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O gênero
do som
Anne Carson
britânica, em 1919, e que foi descrita por seu colega sir Henry
Channon como “uma mistura excêntrica de bondade, ori-
ginalidade e estupidez […]; ela anda de um lado para outro
como uma galinha sem cabeça […] chamando atenção e apro-
7. S. Rodgers in Shirley Ardener, Women veitando o cheiro de sangue […]; a bruxa louca”.7 A loucura
and Space. Londres: Croom Helm, 1981,
p. 59.
e a bruxaria, assim como a bestialidade, são condições que
costumam ser associadas ao uso da voz feminina em público,
tanto em contextos antigos quanto modernos. Basta pensar-
mos em quantas personagens do mundo clássico – mitologia,
literatura e cultura – são censuradas pelo modo como fazem
uso da voz. Há, por exemplo, o gemido desolador das Gór-
gonas, cujo nome deriva da palavra em sânscrito *garg, que
significa “uivo gutural animalesco que produz um grande
8. Thalia Phillies Howe, “The Origin and sopro vindo do fundo da garganta até a boca bem aberta”.8
Function of the Gorgon Head”, American
Journal of Archaeology, v. 58, 1954, p. 209;
Há as Erínias, cujas vozes agudas e horrendas são compara-
Jean-Pierre Vernant, The Origins of Greek das por Ésquilo aos uivos de um cachorro ou aos gemidos
Thought. Ithaca, ny: Cornell University
Press, 1982, p. 117.
de alguém sendo torturado no inferno (em Eumênides).9 Há
9. Ésquilo, Eumênides, 117, 131. as vozes mortais das sereias e o perigoso ventriloquismo de
10. Homero, Odisseia, 4.275. Helena (na Odisseia),10 a tagarelice inacreditável de Cassan-
11. Ésquilo, Agamenon. 1213-1214. dra (em Agamenon, de Ésquilo)11 e o barulho assustador de
Ártemis ao adentrar na floresta (no Hino homérico a Afro-
12. Hino homérico a Afrodite, 18-20. dite).12 Há o discurso sedutor de Afrodite no qual seu poder
assume um caráter tão concreto que ela pode usá-lo no cinto
como um objeto físico ou emprestá-lo a outras mulheres (na
13. Homero, Ilíada, 14.216. Ilíada).13 Para não falar da velha Iambe, da lenda de Elêusis,
que grita obscenidades e levanta a saia até o alto para mos-
14. Sobre Iambe, ver Maurice Olender, trar a genitália.14 Ou do falatório obsessivo da ninfa Eco (filha
“Aspects of Baubo: Ancient Texts and
Contexts”, in Froma I. Zeitlin, op. cit.,
de Iambe na lenda ateniense), descrita por Sófocles como
pp. 85-90 e referências. “a moça que não tinha porta na boca” (no Filoctetes).15
15. Sófocles, Filoctetes, 188.
Colocar uma porta na boca das mulheres tem sido um im-
portante projeto da cultura patriarcal desde a Antiguidade
até os dias presentes. Sua estratégia principal é criar uma
associação ideológica do som produzido pelas mulheres
com o monstruoso, a desordem e a morte. Veja a descrição a
seguir, feita por um dos biógrafos de Gertrude Stein, acerca
do som que ela fazia: “Gertrude era ruidosa. Tinha o hábito
de gargalhar bem alto. A risada dela era como um bife. Ela
16. Mabel Dodge Luhan, Intimate adorava bife.” 16
Memories. Nova York: Harcourt Brace,
1935, p. 324.
Essas frases, que confundem de modo engenhoso os pla-
nos factual e metafórico, trazem consigo, a meu ver, sinais de
puro medo. É o medo que projeta Gertrude Stein para além
dos limites de mulher e humana e espécie animal para um
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A empregada abriu a porta antes que eu tivesse tocado a campainha, fez-me entrar
e pediu-me que esperasse um pouco, pois miss Stein desceria em seguida. Ainda
não era meio-dia, mas a criada serviu-me um copo de eau-de-vie e deu um sorriso
matreiro. O álcool incolor produziu uma sensação agradável em minha língua e eu
nem tinha tomado um gole inteiro ainda, quando vi a voz de alguém que conversava
com miss Stein num tom que eu jamais ouvira, usado entre duas pessoas, fosse qual
fosse o lugar, fosse qual fosse o tempo. Ouvi depois a voz da própria miss Stein,
chorosa, implorando: — Não, gatinha. Não, por favor, não. Farei o que você quiser,
gatinha, mas não faça isso. Não, por favor... Não, gatinha!
Engoli a bebida de uma só vez, coloquei o copo na mesa e dirigi-me para a porta.
A empregada sacudiu o dedo para mim, dizendo-me baixinho: — Não vá embora,
ela desce já, já.
— Sinto muito, mas preciso sair imediatamente.
Esforcei-me por não ouvir mais palavra alguma daquela conversa, mas o diá-
logo continuava e o único meio de não tomar conhecimento era mesmo dar o fora o
quanto antes. Se o tom em que falava a desconhecida era desagradável, as respostas
de miss Stein eram ainda mais constrangedoras. [...]
Foi assim que terminou nossa amizade, dessa forma estúpida, pelo menos no
que me diz respeito. [...] Miss Stein começou a ficar parecida com um imperador ro-
mano, o que não tem nada de mais se a gente não se incomoda com o fato de nossas
amigas ficarem parecidas com imperadores romanos. [...] Mas o coração é fraco, e
seus velhos amigos de novo se aproximaram dela. Ninguém gosta de ser metido a
besta ou a moralista. Eu também não gosto. No entanto, já não era a mesma coisa,
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Miserável eu
existo na solidão da minha sorte
esperando ouvir o barulho da Assembleia
sendo convocada, ó Agesilaidas,
e o Conselho.
De todas as coisas que meu pai e o pai do meu pai
gostavam de fazer –
em meio aos cidadãos que enganam os outros –
dessas coisas estou banido
das vezes remete a “aquela que emite flechas” (de ios, que sig-
nifica “flecha”), mas também poderia vir do som de exclama-
25. Também Louis Gernet, op. cit., ção io e significar “aquela que emite o grito io!”.25
pp. 249-250, seguido de Hugo Ehrlich,
Zur indogermanischen Sprachgeschichte.
As mulheres gregas dos períodos arcaico e clássico não
Königsberg: Altstädtische Gymnasium, eram encorajadas a emitir gritos descontrolados dentro do es-
1910, p. 48.
paço da polis ou em qualquer lugar que estivesse ao alcance dos
ouvidos masculinos. Aliás, a masculinidade nessa cultura se
define pelo uso diferente que os homens fazem do som. A con-
tenção verbal é uma característica essencial da sophrosyne
(“prudência, sanidade mental, moderação, parcimônia, au-
tocontrole”), virtude masculina que estrutura quase todo o
pensamento patriarcal em assuntos éticos ou emocionais. Na
condição de espécie, a mulher com frequência é vista como
desprovida do princípio organizador da sophrosyne. Freud for-
mula de modo sucinto esse duplo padrão num comentário a
um colega: “Um homem pensante é o seu próprio legislador
e confessor, e obtém a própria absolvição, mas a mulher […]
não possui em si uma dimensão ética. Ela só consegue agir se
puder se manter dentro dos limites da moralidade, seguindo
26. Sigmund Freud, carta a Eduard o que a sociedade estabeleceu como adequado.” 26 Do mesmo
Silberstein, apud Phyllis Grosskurth,
“Review of R.W. Clark, Freud, the Man and
modo, as discussões antigas acerca da virtude da sophrosyne
the Cause”, tls, 8 ago. 1980, p. 889. demonstram claramente que, quando aplicada às mulheres,
essa palavra possui uma definição diferente da usada para os
27. Helen North, Sophrosyne. Ithaca, ny: homens.27 A sophrosyne feminina coincide com a obediência
Cornell University Press, 1966; ver
especialmente pp. 1, 22, 37, 59, 206.
feminina à orientação dos homens, e é raro significar alguma
coisa além da castidade. Quando significa algo mais, costu-
ma-se aludir ao som. Se um marido recomenda à esposa ou
namorada que tenha um tanto de sophrosyne, é provável que
28. Por exemplo, Sófocles, Ajax, 586. esteja querendo dizer “fique quieta!”.28 A heroína pitagórica
Timyche, que corta fora a própria língua para não dizer a coisa
errada, é enaltecida como sendo uma exceção à regra femi-
29. Iamblichos, Life of Pythagoras, 31, 194. nina.29 De modo geral, as mulheres na literatura clássica são
uma espécie entregue ao fluxo caótico e descontrolado de
sons – gritos agudos, lamúria, soluços, lamentos estridentes,
risadas altas, gritos de dor ou de prazer ou acessos de pura
emoção. Como observou Eurípides, “pois sentir suas últimas
emoções chegando à boca e saindo pela língua é um prazer
30. Eurípides, Andrômaca, 94-95. inato à mulher”.30 Quando um homem deixa suas últimas
emoções chegarem à boca e saírem pela língua, ele é, conse-
quentemente, feminilizado, assim como Héracles ao final de
As Traquínias, agonizando porque se depara consigo mesmo
“soluçando como uma menina, quando antes eu costumava
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“Ela tem a voz pura e aguda porque ainda não tinha sido
52. Ésquilo, Agamenon. 244. afetada pelo touro” – assim Ésquilo descreve sua Efigênia. 52
A voz alterada e a garganta mais grossa da mulher iniciada
sexualmente são projeções na parte de cima de mudanças de-
finitivas operadas na boca de baixo. Uma vez iniciada a vida
sexual da mulher, os lábios do útero nunca voltam a se fechar
de todo – exceto em uma ocasião, como explicam os escritores
médicos: em seu tratado sobre ginecologia, Sorano descreve as
sensações que uma mulher experimenta durante uma relação
sexual no período fértil. No momento da concepção, afirma o
médico helenista, a mulher tem um estremecimento e sente
53. Sorano, Gynaikeia, 1.44; Corpus a boca do útero se fechando sobre a semente.53 Essa boca fe-
Medicorum Graecorum, 4.3.1.9-11 (Ilberg);
Ann Ellis Hanson, op. cit., 1990, pp. 315,
chada, que produz e dá sentido ao silêncio positivo da con-
321-322. cepção, oferece também um modelo de decoro para a boca de
cima. A máxima tão citada de Sófocles “o silêncio é o kosmos
das mulheres” encontra um paralelo no campo da medicina
nos amuletos das mulheres da Antiguidade que retratam um
útero com um cadeado na boca.
Quando não está trancada, a boca pode abrir e deixar es-
capar coisas indizíveis. A mitologia, a literatura e os cultos
gregos mostram traços de uma ansiedade cultural em torno
da ejaculação feminina. Há, por exemplo, uma história sobre
a Medusa em que, quando sua cabeça é cortada por Perseu,
54. Hesíodo, Teogonia, 280-281; Robert ela dá à luz, através do pescoço, um filho e um cavalo alado.54
Wasson et al., The Road to Eleusis. Nova
York: Harcourt Brace Jovanovich, 1978,
Ou, de novo, aquela incansável e loquaz ninfa Eco, decerto a
p. 120. mulher mais versátil da mitologia grega. Quando Sófocles diz
que ela é a “garota sem porta na boca”, podemos nos indagar
a qual boca ele se refere. Sobretudo porque a tradição grega
arranja um casamento entre Eco e Pã, deus cujo nome sugere
que ela esteja casada com todos os seres vivos.
Também devemos levar em conta uma prática religiosa
bizarra, explicada de várias maneiras, chamada aischrologia.
Aischrologia significa “dizer coisas feias”. Determinadas ce-
rimônias femininas incluíam um momento de intervalo no
qual as mulheres gritavam umas às outras ofensas, obsceni-
dades ou piadas pesadas. Historiadores da religião classificam
55. “As evidências na cultura grega
de duas formas esses rituais que contêm sons desagradáveis:
apontam de forma explícita para o como feitiços de fertilidade, segundo James Frazier, ou como
absurdo e ridículo da questão toda: existe
uma descida consciente para as classes
uma encenação tosca mas divertida em que (de acordo com
mais baixas e para as partes de baixo da Walter Burkert) “o antagonismo entre os sexos é exacerbado
anatomia.” Walter Burkert, Greek Religion,
trad. J. Raffan. Cambridge: Harvard
para descarregar a tensão”.55 Contudo, a verdade é que, em ge-
University Press, 1985, p. 105. ral, os homens não são bem-vindos nesses rituais, e a tradição
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A canadense Anne Carson (1950) une poesia, narrativa e ensaio numa obra frequentemente re-
ferenciada na literatura clássica grega, a que se dedica como tradutora, pesquisadora e professora.
Dentre seus livros mais conhecidos, estão Autobiography of Red (1998), The Beauty of the Husband:
A Fictional Essay in 29 Tangos (2001) e O método Albertine (2014), o único traduzido no Brasil, em
2017, pela editora Jabuticaba. Dela, a serrote #17 publicou “Breves conferências”. Este ensaio faz
parte da coletânea Glass, Irony and God (1995).
Tradução de Marília Garcia