sangrar"
dois de seus maiores sucessos.
Paulo Lima, Hélio Oiticica e Duda transaram para Gal o show "Deixa sangrar" que
estreou no teatro opinião, no Rio de Janeiro. Depois, foi encenado em diversas
capitais, entre elas São Paulo, no teatro vereda.
1972 foi o ano que todos são unânimes em afirmar como marco para a carreira de
Gal Costa, que conseguiu seu amadurecimento como artista quando esteve em
cartaz no Rio de Janeiro com o show "FA-TAL", dirigido por Waly Salomão.
"De certa forma, Waly Salomão foi responsável por meu impulso teatral, assim
como de certa forma Bethânia também foi responsável. Porque, na época que eu
fiz "FA-TAL", ela estava fazendo "Rosa dos ventos". Ela estreou antes de mim, e
quando eu assisti ao seu show fiquei louca. E passei a assistí-lo praticamente
todas as noites. Pô! Mas eu chorava tanto! Era a coisa mais linda que eu tinha
visto na minha vida. Bethânia me deu muita coisa pra fazer o "FA-TAL". Coisa de
pique mesmo. Assim como Janis me deu na época do tropicalismo".
"Caetano ia dirigir o "India". Já estava tudo acertado. Mas, na última hora, ele não
pôde. Nem me lembro direito quais foram as razões. Mas ele acabou dando
muitas idéias para o show. Sugeriu que eu cantasse "India", que meu pai cantava
muito. Mandou algumas músicas da Bahia como "Da maior importância" e fez
"Relance" junto com Pedrinho Novis, especialmente prá mim".
Depois Gal Costa jogou-se corajosamente em uma das maiores maratonas de sua
carreira: um circüito universitário que compreendeu a maioria das cidades do
interior paulista e do Paraná.
Voltando ao Rio com grande popularidade, Gal lança então o disco Cantar que
não chegou a fazer o mesmo sucesso de India e que, segundo Gal, não foi muito
entendido por seu público.
"Cantar" era um show que eu gostava muito e é um disco que até hoje adoro;
quando ouço me emociono. Mas foi uma fase difícil na minha carreira. Foi o disco
que menos vendeu e o show que mais críticas contrárias recebeu e, se não me
engano, também foi o show que menos público teve".
"Eu mostrava um lado da cantora que sou e que o grande público desconhecia.
Naquela época meu público era constituído 99% de jovens. E eles conheciam o
outro lado do meu canto que era o "FA-TAL" e aquelas coisas extrovertidas que eu
fazia. Então meu público, de uma maneira geral, rejeitou aquele espetáculo. Não
gostou. Mas foi uma fase importante, porque desde "FA-TAL", passando por
"India" e chegando a "Cantar", houve uma transição muito clara em minha
carreira".
Gal Costa mostra porque é uma cantora completa. Após perder a cantora para a
Indie Records, a BMG vai lançar um CD com pérolas que foram gravadas por Gal
entre os anos de 1984 e 2001. Um dos destaques é a música "Cabelo
Raspadinho", cantada pelo Chiclete com Banana, que foi eleita a melhor música
do Carnaval de Salvador, no melhor estilo da axé music, além de "Alto Lá", um
samba de Zeca Pagodinho.
Por: AT
Difficile dire cosa sia esattamente che provoca il fallimento degli ultimi album di Gal
Costa, da qualche anno a questa parte. Le aspettative alte, forse. Oppure una
indubbia perdita di originalità nella scelta del repertorio e negli arrangiamenti.
Certamente la scelta di difendere la proprie posizione di icona sacra del pop
brasiliano evitando i rischi, le scommesse, il mettersi in gioco come a inizio
carriera. E’ il caso anche di questo "Bossa Tropical", in cui Gal si trincera dietro la
solita ricetta eclettica di mescolare vecchi classici ("O Amor em Paz", "The Fool on
the Hill"), vecchio rock ("Mulher" di Narinha), nuovo rock ("Socorro" di Antunes),
umori bahiani ("Cada Macaco no seu Galho") e strizzate d’occhio agli standard
americani ("As Time goes by"). Apparentemente non ci sono grossi salti rispetto
alla politica tropicalista ortodossa e forse il punto è proprio questo: al mutare del
contesto, all’evolvere della tecnica e della sensibilità di pubblico e compagni
musicisti, questo eccesso di staticità uccide arte e fantasia. Non ha senso
riproporre ora il cocktail di sempre: suona stonato, datato, conservatore. E
purtuttavia qualche cambiamento, l’impietosa patina degli anni, si avverte. La voce
di Gal, più matura e controllata, si è però come inacidita, inspessita, ha perso
quella sua incantatoria dolcezza e trasparenza cristallina. Triste doverlo
constatare. Detto questo, il lettore può avere avuto l’impressione che "Bossa
Tropical" sia un album brutto, da evitare. Non è così. Si tratta solo di un album che
non aggiunge nulla, un pochino sottrae, ma resta in buona sostanza piacevole e
ascoltabile, a patto di non richiamare alla memoria i capolavori degli Anni ’60 e ’70
e qualche perla episodica dei decenni successivi. Un album come potrebbero
produrlo molte altre cantanti attuali del panorama brasiliano, ed è forse questo che
rimane difficile da perdonare. "Mulher", "Cada Macaco no seu Galho" e "Epitafio" di
Chico Cesar sono gli episodi più felici e tentano come possono di riscattare l’alone
di sottile opacità che aleggia su tutte le track.
Traduçao Giorgio/Itália
Difícil dizer o que é exatamente que provoca a falha dos últimos álbuns de Gal
Costa, há alguns anos. As altas expetativas talvez. Ou uma clara perda de
originalidade na escolha do repertório e nos arranjos. Certamente a decisão de
defender a própria posição de ícone sagrado do pop brasileiro, evitando os riscos,
as apostas, e colocar-se no jogo como no começo da carreira. É o caso também
desse 'Bossa Tropical' em que Gal se entrincheira atrás da habitual receita
eclética de misturar velhos clássicos ("O Amor em Paz", "The Fool on the Hill"),
velho rock ("Mulher" de Narinha), novo rock ("Socorro" de Antunes), jeito baiano
("Cada Macaco no seu Galho") e piscadas de olho aos standards americanos ("As
Time goes by"). Aparentemente não há grandes saltos a respeito da política
tropicalista ortodoxa e talvez o ponto esteja próprio aqui: mudando o contexto,
desenvolvendo-se tanto a técnica quanto a sensibilidade do público e dos colegas
músicos, esse excesso de estatismo mata a arte e a fantasia. Não tem sentido
tornar a propor agora o cocktail de sempre: toca desafinado, datado, conservador.
E contudo percebe-se alguma mudança, a impiedosa pátina dos anos. A voz de
Gal, mais madura e conferida, é mais grossa; perdeu a sua doçura encantadora e
a sua transparência cristalina. É uma triste constatação. Tudo isso não quer dizer
que 'Bossa Tropical' é um CD feio: não é assim! Trata-se apenas de um álbum
que não acrescenta nada de novo, um pouco subtrai sim, mas sustancialmente
permanece agradável, com quanto que não se lembre as obras primas dos anos
60 e 70 e alguma pérola episódica das décadas seguintes. O que talvez seja difícil
de perdoar é que esse é um álbum que poderia ser realizado por uma qualquer
das outras cantoras brasileiras de hoje. "Mulher", "Cada Macaco no seu Galho" e
"Epitáfio" são os episódios mais felizes e que podem resgatar o elo entre todas as
outras músicas.
Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 17/07/2004.
O Dia
Coluna Estúdio - Mauro Ferreira
25/02/2003
Phono 73 em DVD
As imagens do histórico show Phono 73 - que reuniu em 1973 todo o elenco da
antiga gravadora Phonogram, incluindo Caetano Veloso, Chico Buarque, Elis
Regina, Gal Costa e Maria Bethânia - estão sendo recuperadas para lançamento
em DVD. Em 1997, a gravação do show - feita ao vivo no Palácio das Convenções
do Parque Anhembi, em São Paulo (SP) - foi reeditada em coleção de três CDs.
Um dos antológicos números musicais foi o dueto de Gal e Bethânia em Oração
de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi.
O GLOBO
SEGUNDO CADERNO
Depois da meia-noite
Antonio Carlos Miguel
Uma insuspeitada memorialista está quicando na área, mas tão cedo seus textos
não devem virar livro. Textos como os que o GLOBO publica com exclusividade e
aos quais Gal Costa tem dedicado muito de suas madrugadas.— Nunca durmo
antes das quatro da manhã, e quando a casa se acalma, depois da meia-noite,
fico no computador escrevendo — conta Gal, que, menina, gostava de fazer
redações, mas só retomou o hábito nos últimos anos, quando aderiu ao
computador e à internet. — Escrevo há algum tempo, sem uma ordem
cronológica. São fragmentos da memória que separo por temas. Não sei como
será o livro, alguém terá que organizar os textos, mas é cedo, só pretendo editá-lo
quando ficar velha (risos) . Antes disso tenho muitos projetos.
Projetos que, provavelmente, renderão muitas outras histórias para o futuro livro.
Empolgada com os novos rumos de sua carreira, a cantora, que na semana que
vem, entre os dias 28 e 31 de outubro, volta ao Canecão com o show “Todas as
coisas e eu”, no momento negocia sua transferência para a gravadora Trama e
planeja um novo disco.
— Eu tinha uns 19 anos, estava com Caetano, Dedé e Piti na Rural Willys de um
amigo, quando furou o pneu e o carro rolou pela ribanceira — conta. — Como a
gente vinha devagar, ninguém se machucou, mas fiquei muito traumatizada com o
acidente. Então, outro amigo sugeriu que fizesse algumas sessões de análise,
mas como eu ficava completamente travada e não conseguia falar nada, o
psicanalista pediu que eu escrevesse. Passei a registrar tudo, inclusive os meus
sonhos. Certo dia, Caetano me viu com uns papéis na mão, perguntou o que era,
pediu para ler e adorou, disse que escrevia muito bem e que deveria continuar
com aquilo.
Gal não seguiu o conselho do amigo — que depois iria se tornar seu principal
compositor — mas se o Brasil perdeu naquela época uma escritora promissora,
ganhou uma de suas melhores cantoras. Nos trechos de suas memórias ela revela
a premonição que teve na adolescência de que seria famosa, e conta que até hoje
tem antevisões. Um dom que, no entanto, não costumava falar para ninguém,
“porque receio que, se contar, essa espécie de encantamento poderá se partir e
impedir a sua realização”.
A QUASE FUGA São Paulo no início foi barra. Acontecia tudo com os outros.
Comigo nada. Desanimei, não vi mais sentido de ficar naquela cidade enorme,
perdida, nada acontecendo. Decidi voltar para a Bahia. Chamei Dedé e disse:
“Vou-me embora”.Dedé foi para casa, naquele tempo na São Luís, contou para
Caetano que eu iria embora. Ele, mais do que depressa, disse: “Diga a ela para
não voltar. Ela tem que ficar”. Fiquei.
OS DOCES MONGES Gil disse uma vez que nós quatro, Gil, Bethânia, Caetano e
eu, somos um. Os Doces Bárbaros. As quatro entidades são independentes, mas
juntas, formamos uma entidade única. Somos os quatro fortemente
espiritualizados. Temos uma estranha comunhão de espírito. Juntos, formamos
uma quinta energia. Com Caetano, principalmente, parece que nos conhecemos
há 180 anos. Ou há milênios. Digamos até em vidas passadas, quem sabe?Num
programa de TV, nos anos 80, Caetano disse que nós tínhamos uma identificação
musical: como se dois monges tivessem uma iluminação ao mesmo tempo e não
precisassem dizer nada um ao outro para serem entendidos. E essa iluminação,
esse ponto de luz, de contato, seria João Gilberto, nossa origem musical.Meu
primeiro disco, “Domingo”, foi isso: uma comunhão total, nós dois éramos um só,
eu me sentia a voz de Caetano. Creio que ele também sentia isso.Mergulhei com
ele no tropicalismo, fiz “Fatal”, “Índia”, com forte acentuação desse movimento. Foi
quando resolvemos mudar um pouco a história. Caetano queria que mostrasse a
minha essência de cantora. E veio o “Cantar”. Nem o show nem o disco
emplacaram. Foi uma mudança radical. Neles eu recolhia as minhas feras, as
minhas garras, e partia para mostrar um lado mais legitimamente meu.Com o
fracasso do “Cantar” fiquei retraída, entrei em crise, três anos sem fazer nada.Foi
quando Roberto Menescal me sugeriu cantar Caymmi. Deu certíssimo. Levamos o
show a Buenos Aires. Lá estava Guilherme Araújo, que, durante o show, teve a
idéia de realizar o “Gal tropical”, que viria a dar um rumo definitivo na minha
carreira. Ao mesmo tempo eu tinha mais uma das minhas premonições: a certeza
de que o show iria ficar um ano em cartaz. Ficou um ano e dois meses no
Rio.Caetano estava de férias na Bahia e veio ao Rio assistir ao show. Chegou aos
prantos ao camarim. Aos soluços. Não conseguia falar uma palavra. Tempos
depois me telefona dizendo querer falar comigo. Em casa, os dois sentados na
minha cama em posição de lótus, ele me dizia que não gostara, que o show era
careta, mas que não poderia comentar isso em público, pois o “Tropical” era uma
unanimidade nacional e não ficava bem para ele ir contra a corrente.Fiquei
arrasada. Apesar de toda a crítica ter posto o show nas alturas, de todos os meus
amigos, meus colegas, todos me cobrirem de elogios, Caetano ali na minha frente,
justo ele que era a opinião mais importante para mim, dizia não ter gostado.Só
agora, mais de 20 anos depois, entendo as lágrimas dele no camarim. Naquela
hora ele percebeu que nascia uma nova Gal, que ele perdia a sua criatura, que eu
poderia partir para sempre sendo eu mesma. Como um pai que via a sua filha sair
de casa. Livre e independente.Livres e independentes, mas ainda juntos
iluminados. Como dois monges. (Gal Costa)
Janela da Graça
Gal Costa
Uma vez, quando criança, tive uma premonição muito forte. Morava na Graça
numa casa muito simples. Dedé e Sandra (irmãs que foram casadas,
respectivamente, com Caetano Veloso e Gilberto Gil) moravam em frente. Tinha
duas janelas e um portão. Estava sentada numa das janelas lendo um gibi,
quando passou do outro lado da rua um rapaz, um cantor, que cantava na
televisão local da Bahia. Era uma televisão bem irregular com programas ruins e
alguns bons, como o do Carlos Coqueijo, por exemplo.
Eu me lembro que a rua toda correu, meus amigos, meus colegas, todos correram
para o cara com pedaços de papel na mão pedindo autógrafos. E pensava: “Que
coisa sem sentido. Um pedaço de papel, que importância tem a assinatura de um
cara num pedaço de papel? Que coisa ridícula”.
Feliz da vida, consegui uma vaga numa kitchenette na Sá Ferreira onde só podia
dormir e tomar banho. O resto do dia era passado em casa de primos, amigos e
da turma da MPB.
Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 15/11/2003
ISTOÉ -
Gal Costa e Caetano Veloso (Metropolitan, Rio de Janeiro, dia 8, e Concha
Acústica do TCA, Salvador, 14 e 15) - Não é sempre que se tem oportunidade de
ver reunidos no mesmo palco duas das maiores estrelas da música brasileira. A
chance veio a propósito do lançamento da trilha sonora do filme Tieta do Agreste,
de autoria de Caetano com participação de Gal. Todo o show é feito em cima de
músicas marcantes do cinema nacional. Tem desde a trilha em questão, passando
por uma revigorada À flor da pele, em ritmo acelerado pelos ótimos tambores da
Didá Banda Feminina, até a belíssima música de Porto das caixas, composta por
Tom Jobim. Caetano Veloso, sempre um ótimo cantor, poderia muito bem poupar
a platéia da chatice de comentários dispensáveis. Sua atitude só confirma o que a
partir da terceira música se desconfia. O espetáculo é de Gal Costa, a melhor
cantora. Principalmente depois que ela interpreta, com os arranjos originais, as
definitivas Vapor barato e Baby.
VALE A PENA
Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 02/03/2004.
Gal Costa diz em Nova York que gravadoras
desprezam a MPB
LUÍS ANTÔNIO GIRON
Enviado especial a Nova York
A cantora baiana Gal Costa, 49, mostra hoje, no Carnegie Hall de Nova York, seu
show ``Mina d'Água do meu Canto". Os ingressos para o espetáculo se esgotaram
há uma semana.
É uma das maiores atrações do JVC Jazz Festival, tradicional evento de verão
que anima a cidade durante dez dias.
``Já tenho um público cativo aqui", diz Gal, no lobby do flat Del Monico, na rua 59,
perto do Central Park. ``Já não fico ansiosa com uma estréia. É como se eu viesse
para cá fazer uma festa. Não é como no Brasil, onde temos uma história, e cada
show tem um enorme significado."
O espetáculo compreende um repertório de clássicos de Caetano Veloso e Chico
Buarque. Uma banda de sete músicos dá conta de arranjos camerísticos,
tendendo para o orquestral, a cargo do diretor artístico do show, o violoncelista
Jaques Morelenbaum.
``Mina d'Água do meu Canto" é também o nome do novo CD de Gal, que foi
lançado com o show em 10 de maio no teatro Castro Alves em Salvador,
percorreu o Nordeste e aterrissou em San Francisco no último sábado. Gal cantou
lá para 2.000 pessoas.
``Tinha muito americano na platéia", comenta. ``Nas minhas turnês tenho notado
que os estrangeiros vão aprendendo aos poucos a cantar nossa música em
português. A MPB ensina os outros povos a falar português. A música brasileira
vai salvar o português do esquecimento porque difunde a língua através das
canções."
Apesar do sucesso de público e da carreira consolidada, Gal não viu seu disco
nas lojas de San Francisco.
``Fiquei chateada porque noto que as gravadoras não se dão conta da importância
da música brasileira no exterior. É o nosso grande produto de exportação, mas as
gravadoras desprezam o que têm. Elas deveriam investir nos lançamentos dos
CDs brasileiros no exterior, mas não o fazem."
Ficou de olhar se o novo CD está nas lojas de Nova York no passeio que faz hoje
pela cidade. ``O que eu mais gosto daqui é a sensação de anonimato", sorri.
``Ando pelas ruas sem que ninguém me reconheça. Quando alguém nota é
argentino."
O espetáculo vai à Europa em julho e estréia em São Paulo, no Palace, em 14 de
setembro.
É a terceira vez que Gal se apresenta no teatro que lançou internacionalmente a
bossa nova em 1962, com o show protagonizado por Tom Jobim e João Gilberto
(modelos estéticos da cantora). O primeiro show foi há dez anos.
Mas é a primeira vez que canta na cidade sem a companhia de Tom, morto em
Nova York em dezembro do último ano: ``Esta era a cidade do Tom, e para mim é
muito triste não encontrá-lo mais aqui".
Em memória do mestre, Gal canta hoje três músicas de Tom. Quer também
apresentar ao público a faixa-título do disco, composição de Caetano e Chico em
homenagem ao maestro.
Outra modificação do show é a exigência do intervalo e da luz branca, sem
cenário. ``O Carnegie Hall mantém a tradição de casa de concerto", diz Gal. ``E eu
não deixo de me mostrar como uma concertista, despida dos ornamentos de um
show habitual."
Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 21/10/2004.
ENTREVISTA COM DANIEL FILHO, EM 2001:
ISTOÉ – Gal Costa envolveu-se numa polêmica ao defender publicamente o
senador Antônio Carlos Magalhães, acusado de violar o painel de votação secreta.
Isso pode afetar a carreira do disco Gal de tantos amores?
Daniel – Gal, Bahia, ACM, tudo isso é um mundo inteiramente à parte. A Gal é
muito fiel à amizade. É capaz até de cometer um pecado para se manter fiel.
Temos que ser mais democratas, a posição da Gal é exclusivamente dela e, na
minha opinião, não afeta a artista. A manifestação é sincera, ela fez sem pensar
uma, duas vezes. Foi levada pelo instinto. Nem sei se prestou atenção no que
estava fazendo. De qualquer forma é impossível deixar de ouvir a Gal. É uma
coisa nova pra mim, nunca tinha feito um disco com uma cantora da envergadura
de Gal Costa. E vi a dificuldade que é arranjar novas músicas, boas letras... Mas,
no final, ficou tudo maravilhoso. O disco é lindo. Se a polêmica vai atrapalhar, não
sei, não é um problema meu, é da gravadora BMG.
Publicado em www.galcosta.com.br
Acesso em 14/10/2004.
MAIS SOM, MENOS FRUFRU (Veja, 20/06/1990)
"Gal Costa agrada num espetáculo em que as corridinhas brejeiras foram
substituídas pela técnica vocal"
**********
Uma Gal Costa com ares de Elis Regina surpreende o público no show PLURAL,
em cartaz no Palace, em São Paulo. O espetáculo, que deverá ficar em cartaz por
quase dois meses e fará escalas em capitais da América Latina antes de
desembarcar no Rio de Janeiro, em outubro, representa uma virada na carreira da
cantora. O sucesso dos shows de Gal Costa sempre se apoiou na inclusão de
músicas estouradas nas rádios - como "Massa Real" ou "Festa do Interior" - e na
alta voltagem conseguida pela cantora no palco, contagiando a platéia com seu
desempenho vulcânico. PLURAL segue numa direção diferente. Em vez de lançar
mão de sucessos consagrados, Gal se apóia num repertório pouco conhecido,
embora ele inclua monstros sagrados e gênios da música popular brasileira, como
Noel Rosa e Lamartine Babo. Com essa pirueta, Gal, aos 44 anos, pretende
seduzir o público não pela empolgação mas pela técnica, apostando tudo em sua
exuberância vocal. Consegue seu intento. Em PLURAL, ela demonstra que hoje,
mais do que um vulcão em cena, é uma excelente cantora.
Outra novidade de PLURAL, que também aproxima Gal de Elis Regina, é que se
trata do primeiro show da cantora baiana que tem uma idéia por trás, com três
blocos distintos divididos em função do repertório. Esses blocos são tão
independentes e definidos que é como se o espectador assistisse a três shows
diferentes pelo preço de um. O primeiro é o mais radical. Nele, Gal Costa deixa de
lado as roupas e coreografias esfuziantes, as freqüentes corridinhas em cena, os
frufrus, joujous e balangandãs de folclórica baianidade que sempre foram sua
marca registrada e se faz acompanhar apenas do violão do virtuose Rafael
Rabello. É um bloco para se ouvir de olhos fechados. Dialogando com o incrível
violão de Rafael, que parece trazer um contrabaixo embutido nas cordas graves e
um piano nas agudas, Gal recria, em um clima intimista, músicas como CORDAS
DE AÇO, de Cartola - o arranjo é o mesmo usado por Rabello para acompanhar
Luís Melodia no Lp "Bate Outra Vez"... -, e CAMISA AMARELA, o clássico de Ary
Barroso. Nesse momento do show, o palco fica quase às escuras e Gal mal olha
para a platéia, concentrada em suas interpretações.
Este fascinante trabalho confirma também uma tradição na carreira de Gal Costa.
De alternar shows catastróficos com deslumbramentos. Em seguida. Quem está
hoje no palco do Canecão nem parece parente da artista que a todos espantou há
dois anos no Scala com pífios repertório e interpretações. Agora atinge
exatamente o extremo oposto. Felizmente. Seu PLURAL começa com uma
saudação do grupo Raízes do Pelô, que na temporada carioca substitui o Olodum,
que se apresentou com ela em São Paulo. Com um traje controverso, muito bem
feito, mas que a engorda por excesso de panos, inicia sua fulgurante trajetória
vocal no espetáculo que dura exatamente uma hora e quarenta e cinco minutos.
Durante este tempo não abandona uma vez sequer o palco e nem toma um copo
de água para refrescar a garganta. Vai ver não precisa mesmo, é privilegiada
demais.
Ela trabalha muito bem, com técnica e emoção. Que reafirma logo de início ao
lado apenas de Marco Pereira, o substituto no Rio de Rafael Rabello,
interpretando CORDAS DE AÇO, de Cartola; CAMISA AMARELA, de Ary Barroso;
ÚLTIMO DESEJO, de Noel Rosa; e FALSA BAIANA, de Geraldo Pereira. De tirar
o fôlego o cristal de sua voz. Não precisava, apenas, ficar se agarrando com os
músicos, pois a imagem não fica bonita. Depois dos clássicos, uma quente mistura
com a banda. Com destaque para composições de João Donato, a engraçada
RUMBA DE JACAREPAGUÁ, de Haroldo Barbosa; os boleros ALGUÉM ME
DISSE, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia; MIL PERDÕES, de Chico Buarque,
cortados pelo incomparável samba FEITIO DE ORAÇÃO, de Noel Rosa. Do
mesmo autor se excede em COISAS NOSSAS. Apenas HOLOFOTES , de João
Bosco, Waly Sailormoon e Antonio Cícero e AÇAÍ, de Djavan, destoam do nível
geral. Mas é de arrepiar o que faz com TROPICÁLIA, de Caetano Veloso. Sem
saudosismos. Descrição épica de realidade imutável.
O final é notável. Com o grupo Raízes do Pelô retorna e se prova verdadeira
baiana. Negra na alma. Quando voltam ao Brasil nossos artistas são realmente
universais. O corte final é com EU SONHEI QUE TU ESTAVAS TÃO LINDA, de
Lamartine Babo. No bis, BRASIL, de Cazuza. Fascinante, cristalino, fecundo.
fundamental para nós este momento em que Gal Costa se torna divina.
A vida é curta e depois a gente morre, e raras são as vezes que se tem o privilégio
de estar no lugar certo, na hora certa.
A Gal que entra em cena é a Musa Misteriosa que canta Caymmi e Macalé, Noel
Rosa e Luiz Melodia, Guarânia e Samba-Canção e Afoxé e Rock N'Roll; a
brasileira entre as grandes damas da canção (como Billie Holiday, Aretha Franklin,
Dione Warwick, Mavis Staples, Mahalia Jackson, Marion Willians). Que me
perdoem os órfãos de Elis Regina, os tietes de Marisa monte e derivados.
O espetáculo ilumina, contrasta e surpreende, com forte consciência cênica.
É epifania pura e a razão que talvez me leve a este show pela quarta, quinta vez.
No show, prioridades são invertidas e é a banda que, sutilmente, faz a cama para
o ritmo vir à frente e detonar o transe. A lei da gravidade deixa de vigorar no
auditório e o Olimpo de Gal recebe os tambores, os sintetizadores e nós,
seduzidos sem misericórdia. Queimo as pestanas tentando lembrar onde e
quando, se é que vi/ouvi algo assim nas duas últimas décadas. Só chegam perto
os breves instantes de MISÉRIA, dos Titãs, em que surgem Mauro e Quitéria. Um
território quase virgem, o futuro da música brasileira. Graças aos bons deuses
ainda existem artistas como Gal, Waly, Olodum, Muzenza, para iluminar um
caminho cuja bússola não veio regulada pelo GMMC (Grande Monstro do
Marketing Corporativo). Graças aos bons deuses, estão cogitando um novo
PLURAL gravado ao vivo. Que seja, então, um álbum duplo com o ESPETÁCULO
COMPLETO. E ainda é pouco: o show merece um vídeo com câmeras e edição
do nível de NEW TOWN, registro da última turnê européia de Bryan Ferry - que
aliás, junto com T.S.Eliot, nasceu no mesmo dia (26 de setembro) que esta
hipnótica/convulsiva/alucinógena/afrodisíaca/fatal/tropical/plural/verdadeira/falsa
baiana universal cujo nome é Gal.
**********************************************************************
Quem chegou a sugerir que o trono das cantoras brasileiras estaria em disputa,
pode desistir. No show que estreou anteontem, no Palace, Gal Costa não deixa
qualquer dúvida que o cetro continua sendo seu. GAL PLURAL mostra não só
uma cantora completa e a todo vapor vocal. Após alguns anos mais colada nos
hits banais de rádio, ela encontra uma nova cara caindo de boca na negra
baianidade dos blocos afros de Salvador.
Fundamental. No próximo sábado, dia 6, Gal Costa estará apresentando seu show
PLURAL, na Alemanha. Já no domingo seguinte ele será a principal atração da
famosa noite brasileira do Festival de Montreux, na Suíça. Depois segue para o
México onde o apresentará em outro encontro internacional que reunirá grandes
nomes da música latina diante de platéia de notáveis e presidentes de muitas
nações desta origem. Convites merecidos pela cantora brasileira e
desenvolvimento natural da carreira de um show que só conheceu sucesso por
aqui e já mesmo no exterior, como na Argentina. Um caso de justiça, pois é uma
das mais importantes expressões de nossa cultura nos últimos tempos.
E que começou essa carreira de sucesso num momento muito importante para as
nossas tristes cabeças subdesenvolvidas. No final de 90, quando ela estreou em
São Paulo, a mídia e a opinião pública da desastrada elite brasileira tinham
determinado que a tradicional música popular da terra era uma espécie em
extinção. Bom mesmo era o "rock in Brazil", atitude gozada até pela imprensa
norte-americana que ficou pasma de trocarmos o melhor refrigerante do mundo,
como eles chamam o natural guaraná, por qualquer água negra naquele
espantoso e humilhante festival do Maracanã para os ricos, enquanto os pobres
não deviam sair do gueto sertanejo e brega. Motivo de deboches só suplantado
em gargalhadas pelo contrabando explícito de lambadas e ritmos baianos para o
exterior. Achavam que os contraventores eram otários.
Tomara que todo esse sucesso dê muitos frutos. No campo estritamente musical
para que deixemos de ser exportadores de matéria-prima e voltemos a ser
Primeiro Mundo nessa arte. E ajude a cultura nacional, pois só haverá
desenvolvimento entre nós quando a compreendermos melhor. É o único pacote
que pode funcionar em mentalidades e corações.
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Desde quinta-feira e até o dia 18 deste mês, Gal Costa exibe a afinação
irretocável de sua voz no espetáculo PLURAL, que chega ao Canecão depois do
grande sucesso da temporada paulista e das apresentações em Buenos Aires que
emocionaram até o Presidente da Argentina, Carlos Menem. PLURAL registra
uma virada das mais importantes na carreira de Gal, que decidiu mudar o formato
de seus shows com o objetivo de valorizar ainda mais o ato de cantar.
"Refleti muito sobre mim mesma e cheguei à conclusão que precisava dar esse
pulo, abandonar algumas coisas mecânicas da profissão e sair da crise
existencial"
BRASIL - É um país lindo, que apesar desta pobreza é muito rico e talvez não
tenha noção de todo o seu potencial.
RIO DE JANEIRO - Não tem jeito, é mesmo a cidade mais linda do mundo.
ATLETA - Pelé.
CIDADE - São muitas: Salvador, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Veneza e Paris.
MANIA - Nenhuma.
PAIXÃO - Pelo palco e pelo meu sítio quando estou plantando ouvindo o silêncio
da natureza.
VAIDADE - Já fui mais vaidosa, hoje estou mais relax, mas sempre preocupada
em manter o peso ideal e me sentir bonita.
VELHICE - Não sei ainda, mas prefiro lembrar da sabedoria e da experiência que
se adquire.
SONHO - Ter um filho e sempre seguir cantando com esta mesma vitalidade, mas
sujeita a mudanças e transformações que me façam mais feliz.
Acesso em 23/04/2004.
Seu nome é Gal
A cantora Brasileira Gal Costa, veio ao país pela terceira vez. Nesta
oportunidade oferecera sete shows na sala do Gran Rex. Tambem vai
aproveitar a viagem pra passar uma semana em Las Leñas e para
percorrer Buenos Aires e suas lojas de antiguedades. Numa reportagem
concedida a "La semana" se definiu como uma mulher "intimamente
sensual" espontanea e absolutamente moderna.
Se recosta no sofá e nos olha com olhos entrefechados, nos disse com o
olhar que tem vontade de dormir uma sesta. "Sou dorminhoca e
infinitamente sensual" explica. Cumprimenta com um sorriso que inunda
sua cara e borra todo deixo de tristeza.Quando Gal Costa sorrí, todo
parece andar bem.
A famosa cantora brasileira faz por terceira vez sua visita á Argentina.
Vem a apressentar seu ultimo disco "Lua de mel como o diabo gosta". E
desidiu estrear seu show no nosso país. Depois lhe espera uma turnê de
quasi seis meses, onde vai pra Japão, Espanha, França,Portugal,
Estados Unidos, e Venezuela.
Vem galardoada do Brasil como a melhor cantora do ano da MPB.
Gal arruma seus cabelos pretos, dentro do chapeu e acaricia a pena
sobre a asa, faz um simpatico piscar e da por começada a reportagem.
-La Semana: Tem que ver sua independencia com que nunca tenha
establecido um lar?
-Gal Costa: É dificil conciliar uma vida de familia com o meu estilo de
vida. Eu vivo viajando, de turnê em turnê. Acho que tem um momento
para tudo na vida e que é questão de vontade.
Acho que em algum momento vai se dar.
-La Semana: Que é o que você sente que lhe transmite ao publico que
vai pra ve-la?
-Gal Costa: Lhe transmito minha energia, minha vontade de viver. Eu
acho que ésta é minha missão na vida, cantar e atraves da minha
música, distrae-los, diverti-los. O que eu tenho é uma capacidade para
transmiti-lhes as pessoas alegria atraves das minhas canções. Eu acho
que a música tem a ventagem de não ter barreiras idiomaticas, é um
idioma universal, sem fronteiras, Por otra parte, sinto que alento as
pessoas para determinadas coisas: mando uma mensagem de paz e
tranquilidade em um mundo tão convulsionario e caotico como no que
temos que viver.
-La Semana: Esta vez viajou com sua mãe, é algo que acotence as
vezes?
- Gal Costa: Sim, quando posso ela vem comigo, não temos muito
tempo de estar juntas. Ultimamente não tinha viajado muito comigo, as
duas gostamos de ter tempo de estar juntas. Temos uma relação muito
boa.
-La Semana: Esta vez veio pro um tempo muito comprido , por que?
-Gal Costa: Vim com mais tempo porque como estreio o show, tenho
que ensaiar. Nunca tive muito tempo pra percorrer a cidade, mas
reconheço que é muito atrativa. Estive por San Telmo, na feria.
A gata brasileira coloca nos seus ombros seu sobretudo de pele, seu
cabelo preto voltam a cair sobre sua frente. É cordial e nos fala que a
entrevista tocou seu fim, a gente se imagina a esta morena arrassando
num palco, mas ela se encarrega de lembar--lo quando na sua cara
volta a aparecer esse radiante sorriso que seduz ate o mais
despervenido.
Silvina Schuchner
Revista La Semana- Junho 1988- Argentina
In: www.galcosta.com.br, acesso em 26/10/2004.
Gal enfrenta a alegria -e a tristeza
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Ela voltou, a grande cantora. Nesse tempo em que andou ameaçando se perder
de todas as coisas e de si, a artista Gal Costa, 58, anestesiou também uma série
de sentidos: tato, paladar, audição, visão, faro...
Interrompeu contato com parte de seu público (eram várias as cadeiras vazias na
estréia de "Todas as Coisas e Eu", quinta, enquanto lá em casa "Celebridade"
quase acabava). Fechou olhos e ouvidos para repertórios, arranjos e modos novos
de ser Gal Costa. Hoje, corre com gana atrás do prejuízo, de seis ou sete
sentidos.
O resultado é um espetáculo todo errado, todo certo. Um acerto interrompe um
erro que substitui um acerto que se muda num erro. Zune um código morse
nervoso. A grande cantora se despe assustada, mas viva, muito viva.
Fotografa o próprio medo quando, ao cantar "Um Favor", de Lupicinio Rodrigues
(que desde 77 é dela, muito dela), erra a letra feito uma colegial, cantora imatura
em primeiro show. Estava ao violão ex-abandonado; pelada, se desculpa à platéia:
"Que situação cantar e tocar, né?".
Tem a seu favor um roteiro que enfrenta um ponto nevrálgico de sua história
recente: o ruído entre alegria e tristeza mal localizadas -equívoco central do CD
(todo errado) que deu origem ao show.
Agora, começa o show à capela, com "Alguém Cantando" (Caetano Veloso, 77),
tornando mais aguda (e bela) a melancolia inerente à canção. Revela que a Bahia
também é triste, público segredo.
Pelo começo canta a carta de suicídio "Três da Madrugada" (Torquato Neto e
Carlos Pinto, 73). Captura todo o desespero do poeta maldito; acerta. Pelo final
avança uma hora no tempo e festeja o "galo cantou às quatro da manhã" de "Na
Linha do Mar" (Paulinho da Viola, 73). Faz sambinha alegre, ignorando que "vou-
me embora desse mundo de ilusão" também é suicídio; erra.
Acerta: canta a brejeira "Imbalança" (Luiz Gonzaga e Zé Dantas, 52), ri e sorri.
Erra: canta a fatalista "Fim de Caso" (Dolores Duran, 59), ri e sorri. Tenta colocar a
alegria em seu devido lugar, na pedra fundadora da Bahia "Alegria" (Assis
Valente, 37). Não consegue ser tão alegre como a letra queria; acerta em cheio,
errando. Nua.
Ao revisitar o mais fino de sua obra, veste-se da capa transparente da grossa
melancolia. Nessa noite "Um Favor", "Assum Preto" (Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira, 50, dela desde 71), "Vapor Barato" (Jards Macalé e Waly Salomão, 71) e
"Força Estranha" (Caetano, 78, de Roberto Carlos e dela desde então) são as
coisas mais lindas que já existiram.
São tristes, tristes, tristíssimas. Ostentam o semblante sério da maturidade, não o
riso de Alice da juventude. Obrigado por ter voltado, grande cantora.
Como é difícil se despir, a mulher ainda se protege no artifício, no show que
soluça. Os sambas-canção sabotam a fluência; um tosco montinho em que sobe
para "Nada Além" (Custódio Mesquita e Mário Lago, 38, dela desde já) ameaça
literalmente derrubá-la.
A cenografia de Bia Lessa entra em colapso no clímax de "Vapor Barato" -velas
sobem e descem histericamente, inconformadas com o que está acontecendo: o
reencontro da artista consigo. Nos uivos finais de sua canção-mito, a expressão se
convulsiona e retorce; Gal se curva, vira loba, bicho, fera ferida. Esquece de temer
a perda da beleza, escancara os cabelos brancos na fronte da artista.
Ao final, subiu feito onça uma montanha, não o telhado de gata de 93. A gente não
se satisfaz, quer sempre mais, fica com vontade de ouvir discos e shows feitos só
de vapores baratos. Não podemos exigir-lhe isso, mas ela já usa quatro ou cinco
sentidos em prol da causa. Até amanhã, Gal.
Matéria de julho de 2004, Folha de S. Paulo
Publicada em www.galcosta.com.br
Acesso em 05/08/2004.
Gal Costa estréia novo show em SP
Thiago Marques Luiz
A cantora, que estava há cinco anos sem estrear novo show, marcou nesta quinta-
feira a abertura de sua turnê “Todas as Coisas e Eu”, com repertório baseado no
seu último disco, lançado no final do ano passado...
O público já estava com saudades e ela que, para muitos, é a maior cantora do
Brasil, continua esbanjando beleza, talento e um poder vocal intocável. A estréia
do novo show de Gal Costa, no Directv Music Hall, em São Paulo, na última
quinta-feira, surpreendeu o público e a crítica que a vinha tachando de repetitiva.
A abertura é marcada pelo lirismo de sua voz. Gal, já no palco, entoa à capela
Alguém Cantando, composição de Caetano. Em seguida, revive os tempos pós-
tropicália (os memoráveis shows “Fatal” de 1971, “Índia” de 1973, e “Cantar” de
1974) tocando violão e cantando Herivelto Martins (Nega Manhosa), Lupicínio
Rodrigues (Um Favor) e Torquato Neto (Três da Madrugada, canção menos
conhecida, gravada em compacto na época).
O cenário traz elementos simples e realçados pela boa iluminação (folhas secas
pelo chão e algumas que caem pelo palco durante o show, galhos secos
suspensos no ar, assim como as dezenas de velas acesas que descem e sobem a
partir do momento em que a cantora revive a clássica Ave Maria do Morro) e o
acompanhamento musical é totalmente intimista e acústico (violão, contra-baixo,
bateria/percussão e sopro). Ou seja: a comprovação da velha teoria de que o
simples e bem feito pode se tornar algo extremamente elegante.
Os toques dados pela boa direção de Bia Lessa (profissional com extenso
currículo na área teatral) deixou Gal mais solta e mais perto do público, inclusive
em momentos que a platéia interage, como em Nada Além (Custódio Mesquita e
Mário Lago), com acompanhamento apenas do contra-baixo e dos estalos dos
dedos dos músicos, da cantora e do público. Momento muito aplaudido, assim
como em Nossos Momentos (tema da novela “Celebridade”), que puxou a
vendagem do seu novo CD e garantiu a ele 100 mil cópias vendidas, hoje o
equivalente a disco de ouro duplo.
Enfim, Gal Costa continua mostrando-se única e que a verdade é só uma: tudo o
que faltava nos seus últimos trabalhos era uma boa direção. Isso ela já conseguiu
e o público foi e tem sido a melhor resposta.
http://www.olhao.com.br/musica.shtml
Crítica do Estado de Sao Paulo: 26 de junho de 2004:
Nada do que foi será,mas ainda há uma força estranha que leva Gal Costa a
cantar. Um simples passar de olhos no roteiro era de entusiasmar os mais
incrédulos,aqueles que já desistiram de
esperar dela arroubos de ousadia.
Grandes canções,alguns clássicos irretocáveis,jóias escondidas.Que seria retrô
todo mundo sabia. A questão era o que iria resultar daquele repertório.
E alguém cantando muito, cantando bem surgiu por detrás da
cortina a se levantar, espalhando beleza, a capella, muito bom de se ouvir.
O início promissor do show Todas as Coisas e Eu, aos poucos, deu
lugar a decepções, constrangimentos e equívocos.
Mas como pancadas de ondas intermitentes, Gal também fez por merecer créditos
dos que a conservam na ala das grandes cantoras. E bota
conservadorismo nisso.
Num segundo movimento, empunhou o violão, para arranhá-lo, como nos velhos
tempos,tirando do baú pepitas de Lado B setentistas, como a fusão de Nega
Manhosa (Herivelto Martins)com Samba-Rubro Negro (Wilson
Baptista/Jorge de Castro) e a linda e incompreendida Três da Madrugada
(Torquato Neto/Carlos Pinto).
Tomou um baile da letra de Um Favor (Lupicínio Rodrigues), mas livrou-
se da trapalhada com um arremate bem-humorado. “Que situação
tocar e cantar, hein?”, brincou.
O clima de intimismo e felicidade mudaria repentinamente, com uma mal colocada
programação eletrônica em Caribantu (Lenine/SérgioNatureza),
vinheta que abriria um desnecessário bloco de baiões. Uma árvore
morta suspensa no teto e uma chuva de folhas secas,juntando se às do chão,
introduzem seqüências constrangedoras de cenários bregas, que fazem alusões
redundantes às letras das canções, variando como as estações do ano. Quem
está por trás disso é Bia Lessa, que também assina a direção (!).
Quando Gal canta Camisa Amarela (Ary Barroso), o clima é de primavera,
então logo a tal árvore ganha pencas de flores. Fácil adivinhar
de qual cor, não? Em Ave-Maria no Morro (Herivelto Martins),
lamparinas acesas descem do teto no momento em que ela entoa ...E
quando o céu escurece/E levo a Deus uma prece.Osobe-e-desce das chamas
continuaria por Assum Preto (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), provocando risos.
Pouco antes, Gal teve de pagar o mico de subir numa
minúscula plataforma coberta de folhas e quase caiu dos saltos.
Meio desequilibrada,mandou dali, acompanhada só de contrabaixo e de estalar de
dedos, um dos momentos mais bonitos do show: o fox Nada além (Custódio
Mesquita/Mário Lago).
Outro grande achado foi o bolero Dama do Cassino (Caetano Veloso),
gravado por Ney Matogrosso e Jussara Silveira, que Gal cantou
radiante e sinuosa.É certo que nem todas as canções foram interpretadas como
mesmo brilho.Em algumas delas, Gal parecia ligada
no piloto automático, esbanjando técnica, deslumbrada com a realeza
da própria voz, mas sem entrar na célula da canção.Oh,sim,eu estou
tão cansado/ Mas não pra dizer/Que eu não acredito mais em você: é a
contundente Vapor Barato (Jards Macalé/Waly Salomão)que se perde no meio do
trajeto. Na Linha do Mar(PaulinhodaViola)foi um desanimador anticlímax.Deu
saudade de Clara Nunes.
Transitar sorrindo pela doída Fim de Caso (Dolores Duran), porém,
foi mero detalhe entre os equívocos. Pouco, diante da interferência do sax pastoso
de Zé Canuto, culpado por melar os arranjos de boa
parte do repertório. Poderia ficar só na flauta como bem o fez em outras.
Gal não precisa muito mais do que um bom violão,como provou no bis
com Força Estranha (Caetano).Mas Bia Lessa tinha de fazê-la cantar
Folhas Secas (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito) pisoteando as
próprias.E ela aceitou. (L.L.G.)
ANEXO IMAGENS
(AI01)
(AI02)
(AI04)
(AI05)
(AI07)
(AI09)
(AI12)
(AI10)
( AI15)
(AI16)
(AI27) Gil com Jair Rodrigues e Elis Regina no programa O fino da Bossa,
meados dos anos sessenta. Gil transitava bem nos meios do chamado samba-jazz, além
de estar ligado aos círculos da Bossa Nova.
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(AI35) Sônia Braga com Gal, final da década de setenta. Em 1975, sua imagem foi
associada à Gabriela, por conta do folhetim da Rede Globo baseado na obra de Jorge
Amado. Cogitava-se que Gal interpretasse a personagem dada sua identificação com a
brejeirice baiana naqueles tempos.
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(AI37) No show Com a boca no mundo (1977). Gal queria voltar a atingir um público
hippie no final dos anos setenta e realizou um espetáculo como que travestida de
hiponga. Hoje a cantora diz não gostar da experiência, que, segundo ela, foi
“equivocada”.
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