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Cultura Clássica Latina

Prof.ª Inês de Ornellas e Castro (email: mce.castelbranco@fcsh.unl.pt)

Avaliações:
 Participação nas aulas + trabalho de casa (30%)
 Duas frequências (65%) – 30/03 e 18/05
 Assiduidade (5%)

Apresentação individual (13/05)


 10 minutos
 Pode ser acompanhada por um pequeno PowerPoint
 Tema: Prandium
1. Almoço
2. Refeição entre o jentaculum e a cena

Frase do dia: Vivere est cogitare – Cícero, Tusc. (Tusculanae disputationes), 5,


38, 111 (“viver é pensar”)

Conceitos
-Cultura:
o etimologia: verbo colo, colo is, ere, colui, cultum
o relaciona-se com a palavra colono, alguém a quem é dada uma terra para ser
cultivada (e, mais tarde, povoada)
o Colere -agros (campos); -litteras (letras); -amicitiam (amizades)
o O homem cultiva-se – sese excolere ad Inumanitatem (Cícero)
o Humanitas – o que torna o homem um homem; a preocupação (do próprio
homem) com o homem (=filantropia); ação pela qual um homem se torna
verdadeiramente homem (=educação)
o Renascimento – conceito de cultura animi tem como instrumento as litterae
humaniores ou humanitates, sobretudo as greco-latinas
o No sentido atual, aplicado à história e às sociedades humanas, o vocábulo
“cultura” é cunhado em língua alemã (c. 1850)
o As culturas são seres vivos, nascem, crescem, envelhecem e desaparecem na
civilização. Distinguem-se pelo seu vínculo substancial ou primário que as torna
irrepetíveis e intransmissíveis na sua identidade; é a matriz ou mónada (=
átomo formal) dominante que confere unidade e coesão a um todo
o A cultura clássica (ou Apolínea) é uma das nove grandes culturas da
humanidade

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-Civilização:
o etimologia: ciuilis, ciuis (cidadão/civil => homem livre)
o o civil é o que sabe viver em comunidade e a ação de se tornar civil surge em
três aceções:
1) viver em comunidade, em convívio social
2) viver em cidade (ciuitas) em oposição ao campo
3) o modo de viver do homem polido pela cultura, distinto do bárbaro
o No séc. XVIII o termo fixa-se com sentido de formação do homem (cf. Bildung),
entra para o Dicionário da Academia Francesa em 1798
o Quando usado no plural tem um sentido etnográfico (“civilizações dos
selvagens”)
o O conceito de civilização, em sentido global, envolve seis fatores:
1. a geografia;
2. a técnica, a arte de dominar a natureza;
3. a organização social desde a família à cidade, da cidade ao império;
4. a cultura propriamente dita com as suas conceções de Vida e do
Mundo, expressas através de ideias, estilos, comportamentos, etc.
manifestados na arte, literaturas, filosofia, religião, normas jurídicas
5. a dinâmica interna – o modo de reagir e de interagir com estes
elementos de forma a construírem uma história ou um conjunto de (…)
6. (…)

-Clássico:
o etimologia: adjetivo classicus – surge pela primeira vez em Aulo-Gélio (retor
latino, II d.C.)
o classicus adsiduusque aliquis scriptor, non proletarius (19, 8, 15) [um certo
escritor clássico e permanente, não proletário]
o etimologia: classis – classe, armada, frota; na Monarquia os cidadãos estavam
divididos em 5 classes
o Quintilianos, nas Instutio oratoria (95 d.C) usa a expressão “classem ducere”
[estar à frente na sala de aula]  o autor clássico seria o excelente e modelar,
usado na sala de aula
o Renascimento – os humanistas consideram clássico o modelo greco-latino.
Nesta aceção modelar, o conceito remonta aos filólogos e gramáticos gregos
que organizam cânones ou catálogos de autores por ordem de excelência em
cada género literário. (ex: Cânone de Alexandria: épicos, jâmbicos, trágicos,
cómicos (comédia Antiga, Média, Nova), elegíacas, líricos, historiadores,
oradores). O termo classicismo, todavia, surge no séc. XVIII
o Hoje em dia tem dois sentidos: temporal (remetendo para a época que vai
desde Homero até ao fim do Império Romano Ocidental (476 d.C.) ou até ao
encerramento da Academia Platónica de Atenas por Justiniano (529 d.C.)) e
ideal (designa um autor de excelência)

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Cultura e civilização
São conceitos que se podem unir, mas devem ser distintos:
- partem do mesmo sujeito (o homem como ser social)
- referem-se aos mesmo objetos (os objetos têm um conteúdo cultural)
- visam o bem do homem
- mas distinguem-se:
 a cultura é do domínio do ser e assenta no sentido da transcendência
 a civilização é do domínio do ter e assenta no sentido da imanência

Frase do dia: Mens agitat molem - Virgílio, Aen. (Eneida) 6,727 (a mente agita a
matéria)

I. A Civilização Romana: organização e mediação


1. Enquadramento geográfico e histórico

A civilização Romana: organização e mediação


É na zona oriental do mediterrâneo que surgem e se desenvolvem as principais (e
maiores) civilizações da Antiguidade:
 Suméria  Síria
 Egípcia  Micénica
 Acádico-babilónica  Medo-persa
 Acádico-assírio-babilónica  Grega
 Egeo-cretense  Romana
 Hititia

(Monumento = o que deve ser lembrado)

As grandes culturas mediterrâneas nascidas na pré-história (anteriores à escrita)


desenvolvem-se, depois, graças a uma minoria letrada. Apresentam uma conceção
estática e vertical do espaço cósmico (a terra é imóvel e ocupa o centro) e humano
(quadros sociais e religiosos hierarquizados com escol dominante) e, em conexão, uma
conceção cíclica do tempo (o eterno retorno ao idêntico). A unidade destas culturas
deriva do espaço comum (Mediterrâneo) e, segundo alguns autores, da comunidade
suméria da origem, que transmitiu sistemas culturais.

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Denominadores comuns: centro
A ideia de centro (filiada na noção de espaço): o centro do universo, da cidade, do lar.
Em cada centro há um ponto de encontro de três somas cósmicas: -Céu – terra –
subterrâneo invisível.
Quem esta no Céu? -os deuses (os Superi)
Quem está na terra? -o homem (mortal)
Quem está no subterrâneo invisível? -os mortos (os Infernos, os que estão no inferior)

*nota #1: superi designa a totalidade dos deuses


*nota #2: Infernos apenas designa a parte/zona inferior

Há a crença de que o centro une estas três zonas cósmicas.


O Mundus era o fosso em torno do qual a cidade estava fundada e que unia a terra ao
subterrâneo. Uma vez por ano, o fosso era aberto para que as almas (os Lemures, ou
entes queridos) pudessem vir à terra.
*nota #3: Há cidades que nasceram de acampamentos romanos, primeiro temporários e
depois permanentes.

O pater familias exerce a função de sacerdote do lar.

Denominadores comuns: história; politeísmo


O sentido de história com a sua perceção de tempo, de idade e de gerações.
As genealogias dos reis, as narrativas que pretendem unir os povos às festas divinas e
mesmo à origem do mundo.
O politeísmo mediterrâneo sob a égide de um deus Supremo. (cf. Zeus ou Júpiter
“primus inter pares”, ou seja, o primeiro entre os seus pares) (Júpiter significa deus pai)
Sendo as civilizações agrárias, instituem-se cultos públicos de fecundidade que visitam
a renovação anual da Natureza e do Cosmos, como o culto generalizado da Grande
Deusa, a Magna Mater (com múltiplos epítetos, atributos e funções).

Denominadores comuns: as conceções e práticas de magia


etim. Persa magus  Grego mageia  Latim magia
Conceito: crença de que o homem pode dominar as forças da natureza pela palavra
e/ou pelo gesto e captá-las em seu proveito e afastar as forças nocivas. Está presente

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nos organismos públicos e nos seus ministros com importância social e política:
oráculos, sacerdotes, arúspices, adivinhos, pitonisas, sibilas.
No mundo romano, organizado por um povo de técnicos e de homens de ação, a
magia, uma influência dos Etruscos, reveste-se da maior importância.

Formas de magia (Vide Sjoberg, The preindustrial City, pp. 276-282)


Protetora – conservação da ordem natural e equilíbrio social por afastamento de
elementos nocivos (divindades ou forças do mal);
Restauradora – restauração dessa ordem ou desse equilíbrio caso ocorra calamidade
pública (fome, peste, guerra, etc.)
Previsora – predição do futuro e previsão de termos favoráveis

Denominadores comuns: a cidade


A cidade é sempre o centro da organização política, social, económica, cultural, ainda
que 90% da população da Antiguidade viva nos meios rurais. Há sempre uma
identificação do cidadão com a cidade (ex.: Apolónio de Rodes, Clemente de
Alexandria, Demétrio de Falero).

A cidade é um espaço de paz e dos vivos. Os mortos são enterrados fora da cidade (as
catacumbas remontam aos primórdios de Roma).
A cidade dos mortos tinha o nome Necrópole, a dos vivos era a Polis.
*nota #4: quase não há cidadãos romanos (as mulheres não eram nunca consideradas cidadãs,
quem vivia no campo, ou seja, fora da cidade, também não era considerado um cidadão; ainda
assim, os romanos identificavam-se coma cidade mais próxima de onde tinham nascido (ex:
Apolónio de Rodes, Clemente de Alexandria, Demétrio de Falero) e isso era um motivo de
orgulho).

14 seculos de civilização: o papel da organização e da mediação


Organização- permitiu o imperium orbis terrarum, i.e., o estabelecimento do domínio
de Roma litoral mediterrânico: os territórios limítrofes e o próprio mar. (por isso
chamam a esse espaço Mare Nostrum)
O mediterrâneo compreendia aquilo que o Romano considerava ser o mundo
conhecido. De que se reveste a organização: génio jurídico e administrativo ímpar.
Manifesta-se e sintetiza-se em 4 conceitos: imperium, pronuncia, potestas e maiestas.

*nota #5: Mediterrâneo significa “no meio das terras”, visto que se encontrava no
meio de todas as terras conhecidas pelos romanos.

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Mare Nostrum: um modelo de globalização em torno do Mediterrâneo
Roma domina todas as terras do Mediterrâneo, denominando o território de Mare
Nostrum. O Mar Tirreno foi o primeiro mar que esteve sob o domínio romano. Até ao
ano 30 a.C. o Mare Nostrum era sinónimo de Mar Tirreno, porque era uma área dos
Etruscos.

A mediação
Assimilação e Transmissão de um legado de diversos povos (colonizados e aliados),
sobretudo Gregos.
Assimilação de um vasto e fecundo legado de costumes, leis, instituições, artes,
técnicas, ideias, mas também a grande capacidade de o transmitir no tempo: o Latim é
ainda base de metade do pensamento humano ocidental (léxico); vários suportes
civilizacionais no direito positivo, nas artes e na literatura.

TPC: ler algo sobre a formação de Roma e as lendas que lhe estão associadas
Data (proposta) da formação de Roma: 21 de abril de 753 a.C.
Por muito tempo postulou-se que os verdadeiros fundadores da cidade propriamente
dita teriam sido os etruscos que se instalaram na região no século VI a.C., no entanto,
evidências arqueológicas recentemente descobertas questionam a veracidade desta
afirmação.
Na Eneida de Virgílio e na Ab Urbe condita libri de Tito Lívio, Eneias, filho da
deusa Vénus, foge de Tróia com seu pai Anquises, seu filho Ascânio (Iulo), e os
sobreviventes da cidade. Com estes realiza diversas peregrinações que o levam, por
fim, ao Lácio, na península Itálica, onde é recebido pelo rei local, Latino, que oferece a
mão de sua filha, Lavínia. Isto provoca a fúria do rei dos rútulos, Turno, um poderoso
monarca itálico que se havia interessado por ela. Uma terrível guerra entre as
populações da península eclode e, como resultado, Turno é morto. Eneias, agora
casado, funda a cidade de Lavínio em homenagem à sua esposa. Seu
filho Ascânio governa na cidade por trinta anos até que resolve mudar-se e fundar sua
própria cidade, Alba Longa.
Cerca de 400 anos depois, o filho e legítimo herdeiro do décimo-segundo rei de Alba
Longa, Numitor, é deposto por um estratagema do seu irmão Amúlio. Para garantir o
trono, Amúlio assassina os descendentes varões de Numitor e obriga a sua
sobrinha Reia Sílvia a tornar-se vestal (sacerdotisa virgem, consagrada à deusa Vesta),
no entanto esta engravida do deus Marte e desta união foram gerados os irmãos
Rómulo e Remo (nascidos em março de 771 a.C.). Como punição, Amúlio prende Reia
num calabouço e manda jogar os seus filhos no rio Tibre. Como por um milagre, o
cesto onde estavam as crianças acaba atolando-se numa das margens do rio no sopé
do monte Palatino, onde são encontrados por uma loba que os amamenta; perto das
crianças estava um pica-pau, ave sagrada para os latinos e para o deus Marte, que os

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protege. Tempos depois, um pastor de ovelhas chamado Fáustulo encontra os
meninos próximo à Figueira Ruminal (Ficus Ruminalis), na entrada de uma caverna
chamada Lupercal. Ele os recolhe e leva para sua casa, onde são criados por sua
mulher Aca Larência.
Rômulo e Remo crescem junto dos pastores da região praticando caça, corrida e
exercícios físicos; saqueavam as caravanas que passavam pela região à procura de
espólio. Em um dos assaltos, Remo é capturado e levado para Alba Longa. Fáustulo,
então, revela a Rômulo a história de sua origem. Este parte para a cidade de seus
antepassados, liberta seu irmão, mata Amúlio, devolve Numitor ao trono e dá à sua
mãe todas as honrarias que lhe eram devidas. Ao perceber que não teriam futuro na
cidade, os gêmeos decidem partir, junto com todos os indesejáveis, para então fundar
uma nova cidade no local onde foram abandonados. Rômulo queria chamá-la Roma e
edificá-la no Palatino, enquanto Remo desejava nomeá-la Remora e fundá-la sobre
o Aventino. Como forma de decidir foi estabelecido que se deveria indicar, através
dos auspícios, quem seria escolhido para dar o nome à nova cidade e reinar depois da
fundação. Isto gerou divergência entre os espectadores e uma acirrada discussão entre
os irmãos, que terminou com a morte de Remo.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Funda%C3%A7%C3%A3o_de_Roma#Lenda)

Frase do dia: Roma caput mundi regit orbis frena rotundi, Inscrição na coroa de
Diocleciano (Imp.b284-305 d.C.) [Roma capital do mundo dirige as rédeas do
orbe redondo]

1.1 A formação de Roma e a Monarquia Romana


A península Itálica é habitada por povos provenientes de diferentes vagas indo-
europeias, dos quais, ao centro, os Latinos, os Rútulos, os Volscos, os Sabinos e, ao sul,
na denominada Magna Grécia, os gregos. Os etruscos não eram indoeuropeus.
Os Etruscos chegaram à península, atravessando o território norte da mesma, por
volta de 100 a.C. Começaram por ocupar uma parte norte e centro da península, mas
gradualmente foram perdendo território a norte para os Gauleses, e no século VIII
ocupavam a região entre o Rio Arno e o Rio Tibre. Sendo assim, os etruscos,
rechaçados no século VIII pelos Gauleses para sul, estabeleceram-se na Etrúria, uma
região de lagos vulcânicos.
Por sua vez, os Gregos calcídicos e peloponésios chegaram à península via mar, no
século VIII a.C. Fixaram-se nas zonas litorais do sul da península, desde a zona de
Campânia (Cápua, Cumas e Nápoles), toda a parte meridional e ainda a Sicília – a
chamada Magna Grécia. Esta preferência devia-se à importância das trocas comerciais
realizadas por este povo, por via marítima.
Os etruscos e os gregos tiveram grande influência na civilização romana.

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A sul os Latinos (designação linguística), Rútulos (Ardea), Volscos (Ância e Terracina),
Sabinos.
Os Latinos ocupavam o território a sul da Etrúria, até à Campânia e o seu nome
advinha da sua língua, o Latim.
Perto da zona onde viria a ser fundada Roma, habitavam os Rútulos cuja capital era
Árdea, os Volscos, território onde se encontravam cidades como Âncio (capital) e
Terracina, e os Sabinos, entre outros.
Roma foi fundada numa zona pantanosa e com colinas, junto ao Rio Tibre, a cerca de
30 quilómetros do Mar Tirreno. Apesar de parecer uma zona inóspita e pouco propícia
à fundação de uma cidade por estas características, mais tarde, Cícero diria que a sua
localização interior apresentava duas vantagens face a uma localização litoral: por um
lado, estava menos exposta a ataques e era mais fácil de defender, por outro, não
estava tão sujeita a influências estrangeiras, o que permitia proteger os valores e
virtudes da sua cultura, tão importantes para os Romanos.
O rio e a costa foram pontos a favor para o estabelecimento de Roma. O rio fazia
ligação com a rota do Sal. As zonas junto ao mar eram muito propícias a influências
estrangeiras vantajosas.

As origens segundo os Romanos: 753 a.C.


Os historiadores romanos republicanos do principado atribuem várias datas a
fundação da cidade, no intervalo entre 758-728 a.C.:
 Censorino: 758 a.C.
 Marco Terêncio Varrão: 753 a.C.
 Fastos Capitolinos do Arco de Augusto: 752 a.C.
 Dioniso de Halicarnasso: 751 a.C.
 Quinto Fábio Pictor (autor da 1ª história de Roma): 748 a.C.
 Lúcio Cínico Alimento e Solino: 728 a.C., ano da décima-segunda olimpíada
Dia: 21 de abril, data do festival das Parílias, em honra de Pales, a deusa da pastorícia.
Posteriormente Tito Lívio, Ovídio, Virgílio, Plutarco e Dioniso de Halicarnasso
aprimoraram a mitografia (representações sobre o primeiro tempo) sobre as origens.

Roma: as sete colinas


Durante dois séculos, a partir do seculo VIII, é uma pequena aldeia que reúne
habitantes das 7 colinas vizinhas:
Palatino: Roma quadrata, onde a arqueologia confirma a construção de uma cabana;
Quirinal: seria a 2ª colina em importância pela mítica fusão de 2 comunidades, latina e
sabina sob a diarquia de Rómulo e Tito Tácio (cf. Tito Lívio I.13.4 refere Roma como
geminata urbs [a cidade dupla]; Capitólio (com templo de 650-600 a.C.); Aventino;

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Esquilino; Viminal e Célio. (trata-se apenas de uma lenda/um mito, não está
corroborado)
No vale comum às comunidades fica o fórum (etim. “o que está de fora”)

Cabana do Palatino (4,90m x 3,60m) com o fogo do lar ao centro, do seculo VII a.C.,
com buracos de estacas e urna cineraria em terracota de VIII a.C. (cultura vilanovence).
Os contributos da arqueologia no Palatino fazem datar a fundação para c. 725 a.C.

Contributos das Lendas


1. Rómulo e Remo: mito da fundação

-Porquê a loba?
A loba é também o animal associado ao deus Marte, pai de Rómulo e Remo. A loba é
denominada de loba capitolina por ter sido encontrada no Capitólio. Pensa-se que a
loba seja etrusca.

Genealogia dos gémeos


1. Anquises + Vénus  plano divino
2. Ligação ao Lácio  Lavínia + Eneias antepassados troianos
3. Ascânio (filho de Eneias e de Creúsa); funda Alba Longa ligação de Roma ao
Mediterrâneo Oriental
4. Reis de Alba Longa (400 anos)
5. Numitor, o 13º rei, é afastado pelo irmão Amúlio
6. Reia Sílvia (Vestal) + Marte  plano divino
7. Rómulo (fundador de Roma) e Remo

Os romanos têm a necessidade de vincular a génese da sua família a figuras que


remontam a um passado bastante culto e de grande valor, de civilizações que eles
admiravam, os gregos.

Factos e costumes associados às origens


 Loba- símbolo de Marte
 Ato de fundação tirado à sorte – augurium, costume etrusco (observar
pássaros)
 Traço da comunidade – Rómulo traça a Roma quadrata – ritual estrusco ktisis
 Povoamento – a partir de um asylum no Capitólio
 Rómulo cria um Senado e divide a população em 30 cúrias e dá-lhes leis.
 Influência etrusca é religiosa, política e jurídica: sacerdócios e rituais;
organização política e além disso, deixam marcas na arquitetura e na arte da
escultura em bronze.
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A monarquia: os reis latinos e etruscos
Roma teria sido governada por 7 reis, o mesmo número de colinas, após Rómulo, há 6
reis:
 Numa Pompílio (sabino) – pacífico, cria classes sacerdotais
 Túlio Hostílio (latino) – belicoso, destrói Alba Longa
 Anco Márcio (sabino) – estende o território até à costa e funda o porto de Ostia
 podem ser personagens históricas ficcionadas

Reis Etruscos (616-510 a.C.)*:


 Tarquínio Prisco casado com Tanaquil – amplia o Senado e subjuga os Latinos
 Sérvio Túlio de origem modesta – demarca o perímetro de Roma, divide a
população em 4 tribos e cria 5 classes censitárias
 Tarquínio, o Soberbo – termina drenagem do forum com o escoamento pela
cloaca maxima, expulso em 509 a.C. após o filho ter ultrajado Lucrécia

*nota #1: os reis etruscos conseguiam chegar à posição de reis porque conquistaram Roma
entre 615-510 a.C.

2. O rapto das Sabinas: o crescimento de Roma


O rapto das sabinas é um rapto associado ao crescimento de Roma. Originalmente,
Roma era um espaço masculino (não havia mulheres) e, por isso, recorrem ao rapto
das sabinas.
Os romanos convidam os sabinos (e as suas famílias) para uns jogos, os jogos da
Consualia, em honra ao deus Consus (deus dos cereais). Durante os jogos, os romanos
saltam sobre as famílias dos sabinos e roubam-lhes as filhas (mas não as mulheres, ou
seja, raptam apenas raparigas puras).
Mais tarde, os sabinos retornam a Roma, desta vez armados (uma vez que não eram
permitidas armas dentro de Roma e, para além disso, os sabinos, quando foram aos
jogos, não foram armados). No entanto, por esta altura já as sabinas estavam casadas
com os romanos e tinham filhos. Sendo assim, estas colocam-se no meio dos dois
exércitos e pedem paz, travando assim a guerra.
A mulher romana é sempre, portanto, por excelência, a mulher pura. O casamento
representa simbolicamente o rapto da mulher.
O papel da mulher romana passa pelo estatuto de mãe (de procriadora), de
mediadora. No entanto, apesar de ser vista como algo importante, as mulheres não
têm nunca o estatuto de cidadão, pois são encaradas como um bem da família (como

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se vê na lenda do rapto das Sabinas, que simboliza a apropriação da mulher pelo
Estado).

3. A lenda de Lucrécia: o fim do poder etrusco e o início da Respublica


Lucrécia, mulher de Colatino, depois de ultrajada por Sexto Tarquínio, chama o pai e o
marido e suicida-se à frente deles, invocando o pudor.

O que era o pudor para uma mulher romana?


A função da mulher na sociedade era dar filhos ao seu marido, para assim assegurar a
linhagem de sangue não corrompido. Os romanos acreditavam que quando uma
mulher era ultrajada, o seu sangue ficava para sempre conspurcado e corrompido. De
facto, os romanos acreditavam que o corpo da mulher e o seu sangue seriam mais
frágeis e que até o vinho corromperia a sua pureza.
Por este motivo Lucrécia se suicida invocando o pudor: desta forma garantia que a
linhagem de Colatino continuaria pura (caso ele voltasse a casar) e que não haveria
descendentes com marcas do violador.
Bruto, amigo de Colatino, faz um discurso no forum perante o cadáver exposto de
Lucrécia, levando assim os latinos à revolta que expulsa os etruscos. Bruto e Colatino
tornar-se-ão os primeiros cônsules de Roma. De um ponto de vista particular, esta é
uma história familiar, mas, de um ponto de vista mais geral, esta é a história de um
povo.
Lucrécia, torna-se, portanto, um exemplo para as mulheres romanas, representando o
ideal feminino de uma verdadeira uniuira (mulher de um só homem). É também
fiadora (o fazer a roupa e o fazer dos tecidos eram trabalhos difíceis e, por isso, fiar era
considerado um trabalho muito importante) e o seu trabalho doméstico é de
excelência. Lucrécia era também mater, ou seja, mãe, daí a importância de manter as
sua gens intacta.

TPC: ler as lendas de Horácio Cocles, Múcio Cévola, Clélia, Coriolano


Públio Horácio Cocles (em latim: Horatius Cocles) foi um oficial militar romano do século
VI a.C. Cocles significa "com um olho só". Segundo a lenda, defendeu sozinho a ponte
que levava à cidade de Roma, impedindo que fosse tomada pelos etruscos liderados
por Porsena. Era sobrinho de Marco Horácio Púlvilo, que foi cônsul em 509 a.C. Os dois
descendiam dos três irmãos Horácios.
Horácio Cocles aparece na tradição romana na guerra que opôs o rei etrusco Porsena à
República romana que nascia, dirigida por dois magistrados, os cônsules. Porsena
decidiu marchar sobre Roma para restabelecer Tarquínio, o Soberbo, no trono e
restaurar a monarquia.
Em 508 a.C., os etruscos de Porsena tomaram de assalto o Janículo, onde o
cônsul Públio Valério Publícola instalara setecentos colonos para deter o rei etrusco e
ameaçaram Roma diretamente. O cônsul saiu com seu exército para socorrer os

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colonos e teve de enfrentar tropas mais numerosas. Como Publícola e o outro cônsul
foram feridos, a maioria dos soldados romanos fugiu e se refugiou na cidade.
Horácio Cocles conseguiu deter o avanço dos etruscos enquanto seus companheiros
demoliam a ponte Sublício para impedir que o inimigo atravessasse o rio Tibre. Ao seu
lado combateram dois futuros cônsules, Espúrio Lárcio Flavo e Tito Hermínio Aquilino.
Quando faltava destruir apenas uma pequena parte da ponte, ordenou que eles se
pusessem a salvo na cidade, enquanto ele permaneceu combatendo sozinho na outra
margem do rio. Ao ver que a demolição estava quase no fim, ordenou que
derrubassem a ponte, atirou-se no Tibre com sua armadura e se afogou,
segundo Políbio. Mas, segundo Tito Lívio, conseguiu atravessar o rio a nado e juntou-se
a seus companheiros sem sofrer dano algum.
O Estado recompensou seu ato de bravura erigindo sua estátua no Comitium e dando-
lhe um terreno do tamanho que ele pudesse fazer a volta em um dia com o arado. Os
habitantes de Roma lhe manifestaram seu reconhecimento e se associaram às honras
oficiais. Apesar da escassez por causa da guerra, cada família separou e deu a ele o que
foi possível de suas provisões.
Segundo Dionísio de Halicarnasso, um dos ferimentos que ele recebeu ao defender a
ponte Sublício o tornou manco, e este foi o motivo pelo qual, apesar de sua grande
bravura, nunca ocupou nenhum cargo militar, e muito menos o consulado. De acordo
com a lenda romana, o ato de heroísmo de Horácio Cocles, seguido pelos de Caio
Múcio Cévola e Clélia, impressionaram tanto Porsena que ele desistiu do seu projeto
de invadir Roma.
Caio Múcio Cévola (em latim: Gaius Mucius Scaevola) foi um jovem romano antigo e
herói da guerra de Roma contra Lars Porsena, o rei de Clúsio, em 508 a.C., o segundo
ano da nascente República Romana. Protagonista de uma famosa lenda, é notório por
sua bravura.
Logo depois da fundação da República Romana, Roma se viu rapidamente sob a
ameaça etrusca representada pelo rei de Clúsio, Lar Porsena, que marchou contra os
romanos para tentar repor no trono Tarquínio Soberbo, que havia sido expulso no ano
anterior. Depois de rechaçar um primeiro ataque, os romanos se refugiaram atrás das
muralhas da cidade e Porsena iniciou seu famoso cerco, instalando seu acampamento
na margem do Tibre. Conforme o cerco se prolongou, a fome começou a assolar a
população romana e Múcio, um jovem patrício, decidiu se oferecer para invadir
sorrateiramente o acampamento inimigo para assassinar Porsena. Para evitar que
fosse tomado por um desertor, Múcio apresentou seu caso ao Senado Romano.
Disfarçado, Múcio invadiu o acampamento inimigo e se aproximou de uma multidão
que se apinhava na frente do tribunal de Porsena. Porém, como ele nunca tinha visto o
rei, ele se equivoca e assassina uma pessoa diferente. Segundo Lívio e Dionísio, um
secretário do rei, segundo Plutarco, Vítor e Floro, um funcionário.
Imediatamente preso, foi levado perante o rei, que o interrogou. Longe de se
intimidar, Múcio respondeu às perguntas e se identificou como um cidadão
romano disposto a assassiná-lo. Para demonstrar seu propósito e castigar seu próprio
erro, Múcio colocou sua mão direita no fogo de um braseiro aceso para um sacrifício e
disse: "Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que

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a glória!". Surpreso e impressionado pela cena, o rei ordenou que Múcio fosse
libertado. Como reconhecimento, Múcio confessa que trezentos jovens romanos
haviam jurado, assim como ele, estar prontos a sacrificar-se para matá-lo.
Aterrorizado por esta revelação, Porsena teria baixado suas armas e enviado
embaixadores a Roma. Depois desta vitória e com sua mão direita completamente
inválida, Caio Múcio recebeu o cognome "Cévola" (em latim: "Scaevola"), que em latim
significa "canhoto", um cognome que seria conservado pelos seus descendentes. Para
recompensá-lo, os romanos presentearam Múcio Cévola com terras na outra margem
do Tibre, que passaram a ser chamados de "Campos Múcios". Finalmente, uma estátua
foi consagrada em sua memória.

Frase do dia: Caelesti sumus omnes seminar oriundi, Lucrécio, De rerum natura
2,991 [todos somos oriundos de uma partícula do céu]

Contributos das Lendas (cont.)


4. Horácio Cocles: a defesa de Roma em 505 a.C. (ciclo de três lendas
sobre a defesa de Roma)
Herói mítico com poderes sobrenaturais (etim. Kyklops > cíclope – porque ele perde
um olho)
Este, com dois companheiros, Espúrio Lársio e Tito Hermínio, defende até à morte a
ponte que une o Janiculum (onde havia uma fortaleza) a Roma quando Porsena, rei de
Clúsio, a ataca. Os amigos conseguem saltar para a margem. Horácio debate-se até ao
fim e atira-se à água com a armadura (Políbio VI 55), ou seja, suicida-se.
Os romanos encaravam o suicídio como uma morte digna e como uma questão de
honra (cf. com a lenda de Lucrécia).
Este homem é, portanto, um exemplo de uirtos masculino, ou seja, de coragem.
Os reis etruscos são expulsos de Roma, mas alguns etruscos permanecem na cidade.
Sendo assim, há uma vontade de retomar a cidade.

5. Múcio Cévola: a afirmação de Roma


Herói altruísta, queima o braço direito nas chamas, o castigo do perjúrio (no entanto,
este não é o motivo por que Múcio Cévola queima o braço; ele fá-lo para mostrar ao
rei etrusco, Porsena, a força dos Romanos). Teria proferido “Et facere et pati fortia
Romanum est” [cometer e sofrer estes grandes feitos é próprio dos Romanos].

6. Clélia: a coragem feminina


Clélia representa a coragem de tipo varonil. Atravessa o Tibre levando consigo
donzelas que teria salvo do cativeiro de Porsena. Na realidade é a única romana com

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estátua equestre, no cimo da Via Sacra. Mas seria muito provavelmente uma divindade
(Epona? Vénus Equestre?).

As mulheres não montavam a cavalo, porque acreditavam que podia romper o íman.
Célia veio a cavalo para atravessar o rio Tibre, para salvar mulheres que estavam em
cativeuro.

7. Coriolano: a capacidade feminina de demover


Auctoritas feminina. Teria sido após o episodio que o senado mandou consagrar um
templo a Fosrtuna Mulieribus
Séc. V: Caio Márcio vencedor de Corioli, cidade dos Volscos.
Mais tarde nega a distribuição gratuita de cereais ao povo e é exilado. Refugia-se entre
os volscos que ele tinha ajudado e ajuda-os a vingarem-se por terem tomado a cidade
deles, criando um exército contra Roma.
A sua mãe Vetúria, acompanhada da sua mulher, Volumia, e dos seus filhos, convence
Coriolano a não atacar Roma. Coriolano bate em retirada e é morto.
É a sua mãe que o consegue demover, através do poder da palavra.

*nota #1: os romanos, quando contavam estas lendas, não as contavam como lendas, mas sim
como História.

Tarpeia – (lendário)
Tarpeia, filha de um chefe de uma guarnição romana, ajuda os Sabinos quando vêm
vingar o rapto das filhas, mostrando um acesso secreto na cidadela do Capitólio. Pede
as pulseiras que eles têm nos braços, mas recebe por recompensa os escudos, isto
porque, os próprios sabinos, percebem o seu caráter traidor e mesquinho. Sendo
assim, apesar de perceberem que o que ele queria eram as pulseiras de ouro que eles
traziam nos braços, os Sabinos atiram-lhe os escudos para cima, subterrando-a.
Exemplo de conduta feminina condenável. O mons Tarpeus (rocha tarpeia) era na
República o local de execução dos traidores.

Régulo – (histórico)
Heroísmo no âmbito da II Guerra Púnica.
Marco Atílio Régulo, cônsul, fica preso em Cartago em 256 a.C. e vem a Roma em 255
a.C. como prisioneiro negociar uma troca de prisioneiros com que ele próprio não
concorda e regressa.
Ele jura aos cartagineses que vai a Roma para convencer os romanos a trocá-lo por
prisioneiros cartagineses. No entanto, chegado a Roma, Régulo diz aos romanos que

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não aceitem a troca e que o deixem morrer. Sendo assim, quando Régulo regressa a
Cartago, é executado, mostrando assim que o mais importante para o homem romano
é a comunidade e não o indivíduo. Régulo percebe que tem de voltar para Cartago e
morrer porque ele não representa Régulo (o indivíduo), mas sim Roma (a
comunidade).
Personifica a fides (fidelidade ao juramento) e a uirtus (coragem); modelo de
comportamento estóico segundo Cícero e Séneca.

Mas então qual é o espaço do indivíduo em Roma? O que é que cada um pode fazer
por si para ‘crescer’?
Se o valor do individuo depende daquilo que ele faz pela comunidade, então a maior
forma de ‘crescimento’ (espaço de aperfeiçoamento) de um indivíduo em Roma é
aquilo que ele faz para deixar uma marca para a posteridade (e, possivelmente, ganhar
um cognome).
A noção de dever é, por isso, muito importante para os romanos.

OTIUM NEGOTIUM

Tudo o que o homem romano faz sem Espaço da ação


ser no espaço da ação [em port. “ócio”,
mas em latim não tem o mesmo sentido
da palavra atual] Espaço público

Aquilo que o homem romano faz por si Pode ser uma ação política, comercial,
para se elevar na esfera pública (através social, etc.
de, por exemplo, o estudo)

1.1.1 Os legados etrusco e helénico


o O ser originário tem um fundo indoeuropeu muito nítido. Mas Roma fez-se,
num processo continuo, ao longo dos séculos, graças às influências exteriores:
os contactos com outros povos;
o Dumézil identifica elementos da mentalidade indoeuropeia funcional e
tripartida;
o As tríades apresentam funções distintas e complementares:
1. a função de soberania destinada a assegurar o governo e a manter a relação
entre a sociedade e os seus deuses;
2. A função guerreira, que conserva e defende a sociedade;
3. A função de fecundidade, que assegura a conservação da vida;

o No plano divino correspondem à tríade: Júpiter, Marte e Quirino;

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o No plano político, soberania (ora guerreira ora pacífica) correspondem a
Rómulo (pacífico) e a Numa Pompílio (guerreiro), a Túlio Hostílio (guerreiro), a
de fecundidade a Numa e posteriormente o rei Sérvio (pacífico);
o No plano das instituições religiosas: os três flâmines;
o No plano social, três tribos: Ramnes, Luceres e Tites (primeiras tribos em que se
divide Roma)

O legado etrusco
Origem – tese oriental
Os Etruscos são oriundos da Ásia Menor, muito possivelmente Lídios (Hérodoto, 1,1,
cap. 94), não têm uma língua indoeuropeia, apresentam conceção de vida próxima dos
povos Orientais Hititas e Babilónicos, tais como: correspondência entre micro e
macrocosmos; predomínio de adivinhação por voo das aves ou analise das vísceras.
Também a arte apresenta semelhanças na representação humana estática e no
sorriso.
Caráter requintado, empreendedor, prático, místico, supersticioso, preocupado com a
vida no Além.

Como os conhecemos:
1. Epigrafia – cerca de 10.000 pequenas inscrições de âmbito sacral e funerário
2. História – testemunhos de autores gregos e latinos
3. Arqueologia – centenas de túmulos sobretudo nas necrópoles de Caere e
Tarquínios, que permitem conhecer a vida quotidiana pela decoração objetos
de luxo encontrados (urbanismo manifesto nos vestígios de traçados das
cidades, construção de templos) (Necrópole de traquínia: as necrópoles em
hipogeus estavam fora do pomerio ou recinto, onde não se podia habitar nem
cultivar)
4. Arte – esculturas de terracota, pinturas murais, cerâmicas, artefactos de metal

Era prática comum representar os casais (homens e mulheres casados) juntos nos
sarcófagos, pois o poder social era o mesmo para os dois sexos. O homem era
representado com a pele mais escura e a mulher com a pele mais clara (as mulheres
etruscas gostavam de se maquilhar). As mulheres romanas não eram muito
emancipadas (cf. Lucrécia), mas as mulheres etruscas sim.
Os etruscos acreditavam que o seu destino estava traçado, portanto consultavam
muito os oráculos para saber o futuro que os esperava.

Os romanos vão ser grandes artífices do retrato, uma vez que valorizam muito mais a
cara (pois consideram que a cara é o que torna cada um individual e “único”). Ainda
assim, a arte etrusca vai ser uma grande herança para os romanos, porque o que era
importante era o rosto e a sua expressão, o realismo acima do bonito. O corpo não era

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considerado tão importantes (até porque andava tapado), era mais vital captar os
traços característicos dos romanos (mesmo que não fossem os mais agradáveis).

Antiga cidade amuralhara etrusca dita Cita di Bonoregio


Formavam ligas ou confederações em número de 12 (dodecápole), que só conhecemos
apos séc. IV. No centro estava o santuário de Volturno, junto de Volsínios.

Arquitetura e urbanismo
 Inventores do arco (com pedra chave) e da abóboda

 Estrutura da casa de atrium com abertura quadrangular ao centro para


impluvium (recolhe chuva para dentro) ou displuvium (lança para fora)
 Desenho das cidades segundo duas linhas perpendiculares: cardo (norte-sul) e
decumanus (este-oeste)
 Construção de canais de irrigação e de drenagem, para conduzir a água dentro
das cidades e até aos campos

Todas as crianças livres (filhos dos cidadãos livres) tinham ao pescoço uma bula,
símbolo da sua liberdade.

Frase do dia: Nihil sine magno / vita labore mortalibus, Horácio Sat. 1, 9, 59-60
[a vida nada concede aos mortais sem grande trabalho]

A influencia grega
É a mais decisiva influência que Roma sofrera e que vai delinear o modo como se
inscreve na história do Ocidente. Ocorre em três fases:
- 1ª fase: contacto com a cultura grega através dos Etruscos
- 2ª fase: contacto direto com as cidades da Magna Grécia, sobretudo apos 270
a.C.

17
- 3ª fase: conquista da Grécia 197-147 a.C.

Influências
 Mentalidade racional
 Perspetivas de universalidade, que proporcionaria a ideia de “alma” de um
império
 Modelos no domínio das ideias e gostos: mitologia, eloquência, literatura,
filosofia, história, filologia, medicina, culinária, etc.

1.1.2 A república romana: a expansão interna e o domínio do mediterrâneo


Após a expulsão dos reis Etruscos, em 509 a.C. Roma proclama a república e dá início a
uma fase de expansão no interior da península itálica.
Durante os séculos V-III a.C. Roma afirma o poder sobre a Itália Central
Corresponde ao período dos lendários Coriolano, a Camilo (396 a.C.) que toma Veios,
aos Horácios.
Numa 1ª fase Roma vence os Volscos, os Etruscos e os Sabinos.
-400/390 a.C. os Gauleses saqueiam Roma
-348 Cartago faz um tratado com Roma
-343 surgem guerras com os Samnitas a este: os Romanos perdem muitas
batalhas, incluindo a célebre derrota das Horcas Caudinas, em que os Samnitas
capturaram todo o exército romano.
Após este desastre reorganizam o exército: a milícia é dividida em legiões – com 10
cohortes cada e cada cohorte tem 3 manípulos, i.e., 600 homens
Em 295 a.C. vencem finalmente os Samnitas na 3ª guerra após as batalhas de
Bovianum e de Sentinum.

Frase do dia: Inveterata consuetudo pro lege custoditur, Digesto*, 1,3,32 [O


costume instituído consdrva-se como se fosse lei]
*compilação das decisões de jurisconsultos romanos convertidas em Lei pelo imperafor (527-
565) bizantino Justiniano, e que comstitui uma das 4 partes dos Corpus Iuris Civilis (as outras
sºal as Institutas, as Novelas e Códigos)

Séculos IV-III a.C.


405-396 a.C.: Veios anexada após cerco de 10 anos por Marco Fúrio Camilo (446-365).
A cidade etrusca, 15km a norte de Roma, é a grande adversária. A disputa que, começa
18
em V a.C., é decisiva no IV, muito possivelmente devido ao controlo do depósito de sal
na foz do Tibre e respetivas rotas comerciais.
390 a.C.: Invasão dos Gauleses (movimentam-se desde os Alpes até ao norte de Itália)
400 a.C.: As tribos dos Ínsubres, dos Sénones, dos Cenomanos, Boios e Língones
estabelecidas na Gália Cisalpina ameaçam as povoações etruscas. No verão de 390 os
Sénones invadem a Etrúria e chegam às portas de Roma a 18 de julho. Vencem os
Romanos junto ao rio Alia. Entram em Roma decorridos 3 dias e só o Capitólio resiste
durante uns meses. Os gauleses partem depois de terem recebido ouro, já que o
objetivo era o saque e não a conquista.

De III-II a.C.
Séc. III: Roma enfrenta as colónias gregas da Magna Grácia. Estas pedem auxílio a
Pirro, rei do Epiro, que vence os Romanos em Heracleia, Ausculo e Benevento (247
a.C.) mas estes vêm depois derrotá-lo.
264-241 a.C. – 1ª guerra Púnica: enfrentam cartaginenses na Sicília e vencem-nos em
Emona e nas ilhas Egates. Apoderam-se da Sicília, da Córsega e da Sardenha.
218-201 2ª guerra púnica: Aníbal ataca as colónias gregas da Hispânia protegida por
Roma. Cruza os Alpes e vence os Romanos em Trébia, Tesino, Trasimeno e Canas.
Permanece 16 anos na Itália e acampa por alguns anos em Cápua. Entretanto Publio
Cornélio Cipião, dito o Africano, comanda um exército até à Hispânia e conquista
Nova-Cartago (Cartagena) e Cádis, pertencentes aos Cartagineses. Segue para África e
sitia Cartago que, por sua vez, pede auxílio a Aníbal, então em Itália.
202: Cipião vence em Zama a 19 de Outubro  Roma passa de uma política de “defesa
preventiva” para uma visão imperialista (cf. Mazzarino, Trattato di storia romana vol. I,
pp. 199 ss.). Esta nova atitude tomará forma em 190 a.C.

Batalha de Zama (202 a.C.): o grande triunfo de Roma


Armamento básico: capacete, armadura de couro reforçada com placas de metal,
escudo alto (infantaria); armas ofensivas: dardo (hastados/vélites), espada, lança
(triários).

Séculos II-I a.C.: início da expansão imperialista


197 a.C.: derrota dos Gregos em Cinocéfalos, na Tessália
190 a.C.: conquista a Magnésia, parte do Reino selêucida (na atual Turquia)
168 a.C.: Cipião vence Perseu e ocupa a Macedónia
149-146 a.C.: 3ª guerra Púnica

19
147 a.C.: Cipião Emiliano (filho adotivo de P. Cornélio Cipião) destrói Cartago por
decreto do senado e toma o norte de Africa
147 a.C.: sufoca uma rebelião da Liga Aqueia, destrói Corinto e conquista toda a Grécia
133 a.C.: os Romanos submetem os indígenas da Hispânia para conservar a costa
mediterrânea Numância é tomada por Cipião Emiliano e o território é assimilado ao
império. Só em 27 a.C. conquistam as Astúrias e a Cantábria sob Augusto.

As crises internas do século II e inícios de I a.C.


133-123 a.C.: revoluções dos tribunos Tibério (133) e de Caio Graco (123-121):
enfrentam a aristocracia para proteger a plebe e os cavaleiros
100 a.C.: os Teutões e os Climbros atacam o norte da Itália e são detidos por um
exército profissional comandado por Mário (157-86): autorizou o recrutamento de
cidadãos romanos sem terras para o exército; reorganizou a estrutura das legiões e
divisões menores, chamadas coortes, dando origem às legiões que perdurariam pelo
resto da história romana.
90 a.C. – Guerra Social: os povos itálicos reclamam mais direitos
Guerra entre Mário (democratas) e Sila (aristocratas). Os democratas refugiados nas
províncias causam problemas (ex. Sertório na Hispânia). A hostilidade entre os dois
partidos continuará depois com César e Pompeio (2ª guerra civil)
81-78: ditadura de Sila

A crise da República 69-49 a.C.


Contexto: o Mediterrâneo oriental torna-se um “lago” romano. A ordem equestre,
detentora de fortuna, mas excluída das honras da magistratura, está em condições de
obter decisões políticas favoráveis, por isso é mais imperialista.
59 a.C.: César é eleito cônsul com apoio de Pompeio e de Crasso. Recebera 3 legiões
por plebiscito para controlar a Gália Cisalpina, e o Senado, desejando vê-lo fora de
Roma, acrescenta a Gália Narbonense e a Ilíria e dá-lhe uma 4ª legião > César na
qualidade de procônsul das Gálias por 5 anos tem um exército sob seu poder.
Pompeu, na Itália, afasta os 2 chefes conservadores: Catão (enviado à força para
Chipre) e Cícero (exilado em 58)
56 a.C.: César consolida o triunvirato: a Crasso é confiado o combate aos Partos,
Pompeu fica em Itália e César prolonga o comando nas Gálias (derrota de Vercingetórix
em Alésia em 52 a.C.)

O cesarismo

20
53 a.C.: Crasso morre na batalha de Carras (na atual Turquia) às mãos dos Partos. Tinha
invadido o império Parta sem o consentimento formal do senado.
Em Roma César mantém partidários além de Pompeu, cuja relação com Cesar já
começara a degradar-se, e dos tribunos Marco António e Cássio Longino. Estes
desejam prolongar o comando de Cesar até à eleição para o 2º consulado. Dada a
emergência, a reação do Senado é um senatusconsultum ultimum: decretaram a
exoneração de Cesar
Janeiro de 49 a.C.: a resposta de Cesar é dar ordem às tropas para entrarem em Itália,
transpondo o rio Rubicão e marchar sobre Roma. Na sequência, o Senado nomeia
Pompeu defensor da República para devolver a concordia, entendimento cívico
fundamentado na Justiça.
Segundo Cícero (cf. De legibus, De republica): o magistrado “tutor” e “procurador” da
republica, espécie de princeps, deve ter aptidão militar, conhecimento jurídico e rigor
moral.
48: César derrota Pompeu na batalha de Farsália. Pompeu foge e é assassinado no
Egipto em 48.
A ditadura de César (48-44 a.C.), após a morte dos outros triúnviros, é uma espécie de
governo monárquico, com um poder absoluto que parecia ser o único modo de evitar
o desmembramento do Império. Valerá a César a morte nos Idos de Março em 44 a.C.
Ficarão para sempre em causa as fundações da Respublica: direito público e
magistraturas.

Frase do dia: Moriamur et in media arma ruamus, Virgilio, Aen. 2, 353


[morramos e lancemo-nos no meio do combate]
Estado de direito – forma de governação que se rege por leis (presentes na
Constituição), leis essas que são reguladas e aplicadas pelas magistraturas. Em Roma,
as magistraturas vão operar os poderes legislativo, jurídico e executivo.

Mar mediterrâneo (mare mediterranium): literalmente, “o mar que esta entre as


terras”
 No ano 30 a.C., o Egipto torna-se província romana. O Mediterrâneo era gerido
pelos romanos e, a partir desse ano, passam a chamá-lo Mare Nostrum.

A partir do Cesarismo, as instituições e as magistraturas da República vão sofrer um


abanão. Vão ficar sancionadas pelo poder de uma pessoa só.

A Respublica e a instauração da Libertas

21
Libertas é sinonimo de estar sob a lei.
Forma de governo: rex (rei) substitui a lex (lei)a
À vontade pessoal sobrepõe-se o poder impessoal do direito (ius), o princípio moral da
vida romana.
O direito era compromisso da coletividade para viver em sociedade: a lei é cega e igual
para todos. Considerava-se que aquilo que era o justo era justo por ser direito.
-Quem decreta as leis? O senado
O direito não é liberal, é férreo (dura lex sed lex) mas não é um capricho pessoal. É
prático e evolui de acordo com as necessidades de cada época.
-Como nasce o direito? A partir da lei das XII Tábuas (451-499 a.C.) decretos dos
decênviros*. Já tinha o germe (a capacidade) da flexibilidade, pois o Romano entende
a lei como concórdia constante entre os membros da sociedade, que está sempre em
mutação. Quer isto dizer que as leis, ainda que tenham de ser rígidas na sua base, têm
também de ter alguma flexibilidade, para assim acompanharem e se adaptarem aos
tempos.
*conjunto de dez cidadãos que, com pretor, compunham a magistratura judicial, entre
os romanos. Pensa-se que a influência grega das XII Tábuas vem do sul de Itália, pelo
contacto com a Magna Grécia.

-Originalidade do direito romano: a pretura, um órgão que organizava a constante


renovação legislativa. O pretor, além de instruir processos, estava incumbido de
promulgar anualmente limitações e ampliações à lei vigente. Era efetivo o princípio:
mullum crimen, sine lege [não há nenhum crime sem lei].
O pretor é o primeiro cargo a aparecer em Roma e não podia ser um cidadão qualquer.
O cargo de pretor não era pago. Um pretor tinha, no máximo, 18 meses de função. O
cargo de pretor foi um dos cargos mais necessários e pertencia ao alto grau da
magistratura.
Ministro, à letra, significa “servidor”.

Outra fonte do direito romano: as responsa prudentium, i.e., indicações dos


jurisconsultos em casos difíceis. Embora não fossem leis, o pretor guiava-se por elas
para o decreto anual.
O jurisconsulto é uma pessoa que sabe de leis. Pode ter sido pretor em algum
momento da sua vida. Só se recorre a um jurisconsulto em último caso.
Tipos de direito - ius quiritum – aplicado aos cidadãos
- ius gentium – aplicado aos estrangeiros

As instituições da Respublica

22
Ao longo de 5 séculos o principal órgão legislativo é o senado (herança do conselho do
rei) formado por paters famílias e outros cidadãos com nobilitas, os patres conscripti,
de origem patrícia ou plebeia dispostos por diferentes ordens (ex: antigos cônsules,
tribunos, edis, etc.) consular, tribunici, edilii.
-Função do senado:
- publicar leis, os senatus consultus, além dos decretos emanados pelos pretores
(figuravam 300 no álbum senatorial)
- dirigir operações militares
- “eleger” todos os graus de magistratura
-Pretores: de início eram os magistrados mais importantes, sendo depois ultrapassado
pelos cônsules; cabia-lhes a administração da justiça (eram 8 no século I)
-Cônsules: 2 anuais, sendo o cargo de origem sacerdotal, ocupam o 1º lugar no
executivo
-Questores: estavam encarregados da fazenda (eram 20 no século I)
-Censores: encarregados de proceder ao censo, i.e., reformar as ordens sociais em
Roma. Detinham poder por 18 meses (eram 2 no seculo I)
-Edis: encarregados de proceder à vigilância policial, obras políticas, vigiar os mercados
(eram 2 no século I)
-Proconsules e Propretores: com funções de governadores provinciais, representam o
governo na província
-Tribunos da plebe: representavam a plebe no senado e estavam protegidos pela
sacrosanctitas, cidadão sagrado inviolável; não tinham voto, mas sim direito de veto
(eram 10 no século I)
-Os cargos de magistratura demonstram que é difícil distinguir poder legislativo,
executivo e judicial
S.P.Q.R. (Senatus Populusque Romanus [o senado e o povo romanos]): divisa e símbolo
do poder em Roma, é uma instituição que permite a concórdia entre patriciado e
plebe. Inicialmente a República fica refém do patriciado (poder político) até a plebe
(plebs < plethos (grego) – multidão) ter meios de representação com poder
Ditador: governava em momentos de crise durante seis meses, nesse período atua
como comandante supremo e chefe supremo (sem possibilidade de provocatio contra
o ditador)
Augusto ascendeu ao poder por ser tribuno da plebe e, assim, evitou o título de
ditador.

1.2 Augusto e o modelo imperial


O regime instaurado por Augusto esta alicerçado em dois pilares

23
- A conservação das dignidades dos poderes republicanos, mas concentrados na
mão de um só homem: o princeps
- A criação de novos órgãos de administração controlados pelo princeps
Na prática há uma restauração de poder monárquico, mas com um novo modelo
porque se conserva a aparência republicana com a manutenção das instituições da
república.
Augusto quer ser um governante legítimo, mas não quer ser rei, por isso mantém as
magistraturas, mantendo as leis, fazendo de si o principal magistrado de cada
magistratura. Vão existir os dois pilares da República, mas com magistraturas
diferentes. Quando representado em estátuas, Augusto aparecia vestido como um
senador. Por todo o Império vai-se propagar a ideia de que o imperador se apresenta
como um cônsul ou um senador.
Antes de Augusto chegar a imperador, há um 2º triunvirato, constituído por Marco
António, Lépido e Octávio. Lépido morre, Marco António é derrotado na batalha de
Ácio e suicida-se, em 31 a.C.
Octávio fica sozinho e no ano 30 a.C., as suas bases para chegar a princeps têm início.
Octávio consegue ser um grande general e isso para os romanos é muito importante.

Frase do dia: Libertas est potestas faciendi id quod inure licet, Princípio Jurídico
[liberdade é a possibilidade de fazer o que permite a lei]

Evolução do modelo
Os sucessores de Augusto vão consolidar a monarquia, ao concentrar, cada vez mais,
as instituições no princeps e ao burocratizar o estado: as ficções republicanas vão
desaparecendo uma após a outra.
As magistraturas tornam-se impotentes:
 Os cônsules (consules ordinarii) estão em exercício por 2 ou 4 meses, os suffecti
um ano > esta magistratura dura até ao imperador Bizantino Justiniano (527-
565)
 Pretores são 12 a 18
 Questores são 20 a 40
 Edis são 10 (até 240)
 Tribunos da plebe perdem autoridade
Cada vez mais vão existir funcionários para ajudar a gerir as funções, originando os
funcionários públicos. Cláudio vai recrutá-los à classe dos libertos, escravos a quem
tinha sido concedida a liberdade.

O funcionamento do cursus honorum

24
Começava-se:
o por funções civis: vigintivirato (magistrados subalternos ao serviço do Pretor)
o por funções militares: tribunato militar (serviço militar obrigatório para as
classes dirigentes)

Idade de acesso
Vigintivirato* 17
Tribuno militar 18
Questura 25
Edilidade e tribunato 27
Pretura 30
Consulado 33

A sobrevivência dos comícios e do Senado


Augusto ainda reúne os comícios, mas o seu sucessor, Tibério, retira-lhes o poder
deliberativo para o entregar ao Senado. Este poder legislativo termina no final do séc.
I.

O funcionamento do Senado:
 Composto por 600 membros escolhidos pelo imperador entre a ordem
senatorial (ordo senatorius);
 Promulga as leis (antes feitas pelos comícios) e cria as magistraturas.
 Augusto encena uma partilha de poder entre o senado e o princeps, mas sem
que o senado, na realidade, se possa opor. A justiça póstuma do senado
oprimido converte-se, por vezes, em damnatio memoriae.
 No século III o senado tem um papel de mero Conselho municipal de Roma,
tendo o poder passado para um Consilium principis.

Etapas do principado (ex. Augusto)


40 a.C. – Imperator: atribui a si mesmo o título
36 a.C. – Sacrosanctus: é declarado (cf. Tribunos da plebe)
30 a.C. – Tribunicia potestas: revestido com o poder de tribuno da plebe sem limite de
duração
28 a.C. – princeps senatus: inscrito no álbum senatorial
27 a.C. – imperium proconsular nas províncias imperiais; augustus: título religioso que
se torna cognome dos imperadores

25
23 a.C. – imperium proconsular estendido a todo o império, tribunus vitalício (mas
Augusto confirma anualmente o cargo para o ano seguinte, a 10 de dezembro)
19 a.C. – prefeito dos costumes (= censor)
12 a.C. – Pontifex maximus (restaura vários colégios sacerdotais)
2 d.C. – faz-se proclamar Pater Patriae

As atribuições do imperador
 Nomeações: é escolhido pelo senado. Os sucessores de Augusto serão ora
designados pelos predecessores ora impostos pelas tropas.
 Prerrogativas: o nome é antecedido pelos títulos imp., Caesar e Augustus. Tem
direito a 12 lictores (24 após Domiciano, 81-96), a usar coroa cívica em público
e a vestir a toga pretexta ou o paludamentum; a imperatriz tem direito ao título
de Augusta e os filhos ao de Caesar.
 Poder político: a Lex de imperium concede-lhe o poder legislativo e judiciário, a
Lex de tribunícia potestate dá o poder de tribuno. Intervém nas eleições e
nomeia funcionários; cunha moeda; trata dos assuntos estrangeiros; na
qualidade de prefeito dos costumes recruta o senado.
 Poder militar: o ius proconsulare confia-lhe o comando das tropas, dá pleno
poder nas províncias imperiais e vigilância nas senatoriais.
 Poder financeiro: na prática nem Augusto nem os sucessores vêem diferença
entre a fortuna pessoal (res priuata) e a do fisco.
 Poder religioso: enquanto Pontifex Maximus representa a religião nacional; é
membro de todos os colégios sacerdotais*. Organiza o culto imperial que faz
dele um deus vivo.
*Em Roma, os sacerdotes eram sempre homens, com exceção das Vestais, cujo trabalho era
de velar pelo fogo sagrado, que representava o espírito da cidade de Roma (e, por isso, nunca
podia ser apagado).

Os funcionários do imperador
Altos Funcionários:
 2 Prefeitos do pretorio (praefecti praetorii): chefes da guarda imperial (guarda
criada em 27 a.C.), têm papel de vice imperador e são cruciais na designação
dos futuros imperadores
 Prefeito da anona (praefectus annonae): responsável pelo abastecimento da
capital
 Prefeito da vigilância (): comanda a milícia de sapadores bombeiros
Obs. Todos estes cargos datam de Augusto e os funcionários foram recrutados entre os
membros da ordem equestre
 Prefeito da cidade (): dirige a polícia e a administração de Roma. É escolhido
entre a classe senatorial.

26
Nas províncias há prefeitos e procuradores recrutados na ordem equestre.

Chancelaria imperial e Conselho Príncipe


É composta por secretariados (scrinia) e ministérios que centralizam a administração
romana:
- Secretario ab epistulis: trata da correspondência com as províncias e as
relações com os embaixadores (cargo organizado por Narciso, um liberto do
imp. Cláudio, 41-54)*
- Secretario a cognitionibus: assuntos judiciais
- Secretario a libellis: receção de requerimentos e de queixas
Todos estes cargos são desempenhados por (…)

1.3 Do Alto Império Romano ao Baixo Império


O governo durante o Baixo Imperio
A partir de III d.C. o imperador não simula o seu poder absoluto:
- senado + magistratura = função honorífica
- aumento do número de funcionários imperiais
Estatuto do imperador: sagrado. Diocleciano faz súbditos ajoelharem-se e beijarem a
fimbria purpura das vestes, tratam-no por “Tranquilitas tua” [vossa/tua Tranquilidade]
= uma monarquia oriental absoluta com controlo económico e religioso do estado
(perseguição dos cristãos).
O imperador Teodósio (379-395), cristão, renuncia a determinadas prerrogativas e
deixa de ser pontífice.

O território e a partilha de poder


O poder imperial é teoricamente indivisível, mas a extensão do império acarreta
problemas. Já Marco Aurélio (161-180) tinha associado ao poder Lúcio Vero por andar
sempre em campanhas militares longe de Roma.
Diocleciano (284-305) instaura a tetrarquia (a capital é fora de Roma) e o império é
dividido entre Oriente e Ocidente: 2 Augustos com igual poder, cada um coadjuvado
por um César, que lhe sucederá por morte (mas o sistema não tem continuação).

Proposta de Diocleciano (284-305)


2 Augustos
Ocidente Oriente
Maximiano Diocleciano
27
Milão Nicomedia
2 Césares
Constâncio-Cloro Galério
Trévio Esmirna

Desconfiança do poder central:


Repartição do governo das 96 províncias* em 300 d.C. Após os governadores de
províncias terem tido tendência a se proclamarem imperadores, retira-se-lhes a chefia
de tropas e desaparecem as províncias senatoriais (proconsulares).

Governo das províncias atribuído a Prefeitos do pretório


Ocidente – 2 prefeituras
Itália e Gálias
Repartidas em 12 dioceses governadas por
vigários
Oriente – 2 prefeituras
Ilíria e Oriente

Organização do Império em 300 d.C.

Constantino e a deslocação do Império para Constantinopla


Rumo a um império cristão:

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 Constantino (306-337), filho de Contâncio Cloro, apoia os cristãos contra a
vontade dos seus colegas (Augustos e Césares)
 312 – disputa o Ocidente e vence Maxêncio, depois vence Licínio a Oriente e,
em 324, reconstituirá o império
 313 – decreta a liberdade de culto pelo édito de Milão
 325 – convoca o 1º concílio ecoménico em Niceia com “todos os prelados da
terra habitada” para fixar o Credo
 330 – edifica Constantinopla e transfere para lá a capital do império
 337 – faz-se batizar ao morrer

O império após Constantino


 O império é dividido entre os 3 filhos:
- Constantino II: Gália, Espanha e Bretanha
- Constâncio II: Trácia e Oriente
- Constante: Itália, Ilíria e África

 Em 340, Constante bate Constantino II e torna-se senhor do Ocidente.


 Em 350, Constante é obrigado a suicidar-se por ordem do oficial Magnêncio.
 Em 351, Constâncio II bate Magnêncio e reconstitui a unidade do Império.
 361-363: Juliano, o Apósta, não consegue fazer regressar o paganismo.
 379-395: Teodósio é o último a reinar sobre todo o império. É cristão e
persegue o paganismo.
 Partilha definitiva entre Oriente e Ocidente: Teodósio reparte o império entre
os 2 filhos:
- Arcádio a Oriente
- Honório a Ocidente

1.4 As invasões bárbaras e o “fim” do Império Romano do Ocidente


O fim do Império Romano do Ocidente
O colapso e as investidas nas fronteiras
 Para combater os Bárbaros de tribos germânicas, cuja investida, contida
desde o final do século III, volta a ameaçar as fronteiras no fim do século IV.
Roma contrata generais e tropas bárbaras. Há altos cargos militares
ocupados por Vândalos (ex: Estilicão, regente na menoridade dos filhos de
Teodósio) ou Visigodos (ex: Flávio Ricimero, 405-472, põe e depõe
imperadores ao longo do século V).
 406 – as fronteiras do Reno são forçadas por Suevos, Vândalos, Alanos e
Burgúndios a 31 de Dezembro
 410 – Alarico, rei dos Visigodos, chega a Roma por terra
 455 – Átila à frente dos Hunos devasta a Gália e a Itália, Genserico (que será
o 1º rei vândalo de África) toma Roma vindo por mar

29
 476 – Odoarco, chefe dos Hérulos, destrona o imperador Rómulo-
Augustulo, ainda criança, e envia os ornamentos imperiais para
Constantinopla. Este facto marca o fim do império Romano do Ocidente

II – Aspetos nucleares da Civilização Romana


1. As ideias políticas: imperium, potestas, maiestas, prouincia

O milagre da organização e da mediação


A organização foi possível graças à organização jurídica e administrativa baseada em
quatro conceitos
a) Imperium < im + paro  preparar em profundidade, organizar
Significa a faculdade de mandar, de fixar as medidas necessárias, mesmo
fora das leis
A partir de Augusto designa domínio, império

b) Pronuncia < a etimologia levanta dúvidas: verbo prouideo (ver antes,


providenciar)
Começa por designar o poder de um magistrado e aplica-se aos revestidos
de imperium (i.e. cônsules e pretores)
Depois designa a competência de um magistrado fora de Itália (expressão
que herdámos)
Designa espaço
– 1º em oposição a Roma, a cidade-estado onde os habitantes têm
estatuto com direito a privilégios, só posteriormente estendidos na
Itália
– 2 º em oposição a Itália, numa segunda fase da expansão, em que
os habitantes das províncias são considerados súbditos, os dediticii,
que recebiam cidadania por concessão especial do Senado, do
Imperador ou de um magistrado
N.B: O território é, em virtude do direito de conquista, propriedade do Estado; na
realidade a sua posse efetiva pode ser atribuída a indivíduos, em geral mediante o
tributum soli = impostos territoriais

c) Potestas < etimologia: adjetivo potis (possuidor)


Designa o poder político como modelar, organizador do opus ingens
(trabalho vasto)

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d) Maiestas < etimologia: adjetivo maior (maior)
Designa a grandeza, a dignidade e a soberania; a majestade resultante das
anteriores características: a majestade dos Deuses e do Povo Romano (cf.
sentido honorífico atual de Majestade aplicado a soberanos)

2. A religião: crer e fazer


“Foi pela religião que nós vencemos o universo”, Cícero

Cultos domésticos
 Cultos da esfera familiar:
0) Introdução: a religiosidade romana, o Lácio primitivo e os diferentes
Numina
1) Culto dos antepassados
2) Culto do Lar (Deuses Lares e Penantes)
3) Culto dos Mortos
4) Culto do Genius (génio)

2.1 A teologia mítica e os diferentes numina

0) Introdução
 Como interpretar as palavras de Cícero?
Os Romanos consideravam que a sua pietas coletiva garantia uma boa relação
(religatio) com os deuses e, a isso mesmo, deviam a sua hegemonia sobre os
restantes povos (cf. a pietas de Eneias)
Esta relação com as divindades é a pax deorum (paz dos deuses) e equivale, de
certo modo, à ideia de concordia no âmbito da política. Todos os seus preceitos
decorrem do conceito geral de mos maiorum.
Roma é uma cidade sagrada e as suas origens confundem-se com a história das
divindades, pelo que associou sempre, até ao fim do Império romano do
Ocidente e do Oriente, as práticas religiosas a cada momento da vida pública,
militar e doméstica.

 Os Romanos, todavia, não têm uma cosmogonia, nem mitologia organizada,


nem teologia próprias. Ao contrário dos Gregos, os Romanos dos primórdios

31
não tentaram explicar o universo ou contar aventuras dos deuses, terão
laicizado algumas lendas, tornando os heróis personagens históricas.

A religião do Lácio primitivo


 A religião do Lácio primitivo é um reflexo do caráter realista e pragmático dos
Romanos
 Nas origens encontramos uma religião animista de pastores e de agricultores
que acreditavam em divindades especializadas nos trabalhos minuciosos da
terra: os numina (sg. numen), as forças da natureza, também designadas por
uirtudes.
 Este dinamismo primitivo, associado a outros elementos, permaneceu ao longo
dos séculos.
 Os pontífices evitavam falhas nos rituais fazendo listas, os indigitamenta, com
os nomes dos numina, para as suas evocações.
 Ou seja, o crer manifestava-se sempre num fazer, neste caso um ritual

Exemplos de Numina (divindades telúricas)


 Os Numina especializados em trabalhos agrícolas são invocados de acordo com
uma sequência minuciosa:
 Sterculinius assegurava o estrume;
 Vervactor assegurava o primeiro desbravar da terra;
 Redarator assegurava a segunda passagem da charrua;
 Imporcitor assegurava a terceira passagem da charrua;
 Obrator assegurava o novo revolver da terra;
 Occator assegurava a gradadura;
 Seia assegurava o germinar do grão debaixo do solo;
 Segetia assegurava o germinar dos grãos;
 etc…

Outras divindades campestres:

 Fauno, dos bosques


 Fontanalia, das fontes
 Vallonia, dos vales
 Colatina, das colinas
 Terminus, preside à delimitação dos campos e depois fronteiras (limes) do
império
Rituais mais antigos do Lácio:

32
 Ceres, deusa da vegetação e Tellus, deus da terra, andam associados ao mais
antigo ritual romano, as Feriae sementivae (em abril): patrocinam o
matrimónio, a ligação do humano ao ctónico, i.e. fecundidade humana e
telúrica
 Flora com a festa dos Floralia, os jogos florais

Frase do dia: Faber est quisque fortunae suae, frase atribuída a Ápio Claudio
Cego (Appius Claudiuds Caecus, c. 41 a.C.) [cada um é o artífice da sua
fortuna/sorte]

O sacerdote dos cultos domésticos


 Crença enraizada: estes cultos estão profundamente associados à imortalidade
da alma
 Quem os ministra? O pai de família, coadjuvado por um escravo, é o sacerdote,
e, após a sua morte, será substituído pelo filho de sangue ou adotado, de modo
a haver sempre quem honre a linhagem dos antepassados (veja-se a
importância da linha masculina)
N.B: as raparigas não participam nos cultos domésticos até ao momento de casar
 O pater familias ministra as preces, os hinos ou outros rituais. Não há um
padrão e cada família tem o seu modo de os executar. Inicialmente são
exclusivamente um culto dos patrícios (note-se aqui a desigualdade social)
 O Pontífice Máximo tem por incumbência verificar se os rituais são bem
executados. Este é o garante da paz pública, de modo a evitar os perigos dos
Lémures

1) Culto dos antepassados


O culto dos antepassados está associado ao primeiro antepassado da família, fundador
da Gens, que é geralmente um homem (cf. Eneias é filho de Vénus, sendo o seu filho
Iulo, considerado antepassado da gens Iulia; Júlio César dizia-se descendente de
Vénus). Nos funerais de cidadãos costumava haver uma pompa (procissão) fúnebre
com as imagines dos antepassados em bustos de cera (guardados em casa) ou mesmo
atores contratados com máscaras. Esta pompa era aproveitada pelas grandes famílias
para propaganda política.

2) Culto dos Lares e Penates


O culto do Lar
O lararium ou sacrarium era uma espécie de capela doméstica, havendo uma ara
(altar) onde ardia sempre o focus patrius (cf. a palavra lareira na atualidade) que é um
fogo sagrado.

33
Há também um nicho com pequenos bustos de cera e, no meio, uma representação do
Lar familiaris (deus do lar) e as divindades denominadas Penates (etimologia Penus =
provisão) que garantem as provisões, o sustento da família.
Deuses Lares e Penates têm direito a oferendas de flores e a sacrifícios.

3) Culto dos mortos


É um culto de influência etrusca (cf. a importância das necrópoles para os Etruscos)
Em casa, as almas dos defuntos, os Manes, são honradas com oferendas de flores e de
alimentos nos dias dos seus aniversários, de que o pater familias tomava nota, para
passar de geração em geração.
As celebrações dos Manes, as Feralia, decorriam em fevereiro durante 9 dias e todas
as atividades públicas eram interditas, até os casamentos (cf. a tradição que Eneias
teria introduzido era as Feralia).
Associadas as estas, havia também cerimónias fúnebres públicas que culminavam nos
Idos de Maio (dia 15), as Lemuria. Celebravam-se durante 6 dias para esconjurar os
malefícios dos espetros:
o as Larvae, almas de criminosos ou das vítimas destes, almas penadas em busca
de justiça, e os Lemures, menos assustadores.
o no 6º dia, o dia 15 de maio, as Vestais (sacerdotisas de Vesta) atiravam ao rio
Tibre, a partir da pons Sublicius (ponte Sulício) cerca de 30 corpos (espécie de
espantalhos) em vime representando idosos (há hipótese desse tratar de
vestígios de primitivos sacrifícios humanos).

Restos da Ponte Sulício em 1872


A ponte Sulício também é conhecida por Ponte Aventino ou Ponte Marmórea. Foi
reconstruída muitas vezes, é a mais antiga ponte de Roma dos primórdios, atravessa o
rio Tibre no Forúm Boário, i.e. “fórum do gado”. A tradição faz remontar a construção
ao rei Anco Márcio c. 642 a.C.

4) Culto do Génio

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Cada ser vivo teria, desde o nascimento e até à sua morte, um Genius, um espírito
guardião, para o acompanhar.
Esta entidade espiritual masculina é frequentemente representada por uma serpente.
As mulheres não tinham Génio próprio, pelo que recorriam ao auxílio da deusa Juno
para a sua entidade espiritual (cf. a ideia de que as mulheres não tinham alma como
tema de debate na Idade Média).

Frase do dia: Ire fortiter quo nemo ante iit, provérbio latino [o mais ousado vai
onde ninguém ousa ir]

Cultos públicos
 Deuses de Roma:
1. O Estado também tem uma versão dos deuses domésticos: os Lares
(Rómulo e Remo), não têm Manes obviamente, mas têm Penates Publici
que velam pelo abastecimento da cidade. O local de culto é no Capitólio.
2. Numina principais e as tríades (1ª e 2ª)
3. Deuses indegetes (de origem romana)
4. Deuses gregos (assimilados via etrusca)
5. Deuses de origem oriental
6. Advento do Cristianismo (cf. com a matéria dada sobre o Cristianismo no
Baixo Império a partir de Constantino | édito de Milão)

2) Os numina principais e as tríades


Entre os numina (cf. matéria sobre os Numina especializados do Lácio primitivo),
alguns assumem maior relevo por presidirem a atividades de especial importância para
a comunidade:
- Saturno preside às sementes
- Jano preside à luz
- Marte preside à vegetação e, posteriormente, à guerra
- Júpiter é o senhor do céu e dos fenómenos atmosféricos

As tríades
1ª Tríade do Lácio primitivo é constituída por três divindades masculinas protetoras do
Estado: Júpiter, Marte e Jano. Jano viria a ser suplantado por Quirino, um deus da
guerra de origem sabina (mais tarde Quirino é associado a Rómulo divinizado)
2ª Tríade de influência etrusca (séc. VI a.C.) tornar-se-ia a clássica de Roma: Júpiter,
Juno e Minerva. Sendo o local de culto o templo de Júpiter Capitolino (no monte

35
Capitólio)
N.B: observe-se os atributos de cada divindade

3) Deuses indegetes
Os di indegetes são os deuses nacionais, Romanos, por oposição aos importados de
outras regiões, os di novensides.
 Carmenta (deusa das fontes e  Pales (deus ou deusa dos
da profecia) rebanhos e dos pastores)
 Ceres (deusa da agricultura, do  Pomona (divindade dos frutos e
casamento e dos cereais) das árvores)
 Fauno (deus da fecundidade e  Quirino (deus das colheitas)
dos animais, protetor dos  Saturno (deus do tempo, pai
rebanhos e dos pastores) dos três maiores deuses do
 Jano (deus com dois rostos que Olimpo- Júpiter, Neptuno d
cuida da porta dos céus: um Plutão)
virado para o passado e o outro  Telus ou Terra Mater (deusa da
para o futuro) terra e da fertilidade do solo,
 Júpiter (pai da maioria dos mãe dos titãs, ciclopes e
deuses, senhor dos trovões e gigantes)
raios)  Vertumno (deus das estações
 Liber (deusa da vinha) do ano e do comércio)
 Marte (deus da guerra, das  Vesta (deusa do lar e do fogo)
armas, dos camponeses, da  Vulcano (deus do fogo, forjador
virilidade e do trabalho árduo) dos raios de Júpiter)
 Minerva (deusa da sabedoria,
da estratégia, da arquitetura,
engenharia e artes)

4) Deuses gregos assimilados por via etrusca


Os deuses romanos de origem grega do período clássico explicam-se pelos
intermediários etruscos, as analogias não são arbitrárias porque Gregos e Romanos
são povos de origem comum indo-europeia.
- Terra + Céu (deus Urano) geram 12 titãs
- Entre os titãs: Cronos (depois associado a Saturno) ~ Reia (depois erradamente
associada a Cibele) geram:
o Zeus (Júpiter)
o Hera (Juno)
o Héstia (Vesta)
o Poseidon (Neptuno)
o Hades (Plutão)
o Deméter (Céres)
- Cronos (Saturno) ~ espuma das ondas gera:

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o Afrodite (Vénus)
- Zeus (Júpiter) tem diversas ~ e gera:
o Atena (Minerva)
o Apolo
o Ártemis (Diana)
o Hermes (Mercúrio)
o Dioniso (Baco)
Assim chegamos aos 12 principais deuses do panteão
romano (etimologia Grega = todos os deuses)

Os doze deuses do Panteão romano


Entre os séculos VI e III a.C. ficam definidos os deuses greco-romanos.

Representação dos doze deuses do panteão num banquete, denominado


lectisternium.

O culto do Imperador e de Roma


O culto do imperador é criado ainda em vida de Augusto. Mas começa-se por venerar
apenas o Genius de Augusto, só após a sua morte (14 d.C.) é que, por decreto
senatorial, Augusto será elevado a deus, Divus Augustus, e figurará no panteão: a esta
elevação chama-se apoteose (literalmente, ação de incluir entre os deuses). Este culto
une o Imperador aos seus súbditos.
Entre os imperadores posteriores, só alguns maus principes, como Calígula ou
Dominiciano, pretendem que haja o seu culto como deuses em vida.
O culto de Roma: altares em honra da deusa Roma começam a ser prática corrente
entre os cidadãos das províncias, e mesmo Latinos, imitando práticas Orientais (cf.
práticas no Egipto).
Locais de culto do Imperador divinizado e da deusa Roma: o altar principal é na capital
de cada província, mas cada município tem o seu. Os devotos são de todas as ordens
sociais, incluindo os libertos.

Decadência dos cultos tradicionais


Os cultos tradicionais começam a entrar em decadência ainda no final da República
entre os mais letrados e helenizados como os seguidores das doutrinas filosóficas
gregas, tanto estóicas como epicuristas, que se vão tornando céticos.
Epicuro, por exemplo, afirma que os deuses existem, mas que não se preocupam com
o homem.

37
Um dos objetivos de Augusto a partir de 27 a.C. (título que Octaviano recebe nessa
data) é reconstruir e consagrar templos seguindo os rituais nacionais. Mas, com o
tempo, várias crenças caem em desuso.
Nas sátiras de Juvenal (55/60 – após 127 d.C.) lê-se que Manes e o barqueiro Caronte
(que conduz as almas para o Além) são crenças infantis.
Os templos vão ficando em ruínas, alguns são mesmo pifados, várias festas deixam de
ser celebradas e os sacerdócios dos deuses tradicionais deixam de ser ocupados. Em
contrapartida, não faltam sacerdotes e templos de cultos estrangeiros.

5) Deuses de origem oriental


Durante as Guerras Púnicas os deuses vindos das regiões do Oriente começam a entrar
paulatinamente em Roma. Os Romanos são atraídos pelos mistérios das cerimónias
religiosas e também pelas promessas de felicidade eterna e de igualdade social
anunciadas por certos cultos. Compreendem cerimónias públicas e cerimónias
secretas, os chamados mistérios reservados aos iniciados.
Assim, Roma começa por acolher em 204 a.C. a célebre Lapis niger (pedra negra), ídolo
da deusa Cibele enviada pelo rei de Pérgamo, a pedido do Senado de Roma. A uma
cerimónia estatal de introduzir deuses novensides em Roma denominava-se evocativo.
Por outro lado, os Romanos têm dificuldade em aceitar certos cultos sangrentos como
o de Átis, divindade que se castra a si mesma (os sacerdotes eram sempre eunucos),
ou as festas bacanais (Baco) proibidas num senatus consultum de Bacchanalibus em
186 a.C. devido aos escândalos denunciados, que incluíam matronas embriagadas.

Evolução dos cultos Orientais


Os cultos orientais, em particular o de Ísis e de Cibele, conotadas com a Grande Mãe
(ver matéria sobre denominadores comuns das culturas mediterrâneas), conhecem
cada vez mais adeptos, em detrimento dos cultos romanos tradicionais. Isto
compreende-se pela expansão das fronteiras do império, e haver, além disso, mais
escravos de regiões orientais.
Reações:
Augusto esforça-se por erradicar esta progressão e o culto do imperador visa unificar
um império tão lato.
Cláudio vê-se forçado a reconhecer dentro de Roma o culto de Átis, antes interdito.
No século II d.C., o culto sangrento de Mitra, deus persa do céu, da terra e dos mortos,
penetras em todo o império. Este será, durante uns tempos, o grande adversário do
Cristianismo.

38
6) Advento do Cristianismo
Cristianismo
Até ao século III d.C. o culto do imperador e de Roma serão suficientes para manter o
Império unificado, todavia o Cristianismo (Jesus Cristo nasce no ano 749 desde a
fundação de Roma na datação romana) fará com que essa unidade seja posta em
causa e despareçam progressivamente os cultos aos deuses tradicionais. Assim se
percebe a tentativa girada do imperador Juliano (ver matéria sobre o Baixo Império)

O que atrai no Cristianismo:


- um deus único
- a igualdade (mesmo entre senhor e escravo)
- amor ao próximo
- a felicidade no Além por via da prática da virtude

 O que era sentido como ameaça para os Romanos: uma religião que recusa o
culto do Imperador e da deusa Roma constitui uma forma de fragmentar a
unidade do Império. Acresce o facto de também ser um fator perturbador da
moral (dá maior relevo a outros valores) e até da economia tradicional
(associada, por exemplo, a cultos assentes em sacrifícios animais).
As perseguições são locais até ao século III, sendo a primeira conhecida de 64
d.C., quando alguns acusam injustamente os cristãos do incêndio de Roma. O
culto é praticado inicialmente em segredo com recurso a missionários (os
apóstolos e os discípulos) e depois com um clero organizado na clandestinidade
que divide o espaço aproveitando as circunscrições administrativas romanas
(ver “vigário” e “diocese” usados no Baixo Império).
 As práticas de culto incluem uma iniciação pelo batismo e depois uma
confirmação; além das orações e dos jejuns em dias consagrados, celebravam-
se os ágapes fraternos nos quais eram consagrados o pão e o vinho como na
última ceia. É essa a origem da missa.

Frase do dia: dulces exuviae, dum fata deusque sinebat, accipite hanc animan
meque his exsolvite curis, Virgílio, Aen. 4, 651-652 (fala de Dido) [Ó doces
despojos, enquanto os destinos e o deus me permitam, recebei esta minha alma
e livrai-me dos meus cuidados]

1.
2.
2.1 A teologia mítica e os diferentes numina (cont.)

39
Sacerdócios e colégios sacerdotais
O Sacerdócio é simultaneamente uma atividade eivada de pragmatismo religioso e
cívico.
Os diferentes sacerdócios espelham o sentimento de ligação às Potestades superiores,
herdadas, como vimos, de uma complexa assimilação itálica, etrusca e helénica.
Este sentimento religioso é simultaneamente idêntico, porque permanece vivo por
longos séculos nos ritos fundamentais, e diverso porque os deuses foram adquirindo
atributos e formas novas, aumentando em número e os cultos tornaram-se mais
complexos em comportamentos e práticas.
A dupla fidelidade – ao idêntico – e abertura – ao diverso – está presente na própria
palavra religião (religião), substantivo sem equivalente em Grego.
*Nota: para colégios sacerdotais ver apresentações “Sacerdote”, “Vestal” e “Fígado”, que está
associado à prática da adivinhação, nomeadamente a aruspicina < ara (altar) + spicere
(observar)

Religio
Etimologia: apresenta duas possibilidades
1. Relegere (voltar a ler, voltar a tratar); cf. Cícero De natura deorum, 2,28
2. Religere (voltar a ligar, revincular); cf. Santo Agustinho

Qualquer uma das explicações é válida para a realidade romana. Por um lado,
procuraram ler com escrúpulo e respeito a vontade dos deuses para a cumprirem (ver
Eneias sempre fiel ao cumprimento da vontade dos deuses, pois eles estão na base da
sua missão). Por outro lado, a religião é como pacto jurídico entre o homem e a
divindade, um vínculo fundado na mútua ligação e religião às Potências superiores
expressa na exatidão do rito.
Quem não cumpre é voto damnatus, i.e. condenado a pagar. O sentimento de que
tudo quanto é religiosus, ainda que estrangeiro, é sagrado e intocável explica o
acolhimento dos cultos dos deuses dos vencidos, sobretudo orientais, e a quase
ausência de perseguições religiosas, até ao advento do Cristianismo.

Principais festas religiosas


Feriae; dies ferialis – dias sagrados, de festas religiosas, privadas (feriae privatae) ou
públicas que podiam ser de três tipos:
o Stativae – festividades fixas do calendário
o Conceptivae – festividades móveis, anunciadas pelos magistrados

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o Imperativae – festividades sob pedido (v. Impero = ordenar) para celebrações
ou expiações
Nos dias de festividades públicas, que incluíam sempre sacrifícios (de animais),
também podiam ser apresentados jogos (os Ludi), não raro aproveitados como forma
de captar adeptos políticos.
*Nota: os dias de Festas públicas e de Jogos foram aumentando cada vez mais da República
(cerca de 60) para o Principado (175). (pesquisar Festividades Romanas e Jogos)

A teologia mítica em Virgílio


Varrão (116-27 a.C.) chama-lhe também “teologia dos poetas”. Em Virgílio
corresponde quer ao sentido estético quer ao seu sentido mítico de natureza etiológica
ou natureza mais originária. Aclimata a Roma os deuses helénicos, não só porque estes
já constavam do panteão romano, mas por seguir os trilhos de poetas gregos que
cultivaram o género épico.
Encontramos na Eneida, em lugar cimeiro, a tríade sagrada que o autor fixa; trata-se
de uma arquitetura estética e religiosa na continuidade da tradição itálica em torno de:
Júpiter, Juno e Vénus (esta é a de perfil mais humano).

Modo de transplantar em Roma os deuses helénicos:


a) Há deuses que conservam nome romano mas adquirem forma e funções
gregas, como Saturno, primitiva divindade da agricultura, em cujo reinado a
humanidade teria vivido a idade de ouro, e se converte em Crono; Marte
(deus da 1ª tríade) símbolo da guerra e deus itálico da agricultura e da
juventude, reveste-se da mitologia do deus Ares; Neptuno passa de
pequena divindade aquática a imponente deus dos mares como Poseidon;
Ceres, deusa do crescimento das cearas, assume as funções de Deméter;
Juno, uma das mais antigas divindades itálicas, ganha a feição da Hera
helénica.
b) Deuses com dupla designação, grega e latina: Fauno, deus dos bosques e
dos sons misteriosos das florestas (cf. Flauta de Pã) surge também como Pã,
divindade venerada na grega Arcádia, com forma meio humana meio
caprina; Liber (Latim) alterna com Baco (Grego); Minerva (Latim) alterna
com Palas (Grego); etc…
c) Deuses apenas com designação helénica: Febo, Apolo, as Musas (pinturas
de Baldassare Peruzzi), Cibele, Íris, Éolo
d) Caso exemplar da assimilação de um deus grego, Apolo: Apolo pertence à
geração dos deuses olímpicos. A lenda refere ser filho de Zeus e de Latona e
gémeo de Ártemis. Um bando de cisnes voou sete vezes sobre a ilha de
Delos onde nasceu. Por isso o pai ofereceu-lhe um carro alado puxado por

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cisnes (a sua ave sagrada), uma lira e uma mitra em ouro. Viveu até
perfazer um ano na terra dos Hiperbóreos, depois regressou à Grécia e, em
Delfos, pôs termo à serpente Pito que semeava o terror, protegida pelo
oráculo de Témis. Apesar disso, fundou em honra de Pito os Jogos Píticos.
Apolo era um deus muito belo e os Gregos, além de aventuras amorosas,
identificam-no desde o século V a.C. com: o Sol (deus do arco e das flechas),
a pastorícia (daí o epíteto de apascentador de rebanhos), a arte e a música
(presidia ao coro das nove Musas), a medicina (era pai de Asclépio), a
adivinhação (patrono do oráculo de Delfos, o mais importante do mundo
antigo), a sabedoria, a justa medida, o equilíbrio e o sentido da lei moral e
jurídica (estavam em Delfos as sentenças dos 7 sábios).

Por que se dá tanto relevo a Apolo na Eneida?


[Não esqueçamos o papel de Augusto como patrono de Virgílio e a função encomiástica da
Eneida.]

- Além de receber culto em Delfos, também recebe em Ácio, célebre após a vitória de
Augusto sobre Cleopatra e Marco António em 31 a.C.
- Apolo não tem equivalente em Itália, onde chegou via etrusca denominado “Aplú” e
via colónias gregas da Magna Grécia. Ambas contribuíram para a difusão do seu culto
na Urbe. Este passou por 3 fases:
(1) Apolo médico corresponde à colocação dos Livros Sibilinos sob o seu
patrocínio e à edificação de um templo nos prados flamínios fora das portas de
Roma;
(2) Apolo Guerreiro instituído durante as lutas com Aníbal (guerras Púnicas),
com sacrifício segundo rito grego e jogos anuais, os Ludi Appolinares;
(3) fase que principia com Sila e culmina com Augusto. Quando era ainda
Octaviano, em 36 a.C., promete dedicar-lhe um templo dentro do pomério, no
monte Palatino. A construção dura 8 anos e o templo é consagrado em 28 a.C.
Nesse ano o imperador empreende a restauração dos santuários nacionais.
Como, entretanto, decorrera a batalha de Ácio, Augusto, sendo devoto pessoal
deste deus, nacionaliza e estatiza o culto de Apolo. Em sua honra celebram-se
em 17 a.C. os Jogos Seculares (cantados por Horácio no Carmen saeculare).
- Apolo é, assim, o deus mais citado na Eneida a seguir a Júpiter. Por outro lado, como
deus do equilíbrio e místico da harmonia, era venerado por pitagóricos e platónicos,
que Virgílio conhecia a fundo.

A teologia civil em Virgílio

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Esta é, segundo Varrão, a teologia formulada pelos legisladores e homens de Estado,
que estende o seu âmbito ao domínio das divindades telúricas e divindades do lar.
Isto só é possível numa sociedade em que é ténue a distinção entre público e privado,
político ou natural. Com efeito, o território era visto como espaço sagrado, cujos
limites estavam sobre proteção divina, porque houvera um lar como núcleo, cuja
expansão espacial dera origem à Urbe, a cidade de Roma (do plano micro para o
macro).
Espacialmente encontramos 3 círculos religiosos concêntricos, móveis e interferentes:
divindades do Lar, do Estado e da Terra com os respetivos cultos. Quando Virgílio
descreve certos ritos primitivos, evoca antiquíssimas divindades do campo ou da
família, celebra a religiosidade de Roma, manifestada através de sacrifícios, das
dedicações de santuários, da consulta de oráculos, da interpretação de auspicia (sinais
vistos) e dos omina (agoiros ou palavras ouvidas), da observação do estado das
vísceras (exta), dos prodígios e dos relâmpagos (fulgura), ou seja em tudo quanto o
poeta encontra conexão com o “sagrado” através de vínculos diversos.
Esta relação com o divino está patente no emprego constante de vocábulos como:
religio, sacer, sacratus, sanctus, sollemnis, pius, pietas, piare, piaculum.

Teologia filosófica
Existe igualmente uma teologia filosófica, que pode ser entendida, em certa medida,
como estóica. Há uma religiosidade filosófica de tipo intelectual que podemos pensar
que entraria em aparente conflito com o politeísmo patente na Eneida. Como resolver
a questão? Conseguindo conciliar tudo poética e simbolicamente.
Isto é visível se refletirmos em três temas tratados de forma única, que uma leitura
muito atenta nos permite encontrar:
- o “divino” e os deuses;
- a sorte das almas e o Além;
- o destino e o sagrado (ver o ponto 3 da parte II sobre valores morais).
Quem não se fez perguntas sobre estes temas (mesmo usando outro léxico) através
dos séculos? Constituem a essência do indagar sobre quem somos e como encontrar o
nosso lugar no universo enquanto vivos e, para quem não tem limites, depois de
mortos. Eis porque a Eneida, sem deixar de ser uma epopeia, é uma obra filosófica. Eis
porque se transformou numa obra de capital importância ética.
*Nota: pode-se estudar esta matéria também como introdutória aos valores morais em Roma

O “divino” e os deuses
Unidade do “divino” e pluralidade dos deuses. Virgílio não tenta resolver o problema
do uno e do múltiplo, que era central à filosofia desde os pré-socráticos, mas este

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emerge na sua consciência porque lhe chegara tanto por via popular como filosófica,
tanto romana como grega.
O “divino” apresenta, pelo facto, dupla origem: tanto é o numen (sg. de numina) da
tradição nacional, como é o “to theion” (o deus) da tradição filosófica helénica.
Sobre este fundo, pergunta-se quem são os deuses virgilianos? Meros símbolos? Se
fossem um quadro de fundo, aspetos ou símbolos de um deus único, não poderiam
dialogar nem tecer intrigas uns contra os outros (ex. Juno e Vénus). De modo análogo,
mas não idêntico (atenção!) os deuses virgilianos são a um tempo símbolos e
personificações. Não são símbolos primitivos, como os das epopeias homéricas, são
símbolos reflexivos.
Por outro lado, o poeta precisa de deuses antropomórficos, de “carne e osso”, figuras
apaixonadas e complexas.
O simbolismo espiritual e a visão cósmica de Virgílio esbatem o “humano demasiado
humano” dos deuses homéricos mas, quando esse “demasiado humano” (ex. alguma
crueldade nas ações dos deuses) irrompe na consciência do poeta, ele reage, capaz de
se espantar perante aspetos da tradição que, em princípio assume, mas sem duvidar
que, enquanto cadeia dessa tradição religiosa, deve aceitar o mistério da tradição,
mesmo naquilo que é desconcertante nas atitudes dos deuses (tão próximos dos
homens, tão antropomorfizados, porque imaginados a partir do modelo humano).

2.2 A topografia do Além da tradição Itálica

A sorte das almas e o Além


Também aqui há dupla tradição. A itálica de tipo popular e a grega de tipo filosófico.
Ambas confluem, sobretudo no canto VI, que constitui a síntese e a acme do poema.
Síntese: um futuro maravilhoso configurado
pela história de Roma.
- como descida ao mais profundo do
passado (catábase), manifesta em Acme:
encontros com Palinuro (vv.337-383),
- como cimo entre duas vertentes,
com Dido (450-476), com Deífobo
entre um mundo que se superou e se
(494547) nos Infernos;
esqueceu (Tróia e parte da viagem) e
- como ascensão (anábase) à luz, um mundo a construir (chegada a Itália
manifesta no desenrolar concreto de onde se cumpre a missão de Eneias).

1. A tradição itálica: embora as primitivas populações itálicas confiassem os mortos à


terra, em sepulturas coletivas, quer por inumação quer por cremação, a estas práticas
estava subjacente a ideia de que os espíritos dos mortos (cf. Manes=espíritos
queridos) continuavam a influir na vida dos vivos. Os Latinos acreditavam, até, que
esse influxo se exercia sobre a fecundidade da terra, no crescimento das searas. Por

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isso ganharam expressão os cultos associados à vinda cíclica dos mortos ao mundo dos
vivos. (ver aulas anteriores: as Lemuria e as cerimónias públicas em que o “Mundus
patet” três vezes por ano).

A Parentatio
Com o passar dos tempos, o Estado, consciente da necessidade de paz entre vivos e
mortos (que estão nos Inferi, onde levam uma existência fleumática), estabelece festas
litúrgicas. O mês escolhido foi fevereiro, o último do calendário romano. A vestal
suprema fazia o sacrifício denominado Parentatio inserido nas festas Parentalia,
realizadas a 13 de fevereiro. Estas terminavam com as Feralia, assinaladas por uma
oferenda de violetas, sal e outros elementos.
Durante 9 dias fechavam-se os templos e extinguia-se o fogo sagrado. A cidade
dedicava os seus pensamentos aos mortos, mas despertava para a vida com a festa das
Caristia ou Cara Cognatio, a 22 de fevereiro, com termo no dies parentales. Nas
Caristia cada família recebia os seus mortos para participarem num banquete sagrado
(cf. na Eneida, este culto dos mortos surge no Canto V (vide vv. 42-103) onde são
descritas as cerimónias fúnebres consagradas a Anquises. Estas são uma verdadeira
Parentatio).

2. A tradição grega: a tradição sobre a sorte das almas no Além assenta nas tradições
homérica (ver Ilíada, 23, homenagem de Aquiles ao seu amigo Pátroclo) e órfica (<
Orfeu).
A tradição órfica culmina em Platão:
- no Fedon demonstra a imortalidade da alma e a sua origem divina e descreve as
diversas regiões do Hades;
- no Górgias insiste-se na necessidade de julgamento após a morte;
- no Fedro está presente a ideia de metempsicose, da reencarnação ou, melhor, da
palingénese (renascer);
- na República (livro 10, 608c- 621d) reaparecem todos estes temas sintetizados, tendo
relevo o mito de ER, o panfílio.
Conclusão: Virgílio concilia as duas tradições romana e grega, ao estabelecer relações
entre vivos e mortos sob a forma de aparições (de Heitor, de Creusa, de Anquises, o
espírito dos antepassados) que nos levam entender em que medida os defuntos
“mandam”.

A topografia do Além
Pela leitura do Canto VI, verificamos que o Além é um espaço estratificado, que
compreende 3 zonas:

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1ª) um verdadeiro limbo que funciona como espaço intermédio, no plano
psicológico e moral, entre os outros dois (o da bem-aventurança e o do
castigo), é destinado aos que morreram na infância, aos suicidas, aos
condenados à morte por engano, e às vítimas do amor (como Dido);
2ª) Tártaro, onde os criminosos são supliciados, não é visitado por Eneias, mas
descrito pela Sibila (vv. 608 ss.);
3ª) Campos Elísios são a pátria dos felizes. Lá encontramos as almas de Orfeu,
de Ilo, de Assácaro, de Dárdano, de Meseu e de todos quantos pela cultura e
pelo bem-fazer se tornaram beneméritos da humanidade, assim como por
quantos se ilustraram por feitos militares.
Conclusão: a Topografia do Além constitui um indicador da ética virgiliana.

Frase do dia: …quo fata trahunt retrahuntque sequamur;


quidquid erit, superanda omnis fortuna ferendo est, Virgílio,
Aen. 5,709-710 [sigamos os destinos por onde nos conduzam e
voltem a conduzir, tudo se pode sempre superar sobre a
fortuna]

3. Os ideias e as conceções morais


A ética virgiliana está patente nos valores que Virgílio intentou encarnar em Eneias: a
pietas e a virtus, ambos valores familiares, cívicos e religiosos. A pietas foi
personificada e divinizada pelos romanos. Dedicaram-lhe um templo da Piedade no
forum holitorium (<holus, legume), i.e. fórum em que se vendiam legumes, em 181 a.C.
A pietas regulava as relações entre pais e filhos, entre os indivíduos, entre a família
(gens) e pátria, e entre homens e deuses. Envolvia, pois, sentimentos de vinculação e
de respeito, de justiça, de amor. A pietas era fundamental na mundividência e no
comportamento dos Romanos.
Conclusão: radica aqui a explicação para Eneias, não-itálico de nascimento, ter sido
adotado como herói nacional romano. A lenda de Eneias era conhecida pelo menos
desde VI a.C. em monumentos iconográficos dedicados à piedade filial do herói, como
esta estátua de Eneias fugindo de Tróia, representado a transportar o pai às costas e o
filho pela mão.

O destino e o sagrado
Este é, como atrás referimos, o 3º tema da teologia filosófica subjacente em Virgílio.
Há várias expressões do destino:

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(1) fatum no singular e fata no plural surgem 120 vezes na Eneida. A etimologia da
palavra não é clara. Segundo Varrão deriva do verbo fari (falar), pelo que fatum
seria a palavra dita pelo adivinho ao prever o futuro. Cícero no De fato define-
o como “a mútua conexão das coisas, pela eternidade ligadas, a qual, por
ordem e lei próprias, de tal modo varia, que a própria variedade participa da
eternidade”. Mas na segunda metade do século XX os eruditos foram
compelidos a repensar este tema, pois foi encontrada em Tor Tignosa, junto de
Lavínio, local onde se desenrolam vários episódios da Eneida, uma inscrição
dedicada à deusa Fata, fazendo remontar o culto a, pelo menos aos séculos IV
ou III a.C., mas podendo ser mais antigo.
O que designa Fata? Surge como Parca ligado ao destino individual, pois no séc.
IV é inverosímil ser um conceito coletivo ou universal (essa transformação
operar-se-ia em Roma graças à ação dos estóicos sobre a mentalidade romana.
FATUM na Eneida vem na sequência do conceito homérico de moira (a sorte
destinada aos indivíduos ou à coletividade).

(2) Fortuna com etimologia eventual em fors (sorte) ou verbo fero, no sentido de
dar à luz, pelo que a Fortuna seria a sorte ou destino com que cada homem
nasce. Adquire depois outros valores semânticos, mas em Virgílio adquire 6
aceções: azar ou sorte; rigoroso determinismo; determinismo misturado de
incerteza que deixa margem à iniciativa; numen deum (vontade dos deuses);
iussa deum (ordens dos deuses) e Parcae, as Parcas que personificam o destino.
O destino, porém, em algumas passagens surge como algo passível de ser
modificado.

Níveis de realização do destino


 destino individual – sorte incerta e atormentada de um homem e a sua morte
ou, o seu contrário, a sorte gloriosa que coroa os esforços, patente na Eneida
no destino do herói;
 destino coletivo – o destino trágico de Tróia (mas, em boa verdade, é deste que
emergirá o destino glorioso de Roma)
 destino universal – este é na Eneida assegurado por três fatores: o acaso; a
vontade dos deuses (ex. Júpiter sobre todos os mortais; ou a ligação de Vénus
ao destino de Eneias; ou Juno como representação da vontade divina
desfavorável a Eneias e seus descendentes) e o Destino, entidade universal,
que não parece ser abstrata pois é bastante assimilado à vontade de Júpiter (cf.
expressão fata Iovis = destinos de Júpiter, quase sinónimo de vontade de
Júpiter; é este deus que gere a ordem dos destinos, ordo fatorum).

A importância dos valores morais


Os valores constituem normas para uma conduta ideal, permitem ao homem cumprir
o seu destino, naquilo que é a sua margem de realização. Esta é, provavelmente, a
maior manifestação de idealismo por parte de um povo tão realista e pragmático.

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Até as abstrações que configuram os valores se tornaram divindades, embora sem
rosto e sem figura. Assim são a Honos (honra), a Virtus (coragem, valor), a Victoria
(Vitória), a Felicitas (felicidade), a Spes (esperança), Fides (lealdade; ver apresentação
sobre Fides), a Pietas (Piedade), a Concordia (concórdia), a Libertas (liberdade) (para
estas últimas ver também as matéria dada sobre o advento da República e o
Principado)
N.B. de entre os 14 principais os valores morais, sendo indissociáveis das ideias
políticas, vários foram já estudados no enquadramento da matéria lecionada.
Consulte-se, todavia, Mª Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura
Clássica|Cultura Romana, IIª parte, pp. 319. 417-423. Aqui encontra-se uma boa
síntese, mas todos serão progressivamente analisados aproveitando os restantes
tópicos do programa.

Frase do dia: ‘dicam equidem nec te suspensum, nate, tenebo’ suscipit Anchises
atque ordine singula pandit, Virgílio, Aen. 6,722-723 (resposta de Anquises ao
filho) [‘Dir-te-ei, ó filho, e assim não te deixarei suspenso’ responde Anquises e
revela-lhe por ordem cada um (= cada segredo)]

4. A educação
Frase do dia: Omnium ultilitatum et uirtutum rapacissimi, assim se refere Plínio,
25,2,2, s 4 aos Romanos [grandes arrebatadores de tudo quanto há de útil e de
válido]

Condicionamentos na educação
A educação é diferente consoante:
o o género – rapazes e raparigas são ensinados de acordo com as suas funções na
sociedade. Temos, por isso, de começar por enquadrar as fases de vida no
masculino e no feminino.
o a época – antes e após as Guerras Púnicas

1) Distinção de Género e fases da vida


Mulher (Mullier): fases da vida  Uirgo – donzela
associadas ao estado civil e à  Uxor – mulher casada
maternidade  Matrona – mãe de família
 Anus – mulher idosa
 Infans* – infante, criança do
(literalmente a que já não pode
nascimento até 7 anos
ter filhos)
 Puella – rapariga

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Homem (Vir): fases da vida associadas à  Adulescens – adolescente, dos
idade, independente do estado civil 17 aos 30
 Juvenis – “jovem”, dos 30 aos 46
 Infante – infante, criança do
 Senior – dos 46 aos 60
nascimento até 7 anos
 Senex – dos 60 aos 80
 Puer – rapaz, dos 7 aos 17 anos
 Aetate provecta – provecta
idade após os 80

Cf. costume que se prolongou de chamar “menina” às senhoras solteiras


*Nota: infans – etimologia in + fari (verbo arcaico para falar), significa o que ainda não fala, i.e.
fala mal. Por aqui se vê a importância da palavra em Roma.

Nascimento
 A criança herda a condição social do pai, mas, sendo filho natural (fora do
casamento), herda a condição da mãe.
 Durante a Monarquia (até 510 a.C.) só as famílias patrícias seguem estes costumes
e rituais específicos:
- Dies lustricus – o dia em que a criança é legitimada pelo pai numa cerimónia
frente ao Lar: rapazes no 9º dia de vida, raparigas no 8º*.
O pater familias (pai, avô ou membro da família paterna deslignado) ergue
o bebé do chão (tollere filium) para o reconhecer e assim entrar na família.
Depois o bebé é purificado (lustratus) e coloca-se ao pescoço a bulla (um
medalhão com amuletos) em ouro (aurea) ou de coro (scortea). Só depois
recebe o praenomen (nome próprio).
Caso isto não acontecesse, non tollere filium, a criança era condenada à
morte por exposição, o que podia acontecer se fosse deficiente. Sabemos
que era permitido pela Lei das XII Tábuas (451-50 a.C.)

 Durante a República (após 510 a.C.) os plebeus acedem às práticas antes


reservadas aos patrícios, incluindo poder usar tria nomina. As famílias eram
fecundas, só a partir de I d.C. é possível encontrar casais sem filhos, mesmo
adotivos. No início do Principado, Augusto vai tomar medidas para incentivar os
casamentos com filhos.
*Nota: havia grande mortalidade infantil, por isso esperava-se até ter alguns dias de vida (a
bula também pretende proteger)

A adoção
Só os rapazes são adotados para perpetuar a gens de quem não tem filhos varões.
Primitivamente tratava-se de uma venda simbólica do pater familias ao pai adotivo.
O nome - o costume de tria nomina é de origem estrusca e só se usa para rapazes:

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- Praenomen (dado nos dies lustricus) corresponde sempre ao de um
antepassado;
- Nomen geralmente terminado em -ius (ex: Iulius usado pela gens Iulia), é o da
família como hoje o apelido;
- Cognomen, começou por ser um praenomen que indicava uma característica,
depois passou a ser designação de um ramo da família.
O rapaz adotado usa os três nomes do pai adotivo e, além disso, um segundo
cognomen que indica a família de origem. A rapariga usa o nome da família no
feminino: se pertence à gens Cornelia, chama-se Cornelia. Não muda de nome ao
casar.

Educar a mulher para o casamento


A rapariga é educada para ser dona de casa e mãe, aprende sobretudo a fiar (domina
lanifica), mas também pode aprender a ler e a escrever, consoante o desejo dos pais.
Isso será comum na República, sobretudo após as Guerras Púnicas e no Principado.
Usa a bula até casar e entra em idade núbil a partir dos 12 anos. Os rapazes podem
casar legalmente a partir dos 14 anos (idade de tomar a toga viril), mas regra geral
casam tarde aos 35 anos (ver idade do cursos honorum).
Do ponto de vista legal, a mulher é sempre menor, embora a mater familias, vulgo
matrona, seja honrada como guardiã do lar e, ao nível doméstico, costume gozar de
autoridade.

2) Tradição e invocação na educação romana: tradicionalismo


A atitude dos Romanos face à vida pauta-se, como já vimos a propósito do
acolhimento de cultos estrangeiros, pela dupla capacidade de fidelidade (1) e de
abertura (2).
A fidelidade está patente no tradicionalismo, que encontra a sua expressão sintética
no culto do mos maiorum (costume dos antepassados). Toda a ação educativa repousa
no culto e imitação dos antepassados.
Agentes da educação: a família constituía o meio adequado para a formação do
homem, do seu carácter, do seu sentido da vida e da morte, dos seus deveres para
com a pátria. A religião é, assim, parte integrante da educação: cada casa tem um altar
onde são venerados os antepassados (ver Cultos domésticos), mas essa veneração
funciona como um apelo quotidiano à imitação das suas virtudes morais e cívicas, da
sua exemplaridade de heróis anónimos ou de nome ilustre. A Ab Urbe Condita (Desde
a fundação da cidade), história em 142 livros escrita por Tito Lívio (59 a.C.- 17 d.C.), é
um “hino” a essa teoria, manifesta nos heróis como Horácio Cócles, Régulo, Camilo,
Cincinato, entre outros (ver função das lendas).

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A função educativa da família
A família romana representa, de facto, um pequeno mundo independente e quase
completo, onde se gera a força mais sólida e mais eficaz para a criação da grandeza da
Cidade (a Urbe) e do Império (o Orbe). Entre os Romanos é difícil distinguir o público
do privado. A natureza do indivíduo submete-se ao bem público.
Nos primeiros séculos o homem é para o Estado: o objectivo da família consiste em
educar o cidadão em função da “salus populi” [salvação do povo], i.e. para defender e
morrer pela comunidade. Confronte-se com a identificação entre a moral do herói e a
moral do cidadão.
Nesse pequeno mundo, a formação dos jovens romanos assenta em princípios muito
simples, que Cícero reduz a 3:
- grauitas - a plena consciência da responsabilidade;
- pietas – respeito integral por todos os direitos divinos e humanos;
- simplicitas – o sentido do valor exato de cada coisa.

As funções do pai (Pater)


Em cada família o Estado está representado pelo Pater familias. Investido de patria
potestas, este tem o direito de vida e de morte sobre escravos, mulher e filhos, noras e
até netos (cf. Lei das XII Tábuas).
Origem deste poder: está mais vinculado ao sentido de poder biológico e jurídico do
que à paternidade como a entendemos.
A patria potestas corresponde ao que, no domínio público, é o imperium (vet matéria
da parte II, ponto 1). Não foi por acaso que os Romanos designaram a divindade que
simbolizava o poder vital com o nome de Liber Pater (equivalente parcial a Dioniso
grego). Com o tempo, sobretudo graças à ação da filosofia grega, nomeadamente
estóica, abrandaram os rigores da patria potestas e os Romanos encontraram um
equilíbrio entre o indivíduo e coletividade.

Contributo de outras qualidades na formação do cidadão


- a virtus é a qualidade que capacita cada cidadão de agir no interesse de todos;
- a dignitas (dignidade humana) obriga-o a realizar aquilo que lhe permite a sua
posição social, subordinando o interesse próprio às exigências da comunidade;
- a decus (honra) apoia-se sobre uma definição da lei moral: o bem absoluto só
poderá ser atingido elevando os dados de consciência ao nível de uma
disciplina geral;
- a magnanimitas (energia pessoal) permite ao homem superar-se e encontrar
plenitude nesta regra de vida (ex: um governante magnânimo ≠ de bondoso; é
o que adequa o seu comportamento cívico ao bem do outro).
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O cidadão é tanto mais útil aos outros quanto mais nobilita as necessidades cívicas a
um ideal superior: a humanitas (aqui noção do que é o homem) ultrapassa a noção de
mero cidadão. A humanitas exige que cultive a reflexão filosófica, o aperfeiçoamento
interior, a meditação. Deste modo atinge o grau mais alto da sua condição humana e,
se estiver à frente dos destinos da cidade, recorre à magnitudo animi (grandeza de
alma), à patientia (força para aguentar) e à clementia (força para perdoar).

A função da mãe (Matrona)


Cícero afirma que os seus compatriotas não são superiores aos outros povos pela
coragem guerreira ou pelo engenho, excedem, todavia pelo sentimento de vinculação
ao próprio lar (espaço de culto da sua gens= família).
A mãe educa ambos os filhos até aos sete anos: veicula ensinamentos conducentes ao
sentimento de amor ao lar e família. Este sentimento de vinculação assenta no, já
referido, culto dos antepassados e na atmosfera de afeto que as matronas sabem criar
ao educarem os filhos na infância. Este papel é tão importante que criou modelos
como: a mãe de Coriolano (ver a lenda já estudada); Cornélia, a mãe dos irmãos
Gracos; Aurélia, a mãe de Júlio César ou Átia, a mãe de Augusto.

3) A Inovação e o modo grego


Na educação, embora grandes tradicionalistas, os Romanos não temeram inovar e
fizeram-no de 3 modos:
a) pela admissão de mestres estrangeiros, em particular Gregos, a partir da
conquista da Magna Grécia em 272 a.C.
A escolha de pedagogos gregos intensifica-se, depois, durante o século dos
Cipiões e o seu círculo cultural (241-129 a.C.), com o final da primeira
guerra Púnica: Paulo Emílio entrega os filhos a professores gregos que os
põem em contacto com a biblioteca do rei Perseu, que este derrotara em
Pidna (168 a.C.); Cornélia, mãe dos célebres tribunos Gracos, dá-lhes por
educador Diófanes de Mitilena, um mestre de eloquência, e Blóssio de
Cumas, um filósofo estóico;
b) pela instituição de escolas públicas, intensificada a partir do principado, sob
Augusto;
c) pela compreensão em mandar completar a educação dos jovens romanos
com uma viagem ao estrangeiro: primeiro à Etrúria e, mais tarde, a partir de
118 a.C., à Grécia.

N.B.: Inspiraria muitos séculos depois a prática do Grand Tour, o nome dado a uma
tradicional viagem pela Europa, costume que floresceu cerca de 1600 até ao

52
surgimento do tráfego ferroviário na década de 1840. Era feito principalmente por
jovens de classe média-alta, e está na origem - até etimologia - histórica do turismo
contemporâneo, sobretudo no Ocidente. Visava conhecer in loco a Antiguidade
Clássica e o Renascimento.

Instrução
Desde o final do séc. III a.C. as famílias com posses confiavam a instrução dos filhos a
pedagogos.

 Ludus - Cerca de 223 a.C. começa a abrir em locais importantes o Ludus litterarius
[escola primária] para crianças pobres, frequentado por rapazes dos 7 aos 15 anos
e raparigas dos 7 aos 13, onrde aprendiam a ler e a contar. O mestre, litterator ou
litteratus, recorria ao castigo com uma varinha, a ferula. Durante o principado
imperadores encorajam a abertura de escolas nas regiões mais recônditas do
Império.

 O “ensino secundário” a partir de II a.C. visava somente rapazes de estatuto social


elevado. Compreendia ensino em Grego e em Latim distribuído por dois ciclos: a
Gramática confiada ao grammaticus visava o comentário de autores gregos como
Homéro, Hesíodo e Platão; a Retórica confiada ao rhetor era para estudo da
eloquência, também de modelos helénicos.

Autores gregos. Porquê? A literatura latina ainda dava os primeiros passos; por
outro lado, a nobilitas não tolerava que fosse ensinada nas escolas eloquência
latina de modo a afastar da política os chamados homens novos (cavaleiros sem
antepassados ilustres).

 O “ensino superior”: os jovens aristocratas ou abonados aprimoravam e


aprofundavam os estudos sobretudo em cidades gregas.
Durante o principado multiplicam-se os Centros de Estudo em todo o Império:
- Itália (Roma, Milão e Treviso) e Gália (Marselha, Bordéus e Autun);
- Grécia e Ilíria: Atenas, Rodes, Mitilene e Apolonia;
- Ásia: Pérgamo, Antioquia e Esmirna;
- África: Alexandria e Cartago

N.B. O conceito de ensino primário, secundário ou superior era inexistente, é aqui


usado por conveniência pedagógica.

53
Educação
Durante a República a patria potestas vai perdendo o rigor e, desde meados de II a.C.,
a confiança vai substituindo a autoridade. O reverso da medalha é os pais irem-se
desinteressando a pouco e pouco pela educação (centrada nos valores ≠
conhecimentos) e deixam-na mais entregue a escravos com conhecimentos, mas nem
sempre bons exemplos.
A educação das raparigas era ainda mais negligenciada, nas famílias ricas ficavam em
casa até casar.

Educação e cultura
A abertura na educação dará frutos na cultura. Esta atitude manifestada primeiro face
à superioridade cultural dos Etruscos, torna-se, depois, evidente com o mundo grego,
durante o referido século dos Cipiões. Estes homens da ação, grandes conquistadores,
começam, não isoladamente, mas em grupo, a consagrar parte do seu tempo a um
otium cultural: este objetivo permitirá edificarem uma espiritualidade romana
correspondente ao universalismo das suas conquistas. De certa forma, serão os
salvadores do helenismo e perpetuam a cultura grega (ver o papel da mediação na
civilização romana.)

5. As artes: a escultura, a pintura e a arquitetura


Frase do dia: Naturalia non sunt turpia, a propósito de um comentário de Sérvio
(finais IV-V d.C.) às Geórgicas 3,96 de Virgílio [as coisas naturais não são
vergonhosas/torpes]

O génio Latino
A palavra Génio (etimologia < genius do verbo gigno, nascer) começou por designar o
poder reprodutor do Pater familias, sendo desde logo divinizado (ver Cultos
domésticos), daí, por extrapolação do humano no cósmico, passou a ter outro valor
semântico, é esse que aqui nos interessa: representa o poder gerador de cada
realidade, e posteriormente, o talento.
O génio pode definir-se como um sistema (= conjunto organizado) e dinâmico das
tendências da psique individual e coletiva.
O génio de um povo é a “alma nacional”, a “consciência nacional”, i.e. um conjunto
articulado, consciente e subconsciente, de ideias, tendências e sentimentos, gerado
pela natureza em torno de certos núcleos comuns e que se exprime através da língua,
das formas de vida quotidiana, das instituições económicas e políticas, da sua visão do

54
mundo e da sua maneira de estar no mundo, da sua arte, da sua literatura, dos seus
mitos e ritos.

N.B. Este ponto será melhor ser compreendido após ter estudado bem a parte I do
programa. Só os enquadramentos geográficos e históricos permitem perceber de que
modo se declinou o génio latino nas artes.

O génio é regido por três princípios


1) o princípio de derivação ou fator geográfico: o génio de um povo procede do
ambiente geográfico em que a sua existência decorre, em permanente conexão
com os caracteres étnicos desse mesmo povo e com as estruturas sociais em
que ele se organiza. (ver onde nasce Roma, posição na península itálica)

2) o princípio de formação ou fator genético: o génio de um povo constitui-se


parcial, embora essencialmente, pelo desenvolvimento das relações intra-
históricas desse mesmo povo. Resulta de semelhanças nos comportamentos e
nas reações psíquicas, simpatias ou antipatias da “mentalidade” e que consiste
numa certa maneira de encarar o mundo e as ideias, de sentir a vida. (ver os
substratos étnicos da Itália e a relação de povos graças à conquita da península
itálica 496-270 a.C.)

3) o princípio de complexificação ou fator histórico: quanto maior a diversidade


étnica, quanto mais íntima for a interpenetração dos seus elementos e quanto
maior for a diversificação das suas relações históricas, tanto mais complexo
será o génio desse povo, mais rica será a sua cultura. (ver influências sofridas
do exterior: etrusca, grega – Magna Grécia - e culturas do Mediterrâneo).

Características do Génio romano: realismo e idealismo na arte


O realismo na arte
“Ars aemula naturae” [A arte emula/é rival da natureza], Apuleio Met. 2, 4, 7
O gosto pelo retrato, com traços individuais e concretos, passíveis de transmitir
características de carácter, surge na escultura (1), incluindo a herança etrusca dos
sarcófagos e as máscaras fúnebres das famílias patrícias exibidas como glória dos
antepassados, na pintura (2), no mosaico(3) e, principalmente, no baixo-relevo
histórico (4), - este a partir de I d.C. - onde o realismo é evidente e, obviamente, na
numismática (5), que serviu para dar a conhecer os imperadores através do império.
Quando o baixo-relevo é histórico, ao narrar o quotidiano ou uma batalha, a tendência
é sempre uma representação da vida real, embora se acrescentem cenas alegóricas ou
personagens simbólicas.

55
Na pintura saliente-se igualmente o extremo realismo das naturezas mortas.

O retrato
A arte do retrato emerge no período de Alexandre o Grande até ao declínio do império
romano do Ocidente (476 a. C.). As relações com a arte grega principiam através dos
intermediários etruscos, prolongam-se com o contacto direto com a Magna Grécia e,
depois, com o mundo grego. A conquista do Mediterrâneo Oriental faz convergir em
Roma vários artistas gregos. A muitos são pedidas cópias de obras gregas ao gosto dos
conquistadores romanos e foi assim que ficámos a conhecer muito do
que deveriam ter sido muitos dos originais gregos, entretanto perdidos.
Os retratos em pintura perderam-se dada a
efemeridade das tintas, permaneceram sobretudo as
estátuas.
A vida religiosa (incluindo a crenças no além
testemunhadas pelos requintes dos túmulos etruscos)
e os retratos dos antepassados das famílias patrícias,
cujas máscaras de cera eram colocados no átrio da casa e
expostas nas pompas fúnebres, demonstra como
as manifestações associadas ao mos maiorum influenciaram a arte
romana.
Considera-se que há arte romana desde o final da 2ª guerra Púnica.
Mesmo permeável a influências (mediação), houve capacidade de
adaptar ao gosto e génio romano. O retrato – âmbito individual – e o urbanismo e a
arquitetura (grandes edifícios no fórum) que revelam a capacidade de planear em
função da ordem para um coletivo alargado, são elementos chave da originalidade da
arte romana

O retrato na escultura
Contribuiu para desenvolver o retrato realista o costume de Patrício em
fazer pompas fúnebres com os retratos dos antepassados mármore de I a.C.
(masculinos) em máscaras faciais de cera ou bustos, atendendo exibindo os bustos
ao chamado “verismo”. dos antepassados.
[Colecção
O retrato em bronze de Bruto, 300-275 a.C. [Museus
Barberini].
Capitolinos, Roma], expressa o ideal de masculinidade e
cidadania romana (cf. Início da República);

56
Catão, o Censor, data desconhecida, de rosto austero,
Rostos
retratado segundo os traços reais.
femininos,
época
imperial.

O retrato na pintura

Mulher 50-40 a.C; Rapariga Herculano séc.I d.C; jovem com rolo; pinturas realistas em múmias
femininas, Fayum, época romana.

O retrato no mosaico

O mosaico romano é uma forma de arte excecional, pois


cada cubo de pedra tem a sua cor e com estas pedras
coloridas formam-se imagens (≠ de pintar a pedra depois de
composta a imagem).
O mosaico pode ser de dois
tipos: geométrico (Vide
Mosaico de inúmeros exemplos no
Pompeios, I Museu do Bardo, em Tunes) e o
d.C. figurativo com representações
humanas ou da natureza.
No segundo grupo estão os retratos, mas não são abundantes, sendo mais figurados
divindades e figuras mitológicas.

O mosaico haveria de continuar o seu percurso artístico no império romano do oriente


com a arte bizantina.

O baixo-relevo histórico
Arco de Tito

57
Comemora a conquista de Jerusalém por Tito, em 79 d.C. A Via Sacra do Fórum
Romano passa sob o Arco de Tito. Os relevos celebram as vitórias e os espólios nas
guerras judaicas, no saque de Jerusalém. A conquista de Jerusalém resultou na
destruição do Templo de Salomão, de que restam os alicerces, conhecidos como o
famoso Muro das Lamentações.
Outra consequência foi conhecida como a Diáspora dos Judeus em 79 e levou à
expulsão dos judeus da Judeia.

SENATVS POPVLVSQVE · ROMANVS DIVO · TITO · DIVI ·


VESPASIANI · F (ILIO VESPASIANO · AVGVSTO [O Senado e o
povo romano ao Divino Tito Vespasiano, filho do Divino
Vespasiano]

Friso interior onde vemos a menorah judaica, o castiçal de


sete luzes pertencente ao Templo de Jerusalém.

O Arco de Trajano, em Benevento, tem 15,6 m de altura e


8,6 m de largo, e apenas um vão. Foi construído em pedra
calcária e revestido de mármore entre 114 e 117, está em
excepcional estado de conservação. O arco marcou a abertura
da Via Trajana, uma estrada entre Roma e Brindes (no Sul da
Itália) Em ambas as fachadas existem colunas e as suas
paredes mostram diversos painéis em relevo com cenas da
vida de Trajano, que são dos melhores exemplares de
escultura histórica deste período.

A coluna de Trajano (c. 110 d.C.)


A Guerra contra os Dácios
O melhor exemplo da arte dos relevos romanos é a coluna
de Trajano constituída por 18 grandes blocos de mármore
branco de Carrara esculpidos com relevos que contêm
mais de 2.000 figuras humanas, entre as quais surge com
frequência o imperador. Os relevos, além de narrarem a
guerra contra os Dácios, também mostram cenas do
cotidiano dos soldados, a colher trigo ou a construir um

58
aqueduto. A coluna constitui uma das mais valiosas fontes de informações sobre o
exército romano. No interior da coluna, uma escada em espiral de 185 degraus e
iluminada por 43 fendas em intervalos regulares levava até o topo onde ficava a
estátua de Trajano. Na base da coluna foram guardadas as cinzas do imperador. No
século XVI, a estátua de Trajano foi retirada para dar lugar à estátua de São Pedro.

As naturezas-mortas pretendem imitar a realidade através de perspetiva com planos


e sombras

O idealismo na arte
Sendo bastante realistas, nem por isso os Romanos foram destituídos de idealismo;
este foi a antítese e o complemento do realismo.
Isto está patente:
- no gosto por abstrações no domínio religioso (ver Fides, Spes, Pietas, etc..)
depois representadas na arte;
- nos corpos das estátuas imperiais que não correspondem ao corpo verdadeiro,
mas um ideal
heroico e
mítico,
segundo uma

iconografia do poder;
- nos retratos dos camafeus ao serviço da propaganda política;
- na estética de simulacrum visível no fachadismo da decoração com pinturas
parietais e frescos (trompe l’oeil) a simularem paisagens naturais,
arquitetónicas e materiais nobres, como o mármore; e a chamada
“marmorização” de edifícios com pedras em mármore, a partir de Augusto
(mais tarde retiradas para a construção dos palácios italianos do Renascimento;

59
- na conceção dos jardins, que recriam a Natureza, mas disciplinada em
canteiros, paisagens recriadas, lagos e grutas artificiais e estatuária (uma
estética retomada sobretudo no século XVIII, como nos jardins de Versalhes).

Abstrações e corpos idealizados

Deusa Pomona (da Ideal feminino da pudicitia (< pudor) recato


abundância e dos de matiz sexual
pomares) simbolizado por uma
mulher velada.

Mulher com rosto real, mas corpo representado como


o as deusas: Marcia Furnila, mulher do imperador Tito, posando como
Vénus e matrona anónima.

A iconografia do poder: estátua de Augusto da chamada Prima Porta (19 a.C.)


O realismo rígido do retrato no fim da República transforma-se, nos
derradeiros anos do último séc. I a.C., pela perícia e delicadeza da
escultura helenística, num género que, sem deixar o realismo da
Natureza, idealiza as feições humanas. Estas características
encontram-se bem patentes nos retratos oficiais idealizados do
imperador Augusto, de que se salienta a famosa estátua da Villa de
Lívia, na Prima Porta [Museu do Vaticano]. O corpo do imperador,
em trajos militares, corresponde aos ideais heroicos, sobretudo pela
couraça cujos relevos da comemoram o ano 20 a. C. com estandartes
capturados pelos Partos na batalha de Carras. A pose deriva de uma
estátua clássica grega, possivelmente Doríforo de Policleto. Mostra o imperador como
ele desejava aparecer ao mundo, a simbolizar a auctoritas.

60
A iconografia do poder: corpos idealizados

Imperador Tito (39-81) com rosto real, mas corpo


de herói (cf. Estátua de Augusto).
Antinoo, o favorito de Adriano (76-138), embora
fosse realmente belo, tinha estátuas por todo
o império, como se fosse um deus. Ao lado o torso de um centauro marinho da mesma
época.

A iconografia do poder: poses para a posteridade


Imperador Cláudio (10 a.C.-54 d.C. ) O
imperador carrega o caduceu e veste a
capa “petasus”. Museu Pio Clementino.

Estátua equestre de Marco Aurélio,


bronze, 176 d.C. Foi o modelo para as
estátuas equestres desde o
Renascimento (cf. D. José I em
Lisboa).

O retrato de camafeu: exemplares do grupo


doa “Camafeus Estatais”
Camafeu dito de Blacas [12,8 cm de altura],
representa Augusto (r. 27 a.C.–14 d.C.) como
um deus. Esculpido sobre ónix com quatro
camadas alternadas de branco e castanho. Data
talvez de 20-50 d.C.
Gema de Augusto ou Grande camafeu de Viena [19 x 23 cm]. Esculpido sobre ónix
árabe com duas camadas de branco e castanho azulado. Descreve a apoteose de
Augusto. No séc. IV a Gema foi transferida para Constantinopla.

61
Camafeus com intenção propagandística
Grande Camafeu [31 x 26,5 cm] em ónix, dito de Paris, 23
d.C. É o maior da antiguidade e chegou-nos porque estava
em Constantinopla.
Pretende legitimar a continuidade dinástica da dinastia júlio-
claudiana.
Apresenta 24 figuras, dividas por três níveis. Nível superior: os falecidos com Augusto
cercado por Druso II e por Germânico a voar sobre cavalo Pégaso e eventualmente
Eneias a segurar o globo. No nível médio estão os vivos – o imperador Tibério (r. 14–
23) no centro, acompanhado de sua mãe Lívia Drusa (viúva de Augusto) e Nero
(herdeiro designado de Tibério) de um lado e Druso III e Calígula do outro. No nível
inferior, alguns bárbaros cativos.

A estética de simulacro na pintura


A descoberta (no Renascimento) das ruínas de Pompeios e de Herculano, soterradas
pela erupção do Vesúvio em 79 d.C., permitiram aos especialistas definir Quatro
Estilos. A descoberta da casa de Nero em Roma, a domus aurea, também foi
esclarecedora.
A pintura romana nas paredes de Pompeios foi classificada em quatro estilos pelo
alemão Augusto Mau (1840 - 1909), no século XIX. Os dois primeiros estilos
observados por Mau em Pompeios refletem o período republicano e o início do
principado. Os frescos populares foram pintados no período republicano, que
terminou em 27 a.C. e pouco foi influenciado pela arte grega.
Note-se que, exceto primeiro que é bastante datado, podem coexistir diferentes
estilos numa mesma época.

Primeiro estilo:
denominado de
“incrustação” (c. 200
até I d.C.)
O primeiro estilo de
Pompeios teria tido
origem em leigos do período helenístico até o século III a.C. em Alexandria. É
caracterizado por paredes coloridas a imitar retalhos em mármores caros, importados,
com imensa variedade de cores para a decoração das paredes, sendo de interesse o
efeito tridimensional para simular o incrustado. Como nem todos tinham condições
para pagar, os pintores imitavam o efeito marmoreado. É um estilo decorativo, mas

62
com menos valor artístico que dos três seguintes. (Casa do Fauno e Casa Sanittica,
Herculano)

Segundo estilo: denominado arquitetónico (c. 80 a.C. a meados de I d.C.)


Constitui uma mistura do primeiro estilo, mas com blocos de mármore falso ao longo
da base (roda-pés) das paredes. Difere do primeiro estilo, que permanecia no nível da
parede; o segundo estilo tenta iludir a visão com trompe l’oeil (enganar os olhos),
utiliza a perpectiva para recriar janelas, casas e paisasagens fantasiosas, onde pode
haver figuras de temática grega, em tamanho natural que envolvem o observador.
Chama-se arquitectónico por serem usados elementos arquitetónicos para unificar as
pinturas e, assim, surgem imagens de colunas e relevos fantásticos a sugerir
movimento.
Exemplos deste tipo de pintura estão na Vila dos Mistérios, em Pompeios, na Villa de
Boscoreale, perto de Pompeios (Vide Museu Metropolitano de Nova Iorque), na Casa
de Lívia
no

Palatino, Roma (Vide Museu delle Terme), nas


cenas da Odisseia encontradas numa casa no Esquilino (Vide Museu do Vaticano).

Vila de Boscoreale
Vila dos Mistérios
(Oecus  grande
sala)

Terceiro estilo: alguns denominam enfeitado

63
O terceiro estilo pompeiano surgiu
no início do século 1 d.C. e foi
popular até 50 d.C. Caracteriza-se
por superfícies sem efeitos de
perspectiva e de ilusão de
paisagem exterior, mas com
planos monocromáticos e riqueza de pormenores,
como colunas e frontões incorporados, mascarões e outras fantasias teatrais para
paredes com frescos.
Exemplos de pintura do terceiro estilo são o painel com candelabro, na Vila Agripina
Póstumo, de I a.C. ou a Vila de Boscotrecase de Roma com fundos negros.

(casa de Casca Longus)

(Vila de Boscotrecase)

Quarto estilo: denominado intrincado


É o estilo pompeiano mais representado: começou a ser usado cerca de 80 a.C.
permanecendo nas reconstruções de 62 d.C. (quando houve o primeiro terramoto) até
79 d.C. aquando da erupção do Vesúvio.
Mau baptizou-o de "estilo intricado“ por
fundir os três estilos anteriores: usa-se blocos
de mármore na base das paredes, como o
primeiro estilo; cenas arquitetónicas
naturalistas, como no segundo estilo; grandes
superfícies planas com pormenores
arquitetónicos à moda do terceiro estilo.

64
Neste estilo encontramos ainda imagens em painéis centrais com cenas da mitologia,
episódios do quotidiano e paisagens bucólicas (do campo), com gado, pastores,
santuários e colinas.
Fresco naturalista, Herculano; Casa do Poeta Trágico, fresco com Teseu e Ariadne.

Duas pinturas italianas que retomam as decorações denominadas grotesco (<grotta=


gruta) porque a casa de Nero estava encoberta por escombros quando foi escavada no
Renascimento: um fresco e o auto retrato de Andrea Mantegna.

Paisagens de simulacrum urbanas (pintura do 4º estillo, Herculano)


6. O teatro e a expressão musical
“O ator é o orador do ócio” – palavras atribuidas a Róscio, ator contemporâneo de
Cícero.

Frase do dia: Oculi pictura tenentur, aures cantibus, Cícero, Academica, 4,20 [os
olhos são cativados pela pintura, os ouvidos pelos cantos]

Teatro e Música
É impossível compreender o teatro clássico - o Grego e o Romano - sem o elemento
musical. O espetáculo com enredo cantado corresponderia, nos nossos dias, a algo

próximo da opereta e da ópera. No espaço greco-romano não havia representação


sem acompanhamento de instrumentos musicais e, em vários géneros teatrais, sem
dança.
 Antecedentes: as manifestações teatrais da Grécia antiga e o culto de Dioniso
Na verdade, foi assim que tudo começou no
Ocidente em 2500 a.C.: rituais de fertilidade com
danças e cânticos na Grécia Antiga. Ou seja, tudo
principiou como um ritual religioso em que as
tribos pagavam tributo ao deus Dioniso. Mais tarde
nasceria o coro com cerca de 15 elementos, que

65
representava a comunidade, e só em 543 a.C. surge o 1º ator, Téspis, que se destaca
do coro – o corega, chefe do coro - e com ele dialoga.
O drama nasce em Atenas com hinos
a Dioniso, deus da vegetação e da
fertilidade da terra. As celebrações
com participantes a usarem máscaras
proporcionavam um clima de êxtase
libertador. Podemos dizer que o deus
da “mascarada” se torna o deus do
teatro. O maior festival, as Grandes
Dionisíacas, ocorria na Primavera, e ao longo desses dias de representações a estátua
de Dioniso estava no teatro, que se tornava, assim, um espaço sagrado. Na Grécia as
cerimónias unem o cívico ao sagrado.

Origens do teatro na Península Itálica


As origens das manifestações teatrais, os ludi scaenici [jogos cénicos], diferem das do
mundo grego.
1. Tito Lívio (Nat. hist. VII, 2, 1-13) situa o início dos jogos cénicos em 364 a.C.
com a apresentação de Etruscos a dançarem ao som da flauta para aplacar os deuses
(a versão é contestada). Trata-se de um espetáculo sem enredo nem palavras,
tipicamente itálico em que atuam histriões (< (h)ister = ator). Os jovens começam a
acolher estas paródias em mímica.
2.Surgem as saturae com música de flauta a acompanhar versos cantados, mas
grosseiros (≠ dos versos fesceninos obscenos, provavelmente de origem estrusca) e
movimentos do corpo a condizer.
3.O interesse pelo mimo manter-se-ia mesmo depois de haver teatro de origem
literária, é o caso das atelanas de origem osca (<cidade de Atella) que perduram até o
fim do Império Romano do Ocidente. Tratava-se de mimos rústicos, por vezes
obscenos, com personagens tipo que perdurariam.
Ex: Buccus - o glutão; Maccus - o parvo e depois palhaço; Pappus - o velho tonto;
Dossenus - o vigarista velhaco e astuto. [há quem defenda que estas personagens de
teatro popular estão próximas das da commedia dell’arte com caricaturas e
estereotipos, em Itália no início do séc.XVI].

O teatro literário

O teatro literário constitui um parêntese na história teatral latina e nasce por vontade
política.

66
As peças com argumento são representadas pela primeira vez em 240 a.C., terminada
a 1ª guerra Púnica (264-240), por encomenda dos magistrados. Nesse ano o rei Hierão
II de Siracusa visita Roma. Os magistrados pretendem demonstrar que Roma não fica
culturalmente atrás das cidades gregas da Magna Grécia. Foi apresentada uma satura
em que um ator falava enquanto outro gesticulava.
Lívio Andronico, antigo escravo da Magna Grécia, é incumbido de escrever e adapta
desde então obras gregas. Este já traduzira um hino coral interpretado por 27 jovens à
maneira grega para os Ludi Tarentini (de Tarento) ordenados pelos Livros Sibilinos em
249 a.C.
O ritual da “evocatio” destinado a acolher deuses estrangeiros repete-se a outro nível,
também se traduz aquilo que é “estrangeiro” mantendo o exótico grego do original.
Note-se que o próprio espaço de representação é de matriz exótica (cf. o edifício)
A inovação consiste na adaptação ao enquadramento dos jogos romanos (cf. os Ludi):
estética do espetacular com encenações grandiosas e bastante música, sobretudo
canto.
Música: de início o teatro latino mantém o acompanhamento musical, mas reduz as
partes cantadas, todavia o público romano é melómano, percebe-se que terá havido
supressão de vários coros e um aumento do número de árias individuais. Para não
perder audiência os “grandes géneros” vão tendo cada vez mais partes cantadas.

Géneros de teatro
1. Peças imitadas do grego com tema grego são fabulae palliatae (os atores vestem
pallium, o manto grego) tanto as tragédias como as comédias;
2. Peças imitadas do grego com tema romano: tragédias - fabulae praetextae (os
actores vestem a toga pretexta como alguns magistrados); comédias - fabullae
togatae (os actores vestem toga simples)
3. Representações populares como reação ao teatro literário:

67
-atelanas com personagens tipo, atrás referidas;
- mimos que são paródias de lendas mitológicas;
- pantomimas que são, como hoje, apenas linguagem gestual.

(1) (2) (3)

Autores a

considerar
Comédia inspirada na Comédia Nova grega: foi escrita sobretudo na época helenista
(240 a.C.- 79 a.C.), i.e., o período dos primórdios da literatura escrita, bastante
influenciada pelo mundo grego da Magna Grécia.
Há dois nomes a reter:

 Plauto 250-184 a.C. (oriundo de Sarsina, Úmbria)


 Terêncio c.185-159 a.C. (oriundo do Norte de África)

Tragédia

 Dos tragediógrafos na época helenista só nos chegaram fragmentos a


considerar de Énio (239-169), Pacúvio (220-130 a.C.) e Ácio (170- 94 a.C.)
 Da época claudiana (14- 68 d.C.)
Séneca (Lucius Annaeus Seneca, Córdova 4 a.C. - Roma 65 a.C.) legou-nos nove
tragédias, que temos na íntegra, foram escritas para leituras públicas e nunca foram
representadas na Antiguidade:
Hércules furioso As Troianas As Fenícias
Medeia Fedra Édipo
Agamemnon Tiestes Hércules no Eta

A dimensão cívica do homo spectator

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Durante cerca de 10 séculos Roma foi a cidade do Teatro: desde os histriões etruscos
no séc. IV a.C. até finais de IV d.C., e mesmo após o fim do Império Romano do
Ocidente.
Em A Cidade de Deus, Santo Agustinho testemunha que os Romanos refugiados em
Cartago em 410 d.C. só têm vontade de ir ao teatro e de dedicar-se a outros prazeres.
Esta referência indica a importância do teatro na sociedade romana como
manifestação da sua dimensão cívica. Cada cidadão assume-se como homo spectator:
assistir a uma representação torna um Romano um homem civilizado.
Os ludi scaenici, como os restantes ludi, são parte integrante do otium do cidadão do
espaço urbano. Tanto durante a República como no Principado, o cidadão romano
ficará politicamente definido como consumidor de espetáculos. O teatro era gratuito.
O magistrado designado para cada tipo de ludus (dator ludi assistido por um curator
ludorum) e o imperador são os organizadores ou patrocinadores e, entre os jogos, o
teatro constitui o espaço de encontro de duas forças: o público aclama ou apupa. O
poder mede a sua popularidade.

Os ludi e os ludi scaenici


Os ludi em geral começaram por ser festas religiosas, algumas das quais com
atividades culturais, dirigidos por sacerdotes: surgem danças rituais, danças guerreiras
(ludus Trioae) com cavaleiros, corridas a pé e com carros, mas sem espaço próprio.
Na República os ludi são organizados por magistrados e decorrem no circo.
Inicialmente celebram o cumprimento de um voto feito antes de uma campanha
militar, dedicação de um templo ou por outro motivo específico, como em 240 a.C.
aconteceu com os 1ºs jogos cénicos. Estes decorrem, todavia, num espaço efémero
construído em madeira. Começa então a haver um calendário regular para os jogos e
nestes há dias consagrados ao teatro.

O espaço do circo nasce antes do edifício destinado ao teatro

69
Calendário dos jogos: quase todos incluem ludi scaenici

 Ludi Megalenses em honra da Magna mater – desde 204 a.C.; 4 ~ 10 de abril-


com teatro
 Ludi Ceriales em honra de Ceres –desde 202 a.C.; 12 ~ 19 de abril
 Ludi Florales em honra de Flora- desde 173 a.C.; 28 abril ~ 3 maio- com teatro
 Ludi Apollinares em honra de Apolo – desde 212 a.C.; 6 a 13 de julho - com
teatro
 Ludi Romani (antes ditos Magni) em honra de Júpiter - desde 366 a.C.; 15 a 18
de setembro; depois 4 ~ 19 de setembro - desde 364 com teatro
 Ludi Plebei - desde 216 a.C.; 4 a 17 de novembro- com teatro a 13

Além destes, há ludi pontuais organizados no âmbito de cerimónias fúnebres em


homenagem a cidadãos ilustres ou para celebrar vitórias. Servem para propaganda dos
seus patrocinadores. Os jogos estão ao serviço da política. Em 112 d.C. por exemplo
Trajano presenteia o povo com 30 dias de jogos dos quais 15 de representações.
Em Roma um cidadão assiste muito mais tempo a teatro do que na Grécia: na
República chegamos a ter 77 dias de ludi, dos quais 55 com ludi scaenici, sob o
Principado a proporção é de 101 em 175 dias de festejos.
A partir de 105 a.C. todos os Festivais organizados pelo estado passam a ter combates
de gladiadores. Estes não eram considerados ludi, mas munera (porque não há
simulações, joga-se a vida ou a morte) tendo origem no munus fúnebre dos Etruscos.

Chegamos a uma equação: civilização = a mitologia


(temáticas das representações) = teatro
O teatro entretém a memória, sobretudo no caso da tragédia.

O teatro como espaço testemunha de uma civilização

atores Uma construção para representar é muito mais do


que um registo arquitetónico, espelha os objetivos
civilizacionais e revela uma forma mentis.
Teatro, theatrum (< grego θέατρον), designa não a
representação em si, mas o local destinado ao
espectador (cf. Θεάσομαι, o verbo “contemplar”).
Se observarmos um teatro grego, ele tem realmente quase a forma de um olho e
aproveita o declive natural de uma colina para sentar os espectadores. Vê-se e ouve-se

70
de todos os lugares como é próprio de um espaço simultaneamente sagrado e
democrático.

Evolução do edifício romano


Os primeiros teatros eram construções em madeira,
destruídos depois dos dias de representação. A lei
impedia a construção de teatros permanentes por serem
espaços destinados uma simulação da realidade. Só em
55 a.C. foi erigido o teatro de Pompeu com um templo,
de modo a subverter a proibição.
O modelo de teatro romano difundiu-se por todo o império. Não se aproveita o relevo
natural de uma colina, edificam-se as bancadas como uma construção de arcadas. No
bilhete de entrada, a tessera, indicava-se o número do assento, da secção e por vezes
até o nome da peça. (Teatro de Palmira, Síria)

A planta do edifício romano espelha a hierarquia social


1. Frente da cena (Scenae frons), de pedra para
4.3
5 4.2 Secção colocar o cenário, normalmente composto de
4.1 (Cuneus) uma dupla linha de colunas.
2. Orquestra (Orchestra), semicírculo diante do
2 3
6 proscênio, reservado a magistrados.
1 Cena < skene 3. Ádito (aditus), corredores laterais para
7 entrada na orquestra.

4. Bancadas (cavea) onde os espectadores, ficavam sentados segundo a


estratificação social. Era subdividido em: cávea inferior (ima cavea), cávea
média (media cavea) e cávia superior (summa cavea). Nestes havia secções.
5. Vomitórios (vomitoria): Entradas abobadadas por onde se acessava à cávea e
que facilitavam a saída rápida dos espectadores.
6. Proscénio (proscaenium), espaço diante do palco onde colocam as decorações;
mais à frente ficava o pulpitum, a boca de cena, onde os atores se
movimentavam.
7. Pórtico detrás do cenário (porticus post scaenam), espécie de pátio com
colunas, detrás do cenário ou palco.

O ator, os músicos e o seu estatuto


Nas manifestações dos primórdios, os atores, homens livres, eram histriones, histriões
(etrusco < hister), depois recebem o nome de ludiones (< verbo ludere). Quando surge

71
o teatro com texto ou literário os atores, sempre homens, escravos e libertos, são
denominados scaenicii:
– os comoedi (comediantes)
– os tragoedi (atores trágicos)
Quando no Principado se regressa à pantomima havia quem cantasse e falasse pelos
atores. Só nos mimos eram permitidas mulheres, tal como os homens recrutados entre
escravos e libertos.
As companhias, greges (cf. substantivo gregário), estavam organizadas havendo um
dono da companhia, dux gregis ou simplesmente dominus. O diretor de pessoal era o
corego (choragus). A estes juntavam-se costureiros, maquinistas e músicos.

Fama versus infâmia


Ao contrário da Grécia onde eram homens livres respeitados (cf. sacralidade inerente
ao teatro grego) os atores romanos eram de baixa condição social e, exceto os atores
das Atelanas, não gozavam de direitos cívicos; estavam condenados à infamia.
Estavam privados de iura publica (direitos políticos): ius sufragii (direito de voto); ius
honorum (direito de ser eleito); ius sacrorum (direito de exercer sacerdócio); ius
provocationis (de apelo em tribunal); e de iura priuata (direitos privados): limitações
relativas ao ius conubii (matrimónio) e ius commercii (de exercer atividade comercial).
Considerava-se que quem pisava um palco perdia momentaneamente a sua
personalidade para dar corpo a uma personagem, este facto não era compatível com
os princípios do mos maiorum pois não se podia deixar de ser um cidadão por um
intervalo de tempo*. Em contrapartida, um ator famoso podia ser idolatrado pela
multidão e ser bastante rico, era uma espécie de “star system” da Antiguidade.
*O nome histrio era, aliás, sempre pejorativo, como hoje “farsante” ou “comediante”.
Recorde-se que ser ator ou dançarino não trazia boa reputação no mundo ocidental
até há bem pouco tempo.

Os músicos tocavam no pulpitum ou boca de


cena; por pisarem esse espaço do “não real”
também começaram por perder os seus direitos,
por isso passaram para as partes laterais do palco
e depois vieram tocar em baixo do palco,
ocupando o espaço da orquestra encostado ao
palco onde estavam os primeiros lugares dos
magistrados, cujos assentos recuaram. Nascia
assim o atual fosso da orquestra.

72
(Actores entre máscaras com flautista. Mosaico do tablinum [sala de receber] da casa do Poeta
Trágico, Pompeios, M. N.de Nápoles)

Instrumentos musicais

 Flautas duplas:  Usavam-se múltiplos instrumentos


de sopro, de percussão e de cordas:

 1) Pandeireta; 2) lira; 3)
trompete; 4) sistrum; 5) corneta
curva (cornu); 6) espécie de
sambuca; 7) flauta e 8) címbalo:

7. A Literatura e a Filosofia

Frases do dia: Litterae thesaurum este t artificium numquan moritur, Petrónio,


46,8 [a literatura é um tesouro e o talento jamais morre]
Effugete non potes necessitates, potes vincere, Séneca, Ep. 37,3 [não podes fugir
às necessidades (=fatalidades), mas podes vencê-las]

O Realismo na Literatura
Manifesta-se em géneros e em temáticas:

73
1) na importância dada à temática campestre, quer em verso quer em prosa:
Geórgicas de Virgílio, um dos poemas mais perfeitos da literatura latina, nos
vários tratados sobre agricultura conhecidos por* De re rustica ou De
agricultura da autoria de Catão, o Censor (234-149 a.C.), Varrão (116-26 a.C.),
Columela (fl.60 d.C.) e Paládio (já no séc. IV);
2) na crítica social que revela um agudo sentido de observação, bastante presente
na sátira, o género romano mais original, como reivindica Quintiliano (35-95
d.C.) ao referir «Satura tota nostra est» [A sátira é inteiramente nossa=
Romana] in Institutiones oratoriae 10, 1, 93;
3) no gosto pela epopeia ou retrato moral: a literatura latina é invulgarmente
abundante em descrições em que a psicologia de personagens históricas é
apresentada em traços impressivos e indeléveis. Exemplo disso são os retratos
nas obras de Salústio (86-35 a.C.) - Jugurta, Mário, Sila, Catilina, César, Catão,
Semprónia, etc.-, de Cícero (106-43) -Catilina, Marco António, Verres, etc.-, de
Tácito (55-120 d.C.) -(Tibério, Nero, Agripina, Messalina, etc.-, para não falar
nos Douze Césares de Suetónio (70-168 d.C.).(cf. o retrato na arte).
*Recorde-se que os tratados são designados pelos temas e raro por títulos, daí haver
vários com o mesmo nome.

Tradicionalismo na Literatura
As manifestações literárias do Lácio primitivo são bastante incipientes, sendo
essencialmente Hinos religiosos, Cantos fesceninos, conviviais, fúnebres e heroicos. No
domínio da prosa devemos salientar um gosto pela preservação da memória através
de anais.
Verifica-se uma continuidade de géneros literários ao longo dos séculos, o que
também se pode explicar por terem sido todos (a exceção será porventura a sátira)
introduzidos em Roma em simultâneo, por influência helénica, após a conquista da
Magna Grécia, nomeadamente a tomada de Tarento em 272 a.C.
A história da literatura não acusa revoluções profundas nem mesmo ruturas abissais
de geração para geração ou de século para século. Mantem-se, podendo haver
tendências “modernistas” ou “arcaizantes” ao nível do estilo dos autores.

Três exemplos mais importantes de continuidade


1. A epopeia
O primeiro grande poema nacional romano são os Annales de Quinto Énio (239-
169 a.C.), em que o autor se propõe celebrar os feitos de Roma, ano a ano, desde o
início até ao seu tempo, em verso com ritmo tipicamente romano, o hexâmetro
dactílico, por ele adaptado do Grego para o Latim. Énio será continuado por
Lucrécio (C. 94-55 a.C.) no De rerum natura [Sobre a natureza das coisas] que é um

74
poema filosófico e didático e este por Virgílio (70-19 a.C.), que por sua vez será
continuado por Estácio (c. 45-96 d.C.) e este por Claudiano (final de IV d.C.).
Mesmo sendo poemas de natureza diferentes são epopeias.

O género épico
Na hierarquia literária, a poesia épica surge em primeiro lugar, responde, de certo
modo, à apetência do Romano pelo grandioso e pelo bélico.
Roma não reunia as condições propícias ao nascimento de um género épico sobre a
vida heroica de matiz maravilhoso, como na literatura grega homérica nascida da
oralidade (cf. canto dos aedos Cultura clássica Grega). A epopeia nasce em Roma de
forma voluntária e consciente, talvez por isso nem sempre o género tivesse atingido a
grandeza conhecida na Grécia.
A épica romana é uma confluência de
3 tendências:

[Legado Homérico] [História nacional] [Poesia Alexandrina]

a) Lívio Andronico (cf. origens do teatro) traduz - adaptando - para Latim a


Odisseia homérica em versos de ritmo saturnino (Saturno seria o deus mais
conotado com o solo itálico, daí a expressão saturnia tellus para a Itália).
Porquê a Odisseia? Associar o périplo de Ulisses no Mediterrâneo a paragens
itálicas seria um modo de ligar culturalmente a Itália a um legado grego
considerado superior.
b) Névio (270-201 a.C.) compõe uma epopeia, também em versos saturninos,
dedicada a um tema histórico atual, o Bellum Poenicum, sobre a 1ª Guerra
Púnica, demonstrando que, a par de lendas gregas, a epopeia pode recorrer à
história nacional.
Énio (239-169 a.C.) escreve os seus Annales semi-épicos ou semi-históricos em
versos dactílicos (abandonam-se para sempre os saturninos).
c) No início de I a.C. Roma fica a conhecer os poetas gregos do século II a.C. Estes,
vivendo em Alexandria, cultivavam uma poesia mitológica erudita e concebem
um modelo de epopeia mitológica muito requintado. Em Roma perdeu-se o
poema de Calvo, mas temos um pequeno poema de Catulo escrito nestes
moldes: o Epitalâmio de Tétis e de Peleu.

O género épico no principado

75
É a época de um dos maiores poemas épicos da história da literatura ocidental: a
Eneida de Virgílio (70- 19 a.C.), o poeta clássico por excelência. O autor de inspiração
multifacetada, já havia escrito um conjunto de 10 poemas de tema rústico, as
Bucólicas, onde se revela, até certo ponto, adepto de uma filosofia Órfica; também
escrevera as Geórgicas, em 4 cantos, glorificando o trabalho da terra.
A Eneida é uma narrativa épica em 12 cantos, onde se conta o périplo de Eneias, fugido
de Troia para vir fundar um reino, berço da futura Roma, na península itálica. É o
poeta que canta a Itália. E Augusto admira-o e protege-o por vários motivos: é capaz
de fazer amar a pátria itálica, ao descrever as paisagens, as produções, o clima e a
incomparável beleza, consegue compreender a sedução da vida do campo (Geórgicas)
e transmite aos concidadãos o orgulho pelo seu passado nacional ao ressuscitar as
origens lendárias da Urbe (Eneida) e inspirar o culto pelas tradições ancestrais
(Geórgicas e Eneida). Quase até ao fim da sua vida, Virgílio admitiu pacificamente o
poder supremo de um homem cuja generosidade exalta, na sua poesia, pela ação
pacificadora e pela pietas. Segundo alguns estudiosos, nos últimos anos ter-se-á
desiludido com a política de Augusto e tentado destruir o seu poema épico.

A Eneida apresenta um equilíbrio de tripla inspiração


a) homérica - decorrente das batalhas da Ilíada, das viagens da Odisseia; visível
nas invocações rituais; na descida aos Infernos; na descrição do escudo; na
intervenção dos deuses.
b) tradição romana - o passado lendário, a antecipação histórica por meio de
profecias; o quadro geográfico familiar aos Romanos, sobretudo a partir do
canto VII; os pormenores arqueológicos que fazem do poema a epopeia de
Roma.
c) a presença virgiliana - sente-se a personalidade do autor através da grande
sensibilidade (demonstrada nas outras obras face à natureza e aos animais) no
desenho das personagens: os heróis guerreiros, os apaixonados e os jovens ora
eivados de piedade (Eneias, Anquises), de furor pelo combate (Turno, Camila),
de fidelidade conjugal (Andrómaca), de paixão desesperada (Dido); nas
narrações dramáticas como a pilhagem de Troia, evocação do reino de
Evandro, etc.).
Lucano e os continuadores do género épico
Lucano (39- 65 d. C), poeta estóico de família hispânica, era sobrinho de Séneca e
morreu com 26 anos, vítima de Nero, deixando uma epopeia histórica inacabada,
Farsália, em 10 livros.
O tema pertence ao passado relativamente recente: a guerra civil entre César e
Pompeu. Toda a simpatia vai para os pompeianos retratados como defensores dos
valores republicanos e da Libertas. Já César surge como um arrivista sanguinário e

76
sacrílego (convém pensar na analogia com a sua própria época e na crítica implícita);
nesta épica todo o maravilhoso dispensa o acessório mitológico e apela a alegorias.
Perderam-se outras epopeias da época de Virgílio, posteriormente encontramos
poemas enfáticos e rebuscados como o de Silo Itálico (25-101) que descreve em 17
cantos a 2ª Guerra Púnica; Valério Flaco (?- 93 ? d.C.), inspirado por Apolónio de
Rodes, a narrar as aventuras de Jasão, ou Estácio (45- 96?) autor de 2 epopeias, a
Tebaida e a Aquileida (temas gregos).

2. A analística e a história
A analística é fundada pelos Annales Maximi (≠ da obra de Énio) que eram registos
publicados anualmente pelo pontífice máximo, a partir de 300 a.C. Surge depois a
elaboração cronística de Fábio Pictor, que escreve em Grego durante a 2ª Guerra
Púnica (218-201 a.C.).
Pictor é, por sua vez, continuado por Énio e por Catão, o Censor (234—149 a. C.)
nas Origines. Depois deste por Cássio Hemina, Cíncio Alimento, Postúmio Albino e
Quinto Acílio (destes só há fragmentos)
O espírito da analística continua vivo no Ab urbe condita [Desde a fundação da
cidade] de Tito Lívio (59 a-C.- 17 d.C.) que, sendo uma obra histórica, tem um rasgo
épico. Lívio faz uma história de Roma em 142 livros (chegaram 35) desde os
primórdios até ao ano 9 d.C. Era republicano e amigo de Augusto, mas não lhe
agradava o modelo de transição para o principado (Cf. Parte I), pelo que preferiu
abster-se de escrever muito sobre o principado.
Este espírito tem continuação em Públio Cornélio Tácito (c. 55- 117 d.C.), cuja
principal obra histórica viria a ser intitulada Annales no Renascimento. São 16 livros
narrando os acontecimentos entre a morte de Augusto (14 d.C.) “Ab excessu divi
Augusti” até aos antecedentes da morte de Nero.
É o próprio Tácito quem, no livro III cap. 65, define as leis do género:
«o meu objetivo não é relatar todas as opiniões mas apenas aquelas
que se assinalam quer pela sua nobreza quer pela sua insigne baixeza:
penso que a tarefa principal do analista consiste em não silenciar as
virtudes e em inspirar às palavras e às ações perversas o temor da
infâmia reservada para a posteridade.»
Embora tivesse sido um longo caminho desde os Annales Maximi até os de Tácito,
o espírito de perpetuar a memória de acordo com o modelo analístico conservou-
se, no fundo, idêntico.

3. A sátira

77
A sátira é uma criação romana de Lucílio (c. 180- 102 a.C.) a quem Horácio chama o
seu inventor, embora também refira Énio a quem designa por auctor (ver Sat. I, 10,
66). Esta criação de Lucílio, apesar das influências gregas de Arquíloco, da Comédia
Antiga (ex. Aristófanes), de Menipo de Gadara (1ª metade de III a.C.) e da diatribe
(ou livre pregação) dos filósofos cínicos e estóicos, e apesar de tão livre no seu
conteúdo e de tom pessoal, observa, na multiplicidade dos seus cultores um certo
“ar de família”, que torna o género bem diferente dos “modelos” gregos.
Mas a sátira viria a florescer sobretudo no início do principado entre o séc. I e início
do II, durante um curto período. A evolução social acelerada pela organização do
regime imperial favoreceu o aparecimento de novos ricos e também uma
corrupção dos costumes. Estes factos propiciaram a verve ácida e mordaz romana
(Cf. o realismo do retrato esculpido ou escrito manifestações desta característica)
aliada a uma tendência moralizante. Os seus grandes cultores foram:
Horácio (65 a.C. - 8 d-C.) autor de 2 livros de sátiras (denominadas Sermones);
Pérsio (34 - 62 a. C.), seguidor da filosofia estóica, compôs 6 sátiras;
Juvenal (65? - 128?) escreveu 16 longos poemas satíricos distribuídos por 5 livros.
Podemos acrescentar os 12 dos 15 livros de Epigramas de Marcial (c. 39-104 d. C)
cuja composições podem ser apenas de 1 ou 2 versos mordazes.

Conclusão
Dir-se-ia que Roma, que apenas sofreu duas grandes revoluções políticas – a passagem
da Monarquia à República (510 a.C.) e da República ao Principado (27 a.C.) –
revoluções que, como vimos (cf. Parte I, 1.2 Augusto e o modelo imperial), soube
disfarçar sob as aparências da continuidade, não sofreu as sequelas no plano cultural.
Na verdade, o que permanecia mais enraizado na mentalidade geral era o que
continuara a permear a educação ao longo dos séculos: os princípios associados ao
mos maiorum (cf. Parte II, 4. A educação).

Manifestações de inovação
As manifestações de inovação estão associadas à capacidade de mediação (conceito já
estudado). O mais interessante, todavia, é a inovação revelar-se fruto da tradição, i.e.,
a tradição de captar o que há de melhor naquilo que é estrangeiro e, depois, assimilar
e adaptar ao génio romano.
Salústio, De bello Catilinae, cap. 51 coloca na boca de César as seguintes palavras
quando deliberavam sobre o destino a dar aos conjurados que haviam acompanhado
Catilina na sua conjuração:

78
«Aos nossos maiores [= antepassados], ó senadores, não faltou
prudência nem audácia. Nem o orgulho jamais os impediu de adotarem
costumes alheios, conquanto estes lhes parecessem bons. Dos Samnitas
tomaram as armas defensivas, dos Etruscos a maior parte das insígnias
dos magistrados. Numa palavra: tudo aquilo que, quer entre os aliados
quer entre os inimigos lhes parecia bem, eles adotavam, preferindo
adotar o alheio ao invés de invejá-lo.»
A literatura latina é, porventura, a manifestação mais evidente da vontade de
assimilação dos Romanos (cf. conceito de mediação). Essa vontade fê-los percorrer,
em apenas dois séculos, o caminho andado pelos Gregos em oito. Perceberam bem
que, para preservar o império conquistado, não bastavam a força das armas e fazer
cumprir o direito, era necessário muito mais: a dinâmica espiritual da cultura.
 A assimilação durante a República
Imitam e tentam rivalizar com os Gregos no plano intelectual, até que chegam
ao seu próprio modelo. Recordemos como começou a literatura latina: com a
assimilação do que é estrangeiro. Testemunham-no os primeiros criadores
literários que são itálicos, mas não são latinos:
Lúcio Lívio Andronico é grego, originário de Tarento; Névio é originário
da Campânia, Énio é da Messápia, chegando a dizer que tem três
corações, correspondentes à três línguas em que se exprime. O
comediógrafo Plauto viera da Úmbria, assim como o tragediógrafo Ácio;
Lucílio, o pai da sátira, é da Campânia. Já o grande comediógrafo
protegido dos Cipiões, Terêncio, era um escravo vindo do norte de
África.

A assimilação durante o Principado e até ao fim do Império Romano do Ocidente


Ao longo dos séculos, a vontade de assimilação permanecerá na cultura romana, e na
literatura em particular. Durante o principado tornar-se-á ainda mais acentuada,
extensiva não só à Península Itálica, como acontecera numa primeira fase, mas
também às províncias. Da Península Ibérica, por exemplo, são oriundos Séneca,
Lucano, Marcial, Columela e Pompónio Mela; o próprio imperador Marco Aurélio (121-
180), filósofo estóico autor das Meditações em 12 livros escritos em grego, Τὰ εἰς
ἑαυτόν, Ta eis heautón, literalmente "[pensamentos] para a si mesmo” nasceu em
Roma mas pertencia a uma ilustre família, a gens Annia, da Hispânia.
Mesmo no final do império romano do Ocidente, o último grande historiador romano,
Amiano Marcelino (340-400) era de Antioquia; o poeta Claudiano (c. 365) o derradeiro
grande épico é de Alexandria e o poeta Rutílio Namaciano (fl. 414-415) é gaulês ; São
Jerónimo (c. 347- 420) é de Estridão na fronteira entre a Panónia e a Dalmácia e Santo
Agostinho (354-430) era africano.

79
A assimilação e o papel de Roma nas palavras de Rutílio Namaciano
No poema De reditu suo [Do seu regresso] vv. 47 – 65 que dirige a Roma, num grave
momento das invasões bárbaras no século V d.C., explicita o significado de Roma na
História e poderemos entrever aqui o papel das duas coordenadas mais importantes -
organização e mediação - do génio romano:
«Ouve, ó Rainha, Rainha tão bela de um mundo que te pertence, ouve ó
Roma admitida entre os astros do céu! Mãe dos homens e Mãe dos
deuses, ouve, tu que dos céus nos aproximas pelos teus templos! É a ti
que eu canto, é a ti que cantarei sempre, enquanto os fados o
permitirem: ninguém pode viver e perder a tua lembrança... Tu
formaste das nações mais distantes uma mesma pátria; aos povos sem
lei, que tu conquistaste, tu concedeste um benefício ao dominar sobre
eles. Oferecendo aos vencidos uma participação nas tuas próprias leis,
tu tornaste uma Urbe aquilo que era um Orbe.»

A Filosofia

Frases do dia: Dulce et decorum est pro pátria mori, Horácio, Odes 3,2,13 [é
doce e honroso morrer pela pátria]
Credula uitam / spes fouet et fore cras semper ait melius, Tibulo 2,6,19-20 [a
crédula esperança alimenta a vida e afirma sempre que o amanhã será melhor]

1. As correntes filosóficas em Roma: primeiros contactos e reação


Tal como aconteceu com a literatura escrita, Roma teve o primeiro contacto com a
filosofia através da civilização grega a partir do século III a.C. Foi faseado tal como as
conquistas e o domínio do Mediterrâneo: Magna Grécia, ocupação da Sicília, Grécia e,
finalmente, Ásia Menor, onde também havia colónias gregas.
A primeira reação dos pragmáticos Romanos foi de suspeição, pois temeram que o
desenvolvimento das capacidades argumentativas propostas por filósofos gregos
conduzisse à subversão. Assim se explica expulsão temporária de filósofos gregos em
visita a Roma em 173 e em 161 a.C.
Em 155 a.C. Carnéades, Diógenes e Critolau, representantes de correntes filosóficas,
respetivamente a escola da Academia, a escola Estóica e a escola Peripatética, vêm a
Roma numa embaixada destinada a pedir a anulação de uma multa imposta a Atenas.
Durante o tempo em que permaneceram fizeram conferências. A impressão causada
desta vez foi boa.

A aceitação dos filósofos em Roma

80
O círculo intelectual dos Cipiões (155-79 a.C.), nome que se dá ao grupo em torno de
Cipião Emiliano, é aquele que mais interesse demonstra pelo conhecimento da
filosofia. O próprio C. Emiliano (cf. Parte II, 4. A educação) acolhe em casa o filósofo
estóico Panécio de Rodes. No início do séc. I a.C. Possidónio, também estóico, torna-se
amigo e professor, em Roma e em Pompeios, do célebre Marco Terêncio Varrão (116-
26), que cultivava vários géneros literários e foi um dos homens mais cultos do seu
tempo. O mesmo Possidónio foi professor de Cícero na ilha de Rodes.
Mas, ao contrário dos Gregos, os Romanos não estavam muito interessados em teorias
sobre a constituição do universo ou em fazer reflexões sobre os mecanismos do
pensamento ou do conhecimento, por isso não produziram grandes filósofos
especulativos ou metafísicos originais (Lucrécio é uma exceção).
A atenção dos Romanos concentrava-se sobretudo em princípios éticos (ver a
importância do mos maiorum) e dividiram as preferências entre Epicuristas e Estóicos,
com predomínio dos últimos. Os conceitos estóicos de dever e de destino eram mais
apelativos para a austeridade romana (cf. a personalidade de Eneias).

2. A poesia filosófica
A obra de Lucrécio (c.94 - c.50 a.C.) De rerum natura [Da natureza das coisas] constitui
uma exceção pelo género. Trata-se de um poema filosófico-didático em 6 livros
(=partes), onde se expõe a doutrina de Epicuro* (342-271 a.C.). São de referir: a teoria
atomista (cf. átomo) defendida por Leucipo e por Demócrito (explicação materialista
do universo físico); o objetivo de libertar o homem do medo da morte, passando pela
demonstração da mortalidade da alma (constituída por átomos minúsculos que se
dissolvem) e pela rejeição da superstição e da religião (cuja natureza o autor não
distingue); embora não negue a existência dos deuses, considera-os seres distantes,
alheios ao destino dos homens.
*Antes de Lucrécio, o Epicurismo já havia sido exposto em prosa em Roma.

A poesia filosófica de Horácio: carpe diem (Odes I, 11.8), um caminho para a


felicidade
A obra de Horácio (65-8 a.C.), composta por Sátiras, Epodos, Odes e Epístolas (ver a
Epístola aos Pisões também conhecida por Arte Poética), é pautada pela defesa da
independência moral e material, como forma de atingir a liberdade. O que escreve é o
resultado da sua experiência de vida, pelo que, em toda a obra, há ensinamentos
filosóficos, nomeadamente epicuristas. Trata-se, porém, com o passar dos anos, de um
epicurismo cada vez mais tranquilo, que defende a “justa medida” e o afastamento da
vida mundana citadina em busca de uma “aura mediocritas” (Odes 2, 10, 5) vivida no
campo (nos Epodos e Sátiras surgem referências à sua quinta na Sabina oferecida por
Mecenas). A sua poesia em geral não deixa de ser didática.

81
3. Cícero e Séneca
Cícero (106-43 a.C.) contribuiu bastante para dar a conhecer aos seus compatriotas o
pensamento filosófico grego. Seguiu a Nova Academia – a escola Platónica – com
linhas que tendiam para o estoicismo. Era, na verdade, um eclético, ou seja, não
aceitava totalmente a doutrina de uma escola em particular, antes preferiu retirar de
várias correntes filosóficas os ensinamentos que considerava adequados.
Ao adaptar a linguagem filosófica ao Latim encontrou várias dificuldades dada a
inexistência de léxico filosófico (Recorde que o Latim é uma língua de um povo
pragmático e realista, aos poucos vários vocábulos com valor concreto adquiriram
valores semânticos abstratos) e deve-se-lhe uma renovação da língua para definir
conceitos e a criação de palavras adaptadas do Grego.

O estoicismo de Séneca: homo res sacra homini [o homem é uma coisa sagrada para
o homem]
Séneca (14- 65 d.C.) foi o principal autor estóico romano e os seus escritos viriam a
influenciar profundamente os textos cristãos sobre ética. Para muitos, terá sido uma
espécie de santo laico. A sua obra, um verdadeiro testamento filosófico, espelha uma
doutrina alicerçada no estoicismo.
Preocupa-se com a moral prática e individual:

 Pretende refrear os seus contemporâneos face ao luxo e conforto material,


conselhos que deu, em vão, a Nero, de quem foi preceptor.
 Ensina que se deve aprender a viver bem mas igualmente a morrer bem de
acordo com o código estóico: praticando a virtude para defesa da consciência
(Consolação a Minha Mãe Hélvia); renunciando aos bens e optando por viver
com frugalidade (Cartas a Lucílio; De vita Beata [Da vida feliz]); refreando as
paixões da alma, praticando a imperturbabilidade da alma, denominada
ataraxia (De ira; De tranquilitate animi [Da tranquilidade da alma/espírito]) e
resistindo às tentações do exterior (De constantia).
 Defende o respeito pela dignidade humana, sobretudo
face aos de estatuto inferior, como os clientes (De
beneficiis [Dos benefícios]) ou escravos.
 Amplia a moral da Antiguidade até ao sentimento do
que hoje consideramos solidariedade humana.

Suicídio de Séneca, Luca Giordano (1643-1705).

82
Outros marcos do estoicismo romano
Os mais famosos autores estóicos tardios foram, sem dúvida, o imperador Marco
Aurélio (121-180 d.C.) que nos legou as suas Meditações (a que aludimos numa aula
anterior), em grego, publicadas após a sua morte, e Epicteto (50-120 d.C.), escravo de
Epafrodito, o secretário de Nero que, segundo a tradição, uma vez lhe quebrou uma
perna. Escreveu o Encheiridion e as Diatribes, também em Grego.
Outros nomes a fixar, mas no domínio da poesia filosófica, são o satirista Pérsio (34-62
d.C.), influenciado pelo seu mestre Cornuto, e o poeta Lucano (39-65 d.C.).
Sob influência da Séneca e dos seus sucessores, a tendência geral do Estoicismo
romano foi tornar-se cada vez mais prática e humana. Enquanto os Estóicos gregos dos
primórdios consideravam a tranquilidade o único objetivo do sábio que vivia afastado
do mundo, os Romanos defendiam que a tranquilidade também poderia ser atingida
pelo homem de ação que vive no mundo, desde que exerça a fortaleza e o
autocontrolo.

8. O Direito e o poder da Oratória

Frases do dia: Corruptissima republica, plurimae leges, Tácito, AnnalesI 3,27,5 [o


estado mais corrompido é o que tem mais leis]
Vir bónus dicendi peritus, máxima atribuída a Catão, o Censor e a Cícero, citada
por Quintiliano, Inst. 12,1,1 [um bom homem é experiente na arte de falar]

Saber falar é um dever cívico


“Um bom homem (=cidadão) é experiente na arte de falar.
Note-se a relação entre moral e ensino.
A eloquência (etimologia loquor – falar) é uma das mais importantes e originais
manifestações do génio romano, tendo evoluido bastante pelo contacto com a
eloquência helénica, sobretudo a partir de II a.C.
A educação do homem romano está focada, como vimos (cf. II- 4. A educação), para o
serviço da comunidade. A forma mais eficaz de intervir na vida cívica é através da
palavra. Esta permite impor a vontade às multidões numa sociedade em que muito
poucos sabem ler e não há, como hoje, meios de difusão da cultura além dos escritos e
da oralidade (mesmo aplicada às dramatizações teatrais).

83
Como demonstram as matérias dos graus de ensino, centradas no estudo das palavras,
da sua forma correta de pronunciar através da análise e explicação dos textos gregos e
latinos, tudo incide no domínio da língua. Este trabalho é aperfeiçoado ao nível da
escolaridade ministrada pelo retor.
A palavra foi a forma mais fecunda de difusão do pensamento e de circulação das
ideias. O seu papel destacava-se no tribunal, no fórum, em manifestações públicas
(louvores, incluindo fúnebres, e censuras). Temos, por isso, três modalidades
importantes de discurso: o judicial, o deliberativo e epidíctico ou demonstrativo
(encomiástico).
Distinção entre retórica e oratória

Embora por vezes se utilizem como sinónimos, são conceitos próximos, mas
distintos:
 a retórica é a teoria da arte de falar ou “arte do discurso em geral” para
domínio da vida em sociedade, mas também há uma retórica em sentido
restrito, que é a retórica escolar;
 a oratória consiste na aplicação prática (etimologia os, oris, boca, na
origem de oral).
Ambas mereceram muitos tratados gregos e latinos, porque dominar a arte da
palavra significava ter sucesso na vida pública, nomeadamente nas atividades
da política e na lei, que eram portadoras de prestígio, de poder e, em
consequência, de riqueza.

Relação entre oratória e direito: os primórdios


Obs. rever na Parte I – 1.1.2. a aula dedicada à República e a instauração da Libertas,
entendida com forma de agir e estar sob a lei.
***
Conhecemos o Direito em Roma desde o século V a.C., com a codificação, na Lei das
Doze Tábuas, de leis correntes no Lácio. Os Antigos, como foi referido em aula
anterior, consideravam-na um produto de influência grega (Tito Lívio 3, 31) sendo o
resultado da ida a Atenas de três deputados que, no regresso, teriam instruído 10
magistrados (Decemuiri) para redigir um corpo de Leis. O mesmo refere Cícero no De
legibus 2, 59, sobretudo a propósito das leis fúnebres. Hoje sabemos que nem as leis
atenienses eram idênticas, nem esta embaixada é verosímil.
Certo, todavia, é terem sido redigidas entre 451-450 a.C. pelos decênviros. Constituem
a base do direito, embora ainda não se possa afirmar ser justiça pública, regista-se a
aplicação do direito privado pelo pater familias. Recorde que o direito relativo aos

84
cidadãos romanos era o ius quiritum (diferente do ius gentium para estrangeiros), que
está na base do direito civil e estava, na origem, relacionado com a religião, pois os
sacerdotes eram quem detinha os conhecimentos necessários para conduzir
processos.

A evolução
Abandona-se progressivamente um direito nascido de uma sociedade rural e
patriarcal. O conhecimento da filosofia grega irá influenciar a passagem da
jurisprudência ponficicial a jurisprudência laica.
Em I a.C. Cícero advoga a existência de uma lei natural que fundamentará as leis
particulares. O novo direito traz consigo novas práticas: passamos a ter a figura do
jurisconsulto que tanto ensina como dá conselhos. É, como já foi referido em aula
anterior, uma espécie de técnico legal, que podia auxiliar a orientar um processo.
Mas quem agia? Quem falava em público? O orator, orador, que deveria conhecer
não só retórica, mas também as leis e ser dotado para a eloquência (etimologia loquor
– falar). Todo o cidadão livre, desde que estudasse, poder-se-ia tornar um orador.
As qualidades do orador estavam a par das necessárias para ser magistrado e eram
indispensáveis na política. Assim se explica que o declínio da grande oratória
deliberativa (Fórum) quando passamos da República ao Principado. Continuam a
judicial (mas refreada pelo uso cada vez maior de técnicas escritas e sem o calor do
período de Cícero e do seu rival Hortêncio) e obviamente a epidíctica feita em grandes
ocasiões ou em funerais.
No período republicano, fazia parte dos deveres de um cidadão auxiliar a de defesa de
outro, pelo que a advocacia (etimologia verbo aduocare -ad+voco- chamar em auxílio)
não era uma profissão. O trabalho de defesa não era pago e era considerado pouco
digno receber presentes.
Esta situação modificar-se-á no Principado. Quintiliano (35-95 d.C.) queixa-se de haver
quem receba honorários e até presentes nas Saturnais. Mas no final do séc.I d.C. a
advocacia existe como profissão liberal organizada em corporações: os Collegia
aduocatorum em que os membros se tinham de matricular (fazer as matriculae).
No Baixo Império predomina a lei escrita e recorre-se menos ao auxílio de
jurisconsultos. A lei tem mais força do que o costume (mos) exceto em províncias
romanas do Mediterrâneo Oriental com fortes tradições de legislação, onde se tenta
conciliar o que é local com o que emana de Roma. A legislação vai sendo coligida em
compilações privadas e oficiais.
As compilações mais célebres, e que constituem um alicerce do Direito Ocidental, são
o Código Teodosiano promulgado por Teodósio II em V d.C. (Imperio Romano do
Ocidente) e o Corpus Iuris Ciuilis (ver a 6ª aula) dividido em quatro partes, com 50
livros de leis compiladas sob Justiniano (r. 527-565; Império Romano do Oriente).

85
A formação do Orador
O orador tem três deveres: convencer, deleitar e comover. A oratória é a arte de
persuadir que conduz à glória do homem político.
Preceitos da retórica imprescindíveis para uma boa prática da eloquência:
 dotes da natureza;
 prática;
 educação (domínio das artes mediocres e maximae em diferentes proporções).
As artes mediocres (ou médias): filosofia; matemática, música, gramática, poesia.
As artes maximae (ou maiores): eloquência; política, arte bélica ou estratégia militar.
A eloquência recorre evidentemente a uma formação em filosofia (feita junto de
mestres gregos), mas também obriga a ter conhecimentos de jurisprudência, de
história e de literatura.

As cinco partes da retórica


1. inventio – a análise da matéria a tratar, pelo que implica encontrar
pensamentos adequados ao tema a tratar (consoante o tipo de discurso; cf.
“Saber falar é um dever cívico”).
Entram aqui as famosas perguntas que se manterão na retórica Ocidental: quis,
quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? [quem, o quê, onde, com que
meios, porquê, de que modo e quando?]
2. dispositio – ordenar as partes do discurso;
3. elocutio – cultivar o estilo;
4. memoria – memorizar;
5. actio – pronunciar o discurso (com auxílio de gestos das mãos e do corpo, mas
nunca, por pudor, movimentar a parte abaixo da cintura).

As divisões básicas do discurso


1. exordium – o início em que se pretende atrair a atenção da audiência e a
benevolência de quem decide.
2. A parte central do discurso tem como modelo geral a sequência de propositio
(proposição em que se comunica o que se pretende provar) + rationes (as
provas) pode haver necessidade (consoante o tipo de discurso) de narratio, i.e.,
uma narração de factos em causa
- confirmatio –confirmação das provas com boa argumentação
- refutatio – refutar, se é o caso, os argumentos do adversário.

86
3. peroratio – é a conclusão e recapitula as provas da argumentação para
convencer devidamente.

Os grandes vultos da oratória


- Ápio Claudio Cego com reputação referida por Tito Lívio;
- Catão Censor (234- 149) do qual temos fragmentos de 150 discursos;
- Os irmãos Gracos, Tibério (163-133) mas sobretudo Gaio (154-121) que
conseguia apaixonar as multidões;
- António (143- 87) avô de Marco António Licínio Crasso (cônsul em 95 a.C.) cujos
discursos estavam em harmonia com a oratória grega;
- Júlio César (100-44);
- Licínio Calvo (82-47) expoente do estilo Ático (depurado);
- Hortêncio (114-50) expoente do estilo Asiático (muito cheio de floreados);
- Cícero (106- 43) reune o melhor destas duas vertentes de oratóra helénica e
deixa um brilhante testemunho sobre a arte da palavra: De oratore (como se
prepara um orador e apologia da cultura geral) em Brutus (retrato dos oradores
precedentes), Orator (o perfil do orador ideal);
Embora a oratória romana a partir de II a.C. seja um produto dos mestres gregos que
migraram para Roma (o tratado Rhetorica ad Herenium é o exemplo deste
movimento), a teoria grega foi sempre subordinada a uma prática romana. Foi
moldada por instituições como os tribunais e o senado.
No Principado os estudos sobre oratória mais célebres são os de Quintiliano (30- 95
d.C.) com a sua Instituição Oratória. Silenciado na prática o papel do senado e morta a
grande eloquência, salientem-se os panegíricos de Plínio o Moço (62-114) autor deste
novo género, inaugurado em 100 com o Panegírico de Trajano.

9. A economia e a sociedade
9.1 O regime de propriedade, a agricultura e a cidadania

Frase do dia: Maiores nostri… uirum bonum cum laudabanti ita laudabant:
bonum agricolam bonumque colonum, Catão, De agricultura, prefácio 1 [os
nossos antepassados quando elogiavam um homem de bem, faziam-se deste
modo: bom agricultor e bom lavrador]

Um modelo para a cidadania


Em Roma a agricultura foi a atividade mais conceituada e respeitada, de tal modo que
modelou para sempre o carácter do povo romano. Embora decorresse de uma

87
necessidade, a subsistência, permaneceu desde cedo associada ao período
considerado de Ouro, por ser aquele em que os cidadãos teriam vivido de acordo com
os principais valores.
nostalgia, porém, é enganosa, e a vida do campo tanto foi descrita com rigor nos
tratados técnicos, que se multiplicaram em Roma e chegaram até nós (cf. Catão,
Columela Varrão e Paládio in Parte II -7, O realismo na literatura), como foi idealizada
pela poesia pastoral e outras formas líricas. Assim se compreende a perenidade de
textos sobre agricultura. Funcionaram como leitura pedagógica ao longo dos séculos,
faziam parte da cultura do indivíduo em Roma e, mesmo no Renascimento, e até
funcionaram como “ferramenta” na época medieval. No domínio poético, também não
é por acaso que uma das obras que referimos como uma das mais perfeitas da
literatura latina fosse as Geógicas de Virgílio, um hino ao trabalho do campo e às
diferentes culturas típicas da Itália.

E o senhor, tem direito de voto?


Economia, sociedade e política estão sempre associados. O que hoje consideramos um
direito universal nasceu de uma longa conquista; primeiro foi preciso que todos os
homens, e na Europa tivemos de esperar pelo final do século XIX, fossem considerados
iguais perante a lei (e não recenseados em função do património); depois tivemos de
lutar pelo voto no feminino, que ainda não chegou a todas as regiões...
Somos muito mais “filhos” deste império de quase 13 séculos do que imaginamos.
A sociedade romana era plutocrata e isso manifestava-se no recenseamento dos
cidadãos, organizados segundo as ordens sociais em função da riqueza. Em
consequência, no início da República, estando os cidadãos divididos em dois grupos,
patrícios e plebeus, os primeiros gozavam de muitos mais direitos em matéria de votos
e detinham o monopólio das magistraturas. Com efeito, ninguém podia exercer uma
atividade cívica e aceder ao cursus honorum sem ter bens.
E de que bens falamos? De terra. Era pela posse de terra que se mensurava a riqueza
dos cidadãos*. Ser terratenente estava associado ao estatuto mais elevado da
sociedade; ter rendimentos provenientes de outra atividade não era considerado tão
honroso e, de início, só os patrícios acediam aos cargos públicos que, obviamente, não
eram pagos (cf. ministro, de minister, significava servidor). Ou seja, também era
necessário ter terra para ter poder político.
* A partir de 218 a.C. os senadores estavam proibidos de ter atividades comerciais fora
da península itálica.

O espaço rústico e o seu ascendente na mentalidade romana

88
A elite social tinha no modo de vida do agricultor o seu exemplo. Cícero considerava a
agricultura a melhor de todas as ocupações romanas. No De officiis [Sobre os Deveres]
declara que "de todas as ocupações pelas quais o ganho é assegurado, nenhuma é
melhor do que a agricultura, nenhuma mais rentável, nenhuma mais deliciosa,
nenhuma outra torna um homem livre". Com efeito, no Pro Roscio Amerino, 75, um
discurso judicial, Cícero defende deste modo o seu cliente, que havia sido
ridicularizado no tribunal como um rústico: “um mestre da economia, da indústria e da
justiça”.
O realismo romano manifesta-se no léxico de uma língua de pastores e de agricultores,
presente tanto em nomes comuns (que evoluem semanticamente do concreto para o
abstrato) como próprios.
Ex. Comuns: pecunia (de pecus- cabeça de gado), optimus (de opes- haveres,
terras) frugi (de boa colheia, honesto, honrado), felix (fértil, feliz), rivalis ( de
rivus, curso de água e depois aquele cuja propriedade confina com a do outro),
egregius (de grex, rebanho, indica o que se salienta porque saiu do rebanho),
peregrinus (o que percorre o ager, o campo)
Ex. Próprios: Mânlio (o que nasceu de manhã), Asínio (de asno), Fábio (de
fava), Lêntulo (de lentilha), ou Cícero (grão de bico).
A mesma relação com a terra está presente nos primeiros numina (ver módulo II- 2.1
sobre religião) associados a trabalhos agrícolas.
A vida militar também era inicialmente obrigatória apenas para quem detivesse terras.
O amor pela terra será uma constante da história romana, quase até ao fim. O romano
é radicalmente um proprietário, não só pela necessidade de possuir para subsistir, e
também para ter poder, mas porque o seu modo de estar no mundo implica estar
ligado a um pedaço de terra, ao “torrão natal” de Virgílio, como se esta fosse o
prolongamento da sua personalidade.
É esse amor que explica a fomação do império. Quando deixam de ter uma guerra
defensiva preventiva durante a 2ª Guerra Púnica e cresce a ideia de imperialismo,
move-os também o aumento do território agrícola do estado, o ager publicus, que é
distribuído e propicia o aumento de proprietários de terras, cada vez mais vastas: os
latifúndios (latifundia etimologia latus, vasto + fundus, herdade). O interesse pela
atividade comercial, também data de princípios de II d.C., é o começo de uma fase de
capitalismo mercantilista entregue a uma nova classe social, os equites (cavaleiros), de
início sem peso na vida política da Urbe.
Mais tarde, em pleno século II d.C. Plínio, o Moço dirá: latifundia perdidere Italiam [os
latifúndios arruinaram a Itália].
Isto aconteceu não só por as pequenas propriedades autossuficientes, trabalhadas
pelo pater familias e seus familiares, que não viviam de mão-de-obra escrava, terem
desaparecido engolidas pelos grandes domínios, mas também por estes novos

89
proprietários, com caseiros e escravos, nem sempre estarem diretamente ligados à
terra. Esse amor estava a desaparecer perante novos meios e uma nova mentalidade.
Do mesmo modo o espaço lavrado, o culto, é o mais valorizado versus o inculto; na
hierarquia espacial da vila rústica surge em 1º lugar, em 2º os pomares, em 3º as
pastagens. Disto é exemplo a organização da vila rústica nos grandes latifúndios. Daí o
estatuto inferior do pastor na hierarquia social (ele é o homem que vive no espaço
mais afastado do civilizado).

A terra, a Pátria e o Império


Exilium patitur patriae qui se denegat [sofre o desterro quem renega a sua pátria],
Publílio Siro
Ficaram vestígios desta ligação em palavras como pátria, a terra do pai (pater),
inicialmente a terra patria, sendo pátria um adjetivo, ou patrimonium, literalmente os
bens do pai (cf. apresentação “património”).
Em que reside o amor da pátria para um Romano? Enquanto para um Grego é o
espaço cívico e um ideal, para o Romano constitui um sentimento concreto de ligação
à terra dos antepassados. Quando os Grego deixaram a polis para fundar outras
cidades, partiram definitivamente, tendo legado núcleos civilizacionais dispersos pelo
Mediterrâneo (caso da Magna Grécia). O Romano que deixou a Urbe, como colono,
continua a sentir-se ligado ao solo dos seus maiores e prolonga nas novas colónias a
terra pátria. Este facto explica, em parte, a construção organizada e coesa de um
Império. O colono é aquele que toma posse da terra porque a cultiva (etimologia v.
colo, ere = cultivar), eleva o solo a espaço culto, cultivado, e transporta a sua “cultura”,
em sentido abstrato (com etimologia no mesmo verbo).
Esta ideia de continuação do solo pátrio subsistiu na Europa; recorde os nomes dados
pelos colonos às localidades de ilhas atlânticas e depois a cidades do Novo Mundo,
muitos são iguais, outros antecedidos da palavra “nova”.

O amor à pátria é a vinculação à terra


Tito Lívio põe na boca de Fúrio Camilo (cf. aulas sobre lendas da história de Roma)
conquistador de Veios e refundador de Roma, após a invasão gaulesa de 390 a.C.,
palavras com que recrimina o povo que pretendia abandonar a Urbe arruinada e
mudar-se para Veios que não fora atacada:
“O que é para vós a pátria? Acaso pensais vós ser a pátria uma realidade
móvel que pode deslocar-se de um sítio para outro? Pretendeis assim
mandar-nos todos para Veios? Mas, e se alguma catástrofe sobrevier a
Veios, também ireis pedir para emigrardes para Fidenas ou para
Gábios? Segundo vós, aquilo que nos retém não é o próprio solo da

90
pátria; não é esta terra a que chamamos nossa mãe. Segundo vós amar
a pátria é amar qualquer terra que aí apareça coberta de casas”
Associa-se a este ideal de terra pátria o facto de o solo onde se constrói uma cidade
ser consagrado e ter uma identidade espiritual, com os seus Lares e Penates públicos,
ainda que tenham sido trazidos de outra região, como faz Eneias ao fundar uma nova
Tróia, i.e. o espaço que será Alba Longa, fundada por seu filho Iúlo, de onde, por sua
vez, é oriundo o fundador de Roma.

A pastorícia e a agricultura
Rómulo é um pastor e fará dos Romanos um povo de pastores (pecus- gado está na
origem de pecunia, dinheiro, pois foi esta a primeira forma de troca antes do uso da
moeda) e de agricultores.
Rómulo teria divido o território romano, o ager romanus, em três partes: (1) o ager
regius, a parte do rei, um domínio com vertente religiosa, res sacra; (2) uma parte
reservada aos patrícios repartida em lotes individuais, o ager privatus, e, por fim, (3) a
parte indivisa e destinada à vida em comunidade, o ager publicus ou pascua
[pastagem] privata para criação de gado, sobretudo ovelhas e cabras, que se davam
bem em terrenos escarpados.
A agricultura era desenvolvida por plebeus instalados no campo e foram os Etruscos
quem introduziu os métodos agrícolas mais importantes. Inicialmente o cultivo
assentava em leguminosas, cereais e vinha, o que espelhava uma alimentação também
frugal e de tendência vegetal (≠ vegetariano), sendo a carne consagrada aos dias
festivos.
As práticas e evolução agrícolas estão mais associadas ao tipo de produção e de
mercado do que a progressos técnicos, embora os tenha havido nomeadamente no
campo da enxertia, do arado e dos moinhos e lagares. Podemos, latu senso, definir
dois grandes períodos: um a partir do início da República, de 509 a.C. a 27 a.C. com
poucas alterações desde os modelos etruscos e púnicos (um dos mais célebres
tratados era do cartaginês Margão) e de 27 a.C. a 476 d.C. em que se intensifica a
expansão pelo Mediterrâneo, verificando-se uma interação com as práticas autóctones
- parte da Europa, norte de África e do Médio Oriente -, com os vários climas de verões
secos e quentes e invernos frios e chuvosos.

Rabiça do arado 91
Moinho de cereais Lagar de azeite
O modelo de propriedade e as transformações sociais
“Há muito tempo que todas as riquezas dos povos estão nas mãos de um número
reduzido de homens”, Cícero
Transformações: a propriedade predominantemente coletiva dos primeiros tempos,
possuída por uma gens alargada (próxima do que hoje seria um clã), é, em meados do
período republicano, cada vez mais individual, vigorando um ideal autárcico
(autossuficiência) nas pequenas propriedades, que, como referimos, a partir de II a. C.,
vão sendo substituídas por latifúndios com monocultura, obedecendo a objetivos
comerciais e não de subsistência. O afluxo de escravos vai contribuir para esta
situação.
Como o cultivo de cereais foi sempre a principal preocupação, as províncias
conquistadas (as províncias anonárias, que pagavam os seus impostos em espécie)
passaram a ser as grandes fornecedoras de Roma, que viveu muitas crises sociais
sempre que escasseava o trigo. Claro que esta importação, ainda que dentro dos
limites do Império, causou grandes perturbações à economia romana da península
itálica. O cultivo de cereais não conseguia fazer face à concorrência dos preços das
províncias e o solo itálico manteve sobretudo o cultivo da vinha, da oliveira e das
árvores de fruto, mas foi, infelizmente, destinado pelos grandes proprietários a
pastagens para criação de gado. Por outro lado, aumentou o interesse pelo comércio e
pela indústria.

9.2 Império e empório – Indústria, comércio e moeda

Frase do dia: Crescentem sequitur cura pecuniam, Horácio, Odes, 3,16,17


[aumentar a riqueza aumenta a preocupação]

Mare nostrum: um espaço navegável e comercial


Embora houvesse uma grande rede viária, as vias comerciais mais importantes foram
as marítimas, estando os principais portos do Mediterrâneo associados a rotas de
comércio terrestres, que ligavam as regiões sob a alçada do Império a rotas externas,
como a rota da seda, que faziam afluir a Roma produtos exóticos. A partir de I a.C.
Roma ganha cada vez mais gosto pelo luxo, novas modas e novos gostos. As críticas
socias não se fazem esperar, sobretudo pelo crescente número de novos ricos, libertos
enriquecidos pelo comércio a que, como vimos atrás, os patrícios não se podiam

92
dedicar fora da península itálica. Os cidadãos com aspirações à magistratura
mantinham o decoro alicerçando os seus bens na terratenência.
A literatura satírica e o romance de Petrónio, Satíricon, constituem excelentes frescos,
embora cheguem à caricatura, desta tendência.

Rotas comerciais marítimas e terrestres de Roma

Novas profissões
O comércio traz consigo o desenvolvimento de outras profissões: como os
antepassados dos banqueiros, os argentários, argentarii, comerciantes de moedas;
Os negociadores, negotiatores, que emprestavam dinheiro a juros.
Principais Moedas Romanas:

 áureo (aureus) de ouro;


 o denário (denarius) de prata;
 o sestércio (sestertius) de bronze;
 o dupôndio (dupondius) de bronze;
 o asse (as) de cobre.
Obs. As denominações que vigoraram entre meados do século II a.C. até meados do
século III d.C., mas o valor de cada moeda foi sendo alterado, ou melhor desvalorizado.

III – Aspetos da
vida privada
1. A sexualidade
no
Masculino e
no Feminino
1.1 Os discursos
médico e
jurídico

93
Não se pode compreender a poesia latina amorosa, sobretudo a elegia, sem termos
um enquadramento sobre os códigos amorosos e relacionamentos socialmente aceites
ou tolerados. Apresento-vos aqui uma síntese muito esquemática dos contributos dos
discursos médico e jurídico. Centraremos depois a nossa abordagem na poesia latina.
Vide documento Palavras Prévias in Poemas de Amor.

Frase do dia: Amor est conatus amicitiae faciende ex pulchritudinis specie,


Cícero, Tusculanas, 4,34,72 [o amor é o desejo de obter a amizade, que se
inspira num ideal de beleza]
- Definição de amor segundo a doutrina estóica nas palavras de Cícero.

Códigos amorosos e linguagem


Fontes a considerar:

 Representações literárias/iconográficas
 Textos técnicos: legislativos/médicos
Conceitos:

 Heterossexualidade
 Homossexualidade
Modelos de relacionamento:

 Casamento
 Concubinato/amantes
 Prostituição

Heterossexualidade e Homossexualidade
A Antiguidade desconhece vocábulos para designar preferências sexuais, existe apenas
a ideia de ser-se atraído por rapazes ou por mulheres.
 deseja-se o corpo do outro, as escolhas não são sexuais, mas ditadas por
afeto ou inclinação, enquadradas de modo distinto nas sociedades grega e
romana e muito condicionadas pelo estatuto social e cultural.
A grande distinção faz-se entre o corpo que é ativo ou passivo (conceito médico e
jurídico)
 o corpo do que penetra ou o aquele que é penetrado
 pressupõe uma relação de poder entre o corpo que domina e o que é
dominado.

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Modelo de relacionamento: o casamento (gr. gāmos. / matrimonium)
Tem estatuto familiar e privado e existe com o intuito de procriação para transmitir
património aos descendentes. A mulher tem o papel de reprodutora - num “contrato”
monogâmico - da gens (sem mácula: corrupção do sangue pelo adultério ou pelo
vinho).
Só algumas famílias convocam um sacerdote ou, sobretudo a partir de II/I a.C., um
funcionário. Muito tarde o casamento entrará paulatinamente na esfera pública e
institucionaliza-se. A maior parte da legislação existente sobre casamento é do início
de I d.C.
Casar é passar da autoridade do pai para a do marido: cum manu (≠ sine manu), em
três modalidades:
- confarreatio
- coemptio
- usus

(ver a apresentação sobre património, onde se explica em que consiste cada


modalidade de casamento)

Modelos de relacionamento: o concubinato/amantes


Um corpo à margem da procriação é um corpo para o prazer, em que a mulher pode
ser ativa e corresponder aos desejos do amante ou subjugá-lo quase como uma
dominatrix ou como acontece nas representações do amans servus da literatura latina.
Há casamentos com permissão de concubinato e há contratos de casamento que os
impedem (a partir de I a.C.). Posteriormente, as leis que penalizam o adultério trazem
restrições sociais ao homem e à mulher casada adúltera.

Modelos de relacionamento: a prostituição


Enquanto a hetaira grega é a companheira, literalmente a que acompanha, a meretrix
romana é que comercializa o seu corpo (etimologia merx = mercadoria).
Socialmente a prostituição é aceite como forma de preservar o casamento de
comportamentos sexualmente não naturais ou da tendência para o concubinato ou o
adultério (ex. legislação de Augusto).
No discurso médico, não é encorajada, exceto se o paciente não tem outra forma de
aliviar as suas pulsões para encontrar equilíbrio, pois o ideal é não desperdiçar a
semente destinada a procriar.

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No discurso filosófico, sobretudo no estóico, é repreensível não refrear as paixões
(affectus).

Corpo e saúde: regime sexual


Os textos médicos gregos e romanos destinam pouco
espaço para o regime sexual e muito para o regime
alimentar.
A preocupação com a sexualidade é própria do
Cristianismo, que quase iguala o discurso do regime do
sexo com o alimentar (abstinência; jejum) e colhe
analogias no discurso dietético.
Não há posições ou práticas sexuais condenáveis, só há conotação patológica para a
quantidade, i.e., o excesso que desvie do equilíbrio e para o processo (gastos, agitação)
que pode não ser o adequado ao indivíduo e lesar o organismo (assim se explica, por
exemplo, o priapismo ou satiríase).
Esta visão enquadra-se na teoria humoral que percorreu toda a Antiguidade (Vide
textos da Escola de Hipócrates, e de Galeno, que foi médico em Roma e sistematizou a
teoria dos humores) e que perdurou com atualizações até o século XIX. Há bastantes
reflexos desta visão nos escritos médicos e mesmo em textos no âmbito da doutrina
da igreja católica até meados do século XX.

2. Alimentação e práticas conviviais

Frase do dia: Ante circumspiciendum est cum quibus edas et bibas, qual quid
edas et bibas, Séneca, Epístola 19,10, citando Epicuro [deves tomar mais
atenção a com quem comes e bebes do que àquilo que comes e bebes]

Roberto Bompiani A Roman feast (1800), ou uma visão idealizada de Roma. Este
quadro não corresponde à realidade do que seria uma disposição dos leitos na sala de
jantar, o, triclinium. A visão do pintor é a da sua época, uma construção dos finais do
século XVIII-XIX em que havia uma moda “à Romana”. (cf. pode-se verificar o chamado
“estilo império” na arquitetura, no mobiliário e até no vestuário e forma de pentear
das senhoras). Também sobre a alimentação e os banquetes houve ideias feitas, que
não correspondem à realidade.

Mare Nostrum: um modelo de globalização em torno do mediterrâneo

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Os hábitos alimentares modificaram-se à medida que Roma alargou o território.

Como conhecer a realidade?


I. Fontes escritas para a História das materialidades alimentares na
Antiguidade Clássica
o Escrita médica: obras de medicina e de dietética (perspectiva
nutricional): houve médicos que escreveram verdadeiros tratados
práticos de cozinha para
exporem as suas teorias
sobre nutrição, é o caso de
Dífilo de Sífno com pratos de
peixe na Dieta para doentes
e saudáveis (Ateneu 3. 115c)
ou ainda, o mais célebre,
Díocles de Caristo, (séc. IV
a.C.) autor de Da higiene
(Ateneu 3. 120d).
Foram sobretudo o corpus Hipocrático e as obras de Galeno que
marcaram o Ocidente e foram revisitadas nos tratados medievais
sobre as faculdades dos alimentos e nos estudos de bromatologia
(escritos sobre valor nutricional dos alimentos) até meados de
setecentos.

o Tratados de gastronomia:
- Obras gregas de poesia gastronómica sobretudo de autores
da Magna Grécia e Sicilianos: Miteco, Arquéstrato de Gela,
Énio; Anânio, Filóxeno de Citera, Mátron de Pítane;
- Obras latinas: De re coquinaria de Apício; Excerpta de
Vindário.

o Tratados de agricultura: incluíam receituário, como o De agricultura


de Catão (-234-149), o De re rustica de Varrão (-116-27) ou a obra

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de Columela (-60-5) com o mesmo nome, influenciados pelo
trabalho do cartaginês Magão.

II. Fontes arqueológicas para a História das materialidades alimentares na


Antiguidade Clássica

i. Mobiliário / utensílios (fogões, vasilhame, baixela, panelas,


almofarizes, etc.)
ii. Estruturas (lareiras, fornos, reservatórios, armazéns, latrinas)
iii. Contributos da arqueologia e carpologia
iv. Produtos transformados (farinhas, pão, caramelo alimentar,
garum, etc.)
v. Resíduos microscópicos (amido, pólenes, fitólitos)
vi. Produtos em bruto (grãos, vestígios animais)

Fatores a considerar para estudar a cultura alimentar na Antiguidade


1. Produtos e sua origem
2. Cozinha / preceitos dietéticos
3. Comensalidade / relações conviviais

Gramática alimentar do Mediterrâneo Antigo numa perspetiva greco-latina


É preciso ter em conta que existe um sistema de oposições, tanto para a produção
como para o consumo:
 civilizado ≠ bárbaro
 culto /cultivado ≠ inculto /natureza não disciplinada
 agricultura ≠ recoleção
 pecuária ≠ caça
 alimentos transformados ≠ alimentos não transformados
 cozido, assado, grelhado (preparação) ≠ cru
 cozinha sacrificial (os sacrifícios rituais de animais) ≠ ato de comer
 refeição ritualizada ≠ refeição sem ritual

Cozinha e gastronomia: contributo do léxico latino


 culina = coquina – cozinha (espaço)
 re coquinaria – culinária
 ars (= texnē ) coquinaria – arte culinária
 re cibaria – alimentação [< cibus (gr. kībos)- provisão, víveres, alimento]
 alimenta (pl. de alimentum)- alimentação

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Muito do léxico grego foi transliterado para Latim e é esse que predominará
posteriormente nas línguas românicas e célticas. O léxico de origem latina ficou
circunscrito à atividade de cozinhar e ao espaço onde esta se desenvolve.
Obs. O vocábulo gastronomia (gaster e nomos literalmente a lei do estômago) é
um neologismo criado 1.º por Rabelais e reconhecido muito mais tarde pela
Academia francesa em 1835.

Hedypatheia de Arquéstrato de Gela

Região onde surge a 1ª literatura gastronómica do Ocidente: Arquéstrato de Gela, IV


a.C. Foi na ilha da Sicília que surgiu a literatura gastronómica do Ocidente.
Texto em verso (334vv), constitui o 1º guia gastronómico (IV a.C.), pois apresenta as
especialidades das diferentes regiões.
Receita: Barbudo e robalo grelhados
«Quando fores a Mileto, compra barbudo, uma espécie de tainha, e robalo, um
peixe divinal, pescados no rio Géson. É aí que se encontram os melhores, graças
às condições naturais do lugar. Outros exemplares mais suculentos existem em
abundância na famosa Cálidon na rica Ambrácia e no lago Bolbe; porém não
exalam um cheiro agradável da gordura da barriga, nem essa tem o tal paladar

acre. Já os espécimes milésios, meu caro, são de uma qualidade excepcional!


Por serem tenros, grelha-os, sem os escamares, e serve-os regados com um
molho salgado. Não deixes que se aproxime de ti nenhum tipo de Siracusa, nem
de Itália, quando estiveres a confec-cionar esse prato. A verdade é que não
sabem preparar peixe de qualidade; antes o estragam por completo, pois têm o
mau gosto de acompanhar toda e qualquer comi-da de queijo e regam-na com
um vinagre de vinho e um molho salgado enriquecido com sílfio. No entanto
são, de todos, os que melhor sabem preparar os malditos peixes de terceira,

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criados nas rochas, e conseguem acompanhar um banquete de todo o tipo de
comidinhas pegajosas e de acepipes sensaborões.»
Frg. Olsen- Sens, apud Ateneu 7. 311 a-c, trad. Carmen Soares

A importância das ervas aromáticas e dos temperos


As receitas mais antigas são de molhos.

 Ervas aromáticas: orégão, poejo, coentro, cominho, aneto, louro, cânhamo,


dormideira, cardamono, mastruço, alcaparra, mostarda, sílfio (Cirene; o prato
representa uma cena de comério de sílfio que depois entrou em extinsão na
época de Nero, tal foi a procura)
 Azeite
 Mel
 Vinagre de vinho (Esfero)
 Garum (γάρον) – molho de peixe fermentado
 Sal
 Queijo ralado

Fatores condicionantes da evolução das práticas alimentares em Roma


1. Predomínio da agricultura e da pecuária:
- um povo com um regime alimentar vegetal
- cozinha de registo sacrificial
2. Expansão territorial (rotas comerciais, províncias anonárias)
3. Fatores com menor impacte:
- modas gastronómicas
- evolução de técnicas agrícolas

Economia e sistema alimentar: os dois grandes grupos, o vegetal e o animal têm


espaços e simbólica distintos
1. fruges
 cereais, legumes e frutos
 alimentos anonátios: trigo, azeite  base da alimentação é alimentar o
cidadão
 espaço de produção: arua e horto = ager romanus: espaço civilizado na
aceção religiosa e técnica
 economia: cultura cerealínea e agricultura em geral > pouco rentável
 promoção do regime autárcico: propriedade com terreno arável e um
jardim (plantas aromáticas, colmeias).

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2. pecudes
 ferae (animais selvagens) / animais domésticos
  consumo de carne tem um âmbito sacrificial > implica cerimónias
religiosas
 Espaço de produção: silua, saltus, annes, lacus, mare (o peixe é l gado
do mar) ≠ ager romanus: espaço não civilizado na aceção religiosa e
técnica
 Economia: criação de gado > rentável (comercialização com preço livre)
 Locais à margem da urbs onde o pastor e o caçador não têm relação
direta com o solo.

Fruges (vegetais)
 Os Aura (campos cultivados):
o espaço reconquistado sazonalmente à natureza
o produz o fermentum (cereais) e legumina (leguminosas)
o consomem-se bem cozinhados ou muito transformados

 Os Horti (as hortas com jardim):


o espaço civilizado por excelência, incluindo no território doméstico,
sob a proteção dos deuses Lares
o produz (h)olera: hortaliças e plantas
o vinhas e pomares
o consomem-se crus ou cozidos

Pecudes (gado)
Carne = caro, carnis = pedaço, parte > pela etimologia se percebe que é um alimento
de partilha na cena (inscreve-se no espaço de sociabilidade)
1. as ferae (animais selvagens de caça) ≠ os animais domésticos destinados ao
sacrifício
2. há pequenos sacrifícios domésticos (animais de pequeno porte) e há sacrifícios
públicos de porcos, ovelhas e vacas/bois (cf. módulo sobre religião)
3. a carne vende-se na cidade: fórum boarium (animais inteiros) e fórum
macellum (carnes dos sacrifícios)
4. (atenção!) aves e quadrúpedes selvagens não se sacrificam
5. Sacrifícios: suouetaurilia (porco, ovelha e vaca)

O “gado do mar”

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Peixes e crustáceos são animais não sacrificáveis e vendem-se no fórum pisciniarium
ou são provenientes de piscinae (tanques) particulares.

Comércio de vinho
O barril, invenção gaulesa, é introduzido na Itália no século II e, ao longo do século III,
vai destronando a ânfora.

As três refeições

 ientaculum
 prandium > estas duas refeições estão conotadas com a necessidade
(predominam vegetais – fruges); come-se de pé
 cena: é a refeição ritual do dia; também pode ser convivium ou epulum
(banquete ritual) > conotada com o prazer, predomínio (predominam) de
pecudes; é constituída por 3 serviços: gustatio, fercula e mensae secund.

A sala de jantar (cena): disposição do triclinium


A disposição dos convivas obedece a uma hierarquia: o medius lectus tem os lugares
de honra, seguem-se à direita o summus e, o menos importante, o imus. Os lugares em
cada lectus recebem as designações, da esquerda para a direita, de imus, medius e
sumus locus.

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