Você está na página 1de 6

O que é mais difícil de decifrar

Luiz Carlos Cagliari1

Podemos agrupar as maiores dificuldades de decifração das consoantes em


seis grupos. Primeiro grupo: letra C e grupos consonantais SC, XC, segundo grupo:
S; terceiro grupo: G e os dígrafos GU e QU; quarto grupo: R (o dígrafo RR é de fácil
leitura); quinto grupo: os casos de juntura intervocabular envolvendo R, S, Z e M; e
sexto grupo: X e os dígrafos XC e XÇ.
Com relação ao primeiro grupo, a letra C tem o valor fonético de "çê" diante
de E, I ou de outra consoante, como no caso dos dígrafos SC, SÇ e XC. Nos
demais casos, tem o som de "kê" (diante de A, O, U ou de outra consoante).
Exemplos: CEBOLA, CIDADE, NASCIMENTO, NASÇA, EXCEÇÃO, CABANA,
COR, CRISE, CLARO, TÉCNICA.
Quanto ao segundo grupo, a letra S tem o som de "çê” no início de palavra,
depois de consoante e no dígrafo SS, como em SAPO, SELVA, PSICOLOGIA,
PASSO. Entre duas vogais, tem o som de "zê". Exemplo: MESA. A letra S não
representa som nos dígrafos SC, SÇ e na forma de plural de certas palavras, em
certos contextos, em alguns dialetos (cf. "as casas amarelas foram vendidas”). Em
alguns dialetos, a letra S, em final de sílaba, tem o som de "çê", mas, em outros,
tem o som de "ché". Nesse caso, se houver uma consoante sonora no início da
sílaba seguinte, no meio da palavra, a letra S pode ter os valores sonoros
correspondentes nos dialetos mencionados acima, ou seja: "zê" e "je". Confira os
exemplos: BESTA, COSTA, DESDE, MESMO, SATANÁS, TOMÁS.
Com relação ao terceiro grupo, a letra G é semelhante à letra C: diante de Ee
de I tem um tipo de som ("je") e, diante de outras letras, tem outro tipo de som
("gue"). Os grupos de letras GU e QU podem ser dígrafos ou não. Só são dígrafos
diante de E e de I e nunca diante de outra vogal (A, O e U). No entanto, em algumas
palavras, os grupos GU e QU não são dígrafos, uma vez que o U é pronunciado.
Somente o falante nativo sabe se o U é pronunciado ou não numa determinada
palavra. Não há regras. Exemplos: GENTE, GIRAFA, GARRAFA, GULOSO, GOTA,
GLÓRIA, GRAÇA, IGNORAR; dígrafos: GUERRA, GUIMARÃES, QUENTE,

1
Fragmento do capítulo 7, “Procedimentos para o estudo das letras”, do livro Alfabetização sem o
bá-bé-bi-bó-bu (ver referências).
ANIQUILAR, AQUI, AQUELE; não-dígrafos: AGUENTAR. SAGUI, LÍQUIDO,
FREQUENTE.
O quarto grupo é o formado pela letra R (o RR é de fácil decifração tem como
única dificuldade a variedade de sons em diferentes dialetos). O R representa o som
do tepe (vibrante simples) quando está entre duas vogais, e representa o som da
fricativa velar (ou da vibrante múltipla) quando está em início de palavra. Acontece
que esse segundo valor fonético é típico do RR em posição intervocálica, motivo da
confusão que alguns alunos fazem com as duas formas de escrita. Nos outros
contextos, a variação é menos problemática (final de sílaba, por exemplo). É preciso
levar em conta, ainda, o fato de o R em final de verbos não ser pronunciado em
certos dialetos ou em certos registros de fala (fala informal). Em todos os casos,
soma-se ainda a grande variedade de sons foneticamente possíveis nos vários
dialetos, sem contar a ocorrência ora de uma pronúncia vozeada (sonora), ora
desvozeada (surda). Exemplos: CARO, CARRO, MURO, MURRO, RATO, RIO,
RUA, BRASIL, POBRE, CRAVO, PORTA, CERTO, MAR, PLANTAR, FERIR.
O quinto grupo refere-se aos casos de juntura intervocabular envolvendo R,
S, Z e M. Juntura significa ligar uma palavra com outra na fala. Quando escrevemos,
separamos as palavras com um espaço em branco, mas, quando falamos, não é
isso o que acontece. Não há uma pequena pausa entre uma palavra e outra; pelo
contrário, o que ocorre mais frequentemente é a ligação de uma palavra com outra
como se ambas fossem uma coisa só. Em português, além disso, costumam ocorrer
algumas modificações quando certas palavras se juntam. Vamos ver uma série de
exemplos, mostrando qual a pronúncia quando duas palavras se juntam:

Palavras isoladas Palavras concatenadas

casa amarela (1) casamarela

está aqui (2) estáqui

fala alto (3) falaálto

está alto (4) estáalto


parte azul (5) parteazul

carro azul (6) carroazul

todo ódio (7) todoódio

está infeliz (8) estáinfeliz

compre ovo (9) compreôvo

No primeiro exemplo, quando se juntam dois "as", um deles cai, o mesmo


acontecendo com o exemplo número dois, Porém, nos exemplos 3 e 4, houve o
encontro de dois "as" mas nenhum deles caiu. Será que existe alguma regrinha para
esses casos? Vamos ver que tipo de sílaba ocorre nesses contextos. No exemplo 1,
têm-se uma sílaba átona final e uma sílaba átona inicial. No exemplo 2, ocorre uma
sílaba tônica final, seguida de uma sílaba átona inicial. No exemplo 3, tem-se uma
sílaba átona final, seguida de uma sílaba tônica inicial. No exemplo 4, ocorrem duas
sílabas tônicas.
Considerando apenas o exemplo 1, não se sabe qual vogal deixou de ser
pronunciada. O exemplo 2 é de difícil análise. Porém, nos exemplos 3 e 4, nota-se
que a vogal tônica permanece sempre, e que a vogal átona mantém-se apenas
quando é final de palavra e a seguinte começa com vogal tônica, como no exemplo
3. Podemos formular agora uma regra: em juntura intervocabular, a segunda vogal
cai se for idêntica à primeira em sua qualidade, e se for, além disso, átona. Essa
regra inclui todos os exemplos estudados.
O que acontece, porém, quando se juntam duas vogais de qualidades
diferentes? Vejamos os exemplos de 5 a 9. Nota-se que, no contexto de juntura,
formam-se ditongos crescentes (o final do ditongo é mais saliente do que o início). E
isso ocorre independentemente da qualidade das vogais e da tonicidade que elas
apresentam, como mostram esses exemplos.
Fez-se uma análise mais completa do fenômeno para evidenciar, mais uma
vez, como refletir sobre as relações entre fala e escrita. Do ponto de vista da
decifração e da escrita, a dificuldade dos alunos é maior no caso da juntura que
provoca a queda de alguma vogal. Envolve também algumas dificuldades com a
segmentação, nos demais casos, uma vez que as sílabas se fundem, com a
formação dos ditongos. A dificuldade mais comum que os alunos enfrentam,
encarando o problema por outro ângulo, é saber se devem ou não escrever o artigo
"a", em contextos de juntura com outra vogal precedente (ou, mais raramente,
subsequente). Por exemplo, é comum alguns alunos omitirem o artigo em
expressões como "toda a família". Confere, ainda, "toda a amizade", em que caem
dois "as" na fala, mas não na escrita.
Em alguns casos, a presença do artigo não é obrigatória, mas muda
levemente o significado da frase, como em: "comprava a cebola por quilo e a
banana a dúzia" em confronto com "comprava cebola por quilo e banana a dúzia".
No primeiro caso, o falante quer marcar uma oposição, no segundo caso, apenas
enumera fatos.
Com relação à decifração, a maior dificuldade dos fenômenos de juntura
intervocabular acontece quando, em final de palavra, há uma consoante e, no início
da palavra seguinte, uma vogal. Nesses casos, a consoante final junta-se à vogal
inicial, formando uma sílaba única e dificultando, assim, o trabalho de segmentação
da fala.
Pior ainda é o fato de haver mudanças muito significativas na qualidade
fônica dos elementos envolvidos. Por exemplo, uma letra R em final de palavra tem
o som de RR (cujo valor fonético varia de dialeto para dialeto, como já se viu antes).
Porém, quando se encontra em juntura intervocabular, o R tem o som da vibrante
simples (tepe) e não da vibrante múltipla (RR). Concluindo, troca-se o som de RR
por R, como se pode ver nos exemplos a seguir: MAR ALTO, VIR AQUI, POR ALI,
CARÁTER AGRESSIVO, etc.
Quando o aluno analisa sua fala contínua, encontra um tipo de som, mas,
depois que a segmenta, depara-se com outro, pronunciando a palavra
isoladamente. Isso costuma causar dificuldades sérias para alguns alunos, no início.
O professor precisa explicar ao aluno que a fala funciona de um jeito e a escrita, de
outro. A escrita funciona como se as palavras ocorressem sempre isoladas.
Fato semelhante é o caso do S ou Z em final de palavra e vogal no início da
palavra seguinte, em juntura. As letras S ou Z, nesses casos, têm sempre o som de
"zê", independentemente do dialeto. Porém, quando o aluno segmenta e vai analisar
a palavra isoladamente, descobre que o som mudou de "zê" para "çê" ou "chê". Veja
os exemplos: CASAS AMARELAS, TRÈS AMIGOS, DEZ AMIGAS, RAPAZ INFELIZ,
etc.
Em final de palavra, quando ocorre M e a palavra seguinte começa por vogal,
a nasal pode formar a sílaba independente com a vogal seguinte. Nesse caso, se a
nasal for precedida por I ou E, ocorre uma consoante nasal palatal ("nhê"); se o M
for precedido por outra vogal, ocorre uma consoante nasal velar. Veja os exemplos:
VEM AQUI, VIM AQUI, HOMEM AMARELO, VIERAM AQUI, RUM AMARGO, BOM
AMIGO, etc. A mesma regra aplica-se quando, mesmo não havendo letra M na
escrita, ocorre uma vogal nasal no final da palavra, em juntura intervocabular.
Observe os seguintes exemplos: MÃE INFELIZ ("mãi-nhĩ-fe-lic"), IRMÃ INFELIZ
(ir-mã-ŋĩ-fe-liç"), PÕE AQUI ("põi-nha-ki"), etc.
Como se disse, essa regra, diferentemente da regra estabelecida para o R e
o S, o Z é opcional. Isso significa que, em vez da consoante nasal indicada para a
fala, pode não ocorrer nenhuma consoante nasal, permanecendo apenas sílabas
diferentes, de acordo com a forma de cada palavra. Assim, os exemplos acima,
poderiam ser ditos da seguinte maneira: "vẽi-a-ki", "vi-é-rãu-a-ki", "bõu-a-mi-gu",
"i-rmã-ĩ-fe-liç", "põi-a-ki", etc.
Aqui também a variação entre escrita e fala traz dificuldades para o aprendiz,
sobretudo quando ele se depara com esses fatos pela primeira vez. Uma simples
explicação, contudo, é quase sempre suficiente para que o aluno perceba como
deve agir perante a fala e a escrita. A falta de explicação, no entanto, pode deixar
algumas crianças num impasse ou em sérias dificuldades, não entendendo por que
as palavras variam tanto e quais são as regras que regem as variações. Mesmo que
o aluno não as aprenda, o simples fato de ouvir uma explicação significa para ele
que se trata de uma questão difícil, que ele aprenderá mais tarde. Sem nenhuma
explicação, o aluno procurará uma e acabará confuso, julgando-se incapaz de
aprender.
O último grupo de dificuldades de decifração da escrita proposto
anteriormente é aquele que se refere ao X e aos dígrafos XC e XÇ. A letra X tem o
som de "chê" no início de palavra, o que torna sua leitura fácil, nesse contexto. Em
final de palavra, tem o som de "kç" ou "kch", dependendo do dialeto: TÓRAX,
PIREX, LÁTEX, etc. Quando ocorre em final de sílaba, no meio da palavra, a letra X
tem o som de "çê" ou de "che", dependendo do dialeto: EXTRA, EXPLICAR, etc.
Aqui, pode haver uma ditongação da vogal anterior quando se trata do som de "e",
como em: "eichplicarr" (EXPLICAR). O mesmo acontece com os dígrafos XC e XÇ:
EXCEÇÃO ("eçeçău", "eichçeçau"). Porém, não ocorre uma pronúncia como
"echçeçãu".
A maior dificuldade com a decifração da letra X ocorre quando ela representa
uma consoante em início de sílaba e ocorre em contexto intervocálico, como nos
seguintes exemplos: VEXAME, EXAME, PRÓXIMO, FIXO, etc. Como temos dito
várias vezes, quando o leitor se encontra diante de casos assim, saber as relações
entre letras e sons resolve o problema da decifração só em parte. Para chegar à
conclusão final, deverá lançar mão de outro expediente, que consiste em decifrar o
que for possível e checar se o resultado obtido produz uma palavra da língua
portuguesa. Se não produz, ocorreu algum equívoco nas relações entre letras e
sons. Se produz, ainda assim é preciso checar o contexto em que a palavra se
insere para saber se ela está correta. Por exemplo, alguém vai tentar ler a palavra
FIXA na frase "a etiqueta estava fixa no caderno". Como o X entre vogais pode ter o
som de "che", uma leitura possível seria "ficha". Porém, confrontando com o
contexto, o aluno percebe que a palavra que ele descobriu não faz sentido ali.
Deverá procurar então uma outra alternativa. Sabe-se que entre vogais a letra X
pode ter ainda o som de "kç". Portanto, a leitura é "fikça" e o texto adquire seu
sentido correto.
Finalmente, deve-se destacar que as dificuldades de decifração apresentadas
acima levam em consideração o fato de se usar a leitura como uma forma de
aprendizagem e o emprego da norma culta em sala de aula. Porém, na realidade
individual de cada aluno, sobretudo quando ele está lendo sozinho, a passagem da
escrita para a leitura o conduz de maneira natural à fala do seu dialeto. Nesse caso,
as diferenças entre escrita e fala aumentam, dependendo da variedade linguística
em uso, podendo trazer dificuldades sérias para alguns alunos.

Você também pode gostar