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FICHAMENTO: CULTIVAR O MAL-ESTAR OU CIVILIZAR A CULTURA?

Autor: Jacques Le Rider

KULTUR ET ZIVILIZATION: MAIS QUE UM PROBLEMA DE TRADUÇÃO

FREUD – KULTUR – referência: O futuro de uma ilusão (1927)

“A cultura humana – por isso entendo tudo aquilo em que a vida


humana se elevou acima das suas condições animais e tudo que a
diferencia da vida dos animais, e desconsidero ter de distinguir entre
cultura e civilização – apresenta, como sabemos, ao observador duas
faces. De um lado, engloba todo o conhecimento e o saber adquirido
pelos homens com o objetivo de dominar as forças da natureza e
assim obter os bens necessários à satisfação das suas necessidades, e
de outro lado todos os dispositivos necessários à regulamentação das
relações dos homens entre eles e em particular a repartição dos bens
acessíveis”. (TRADUÇÃO FRANCESA)

“A cultura humana – entendo por isso tudo aquilo em que a vida


humana se elevou acima das suas condições animais e por onde se
diferencia da vida dos animais, e desconsidero ter de distinguir a
civilização da “cultura” – apresenta, como sabemos, ao observado
duas faces. De um lado, compreende todo o saber e o poder que os
homens adquiriram com o objetivo de controlar as forças da natureza
e de conquistar os bens susceptíveis de satisfazer as necessidades
humanas; de outro lado, todas as disposições necessárias para
regularizar as relações dos homens entre eles, em particular, a
repartição dos bens acessíveis”. (TRADUÇÃO FRANCESA FEITA POR
MARIE BONAPARTE).

Nessa tradução M. Bonaparte informa que traduzirá kultur por civilização.

Ainda na França, 70 anos mais tarde, - glossário comentado = volta a traduzir kultur por cultura
e justifica: “(...) Foi o que Freud fez com o termo kultur, cujo sentido aparece sem ambiguidade
nos principais textos em que aborda o termo” (p.99).

Traduzir = escolher

Escolher = assumir perda de sentido

Relançar o debate – reflexões da ciências sociais alimentam o debate entre cultura e


civilização.
Traduire Freud – Verbete cultura = “a cultura designa o conjunto dos aspectos intelectuais de
uma civilização” (p.100)

FREUD – em Futuro de uma ilusão = não considerar a distinção entre cultura e civilização é
polêmica – e provavelmente é consequência da “decepção infligida pela guerra” (p.100) da
qual Freud (1915) fala em Reflexões para os tempos de guerra e morte.

THOMAS MANN (1914) – Neue Rundschau: - ao longo do artigo revela que existe um campo
semântico da kultur que se opõe a civilização.

“A civilização e a cultura não são uma única e mesma coisa, mas


antagonismos, que constituem uma das múltiplas manifestações do
eterno antagonismo cósmico e da oposição do espírito e da natureza.
Ninguém pode contestar que o México, por exemplo, possuía uma
cultura na época da sua descoberta, mas ninguém afirmara que
naquele tempo era civilizado. Evidentemente, a cultura não é o
contrário da barbárie, ela não passa na maioria das vezes de uma
selvageria em grande estilo e, de todos os povos antigos, os chineses
eram sem dúvida os únicos civilizados. Cultura significa coerência,
estilo, forma, conservação, gosto, uma certa organização mental do
mundo por mais aventureira, risível, selvagem, sanguinária e terrível
que seja. Cultura pode querer dizer oráculos, magia, pederastia,
diabos e demônios, sacrifícios humanos, cultos orgiásticos,
inquisição, auto-de-fé, ritos de possessão, processo de bruxaria,
florescimento de envenenamentos e abominações das mais variadas.
Ao passo que civilização é razão, Iluminismo, doçura, requinte, estilo,
gosto apurado, ceticismo, dissolução – espírito. Sim, o espírito é civil,
burguês. Ele é antidemoníaco, anti-heróico, e é só aparentemente
um absurdo dizer que é antigenal”. (p.101)

DEFINIÇÃO DE KULTUR EM O MAL-ESTAR NA CULTURA

FREUD – capítulo III – redefine a noção de kultur. Lembra a três principais fontes de mal-estar:

“A força superior da natureza, a decrepitude do nosso corpo e a


deficiência dos dispositivos que regulam as relações dos homens
entre eles com a família, o Estado e a sociedade” (p.103)

O homem aceita bem que não domina a força da natureza e nem seu corpo, mas tem
dificuldade em aceitar as dificuldades oriundas das instituições sociais, que foram criadas por
eles mesmos. Nesse ponto Freud evoca:

“uma afirmação que é tão surpreendente que iremos nos ater a ela. Segundo ela, é isso que
chamamos de nossa cultura que, em grande parte, sustenta a responsabilidade da nossa
miséria; seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições
primitivas” (p.103)

“Tudo aquilo pelo qual tentamos nos proteger conta a ameaça emanando das fontes de
sofrimento resultou [na] cultura”.
Primeiro – as ameaças e os sofrimentos aturados
Constitui a kultur
Depois – a necessidade de se prevenir deles

- se defender deles

“Essa hostilidade a uma Kultur que se revela menos benfeitora e mais incômoda que previsto é
um fenômeno recorrente a cada etapa da história da civilizações (aqui a língua francesa induz
naturalmente a falar de civilização)”. (p.103)

 Vitória do cristianismo sobre os cultos pagãos = descontentamento  desvalorização da


vida terrestre.

Permitiu a observação dos


Grandes descobertas
povos primitivos
Exploração dos continentes exóticos

Povos primitivos São mais felizes = tem vida simples, com poucas necessidades.

“Descobriu-se que o homem se torna neurótico porque


Modernidade 
não pode suportar o grau de frustração que a sociedade
lhe impõe em nome dos seus ideais culturais”.

É construída sob o “essa submissão das forças da


signo da desilusão natureza, realização de uma
aspiração milenar”, não tornou os
homens mais felizes. Cada
progresso comporta o seu
inconveniente. Primeiro balanço:
“Parece bem estabelecido que não
nos sentimos bem na nossa cultura
atual”. (p.104)

O mal-estar na cultura – Freud – retoma a definição de Kultur que já havia dado em O futuro
de uma ilusão.

“A palavra cultura designa a soma total das realizações e instituições


pelas quais nossa vida se distancia da dos nossos ancestrais animais e
que servem a dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a
regulamentação das relações dos homens entre eles”.(p.32)
(...)

“Reconhecemos como culturais todas as atividades e valores


proveitosos ao homem naquilo em que colocam a terra a seu serviço,
o protegem contra a violência das forças da natureza, etc.” (p.33)

Algumas conquistas culturais citadas por Freud: utensílios, motores, navio, avião, telescópio,
microscópio, fotografia, gramofone, telefone.

Freud – perspectiva – evoca: “a escrita [que] está na origem da língua do ausente, o domicílio,
um substituto do ventre materno, essa primeira morada que possivelmente sempre foi objeto
de nostalgia, onde estávamos em segurança e nos sentíamos tão bem”.

Assim, “a aquisição da kultur reagrupa “tudo aquilo que o homem, pela sua ciência e técnica,
instaurou nessa terra, sobre a qual fez inicialmente sua entrada como ser animal repleto de
angústia e onde todo indivíduo de sua espécie deve entrar como um recém-nascido
desamparado” (p.34)

Após esse processo de aquisições culturais homem  não deveria mais se sentir
desamparado como um recém-nascido  ele possui instrumentos e técnicas  é tipo um
“deus protético”p.34)  deuses – encarnam ideais culturais e representam a onipotência e a
onisciência.

Porém “o homem atual não se sente feliz em sua semelhança a Deus” (p.35) (OBS: Lembrei
da questão da relação do homem com a tecnologia. Dos pais controlando os filhos.)

Nível de cultura de um país agricultura, forma de explorar riquezas, proteger o homem da


natureza, indústria, meios de comunicação, higiene, moradias, ordem... são índices do nível
de kultur.

Freud cultura no sentido de Bildung: “Pensamos que nenhum outro traço caracteriza melhor
a cultura que a estima e os tratamentos dispensados às atividades psíquicas superiores, ao
papel fundamental concedido às ideias na vida dos homens”. (p.37)

Atividades psíquicas superiores sistemas religiosos, sistemas


filosóficos, as “formações de ideal”, a pesquisa científica e a produção artística, que são todas
guiadas pela “utilidade e benefício do prazer”

Predomínio de doutrina religiosa numa kultur = alto nível de cultura

Freud – retoma a análise do mal-estar na cultura (deixando de lado a definição do vocábulo)

TEORIA DO LAÇO (do contrato social) a lei do mais forte só pode ser ultrapassada se “se
encontra reunida uma maioria que é mais forte que qualquer indivíduo isolado e que conserva
sua coesão diante de cada indivíduo”(p.38) ”Essa substituição da força do indivíduo pela da
comunidade é um avanço cultural decisivo” e converge para o estabelecimento de uma ordem
de direito “da qual todos contribuíram com seus sacrifícios pulsionais” (p.39).

Algumas citações de Freud:

“A liberdade individual não constitui um bem de cultura. É precedendo a existência de toda e


qualquer cultura que ela foi a maior” desenvolvimento cultural restringe a liberdade
individual sede de liberdade pode ir a favor ou contra a kultur e a justiça.

Problema da kultur encontrar o equilíbrio entre “reivindicações individuais e reivindicações


culturais” (p.39)

Se existisse equilíbrio... seria possível falar de felicidade na kultur,


não seria necessário temer o mal-estar.

Porém – prevalece o estado de conflito

Cap. 3 - Freud – ao concluir – se contenta em falar de DESENVOLVIMENTO CULTURAL e de


PROCESSO CULTURAL

‘(...) modificações que provoca nas predisposições pulsionais (...) cuja satisfação constitui a
tarefa econômica de nossa vida”(p.40).

FREUD – Teoria psicanalítica da kultur “uma “similitude do processo cultural e do
desenvolvimento libidinal do indivíduo” (p.40). Outras pulsões são sublimadas e permitem o
desenvolvimento das atividades científicas, artísticas e ideológicas. Pois a “sublimação é
geralmente um destino da pulsão que a cultura obtém pela coação” (p.41)” (p.108).

- kultur edificada sobre a renúncia pulsional, sobre a não-satisfação, sobre a


repressão e o recalcamento. ”Privar uma pulsão de satisfação (...) é certamente perigoso; se
essa privação não é economicamente compensada, pode-se esperar por distúrbios
graves”(p.41): mal-estar e graves conflitos entre o indivíduo e a cultura.

Cap. 4 – Retoma a questão da origem (genealogia) da kultur traçada em Totem e Tabu. ”A
fundação da instituição familiar na humanidade primitiva esteve na origem do processo
cultural. À autoridade patriarcal do pai da horda primitiva se substituiu “à aliança dos irmãos”
e as prescrições dessa nova ordem representaram o primeiro estado de direito na kultur
totêmica. Vida em comum, trabalho e ordem familiar: “Eros e anaké se tornaram assim os pais
da cultura humana. (p.43). Vale notar que esse capítulo 4 de O mal-estar contém o que há de
melhor do antifeminismo freudiano. As mulheres, que tiveram um papel importante na
fundação da família, entram em conflito com a cultura. Doravante, elas defendem os
interesses da vida familiar e da sexualidade. “O trabalho cultural se tornou para sempre uma
ocupação dos homens” e as mulheres se revelam pouco aptas à sublimação” (p.109)
Homem moderno – decadente – profundamente agressivo – “Em certas circunstâncias, o
homem é um animal selvagem, a quem é estranha a ideia de poupar sua própria espécie. Essa
hostilidade dos humanos uns em relação aos outros sempre ameaça arruinar a sociedade de
cultura. A cultura que restringe a sexualidade e a agressividade esbarra assim em dificuldades
“que não cederão a nenhuma tentativa de reforma” (p.54). O fato psicossocial dos tempos
modernos é a “miséria psicológica da massa”, um “prejuízo cultural” do qual os Estados Unidos
da América, afirma Freud sem mais detalhes, dão o exemplo (p.58)”. (p.109/110).

“A instituição da sociedade, que constitui uma das conquistas fundamentais da Kultur, permite
a passagem do status naturalis ao status civilis. O preço a pagar pelo indivíduo é uma restrição,
imposta à necessidade pela força, da sua agressividade antissocial, sob o controle do
soberano: em Psicologia das massas e análise do eu (1921), falava do Führer da massa, que
pode orientar a Kultur no sentido do progresso da civilização, mas que é, inicialmente, uma
espécie de reencarnação do Pai odiado e venerado da horda primitiva. Toda organização, toda
ordem de direito, mesmo o Estado perfeitamente racionalizado, repousam sobre um fundo
passional inconsciente, sobre uma violência reduzida pela coação” (p.111).

Conduz a
Cap. 6 – Introduz a pulsão de morte dominação
da natureza

Quando moderada e domada se coloca a serviço da cultura

Permite a
formação da
consciência
moral

Freud: “A cultura é um processo que se desenvolve na escala da humanidade” (p.63) 


significa que é um processo que ocorre acima da humanidade, um processo que a supera e
que ela não domina.

Cap. 7 –

Animal – o desenvolvimento termina quando o equilíbrio alcançado.

Homem – o equilíbrio nunca é definitivamente alcançado

PRESSÃO – coloca em cauda o equilíbrio e relança o “processo cultural”

Ora da libido
Deve
Ora da pulsão neutralizar a
de morte pulsão que se
opõe a ele.
CULTURA – é bastante hábil para inibir e neutralizar a pulsão de destruição.

“a agressão é introjetada, interiorizada, (...) voltada para o


próprio eu. Aqui ela é assumida por uma parte do eu que se opõe
ao resto do eu como supereu (...) e como consciência moral”
(p.66)

sentimento de culpa +

medo do desamparo +

dependência criada pela = Adulto dependente da comunidade social


angústia da perda do amor

Desenvolvimento da Kultur – acompanha o crescimento do sentimento de culpa

Cap. 8

Freud – preço a pagar pela kultur = perda da felicidade.

O mal-estar que gera a consciência de culpa não é percebido como tal.

“Os religiosos nunca desprezaram o papel do sentimento de culpa na cultura”(p.79) eles o


chamam de pecado.

Sentimento de culpa  está na raiz do mal-estar na cultura


 “Uma necessidade de punição (...) do eu que se tornou
Definido como masoquista sob a influência do supereu sádico” (p.79).

Uma “angústia diante da autoridade externa” (p.79)

Resultado do “conflito entre a necessidade de ser amado por essa


autoridade e a sede de satisfação pulsional” (p.80)

Para Freud – combate Eros X Pulsão de morte caracteriza:

Processo Desenvolvimento Mistério da vida


cultural da humanidade orgânica

 É a modificação do processo vital sob a influência de Eros e Ananké


 Seu resultado é a “união de seres isolados numa comunidade
unida libidinalmente” (p.83).
Freud – Psicologia das massas – “a comunidade também produz seu supereu, que repousa na
impressão que deixaram as grandes personalidades dirigentes, chefes, líderes, dos quais
alguns foram maltratados enquanto vivos, como por exemplo Jesus Cristo. Assim, o “processo
de desenvolvimento cultural da multidão e o processo próprio ao indivíduo estão
regularmente interligados”(p.85)” (p.113/114)

Neurose social – afeta todos os indivíduos de uma mesma sociedade.

Mal-estar – tem a mesma etiologia de uma neurose “Diagnóstico de um estado patológico


implica a referência a uma norma, a partir da qual pode-se definir a saúde e a patologia”
(p.114).

O VALOR CULTURAL DA RELIGIÃO: DO MAL-ESTAR AO HOMEM MOISÉS

Freud - Totem e tabu – apresenta as idades da humanidade:

Fase animista – onipotência dos pensamentos

Fase religiosa – onipotência é atribuída aos deuses

Concepção científica de mundo – o homem reconhece sua fragilidade: se resigna com a morte
e se submete as necessidades naturais.  TABU – primeiro passo do processo cultural:
“códigoo não escrito mais antigo da humanidade”.

Mal-estar – estado religioso = DESAMPARO INFANTIL

- Sentimento religioso = neurose

Mal-estar e Futuro de uma ilusão  FREUD considera que a religião teve um papel fundador
nas origens do processo cultural

Modernidade – Religião = obstáculo a ser ultrapassado.

Freud – Moisés e a religião monoteísta – trata do valor cultural da religião.

Religião de Moisés – comparada ao politeísmo egípcio.

Moisés - é também o fundador da Kultur.

- foi o “grande homem”

- o chefe que “escolheu suas tribos para que elas se tornassem seu novo povo

- a religião fundada por ele faz exceção à regra afirmada em O futuro de uma ilusão

A idade científica da Kultur e a reconciliação com o princípio de


realidade para o indivíduo exigem a superação da crença
religiosa e mesmo do simples sentimento religioso.
Religião fundada por Moisés – permite exceder o estado religioso da onipotência dos
pensamentos e seguir a via do progresso na vida espiritual.

(páginas 118, 119 e 120 – fala de Moisés e o monoteísmo).

CULTURA E CIVILIZAÇÃO NÃO SÃO NEM SINÔNIMOS NEM INTERMUTÁVEIS

Motivo de Freud não distinguir entre Kultur e Zivilisation – resulta da desilusão causada pela
Primeira Guerra Mundial e de vontade autocrítica de uma tendência ao excesso de linguagem

Freud (1915) – Reflexões para os tempos de guerra e morte

 Revela que foi difícil para Freud resistir à retórica patriótica do ambiente
 Testemunha uma animosidade para com a civilização, comum nos países de língua
alemã no período da guerra.
 “Esperava-se “guerras entre povos primitivos e os povos civilizados”, mas na verdade a
guerra era entre povos e nações civilizados.
 Aparece claramente o debate entre Kultur e civilização

Para Pontalis (apud Le Rider): “mal-estar é uma palavra curiosa, discreta, quase tímida, fraca
ou muito forte dependendo da maneira como queremos entende-la. Um simples “mal-estar”
não permite nem um diagnóstico seguro, nem um prognóstico provável, ele desarma nosso
saber, escapa a qualquer controle. Aqueles que vêm consultar um psicanalista sabem muito
bem a diferença entre uma situação de crise e um estado de mal-estar”.

Distinção entre Kultur e Zivilisation – pode ser discreta ou forte.

Quando reduzida a Quando se pensa nos discursos


um problema de em vigor na época de
tradução. publicação de O mal-estar e de
O futuro de uma ilusão.

Para Pontalis: “A civilização é um processo se desenvolvendo acima da humanidade”. “Um


processo sem sujeito e sem agente, como todo processo inconsciente. Tal como o inconsciente
identificável que pelas suas formações (...), ninguém, nem indivíduo, nem grupo, nem classe
social, nem nação, pode pretender encarnar a civilização. Permanece, no entanto, a ideia de
que podemos confiar no movimento civilizatório, sempre a ser retomado, processo, não
progresso”. (PONTALIS, 1983, p.420).
Para ELIAS (1976) CIVILIZAÇÃO é: “O grau de evolução técnica, as regras de ideias e as práticas
religiosas”, e também “o habitat, os códigos sociais da sexualidade e da família, a
alimentação”.

Isso é o mesmo que Freud entende como Kultur.

Mas qual o motivo de chamarem civilização?

Freud - Por que a guerra? – diz que alguns preferem chamar civilização esse processo de
desenvolvimento cultural que se expande na escala da humanidade ele continuará
empregando Kultur.

Mauss – “A contribuição de Marcel Mauss estabelecia uma distinção convincente e, do nosso


ponto de vista, ainda válida entre cultura e civilização, ainda que concordando que “a noção de
civilização é com certeza menos clara que a de sociedade que, aliás, ela supõe. Mauss
continuava nesses termos”: (p.124)

“Os fenômenos de civilização são por definição fenômenos sociais de


determinadas sociedades. Mas todos os fenômenos sociais não são,
no sentido estrito da paavra, fenômenos de civilização. Há os que são
totalmente ´particulares a esta sociedade, que a singularização, que a
isolam.” (MAUSS, M. Les civilisations, Éléments et formes. In:
Civilization. Le mot et l’idée. Paris: La Renaissance du livre, 1930).

“O dialeto, os costumes, a moda são fenômenos especiais a uma determinada sociedade.


Notemos a partir de agora que é a este conjunto de particularidades que “singularizam e
isolam” que Thomas Mann, em novembro de 1914, vinculava a Kultur”. (p.124).

Mauss – o problema é diferenciar civilização e sociedade:

“Uma civilização é um conjunto suficientemente grande de


fenômenos de civilização, suficientemente numeroso, eles mesmos
suficientemente importantes tanto pela massa quanto pelas
qualidades; é também um conjunto suficientemente grande e
suficientemente característico para que possa significar, evocar no
espírito uma família de sociedades (...) Uma espécie de sistema hiper-
social de sistemas sociais”. (ibid, p.88)

Lévi-Strauss – Antropologia estrutural – escreve:

“Chamamos de cultura todo conjunto etnográfico que, do ponto de vista da pesquisa,


apresenta, em relação aos outros, distâncias significativas” (LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia
estrutural, 1958, p.325).

Lévi-Straus – apresenta: uma definição mínima, porém perfeitamente compatível com a ideia
de que um conjunto de traços comuns a diversas culturas constituiu uma civilização.
Antropologia e sociologia – o problema não é a noção de civilização, mas sim a de cultura ao
ser diferenciada da noção de sociedade. É difícil distinguir o social do cultural.

Na língua francesa – Bildung e Kultur = cultura

Pode ser definida como a transmissão didática de uma aquisição.

Assim:

Kultur (alemão) – campo semântico – concorda cultura e civilização

Cultura (francês) – campo semântico – coincide Kultur e Bildung

Três termos:

Zivilisation civilização
Campos semânticos que
Kultur cultura concordam, mas não se
confundem
Bildung educação formação

Alemão:

Zivilisation e Kultur – par antagônico

Kultur e Bildung – par de noções complementares

Francês: ocorre articulação

“a educação é um processo individual de aquisição da cultura;

A cultura é um primeiro conjunto de indivíduos (grupo social, país, nação)

A civilização é um grupo de culturas tendo em comum um número significativo de “fatos de


civilização

KULTUR – tradução: ora como cultura, ora como civilização – conforme o contexto.  Assim,
Mal-estar na civilização não estava errado.

CIVILIZAR A CULTURA

Lucien Febvre – ensaio de introdução a Civilisation: Le mot et l’ideé. Paris: La Renaissance du livre,
1930.

Francês – palavra CIVILIZAÇÃO – tem duas noções:


1) - “conjunto das características que apresenta aos olhos de um observador a vida
coletiva de um agrupamento humano: vida material, vida intelectual, vida moral, vida
política (...) e vida social. (...) não implica em nenhum julgamento de valor (...) Ela é
antes de tudo de ordem coletiva”.
2) – “quando falamos de progresso, de falhas ou de fraquezas da civilização, temos em
nosso espírito um julgamento de valor”.

No segundo caso, que implica num julgamento de valor:

Civilização se opõe a barbárie, à selvageria, designa uma “epopeia progredindo


regularmente dos povos selvagens aos povos policiados e dos primeiros homens aos
contemporâneos” (FEBVRE, 1930,p.28).

FREUD – ao desconsiderar o discurso alemão contemporâneo na distinção entre Kultur e


zivilisation – faz com que o conceito de Kultur abarque o duplo sentido da palavra francesa
civilização (pluralidade etnográfica e marcha da civilização).

Distinção Kultur e civilização entendidas como:

Um estado da Kultur e Um sentido dinâmico, Um progresso das


um estado da civilização como uma correção condutas na direção de
num momento dado individual um ideal universal.

“O que Freud rejeita é o fundamento da distinção entre Kultur e


civilização quando se entende por isso uma identificação coletiva a
uma formação do ideal em um momento dado. Com efeito essa
distinção se tornou ideológica, política e polêmica. (...) Mas não é
certo que a recusa freudiana em distinguir Kultur e civilização milite a
favor da tradução de Kultur por cultura. Ao contrário, podemos
sustentar, com excelentes argumentos, que ela conduz a traduzir
Kultur por civilização”. (p.134)

Hipótese que tenta justificar a negativa de Freud em diferenciar Kultur e civilização se baseia
no texto Por que a guerra? de 1932: “Desde tempos imemoráveis, o processo de
desenvolvimento da cultura tem caminhado para além da humanidade. (Sei que alguns
preferem chama-la de civilização)”. (p.25)

“De um texto para outro, às vezes no mesmo texto, Freud emprega


as mesmas palavras com acepções sensivelmente diferentes, o que
não tem nada de surpreendente, posto que nenhuma tradução em
nenhuma língua pode ser feita com o auxílio de um glossário estático.
O tradutor deve certamente se adaptar em francês a uma margem de
flutuação da mesma ordem”. (p.135)

FREUD E NIETZSCHE

“A situação de Sigmund Freud, dez anos após o final da Primeira Guerra Mundial, diante da
repugnante batalha ideológica conduzida a golpes de noções confusas, Kultur (alemã) contra
civilização (inglesa e francesa), se assemelha bastante à de Nietzsche logo após a guerra
franco-alemã de 1870-71, quando universitários alemãs e intelectuais franceses se debatiam
violentamente em torno das palavras Kultur e civilização.

Mas as transferências culturais obedecem a uma lógica que menospreza as paixões políticas.
Por detrás da antítese Kultur alemã – civilização francesa se opera “a ação particular que as
palavras estrangeiras podem exercer nas palavras francesas com as quais possuem algum tipo
de analogia de sentido ou de forma: eles se enriquecem de uma acepção especial, própria às
primeiras”. (p.136)

Cultura
Noção cultura – francês SINÔNIMOS
Ficam próximas
Noção de Kultur - alemão Civilização
o

Somente em alguns casos a Kultur - entendida como particularidade de um povo – e civilização


– como marcha em direção a um ideal universal – é mantida. (p.137)

O QUE SE PERDE AO NÃO SE DIFERENCIAR CULTURA E CIVILIZAÇÃO

ROUDINESCO (1982/1994) em História da Psicanálise na França (vol.1 (1885-1930) retoma a


discussão franco-alemã. “Bem-estar se opõe a mal-estar num registro ortopédico e na mesma
medida que a palavra civilização denota a superioridade do “gênio da liberdade latino” sobre a
“Kultur alemã” (p.308).

Hoje – 70 anos após O mal-estar na cultura de Freud –



PROBLEMA  Reaprender a diferença talvez necessária e desejável entre cultura e civilização.

Pois “o pluralismo das culturas e civilizações conduziu ao relativismo


generalizado. A noção de “cultura” se confunde com a de Kultur e
não raro se reduz a um sinônimo de habitus. A cultura: uma forma de
ser em sociedade, um modo de vida, uma forma de se alimentar, de
se vestir, de conceber a célula familiar, de construir seu hábitat, etc.
A cultura, na linguagem contemporânea, erige tanto do inato, do
espontâneo, quanto do adquirido e da transmissão didática e
normativa” (p.142-143)
Primeira Guerra Mundial – BARBÁRIE – revela que as civilizações são mortais

Segunda Guerra mundial – ULTRAPASSA A BARBÁRIE – além de mortal a civilização é mortífera.

“cultura de exterminação” (???) – Jean Gillibert, Culture d’exterminação

Hélé Béji – L’imposture culturelle. Paris: Stock, 1997, p.16 – “O próprio de nossa época é de
nos deixar culturalmente desamparados contra sua perda de humanidade” (p.16)

“A modernização dos países ex-colônias provocou uma perda de identidade de todas as


culturas nacionais. Essa perda conduz à dos códigos morais, éticos, estéticos: “Não é a ideia de
homem que se retira?”(p.24)” (p.143)

“Enquanto o mundo outrora colonizado se revela impotente para fundar uma nova civilização,
“a cultura mundial, que é uma nova forma de civilização, se distingue desta naquilo que ela
perdeu de razão universal”(p.47)” (p.143)

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