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polaroides
Adelaide Ivánova
POLAROIDES
e negativos de outras imagens
2ª edição
A
macondo
Para Jacó
“my favorite thing is to go where I've never been.”
diane arbus
43,5º
11
polaroides
enquanto eu não sei pra onde vou, deixo aqui
umas fotos das coisas que fotografei quando não
estava pensando em fotografar
15
tarkovsky
16
Quando vi essa cena, fiquei me perguntando o
que leva uma andorinha a catar lixo em vez de
caçar peixes e, na sua esquizofrenia pública, pas-
sar mais tempo com pombos do que com os seus.
Depois lembrei que eu mesma já fiz muito isso.
17
(nico tem um disco chamado drama of exile)
18
1.
nunca vi lisboa nublada.
2.
nunca vi uma vaca antipática.
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a câmara clara
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sim, eu fiquei nervosa
esperava mais, outra reação, sei lá
passei a manhã pensando,
cancelei compromissos,
raspei as pernas e pus o vestido no sol
para poder usar
mas a tragédia maior
é tua pergunta:
por que eu choro tanto e tantas vezes.
é porque eu sei que não te amo
é tão injusto
eu vou ficando porque aprecio
que finalmente a balança pesa pro meu lado.
vou me aproveitando
e dando aos poucos o que posso
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primeira lição de geografia
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sem móvel
sem luz
sem cortina
sem medo
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uma aprendizagem
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heroína
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apócrifo
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o dia a dia das coisas #1
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conversa com o artista renomado
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minha música preferida de Astor Piazzola se
chama Fuga y misterio.
não ligo a mínima para o mistério, mas a fuga,
dessa sim,
gosto bastante.
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poesia reunida
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terça-feira, 1° de junho
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segunda lição de geografia
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deitei na cama exausta
e pedi desculpa a Jacó
por chorar tanto
toda vez eu choro
parece drama
mas juro que não
chorar é uma forma de descanso.
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entre meus dedos
anelar e do meio
tem um foco de alergia a não
sei o quê
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fale com a sarna
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dia da criação
oh darling,
(pausa, gole)
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sigo apegada a datas, bilhetes de amor, anotações
em canto de livro.
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o sol
o sol
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com a neve aprendi
que um sapato velho aguenta mais
do que pensamos.
é como a vida:
basta um sapato velho
quando se tem coragem.
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stadt sapatão
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domingo, 25 de julho de 2010
agora a cena:
saí da festa sem dizer tchau
andei 20 minutos até a estação
era bem de manhã
(insisti tanto, tá claro, num nada irreversível)
fazia um vento gelado
esperei o trem mais 20
ventava gelo
andei três estações entre Kreuzberg e Alexanderplatz
atravessei a rua pra pegar o bonde
esperei mais 13 minutos
agora além de ventar chovia
desci na porta de casa
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subi as escadas
abri a porta
deitei
e foi só isso.
um silêncio de morte.
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quarta-feira, 29 de setembro
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é que toda essa secura
essa vida real
esse comprovar tudo
não me deixa ver as coisas
que outrora via
como outrora via
desculpa
és tu
querido
quem paga o pato
o aluguel
e o café
e ainda levanta
no frio
de noite
pra me buscar lenço de papel.
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pisar na neve.
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o telefone toca, eu saio correndo em fúria assas-
sina como fazia em 1998. e me alegro com tua
chegada e ajeito os cabelos e aliso com as mãos o
tecido do vestido, como se não te conhecesse há
milênios, como se tu nunca antes tivesse vindo.
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e a beleza disso tudo reside em mesmo sabendo
disso tudo não desistir antes.
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se sobrevivemos, é porque dá.
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um sofá-cama
é um horror.
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jerusalém, seis de junho de 1983
gostaria de um dia te
mostrar todos os buracos
que conheci (tudo que vejo
me dá vontade de comprar pra
te dar de presente... mas fica só
na vontade...)
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como eu faço pra transformar
aquela obsessão do começo em
inspiração e sede,
agora que tudo está calmo
e eu sei
que és meu? meu deus
que sorte
mas como faz para ver
charme na perfeição?
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aí parei de inventar motivos e foi tão bom
(foi o vinho)
na pista de dança,
o único hétero da festa veio puxar assunto comigo
e eu
pedi num alemão bêbado pra conversar auf Deutsch
ele bem intencionado perguntou:
por que tu estuda alemão?
e eu, sincera muito mais comigo do que com ele
(pela primeira vez na vida), não falei de mestrado,
de filologia, de nenhuma dessas porra.
respondi mesmo sabendo que perderia o paquera:
por causa de Armin.
o boy saiu correndo,
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jacó esqueceu a camiseta cinza
com cheiro de rexona for men
no chão e eu fiquei cheirando ela com
preguiça de levantar mas
levantei e fui pra polônia
já que ela está aqui do lado
e ele foi ver um jogo de basquete
com os amigos de 20 anos dele e
não me convidou
então peguei o trem e fui
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eu acho lindo tu sentado
de pernas cruzadas e meia furada
e em pé também és lindo
com essas coxas que ai meu deus
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acordei com uma folha
vermelha
caindo na minha cara
que esqueci a janela aberta
ainda bem
que esqueci a janela aberta
apesar do frio e ainda
bem
que a folha
caiu
porque assim te vi
de manhã cedo
sentado na minha janela
fumando.
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ricardo foi tomar banho
e me deixou usar um pouco
o computador dele
graças a deus
assim posso passar a limpo
as coisas que escrevi
nos últimos dias
pra tu ver
menino:
quantas alegrias tu me dá!
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to-do list
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para quê preciso de mapa se já estou
perdida anyways?
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abc
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tão reformando a fachada
do meu prédio
da minha janela fico olhando os pintores,
tão bonitinhos,
com o uniforme salpicado de tudo quanto é cor,
de manhã tomo café olhando pra eles,
tenho tirado muitas fotos
já não me sinto tão sozinha.
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tu és minha beatriz.
tu és tão lindo.
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cheguei ao meu primeiro date
correndo.
eu tinha 15 anos.
íamos assistir a titanic.
eu vi o menino de longe na fila do cinema e saí,
correndo,
na direção dele.
eu era demais.
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as letras que o descrevem
o som que elas fazem
o gosto que tem
a textura impossível
o cheiro
é isso:
um gengibre é uma coisa perfeita
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hoje eu me pendurei para fora da janela de Ulri-
ke, não sei por quê, pra ver como é que se sente.
curvei o tronco para frente e ergui uma perna, aí
senti a gravidade agindo e pareceu que a morte é
bem descomplicada.
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descasquei
cebolas com a metade de uma
cebola
na cabeça
para não arderem os olhos
Jacó achou graça
e me disse:
“o mais importante é acreditar que funciona”
achei bonito,
parece a vida.
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das coisas que mexem comigo:
vovó passando batom.
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dezenove de outubro de 2013
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odeio quando quero economizar caderno e es-
crevo até o texto quase não caber mais na mesma
página, e as letras das últimas linhas saem tão
feias porque não há apoio para o antebraço. que
horror matar a beleza em nome da economia.
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sentada num banco de praça
ouvindo wild horses
ouvi o telefone tocar
e soube
do casamento dele:
será numa sexta-feira
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copiões
legenda 1
1.
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Mas é que foi dele que saiu meu nome. E foi em
2001 que eu entrei na faculdade. Então pareceu
adequado, para minha mãe feminista e intelec-
tual, que sua filha entendesse pelo que ela pró-
pria passou enquanto estava grávida. De certo,
ler Dostoiévski durante uma gravidez deve me-
xer com os miolos dos envolvidos (tanto gestante
quanto feto haha).
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infernais 27 anos. Adelaide é a musa da coragem
e da paixão (ao largar um marido suado e gor-
do e uma vida morgada numa cidadezinha da
Rússia pra ir atrás do bofe que ela gostava). Por
outro lado, ela magoou algumas pessoas ao fazer
sua escolha. Dostoiévski, que certamente não era
feminista e para influenciar a gente a tirar uma
conclusão sobre ela, decidiu que não bastava que
ela abandonasse o marido — ela tinha que deixar
pra lá também o filho.
2.
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nunca houve hahaha). E eu continuei acompa-
nhada do meu russo e nem sofri (muito).
3.
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A metáfora triste desse paralelismo é que eu,
como minha xará, também tive que ir embora.
Não que Armin fosse suado e gordo. Não que eu
não quisesse ficar. Mas, confesso, nunca entendi
muito bem por que peguei aquele avião.
4.
5.
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viciado em jogo. É que o amor é cego e eu tenho
talento pra cão-guia.
78
legenda 2
79
A segunda foi ainda pior: eu tinha 12 para 13
anos, e a sarna inofensiva, tratada como alergia
por semanas, virou uma espetacular infecção
bacteriana. Ela me deixou com os dedos e pele
deformados e uma dermatite eczematosa (vulgo
“pereba gigantesca sangrenta”) no tornozelo di-
reito — e longe da escola por meses. Eu cheirava
a uma pessoa morta.
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§
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Clarice — e o Baygon. Todos ao mesmo tempo.
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A última coisa que venho pensando também é
uma teoria meio Hilda Hilst-zal, nascida na mi-
nha mente destrambelhada, na época que eu mo-
rei numa comunidade hippie no interior do Rio,
em 2002: a relação entre corpo de inevitabilida-
de. Coisas vão acontecer com esse corpo. Pegar
sarna no interior da Argentina, sentir a catinga
dos carros na Marginal, chorar com a cebola
maldita e fazer exame de corpo de delito, ser fu-
rada por um alfinete enquanto vovó faz as mar-
cações pra bainha que tem que ser feita, escutar o
disco novo de Christina. Subir num avião. Sentir
o cheiro dos cabelos de Armin.
83
legenda 3
1. do amor, do ordinário
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Meus deuses não esquentam o bucho na beira do
forno.
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É aí que devia entrar o extraordinário. Acho que
ele é um direito. Não quero ter que passar minha
vida procurando a metafísica de limpar os peixes
que meu marido pescou (desculpa, Adélia). Na
minha mente doentia, eu só posso acreditar que
tentam nos convencer que há mística na cozinha,
para nos prenderem lá. Para que a vida social
como a entendemos, dividida em núcleos fami-
liares, tribos, cidades, etc., consiga ser mantida.
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Eu quero ser Carmela Soprano vendo Paris pela
primeira vez.
2. da cidade, do extraordinário
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dres. Assim sendo, em dezembro de 2013 cheguei
em Recife e foi um espanto. Primeiro, porque não
reconheci as coisas que me eram mais íntimas —
a Chora Menino da minha primeira infância e o
Torreão/Espinheiro da segunda (obrigada, Mou-
ra Dubeux, ficou ó, uma bosta).
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eu uso para falar disso, de perda. Por isso andei
tão obcecada com Elizabeth Bishop e seu livro
geography iii, no qual ela trabalha constantemen-
te com a ideia de pertencimento. É neste livro
que está incluído o poema “one art”, talvez a peça
central na minha bibliografia.
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(ou os dois!) para o espaço urbano. Pobre cidade.
90
3. do amor, da cidade
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divíduo submetido a esta forma de existência tem de
chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo”.
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Considerando que Calvino estava falando não de
cidades, mas de cidades invisíveis, arrisco dizer
que quando ele usa a palavra “lugares”, não se
refere a lugares concretos, mas sim emocionais.
Com isso, me pergunto se não é exatamente o
extraordinário, o grandioso que, ao deslocar os
relacionamentos do seu “lugar” de costume, os
salva.
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processo cruzado
a arte do recibo, transcrição cancerígena
de elizabeth bishop para o recibês
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the art of recibo is not too hard to master
ainda que pareça (passe o recibo!) uma tragédia.
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uma releitura de
“madeira que cupim não rói”, de capiba
concretos do rosarinho
vem ostentar o seu queiroz galvão
com security pessoal
e a guarita espanta o marginal
bem alto é o pilotis
pois ninguém quer
mais um prédio-caixão
e se aqui estamos
erguendo esse espigão
é para afirmar a nossa condição
mais um prédio alto
e tão feio que dói
nós somos concreto
que nem belize destrói.
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prólogo
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
Alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
Em que todos se debruçavam
Na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
(c. d. a.)
103
Polaroides foi publicado pela primeira vez em 2014,
pela Cesárea Editora, e trazia como subtítulo “e ne-
gativos das mesmas imagens”. A primeira edição das
Edições Macondo, com o subtítulo “e negativos de ou-
tras imagens”, foi reestruturada e ampliada pela autora
e publicada em 2019 na coleção Casa de Barro.
Sobre a autora
43,5º 11
polaroides
Legenda 1 73
Legenda 2 79
Legenda 3 84
processo cruzado
prólogo
conselho editorial
André Capilé
Patrícia Lino
Prisca Agustoni
coordenação editorial
Otávio Campos
projeto gráfico
Otávio Campos
isbn 978-85-93715-16-7
[2021]
edições macondo
Rua Dom Silvério, 302/ 302a
Alto dos Passos – Juiz de Fora – mg
36026-450
www.edicoesmacondo.com.br
contato@edicoesmacondo.com.br
[2ª edição]