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Jean Baudrillard

Título original: LA SOCIÉTÉ DE CONSOMMATION

© Editions Plan~te
Tradução de Artur Marão
Capa de Daniel Uhr
A
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EDIÇÕES 70, Lisboa - Portugal
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de
ISBN 85-85772-07-7
CIP - Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional de Editores de Livros, RJ
Consumo
Baudrillard, Jean, 1929
B339s A sociedade de consumo I Jean Baudrillard; tra-
dução de Artur Morão.- Rio de Janeiro: Elfos Ed.;
Lisboa: Edições 70, 1995
(Coleção Ciência & Sociedade; 3)

Tradução de: La société de consommation


ISBN 85-85772-07-7

1. Consumo (Economia). I. Título. II. Série.

CDD 339.47
95-1477 CDU 339.4
Dêem-lhe todas as satisfações económi-
cas de maneira que não faça mais nada
senão dormir, devorar pastéis e esforçar-
-se por prolongar a história universal;
cumulem-no de todos os bens da terra e
mergulhem-no em felicidade até à raiz dos
cabelos: à superficie de tal felicidade como
à tOna de água virão rebentar bolhas peque-
ninas.

Dostoievski, No Mru Subtem1nro


PREFÁCIO

O livro de Jean Baudrillard, A Sociedade de Consumo, é uma


contribuição magistralpara a sociologia contemporânea. Enfileira na
linhagem de livros como: Da divisão do trabalho social de Durkheim,
ATeoriadaClasseOciosadeVeblenou AMultid!oSolitária deDavid
Riesman.
Baudrillard analisa as sociedades ocidentais contemporâneas,
incluindo a dos Estados Unidos. A andlise concentra-se no fenómeno
do consumo dos objectos, que o autor já abordara em O Sistema dos
Objectos (Le Sys~me des Objets, Gallimard, 1968}. Ao concluir o
volume .formula o plano da presente obra: «É preciso afirmar clara-
mente, logo de inicio, que o consumo surge como modo activo de
relação (não só com os objectos mas ainda com a .colectividade e o
mundo), como modo de actividade sistemática e de resposta global,
que serve de base a todo o nosso sistema cultural».
Mostra com muita perspicácia como é que as grandes corporações
tecnocráticas suscitam desejos irreprimlveis, cirando novas hierar-
quias sociais que substitufram as antigas diferenças de classes.
Nasce assim uma nova mitologia: «A máquina de lavar» -escreve
Baudrillard- «serve de utensflio e actua como elemento de conforto,
de prestigio, etc. É este último campo que constitui propriamente o
campo do consumo. Nele todas as espécies de objectos podem substi-
tuir-se à máquina de lavar como elemento significativo. Tanto na
lógica dos signos como na dos sfmbolos, os objectos deixam totalmente
de estar em conexão com qualquer função ou necessidade definida,
precisamente porque respondem a outra coisa diferente, seja ela a

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16gica social seja a 16gica do desejo, às quais servem de campo m6vel
e inconsciente de significação».
O consumo. na qualidade de novo mito tribal. transformou-se na
moral do mundo contemporâneo. Encaminha-se para a destruição das
bases do ser humano. isto é, do equilfbrio que desde os Gregos. o
pensamento europeu manteve entre as raizes mitol6gicas e o mundo Primeira Parte
dos «logos». Baudrillard cai na conta do perigo que corremos. Citemo-
-lo mais uma vez: «Da mesma maneira que a sociedade da Idade Média A LITURGIA FORMAL DO OBJECTO
'se equilibrava em Deus E no diabo. assim a nossa se equilibra no
consumo E na sua denúncia. Em torno do Diabo, era ainda possfvel
organizar heresias e seitas de magia negra. Mas. a magia que temos é
branca. e ndo é possfvel qualquer heresia na abundância. É a alvura
profiláctica de uma sociedade saturada, de uma sociedade sem verti-
gem e sem história. sem outro mito aUm de si mesma».
A Sociedade de Consumo, escrito em estilo denso, deveria consti-
tuir objecto de cuidadoso estudo para a geraçdo mais jovem. que
tomou provavelmente como tarefa a destruição do mundo monstruoso.
se é que não obsceno, da abundância dos objectos. com tanta energia
eforça apoiado pelos mass media e, sobretudo. pela televisdo; mundo
que a todos nos ameaça.

J. P. Mayer
Universidade de Reading
Centro de Investigações (Tocqueville)

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À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica
do consumo e da abundância, criada pela multiplicaçao dos objectos,
dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma catego-
ria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana. Para
falar com propriedade, os homens da opulência nao se encontram
rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais
por objectos. O conjunto das suas relações sociais já não é tanto
o laço com os seus semelhantes quanto, no plano estatístico se-
gundo uma curva ascendente, a recepção e a manipulação de bens
e de mensagens, desde a organização doméstica muito complexa
e com suas dezenas de escravos técnicos até ao «mobiliário urba-
no~ e toda a maquinaria material das comunicações e das activi-
dades profissionais, até ao espectáculo permanente da celebraçao
do objecto na publicidade e as centenas de mensagens diárias emi-
tidas pelos «mass media»; desde o formigueiro mais reduzido de
quinquilharias vagamente obsessivas até aos psicodramas simbóli-
cos alimentados pelos objectos nocturnos, que vêm invadir-nos nos
próprios sonhos. Os conceitos de «ambiente» e de «ambiência»
se divulgaram a partir do momento em que, no fundo, começámo
a viver menos na proximidade dos outros homens, na sua pre
sença e no seu discurso; e mais sob o olhar mudo de objecto
obedientes e alucinantes que nos repetem sempre o mesmo dis
curso - isto é, o do nosso poder medusado, da nossa abundãnci
virtual, da ausência mútua de uns aos outros. Como a criança-lo
se torna lobo à força de com eles viver, também nós, pouco a
pouco, nos tornamos funcionais. Vivemos o tempo dos objectos:
quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em conformi-
dade com a sua sucessao permanente. Actualmente, somos nós que
os vemos nascer, produzir-se e morrer, ao passo que em todas as

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civilizações anteriores eram os objectos, instrumentos ou monumentos consumir, da mercadoria, transforma-se, graças à grande metáfora
perenes, que sobreviviam às gerações humanas. colectiva e por meio do próprio excesso, na imagem do dom, da
Os objectos não constituem nem uma flora nem uma fauna. No prodigalidade inesgotável e espectacular, que é peculiar à festa.
entanto, sugerem a impressão de vegetação proliferante e de selva em Além do amontoamento, que é a forma mais rudimentar e também
que o novo homem selvagem dos tempos modernos tem dificuldade em a mais plena da abundância, os objectos organizam-se em panóplia ou
reencontrar os reflexos da civilização. A fauna e a flora que o homem em colecção. Quase todos os estabelecimentos de vestuário, de
produziu, que o assediam e atacam como nos maus romances de ficção electrodomésticos, etc., oferecem uma gama .de objectos diferen-
científica, importa descrevê-las rapidamente tais como as contem- ciados, que aludem, respondem e indicam claramente os outros em
plamos e vivemos - sem olvidar jamais que elas, no fausto e na movimento recíproco. A vitrina do antiquário é o modelo aristocrático
profusão correspondentes constituem o produto de uma actividade e luxuoso dos conjuntos que não evocam tanto a superabundância da
humana, sendo dominadas, não por leis ecológicas naturais mas pela substância quanto um leque de objectos seleccionados e complemen-
lei do valor de troca. tares, entregues à escolha, mas também à reacção psicológica em
«Nas ruas mais animadas de Londres, os annazéns apertam-se uns cadeia do consumidor, que os percorre e inventoria, os aprende como
contra os outros e, por detrás dos seus olhos de vidro sem olhar, categoria total. Raros são os objectos que hoje se oferecem isola-
repartem-se todas as riquezas do universo: xailes índios, revólveres dos, sem o contexto de objectos que os exprimam. Transformou-se a
americanos, porcelanas chinesas, espartilhos de Paris, vestidos de relação do consumidor ao objecto: já não se refere a tal objecto na sua
peles da Rússia e especiarias dos Trópicos: mas, todos estes artigos que utilidade específica, mas ao conjunto de objectos na sua significação
já viram tantos países apresentam fatais etiquetas esbranquiçadas onde total. A máquina de lavar roupa, o frigorífico, a máquina de lavar louça,
se encontram gravados algarismos árabes, seguidos de caracteres etc., possuem um sentido global e diferente do que têm individu·
lacónicos -L, s, d (libra esterlina, xelim, pence). Eis a imagem que almente como utensílios. A montra, o anúncio publicitário,a firma
oferece a mercadoria ao aparecer na circulação» (Marx, Contribuição produtora e a marca, que desempenha aqui papel essencial, impõem a
para a Critica da Economia Polltica). visão coerente, colectiva, de uma espécie de totalidade quase indis-
sociável, de cadeia que deixa aparecer como série organizada de
objectos simples e se manifesta como encadeamento de significantes,
A profusão e a panóplia na medida em que se significam um ao outro como superobjecto mais
complexo e arrastando o consumidor para uma série de motivações
O amontoamento, a profusão revela-se evidentemente como o mais complexas. Descobre-se que os objectos jamais se oferecem ao
traço descritivo mais evidente. Os grandes annazéns, com a exu· consumo na desordem absoluta. Em determinados casos, procuram
berância de conservas. vestidos, bens alimentares e de confecçllo imitar a desordem, para melhor seduzir, ordenando-se sempre, no
constituem como que a paisagem primária e o lugar geométrico da entanto, para abrir vias directoras, para orientar o impulso de compra
abundância. Mas todas as ruas, com as montras repletas, cintilantes (se em feixes de objectos, encantando-o e levando-o, dentro da própria
a luz não fosse o bem menos raro, a mercadoria não seria o que é), com lógica, até ao máximo investimento e aos limites do respectivo poten-
as ostentações de charcutaria, toda a festa alimentar e vestimentar que cial económico. Os vestidos, os aparelhos, os produtos de beleza
'põem em cena, tudo estimula a salivação fantástica. No amontoamento, compõem assim fileiras de objectos, suscitando no consumidor cons-
há algo mais que a soma dos produtos: a evidência do excedente, a trangimentos de inércia: de maneira lógica, encaminhar-se-á de ob-
negaçlo mágica e definitiva da rareza, a presunção materna e luxuosa jecto para objecto. Ver-se-á apanhado num cálculo de objectos -
da terra da promissão. Os nossos mercados, artérias comerciais, ocorrência totalmente diversa da vertigem de compra e de apropriação
Superprisunic imitam assim uma natureza reencontrada, prodigiosa- que deriva da própria profusão das mercadorias.
mente fecunda: são os nossos vales de Canaã onde correm, em vez do
.. leite e do mel, as ondas de néon sobre o «ketchup,. e o plástico. Que
importa? A esperança violenta de que não haja o bastante, mas o O drugstore
demasiado, e demasiado para toda a gente, lá está: cada qual leva a
pirâmide a desabar de ostras, de carnes, de peras ou de espargos em A síntese da profusão e do cálculo é o «drugstore» (ou os novos
caixa, pelo facto de comprar uma simples parcela. Compra a parte pelo centros comerciais), que realiza a síntese das actividades consumi-
todo. E semelhante discurso metonímico, repetitivo, da matéria a doras, entre as quais a menor não é o «shopping», o ~flirt» com os

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objectos, a errância lúdica e as possibilidades combinatórias. A este O «drugstore» é capaz de transformar-se numa cidade inteira: é
título, o «~gstore» é mais específico do consumo moderno que os Parly 2, com o gigantesco «shopping-center», onde «as artes e os
grandes estabelecimentos, onde a centralização quantitativa dos pro- lazeres se misturam com a vida quotidiana», onde cada grupo de
dutos deixa menor margem para a exploração lúdica e a justaposição residências se estende em redor da piscina-clube, que surge como pólo
das prateleiras e dos produtos impõem um itinerário mais utilitário, de atracção. Igreja circular, campo~ de ténis («é a melhor das coisas»),
conservando qualquer coisa da época em que nasceram, que foi a do .cboutiques» elegantes, biblioteca. A mais pequena estação de despor-
acesso de largas classes aos bens de consumo corrente. O «drugstore» tos de Inverno assume igualmente o «modelo universalista» do «drug-
possui outro sentido diferente: não justapõe categorias de mercadorias, store»: todas as actividades lá se encontram retomadas, sistematicamente
pratica a amálgama dos signos, de todas as categorias de bens combinadas e polarizadas em tomo do conceito fundamental de
considerados como campos parciais de uma totalidade consumidora de «ambiência». Assim, Flaine-la-Prodigue proporciona-lhe ao mesmo
signos. O centro cultural toma-se nele parte integrante do centro tempo uma existência total, polivalente, combinatória: «... O monte
comercial. Não vamos a pensar que a cultura se «prostitui» no seu Branco, as florestas de epíceas -pistas olímpicas e o «planalto» para
interior: seria demasiado simples. Culturaliza-se. Ao mesmo tempo, a crianças-a nossa arquitectura cinzelada, talhada, polida como obra de
mercadoria (vestuário, especiarias, restaurante, etc.) culturaliza-se arte - a pureza do ar que respiramos -o ambiente refinado do nosso
igualmente, porque surge transformada em substância lúdica e distin- Forum (a exemplo das cidades mediterrânicas... Eis onde se expande a
tiva, em acessório de luxo, em elemento no meio de outros elementos vida em tomo das pistas de esqui. Cafés, restaurantes, «boutiques»,
. da panóplia geral dos bens de consumo. «Nova arte de viver, nova centros de patinagem sobre o gelo, clubes nocturnos, cinema, centro de
maneira de viver, dizem as publicidades, o ambiente quotidiano cultura e de distracções encontram-se reunidos no Forum, para propor-
que se respira: pode fazer «shopping» agradável no mesmo local cionar a V. Ex.• uma vida particularmente rica e variada, fora do tempo
climatizado, comprar de uma só vez as provisões alimentares, os de esqui) - o nosso circuito interno de televisão - o nosso futuro à
objectos destinados ao apartamento e à casa de campo, os vestidos, as escala humana (dentro em breve, seremos classificados como monu-
flores, o último romance ou a última quinquilharia, enquanto maridos mento artístico, pelo Ministério dos Assuntos Culturais)».
e filhos vêem um filme ou almoçam todos ali mesmo, etc.» Café, Chegámos ao ponto em que o «consumo» invade toda a vida,
cinema, livraria, auditório, bagatelas, vestidos e muitas outras coisas em que todas as actividades se encadeiam do mesmo modo combi-
ainda nos centros comerciais: o «drugstore» consegue compendiar natório, em que o canal das satisfações se encontra previamente
tudo de maneira caleidoscópica. Se o grande estabelecimento fornece traçado, hora a hora, em que o «envolvimento» é total, inteiramente
o espectáculo feirante da mercadoria, o «drugstore» propõe, da climatizado, organizado, culturalizado. Na fenomenologia do con-
sua parte, o recital subtil do consumo, cuja «arte» consiste toda sumo, a climatização geral da vida, dos bens, dos objectos, dos
precisamente em servir-se da ambiguidade do signo nos objectos e em serviços, das condutas e das relações sociais representa o estádio
sublimar o seu estatuto de utilidade e de mercadoria pelo artifício de completo e «consumado» na evolução que vai da abundância pura e
«ambiência»: neocultura generalizada, em que cessa a diferença entre simples, através dos feixes articulados de objectos, até ao condi-
a especiaria fina e uma galeria de pintura, entre o Play-Boy e um cionamento total dos actos e do tempo, até à rede de ambiência
Tratado de Paleontologia. O «drugstore» modemizar-se-áao ponto sistemática inscrita nas cidades futuras que são os «drugstores», os
de oferecer «matéria cinzenta»: «Vender só produtos não nos inte- Parly 2 ou os aeroportos modernos. .
ressa, queremos também introduzir um pouco de matéria cinzenta...
três andares, um bar, uma pista de dança e núcleo de venda. Ni-
nharias, discos, livros de bolso, livros de ideias - um pouco de Parly 2
tudo. No entanto, não se procura adular a clientela. Propõe-se-lhe,
de facto, "alguma coisa". No segundo andar funciona um labora- «O maior centro comercial da Europa.»
tório de línguas. Entre os discos e os livros encontram-se as grandes «A Primavera, o B.H.V., Dior, Prisunic, Lanvin, Frank et Fils,
correntes que despertam a nossa sociedade. Música de vanguarda, Hédiard, dois cinemas, um «drugstore», um supermercado, Suma,
volumes que explicam a época. É a "matéria cinzenta" que acompa- mais cem «boutiques», agrupadas num só lugar! »
nha os produtos. "Drugstore", portanto, mas novo estilo, com alguma Para a escolha dos comércios, da especiaria à alta costura, dois
coisa a mais, talvez um acréscimo de inteligência e com mais calor imperativos: o dinamismo comercial e o sentido da estética. O famoso
humano». «slogan» «a fealdade vende-se mal» encontra-se aqui ultrapassado.

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Poderia muito bem ser substituído por «a beleza do meio é a primeira desaparecimento do dinheiro «Uquido», símbolo ainda demaSiado
condição da felicidade de viveu visível dafecalidade real da vida concreta e das contradições económi-
Estrutura em dois andares ... organizada em redor do «MaJI» cen- cas e sociais que antes nos atormentavam) - tudo isso acabou: a
tral, artéria principal e via triunfal de dois níveis. Reconciliação do fecalidade controlada, lubrificada, consumida, inseriu-se nas coisas,
pequeno e do grande comércio ... reconciliação do ritmo moderno e da encontra-se por toda a parte difundida na indistinção das coisas e das
antiga passeata. relações sociais. Assim, como no Panteão romano vinham coexistir no
Constitui o conforto jamais experimentado de passear a pé sem sincretismo os deuses de todos os países, em imenso «digest», de igual
finalidade entre estabelecimentos que oferecem tentações directas, modo no Super-Shopping Center, que é o nosso Panteão e Pan-
sem intermédio da pantalha de uma vitrina, no próprio «Mail», que é demónio, vêm congregar-se todos os deuses ou demónios do consumo,
simultaneamente a Rue de la Paix e Champs-Elysées, adornado com isto é, todas as actividades, todos os trabalhos, todos os conflitos e todas
jogos de água. com árvores minerais, quiosques e bancos, liberto por as estações abolidas por idêntica abstracção. Já não pode haver sentido
completo das estações e das intempéries: sistema de climatização na substância da vida assim unificada, em semelhante «digest» univer-
excepcional, precisando de treze quilómetros de tubos de condi- sal: deixou de ser possível o que fazia o trabalho do sonho, o trabalho
cionamento de ar e originando uma Primavera perpétua. poético, o trabalho do sentido, ou seja, os grandes esquemas do
Tudo se pode lá comprar: desde atacadores ao bilhete de avião, deslocamento e da condensação, as grandes figuras da metáfora e da
encontrando também companhias de seguros e cinemas, bancos ou contradição, que assentam na articulação viva de elementos distintos.
assistência médica, clube de «bridge» e exposições de arte, sem que Reina apenas a eterna substituição de elementos homogéneos. Desa-
ademais se seja escravo do momento. O «Mail», como qualquer rua, é pareceu a função simbólica: há somente a eterna combinatória de
acessível todos os dias semana, de dia e de noite. «ambiência», em Primavera perpétua.
Claro está, o centro instaurou, para quem assim o desejar, o modo
mais moderno de pagamento: o «cartão de crédito». Liberta dos
cheques, do dinheiro líquido... e até dos fins dos meses difíceis.~. O ESTATUTO MIRACULOSO DO CONSUMO
Doravante, para pagar, ba$ta mostrar o cartão e assinar a factura. E .
tudo. Todos os meses receberá uma lista das contas que pode pagar de. Os indígenas da Melanésia sentiam-se maravilhados com os aviões
uma só vez ou por prestações mensais. que passavam no céu. Mas, tais objectos nunca desciam até eles. Só os
Os clientes do Parly, em semelhante casamento do conforto, da Brancos conseguiam apanhá-los. A razão estava em que estes pos-
beleza e da eficácia, descobrem as condições materiais da felicidade suíam no solo, em certos espaços, objectos semelhantes que atraíam os
que as nos~cidades anárquicas lhes recusavam ... aviões que voavam. Os indígenas lançaram-se então a construir um
Encontramo-nos em pleno foco do consumo enquanto organização simulacro de avião com ramos e lianas, delimitaram um espaço que
total da vida quotidiana, enquanto homogeneização integral onde tudo iluminavam de noite e puseram-se pacientemente à espera que os
está compendiado e ultrapassado na facilidade, enquanto translucidez verdadeiros aviões ali viessem aterrar.
de uma «felicidade» abstracta, definida pela simples resolução das Sem rotular de primitivismo (e porque não?) os caçadores-recolec-
~ensões. O «drugstore», alargado até ás dimensões do centro comercial tores antropóides que erram actualmente na selva das nossas cidades,
e da cidade futura, constitui o sublimado de toda a vida real, de toda seria possível descobrir neles um ap61ogo sobre a sociedade de con-
a vida social objectiva, onde acabam por abolir-se, não s6 o trabalho e sumo. Também o miraculado do consumo serve de todo um dispositivo
o dinheiro, mas as estações - vestígio longíquo de um ciclo que de objectos simuJacros e de sinais característicos da felicidade, espe-
também chegou a ser homogeneizado! O trabalho, o lazer, a natureza, rando em seguida (no desespero, diria um moralista) que a felicidade
a cultura, que outrora se encontravam dispersas e provocavam a ali venha poisar-se.
angústia e a complexidade na vida real, nas nossas cidades «anárquicas Não se procura desvendar agora um princípio de análise. Trata-se
e arcaicas», todas as actividades desgarradas e mais ou menos irre- apenaS da mentalidade de consumo privada e colectiva. No entanto, a
duúveis umas às outras · - ei-las agora como um todo misturado, este nível bastante superficial, é permitido arriscar a seguinte com-
amassado, climatizado, homogeneizado no mesmo «travelling » de um paração: é o pensamento mágico que governa o consumo, é uma
«shopping» perene, completamente assexuado no ambiente hermafro- mentalidade sensível ao miraculoso que rege a vida quotidiana, é a
dita da moda! Finalmente, eis tudo digerido e restituído à mesma mentalidade primitiva, no sentido em que foi definida como baseada na
matéria fecal homogénea (claro está, precisamente sob o signo do crença na omnipotência dos pensamentos: no caso presente, trata-se da

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crença na omnipotência dos signos. A opulência, a ((afluência» não era devido. Consideram-na como medicina mágica- sem relação com
pa~sa da acu~ulação dos signos da felicidade. As satisfações que os a história, a técnica, o progresso contínuo e o mercado mundial. Mas,
ObJectos em SI conferem são o equivalente dos aviões simulacros, dos se olharmos mjlis de perto, os miraculados ocidentais do crescimento
modelos reduzidos dos Melanésios, ou seja, o reflexo antecipado da não se comportarão colectivamente de maneira idêntica? A massa dos
Grande Satisfafação virtual, da Opulência total, da Jubilação der- consumidores não viverá a profusão como efeito da natureza, cercada
radeira dos miraculados definitivos, cuja esperança louca alimenta a como está pelos fantasmas da terra da promissão e persuadida pela
banalidade quotidiana. As satisfações menores reduzem-se ainda a ladainha publicitária de que tudo lhe será previamente dado, tendo
simples práticas de exorcismo, a meios de captar e conjurar o Bem- ademais um direito legítimo e inalienável sobre a profusão? A boa fé
·Estar total, a Beatitude. no consumo surge como elemento novo: as novas gerações são dora-
Na prática quotidiana, os benefícios do consumo não se vivem vante os herdeiros, herdando não só os bens, mas o direito natural à
como fruto do trabalho ou de processos de produção; vivem-se como abundância. No Ocidente, revive assim o mito do Cargueiro, enquanto
milagre. Claro que há diferença entre o indígena melanésio e o na Melanásia se encontra em declínio. Porque, apesar da abundância se
telespectador sentado diante do receptor, que carrega no botão e tomar quotidiana e banal, continua a viver-se como milagre diário, na
~spera que as imagens de todo o mundo venham até ele: é que as medida em que se revela, não como produzida, arrancada e conquis-
Imagens, de modo geral, obedecem, ao passo que os aviões nunca tada, no termo de um esforço histórico e social, mas como dispensada
condescendem a aterrar por imposição mágica. Mas, o sucesso por uma instância mitológica benéfica, de que somos os herdeiros
técnico não basta para demonstrar que o nosso comportamento legítimos: a Técnica, o Progresso, o Crescimento, etc.
seja de ordem real e o dos indígenas de ordem imaginária. A ra- Não quer isto dizer que a nossa sociedade não seja, antes de mais,
~ão ~stá .e~ que é a mesma economia psíquica que, por um lado, objectivamente e de modo decisivo, uma sociedade de produção, uma
Jamais ehmma a confiança mágica dos indígenas (se isto não anda, ordem de produção, por consequência, o lugar de estratégia económica
é porque não se fez o que era preciso) e que, por outro, o mila- e política. Mas, quer-se também significar que nela se enreda uma
gre da TV se r_ealiza peq>etuamente, sem deixar de ser milagre ordem do consumo, que se manifesta como ordem da manipulação dos
-graças à técmca, que esbate na consciência do consumidor o signos. Em tal medida, é possível traçar o paralelo (sem dúvida,
próprio princípio da realidade social, o longo processo social de arriscado) com o pensamento mágico, porque ambos vivem de signos
produção que conduz ao consumo das imagens. De sorte que o e ao abrigo dos signos. Determinados aspectos das nossas cidades
telespectador, como também o indígena, vive a apropriação como contemporâneas realçam cada vez mais uma lógica das significações,
captação, segundo o modo da eficácia miraculosa uma análise dos códigos e dos sistemas simbólicos - sem que, no
entanto, sejam sociedades primitivas e permanecendo inteiramente de
pé o problema da produção histórica de semelhantes significações e
O MITO DO CARGUEIRO códigos - análise essa que deverá articular-se na do processo da
produção material e técnica como seu prolongamento teórico.
Os bens de consumo apresentam-se, pois, como poder apreendido
e não como produtos trabalhados. E, de maneira mais geral, a profusão
~os bens experimenta-se, depois de cortada das determinações objec- A VERTIGEM CONSUMIDA DA CATÁSTROFE
tivas, como uma graça da natureza, como maná e benefício do céu. Os
Melanésios - outra vez eles - desenvolveram igualmente, no contacto A prática dos signos é sempre ambivalente, tem sempre como
com os Brancos, o culto messiânico do Cargueiro: os Brancos vi vem na função esconjurar, no duplo sentido do termo: fazer surgir para captar
prof~sllo e se eles ~ada têm, é porque os Brancos sabem captar ou por signos (as forças, o real, a felicidade, etc.) e evocar algo para o
desv1ar as mercadonas que lhes eram destinadas, na sua qualidade de negar e recalcar. Sabe-se que o pensamento mágico nos mitos procura
Negros, pelos antepassados retirados para os confins do mundo. Dia conjurar a mudança e a história. De certa maneira, o consumo gene-
virá em que, depois do fracasso da magia dos Brancos, os antepassados ralizado de imagens, de factos e de informações também se esforça
regressarão com a carga miraculosa e eles deixarao de sentir a neces- por conjurar o real nos signos do real, por conjurar a história nos
sidade. signos da mudança, etc.
Desta maneira, os povos ((subdesenvolvidos» vivem a «ajuda)) Consumimos o real por antecipação ou retrospectivanente, de
ocidental como algo de esperado e de natural, que desde há muito lhes qualquer maneira, à distância, distância esta que é a do signo. Exemplo:

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quando Paris-Match nos mostrou os agentes secretos do General Vivemos desta maneira ao abrigo dos signos e na recusa do
treinando-se com metralhadoras nas caves da Prefeitura, tal ima- real. Segurança miraculosa: ao contemplarmos as imagens do mundo,
gem não se leu como «informação», isto é, com referência ao quem distinguirá esta breve irrupção da realidade do prazer
contexto político e ao respectivo esclarecimento: veiculava para profundo de nela não participar? A imagem, o signo, a mensagem,
todos nós a tentação de um atentado soberbo, de prodigioso acon- tudo o que «consumimos», é a própria tranquilidade selada pela dis-
tecimento de violência; o atentado dar-se-á, vai acontecer, e a tância ao mundo e que ilude, mais do que compromete, a alusão vio-
imagem é a sua precursora e fruição antecipada, com o cumpri- lenta ao real.
mento de todas as perversidades. Constitui o mesmo efeito inverso O conteúdo das mensagens, os signifJCados dos signos, em grande
que se descortinou na expectativa da profusão miraculosa no Car- parte, são indiferentes. O nosso empenhamento não as acompanha e os
gueiro. O Cargueiro ou a catástrofe revelam-se sempre como efeito de meios de comunicação não nos orientam para o mundo, oferecem-nos
vertigem consumida. para consumo signos atestados, contudo, pela caução do real. Che-
Pode afmnar-se, é verdade, que os nossos fantasmas é que vêm gou o momento de podermos definir a praxis de consumo. Are-
significar-se e consumir-se na imagem. O aspecto psicológico, porém, lação do consumidor ao mundo real, à política, à história, à cultura,
interessa-nos menos que o que transparece na imagem para nela ser ao não é a do interesse, do investimento, da responsabilidade empu-
mesmo tempo consumido e recalcado: o mundo real, o acontecimento nhada -também não é a da indiferença total, mas sim a da CURIO-
e a história. SIDADE. Segundo o mesmo esquema, pode afumar-se que a dimen-
O que caracteriza a sociedade de consumo é, a universalidade são do consumo até aqui por nós definida, não é a do conhecimento
do «fait divers» na comunicação de massa. Toda a informação polí- do mundo, nem igualmente a da ignorância completa: é a do DES-
tica, histórica e cultural é acolhida sob a mesma forma, simulta- CONHECIMENTO. .
neamente ·anódina e miraculosa, do «fait divers». Actualiza-se Curiosidade e desconhecimento designam um só e mesmo compor·
integralmente, isto .é, aparece dramatizada no modo espectacular tamento global a respeito do real, comportamento generalizado
-e permanece de todo inactualizada, quer dizer, distanciada e sistematizado pela prática .das comunicações de massa e, por-
pelos meios de comunicação e reduzida a signos. O acontecimento tanto, característico da nossa «sociedade de consumo:.: trata-se da
· irrelevante não constitui, pois, uma categoria entre outras, mas A recusa do real, baseada na apreensão ávida e multiplicada dos seus
categoria cardial do nosso pensamento mágico e da nossa mito!ogia. signos.
Semelhante mitologia escora-se na exigência intensamente voraz A propósito, também podemos já definir o lugar do consumo:
de realidade, de «verdade» e «objectividade». Por toda a parte se é a vida quotidiana. Esta não é apenas a soma dos factos e gesJos
desenvolvem o cinema-verdade, a reportagem directa, o «flash», diários, a dimensão da banalidade e da repetição; é um sistema
a foto de choque, o testemunho-documento, etc. Em todos os luga- de interpretação. A quotidianidade constitui a dissociação de uma
res se busca o «coração do acontecimento», o «coração do baru- praxís total numa esfera transcendente, autónoma e abstracta (do
lho», o in vivo, o «face a face»-a vertigem de umapresença total politico, do social e cultural) e na esfera imanente, fechada e abs-
ao evento, o Grande Calafrio do Vivido - ou seja, mais uma vez, o tracta, do ~privado». O indivíduo reorganiza o trabalho, o lazer, a
MILAGRE, já que a verdade da coisa contemplada, televisada, gravada família, as relações, de modo involutivo, aquém do mundo e da
na cinta sonora, consiste precisamente no facto de eu não ter lá história, num sistema coerente fundado no segredo do privado, na
estado. O mais verdadeiro, porém, conta mais que o verdadeiro; por liberdade formal do indivíduo, na apropriação protectora do am-
outras palavras, o facto de assistir sem lá ter estado, ou ainda de outro biente e no desconhecimento. A quotidianidade, para o olhar objec·
modo, o fantasma. tivo da totalidade, é pobre e residual: por outro lado, porém, mos-
As comunicações de massa não nos fornecem a realidade, mas a tra-se triunfante e eufórica no esforço de autonomização total e de
vertigem da realidade. Ou, então, mas sem jogo de palavras, uma reinterpretação do mundo «para uso interno». Aí se situa o conluio
realidade sem vertigem, porque o coração da Amazónia, o coração profundo e orgânico entre a esfera da quotidianidade privada e as
do real, o coração da paixão, o coração da guerra, este «coração» comunicações de massa.
que é o lugar geométrico das comunicações de massa e que desperta A quotidianidade como enclausuramento, como Verborgenheit,
a sua sentimentalidade verti6inosa, é onde precisamente nada se seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o alibi de uma
passa. É o signo alegórico da paixão e do acontecimento, e os signos participação no mundo. Tem necessidade de alimentar-se das imagens
constituem factores de segurança. e dos signos multiplicad?S da vertigem da realidade e da histó-

24 25
ria. A sua tranquilidade precisa, para se exaltar, de perpétua antes, uma «sentimentalidade» específica. A sociedade de consumo
violência consumida. Tal ~ a sua obscenidade. É gulosa de acon- pretende ser uma Jerusalém rodeada de muralhas, rica e ameaçada -
tecimentos e de violência, contanto que lhe seja servida em casa. eis a sua ideologia1 •
Como caricatura, eis o telespectador acaçapado diante das ima-
gens da guerra do Vietname. A imagem da TV, como janela O CÍRCULO VICIOSO DO CRESCIMENTO
invertida, dá primeiramente para um quarto, em cujo interior a
exterioridade cruel do mundo se torna íntima e calorosa, com calor Despesas colectivas e redistribuição
perverso.
Ao nível do «vivido», o consumo faz da exclusão maximal do A sociedade de consumo não se caracteriza somente pelo rá-
mundo (real, social e histórico) o índice máximo de segurança. Tende pido · crescimento das despesas individuais; vem também acompa-
para a felicidade por defeito, eliminando as tensões. Mas, choca com nhada pela intensificação das despesas assumidas por terceiros
a contradição que existe entre a passividade que implica o novo (sobretudo pela administração) em benefício dos particulares, pro-
sistema de valores e as normas de uma moral social que, quanto ao curando algumas delas reduzir a desigualdade da distribuição dos
essencial, permanece a do voluntarismo, da acção, da eficácia e do recursos.
sacrifício. Daí a intensa culpabilização que se inscreve no novo A parte das despesas colectivas que satisfazem as necessidades
estilo de conduta hedonista e a urgência, claramente definida pelos individuais passa de 13% do consumo total em 1959 para 17% em
«estrategos do desejo», de desculpabilizar a passividade. Para mi- 1965.
lhões de pessoas sem história e felizes de o serem, é de toda a Em 1965, é a seguinte a fracção das necessidades coberta por
necessidade desculpabilizar a passividade. Aqui intervém a drama- terceiros:
tização espectacular por intermédio dos «mass media» (o «fait di- - 1% para a alimentaçllo e o vestuário («subsis~ncia»);
vers»/catástrofe como categoria generalizada de todas as mensagens): - 13% para despesas de alojamento, redes de equipamento de
de maneira a resolver a contradição entre moral puritana e moral he- transportes e de comunicaçOes («quadro de vida»).
donista, importa que a tranquilidade da esfera privada surja comova- - 67% nos domínios do ensino, da cultura, dos desportos e da saúde
lor disputado, constantemente ameaçado, rodeado por um destino («protecçllo e desenvolvimento da pessoa»).
de catástrofe. É precisa a violência e a inumanidade do mundo exterior Nota-se, portanto, que as despesas colectivas dizem muito mais
para que a segurança não só se experimente como tal com maior respeito ao homem que aos bens e equipamentos materiais postos à sua
profundidade (no plano da economia da fruição) mas também para que disposiçllo. De modo análogo, as despesas públicas são actualmente de
se sinta justificada em escolher-se a si mesma, em cada momento maior importância nas funçOes e lugares cujo aumento mais instante·
(no plano da economia moral da salvação). Em redor da zona mente se deseja. Não obstante, tem interesse observar, com E. Lisle,
preservada, é necessário que floresçam os signos do destino, da que precisamente. em tal·seçtor, onde a colectividade assume a maior
paixão , da fatalidade, para que semelhante quotidianidade recupere parte das despesas e que ela mais desenvolveu, é que rebentou a crise
a grandeza e o sublime de que ela constitui justamente o invés. de Maio de 1968.
A fatalidade sugere-se e significa-se assim em toda a parte, a fim Na França, 'o «orçamento social da naçao» redistribuiu mais de
de que a banalidade venha nela apascentar-se e achar desculpa. 20% do produto interno bruto (a educaçllo nacional, só por si,
A extraordinária receita dos acidentes de tráfego nas ondas elec- absorve a totalidade do imposto sobre o rendimento das pes-soas
trónicas, na imprensa, no discurso individual e nacional prova-o físicas). A disparidade violenta, denunciada por Galbraith, entre
bem: constitui o mais belo avatar da «fatalidade quotidiana». Se é o consumo privado e as despesas colectivas, revela-se assim mais
explorada com tal paixão é porque cumpre uma funçllo colectiva específica nos Estados Unidos que nos países europeus. Mas,
essencial. Aliás, a litania da morte de automóvel choca apenas com essa não é a questão. O verdadeiro problema consiste em saber
a concorrência da ladainha das previsOes meteorológicas: a razão se os créditos asseguram a igualização das possibilidades sociais.
está em que as duas formam uma idade mítica- a obsessão do sol
e a litania da morte são inseparáveis. 1Semelhantc aituaçlo enconti"'·Je quaae idealmente realizada por uma cidade como
A quotidianidade oferecr., pois, a curiosa mescla de justificação Berlim. Por outro lado, a maioria doa romance• de f~eçio cienlífica temaliza a aituaçio de
eufórica pelo «Standing» e pela passividade, e de «deleitação morosa» uma Grande Cidade nacional e «afluente», omNçada de deauuiçio por qualquer força
de possíveis vítimas do destino. O todo origina uma mentalidade. ou ho.til poderou, do exterior ou do interior.

26 27
Ora, parece evidente que tal «redistribuição» tem apenas escas- ção efectiva dos pobres. Sempre que os equipamentos querem ·
sos efeitos sobre a discriminação social a todos os níveis. Relati- abrir-se a todos, a eliminação dos mais fracos faz-se logo de início.
v~e~te à . desigualdade dos níveis de vida, a comparação de O esforço pelo acesso de todos traduz-se habitualmente por uma
d01s mquéntos acerca dos orçamentos familiares, realizados em segregação que reflecte as hierarquias sociais. Tal ocorrência pro·
1956 e 1965, não revela qualquer atenuação das irregularidades. penderia a mostrar que, numa sociedade com profundas desigual-
Conhecem-se as disparidades hereditárias e irredutíveis das clas- dades, as acções políticas tendentes ao estabelecimento de uma
ses sociais perante a escola: onde actuam outros mecanismos mais igualdade formal de acesso, na maioria dos casos, redobraram ape-
subeis que os niecanismos económicos, a simples rediSiribuiçao económica nas as desigualdades.» (Comissão do Plano: «Consumo e Modo de
equivale em grande parte ao reforço dos mecanismos de inércia Vida»).
cult~l. Níveis de escolarização de 52%, aos 17 anos: 90% para A desigualdade perante a morte continua a ser muito grande.
as cnanças de quadros superiores, profissões liberais e membros do Portanto, os números absolutos mais uma vez deixam de ter
corpo docente, menos de 40%, para os agricultores e opérários. sentido e o crescimento dos recursos disponíveis, apesar da luz
N? e~sino supe~or, p~ssibilidades de acesso para os rapazes da verde para a abundância, tem de interpretar-se na sua lógica so-
pnmeua categona: mats de um terço; de 1% a 2%, para os da se- cial real. A redistribuição social e a eficácia das acções públicas
gunda. em particular devem ser postas em questão. No ~desvio» da
No domínio da saúde, os efeitos redistributivos não são claros: entre redistribuição «social», na reinstauração das desigualdades sociais
a população activa, poderia haver ausência de redistribuição, como se através do próprio mecanismo que as deveria eliminar, haverá
~ada cate~oria social se esforçasse o mínimo por recuperar as respec- que reconhecer uma anomalia provisória, derivada da inércia da
tivas quottzações. estrutura social? Ou teremos, pelo contrário, de formular a hipó-
Sistema fiscal e segurança social: a este respeito, seguimos a tese radical, segundo a qual os mecanismos de redistribuição, tão
argumentação de E. Liste. «Os crescentes consumos colectivos são bem sucedidos em preservar os privilégios, constituem parte in-
financiados pelo desenvolvimento da fiscalidade e da parafiscali- tegrante, elemento táctico do sistema de poder - sendo assim
~~e: só na escritura ~ S.S., o rendimento das quotizações so- cúmplices do sistema escolar e do sistema eleitoral? Não aproveita
ClatS para a massa dos ampostos salariais passou de 23,9% em 1959 absolutamente nada deplorar o repetido fiasco de uma política
a 25,9% em 1967. A S.S. custou, pois, aos assalariados das em- social: importa antes constatar que ela cumpre perfeitamente a sua
presas um quarto dos seus recursos, podendo as quotizações so- função real.
ciais ditas "dos patrões" ser legitimamente consideradas como le-
v~tamento inicial sobre o salário, à maneira do que sucede com
o Imposto orçamental de 5%. A massa destes levantamentos
ultrapassa em muito a que se realiza a título do imposto sobre o INCIDÊNCIA SOBRE O LEQUE DOS RENDIMENTOS
ren~!llento. Como este é progressivo, ao passo que as quotizações
socams e o pagamento orçamental são, no fim de contas, re- Comparação dos rendimentos médios das categorias
gressivos, o efeito evidente da fiscalidade e da paraftscali- extremas
dade directa é regressivo. Se se admitir que a fiscalidade indi-
Rendimentos primários ................................. 8,8 9,8 10,0
recta. sobretudo o IVA, é proporcional ao consumo, pode concluir-se
que os imposto~ directos e indirectos e as quotizações sociais pa- Rendimentos prirn,rioa
gos pelas famílias e de grande escala aplicadas ao financiamento - meno1 levantamento fiscal directo .......... 8,7 10,2 10,1
dos consumos colectivos, não teriam, no conjunto, qualquer efeito - maia truuferênciu .................................... !5,2 !5,2 s,o
redutor de desigualdade ou de redistribuição». Rendimentos flll&iS ·······················-··············· 4,9 5,0 4,6
((No que respeita à eficácia dos equipamentos colectivos, os in-
quéritos disponíveis revelam uma frequente "derrapagem" das in-
tenções dos poderes políticos. Quando tais equipamentos se Não obstante determinados resultados, a apreciação do efeito
concebem para os mais desfavorecidos, constata-se que, pouco das transferências, tanto na redistribuição como na orientação dos
a pouco, a clientela se diversifica e que semelhante abertura consumos, tem de ser muito matizada. Se o efeito global das
provoca, mais por razões psicológicas que financeiras, a rejei- transferências permitiu reduzir em metade o leque dos rendimen-

28 29
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AUMENTO DE CONSUMO DAS FAMÍLIAS EM 19651


Comumoo iDdividoaaà c-.-.. CaojllllfO
Fuçlla elo ·--...,..w Milhõ<a Reportíçio po< Milbõeo Rcpootiçio po< Milb6ea Rqwtiçio
cloP ~o cm~ cloP ~O<m~ deF fiu>çio de

1. Necessidades elemLnttJres
Necessidades de alimentação,
hotéis, cafés, restaurantes.
Necessidades de vestuário.
Necessidades de cuidados pessoais,
muito diversos ............. 157 503 99,1 1 485 0,9 158 988
2. Necessidtuks relativas ao qU4dro
th vida . . . . .............. . . . 93753 86.7 14 392 13.3 108 145
3. Despesas de habitação (equipa·
w mcnto, alojlmcnto) .............
..._ Produtos de sustento, rendas,
reparações. energia e impostos 50225 89.1 6138 10.9 56 363
4. Outras ( distracções,lazeres,
transportes individuais e colectivos,
P lt T. serviços divenos,
segurança,) ... ...•... ........ . . . 43 S28 84,1 8254 1.5,9 5 1 782
.5. Necrssidtuks tkformoção e
protecção da pessoo ....... .... . 21298 32,7 43 735 67,3 65 033
6. Ensino, rultura .............. . 12160 36,3 2 1 318 33 478
7. Desportos, saúde ...... . ...... 9138 29.0 22417 71 ,0 315.5.5
8. Consumo intenMdiário global 3 210 100,0 3 210
CONJUNTO . .•... . ... • . 272 5.54 81,3 62 822 18.7 335 376
- - ··-· c_____ --- ---- -

1
Fonte CREDOC, Consommation individuelle et Consommation oolecctive (Premier essai de mesure), 1969. Documento estabelecido pelo
cGroupe Consommation et Mode de Vie».
MORTALIDADE POR CATEGORIA
SOCIO-PROFISSIONAV

Número de sobreviventes aos 10 anos


para cada 1000 aos 35 anos

Professores do ensino público....................................... 732


Profissões liberais, quadros superiores.......................... 719
Clero católico .. .... .. . .. . ..... .. . .. ..... ...... ... ... ... .... .. .... ...... . 692
Técnicos do sector privado ....................................... .... 700
Quadros médios do sector público ....... ..... .................. 664
Quadros médios do sector privado ................................ 661
Contramestres e operários qualificados do sector
público . ... ... ... ... .. . .. . .. ... .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. ... ... .. . .. . .. . .. . .. 653
Agricultores exploradores ............................................. 653
Empregados de escritório do sector público .......... ........ 633
PatrOes da indústria e do comércio.................. .............. 631
Empregados de escritório do sector privado .................. 623
Contramestres e operários qualificados do sector
privado ..... .......................... ~........... ...... .... ....... .... 585
Operários especializados do sector público ....... .... ...... .. 590
Operários especilizados do sector privado . ................... 576
Assalariados agrícolas ..... .. ......... ......... ...... ............ . .. .... 565
Serventes sem qualificação ........................................ ... 498
Conjunto da França (abrangendo grupos representados
no inquérito) ........................................................... 586

• ltlllhs d Conjonctuu, Novembro de 196S.

33
Os prejufzos pesados e, sobretudo, a obsessão geral da insegurança. A pressão
psicológica e social da mobilidade, do estatuto, da concorrência a todos
Os progressos da abundância, isto é, da disposição de bens e de os níveis (rendimento, prestígio, cultura, etc.) toma-se cada vez mais
equipamentos individuais e colectivos cada vez mais numerosos, pesada para todos. Necessita-se de mais tempo para se recriar e
oferecem em contrapartida «prejuízos» cada vez mais graves - reciclar, para recuperar e compensar o desgaste psicológico e nervoso
consequências, por um lado, do desenvolvimento industrial e do causado por múltiplos danos: trajecto domicílio/trabalho, superpopu-
progresso técnico e, por outro, das próprias estruturas de consumo. lação, agressOes e "stress" contínuos. Em última análise, o preço mais
Degradação do quadro colectivo pelas actividades económicas: elevado da sociedade de consumo é o sentimento de insegurança
ruído, poluição do ar e da água, destruição das paisagens e lugares, generalizada que ela engendra...»
perturbação das zonas residenciais pela implantação de novos equi- Semelhante facto conduz a uma espécie de autodesvalorização do
pamentos (aeroportos, auto-estradas, etc.). O estorvo causado pelo sistema: «No crescimento rápido ... que origina inevitavelmente ten-
automóvel origina um «déficit» técnico, psicológico e humano de sOes inflacionistas... parte não negligenciável da população é incapaz
dimensOes colossais: que importa, uma vez que o superequipamento de aguentar o ritmo. São os "rejeitados". E os que prosseguem na
inCra-estrutural necessário, as despesas suplementares em gasolina, as corrida e chegam ao modo de vida proposto como modelo conseguem-
verbas para o cuidado das vítimas de acidentes, etc., tudo acabará por -no, mas s6 ao preço de um esforço que os deixa diminuídos. Desta
ser contabilizado como consumo, ou seja, tomar-se-á, debaixo da capa maneira, a sociedade vê-se obrigada a amortizar os gastos sociais do
do produto nacional bruto e das estatísticas, expoente de crescimento crescimento, redistribuindo uma parte crescente do produto interno
e de riqueza! Sancionará a florescente indústria das águas minerais um bruto, em proveito de investimentos sociais (educação, investigação,
aumento real de «abundância», quando se limita em grande parte a saúde), que se definem antes de mais para servir o crescimento».
servir de paliativo à deficiência da água urbana? Etc.: seria um nunca (E. Liste). Ora, as despesas privadas ou colectivas destinadas a suprir
acabar se fossemos examinar todas as actividades produtivas e de as disfunções mais do que a intensificar as satisfações positivas, as
consumo que não passam de paliativos para os prejuízos internos do despesas de compensação, adicionam-se, em todas as contabilidades,
sistema do crescimento. Depois de atingido determinado limiar, o à elevaçdo do n(vel de vida. E já não se fala dos consumos de droga,
aumento da produtividade é quase todo absorvido e devorado pela de álcool e de todas as despesas jactanciosas e compensatórias,
terapia homeopática do crescimento pelo crescimento. deixando igualmente de mencionar os orçamentos militares, etc. Eis o
Claro está, os «prejuízos culturais)), devido aos efeitos técnicos e que é o crescimento e, portanto, a abundância.
culturais da racionalização e da produção de massa, são rigorosamente O crescente número de categorias «a cargo» da sociedade, sem
incalculáveis. Ademais. os juízos de valor impedem a este respeito a constituir um dano (a luta contra a doença e o recuo da morte são um
definição de critérios comuns. É impossível caracterizar objectiva- dos aspectos da «abundância» e uma das exigências do consumo),
mente o «prejuízo» de conjuntos habitacionais sinistros e de um mau hipoteca, no entanto, e de modo cada vez mais pesado, o próprio
filme da série Z, como se consegue fazer com a poluição da água. Só processo. No limite, diz J. Bourgeois-Pichat, «poder-se-ia imaginar
um inspector da administração, como aconteceu em recente congresso, que a população, cuja actividade se consagra a manter o país em boa
é que podia ter proposto, ao mesmo tempo que um «ministério do ar saúde, se toma mais importante que a população efectivamente empe-
puro», a protecçllo das populaçoes contra os efeitos da imprensa de nhada na produção.»
sensação e a criação do «delito de ataque à inteligência»! Mas, é de Em suma, em toda a parte se toca num ponto em que a dinâmica do
admitir que tais prejuízos crescem segwtdo o mesmo ritmo da abundancia. crescimento e da abundância se mostra circular e começa a girar sobre
Pode ainda acrescentar-se ao balanço a obsolência acelerada dos si mesma e em que o sistema se esgota, de modo progressivo, na sua
produtos e das máquinas, a destruição de estrutlll'lantigas que assegu- reprodução. Limiar de patinagem, onde todo o aumento de produ-
ravam determinadas necessidades, a multiplicação das falsas inova- tividade passa a alimentar ascondiçOes de sobrevivência do sistema.
ções, sem benefício sensível para o modo de vida. O único resultado objectivo é então o crescimento canceroso dos
Talvez ainda mais grave que a desclassificação dos produtos e da números e dos balanços; mas, no essencial, regressa-se propriamente
aparelhagem é o facto, assinalado por E. Liste, de que «O custo do ao estádio primitivo, que é o da penúria absoluta do animal ou do
progresso rápido na produção das riquezas é a mobilidade da mão-de- indígena, cujas forças se esgotam todas na preoCupação pela sobre-
-obra e, por consequência, a instabilidade do emprego. Renovação, vivência. Ou então - segundo Daumal - à penúria daqueles que
reciclagem dos homens que tem como resultados gastos sociais muito «semeiam batatas para poderem comer batatas e de novo as con-

34 35
seguirem semear», etc. «Ora. um sistema é inefi_caz quan~o os respec- enquanto obsessão colectiva consignada nos livros de contas, desem-
tivos gastos são iguais ou superiores ao seu rendimento. Ainda nAo nos penha antes de mais a função social de mito. Para alimentar semelhante
encontramos em tal ponto. Mas, vemos já perfilar-se, através dos ?tito, tudo é bom, m~smo a inversão de realidades objectivas, que
prejuízos e dos correctivos sociais e técnicos para semelhantes c:tanos, mtroduzem a contradição nos números que o sancionam.
a tendência geral para o funcionamento interno tentacular do Sistema Talvez exista, porém, na álgebra mítica das contabilidades, uma
- porque os consumos "disfuncionais", i~divi~uai~ ?u c?lectivos, verdade profundá. A VERDADE do sistema económico-polftico das
aumentam mais depressa que os consumos functomus , o ststema no s~i~dades de crescimento. É paradoxal que o positivo e o negativo se
fundo, é parasita de si mesmo.» adi~10nem desordenadamente. Mas, possivelmente trata-se de simples
A contabilização do crescimento lógica: Porque a verdade é que são talvez as necessidades «negativas»,
ou a m(stica do P.N.B. os prejuízos compensados, os custos internos de funcionamento os
gastos sociais de endo-regulação «disfuncional», os sectores anexo~ de
Estamos a referir-nos ao mais extraordinário «bluff» colectivo das p~ig~idade inútil,. que desempenham em tal conjunto o papel
sociedades modernas; a uma operação de «magia branca» acerca dos dmam1co de locomotiVO económica. A verdade do sistema encontra-
números, mas que na realidade esconde uma magia negra de enfei- -~e, ciar:o está, oc~lta pelos números, cuja adição mágica esconde a
tiçamento colectivo. Falamos da ginástica absurda das ilusões avaliáveis, ctrCulartdade admirável do positivo e do negativo (venda de álcool e
das contabilidades nacionais. Eis o princípio desta magia: em seme- construção de hospitais, etc.). Assim se explicaria a impossibilidade,
lhante contabilidade s6 entram os factores visíveis e mensuráveis apesar de todos os esforços e a todos os níveis, de extirpar os aspectos
segundo os critérios da racionalidade económica. Nela não têm entrada negativos, dos quais vive o sistema e que este não pode dispensar.
nem o trabalho doméstico das mulheres, nem a investigação, nem a Encontraremos o mesmo problema a propósito da pobreza, da «re-
cultura - em contrapartida, podem nela figurar certas coisas des- serva» de pobreza que as sociedades de crescimento «arrastam atrás de
propostitadas, pelo simples facto de serem mensuráveis.. Além dis_so, si» c?~o ~·constituindo um dos seus «danos» mais graves. É preciso
estas contabilidades, tal como o sonho, nAo conhecem o smal negativo adm1ttr a h1p6tese de que todos estes prejuízos se inserem nalgum lado
e adicionam tudo, danos e elementos positivos, no mais completo como factores positivos, como factores permanentes do crescimento
ilogismo (embora não inocente). . como impulso da produção e do consumo. No séc. xvm, Mandeville:
Os economistas somam o valor de todos os produtos e serv1ços ~a F~bula das Abelhas, def~ndia a. teoria (já ao tempo sacrflega e
de todos os géneros- não se faz qualquer distinção entre serviços htx:rtma) de que .é. pelos própnos víc~os e não pelas virtudes que uma
públicos e serviços privados. Os prejuízos e o respectivo paliativo SOCiedade se equthbra e que a paz soc1al, o progresso e a felicidade dos
figuram na contabilidade ao mesmo título que a produção de bens homens se obtêm pela imoralidade instintiva, que o leva incessante-
objectivamente úteis. «A produção de álcool, de bandas desenhadas, de mente a infringir as regras. Ele referia-se à moral, mas é-nos lícito
pastas dentríficas ... e de mísseis nucleares absorv~ nela a ausência de entendê-los no sentido social e económico. É em virtude das taras
escolas, de estradas, de piscinas» (Galbraith). ocultas, dos desequilíbrios, dos prejuízos, dos vícios relativos a um
Os aspectos deficitários, a degradaçao e a obsolência nao aparecem sistema raci~n~ que o sistema real de facto prospera. Mandeville foi
lá - e se de facto surgem, é sob o signo positivo! Consequentemente, acusado de c1msmo: no entanto, a ordem social, a ordem de produção
os preços de transporte para o trabalho são contabilizados como é que é objectivamente cínica•.
despesa de consumo! É o resultado quantificado e lógico da finalidade
mágica da produção pela produção: toda a coisa produzida, p~lo 'Neste sentido, ex iate uma diferença ab.oluta entre o desperdício das c sociedades da
simples facto de ser produzida, é.objecto de sacraliza~ã.o. Toda~ cmsa abundância•, desperdício que surge como pr~ju{zo illl~grado 110 sist~ma económico e
produzida é positiva, toda a co1sa mensur~vel é pos1ti~a. A ba1xa da como ~e1perdfcio «funci~al•, n~ produtor de valor colectivo, e a prodigalidade
~es~tiva que ~ u SOCiedades dttu de «penúria• praaicaram, nas festas e nos aac-
luminosidade da atmosfera em 30%, em Parts, durante cmquenta anos, nficios, desperdteto «por excesso•, em que a deJtnliçio doa bens era fonte de valores
é residual e inexistente aos olhos dos contabilistas. Mas, se ela originar •.imbólicos colectivos. ~ta r fora automóvel fora de moda ou queimar caf~ nu locomo-
maior despesa de energia eléctrica. de lâmpadas, de óculos, etc.: então uvu, nada ofereo:.defestlvo, ~a dest~çio si•tem,tiça, deliberada parafina e1tratégicos.
já existe e manifesta-se logo como aumento de produção e de nqueza O mes~o ocorre com •• despesas mthtare• (talvez apenas a publicidade...). O sistema
económtco nlo consegue ultrapauar-se no desperdício festivo enredado como estinuua
social! Todo o ataque restritivo ou selectivo ao princípio sagrado da pretensa «racionali~ade•.. De c~rta maneira, devora wlicame~te e de modo vergonhoso
produção e do crescimento provocaria o horror do sacrilégio («Não o seu aumento de nqueza, praltcando uma destrutividade calculada complementar do
tocaremos sequer num parafuso do Concorde!»). A produtividade, ~lculo de produtividade.

36 37
O desperdfcio mista, tem portanto de rever-se segundo uma lógica social muito mais
geral em que o desperdício, longe de figurar como resíduo irracional,
Sabe-se muito bem como a abundância das sociedades ricas está recebe uma função positiva, substituindo a utilidade racional numa
associada com o desperdício, já que foi possível falar de «civiliza- funcio?alidade social superjor e se revela, no limite, como a função
ção do caixote do lixo» e encarar a hipótese de fazer uma «sociologia essencial - tomando-se o aumento da despesa, o supérfluo, a inutili-
do caixote do lixo»: Diz-me o que deitas fora e dir-te-ei quem b! Mas, ~de ritual do e<gasto para nada», o lugar de produção de valores, das
a estatística da porcaria e do detrito não tem qualquer interesse; dif~renças e do sentido - tanto no plano individual como no plano
constitui apenas o sinal redundante do volume dos bens oferecidos e da social. Em semelhante perspectiva, perfila-se uma definição do e<con-
respectiva profusão. Não se compreende nem o desperdício nem as sumo)) como consumição, isto é, como desperdício produtivo -
suas funções, se neles se vir somente o esbanjamento residual do que perspectiva inversa da do «económico», fundado na necessidade, na
é feito para ser consumido, não o sendo. De novo nos encontramos aqui acumulação e no cálculo em que, pelo contrário, o supérfluo precede
com uma definição simplista do consumo - definição moral, baseada o necessário e em que a despesa precede em valor (se é que não no
na utilidade imperativa dos bens. E todos os nossos moralistas partem tempo) a acumulação e a apropriação.
em pé de guerra contra a dilapidação das riquezas, desde o indivíduo «Oh, não discutam a "necessidade"! O mais pobre dos mendigos
privado que nãorespeitamaisotípode lei moral interna ao objecto que possui ainda algo de supérfluo na mais miserável coisa. Reduzam a
seria o seu valor de uso e a sua duração, que lança fora os bens ou os natureza às necessidades da natureza e o homem ficará reduzido ao
troca segundo os caprichos do «standing» ou da moda, etc., até ao animal.: a sua vida deixará de ter valor. Compreendes por acaso que
desperdício à escala nacional e internacional e até mesmo ao des- necessitamos de um pequeno excesso para existir?»- diz Shakespeare
perdício, de certa maneira planetário, típico da espécie humana na sua no Rei Lear. ·
economia geral e na exploração das riquezas naturais. Em suma, o Por outras palavras, um dos problemas fundamentais postos
desperdício é sempre considerado como fonna de loucura, de demência, . pelo consumo é o seguinte: os seres organizar-se-ão em função da
de disfunção do instinto, que impele o homem a queimar as suas sobrevivência ou em função do sentido, individual ou colectivo,
reservas e a comprometer através de uma prática irracional as próprias qu~ dã? à sua v~da? Ora, o valor de «ser», valor estrutural, po-
condições de sobrevivência. de Implicar o sacnffc10 dos valores económicos. E semelhante proble-
Semelhante vi~o trai pelo menos o facto de que não nos encontra- ma não é metafísico. Encontra-se no centro do consumo e pode
mos em era de abundância real, que cada indivíduo, grupo ou so- traduzir-se assim: no fundo, a abundância só terá sentido no des-
ciedade actuais e, inclusive a espécie enquanto tal, estão situados sob perd(cio?
o signo da raridade. Ora, os que defendem o mito da irrresistível vinda ~ver-se-á definir a abundância sob o signo da previ~o e da
da abundância ~o também, em geral, os que deploram o desperdício, provisão, como faz Valéry? «Contemplar pilhas de alimento duradoiro
relacionado com o espectro ameaçador da falta de meios. De qualquer não será divisar tempo de sobejo e actos poupados? Uma caixa de
maneira, a visão moral do esbanjamento como disfunção deve reto- biscoitos é um mês inteiro de preguiça e de vida. Panelas de carne
mar-se integralmente segundo uma análise sociológica, que poria em conservada em gordura e cestos de fibra entulhados de sementes e de
relevo as suas verdadeiras funções. nozes são um tesouro de quietude; no seu perfume, está em potência um
Todas as sociedades desperdiçaram, dilapidaram, gastaram e con- Inverno cheio de tranquilidade... Robinson aspirava a presença do
sumiram sempre além do estrito necessário, pela simples razão de que futuro ao aroma das caixas de munições e dos cofres da sua dispensa de
é no consumo do excedente e do supérfluo que, tanto o indivíduo como bordo. O seu l_esouro exalava ociosida?e. Dele emanava a duração, da
a sociedade, se sentem não só existir, mas viver. Tal consumo pode mesma manell'll que de certos metais emana um calor absoluto...
chegar até à «consumição», à destruição pura e simples, que assume A humanidade elevou-se lentamente apenas sobre o montão do que
então uma função social específica. Por exemplo, no «potlatch» é a dura. As previsões e provisões separam-nos pouco a pouco das
destruição competitiva de bens preciosos que sela a organização social. nossas neces_sidades animais e da literalidade das urgências fisiológi-
Os Kwakiutl sacrificam mantas, canoas, cobres brasonados, que queimam cas... Suge~ta~o a nature~a: ela fe~ que tivéssemos em nós algo
ou deitam ao mar, para «manter a posição» e aflllTiar o próprio valor. com que reststrr em parte à mconstâncm dos acontecimentos; a gordura
É ainda por meio da wasteful expenditure (prodigalidade inútil) que, que possuímos nos membros, a memória sempre pronta na espessura
ao longo de todas as épocas as classes aristocráticas afumaram a sua das nossas almas, constituem modelos de recursos em reserva que a
proeminência. A noção de utilidade, de origem racionalista e econo-· nossa indústria imitou».

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Tal é o princípio económico, a que se opõe a visao nietzschiana consumo, mas também a produção que obedece em grande parte aos
(e a de Bataille) do ser vivo que, antes de tudo, quer ~gastar a sua processos de ostentação-nao contando já a política).Os investimentos
força»: ~os fisiologistas deveriam reflectir antes de apresentar o rendíveis e os investimentos sumptuários encontram-se por toda a parte
"instinto de conservação" como o instinto principal de todo o ser inextricavelmente interconexos. Um industrial, depois de ter investido
orgânico. O ser vivo pretende acima de tudo despender a sua força: 1000 dólares em publicidade, declarava: ~sei que metade fica perdida,
a "conservação" não passa de uma consequência entre outras. Fora mas ignoro qual seja ela». É o que sempre acontece numa economia
com os princípios teológicos supérfluos! E todo o conceito do "ins- complexa: impossível isolar o útil e querer subtrair o supérfluo. De
tinto de conservação" faz parte de tais princípios... A "luta pela resto, a metade «perdida» (economicamente) não pode ser a que
existência" - semelhante fórmula designa um estado de ex-cepção; assume menor valor, a longo prazo ou de maneira màis subtil no seu
a regra é ant~s a luta pelo poder, a ambição de ter "mais" e próprio «desperdício». •
"melhor", "mais depressa" e "muito mais vezes"». (Nietzsche, Assim importa ler o imenso esbanjamento das nossas sociedades de
A Vontade de Poder). abundância. É ele que desafia a raridade e que, de modo contraditório,
Este ~sobreexcedente», pelo qual se afuma o valor, pode tomar-se significa a abundância. É ele, e nllo a utilidade que, em virtude do
«algo de próprio». A lei do valor simbólico, que faz que o essencial próprio princípio, constitui o esquema psicológico, sociológico e
esteja sempre além do indispensável, ilustra-se o melhor possível na económico director da abundância. ·
despesa e na perda, podendo igualmente verificar-se na apropriação, «Que a embalagem possa lançar-se fora não é encontrar-se já na
contanto que estf possua a função diferencial do aumento e do IDADE DO OIRO?» '
«sobreexcedente». Assim o testemunha o exemplo soviético: o ope- Um dos grandes temas da cultura de massas, analisado por Reisman
rário, o quadro, o engenheiro, o membro do partido têm um apar- e Morin, ilustra o sobredito de modo épico: trata-se do tema dos heróis
tamento que não lhes pertence; quer seja alugado, quer de renda do consumo. Pelo menos, no Ocidente, as biografias exaltadas dos
vitalícia, é alojamento de função associado ao estatuto social do heróis da produção sucumbem hoje, por toda a parte, diante dos heróis
trabalhador, de cidadão activo, e não à pessoa privada. Este bem do consumo. As grandes vidas exemplares de «self made men» e de
constitui umserviço social, e não um património, e ainda menos um fundadores, dos pioneiros, de exploradores e de colonos, que continua-
«bem de consumo». Pelo contrário, a residência secundária, a «datcha» vam a dos santos e dos homens históricos, tomaram-se as de vedetas de
no campo e com jardim, é pertença pessoal, nao se trata de renda cinema, do desporto e do jogo, de uns quantos príncipes doirados ou de
vitalícia ou de bem revogável, pois pode sobreviver-lhes e tomar-se feudais internacionais, em suma, de grandes esbanjadores (embora.
hereditário. Daí, o entusiasmo «individualista» que se lhe associa: muitas vezes, e por inversão, o imperativo ordene que os mostrem na
todos os esforços se orientam para a aquisição da «datcha» (em lugar sua «simplicidade» quotidiana, fazendo compras, etc.). Todos os
do automóvel, que desempenha em parte, no Ocidente, idêntico papel grandes dinossauros que entretêm a crónica das revistas ilustradas e da
de «residência secundária»). O valor do prestígio e o valor simbólico TV são sempre celebrados pela vida de excesso e pela virtualidade de
da «datcha» - eis o «qualquer coisa a mais». despesas monstruosas. A sua qualidade sobre-humana constitui o seu
De certa maneira, o mesmo ocorre com a abundância: para que ela perfume de ·«potlatch». Cumprem assim uma funçlio social muito
se torne um valor, é preciso que haja, não o bastante, mas demasiado precisa: a da despesa sumptuária, inútil, desmedida. Desempenham se-
~ importa que se mantenha e manifeste uma diferença significativa melhante função por procuraçllo, em vez do corpo social, como os reis,
entre o necessário e o supérfluo: tal é a função do desperdício a todos os heróis, os sacerdotes ou os grandes arrivistas das épocas anteriores.
os níveis. Quer isto dizer que é ilusório desejar reabsorvê-lo e pretender Como eles, também nunca se revestem de grandeza a nao ser que, à
eliminá-lo, porilue é ele que de certo modo orienta todo o sistema. maneira de James Dean, paguem com a vida semelhante dignidade.
Como aliás sucede com oglldget (onde acaba o útil e começa o inútil?), A diferença essencial reside no facto de que, no sistema actual, a
também é impossível defini-lo ou circunscrevê-lo. Toda a produçao e dilapidação espectacular deixou de ter o significado simbólico e
despesa que vá além da estrita sobrevivência, pode ser rotulada de colectivo determinante, que podia assumir na festa e no «potlatch»
desperdício (e não apenas a moda do vestuário e o «caixote do lixo» de primitivos. O consumo prestigioso também acabou por «personalizar-
detritos alimentares, mas ainda os astronómicos orçamentos militares, -se» e comunicar-se através dos «mass media». Tem por função o
a «Bomba», o super-equipamento agrícola de determinados campo- estímulo económico do consumo rte massa, que se define em relação a
neses americanos e os industriais que renovam a sua panóplia de ele como subcultura laboriosa.. A caricatura do vestido sumptuoso, que
máquinas de dois em dois anos, em vez de as amortizarem: não é só o a vedeta usa apenas num sarau, é o «slip» efémero que, com 80% de

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viscose e 20% de fibra acrílica não tecida. se veste pela manhll, se lança e da vida, ela tira a prova da sua superabundância (prova inversa, mas
fora à noite e nllo se lava. Acima de tudo, este desperdício de luxo, muito mais eficaz, para a imaginação profunda, que a prova directa
desperdício sublime posto em evidência pelos «mass media», não faz pela acumulação). .
mais que duplicar, no plano cultural, um esbanjamento muito mais A sociedade de consumo precisa dos seus objectos para existir e
fundamental e sistemático, também directamente integrado nos proces- sente sobretudo necessidade de os destruir. O «USO» dos objectos
sos económicos, esbanjamento funcional e burocrático, causado pela conduz apenas ao seu desgaste lento. O valor criado reveste-se de
produção e ao mesmo tempo pelos bens materiais, a eles incorporado maior intensidade no desperdfcio violento. Por tal motivo, a destruição
e, por consequência. obrigatoriamente consumido como uma das permanece como a alternativa fundamental da produção: o consumo
qualidades e dimensões do objecto de consumo: a sua fragilidade e não passa de termo intermediário entre as duas. No consumo, existe a
obsolência calculada, a sua condenaçllo à efeméride. O que hoje se tendência profunda para se ultrapassar, para se transfigurar na destruição.
produz nllo se fabrica em funçllo do respetivo valor de uso ou da Só assim adquire sentido. Na quotidianidade actual, quase sempre
possível duração, mas antes em função da sua morte, cuja aceleraçllo permanece subordinado, como consumptibilidade dirigida, à ordem da
só é ig'ualada pela inflação dos preços. Bastaria isto para pôr em questão produtividade. Eis o motivo por que, na maior parte das vezes, os
os postulados «racionalistas» de toda a ciência económica acerca da objectos lá se encontram por ausência, enquanto a abundância
utilidade, das necessidades, etc. Sabe-se ainda que a ordem da pro- · significa paradoxalmente a penúria. O «stock» é a redundância da
duçllo não sobrevive a não ser ao preço de semelhante extermínio, de privaçllo e sinal de angústia. Só na destruição é que os objectos existem
perpétuo «Suicídio» calculado do parque dos objectos, e que tal por excesso, dando testemunho da riqueza no próprio acto de desa-
operação se baseia na «sabotagem» tecnológica ou no desuso organi- parecimento. De qualquer maneira, é evidente que a destruição, quer
zado sob o signo da moda. A publicidade realiza o prodígio de um sob a forma violenta e simbólica («happening», «potlatch», «acting
orçame"to considerável gasto com o único fim, não de acrescentar, out» destrutivo, individual ou colectivo) quer sob a forma de destru-
mas de tirar o valor de uso dos objectos, de diminuir o seu valor/tempo, tivida~a das funções preponderantes da sociedade pós-industrial.
sujeitando-se ao valor/moda e à renovação acelerada. E não falemos já
das colossais riquezas sociais sacrificadas nos orçamentos de guerra e
de outras despesas estatais e burocráticas de prestígio: este tipo de
prodigalidade não possui qualquer aroma simbólico de «potlatch»;
constitui a soluçllo desesperada, mas vital, de um sistema económico-
-político em perigo de naufrágio. Semelhante «consumo» ao nível mais
elevado faz parte da sociedade de consumo, como acontece com a fome
violenta e tetânica de objectos, nos indivíduos. Ambos asseguram em
conjunto a reprodução da ordem de produção. ·Importa distinguir o
desperdício individual ou colectivo como acto simbólico de despesa,
enquanto ritual de festa e forma exaltada de socializaçllo, da sua
caricatura fúnebre e burocrática nas nossas .sociedades, em que o
esbanjamento perdulário se tornou obrigaçllo quotidiana, instituição
forçada e muitas vezes inconsciente como o imposto indirecto e
participação sem entusiasmo nos constrangimentos da ordem económica.
«Destrua o carro, o seguro fará o resto!» O automóvel surge por
outro lado como lugar privilegiado do desperdício diário e a longo
prazo, quer privado quer colectivo. Nao apenas pelo seu valor de uso
sistematicamente reduzido, pelo coeficiente de prestígio e de moda
invariavelmente reforçado, pelas somas desmedidas nele investidas
mas, de maneira ainda mais profunda, pelo sacrifício colectivo e
espectacular de chapas metálicas, de mecânica e de vidas humanas que
o acidente representa - «hapenning» gigantesco e o mais belo da
sociedade de consumo, através do qual, na destruição ritual da matéria

42 43
Segunda Pane

TEORIA 00 CONSUMO

..
A LÓGICA SOCIAL DO CONSUMO

A ideologia igualitária do bem-estar

Todo o discurso sobre as necessidades assenta numa antropologia. ·


ingénua: a da propensão natural para a felicidade. Inscrita em ca-!
racteres de fogo por detrás da menor publicidade para as Canárias ou
para os sais de banho, a felicidade constituí a referência absoluta da
sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da
salvação. Mas, que felicidade é esta, que assedia com tanta força
ideológica a civilização moderna?
A seu respeito, importa também rever toda a visão espontânea.
A força ideológica da noção de felicidade não deriva da inclinação
natural de cada indivíduo para a realizar por si mesmo. Advém-lhe,
socio-historicamente, do facto de que o mito da felicidade é aquele que
recolhe e encarna, nas sociedades modernas, o mito daigualdade. Toda
a virulência política e sociológica, com que este mito se encontra
lastrado desde a Revolução industrial e as RevoluçOes do séc. XIX, foi
transferida para a Felicidade. Que a Felicidade ostente, à primeira
vista, semelhante significado e função, induz consequências importan-
tes quanto ao respectivo conteúdo: para ser o veículo do mito igua-
litário, é preciso que a Felicidade seja mensurável. Importa que se trate
do bem-estar mensurável por objectos e signos, do «conforto» - na
expressão de Torcqueville, que já notava a tendência das sociedades
democráticas para a intensificação do bem-estar -, enquanto reab-
sorção das fatalidades sociais e igualização de todos os destinos. A
felicidade como fruição total e interior, felicidade independente de
signos que poderiam manifestá-la aos olhos dos outros e de nós

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mesmos, sem necessidade de provas, encontra-se desde já excluída do solução definitiva através da abundância- , substituindo a igualdade
ideal, de consumo, em que a felicidade surge primeiramente como formal dos bens à transparência social das permutas. Por tal motivo,
exigência de igualdade (ou, claro está, de distinção) e deve, em de tal nos países socialistas vê-se também a «Revolução do Bem-Estar,. a
demanda, significar-se sempre a ~propósito» de critérios visfveis. tomar u lugar da revolução social e política.
Sendo assim, a Felicidade distancia-se ainda mais de toda a «festa» ou Se esta perspectiva sobre a ideologia do bem-estar for justa (ou seja,
exaltação colectiva, já que, alimentada por uma exigência igualitária, que ela veicula o mito da igualdade formal «secularizado» nos bens e
se funda nos princípios individualistas, fortificados pela Declaração nos signos), toma-se então claro que o eterno problema- ~será a
dos Direitos do Homem e do Cidadão, que reconhecem explicitamente Sociedade de Consumo igualitária ou desigualitária? Constituirá ela a
a cada um (ao indivíduo) o direito à Felicidade. democracia realizada ou em vias de realização ou, pelo contrário,
A «Revolução do Bem-Estar» é a herdeira, a testamenteira da restituirá apenas as desigualdades e as estruturas sociais anteriores?»-
Revolução Burguesa ou simplesmente de toda a revolução que erige surge como falso problema. Que se consigo ou não provar que as
em princípio a igualdade dos homens sem a poder (ou sem a conseguir) virtualidades de consumo se igualam (nivelamento dos rendimentos,
realizar a fundo. O princípio democrático acha-se então transferido de redistribuição social, idêntica moda para todos, os mesmos programas
uma igualdade real, das capacidades, responsabilidades e possibili- na TV, frequência comum do Club Mediterranée), tudo isto nada
dades sociais, da felicidade (no sentido pleno da palavra) para a significa, uma vez que pôr o problema em termos de igualização de
igualdade diante do objecto e outros signos evidentes do êxito social e consumo é já substituir a busca dos objectos e dos signos (nível de
da felicidade. É a democracia do «standing », a democracia da TV, do substituição) pelos verdadeiros problemas e pela respectiva análise
automóvel e da instalação estereofónica, democracia aparentemente 16gica e sociológica. Numa palavra,analisar a ~Abundância» não se
concreta, mas também inteiramente formal, correspondendo para Já identifica com ir verificá-la nos números, os quais só podem ser tão
das contradições e desigualdades sociais à democracia formal inscrita míticos como o mito; é mudar radicalmente de plano e impregnar o
na constituição. Servindo uma à outra de mútuo alibi, ambas se conju- mito da abundância com outra lógica diferente da sua.
gam numa ideologia democrática global, que mascara a democracia A análise ordena que se realize a verificação exacta da abundância
ausente e a igualdade impossível de achar. pelos números, o balanço do bem-estar. Mas os números não falam por
A noção de ~necessidade» é solidária da de bem-estar, na mística si mesmos e jamais se contradizem. Só as interpretações falam, umas
da igualdade. As necessidades descrevem um universo tranquilizador vezes à margem de e, outras, contra os números. Demos-lhe a palavra.
de fins e semelhante antropologia naturalista cimenta a promessa da A versão idealista é a mais vivaz e obstinada:
igualdade universal. A tese implfcita é a seguinte: perante as necessi-
dades e o princípio de satisfação, todos os homens são iguais, porque - o crescimento é a abundância;
todos eles são iguais diante do valor de uso dos objectos e dos bens (se - a abundância é a democracia.
bem que sejam desiguais e se encontrem divididos em relação ao valor
de troca). Porque a necessidade se cataloga pelo valor de uso, obtém- Diante da impossibilidade de concluir pela iminência desta fe-
-se uma relação de utilidade objectiva ou de finalidade natural, em cuja licidade total (mesmo ao nível dos números), o mito torna-se mais
presença deixa de haver desigualdade social ou história. Ao nível do «realista» e temos então a versão ideal-reformista; as grandes desigual-
bife (valor de uso), não existe proletário nem privilegiado. dades da primeira fase do crescimento acabam por atenuar-se, deixa de
Os mitos complementares do bem-estar e das necessidades pos- existir a «lei de bronze» e harmonizam-se os rendimentos. Sem dúvida,
suem assim uma poderosa função ideológica de reabsorção e supres- a hipótese do progresso contínuo e regular para uma igualdade cada vez
são das determinações objectivas. sociais e históricas, da desigualdade. maior encontra-se desmentida por factos determinados (a «Outra
Todo o jogo político do «Welfare State» e da sociedade de consumo América»: 20% de «pobres», etc.). Mas, eles revelam apenas uma
consiste em ultrapassar as próprias contradições, intensificando o disfunção provisória e uma doença infantil. O crescimento, ao mesmo
volume dos bens, na perspectiva de uma igualização automática tempo que certos efeitos desigualitários, implica a democratização
através da quantidade e de um nível de equiUbrio final, que seria o global e a longo prazo. Assim, segundo Galbraith, o problema da
bem-estar total para todos. As sociedades comunistas também falam igualdade/desigualdade deixou de pertencer à ordem do dia. Encontra-
em termos de equilíbrio, de necessidades individuais ou sociais «natu- -se conexo com o da riqueza e da pobreza; ora, as novas estruturas da
rais», «harmonizadas», purificadas de toda a diferenciação social ou sociedade «afluente,. eliminaram o problema, apesar da redistribuição
conotação de classe- por derivação de uma solução poUtica para uma desigual. «Pobres» (os 20%) são os que, por qualquer razão, permane-

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cem·no exterior do sistema industrial, fora do crescimento. No entanto, n~i~s b~utos. que instituir a análise em termos de estruturas! O que
o princípio do crescimento mantém-se imune; é homogéneo e tende a é Stgmficatavo, ao nível estrutural, é o nível de distorção. Também é ele
homogeneizar todo o corpo social . . que assin~a internacionalmente a distância crescente entre países sub-
A questão fundamental que se põe a este nível é a da «pobreza». de.senvolv!d?s e nações ~l"'liesenvolvidas, desvelando igualmente, no
Para os idealistas da abundância, ela é «residual» e acabará por ser se1o das ultimas, a «perda de velocidade» dos salários baixos em
varrida pelo aumento do crescimento. Nao obstante, parece perpetuar- relação aos rendimentos mais elevados, dos sectores que cedem em
-se na linha das gerações pós-industriais (em especial, nos U.S .A., com comparação com os sectores de ponta, do mundo rural relativamente ao
a «Great Society») e todos os esforços para a eliminar dão a impressão mundo urbano e industrial, etc. A inflação crónica permite mascarar
de ir embater noutro qualquer mecanismo do sistema que a repro- esta pauperizaçllo relativa, com a deslocação de todos os valores
duziria funcionalmente em cada estádio da evolução, como uma nominais para a direcção ascendente, quando na realidade o cálculo das
espécie de reserva de inércia do crescimento, à ~aneira de m~la funções e das médias relativas fará desaparecer regressões parciais no
indispensável à riqueza global. Teremos de dar ouvidos a Galbrruth fundo do quadro e, de qualquer maneira, uma distorção estrutural em
quando imputa esta inexplicável pobre~a. residu~ à;; ~isfunçOes do confronto com a extensão total do quadro. De nada aproveita alegar
sistema (prioridade para as despesas mtbtares ~ muteis, atraso dos sempre o c~ácter provi~rio ou conjuntural de semelhante distorçllo,
serviços colectivos em relação ao consumo pnvado, etc.), ou será ao ?escobru-se que o ststema se mantém nela em virtude da própria
necessário inverter o raciocínio e pensar que é o próprio crescimento lóg1~ e de modo~ asseguruar a sua fmalidade. Quando muito, poderá
que, no seu movimento, se funda em semelhante desequillbrio? Gal- admitrr-se que o s1stema se estabiliza em redor de determinado nível de
braith é sumamente contraditório a este respeito: de certo modo, todas dist_orçllo, isto é, seja qual for o volume absoluto das riquezas, uma
as suas análises tendem a demonstrar a implicação funcional dos destgualdade sistemática.
«vfcios» no sistema do crescimento. recuando, contudo, diante das A ~nica m~neira de sair d~ !mpasse idealista desta constatação
conclusões lógicas que poriam em causa o próprio sistema e reajus- sombna das dtsfunções é admttir que aqui está em actividade uma
tando tudo com a óptica liberal. lógica sist.emática. É Aain~ a única maneira de ultrapassar a falsa
Em geral, os idealistas agarram-se à seguinte constatação parado- problemática da a.bundâncta e da raridade que, tal como a questão de
xal: apesar de tudo e por meio da inversão diabólica dos fins (que, confiança no meiO parlamentar, tem por função asfixiar todos os
como todos sabem, só podem ser benéficos), o crescimento produz, problemas.
reproduz e restitui a desigualdade social, ~s privilégios, os Ades.e- Na ordem dos factos, nao existe, nem nunca existiu «sociedade de
quilíbrios, etc. Como Galbraith, em A Soczedade da Abundancw, abundância>!- ou. «sociedade de penúria», já que toda sociedade, seja
acabará por admitir que, no fundo, o aumento da produção é que ocupa ela qual for e seja qual for o volume dos bens produzidos ou da riqueza
o lugar da redistribuição («Quanto mais houver... cheg:u--s~-á _!l.um disponfvel, se articula ao mesmo tempo sobre um excedente estrutural
ponto em que haverá o suficiente para toda a gente». Trus prm.ctp•os, e sobre uma pen~ria_ estrutural. O excedente pooe ser a parte de Deus,
porém, que lembram a física dos fluidos, nunca são verdadetros n.o a parte .do sacnfícto, a despesa sumptuária, a mais-valia, o lucro
contexto de relações sociais, em que actuam -como veremos maiS económ1co ou os orçamentos de prestígio. De qualquer maneira, é este
adiante- precisamente ao contrário). Por outro. lado, a. p~ de tal levantamento de luxo que define a riqueza de uma sociedade e a
situação, formula-se um argumento para uso dos «subpnvt~egtados»: re~~tiva ~s~tu.ra social, porqtie ele constitui sempre o apanágio de
«Os que se encontram nos últimos degraus da escala têm ma1s a ganhar m!n?n~ pnvdegtadas, tendo precisamente como função reproduzir o
com o crescimento acelerado da produção que com qualquer outra pn':dég~o de cas~ ou de classe. No plano sociológico, não existe
forma de redistribuição». Ilusão! Se o crescimento inaugura em abso- equdíbt;ao. O equdíb~o ~ o fantasma ideal dos economistas, que
luto o acesso de todos a um rendimento e a um volume de bens contrad~z, se não a.lógtea mterna do estado de sociedade, pelo menos
superiores, a característica soci~lógi~a mais pat~nte é o processo de a ?r~an•zação soc1al por toda a parte assinalada. Toda a sociedade
distorção que se cria no própno seio do crescimento e o n(~el de ongma a diferenciação, a discriminação social e esta organização
distorção que subtilmente estrutura e confere o verdade.iro sentido ao e.strutural assenta (entre outros factores) na utilização e distribuição das
crescimento. É muito mais simples ater-se ao desaparecimento espec- nquezas. O facto de uma sociedade entrar em fase de crescimento,
tacular de determinada penúria extrema ou de certas desigualdades como acontece com as nossas sociedades industriais, não modifica em
secundárias, apreciar a abundância por meio de números e das nada o processo; pelo contrário, o sistema capitalista (e produtivista em
qualidades globais, através de crescimentos absolutos e de produtos geral) acentuou, de certo modo, ao máximo, semelhante «desni-

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velamento» funcional e o desequilíbrio, racionalizando-o e generali- De resto, tais sintomas são superficiais e suspeitos. Galbraith
zando-o a todos os níveis. As espirais do crescimento ordenam-se em alegra-se com a ~inuição da dl'Sigualdade como problema económico
tomo do mesmo eixo estrutural: a partir do momento em que se (e, portan~o, soct~) -não porque ela tenha desaparecido -diz-, mas
abandona a ficção do P.N.B. como critério da abundância, tom~-se porque_a nq~e~aJánão traz as vantagens fundamentais (poder, fruição,
urgente constatar que o crescimento não nos afasta nem nos aproxima prestí~to, _distinção) qu~ o~trora implicava.. Findou-se o poder dos
da abundância. Encontra-se logicamente dela separado por toda a propn_etários e dos accaomstas; são os especialistas e os técnicos
estrutura social, que constitui a este respeito a instância determinante. organazados, até mesmo os intelectuais e os sábios, que o exercem!
Há certo tipo de relações sociais e de contradições soci~s. d~t~rminado A~~bou-se o consumo de ostentação dos grandes capitalistas e outros
tipo de «desigualdade» que outrora se perpetuava no 1mob1hsmo, que
. I
~1llzen Kane,_ acabaram-se as grandes fortunas, os ricos quase se
agora se reproduzem em e atrav és do cre~1mento . . 1mpuseram a st mesmos o subconsumo («under-consumption»). Numa
Tal constatação exige outra perspectiva acerca do cresc1ment<;>. palavra, sem querer, Galbraith mostra que, se existe igualdade (no caso
Não diremos como os mais eufóricos: «<crescimento p:oduz abundâncaa de a pobreza~ a riqueza ~eixarem de constituir problema) é porque ela
e, portanto, igualdade»; também não aceitamos a visão inversa ex- cessou de te~ tmportâncta real. Mas, não é essa a situação: os critérios
trema: «0 crescimento é causa de desigualdade». Invertendo o falso de valor resadem noutro lugar. A discriminação social, o poder, etc.,
problema- diremos que o CRESCIMENTO EM .sr É FU~ÇÃO. D~ DESI- que permanecem o essencial, . transferiram-se para esferas diferentes
GUALDADE. A necessidade que a ordem soc1al «des1gual1tána» e a ?o rendimento ou da riqueza pura e simples. Em tais condições,
estrutura social de privilégio têm de.se manter é que produz e reproduz tmporta pouco que todos os rendimentos sejam, no limite, iguais,
o crescimento como seu elemento estratégico. Por outras palavras, a J>?<lendo até o sistema dar-se ao luxo de avançar a passo largo nessa
autonomia interna do crescimento (tecnológico, económico) é fraca e dtrecção, porque não se encontra a( a determinação fundamental da
posterior em relação à determinada pela estrutura social. «desigual~~de». Critérios como o saber, a cultura, as estruturas de
A sociedade de consumo, no seu conjunto, resulta do compromisso res~nsabthdade e de decísã<;>, o poder, embora largamente cúmplices
entre princípios democrá.ticos igualitários, que. conseg~em aguentar-se da ~queza e d~ nível de rendtmento, relegaram os últimos, bem como
com o mito da abundâncaa e do bem-estar, e o amperat1vo fundamental os s1gnos ex tenores do estatuto, para a ordem dos determinados sociais
de manutenção de uma ordem de privilégio e de. domínio. ~ão é .o do valor, para a hierarquia dos critérios de «poder». Galbraith con-
progresso tecnológico que a funda: semelhante vtsão mecamsta al~­ fu~d~, por exempl?· o «Subconsumo» dos ricos com ~ abolição dos
menta até à visão ingénua a abundância futura. Esta dupla deter~m­ c_nténos de presttgao, fundados no dinheiro. Não há dúvida, o homem
naçao contraditória é que cimenta a possibilidade do pugresso tecnolópco. nco ~ue co~duz o 2 ~~ não ofusca, mas é mais subtil: superdiferencia-
Acciona igualmente, nas sociedades contemporâneas, a emergêncaa de ~se, mtenstfica a dtshnção pela maneira de consumir, pelo estilo.
determinados processos igualitários, democráticos e «progressis~». Co~se~a abso~utamente o seu privilégio ao passar da ostentação para
No entanto, é preciso observar que estes emergem em doses homeopáticas, a discnção (mru.s que aparatosa), ao transitar da ostentação quantitativa
destiladas pelo sistema em função da própria sobrevivência. No inte- para a distinção, do dinheiro para a cultura.
rior deste processo sistemático, a igualdade não passa também d~ Na realidade, esta tese, que poderia até apelidar-se de «bai-
função (secundária e derivada) da desigualdade. Tal como o cresci- xa tendencial do nível de privilégio económico» encontra-se tam-
mento. A igualização tendente dos rendimentos, por exemplo (porque bém sujeita a caução. O motivo é que o dinh~iro se transmuta
é sobretudo a este nível que actua o mito igualitário), é necessária à sempre em privilégio hierárquico, em privilégio de poder e de
interiorização dos processos de crescimento, já que- como vimos - ela cultura. É possível admitir que ele deixou de ser decisivo (algu-
é tacticamente recondutora da ordem social, que surge como estrutura ma .vez o foi?). Galbr~ith e outros não vêem que o facto de a
de privilégio e de poder de classe. Todos ~s~s factos ~esign~m .~s destgualdade (económtca) não fazer já problema constitui em si
poucos sintomas de democratização como al1b1S necessános à vtabth- um pr~blema. Ao constatarem com demasiaW. pressa a atenuação
dade do sistema. da «let de bronz.e» no c~po ~onómico, aderem a ela, sem pro-
curarem ~onstrurr uma teona mats ampla que a dita lei de bronze
e descobnr que ela se desloca do campo dos· rendimentos e do
• O tenno «desigualdade» 6 impróprio. A oposiçio igualdade/desigualdade, ideolo- «consumo»_. dora~ante ~bençoados pela «abundância», para um
gicamente ligado ao sistema de valores democráticos modernos, só recobre plenamente as c~P? soctal mutto mats geral em que, de modo mais subtil, se faz
disparidades wonómicu, sem qualquer aplicação na wlise estrutural. mats meversível.

52 53
Sistema industrial e pobreza. mento) .. A soci~e. como o indivíduo, pode arruinar-se para
se ~squtvar à anáhse. É verdade que, no caso presente, a análise
Quando se retoma objectivamente, para lá da liturgia do cresci- sena mortal para o sistema em si. Por consequência, sacrificar bi-
mento e da abundância, o problema do sistema industrial global, nota- liões inúteis contra o que constitui apenas o fantasma vislvel da
-se que há duas opções fundamentais polarizando todas as posições pobreza, não é pagar caro de mais, se desse modo se salvar o mito
possíveis: do crescimento. Torna-se necessário ir ainda .mais longe e reco-
l-A opção Galbraith (e de muitos outros), de natureza mágico- n~ecer que a pobreza real é um mito -perante a qual se exalta o
-idealista, consiste em conjurar, no exterior do sistema, como de- mtto do cresctmento, ao fmgir que se encarniça contra ela e ao res-
ploráveis, é certo, mas acidentais, residuais e melhoráveis a longo suscitá-la contra-vontade, de acordo com as respectivas finalidades
prazo, todos os fenómenos negativos: -disfunções, prejuízos, pobreza secretas.
- preservando assim a órbita encantada do crescimento. Dito isto, seria importante não julgar que é por serem delíbtradá-
2 - Considerar que o sistema vive do desequilíbrio e da penúria "!ente sang~in~os e odiosos que os sistemas industrial ou capita-
estrutural, que a sua lógica, não s6 no plano conjuntural, mas ainda hsta ressuscitam mcessantemente a pobreza ou se identificam com
estrutural, é de todo arnbivalente: o sistema só se aguenta por meio da a corri~ aos .annamentos. A_ análise moralizante (a que nao escapam
produção da riqueza e da pobreza, de idêntico número de insatisfações nem os hberats, nem os marxtstas) é sempre um erro. Se o sistema con-
e de satisfações, de prejuízos e de «progressos~. A sua única lógica é seguisse equilibrar-se ou sobreviver com outras bases diferentes do
sobreviver e, neste sentido, a respectiva estratégia é manter a sociedade desemprego, do subdesenvolvimento e das despesas militares, fá-lo-ia.
humana sobre suporte em falso e em perpétuo «deficit)). Sabe-se muito De vez em quando assim procede: sempre que pode selar o próprio
bem que o sistema tradicionalmente e de modo sistemático lançou mão poder graças a efeitos sociais benéficos e por meio da «abundância>>,
da guerra para sobreviver e ressuscitar. Os mecanismos e as funções nunca falta. A priori, não se pronuncia contra as «bases» sociais do
da guerra encontram-se actualmente integrados no sistema económico progresso. O seu objectivo reside indiferentemente e ao mesmo tempo
e nos mecanismos da vida quotidiana. no bem-estar dos cidadãos e na força nuclear: no fundo, ambos têm o
Se se admitir semelhante paradoxo estrutural do crescimento a mesmo valor como conteúdo,já que a sua finalidade se encontra noutro
partir do qual derivam as contradições e os paradoxos da abundância é lado.
ingenuidade e ilusão confundir com os pobres os 20% de «subprivile- . ~implesmente, ao nível estratégico, descobre-se que as despesas
giadoS» e de«recusados», os processos lógicos do subdesenvolvimento mthtares (por exemplo) são mais seguras e eficazes para a sobre-
social, que não se localizam nas pesSoas reais, em lugares e grupos viv~ncia e finali.dade global do sistema que a educação- o automóvel
reais. Também não são exorcizáveis com lances de biliões de dólares m31s ~ue? h?spttal, a TV a cores mais que os campos de jogo, etc. Mas
com que se subornam as classes baixas, com tentativas de redis- es~ dtscnm.mação negat~va não ataca os serviços colectivos enquanto
tribuição maciça para «expulsar a pobreza» e igualar as possibilidades tais - é mats grave: o SIStema conhece unicamente as condições da
(orquestrando tal passo como a «nova fronteira» 1 e ideal social capaz própria sobrevivência e ignora os conteúdos.sociais e individuais.
de fazer chorar as multidões). Importa, por vezes, reconhecer que os De~em~ pre~enir-nos, portanto, contra determinadas ilusões (tipicamente
defensores da «Great Society)) acreditam nela, tornando-se ainda mais SOC10-reformtstas)- crer que o sistema pode transformar-se por meio
cómica a confusão que manifestam, perante o fracasso do seu esforço ~ ~odificação dos conteúdos (transferir o orçamento das despesas
«encarniçado e generoso». mthtares para a educação, etc.). Por outro lado, é paradoxal que todas
Se a pobreza e se os danos são irredutíveis é porque existem em toda as reivindicações sociais sejam, de modo lento mas seguro. assumidas
a parte, e não apenas nos bairros pobres, nos «slums» ou nos bairros de e realizadas pelo próprio sistema, subtraindo-se assim àqueles que se
lata; estão presentes em toda a estrutura socioeconómica. Mas é servem. dele como plataforma política. O consumo, a informação, a
precisamente isso que tem de ocultar-se e de silenciar-se: a fim de comumcação, a cultura e a abundância são instituídos, descobertos e
mascarar semelhante espectáculo, biliões de dólares não são de- organizad?s pelo ~róprio sistema, como novas forças produtivas. para
masiado (assim, pesadas despesas médicas e farmacêuticas podem ser a sua mator glóna. Também ele se reconverte (relativamente) de
necessárias para não se afumar que o mal reside noutro lugar, que é de estrutura violenta em estrutura nao violenta, substituindo-se a abundância
ordem psíquica, por exemplo - processo muito vulgar de desconheci- e o consumo à exploração e à guerra. Mas, ninguém lhe ficará
reconhecido, porque nada consegue mudar e porque obedece apenas às
1 Ou a «Great Society,., recentemente importada para França. próprias leis.

54 55
As novas segregações homogéneo, mas a discriminação social, associada à qualidade dos
bens procurados.
A lógica social apossa-se novamente tanto da abundância como dos Fala-se muito de direito à saúde, de direito ao espaço, de direito à
prejuízos. A influência do meio urbano e industrial faz aparecer novas beleza, de direito às férias, de direito ao saber, de direito à cultura. E
raridades: o espaço e o tempo, a verdade, a água, o silêncio ... Deter- à medida que tais direitos novos surgem, naseem simultaneamente os
minados bens, outrora gratuitos e disponíveis em profusão, tornam-se Ministérios - da Saúde, dos Lazeres - mas, porque não os da Beleza
bens de luxo acessíveis apenas aos privilegiados, ao passo que os bens e Ar Puro? Todos estes factores, que parecem traduzir geral progresso
manufacturados ou os serviços são oferecidos em massa. individual e colectivo e que viriam sancionar o direito à instituição,
A homogeneização relativa ao nível dos bens de primeira necessi- apresentam sentido ambíguo e, de certa maneira, é possível lê-los ao
dade dobra-se, pois, decerto «deslize» dos valores e de nova hierarquia invés: Não há direito ao espaço senão a partir do momento em que já
das utilidades. A distorç:lo e a desigualdade nllo se reduziram, foram não existe espaço para todos e em que o espaço e o silêncio constituem
transferidas. Os objectos de consumo corrente tomam-se cada vez o privilégio de uns quantos, à custa dos outros. Assim como nllo existiu
menos significativos da categoria social, e até mesmQ os rendimentos, o «direito de propriedade» senao a partir do momento em que já não
na medida em que as maiores disparidades se fà&Jttenuando, vêem havia terra para toda a gente, também não houve direito ao trabalho a
diminuir o seu valor como critério distintivo. É mesmo possível que o nao ser quando o trabalho se tomou, no quadro da divisão do trabalho,
consumo (tomado no sentido de despesa, de compra e de posse de uma mercadoria permutável, isto é, que deixou de pertencer pes-
objectos visíveis) perca progressivamente o papel eminente que de- soalmente aos indivíduos. Pode também lançar-se a pergunta de se «O
sempenha hoje na geometria variável do estatuto, em proveito de direito aos lazeres» não assinalará igualmente a passagem do ócio,
outros critérios e de outros tipos de conduta. Em última análise, será o como antes acontecera com o trabalho, ao estádio da divisão técnica e
apanágio de todos, quando já nada significar. social e, por consequência, ao fim dos lazeres.
Desde já se vê a hierarquia social a adoptar critérios mais subtis: o O aparecimento destes direitos sociais novos, que se agitam como
tipo de trabalho e de responsabilidade, o nível de educação e de cultura «slogans» e como anúncio democrático da sociedade de abundância,
(a maneira de consumir bens correntes pode constituir uma qualidade surge como sintoma real da passagem dos elementos mencionados à
«muito rara»), a participaçllo nas decisões. O saber e o poder são ou irlio categoria de sinais distintivos e de privilégios de classe (ou de casta).
ser os dois bens mais raros das sociedades de abundância. O «direito ao ar puro» significa a perda do ar puro como bem natural,
Semelhantes critérios abstractos, porém, nao proíbem a leitura, a sua passagem ao estatuto de mercadoria e a sua redistribuição social
a partir do momento actual, da crescente discriminação noutros indí- desigualitária. Seria bom não considerar como progresso social ob-
cios concretos. A segregaçao no «habitat» não é nova, mas por- jectivo (a inscrição como «díreito» nas tábuas da lei), o que não passa
que ligada a uma penúria sábia e a uma especulação crónica, tende a de progresso do sistema capitalista - isto é, de transformaçao progres-
tomar-se decisiva, tanto pela segregação geográfica (centro das cida- siva de todos os valores concretos e naturais em formas produtivas, ou
des e periferia, zonas residenciais, guetos de luxo e cidades-dor- seja, em fontes:
mitórios, etc.) como no espaço habitável (interior e exterior do aloja-
mento), no desdobramento em residência secundária, etc. Os objectos 1) de lucro económico,
têm hoje menos importância que o espaço e que a marcação social dos 2) de privilégio social.
espaços. O «habitat» constitui assim possivelmente uma funçao inversa
da dos outros objectos de consumo. Função homogeneizante para uns, Instituição de classe
funçlio discriminadora para outros, no que respeita ao espaço e à
localizaçao. O consumo não é causa de maior homogeneização do corpo social
Natureza, espaço, ar puro, silêncio: eis a incidência da busca de do que a escola em relaçao às possibilidades culturais. Acusa até as suas
bens raros e de preço elevado que se lê nos índices diferenciais de disparidades. Surge a tentação de admitir o consumo e a participação
despesas entre duas categorias sociais extremas. A diferença operários/ crescente nos mesmos(?) bens e nos mesmos(?) produtos, materiais e
quadros superiores é apenas de 100 a 135 para os produtos de primeira culturais, como correctivo para a disparidade social, a hierarquia e a
necessidade; de 100 a 254, para o equipamento da habitaçao; de 100 a discriminação sempre maior do poder e das responsabilidades. De
305, para os transportes; de 100 a 309, para os lazeres. Nestes números, facto, a ideologia do consumo, de modo análogo à da escola, desem-
nao se deve ler a graduação quantitativa num espaço de consumo penha bem semelhante papel (isto é, a representaçao que se tem da

56 57
igualdade total perante a máquina eléctrica de barbear ou ao automóvel Dimensão de salvação
-como também a que se tem da igualdade total a respeito da escrita e
da leitura). Sem dúvida, toda a gente sabe hoje virtualmente ler e escre- Pelo número, redundância, superfluidade, prodigalidade de for-
ver, toda a gente tem (ou terá) a mesma máquina de lavar roupa e com- mas, pelo jogo da moda e por tudo o que neles excede a função pura e
pra os mesmos livros de bolso. No entanto, semelhante igualdade é pu- simples, os objectos conseguem unicamente simúlar a essência social
ramente formal: apesar de se referir ao mais concreto, é abstracta. E -o ESTATUTO- esta graça de predestinação conferida por nascimento
será em sentido contrário sobre esta base homogénea abstracta e ci- só a uns quantos e que a maioria, por destinação inversa, jamais
mentando-se na democracia abstracta do ort6grafo ou do aparelho de alcançará. A legitimidade hereditária (quer de sangue quer de cultura)
TV, que irá actuar da melhor maneira possfvel o verdadeiro sistema de faz parte do próprio conceito de estatuto, que orienta toda a dinâmica
discriminação. da mobilidade social. No fundo de todas as aspirações, subjaz -o
Na realidade, nem sequer é verdade que os produtos de consumo e refinado ideal de um estatuto de nascimento, de graça e excelência,
os sinais de instituição social instaurem esta plataforma democrática assediando igualmente o mundo envolvente de objectos. É ele que
primária, porque em si e tomados individualmente (o automóvel, a suscita o delírio e o mundo descontrolado de bugigangas, de gadgets e
máquina de barbear, etc.) não têm sentido: só a sua constelação e FEITIÇOS, procurando todos gravar toda a eternidade de um valor e
configuração, a relação a tais objectos e à sua perspectiva social de fornecer a prova da salvação por meio das obras, falta da salvação
conjunto é que têm sentido. E trata-se sempre, então, de sentido pela graça.
distintivo. Na sua materialidade de signos (e respectivas diferenças Daí o prestígio muito particular do objecto antigo, sinal de heredi-
subtis) repercutem por si mesmos a determinação cultural- aliás, não tariedade, de valor infuso e de graça irreversível.
se adivinha por que milagre dela ficariam isentos. Tal como sucede É a lógica de classe que impõe a salvação por meio dos objectos,
com a escola, obedecem à mesma lógica social que as outras insti- que é uma salvação pelas obras: princípio «democrático,. oposto à
tuições, inclusive na imagem inversa que dela fornecem. salvação pela graça e eleição, princípio aristocrático. Ora, no consenso
-Como a escola, o consumo é instituição de classe: não só na desi- universal, a salvação pela graça avantaja-se sempre em valor à sal-
gualdade perante os objectos, no sentido económico (a compra, a esco- vação pelas obras. É em parte ao que assistimos nas classes inferiores
lha. a prática sllo reguladas pelo poder de compra. enquanto o grau de e médias, onde a ((prova pelo objecto», a salvação pelo consumo, se
instrução é função da ascendência de classe, etc.) - em suma, nem esfalta por atingir um estatuto de graça pessoal, de dom e predesti-
todos possuem os mesmos objectos, da mesma maneira que nem todos nação. Mas este, seja como for, continua a ser privilégio das classes
têm idênticas possibilidades escolares - mas. de modo ainda mais superiores que, por outro lado, comprovam a sua excelência no
profundo, há discriminação radical no sentido de que só alguns ascen- exercício da cultura e do poder.
dem à lógica autónoma e racional dos elementos do ambiente (uso fun-
cional, organizaçllo estética, realização cultural), indivíduos esses que, Diferenciação e sociedade de crescimento
para falar com propriedade, não se ocupam de, nem «consomem»
objectos -votando-se os outros a uma economia mágica e à valoriza- Tudo o que acabámos de dizer reenvia-nos, indo além da Metafí-
ção dos objectos como tais e de tudo o resto enquanto objectos (ideias, sica das Necessidades e da Abundância, para a verdadeira análise da
lazeres, saber e cultura): esta lógica feiticista constitui a ideologia do lógica social do consumo. Tal lógica nao é a da apropriação individual ·
consumo. do valor de uso dos bens e dos serviços -lógica de produção desigual,
O saber e a cultura, para os que não se encontram na posse da sua em que uns têm direito ao milagre e outros apenas às migalhas do
chave, ou seja, do código que faculte o seu uso legítimo, racional e milagre -; também não é a lógica da satisfaçao, mas a lógica da
eficaz, são apenas a ocasião de segregação cultural mais aguda e mais produçao e da manipulação dos significantes sociais. O processo de
subtil, já que o saber e a cultura aparecem então, aos seus olhos e no consumo pode ser analisado nesta perspectiva sob dois aspectos
emprego que se lhes dá, como simples mana suplementar e reserva de fundamentais:
poder mágico, em vez de ser o inverso - aprendizagem e formação 1. Como processo de significação e de comunicação, baseado num
objectivas1 • código em que as práticas de consumo vêm inserir-se e assumir o
respectivo sentido. O consumo revela·se aqui como sistema de permuta
1 A este respeito, vermai• adiante: A Menor Cultura Comum e 01 Menorea M61tiplos e equivalente de uma linguagem, sendo abordado neste nível pela
Comwu. análise estrutural. Voltaremos ao assunto, mais adiante.

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2. Como processo de classificação e de diferenciação social, em conscientes de prestígios. que são ainda satisfações. consumo de
que os objectos/signos se ordenam, não só como diferenças significa- diferenças positivas, ao passo que o sinal distintivo se revela a um
tivas no interior de um código, mas como valores estatutários no seio tempo diferença positiva e negativa - facto que o leva a referir-se in-
de uma hierarquia. Nesta acepção, o consumo pode ser objecto de definidamente a outros signos e a induzir no consumidor a insatisfaçllo
análise estratégica que determina o seu peso específico na distribuição definitiva1 •
dos valores estatutários (com a implicação de outros significantes O espanto dos economistas e de outros J)ensadores idealistas do
sociais: saber, poder, cultura, etc.) bem-estar perante a evidência da impossibilidade de o sistema do
consumo se estabilizar e em confronto com o seu embalo e fuga
É o seguinte o princípio da análise: nunca se consome o objecto em ilimitados para a frente. é sempre muito instrutivo. Revela-se típico da
si (no seu valor de uso)- os objectos (no sentido lato) manipulam-se sua visão em termos de crescimento de bens e de rendimentos- e nunca
sempre como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no em termos de relação e de diferenciação por sinais. Assim, Grvasi diz:
próprio grupo tomado como referência ideal quer demarcando-o do «0 crescimento é acompanhado pela introdução constante de novos
respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior. produtos à medida que a elevação dos rendimentos alarga as possibili-
Contudo, o processo de diferenciação estatutária, que surge como dades de coo sumo». «A tendência ascendente dos rendimentos suscita
processo social fundamental por cujo intermédio cada qual se insere na nllo s6 uma corrente de bens novos, mas também a proliferação de
sociedade. apresenta um aspecto vivido e um aspecto estrutural; um qualidades do mesmo bem». (Porquê? Qual a relação lógica?) «A
consciente e outro inconsciente; um ético (é a moral do «standing~. da subida dos rendimentos conduz ao melhoramento progressivo da
concorrência estatutária e da escala de prestígio), o outro estrutural- qualidade». Sempre a mesma tese implícita: «Quanto mais se ganha,
a inscrição num código cujas regras e condicionamentos de signifi- . mais e melhor se deseja~ - valendo indistintamente para todos e de
cação (porexemplo,as da língua) escapam no essencial aos indivíduos. maneira individual, visando cada qual um óptimo racional de bem-
O consumidor vive as suas condutas distintivas como liberdade e -estar.
como aspiração, como escolha, e não como condicionamento de Por outro lado, e de modo muito geral, o campo do consumo
diferenciação e de obediência ·a um código. Diferenciar-se equivale constitui para eles um campo homogéneo (quando muito, atravessado
sempre a instaurar a ordem total das diferenças, que constitui sem mais por algumas disparidades de rendimento ou disparidades «culturais»),
o facto da sociedad~ total e ultrapassa inelutavelmente o indivíduo. Ao que se reparte estatisticamente em torno de um tipo médio - o
distinguir-se na ordem das diferenças, o indivíduo restabelece-a, «consumidor». Trata-se da visão induzida pela representaçllo da so-
condenando-se, portanto, a·inscrever-se nela s6 de modo relativo. Cada ciedade americana como imensa classe média e pela qual alinha em
indivíduo vive os próprios lucros sociais diferenciais como lucros bloco a sociologia europeia. O campo do consumo é, pelo contrário, um
absolutos e não o constrangimento estrutural que está na origem da campo social estruturado em que os bens e as próprias necessidades,
permuta das posições e da permanência da ordem das diferenças. como também os diversos indícios de cultura, transitam de um grupo
No entanto, é este condicionamento de relatividade que é determi- modelo e de uma elite directora para as outras categorias sociais, em
nante, na medida em que é por referência a ele que a inscrição conformidade com o seu ritmo de «promoção~ relativa. Não existe a
diferencial jamais terá fim. Só ele explica o carácter fundamental do «massa de consumidores~ e nenhuma necessidade emerge espontane-
consumo, o seu carácter ll..IMITAOO- dimensão inexplicável por meio amente do consumidor de base: só terá de aparecer no «Standard
de uma teoria das necessidades e da satisfação já que, se fosse calculada package» das necessidades se já tiver passado pelo «select package».
em balanço calórico, energético ou em valor de uso, depressa se A fi eira das necessidades. de modo análogo à dos objectos e dos bens,
atingiria o limiar de saturação. Ora, a verdade é que assistimos começa por ser socialmente selectiva: as necessidades e as satisfaçOes
precisamente ao contrário- à aceleração das cadências consumidoras,
ao «forcing» da procura que provoca a abertura do fosso entre uma 1 ~ ao nível do 2) (aistema de diferenciiÇio aocial) que o consumo usume esta

produtividade gigantesca e uma consumptibilÍdade ainda mais enlou- dimenslo ilimitada. Ao nível do 1) (sistema de comunicaçlo e de pennuta), em que ~
quecida (a abundância, considerada como sua equação harmoniosa, ponível compari-lo llinguagem, wn múerialjinito de bens e de serviços (de modo
anl.logo ao material finito doa signoalinauflticos) pode ser maia que suficiente. c:omo se
recua indefinidamente). Tal facto não tem explicação a não ser que se vê MS aociedades primitivas. A Ungua nlo prolifera porque nate plano nio há
abandone radicalmente a lógica individual da satisfação para restituir ambivaliiiCÚI do signo, que se funda na hierarquia aocial e na dupla detenninaçlo
à lógica individual da diferenciaçao a sua importância decisiva. Ou simullinea. Em oontrapanida, detenninado nível da palavra e do eatilo volta a ser lugar da
entlo, distinguindo a lógica da diferença das simples determinações proliferaçlo distintiva.

60 61
escoam-se para baixo («trickling down») em virtude de um princípio diferença, uma variável incontrolável - não uma variável a mais no
absoluto e de uma espécie de imperativo social categórico, que cálculo económico, nem uma variável sacio-cultural de situação ou de
constitui o suporte da distância e da diferenciação por meio dos signos. contexto, mas uma variável estrutural decisiva, que ordena todas as
Seme~hante ~ei é 9u.e c.ondiciona !oda a inovação de objectos enquanto outras.
matenal SOCial d1stmttvo; esta let de renovação do material distintivo Claro está, é preciso admitir (com os di versos inquéritos efectuados
«a partir de cima para baixo» é que atravessa o universo global do a tal respeito, em especial, acerca das necessidades culturais) certa
consumo e não, em sentido inverso (de baixo para cima, para a inércia sociológica das necessidades; quer dizer, certa indexação das
homogeneidade total), a ascendência dos rendimentos. necessidades e das aspirações relativas à situação social adquirida (e
Nenhum produto tem a possibilidade de se seriar, nenhuma neces- nunca aos bens oferecidos, como pemam os teáicos do condicionamento)..
sidade consegue ser satisfeita de modo maciço, a não ser no caso de já Neste nível, encontram-se os mesmos processos da mobilidade social.
fazer parte do modelo superior, tendo sido substituída por outro bem ou Certa dose de «realismo» leva as pessoas, no interior de tal ou tal
necessidade distintiva- de maneira a preservar a distância. A divul- situação social, a nunca prolongar as aspirações para lá do limite a que
gação leva-se a cabo apenas em função da inovação selectiva no vértice podem aspirar de modo conveniente. Quando tais aspirações ultrapas-
que, por sua vez, se realiza em função da «taxa decrescente de sam parcialmente as possibilidades objectivas, interiorizam as normas
rendibilidade distintiva» dos objectos e dos bens numa sociedade de oficiais da sociedade de crescimento e as normas reais de expansão da
crescimento. No entanto, também a este respeito há que rever certas mesma sociedade (malthusiana até na expansão), que ~cam sempre
noções elementares: a divulgação tem a sua mecânica própria (os aquém dos possíveis. Quanto menos se tem, menos se aspira (ou, pelo
«massa media», etc.), mas não possui a correspondente lógica de menos, até ao ponto em que o irrealismo total compensa a penúria). Por
conteúdo. É no cume, e para reagir contra o desperdício dos anteriores consequência, o processo de produção das aspirações é desigualitário,
signos distintivos, que se realiza a inovação, com o fim de restituir a já que a resignação no fundo da escala e a aspiração mais livre no cimo
distância social. Tanto é assim que as necessidades das classes médias redobram as possibilidades objectivas de satisfação. Não obstante, o
e inferiores são sempre, como os objectos, passíveis de atraso e problema tem de apreender-se no seu conjunto: é muito possível que as
deslocamento no tempo e no plano cultural, em relação às das classes aspirações consumidoras (materiais e culturais), que revelam um nível
superiores. Tal ocorrência não é das menores formas da segregação na de elasticidade superior ao das aspirações profissionais ou culturais,
sociedade «democrática». venham compensar as deficiências graves de determinadas classes, em
Uma das contradições do crescimento consiste no facto de produzir matéria de mobilidade social. A compulsão de consumo compensaria
simultaneamente bens e necessidades, mas não com o mesmo ritmo- a falta de realização na escala social vertical. A aspiração «supercon-
uma vez que o ritmo de produção dos bens é função da produtividade sumidora» (sobretudo das classes baixas) seria, ao mesmo tempo que
industrial e o ritmo de produçoo das necessidades, função da lógica da a expressão de exigência estatutária, a expressão do fiasco vivido de tal
diferenciação social. Ora, a mobilidade ascendente e irreversível das exigência.
n~essi~des «~ibertadas» pel? crescimento (isto é, produzidas pelo É verdade que as necessidades e as aspirações, activadas pela
SIStema mdustrial em conformtdade com o respectivo constrangimento diferenciação pessoal e pela exigência de estatuto, tendem na so-
lógico intemo~tem uma dinâmica própria, diferente da produção dos ciedade de crescimento a adiantar-se um pouco aos bens disponíveis ou
bens materiais e culturais supostamente destinados a satisfazê-lcts. A às possibilidades objectivas. Por outro lado, o sistema industrial, que
partir de determinado limiar de socialização urbana, de concorrência supõe o crescimento das necessidades, supõe igualmente o perpétuo
estatutária e de «tak:e of» psicológico, a aspiração toma-se irreversível excedente das necessidades em relação à oferta dos bens (da mesma
e ilimitada, crescendo segundo o ritmo de uma sacio-diferenciação maneira que ele especula sobre a reserva de desemprego para maxima-
acelerada e de uma inter-relatividade generalizada. lizar o proveito que tira da força do trabalho: também aqui se encontra
Daí, os problemas específicos associados à dinâmica «diferencial» a analogia profunda entre necessidades e forças produtivas~ Ao espe-
do consumo. Se as aspirações entrassem apenas em concorrência com cular sobre a distorção entre bens e necessidades, o sistema entra no
a produtividade e a ela se subordinassem - não haveria problema. Na entanto em contradição: o crescimento não só implica o aumento das
realidade, constituem em virtude da própria lógica, que é lógica da necessidades e um certo desequilíbrio entre bens e necessidades, mas
ainda o crescimento do próprio de sequilfbrio entre a intensificação das
. 'Sobre o assunto, ver mais adiante: «0 consumo como emergência de forças produ-
Uva••· É o «extrclft~ de reserva• das necessidades.
1

62 63
necessidades e o aumento da produtividade. Daí a .pauperização» uma espécie de destino abstracto de participação colectiva sobre o
psicológica e o estado de crise latente e crón~ca, func~on:almente ligada fundo real de concorrência generalizada.
ao crescimento, mas que é capaz de conduzrr a um brotar de ruptura e Assim como a concentração industrial origina o aumento constante
a uma contradiç~ explosiva. de bens, também a concentraçllo urbana suscita a eclosão ilimitada das
Confrontar o crescimento das necessidades e o aumento da pro- necessidades. Ora, apesar de os dois tipos- de concentração serem
dução equivale a pôr em evidência a variável da «intermediária» contemporâneos, possuem no entanto- como vimos -a sua dinâmica
decisiva, que é a diferenciação. A relaça<> deve estabel~er-se•. por- própria e não coincidem nos resultados. A concentração urbana (por
tanto entre a diferenciação crescente dos produtos e a diferenciação consequência, a diferenciação) anda mais depressa que a produ-
cresc~nte da procura social de prestígio•. Ora, a primeira é limitada, tividade. Tal é o fundamento de alienação urbana. Acaba PQr es-
mas não a segunda. Não existem limites para as «necessidade~» do tabelecer-se um equilíbrio neurótico em benefício da ordem mais
homem enquanto ser social (isto é, enquanto produto de s_ent~do e coerente da produção - já que a proliferaçllo das necessidades acaba
enquanto relativo aos outros em valor). A absorção quantitativa de por refluir para a ordem dos produtos, integrando-se nela de qualquer
alimento é limitada, o sistema digestivo é limitado, mas o sistema maneira.
cultural da alimentação revela-se como indefinido. _E, se~ embargo: Tudo isto define a sociedade de crescimento como o oposto da
representa um sistema relativamente contingente. E precisamente ai sociedade da abundância. Graças à tensão permanente entre as
que residem o valor estratégico e a astúcia d~ publicidade: at~gir c~ necessidades concorrenciais e a produçllo, graças à tensão causada pela
qual em função dos outros, nas suas veleidades de prestígio social penúria e à «pauperização psicológica», a ordem de produção prepara-
reificado. Nunca se dirige apenas ao homem isolado; visa-o na relação -se para fazer surgir e «satisfazer» apenas as necessidades que lhe são
diferencial e quando dá a impressão de retardar as suas motivações adequadas. Segundo esta lógica, na ordem do crescimento na<> há nem
«profundas», fá-lo sempre de modo espectacular. isto é, convoca pode haver necessidades autónomas; há unicamente as necessidades
sempre os vizinhos, o grupo, a socieda_de inteirarnent~ hierarquizada do crescimento. No sistema, não há lugar para as finalidades indivi-
para o processo de leitura e de encarecimento que ela mstaura. duais, mas só para as finalidades do sistema. Todas as disfunções
As necessidades e a concorrência, no interior de um grupo restrito, assinaladas por Galbraith, Bertrand de Jouvenel, etc., são lógicas. Não
podem estabilizar-se; no seu seio, a escalada dos significantes de é difícil entender que os automóveis e as auto-estradas surgem como
estrutura e do material distintivo é menos acentuada. É o que se pode necessidade do sistema; mas também o é a formaça<> universitária de
ver nas sociedades tradicionais ou nos micrognipos. Mas, numa so- quadros médios- portanto,a «democratização» da Universidade como
ciedade como a nossa, de concentração industrial e urbana, de maior o mesmo direito que a produção automóveP. Em virtude de o sistema
densidade e promiscuidade, a exigência de diferenciação cresce_ainda , produzir apenas para as próprias necessidades, é de maneira mais
mais depressa que a produtividade material. Quando todo o u.mverso sistemática que se entrincheira por detrás do alibi das necessidades
social se urbaniza e a comunicação se faz total, as «necesSldadeS» individuais. Assim se explica a excrescência gigantesca do consumo
intensificam-se e crescem segundo uma assímptota vertical- nik> por privado relativo aos serviços colectivos (Galbraith). Tal facto não é
apetite, mas por conco"incia. . .. acidental. O culto da espontaneidade individual e da naturalidade das
A cidade é o lugar geométrico da escalada e «reacção em cadela» necessidades está carregado com a opção produtivista. As necessidades
diferencial, que sanciona a ditadura total da mo...fla. (Em contrapartida, mais «racionais» (a instruç~. a cultura, a saúde, os transportes e os
porém, o processo reforça a concenb)lç~ urbana, pela aculturação lazeres), cortadas da respectiva significação colectiva real, recuperam-
rápida das zonas rurais ou marginais. E. portanto, irreversível. Toda a ·se igualmente como as necessidades derivadas do crescimento, na
veleidade para o entravar é ingénua). A de~sidade humll?a em si. é prospectiva sistemática deste crescimento.
fascinante mas o discurso da cidade é a própna concorrêncaa: móvets,
desejos, e~tímulos, o veredicto incessante dos outros, a erotização
1
incessante, a informação, a solicitação publicitária - tudo isto forma Nette sentido, a distinção entre «necenitados reais,. e «necessidades artifiCiais•
mascara a nio-satisfaçio de necessidade• cenenciaiu (a televisio em lugar da instN·
I A diferenciaçio cretcente não significa forçosamente a di.rtribuiç&J cresctfllt do çio). Mas 1110 6 tec:uncUrio em relaçio l detenninaçio generalizada pelo creacimento (a
cimo para o {uNJo da etcala, a «dittorçio do leque», mas a di.rcrimi~çdo cre~ct.nte e a 1'1:produçlo ampliada, do capital), para o qual nlo existe o «natural• ou canificial•. A
deamultiplicaçio dos signos distintivotno pr6prio!tio de uma ~ierarq~ua compnmnla no• própria opotiçio natural/artifiCial, que implica uma teoria das finalidades b\Uil&naa,
aeus extremos. A homOJeneizaçio e a «democrattzaçlo» relativas vem sempre acompa- 1'1:Yela-ae como produç4o ideológica do cre1cinvrdo pelo qual 6 reproduzida e ao qual te
nbadu de uma concorrência estatu"ria mais aguda. encontra funcionalmente associada.

64 65
Por outro lado, é em sentido ainda mais profundo que a sociedade não as «necessidades» do homem, sobre cujo desconhecimento assenta
de crescimento constitui o contrário de uma sociedade da abundância. todo o sistema, é que constituem o objecto de satisfação na sociedade
Antes de ser uma sociedade de produçao de bens, surge como so- de crescimento e de satisfação tanto maior quanto mais intensa a
ciedade de produção de privilégios. Ora, existe uma relação necesária, produtividade, é evidente que a abundância recua indefinidamente·
sociologicamente definível, entre o privülgio e a penúria. Não pode melhor, encontra-se irremediavelmente negada em proveito do rei~
haver (seja qual for a sociedade) privilégio sem penúria. Ambos se organizado da rareza (a penúria estrutural).
encontram estruturalmente interconexos. Através da respectiva lógica Para Sahlins, os caçadores-recolectores (tribos nómadas primitivas
social, o crescimento define-se, pois, de modo paradoxal, pela repro- da Austrália. do Kalahari, etc.) é que conheciam a verdadeira abundância.
duçllo de uma penúria estrutural, penúria esta que não tem o mes~o ape~ da sua absoluta «pobreza». Os primitivos nada possuem de
sentido que a penúria primária (a raridade dos bens) -a qual se ~ena própno, não se sentem obcecados pelos objectos que deitam fora
considerar como provisória e se encontra em parte reabsorvida nas regularmente, para melhor se deslocarem. Não há aparelho de pro-
nossaS sociedades -; a penúria estrutural, que substitui aquela, é de- dução nem «trabalho»: caçam e recolhem as colheitas «à sua vontade»
finitiva, porque se integra no sistema como função de impulso e - poderia dizer-se - e partilham tudo entre si. A sua prodigalidade é
de estratégia de poder, na própria lógica da ordem do cresci-mento. total: consomem tudo de uma vez; não existe cálculo económico, nem
Como conclusão, diremos que há contradição lógica entre a hi- «stocks». O caçador-recolector não apresenta qualquer traço de Homo
pótese ideológica da sociedade de crescimento, que ~ a ho~ogeneização oeconomicus de invenção burguesa. Não conhece os fundamentos da
social no nível mais alto, e a comespondente l6g1ca soc1al concreta, · Economia Política. Fica mesmo aquém das energias humanas; dos
baseada na düerenciação estrutural - conjunto logicamente contra- recursos naturais e das possibilidades económicas reais. Dorme muito.
ditório a servir de base a uma estratégia global. Confia - e esta nota é característica do seu sistema económico - na
Por fim, insistiremos mais uma vez na ilusão mágica e na mitologia riqueza .dos recursos naturais, ao ~asso que o nosso sistema se distingue
principal desta falsa sociedade da abundância - a ilusão da repartição (à medida que cresce o aperfeiçoamento técnico) pelo desespero
segundo o esquema idealista dos «vasos comunicantes». O fluxo <k?s perante a insuficiência dos meios humanos, pela angústia radical e
bens e dos produtos não se equilibra como o nível dos mares. A inérc1a catastrófica que é o efeito profundo da economia de mercado e da
social, ao contrário da inércia natural, não conduz a um estado de concorrência generalizada.
distorção, de disparidade e privilégio. O crescimento nllo se identifica ~ «impre~id~~cia» e a ~prodigalidade» colectivas, tipicas das
com a democracia. A profusão é a funçllo da discriminação. Como soc1edades pnm1t1vas, conshtuem o sinal da abundância real. Nós
poderia ser o seu correctivo? t~mos apenas os signos da abundância, perseguindo por debaixo do
g1gantesco aparelho da produção os signos da pobreza e da raridade.
O Paleolttico ou a primeira sociedade da abundância A pobreza, porém, nllo consiste- afirma Sahlíns- nem na fraca
quantidade de bens nem apenas na relação entre fins e meios; revela-
É necessário abandonar a ideia recebida que temos da socie4ade da -se sobretudo como relação entre os homens. Em última análise, a
abundância como sociedade na qual todas as necessidades materiais (e transparência e a reciprocidade das relações sociais é que fundam a
culturais) se satisfazem com facilidade, semelhante ideia prescinde de «confiança» dos primitivos, levando-os a viver a abundância em plena
toda a lógica social. E importa adoptar a ideia, retomada por Marshall fome. Nenhuma monopolização, seja ela da natureza,do solo dos
Sahlins no seu artigo sobre a «primeira sociedade da abundância» 1 ~ns~'!'ento~ ou dps produtos.do «trabalho», bloqueia as perm~tas e
segundo a qual as nossas sociedades industriais e produtivas, ao msti~t a rarl(lade!"Na economJa do dom e da permuta simbólica, uma
contrário de certas sociedades primitivas, é que são dominadas pela ~uantidadefracaesemprefmitadebensbastaparacriarariquezageral,
raridade e pela obsessão de raridade característica da economia de Já que eles passam constantemente de uns para os outros. A riqueza não
mercado. Quanto mais se produz, mais se sublinha, no próprio seio da se baseia nos bens, mas na permuta concreta entre as pessoas. Por
profusão, o afastamento irremediável do termo final que seria a consequência, é ilimitada, porque o ciclo da troca não tem fim
abundância - definida como o equilíbrio da produção humana e das inclusive en~ limitado número de indivíduos, aumentando c~
finalidades humanas. Porque as necessidades da ordem de produção, e momento do c1clo de troca o valor do objecto pennutado. No processo
de concorrência e de diferenciação característicos das nossas so-
ciedades civilizadas e industriais embatemos com a inversao desta
'Lu t~mps moderMs, Outubro, 1968. dialéctica concreta e relacional da riqueza, enquanto diaUcrica da

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penúria e da necessidade ilimitada. Na troca primitiva, cada relação Marx a Galbraith, de Robinson Crusoe a Chombart de Lauwe. Para o
aumenta a riqueza social; nas nossas sociedades «diferenciais», c~da economista, é a «utili~e»- o desejo de determinado bem específico
relaçao social intensifica a carência individual, porque toda a cmsa para consumo, ou seJa, para destruir a sua utilidade. A necessidade
possuída é relativizada na conexao com os outros (ao passo que na e~ontra-se já fin~zada pelos bens disponíveis e as preferências
permuta primitiva era valorizada por idêntica relação aos ou~os). onentadas pela chvagem dos produtos oferecidos no mercado: no
Portanto, nao constitui paradoxo aftrmar que, nas sociedades fun~o. trata-se dapr~cura solvfvel. Para o psicólogo, ta «motivação»,
«afluentes», a abundância se perdeu, nao podendo ser restituída teona um pouco mats complexa, menos «object-oriented», mais «in-
pelo aumento de produtividade ilimitada e pela libertação de novas stinct-oriented», tipo de necessidade preexistente e mal definida. Para
forças produtivas. Uma vez que a definição estrutural da abundância .e ~s sociólogos e psic?-sociólogos, que são os últimos a apanhar o rasto.
da riqueza reside na organização social, s6 uma revolução da orgam- hda-se com o «SOcto-cultural». Não se põe em dúvida o postulado
zação social e das relações sociais a poderia inaugurar. Regressaremos antropológico. do ser individual dotado de necessidades e levado pela
algum dia, indo' além da economia de mercado, à prodigalidade? Em natureza a sahsfazê-las; também não se nega a liberdade do consumi-
vez desta, temos o «consumo» e consumo impelido à perpetualidade, dor, conscient~ e que se supõe saber o que quer (os sociológos descon-
irmã gémea da rareza. A lógica social é que fez ~onhecer aos p~mitiv~s ~am ~ «mo~vaçOes PJ?fundas»), mas, com o apoio deste postulado
a «primeira» (e a única) sociedade de abundância. A nossa lógtca SOCial tdealtsta, admate-se a exJstência de uma «dinâmica social» das neces-
é que nos condena à penúria luxuosa e espectacular. sidades. POem-se em acção modelos de conformidade e de con-
corrência («Keep up with the Jones»1), tirados do contexto de grupo
ou dos grandes «modelos culturais» que se religam à sociedade
PARA UMA TEORIA DO CONSUMO global ou à história. ·
Em bloco, distinguem-se três posições:
A autópsia do «homo oeconomicus» Para Marshall, as necessidades são interdependentes e racionais.
Para Galbraith (voltaremos ao assunto), as escolhas impõem-se
Bis um conto: «Era uma vez um Homem que vivia na Raridade. pela persuasão.
Depois de muitas aventuras e de longa viagem através da Ciência ~ara Gervasi (~outros), as necessidades são interdependentes e
Económica, encontrou a Sociedade da Abundância. Casaram-se e denvam da aprendizagem (e não tanto de cálculo racional).
tiveram muitas necessidades». t,(A beleza do Homo oeconomicus - Gervasi diz: «As escolhas nao se fazem à sorte, mas são socialmente
dizia A. N. Whitehead - consistia no facto de sabermos exactamente controladas, reflectindo o modelo cultural em cujo seio se efectuam. Os
o que ele procurava». O fóssil humano da Idade do Oiro, nasc!d~ na bens nao se produzem nem se consomem indiferentemente· devem ter
época modema da feliz conjunção da Natureza Humana e dos Dtreltos qualquer significado em relação a determinado sistema d~ valores».
do Homem, é dotado de intenso princípio de racionalidade formal que «Semelhante opinião aduz uma perspectiva sobre o consumo em
o leva: termos de integração: O fim da economia não é a maximização da
1. A buscar sem qualquer hesitação a própria felicidade; produção para o individuo, mas a maximização da pmduçao associada
2. A dar a preferência aos objectos que lhe trarão o máximo de ao sistema de .valores ~e .sociedade» (Parsons). De modo análogo,
~~~ . .
Duesenberry dirá que a untca escolha consiste, no fundo, em variar os
Todo o discurso, profano ou científico, acercíl do consumo se ~ns em função da sua posição na escala hierárquica. Por ftm, a
articula na sequência mitológica de um conto: um Homem, «dotado» diferença das ?pç~ de sociedad~ para sociedade e a respectiva
de necessidades que o «impelem» para objectos, «fontes» da sua semelhança no mtenor da mesma soc1edade é que nos leva a considerar
satisfação. Mas, como o homem nunca se sente satisfeito (aliás, é o comportamento do consumidor como fenómeno social. Diverge-se
censurado por isso), a história recomeça sempre indefinidamente, com dos economistas num ponto sensível: a sua escolha «racional» tornou-
a evidência defunta das velhas fábulas. -se a escolha conforme, a escolha da conformidade. As necessidades
A perplexidade aflora em determinados autores: «As necessidades vi~am. mais os valore~ que os objectos e a sua satisfação possui em
são o .que de mais obstinadamente incógnito existe entre todas as pnmetro lugar o sentido de uma adesão a tais valores. A escolha
incógnitas de que se ocupa a ciência económica» (Knight). Semelhante fundamental, inconsciente e automática do consumidor é aceitar o
dúvida, porém, não impede a litania das necessidades de ser fielmente
recitada por todos os defensores das disciplinas antropológicas, de 1
«Nio se deixe ultrapauar pelo a Jonea! ».

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estilo de vida de detenninada sociedade particular (portanto, deixa de dades (em especial, através da publicidade) tomou-se o tema favorito
ser escolha! - acabando igualmente por ser desmentida a teoria da d? discurso acerca da sociedade de consumo. A exaltação da abundân-
autonomia e da soberania do consumidor). Cia e a grande lamentação relativa às «necessidades artificiais» ou
Esta sociologia culmina na noção de «standard package,., definido «~ienadas» alimentam juntamente a mesma cultura de massas e até
por Riesman como o conjunto de bens e de serviços que constitui a a Ideologia mais especializada sobre a questAo. Em geral, radica na
espécie de p.atrimónio de base do americano médio. Em aumento velha filosofia moral e social da tradição humanista. Em Galbraith,
regular, indexado pelo nível de vida nacional, constitui um mínimo funda-se numa reflexão económica e política mais rigort>sa. Prestar-
ideal de tipo estatístico, modelo confonne das classes médias. Ultra- ·lhe-emos portanto maior atenção, tomando como base os dois li-
passado por uns, sonhado por outros, surge como ideia em que se vros- A Sociedade da Abundância e O Novo Estado Industrial.
resume o «american way of life»1• Também neste caso, o «Standard . Em te~~s breves e sumários, diremos que o problema fundamen- ·
Package» não designa tanto a materialidade dos bens (TV, casa de ~do capttaltSmo contemporâneo não é a contradição entre a «maxi-
banho, carro, etc.) quanto o ideal de conformidade. mtzação ~o lucro» e a «racionalização da produção» (ao nível do
Tal sociologia não nos leva muito longe. Exceptuando o facto de empresário), mas entre a produtividade virtualmentellrmitada (ao nível
que a noção de confonnidade escondeu apenas uma imensa tau., da !ecoo-estrutura) e a necessidade de vender os produtos. Nesta fase,
tologiado americano médio definido pelo «standard package» (que, é VItal para o: sistema controlar não só o aparelho de produção, mas a
por sua vez, se define como a média estatística dos bens consu- procura do co.nsumo; nao apenas os preços, mas o que se procurará a tal
midos- ou, em tennos sociológicos: tal indivíduo faz parte de tal preço. O efeito geral, quel'por meios anteriores ao próprio acto de
grupo porque consome tais bens e consome tais bens porque. faz ~~ução (sondagens, estudos de mercado) quer posteriores (pub-
parte de tal grupo) - , o postulado de racionalidade fonnal, que vimos hct~de, «marketing», condicionamento), é «roubar ao comprador -
em acção nos economistas, ao tratar da relação do indivíduo com os esquivando-se nele a todo o controlo -o poder de decisão e transferi-
objectos, encontra-se agora simplesmente transferido para a relação -lo ~ara a empresa, onde poderá ser manipulado». Em termos mais
do indivíduo com o grupo. A conformidade e a satisfação são soli- genus: «A adap~ção do C?':flportamento do indivíduo a respeito do
dárias: segundo o princípio lógico de equivalência, trata-se de idêntica merca~o e.das atitudes soctrus em geral às necessidades do produtor e
adequação do sujeito aos objectos ou do sujeito ao grupo, depois de aos ?bJCChvos d~ tecno-estrutura constitui uma característica natural
admitidos como separados. Os conceitos de «necessidade» e de do Sistt:ma (sena melhor dizer: característica lógica). A sua im-
«nonna» constituem respectivamente a expressão desta adequação por~cia cresce com o desenvolvimento do sistema industrial». Gal-
miraculosa bnuth dá-l~e o nome defi~i~a ~nvertida, em oposição à fie ira clássica
Entre a «utilidade» dos economistas e a confonnidade dos sociólo- na qual se JUlgava que a tntciahva pertencia nas empresas de produção.
gos, existe a mesma diferença que Galbraith estabelece entre as Agora, porém, é a ~p~sa de produção que controla os comportamen-
condutas de lucro, a motivação pecuniária característica do sistema tos de. merca~, dingmdo e configurando as atitudes sociais e as
capitalista «tradicional», e os comportamentos de identificação e de necesstdades. Ets- pelo menos tendencialmente - a ditadura total da
adaptação específicos da era da organização e da tecno-estrutura. A ordem de produção.
questão fundamental que surge, tanto nos psico-sociólogos como em A (ieira. invertida - ainda bem que possui este valor crítico -
Galbraith, e que não se descortina (e com razão) nos economistas, para destrói o m1to fundamental dafieira clássica para a qual no sistema
quem o consumidor continua a ser um indivíduo idealmente livre no económico,. é~ ~ndivíduo ~ue exerce o poder. O acento ~o sobre 0
seu cálculo final racional, é a do condicionamento das necessidades. poder. do mdiv1duo c~ntribuía em grande parte para sancionar a
Após The Hidden Persuaders de Packard e La Stratégie du Désir organtzação: todas as disfunções, prejuízos e contradições inerentes à
de Dichter (e outros ainda), o tema do condicionamento das necessi- ordem de produção se jus~ificam em vir~de de alargarem o campo em
que se exerce a soberania do consumtdor. Na perspectiva inversa,
torna-se claro que todo o apare~ho econ6mico e psico-sociológico de
•No inquérito realizado por Sll~ctio11 du R~add s Digtst (A. Pindler: cStructures et
perspectivei de la conaommation européeMe»), o esquema resultante n'? é ? de ~a
estudos de merc~ e de motivações, etc., por cujo intennédio se
imensa claue média - como ac:onte« nos USA - , mas o de uma nunona e il1t~ pretende fazer remar no mercado a procura real e as necessidades
conaumidora (01 «A»), aervindo de modelo Amaioria que nlo ditp6e ainda da panóplia de profundas do consumidor, existe apenas com o fito de induzir tal
luxo (carro de deapot10, cadeia eatereof6nica, residência secund6ria), aem a qual nio há ~W:a para a saída dos produtos, mascarando, porém, o processo
europeu dieno deste nome. ObJectavo com a encenação do processo inverso. «O homem não se

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~ forrnom !/tn círc(Jfo viCIOSO e lfi}OftO

tornou objecto de ciência para o homem senão a partir do momento em satisfação não maximal, mas «harmoniosa» e equilibrada no plano
que os automóveis se tornaram mais difíceis de vender que fabricar». individual e que, em vez de encarreirar pelo círculo vicioso das
Galbraith denuncia, assim, em todos os sentidos, o aumento de satisfações por demais multiplicadas acima descrito, deveria poder
voltagem da procura por meio dos «aceleradores artificiais» activados articular-se numa organização social igualmente harmoniosa das ne-
pela tecno-estrutura na sua expansão imperialista e que impossibiltam cessidades colectivas. Concepção perfeitamente utópica.
toda a estabilização da procura'. O rendimento, a compra de prestígio 1. Quanto ao princípio das satisfações «autênticas» ou «artificiais»,
e o trabalh<'.'a ronda infernal do consumo baseado na exaltação das Galbraith insurge-se contra o raciocínio «especioso» dos economistas:
necessidades ditas «psicológicas», que se diferenciam das necessi- «Nada prova que uma mulher perdulária retire de novo vestido a
dades «f is lológicas» pelo facto de aparentemente se fundamentarem mesma satisfação que um operário esfomeado de um hamburger - mas
no «rendimento discrecionário» e na liberdade de escolha, tornando-se e-Jrd~n­ também nada prova o contrário. Porta!'to, o seu desejo deve pôr-se·no
por isso manipuláveis à vontade. A publicidade desempenha aqui1iiiii mesmo plano que o do esfomeado». «E absurdo» - diz Galbraith. Ora,
papel capital (mais uma ideia que se tornou convencional). Dá a não é assim (e aqui os economistas clássicos têm razoo- situam-se
impressão de se llfarmonizar com as necessidades do indivíduo e com apenas, para traçar tal equivalência, ao nível da pliOCura solvível,
os bens. Na realidade - diz Galbraith -,conforma-se com o sistema ~ludindo todos os problemas). No entanto, é verdade que, sob o ponto
industrial: «A publicidade parece não conferir importância aos bens, de vista da satisfação própria do consumidor, nada permite traçar o
mas é apenas para mais relevar o sistema, sustentando igualmente a limite do «factício». A fruição da TV ou da residência secundária vive-
importância e o prestígio da tecno-estrutura sob o ponto de vista ·se como liberdade «verdadeira»; ninguém a vive como alienação e só
social». Por seu intermédio, é o sistema que capta para próprio proveito o intelectual, a partir do seu idealismo moralizante, é que afarma tal
os objectos sociais e que impõe os próprios objectivos como objectivos coisa, revelando-se quando muito como moralista alienado.
sociais: «0 que é bom para a General Motors ... » . 2. A respeito do «princípio económico», Galbraith afmna: «0 que
Diga-se mais uma vez que concordamos inteiramente com Gal- se chama desenvolvimento económico consiste sobretudo em imaginar
braith (e outros) ao admitir que a liberdade e a soberania do consumidor uma estratégia que permite vencer a tendência dos homens para impor
não passam de mistificação. A mística bem alimentada (e, antes de limites aos seus objectivos de rendimentos e, portanto, aos próprios
mais, pelos economistas) da satisfação e da escolha individuais, ponto esforços». Cita então o exemplo dos operários filipinos na Califórnia:
culminante de uma civilizaçoo da «liberdade», constitui a própria «A pressão das dívidas, aliada à emulação vestimentar, transformou
ideologia do sistema industrial, justificando a arbitrariedade e todos os rapidamente esta raça feliz e descuidada em modema força de tra-
danos colectivos: lixo, poluição, desculturação- de facto, o consumi- balho». O mesmo acontece com todos os países subdesenvolvidos,
dor é soberano em plena selva de fealdade em cujo seio se lhe impôs a onde o aparecimento dos gadgefs ocidentais constitui o melhor
liberdade de escolha. A fieira invertida (ou seja, o sistema do trunfo de estímulo económico. Semelhante teoria, que se poderia
consumo) completa, e vem revezar, no plano ideológico, o sistema chamar a do «stress» ou da iniciação económica para o consumo é
eleitoral. O «drugstore» e a cabina de voto, lugares geométricos da sedutora. Põe em relevo a aculturação forçada aos processos de
liberdade individual, são também as duas mamas do sistema. consumo como a consequência lógica, na evoluçao do sistema
Expusemos longamente a análise do condicionamento «tecno· industrial, do treino horário e gestual do operário aos processos de
-estrutural» das necessidades .e do consumo porque se revela hoje produção industrial 1, iniciado no séc. XIX. Sendo assim, seria preciso
omnipotente e porque constitui, ao ser tematizada de todas as maneiras explicar potflue é que os consumidores «mordem» o anzol e são
na pseudofilosofia da «alienaç:io», uma verdadeira representação vulneráveis a esta estratégia. É demasiado fácil apelar para uma
colectiva, também ela inserida no consumo. Mas, está sujeita a ob- natureza «feliz e descuidada», imputando a responsabilidade mecânica
jecções fundamentais, que se referemtodos os postulados antropoló- ao sistema. Não há tendência natural nem para a indol!ncia nem para
gicos idealistas. Para Galbraith, as necessidades do indivíduo são esta- o «forcing». Galbraith não descobre - vendo-se assim obrigado a
bilizáveis. Na natureza do Homem, existe algo de parecido a um apresentar os indivíduos como puras vítimas passivas do sistema- que
principio económico que o levaria, se não fosse a acçlk> dos «acelera- é toda a lógica social da diferenciação e os processos distintivos de
dores artificiais», a impor limites aos próprios objectivos, às necessi- classe ou de casta, fundamentais na estrutura social, que actuam em
dades e aos seus esforços. Em suma, trata-se de uma tendência para a cheio na sociedade «democrática». Em suma, é toda uma socioló-
'
'Trata-se da acçio «anticoagulante• da publicidade (Eigozy). ' Ver a prop6aito, maia adiante: «0 consumo como emergência deforçu produtiva••·

72 73
gica da diferença, do estatuto, etc., que aqui falta. em função da 1. A ordem de produção produz a máquina/força produtiva, sis&ema
qual todas as necessidades se reorganizam, segundo uma procura so- técnico radicalmente diferente do instrumento tradicional.
cial objectiva de sinais e diferenças e que funda o consumo, não 2. Produz o capitaJ/força produtiva racionalizada, sistema de inves-
como função de satisfação individual «harmonia* (limitável, timento e de circulação racional, radicalmente diferente da «riqueza»
portanto, em conformidade com normas ideais de «natureza») e dos anteriores modos de troca
mas como actividade social limitada. Voltaremos depois a este 3. Produz a força de trabalho assalariado, força produtiva abstracta,
ponto. sistematizada, radicalmente diferente do trabalho concreto, do tra-
3. «As necessidades constituem o fruto da produção»- diz Gal- balho tradicional.
braith, pensando não ser capaz de afirmar tal coisa. Com o seu ar 4. Produz assim as necessidades, o sistema das necessidades, a
desmistificado e lúcido, e no sentido que se lhe dá habitualmente, esta procura/força produtiva como conjunto racionalizado, integrado,
tese não passa da versão mais subtil da «autenticidade» natural de controlado, complementar dos outros três no processo de total controlo
certas necessidades e do enfeitiçamento por meio do «artificial». Gal- das forças produtivas e dos processos de produção. As necessidades
braith pretende afirmar que, sem o sistema produtivista, não existiria enquanto sistema diferem também radicalmente da fruição e da satis-
grande número de necessidades. Julga que as empresas, ao produzirem fação. São produzidas como et"ementos de sistema e não como relação
tais bens ou serviços, suscitam igualmente todos os meios de sugestão de um individuo ao objecto (da mesma maneira que a força de trabalho
apropriados para os levar a aceitar e que, por consequência, «pro- nada tem a ver com e chega mesmo a negar a relação do operário ao
duzem» no fundo as necessidades que lhes correspondem. Grave produto do próprio trabalho- como também o valor de troca nada tem
lacuna psicológica se revela aqui. As necessidades encontram-se de a ver com a permuta concreta e pessoal, nem a forma/mercadoria com
antemão estreitamente especificadas pela relação a objectosfinitos. Só os bens reais, etc.).
há necessidade de tal ou tal objecto e a psique do consumidor reduz- Eis o que Galbraith e todos os outros «alienistas» do consumo não
-se a simples vitrina ou catálogo. Claro está que, ao aceitar visão tão' divisam, ao obstinarem-se a demonstrar que a relação do homem aos
simplista do homem, só era possível desembocar no esmagamento objectos e a relação do homem a si mesmo se encontra falsificada,
psicológico: as necessidades empúicas não passam de reflexos mistificada e manipulada- consumindo ao mesmo tempo o mito e os
espectaculares dos objectos empíricos. Ora, a este nível, a tese do objectos- porque, ao apresentarem o postulado eterno do sujeito livre
condicionamento é falsa. Sabe-se como os consumidores resistem a e consciente (de modo a fazê-lo ressurgir como «happy end», no fim da
seme-lhante imposição expressa e como executam as respectivas «ne- história), conseguem apenas imputar todas as «disfunções» que des-
cessidades» no teclado dos objectos; sabe-se ainda que a publicidade cobrem a uma potência diabólica- no caso presente, a tecno-estrutura
está longe de ser omnipotente, induzindo por vezes reacções inversas equipada da publicidade, das «public relations» e dos estudos de
e quais as operações que têm lugar de objecto para objecto em função motivação. Pensamento mágico, se é que o há. Não tomam em conta
da mesma «necessidade», etc. Numa palavra, ao nível empírico, é toda . que as necessidades nada sao, tomadas isoladamente, e que existe
uma estratégia complicada, de tipo psicológico e sociológico, que vem apenas um sistema de necessidades, ou antes, que as necessidades não
embaraçar a da produção. passam da forma mais avançada da sistematizaçtlo racional das forças
Na realidade, não são as «necessidades o fruto da produção», produtivas ao ntvel individual, em que o «conSumo» constitui a
mas o sistema das necessidades é que constitui o produto do sistema sequência lógica e necessária da produção.
de produçtlo - o que é inteiramente diferente. Por sistema das Tal ocorrência consegue esclarecer determinado número de mistérios
necessidades, queremos dizer que as necessidades não se produzem inexplicáveis para os nossos piedosos «alienistas». Deploram, por
uma a uma em relação aos respectivos objectos, mas se suscitam como exemplo que em plena «era da abundância» a ética puritana não se
força consumptiva e como disponibilidade global, no quadro mais tenha ainda posto de parte e que a mentalidade moderna de prazer não
geral das forças produtivas. Neste sentido, é possível afumar que a tenha por enquanto substituído o antigo malthusianismo moral e auto-
tecno-estrutura estende o seu domínio. A ordem de produção não -repressivo. Toda La Stratégit du Désir de Dichter procura transfor-
«agarra» em proveito ·próprio a ordem de fruição (para falar com mar e subverter «por baixo» as velhas estruturas mentais. E é verdade:
propriedade, semelhante facto é absurdo). Nega a ordem da fruição, não houve revolução dos costumes, a ideologia puritana continua a ser
substituindo-se a ela por meio da reorganizaçAo de todo um sistema de obrigatória. Na análise do lazer, veremos como ela impregna todas as
forças produtivas. Ao longo da história do sistema industrial, pode práticas aparentemente hedonistas. É possível afmnar que a ética
rastear-se a genealogia do consumo: puritana, com tudo o que implica de sublimação, de ultrapassamento e

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de repressão (numa palavra, de moral) assedia o consumo e as como elemento de conforto, de prestfgio, etc. O campo do consumo é
necessidades. É ela que o impele do interior e lhe confere o carácter o que se nomeou em último lugar. No seu interior, todas as espécies de
compulsivo e ilimitado. A ideologia puritana, por seu lado, encontra- outros objectos podem substituir-se à máquina de lavar como elemento
-se reactivada pelo processo de consumo - transformando este no significativo. Tanto na lógica dos signos como na dos símbolos, os
poderoso factor de integração e de dominação social que se sabe. Ora, objectos deixam de estar ligados a uma função ou necessidade definida,
tudo isto permanece paradoxal e inexplicável na perspectiva do con- precisamente porque correspondem a outra coisa, quer ela seja a lógica
sumo/fruição. Em contrapartida. tudo se explica se se admitir que as social quer a lógica do desejo, às quais servem de campo móvel e
necessidades e o consumo constituem de facto uma extensão organi- inconsciente de significação.
zada das forças produtivas: Não é de espantar, uma vez que também Guardadas as devidas proporçOes, os objectos e as necessidades são
promanam da ética produtivista e puritana, que foi a moral dominante nele substituíveis, como os sintomas da conversão histérica ou psicos- ·
da era industrial. A integração generalizada do nível «privado» indi- somática. Obedecem a idêntica lógica do deslize, da transferência, da
vidual («necessidades)), sentimento, aspirações, pulsões) como forças convertibilidade ilimitada e aparentemente arbit:rália. Quando o mal é
produtivas só pode vir acompanhada pela extensão generalizada no orgânico, há relação necessária do sintoma ao órgão (da mesma
mesmo nível de esquemas de repressão, de sublimação, de concentra- maneira que, na sua qualidade de utensílio, existe a relaçao necessária
ção, de sistematização e de racionalização (e, claro está, de «al- entre o objecto e a respectiva função). Na conversão histérica ou
ienação») que, durante séculos e sobretudo a partir do séc. XIX, psicossomática, o sintoma, tal como o signo, é (relativamente) arbi-
regularam a construção do sistema industrial. trário. Enxaqueca, colite, lumbago, angina, fadiga generalizada- há
uma cadeia.de significantes somáticos ao longo da qual «vadia» o
Movência dos objectos- Movência das necessidades sintoma- da mesma maneira que existe o encadeamento de objectos/
signos ou de objectos/símbolos, no decorrer do qual vagueia, não já a
Até agora, toda a análise do consumo se baseia na antropologia necessidade (que se encontra sempre associada à finalidade racional do
ingénua do «homo oeconomicus)), ou melhor, do «homo psycho- objecto) mas o desejo, e ainda outra determinação, que é a da lógica
-oeconomicus». Surge como teoria das necessidades, dos objectos (no social inconsciente.
sentido mais lato) e das satisfaçOes, no prolongamento ideológico da Se, sob determinado ponto de vista, se for no encalço da necessi-
Economia Política clássica. Não constitui uma teoria, mas uma imensa dade, isto é, se a satisfizermos tomando-a à letra, identificando-a com
tautologia: «Compro isto porque preciso» equivale ao fogo que queima o que ela procura - a necessidade de tal objecto - comete-se erro
em virtude da sua essência flogística. Demonstrámos noutro lugar1 análogo ao que se faz quando se aplica uma terapêutica tradicional ao
como todo o pensamento empirista/finalista (o indivíduo tomado como órgão onde se Ioc~za o sintoma. Uma vez curado neste lugar, vai
fim e a slia representação consciente considerada como lógica dos l localizar-se noutrop mundo dos objectos e das necessidades revelar-
acontecimentos) era da mesma ordem que a especulação mágica dos -se-iam assim como o mundo de histeria generalizada. Da mesma
primitivos (e dos etnólogos) em tomo da noção de «mana». Nenhuma maneira que todos os órgãos e todas as funções do corpo se tomam na
teoria do consumo é possível em semelhante nível: a evidência espontânea conversão um gigantesco paradigma em que se declina outra lin-
e a reflexão analítica em termos de necessidades comunicarão apenas guagem e outra coisa se fala. Poder-se-ia dizer que semelhante eva-
um reflexo esbatido do consumo. nescência e contínua mobilidade é de tal sorte que se toma impossível
Esta mitologia racionalista acerca das necessidades e satisfações definir uma especificidade objectiva da necessidade, como também é
revela-se tão candida e desarmada como a medicina tradicional perante impossível definir na histeria a especificidade objectiva do mal, pela
os sintomas histéricos ou psicossomáticos. Expliquemo-nos: fora do simples.razao de não existir- poder-se-ia dizer que a fuga de signifi-
campo da sua funçao objectiva, em que é insubstituível, e no exterior cante para significante nao passa da realidade superficial de um desejo
da sua área de detonaçao, o objecto torna-se substituível de modo mais insaciável, porque se funda na fa I fa e por ser este desejo insolúvel
ou menos ilimitado no campo das conotaçOes, onde assume valor de para sempre que se significa localmente nos objectos e nas necessi-
signo. Assim, a máquina de lavar roupa serve de utensfiio e funciona dades sucessivas.
No plano sociológico (seria, no entanto, muito interessante e de
grandeimportânciaarticularosdois),podeaventar-seahipótesedeque
1Cahiers internatiu110uxde Sociolugie, -La gen~ae idéologique des Besoins•, 1968, -eterna e ingénua confusão perante a fuga para a frente e a renovação
vol. 47. ilimitada das necessidades, inconciliável com a teoria racionalista,

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segundo a qual a necessidade satisfeita cria um estado de equilibrio e consome (eis a ilusllo do consumidor, cuidadosamente alimentada por
de resoluçllo das tensOes- se se admitir antes que a necessidade nunca todo o discurso ideológico acerca do consumo), entra-se num sistema
é tanto a necessidade de tal objecto quanto a .«necessidade» de generalizado de troca e de produção de valores codificados em que,
diferença (o desejo do sentido social) compreender-se-á então porque pese aos próprios, todos os consumidores se encontram reciprocamente
é que nunca existe satisfação completa, nem definição de necessidade. implicados.
· À movência do desejo junta-se (mas, haverá metáfora entre as Neste sentido, o consumo constitui urna ordem de significações,
duas?) a mobilidade das significações diferenciais. Entre as duas, as como a linguagem, ou como o sistema de parentesco nas sociedades
necessidades pontuais e finitas só tomam sentido enquanto focos de primitivas.
convençllo sucessivos - é na própria substituiçllo que significam,
velando porém ao mesmo tempo as verdadeiras esferas da significação Análise estrutural?
f
(a a/ta · e a diferença) - que os ultrapassam de todos os lados.
Retomemos agora o princípio de Lévi-Strauss: o que confere ao
Recusa do prazer consumo o carácter de facto social não é o que aparentemente lhe fica
da natureza (a satisfaçllo, o prazer), é o passo essencial pelo qual dela
O açambarcamento dos objectos não tem obj e,·l-o ·(«objectless se separa (definindo-o como código e instituição, como sistema de
craving», no pensamento de Riesman). As condutas de consumo, organização). Assim como o sistema de parentesco não se funda, em
aparentemente orientadas e dirigidas para o objecto e para o prazer, última instância, na consanguinidade e na filiação, num dado natural,
correspondem na realidade a finalidades muito diferentes - a da mas no arranjo arbitrário de classificaçllo- assim também o sistema de
expressão metafórica ou desviada do desejo, a da produçllo por meio de consumo não se baseia em derradeira instância na necessidade e no
signos diferenciais de um código social de valores. Nllo é determinante prazer, mas num código de signos (de objectos/signos) e de diferenças.
a função individual de interesse através de um conjunto de objectos, As regras de casamento representam outras tantas maneiras de
mas a função instantaneamente social de troca, de comunicação e de assegurar a circulação das mulheres no seio do grupo social, isto é, de
distribuiçllo dos valores através de um conjunto de signos. substituir o sistema de relações consanguíneas de origem biológica
A verdade do consumo reside no facto de ela não ser função de pelo sistema sociológico de aliança. As regras de casamento e os
prazer, mas jUnção de produção- e, portanto, tal como acontece com sistemas de parentesco podem, pois, considerar-se como uma espécie
a produção material, funçllo que não é individual, mas imediata e de linguagem, ou seja, como conjunto de operações destinadas a
totalmente colectiva. Sem a transposição dos dados tradicionais, não garantir entre os indivíduos e os grupos determinado tipo de comuni-
é possível qualquer análise teórica: seja qual for o modo como se ' cação. O mesmo se passa com o consumo: ao sistema biofuncional e ·
abordar, recai-se sempre na fenomenologia do prazer. bio-económico de bens produtos (nível biológico da necessidade e da
O consumo surge como sistema que assegura a ordenação dos subsistência) vem substituir-se um sistema sociológico de signos (nível
signos e a integração do grupo; constitui simultaneamente uma moral próprio do consumo). E a função fundamental da circulação regulada
(sistema de valores i~eológicos) e um sistema de comunicação ou de objectos e de bens é a mesma que para as mulheres ou para as
estrutura de permuta. E a este respeito e pelo facto de a função social palavras: assegurar determinado tipo de comunicação.
e a organização estrutural ultrapassarem de longe os indivíduos e de a Referir-nos-emos às diferenças entre estes diversos tipos de c<lin-
eles se imporem por meio de coacçOes sociais inconscientes que se guagem», diferenças que resultam do modo de produção dos valores
pode criar uma hipótese teórica, que não se limite a ser recital de permutados e do tipo de divisão do trabalho empregado. Os bens
números ou pura metafísica descritiva. evidentemente são produzidos - mas, nllo as mulheres - e o seu modo
Segundo tal hipótese e por mais paradoxal que isso possa afigurar- de produção diverge do das palavras. No entanto, é verdade que ao
-se, o consumo define-se como exclusivo do prazer. Enquanto lógica nível da distribuição, os bens e os objectos, como as palavras e outrora
social, o sistema de consumo estabelece-se na base da recusa da as mulheres, constituem um sistema global, arbitrário e coerente de
fruição. O prazer deixa de aparecer como finalidade e fim racional, signos, sistema cultural que vem substituir o mundo contingente das
revelando-se como racionalização individual de um processo cujos fins necessidades e dos prazeres, a ordem natural e biológica, a ordem
se encontram noutra parte. O prazer definiria o consumo para si, como social de valores e de hierarquia. .
autónomo e final. Ora, tal não acontece. O prazer sente-se em funçllo Não se trata de dizer que não existem necessidades e utilidade
de si mesmo, mas quando se consome, nunca é isoladamente que se natural, etc. - tràta-se de descobrir que o consumo, enquanto conceito

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específico da sociedade contemporânea, não consiste nelas. Tal cons- sexualidade, etc. «1RY JESUS!»-diz um «slogan»americano. «Experi-
tatação é válida para todas as sociedades. O que para nós tem signifi- menta também Jesus!» Importa experimentar tudo, porQue o homem
cado sociológico e que fixa a nossa época sob o signo do consumo é do consumo encontra-se assediado pelo medo de''pefderqualquer
precisamente a reorganização generalizada deste nível primário em coisa: , de não obter seja que prazer for. Nunca ~ sabe se tal ou tal
sistema de signos que se revela como um dos modos específicos, talvez contacto, tal ou tal experiência (Natal nas Canárias, enguia com
como o modo específico de passagem da natureza à cultura da nossa «whisky», o Prado, oL.S.D., o amor à japonesa), causará no indivíduo
época. uma «sensação» inédita. Já não é o desejo, nem sequer o gosto ou a
A circulação, a compra, a venda, a apropriação de bens e de inclinação específica que esuw em jogo, mas uma curiosidade genera-
objectos/signos diferenciados constituem hoje a nossa linguagem e o lizada movida por obsessão difusa - trata-se da «fun-morality» em que
nosso código, por cujo intermédio toda a sociedade comunica e fala. reina o imperativo de se divertir e de explorar a fundo todas as
Tal é a estrutura do consumo, a sua lfngua em relação à qual as possibilidades de se fazer vibrar, gozar ou gratificar.
necessidades e os prazeres individuais não passam de efeitos de
palavra.
O consumo como emergência e verificação de novas forças
produtivas
O fun-system ou a coacção do prazer
O consumo reduz-se a simples sector aparentemente anómico por
Uma das melhores provas de que o princípio e a finalidade do não ser regulado, segundo a definição de Durkheim, porregras fonnais
consumo não é a fruição reside no facto de esta se encontrar hoje e por dar a impressão de estar entregue à desmesura e à contingência
forçada e institucionalizada, não como direito ou como prazer, mas individual das necessidades. Como geralmente se imagina (eis a razão
como dever do cidadão. por que a «Ciênci8)) económica sente repugnância em mencioná-lo),
O puritano considerava-se a si mesmo e à sua pessoa como empresa não constitui um sector marginal de indeterminação onde o indivíduo,
a fazer frutificar para a maior glória de Deus. As qualidades «pessoais,., aliás coagido de todos os lados por regras sociais, recuperaria, fi-
o «carácter», a cuja criação se destinava a vida, eram para ele um nalmente, na esfera «privada» e entregue a si mesmo, uma margem de
capital que deveria investir-se oportunamente e administrar-se sem liberdade e de divertimento pessoal. O consumo surge como conduta
especulação e sem desperdício. Em sentido inverso, mas de modo activa e colectiva, como coacção e moral, como instituição. Compõe
análogo, o homem-ser consumidor considera-se como obrigado a todo um sistema de valores, com tudo o que este termo implica
gozar e como empresa de prazer e de satisfação, como determinado- enquanto função de integração do grupo e de controlo social.
-a-ser-feliz, amoroso, adulador/adulado, sedutor/seduzido, participante, A sociedade de consumo é ainda a sociedade de aprendizagem do
eufórico e dinâmico. Eis o princípio de maximização da existência consumo e de iniciação social ao consumo - isto é, modo novo e
através da multiplicação de signos e objectos, por intermédio da específico de socialização em relação à emergência de novas forças
exploração sistemática de todas as virtualidades de prazer. produtivas e à reestruturaçlio monopolista de um sistema económico de
O consumidor e o cidadlio moderno não têm que se esquivar à alta produtividade.
coacção de felicidade e de prazer, que na nova ética constitui o O crédito desempenha aqui importante papel, embora só par-
equivalente da obrigação tradicional de trabalho e de produção. O cialmente actue sobre os orçamentos de despesas. A sua concepção é
homem moderno passa cada vez menos a vida na produção pelo exemplar porque, sob a cor de gratificação e facilidade de acesso à
trabalh.o e cada vez mais na produção e inovação contínua das próprias abundância, de mentalidade hedonista e «liberta dos velhos tabus da
necessadades e do bem-estar. Deve velar pela mobilização constante de poupança, etc.», o crédito constitui um treino socio-económico à
todas as virtualidades e capacidades consumptivas. Se se esquecer, poupança forçada e ao cálculo económico de gerações de consumi-
lembrar-lhe-lo com gentileza e insistência que tem o direito de ser dores que de outro modo teriam escapado, na preocupação pela
feliz. Portanto, nao é verdade que ele seja passivo, já que desenvolve subsistência, à planificação da procura e teriam ficado por explorar
e~ de desenvolver uma actividade contínua. De outro modo, corria enquanto força Çb)nsumptiva. O crédito constitui um processo discipli-
o nsco de se contentar com o que tem e de se tornar associai. nar de extorsãó'aa força. de trabalho e de multiplicação da produ-
Daí, a revivescência de uma curiosidade universal (conceito a ex- tividade. O exemplo citado por Galbraith dos porto-riquenhos, de
plorar) em matéria de cozinha, de cultura, de ciência, de religião, de quem se fez, de passivos e descuidados que eram, uma força de trabalho
'*fíd poupoltfO (,de. rseufafdl f/4 d•mtllld4 -fa/ C:IJftO t1

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modema ao motivá-los a consumir, constitui a prova incontestável do L Dominado pelo constrangimento de significação, ao nível da
valor táctico do consumo regulado, forçado, instruído e estimulado, na análise estrutural.
modema ordem socio-económica. E, como revela Marc Alexandre em 2. Dominado pelo constrangimento de produção e do ciclo da
La Nef («A Sociedade de Consumo»), tudo isto se obtém pela educação produção, na análise estratégica (sacio-económico-política).
mental das massas através do crédito (com a disciplina e as coacçOes A abundância e o consumo não surgem, portanto, como a realização·.
orçamentais que impõe) para o cálculo de previsão, para o inves- da Utopia. Constituem nova situação objectiva, regulada pelos mesmos
timento e para o comportamento capitalista «de base». A ética racional processos fundamentais, mas sobredeterminada também por nova
e disciplinar que, segundo Weber, esteve na origem do moderno moral- correspondendo a todo a uma nova esfera das forças produti-
produtivismo capitalista, cerca assim um domínio que lhe escapara até vas em vias de reintegração controlada Jt1 mesmo sistema amplificado.
agora. Neste sentido, não existe «Progresso» ,pbjectivo (nem a fortiori
A custo se cai na conta de como a iniciação actual ao consumo «Revolução»): tudo se reduz à mesma coisa e àtlgo diferente. Tal é o
sistemático e organizado constitui o equivalente e o prolongamento, no resultado real, aliás perceptível no plano da quotidianidade, de total
séc. XX, da grande iniciação, durante todo o século XIX.'das populações ambiguidade da Abundância e do Consumo, que se vivem sempre ao
rurais no trabalho industrial. O processo de racionalização das forças mesmo tempo como mito (de captação da felicidade, para lá da história
produtivas que ocorreu durante o séc. XIX, no sector da produção, e da moral), e se suportam como processo objectivo de adaptação a um
alcança o termo no séc. XX, no sector do consumo. O sistema industrial, novo tipo de condutas colectivas.
depois de socializar as massas como forças de trabalho, deveria ir mais Em 1958, Eisenhover dizia o seguinte acerca do consumo como
longe para se realizar e as socializar (ou seja, controlá-las) como forças constrangimento cívico: «Numa sociedade livre, o governo encoraja
de consumo. Os pequenos economizadores ou consumidores anárquicos mais o crescimento económico quando estimula o esforço dos in-
do período anterior à guerra, com liberdade de consumir ou não, nada divíduos e dos grupos privados. O dinheiro só será gasto utilmente pelo
têm a fazer em semelhante sistem& Estado se também o tiver sido pelo contribuinte, uma vez liberto do
Toda a ideologia do consumo pretende levar-nos a crer que en- peso dos impostos». Tudo se passa como se o consumo, sem constituir
trámos numa era nova e que uma «Revolução» Humana decisiva separa uma imposição directa. conseguisse suceder com eficácia ao imposto
a Idade dolorosa e heróica da Produção da Idade eufórica do Consumo, como prestação social. «Com os seus 9 biliões beneficiados pelo fisco
em cujo seio se faz justiça ao Homem e aos seus desejos. Nada disso. - acrescenta a revista Time - , os consumidores procuraram a prosperi-
Quando se fala de Produção e Consumo- trata-se de um só e idêntico dade nos 2 milhões de comércios de retalho ... Compreenderam que o
processo lógico de reprodução amplificada das forças produtivas e do crescimento da economia estava nas suas mãos, se substituíssem o
respectivo controlo. Tal imperativo, que pertence ao sistema, passa ventilador pelo clímatizador. Garantiram o «boom» de 1954, pela
para a mentalidade, para a ética e ideologia quotidiana - eis a grande compra de 5 milMes de televisores miniatura, de 1 milhao e meio de
astúcia- na sua forma inversa: sob a capa de libertação das necessi- facas eléctricas para cortar carne, etc.». Em suma, compreenderam o
dades, do desabrochamento do indivíduo, de prazer e abundância, etc. seu dever cívico. «Thrift is unamerican» - afirmava Whyte. «Eco-
Os temas da Despesa, do Prazer, do Não-cálculo («Compre agora, nomizar é antiamericano». •
pagará mais tarde») revezaram os temas «puritanos» da Poupança, do Sobre as necessidades como forças produtivas, equivalente dos
Trabalho, do Património. Mas, só na aparência é que nos havemos com «jazigos de mão-de-obra», eis a seguinte publicidade para o cinema
uma Revolução Humana: na realidade, trata-seda substituição para uso publicitário: «O cinema, graças às pantalhas gigantes, permite-lhe
interno,no quadro de um processo geral e de um sistema que no apresentar o seu produto em situação: cores, formas, condicionamento.
essencial não mudou, a partir de determinado sistema de valores para Nas 25 00 salas de organização publicitária, todas as semanas 3 500 000
outro que se tornou (relativamente) ineficaz. O que poderia constituir espectadores. 67% têm mais de quinze e menos de trinta e cinco anos.
uma nova finalidade transformou-se, depois de esvaziado do conteúdo São consumidores no cUmax das suas necessidades, que querem e
real, em mediação constrangida da reprodução do sistema. podem comprar...» Exacto: são seres em plena força (de trabalho).
As necessidades e as satisfações dos consumidores são forças
produtivas, actualmente forçadas e racionalizadas .como as outras Função log(stica do individuo
(forças de trabalho, etc.). O consumo, onde quer que o explorámos
(com dificuldade), revelou-se, contra a intenção da ideologia vivida, «O indivíduo serve o sistema industrial, nll.o pela oferta das suas
como dimensão de coacçã?:
. ... ;, . .. ·-. .
82
'' .. economias e pelo fornecimento de capitais mas pelo consumo dos seus

83
produtos. Por outro lado, não existe qualquer outra actividade reli- consigo a necessidade de cQacção burocrática cada vez mais forte
giosa, política ou moral, para a qual seja preparado de maneira tão sobre os processos de consumo - que forçosamente se verá exaltada
completa, tão científica e tio dispendiosa» (Galbraith). com crescente energia como o reino da liberdade. Nao há saída.
O sistema precisa dos homens como trabalhadores (trabalho as- O automóvel e o tráfego constituem o exemplo-chave de todas estas
salariado), como economizadores (impostos, empréstimos, etc.) e, contradições: promoção ilimitada do consumo individual, apelos de-
cada vez mais, como consumidores. A produtividade do trabalho sesperados para a responsabilidade colectiva e para a moralidade
reserva-se progressivamente para a tecnologia e para a organização e social, constrangimentos cada vez mais pesados. O paradoxo é o
o investimento para as próprias empresas (cf. o artigo de Paul Fabra,Le seguinte: não se pode repetir simultaneamente ao indivíduo que «O
Monde, 26 de Junho, 1969, «Les superbénéfices et la monopolisation nível de consumo constitui a justa medida do mérito social» e ~xigir
de l'épargne parles grandes entreprises»)- Onde o indivfduo é hoje dele outro tipo de responsabilidade social, uma vez que no esforço de
requerido enquanto tal e praticamente insubstitulvel é no papel de consumo individual já assume em cheio tal responsabilidade social.
consumidor. Toma-se, portanto, possível predizer dias felizes e um Afirme-se novamente que o consumo surge como trabalho social. O
apogeu futuro para o sistema de valores individualistas - cujo centro consumidor é igualmente requerido e mobilizado como trabalhador
de gravidade se desloca do empresário e do economizador individual, neste plano (hoje talvez tanto como no plano da «produçllo»). Mesmo
figuras de proa do capitalismo concorrencial, para o consumidor assim, seria desnecessário pedir ao «trabalhador do consumo» que
individual, estendendo-se ao mesmo tempo à totalidade dos indivíduos sacrifique o salário (as satisfaçOes individuais) para bem da colec-
- na própria medida da extensão das estruturas tecnoburocráticas. tividade. Os milhões de consumidores possuem algures, no seu sub-
No estádio concorrencial, o capitalismo apoiava-se ainda, fosse consciente social, uma espécie de intuição prática do novo estatuto de
como fosse, num sistema de valores individualistas abastardado de trabalhador alienado que os leva a traduzir espontaneamente como
altruísmo. A ficção de moralidade social altruísta (herdada de toda a mistificação o apelo à solidariedade pública. A sua resistência tenaz a
espiritualidade tradicional) destinava-se a «enxugar» o antagonismo este respeito'traduz apenas um reflexo de defesa politica. O «egoísmo
das relações sociais. A «lei moral» derivava dos antagonismos indivi- arrebatado» do consumidor surge também como a subconsciência
duais, da mesma maneira que a «lei do mercado» decorria dos proces- grosseira, apesar de toda a ênfase retórica sobre a abundância e o bem-
sos concorrenciais, preservando portanto a ficção de equilíbrio. Acre- -estar, do novo explorado dos tempos modernos. O facto de semelhante
ditou-se durante muito tempo na salvação individual no seio da comu- resistência e «egoísmo» conduzirem o sistema a contradições in-
nidade de todos os cristãos e no direito individual limitado pelo direito solúveis, às quais responde apenas por coacções refofçadas, nllo faz
dos outros. Hoje, é impossível: assim como o «livre mercado» desa- sen~ confa.nn~ que? consumo é um gigantesco campo politico, cuja
pareceu virtualmente em proveito do controlo monopolista, estatal e anábse, postenor e s1multânea à da produção, ainda está por fazer.
burocrático, assim também a ideologia altruísta não chega para resti- Todo o discurso sobre o consumo procura transformar o consumi-
tuir um mínimo de integração social. Nenhuma outra ideologia colec- dor no Homem Universal, na encarnação geral, ideal e definitiva da
tiva veio revezar semelhantes valores. Só o constrangimento colectivo Espécie Humana, e considerar o consumo como as primfcias da
do Estado vem jugular a exarcebaçllo dos individualismos. Daí, a «libertação humana», que acabaria por cumprir-se em vez de e apesar
profunda contradiçllo da sociedade civil e política na «sociedade de do fiasco da libertação política e social. Mas, o consumidor nada tem
consumo»: o sistema vê-se obrigado a intensificar a produção do de ser universal: surge como ser político e social, como força produtiva
individualismo consumidor ao mesmo tempo que tem de o reprimir e como tal, suscita problemas históricos fundamentais, como os da
cada vez com maior dureza. Tal contradição só se resolve pelo propriedade dos meios de consumo (e já n1o dos meios de produçllo)
acréscimo da ideologia altruísta (também ela burocratizada): «lubrifi- da responsabilidade económica (responsabilidade quanto ao conteúd~
caçlo social» por meio da solicitude, da redistribuição, do dom, da da produção), etc. Também aqui se encontra a virtualidade de crises
gratuidade, de toda a propaganda caritativa e relações humanas 1• profundas e de novas contradiçOes.
Porque também se integra no sistema de consumo, não consegue
equilibrá-lo.
O consumo revela-se, pois, como poderoso elemento de dominação O «ego consumans»
social (através da atomizaçao dos indivíduos consumidores), mas traz
Até agora, exceptuando umas quantas greves de donas de casa
1Ver adi111te: «A Mútica da Solicitude•. americanas e a destruiçllo esporádica de bens de consumo (Maio de

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1968 - o No Bra Day. em que as mulheres americanas queimaram O Povo são os trabalhadores, desde que estejam desorganizados. 1 r. "··
publicamente o ..:soutien,.), em nenhum lado ou só em muito poucos é Público, a Opinião Pública são os consumidores, contanto que • ;.f!L
que tais contradições se manifestaram de modo consciente. E é preciso contentem com consumir.
dizer que tudo se opõe a isso. «Que representa o consumidor no mundo
moderno? Nada. Que é que ele poderia ser? Tudo ou quase tudo.
Encontrando-se isolado ao pé de milhões de solitários, está ao sabôr de A PERSONALIZAÇÃO
todos os interesses» (Jornal ú Coop~rateur. 1965). Importa ainda OU A MENOR DIFERENÇA MARGINAL (M.D.M.)
afmnar que a ideologia individualista se mostra a este respeito muito
influente (apesar de termos descoberto as contradições latentes no seu «To be or not to be myse/f»
interior). A exploração por meio de espoliamento (da força de
trabalho), uma vez que se refere ao sector colectivo doJRbalho social, _«Não há mulher, por mais exigente que seja, que não consiga
revela-se (até determinado limiar) como solidan:ra'e&duz a uma satisfazer os gostos e os desejos da pr6pria personalidade com um
consciência de classe (relativa). A possessão dirigida de objectos e de · Mercedes-Benz! Desde a cor do couro, ao guarnecimento e a cor da
bens de consumo é individualizante, dessolidarizante e desistorici- · carroçaria até aos tamplles das rodas e às inúmeras comodidades que os
zante. Enquanto produtor e em virtude da própria divisão do trabalho, equipamentos estandardizados ou preferenciais oferecem. Quanto ao
o trabalhador postula os outros: a exploração é de todos. Como homem, embora se preocupe sobretudo com as qualidades técnicas e
consumidor, o homem toma-se solitário ou celular, quando muito com os resultados do carro, prestará de boa vontade atenção aos desejos
gregário (a TV em família, o público do estádio ou do cinema, etc.). da mulher. porque também é motivo de satisfação ver-se felicitado pelo
As estruturas de consumo são ao mesmo tempo muito fluidas e bom gosto. De acordo com o seu desejo, pode escolher o seu Mer-
fechadas. Será possível imaginar a coligação dos automobilistas contra cedesBenz entre 76 diferentes pinturas e 697 sortidos de acessórios in-
o selo de imposto do automóvel? Ou então, a contestação colectiva da teriores ... »
Televisão? Os milhões de telespectadores podem opor-se indivi- «Ter encontrado a própria personalidade e saber afirmá-la é
dualmente à publicidade feita através da TV; no entanto, esta continu- descobrir o prazer da autenticidade pessoal. Muitas vezes, basta bem
ará a fazer-se. A razão está em que o consumo começa por ser um pouco. Busquei durante longo tempo eapecebi-me de que um pequeno
discurso orquestrado com fim em si mesmo, tendendo a esgotar-se tom claro nos cabelos era o bastante para criar a perfeita harmonia com
nesta permuta mínima, com suas satisfações e decepções. O objecto a cor do rosto e com os olhos. A cor loira encontrei-a na gama do
de consumo isola. A esfera privada surge sem negatividade con· shampoo coranteR~cital... Com o dourado deR/cita/, de matiz muito
creta, porque se encerra sobre os próprios objectos, sem dela serem. natural, não mudei: mais do que nunca sou eu mesma». ..
É estruturada a partir de fora pelo sistema de produção, cuja estratégia Estes dois textos (entre muitos outros) são extraídos, o primeiro de
deixou de ser ideológica a este nível, para ser sempre política e cuja Le Monde. o segundo de um pequeno hebdomadário feminino. O
estratégia do desejo investe agora a materialidade da nossa existência, prestígio e o «standing» que manejam é excessivo: do sumptuoso
com a sua monotinia e distracções. Ou então, o objecto de consumo «Mercedes 300 SL» ao «pequeno tom claro» do «shampoo Récital»,
distingue - como tivemos ocasiAo de ver - uma estratificaçao de desaparece toda a hierarquia social e as duas mulheres qi.ie aparecem
estatutos: se deixa de isolar, é porque diferencia, ajustando colectivamente nos dois textos jamais se encontrarão {talvez no «Club Méditarranée»
os consumidores a um código, sem conseguir suscitar (pelo contrário!) quem sabe?). A sociedade inteira as separa, embora se reúna idêntic~
qualquer solidariedade colectiva. constrangimento de diferenciação e de personalização. Uma é «A», a
Os consumidores enquanto tais sao, geralmente falando, incons- outra é «Noo-A», mas o esquema do valor «pessoal» é o mesmo para .
cientes e inorganizados, como o poderiam ser também os operários do ambas e para todos nós que abrimos caminho na selva «personalizada»
início do séc. XIX. É por isso que em toda a parte se exaltam e adulam, da mercadoria «preferencial», buscando desesperadamente o fundo de
sendo cantados pelos bons apóstolos como a «Opinilio Pública», tez, que revelará a naturalidade do nosso rosto, o truque que ilustrará
realidade mística, providencial e «soberana». Da mesma maneira que a nossa idiossincrasia· profunda, a diferença que nos fará ser nós
o Povo é exaltado pela Democracia, contanto que fique por aí (ou seja, mesmos.
que não intervenha na cena politica e social), assim se reconhece Todas estas contradições de semelhante tema, fundamental para o
aos consumidores a soberania («Powerful consummer» - segundo cons~o. são ~páveis na acrobacia desesperada do léxico que o
Katona), com a condição de nAo tentarem influenciar a cena social. expnme. na tentativa perpétua de súttese mágica e impossível. Quando

86 87
se é alguém, poderá «encontrar-se» a própria personalidade? E onde precisamente em adoptar determinado modelo, em qualificar-se pela
se encontra você, enquanto tal personalidade o assedia? No caso de referência a um modelo abstracto, em renunciar assim a toda a
alguém ser ele mesmo, importa que o seja «verdadeiramente» - ou é diferença real e a toda a singularidade, a qual só pode ocorrer na
que, na eventualidade de se ser duplicado de um falso «Si mesmo», relação concreta e conflitual com os outros e com o mundo. Tal é o
bastará um «pequeno tom claro» para restituir a miraculosa unidade do milagre e o trágico da diferenciação. Desta maneira, todo o processo de
ser? Que quererá dizer o louro «matiz muito natural»? É ou não consumo é comandado pela produção de modelos artificialmente
natural? E se eu sou eu mesmo, como é que o poderei ser «mais do que desmultiplicados (como as marcas de lixívia), em que a tendência
nunca»?- quer dizer que ontem não o era inteiramente? Conseguirei, monopolista é idêntica à dos restantes sectores da produçao. Há
pois, elevar-me à potência dois, acrescentar a mim mesmo outro valor, concentração monopolista da produção das diferenças.
como uma espécie de mais-valia no activo de qualquer empresa? Exemplo de fórmula absurda: o monopólio e a diferença são
Encontrar-se-iam milhares de exemplos deste ilogismo e da contra- logicamente incompatíveis. Se podem conjugar-se é porque as dife-
dição interna que corrói tudo o que hoje em dia diz respeito à renças desaparecem e porque, em vez de caracterizarem a singulari-
personalidade. Ora - diz Riesman - «o que actualmente se procura dade de um ser, assinalam antes a sua obediência a determinado código
com mais empenho não é nem uma máquina, nem uma fortuna, nem e a sua integração em escala móvel de valores.
uma obra: é a personalidade». O cúmulo de semelhante litania mágica Na «personalização>>, existe efeito semelhante ao da «naturali-
da personalização atinge-se com o seguinte anúncio: zação» com que se depara em toda a parte no meio ambiente, e que
SEJA O SENHOR A PERSONALIZAR O SEU APARTAMENTO! consiste em restituir a natureza corno signo depois de a ter liquidado na
Esta fórmula «super-reflexa» (personalizar-se a si mesmo... em realidade. Assim, por exemplo, abate-se uma floresta para no mesmo
pessoa, etc.!) constitui a última palavra da história. Tudo o que diz esta sítio construir um conjunto baptizado de «Cidade Verde~ e onde se
retórica, a debater-se com a impossibilidade de o dizer, é precisamente tomarao a plantar algumas árvores, que darão wna sugestão de «natw'e2a».
que não existe ninguém, quer seja a «pessoa» em valor absoluto, com Por consequência, o ~natural» que assedia toda a publicidade é efeito
os traços irredutíveis e com o peso específico, tal corno a forjou a de «make-up»: «Ultra-Beauty garante-lhe uma maquilhagem ave-
tradição ocidental enquanto mito organizador do Sujeito, com paixões, ludada, unida, duradoira, que dará à sua tez o brilho natural com que
vontade e carácter próprio,quer ... a sua banalidade; semelhante pessoa sonha!» «Claro está, a minha mulher não se maquilha!» «0 véu de
encontra-se ausente, morta, varrida do nosso universo funcional. E é pintura invisível e presente». A «funcionalização» de qualquer objecto
esta pessoa ausente, esta instância perdida que tem de «personali- constitui também uma abstracção coerente que se sobrepõe e substitui
zar-se». Este ser perdido é que tenta reconstruir-se in abstracto pela em toda a parte à respectiva função objectiva (a «funcionalidade» não
força dos signos, no leque desmultiplicado das diferenças, no Mercado, é o valor de uso, mas valor/signo).
no «pequeno tom claro», noutros inumeráveis signos reunidos e conste- A lógica da personalização é idêntica: surge como contemporânea
lados para recriar uma individualidade de sfntese e, no fundo, para da naturalização, funcionalização, culturalizaçao, etc. O processo ·
desaparecer no anonimato mais total, já que a diferença é, por de- geral pode definir-se historicamente: a concentração monopolista
finição, o que não tem nome. industrial, ao abolir as diferenças reais entre os homens, ao tomar
homogéneos as pessoas e os produtos, é que inaugura simultaneamente
A produção industrial das diferenças o reino da diferenciação~ Acontece aqui em parte o que ocorre nos
movimentos religiosos ou sociais: no reflexo do impulso original é que
Toda a publicidade carece de sentido; só tem significações. No se estabelecem as igrejas ou as instituições. Também agora é sobre a
entanto, tais significações (e as condutas a que elas se referem) nunca perda das d1jerenças que se funda o culto da diferença 1•
são pessoais, mas diferenciais, marginais e combinatórias. Isto é,
dependem da produção industrial das diferenças- pelas quais - na 1
0 mesmo se passa com a relaçio: o sistema institui·se na base da liquidaçio total dos
minha opinião- se definiria com maior força o sistema do consumo. laços pessoais e das relações sociais concretas.~. nesta medida que se toma necessária e
As diferenças reais que marcavam as pessoas transformavam-nas sut~MQticatMnt~ produtor de relações (póblicas, hum111as, ele.). A produçio de relações

em seres contraditórios. As diferenças «personalizantes» deixam de transformou-se num dos ramos capitais da produçio. Por nada terem de espontâneo e por
serenvproduzida1~tais relações encontram-se, como tudo o que é produzido, necessaria-
opor os indivíduos uns aos outros, hierarquizam-se todas numa escala mente votadas a ser consumidas (divergindo assim das r~laç&s sociais, que sio o produto
indefinida e convergem para modelos, a partir dos quais se produzem inconsciente do trab&lho social enio derivam da produçio industrial deliberada e dirigida:
e reproduzem com subtileza. De tal maneira que diferenciar-se consiste nlo se «consomem» e constituem pelo contrário o lugar das contradiç&1sociais).

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A produção monopolista modema não se limita a ser simples menos ainda que a do código penal), escondem a mais rigorosa
produção de bens; revela-se também sempre como ~uçlo (~onopo­ discriminação social. Nem tudo é permitido e punem-se as infracções
lista) de relações e de diferenças. Profunda cumphc1dade lóg1ca l~ga, ao código das diferenças que, pelo facto de ser móvel, nem por isso é
portanto, o «mega-trust~ e o microconsumidor, a estruturamonopohsta menos ritual. Como testemunha, serve o divertido episódio de um
da produção e a estrutura «individualis~» do cons~m?, uma vez q~e ~ representante de comércio que, depois de comprar o mesmo «Mer-
diferença «consumiw de que se allmenta o mdtvíduo. constltm cedes» que o patrão, foi por este despedido. Tendo interposto recurso,
igualmente um dos sectores-chave da produção generalizada. Ap foi indemnizado pelos Prudhommes, mas não foi reintegrado no
mesmo tempo e sob o signo do monopólio, grande homogeneidade emprego. Todos são iguais perante os objectos enquanto valor de uso,
associa hoje os diversos conteúdos da produção/consumo: be~s, pro- mas nao diante dos objectos enquanto signos e diferenças, que se
dutos, serviços, relações, diferenças.Tudo isto, que outrora eradisttnto, encontram profundamente hierarquizados.
produz-se actualmente de modo idêntico e, por consequência, acha-se
de igual modo votado a ser consumido.
Na personalidade combinatória, encontra-se ainda um eco da Metaconsumo
cultura combinatória, que acima evocámos. Assim como esta consistia
na reciclagem colectiva, através dos «mass l!'edia~ sot>t:e a M.c.c;. É importante compreender que semelhante personalização e a
(Menor Cultura Comum), também a personalização cons1ste na reci- busca de estatuto e de «standing» se funda em signos, isto é, não nos
clagem quotidiana acerca da M.D.M. (Menor Diferença Marginal): objectos ou nos bens em si, mas nas diferenças. Só assim é possível
buscar as pequenas diferenças qualitativas pelas quais se indicam o explicar o paradoxo do «underconsumption» ou do «inconspicuous
estilo e o estatuto. Portanto, fume «Kent»: «Assim faz o comediante consumption», quer- dizer, o paradoxo da sobrediferenciaçlk> de prestígio,
antes de entrar em cena, o automobilista de rally antes de afivelar o que já não se faz notado pela ostentação («conspicuous», segundo
capacete, o pintor antes de autografar a tela, o jovem patrão antes de Veblen), mas pela discrição, despojo e reserva- os quais não passam
dizer não ao seu accionista principal (I) ..•» Apartir do momento em que de luxo a mais, de acréscimo de ostentação transformando-se no seu
o cigarro deixou de fumegar no cinzeiro, desencadeia-se a acção, contrário e, por consequência, de diferença mais subtil. A diferen-
precisa, calculada e irreversível. Ou então, fume «Marlboro» como ciação pode então assumir a forma da recusa dos objectos e da recusa
este jornalista «cujo editorial é esperado por dois milhões de leitores». do «COnsumo» ~ o que constituí ainda o segredo do consumo.
Tem uma mulher de grande classe e um «Alfa Romeo 2600 Sprint». «Se é grande burguês, não vá ao Quatr~Saisons... Deixe o Quatre-
Mas, se utilizar «Green Water» como perfume, será a trindade pe~eita -Saisons para os casais jovens desnorteados pela bagalhoça que nllo
do grande «standing» e possuirá todos os graus de descendêncl8 da têm, para os estudantes, secretárias, vendedoras, operários que estão
nobreza pós-industrial. Ou ainda, tenha na cozinha os mesmos ladri- fartos de viver na porcaria ... para todos os que querem móveis bonitos
lhos da faiança que Françoise Hardy ou o mesmo candeeiro de gás porque a fealdade é fatigante, mas que querem tamMm móveis simples
incorporado que Brigitte Bardot. Ou antes, utilize uma torradeira porque sentem horror pelos apartamentos pretensiosos~. Quem irá
eléctrica que faça tostas com as suas iniciais. Se quiser, asse no espeto responder a este convite perverso? Talvez algum grande burguês ou
com carvão vegetal das ervas de Provença. Corno não podia deixar de qualquer intelectual desejoso de modificar o aparato da classe. No
ser, as diferenças «marginais» encontram-se também submetidas a plano dos signos, nllo há riqueza ou pobreza absoluta, nem oposição
subtil hierarquia. Desde o banco de luxo com cofres-fortes Luís XVI entre os signos da riqueza e os signos da pobreza: não passam de
reservado para clientes selectos (americanos que deverão guar~ ~a sustenidos e bemóis no teclado das diferenças. «Minhas senhoras, é no
respectiva conta corrente o mínimo de 25 000 dólares) até ao escn~óno cabeleireiro x que sedo mais bem despenteadas! » «Este vestido muito
de P.D.G., que será antigo ou Primeiro Império, enquanto o func1onal simples apaga os vestígios da alta costura».
cómodo basta para os quadros superiores; desde o prestígio arrogante existe toda uma síndroma muito «modema» do anticonsumo que,
das casas de campo neo-ricas até ao desleixo dos vestidos de classe - no fundo, é metaconsumo e que actua corno expoente cultural de
todas estas diferenças marginais, segundo a lei geral de distribuição do classe. As classes médias, herdeiras nesse ponto dos grandes dinossau-
material distintivo (lei que se supõe nao ser ignorada por ninguém, e ros capitalistas·do séc. XIX e do início do séc. XX, têm a tendência
predominante para consumir com ostentação. Ao fazê-lo, dão provas
Sobre a produçlo e o consumo de relações humanas e aociais, ver maia adi111te: A de ingenuidade cultural. Escusado será dizer que por detrás se encontra
Mística da Solicitude. toda uma estratégia de classe: «Entre as restrições de que padece o

90 91
III
consumo do indivíduo móvel- aftrmaRiesman- acha-se a resistência de dez milhas à volta do burgo. Nesta aglomeração espaçosa, arejada,
que as classes elevadas opOem aos "arrivistas" por uma estratégia de onde o clima é salubre e a natureza se encontra presente por todos os
subconsumo ostentoso: os que já conseguiram determinado estatuto lados, nada mais inútil que uma residência secundária! Descobrimos
social tendem a impor os próprios limites aos que gostariam de tornar- aqui em acção, no estado puro, a diferenciaçao de prestígio- e quantas
-se seus iguais». Semelhante fenómeno, sob as múltiplas formas que razOes «objectivas» para a posse de automóveis ou residência se-
assume, é capital para a interpretação da nossa sociedade, porque cundária se reduzem, no fundo, a simples alibis para uma determinação
poderíamos ater-nos a esta inversllo formal dos signos e considerar mais fundamental.
como efeito de democratização o que nllo passa de simples metamor-
fose da distância de classe. A simplicidade perdida consome-se com
base no luxo - efeito este que se encontra a todos os níveis: é na base Distinção ou conformidade?
da condição burguesa que se consomem o «miserabilismo» e o «prole-
tarismo» intelectuais como também, noutro plano, é na base do passado A sociologia tradicional, em geral, nllo considera como princípio de
heróico perdidos que os americanos contemporâneos empreenderam análise a lógica da diferenciação. Acentua a «necessidade de o in-
viagens de divertimento colectivo para ftlmar o ouro nas ribeiras do divíduo se diferenciar~. isto é, uma necessidade a mais no repertório
Oeste; em toda a parte, o «exorcismo» dos efeitos inversos, das individual, fazendo-a alternar com a necessidade inversa de se confor-
realidades perdidas, dos· termos contraditórios indica um efeito de mar. Ambas se consagram no plano descritivo psicossociológico, na
consumo e de superconsumo, que igualmente se integra por todos os ausência de teoria e no m3;is total ilogismo, que se rebaptizará de
lados na lógica da distinção. «dialéctica da igualdade e da distinção», ou de «dialéctica do con-
É necessário apreender, de uma vez por todas, a lógica social da formismo e da originalidade», etc. Confunde-se tudo. É preciso ver que
diferenciação como fundamental na análise e que é precisamente na o consumo nllo se ordena em redor do indivíduo com as necessidades
relegação do valor de uso (e das «necessidades» que se lhe referem) que pessoais indexadas depois, segundo a exigência de prestígio ou de
se institui a exploração dos objectos como diferenciais e como signos conformidade, num contexto de grupo. Em primeiro lugar, existe a
- nível este que é o único a definir especificamente o consumo. «As lógica estrutural da diferenciação, que produz os indivíduos como
preferências em matéria de consumo - reconhece Riesman - não «personalizados», isto é, como diferentes uns dos outros, mas em
constituem um aperfeiçoamento da faculdade humana que consiste em conformidade com modelos gerais e de acordo com um código aos
estabelecer relações conscientes entre o indivíduo e determinado quais se conformam, no próprio acto de se singularizarem. O esquema
objecto cultural. Representam um meio de entrar com vantagem em singularidade/conformismo, colocado sob o signo do indivíduo, não é
contacto com os outros. Em suma, os objectos culturais perderam todo essencial: é o nível vivido. A lógica fundamental é a da diferenciação/
o significado humano: o proprietário, de certa maneira, transforma-os personalização, colocada sob o signo do código.
em feitiços que lhe permitem apoiar uma atitude». O que (a prioridade Por outras palavras, a conformidade não é a igualização dos
do valor diferencial) Riesman aplica aos objectos «culturais» (a este estatutos, a homogeneização consciente do grupo (cada indivíduo
respeito,não existe diferença entre «objectos culturais» e «objectos alinha-se pelos outros), mas o facto de ter em comum o mesmo código
materiais») era como que ilustrado experimentalmente pelo exemplo e de partilhar idênticos signos que diferenciam globalmente de qualquer
de uma cidade mineira da taiga do Québec onde - assim relata o outro gupo. A diferença em relação a outro grupo é que faz a paridade
repórter- apesar da proximidade da floresta e da quase nula utilidade (mais do que a conformidade) dos membros de um grupo. O consenso
do automóvel, cada família possui no entanto diante da porta o funda-se diferencialmente, seguindo-se-lhe o efeito da conformidade.
respectivo carro: «0 veículo lavado e mimado que, de tempos a Semelhante passo é capital, porque implica a transferência de toda a
tempos, se faz girar uns quantos quilómetros pela estrada que cerca a análise sociológica (em matéria de consumo, sobretudo) do estudo
cidade (não há outras estradas), representa o símbolo do nível de vida fenomenal do prestígio, da «imitação~ e do campo superftcial da
americano, o sinal de que se pertence à civilização mecânica (o autor dinâmica social consciente para a análise dos códigos, das relações
faz também a comparação das sumptuosas Iimusinas e de uma bicicleta estruturais, dos sistemas de signos e de material distintivo, para uma
inteiramente inútil encontrada na selva senegalesa, em casa de um teoria do campo inconsciente da lógica social.
antigo oficial subalterno, que veio outra vez viver para a aldeia). A função deste sistema de diferenciação vai assim muito além da
Melhor ainda: idêntico reflexo demonstrativo e ostentoso impele os satisfaçllo das necessidades de prestígio. Se se admitir a hipótese acima. ,
quadros abastados a construir à própria custa casas de campo num raio enunciada, descobre-se que o sistema nunca actua sobre as diferenças

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reais (singulares, irrredutíveis) entre pessoas. O que funda como código generalizado de valores diferenciais e da funçllo de sistema de
sistema é o facto de eliminar o conteúdo e o ser próprios de cada qual permuta e de comunicação que acabamos de determinar.
(forçosamente diferente) para lhes substituir a forma diferencial, Os modernos sistemas sociais(capitalista, produtivista, «pós-indus-
industrializável e comercializável como signo distintivo. Elimina toda trial») não fundam perfeitamente o respectivo controlo social, a regu-
a qualidade original para ter apenas o esquema distintivo e a sua lação ideológica das contradições económicas e política que os «traba-
produção sistemática. A este nível, as diferenças deixam de ser lham», nos grandes princípios igualitários e democráticos, no sistema
exclusivas: não só se implicam logicamente entre si na combinatória da integral de valores ideológicos e culturais difundido e em acção por
moda (tal como as cores diferentes ~se combinam» entre si), mas ainda toda a parte. Apesar de seriamente interiorizados através da escola e da
no horizonte sociológico: trata-se da permuta das diferenças que sela aprendizagem social, os valores igualitários conscientes de direito, de
a integração do grupo. As diferenças assim codificadas, longe de justiça, etc., permanecem relativamente frágeis e nunca chegam para
dividir os indivíduos, tornam-seantes material de troca. Ponto este que integrar uma sociedade, cuja realidade objectiva contradizem de
é fundamental para a definição do consumo: maneira demasiado evidente. Digamos que ao nível ideológico, é
1) não mais como prática funcional dos objectos, possessão, etc., sempre possível que as contradições surjam de novo. Mas, o sistema ·;
2) não mais como simples função de prestígio individual ou de apoia-se com maior eficácia no dispositivo inconsciente de integraçllo
grupo, e de regulação. Ao contrário da igualdade. este consiste precisamente
3) mas como sistema de comunicação e de permuta, como código em implicar os indivíduos no sistema de diferenças e no código de
de signos continuamente emitidos, recebidos e inventados, como signos. Tal é a cultura, a linguagem e o «consumo», no sentido mais
linguagem. profundo do termo. A eficácia política nllo consiste em fazer reinar a
As diferenças de nascimento, de sangue, de religião não se permu- igualdade e o equilíbrio onde antes imperava a contradição mas em
tavam outrora; não eram diferenças de modas e diziam respeito ao conseguir fazer dominar a diferença onde antes havia contradição. A
essencial. Não se «consumiam». As diferenças actuais (de vestidos, de solução para a contradição social não é a igualização, mas a diferen-
ideologia, e até de sexo) permutam-se no seio ·do vasto consórcio do ciação. Não há revolução possível no plano dos códigos - ou, então,
consumo. Surge como troca socializada dos signos. E se tudo pode dão-se todos os dias, e temos as «~voluções da moda» inofensivas e
assim permutar-se sob a forma de signos, não é pela graça da «liberali- fazendo abortar as outras.
zação» dos costumes mas porque as diferenças são sistematicamente Também a este respeito se erra ~a interpretaçllo do papel ideológico
produzidas de acordo com uma ordem que as integra a todas como do consumo, entre os defensores da análise clássica. Não é afogando os ·
sinais de reconhecimento: em virtude de serem reciprocamente substi- indivíduos no conforto, nas satisfações e no «standing» que o consumo
tuíveis, deixa de haver tensão e contradição entre elas, da mesma escoa a virulência social (visão associada com a teoria ingénua das
maneira que não há antagonismo entre o alto e o baixo, entre a esquerda necessidades e que apenas conduz à esperança absurda de causar às
e a direita. pessoas maior miséria para contemplar a sua revolta) mas sim edu-
Descobrimos assim, na concepção de Riesman, os membros do cando-as na disciplina inconsciente de um código e de uma coo-
«peer-group» (grupo de pessoas da mesma classe) a socializar preferências peração competitiva no plano do sobredito código; não é através
e a permutar apreciação, assegurando, por meio da competição de maior facilidade, mas levando-as antes a entrar nas regras do jogo.
contínua, a reciprocidade interna e a coesão narcisista do grupo. O consumo pode assim, por si só, substituir-se a todas as ideologias e
«Concorrem» para o grupo através da «concorrência», ou antes, pelo acabar por assumir a integração de toda a sociedade, como acontecia
que já não é concorrência aberta e violenta - a do mercado e da luta- com os rituais hierárquicos ou religiosos das sociedades primitivas.
mas sim, depois de filtrada pelo código da moda, uma abstracção
lúdica da concorrência.
Os modelos estruturais

Código e Revolução «Qual a mãe de família que não sonhou com uma máquina de lavar
roupa especialmente concebida para ela» - pergunta um anúncio
Assim, compreender-se-á melhor a função ideológica capital do publicitário. De facto, qual a mãe de família que não o sonhou?
sistema do consumo na actual ordem socio-política. Semelhante função Portanto, foram milhões as que sonharam a mesma máquina de lavar
ideológica deduz-se da definição do consumo como instituição de um especialmente concebida para cada uma delas.

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«O corpo com que sonha é o SEU». Esta admirável tautologia, cujo não lhe conferem qualquer .certeza» (Bredin, La Nej) . Não tem
resultado é evidentemente tal ou tal «soutien», reúne todos os para- comparação valer pelas qualidades naturais e fazer-se valer pela
doxos do narcisismo «personalizado». É pela obtençao do seu ideal de adesão a determinado modelo e segundo um código construído. Trata-
preferência e pela «identidade consigo mesma» que a mulher segue se da f eminilidade funcional, em que todos os valores naturais de
mais fielmente o imperativo e que coincide mais estreitamente com tal beleza. de encanto e de sensualidade desaparecem em proveito dos
ou tal modelo «imposto». Astúcia diabólica ou dialéctica da cultura de valores exponenciais de naturalidade (sofisticada), de erotismo, de
massas? «linha» e expressividade.
Teremos ocasião de ver como a sociedade de consumo se pensa a Como a violência•. também a sedução e o narcisismo são previa-
si mesma como tal, reflectindo-se narcisisticamente_na própria imagem. mente revezados por modelos, industrialmente produzidos pelos
Semelhante processo difunde-se ao nível de cada indivíduo, sem cessar «mass media» e transformados pelos signos referenciáveis (para que
de ser função colectiva - assim se explica que ele não contradiga o todas as raparigas se apaixonem por Brigitte Bardot. requer-se que os
conformismo, bem pelo contrário, como provam os dois exemplos cabelos, a boca ou determinado pormenor do vestido as distinga, isto
acima aduzidos. O narcisismo do indivíduo na sociedade de consumo é, forçosamente a mesma coisa para todas). Cada qual encontra a
não /fruição da singularidade, é refracção de traços colectivos. No própria personalidade no cumprimento de tais modelos.
entanto, apresenta-se sempe como investimento narcisista de si «mesmo»
através das M.D.M. (Menores Diferenças Marginais).
O indivíduo é, de todos os lados, convidado a deleitar-se, a com- Modelo masculino e modelo femin ino
prazer-se. Depreende-se que é agradando a si mesmo que se têm todas
as probabilidades de agradar aos outros. No limite, a complacência e a À feminilidade funcional corresponde a masculinidade ou a virili-
auto-sedução conseguem até- quem sabe? - suplantar totalmente a dade funcional. Muito naturalmente, os modelos ordenam-se aos pares.
finalidade objectiva sedutora. O empreendimento sedutor recai sobre Nao resultam da natureza diferenciada dos sexos, mas da lógica
si mesmo, numa espécie de «consumo» perfeito, mas o seu ponto de · diferencial do sistema. A relação do Masculino e do Feminino aos
referência permanece sempre a instância do outro. Só que agradar homens e às mulheres reais é relativamente arbitrária. Homens e
tomou-se cometimento em que a consideração da pessoa a quem mulheres, hoje em dia, acabam cada vez mais por significar-se indi-
agradar é apenas secundária. Discurso repetido da marca da pub- ferentemente nos dois registos. mas os dois grandes termos da oposi-
licidade. ção significante, em contrapartida, s6 valem pela respectiva distinção.
O convite à complacência exerce-se especialmente sobre as mulheres. Os dois modelos não são descritivos; regulam o consumo.
Tal pressão exercida sobre as mulheres realiza-se através do mito da O modelo masculino é o da exigência e da escolha. Toda a ·
Mulher. Isto é, da Mulher como modelo colectivo e cultural de publicidade masculina insiste na regra «deontológica» da escolha, em ·
complacência. Évelyne Sullerot diz bem: «Vende-se a mulher à mulher... termos de rigor, de minúcia inflexível. O homem de qualidade modema
ao pensar que ela olha pela higiene e se perfuma, se veste, em suma, se é exigente. Não tolera qualquer fracasso. Não descuida nenhum
"cria", a mulher consome-se». Está de acordo com a lógica do sistema: pormenor. É «selecto», não passivamente ou por graça natural mas
não é só a relação com os outros mas também a relação consigo mesmo pelo exercício da selectividade. (Que tal selectividade seja orquestrada
que se transforma em relação consumida. Não se confunda, porém, o por outros e não por ele, é outra questão!). Não se trata de deixar andar
· que dizemos, com o facto de agradar a si mesmo em virtude das ou de se comprazer, mas de distinguir-se. Saber escolher e não falhar
qualidades reais de beleza, de encanto, de gosto, etc. Não é essa a equivale no caso presente às virtudes militares e puritanas: intransi-
questão; em tal caso, não há consumo. Existe a relação espontânea e gência, decisão, energia («virtus»). Semelhantes virtudes serão as do
natural. O consumo define-se sempre pela substituição da relação menor pin up que se veste no Romoli ou em Cardin. Virtude compe-
espontânea mediatizadapor meio de um sistema de signos. A propósito, titiva ou selectiva - eis o modelo masculino. De modo muito mais 1,
se a mulher se consome é porque a sua relação se encontra objectiva profundo, a escolha, sinal de eleição (o que escolhe e sabe escolher, é ·
e alimentada por signos, signos estes que constituem o Modelo Femi- escolhido e eleito entre todos os outros). constitui as nossas sociedades
nino que, por sua vez, surge como o verdadeiro objectodoconsumo. o rito homólogo do desafio e da competição nas sociedades primitivas:
É a ele que a mulher consome, ao «personalizar-se». Em última aná- classifica.
lise, a mulher não pode racionalmente confiar no fogo do seu olhar,
1Ver
nem na doçura da sua pele: tais características, que lhe são próprias, mais adiante: «A Violência».

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O modelo feminino prescreve mais à mulher a necessidade de se mocráticos, encontra-se sempre a promoção cultural em correspondência
comprazer a si mesma. Já não é a selectividade e a exigência mas a '' com o mesmo constrangimento de inutilidade. No fundo, a cultura
complacência e a solicitude narcisista que são indispensáveis. No revela-se neste caso como efeito sumptuário anexo da «beleza» -já
fundo, continua-se a convidar os homens a brincar aos soldadinhos e as que a cultura e a beleza não são propriamente valores autênticos,
mulheres a servirem de bonecas consigo próprias. exercidas por si mesmos, mas antes a evidência do supérfluo, função
No plano da publicidade moderna. persiste, pois, a segregação dos social «alienada» (exercida por procuração).
dois modelos. masculino e feminino. e a sobrevivência hierárquica da Diga-se mais uma vez, trata-se de modelos diferenciais, que
preeminência masculina (é ao nível dos modelos que se lê a inamovi- importa não confundir com os sexos reais, nem com as categorias
bilidade do sistema de valores: a mistura das condutas «teais» importa sociais. A difusão e a contaminação dá-se por toda a parte. O hom.em
pouco uma vez que a mentalidade profunda é esculpida pelos modelos moderno (tema permanente da publicidade) é igualmente convidado a
- e a oposição Masculino/Feminino, como também a do trabalho comprazer-se. A mulher moderna é convidada a escolher e a concorrer.
man,ual/trabalho intelectual, não sofreu qualquer modificação. a ser «exigente». Tudo isto à margem de uma sociedade em que as
E preciso, portanto, retraduzir a oposição estrutural em termos de respectivas funções sociais, económicas e sexuais se encontram
supremacia social. relativamente mescladaS. No entanto, a distinçao dos modelos mas-
1. Aescolha masculina é «agonística»: pela analogia com o desafio, culinos e femininos permanece total (por outro lado, o agrupamento
revela-se como a conduta «nobre» por excelência. Está em jogo a honra das tarefas e das funções sociais e profissionais é ainda fraco e
ou a «Bew:lhrung» (dar provas). virtude ascética e aristocrática. marginal). Sob determinados aspectos, a oposição estrutural e hie-
2. Em contrapartida, o que se perpetua no modelo feminino, é o rárquica do Masculino e do Feminino surge talvez com maior reforço.
valor derivado. o valor porprocuração («vicarious status», «vicarious Assim, o aparecimento publicitário do efebo nu de Publicis (pub-
consumption»- segundo Veblen). A mulher empenhou-se na gratifi- licidade Sélimaile) assinalou o ponto extremo de contaminação. Con-
caçao própria unicamente para melhor entrar como objecto de compe- tudo, nada modificou nos modelos distintos e antagónicos. Pôs sobre-
tição na concorrência masculina (comprazer-se para mais agradar). tudo em evidência a emergência de um «terceiro» modelo hermafro-
Nunca entra em competição directa (a não ser com as outras mulheres, dita, por toda a parte associado à emergência da adolescência e da ju-
a respeito dos homens). Se for bela. isto é, se esta mulher for mulher, ventude, ambissexuada e narcisista, mas muito mais próxima do
será escolhida. Se o homem for homem, escolherá a mulher entre modelo feminino da complacência que do modelo masculino de
outros objectos/sinais (o seu carro, a sua mulher, o seu perfume). Sob exigência.
a cor de autogratificação, a mulher (o Modelo Feminino) é relegada por De modo muito geral, assiste-se hoje à extensão do modelo femi-
procuração no cumprimento «de serviço». A sua determinação não é nino em todo o campo do consumo. O que dissemos da Mulher na sua
autónoma. relaç!io aos valores de prestígio, do seu estatuto «por procuração», vale
Semelhante estatuto, ilustrado no plano narcisista pela publicidade, virtualmente e de modo absoluto para o «homo consumans» em geral
oferece outros aspectos igualmente reais ao nível da actividade pro- -sem distinção entre homens e mulheres. Vale ainda para todas as
dutora. A mulher, votada aos bens parafernais (objectos domésticos), categorias votadas mais ou menos (mas, cada vez mais. em conformi-
cumpre não só uma função económica mas ainda uma função de dade com a estratégia política) aos «bens parafernais», aos objectos
prestígio, derivada da ociosidade aristocrática ou burguesa das mulhe~ domésticos e aos prazeres «por procuração». Há deste modo classes
res que assim rendiam testemunho do prestígio do respectivo senhor: a inteiras que, à imagem de Mulher (a qual permanece, enquanto
mulher-no-lar não produz, não tem incidência nas contabilidades emblemática do consumo), se votam a funcionar como consumidoras.
nacionais e não é recenseada como força produtiva - o motivo reside A promoção de consumidores constituiria assim o cumprimento do seu
em que ela está destinada a valer como força de prestigio, em virtude destino de servos. Não obstante, diferentemente da dona de casa, a sua
da sua inutilidade oficial e do seu estatuto de escrava «alimentada». actividade alienada, longe de mergulhar no olvido, suscita agora os
Permanece como atributo, imperando sobre os atributos secundários melhores dias da contabilidade nacional.
que são os objectos domésticos.
Ou, então, dedica-se, nas classes médias e superiores, a actividades
«culturais», também gratuitas, não contabilizáveis e irresponsáveis,
isto é, sem responsabilidade. «Consome» cultura, mas nem sequer em
nome próprio: cultura decorativa. Por detrás de todos os alibis. de-

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