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Semântica do Português

Profa. Dra. Cristiane Florek

A noção de tempo nas Referência:


línguas Quadros Gomes e Sanches
Mendes, 2018 (Cap. 3)
Bertucci (2016)
Aspecto gramatical e Cançado e Amaral, 2016
(Cap. 4)
lexical
1
O tempo
• As experiências que os seres humanos fazem do tempo em suas vidas são expressas
linguisticamente, por meio de elementos que tomam um papel específico na gramática de
uma língua (Klein, 2009, apud Bertucci, 2016, p. 66).

• Ainda que diferentes na expressão de determinadas noções, todas as línguas têm formas
específicas de expressar o tempo.

• A análise sobre tempo e aspecto não é recente em português brasileiro: Castilho (1967;
2002), Pontes (1973), Ilari (1997), Travaglia (2006), Perini (2001; 2010).

• A partir de agora, estudaremos uma perspectiva semântica sobre o tempo e o aspecto,


mais alinhada à abordagem formal:
Tempo: conforme Quadros Gomes e Sanches Mendes (2018) e Bertucci (2016).
Aspecto: conforme Cançado e Amaral (2016)
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1.2
O tempo verbal

• A morfologia dos verbos em português é rica. A desinência verbal expressa:


a) Número e pessoa: marcando a concordância do verbo com o sujeito;
b) Modo e tempo: concepções semânticas importantes para a caracterização da ocorrência
do evento descrito pelo verbo.

As noções de tempo, aspecto e modalidade estão amalgamadas na desinência modo-


temporal.

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1.3 O tempo cronológico e o tempo linguístico

• Tempo cronológico e tempo linguístico:

• Cronológico: é o tempo do mundo, que se manifesta em nossa vida pelo relógio, pelo calendário,
etc.
• Linguístico: é uma categoria gramatical e/ou lexical que tem efeitos sintáticos e semânticos,
particularizando a eventualidade expressa pelo verbo.

• Nome da conjugação verbal e tempo linguístico:

• Não podemos confundir o nome da conjugação verbal na gramática tradicional com o tempo
linguístico.
(1) a. Pedro viaja amanhã.
b. Maria se muda para o Canadá com a família depois das festas.
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1.4 O tempo linguístico
• O tempo linguístico descreve de que modo a eventualidade é situada a partir do proferimento da
sentença. Em outras palavras, o tempo linguístico marca uma relação entre a eventualidade e o
momento do proferimento.
O tempo linguístico é uma categoria
• Momento de fala (MF) dêitica.

É o momento do proferimento da sentença. Ele estabelece o marco zero, atualiza um agora.


E o agora muda constantemente de acordo com os diferentes momentos em que alguém pronuncia
algo. Mês passado, eu fiz uma trilha.
Mês passado = MR ou TT
• Momento da referência (MR)
É o momento sobre o qual o falante faz a asserção. Mês passado, eu fiz uma trilha.
Eu fiz uma trilha = ME ou TSit
• Momento do evento (ME)
Momento da situação, relacionado ao evento descrito na sentença. É o intervalo de tempo
relativo ao evento em si.
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1.4 O tempo linguístico Intuitivamente,
estabelecemos que as
relações temporais são
derivadas da relação entre
(2) a. O território brasileiro tem 8.514.876 km 2 MR e MF.
b. Pedro está estacionando o carro.
MR = MF (presente)
TEMPO RELAÇÃO

(3) a. O Brasil participou da Segunda Grande Guerra.


Presente MR = MF
b. Pedro já tinha ido ao mercado três vezes hoje.
c. Meu avô ia a pé para a escola.
MR < MF (passado)
Passado MR < MF
(4) a. Quando eu crescer, serei como você
b. João vai trabalhar amanhã.
MR > MF (futuro) Futuro MR > MF

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1.4 O tempo linguístico Para Gomes e Mendes (2018), o sistema
de dois valores para representar as
(5) a. Quando minha mãe casou, eu já tinha nascido. eventualidades não dá conta de todas as
b. Quando nasci, minha mãe já tinha se casado. distinções que a língua portuguesa
consegue expressar. Essa percepção
também é encontrada em Reinchenbach
(6) a. Quando eu me aposentar, já terei completado 70 anos. (1947), Comrie (1985) e Klein (1994)
b. Quando eu completar 70 anos, já terei me aposentado.

Momento da referência: tanto pode ser expresso por um advérbio de tempo (hoje, 1981, etc.)
como por outra eventualidade, como em (5) e (6).

(5) a. Ter sempre marca a


MR (casamento) eventualidade que
ME (nascimento) MF (agora)
acontece primeiro, seja
no passado ou no
(5) b.
futuro.

ME (casamento) MR (nascimento) MF (agora)


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Resumindo:

Com os tempos linguísticos presente, passado, e futuro localizamos as eventualidades (ME)


em relação ao marco zero (MF) e ao momento da referência (MR).

Tempo pode ser definido em termos de relações temporais, como antes, depois e simultâneo.

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2 ASPECTO VERBAL
• A noção de tempo não oferece os recursos necessários para distinguirmos entre os
diferentes julgamentos de valor de verdade que damos às sentenças (7), no contexto da
imagem.
(7) a. Bob Marley é jogador de futebol (falsa).
b. Bob Marley está jogando futebol (verdadeira).
c. Bob Marley é cantor (verdadeira)
d. Bob Marley está cantando (falsa).

Todas as sentenças em (7) estão no presente, mas elas


exprimem verdades ou inverdades com relação à
imagem.

Essas diferenças não são temporais, mas aspectuais. Aspecto é a


categoria que lida com a constituição interna das eventualidades,
indicando, por exemplo, se a eventualidade é apresentada como ainda
estando em andamento ou como já concluída.
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ASPECTO VERBAL
Tempo X aspecto

Tempo pode ser definido em termos de relações temporais, como antes, depois e
simultâneo, e aspecto, em termos de anterioridade, inclusão ou posterioridade, por
exemplo. A maior diferença entre tempo e aspecto seria em relação a que momento estão
relacionados.
Klein (1994, p. 3)

O aspecto é uma forma de se expressar a temporalidade dos eventos, além da noção mais
simples de presente, passado e futuro.

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2 ASPECTO VERBAL

• Na literatura sobre o tema, encontramos dois tipos de aspecto:

a) o aspecto gramatical: (também conhecido como “aspecto do ponto de vista”) cuja


característica básica é apresentar marcas temporais relativas ao evento considerando o
momento do evento, por meio de uma morfologia ou sintaxe específica, e;
b) o aspecto lexical: cuja característica básica é apresentar noções temporais relativas à
forma como as línguas expressam os eventos do mundo no léxico ou em sintagmas, mas
sem haver, necessariamente, morfologia e sintaxe específicas.

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2.1
Aspecto gramatical (perfectividade / imperfectividade)

O aspecto gramatical recebe esse nome basicamente por conta do modo de expressão nas
línguas naturais: em geral, as noções de perfectividade ou imperfectividade são expressas
diretamente pela gramática da língua e são visíveis a partir da sua morfologia e/ou sintaxe.

a) Perfectividade: recebe esse nome por estar descrito de forma completa (perfeita, portanto),
de modo que o ouvinte sabe que o evento deve ter começado e terminado num período de
tempo específico.
Em narrativas, o imperfectivo sempre aparece na parte descritiva: na ambientação, no cenário, nas
circunstâncias, nos hábitos e rotinas, enquanto a ação propriamente dita, o ponto de virada, vem
b) Imperfectividade: recebe esse nome porquenonão se sabe quando o evento começou, nem
perfectivo.
quando Na progressão narrativa, o perfectivo introduz uma nova referência temporal (uma eventualidade
terminaria.
nova), enquanto o imperfectivo mantém aberto certo intervalo de tempo no passado.

12
2.1
Aspecto gramatical (perfectividade / imperfectividade)
Klein (1994) propõe que o aspecto gramatical também seja dado por uma relação entre intervalos de
tempo. Nesse caso, entre o ME e o MR de uma sentença.
• Para Klein (1994, apud Bertucci, 2016), essas noções são mais bem esclarecidas, quando se
Aconsidera
caracterização
que: do aspecto apresenta uma informação independente do momento da fala e diz respeito às
relações temporais internas ao evento.
i) se o ME está incluído no MR, temos o aspecto perfectivo (8a): ME MR ; e
Por isso,nopodemos
ii) se o MR está incluído dizer
ME, temos que O TEMPO
o imperfectivo É DÊITICO,
(9a): MR ME MAS O ASPECTO NÃO.

(8) a. Ontem na festa da escola,


Festa João cantou.
da escola (9) a. Quando eu cheguei
Joãonaestava
festa,cantando
João estava cantando.
b. b.

João cantar agora chegada na festa agora

ontem/festa João cantou. João cantar Chegada na festa

Expressão do aspecto perfectivo Expressão do aspecto imperfectivo

13
2.1 Aspecto gramatical (perfectividade / imperfectividade)

(10) a. Quando você chegar de viagem, eu vou estar te esperando.


b. Quando ele voltar, vamos dar uma festa.

(11) a.

MF (agora) < início do evento esperar < chegada

(12) b.

MF (agora) < chegada < início da festa

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2.1 Aspecto gramatical (perfectividade / imperfectividade)
O imperfectivo destaca a
composição interna da
situação, permitindo a
visualização de, pelo menos,
Fonte: Adaptado de Comrie (1976, p. 25)

uma de suas fases internas.

O gato estava comendo o


bolo.

O perfectivo Descreve uma situação recorrente, que


descreve um dura um período estendido de tempo.
evento como um
todo, sem fazer O gato mora/morava na casa azul.
distinção entre as
diversas fases Destaca a visualização de uma situação
que o compõem. como em andamento

O gato comeu um
pedaço de bolo.
O gato está/estava comendo O gato come agora.
(agora). 15
2.1
Aspecto gramatical (perfectivo, perfeito e retrospectivo no PB)
João cantar < chegada do falante
(13) a. Quando eu cheguei na festa, João tinha cantado.
b. Neste exato momento, João acabou de cantar. João cantar <imed chegada do falante

chegada na festa Neste exato momento


13a 13b.

João cantar agora


João cantar agora
(MR < imed ME).
(MR < ME)

Expressão do aspecto perfeito


Pretérito mais-que-perfeito na gramática tradicional Expressão do aspecto retrospectivo
Perfeito (tinha cantado) Retrospectivo (acabou de cantar)
ME precede o MR o momento final de MR encontra o momento inicial de
MR < ME ME (MR <imed ME)
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2.1
Aspecto gramatical
(imperfectivo contínuo/pontual e habitual/ durativo)

c. Quando eu cheguei na festa, João estava cantando. d. Quando era adolescente, João cantava.

ME pontual MR ME com noção de repetição ou persistência


MR
Pretérito imperfeito no progressivo (estava cantando)
Presente progressivo (está cantando) PI Simples (cantava)
compatível com MR pontual Presente simples (canta)
compatível com MR durativo/habitual
Descreve um evento em desenvolvimento, cujo fim Denota situações que se repetem (ou
pode ou não ser alcançado permanecem) ao longo do tempo, constituindo-se
uma constatação a partir da repetição dos fatos.
Quando no presente, é característica das verdades
científicas observáveis, dos estados e dos hábitos.

CONTÍNUO/PONTUAL HABITUAL/ DURATIVO

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Exercício

• Leia atentamente a narrativa a seguir.


Não há crime perfeito. Foi o que o investigador pensou, enquanto estava refletindo no
sofá, minutos antes de tomar a decisão de voltar ao local. Com mais atenção que tivera antes,
observou atentamente a sala: um detalhe tinha passado despercebido na visita anterior. E isso
mudaria para sempre o destino das investigações.
1. Por que a narração está praticamente toda no passado?
2. Coloque os eventos que aparecem no texto na ordem de sua ocorrência. Justifique a
ordem dada.
3. O que justifica o uso de estava, no segundo período do texto?
4. O que justifica o uso de tivera, no penúltimo período?
5. O que justifica o uso de tinha, no penúltimo período?
6. O que justifica o uso de mudaria, no último período?
7. Por que o período inicial do texto está no presente simples?

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