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Morar na casa do Amor

Anselm Grün

SUMÁRIO
Introdução
Do que vive o ser humano?

1. O anseio por amor puro


O anseio por estar apaixonado
O anseio por amor puro

2. Realizações do amor
Destinos do amor na literatura mundial
A diluição do amor
Expectativas de amor exageradas
Amor e ciúme

3. O amor crucificado de Deus


Morar na casa do amor
Tu és meu filho amado, minha filha amada
O amor em face da morte
O amor como cura de meus vícios

4. Amor humano e amor divino


A fonte divina de amor
Ser amor
Experiência do amor humano e do amor divino
Estar próximo de si mesmo
Lidar com experiências de falta
O amor de Deus como possibilitação do amor humano

5. A dimensão erótica do amor de Deus


Espiritualidade como repressão da sexualidade
Sexualidade como substituto da espiritualidade
Euforia como fuga da sexualidade
Misticismo como integração de sexualidade e espiritualidade

6. A força curativa do amor


Transformação pelo amor
Pegar o amor
Fechar-se para o amor
A ambiguidade do amor

7. Caminhos psicológicos e espirituais da cura


A ferida remete ao amor
Mistagogia (iniciação) no amor de Deus
A experiência curativa do amor de Deus
Os vestígios do amor na infância
A meditação das promessas bíblicas de amor
Condução cuidadosa ao amor de Deus

8. A dádiva do amor
O Cântico dos Cânticos
Amor e dor
O cântico paulino de amor
Conclusão
Quem não ama não existe,
não vive, morreu.
Quem tem vontade de amar supera a morte,
e somente quem ama vive para sempre.
ROBERT WALSER

INTRODUÇÃO

Os amigos viviam me pedindo: "Escreva alguma coisa sobre o amor!". Eu sempre recusava,
dizendo que a palavra era muito elevada para mim. E quase não há outra palavra que seja mais mal-
empregada e desgastada do que "amor". Uns equiparam amor a sexualidade. Os sucessos musicais
cantam um amor eterno, referindo-se com isso a uma paixão romântica. Mesmo em círculos eclesiais,
essa palavra é frequentemente usada apenas como uma fórmula vazia. Fala-se do amor de Deus, mas
ninguém sente nada dele. Continuam a ser palavras que falam à cabeça, mas deixam o coração frio. Às
vezes, o amor é empregado na Igreja como arma para sufocar na raiz qualquer conflito e reprimir
qualquer opinião independente. Em nome do amor se desculpa tudo. Quando uma sessão foi preparada
com desleixo, é preciso suportá-la em nome do amor. Se ficamos furiosos com uma falsa
argumentação, por amor devemos aceitá-la. Ou então se alega a exigência moral de que devemos amar
tudo e não podemos cometer nenhuma agressão. As pessoas adotam belas formulações de como
devemos estar sempre repletos de amor. Então tudo ficaria diferente. Ou surge também o slogan que
soa bonito, mas que em si é falso: "Somos cristãos pelos outros". Então o cristão não é nada em si
mesmo? Ele não é
filho amado, a filha amada de Deus? Isso não é realidade? Esse abuso da palavra "amor" me tirava,
até então, a vontade de escrever sobre ele. Além disso, sempre tive algumas inibições para falar de
meu amor por Deus ou do amor de Deus por mim, pois quando os outros mostravam imensa
leviandade ao falar dele tudo me parecia uma fórmula vazia.
Pois bem, nos Exercícios Espirituais individuais tive um sonho, no fim do qual aparecia a
intimação: "Desperte nas pessoas o anseio por amor, o anseio pelo amor trino!". E, ao mesmo tempo,
ouvi no sonho: "Mas comece cuidadosamente!". Senti que não podia falar imediatamente do amor de
Deus, mas devia buscar as pessoas onde elas estão, onde elas têm a sua experiência com amor, onde
são dilaceradas entre o sentimento de felicidade de amor e a decepção pelo amor frustrado, onde
gostariam de amar e não o conseguem, onde anseiam por amor e por ser amadas e o seu anseio nunca
se aplaca. Quando a senhora Hildegunde Wõller, da Kreuz Verlag, me perguntou se eu não queria
escrever sobre a experiência do amor de Deus como o verdadeiro fundamento da nossa vida, vi isso
como um aceno para seguir o meu sonho.
Senti, no entanto, que não se trata de aumentar as muitas palavras sobre o amor, mas de
escrever sobre o amor de Deus e o nosso amor humano de tal forma que também possamos
experienciá-lo e, por meio da experiência, vivenciar a cura das nossas feridas e a satisfação do nosso
mais profundo anseio. Aqui me comporto como alguém que, depois da perda da fala, por exemplo após
um derrame cerebral, começa a juntar novamente as velhas palavras. E espero não apenas repetir
simplesmente as palavras, mas dizê-las de tal modo que o coração se sinta compreendido por elas.

Do que vive o ser humano?


A linguagem popular responde a essa pergunta do mesmo modo que os poetas russos Tolstoi e
Soljenitsin: "Do amor". Obviamente, o homem sabe no seu íntimo que sua vida só poderá ter êxito se
ele amar e for amado, se tiver experiência do amor e poder oferecer amor. Sem amor a vida se torna
um inferno, fica insuportável. Sem amor podemos criar grandes obras, ser famosos e admirados, mas
não podemos viver realizados. Sem amor a vida fica fria e vazia. Foi isso o que descreveu Thomas
Mann em seu romance Doutor Fausto. Quando o compositor alemão Adrian Leverkühn não tem mais
ideias, quando sua criatividade ameaça se tornar estéril, ele faz um pacto com o diabo. Esse pacto lhe
possibilita criar obras geniais. Mas a condição é não poder amar ninguém: "O amor lhe está proibido,
porque ele aquece. Sua vida deve ser fria; por isso você não pode amar ninguém"1. Thomas Mann quis
descrever no pacto com o diabo a Alemanha fascista. Mas o que Leverkühn fez é provavelmente uma
tentativa que acomete muita gente hoje, é o perigo de subir brutalmente pela escada da carreira e nisso
perder a alma e esfriar o coração.
Estamos hoje diante da questão se queremos viver do amor, do amor de Deus como o
verdadeiro fundamento da nossa vida, e da capacidade de amar uns aos outros, ou se queremos
apenas ter uma grande posição, se vamos vender a nossa vida pelo trabalho e pela fama, ao custo do
amor. Gostaria neste livro de convidar a morar na casa do amor, a viver do amor e a reconhecer o
amor como a maneira de tornar a nossa vida verdadeiramente digna de viver. E gostaria de exprimir
que o amor é a força que pode curar nossas feridas. Não são os métodos psicológicos que curam as
feridas que provavelmente cada um traz consigo, mas em última análise o amor, não apenas o amor
do terapeuta ou do conselheiro espiritual, mas o amor de Deus. Esse amor de Deus, que para tantos é
tão abstrato, eu gostaria de explicá-lo como a verdadeira experiência de cura e libertação, de
cumprimento e consumação da nossa vida. Estou ciente de que não se trata de uma tarefa fácil. Ela é
limitada pela linguagem, e também pelas associações que o leitor faz com as palavras. Cada um
entenderá as palavras que lê com base em sua experiência concreta. Quem anseia sobretudo pelo
amor sexual achará o discurso sobre o amor de Deus abstrato e vago. Quem ouviu pregações
moralizantes sobre o amor ao próximo na igreja se mostrará alérgico a algumas palavras. Eu ficaria
feliz se o leitor pudesse deixar de lado os seus preconceitos e se envolvesse de modo novo com o
mistério do amor, para capturar o amor que já está nele e o circunda por todos os lados.

1.
O ANSEIO POR AMOR PURO

É provável que todas as pessoas anseiem por amor. Basta ouvir os sucessos musicais ou
acompanhar a programação da TV. Em toda parte se fala de como pessoas desejam amor, como
esse amor lhes deve trazer felicidade e, no entanto, muitas vezes as deixa infelizes. Em primeiro
plano está o anseio de ser amado por outra pessoa, de ser incondicionalmente aceito por outro
indivíduo. Muitos concordam com a equação: "Sou amado, logo existo". Sentem-se valiosos
quando são amados. Quem teve essa experiência de amor vive em harmonia consigo mesmo. Mas,
para quem foi decepcionado em seu anseio por amor, esse sentimento pode se tornar um vício. A
pessoa sempre se perguntará se os outros gostam dela, se o homem ou a mulher que ela ama
também a ama ou se seu amor é vão. As crianças pequenas também giram em torno do tema amor.
Ficam enciumadas quando os pais dedicam mais atenção ao irmão mais novo. Observam com
precisão quanto tempo a mãe tem para cada filho. E cuidam para que tenham o mesmo tempo
dedicado aos irmãos. Essa questão também está presente em muitas salas de aula. Os meninos
competem para obter o reconhecimento da menina mais bonita, para conquistar a garota mais
cobiçada. E as meninas se esforçam para ter um namorado o mais cedo possível para não se sentir
inferiores. O namorado é como um símbolo de status de que ela precisa para sua autoestima. Contudo

1
. Thomas MANN, Doktor Faustus. Das Leben des deutschen Tonsetzers Adrian Leverkühn, Frankfurt, 1975, 332.
essas são muitas vezes formas imaturas de amor. Trata-se mais da força de atração do sexo oposto, da
busca da própria identidade. Contudo, justamente na puberdade irrompe também a força do amor, a
experiência singular de que não sou apenas reconhecido e valorizado por uma menina, mas realmente
amado tal como sou. Os garotos e garotas sonham com um amor que encanta tudo. Em devaneios sem
fim, eles imaginam como seria se a outra pessoa por quem estão apaixonados correspondesse a esse
amor e existisse apenas para eles. A experiência da força encantatória da paixão é tão intensa que eles
dão tudo para amar e ser amados.
Em muitas conversas de cura de almas, aborda-se o anseio de ser finalmente amado pela mãe
ou pelo pai. Uma mulher, por exemplo, investiu toda sua energia para finalmente ter a atenção e o
amor do pai. E sempre foi decepcionada. O anseio pelo pai vai acompanhá-la por toda a vida, mesmo
que ele já tenha morrido há muito tempo. Ou um homem deseja ser amado pela mãe. Mas toda vez que
estão juntos só acontecem brigas. Como não recebe o que espera da mãe, ele reage com agressão a
cada palavra dela. Quanto menos o anseio de amor é preenchido pelos pais, mais fortemente ele deter-
mina a nossa psique. E mais confusas ficam as relações com o pai e a mãe. O amor pela mãe torna-se
com frequência um sentimento de amor e ódio. A filha não se desliga da mãe. Ela deseja seu amor e ao
mesmo tempo a odeia, porque a mãe não lhe dedica esse amor. O filho fica paralisado no amor pela
mãe e se torna incapaz de realmente amar a esposa. Ao mesmo tempo, o sufocante amor materno o faz
ir de uma mulher a outra, na esperança de finalmente se livrar desse sentimento doentio e encontrar
o amor verdadeiro. Mas é um círculo vicioso do qual ele consegue sair apenas com dificuldade.
Em cursos para jovens, constato que as histórias de relacionamentos são o conteúdo cada
vez mais determinante das conversas confessionais e de cura de almas. Um rapaz sofre por não
encontrar uma jovem que o ame. Mesmo amando uma garota, o amor dele é vão. Ou ele não ousa
revelar sua afeição a ela, ou vivencia a rejeição. Ela já tem um namorado. Em outro caso, uma
mulher sofre de solidão. Quando era jovem, tinha muitos pretendentes. Nessa época, ela brincava
com eles. Era tão bom ser independente. Agora é cada vez mais difícil encontrar um companheiro
adequado. E esse é, no entanto, seu desejo mais ardente.
Muitas vezes outros desejos se imiscuem no anseio por amor. Existe o desejo de receber
cuidado, não ficar sozinho, fundar uma família, achar um sentido na vida. Sem amor nos sentimos
sozinhos, temos medo do futuro, da velhice. Não se trata apenas de amor, mas também de se
perguntar pelo valor próprio. Alguns se sentem inúteis sem filhos. Sobre esse amor cabe a pergunta:
Mereço ser amado por outra pessoa? No amor reside o desejo de ser único para outra pessoa, de que
o outro ame somente a mim. A experiência da dignidade própria está associada à experiência de um
amor que me considere em minha singularidade, no qual eu posso ser inteiramente eu mesmo e no
qual descubro minhas capacidades e possibilidades.
Os vários sucessos que cantam o amor tratam, em última análise, do anseio por uma relação
bem-sucedida, por um amor que dure para sempre, que satisfaça todos os desejos, no qual possamos
descansar, que nos conceda felicidade eterna. Mesmo que muitas vezes as canções cantem esse amor
de maneira bem superficial, elas mostram o que move as pessoas em seu âmago.
A pergunta é: Como nós, curadores de alma, podemos responder a esse anseio por amor de
modo que as pessoas se sintam acolhidas? Só podemos responder se sentimos a fundo seu anseio e
se confessamos nosso próprio anseio, se o contemplamos e confiamos nele.

O anseio por estar apaixonado


No anseio por amor, não se trata apenas de ser amado por outra pessoa. Muitos
experimentam a situação de estar apaixonado como fonte de renovação e encantamento. Uma
jovem me contou que vive se apaixonando e que, a cada vez, alguma coisa nela ganha vida. Ela
consegue desfrutar o estar apaixonada mesmo não sendo correspondida pelo homem por quem se
apaixonou, pois ela tem uma experiência nova de si mesma. Em cada situação de estar
apaixonada, ela descobre novos lados de si. O cotidiano cinzento se ilumina, e ela pa rece andar
nas nuvens. Todo mundo também anseia poder amar, romper a couraça da própria reclusão e
abrir-se, entregar-se inteiramente para outra pessoa. O amor transforma o amado, ele o recria.
Verena Kast vê nisso a essência do amor:
O amor só nasce, só irrompe, talvez, quando vemos dentro da pessoa amada suas melhores
possibilidades e as trazemos para fora por força do amor; possibilidades que a retiram da estreiteza
de seu estado atual, que abrem sua vida para algo que ela não julgava possível2.
Pessoas maduras sabem que o estado da paixão não dura muito tempo. Elas anseiam poder
amar outra pessoa para sempre. Nesse anseio por um amor duradouro se esconde também o anseio
por confiabilidade e fidelidade, por segurança e por uma perspectiva para o futuro. O amor que
amadurece depois da fase do estar apaixonado aceita a outra pessoa com todos os seus
desenvolvimentos. Ele a apoia. Ele a considera tal como ela é. É livre das projeções que na situação
de estar apaixonado desempenham enorme papel. Ele não mantém o outro no estado que ele tinha no
início do amor, mas o acompanha por todos os desenvolvimentos e transformações. Ele não desiste
do outro, mesmo que adoeça, fique fraco, feio e velho. Nesse tipo de amor, a pessoa se torna
saudável; ela é, por assim dizer, recriada.

O anseio por amor puro


Quando dizemos que uma pessoa é toda amor, não estamos nos referindo ao seu grande
amor pelo cônjuge, namorado ou namorada. Existe também um amor que se dirige a todos, a todas
as pessoas, aos animais, às flores, a uma atividade. Existe o amor ao momento. O amor é
evidentemente mais do que estar apaixonado por outra pessoa. O amor significa o cuidado
benevolente para com todos. Uma pessoa que é toda amor trata a si mesma amorosamente, toca com
carinho as flores no seu quarto, afaga o cachorro que vem ao seu encontro consegue contemplar a
paisagem com amor. Ela irradia um calor e um amor que fazem bem a todos que estão próximos. O
seu amor não é artificial. Ela não precisa arrancá-lo da sua agressividade. Ela compreende as
pessoas ao seu redor. Reage com misericórdia e doçura, e dispensa julgamentos duros. Verena Kast
fala aqui de uma amorosa atitude em relação a tudo, não apenas a um "tu" concreto. Para ela, o amor
não é apenas um sentimento entre as pessoas.
O amor é primariamente um sentimento de mim, pelo qual sou tomado, que irrompe em
mim; mas ao mesmo tempo ele sempre procura um vínculo com um tu, seja um amante, uma coisa,
a natureza, Deus. Considero o amor o sentimento que se deleita em unir o separado, sabendo no
entanto que devemos, em última análise, permanecer indivíduos3.
Uma mulher me contou que, depois da meditação, sentiu em si uma profunda afeição por
tudo. A estação era primavera. Ela pôde amar tudo ao seu redor e em si mesma. Ela simplesmente
estava preenchida pelo amor. Isso foi para ela uma profunda experiência espiritual.
Um homem com essa atitude amorosa foi evidentemente o staretz Zóssima, que Dostoievski
descreve em seu livro Os irmãos Karamazov e do qual ele transmite as seguintes palavras como
testamento:
Irmão! Não tema os pecados dos homens, ame ao próximo também no seu pecado, pois isso
é semelhante ao amor de Deus e está acima do amor terreno. Ame toda a criação de Deus, todo o
mundo e cada grãozinho de areia na terra! Tenha amor a cada folha, a cada raio de luz de Deus!
Ame os animais, as plantas, cada coisa! E ao amar cada coisa você compreenderá o mistério de
Deus em tudo! Você então o perceberá e, sem cessar, dia após dia, o reconhecerá cada vez mais! E
2
. Verena KAST, Paare. Beziehungsphantasien oder wie Gõtter sich in Menschen spiegeln, Stuttgart, 1984,
15.
3
. Ibid., 153s.
finalmente amará o mundo inteiro em sua unidade e com um amor que abrange o universo!4
O amor para Dostoievski abrange tudo. Ele se dirige a tudo, jamais a uma única pessoa. O
amor descobre em tudo o mistério de Deus, em cada semblante humano, mas também em cada grão de
poeira, em cada folha de grama. E Dostoievski está pensando evidentemente numa pessoa que é amor
por inteiro, de cujos olhos o amor irradia, no qual o amor está presente em cada toque, cada palavra,
cada olhar, cada movimento. Para Dostoievski o mistério da vida humana está nessa capacidade de um
amor puro, tal como o de Zóssima ou de Aliocha, o caçula dos irmãos Karamazov. Para o escritor
russo, o inferno consiste na "dor de não mais poder amar" 5. No entanto, quem encontra uma pessoa
verdadeiramente amorosa percebe que ela está livre do autodesprezo, a respeito do qual Zóssima tanto
adverte as pessoas. A passional e cruel Gruchenka diz a Aliocha: "Esperei minha vida inteira por
alguém como você, para que viesse e me perdoasse tudo! E acreditei que alguém me amaria, a mim, a
má, e não apenas à custa de minha vergonha''6.
Em seus romances, Dostoievski desenhou ainda duas outras figuras que encarnam o mistério do
amor. Em ambas se descreve o amor intenso e apaixonado entre homem e mulher, mas ao mesmo
tempo parece reluzir nesse amor recíproco o amor divino, que brilhou em Cristo para nós. Em primeiro
lugar, pensamos em Sônia, do romance Crime e castigo. Ela segue o assassino Raskolnikov até o campo
de trabalhos forçados na Sibéria. Em seu amor, ela espera por ele. Todos os presos tomam afeição por
essa mulher franzina, que espera que Raskolnikov se arrependa de seu delito e ressuscite dos mortos
tal como Lázaro. Certa vez, Sônia havia lido para o assassino a história da ressurreição de Lázaro. Ela
é a história temática que Dostoievski usa como base de sua narrativa. Por fim, depois de alguns
encontros, chega-se a isto:
Como isso aconteceu nem ele mesmo sabia, mas de repente algo pareceu impeli-lo e lançá-lo
aos seus pés. Ele chorava e abraçava os seus joelhos. No primeiro momento ela levou um terrível
susto e todo o seu rosto ganhou uma palidez mortal. Ela se levantou tremendo e o olhou. Mas de
imediato, no mesmo instante, ela compreendeu tudo. Em seus olhos brilhou uma felicidade infinita;
ela compreendeu, e para ela já não havia dúvida, que ele a amava, a amava infinitamente, e que
enfim chegara esse momento... Eles quiseram falar mas não conseguiram. As lágrimas estavam em
seus olhos. Ambos eram pálidos e magros; mas desses rostos doentes e pálidos já raiava a aurora de
um futuro renovado, pleno de ressurreição e vida nova. O amor os ressuscitava, o coração de um
continha infinitas fontes de vida para o coração do outro. Decidiram esperar e suportar. Ainda lhes
restavam sete anos; mas até então quanto suplício insuportável e quanta felicidade sem fim! Mas ele
ressuscitara, e o sabia, sentia todo o seu ser plenamente renovado, e ela — bem, ela vivia só da vida
dele!7
Talvez seja esse o maior mistério do amor: poder ressuscitar um homem dentre os mortos,
quebrar a couraça da culpa e do autodilaceramento e atrair vida nova. O assassino, que até então tinha
observado os outros prisioneiros com um olhar sombrio, se afeiçoa a eles. Dostoievski interpreta esse
amor de Sônia com a história bíblica da ressurreição de Lázaro. O amor de Jesus atravessou a pedra
atrás da qual Lázaro, envolto em faixas, jazia morto já havia quatro dias. O amor rola para longe a
pedra que está sobre o morto e o impede de viver. Muitas vezes é a pedra do endurecimento interno ou
do desespero. Como não acredita mais no amor, a pessoa se torna dura e fria. O amor atravessa a pedra
e traz o morto para fora. Não pode haver descrição mais bela para o amor entre homem e mulher: ele
pode libertar novamente os mortos para a vida e é uma fonte inesgotável de vida, mais forte do que a
morte.

4
. F. M. DOSTOIEVSKI, Die Brüder Karamasow, Berlin, 1950, 425.
5
. Ibid., 651.
6
. Ibid., 718.
7
. ID., Schuld und Sühne, München, 1920.
Em Crime e castigo, o amor tem êxito. Em contrapartida, no romance O idiota, o amor puro
do príncipe Mishkin não tem lugar neste mundo. Na figura do idiota, Dostoievski desenhou uma
figura de Cristo. Assim como Cristo não foi compreendido num mundo de ódio e falta de
misericórdia, hoje também um amor tão puro, como o encarnado pelo ingênuo príncipe Mishkin,
não tem chance alguma. Nastácia Fillipovna sente que o amor do príncipe poderia salvá-la. Mas ela
acaba optando pelo amor do homem que será o seu assassino, Rogoshin. Dostoievski descreve aqui,
de maneira impressionante, como o amor é capaz de matar quando não é puro como o do príncipe
epiléptico Mishkin, que perante a visão da mulher assassinada, a quem ele devotou um amor tão
puro, recai novamente na sua doença. Num mundo em que o amor está tão distorcido, que mata em
vez de ressuscitar, o amor puro só pode se esconder atrás da doença. Nesse romance arrebatador,
Dostoievski pretende despertar em nós o anseio por um amor sincero e puro, tal como o do príncipe
e o que Jesus Cristo viveu para nós. Só ele pode despertar vida e curar as feridas humanas.

REALIZAÇÕES DO AMOR

O que Dostoievski descreveu em seu romance O idiota como amor homicida é um


fenômeno que também vemos com frequência. Assim como as pessoas anseiam ardentemente pelo
verdadeiro amor, muitas vezes o amor que sentem também se transforma em ódio e ciúmes, em
vingança, e até mesmo na disposição de matar a pessoa amada. Por mais que o amor seja forte, nele se
intromete a dúvida: será que o outro me ama exclusivamente ou será que ama mais a alguém do que a
mim? E não é nada fácil repelir tais pensamentos. Eles podem se aninhar no coração e escurecê-lo.
Sentimos que não é nada óbvio que o amor irá prosperar. Ele é sempre ameaçado pela dúvida a respeito
do amor do outro e pela nossa própria incapacidade de amar de verdade.
Muitos confundem amor com posse. Querem ter a pessoa amada apenas para si. Tratam-na
como sua propriedade, e não estão dispostos a partilhá-la com ninguém mais. Eles a prendem, para
que ela possa amar somente a eles. A mulher sente ciúmes quando o namorado conversa com outra. O
homem não consegue suportar o fato de sua mulher ir encontrar-se com uma amiga com quem se dá
bem. Acha que poderiam conversar a respeito dele e do relacionamento. O ciúme pode se tornar uma
prisão na qual encerramos o nosso companheiro. Este não tem direito de fazer nada que possa nos
deixar enciumados. Mas quanto mais prendemos a pessoa amada mais a oprimimos e produzimos nela
agressões e até mesmo ódio.
Muitas vezes não somos aptos para o verdadeiro amor, porque o nosso amor também é
determinado por vivências do passado. Na infância, talvez tenhamos sofrido a experiência do abandono
quando precisávamos do nosso pai ou da nossa mãe. Fomos deixados sozinhos no nosso berço enquanto
chorávamos por ajuda. Era preciso ganhar o amor dos pais sendo valentes e nos conformando aos seus
desejos. Nós nos adaptávamos às suas expectativas. A briga entre os pais era um terreno instável para o
nosso amor. Vivíamos em constante medo de perdê-lo, caso os nossos pais se separassem. Os nossos pais
nos mostraram um amor que monopoliza; um amor que dá tudo, é verdade, mas obriga gratidão. Ou o
nosso amor pelos nossos pais foi ferido, porque fomos ridicularizados na nossa necessidade de
proximidade e afeição. Nossa capacidade de amar é prejudicada por experiências deficientes na nossa
história de vida e por estruturas neuróticas que provavelmente carregamos. Por isso, é preciso um longo
caminho para aprender o amor maduro.

Destinos do amor na literatura mundial


A literatura mundial está repleta de exemplos de como o amor pode virar uma tragédia,
fracassar e lançar as pessoas no abismo. Existem várias histórias de triângulo amoroso. Um homem
ama uma mulher casada, que então se sente dividida entre dois homens — como descreve Graham
Greene em Fim de caso. Bendrix, um escritor, ama a atraente senhora Sarah, casada com o
honrado funcionário Henry. Tanto Sarah como Bendrix percebem no seu amor tempestuoso que
não são aptos para o verdadeiro amor. Sarah escreve no seu diário:
Sempre alimentei o desejo de ser cobiçada, admirada. Um terrível sentimento de insegurança
me domina quando um homem se volta contra mim, quando perco um namorado. Não quero perder
nem mesmo um marido. Quero possuir tudo, o tempo todo, em toda parte8.
E, embora Bendrix ame Sarah como a uma deusa, ele não pára de torturá-la. O seu amor se
mistura com ódio. No fim da vida, Sarah deve confessar: "Meu Deus, tentei amar e só fiz arruinar
tudo". E ela sente que o amor a Deus é a verdadeira condição para poder amar autenticamente
uma pessoa. Ela olha para a cruz dependurada em seu quarto e diz para Cristo:
Se eu soubesse amar-te, então também saberia como amar os outros... Ensina-me a amar! A
minha dor não me oprime. É a dor deles que não posso suportar. Deixa que minha dor continue,
mas os livra da deles. Ó Deus, se pudesses descer da Cruz por um momento e me fazer tomar o teu
lugar! Se eu pudesse sofrer como tu, então também poderia salvar como tu9.
Então aparece no meio do fracasso do amor humano o pressentimento de um outro amor, o
amor de Deus por nós e do nosso amor por Deus. Se o nosso amor não se fixasse nas pessoas que
queremos ter incondicionalmente para nós, então seríamos capazes de nos amar uns aos outros, sem
usar o outro para nós e sem magoá-lo continuamente.
A literatura mundial conhece muitas tragédias de amor. Podemos pensar em Tristão e
Isolda, que se consomem em amor um pelo outro, mas não podem ficar juntos, porque Isolda
pertence ao rei Marcos. Gottfried von Strassburg compôs esse romance de amor em 1210, e
desde então ele foi retomado várias vezes, até por Richard Wagner. O amor não tem lugar onde
o poder domina. O amor não tem chance onde o homem alega ter direito à mulher. Ou
podemos nos lembrar de Romeu e Julieta, que são arruinados entre duas famílias italianas
inimigas e só encontram a saída na morte em comum. Onde as convenções mandam, só resta ao
amor a saída da morte. Shakespeare, em sua célebre peça, descreveu a proximidade entre todo
grande amor e a morte. Para ele, o amor é uma enigmá tica dádiva celeste que, apesar de toda
obscuridade e toda brutalidade dos que querem sufocá-la, triunfa sobre a morte. Obviamente, a
sociedade se sente ameaçada pelo amor. Para ela, a manutenção da ordem é mais importan te do
que qualquer força do amor que possa comprometer a estrutura social. Os grandes amantes são
então perseguidos por invejosos e ressentidos, e muitas vezes arrastados para a morte.
Naturalmente, um fator que também causou a morte de Jesus foi o seu amor, que rebentava
toda estreiteza legalista. Para Jesus, a verdadeira ameaça à humanidade é que "o amor esfrie
em quase todos" (Mt 24,12). O seu amor, que chegou à realização máxima na dor da cruz, é um
permanente protesto contra o esfriamento do amor.

A diluição do amor
O amor não fracassa apenas porque o ambiente o impede, mas porque ele se desintegra por si
mesmo. Muitas tragédias de divórcio mostram como o amor pode terminar dolorosamente. Há o caso
de uma mulher que já no início de seu amor reconhece a natureza reticente do marido, mas acredita
que poderá amá-lo saudavelmente. E, então, depois de 25 anos, tem de admitir que seu marido
sempre a traiu com outras mulheres e a tratou apenas como uma faxineira barata. Agora, ele não tem
mais nada a lhe oferecer. Ele a feriu ao também destruir, com a sua energia criminosa, o alicerce
financeiro da vida dela. Ela acreditou no amor e investiu toda a sua força nele. E agora ela se vê

8
. Graham GREENE, Das Ende einer Affüre, Hamburg, 1974, 87.
9
. Ibid., 113.
diante dos cacos da sua vida. Todo o seu amor foi mal-usado. Ela mesma sucumbiu a uma ilusão.
Ter de confessar isso é uma dor infinita.
Um fenômeno que muitos amantes vivenciam é a transformação do estar apaixonado em
desilusão, até mesmo em estranhamento. Os apaixonados juram fidelidade eterna. E poucas semanas
depois eles se zangam tanto um com o outro que os sentimentos enfraquecem. Eles se admiram por não
ter sobrado mais nada do sublime sentimento da paixão. Um culpa o outro por ter mudado tanto, por
não ter sobrado nele nada de amável. Eles simplesmente não conseguem dizer que o amor neles se
diluiu. É preciso culpar o outro. Não querem nem pensar que isso pode ter a ver com as suas próprias
projeções.
No entanto, em geral, essa rápida diluição do amor revela que a pessoa amou apenas uma
imagem do outro, mas não o outro como ele realmente é. Quando a imagem se desintegra e o outro
aparece como realmente é, evapora também o amor que valia para a imagem mas não para a pessoa.
Ernst Bloch diz a respeito desse fenômeno:
Muita imagem inicial torna-se, de mau grado, carne. Sobretudo se a imagem onírica se
alimentou mais do amante que a tinha do que do amado a quem ela se aplicava. Por isso, almas
demasiado românticas, muito enamoradas, da época do conto de fadas do amor jovem, e frágeis para a
realidade sobressaíram, em geral, na fobia à realização, especialmente no ódio ao casamento10.
O verdadeiro amor renuncia a imagens do outro. Ele considera o outro como ele é. Max Frisch
escreveu no seu diário:
É notável como podemos dizer tão pouco a respeito de como é justamente a pessoa que
amamos. Simplesmente a amamos. O amor, a maravilha do amor, consiste em nos manter no
suspenso do vivo, na prontidão em seguir outra pessoa em todos os seus possíveis
desenvolvimentos11.
Muitos não sabem de onde vem a súbita transformação dos sentimentos. Com frequência, eles
sentem, lado a lado, sentimentos positivos e negativos. Alguém está apaixonado e sente saudades da
outra pessoa. De repente, sente dúvidas se o outro é realmente fiel e ama apenas a ele. E essa dúvida é o
suficiente para nutrir a sede de vingança. Então surgem, de súbito, pensamentos de como ferir o outro.
Muitas vezes a dúvida não tem um motivo real. Mas o indivíduo pensa tanta coisa sobre o outro que não
consegue mais diferenciar se são os seus próprios sentimentos ou se essas coisas correspondem à
realidade. No entanto, os pensamentos sobre o eventual comportamento da pessoa amada podem, de
repente, despertar sentimentos de raiva, fúria, depressão, ciúmes, que põem o amor em perigo.
É estranho como pensamentos, sentimentos de amor e ódio podem estar próximos. Eles se
misturam e mostram como o nosso amor é quebradiço. Às vezes imaginamos como nos ferir para
ferir o amado, ou como podemos com palavras remexer nas feridas da pessoa amada e abri-las ainda
mais. Queremos mostrar ao outro que também podemos viver sem ele. Nós lhe mostramos a nossa
frieza, para aturdi-lo. Mas, se ele tirasse a conclusão óbvia disso, ficaríamos profundamente
ofendidos e feridos.

Expectativas de amor exageradas


Outra razão por que o amor fracassa tanto são as expectativas exageradas em relação ao
outro. C. G. Jung diria que fazemos representações arquetípicas do outro, como a de redentor,
libertador... Ou então nós mesmos nos sentimos como aquele que cura e ajuda o outro, como
redentor e salvador. Foi o que fez Stiller no romance homônimo de Max Frisch. Rolf censura Stiller
por ter feito de sua mulher a tarefa de sua vida, de ter desejado ser o seu redentor:
Você como redentor dela, eu já lhe disse, você quis ser a pessoa que lhe dá vida e alegria.

10
. Ernst BLOCH, Das Prinzip Hoffnung, Frankfurt, 1959, 376.
11
. Max FRISCH, Tagebuch 1946- 1949, Frankfurt, 1970, 31.
Você! Nesse sentido você a amou, é certo, até se esvair. Ela como a sua criatura. E agora esse medo
de que ela possa morrer para você! Ela não se tornou o que você esperava. Uma obra de vida
inacabada!12
Como sua mulher não evoluiu como queria Stiller, ele fracassou no seu amor. E em vez de
se amar eles se torturam um ao outro. O amor deles vira um sofrimento só.
Você ama sem poder fazer feliz a criatura que você ama. Esse é o seu sofrimento. Um sofrimento
real, à parte toda a nossa vaidade, pois também gostaríamos de brincar um pouco de Deus, que tira o
mundo da cartola, que cria a vida sobre a mesa. E então, é certo, gostaríamos de ser nós mesmos felizes,
amando...13.
A única solução que Rolf pode oferecer ao amigo é eles conviverem honestamente, sem que
queiram mudar um ao outro: "Parem de se torturar dia a dia com essa expectativa insana de que
poderíamos transformar uma pessoa, ou a nós mesmos, com essa orgulhosa desesperança. [...] De modo
bem prático: aprendam a rezar um pelo outro"14. É interessante que Max Frisch recomende aqui a oração
pelo outro como saída para o verdadeiro amor. Orando pelo outro, nós o recomendamos a Deus e
paramos de brincar de Deus para ele. Nós nos livramos das imagens arquetípicas que fizemos do nosso
amor e que cabem apenas a Deus; a imagem de salvador, redentor e benfeitor. Simplesmente dizemos
"sim" ao outro, tal como ele é, e o apresentamos a Deus, para que encontre nele, e não em nós, a sua
verdadeira salvação.

Amor e ciúme
Muitos acreditam que um ciúme intenso faz parte do genuíno amor. Mas o ciúme é sempre um sinal
de que eu gostaria de possuir a pessoa amada para mim. Às vezes, o ciúme pode se tornar doentio. Exemplo:
um homem que transforma sua mulher em prisioneira. Ela tem de existir apenas para ele. Mal pode sair de
casa, pois do contrário o marido já fica com ciúmes. O ciúme pode se tornar tão intenso que o indivíduo
chega a matar a pessoa amada. É um paradoxo: o amor, que na verdade dá vida, também pode matar. Um
amor que quer controlar e dominar o outro mata-o, ainda que não fisicamente. Nessa prisão de controle e
poder, simplesmente não se pode mais viver.
Muitas pessoas sofrem com o próprio ciúme. Elas querem se livrar dele, dar liberdade ao
companheiro. Mas a vontade não basta para superar o ciúme. Ele reaparece espontaneamente. Então de
nada adianta repreender o outro. Com frequência, o ciúme aponta experiências de perda, vivências de
como a confiança sofreu abusos e rupturas. Uma mulher havia concordado que uma velha amiga do seu
namorado viesse para uma visita. Mas, quando a amiga chegou, ela simplesmente não pôde suportar.
Racionalmente, era bem claro que o seu namorado estava com ela e que essa velha amizade era coisa do
passado. Todavia, isso de nada adiantou contra o avassalador sentimento de ciúme, que simplesmente
tomou conta dela, sem que ela quisesse. O ciúme aqui não pretende dominar. Ele simplesmente existe.
No entanto, se o namorado não repreende a namorada, mas procura compreendê-la, sem avaliá-la, o
ciúme pode aos poucos se transformar em confiança.
Também existem formas saudáveis de ciúme. Exemplo: uma mulher, em sua intuição,
percebe que a secretária do marido está flertando com ele, que ela manda mensagens que significam
mais do que uma relação entre amigos. O homem afirma que pode lidar com isso. Mas na verdade
ele gosta de fazer o papel de sedutor. Quer ser amado por todas as mulheres e admirado por muitos.
Ele absolutamente não enxerga a sua participação. Não percebe que está mandando a seguinte
mensagem para as mulheres: "Isso, me amem. Vai valer a pena para vocês".
Muitos relatos de violência e abuso sexual no casamento e na infância mostram que o amor
pode ferir e matar. Nesses casos não se trata verdadeiramente de amor, mas de uma pulsão que ganha
12
. ID., Stiller, Frankfurt, 1963, 557.
13
. Ibid., 562s.
14
. Ibid., 566.
autonomia, que simplesmente precisa ser satisfeita, porque a pessoa é incapaz de amar realmente o
outro. Ela o usa como objeto para satisfazer a sua própria sexualidade. Mas a sexualidade aqui não
tem mais nada a ver com amor. Ela é uma pulsão tão poderosa, que domina totalmente o indivíduo.
O amor quer se expressar na sexualidade e pode ter o seu auge justamente na entrega sexual. Porém,
quando a sexualidade se separa do amor, ela se torna um animal bruto, que ataca e mata, sem
consideração pela dignidade do outro, e o ser humano se torna um lobo predador. Provavelmente em
nenhuma outra área aconteçam sofrimentos tão inúmeros e profundos como na da sexualidade. Isso
não vale apenas para o abuso de crianças, que pode prejudicá-las por toda a vida. Também em
muitos casamentos as mulheres são violentadas. Muitos homens veem a mulher como posse. Acham
que têm o direito à relação sexual com ela. Passam por cima do afeto, com o qual poderiam se
aproximar docemente da esposa, e se limitam ao ato sexual. Usam a mulher para si, para a satisfação
do seu instinto ou para relaxar. Muitas mulheres simplesmente aguentam o ato sexual, mas não se
sentem bem. Assim, elas perdem a dignidade, pois onde são mais vulneráveis — no âmbito íntimo
da sexualidade —, alguém pisa sobre elas, sem se dar ao trabalho de as levar a sério como pessoa.
Em todos os dramas de amor e em todas as perversões da sexualidade de que nos fala a
literatura mundial, esconde-se um profundo anseio de amor. Em vez de reclamar sobre o amor
imperfeito, que muitas vezes tem sabor de amargura, medo, coerção, violência e morte, queremos
acreditar com Thomas Merton que "no conflito e na autocontradição de um amor falso podemos
aprender o nosso caminho para o amor verdadeiro" 15. Merton acha que podemos reprimir o amor
quando reprimimos suas energias negativas, como ódio, avidez e ciúme. Devemos descobrir também
nessas forças "más" o amor que nelas se oculta. Só assim ele pode se transformar e criar espaço
para o amor verdadeiro.
Todo mundo já teve experiências com o amor. Cada um já amou uma vez e foi amado. E cada
um já experimentou a maravilha do amor, mas também a frustração, as complicações em que o amor
pode nos meter. Evidentemente o amor é uma das forças mais intensas no ser humano, pelo menos
uma força que ninguém consegue ignorar. E em todas as experiências de amor, bem-sucedido ou
frustrado, ansiamos pelo verdadeiro amor, por um amor que não fere nem destrói, mas vivifica e
constrói, que não controla nem estreita, mas liberta e abre um espaço de vida. Em última análise,
ansiamos pelo amor divino, que realmente nos faz viver em liberdade. Ansiamos por ser amados
incondicionalmente em tudo o que somos. É claro, ninguém consegue isso plenamente. O amor
incondicional e absoluto é uma característica de Deus. Tudo o que o homem realiza em termos de
amor é dependente de condições e relativo. Thomas Merton diz: "Por sermos apenas frágeis
criaturas humanas, que vivem na terra e no tempo, nosso amor é dilacerado pela autocontradição.
Ele se nega a si mesmo. Apenas o amor de Deus é totalmente puro" 16. Esse amor puro é o anseio de
todos nós, cujas realizações experienciamos no próprio corpo.

3
O AMOR CRUCIFICADO DE DEUS

Num sonho meu nos Exercícios Espirituais, recebi a tarefa de despertar o anseio pelo
amor trino de Deus. Na meditação, esse amor divino me apareceu sobretudo na cruz. Isso pode
causar estranhamento a quem vê na cruz sobretudo os suplícios que Jesus teve de sofrer. Já os
evangelistas tentaram reinterpretar a atroz realidade da cruz. O Evangelho de João interpreta a
morte de Jesus na cruz como consumação do seu amor. João inicia a narrativa da Paixão com a
15
. In Ernesto CARDENAL, Das Buch von der Liebe. Lateinamerikanische Psalmen. Mit einem Vorwort von Thomas
Merton, Gütersloh, 1977, 13.
16
. Ibid., 14.
frase: "Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até a consumação" (Jo 13,1).
Nos três versos em que descreve a morte de Jesus, João usa três vezes a palavra
"consumação", para indicar que a morte foi a consumação do amor que Jesus devotou ao ser humano
durante a sua vida (cf. Jo 19,28-30). A palavra grega traduzida como consumação, telos, deriva da
linguagem dos mistérios e significa a iniciação no mistério de Deus. Para João, a cruz é a nossa
iniciação no mistério do amor divino.
Se João reconhece precisamente na cruz o amor de Jesus até a consumação, isso
supostamente ocorre porque ele sabe da unidade entre amor e dor. Não existe amor humano sem
dor. E evidentemente o amor de Deus também chega à consumação na dor. Ao amar o homem, o
próprio Deus se faz vulnerável. A cruz simboliza ambas as coisas: o amor de Deus pelo homem e o
seu sofrimento por ele se fechar. Contemplando a cruz, somos iniciados no mistério do amor divino.
E, junto à cruz, pressentimos que o nosso amor a Deus não será sem dor, e que onde amamos Deus
sofremos com a nossa estreiteza. Dói quando o amor nos abre para Deus.
No seu amor, Jesus sempre tocou e abraçou as pessoas. Ele lhes ofereceu a sua proximidade.
E elas se sentiam bem com essa proximidade. Obviamente, irradiavam dele um calor e um amor que
passavam às pessoas a mensagem de que eram totalmente aceitas, eram filhas e filhos amados de
Deus. A cruz é para João não o fracasso desse amor, mas a consumação. Para ele, isso já está visível
no gesto de Jesus na cruz. Na cruz, Jesus abre os braços. João vê nesses braços abertos não um
gesto da luta dolorosa, mas um gesto de amor. Por meio da paixão ele vê o verdadeiro
acontecimento, a revelação do amor de Deus em Jesus Cristo. O próprio Jesus diz a respeito desse
gesto: "Quanto a mim, quando eu for elevado da terra, atrairei a mim todos os homens" (Jo 12,32).
Jesus abre os braços, convidando-nos para nos deixar abraçar por ele.
Os braços escancarados de Jesus significam, para mim, mais uma coisa. Simbolizam um
amor que liberta, que não prende, mas me deixa respirar em liberdade. Quando eu mesmo me ponho
no gesto da cruz, pressinto algo desse amor que flui em mim e para o mundo exterior. Por isso, João
interpreta o gesto da cruz por meio da imagem do coração perfurado, do qual jorram sangue e água
e do qual o amor encarnado de Deus flui para nós, seres humanos.
Ainda há outra imagem do amor visível na cruz. Jesus se deixa pregar na cruz. Ele diz "sim"
à sua estreiteza. Ele se deixa prender no seu amor para sempre, e tão fortemente que morre. O amor
crucificado de Deus é um amor que se sacrifica por nós. Nas palavras de despedida, Jesus diz sobre
esse amor: "Ninguém tem maior amor do que aquele que entrega sua vida por seus amigos" (Jo
15,13). Aqui supostamente João retomou uma antiga regra da amizade e a relacionou ao amor de
Jesus. A palavra grega para "entregar" também pode ser traduzida como "pôr sua vida em jogo".
Jesus ama os seus amigos incondicionalmente. Nem a morte pode deter isso. Esse é o auge de todo
amor: amar o outro até a morte. Jesus nos ama até a morte; ele nos ama para além da morte. O
verdadeiro amor supera a morte. Ele cria uma relação que não pode ser destruída nem na morte.
O filósofo francês Gabriel Marcel descreveu esse amor que supera a morte: "Não há amor
humano digno desse nome que ao mesmo tempo não represente aos olhos daquele que pensa uma
garantia e uma semente de imortalidade... quem ama diz: 'Você não morrerá!" 17. O amor profundo não
encontra limite na morte. Ele vai além da morte. Essa é a convicção do evangelista João, que faz Jesus
dizer no discurso de despedida palavras sobre o amor que anula a separação entre céu e terra, vida e
morte, que cria uma relação entre Jesus e os seus discípulos que dura além da morte. Também é essa a
convicção de todos os amantes. Eles estão convencidos de que se verão novamente na eternidade, de
que então reconhecerão pela primeira vez o mistério do seu amor. Mas isso não é apenas crença;
corresponde à experiência do amor autêntico. Uma mulher me contou que após a morte do marido
sentia o amor dele em muitos sinais e que ele ainda a acompanhava em amor. O amor não foi

17
. Gabriel MARCEL, Homo Viator. Philosophie der Hoffnung, Düsseldorf, 1949, 212s.
destruído nem pela morte; durou para além dela. E na morte dessa mulher ele não desaparecerá, mas
se consumará.

Morar na casa do amor


O sinal do amor crucificado é o coração aberto. Jesus abre o coração, para que todos nós
possamos entrar nele com o nosso desejo de amor. Ele se deixa ferir no seu amor por nós. E do seu
coração aberto jorra o sangue vital do seu amor. O amor de Jesus não prende, mas se derrama por nós.
Ele nos abre um espaço em que podemos viver. Jesus vê o seu amor como uma casa em que podemos
habitar quando ele nos exorta: "Permanecei em meu amor!" (Jo 15,9). Essa é uma imagem especial
para o amor. O amor não é apenas um sentimento que perece. É um espaço em que podemos perma-
necer. Mas Jesus também apresenta o pressuposto para a permanência no amor: "Se observardes os
meus mandamentos, permanecereis no meu amor" (Jo 15,10). Não podemos desfrutar o amor de Deus
apenas para nós. Devemos deixá-lo fluir para as pessoas. Do contrário ele se paralisa. E vem abaixo o
espaço do amor tão bem habitável.
O amor de Jesus não tira (como muitas vezes o nosso faz), mas dá. Ele é pura doação.
Ansiamos na profundeza do nosso coração por um amor que solta e se entrega, que morre por nós e
flui para nós ilimitadamente. Diante do Cristo crucificado, sentimos que somos incapazes do
verdadeiro amor. O nosso amor muitas vezes se mistura com o desejo de ter o outro para nós, de
poder possuí-lo. Queremos prendê-lo para que nunca nos deixe. E não notamos como lhe tiramos o
ar para respirar, como lhe roubamos a possibilidade de se desenvolver, e de se tornar totalmente ele
mesmo. Com frequência, queremos nós mesmos modelar a pessoa amada e forçá-la a se encaixar numa
forma que nos pareça digna de ser amada. É isso o que exprime a lenda grega de Pigmalião, que criou
para si uma mulher de marfim porque não estava contente com nenhuma outra 18. O companheiro não
tem o direito de se tornar independente. Deve continuar nossa criatura. O gesto da cruz diz o contrário:
ele nos deixa livres, nos convida para nos deixarmos abraçar, mas também nos permite seguir o nosso
próprio caminho em liberdade.
Quando, em oração, deixei sob a cruz minha incapacidade de amar realmente e olhei o amor
crucificado de Cristo, fui tomado por uma profunda paz. E senti que, em meu âmago, eu ansiava por um
amor desse tipo. Todo amor humano é sempre discrepante. Ele pode fascinar, mas também dilacerar o
coração de tristeza. Ele pode encantar, mas também pode nos dominar, nos deixar possuídos. Ele admira
e odeia. Ele cura e no momento seguinte fere de propósito. Há muitas maneiras de amor insatisfeito.
Ernesto Cardenal as descreveu:
Existem aqueles que esperam um amor que jamais chega. Existem outros que sofrem com a
amargura de um amor desprezado. Existem amores proibidos ou impossíveis ou perdidos. Existe também a
insípida tristeza de um amor satisfeito que, todavia, não preenche19.
Não vivi apenas a felicidade do amor, mas também a decepção, a mágoa, a minha incapacidade
de amar realmente. Percebi dolorosamente a minha necessidade de um amor incondicional, de
um amor ao qual pudesse me entregar cheio de confiança. No amor de Cristo na cruz senti
algo desse amor incondicional por mim. Mas também notei que só poderia compreender esse
amor corretamente se o compreendesse como assentimento à minha situação concreta. Nas
pregações, sempre ouvi que Cristo nos ama, que ele morreu por amor a nós. Contudo, isso
para mim era uma coisa abstrata e vazia, não me tocava. Só me toca quando introduzo a
promessa do amor na minha própria tentativa de amar, no meu próprio fracasso amoroso, nos
meus pensamentos de vingança, nas minhas palavras ofensivas, que pretendem magoar o
outro embora eu o ame. Foi talvez esse o sentido das palavras do sonho me dizendo que eu

18
. Cf. Verena KAST, Paare, 58ss.
19
. Ernesto CARDENAL, Das Buch von der Liebe, 28s.
precisava começar cuidadosamente a despertar nas pessoas o anseio pelo amor. Quando
escrevo muito rápido sobre o amor, ele se torna palavras triviais, que podemos ler por toda a
parte, mas que não tocam mais ninguém, porque já as ouvimos com demasiada frequência.

Tu és meu filho amado, minha filha amada


Uma tentativa de me conscientizar do amor de Deus foi para mim a meditação sobre o
batismo de Jesus (Lc 3,21s.). Jesus desce no Jordão, na água cheia da culpa das incontáveis pessoas
batizadas por João. Enquanto ele entra no rio, o céu se abre. E Deus lhe diz: 'Tu és meu filho
amado, aprouve-me te escolher". Em reflexões espirituais, ouvimos bastante essa mensagem de que
somos filhas e filhos amados de Deus. O mais das vezes, ela contudo nos passa despercebida. São
palavras apropriadas, mas nada provocam. É sempre uma dádiva quando essas palavras atingem de
tal modo o coração que ele se sente amado e curado e transformado pelo amor.
Uma mulher com grande insegurança e que sempre se desvalorizava me contou que nunca
acreditou que Deus realmente a amava, mesmo tendo lido isso em muitos lugares. Mas quando um simples
pároco disse na sua pregação que Deus ama cada indivíduo incondicionalmente, isso tocou o seu coração.
Ela se sentiu curada da sua autodepreciação. Devemos incutir uns nos outros a ideia de que somos amados,
para que o possamos crer. Muitas vezes, de nada adianta se convencemos apenas a nós mesmos disso.
Na meditação, eu vivenciei a realidade desse amor quando disse a frase "Tu és meu filho amado"
para dentro do meu medo, da minha escuridão, da minha falha, da minha mediocridade, da minha
mentira de vida. Tentei descer à água de meu inconsciente, ao reino das sombras no qual reprimi tudo o
que teme a luz do dia, e tudo o que eu não gostaria de ver à luz do dia. Para mim se trata de uma bela
imagem para o batismo de Deus: o céu se abre justamente quando ele desce à profundeza do Jordão. O
céu também quer se abrir sobre os abismos da minha psique. Mas tenho que conseguir ânimo para descer
a esses abismos interiores, para na profundeza ouvir a frase em um novo tom: "Tu és meu filho amado",
'Tu és minha filha amada". Apenas quando eu disse a frase "Sou o filho amado" para dentro da minha vida
concreta é que ela tocou o meu âmago e me deu paz interior. Todo o discurso sobre o amor de Deus nos
passa despercebido quando não alcança as experiências do nosso cotidiano. Parece que é isto o que diz a
exortação no meu sonho: "Conduza as pessoas cuidadosamente ao amor do Deus trino!".
Jesus desce até as marés da culpa, ao inconsciente, ao instintivo, aos elementos da terra, como os
ícones sempre representam. Ao descer, ele reza tão intensamente que o céu se abre sobre ele, o que é
verdadeiro resplandece e a luz de Deus brilha sobre ele. Também tenho em mim um profundo
anseio de poder rezar de tal forma que o céu se abra sobre mim e o amor de Deus resplandeça nas
profundezas do meu inconsciente, nos abismos da minha culpa. E também desejo poder rezar de tal
forma para as outras pessoas que o céu se abra sobre elas. Não raro, as pessoas sentem o céu
nublado e fechado sobre si. Elas se sentem separadas de Deus. Uma escura camada de nuvens lhes
oculta a visão do divino sol do amor. Rezar significa abrir o céu sobre as pessoas para que elas
possam vivenciar a relação com Deus como a sua verdadeira salvação.
Do céu aberto, Jesus ouve a voz de Deus: "Tu és meu filho amado, aprouve-me escolher-te"
(Mc 1,11). Também é este o meu mais profundo anseio, ser o filho amado de Deus, não apenas
considerado, admirado e amado pelas pessoas, mas por Deus, o fundamento de todo ser, o criador do
mundo. Para muitos o amor de Deus é um frio consolo quando não experienciam nenhum amor
humano. Mas se eu me consolo apenas com o amor de Deus, porque não amo nenhuma pessoa nem
sou amado por ninguém, o amor permanece sem efeito em mim. Não encontrará o meu coração.
Mas, por outro lado, não posso vincular a experiência do amor de Deus exclusivamente à experiência
do amor humano, pois assim eu daria um caráter absoluto à mediação humana desse amor. E
novamente ficaria dependente de uma pessoa, pois só me sentiria amado por Deus se essa pessoa me
amasse.
Não noto como estou misturando as minhas próprias projeções à experiência do amor. O que
há de experiência de Deus e o que é apenas superexaltação de uma experiência puramente humana?
Quando me faço totalmente dependente de uma pessoa, isso vai contra a minha dignidade. Muitas
vezes o amor de Deus é mediado pelas pessoas humanas. Mas ele vai além delas. Também é
possível ter uma experiência direta dele. Ele é também independente dessa ou daquela pessoa. A
experiência do amor divino me liberta da fixação em um indivíduo, do apego ao seu amor, das
expectativas exageradas que tenho em relação a essa pessoa. O outro pode servir de intermediário
desse amor. Mas ele não é o amor divino.
Só compreendo o que o amor de Deus pode liberar em mim quando contemplo as minhas
próprias experiências de amor e de ser amado pelas pessoas, as minhas experiências de amor bem-
sucedido ou frustrado, o meu profundo anseio por amor abrangente e incondicional. E o amor de
Deus só pode me encantar como o amor de uma pessoa quando me exponho a esse amor.
Encontro uma maneira de sentir esse amor quando me ponho no sol, ciente de que estou total -
mente envolvido pelo amor cálido de Deus. Assim como o sol aquece a pele e então penetra todo
o corpo, o amor de Deus também quer invadir todos os poros do meu corpo. O amor de Deus não
é puro pensamento. Podemos vivenciá-lo precisamente na criação, no sol que me ilumina ou no
vento que me acaricia. O amor de Deus, assim como o amor humano, emprega gestos de carinho.
Um gesto afetuoso para mim é o vento que roça minha pele suavemente, a flor que me olha, o sol
que me aquece, a branda luz no final do dia que abraça tudo numa iluminação caridosa. O sol e o
vento não podem, sozinhos, despertar essa experiência do amor divino. Mas se acredito nesse
amor um brilho do sol Pode ser o intermediário dele, quando me exponho com todos os sentidos
ao sol e ao vento e neles me deixo tocar pelo próprio Deus.

O amor em face da morte


A palavra de que somos filhas e filhos amados de Deus só manifesta a sua força
transformadora quando age em todas as situações da nossa vida, justamente também nas situações
de sofrimento e morte. Vejo isso claramente quando penso em pessoas como Edith Stein, Alfred
Delp ou Dietrich Bonhoeffer. Precisamente em face da morte, eles acreditaram que eram
carregados pelo amor de Deus. Isso lhes forneceu a confiança para suportar os cruéis
interrogatórios e o sofrimento da prisão, sem desesperar. A certeza de que eram filhas e filhos de
Deus lhes deu, em meio a uma atmosfera desumana, a força para manter a serenidade e não se
deixarem intimidar pelas ameaças de seus algozes. Nutridos por esse amor, eles atravessaram a
porta sombria da morte, cientes de que esse amor também não pode ser destruído por ela. A
palavra sobre o amor de Deus não é algo com que devemos apenas nos deleitar em reflexões
devotas; ao contrário, ela quer transformar a nossa vida, quer abrir o céu sobre nós justamente onde
nos sentimos ameaçados e atacados.

O amor como cura de meus vícios


Eu poderia dizer a palavra do amor de Deus para dentro dos meus vícios. Há, por exemplo, o
vício de comer. Com frequência, as pessoas que entopem o seu vazio interior com comida anseiam
por amor. Para algumas pessoas, a comida pode servir como substituto do amor. Mas os anoréxicos
também giram em torno do tema amor. Eles duvidam que alguém possa amá-los e, por isso, punem
a si mesmos. Por um lado, desejam ser amados. Por outro, têm medo disso. Muitos se condenam por
causa dos seus distúrbios alimentares e desprezam a si mesmos. Percebo o autodesprezo cada vez mais
no acompanhamento espiritual. Ele é causa de muitos problemas psíquicos. Assegurar-me de que sou
filho amado de Deus no meio do autodesprezo não é nada simples. O bloqueio do autodesprezo é muito
forte para que as palavras de amor possam atravessá-lo. Ao mesmo tempo, eu sinto que absolutamente
não posso, como acompanhante espiritual, aplacar esse enorme anseio de amor. Se acho que posso lhes
mostrar o amor pelo qual anseiam não faço justiça nem a essas pessoas, nem a mim mesmo. Surgem
complicações terríveis. Nesse caso, eu teria me identificado com uma figura arquetípica, o salvador,
ficando cego para as minhas próprias necessidades de amar e ser amado. As pessoas que buscam
conselhos, só posso aproximá-las do amor de Deus encorajando-as a confiar em seu anseio por amor e
dizer a esse anseio a promessa do batismo: “Tu és meu filho amado, minha filha amada". Nos
acompanhamentos, vejo que a experiência do amor de Deus paralisa o vício de comer ou a anorexia. Mas
para isso é necessário um trabalho duro e penoso, para romper os velhos padrões e compulsões. A
experiência do amor divino deve descer da euforia superficial para o chão da estrutura viciosa. Só assim
o vício pode ser curado de forma duradoura. Do contrário, continuaria o delírio com o amor que,
contudo, não intervém na realidade psíquica e, portanto, não pode curá-la. Muitos identificam o seu
anseio por amor com o anseio de poderem se entregar totalmente à união sexual. Quando falam de amor,
estão se referindo à sexualidade. Mesmo que as pessoas girem o tempo todo ao redor da sua sexualidade,
isso é em última análise expressão do seu insaciável anseio por amor. É muitas vezes um amor
imperfeito. Mas também é amor. Um rapaz, por exemplo, imagina em suas fantasias sexuais que a
mulher amada o aceita e o ama até as últimas fibras do seu corpo. Ou uma mulher imagina como um
homem a cobiça por completo, como ele dá tudo para se fundir com ela. Em tais fantasias, as
pessoas anseiam poder esquecer de si mesmas, ser enfeitiçadas pelo amor, entrar no êxtase do amor
e se deixar cair nos braços do amado, da amada. Muitas vezes os nossos anseios sobrecarregam a
sexualidade. Esperamos tudo dela, mas sempre constatamos que nem a masturbação, nem contatos
sexuais frequentes são capazes de aplacar o nosso mais profundo anseio de amor. Quando as
pessoas proíbem as suas fantasias sexuais, estas sempre reaparecerão nelas. Em vez de suprimi-las,
seria bom pensá-las até o fim, entrar em contato com o anseio que se oculta nelas. Então posso notar
que o meu anseio segue adiante, que ele em última análise almeja um amor absoluto, no qual eu
possa mergulhar, com o qual eu possa me fundir. Esse amor absoluto não pode ser o amor de uma
pessoa, mas somente o amor de Deus.
Recentemente uma jovem mulher me contou que já com 16 anos dormiu com o seu
namorado, porque não queria magoá-lo. Mas aos poucos as carícias cessaram, e tudo se concentrava
apenas na sexualidade. A sexualidade não era mais a máxima expressão do amor, mas um fim em si
mesmo. O amor se desfez. A mulher aceitava o ato sexual sem sentir amor. Ao contrário, ela se
sentia usada. Muitas vezes ficava com nojo. Essa experiência é bastante comum. As pessoas
esperam da sexualidade a satisfação do seu amor, mas com frequência vivenciam justamente o seu
esvaziamento. E, contudo, não se livram do seu girar em torno da sexualidade. A despeito de todas
as decepções, há nelas um insaciável anseio por amor. Em vez de condenar essas pessoas, seria
mais útil levar a sério o seu anseio por amor e, ao mesmo tempo, levá-lo mais adiante: Eu entendo o
seu anseio por amor. Mas não precisa espremer o seu amor na masturbação; você não precisa
conquistar nenhuma mulher para provar a si mesmo que é digno de amor. O amor já está aí. Você é
totalmente amado. Deixe o amor de Deus entrar no seu corpo. Sinta-o na sua pele. Alegre-se com o
seu corpo, a sua beleza, o seu anseio por amor, a sua capacidade de amar. É ela em primeiro lugar
que o torna um ser humano.
O terceiro grande vício é a avidez, a mania de precisar sempre ter mais. Ela é sempre
expressão de que experienciei muito pouco amor. Quando os filhos roubam, os pais se assustam. Eles
têm dificuldade de perceber o pano de fundo: os filhos tiram aquilo que não receberam. Eles se
sentiram muito pouco amados. Têm o sentimento de que foram prejudicados. Agora recobram a sua
necessidade de atenção e amor pegando tudo que os atrai. Muitas pessoas precisam comprar o tempo
todo. Em última análise, estão querendo com isso comprar o amor. Mas ao mesmo tempo sentem que
não dá certo. Outras acham que, ao comprar, estão se dando alguma coisa, estão se tratando bem. Não
há problema nisso. Mas quando a compra se torna um vício, elas não estão fazendo nada de bom para
si mesmas. São levadas pelo seu vício. Cada vício é, em última análise, um anseio por amor, seja o
vício do jogo, o vício do trabalho ou o vício de drogas. O jogador quer no fim das contas saber que ele
é amado pelo destino. Um jogo bem-sucedido responderia à sua pergunta pelo amor. O viciado em
trabalho gira em torno do seu sucesso. O trabalho é a única maneira em que ele pode expressar seu
anseio por amor. O vício por reconhecimento e afirmação pode também se mostrar de outro modo: por
exemplo, na mania de estar sempre no centro, de chamar toda a atenção para si, de realçar as próprias
proezas. Essa sede de fama é apenas uma variante do anseio por amor, pois no amor se trata de alguém
dizer para mim: "É maravilhoso que você exista, que esteja no mundo, que haja você"20. Se não há
ninguém que me aprove afetuosamente, então procuro sempre chamar a atenção para que finalmente
alguém me ache singular. Na sede de fama se oculta, em última análise, o anseio de que alguém, por
seu amor, me aceite por completo, de que eu possa, pelo amor do outro e pelo amor de Deus, me sentir
singular. Ladislaut Grünhut disse: "Assim como Deus me ama porque sou, sou verdadeiramente
insubstituível no mundo"21.
O viciado em drogas gostaria de sempre ficar no seio do amor materno, porque fora dele se
sente perdido, não-amado, sozinho, vazio. Em vez de condenar os viciados, devemos no
acompanhamento espiritual entrar em contato com o seu anseio por amor. E podemos encorajá-los a
confiar no seu anseio, mas ao mesmo tempo a reconhecer o que há de irreal na sua maneira de querer
satisfazer esse anseio. Se com todo o cuidado falarmos — para dentro desse anseio — sobre o amor
de Deus, pode ser que algo se mexa no seu coração, que eles se sintam compreendidos. Isso não cura
o vício, pois para tanto também são necessários uma disciplina clara e um coerente caminho de
exercícios. Ao mesmo tempo, porém, é preciso ter uma meta em razão da qual desejo me livrar do
meu vício. Essa meta só pode ser o amor que se pode vivenciar de outra maneira. Trata-se da
capacidade de amar as pessoas e de permitir o amor delas. E trata-se da experiência de um amor
indestrutível, de um amor que significa um fundamento sólido para a vida, do amor de Deus, no qual
podemos confiar, mesmo que nem sempre o sintamos.
Henry Nouwen descreve como muitas pessoas hoje moram na casa do medo. Elas têm medo
das pessoas às quais concederam poder sobre si próprias.
Há tantas crianças medrosas, alunos medrosos, pacientes medrosos, empregados medrosos, pais
medrosos, padres medrosos, crentes medrosos. Quase sempre está por trás deles uma figura ameaçadora,
que os mantém sob controle: um pai, um professor, um médico, um chefe, um bispo, uma Igreja, e até
mesmo Deus22.
Em contrapartida, Jesus nos promete que habitaremos a casa do amor. O amor é mais forte
do que o medo. "O perfeito amor lança fora o temor" (1Jo 4,18). Na casa do amor não há medo.
Nossa situação é, com frequência, como a dos discípulos no barco. Temos medo de afundar nas
ondas e vagas da nossa vida tempestuosa. Sentimo-nos impotentes perante as tempestades em que caímos.
Quando os discípulos gritaram de medo, Jesus lhes disse: "Confiança, sou eu, não tenhais medo" (Mt
14,27). A presença amorosa de Jesus é motivo suficiente para que os discípulos não precisem mais ter me-
do. A frase "sou eu" refere-se à revelação de Deus na sarça ardente. Deus é o "Eu sou". Por isso, Jesus faz
ressoar na sua frase: "Eu sou (estou) aqui por você. Ajudo você. Você é importante para mim. Você pode
ser". É uma palavra de amor, que me possibilita entrar na casa do amor. Hoje, todas as pessoas medrosas
anseiam poder sair da casa do medo e entrar na casa do amor. Precisamos apenas dizer dentro do seu
medo a mensagem de Jesus de tal forma que elas se sintam convidadas a vir à casa do amor.

20
. Cf. Josef PIEPER, Über die Liebe, München, 1972, 39ss.
21
. Ibid., 56.
22
. Henry J. M. NOUWEN, Im Haus des Lebens. Von der Angst zur Liebe, Freiburg, 1986, 8.
4
AMOR HUMANO E AMOR DIVINO

Na primeira epístola de João lemos: “O amor vem de deus; e todo aquele que ama
nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus” (1Jo 4,7s.). aqui se fala de maneira
absoluta do amor. Não se diz aqui que amamos Deus ou que Deus nos ama, mas que Deus
em si é amor. O amor não tem objeto. Ele simplesmente existe. Todos nós também temos
um anseio de ser simplesmente amor. Há pessoas em cujos olhos vemos que são pleno amor,
que são totalmente permeáveis ao amor divino. Conheço um velho senhor que passou por
muitas situações difíceis, mas não ficou amargo. Dos seus olhos emana algo de caloroso,
amoroso. Falo com uma mulher simples que sofreu injustiça. Ela tem um rosto amável.
Essas pessoas não estão apaixonadas por outra, elas irradiam amor em toda a sua existência.
O seu amor vale para todos com quem se encontram. Elas podem se voltar para todos com
afeição indivisa. O seu amor se dirige aos animais, às plantas, a uma estátua, a uma imagem,
a uma música. Dirige-se a todos os momentos. Perto delas nos sentimos bem.
Elas irradiam amor. As suas mãos têm certa ternura. Não conseguimos descrever o
que exatamente nos ocorre quando encontramos tais pessoas. Mas, de algum modo, nos
sentimos aceitos, levados a sério, considerados, amados. Nosso coração se desprende. Nós
nos sentimos livres. Não precisamos esconder mais nada. Podemos ser tais como somos.
Seus olhos são o convite para simplesmente sermos.
No meu quarto há uma imagem de São Nicolau, na frente da qual medito todos os dias.
São Nicolau irradia amor em todo o meu quarto. Ele é totalmente permeado de amor. A lenda
descreve Nicolau como o grande amante. Ele auxilia as pessoas em necessidade, aproxima-se
das pessoas que estão desesperadas. Intervém por aqueles que não sabem mais o que fazer. A
imagem não exprime o amor remontando às histórias da lenda, mas fazendo resplandecer o
amor no rosto do santo. Sua face é amor. De todos os seus poros flui amor para mim. Eu
também gostaria de amar de tal forma que os meus olhos irradiassem amor, que se pudesse ler
o amor nos meus traços faciais, que se sentisse amor na minha postura corporal, na aura do
meu corpo. Mas sei muito bem que não posso produzir essa irradiação. Ela é expressão de que
me abri para o amor de Deus, de que coloquei no amor de Deus tudo o que está em mim.
Quando não reprimo nada em mim, mas exponho tudo ao amor de Deus, então posso entrar em
contato com a fonte interna do amor divino, que nunca seca.

A fonte divina de amor


Na história das bodas em Caná, João fala dessa fonte que jamais seca (Jo 2,1-12). O nosso
vinho, a nossa tentativa de amar chega muito rápido ao fim. Não podemos garantir as nossas
emoções. A certa altura, os nossos sentimentos de amor desaparecem. Então achamos que não vamos
mais amar o outro. Isso acontece com muitos casais, que ficam perplexos diante do ocaso do seu
amor. Isso também ocorre ao casal que festeja o casamento em Caná. Para eles se esgota o vinho, o
amor; já no terceiro dia, eles não têm mais vinho, nem amor. Então Jesus transforma seis talhas de
água em vinho, para que este não falte mais. Seis é o número da imperfeição. E as talhas de pedra
indicam o endurecido, o petrificado em nós. Jesus mostra aos noivos — em meio à sua incapacidade
de amar realmente, ao seu endurecimento e aos seus bloqueios — uma outra fonte de amor, a fonte
divina, que nunca pára de jorrar. Jesus injeta a sua palavra de amor no que se tornou insípido, sem
sentimento, no imperfeito e no endurecido em nós. Se confiamos na sua palavra, ela também pode
transformar tudo que há em nós em amor. De repente, podemos amar com as nossas forças e a nossa
fraqueza, as nossas imperfeições e os nossos erros, as nossas crispações e petrificações. Tudo em nós
pode irradiar o amor divino, de modo que ao nosso redor possa se desenrolar a festa da vida.

Ser amor
Estive duas vezes no monte Athos. Lembro-me com prazer da primeira visita há vinte anos.
O velho padre nos cumprimentou, a mim e a meu irmão, em Simonos Petras. Não entendemos nada
do que ele falava. Mas as mãos que nos estendeu eram tão macias e sensíveis que exalavam amor. E
os seus olhos irradiavam tal amor que logo nos sentimos em casa. Então pressenti como uma pessoa
pode mudar quando é atravessada por inteiro pelo amor de Deus. Quando olho tais pessoas que são
puro amor lembro-me também de uma velha camponesa em cujo olhar se podia ler amor e
misericordiosa doçura. Ela passou por altos e baixos na vida. Não falava muito. Mas em todo o seu
ser brilhava um amor que brotava de todos os poros do seu corpo. Dessas pessoas flui um amor que
tudo une, Deus, homem e criação. Elas estão em harmonia consigo mesmas e com a sua vida. Elas
se amam e se sabem profundamente amadas por Deus. Elas fazem o seu amor fluir para tudo que
encontram, para os homens, mas também para os animais e as coisas, que elas tocam
amorosamente.
É provável que o leitor também conheça essas pessoas que são preenchidas de amor em todo
o seu ser. Perto delas, você se sente em casa, aceito, amado. Mas o que é isso que irradia dessas
pessoas? Temos dificuldade quando tentamos definir com mais precisão aquilo a que chamamos
amor. Só podemos descrever que o amor é, evidentemente, uma qualidade do sentir, do falar e do
agir, uma força que flui de nós, uma irradiação. Nela estão as qualidades da doçura, da bondade, da
ternura, da amizade, da mansidão, da alegria. Por fim, estão reunidos no amor todos os frutos do
Espírito que Paulo enumera na Epístola aos Gálatas (G1 5,22s.).

Experiência do amor humano e do amor divino


Muitos pensam que não podemos ter experiência do amor de Deus se antes não vivenciamos
o amor humano. A experiência do amor divino e a do amor humano estão estreitamente inter-
relacionadas. Muitas vezes o nosso discurso sobre o amor de Deus não tem força porque não
vivemos nenhum amor humano. Em alguns pregadores, o entusiasmo pelo amor divino parece se
tornar um substituto da escassa experiência de amor humano. As suas palavras não conseguem
atingir as pessoas. Pode-se concordar intelectualmente com elas. Mas elas não contagiam. Não
comunicam nenhum amor, apenas informam sobre ele. E, às vezes, falam de amor padres com um rosto
que reflete dureza e até mesmo brutalidade. Assim, as palavras sobre o amor ficam inverossímeis. Mas as
pessoas sabem exatamente se as palavras de amor vêm da experiência do amor ou se são apenas
expressão da carência de quem as diz.
Com frequência, conheço padres e religiosos que construíram a sua vida sobre o amor, mas em
cujo rosto não se pode ler nada desse amor. Eles não exprimem o amor que a minha imagem de São
Nicolau, por exemplo, irradia. Tão logo se apaixonam por uma pessoa, sentem que o seu discurso
sobre o amor de Deus ficou vazio. Eles vivem a paixão por uma pessoa tão existencialmente que, de
repente, temem que a sua concepção do amor divino não passe de ilusão. Isso muitas vezes resulta
numa crise vocacional. O estado de paixão irrompe neles como uma força indômita e os abala. Agora,
subitamente sentem o que realmente é o amor, como ele pode preencher todo o coração. E então se
perguntam o que afinal o amor a Deus ou o amor de Deus pela pessoa provocou no seu coração. Eram
apenas palavras pálidas, sem efeito. Quem vivencia a força transformadora do estar apaixonado não
pode, contudo, cair no erro de jogar os amores divino e humano um contra o outro. Quando deixa a
força emocional da paixão fluir para dentro do seu amor, essa pessoa também notará como o amor de
Deus é capaz de tocar todo o coração.
Normalmente, o amor de Deus é mediado pelas pessoas humanas. Mas isso não significa que
pessoas que tiveram pouca experiência de amor na infância sejam incapazes de amar a Deus ou de
sentir o amor de Deus. Não apenas a experiência do amor, mas também a falta de amor podem
despertar em nós o amor a Deus. Os filhos que sofrem com o fato de os pais não terem tempo para
eles, e de não se sentirem amados porque outras coisas são importantes para os pais, têm em si
contudo o pressentimento de um amor que realmente os preenche. Isso não é uma fuga da fria
realidade da sua situação familiar, mas um autêntico sentimento de que não estão sozi nhos, de que
há um amor que é maior e mais confiável do que o dos pais. Não há, por certo, nenhuma pessoa
que não tenha experiência alguma de amor. Até mesmo os pais mais desnaturados provavelmente
transmitem um pouco de amor ou pelo menos o pressentimento de amor aos seus filhos. Mas a
escassez de amor faz os filhos sonharem com outro amor, que se dirija realmente a eles, no qual se
sintam protegidos e possam confiar. Uma mulher, que teve uma mãe fria, me contou que na
infância vivia brincando de "família saudável" com as bonecas. Com as suas bonecas ela assumia o
papel da mãe, do pai e dos filhos. Ela atualizava no jogo o seu anseio por um amor terno e cordial
dos pais pelos seus filhos. Como ela vivenciou pouquíssima ternura por parte da mãe, ela mes ma
se deu essa ternura na brincadeira com as bonecas. Apesar da frieza que teve em casa, ela sabia
exatamente o que era o amor. No nosso coração existe, independentemente das expe riências que
sofremos, um pressentimento de amor. Há em nós uma imagem arquetípica de um pai, uma mãe,
uma pessoa que ama. E existe em nós evidentemente a capacidade de amar. Do contrário, essa
menina não poderia ter representado na brincadeira de boneca o amor dos seus pais e o amor aos
filhos. Quando confiamos nas imagens arquetípicas do amor e na nossa arraigada capacidade de
amar, paramos de apenas lamentar que tivemos pouquíssimo amor. Por certo, vai doer se
pensarmos na carência de amor em nossa infância. Mas, em vez de reclamar, vamos nos voltar
para a fonte de amor, que flui em nós apesar de tudo.

Estar próximo de si mesmo


Frequentemente ouço a queixa de que se vivenciou muito pouco amor, que a ternura na
família era interditada e que portanto se era incapaz para o verdadeiro amor. Eu então sempre me
pergunto se quem conta isso pode, ele mesmo, amar. Alguns indivíduos se fazem totalmente
dependentes do amor dos outros. Têm o sentimento de que só estarão na vida se puderem
experimentar a proximidade amorosa dos outros. Sempre os faço refletir se eles próprios podem
oferecer proximidade, se estão próximos de si mesmos. A mulher que brincava de "família
saudável" com as bonecas deu a si mesma uma proximidade amorosa. Como criança, ela sabia
exatamente que podia ser amorosa consigo mesma, ainda que não tivesse experienciado isso dos
pais suficientemente. Em qualquer pessoa há um pressentimento de amor. Não podemos nos fixar
no amor dos outros, pois assim ficamos totalmente dependentes deles. Nós mesmos, também,
sempre somos aptos para o amor. É uma decisão de começarmos a nos amar a nós mesmos, de
dizermos um "sim" incondicional a nós mesmos e nos tratarmos amorosamente.

Lidar com experiências de falta


Quando alguém se lamenta da sua falta de amor, levo a sério a sua queixa. É um grande
sofrimento quando a pessoa não se sentiu amada na infância. Não a deixo, porém, parada na
lamentação, mas pergunto não só pela sua capacidade de amar a si mesma, como também se ela
pode imaginar que Deus a ama. Algumas pessoas mal podem conceber que Deus possa amá-las
incondicionalmente e que elas podem crescer sobre essa base de amor. Outras nunca cogitaram
nessa possibilidade do amor de Deus. Mas quando eu as exorto a se certificar desse amor de Deus, a
senti-lo corporalmente nos raios quentes do sol, cresce o seu pressentimento de que deve haver outro
tipo de amor. Elas sentem que com os seus lamentos estão acusando Deus e as pessoas que as
prejudicaram. Mas, com a sua queixa, elas perdem o olhar para o amor de Deus, que quer vir ao seu
encontro na criação e em inúmeras pessoas. Quando elas se dispõem a descobrir o amor de Deus na
sua vida, aumenta nelas o pressentimento de que esse amor não é um consolo barato, mas pode
conduzir a uma profunda paz interior.
Uma jovem me contou que ambos os pais eram viciados. Eles eram tão ocupados consigo
mesmos e com o vício que negligenciaram totalmente as necessidades de amor dos filhos. Para essa
mulher, a única maneira de suportar a negligência era ir à igreja e se sentar em frente ao altar de
Maria. Ali ela se sentia em casa. Ela sentia um pouco do amor que emanava da atmosfera da igreja
e sobretudo da estátua de Maria. Essa criança tinha uma saudável intuição para o fato de que não
havia apenas o amor dos pais, mas um amor maior, no qual ela podia confiar. Esse amor maternal
de Deus foi, para essa criança, necessário para a sobrevivência. Sem ele, ela teria ou se fechado
totalmente ou desistido. O amor de Deus a salvou, no sentido mais verdadeiro da palavra.
Naturalmente, essa experiência de falta pode dificultar uma aproximação dos outros ou
impedir que o amor de outra pessoa se aproxime de nós. Ansiamos pelo amor, mas ao mes mo
tempo temos medo de permiti-lo, pois na infância sempre experienciamos a proximidade como
ameaçadora. Uma mulher que contrabalançou a falta de amor dos pais pela experiência do amor
divino pode, pela desconfiança em relação ao amor humano, ir para um convento, onde ela está
certa do amor divino. Mas o amor divino não pode se tornar substituto do amor humano. Em algum
momento vou também sentir o meu anseio por uma pessoa humana, que me ame sem reservas, que
me abrace com carinho. Olhar para esse anseio não significa necessariamente que eu o realize
entrando num relacionamento. Mas só quando levo a sério o meu anseio, quando vejo através dele o
meu amor a Deus, só então posso alcançar um amor de Deus maduro. Sem um confronto honesto
com a minha necessidade de proximidade humana, a proximidade de Deus vira apenas uma farsa.
Mas, se aceito sem restrições minha necessidade, posso chegar à experiência do amor de Deus sem
ao mesmo tempo experienciar o amor humano.

O amor de Deus como possibilitação do amor humano


A relação entre o amor humano e o divino não diz respeito apenas à questão da
mediação, mas também à questão de saber como o amor entre duas pessoas pode dar certo. No
amor entre homem e mulher, entre dois amigos ou duas amigas, sempre tendemos a querer
possuir o outro. E esperamos do outro, muitas vezes inconscientemente, amor absoluto e
segurança. Mas ninguém pode dar nada de absoluto. Com as nossas expectativas absolutas
sobrecarregamos o outro. E com frequência nos decepcionamos. No casamento ou numa relação
de amizade, sempre esbarramos em limites. Apesar de toda proximidade, sentimos distância.
Apesar de toda compreensão, aparece o sentimento de estranheza. Muitos reagem à experiência
da decepção voltando a sua expectativa para outro companheiro, que parece satisfazer os seus
anseios. Mas depois de pouco tempo eles vão reencontrar os limites.
O amor humano só pode ter êxito se não o compreendo de maneira absoluta, mas como
mediação do amor divino, e quando me deixo levar pelas decepções novamente em direção a Deus.
As decepções são parte essencial do amor. Elas anulam a ilusão na qual sempre caio, a ilusão de que o
outro pode me dar amor absoluto e amparo absoluto. Só Deus pode oferecer o absoluto. Quando vejo
a razão da minha existência no outro, eu me torno dependente dele. E esse sentimento de dependência
inconscientemente cria agressões em mim, pois no fundo de nós há também o anseio por liberdade. A
dependência é contra a nossa dignidade. Se me sinto vivo apenas se o outro me ama, então me perco a
mim mesmo. E em Deus que devo ver o fundamento sobre o qual construo a minha vida. Então posso
desfrutar o amor do companheiro ou do amigo. Nesse caso posso ser grato pelo amparo que sinto
nele. Mas sei que é apenas um amparo condicional, nunca incondicional. O outro é mortal. Ele
envelhece, adoece. Ele não pode garantir os seus sentimentos, ainda que tantas vezes me jure
fidelidade. Pessoas que se fixam no outro vão, muitas vezes rapidamente, perdê-lo por ciúme ou
medo. O amor de Deus em que sinto minha base mais profunda me liberta da fixação temerosa no
outro e possibilita, com isso, o sucesso do amor humano. Não vou lamentar por ter me enganado com
o outro, mas deixo que a decepção novamente aponte para o amor de Deus, que não é tão quebradiço
como o amor humano, que constitui um fundamento sólido, no qual posso edificar a casa do meu
amor por uma pessoa.

5
A DIMENSÃO ERÓTICA DO AMOR DE DEUS

Muitos se queixam de que o amor a Deus não move realmente o seu coração, e de que
gostariam de amar a Deus mas muitas vezes não conseguem. Ou acham bom e bonito que Deus os
ame, coisa em que também acreditariam, mas dizem que não podem viver disso, pois não teriam a
experiência desse amor na profundeza do seu coração. Os místicos vivenciaram o amor de Deus
existencialmente. Eles descreveram esse amor numa linguagem erótica. Naturalmente, o amor de
Deus produziu nessas pessoas o mesmo efeito da experiência da união sexual. Elas tiveram uma
experiência corporal do amor divino, às vezes como um orgasmo. É célebre a visão de Santa Teresa
de Ávila, segundo a qual Cristo a fere com a flecha do amor. Bernini representou essa cena tão
plasticamente que muitos reconhecem nela um orgasmo. Teresa se prostra de amor, assim como uma
mulher se prostra com todos os seus sentidos diante do homem que ela ama.
A mística holandesa Hadewijch von Anvers (1230-1260) descreve como, na vigília de
Pentecostes, ela de repente teve a sensação de que o próprio Cristo vinha até ela e a abraçava:
"Ele me tomou inteira em seus braços e me apertou contra si. Com todos os meus
membros, senti toda a bem-aventurança do seu corpo segundo o desejo humano do meu coração.
Com plena consciência, eu me satisfiz à vontade" 23. No encontro com Cristo, Hadewijch tem
uma experiência semelhante à que têm o homem e a mulher no ato sexual. Uma experiên cia
espiritual intensa exprime-se no corpo da mesma maneira que uma experiência sexual. Sempre
que uma pessoa é totalmente tomada por alguma coisa, o seu corpo também é toca do por isso.
Quando creio em Deus não apenas com o corpo, mas tenho experiência dele em todo o meu
coração e com todos os meus sentidos, o corpo inteiro é afetado. Ele pode tremer e estremecer
como na experiência sexual. Ele "se satisfaz" tal como no ato sexual.
Ao ler as obras dos místicos, algumas pessoas têm a impressão de que estão longe da
experiência deles. Dizem que não sentem tão profundamente o amor de Deus ou o amor de Cristo.
Não podemos forçar uma experiência mística como essa. Mas podemos nos abrir para ela.
Considero importante tentar, com todos os sentidos, perceber Deus na criação. Muitos dizem: sinto
uma pessoa que eu possa abraçar, beijar, mas Deus está tão longe... Mas o que realmente constitui a
experiência do amor humano? O toque, o beijo? Pode-se tocar a pele de uma pessoa sem sentir
amor. Sim, podemos até beijar sem amar. Se um toque ou um beijo medeia o amor depende de eu
amar realmente o outro e então expressar esse amor, fazê-lo fluir pela respiração, pelo contato, pelo
beijo. Quando não existe amor, não é um beijo que vai criá-lo. Se, no entanto, ele flui em mim, ele
pode escoar para o outro pelo toque carinhoso ou pelo beijo. Então sinto o amor como um fluxo, como
uma troca interior. Da mesma forma, o amor de Deus pode fluir para mim, quando estou inteiramente no
contato. Quando afago uma flor, quando me deixo roçar pelo vento, isso pode se tornar uma experiência

23
. Herman VEKEMAN, Erotik und eheliche Liebe bei Hadewich, in O. STEGGINK (Hrsg.), Mystik. Band 1. Ihre
Struktur and Dynamik, Düsseldorf, 1983, 183s.
de amor tão intensa como o toque humano. Tudo depende de eu acreditar no amor de Deus, que quer me
abraçar por meio da criação, e de eu permiti-lo no plano corporal.
Peter Schellenbaum fala da "consciência perceptiva". As pessoas sentem o amor entre si
apenas quando estão na consciência perceptiva, quando estão inteiras no contato. Assim, um toque
absolutamente terno já pode expressar tudo o que há de amor em nós. Muitos que perderam essa
consciência da percepção precisam abordar o corpo do outro com violência para extrair-lhe o amor,
o prazer. Eles só se sentem se apertam um ao outro com força cada vez maior. Eles tiram proveito
da excitação, do auge sexual, mas não conseguem desfrutar o amor, não conseguem percebê-lo por
muito tempo. Schellenbaum imagina, por exemplo, que pessoas que se amam muito renunciem à
fusão sexual. Há também um amor erótico entre homem e mulher que não visa ao ato genital.
Schellenbaum fala de uma mulher que, em benefício da sua capacidade de amar, renuncia às
relações sexuais. Ele também não aceita que se dê a designação de "assexuais" às pessoas que
vivem o seu eros na entrega a uma obra social, cultural ou religiosa. "Pelo contrário, às vezes elas
têm uma forte irradiação sexual. O seu corpo mobiliza, nas fases intensas da sua entrega, os
mesmos hormônios do corpo de uma pessoa que se prepara para um encontro sexual" 24. Em toda
entrega intensa são despertados "sentimentos vivificantes da união que aflui". Isso vale também
para a entrega a Deus. Ela pode fazer o corpo humano excitar-se e vibrar corno a entrega no ato
sexual.

Espiritualidade como repressão da sexualidade


A relação entre sexualidade, amor humano e amor de Deus é múltipla. Há pessoas que
rapidamente falam de amor a Deus porque têm medo do amor humano. Elas usam o amor divino para
se esquivar da sua sexualidade. Em muitos cristãos devotos, sobretudo naturalmente entre religiosos e
padres, vejo uma espiritualidade que serve apenas para reprimir a sexualidade e evitá-la. Mas o fatal é
que essas pessoas giram continuamente em torno da sexualidade e gastam enorme energia para mantê-
la guardada. Essa energia lhes falta então na vida, no trabalho e nas suas relações. É doloroso ver
quanta energia é desperdiçada, como as pessoas sofrem com isso desde a infância e se sentem culpadas
por causa de fantasias sexuais. Há uma mulher, por exemplo, que antes da sua primeira comunhão
assistiu a uma vaca parindo. Sua mãe ralhou com ela, dizendo que isso não se fazia, que era pecado. Na
primeira comunhão, a sua vela de comunhão apagou-se, e o seu vestido branco ganhou uma mancha de
sujeira. Para ela, esse era um sinal de que era uma pecadora, indigna de comungar. Isso causou tal
medo nessa mulher que a comunhão depois disso nunca foi libertadora e curadora, mas sempre se
associava ao medo de que as fantasias sexuais a tornavam indigna de comungar e de que, a cada
comunhão, ela se enredava sempre mais no pecado. Fiquei assustado de ver como esse girar em torno
das faltas e da indignidade obscureceu a infância e a juventude dessa mulher, e como agora com 60
anos ela continuava possuída por esse medo da sexualidade. Essa não pode ser a vontade de Deus!
Isso foi provocado pela educação e pela pregação de pessoas que eram, elas mesmas, determinadas
pelo medo e que em nome de Deus e da moral colocaram os outros em estado de medo.
A imagem de Deus por trás dessa repressão da sexualidade é pessimista. É o Deus punitivo e
mesquinho, que observa sobretudo como lidamos com a nossa sexualidade. Quando se olha essa
imagem de Deus, reconhece-se quanto medo esse Deus deve ter da sexualidade que ele mesmo criou
como uma boa dádiva e que precise controlar tão fortemente. Mas muitos veem a sexualidade
sempre como algo sujo, que é melhor manter longe do corpo. Pelo menos ela é um tabu. Não se fala
dela. É reprimida, para não termos nada a ver com ela. Mas esse caminho não tem sucesso. Pelo
contrário, ao considerá-la assim sempre giramos em torno desse tema. Temos constante medo de ser

24
. Peter SCHELLENBAUM, Das Nein in der Liebe. Abgrenzung und Hingabe in der erotischen Beziehung, München,
1986, 101.
dominados pela sexualidade. Ela é como um vulcão, que pode entrar em atividade tão logo toquemos
nele. Preferimos então colocar uma tampa sobre esse vulcão. Mas é preciso muita energia para
pressionar essa tampa de modo que impeça uma erupção. Quando pessoas devotas reprimem a sua
sexualidade, não conseguem desenvolver uma espiritualidade profunda. A sua devoção é marcada
apenas por leis e preceitos, que se devem cumprir. É uma devoção moralizante, que evita a sua
incapacidade de integrar a sexualidade ao caminho espiritual pregando a observância da moral sexual
eclesial e estabelecendo exigências rigorosas.
A repressão da sexualidade não leva a um amor verdadeiro a Deus. Quem reprime a sexualidade
se trata com dureza e crueldade. Essa dureza e, muitas vezes, essa brutalidade até se exprimem também
no trato com as coisas, por exemplo os livros que se leem, a maleta, a ferramenta. E se mostra no
julgamento sobre outras pessoas. É conhecida, infelizmente não sem razão, a brutalidade de pessoas
devotas, que fazem julgamentos impiedosos sobre os outros, censuram-lhes falhas constantemente e
não deixam de espionar a sexualidade deles. Justamente nos Estados Unidos — em que a moral sexual
puritana determina muitas pessoas —, é uma verdadeira mania espionar a conduta sexual de pessoas
proeminentes e se ocupar com isso. Essa atitude aponta sempre a repressão da sexualidade própria, o
que resulta numa forma desumana e brutal de lidar com o outro. Essa dureza também se mostra na
relação com Deus. Deus é visto sobretudo como aquele que impõe exigências rigorosas e observa se o
homem as está cumprindo. É impossível amar a esse Deus, ainda que nos falem tanto do seu amor por
nós e nos exortem bastante a amá-lo. Trata-se de uma pregação desamorosa do amor. As palavras estão
corretas, mas não emana do pregador nenhum amor, apenas dureza. E por trás da dureza se ocultam
tristeza, desespero, frieza. Quando os místicos falam de Deus, eles irradiam um calor. O nosso coração
é tocado. Sentimos que eles realmente amam a Deus, que o seu coração está repleto de amor. É difícil
encontrar outro santo que irradie um amor divino tão profundo como São Francisco. Dele se conta que,
sempre que aparecia a palavra "Senhor" no Salmo, ele lambia os lábios de prazer e amor. Quando
rezava a palavra "Senhor", seu coração transbordava de amor a Cristo.

Sexualidade como substituto da espiritualidade


A repressão da sexualidade é o primeiro caminho errado para unir ou jogar umas contra as
outras as três esferas da sexualidade, do amor humano e do amor divino. O segundo consiste na
glorificação da sexualidade. Ele leva a substituir pela sexualidade a espiritualidade vista como anseio pelo
mistério. Ken Wilber diz que no século XIX a sexualidade foi alçada ao centro do interesse humano, pois
se tinha perdido o interesse pela transcendência, pelo mistério de Deus. Onde a natureza se torna a
realidade última, a sexualidade encerra sozinha o mistério da personalidade humana. A sexualidade foi,
por assim dizer, endeusada no século XIX. Como as pessoas não tinham mais sensibilidade para o
mistério, então giravam apenas em torno dela. A sexualidade era "no mundo da planície" o único mistério
que ainda existia para o homem que vivia na superfície. "A sexualidade ganhou uma aura quase mística. A
ela se atribuíram uma posição, um poder e uma autoridade que ultrapassam de longe aquilo que se pode
obter da libido como tal"25. Para Ken Wilber, a sexualidade é uma forma de expressão do espírito, pela
qual podemos tatear de volta em direção ao espírito. Ela tem uma dimensão espiritual. Mas quando nos
fixamos na sexualidade esquecemos essa dimensão. Ficamos na superfície: "A superfície já é o todo, e a
sua profundeza mais profunda é a sexualidade" 26. Em vez de encontrar o caminho para o espírito pela
superfície da natureza, desenterramos agora a sexualidade reprimida e achamos que isso é tudo. Nisso
consistiria todo o mistério do ser humano. Trata-se de uma redução da condição humana, pela qual
pagamos um alto preço. A dignidade do homem se perde. A sua sexualidade não é mais impulso para se
estender para além dela e se fundir com Deus no êxtase do amor. Ela se torna, antes, um produto de

25
. Ken WILBER, Eros, Kosmos, Logos. Eine Vision an der Schwelle zum nãchsten Jahrtausend, München, 1996, 555s.
26
. Ibid., 555.
consumo. E para recebê-lo pessoas são sacrificadas no altar do ganho de prazer.
Hans Jellouschek observa que em muitos casais a sexualidade é superexigida, porque é
transformada no único lugar de autotranscendência. O que se esperava da religião — que no
êxtase do amor a pessoa fosse além de si mesma e se fundisse com Deus — é esperado da
sexualidade. Com isso ela se torna um substituto da religião e é extremamente superexci tada. Ela
se torna um produto de consumo, que não mais conduz o homem para além de si mesmo. A
sexualidade vira a única promessa de vitalidade. Como o indivíduo se torna incapaz de perceber o
mistério da vida e do amor em tudo, ele se fixa na sexualidade, a única que o faz pressentir algo
de transcendência e auto esquecimento. A sexualidade ganha uma dimensão religiosa. Mas não
aponta mais para a transcendência; permanece, antes, fechada em si mesma. Assim contudo, diz
Jellouschek, no ato sexual ficamos "sozinhos, tendo no máximo um vislumbre da Unio mystica,
mas não participando dela. O amor entre os sexos não existe para satisfazer o anseio de união
abrangente, mas para conservá-lo desperto e nos manter no caminho até ele 27.

Euforia como fuga da sexualidade


Um terceiro caminho errado de ver uma inter-relação entre as três esferas consiste numa fala
eufórica sobre o amor de Deus. Os místicos sempre descreveram o seu erótico amor a Deus numa
linguagem que, certamente, é cheia de paixão e anseio, mas ao mesmo tempo é realista. O leitor
consegue compreender o que os místicos experienciaram. No entanto, hoje há muitas pessoas que falam
com demasiada euforia sobre o seu amor a Deus, que se impregnam de belos sentimentos. Nesses casos,
fico sempre cético, pois já vi inúmeras vezes que uma devoção muito eufórica é apenas o reverso de
problemas sexuais que tais pessoas gostariam de encobrir com ela. Quem se entusiasma além da conta
com o amor divino não nota como está projetando em Deus as suas necessidades demasiado humanas
de proximidade e as suas fantasias sexuais. Mas com isso a sua sexualidade não se transforma. Ao
contrário, a euforia os distancia da realidade. Isso possibilita a algumas pessoas viver em dois níveis: no
nível da euforia em que se sentem muito próximas de Deus, e ao mesmo tempo no nível da vitalidade e
da sexualidade que elas absolutamente não percebem como tal, porque o sobrelevam ideologicamente.
Na maioria das vezes, elas então oscilam entre o entusiasmo e a auto inculpação, porque são incapazes
de integrar a sexualidade. Mas com isso nada muda ; elas só estabilizam a sua divisão entre devoção
exagerada e sexualidade imatura, acusando-se e desvalorizando-se o tempo todo.
A auto inculpação restabelece o equilíbrio interno e lhes possibilita continuar vivendo em
dois níveis, no nível de uma moralidade rigorosa e ao mesmo tempo no nível da satisfação das suas
necessidades, que absolutamente não é tocada pela sua elevada pregação moral. Ou então elaboram a
sua própria teoria, segundo a qual, mesmo numa relação sexual, elas não realizam nenhuma
sexualidade, mas querem apenas mediar o amor de Deus para o outro. Elas realizam a sexualidade
sem confessá-lo para si. Dessa maneira, elas também não precisam mudar nada.

Misticismo como integração de sexualidade e espiritualidade


Em contrapartida a esses três caminhos errôneos, os místicos nos mostram caminhos viáveis
para integrar a sexualidade à experiência do amor de Deus. Os místicos não vivem em dois níveis
separados, nem reprimem a sua sexualidade à custa da espiritualidade, mas exprimem o seu amor a
Deus no corpo, e a experiência do amor de Deus por eles toca a sua sexualidade também. A entrega a
Deus mostra as mesmas emoções da entrega sexual. Eles vivenciam o amor de Deus por eles de modo
tão intenso como um ato sexual. Naturalmente, isso é como andar numa corda bamba, não podemos
distinguir com facilidade se a experiência erótica do amor de Deus é autêntica ou apenas projeção em

27
. Hans JELLOUSCHEK, Mànner und Frauen auf dem Weg zu neuen Beziehungsformen, in: P. M. Pflüger (Hrsg.),
Der Umbruch im Mann, Olten, 1989, 177.
Deus da sexualidade reprimida. Um importante critério é sempre a realidade. Os místicos eram
pessoas realistas, que deixaram a sua marca também neste mundo, que podiam trabalhar muito e
eficientemente, e que viveram relações humanas. Eles não tomaram o amor de Deus como substituto
do amor humano. Para eles, o amor de Deus era, antes, o ápice da experiência do amor. No encontro
com o amor de Deus, a sua vivência era a de que esse amor permeia o homem inteiro, corpo e alma,
consciente e inconsciente, mobilizando todas as forças vitais e iluminando todo o corpo. Os místicos
eram sempre pessoas amantes. Eles experienciaram o amor com o corpo e o irradiaram com todo o
seu ser. Para Schellenbaum é imprescindível que os celibatários em sua dedicação vivenciem o eros
como vivificante, que eles não se recolham num gueto. Quando um mosteiro se considera um gueto,
"a manifestação mística do eros enfraquece" 28. Por isso, para os místicos a amizade com outras
pessoas também sempre foi importante. Eles vivenciavam o amor a uma pessoa de maneira não-sexual,
contudo erótica. O amor erótico pelas pessoas fortalecia o eros do seu amor divino. Para eles, o amor era
realmente a sua atitude básica. Eles podiam, com o mesmo amor sensorial, amar os homens, os animais,
as plantas, o vento, o sol e Deus. Eles eram amor por completo. Eles, por assim dizer, moravam no amor.
O amor também influenciava a relação consigo mesmos. Não havia autodesprezo e autodepreciação, mas
uma grata harmonia consigo mesmos e com a vida. Eles podiam olhar amorosamente para a sua própria
realidade. Quem é amor pode amar sempre e por toda a parte, dele emana um amor mesmo que ele não
viva numa amizade sólida com uma pessoa.
Quem ama realmente, a ele muitas vezes basta a respiração da pessoa amada. Na respiração
conjunta, ele sente como esse amor corre por ele e o liga profundamente ao outro. Na respiração, eles
se fundem num ser só. Quem perceber esse amor humano com cuidado e consciência — com a
consciência perceptiva de que fala Schellenbaum —, também reconhecerá o amor de Deus, se lidar
cuidadosamente consigo mesmo, com as coisas, as plantas, os animas, e as pessoas. O místico persa
Dschalal ed-din ar-Rumi, no século XIII, descreveu de maneira maravilhosa como Deus em nossa
respiração nos enche com seu perfume de amor.

Ó, grande Deus,
Com tua alma a minha se misturou,
Como água com vinho.
Quem pode separar a água do vinho,
Quem me desunir de ti?
Tu te tornaste meu grande eu.
E nunca mais quero ser só um pequeno ele.
Tu me afirmaste para sempre,

Pois não te nego eternamente.


Teu perfume de amor, que me atravessa,
Jamais sai de minhas entranhas.
Ó Deus, sou em tua boca como uma flauta,
Dá-me teu sopro, para que eu soe.
Dá-me um golpe para que chore,
Tu, fôlego do meu coração.

Esse mulçumano devoto experienciou o amor de Deus também corporalmente. Quando me


envolvo cuidadosamente com a minha respiração, como recomenda esse texto, posso sentir em cada
inspiração ou expiração o amor de Deus me impregnando, o amor de Deus se fundindo

. Peter
28
SCHELLENBAUM, Das Nein in der Liebe, p. 102.
indistintamente comigo, de modo que exala por todos os poros de meu corpo e não há mais nada em
mim que não seja tocado pelo "perfume do amor de Deus".
O que o místico persa exprime, eu o reencontro nas palavras de Jesus sobre a videira (Jo 15,1-
8). Na minha respiração, o amor de Deus corre em mim. Eu me ligo à videira de Cristo. E toda a vida
que sinto em mim é o seu amor divino, pois o vinho é, para João, uma imagem do amor de Deus, que
nunca se esgota. Jesus nos promete: "Eu sou a vinha, vós sois os sarmentos: aquele que permanece em
mim e no qual eu permaneço, esse produzirá fruto em abundância" (Jo 15,5). O fôlego que me
penetra, o sangue que corre em mim, tudo o que flui em mim é imagem do amor de Deus, que
preenche o meu corpo e me dá vitalidade e fertilidade. Jesus exorta os seus discípulos: "Permanecei
no meu amor" (Jo 15,9). Posso evidentemente "morar" no amor de Jesus. Ele é o fluido que me
circunda. É a força que corre em mim. É o perfume do amor de Deus, que na minha respiração
preenche todo o corpo. Para Jesus tanto faz dizer "Permanecei em mim" ou "Permanecei no meu
amor". Ser em Cristo significa ser no seu amor, morar na casa do seu amor, encontrar um lar no seu
amor. No seu amor, o anseio do coração se realiza, nele o coração pode descansar.
O pressuposto para ter uma experiência corporal do amor de Deus é que eu me envolva
por completo na minha respiração, que eu me abandone nisso e esteja apenas no respirar. Então
terei uma experiência do amor de Deus quase tão intensa como quando sinto o amor de uma
pessoa num beijo ou na fusão sexual. Numa pessoa, só vou sentir realmente esse amor quando
acreditar nele. Só o beijo não é ainda amor. Ele exprime apenas o amor em que acredito. Da
mesma forma, a respiração pode ser vazia, sem amor, sem proximidade. Mas, quando creio que
na minha respiração o amor de Deus entra em mim e quando me uno por inteiro com a minha
respiração, então posso ter aí uma experiência corporal do amor de Deus. Não está em meu poder
prender esse amor. Às vezes, apesar de todo cuidado e toda atenção, não vou senti-lo. Permaneço
em mim mesmo e na minha inquietude. Então me é útil confiar no meu anseio. Ainda que eu não
sinta o amor de Deus, estou ciente de um profundo anseio por esse amor. Se persigo esse anseio,
também reaparece um pressentimento do amor de Deus em mim.
Mesmo que eu não possa me prender ao amor de Deus, sei, contudo, que ele não é tão
frágil como o amor humano. Numa amizade ou num casamento, podemos vivenciar inten samente
o amor de uma pessoa. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que esse amor pode mudar rapidamente
em indiferença, agressão, pretensões de posse, estreitamento, ofensa mútua. Basta que o outro nos
magoe para que se levantem em nós palavras com as quais tentamos vingar a ofensa e tocar no se u
ponto fraco. E sabemos como pode ser rápida a diluição do sentimento de amor. Alguns reagem
prendendo o outro ou se escondendo por trás de uma fachada fria, para que não fiquem tão
vulneráveis. No entanto, posso deixar que o frágil amor humano me aponte também para o amor
de Deus. Eles não são dois opostos que se excluem. Ao contrário, a experiência do amor humano
está sempre me remetendo ao amor de Deus. É salutar desfrutar o amor por uma pessoa sem
medo de que eu possa ferir esse amor. A experiência do amor divino me livra de uma fixação
muito forte no outro. Sei que o nosso amor só pode perdurar se nos deixamos remeter ao amor de
Deus. Assim, a experiência do amor de Deus é o fundamento sobre o qual também podemos
construir o nosso amor humano. Esse é o sentimento do sacramento do casamento: de que o amor
entre homem e mulher seja o mediador do amor de Deus e remeta ao amor de Deus. Isso dá ao
amor deles segurança e constância.
Para mim, a respiração não é o único caminho para experienciar corporalmente o amor de
Deus; há também os gestos. Também exprimimos o nosso amor por uma pessoa com gestos.
Abraçamos o outro, tocamos as suas mãos, o beijamos. Os gestos de oração têm a mesma forma
dos gestos de amor humanos. Aqui, sobretudo o gesto da cruz é, para mim, o gesto de amor.
Quando observo Cristo na cruz, como ele abre os seus braços, eu me sinto abraçado por ele. Se eu
mesmo abro os meus braços, tenho o sentimento de que em mim corre amor, de que sou um vaso
no qual se derrama o amor de Deus. Então pressinto que há em mim tanto amor que ele pode
também fluir para fora de mim, sem que eu me esvazie dele. Outra maneira do gesto da cruz
consiste em cruzar as mãos sobre o peito. Maria, muitas vezes, é representada como se olhasse
totalmente para dentro e guardasse a palavra no coração. Nesse gesto, sempre me vem à mente a
imagem de Henry Nouwen segundo a qual a vida espiritual consiste em vigiar o fogo interior. Em nós
arde o fogo do amor divino. Mas, não raro, deixamos as portas do nosso forno abertas e nos
apagamos. Com os braços cruzados sobre o peito, fecho as portas do meu coração. Não deixo
ninguém entrar em mim. Assim estou sozinho com o meu Deus. Assim vigio o fogo interior, o amor
de Deus, que atravessa o meu corpo. Quando exercitamos esse gesto num curso, uma mulher disse que
sentiu muito calor. É uma experiência equivalente à do amor por uma pessoa. Nosso coração também
se aquece. Esses gestos nos fazem perceber que o amor de Deus pode se exprimir no plano corporal
de modo tão intenso como o terno amor entre um homem e uma mulher. Para quem sente o amor de
Deus nesse gesto, os textos bíblicos do Deus do amor não são palavras vazias.

6.
A FORÇA CURATIVA DO A MOR

Algumas pessoas tomadas pelo amor exprimem isso dizendo: "Estou doente de amor". O
amor pode agitar o corpo tal como uma doença. Mas só o amor não correspondido nos deixa
doentes. Se duas pessoas se amam, o seu amor tem força curativa. As feridas da infância consistem
geralmente na falta de amor, na experiência de rejeição, ofensa, depreciação, frieza e ódio. E só o
amor pode curar tais feridas. Isso não se aplica somente ao amor dos apaixonados, mas também ao
processo terapêutico. O que em última análise cura o paciente não é o método psicológico que o
terapeuta usa, mas o amor que ele lhe oferece, ou, como exprime Rogers: o interesse irrestrito,
valorizador, a empatia, a atenção incondicional, positiva. O paciente necessita da experiência da
aceitação incondicional do terapeuta para poder trabalhar a sua escassez de experiência de amor na
infância. Com bastante frequência, ele se apaixona pelo seu terapeuta. Acontece a chamada
transferência, que pode ser absolutamente salutar. O paciente deve apenas aceitar de volta essa
transferência, para não se tornar dependente do terapeuta. Deve sentir em si mesmo o amor que o
terapeuta lhe mostra inconscientemente. Então o amor irá curá-lo. Se continuasse dirigindo seu
amor ao terapeuta, ele o transformaria cada vez mais em Messias, salvador, redentor. Mas com isso
iria sobrecarregá-lo. Iria lançar sobre ele uma imagem arquetípica que o tornaria, em última análise,
semelhante a Deus.

Transformação pelo amor


Inúmeros contos de fadas mostram que o amor é capaz de curar as nossas feridas. No conto dos
seis cisnes, a irmã, por meio do seu amor, liberta os seis irmãos da transmutação em cisne.
Ela permanece seis anos em silêncio e costura camisas de prímulas para os irmãos.
Essa é uma bela imagem do seu amor. Em oração, ela reflete sobre cada um dos seus irmãos,
borda para cada um uma camisa que lhe convém, pela meditação ela entra na imagem única
que corresponde a cada um dos irmãos. A projeção positiva do seu amor liberta os irmãos da
projeção negativa que a bruxa lançou sobre eles. Quando a moça — nesse meio-tempo tornada
rainha — deve ser queimada na fogueira por maquinação da bruxa, os seis cisnes voam no
devido tempo por cima dela. A rainha joga as suas camisas sobre eles, e eles se transformam
novamente em seres humanos. O amor da irmã os converteu em seres humanos novamente.
O que esse conto de fadas descreve corresponde à nossa experiência cotidiana. Na
proximidade de algumas pessoas, nos sentimos mal, temos a impressão de que emana delas uma
frieza que pode nos congelar. No círculo de determinadas pessoas viramos animal, o lobo
predador, o porco-espinho ou o coelho na frente da cobra. Outras nos sugam a força. Ou temos a
impressão de nos sujarmos perto delas. Sai delas uma projeção negativa. Elas têm uma irradiação
que percebemos no corpo e da qual nos enojamos corporalmente. Perto de outras, ao contrário, nos
sentimos bem. O nosso coração se aquece, entramos em contato conosco mesmos, com a nossa força,
com o nosso amor. O animal em nós se transforma novamente em ser humano. O ódio e o ciúme são
projeções negativas que podem ter um efeito quase mágico sobre nós e nos "enfeitiçar". O amor é
uma projeção positiva, que nos desperta novamente para a vida, que nos converte de novo em
verdadeiros seres humanos.
A maioria das pessoas pode entender que o amor humano nos cura. Mas como a experiência do
amor de Deus nos curaria? Muitos acreditam que pessoas que adoeceram por falta de amor humano na
infância precisam da experiência de amor humano para se curar. É como um equilíbrio. O que elas
receberam muito pouco quando precisavam as adoeceu. Elas só ganham saúde se recobram esse amor,
ou no acompanhamento de um terapeuta ou no processo de cura de almas; ou quando uma pessoa se
apaixona por elas e as "derrete" com o seu amor. Isso corresponde muito bem à nossa experiência, e na
maioria dos casos será assim. Mas, a meu ver, há também a cura das nossas feridas pela experiência do
amor de Deus. Não podemos comprar o amor de uma pessoa, podemos apenas esperar por ele até que
nos seja dado. O mesmo ocorre com o amor de Deus. Não podemos obtê-lo à força, nem por oração,
nem por meditação, nem por renúncia, nem por gozo. Mas podemos nos abrir para esse amor. Pois ele
já está aí. Ele nos circunda em tudo, na flor que exala perfume, no pássaro que canta. Precisamos apenas
perceber o amor de Deus. Mas se o sentiremos não depende apenas de nosso trato cuidadoso com as
coisas. Trata-se também, em última análise, de um presente pelo qual podemos esperar. Então ele pode
nos curar tal como o amor humano.
Uma mulher que sofreu muito e que vivia se desvalorizando me contou que nas férias pôde
passar por uma experiência intensa. De repente, ela se sentiu totalmente inteira. Notou em si uma
profunda paz. Ela alcançou uma unidade consig o mesma, mas também com Deus. Isso eliminou a
sua intranquilidade e a libertou da autodesvalorização doentia. Essa mulher tinha feito terapia por
um longo tempo. Sabia de todas as suas feridas. Podia explicá-las com precisão para qualquer um.
Mas esse conhecimento das feridas não a curou. Ela precisava de uma experiência profunda. Então
se deu não uma experiência mediada pelo amor de uma pessoa, mas uma experiência imediata de
Deus. Ela estava sozinha de férias e de repente, num passeio na montanha, se deu conta de que
tudo era bom. Ela se sentiu a si mesma, em harmonia consigo mesma, com a natureza e com tudo
que estava ao seu redor, em última análise se sentiu em harmonia com Deus. Isso curou as suas
feridas. Naturalmente, essa cura não significa que essa mulher nunca mais terá problemas com a
sua baixa autoestima. Os pensamentos depreciadores sempre reaparecerão. Mas ela tem alguma
coisa que pode contrapor a eles, não um insight brilhante, mas uma experiência que a transformou
por completo.
Ernesto Cardenal, em seu célebre Livro do amor, descreveu como o homem só é
verdadeiramente livre e são quando ama, quando permite no seu coração o amor de Deus, que
existe em tudo. Ele fala de Teresa de Ávila, segundo a qual, na câmara mais interna da nossa
fortaleza, Deus mora como amor, Deus está louco de amor por nós. "A nossa alma é a sala
luxuosa para a qual Deus tem uma chave. E se Ele não entra ela fica vazia" 29. Apenas se nos
voltarmos para dentro e descobrirmos Deus como amor no nosso interior é que nos tornaremos o que
realmente somos: pessoas criadas à imagem de Deus, que não são nada senão amor. A substância pura
do nosso ser é amor. E apenas quando os nossos olhos se abrem para essa profunda realidade nós nos

29
. Ernesto CARDENAL, Das Buch von der bebe, p. 27.
tornamos verdadeiramente humanos. Então não seremos mais determinados pelas nossas feridas e
ofensas, mas pelo amor que transforma as nossas feridas, que as modela como um grito de amor.
Cardenal sempre volta a falar da câmara interna, que está em nós e na qual Deus mora como amor:
"No interior de cada ser humano há um espaço, uma esfera totalmente pessoal, a que apenas Deus tem
acesso. Mas a maioria das pessoas ignora a existência desse espaço interno, e por isso o seu coração é
vazio e sem amor"30. Apenas quando descobrimos o amor divino na base de nossa alma é que
paramos de procurar cheios de sofreguidão e avidez, lá fora no mundo, a satisfação das nossas
necessidades. Muitos permanecem descontentes na sua busca de um amor que preencha todo o seu
coração. "Eles procuram a felicidade em coisas tão irrisórias como dinheiro, álcool ou no prazer com
toda a força dos seus sentidos, que está, contudo, determinada para a visão da bem-aventurança" 31.
Eles só poderiam experienciar verdadeira paz no seu coração, escreve Cardenal, "se se voltassem para
o seu próprio interior, para o grande, único amor que pulsa e respira neles" 32. Para Ernesto Cardenal,
a experiência do amor de Deus foi curativa. Antes da sua entrada na ordem dos trapistas, ele amou
de várias maneiras. Agora ele percebe que Deus o ama de maneira incomparável:
Meus amores anteriores me ensinaram o que esse amor significa. Sei como tu me amas, pois
eu também amei e sei o que é paixão e obsessão e loucura por alguém. E tu és louco por mim e me
amas com obsessão. Tu me amas com todas as minhas fraquezas, as minhas falhas, herdadas e
adquiridas, com todo o meu ser, tal como ele é, com toda a minha hipersensibilidade e o meu
temperamento, com todos os meus costumes e meus complexos. Tu me amas como sou33.
Essa foi para Cardenal uma experiência curativa, que deu à sua vida uma nova qualidade.
Antes, apesar da experiência de muitos amores por várias pessoas, ele se sentia muitas vezes sozinho à
noite, e os seus suspiros caíam no vazio. Mas agora ele pode dizer: "Quase sinto no meu interior, mais
profundamente dentro do que eu mesmo, a Sua respiração".
As feridas que cada um de nós arrasta consigo são, em última análise, condicionadas pela falta de
amor. Quando crianças, não fomos aceitos na nossa singularidade. Não experienciamos um amor
verdadeiro. Fomos usados em vez de amados. Os adultos nos usaram para suprir suas próprias
necessidades. E ignoraram nossas mais profundas necessidades. A falta de amor nos deixou doentes. A
cura só será possível se tivermos experiência do amor, se pessoas nos amarem incondicionalmente e se
no amor humano reconhecermos o infinito amor de Deus. Mas o amor de Deus não depende do amor
humano. Ele também está presente no nosso coração. Por isso não precisamos estar o tempo todo à
procura de pessoas que nos amem. Nas conversas, sempre ouço a queixa de alguém que desde a infância
anseia por amor, mas nunca o recebeu. Essas pessoas têm, com frequência, um anseio tão desmedido por
amor que ninguém se atreve se aproximar delas, pois qualquer um que tentasse lhes oferecer algum
amor seria totalmente monopolizado por elas. Suas super expectativas em relação ao amor de uma
pessoa lhes tornam impossível vivenciar o amor pelo qual anseiam. Na conversa, procuro
responder a essa queixa de duas maneiras. Por um lado, volto o olhar delas para o amor que elas já
experienciaram, o amor dos seus pais, dos seus amigos, para os inúmeros pequenos sinais de amor
que elas vivenciam diariamente, num olhar amigo, num presente, numa boa conver sa. Quando elas
se livram da desmedida das suas expectativas, descobrem esses sinais de amor por toda a parte. Por
outro, tento mostrar à pessoa que se queixa de falta de amor um caminho para o seu coração,
habitado pelo amor. Ela absolutamente não poderia ansiar tanto assim por amor se não o sentisse
em si mesma. Em vez de ir para fora com o seu anseio, ela deve, ao contrário, descobrir em seu
âmago a razão do seu anseio, o amor de Deus que já está nela. Quando imagina que Deus mora no
seu recinto mais íntimo como amor, que ali existem calor e doçura, ternura e carícia, e quando se
30
. Ibid., 45.
31
. Ibid., 28.
32
. Ibid., 29.
33
. Ibid., 50s.
entrega a esse amor, então ela pressente, na sua experiência de falta, que tudo já está nela. O amor
por que tanto anseia já preenche o seu coração. Precisava apenas descobri-lo. Preci sava apenas
acreditar nele e, na crença, vê-lo e senti-lo. A crença a liberta da cegueira, que a fez ignorar o amor
no seu coração. Se vejo o amor, também posso senti-lo. Ele poderá então desdobrar a sua força
curativa em mim.

Pegar o amor
Muitos querem afastar as suas feridas com várias atividades, ou para os homens para ter a
sua atenção, ou para Deus para comprar o seu amor. Mas, pela produção, elas nunca vão vivenciar o
amor que Deus lhes oferece. Elas mesmas querem curar as suas feridas. Porém, não conseguem. Elas se
extenuam e se enfraquecem cada vez mais — como a mulher com hemorragia, que quer comprar o amor
dando tudo (Mc 5,25-34). Ela dá o seu sangue, toda a sua força vital escoa dela. Ela representa as
mulheres que dão tudo numa relação e ficam cada vez mais fracas. Elas se esgotam no seu amor e
acabam por se sentir exangues. Quem muito dá também precisa de muito. Mas, em geral, essa pessoa não
consegue, pela doação, o que deseja. A mulher hemorrágica dissipa todos os seus bens com os médicos.
Se não recebe na relação o que deseja, ela quer obter a atenção dos médicos e terapeutas. E deve pagar
por isso. Contudo, aqui também ela não recebe aquilo por que anseia. Juntamente com as suas posses, ela
dá as suas possibilidades, as suas capacidades, seu talento, a sua força. Ela faz muito pelos outros, a fim
de comprar a atenção deles. Ela dá tanto porque precisa de muito amor. Anseia por amor. E crê só poder
atingir esse amor dando tudo que possui, a sua vida, os seus bens. Mas dando tudo o que tem para
finalmente ser amada ela piora cada vez mais. Fica vazia e esgotada, toda a sua força se esvai no sangue.
A sua cura pode se iniciar apenas quando ela para de querer comprar o amor dando coisas e começa a
pegar o amor que já existe, que vem ao seu encontro em Jesus. Ela toca na bainha da túnica de Jesus. Ela
agarra. Não pede atenção, mas a toma para si. Ela estende a mão para a túnica de Jesus. Ela o faz
secretamente, porque ainda não quer confessá-lo para si mesma. Ela se identificou tanto com o seu papel
de doadora que o ato de pegar lhe foi difícil. Por isso ela o faz às ocultas. E apenas pegou na orla da
túnica de Jesus, e já experienciou o amor pelo qual sempre ansiara. O amor está aí. Precisamos apenas
agarrá-lo. Então ele vai nos curar. Jesus confirma a ação dela. Ele lhe diz amorosamente: "Minha
filha, tua fé te salvou; vai em paz e fica curada de teu mal" (Mc 5,34). Jesus fala com ela como
filha. Agora ela tem a experiência de atenção paternal. Agora existe uma relação pai-filha, em que
ela experimenta o amor pelo qual sempre ansiou. E a experiência desse amor lhe traz paz interior e
cura as suas feridas.

Fechar-se para o amor


Outra maneira de reagir à falta de amor consiste em nos fecharmos totalmente para não mais
sentir a dor que vivenciamos na ofensa. Existe um homem que quando criança escreveu numa
redação todo o seu amor e todo o seu entusiasmo, porque o tema o tocava pessoalmente. Quando o
professor devolveu a tarefa, rasgou a redação dele sem fazer nenhum comentário. O menino se
sentiu internamente dilacerado. O seu coração, que ele tinha aberto, foi rasgado. Então ele jurou que
nunca abriria o coração para mais ninguém, para não ser rasgado de novo.
O homem se encapsula. Mas ao mesmo tempo ele anseia por proximidade. Anseia poder
abrir o seu coração para uma pessoa que o ame incondicionalmente, junto à qual ele não precise ter
medo de ser rasgado, desmontado, analisado. Todavia não ousa seguir o seu anseio. É muito grande
o medo de magoar-se. Tão logo alguém se volta amorosamente para ele, ele se retrai com medo de
ser de novo tão cruelmente ferido. Ele precisou primeiro aprender lentamente a confiar nos
pequenos sinais de amor que as pessoas lhe oferecem para aos poucos se abrir onde ele percebe o
amor. O importante é que ele ouça o próprio coração. Ele não deve exigir muito de si mesmo. Deve
abrir-se para o seu medo e nã o pular por cima do medo com violência. Assim a confianç a lentamente
crescerá. Ao mesmo tempo também seria útil não apenas esperar o amor das pessoas, mas voltar-se
para o amor que já está nele, o amor de Deus que mora no âmago do seu coração. Se ele entrar em
contato com o seu coração e com o amor que ali mora, a desmedida do seu anseio acabará, ele se
livrará da compulsão de sempre se fechar. E poderá lentamente se abrir e reaprender suavemente o
viver.
Existe uma mulher que na infância vivenciou a sua casa como fria e impiedosa. A mãe era uma
generala, que só sabia dar ordens, incapaz para a ternura e o amor. Quando a filha conhece num
internato uma educadora que lhe dá atenção, o seu coração se abre. Pela primeira vez ela tem a
experiência de algo como o amor. Ela resolve não estudar mais, na intenção de ser reprovada e poder
ficar mais um ano no internato. Como não consegue isso, ela fica com tanto medo de precisar voltar
para a frieza da casa dos pais que toma comprimidos, não querendo mais viver. A fim de poder curar
essa profunda ferida, é preciso muito tempo, paciência e sobretudo amor que abra um espaço para
poder falar sobre essa frieza, pois se instalou nela uma profunda desconfiança em relação às pessoas e
a Deus. Ela anseia por proximidade, e ao mesmo tempo se defende contra isso, pois tem medo de
precisar desistir de si mesma. Não seria mais ela mesma. E, em relação a Deus, ela sempre tem medo
de que ele lhe "dê uma lição".
Assim, ela se fecha para Deus, no intuito de se proteger. Mas isso não é vida verdadeira.
Como essa mulher, em sua divisão, pode se conciliar consigo mesma? Ela gostaria de se entregar ao
amor de Deus, mas não consegue. É muito profunda a desconfiança em relação a esse Deus. É
preciso muita paciência e muito cuidado para comunicar a essa mulher, pela benevolência e pela
compreensão, o amor de Deus de tal modo que ela possa crer nele e renunciar às suas medidas de
segurança. Não seria útil apenas exortá-la a acreditar no amor de Deus. Deve ser possível sentir nas
palavras esse amor, ele precisa estar presente na atmosfera da conversa, para que ela também possa
crer nele. Mas o acompanhante não pode se pressionar a mediar, por meio de sua atenção, o amor de
Deus, pois é sempre um mistério da graça quando uma pessoa é tocada no coração pelo amor de
Deus. Um caminho para essa mulher poderia consistir em simplesmente agir como se fosse amada,
como se cresse no amor de Deus, pois em todas as suas dúvidas e desconfianças também está presente
o anseio pelo amor de Deus. Se ela, portanto, deixar uma palavra da Escritura que lhe prometa amor
entrar no seu coração sob o pressuposto de que tal palavra está certa, ela poderá pressentir que o amor
de Deus não é só uma palavra, mas a autêntica realidade. Thomas Merton diz que esse amor não é
irreal: "Pelo contrário, o amor é a única realidade" 34. A palavra que Deus dirige ao seu filho no
batismo, a mulher poderia deixar que se referisse a si mesma, deixá-la entrar no seu coração e, com
isso, afastar por uma hora todas as dúvidas, até que pudesse vivenciar também a palavra: 'Tu és minha
filha amada. Aprouve-me te escolher". Tu és importante para mim. És única. Ou ela pode, diante da
cruz, meditar sobre os braços abertos de Jesus e imaginar que ele os abre para ela, para abraçá-la, e
que ela é tão importante para Jesus que ele se sacrifica e morre por ela.
São especialmente difíceis de curar os amores feridos de mulheres que sofreram abuso
sexual. Elas amavam o pai e vivenciaram proximidade com ele. Eram as queridinhas do papai. Mas
isso foi comprado com abusos sexuais, que o pai interpretava para a criança como expressão do seu amor.
Isso produziu na criança uma profunda confusão de sentimentos. Agora ela tem medo de, em qualquer
relação de amor, ser novamente usada. Muitas mulheres se fecham então para o amor, para se proteger do
abuso masculino. Isso é compreensível e justificável. Mas elas deveriam aos poucos aprender a diferenciar
quando os homens despertam confiança e quando parecem abusivos. Outras mulheres reagem à ferida
vivendo apegadas aos homens. Elas se definem apenas a partir do homem. Isso parece paradoxal, pois
afinal foram bastante magoadas por um homem. Agindo assim elas dão continuidade à ferida que

34
. Ibid., 7.
sofreram na infância. Elas ferem a si mesmas porque não trabalharam a ferida da infância. Seu anseio é
que finalmente um homem satisfaça a necessidade que elas têm de um amor autêntico e puro. Como não
se curaram, são magoadas novamente. Justamente o caminho para dentro seria apropriado para a
verdadeira cura das feridas. Elas deveriam primeiro poder amar a si mesmas e desistir da ideia de que só
serão dignas de amar se amarem os homens. Elas são dignas e capazes de amar por si mesmas. No seu
coração já existe amor. O caminho para dentro consistiria em sentir o amor de Deus no coração e acreditar
nele. Ele poderia libertá-las do girar em torno do amor humano, que elas nunca vivenciarão como
esperam.

A ambiguidade do amor
A ambiguidade dessas pessoas que anseiam por amor e o rejeitam quando lhes é oferecido é descrita
de forma impressionante por Marcos na cura do possuído de Gerasa (Mc 5,1-20). Há um homem que vive
na frieza da morte. Ele mora nos sepulcros, está totalmente desvinculado do amor humano. Uma
mulher me contou que, quando bem pequena, morou numa caverna assim. A mãe não pôde construir
uma relação com ela, porque em segredo a censurava por não mais poder se separar do pai por causa
do nascimento dela. A mãe não podia amamentar o bebê, nem cuidar dele. Como reação, a criança
rejeitava a alimentação. Ela cresceu sem relação com a mãe. Nesse ambiente, desenvolveram-se
agressões. O possuído de Gerasa não se deixa dominar. Ele rebenta todos os grilhões com que querem
prendê-lo. E ele fere a si mesmo. Ele se golpeia com as pedras para chamar a atenção para si. Quem se
fere e se tortura o faz na esperança de que alguém veja a sua dor e a cure. O possuído grita dia e noite.
Quem grita quer atenção, em última análise grita por amor. Mas quando Jesus vem e o trata com amor
ele vitupera: "Que tens a ver comigo... não me atormentes!" (Mc 5,7). Na frieza da falta de amor, ele
vivencia o amor de uma pessoa como tormento. Ele é atraído por esse amor, mas não pode aceitá-lo,
pois ele derreteria a sua geleira sentimental. E isso lhe causaria dor. Ele se instalou de tal forma na sua
fria estrutura de vida que o calor de um amor pelo qual anseia lhe seria insuportável. Jesus quebra essa
resistência contra o amor iniciando uma conversa com ele, perguntando pela sua identidade e sua
história. A pergunta "Qual é teu nome?" (Mc 5,9) não é apenas a pergunta pelo nome, mas por aquilo
que o constitui. O possuído fala dos muitos demônios que habitam nele, e Jesus atende aos seus
desejos: só então ele se abre para o amor de Jesus, que o liberta dos demônios. No acompanhamento
espiritual, diante de uma pessoa que anseia por amor e ao mesmo tempo se fecha a toda atenção, às
vezes me sinto impotente para lhe abrir o olhar para o amor e para a vida. Jesus mostra aqui um
caminho: primeiro devo deixar que ela me narre toda a extensão de frieza e desespero, e devo aceitar
suas reflexões e estratégias. Só então a resistência pode aos poucos ceder. O gelo pode lentamente se
desfazer. E o coração se abrir para o amor.
A mulher que quando criança viveu na geleira da falta de relação puniu a mãe com atitudes
agressivas e a deixou totalmente desamparada nos seus sentimentos de culpa. Na terapia, ela, num
grito, exprimiu as suas agressões. Mas isso só fez aprofundar a sua dor. O caminho para fora da
geleira passa pelo seu próprio anseio por amor. Na infância, ela perseguiu esse anseio. Ela sabia
exatamente o que podia auxiliá-la. Ela corria para a floresta, onde ficava horas a fio sentada num
posto de observação. Lá, do alto, ela vivenciava algo do amor maternal da natureza.
Quando confia nesse amor maternal de Deus, que encontra na criação, ela não precisa mais,
como o possuído, bater a cabeça na geleira do seu abandono. Ela pode então olhar o abandono e, ao
mesmo tempo, descobrir o amor que a circunda, o grande amor de Deus, em que ela, abandonada
pela mãe, também é protegida e acalentada. Essa mulher não conseguia crer no amor de Deus. Para
ela Deus, não importa se como pai ou como mãe, estava muito longe. Mas na natureza ela se sabia
encoberta por um amor maternal. E esse amor, que ela experienciou na criação, foi a sua trilha de
vida, na qual ela reaprendeu a viver e a amar.
7.
Caminhos psicológicos e espirituais da cura

Não quero aqui escrever nenhum tratado sobre a relação entre os acompanhamentos
espiritual e psicológico. Há muitos livros que tratam disso. Gostaria apenas de relatar algumas
experiências que tive na área de acompanhamento espiritual. Para mim é importante que eu leve a
sério o nível psicológico. Não posso saltá-lo colando em cada ferida um esparadrapo espiritual. Mas
o acompanhamento espiritual não pode copiar a terapia. A sua meta genuína consiste em enviar a
pessoa para um caminho em que se aprofunde cada vez mais no mistério do amor de Deus por ela e
que a torne cada vez mais capaz de amar a si mesma, ao próximo e a Deus. Que a capacidade de
amar é o objetivo do acompanhamento, os psicólogos também o diriam. Para Rogers, por exemplo,
o objetivo é que o paciente no decorrer da terapia se abra cada vez mais para as experiências da sua
vida, que trate a si mesmo e aos outros com mais ternura, que fique mais atento e cuidadoso, pronto
para encarar a verdade e se aceitar e se amar com toda a sua verdade. No acompanhamento espi-
ritual, não importa apenas a ação do conselheiro pastoral mas também a abertura para a graça do
Espírito Santo, que na conversa influi em ambos os lados. E se trata de vivenciar o amor de Deus
como o fundamento da vida.
No acompanhamento espiritual e no terapêutico, abordam-se com frequência os mesmos temas.
Fala-se a respeito das feridas da infância, da agressão e da sexualidade, do medo e das disposições
depressivas, do abandono e da solidão, da angústia e da paralisação, da divisão e da obsessão. Mas
também sempre aparece no acompanhamento espiritual a pergunta: "O que significa isso tudo para a
sua relação com Deus? Como você lida com isso, por causa da sua crença no amor incondicional de
Deus? Para onde essa experiência quer conduzi-lo?". Não se trata apenas de trabalhar as feridas da
infância, mas de vivenciá-las como um salto para o amor de Deus. Isso talvez soe como um salto beato.
Mas não é essa a intenção. Devo primeiro enfrentar a minha verdade, as minhas feridas, a dor e a raiva
que a lembrança das feridas causa em mim. Devo entrar nos sentimentos da raiva e da dor. Não posso
passar por cima delas, por uma espécie de "spiritual bypassing"35, num encurtamento espiritual, que
parece ser bem mais fácil do que ter de enfrentar a realidade dolorosa. Em muitos círculos cristãos,
pula-se o passado com muita rapidez. Uma mulher me contou que viviam lhe aconselhando que não
olhasse o seu passado. As pessoas lhe diziam que Jesus Cristo o tinha resolvido, que o tinha tirado
dela. Mas essa autoritária proibição de olhar o passado nasce antes do medo dele do que da confiança
de que eu, com o meu passado, estou nas boas mãos de Deus. As feridas da infância voltarão a surgir.
A crença sozinha não me livra do caminho que Cristo exige de mim, o caminho da descida ao reino das
sombras da minha alma, em que foi preso tudo o que eu por muito tempo não quis olhar, porque me
era desagradável e não correspondia ao meu ideal cristão.

A ferida remete ao amor


Não se trata de evitar, mas de olhar conscientemente as minhas feridas. Mas não posso parar
nisso. Em algum ponto surge a questão de como lido com o meu passado, o que posso fazer dele, e se
estou pronto para assumir a responsabilidade pela minha vida. No acompanhamento espiritual as
perguntas ainda continuam: "Como lido com a minha ferida? Devo trabalhá-la sozinho? Qual é a graça
de Deus? Como posso, com as minhas feridas, acreditar no amor de Deus? Até que ponto o amor de
Deus pode transformar as minhas feridas? Não é justamente o meu fracasso que pode me introduzir
mais profundamente no mistério do amor de Deus? Por meio das minhas feridas, o meu ego não se
rompe, para me abrir para o Deus indisponível e incompreensível?". Formular essas perguntas não

35
. Em inglês no original: "atalho espiritual". (N.d.R.)
significa que logo terei pronta uma resposta devota. No entanto, elas me incitam a abandonar o meu
lamento sobre as feridas e confrontar a minha realidade com minha fé. A minha fé no amor de Deus é
apenas uma aparência beata ou pode transformar as minhas feridas? A fé no amor de Deus não é uma
droga maravilhosa que age em qualquer ferida. Para mim, a fé no amor incondicional de Deus é um
auxílio para enfrentar sem medo as minhas feridas. O amor de Deus é, para mim, uma atmosfera
curativa, em que posso tirar a bandagem dos meus ferimentos para que o hálito curativo de Deus sopre
sobre eles. As minhas feridas querem me impulsionar justamente para o amor de Deus. Elas me
mostram que dependo da graça e do amor de Deus, que não posso curá-las sozinho. A ferida pode me
abrir para o amor de Deus. O amor de Deus pode se derramar no lugar aberto. Então, de repente
sinto, apesar de tudo, uma profunda paz interior na minha ferida. A ferida não deixa de doer. Mas
paro de remexer nela. Sinto na ferida que sou aceito e amado por Deus. Isso transforma a dor do
ferido na dor do amado, que é mais fácil de suportar. A ferida se torna o lugar da experiência de
Deus.

Mistagogia (iniciação) no amor de Deus


Um caminho no qual minhas feridas podem ser curadas consiste na experiência concreta do
amor de Deus. O acompanhamento espiritual pretende conduzir as pessoas para dentro dessa
experiência. É uma tarefa mistagógica do acompanhamento espiritual. A mistagogia é a arte de
mostrar às pessoas a presença e a proximidade curativa de Deus e indicar-lhes o caminho para a
experiência imediata dele. A pergunta é: Como podemos hoje, no acompanhamento espiritual,
cumprir adequadamente essa tarefa mistagógica? Como podemos conduzir as pessoas sofredoras à
experiência do amor de Deus sem que isso seja cínico e sem que se ofereçam soluções devotas de
forma muito precipitada? Henry Nouwen, em seu livro Tu és a pessoa amada, tenta dar a
indivíduos que vivem num mundo secular e perguntam pelo sentido da vida uma resposta a partir da
sua própria crença pessoal. Um amigo dele o interpelou: "Fale-nos do anseio mais profundo do
nosso coração... não sobre novos métodos de satisfazer nossas necessidades emocionais, mas sobre
o amor"36. E, enquanto Nouwen refletia em como responder sobre os anseios mais profundos desse
jovem, surgia o tempo todo no seu coração a palavra "amado". "Você é totalmente amado por
Deus".
Nouwen vê nisso a resposta às verdadeiras necessidades do homem. Reconhece nisso a mais
importante tarefa do acompanhamento espiritual: comunicar às pessoas que elas são os filhos e filhas
amados de Deus. Ao mesmo tempo, no entanto, Henry Nouwen luta longamente com outra questão:
como introduzir na experiência de Deus pessoas atuais, que vivem num ambiente puramente mundano,
o qual parece ser intocado por Deus. Seu amigo, que sempre o está exortando a essa tarefa, lhe dá o
conselho: "Confie no seu coração. Então você encontrará as palavras''37. Também pretendo confiar no
meu coração quando falo do acompanhamento espiritual como um caminho para iniciar as pessoas na
experiência do amor de Deus.
A terapia pretende fazer que o paciente possa se aceitar e se amar. Nisso ela também lhe abre
os olhos para as pessoas que o amam. Cada um precisa da experiência de ser amado por causa de si
mesmo. E todo terapeuta sabe como é difícil levar as pessoas que duvidam de si mesmas e de todo
amor que lhes é oferecido a saber que são amadas e a poder amar a si mesmas. Quem duvida
substancialmente de si mesmo questiona todo amor que vivencia. Essa pessoa acha que os outros não a
amariam realmente. Só o fariam para que ela desse sossego, para acalmar sua consciência pesada, para
que os demais os chamassem de benfeitores. O terapeuta não o amaria realmente, mas apenas lhe
mostraria a sua benevolência porque isso faz parte do seu trabalho terapêutico. Há mil razões que as
36
. Henry J. M. NOUWEN, Du bist der geliebte Mensch. Religiõses Leben in einer sãkularen Welt,
Freiburg, 1993, 20.
37
. Ibid., 22.
pessoas não amadas alegam para não precisar acreditar no amor, pois obviamente a crença no amor
colocaria de cabeça para baixo o edifício da sua vida. Elas não poderiam mais se entrincheirar por
trás do papel de vítima segundo o qual o s outros são culpados pela miséria delas. Elas precisariam
romper a couraça que vestiram para não precisar sentir mais nada. Quando crianças, juraram que
não dariam chance ao amor, para nunca mais ser feridas. Apesar do seu forte anseio por ser amadas,
elas se proibiram o amor, porque não queriam tolerar a dor que também sempre está vinculada ao
amor.
O caminho da terapia não se limita apenas a capacitar o paciente, com base no amor que ele
vivenciou, a amar a si mesmo. Também faz parte da convalescença espiritual que o indivíduo se
torne capaz de amar os outros. Quem se ama não gira o tempo todo em torno de si, não se apega
sempre a si mesmo, mas se abre para os outros. Como na terapia ele se abriu para olhar para si
mesmo em toda a sua verdade, ele também tem um olhar para a necessidade do outro. E está
disposto a se envolver com os outros, e não apenas a ajudar o outro na sua necessidade, mas
também a seguir o seu próprio anseio e permitir a proximidade de pessoas que o atraem. Faz parte
da saúde a capacidade de se deixar amar, de permitir o amor e amar também. Assim, a capacitação
para o amor ao próximo é também uma meta da terapia.
O acompanhamento espiritual dirige o olhar para o amor de Deus, passando pelo amor que o
acompanhado experienciou dos outros e pelo amor que ele pode dar às outras pessoas. Sua arte
consiste em comunicar ao acompanhado que ele é incondicionalmente amado por Deus. É uma arte,
pois não basta apenas prometer essas palavras ao outro. As palavras de que o acompanhado é filho
amado de Deus devem, no outro, ressoar em cada célula do seu ser. Henry Nouwen introduzia
conscientemente a voz de Deus nas muitas vozes que as pessoas ouviam a respeito de si: "Você não
serve para nada, você é horrível, fútil, inútil, você não é ninguém — ou então prove o contrário!" 38.
Quando aponto o amor de Deus justamente para situações em que alguém não pode se amar, em que
alguém se sente rejeitado e profundamente inútil, o bloqueio pode às vezes ser derrubado e o outro
pode — talvez ainda bem fragilmente — acreditar que é amado na base da sua existência. Às vezes,
o acompanhante tem a sensação de falar para ouvidos surdos.
Ele deve lidar mais cuidadosamente com as suas palavras. Elas devem estar cobertas pelo seu
carisma e pela experiência que ele transmite. Às vezes as palavras sobre o amor de Deus soam
exageradas e falsas. Tem-se a impressão de que o outro fala tanto e fica eufórico porque no fundo do
coração ele mesmo não pode acreditar que é realmente amado.

A experiência curativa do amor de Deus


Ernesto Cardenal, nas suas meditações sobre o amor, tentou abrir os olhos das pessoas para
o fato de que o amor de Deus as circunda em toda a parte, de que tudo é expressão desse amor
divino. Não conheço ninguém que não tenha se encantado de algum modo com essas palavras. Mas
uma coisa é deleitar-me com as suas palavras, outra é tentar realmente crer nelas. Crer não significa
apenas tomar por verdadeiro, mas tentar abrir-me, com todos os sentidos, para o que Cardenal me
promete:
O amor de Deus me circunda por todos os lados. Seu amor é a água que bebemos, o ar que
respiramos e a luz que vemos. Todos os fenômenos naturais não são mais do que formas materiais
diferentes do amor de Deus. Nós nos movemos em Seu amor como o peixe na água39.
Não é preciso apenas a crença para poder vivenciar essa realidade. Devo também lidar de
nova maneira com a água, com o ar, com a comida. Devo imaginar em cada gole de água que
bebo o amor de Deus. E em cada gole de vinho devo poder dizer com o apaixonado do Cântico

38
. Ibid., 26.
39
. Ernesto CARDENAL, Das Bucb von der Liebe, 34.
dos Cânticos: "Mais doce que o vinho é teu amor". O lidar atento e cuida doso com todas as
coisas pode me revelar que encontro o amor de Deus em tudo, que em tudo toco no amor de
Deus por mim. Isso modificará minha vida. Vou parar de me queixar de que ninguém me ama,
de que desejo tanto proximidade mas não a vivencio porque ninguém se importa comigo, porque
ninguém me acha digno de amar. O amor me rodeia. Preciso apenas agarrá-lo. Assim como
muitos não querem acreditar no amor dos seus pais ou amigos, eles também se recusam a crer no
amor de Deus, que também os circunda de forma tão real como o amor dos seus pais.
Mas como uma pessoa que viveu a perda de um ente amado ou vivenciou a infância como
um inferno pode crer no amor de Deus? Não posso tomar o amor de Deus como um consolo e
colá-lo na ferida supurante. Devo primeiro, de modo cuidadoso, olhar a ferida e envolvê-la em
atadura. Isso é expressão do amor de Deus, ao passo que palavras muito precoces sobre o seu amor
podem parecer fuga da realidade e um fechar-se para a dor do outro. Muitas pessoas têm uma ex -
periência espiritual justamente na mais profunda dor devida ao fracasso, ao colapso de uma
amizade, à perda da pessoa amada. Se lhes é tirado tudo sobre o que construíram a sua existência,
elas pressentem de repente que profundamente formam uma unidade com a base de todo ser e que, a
despeito de toda decepção, no fundo tudo é bom. Eles não designariam isso corno experiência de Deus. Para
mim o acompanhamento espiritual significa olhar, juntamente com a outra pessoa, as experiências dela de tal
forma que ela reconheça nisso o seu anseio e o seu pressentimento de um amor de Deus que a carrega.

Os vestígios do amor na infância


Para mim não basta apenas lidar amorosamente com as pessoas feridas. Como uma pessoa que sofre
com o abuso que conheceu, com o fato de ter apanhado, ter sido rejeitada, desvalorizada pode, contudo, crer no
amor de Deus? Um caminho é a promessa desse amor. Outro caminho consiste em buscar os vestígios do amor
de Deus já na situação das feridas. Onde a criança experienciou algum amor apesar de toda frieza e toda
crueldade do seu ambiente? Onde estavam as pessoas paternais ou maternais que lhes transmitiram uma intuição
de amor? E onde a criança se sentiu amada apesar de tudo? Onde ela podia se entregar? Onde ela gostava de
estar? Onde podia se esquecer? Uma mulher, que nos últimos anos de guerra só experienciou medo junto dos
adultos e só se lembra com desgosto do bunker úmido e escuro e das casas apertadas em que viviam crianças
estranhas e onde não se sentia à vontade, experienciava proteção e amor nesse mundo sem lar quando podia
dormir na sua própria cama, quando puxava a coberta sobre a cabeça e desfrutava o calor. Nesse momento havia
um pouco de segurança nela, mais profunda do que a que podiam oferecer as pessoas. Havia um pressentimento
do amor de Deus em meio ao desamor das pessoas. Hoje essas lembranças podem ajudá-la a crer no amor de
Deus, nas muitas vezes em que ela se sente sozinha e mal compreendida, em que sofre consigo mesma e
sua personalidade fechada. Então ela intui: há uma coisa diferente dos meus problemas, da minha
incapacidade de lidar com a minha vida. Existe o amor de Deus, que me envolve neste minuto, que
posso sentir, quando posso me encolher na minha cama quente, um amor que posso inalar, que
posso sentir diretamente no calor do sol.

A meditação das promessas bíblicas de amor


Outro caminho para vivenciar o amor de Deus na experiência do desamor é a meditação de
textos bíblicos. Existem, por exemplo, as maravilhosas palavras dos profetas que nos prometem
esse amor. Devemos deixá-las entrar em nós, dizê-las diversas vezes e meditar sobre elas.
Devemos deixar de lado e guardar para o dia seguinte as dúvidas que surgirem com tais palavras.
Devemos simplesmente agir como se as palavras da Bíblia estivessem mesmo certas. Então elas
falarão ao nosso anseio de ser amados e ampliarão o nosso coração. Se está certo o que diz Deus
em Jeremias — "Eu te amo com um amor de eternidade ; eu faço durar minha fidelidade para
contigo" —, como posso ver a minha história de vida? Como posso olhar para as minhas feridas?
Qual a vivência que tenho de mim mesmo agora que o amor eterno de Deus se refere a mim
pessoalmente? Isso é muito bonito para ser verdade? Ou posso viver disso? Essas palavras podem
mediar outra visão para a minha vida? À luz dessas palavras posso dizer sim para mim mesmo,
conciliar-me com a minha história de vida, comigo mesmo?
No Livro de Oséias, Deus fala a Oséias: "Quando Israel era menino, eu o amei ; e do Egito
chamei o meu filho. Quanto mais eu os chamava, tanto mais se iam da minha presença" (Os 11,1s.).
Com essa palavra, eu poderia rever a minha história de vida. Talvez também tenha sido esta a minha
história: quando criança eu fugi de Deus porque outra coisa era mais importante para mim, porque os
Baals me interessavam mais, porque o sucesso e o reconhecimento eram mais importantes para mim.
Quando revejo a minha história e imagino que em todos os meus caminhos, rodeios e trilhas erradas
Deus me amou, nunca afastou a sua mão amorosa de mim, então vejo a minha infância com outros
olhos. Então posso pressentir que o amor de Deus também me circundava onde eu não o percebi
porque o desamor das pessoas me feria. Então, depois da raiva e da dor pelas feridas, também se
levantará em mim o pressentimento de amor e de ser-amado: também com as minhas feridas e nas
minhas feridas sempre fui o filho amado, a filha amada de Deus.

Condução cuidadosa ao amor de Deus


Muitas vezes, temos uma falsa concepção do amor de Deus. Achamos que Deus só nos amaria
se também realizasse os nossos desejos. Uma mulher que aos 40 anos ainda não se casou, embora
anseie por isso, sempre reza a Deus para que lhe dê um marido, com o qual possa seguir o seu
caminho. Mas o seu pedido não tem sucesso. Nem sempre o amor de Deus se mostra no cumprimento
dos nossos pedidos. Não faz nenhum sentido dizer a essa mulher que ela deve rezar mais ou pedir
com maior confiança para ter o que quer. Tampouco faz sentido dissuadi-la do seu anseio de
encontrar um marido. No entanto, ela deve se livrar da fixação num relacionamento com um homem,
como se apenas um homem pudesse lhe trazer felicidade. Com o seu anseio, ela sobrecarregaria
qualquer homem. A meu ver, o caminho correto parece ser pensar o seu anseio até o fim: O meu
mais profundo anseio será satisfeito se um homem me amar? Ou meu anseio vai mais longe? E
tento lhe mostrar que, como solteira, pode ter uma experiência concreta do amor de Deus, e que o
amor de Deus a rodeia. Ela não precisa rogar por esse amor. Ele já está aí. Ela pode desfrutar o
amor de Deus vivendo os seus dias conscientemente, desenvolvendo rituais que lhe fazem bem,
aprendendo a saborear as suas refeições, alegrando-se com os encontros com as pessoas, vendo
com novos olhos as crianças para quem leciona na escola. O amor de Deus não se torna aqui um
substituto para o fracasso em conseguir um companheiro, mas a liberta da fixação na felicidade
através de uma pessoa humana. Quando espero felicidade apenas de uma pes soa, necessariamente
me decepciono. Com frequência, a experiência do amor de Deus, que me dá paz na minha solidão,
é também a possibilitação de um companheirismo. Porque quando estiver contente comigo mesmo,
quando sozinho também for uma pessoa do amor, uma pessoa amada que irradia amor, também
encontrarei um companheiro, se isso convier para mim. Mas também posso muito bem viver
sozinho. Sinto que é relativo se estou sozinho ou num relacionamento. O decisivo é que eu viva do
amor e que eu mesmo ame.
Uma mulher que sofreu abuso quando criança deve primeiro, naturalmente, permitir a dor e
a raiva, para aos poucos se livrar do poder do perpetrador. Mas só o ato de olhar e examinar não
cura a ferida. Para mim é importante aqui a dimensão espiritual. Há a imagem do espaço interno,
que é intocável, em que o próprio Deus mora em mim, em que ninguém pode me ferir, em que
minha dignidade não sofre danos. Esse espaço interno está repleto do amor de Deus. O ódio e a
avidez dos homens não encontram acesso a ele. A ferida do abuso não se estende até esse espaço do amor.
Nele a mulher é totalmente sã, íntegra, incólume, sagrada. Outra ajuda espiritual para lidar com o abuso é a
fé de que o terno amor de Deus pode curar as feridas. Uma mulher me mostrou uma imagem que ela pintou
sobre o pano de fundo do abuso que sofreu: um coração rasgado, do qual jorravam lágrimas. Quando lhe
perguntei por seu mais profundo anseio, ela disse ansiar que Jesus a curasse. Mas ao mesmo tempo sentia
que esse Jesus estava muito longe dela. Ela não o sentia, nem à sua força de cura. Dei-lhe a tarefa de
colocar a mão sobre o coração e sentir o calor que, na respiração, saía de sua mão para o coração. E devia
imaginar que o amor de Jesus fluía através de sua mão para o coração e que uma cicatriz curativa se
formava ao redor desse coração ferido. Quando o amor de Deus é experienciável, quando se é capaz de
senti-lo no corpo, ele também pode desdobrar a sua força curativa. Naturalmente, esse não é um truque para
curar a ferida. Mas se acredito que o amor de Jesus se derrama em mim então posso, por meio dessa
meditação, vivenciar alguma coisa do amor curativo de Deus.
Um homem que tinha desistido de si mesmo e não queria mais viver não conseguia aceitar a oferta
do amor de Deus. De algum modo, ele acreditava que Cristo também morreu por ele, que ele era importante
para Deus e que Deus o amava. Mas na verdade ele absolutamente não queria crer nisso. Queria se desligar
da vida. Estava cheio de tudo. Não queria prosseguir. Tudo era demais para ele. Não via mais nenhum sen-
tido na vida. É difícil falar do amor de Deus numa situação assim, pois as palavras parecem muito devotas e
distantes da situação desse homem. Tentei abordar o seu anseio. Não havia nele o anseio por um amor em
que ele pudesse confiar, que se referisse a ele pessoalmente? O anseio existia. Mas ele não queria
permiti-lo, pois isso o deixaria inseguro. Apareceria a ideia de que a vida é digna de viver. Não sei
ao certo se foi quebrado o seu bloqueio para que o amor de Deus entrasse nele. É sempre um
mistério que alguém realmente se abra e tire a couraça que vestiu ao redor de si. Também aqui não é
um caminho usar o amor de Deus apenas como consolação ou apenas falar da proteção que o amor
de Deus proporciona. Preciso levar a sério a sua decepção, o seu desespero, o seu fracasso, o seu
fastio. Quando olho isso com ele, sem tentar dissuadi-lo, quando penso com ele o seu desespero até o
fim, talvez então ele descubra que esse desespero estilhaça o seu ego, a sua autocerteza, o seu
edifício de vida erguido por ele mesmo, e que uma profunda experiência espiritual poderia ser
justamente a de Deus erguer-se no nada. Nem sempre o amor de Deus propicia apenas proteção ; ele
me aparece justamente quando tudo em mim está em pedaços. Em meio à dor pelo meu fracasso
pressinto que sou profundamente amado. Não deliro com esse amor, mas me rendo a ele e fico
totalmente calmo e humilde, e livre de mim mesmo.
Um padre que sempre voltava para casa contrariado com os conflitos da sua comunidade
precisava se retirar na caverna do seu quarto, onde — envolto na presença curativa e amorosa de Deus
— ele se regenerava. Também posso me retirar para me embebedar ou me distrair com a televisão. Mas
isso não ajudaria. No entanto, quando imagino que a minha cela é o lugar em que Deus mora em mim,
então posso me curar no seu amor. Os monges conhecem a frase Cella est coelum — a cela é o céu —,
em que o monge conversa com Deus como com um amigo, em que ele se sabe cercado pelo amor de
Deus. É um Deus maternal, que me envolve com o seu amor. Retirar-me, com os meus conflitos e a
minha frustração, para a caverna do amor divino pode ser salutar. Mas não posso ficar para sempre
na caverna. Assim como Elias, devo sempre subir à montanha, me expor à vida com os seus
conflitos e me deixar desafiar por Deus. Deus não é apenas o Deus maternal que me cerca com o
seu amor, mas também o Deus paternal que me faz sair e me desafia.
Entendo que o acompanhamento espiritual deve sobretudo conduzir cuidadosamente as
pessoas ao amor de Deus, conduzi-las com as suas feridas e os seus conflitos, com os seus padrões
neuróticos, com os seus medos e bloqueios. Em minha forma de falar e me envolver com elas devo
transmitir-lhes algo do amor de Deus. O outro terá possibilidade de sentir o amor divino se eu não
avaliar e condená-lo, mas mostrar-lhe que tudo nele pode ser, que vejo tudo com um olhar
benevolente e terno. Mas não devo me pressionar como se precisasse, com o meu amor, rebentar a
couraça do desamor. Assim eu estaria exigindo demais de mim. Eu não seria transparente para o amor
de Deus; estaria em jogo apenas a força do meu próprio amor, a minha ambição de poder curar o outro
por meu amor. Mas não há em mim tanto amor assim para que eu possa dissolver todas as recusas de
amor. Às vezes, o acompanhado também se esconde por trás da sua couraça e quer me imputar a
culpa quando não se cura e não consegue crer no amor de Deus, quando as minhas palavras não o al-
cançam. Então percebo que ele quer passar para mim a ferida que sofreu na infância. Ele me faz
correr de encontro ao muro atrás do qual se esconde e espera até que eu bata a cabeça a ponto de
sangrar. Se caio nessa armadilha, não consigo transmitir mais nada para o outro. Devo aceitar os meus
limites e respeitar a liberdade do outro. Se ele quer continuar se enterrando por trás da sua couraça, é
uma decisão dele. Só posso aguardar na esperança de que, em algum momento, o anseio pelo amor
fique mais forte do que o medo de se mostrar na sua carência.
A arte do acompanhamento espiritual consiste, a meu ver, em falar do amor de Deus de
modo tal que ele não pareça um emplastro beato que se cola sobre as feridas. Padres que falam
muito precocemente do amor de Deus não querem olhar as feridas. Porque elas lhes são
desagradáveis, porque não cheiram bem, eles querem cobri-las o mais rápido possível com um
emplastro. Mas o bálsamo do amor divino só poderá curar se for passado sobre a ferida, se a
ferida for olhada com amor. Devo descer juntamente com o acompanhado ao pântano da sua
história de vida, devo procurar sentir a dor das feridas dele. Devo primeiro entendê-lo, apoiá-lo,
ficar ao seu lado, resistir à dor com ele. Só então posso falar cuidado samente sobre o amor de
Deus. Nem sempre consigo falar sobre o amor de Deus de tal modo que ele repercuta no outro. Às
vezes isso se deve à enorme recusa do outro. Às vezes eu mesmo não sou sensível o suficiente à
condição sentimental do outro. Então devo sempre pensar no meu sonho de que devo
cuidadosamente aproximar as pessoas do amor de Deus. Eu então me recolho e entro no outro
pela meditação para sentir qual é o seu mais profundo anseio e o que o impede de entrar em
contato com ele.
Mas conheço em mim não só a incapacidade de conduzir cuidadosamente ao amor de
Deus. Muitas vezes fico paralisado nos problemas do acompanhado. Eu me limito ao nível
psicológico, embora seja um acompanhante espiritual. Contudo, conseguimos falar melhor sobre
o nível psicológico. Há métodos mais claros para examiná-lo. Noto então em mim que eu mesmo
não julgo o amor de Deus capaz de muita coisa, que prefiro confiar nos métodos da terapia a
confiar na realidade do amor divino. Então devo sempre perguntar: O que realmente o ajuda? Do
que você vive no mais profundo do seu ser? O que o sustenta? O que o motiva? O que o ajuda a se
reconciliar com as suas feridas? Por que você se levanta dia após dia e se encarrega de tanta coisa?
Em última análise, o que o faz ir adiante? Quando respondo honestamente a essas questões, sempre
deparo com o amor de Deus como a verdadeira mola propulsora da minha vida. Mas não raro essa
mola está coberta por outros motivadores, como o sucesso, a aprovação e a atenção. Assim, o
acompanhamento espiritual é para mim sempre também uma chance de me encontrar a mim
mesmo e perguntar pelo verdadeiro motivo da minha vida.
A terapia tem seus métodos de acompanhar uma pessoa em seu processo de individuação. A
tradição espiritual desenvolveu muitos métodos espirituais de como, no nosso caminho, avançar em
direção a Deus. Aqui os métodos são apenas auxiliadores. Se teremos ou não experiência de Deus é,
em última análise, uma graça. Para mim, faz parte do acompanhamento espiritual examinar os
caminhos concretos e abordar como o indivíduo pode experienciar o amor de Deus na vida dele. Se
alguém se enche de trabalho o dia todo, não pode se surpreender por não se sentir amado por Deus.
Também precisamos de lugares e momentos em que nos expomos conscientemente ao amor de Deus,
exatamente como um amor humano também precisa de tempo para se exprimir e se aprofundar. Se
um casal não arranja mais tempo um para o outro, logo o seu amor também se desvanece. Lugares e
momentos para experienciar o amor de Deus são diferentes para cada um. Um se sente cercado pela
natureza do amor de Deus. O outro o percebe quando ouve música, quando é todo ouvidos e deixa a
música entrar em si. Para outro a leitura é um lugar importante. Lendo as experiências alheias, ele
entra em contato consigo mesmo e com o seu anseio. Para um outro ainda, rituais desenvolvidos
por ele mesmo são o lugar em que ele sabe que está envolvido pelo amor de Deus. Para mim é
importante, durante o Pai-nosso em nosso ofício divino matinal, cruzar as mãos sobre o ombro e
sentir o amor de Deus em mim. Quando sinto calor através das mãos, então posso ter certeza de
que o amor de Deus é o fundamento pelo qual gostaria de viver hoje.

8.
A DÁDIVA DO AMOR

O amor, nos diz a Bíblia, é a dádiva de Deus aos homens, é expressão da divina bênção da
criação. O ser humano simplesmente encontra o amor. Este lhe é dado. Ele o vivencia, quer queira
quer não. O amor pode adoecê-lo ou encantá-lo. É como uma brasa que arde nele. É como uma
torrente que o arrasta. O amor aqui não é apenas o amor entre homem e mulher, mas também o amor
aos filhos,
amor às pessoas, à natureza, o amor como disposição básica e atitude, que marca todo o nosso pensar
e todo o nosso agir, é o amor entre Deus e o ser humano. Na Bíblia há dois hinos ao amor: no Antigo
Testamento, uma coletânea de cânticos de amor erótico, e na Primeira Epístola aos Coríntios a
descrição do amor pelo apóstolo Paulo. Não posso escrever sobre o amor sem recorrer a esses textos
bíblicos clássicos.

O Cântico dos Cânticos


O Cântico dos Cânticos é uma coletânea de canções de amor que cantam o mistério do amor
entre homem e mulher em imagens insuperáveis. Surgiu provavelmente no século IV ou III a.C., no
âmbito da literatura judaica sapiencial. Enquanto o Livro de Tobit descreve o amor matrimonial como a
consumação da vontade criacional de Deus, no Cântico dos Cânticos o prazer um com o outro e também
o prazer sexual são vistos positivamente. O amor sexual e erótico aparece aqui como um presente de
Deus aos homens, que o ser humano pode desfrutar por completo. Ele o enfeitiça. É uma força superior,
já dada com a criação. O homem não precisa aprendê-la. Ela simplesmente recai sobre ele. O Cântico
dos Cânticos mostra uma misteriosa tensão entre o amado e a amada. As suas canções de amor
exprimem o anseio por união, "a felicidade do encontro e a dor da separação. Aqui a perplexidade é
total. O indivíduo quer estar sempre e exclusivamente junto, mas ao mesmo tempo pressente que isso
não é possível"40.
A linguagem figurada do Cântico dos Cânticos bebe na fonte das canções de amor do Egito,
da Síria, da Mesopotâmia e da Palestina. Aqui se empregam atributos das deusas do amor da Ásia
Menor para a descrição da noiva. A amada é descrita com as imagens do inconquistável. O seu
pescoço, os seus seios, o seu nariz são como uma torre. Essas imagens não se referem à forma do seu
corpo, mas ao caráter inacessível da amada. A sua beleza, que se exprime no pescoço, no nariz e nos
seios, é para o amado inacessível como uma torre. Ele não pode forçar uma entrada. Isso se exprime
mais intensamente na imagem de que a amada virá "das tocas dos leões e das montanhas das
panteras" (Ct 4,8). A deusa do amor Ichtar é sempre representada com leões e panteras, que a
protegem, que dificultam o acesso a ela. A amada aparece como uma deusa, inacessível e ao mesmo
tempo atraente. O amado se consome de anseio por ela:

40
. Otmar KEEL, Deine Blicke sind Tauben. Zur Methaphorik des Hohen Liedes, Stuttgart, 1984, 13.
Tu me enlouqueces, minha irmã-noiva!
Com um só de teus olhares,
Com uma só pérola do teu colar.
Que belo é o teu amor, ó minha irmã-noiva!
Quão mais doce é teu amor do que o vinho! (Ct 4,9s.)
O amado é incapaz de resistir ao olhar da sua noiva. Do seu olhar de amor emana uma força
quase divina. Ao mesmo tempo, contudo, ele vê que a amiga é inacessível como uma deusa, acima
das trivialidades da existência humana.
Jardim fechado és tu, minha irmã, noiva minha, Manancial recluso, fonte selada (Ct 4,12).
Quando o amado pode ingressar no jardim fechado, quando pode desfrutar o amor da
sua noiva, ele a vivencia como fonte de nova vida, como fonte de alegria e prazer.
O amado é descrito de forma igualmente fascinante, como rei e pastor, que conduz a
mulher à vida e à sua verdadeira dignidade. A mulher está doente de amor. Está cheia de desejo
de levar o amado à sua casa. Ele é para ela "um bolsinho de mirra, posto entre meus seios" (Ct
1,13). A mirra é um cosmético que exala um perfume maravilhoso. A mulher carrega em seu seio
o bolsinho de mirra como um amuleto. Graças ao amado, a mulher fica mais bela e atraente. O
amor dá um novo sabor a tudo. E ela vivencia uma certeza que não lhe pode ser arrancada por
nada, nem mesmo pela morte. Ela quer ser para o amado um sinete no seu coração. O seu amor
deve expandir a vida dele e protegê-la da morte, pois, assim como um sinete deve manter longe a
morte, o amor também pode vencer a morte. Ele é mais forte que a morte. Ele sobreviverá à
morte:
Forte como a Morte é o Amor; inflexível como o Sheol é a paixão (Ct 8,6).
Não se pode falar sobre o amor com mais beleza do que a contida nos magníficos cânticos
desse livro do Antigo Testamento. Nele se canta, sem medo e timidez, sem estreitamento moral, a
maravilha do amor, que enfeitiça os amantes e lhes confere beleza interior. E o amor é sempre algo
de divino. Esse fato se exprime nas várias alusões às representações das deusas do amor no âmbito
egípcio e palestino. Que o homem possa amar a mulher e a mulher possa amar o homem é o maior
presente que Deus preparou para o ser humano: "Se alguém desse toda a posse de sua casa pelo
amor, certamente só seria desprezado" (Ct 8,7). Homem e mulher podem desfrutar o amor que Deus
lhes deu como a maior dádiva, e ninguém os deve atrapalhar nisso: "Não acordeis, nem desperteis o
amor, até que este o queira" (Ct 2,7).
Sempre que as pessoas poetam sobre o amor, voam ao seu encontro comparações com anjos
e deusas. E sempre se atribui ao amor o poder de despertar à vida o que está morto em nós e de
sobreviver à morte. Naturalmente, o amor entre homem e mulher reflete o brilho do amor divino. E
apenas os poetas conseguem descrever o amor de forma apropriada. Eu gostaria de me restringir a
duas estrofes do poema Diotima, de Friedrich Hӧlderlin:
Diotima, ser bem-aventurado!
Grandiosa, por quem meu espírito,
Curado do medo da vida,
Vislumbra juventude divina!
Nosso céu persistirá,
Em afinidade insondável,
Antes até de nos vermos,
Nosso íntimo se conheceu.
Então me cerca teu ser celestial,
Em doce brincadeira infantil,
E em teu feitiço soltam-se
Com alegria minhas amarras ;
Já se foi meu sedento anelo,
Já se foi da luta o último sinal,
E na plena vida dos deuses
Entra a natureza mortal.
Na Antiguidade, eram as deusas do amor que encantavam os seres humanos. No cristianismo, é
o amor de Deus manifestado em Jesus Cristo que resplandece em cada amor humano. Mesmo que o
Cântico dos Cânticos na origem cante apenas o amor entre homem e mulher — nem sequer o amor
conjugal, mas o amor livre —, não é de surpreender que já no judaísmo e depois no cristianismo
primitivo esse livro tenha sido compreendido e interpretado como imagem do amor entre Yahweh e
seu povo, entre Cristo e a Igreja ou entre Cristo e a alma individual. A mística sempre empregou a
linguagem erótica desse livro para exprimir a sua experiência de Deus. João da Cruz, no seu leito de
morte, não quis que lessem os salmos de penitência, mas justamente esse canto de amor. A morte era
para ele a realização do seu anseio por amor. Ali chamejava sua chama de amor sem limitação, na
brasa do amor ele se uniu com o Deus amado sobre todas as coisas. Morrendo, ele ouviu com novos
ouvidos as palavras de amor:
Suas brasas são brasas de fogo,
São veementes labaredas.
As muitas águas não poderiam apagar o amor,
Nem os rios afogá-lo.
João da Cruz não se transtornou com a linguagem tão abertamente erótica, muitas vezes
sexual, dessa canção de amor. Para ele, a relação com Deus era o cumprimento do amor humano.
Para ele, o que é descrito no Cântico dos Cânticos como amor humano só alcança sua verdadeira
essência no amor a Deus e no amor de Deus ao ser humano. Sua compreensão do Cântico dos
Cânticos era livre de ansiedade e de estreiteza moral. Não havia difamação da sexualidade e do
erótico. Ele concebeu o erótico e a sexualidade como aquilo que são a partir de Deus, como boas
dádivas que o homem pode desfrutar, mas que passando pela pessoa amada apontam para um amor
ainda mais profundo, o amor entre Deus e o ser humano.

Amor e dor
Em todos os séculos, os poetas cantaram o amor. Eles sentiram que o amor é o mais belo
presente que Deus pôs em nosso coração. Mas o amor também sempre está associado à dor e à
paixão. O amante vivencia o céu, mas também passa pelo inferno da sua solidão e da sua dor
quando não encontra mais a amada. Por isso, a poesia descreve sobretudo o destino trágico dos
amantes: Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa. Mais uma vez, alguns versos de
Friedrich Hӧlderlin sobre a queixa de Mênon por Diotima representam a dor do amor:
Tranquilamente sorríamos, sentíamos o próprio Deus
Numa conversa íntima, num hino da alma,
Em inteira paz conosco, infantil e alegremente sozinhos.
Mas a casa agora me parece deserta,
Eles me tiraram os olhos
E junto com ela também me perdi.
Por isso vago errante, e assim como as sombras
Devo viver,
E sem sentido, desde muito, me parece tudo o mais.
Os poetas têm em mente o amor entre homem e mulher. Nisso eles veem o mistério do amor
em geral. O amor conduz o homem a si mesmo. No amor, ele sabe quem é. Sem amor, ele se perde.
Ao mesmo tempo, os poetas também pressentem que há um amor que excede o amor entre homem e
mulher. É o amor de Deus, que brilha por todo o amor humano e sobrevive a ele. É essa a
experiência de Hӧlderlin, quando no fim da lamentação pela perda de Diotima diz:
Por isso, a vós, imortais, quero também dar graças
E que do peito aliviado surja de novo a oração do poeta.
E, como quando estava com ela,
Erguido na ensolarada altura,
Reanimando-me, de dentro de seu templo, me fala.
Então quero também viver! Os campos já verdejam!
E dos montes prateados de Apolo, chega-me um apelo
Como de uma lira sagrada.
Vem! Foi como um sonho!
Pois já se curaram
As asas sangrentas, e rejuvenescidas vivem todas as
esperanças!
É muito encontrar o grande, muito ainda resta, e quem assim
Amou deve seguir pela rota que aos deuses leva!
Vemos que nem a perda do amor humano pode quebrar o ser humano, pois no amor à amada
resplandeceu alguma coisa que é indestrutível, que conduz a Deus. O caminho que vai do amor entre
homem e mulher à intuição de um amor divino é cantado por vários poetas. Eles exprimem com isso
o que o misticismo fez quando utilizou também a linguagem erótica para a descrição do amor de
Deus. E incontáveis poesias de amor patenteiam o que Paulo descreveu na Primeira Epístola aos
Coríntios como sua experiência de amor.

O cântico paulino de amor


Quando Paulo, no capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios, entoa um hino ao
amor, ele se põe numa longa tradição. Ele retoma sobretudo modelos gregos. Paulo des frutou
uma boa educação helenística. Platão já afirmara que o amor é superior a tudo o mais:
Assim é que me parece, ó Fedro, que o Amor,
primeiramente
por ser em si mesmo o mais belo e o melhor,
depois é que é
para os outros a causa de outros tantos bens 41 .
Paulo, contudo, não fala do eros, mas de agape. Os gregos conhecem três expressões para as
diferentes formas do amor. Eros é o amor cobiçoso. O eros ama apaixonadamente aquilo de que
carece. O estar apaixonado se nutre com a força do eros. Philia é o amor ao amigo. Ele é marcado
sobretudo pela alegria com a pessoa a que ama. A philia deseja o bem aos amigos unicamente por
causa deles42. O estágio supremo do amor é agape. Ele é uma benevolência fundamental, não
apenas em relação ao amigo, mas também ao inimigo. E ele é amor de Deus e amor a Deus. Ele não
quer nada do outro ou de Deus, mas ama o outro por ele mesmo. Alguns teólogos estabelecem um
nítido traço de separação entre essas três formas de amor. Tomás de Aquino e Bernardo de Claraval,
em contrapartida, sabem que o amor começa no corpo, eleva-se lentamente do amor cobiçoso para o
amigável e então para o divino. Mas o agape precisa ainda da força do eros, do contrário permanece
débil e insignificante. O agape é um amor casto. Da mesma maneira, o eros, que se exprime no ato
sexual, se nutre do amor casto do agape, como inversamente agape se nutre do eros e da philia.
41
. Hans CONZELMANN, Der 1. Brief an die Korinther, Cõttingen, 1969, 259.
42
. Cf. para o conjunto: André COMTE-SPONVILLE, Ermutigung zum unzeitmässen Leben. Ein kleines
Brevier der Tugenden und Werte, Hamburg, 1998, 298 ss.
No cântico sobre o amor não se faz referência a Cristo. Tampouco Paulo diz se está tratando
do amor a Deus ou ao ser humano. Fala do amor de modo geral. O amor é, portanto, uma qualidade
da vida, uma força que atua no homem, que o transforma e o encanta. E o amor é, ao mesmo tempo,
uma dádiva do Espírito Santo, algo de divino, que torna o ser humano realmente ser humano. Paulo
responde aqui ao anseio humano geral pelo amor que permeia a vida inteira. Pelo amor a vida se
torna digna de viver. Em pregações em casamentos, emprega-se um tom moralizante ao falar sobre
esse texto. Prega-se para os noivos o que eles devem fazer e como devem se amar. Isso acaba
deixando a consciência pesada. Ou então se fala euforicamente do amor, e não vemos como ele pode
se concretizar. Paulo não fala euforicamente. Ele simplesmente quer expor como parece uma vida que
é determinada pelo poder do amor. E Paulo não fala do amor entre homem e mulher, mas do amor
como uma força do espírito. Quem sente o amor em si tem uma vida que prospera, e tudo nele ganha
um novo aspecto e um novo sabor.
Num poema didático (1Cor 13,4-7) Paulo mostra quais qualidades tem o amor e como ele
pode marcar concretamente a nossa vida. O amor é uma força que o Espírito Santo suscita no
coração humano, ou pela experiência de ser amado por outra pessoa, ou por uma experiência
espiritual do amor de Deus. Não podemos designar o amor nem como sentimento nem como ato da
vontade. Ele parece ser um poder independente, que atua no coração do homem e afeta todas as suas
relações: a relação com o próximo, com Deus, com a criação, com as coisas da sua vida e consigo
mesmo. O amor deixa uma marca no seu pensamento, no seu sentimento, na sua vontade, na sua
ação. Ele possibilita uma nova qualidade de vida, uma nova autopercepção. Ele transforma o homem
e lhe confere uma irradiação própria. Por mais que se reflita sobre o amor, em última análise não se
pode agarrar e prendê-lo. É possível apenas descrever os seus efeitos:
O amor é longânime, o amor é bondoso
Não é ciumento, não se pavoneia, não se ensoberbece.
Nada faz de inconveniente,
Não procura seus interesses,
Não se irrita,
Não se ressente do mal.
Não se regozija com a injustiça,
Mas encontra sua alegria na verdade.
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, a tudo resiste.
O amor jamais acaba (1Cor 13,4-8).
O amor é longânime, tem paciência e um coração grande e amplo. Ele pode esperar. Não é
mesquinho. Permanece aberto para o outro. Mas esse amplo coração, o "grande ânimo", não se refere
apenas ao trato com as outras pessoas. Se tenho um coração amplo, eu me sinto diferente. Sou livre,
aberto. A vida pode fluir em mim. Nunca vou me fixar no negativo, que percebo em mim ou nos
outros. O coração amplo é o oposto do mesquinho, tacanho, intransigente. Pode-se notar numa
pessoa, a partir de todo o seu ser, se ela tem um coração amplo ou um ânimo pequeno, um espírito
estreito.
O amor é bondoso. O termo grego significa que o amor se comporta de forma boa, sincera,
proba, e que é salutar, que faz bem aos outros e lhes traz cura. Uma pessoa repleta de amor faz bem ao
outro. Tem uma irradiação curativa. Gostamos de estar perto dela. Ela vê o bem no outro e o traz para
fora. Como ela vê o que é bom no outro, ela também o trata bem.
O amor não é ciumento. A palavra grega para ciúme vem da concepção de que alguém ferve
por dentro, que borbulha e é ardentemente movido pela paixão. A qualidade do amor é outra. Ele
irradia tranquilidade e independência em relação aos outros. Não se enche de ciúme, para prender o
outro a si, mas o deixa livre. O autor grego Máximo de Tiro já via a liberdade como a característica
mais importante do amor: "Não há nada que o amor odeie mais do que a coerção e o temor. Ele é
orgulhoso e totalmente livre, e mais livre até do que Esparta''43. Quem sente em si o amor é livre. Ele
não se compara com os outros. Ele está em si. O seu coração não se dilacera com paixões. O amor
conduz a pessoa a si mesma, à sua verdadeira essência. Ele corresponde ao ser mais íntimo dela.
O amor não se pavoneia. Ele não tem necessidade de se gabar, de se envaidecer, de se enfatuar.
No amor eu sou simplesmente eu mesmo. Eu me mostro como eu sou. Não tenho nada a esconder. Não
preciso me vangloriar com nenhuma proeza, estou contente comigo, porque saboreio o gosto do amor em
mim. Não preciso de confirmação, nem de reconhecimento. O amor não age de maneira inconveniente,
indecorosa. Não é disforme, nem repulsivo. Ao contrário, o amor corresponde à essência da pessoa e a
torna bela. Ele a põe na forma que é apropriada a ela. Apenas quem ama é verdadeiramente ser humano:
em última análise, é isso o que diz essa declaração de Paulo. O amor não busca o próprio proveito, não
procura o seu interesse. Não gira em torno de si. Não precisa se afirmar, porque simplesmente existe. Não
usa o outro para si, mas sim lhe é útil. Não espera a felicidade do outro, mas sim o quer tornar feliz. Não
espreme o outro para ter prazer sexual, mas quer se fundir com ele. O amor é livre do girar constante em
torno de si, que nasce do medo de ficar com pouco. O amor não fica com pouco. Quem está repleto de
amor tem o suficiente, não precisa ter sempre mais. Se Paulo diz que o amor não se irrita, isso à primeira
vista parece problemático, pois o que devemos fazer com as nossas agressões? É evidente que amor e
agressão estão estreitamente relacionados. Foi isso o que Peter Schellenbaum iluminou em seu livro O
não no amor. Sem agressão, o amor se torna um grilhão que não deixa o outro livre. A agressão está
sempre conservando a tensão entre proximidade e distância. Sem essa tensão, o amor se perde. Agressão e
amor são dois pólos que precisam um do outro. Paulo certamente quer dizer outra coisa. O amor não se
deixa exaltar, se excitar, ele não cai numa paixão colérica, num ataque de febre. Ele não se agarra ao
rancor. Ele tem, antes, a qualidade da calma e da força, do calor e da clareza. Tem a coragem de dizer ao
outro quando nos feriu, quando nos irritamos com ele. Ele elucida os mal-entendidos. Ele também olha
para as agressões que sempre afloram em qualquer amor e nos livram de afundar em falsa harmonia. A
palavra grega para "ira" vem da noção "fora do tempo, precipitado, impetuoso". O amor reage ade-
quadamente. Ele está no momento. Não se deixa afugentar do

momento presente por palavras ofensivas. Ele não é melindroso. O melindroso sempre é arrancado do
momento. Palavras ofensivas sempre lhe revelam a raiva e o descontentamento que se acumularam sob
a superfície.
O amor não se ressente do mal. Ele não o põe na conta. Na relação mútua sempre pomos na
conta o que o outro nos fez. Nós nos vingamos. Achamos que uma boa relação vive de compensação.
Se o outro me feriu, vou feri-lo. No entanto, isso não traz compensação, e sim um constante "pôr na
conta", um círculo vicioso da ofensa mútua, que nunca termina. Só o mesquinho calcula e põe na
conta incessantemente. Quem se expandiu pelo amor não tem mais necessidade de pôr o mal na
conta. O amor derrota o mal, em vez de aumentá-lo num processo de compensação. O amor não se
contenta com a injustiça, com a ofensa, mas com a verdade. Ele se alegra quando o outro sobressai
como ele é. Ele não quer depreciá-lo com ofensas e lhe tirar a razão.
Paulo conclui a descrição do amor com quatro importantes declarações: 'Tudo suporta, tudo
crê, tudo espera, a tudo resiste" (1Cor 13,7).
Essa fórmula se assemelha aos hinos sobre o amor que Platão ou Máximo de Tiro entoam.
Também aqui não devemos pensar imediatamente na relação com outra pessoa. O amor é visto,
antes, como dom de Deus, que atua sobre todo o nosso comportamento. O amor suporta. Na
verdade, isso quer dizer: ele cobre, abriga, guarda tudo. A palavra grega para isso deriva de "teto,
coberta". O amor é, por assim dizer, um teto protetor, que impede que a umidade invada a nossa

43
. Hans CONZELMANN, Der 1. Brief an die Korinther, 260.
casa, que disposições negativas a ocupem. O amor é como uma casa em que podemos morar, em que
nos sentimos protegidos e abrigados. E quando nos sentimos à vontade na nossa casa podemos
também, com o nosso amor, oferecer ao outro um teto protetor, sob o qual ele se saiba protegido e
aceito. O amor também convida outras pessoas para a nossa casa de vida.
O amor crê em tudo. A palavra grega peisteuein significa "confiar". O amor é sustentado por
uma confiança fundamental nas pessoas, na vida, em Deus. Apenas quando acredito em alguém posso
amá-lo. É o que exprime também a língua alemã, que deriva glauben (crer), lieben (amar) e loben
(louvar) da mesma raiz. Liob significa bom. Crer significa ver de modo bom. Amar significa tratar de
modo bom. Só posso amar a quem considero bom, em quem confio. Isso vale também para o homem,
como para Deus. Não posso amar um Deus em relação ao qual tenho uma abismal desconfiança. O
amor precisa da confiança, mas ele também se exprime concretamente na confiança e na crença.
Acreditando na pessoa, ele a ergue e traz para fora o bom nela. Louvar significa citar o bom também.
Pondo em palavras o que é bom, ele se torna real e eficaz.
O amor espera tudo. A esperança é outro aspecto do crer. Espero algo de quem amo. Julgo-o
capaz de alguma coisa. Tenho esperança por ele, de que ele pode se desenvolver, de que o bom nele
ficará cada vez mais forte. O amor rompe o aparente. Ele vê mais fundo. Ele descobre na pessoa o
cerne bom, que quer aflorar nela. Vê nela os sinais de vitalidade, autenticidade, de capacidades e
possibilidades. E o amor espera tudo de Deus. Acredita que Ele vai operar em nós e nas pessoas que
amamos o milagre do seu amor.
O amor a tudo resiste. Ele se põe sob o outro, para ampará-lo e sustentá-lo. Ele o apoia, não
importando como ele se desenvolva e o que revele de si. O amor fica com ele em todos os seus
equívocos e confusões. O amor é capaz disso apenas porque crê em tudo e tudo espera, porque vê o
bom no outro e tem esperança de que o cerne bom virá à luz cada vez mais. É como uma coluna na
qual o outro pode se apoiar, que sustenta a casa da convivência. No amor mora uma força. O termo
grego para resistir, hypomenein, vem da linguagem bélica. Significa ficar para repelir um ataque
inimigo, enfrentar o ataque, não se esquivar. O amor não bate tão facilmente em retirada. Ele parte para
a batalha contra forças hostis. Acredita na vitória. É mais forte do que tudo que pretende enterrar a
vida. "O amor jamais acaba" (1Cor 13,8). Ele é manifestação do eterno no tempo e, portanto, nunca
tem um fim, ao passo que todos os outros dons do espírito são transitórios e encontram seu fim na
morte.
Em todas essas declarações de São Paulo não podemos pensar de imediato que devemos fazer
isso ou aquilo, que não podemos ser coléricos ou enciumados, que jamais devemos pensar em nós
mesmos, mas sempre no proveito do outro. Se vemos apenas exigência na descrição de Paulo, o amor
se torna para nós uma exigência excessiva. Paulo descreve do que o amor é capaz. O amor é uma
força que temos. Às vezes sentimos que somos plenos de amor. A mulher que me contou que de
repente percebera em si um profundo sentimento de ternura e amor, e não sentiu nenhuma pressão
moral de que devia amar tudo, simplesmente estava plena de amor. O amor fluiu dela para todas as
pessoas, e para as flores no campo, os animais; no seu quarto, no seu corpo. É sempre um mistério
quando somos apanhados pelo poder do amor. O amor é então uma qualidade de vivência, que não
podemos fabricar. Ele é um presente divino. É isso o que diz Paulo quando fala do amor como dom
do Espírito Santo. Com sua descrição, Paulo não quer exigir em excesso de nós, mas mostrar uma
maneira de como podemos viver verdadeiramente, como a nossa vida ganha novo gosto e como é
preenchida e encantada pelo sabor de Jesus.
Muitas vezes não sabemos por que justamente agora estamos tão repletos de amor e, às
vezes, por semanas a fio não sentimos nada de amor apesar de todo o discurso a seu res peito. É
sempre um momento da graça se um coração humano é preenchido pelo amor. O que podemos
fazer para sentir esse amor em nós foi o que tentei descrever neste livro. Mas nenhum esforço
humano é capaz de extrair o amor. É o próprio Deus, como diz Paulo e como diziam antes dele os
gregos com o mito de Eros, que provoca o amor no ser humano. O amor é expressão de sua
divindade. O amor é divino. Deus é o amor. Quem está em Deus está também no amor. E vice-
versa: "Quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele" (1Jo 4,16). Mas
não basta desfrutar a dádiva divina do amor. Devemos também deixar o amor fluir para as pessoas
e para o mundo. Devemos dar-lhe expressão por novas formas de conduta. Do contrário ele
definha. Do contrário sufocamos no sentimento de amor. O amor deve correr, fluir para
permanecer vivo.

CONCLUSÃO

Escrevi muitas páginas a respeito do amor. Apesar disso, o seu mistério ainda continua
fechado para mim. As palavras podem ser sempre apenas aproximações do amor e jamais
conseguirão substituí-lo. Espero que a palavra tantas vezes mal-empregada "amor" tenha adquirido
um novo brilho para você, caro leitor. E desejo que você sinta um pouco do amor que é independente
do fato de ser amado por alguém ou estar apaixonado por outra pessoa. O amor é uma qualidade
divina. Ele encanta a nossa vida. Esse amor está em cada um de nós e nos rodeia na criação que nos
abraça; está na presença amorosa de Deus que nos envolve, e nas pessoas que nos amam. Desejo-lhe
que tome consciência de que é amado e tenha prazer com o amor com o qual você ama os outros.
Confio que você, nas suas experiências de amor, nas suas decepções com o amor e na alegria que ele
provocou, reconheça e perceba o mistério de um amor que não é mais quebradiço, com o qual você
pode sempre contar, que nunca seca, porque se nutre da fonte do amor divino que corre em você. Se
você sente esse amor, pode estar certo de que você está em Deus e de que foi iniciado no maior
mistério de Deus, o mistério do seu amor.

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