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Guia para se tornar um semanticista formal 1

Roberta Pires de Oliveira

Mas afinal o que faz um semanticista?

Semântica e Pragmática

Um semanticista formal quer compreender a capacidade que todos nós temos desde
bebezinhos de compreender o que as pessoas falam com a gente e o que falamos com elas
(e o que falamos com nós mesmos). É algo bem trivial, mas fascinante e complexo. Por
exemplo, se você fala português você entende o que a sentença abaixo diz:

(1) O João beijou a Maria.

O que ela diz? Reflita um pouco.


Veja que ela constrói um esboço de situação em que ela é verdadeira. Não sabemos se ela
é verdadeira ou falsa, mas sabemos o que deve acontecer para ela ser verdadeira ou falsa.
Há certamente casos intermediários, em que não sabemos exatamente se ele beijou
mesmo a Maria ou não. Os chamados casos de vagueza ou subdeterminação.
Quais são esses ingredientes que compõem (1)?
O que mais você sabe, se você entende uma sentença tão besta quanto (1)?
A sentença em (1) é uma afirmação, descreve um estado de coisas no mundo, em um
momento anterior ao momento de fala. Em outros termos, se houve um beijou, ele já
aconteceu.

As línguas naturais são essencialmente ancoradas no contexto. Os dêiticos, como eu, uma
palavrinha tão boba, mas que revela uma característica fundamental dos seres humanos e
que transparece nas línguas naturais, o conhecimento de se, sobre si mesmo.
Reflita sobre a sentença em (2). Ela é verdadeira ou falsa?

(2) Eu estou com fome.

Quando ela é verdadeira? Em que ela é diferente da sentença em (1)?


Uma mesma sentença pode expressar diferentes proposições, dependendo de quem está
falando, quem é o dono da voz!, e sentenças diferentes podem veicular o mesmo conteúdo
proposicional. Considere os proferimentos abaixo

(3) Roberta: Eu estou com fome.


(4) Maria: Eu estou com fome.
(5) Roberta está com fome.
(6) Maria está com fome.

Proferimentos são acontecimentos históricos. O mesmo falante proferindo a mesma


sentença realiza acontecimentos distintos. O proferimento é fugaz e constrói contextos
discursivos, diálogos, introduz informação. Estamos sempre conversando e mobilizando
informação que está compartilhada, o fundo conversacional. Em (3) e (4) Roberta e Maria
proferem uma mesma cadeia sonora, uma mesma sentença, expressando diferentes
conteúdos ou pensamentos ou proposições. Roberta expressa o pensamento que ela está
com fome. Maria expressa o pensamento que a Maria está com fome. As sentenças em (5)
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e (6) expressam esses mesmos pensamentos. (3) e (5) veiculam a mesma proposição. Veja
o capítulo 2 Ferreira sobre Kaplan e a semântica em dois tempos: primeiro atribuímos um
valor para os dêiticos e em seguida avaliamos se é verdadeiro ou falso.

Fase Caráter Fase Conteúdo w1-1


Eu estou com fome==============> Roberta está com fome=============> w2-0
w3-1

Eu estou com fome==============> Maria está com fome===============> w1-0


w2-0
w3 -1

As sentenças podem ser afirmações, perguntas, ordens, conselhos. Qualquer um de nós


entende a sentença em (7):

(7) O brasileiro irá votar para presidente em 2022.

Mas pensa bem o que ela significa. Quem é esse brasileiro? Quem irá votar? A semântica
estuda essa capacidade de compreender as sentenças de uma língua.
Nesta disciplina vamos entender como funciona essa capacidade de compreender
sentenças. Sentenças ocorrem em contextos que elas tanto modelam quanto atualizam. Um
contexto é um fundo compartilhado de informações. O ‘eu’ é uma instrução que indica quem
está com a palavra. No Português, o ‘eu’ não tem gênero (só em ‘euzinha/o’). Em Rikbaktsa
(Macro-Jê) tem um eu para mulheres e outro para homens. Em Mandarin, há um eu que só
o imperador usa. Essas manifestações morfológicas realizam a mesma tarefa: ser o falante.

(8) Contexto ={falante, ouvinte, lugar, momento, mundo}

Esses são índices.


[[eu estou com fome]]c1 = {Roberta, Pedro, Campeche, domingo, real}
[[eu estou com fome]]c2 = {Pedro, Roberta, Campeche, domindo, real}

Fazemos tudo isso o tempo inteiro quando conversamos.


Nosso objetivo é entender como é essa capacidade de compreendermos as sentenças.
Sentenças são proferidas com diferentes intenções. Aqui estamos no limite com a
Pragmática, cujo objeto de estudos são os proferimentos, os atos de fala, o uso que
fazemos das sentenças.
A pragmática estuda o que fazemos quando falamos. Por exemplo.

Roberta: Eu estou com fome.


Maria: Onde vamos jantar?

A Maria compreendeu o que a sentença expressa e entendeu que aquele proferimento era
um convite para jantar. Veja que eu estou com fome não significa um convite para jantar,
mas pode ser usada para isso.
A pragmática estuda o que o falante quis dizer com o que ele disse. A semântica estuda o
que o falante disse.
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Grice (1975) em “Lógica e conversação” abre os caminhos para compreendermos esse


mecanismo tão engenhoso que são as implicaturas, inferências canceláveis, produzidas por
raciocínios abdutivos (e não dedutivos).
Exemplo: Todos na casa sabem que as janelas estão abertas. De repente, começa a chover
e alguém diz:

(9) Está chovendo.

A sentença diz que no momento em que o falante profere, no momento de fala, está em
curso, se desenrolando, um evento de chuva na situação em que o falante está.
Na situação da casa, é uma informação pouco relevante porque todos estão na casa, logo
todos sabem que está chovendo. Ou seja, essa informação já está no contexto. Por que o
falante disse algo que é óbvio? Porque ele está querendo dizer outra coisa. Ele fez um
pedido para que fossem tomadas providências tendo em vista a chuva. Essa é uma
implicatura.

Como é o léxico na sua mente/cérebro?


A semântica estuda apenas o que o falante sabe quando ele sabe o significado de
sentenças. Essa é uma capacidade inconsciente, automático, que opera com estruturas
sintáticas e relações lógico-matemáticas.
Itens de conteúdo e itens funcionais. Morfologia. Homonímia e Polissemia
A estrutura sintática garante que (9) e (10) não expressam a mesma proposição.
Sabemos papéis temáticos, quem sofre o amor e quem desencadeia esse sofrimento:

(9) João ama Maria.


(10) Maria ama João.

A estrutura lógico matemática está por todo lugar nas línguas. Na operação mais
básica que sabemos que sua mente/cérebro, seu “computadorzinho”, opera porque ela é
absolutamente necessária para explicar o fato de que sabemos que há uma diferença entre
o que podemos chamar de predicado verbal, ama, e os nomes próprios como João e Maria.

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