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Daniel Roche

HISTÓRIA
DAS

COISAS BANAIS
Nascimento do consumo séc. XVII XIX

Título original
HISTOIRE DES CHOSES BANALES
Naissance de la consommation dans le sociétés traditionnelles (XVII-XIXe siècle)

Librairie Arthème Fayard, 1997

Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à EDITORA ROCCO LTDA. Rua
Rodrigo Silva, 26 - 5o andar 20011-040 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244 e-mail:
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Printed in BrazilДmpresso no Brasil

preparação de originais HELENA DRUMMOND

revisão técnica

FRANCISCO JOSÉ P. DAS NEVES VIEIRA

R578h

99-1518
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Roche, Daniel
História das coisas banais: nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX / Daniel Roche; tradução de Ana Maria Scherer. — Rio de
Janeiro: Rocco, 2000.
Tradução de: Histoire des choses banales: naissance de la con- sommation dans les sociétés traditionnelles (XVII-XIX siècle)
ISBN 85-325-1079-5

1. Consumo (Economia) - História. 2. Consumidores - Atitudes - História. I. Título. II. Série.

CDD-339.47 CDU-339.4

PRIMEIRA PARTE

PRODUÇÃO E CONSUMO
Capítulo I

O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

Na sociedade do Antigo Regime, bem como em outras socie- dades, as relações entre a
produção e o consumo estavam baseadas numa vinculação dissimétrica: só se podia consumir o
que era produzido, mas a transformação dos bens precedia a demanda. Para os economistas, essa
relação tem um valor uni- versal. Para os historiadores da cultura material, ela depende da capacidade de
consumir e de múltiplas condições; ela revela comportamentos cujas mudanças não indicam apenas flutua-
ções econômicas. A dependência ou a independência das sociedades em relação aos objetos, as
respostas dadas às pres- sões dos meios naturais, a escolha dos homens certamente se concretizam nessa
associação em que a produção corresponde, quanto ao essencial, à oferta e o consumo, à procura.1 A
eco- nomia não esgota completamente a relação entre o homem e as coisas e os objetos, mas ela
permanece como seu quadro mais geral quando se instala o mercado, mesmo se inúmeros fenô- menos de
troca e circulação, como o donativo ou o furto, não se originam diretamente dela. Para compreender esse
entrela- çamento do mercado com o que lhe é estranho - o hors- mercado da economia privada e
simbólica -, podemos ou anali- sar a transformação dos bens e sua comercialização, ou interro- gar no
contexto da escassez e da estabilidade os diversos fatores que pesam sobre o consumo e suas
desigualdades sociais, fato- res morais, fatores intelectuais, fatores religiosos.

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS
OS BENS NA HISTÓRIA

A atividade produtora e consumidora dos homens é a criadora dos bens pelo trabalho e pelo valor que eles
conferem aos obje- tos, podendo a utilidade como valor simbólico contribuir para isto. Essa transformação
dos objetos em bens e em riqueza tem uma longa história e se orienta para dois pólos: o do acesso
aos bens naturais e o da hierarquia dos valores, que traz o problema dos bens de luxo e com ele a
diferenciação dos comportamen- 'tos de consumo.
Os bens naturais, como vemos todos os dias, são todos sus- cetíveis de uma história em que
poderíamos ler a da apropria- ção humana que os transformou em riqueza. Atualmente nossa civilização se
conscientiza de que, se esses bens viessem a fal- tar, todos os seus alicerces desmoronariam. O ar, a água, a flo-
resta, as produções do solo são a base da alimentação, do ves- tuário, da construção da
habitação, e a relação que se estabe- lece assim exige uma ligação maior entre os homens e a
civili- zação material. Mas como reconhecer o necessário, o indispen- sável a uma sobrevivência que, sem
esgotar a relação do con- sumidor com a natureza, a submete fortemente quando a téc- nica não pode mudar
nem resolver historicamente o problema das necessidades??

Bens naturais, uso e troca

"A mercadoria é uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz alguma necessidade do
homem", nos lembra Marx: não existe valor comercial sem valor utilitário e sem satisfação de necessidades,
sejam elas alimentares ou imaginárias. Em com- pensação, podem existir valores de uso sem troca; os bens,
em especial, podem satisfazer as necessidades sem serem bases de valor imediato. Durante séculos, os
camponeses não pagavam a água, o que não ocorre mais nos dias atuais.
A hierarquia e as fronteiras entre valores de uso e valores de troca são suscetíveis de mudança. As
dimensões concretas e cotidianas que aparecem na análise dos inventários póstumos

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

revelam isto claramente ao historiador dos patrimônios: entre as posses reunidas, alguns objetos são
classificados facilmente, mas onde deveriam ser colocados a prataria, as jóias que estão simultaneamente nos
circuitos de troca e uso? Os bens podem ter um alto valor simbólico nas relações sociais, mas, em caso de
necessidade, o proprietário ou à família herdeira não hesita em mobilizá-los como reserva financeira.
Assim, nos séculos XVII e XVIII, de uma maneira geral, não se vendia a água. Era um bem natural,
acessível à maioria da população segundo processos baratos. Contudo, o cresci- mento urbano acarretou
entraram então num sistema de produção e de comerciali- zação da
um acréscimo do consumo, e as cida- des
água que mobilizou as autoridades municipais muito além do controle e da regulamentação, já que ele
exigiu a cons- trução de aquedutos e canalizações, a instalação de máquinas e de bombas. A água
tornou-se uma riqueza, mas na maioria das vezes ela era paga pelas taxas dos habitantes e pelo imposto
indireto. O acesso direto permanecia caro.
Em compensação, o acesso indireto e a distribuição não alcançaram os lares de Paris antes
do final do século XVIII, e ainda assim numa parte mínima da cidade; foram ainda mais tardios para os
outros locais, mas já tinham um sistema de comercialização, até mesmo de assinaturas ou de privilégios. O
mercado dos carregadores de água, livre mas regulamentado e vigiado, acudia às necessidades de todos. Os
carregadores iam buscar a água no rio, onde ela não custava nada, ou na fonte, onde ela tinha sido paga pelo
imposto, depois a vendiam às donas de casa nos andares o conteúdo de seus baldes. O bem natural entrou no circuito
das trocas, e isto desde a Idade Média. Uma grande parte da população ainda vivia fora do comércio da
água, mas progressivamente este ganhava terreno. A água, que estava no centro do sistema técnico das
sociedades pré-in- dustriais, cria também comportamentos sociais que variam no espaço como no tempo e
que podem mostrar hierarquias de ren- das assim como escolhas diversas. Este era um consumo de massa que
permite compreender o que poderia ser outrora a complexidade da relação entre a produção e os
recursos.

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

Poderíamos fazer a mesma demonstração quanto ao ar. Que bem estaria mais disponível e mais
acessível sem nenhum custo? Foi no final do século XVIII que começaram a refletir sobre o seu consumo. Essa
reflexão, essencialmente, nasceu do grande debate sobre a medicina aerífica e o neo-hipocratismo. Ela
mobilizou as autoridades administrativas e médicas que, em um amplo campo de interrogações
misturando valores mate- riais e valores da sensibilidade, questionaram a relação entre a civilização e
esse bem natural, na aparência sem custo nem peso.3 Elas foram alertadas pelos locais de especial
consumo: as prisões, onde a densidade de população já criava um clima desequilibrado; as fossas
sanitárias, onde o mefitismo matava os carregadores; os cemitérios, onde a acumulação das
sepulturas contribuía para a poluição urbana (sua transferência para fora dos muros da cidade iria
modificar profundamente, e não sem dificuldade, uma relação fundamental com a morte, com o
sagrado); as minas, onde uma exigência de exploração e de ren- dimento aumentada esbarrava nas técnicas
estáveis nas quais a ventilação teve seu lugar. Uma sociedade inteira se interrogava sobre o sentido e o
custo dos novos equipamentos necessários para responder à evolução de um comportamento diante de
necessidades e de um bem natural banais.

O gelo forneceu um outro exemplo.4 Na antiga sociedade o gelo era uma coisa muito rara e
reservada aos ricos, pois difícil de transportar e de conservar. No entanto, no século XVI, a
engenhosidade humana respondendo às exigências de consu- mo das elites da corte, especialmente na Itália,
soube descobrir locais de produção, inventar processos de transporte e técnicas de conservação
imediata que não exigiam grandes conheci- mentos físicos ou químicos. Do século XVII ao século XVIII, o gelo
natural se tornou uma riqueza, ele entrou no circuito geral dos consumos e foi comercializado. A
corporação dos limona- deiros de Paris foi responsável por uma parte do seu sucesso, no verão,
com a venda das bebidas geladas e frescas que não eram mais reservadas a Versalhes e aos ricos.
Poderíamos multiplicar os exemplos, como a madeira, que atinge todas as utilizações na vida,
das necessidades mais indis-
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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

pensáveis às mais luxuosas. Constatamos uma evolução e uma mobilização comparáveis às duas
extremidades da cadeia da relação produção-consumo, desde os camponeses, defensores dos usos e
costumes, até os grandes negociantes de madeira e os grandes proprietários, encabeçados pelo
Estado monárquico, preocupados com a rentabilidade. O valor desse bem natural não podia ser reduzido
a uma definição econômica, ainda mais que outros valores simbólicos e sensíveis complicavam a relação
do uso do aquecimento e da iluminação doméstica e urbana.
A identificação da produção e do consumo com a oferta e a procura nasceu da reflexão
dos matemáticos políticos do final do século XVII e do início do século XVIII, com William Petty e
Boisguilbert. Esta idéia, reconhecemos, foi mais verificável a longo do que a curto prazo: os economistas
aprenderam a cal- cular as distâncias temporais. Ela está ligada a uma tradição histórica voltada
principalmente para o estudo da produção, portanto da oferta, a partir da história dos preços e de sua
rela- ção com o mercado.5 Ora, nessa relação entre os bens e os pre- ços, o próprio consumo
intervinha por sua vez entre procura e mercado, ela estava no centro das trocas, porque a ordem dos objetos e
das aparências estava no centro de sua construção apresentando uma organização das mercadorias
definidas e hierarquizadas. É preciso também levar em conta o comporta- mento dos consumidores e não
apenas a tendência para a imi- tação, mesmo se esta permanecia essencial na hierarquia dos consumos.6 A
demanda, portanto a estruturação das necessidades, a classifi-
história do consumo deve incluir a análise da
cação dos consumidores, os circuitos de distribuição e a organi- zação espacial da oferta; sobretudo o
pequeno comércio tem um papel que não foi bastante realçado.

Natureza dos bens, relações com objetos


Nos bens naturais e sua transformação pela utilização apa- recem muito cedo o luxo e o
supérfluo. O gelo é seu melhor exemplo, mas a história do banho também é bastante eloqüen- te: dez séculos
sem banho! já dizia Michelet em meados do

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

século XIX. A relação dos homens com os objetos toma aqui um outro sentido. "Os economistas do
século XVIII sentiram confusamente a existência de uma ordem nas necessidades, o que induziu a uma
distinção na natureza dos bens."7
A oposição entre necessidades naturais ou reais e necessida- des de opinião, "comodidade e
luxo", entre necessidades ele- mentares e as de luxo, se não de ostentação, cobria a fronteira móvel entre
níveis de usos e de visibilidade sociais bem diversos. Ela traçava diferentes setores de consumo, mas também de
pro- dução e de distribuição: o do consumo pessoal e útil; o do supér- fluo, "segunda ordem das
necessidades", o do agradável; o da inutilidade, "terceira ordem de necessidades", mas também da justificativa
simbólica e social máxima. O espaço das comodida- des, e mais ainda do luxo, vive-se longe das
necessidades ele- mentares pensemos na vestimenta entra-se a partir de então no universo da
transformação pelo trabalho, do triunfo do valor agregado, sem que a dependência dos recursos naturais
tenha desaparecido. A antiga indústria, a antiga economia do vestuário, o antigo setor do luxo deles
dependiam ao mesmo tempo para suas matérias-primas, para suas transformações, para seu transporte. Mas
ao mesmo tempo, esses bens, cada vez menos primários, orientados para o luxo, representavam um
investimento e um trabalho que estavam ligados. Tanto o traba lho como o dinheiro iam para os recursos
e para as necessidades, porém mais ainda para o que era supérfluo. Os capitais que cir- culavam
eram mais importantes do que os capitais fixos, subli- nhando o papel do negociante que manobrava a
dança do lucro e da acumulação pelo menos até os meados do século XIX.
Com isso, várias questões apareceram ao historiador do consumo desejoso de compreender a
relação entre a oferta e a procura e a escolha dos consumidores. Primeiro, quem contro- lava os circuitos
gozava de uma situação excepcional. No entanto, o caso do empresário criava um problema ao mesmo
tempo econômico e sociológico: a sociedade antiga não reco- nhecia ainda seu verdadeiro lugar, quando
ele já era um agente decisivo de transformação, já que, por sua capacidade de ino- vação e de invenção,
ele seria o ator decisivo da mudança

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

observável na primeira e na segunda metade do século XVIII.8 Segunda questão: o que levaria a
empreender e a investir, e que realizações permitiam a esses empresários se anteciparem a sua
época, imaginarem um resultado? O consumo de todos no setor dos bens de segunda e terceira ordem,
como o dos objetos de necessidade, repousava sobre essa qualificação e sobre a manei- ra pela qual
o empresário adquiria seus instrumentos intelec- tuais. Por fim, de que maneira compreender a
dinâmica do consumo que agia por trás dessas mobilizações produtivas e comerciais? De que
modo compreender a demanda, e o merca- do dela decorrente, além da necessidade, e a maneira como ela
levou à transformação? É preciso buscar as respostas no lado da capacidade de consumir, e
esta, ontem como hoje, encontra sua medida no orçamento dos lares, 10
O consumo já era uma realidade bem antes da revolução industrial e comercial iniciada no século
XVIII. Ele era insepa- rável da dimensão familiar na qual as despesas não se organiza- vam em volta do
indivíduo, agente econômico isolado, e sim do conjunto pais-filhos, essa coletividade dinâmica na qual se
construíam as identidades individuais, principalmente antes da escolaridade ampliada e maciça. Nas
despesas, e, portanto, nas escolhas que caracterizavam a economia do cotidiano, se mes- clavam de
maneira complexa os fatores de socialização, o cul- tural e o antropológico e também o social e o
econômico, o nível de renda e as distâncias entre as rendas, e a representação dos atores. O consumo das
famílias não era apenas o produto dessas condições, era também uma maneira de se definir e de se
comportar, segundo um conjunto de normas de identidades e de conhecimentos, segundo as regras que eram
primeiro de res- ponsabilidade das mães de família. Nas antigas sociedades, os modelos de consumo
não eram apenas ligados às capacidades econômicas, e apenas em parte podemos imputar-lhes os prin-
cípios calculados no século XIX por Engel.11 Na realidade, a variação dos comportamentos de
consumo era inseparável de uma relação com a renda e os costumes familiares cuja dinâmi- ca apoiava-se
ao mesmo tempo sobre a diferenciação e sobre a imitação.

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

Esse ponto é essencial para compreender a evolução do consumo do vestuário até a época
moderna. Dois princípios simultâneos agem nela: o da economia estacionária, cujas apa- rências e regras
estavam fixadas pelas situações sociais – o hábi- to faz o monge, cada um deve consumir segundo sua
classe, argumento central das civilidades desde Erasmo -; o da econo- mia do luxo, em que os práticos e os
exegetas da moda exaltam o desejo de se distinguir dos grupos inferiores - daí a comercia- lização das
necessidades e a construção de novas identidades sociais para o indivíduo. O exemplo permite ver
o que o histo- riador deve esperar de uma releitura das regras da civilização material. É preciso
que ele faça o cruzamento de duas aborda- gens: a da economia e a de sua interpretação, para
compreen- der o funcionamento das sociedades e a relação entre o consu- mo e a produção, e a análise
social e cultural, que leva em conta os imperativos da vida privada e pública, normas que se explicitam nas
escolhas de cultura material.
O final do século XVII e o início do XVIII constituem um momento privilegiado da reflexão. Encontramos
neles as raízes do que surgiria definitivamente graças a Adam Smith, mas principalmente a base
de uma economia analítica, refletida, racional, da qual é testemunha, por exemplo, a obra de
Boisguilbert, que formula a teoria de uma economia de merca- do para a demanda. 12 No contexto
de crise, de guerras, de per- turbações financeiras, de altas de preços contínuas, a constata- ção
de
que "unicamente a abundância do homem não faz a riqueza" impõe a idéia que só o consumo
da população é deci- sivo. Esta é apenas um indicador da relação entre a produção e o consumo da
qual dependem a capacidade de crescimento e de expansão. Três preceitos estavam assim no centro
dos deba- tes da França do Iluminismo: a ruptura com a tradição mercan- tilista e seus dois indícios
privilegiados de prosperidade, moeda e população - a moeda se tornou um meio, a população um teste -; o
fascínio pelo interesse privado, pois o indivíduo, ator da economia, regulava por ele próprio sua
capacidade de esco- Iha; a diferenciação social do consumo, que não tinha um peso

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equivalente segundo os atores e as categorias sociais e que tinham efeitos induzidos não
uniformes.
O consumo dos pobres tinha um rendimento econômico excelente porque com pouco
dinheiro por indivíduo e por famí- lia, ele permitia um relance rápido dos circuitos produtivos e lhes
assegurava a permanência; os consumos maciços, o do pão, o das roupas, tinham uma conseqüência
imediata. Em contrapartida, o consumo dos ricos era mais lento e mais pesa- do e criava o problema
do uso dos bens: encontramos aqui a briga do luxo, que nos leva a uma leitura de economia moral
– a prosperidade de alguns financistas multimilionários não com- pensa o empobrecimento do povinho
sobre o qual ela se esta- belece. O debate foi lançado pelo crescimento urbano e pela fragmentação
social dos consumos dos quais ele era a vitrine. O luxo permanecia assim um problema maior da
sociedade anti- ga, porque as necessidades não eram definidas por relações eco- nômicas puras -
existiriam elas atualmente? - e porque os con- sumos que ele motivava realçavam o funcionamento da
demanda, a qual, aliás, não era uniforme segundo os setores e
os momentos.

A prioridade do setor agrícola tinha um peso que as crises analisadas por C.-E. Labrousse
revelam claramente, mesmo que seu estudo da demanda possa ser ainda aperfeiçoado.13 A
produção e o consumo pela renda, pelo imposto, pelas compras, dependiam de 80% da população.
Quesnay em seu Quadro eco- nômico não se deixa enganar: o produto social do trabalho cam- ponês
cobre por excedente as despesas não econômicas da sociedade; o luxo, a administração, o
exército, a Igreja e a devoção, o prestígio e as artes.

Relação com os objetos, natureza das normas

Na vertente social e cultural, o consumo colocava a ques- tão do aprendizado e de suas regras e da
compreensão das maneiras como elas eram interiorizadas. Em outras palavras, por que certos
comportamentos eram autorizados e encoraja- dos, por que aceitavam - ou não-se conformar a eles? A ques-

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

tão levava a um grande problema filosófico, já que ali estavam em jogo liberdade e sujeição.
O historiador não pode responder a isso simplesmente, ainda mais por ter de levar em conta
uma historiografia que sublinha bastante a dependência, as obrigações da necessidade próprias das
classes populares. É evidente, a sociedade antiga era uma sociedade da escassez; uma outra sociedade
de consu- mos mais fluidos surge bem cedo no mundo das aristocracias, nas cidades, mas se estende
lentamente para os territórios rurais e as classes populares. Decerto minha geração terá sido a última a
observar esse mundo que se afasta rapidamente, à medida que os objetos se tornam mais numerosos, mais
acessí- veis porque mais baratos e com maior mobilidade. Mas, ao mesmo tempo, os quadros sociais da vida
comum se modifica- ram, segundo seu ritmo.
A família estava no centro dessa transformação porque, tanto na cidade como no campo, 14 ela era
a unidade de produ- ção e de consumo. Essa influência da vida familiar manifestou- se de duas
maneiras. Em certos setores, especialmente nas manufaturas, aparecia pontualmente a tendência da
separação do trabalho e da unidade familiar de consumo. Muitas vezes era o mesmo para o artesanato urbano - o
movimento iniciado se aceleraria no século XVIII e mais ainda depois. A época moderna viu a modificação
do sentimento familiar e o desen- volvimento de uma sensibilidade da família, de uma concepção da vida
privada e de novas manifestações do sentimento da infância. O aconchego no nucleus familial, a
importância dada aos valores da intimidade, as diversas relações que se estabele- ceram entre gerações,
os novos modos de expressão das idades da vida, os efeitos diferenciados da idades, tudo o que consti- tuía
os traços originais da relação parental e familiar no Ocidente teve conseqüência sobre o consumo, fosse
ele medi- do no quadro macroeconômico ou no meio microeconômico do lar. O nascimento do íntimo pôde
ser assim o objeto de uma pesquisa sobre o meio ambiente material em Paris a partir da comparação dos valores
da família e dos objetos possuídos, 15 como a cama e o quarto, como a lareira e as panelas.

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

Quais seriam então as normas que constituíam a "ciência dos lares" da economia familiar, as
regras que organizavam o tempo, o espaço e as maneiras próprias do consumo? Do lado da produção, as
grandes obras sobre a economia rural e as casas rústicas, de Charles Estienne em Liger, revelam as
lições de uma agronomia antiga e de uma economia familiar herdada da Antigüidade, apresentada em todos
os seus aspectos;16 do lado do consumo, livros-razão, contas privadas, contas de tutela mostravam
como as estratégias e os estilos particulares da vida doméstica eram o terreno de confronto das regras, dos
conhe- cimentos, dos costumes. A escolarização dos meninos e meni- nas17 tinha também um
papel capital, pois ela nivelava a cultu- ra das meninas com a dos meninos no aprendizado dos conhe-
cimentos elementares - ler, escrever, contar-, mesmo com um atraso cronológico e uma defasagem de
conteúdo; ao mesmo tempo, a escola explicitava e acentuava a definição do trabalho e dos papéis
femininos. Formando boas donas de casa e mães cristãs, esses ensinamentos tiveram uma influência considerá- vel sobre as
condutas do consumo no interior das famílias.

A economia da vida cotidiana estava ligada à autonomiza- ção da vida privada e à maneira como
esta se organizava em relação aos locais, os do trabalho e os do lazer. O artesão urba- no tinha
condutas de consumo específicas conforme ele fosse aprendiz e dependente da família ou do círculo da
profissão, operário e independente, mestre estabelecido contratado para funções representativas.
Jacques-Louis Ménétra, nas três eta- pas de sua vida, deu exemplos em seu diário: o estudo do con-
sumo está ligado a esses diversos meios que não são nem com- pletamente separados nem uniformemente
homogêneos.
Personalidades intervieram para definir o "consumo educa- tivo" como o pedagogo Verdier, que
em 1777 fez essa pergunta em seu Curso de educação: de que maneira formar os alunos destinados às
primeiras profissões e aos primeiros empregos? Verdier tinha consciência de responder a uma nova necessida- de.
Suas preocupações correspondiam às dos médicos e dos boticários que estabeleciam, seguindo o doutor
Tissot, regimes alimentares, "regimes de saúde", adaptados às categorias so-

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

ciais. Em cada caso a família tinha um papel, pois ela se tornara, além de uma associação produtiva unindo
trabalho e vida coti- diana, uma relação econômica e afetiva visando a alimentar, educar as crianças segundo
uma nova divisão das tarefas.18 O objetivo era de compreender melhor de que modo, no estado
estacionário da economia, o crescimento se animava, de que modo ele estava ligado a uma revolução do
consumo, de que modo ele uniformizava as diferenciações sociais sem as suprimir.

ESTABILIDADE E MUDANÇA

Dois fenômenos maiores regulavam a relação produção, popu- lação, consumo: a dependência a
respeito do meio natural e o regime demográfico que tendia à auto-regulamentação para manter o
equilíbrio entre o número de homens e os recursos. A sujeição ao quadro natural devia ser concebida
em certo mode- lo de ambiente técnico, por meio do conjunto das condições de vida, e não como uma
relação determinista. A dimensão ecoló- gica da nossa época contribuiu para essa tendência cujo
objeti- vo é de mostrar a variabilidade da capacidade humana para controlar a natureza. O antigo regime do
consumo se inscrevia assim num modelo de relações estabelecidas com o meio vege- tal, o meio animal e
o conjunto do ecossistema, o solo, as cul- turas, as matas, a água. Ele baseia a adaptação da demografia
nos recursos.

Do quadro geográfico à história rural


Qualquer reflexão sobre a relação entre meio natural, orga- nizações, agricultura e
história da cultura material deve partir da tradição francesa do quadro geográfico19 fundada
por Vidal de La Blache. Sabemos que a França era multiforme com seus quinhentos queijos, com suas
regiões definidas por permanên- cias, com suas pequenas regiões bem diferentes, com seus cam- poneses e
seus trabalhos. Essa visão histórica e física funda a

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

geografia regional. Mas, apesar disso, o Quadro de Vidal de La Blache só retém os traços gerais e
constantes; ele cristaliza o movimento, tanto o da natureza quanto o da história, na pers- pectiva de um
estado atingido, e deixa na sombra uma parte do dinamismo das relações estabelecidas entre sociedades
rurais e meios naturais.20 O quadro regional apaga a influência de outros níveis da realidade espacial
cuja dimensão e função mudaram com o tempo; ele não leva em conta os diferentes degraus a
partir dos quais os indivíduos e os grupos se situam em múltiplas relações: por meio do
loteamento, do campo, da propriedade, da exploração, da região, do arrendamento se organiza a vida
e se enraíza a dimensão ecológica que podemos abordar em diversos níveis. Primeiro o que podemos ver, a
herança das antigas paisagens e sua transformação, tal como podemos ainda ver no final de vários séculos.
Em seguida, a compreensão das flutuações, como a história do clima, que tem seus movimentos
próprios ligados aos das formações vegetais e à sua utilização. Devemos ainda levar em conta as etapas
da intervenção humana, desbravamentos, trabalhos hidráulicos, abandono dos solos, grandes operações de
reflorestamento, isto é, a evolução das paisagens em função da demanda e da trans- formação das
necessidades. Finalmente, devemos nos interro- gar sobre a maneira como os contemporâneos analisavam
a relação entre meio e sociedade rural.
Dessa pesquisa analítica, que é a da História da França rural,21 observaremos alguns traços
que são necessários à com- preensão das bases históricas da civilização material. Por exem- plo, a
concepção do espaço rural associado aos elementos do meio natural organizado para a produção
agrícola, do vegetal ao animal; se o espaço rural se opunha geralmente ao urbano, não era apenas
por estabelecer uma fronteira rígida entre eles mas por sua densidade de ocupação, e principalmente
porque nela apareciam funções diferentes. Desde o século XVIII, Richard Cantillon, em Ensaio sobre a
natureza do comércio em geral (1755), propôs um modelo de funcionamento da econo- mia e da
reprodução das riquezas reais, além da troca. Ele ela- borou uma sociologia econômica baseada na
relação com a

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

terra como fonte de valor, distinguindo os proprietários, os fazendeiros, os assalariados aos quais ele
acrescentou os comer- ciantes e artesãos. Era essa hierarquia que definia a repartição das rendas e a
estrutura da demanda, a própria organização do consumo e da despesa. A cidade comandava a terra
porque detinha o poder territorial e político, impondo modelos de con- sumo. Era ela que afinal
modificava o espaço natural e fazia variar o equilíbrio entre os locais intensivamente explorados e aqueles
que eram mais ou menos organizados, onde a relação era mais discontínua, as florestas e pastos, ou então os
espaços de reserva, intermediários, segundo as fases de ocupação, mas nunca totalmente abandonados.
A relação com o espaço rural visando à satisfação maciça de múltiplas necessidades pela
produção agrícola não podia mais ser concebida de uma maneira determinista. O peso de fatores
naturais variava no tempo e segundo as atitudes agro- técnicas, como mostra uma história geográfica da
videira, soli- damente estudada desde R. Dion até M. Lachiver e G. Garrier.22 Dois grandes fatores de localização
agiram diversa- mente e explicam a evolução de conjunto. O primeiro destes era o papel das cidades e das
estradas que organizavam a demanda e as possibilidades de acesso aos locais de produção. O segundo, as
vias de comunicação e os rios, sem esquecer a cabotagem marítima, que favoreceram a expansão além
dos primeiros limites, fixados havia muito tempo após as invasões pela necessidade religiosa, o trabalho dos
bispos e dos abades viticultores, a glória dos príncipes e o lucro dos comerciantes. O impulso das vinhas
continuou acompanhando o das cidades, bem às suas portas, e a demanda, segundo G. Garrier, sempre
soube se alinhar sobre uma oferta insuficiente.23 Pode parecer artificial aqui se separarmos as cidades dos
campos, na medida em que o proprietário citadino era muitas vezes um viticultor revendendo por toda a
parte sua produção, na medida também em que os vinhedos não eram raros em volta das cidades. Todavia,
certas localizações eram muito dependentes das con- dições naturais e do lugar. A pedologia
retrabalhada, a exposi- ção ao sol e longe dos nevoeiros fixaram os vinhedos sobre

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO
encostas pedregosas de solo ressecado e de preferência voltado para o sul. Os grandes
vinhedos foram desenvolvidos, mas após uma escolha de localizações favoráveis, para responder
às importantes exigências de consumo. Certas implantações desa- pareceram porque mudanças
de gosto, ajudadas pelas condi- ções de transporte, modificaram a capacidade de responder à
demanda. Por exemplo, no século XVII e até o século XIX, os parisienses achavam bebível, se não
delicioso, o vinho de Suresne, vinhete encantador, abandonado como tantas outras safras menores da França
setentrional, que a sede dos citadinos mantinha nos limites de uma capacidade produtiva.

da
Esses abandonos, algumas vezes essas retomadas, recolocam em questão a idéia de estabilidade das regiões e
a da oferta. Certamente, podemos admitir que, até o século XIX, a comuni- dade campestre se
estabilizou e se adaptou às condições naturais e ao contexto técnico que pouco mudara. Como
resultado houve uma permanência das práticas agrárias pouco propícia à modificação. A questão é então
compreender de que modo a mudança pôde se introduzir tanto em uma escala geral quanto em um
nível local e familiar. O desbloqueio, permitido sem dúvi- por uma maior aculturação pela escola e o
encaminhamento das receitas, estava ligado à procura externa, a novos imperati- vos de consumo, à
política das estradas e à instalação dos meios administrativos de um desenclavinhamento de
conjunto.24 Novas produções abriam caminho, como o milho no século XVII, a batata no século XVIII,
e por fim a castanha; todas elas, na opinião dos agrônomos e dos camponeses, contribuíram
diversamente para a mudança da paisagem, mas, também, para a conversão dos regimes alimentares,
modificaram o estilo de cultura material e as relações sociais. Compreender a mudança, renunciar a
uma história imóvel, é tentar decifrar as possibilida- des de adaptação do agrossistema do qual tudo
depende.

Espaços naturais, espaços organizados


A cobertura natural viva, a charneca, a floresta, desempe- nharam nisso um papel
importante. Desde os grandes desbra-

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

vamentos dos séculos XII e XIII, ela foi determinada pelo domí- nio do fogo e pelo estabelecimento
do "mundo pleno". Ela só era atacada por tentativas limitadas e localizadas, mais nume- rosas a partir do
século XVIII. Para a França rural, esse espaço ao mesmo tempo livre e controlado, dominado mas muitas
vezes mágico, desenhara, havia muito tempo, as grandes linhas da paisagem; ali as espécies vegetais e
animais foram seleciona- das, algumas vezes transformadas pela introdução de novas variedades (o
pinheiro, o castanheiro para as florestas), pelo desenvolvimento de faunas específicas (os cervídeos para
as classes aristocráticas).
Do mesmo modo, nesse ecossistema vivo, os lagos e os rios tomaram uma importância considerável. Foi
em ligação com um elemento fundamental da alimentação antiga, que consu- mia muitos peixes de água
doce, que os níveis das águas foram estabelecidos e vigiados. Era uma renda importante da proprie- dade
territorial, da riqueza dos grandes senhorios, eclesiásticos ou leigos. Em certas regiões da França,
como o Dombes, monastérios e comunidades rurais controlavam todo o sistema dos lagos e abasteciam de peixes
as cidades vizinhas.
Nos séculos XVII e XVIII, os princípios gerais da domesti- cação do meio natural foram estabelecidos,
mas a relação dos homens com a natureza não era passiva; era feita da transferên- cia de antigos
elementos vegetais ou animais, da introdução de novos componentes, de diversos reequilíbrios. Às
vezes, isto podia modificar consideravelmente a vida comum dos campo- neses: por
exemplo, as grandes caçadas reais e aristocráticas se desenvolviam em torno de Paris, em parte em
detrimento das regiões dos cerealistas. Uma mudança de equilíbrio num con- junto de práticas pode ter
múltiplas conseqüências. Em termos de consumo, é através do jogo dos recursos disponíveis que as
atitudes e as apropriações devem ser compreendidas.
Atitudes e apropriações eram mais facilmente visíveis no espaço organizado, local de trabalho e
base da vida no campo. A terra, isto é, os solos com sua variedade e seu valor produti- vo reconstruídos
pelos homens, agrupava toda a organização rural, assim como o fato de possuí-la orienta para um
prestígio

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

fundamental a divisão social. Era na relação cotidiana com a gleba que se via a capacidade de
manutenção e de renovação de um universo onde tudo tinha sua importância, gestos e utensílios, práticas e
representações dominadas pelo retorno cíclico das estações, dos trabalhos e dos dias.
No entanto, a valorização da riqueza da terra era limitada pela falta de adubos: não havia
adubos químicos, poucos adu- bos naturais; as faltas e carências de matérias orgânicas favorá- veis ao
aumento de rendimentos só podiam ser compensadas pelo sistema de alqueives que imobilizava o terço
ou a metade das terras produtivas. Os agrônomos se mobilizavam para estender ao conjunto das
regiões os princípios de uma "revolu- ção verde", experimentada no exterior, no norte da Itália, na
Holanda, na Inglaterra, baseada na extensão das plantas forra- geiras. O alqueive resistiu, pois sem ele não
havia gado, sem gado havia ainda menos adubo e sem adubo havia ainda menos rendimentos, já fracos.
Como o trigo, ele era um mal necessário que limitava as superfícies de lucro. Mas o alqueive estava
tam- bém no centro da questão da criação: na relação consumo- produção, era um elemento indispensável
mas que incitava à prudência. A França agrícola do séculos XVII e XVIII não se reduzia às grandes
planícies cerealíferas e aos openfields da França setentrional, que eram o resultado de uma longa
evolu- ção e uma adaptação aos dados naturais sob a pressão de uma demanda urbana aumentada.
Ele era apenas uma das fórmulas de adaptação oferecidas pelo camponês. Em outras regiões, nas
montanhas, na França dos arvoredos, no Midi mediterrâneo, outros sistemas eram usados com regras
ecológicas que os agrô- nomos da época nem sempre compreendiam imediatamente porque não
encontravam sua paisagem familiar e o modelo criado nas grandes planícies cerealíferas a exemplo das
quais eles mediam todas as práticas culturais.
Vemos aqui a importância das variações no domínio do espaço organizado e a necessidade
de compreender segundo que critérios, intelectuais e práticos, os contemporâneos repre- sentavam para si
as relações com o meio ambiente. Entre o ter- ritório do agrônomo e a região dos camponeses, devemos
medir

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

proximidade e distância, distinguir o sentido concreto das representações de sua utilidade ideológica,
comparar as esco- lhas racionais com as possibilidades locais das técnicas e da estrutura social. Seria a
maneira de reconhecer o sentido de uma história da agronomia na época moderna em seu contexto e suas
finalidades.25
As bases naturais da cultura material estavam ligadas a uma constante interação entre produção e
espaço cultivado, Essa relação dependia de um equilíbrio, variável segundo as regiões, entre três
componentes da paisagem: o ager, a sylva e o saltus, para usar a terminologia clássica familiar aos
agrônomos, desde o Humanismo ao Iluminismo. Esses três elementos eram complementares e constituíam um
conjunto que quase não seria modificado até as grandes transformações do século XIX.
A região cultivada podia ser considerada sem anacronismo como uma unidade ecológica; era o
lugar de vida e de existên- cia dos camponeses vinicultores e cerealistas. G. Durand mos- trou de maneira
excepcional de que modo, naquele espaço, graças às idas e vindas cotidianas nos caminhos dos
campos, aos conflitos e acordos sobre os limites, se teciam relações pro- fundas, essenciais para a
compreensão da cultura rural e das atitudes diante da natureza e da possibilidade de intervenção.26 Na "velha
floresta" que limitava a paisagem, outras práticas estavam em uso. Os camponeses se encontravam entre
frontei- ras jurídicas (lembremos do código Colbert e da reforma das florestas) ou fronteiras imaginárias, o
estrangeiro e o estranho encontrando sempre no fundo das matas um interstício de liberdade, a floresta
fornecendo à economia rural todos os materiais habituais. A demanda crescente das cidades e das forjas suscitou então
as interrogações científicas e acadêmicas, como estas suscitavam tumultos.27 A silvicultura pôde se
opor aos costumes, e uma transformação dos hábitos mobilizou as comunidades rurais diante das
novas exigências. Uma feroz competição organizou-se em torno de uma mercadoria neces- sária, rara e
cobiçada, em que se opunham camponeses e pro- prietários, rurais e citadinos, administração e
negociantes, flo- restais e mestres ferreiros: o campo, a cidade, a usina. Nesse

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

momento uma criminalidade específica aparece às vezes para quebrar a tensão criada por novas
práticas, vindas de longe, porque um equilíbrio rompido exige a busca de novas lógicas.
Entre campos e florestas, o saltus era o espaço das pasta- gens, pastos úmidos ganhos sobre o
fundo das campinas ou dos pântanos, prados e charnecas das colinas e montanhas. Para os
camponeses, era uma zona de transição cuja cultura podia ameaçar o equilíbrio geral da economia
local como o refloresta- mento. Era certamente o meio mais instável, mas ele desempe- nhava sua parte,
pois permitia a criação extensiva e oferecia recursos complementares.
Segundo os meios ecológicos, o equilíbrio entre os três ele- mentos era evidentemente diverso. Ele
variava segundo os tipos de controle das comunidades rurais e dos senhorios, segundo as utilizações
coletivas e o pasto natural. Além disso, o espaço pastoril não se confundia completamente com o
saltus; as regiões mediterrâneas, maquis e charnecas davam madeira e capim para as cabras e as
ovelhas; na Bretanha, as charnecas oceânicas e seus juncos entravam no sistema das culturas aco- lhendo a
criação, especialmente a dos cavalos, que o cultivo e o desenvolvimento das pradarias artificiais fariam
desaparecer; nas pastagens da média montanha, era com freqüência a cria- ção que tinha a prioridade;
finalmente, nos altos pastos subsis- tia um meio ambiente original, chave das economias de monta- nha e das
transumâncias. Os pastores tinham um papel espe- cial: eles eram bons intermediários entre as forças
da natureza e as da sociedade; eles atravessavam todos os círculos do espa- ço agrícola; eram ainda um
pouco feiticeiros para seus concida- dãos. Sua imagem mostra também a imbricação de diversas
regiões, até mesmo sua complementaridade, entre planície e montanha.
Esses componentes eram complementares. Exceto nas zonas cerealíferas, eles eram adaptados a
uma economia da policultura que enraizava o camponês na estabilidade e na tra- dição, das quais uma das
bases era a defesa dos costumes comu- nitários. Os homens do século XVIII se conscientizaram ao mesmo tempo
das exigências naturais e históricas e da rigidez

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

que elas traziam consigo. Seria esse sistema agrícola, em que a produtividade era fraca, os limites
técnicos numerosos, em que existia uma forte sensibilidade face a qualquer mudança, a da meteorologia
como a da economia, que seria submetido pouco a pouco a uma forte pressão da demanda.
A Revolução com suas perturbações agrárias iria marcar uma ruptura decisiva porque ela autorizava a
propriedade num sentido privativo e dominial, assim como o concebia a classe burguesa dos proprietários urbanos
conquistadores.28 A Revolução teve como conseqüência o recuo das utilizações coletivas e extensivas do solo,
das zonas intermediárias e flores- tais. Entre a política e o social, o equilíbrio ecológico entrou numa fase de
mudança, porque a relação com as instituições, com o direito e os costumes, já contestada, foi
requestionada. A estabilidade estabelecida pelo controle do senhorio, da comunidade dos habitantes, da paróquia,
se mantinha até então. Era no interior dessas entidades, diversamente represen- tadas sobre o mapa do reino
e mais ou menos ativas, que eram regulamentadas, por intermédio dos arrendamentos, as delibe- rações
e os impostos da colheita, as exigências técnicas e as possibilidades de transformação. O conjunto do sistema
técni- co dependia da relação com as condições naturais e adaptava- se como podia: ele permitia o
ideal do autoconsumo e, em tempo normal, uma comercialização do excedente para o abas- tecimento
citadino que pôde acarretar uma transformação decisiva em certas regiões, como demonstrou J.-M.
Moriceau com relação às fazendas de Île-de-France.29 Ele não foi imedia- tamente adaptável ao
acréscimo populacional que se inscreveu nas curvas demográficas do século XVIII.
Para compreender a possibilidade da mudança nesse con- texto, e de que maneira os dados
principais da relação do con- sumo com a produção puderam se transformar, é preciso levar em
conta duas dimensões concretas, a da auto-regulamentação da população e a da possibilidade de uma
revolução agrícola,30 Os estudos demográficos mostraram que, após um longo perío- do de teto
máximo e com numerosas variações locais, o século XVIII conheceu um período de expansão; o número de
homens

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

aumentou, e também o dos citadinos na maioria vindos dos campos. Foi preciso alimentar a todos. Até então
funcionava aparentemente uma regulamentação homeostática da popula- ção em função das
subsistências. As crises, cujos efeitos foram diversamente interpretados em suas manifestações,
restabele- ceram um equilíbrio. Elas eram fortes quando havia modifica- ção do sistema de cultura,
acréscimo da dependência pela espe- cialização, principalmente cerealífera, e que a ela se juntavam
efeitos econômicos, epidemiológicos, diversamente sofridos segundo a posição social; Labrousse
fez a demonstração desde 1947. Conhecemos agora a capacidade do conjunto agrícola para se
reproduzir, cada uma das crises dando novamente aos jovens uma possibilidade de estabelecimento
sobre os bens liberados pelas mortalidades. Desse modo o equilíbrio ecológi- co mantinha-se, assim
como o edifício agrário inteiro; o auto- consumo de uma massa de pequenos camponeses, pequenos
proprietários, meio independentes, meio assalariados, estava garantido; os grandes proprietários
nobres, eclesiásticos e bur- gueses comercializando uma fração maior da colheita, fazendei- ros e
metalúrgicos, grandes ou pequenos empreiteiros à Cantillon asseguravam uma função intermediária entre
uma procura variável e uma produção dispersa, em todos os pontos heterogênea.
O aumento das análises econômicas e políticas mostra, a partir da primeira metade do
século XVIII, a consciência do pro- blema demográfico. Ela é fruto de uma percepção errônea cujos
vestígios podemos encontrar em Cartas persas e O espírito das leis de Montesquieu, e da qual
podemos hoje compreender os efeitos intelectuais positivos:31 a França dos intelectuais acreditava num
recuo da população. O mundo da administração e da refle- xão social se interrogava sobre a
compreensão dos mecanismos produtivos, como Quesnay no artigo "Homme" da Encyclopédie.
Uma ciência da observação das populações aparece, com um aparato estatístico, pesquisas e
debates,32 que estabelece pouco a pouco a realidade de um crescimento. Os historiadores atuais falam
disso, mesmo se eles divergem sobre as razões e os efeitos desse crescimento – mortalidade, idade no casamento, controle
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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

dá natalidade - que intervêm de maneira diversa. O balanço admitido atribui 22 milhões de


franceses no reino na década de 1720, e 28 milhões no mínimo na década de 1790.
Esse crescimento, que dependia essencialmente da adapta- ção do emprego, deslanchou no
campo diversas formas de frag- mentação das propriedades ou do salário. A formação de gran-
des fazendas podia criar um celeiro de mão-de-obra transfor- mada, as zonas de proto-industralização,
associando produção agrícola e manufatureira, podendo registrar fortes densidades demográficas, como
o mostraram os valencianos, os perche- rões, os flandrenses, a Normandia comandada por Rouen. A
imigração aliviou uma parte da pressão que se deslocava para as cidades mas a mobilidade não freava o
crescimento, ela o man- tinha com seus mecanismos. Ela só tirava dos campos um excesso de população e
devolvia às aldeias uma parte das ren- das que servia para pagar os impostos e dotes, ou a
compra de terras. Por fim, ela introduziu no mundo rural uma visão mais otimista quanto às possibilidades de
expansão, mas também mais aberta às transformações. Segundo os resultados do enca- deamento
dos mecanismos econômicos e demográficos, o cres- cimento vital fez surgir respostas indispensáveis à sua
manuten- ção, em termos de produção e de distribuição. Isto faz parte das interrogações, até hoje
parcialmente sem solução, ligadas ao
consumo.

O debate sobre a revolução agrícola parecia renascer. Mesmo se, incontestavelmente, a expressão
não convém, ela designava um objetivo. A procura, decerto, crescia em quanti- dade e provavelmente
em qualidade. De que maneira a oferta a seguiu em todos os níveis da sociedade? Não se deve buscar a
resposta apenas do lado dos rendimentos cerealíferos, mesmo se estes conheceram altas locais
significativas, mas também na evolução geral do sistema agrário e nos resultados regionais acumulados.
Sem dúvida o aumento da procura de trabalho teve seu papel; o cultivo de novas terras desbravadas
apesar de custos marginais e também o recuo do alqueive, a divulgação de novas plantas, trigo
sarraceno, milho, batata, as apreciadas "petites avancées" de Marc Bloch, isto é, todos os produtos do

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

autoconsumo, mas cuja introdução modificava os antigos equi- líbrios dietéticos, ao mesmo
tempo que eram introduzidas as mudanças nas relações econômicas e sociais. O investimento em
trabalho de jardinagem deu também seus lucros. Nas zonas de proto-industrialização, a fragmentação
das terras e o traba- lho parcial para a fábrica permitiram até uma população aumentada. Por fim, uma
parte do crescimento estava ligada à melhoria da rede das estradas e à circulação favorável à comer-
cialização de produtos agrícolas como os vinhos; isso se viu na Alsácia e no Beaujolais, como por
exemplo os bleds do norte da França, encorajados pelos bons preços, desenvolvendo-se a partir de
1740. Sem transformação técnica maior, uma evolu- ção geral foi certamente iniciada.
Essas mudanças foram acompanhadas de uma reflexão agronômica sobre a ruralidade; ela media
os efeitos, por exem- plo com Lavoisier, sem modificar totalmente os dados técnicos, os quais só
seriam transformados no século XIX. O mundo dos autores organizou-se em "sociedades de agricultura e econo-
mia", expressava-se em periódicos e diários, abria-se ao círculo dos naturalistas e dos químicos, debatia
todos os problemas decorrentes do poder da natureza e do poder dos homens: a falta de cereais, as pragas do
trigo, o equilíbrio do saltus, a cria- ção e a floresta, a penúria da madeira, os modelos culturais ofe- recidos,
o ato de gerir seus bens e a economia social, a agrono- mia inglesa e seus resultados, mostrando que o
gado podia libertar a agricultura da tirania do trigo (esse modelo funcionou na França sem real
substituição, pelo menos regional).
Duas concepções da mudança iriam em breve se opor:33 segundo alguns, ela se fazia pela
introdução no antigo sistema de um novo elemento, uma máquina, um processo, uma produ- ção inédita, em
suma, pelas coisas; segundo outros, era a con- seqüência da transformação das estruturas e da ação dos
homens que mudavam suas práticas. A questão mobilizou pen- sadores de todo o gênero, pois sua resposta
modificava a visão da relação dos homens com as coisas e a aceitação da penúria ou da abundância. O
crescimento que determinava a produção agrícola trazia também o consumo dos bens não agrícolas.

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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

A Para entender as pressões exercidas sobre a oferta de traba- lho e o aumento da população ativa pela
participação das mu- lheres e crianças no trabalho, devemos recolocar os fenômenos de
consumo no quadro familiar e levar em conta a pluralidade das rendas salariais. A despesa da
família pôde aumentar mesmo se os salários não seguiam os preços, e provocar o aumento da demanda global.
O recurso intensivo da troca e a utilização da moeda iniciou as populações rurais no valor de troca,
ampliou o gosto pelas novidades. Novos consumos podiam se espalhar numa sociedade em que cada
vez mais se opunham ricos e pobres, mas em que se afirmava uma hierar- quia aberta de rendas
desiguais. Desse modo, a necessidade das subsistências deve ser relativada e a especificidade dos
compor- tamentos de consumo mais bem entendida. "As relações entre gerações, estilo de vida,
dependências étnicas e culturais esta- vam na origem das formas de solidariedade que não se sobrepu-
nham àquelas que se baseiam nas relações de produção. É nessa perspectiva que o estudo dos
modelos de consumo é decisivo: ele pode nos permitir compreender sobre que palcos sociais a inveja, a
imitação e o conflito são representados.34
As fronteiras da produção estavam mudando, mobilizando um desejo de saber, uma atenção
que se deslocava do exterior, espaço onde reinava o mercantilismo, para o interior, meio onde o papel dos
consumidores mais numerosos e mais diversi- ficados questionava um sistema de equilíbrio antigo. O
próprio consumo interrogava os quadros morais e intelectuais das prá- ticas antigas baseadas na
penúria e na estabilidade. Na França, a mais fluida e móvel das regiões, a experiência começara
havia muito tempo.
A respeito do setor camponês, podemos retomar as conclu- sões encontradas para a Alsácia por J.-M.
Boehler:35 nem take- off revolucionário nem história imóvel, e sim uma agricultura que se situava entre
a tradição e a inovação. Não convinha mais opor a área produtiva arcaica, anatematizada pelos refor-
madores, à agricultura esclarecida, digna de elogios mas incom- preendida pela massa camponesa. A
modernidade insinuou-se por toda a parte, inclusive na pequena cultura. Ela forneceu a

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O QUADRO NATURAL E O QUADRO HUMANO

uma maioria dos camponeses sem recursos suplementares pro- dutos de substituição e, na falta
destes, melhorias na produção global pelo trabalho de todos. Os enbasamentos materiais, os
aspectos técnicos inseparáveis do contexto social explicam uma luta pela sobrevivência, e a coexistência,
em diversos níveis, de métodos novos e tradicionais. Os elementos princi- pais do ecossistema, a madeira, a
água, o solo, foram então uti lizados tanto para o consumo dos camponeses quanto para a venda
externa, divididos de maneira variada entre o autocon- sumo e o mercado; o camponês de Auvergne visava à auto-
suficiência pela policultura e corte das árvores, o vinhateiro do Beaujolais ou do Bordelais entrava na
comercialização, assim como por sua vez o fazendeiro de Île-de-France.
A geografia econômica da França revelada pelo estudo dos arquivos do maximum por
ocasião da Revolução mostra a extrema diversificação dos artigos de consumo habitual e a extensão
das áreas de venda das produções em 1793-1794.36 Descobrimos um comércio mais aberto do que se
podia esperar, mesmo nos distritos rurais bastante encravados, e uma produ- ção muito heterogênea em suas
qualidades e definições; em resumo, o quadro "do que se vende geralmente". O encrava- mento regional
foi perdendo terreno: se as áreas de abasteci- mento variavam muito em extensão e intensidade, poucas eram as
completamente autônomas.37 Paris dominava facil- mente, mas por toda a parte a diversidade dos
produtos consu- midos passava pela filtragem urbana em função de uma racio- nalidade de
abastecimento parcialmente nacional e fortemen- te regional. A difusão dos produtos comercializados e
taxados durante a Revolução permite ver o encontro das lógicas da oferta num setor de mercado com
as da procura vindas da geo- grafia dos gostos e das escolhas, que não podiam ser completa- mente
superpostas. Bens locais e bens nacionais compartilha- vam os mercados de trocas segundo linhas de
influência e de força variáveis. Se têxteis, quinquilharias, especiarias e drogas coloniais circulavam por
toda a França, os produtos alimenta- res de base - vinhos, óleos, sal – tinham menor divulgação comercial.
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HISTÓRIA DAS COISAS BANAIS

A partir do final do século XVIII, a cartografia do maximum revelava as forças produtivas do


país, as desigualdades do de- senvolvimento e do comércio, mas também revelava uma geo- grafia regional
e nacional dos consumos: nos dois casos já apa- reciam vencedores Paris e o norte da França, onde a
diferença cidade-campo se expressava vigorosamente pelo número de locais de abastecimento e pela
diversidade dos produtos à venda.
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