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O AMOR LIVRE
mari blue

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_ Mas eu te dou liberdade meu amor!
_ Não, você não me dá liberdade. Você me devolve, é um estorno.

Somos todos juízes e carcereiros.

O que é liberdade? É uma invenção. O que chamo de liberdade é algo que não se possui de
prima, é sempre uma devolução. Provavelmente não é possível ser livre por inteiro, mas é
possível reconquistar espaços. Há uma metafísica nessa afirmação uma vez que a própria
liberdade estorno torna-se uma ideia, e uma vez que nunca a tivemos (ou a teremos) de forma
total, sua totalidade se mostra transcendente. Fica parecendo platônico, mas não é por esse
caminho que quero ir. O território da liberdade estorno que trago não vive no “mundo das
ideias”1 à moda de Platão, não é imutável, não é “a verdade” e muito menos atrelada à
perfeição, ao verdadeiramente belo e sublime, sobretudo não diminui ou condena o espaço
da existência na nossa realidade possível, mas expande suas possibilidades. A liberdade que
exponho é arte, criação, invenção, é patafísica2 mais que metafísica. Somos todos inventores,
a priori.
O que é o amor? É uma invenção. O amor enquanto entidade universal não existe, e se
existir, estamos longe de achar uma definição pura e imutável que dê conta do seu
significado. Quando alguém diz “Eu te amo”, nem a pessoa amante e nem a amada faz ideia
do que isso significa de fato. É onde a comunicação, que sempre é ruim, torna-se ainda mais
débil, as cobranças se instauram e emerge a frase: “você não me ama de verdade”. Cada
indivíduo costuma trazer sua fita métrica para medir o amor, entretanto a unidade de medida
não tem padrão (metáfora de Marina Colasanti3). Assim ninguém ama ninguém de verdade,
já que a verdade, aqui, não existe, existem criaturas querendo consolidar seus próprios
valores, suas próprias medidas, ou as medidas aproximadas que a moral vigente estipular,
porém elas insistem em dizer que não. No subtexto dizem: “a minha fita métrica é a certa, a
boa, a melhor”. “L'amore non esiste”4 , esse é o título de uma canção que, por um
“insight” (ou um “clarão”5 , em mineirês), destruiu o amor histórico que me assombrava.
Agora era preciso livrar o amor se eu quisesse ainda viver com ele, se eu quiser que ele
exista.
O amor na sua existência livre não habita a balança do bem e do mal: “o bem, assim como o
mal, não tem sentido. Um e outro são seres da razão, ou da imaginação, que dependem
totalmente dos signos sociais, do sistema repressivo das recompensas e dos castigos”6
(Deleuze, sobre a filosofia de Espinosa). Esse dualismo é herança maniqueísta7 impregnada
em nós ocidentais até as entranhas, misturada ao tipo de valoração do platonismo cristão.
Nosso amor (nos seus aspectos mais populares) é quase sempre platônico. Se a verdade
sobre nossa existência existe, como poderemos identificar dentre todas disponíveis qual é a
verdadeira? Problema sem solução. Areia movediça. Posso aceitar verdades sobre o amor
desde que provisórias, possíveis, limitadas, inventadas. Por isso insisto na palavra
“invenção”. Contradição, temos mania de querer organizá-la mas é impossível, basta olhar
com profundidade para ver que ela está sempre ali, em tudo. Para criar sentido precisamos da
contradição. Para viver é preciso criar sentido, múltiplos sentidos. Qualquer cosmologia
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precisa aceitar a contradição se não quiser negar o infinito. Temos um sério problema com o
infinito, ele carrega uma carga niilista que pode ser atordoante até mesmo nas aulas de
matemática, com excessão da promessa de paraíso eterno, para quem se interessa por ela. Me
parece interessante um niilismo de passagem, condição a se superar, já que o niilismo
absoluto pode ser paralisante. "Fé cega e faca amolada"8, à moda de Milton Nascimento/
Ronaldo Bastos, ou "fé cega e pé atrás"9, à moda de Humberto Gessinger.
O “jeito de amar” mais ordinário que temos experiência, pegando a parte mais objetiva e
superficial possível, tem segurado todo um sistema nas bases mais submissas e ocultadas.
Por ele lutamos para manter as cordas bem amarradas, para que a engrenagem não se altere.
Admitir que o amor seja livre é muito perigoso e exige uma justiça dinâmica, flexível, mais
ética, menos moral e em constante movimento. Sim, eu escolho diferenciar moral e ética10,
mesmo que, na raiz, essas duas palavras tenham o mesmo significado. É preciso aceitar que a
justiça tarda, falha e nem se quer existe por si só, nós a criamos, somos os inventores dela e
que a busca pela perfeição é um modus operandi de dominação. Determinaram, determinam
e determinarão o que é perfeito e certo em bases dogmáticas, oprimindo os imperfeitos,
superestimando os “corpos dóceis”11.
Em “O Banquete”, obra prima de Platão (380 A.C) dedicada ao amor (no caso, Eros), a
personagem Diotima traz a conclusão mais bem-quista por Sócrates de que Eros é disforme
e vai em busca do belo, e sim, a verdadeira beleza existe na filosofia de Platão. Diotima diz:
“olhar o belo do único modo que o belo pode ser visto, somente então lhe será possibilitado
gerar não imagens de virtude, mas a verdadeira virtude, uma vez que seu contato não é com
a imagem, mas com a verdade”12 . E o que é o disforme? O que é o belo verdadeiro? Alguém
dirá/diz/disse e aparentemente adoramos essa pauta, esse tipo de cognição nos causa uma
satisfação solúvel, nos apetece as propostas que levem até a segurança do imutável. Que tal
menos predição? Que tal andar por caminhos menos dualistas? Outros tipos de cognição é o
desafio. O Platonismo tornou-se dogma tão enraizado no ocidente13 que nem precisa mais
de pregação, já é a premissa, de onde parte o pensamento de grande parte das pessoas.
Platão foi um sujeito histórico incrível, escreveu verdadeiras obras primas, não é à toa que
cismaram com ele. Ainda sobre “O Banquete” vou citar um trecho que, ao contrário dos
pontos que critiquei anteriormente, me move bastante (em concordância) nesse ensaio sobre
amor: “o mortal participa da imortalidade, quer no que se refere ao corpo, quer em todos os
outros aspectos: isso não é exequível por nenhum outro meio. Portanto, não te espantes com o
fato de todas as coisas naturalmente valorizarem seus próprios pimpolhos, pois é em vista da
imortalidade que todas as coisas mostram esse zelo e amor. (…) basta lançares um olhar na
ambição dos indivíduos humanos à sua volta. Ficarias espantado com a irracionalidade
deles (…) terrivelmente são afetados pelo amor da conquista de um nome e da edificação de
uma fama para sempre imortal (…) estão todos apaixonados pelo imortal.”14 Somos
apaixonados pelo imortal e escravos dessa paixão, essa tem sido a nossa trágica forma de
lidar com o infinito. Sobre esse trecho me deparo com a nossa tentativa de edificação da
eternidade de forma concreta. Nosso estereótipo de amor mantém-nos culturalmente
narcisistas, preservando nossos nomes, sobrenomes, casamentos, união de bens, famílias,
propriedades, reinados, por menores que sejam os bens materiais e imateriais em jogo.
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Livrar o amor pode nos deixar irreconhecíveis, metamorfoses ambulantes. Requer um
trabalho no ego, estar mais que ser, se conhecer na transitoriedade mais do que se
reconhecer. O sentido deverá ser construído no caminho, sem destino, vagando com mais
leveza, sem grandes metas ou muitas grandes metas. No entre.
Difícil não lembrar de Schopenhauer quando se pensa sobre amor, ele foi um dos poucos
filósofos que se dedicou bastante ao tema. É conhecido como “o pessimista” e trouxe uma
ideia de amor bastante atrelada ao lado biológico e assim nós seríamos reféns dos nossos
instintos de procriação, para ele não existem muitas saídas e isso pode trazer muita dor.
Quando nos deparamos com o cliché “o amor = dor” estamos diante de um traço do legado
desse importante filósofo do século XIX. Ele concebeu o amor como não sendo sinônimo de
felicidade e, até aí, absorvo em concordância com sua análise, mas o amor que vislumbro
identificar dentre tantas coisas não é ele próprio, necessariamente, gerador da dor.
O amor pode causar dor por seu movimento criativo e destruidor. A dor no território dos
afetos é fruto das expectativas humanas sobre o outro, vem da prepotência e do apego, da
criança que grita pela predileção da mãe e se comporta da mesma forma em suas relações até
o fim. Somos vaidosos e "a vaidade excita"15. Sim, eu quero descolar o amor da dificuldade
do ser humano de lidar com a falta, com o desejo, com o desequilíbrio, com a rejeição. Não
estou interessada em defender que "amor deve ser isso”, “amor é aquilo”. Quero propor!
Uma proposição a quem se interessar e a quem fizer sentido. Já aviso que os interessados não
darão conta desse amor, até porque ele não tem a ver com isso. Não é sobre dar conta.
Experimentação.Vamos identificá-lo dentre tantas coisas para que possamos admirar sua
liberdade e que paremos de culpá-lo por nossa miséria. Que possamos identificar egoísmo,
vaidade, inveja, ciúme, posse, agressividade, vontade de poder sobre corpos, vício em
predileção, ilusão e tantos outros fenômenos que atribuímos ao amor. E se o DNA é nosso
karma, vamos aprender a surfa-lo!!!16 (citando Humberto Gessinger, mais uma vez).
O amor que estou propondo tem a ver com criação, movimento, transformação, desejo, e
não com o produto deles. O produto vai variar dependendo da nossa capacidade de digestão,
do nível de apego, de negação, de observação das nuances do real, da concepção de
realidade, da predisposição a fantasiar (e exigir que a fantasia se transforme em execução
prática). O produto pode ser dor, mas não necessariamente. E caso seja, a questão passa a
ser o que se faz com essa dor. Normalmente a dor tende a ser exaltada e a pessoa (que se
identifica como vítima) inaugura sua sofrência. Agora é um refém que merece receber as
condolências. 
A palavra "romantismo" tem um senso comum nebuloso que faz muita gente estranhar
quando defendo que é preciso destruir o amor romântico. Quando apresento essa ideia não
proponho que as pessoas parem de fazer poesia, de presentear com flores, fazer um jantar
especial ou o que mais isso pode significar no campo das sutilezas. O ideal romântico que
deve-se destruir é o da idealização da realidade e das pessoas, da romantização da dor, da
união, da honra, da moral e até da morte. ”Diga que você é minha”, Você é e será o único
amor da minha vida”, “Não posso viver sem você”, "somos cada um a metade da laranja",
"almas gêmeas", "nascemos um para o outro”, “você nunca me amou”, “pensei que você fosse
diferente, mas é igual as outras”, “não se dá valor”, “não te reconheço mais, você mudou!”,

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blá, blá, blá. Destruindo o amor romântico tem muita música que deixa de fazer sentido,
algumas podem continuar lindas, mas como peça, não mais aquele grito ressentido de
vingança ou alimento para sofrência. Quem livra o amor tende a ser mais forte e isso pode
causar muito repúdio em quem sofre de amor preso. Somos educados para ter amor moral,
aqui não queremos amor imoral e sim amoral, sobretudo ético. Qual será a ética? Devemos
construir. Não tem livro guia. "A minha liberdade acaba onde começa a do outro", parece
perfeito se o outro não quisesse se apossar de grande parte da minha liberdade alegando ser
dele (e ele realmente acha que é dele), aí nesse espaço de interseção das liberdades de dois
indivíduos (ou mais) a ética precisa ser construída em parceria, caso, visto os limites de cada
um, essa parceria queira mesmo prosseguir. Diversas vezes a parceria acaba por medo do
caos, medo da natureza do próximo, mesmo quando o grande perigo apenas afete o controle
que um quer ter do corpo e da mente do outro, duas coisas que pra mim são uma só, mente é
corpo, corpo é tudo, é o todo.
Vou parar por aqui, não porque seja o fim do texto, mas porque decidi parar. Tudo o que
"é", aqui significa que "pode ser". Por isso escrevi um ensaio e não haverá espetáculo final.
"O medo de amar é o medo de ser livre" (título de uma música de Fernando Brant com Beto
Guedes), “o medo de amar é não arriscar, esperando que façam por nós o que é nosso dever,
recusar o poder”17. Recusar o poder, ser impotente e seguir apenas como juiz dos outros,
sendo o julgador sem legislar, procurando outros ressentidos e medrosos (que são muitos)
para defender-se da transformação. Julgar é preciso, é o que estou fazendo nesse momento,
inclusive. Contudo, na prática, os juízes medíocres não escapam do caos coberto pelos
panos da hipocrisia, aquela que ninguém quer, mas que poucos abrem mão, porque de tão
fina, a hipocrisia é sempre pano para cobrir, não protagoniza, é cenário para cobrir cenário.
Na origem da palavra ela seria a própria máscara do ator, entretanto, a máscara do ator não
esconde ser máscara, é autêntica. Recusar a liberdade estorno mata por asfixia, liberdade
total vai matar por excesso de oxigênio. A morte é inevitável. No caminho as escolhas. No
caminho, o caminho. No entre. Móvel. Entre18!

* faço esse adendo para deixar claro uma coisa que, nos tempos atuais e visto a temática do texto, pode abrir espaço
para más interpretações de oportunistas lunáticos (você que lê/ouve esse texto no futuro talvez não entenda a
necessidade desse adendo bizarro, ou talvez entenda completamente, já que você sabe o que ainda não sei) : não sou a
favor, absolutamente, da permissão da pedofilia (e incluo zoofilia). Hoje existem pessoas obcecadas por citar esse
assunto em contextos absolutamente incoerentes. Tenho uma posição ética sobre isso que podemos tratar num outro
momento, aliás, os meus contemporâneos tarados pela palavra “pedofilia” (em contextos absurdos) não costumam
fazer ideia do que “ética” quer dizer.


5
1referência a alegoria da caverna, metáfora que Platão apresentada no livro “A República” para
explicar sua teoria metafísica dualista que se baseia na existência de um "mundo das ideias”
verdadeiras, perfeitas e imutáveis, em contraponto com o nosso mundo das aparências, que é o
que percebemos através dos sentidos (mundo das cópias e simulacros).
2 o termo “Patafísica" foi criado pelo escritor francês Alfred Jarry (precursor do teatro do absurdo,
surrealismo e dadaísmo). Definida como a “ciência das soluções imaginárias e das leis que
regulam as excessões”, seria ainda, no sentido literal, “o que está acima do que está além da
física”.
3Marina Colasanti expõe essa metáfora da fita métrica no seu livro “E por falar em amor”, de
1986.
4“L’ amore non esiste” (tradução: O amor não existe) é uma música italiana que gosto muito, dos
compositores Niccolò Fabi, Mas Gazzè e Daniele Silvestri.
5 Sou mineira e em Minas Gerais usamos a palavra "clarão" com o mesmo sentido de "insight".
Clarão é o que vemos no céu quando cai um raio, cena típica no nosso estado, onde tem grande
incidência desse fenômeno.
6citação do livro “Espinosa: Filosofia prática”/ Gilles Deleuze - São Paulo: Escuta, 2002. Página:
61
7doutrina religiosa que teve origem na Pércia, muito difundida no Império Romano, que afirmava
existir um dualismo conflituoso entre bem e mal, luz e trevas.
8 “Fé Cega, Faca Amolada” é uma canção composta por Ronaldo Bastos e Milton Nascimento.
9 trecho da canção “Realidade Virtual” de Humberto Gessinger.
10 influência da obra “Ética” de Espinosa.
11conceito de Foucault para definir os corpos que são submetidos a uma docilização obediente,
domesticado para atender a fins de dominação , "É dócil um corpo que pode ser submetido, que
pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.” Citação do livro "Vigiar e Punir: o
nascimento da prisão.” / Michel Foucault - 20ª edição - São Paulo: Vozes, 1999. Página: 117.
12 citação da obra “O Banquete” de Platão - São Paulo: EDIPRO, 2012. Página: 76
13generalização para situar pessoas, como eu, criadas em culturas com forte influência
(dominação) européia
14 citação da obra “O Banquete” de Platão - São Paulo: EDIPRO, 2012. Página: 70
15 referência à canção “Não existe amor em SP”, de Criolo.
16 referência ao título da canção “Surfando Karmas & DNA” de Humberto Gessinger.
17 trecho da canção “O medo de amar é o medo de ser livre” de Ronaldo Bastos e Beto Guedes.
18 nome de um dos meus álbuns autorais.

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