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Somos seres relacionais.

Quem acha que se basta


caminha direto para o precipício da infelicidade. É o outro
que supre nossas necessidades afetivas. E mesmo quem
reconhece que não pode estar só tende a ser capturado
pela armadilha da codependência.
Segundo Carlos Barcelos, "a codependência é uma condição
emocional, psicológica e comportamental que resulta do não
atendimento das necessidades emocionais básicas das
pessoas': O codependente anseia por intimidade, por ser
aceito como é, sem medo de ser rejeitado. Os traumas de
relacionamentos anteriores levam o codependente a atitudes
de manipulação e controle, perpetuando seu deserto emocional.
Carlos Barcelos revê sua história de codependência em
Quero minha vida de volta. Mais do que um relato de
suas experiências, o autor explica as razões da
codependência e os passos sugeridos para estabelecer
relacionamentos saudáveis. Certamente, este não é o
primeiro livro sobre o assunto, mas sabe aliar, como
poucos, o melhor referencial teórico com o aprendizado
transformador da espiritualidade terapêutica.

Carlos Barcelos é bacharel em Teologia e Psicologia


com especialização em Terapia Familiar Sistêmica, em
Aconselhamento e Meditação, pela lntervarsity Christian
Fellowship, Suíça, e em Recuperação de Dependência
Química, pela Rutgers University, Estados Unidos.

www.ibmalphaville.com.br Carlos Barcelos


Copyrighte 2010
Carlos Barcelos
Publicado por Alpha Conteúdos

Este livro foi publicado originalmente sob o título


Criando sua liberdade: amor sem dependência
(São Paulo: Editora Gente, 1993)

Coordenação Vernáculo Assessoria Editorial


Assistência LMA Serviços Editoriais
Revisão, Projeto Gráfico
e diagramação M&M Revisão e Diagramação
Capa Marcelo Madeira

Todos os direitos reservados à

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Alphaville — Barueri, SP
Elza,

Honro sua paciência com este co-dependente.


SUMÁRIO

Prefácio 9
Introdução 11
1. Horizontes sombrios 15
2. Caminhos áridos 19
3. Obstáculos e velhos caminhos 29
4. O perigo dos papéis ilusórios 39
5. Um novo caminho: superando os obstáculos 53
6. Marcos na trilha do sol 67
7. Ombro a ombro 99
8. Aí vem o sol 111
Onde encontrar ajuda 117
Sobre o autor 119
PREFÁCIO

É um prazer fazer parte desse livro, que é para mim fonte de


referência, um dos grandes sofrimentos da humanidade, um distúrbio
muito mais freqüente do que se imagina.
Conheci o livro há muitos anos atrás e fiquei encantada por ter a
possibilidade de indicá-lo a muitas pessoas que se tornam
codependentes ao tentar viver a vida do outro em nome do amor e
acabam perdendo as referências internas. O adoecer aqui descrito é um
processo de desamor, pois a necessidade de controlar o problema do
dependente em busca da felicidade acaba fazendo que o indivíduo viva
assustado e temeroso e seja incapaz de amar e ser amado. A intimidade é
confundida com cumplicidade e fusão.
Os codependentes são pessoas que fazem de tudo para sobreviver a
esses dilemas e se vêem frustrados, magoados e ressentidos por não
conseguirem atingir seus objetivos de viver uma vida tranqüila e feliz.
Conheci o Carlos em um curso de Formação de Terapia Familiar
Sistêmica e foi uma boa surpresa descobrir que ele era o autor de "Quero
minha vida de volta", que na época encontrava-se esgotado e fui uma das
incentivadoras para a reedição do mesmo.
Neste livro Carlos mostra com clareza alguns caminhos possíveis
para se resgatar o verdadeiro sentido do amor. O amor que cura, que
regenera, que não se deixa enganar, enfim o amor que liberta.

Maria Alice Leão Duarte


INTRODUÇÃO

S
ou filho de pai alcoólatra. Isso fez de mim, mesmo que eu
não quisesse, um co-dependente. Escrever este livro foi uma
experiência de contacto com a minha história. Contá-la sig-
nificou reviver eventos marcantes. Uns alegres, outros doloridos.
Mas o mais importante foi a modificação dos significados das mi-
nhas experiências de vida.
Como filho de alcoólatra, assumi responsabilidades que não eram
minhas. Desenvolvi alta exigência de perfeição e algumas
compulsões (a mais evidente: comprar compulsivamente). Experi-
mentei episódios de depressão como resultado de muita culpa e
vergonha, as quais foram superadas pelo carinho e pela paciência
de Elza, minha esposa.
A misericórdia de Deus se manifestou de muitas maneiras. A
principal foi o encontro com Hans Bürki, mestre suíço que me en-
sinou a lidar com minhas feridas, meus maus hábitos e minhas
adicções. Eu já estava envolvido no ministério pastoral e no ofício
de conselheiro. Mas a co-dependência ainda pesava sobre mim.
Exigências perfeccionistas me incomodavam o tempo todo.
12 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Um aprendizado da infância fez muita diferença. No período


em que meu pai bebia, minha mãe me ensinou a orar por ele. E ele
parou de beber. Experimentei a realidade da oração ao vivo e em
cores. Foi esse recurso extraordinário que, anos depois, sustentou-
me na recuperação. E foi ainda a oração que me conduziu, desde
1980, mais especificamente, ao envolvimento na recuperação de
muitas pessoas que pudemos ajudar.
Este livro baseia-se tanto em pesquisas e estudos como na ex-
periência de orientação acumulados por todos esses anos, durante
os quais tive o privilégio de participar de incontáveis histórias pes-
soais que enriqueceram minha história.
Como não podia ser diferente, a espiritualidade permeia o tex-
to. A recuperação, tanto de compulsões como de co-dependência,
passa por ela. Espiritualidade é uma característica humana, uma
vez que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Al-
guns dirão que essa é uma visão cristã do homem, reduzindo a
discussão a essa visão. Em parte, é verdade. O cristianismo é uma
das três grandes religiões monoteístas. No entanto, as outras duas
(judaísmo e islamismo) também acreditam em Deus como criador
do universo, a quem devemos respeito e adoração. Isso significa a
exclusão de outras visões? Não necessariamente. A espiritualidade
tem a ver com relacionamentos. E todo ser humano, independen-
temente de sua visão de mundo — até mesmo o ateu —, relacio-
na-se com outras pessoas. E espiritualidade tem a ver com a
qualidade desses relacionamentos.
Entendo, portanto, que temos nossa espiritualidade, quer te-
nhamos consciência, quer não. E entendo que quanto mais clara
ela for para nós, melhor nos relacionaremos com outros.
Quanto a mim, creio em um Deus que, como eu, é um ser
pessoal, desejoso de se relacionar comigo. É amoroso, que se preo-
cupa comigo e cria todas as condições para a minha felicidade. Ele
me respeita, não se impondo a mim, mas esperando com paciência
INTRODUÇÃO • 13

meu movimento em sua direção. E quando me volto para ele, o


encontro de braços abertos, com um sorriso no rosto, recebendo-
me carinhosamente em sua presença, ansioso por partilhar comigo
seus pensamentos mais íntimos.
Onde posso ver isso? Na maior manifestação da graça dele para
comigo: na encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo,
seu Filho. Unigênito, que, pela fé, abriu-me o caminho direto à
presença de Deus, pela oração e meditação.
Essas são algumas razões pelas quais acredito no Programa dos
Doze Passos, discutidos neste livro, como uma ferramenta muito
eficiente para nos livrar de nossas compulsões.
Meu sincero desejo é que a leitura deste livro o ajude a com-
preender mais de si mesmo e de Deus, tornando seu relacionamen-
to com ele uma amizade perene, vivida dia a dia.
1
HORIZONTES SOMBRIOS

O co-dependente é a pessoa que carrega


sua própria nuvem de chuva.
ANÔNIMO

D
eus criou o homem com capacidade de partilhar as mais
profundas emoções. Sabendo que não era bom que estives-
se só, decidiu dar-lhe alguém que lhe fizesse companhia.
Deus então criou a mulher.
Não é sem razão que os poetas têm escrito e cantado a respeito
da extraordinária experiência vivenciada por pessoas que se amam.
Enquanto existirem, homens e mulheres partirão em busca de com-
panhia que lhes esteja à altura de compartilhar a própria alma, pois
acalentam um grande desejo de intimidade.
Homens e mulheres querem ser aceitos como são. Desejam ex-
pressar emoções sem serem rejeitados. Se isso é verdade, por que as
pessoas acabam se estranhando mutuamente? Desde cedo, apren-
demos que grande parte de nossas necessidades afetivas é atendi-
da por outras pessoas. Ao chorar, descobrimos que a fome seria
saciada, as dores curadas e as fraldas trocadas. Nas crianças, o
choro é a expressão autêntica de necessidades, perfeitamente na-
tural e aceitável por ser a única forma possível de comunicação
com o mundo externo. As agradáveis memórias dessas satisfações
ficam gravadas no cérebro e se tornam a motivação básica de nos-
16 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

sos relacionamentos afetivos. Passamos a esperar de outros o preen-


chimento das carências afetivas da nossa alma, sem notar que não
é através do choro — de lamúrias, autopiedade e exigências des-
cabidas — que expressaremos adequadamente nossos desejos e que
não é obrigação das outras pessoas atender nossas necessidades.
Há um detalhe importante a ser observado. Se uma pessoa tem
tais carências afetivas e se aproxima de outra para tê-las atendidas,
essa outra também as tem e se aproxima da primeira para satisfação
própria. Como a carência afetiva é egoísta por definição, exigindo
prioridade em seu atendimento, temos o inicio do conflito básico nos
relacionamentos interpessoais, com cada um tentando obter a pró-
pria satisfação, muitas vezes em detrimento do outro. A fim de ga-
rantir felicidade, a pessoa começa um processo de manipulação do
outro, com o objetivo de conseguir essa satisfação. As conseqüências
disso são sérias e de grande extensão, porque criam as condições
básicas para problemas que impedirão a boa convivência.
O que parecia um dia promissor e ensolarado, torna-se feio e
nublado, à medida que as nuvens escuras dos conflitos interpessoais
avançam em nossa direção. As pessoas com quem nos relacionamos
não são coisas que dispomos como desejamos. Elas têm sentimentos,
sofrem doenças, têm seus problemas, tomam decisões que nos afetam
diretamente, brigam, exigem; enfim, estão vivas.
Tentamos negociar com essas experiências inesperadas queren-
do evitar as tempestades, e nem sempre conseguimos. As frustrações
e desilusões de nossas expectativas de satisfação emocional por cau-
sa de doenças, de dependências químicas, de comportamentos ins-
táveis, de exigências descabidas e inaceitáveis provocam o
aparecimento de mágoas, ressentimentos, culpas e vergonhas. Esses
sentimentos incomodam bastante, obrigando as pessoas a comporta-
mentos específicos na tentativa de aliviar o sofrimento. Surge em
nosso horizonte emocional uma nuvem aparentemente cor-de-rosa,
e desenvolvemos a expectativa de que ela seja a solução para os
HORIZONTES SOMBRIOS • 17

sentimentos desagradáveis que nos incomodam tanto. Sem que no-


temos claramente, essa nuvem esconde grandes tempestades em seu
interior. Essa nuvem é a co- dependência. Ela vai prejudicar
grandemente os relacionamentos que deveriam trazer felicidade ao
coração. Não querendo estar só, o homem acaba criando o que de-
sejava evitar: o isolamento das pessoas amadas. A co-dependência é
uma condição emocional, psicológica e comportamental, que resul-
ta do não atendimento das necessidades emocionais básicas das pes-
soas. Sem que elas percebam isso, a co-dependência cria uma pedra
de gelo no coração, terminando por impedir tanto a expressão aberta
dos sentimentos como a discussão franca dos problemas interpessoais.
Essa pedra de gelo traz muito sofrimento emocional ao co-de-
pendente, na forma de baixa auto-estima, pela qual suas qualida-
des e força emocional sofrem grande desvalorização. O
co-dependente experimenta forte compulsão de ajudar pessoas, as-
sociada a uma grande necessidade de mudá-las e controlá-las, como
se sem sua ajuda elas não se sustentassem, além de uma predispo-
sição extraordinária ao sofrimento, como se através dele o co-de-
pendente estivesse resgatando todos os problemas da humanidade.
A base essencial desses comportamentos é a tentativa de modificar
os sentimentos interiores por controlar pessoas, coisas, comporta-
mentos e circunstâncias exteriores. A necessidade de controle é
central em todos os aspectos da vida do co-dependente, pois tendo
deixado que sua vida fosse afetada pelo comportamento de outra
pessoa, torna-se obcecado por controlar tal comportamento, acre-
ditando que se sentirá melhor se conseguir modificá-lo.
Uma das manifestações dessas tentativas de controle é acreditar
em todas as mentiras que a pessoa-problema lhe apresenta. Isso não
é deliberado, mas inconsciente. Vem da necessidade de que as coi-
sas estejam como deseja que estejam. Daí, duvida do que vê, come-
çando a pensar que está louco porque, ao perder o contato com a
realidade, não sabe mais o que é verdade ou mentira.
18 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

O objetivo de todo esse esforço é a felicidade, mas os co-depen-


dentes não conseguem ser felizes, porque apesar de se esforçarem
até ficarem exaustos, gastando todas as energias emocionais em jo-
gos de manipulação, não conseguem controlar a pessoa-problema.
Passam a viver tão intensamente em função dela que se esquecem
de si mesmos, não tendo mais tempo para identificar ou resolver os
próprios problemas. A irritação gerada pela exaustão faz com que
todas as pessoas significativas — filhos, irmãos, cônjuge etc.— pas-
sem a ser vistas como pessoas-problema. As conversas e trocas emo-
cionais ficam prejudicadas, adicionando mais peso e exaustão sobre
os co-dependentes.
Criam expectativas muito altas, tanto em relação consigo mes-
mos como com os outros, e quando a pessoa-problema age
descontroladamente e as circunstâncias ficam difíceis, sentem gran-
de culpa, achando que não fizeram o suficiente para evitar as crises.
São confusas, precisando de conforto, compreensão e informação.
São vitimas da situação-problema, lutando para ter algum controle
sobre uma circunstancia incontrolável. E o sofrimento é maior que o
da pessoa-problema, pois enquanto esta sai para beber, usar drogas,
jogar ou procurar sua forma preferida de prazer através de seus atos
compulsivos, aquela não se beneficia com o efeito anestésico provo-
cado pela euforia que a pessoa-problema sente em seu comporta-
mento inadequado.
O maior sofrimento provocado pela co-dependência é o conflito
que ela gera. O co-dependente anseia por intimidade, por ser aceito
como é, sem medo de ser rejeitado. Esse medo leva-o à tentativa de
controle para não senti-lo, mas contraditoriamente provoca um blo-
queio na satisfação de sua intimidade. O resultado é que seu cora-
ção continua suspirando por aceitação, como se estivesse em um
deserto emocional, desejando desesperadamente por um gole de amor
que o ajude a caminhar mais um pouco. Sem dúvidas, seu horizonte
emocional está carregado de nuvens sombrias.
2
CAMINHOS ÁRIDOS

Viver era doloroso.


S., UMA CO-DEPENDENTE

T
rilhar os caminhos da co-dependência é passar por muitas
provações, pois são caminhos áridos, exaustivos e sem água,
que não saciam a sede emocional da alma.
Viver com outras pessoas demanda grande investimento emo-
cional. Implica colocar-se à disposição do outro, às vezes negando
necessidades próprias e correndo o risco de ser rejeitado. Esse é um
custo natural em todos os relacionamentos. Mas ele se torna muito
alto e ameaçador para o co-dependente, que desenvolve a fanta-
sia de que é ele que tem de suprir a necessidade do outro, esque-
cendo-se totalmente de si. Não aceita que o outro lhe ofereça algo
em troca, achando que essa oferta não é necessária nem devida,
pois isso fará falta àquela pessoa.

Isolamento
O co-dependente termina por sentir-se isolado, pois não per-
cebe o beco emocional em que se encontra. Espera que sua carên-
cia emocional seja atendida por se preocupar com o outro. Quando
o outro, tendo sido atendido, vai embora — ou não lhe dar o reco-
20 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

nhecimento que espera —, acaba sozinho e frustrado, sem nutri-


ção emocional. Com isso, esses relacionamentos ficam impedidos
de amadurecer adequadamente. Isso é enveredar por caminhos
áridos, nos quais os relacionamentos interpessoais dificilmente su-
prirão as carências afetivas tão desejadas.
A carreira profissional do co-dependente pode ser utilizada para
que se proteja dos sentimentos doloridos. O envolvimento na ativi-
dade profissional aumenta o tempo gasto em reuniões no escritório,
em congressos, jantares; o convívio social acontece pela prática de
esportes, freqüência a festas e encontros sociais que alimentam
amizades que serão superficiais na medida que são utilizadas como
recursos para o atendimento das necessidades afetivas do co-de-
pendente, pois não contêm dose suficiente de intimidade para que
sejam satisfatórias. Os estudos podem também ser utilizados para
ocupar seu tempo, ou mesmo passatempos que lhe dão a justificati-
va para o afastamento. Tudo isso procura dar-lhe o conforto do
distanciamento dos conflitos interiores. No entanto, são caminhos
árduos porque não atendem a necessidade emocional básica.
Osvaldo era um executivo bem-sucedido no trabalho, com uma
família muito bem constituída. Amava a esposa, que também o
amava. Os dois filhos, uma jovem de 17 anos e um rapaz de 13,
estavam bem orientados e seguros. No entanto, a esposa se queixa-
va de um distanciamento sutil, mas persistente. Os filhos tinham
certa dificuldade de pedir-lhe algumas coisas. Osvaldo sentia esse
distanciamento, mas tinha dificuldade de falar sobre ele. Queria
superá-lo, mas não conseguia.
Essa dificuldade tinha raiz no fato de Osvaldo ser filho de pai
alcoólatra. Apesar de seu pai ter parado de beber havia muito tem-
po, Osvaldo ainda trazia dentro de si a dificuldade de expressar sen-
timentos; quando menino, sempre temeu que tal expressão levasse
seu pai a beber e a agravar os problemas da família. O fato de seu
pai ter parado de beber reforçou-lhe a idéia de que ter bloqueado
CAMINHOS ÁRIDOS • 21

seus sentimentos ajudou a resolver o problema. Estava agindo na


pressuposição de que as dificuldades normais e eventuais em sua
família atual se resolveriam à medida que não falasse de suas emo-
ções. Não sabendo como lidar bem com elas, envolvia-se bastante
em seu trabalho e em suas leituras, transmitindo a idéia de que
queria o isolamento, impedindo que tanto a esposa como os filhos
se aproximassem dele com seus problemas e pedidos. Sem que se
desse conta, provocava o isolamento que desejava evitar. Esse exe-
cutivo não percebeu que seu problema estava vinculado ao modo
como aprendera a superar dificuldades emocionais no passado. Es-
tava sofrendo de co-dependência.

Obsessão por relacionamentos


Outro caminho árido pelo qual os co-dependentes enveredam
é o que leva à obsessão por relacionamentos afetivos tumultuados,
geralmente com pessoas difíceis e distantes. Renata, jovem bonita
e atraente, desenvolveu uma atração especial por homens mais
velhos e problemáticos. Seus relacionamentos não eram nem pro-
dutivos nem duradouros. Brigava com os namorados, que acaba-
vam por deixá-la, cansados de suas exigências, que julgavam
infantis, pois ela queria uma atenção que não estavam dispostos a
dar, uma vez que eles mesmos queriam a atenção dela. Atrás dessas
dificuldades de relacionamento estava o modelo paterno: seu pai
era alcoólatra. Ao se relacionar com homens mais velhos e proble-
máticos, Renata tentava resgatar o próprio pai, além de aspirar que
eles lhe dessem atenção paternal, o que não lhe davam. Cada um
desses relacionamentos era marcado por grande obsessão, sentin-
do-se obrigada a ajudá-los em seus problemas, e quando não con-
seguia ajudá-los, ou mesmo rompia tais relacionamentos, sentia
profunda culpa, pois entendia isso como fracasso.
Seus relacionamentos afetivos com os jovens de sua idade não
progrediam, pois tanto os achava imaturos e inexperientes como
22 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

não apresentavam o desafio do resgate paterno. Agredia-os na ex-


pectativa de que a repreendessem como se fossem seu pai. Evidente-
mente, a relação se tomava muito confusa, sem a menor condição de
prosseguir, pois os rapazes jamais preencheriam o papel de seu pai.
É possível encontrar esse pensamento obsessivo em casamentos
nos quais se desenvolveu um problema compulsivo. Um dos cônju-
ges pode tomar-se obsessivo pela idéia de não ter feito as coisas
direito. Na tentativa de superar os medos e as culpas, e diante de
estratégias que não deram certo, acabam aumentando a obsessão,
esforçando-se mais e mais exatamente naquilo que deu errado.
Quando Elaine decidiu casar-se, sofreu criticas dos pais, que
acreditavam que seu noivo não era a pessoa ideal para' ela. Com o
passar do tempo, o caráter rude e difícil de seu marido foi criando
uma disfuncionalidade no casamento. Sentindo-se culpada por não
ter ouvido seus pais, desenvolveu obsessividade com a casa, traba-
lhando duramente para mantê-la arrumada e limpa, de um jeito
fora do normal. O relacionamento com o marido não melhorava,
por mais que se esforçasse por consertar as coisas. Isso aumentou o
sentimento de culpa a ponto de prejudicar a saúde, piorando ainda
mais a situação familiar, que já era difícil. Era importante Elaine
entender que sua necessidade de manter a casa em ordem estava
associada ao sentimento de culpa pela infelicidade que sentia no
casamento. Trabalhando duro para arrumar a casa, ela tentava ar-
rumar seu casamento. Era um mecanismo de defesa emocional atu-
ando, pelo qual transferia para as coisas à sua volta a possibilidade
de alteração que só aconteceria em seu interior.
As pessoas assim envolvidas costumam confundir essa obsessão
com amor e passam a medir a quantidade desse amor pela quanti-
dade do sofrimento que experimentam na relação interpessoal.
Acreditam estar amando a pessoa-problema, quando na realidade
estão permitindo ser controladas por idéias obsessivas, mesmo per-
cebendo o efeito negativo dessas obsessões sobre sua saúde e bem-
CAMINHOS ÁRIDOS • 23

estar. Não conseguem sequer conceber a idéia de resistir a tais


sentimentos, uma vez que, para elas, seria não amar aquele que
está sofrendo.
Os pensamentos obsessivos exigem sempre um grande investi-
mento de energia. É por essa razão que, geralmente, a pessoa se
sente exausta mentalmente, não tendo energia para novas ativida-
des ou divertimentos. Além disso, impedem que se discutam pro-
bleMas longamente enraizados, desviando a atenção para coisas
sem importância, que são discutidas exaustivamente, procurando
ocultá-los como segredos que, se revelados, ameaçariam a estrutu-
ra da família. Todos brigam com todos por coisas do dia-a-dia que
seriam facilmente resolvidas sem maiores problemas, firmando pé
em posições e opiniões rígidas. As pessoas não gostam da realidade
que enfrentam e acreditam que controlarão a situação se não fala-
rem dela, ou se mantiverem opiniões rígidas e inflexíveis, muitas
vezes irrelevantes. Experimenta-se alívio temporário pelo desvio
da atenção do problema principal, mas certamente esse não se re-
solve. Pouco tempo depois, o problema voltará com força, e a situ-
ação-problema estará presente diante de todos, que continuarão
não sabendo o que fazer.
Isso aconteceu com Fátima. Era casada e mãe de dois filhos.
Queixava-se do marido, afirmando que era "sem-vergonha" e "sem
caráter". Queria separar-se dele, mas queria que ele tomasse essa
decisão, o que ele não fazia, segundo ela, por falta de personalida-
de. Fátima procurou então ajuda especializada. O terapeuta sus-
peitou de alcoolismo, segundo os dados que ela lhe apresentou. O
profissional tentou demonstrar que, sendo os dados reais, o marido
não seria um sem-vergonha, mas um alcoólatra, e que os comporta-
mentos inconvenientes eram provocados pelo beber excessivo e sem
controle, típicos do alcoolismo.
Fátima, porém, estava de tal forma obcecada pelo comporta-
mento do marido, que o tempo todo do aconselhamento fixou-se
24 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

em sua própria percepção, não aceitando que fosse mudada de


qualquer forma. Desenvolveu a obsessão em autodefesa daquilo
que sentia como uma ameaça à sua integridade emocional, assu-
mindo a posição de vítima da "sem-vergonhice" do marido. Acre-
ditava que não tinha de fazer nada; apenas precisava que alguém,
magicamente, a resgatasse. Era como se fosse uma "Rapunzel" pre-
sa no castelo do marido ditador e sem-vergonha, esperando que
alguma mágica a livrasse dessa situação. Abrir mão dessa atitude
seria tornar-se vulnerável, o que lhe dava muita insegurança e
medo. Com isso, deixava de perceber vários fatos da realidade que
seria muito importante notar, a fim de tomar as decisões necessári-
as para promover as mudanças significativas em sua vida.

Outros prejuízos
O co-dependente enfrenta também a aridez de grandes preju-
ízos em sua auto-imagem, sua auto-estima, suas emoções e seus
pensamentos. Aprende a não acreditar nas próprias percepções e
sentimentos, achando que suas opiniões não têm valor, deixando
de usá-las para dirigir sua vida. Isso interfere profundamente em
seus relacionamentos interpessoais, acabando por prejudicá-los ir-
remediavelmente.
Nega a realidade que teima em apresentar-se claramente em
sua vida, não conseguindo aceitar os problemas que enfrenta, pre-
ferindo ignorar que está diante de sérias dificuldades, particular-
mente diante do problema de dependência química, que
costumeiramente é encarado com forte dose de preconceitos. Tor-
na-se incapaz de avaliar se algo ou alguém é bom para si, uma vez
que acredita ser o responsável pelo bem-estar da pessoa ao seu
lado, ou pelo que está acontecendo a sua volta.
Sente enorme dificuldade em dizer não, quer à situação, quer
ao outro, não conseguindo evitar situações perigosas, desconfor-
táveis ou perniciosas, por não poder avaliá-las realisticamente ou
CAMINHOS ÁRIDOS • 25

de forma autoprotetora. Além da confusão toda provocada por tal


dificuldade, ele se sente mal por ter cedido ao que não desejava,
ficando preso em um beco emocional sem saída.
Paradoxalmente, o co-dependente pode estar sendo atraído para
os perigos, intrigas, dramas e desafios dos quais outras pessoas mais
experientes e saudáveis se esquivariam. É que enquanto está en-
volvido nesses problemas, pelos quais não é responsável, não tem o
tempo nem a energia de observar os próprios problemas, benefici-
ando-se da crença de que ajudando outros está ajudando a si mes-
mo. É possível também que ele pertença a uma família original
disfuncional, na qual suas necessidades emocionais não foram sa-
tisfeitas. Como geralmente se crê culpado pelas situações gerado-
ras dessa insatisfação, tenta livrar-se da culpa, tornando-se, por
exemplo, superatencioso com pessoas que acredita terem carênci-
as afetivas. Pode também contrair dívidas pelas quais compromete-
rá seu salário por vários meses, apenas para dar presentes às pessoas
que, segundo entende, precisam desse tipo de atenção.
Se um dos pais do co- dependente for alcoólatra, é comum que
procure ligar-se a um outro dependente químico, na expectativa
de resgatá-lo, com o que estaria resgatando a si próprio das culpas
que assumiu sem que notasse. Não podendo transformar seus pais
nas pessoas atenciosas que gostaria que fossem, reage forte e inten-
samente ao tipo de pessoa portadora da carência que lhe é familiar,
procurando transformá-la por meio de seu amor. A implicação psi-
cológica é que se ele conseguir sucesso nessa empreitada, terá a
sensação de estar aliviando o sentimento de culpa que carrega
consigo desde muito tempo.
Teresa sentia a aridez emocional em sua vida. Ela manifestava
muita dificuldade em tomar as atitudes necessárias para ajudar
efetivamente seu marido alcoólatra. Sua dificuldade estava no fato
de ser filha de alcoólatra, e passara toda sua vida de menina até o
casamento cuidando para que seu pai não sofresse com os proble-
26 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

mas criados pelo beber excessivo. Agora, casada com um alcoóla-


tra, tinha dificuldades em fazer o que precisava fazer, porque pro-
jetava sobre o marido a imagem do pai. Tendo aceito o cuidado de
seu pai como sua responsabilidade, transferia esse cuidado para o
marido, o que fazia com que suas atitudes acabassem por facilitar a
continuidade do problema, não tendo a firmeza necessária para
auxiliá-lo a mudar de comportamento.
Teresa sentia medo intenso da rejeição, que a obrigava a fazer
o possível para que seu casamento funcionasse de qualquer forma.
Nenhum esforço era pesado, nada era custoso, desde que o que
fizesse lhe desse a sensação de que estava conseguindo melhorar as
difíceis relações com o marido. A falta de amor e atenção não era
algo estranho, muito pelo contrário. Como nunca pode esperar isso
de seu pai alcoólatra, procurava produzi-los em si agora, dedican-
do-se compulsivamente à pessoa-problema.
Apesar desse esforço, as dificuldades não desapareciam. E em
vez de pensar que o que impedia a sua melhora era o alcoolismo do
marido, ela acabou aceitando que precisava esforçar-se mais um
pouco, na esperança de que o problema desaparecesse. E constan-
temente estava esgotada e cansada, porque simplesmente as coisas
não ocorriam segundo sua expectativa. Acabava por desprezar-se
como incapaz e passava a acreditar que não merecia ser feliz.

O profundo poço do controle


O co-dependente procura saciar sua sede emocional no poço
do controle, mas acaba se frustrando ao tentar exercer o domínio
sobre pessoas, circunstâncias e coisas, pois percebe que esse poço
só produz água amarga, cheia de sentimentos de inadequação, de
inferioridade, de rejeição. Na tentativa de diminuir a frustração,
mergulha em um agitado envolvimento com os problemas dos ou-
tros, na esperança de aliviar seu próprio sofrimento. Dá pouca aten-
ção para sua integridade pessoal, concentrando sua energia na
CAMINHOS ÁRIDOS • 27

mudança do comportamento e sentimentos da outra pessoa, atra-


vés de manipulações difíceis e desesperadas. Esses esforços se ma-
nifestam de várias formas: ora o co-dependente é muito prestativo
para com os outros, atendendo suas necessidades como se só ele
fosse capaz de fazer isso; ora fantasia demais a respeito de como os
relacionamentos deveriam ser, desviando sua atenção de como re-
almente são; ora isola-se de todos, na expectativa de que sintam
sua falta e corram à sua procura.
Essas atitudes não correspondem à realidade dos fatos, quer em
nível concreto, quer em nível emocional. Isso é altamente frus-
trante, pois acaba na não satisfação de suas necessidades emocio-
nais, que é o oposto do desejado pelo co-dependente.
Além disso, essas atitudes embutem o risco de criação de com-
portamentos compulsivos, e, sem que se dê conta claramente, o
co-dependente poderá estar desenvolvendo um problema seme-
lhante aquele que é a raiz de sua co-dependência.
Célio apresentou essa dificuldade. Dependente de cocaína e
álcool, foi internado com o apoio de suas irmãs, uma vez que seus
pais já eram falecidos. Antes que falecessem, sua mãe adoecera e
já não podia cuidar do marido. Como as filhas precisavam traba-
lhar fora, Célio, o único filho homem, recebeu a incumbência de
cuidar de ambos, pois seu pai também era alcoólatra e bebeu por
muitos anos, até morrer. Sentimentos contraditórios se instala-
ram no coração de Célio. Não suportando o ambiente hostil de
sua casa, procurava permanecer tanto quanto possível fora dela.
Mas isso o enchia de culpa, pois não estava cuidando de seus
pais. Daí voltava a casa para cuidar deles, fazer comida, limpar a
residência, enquanto suas irmãs estavam fora. Nesse processo de
vida, conheceu as drogas por meio de amigos. Ele, filho de alcoóla-
tra, passou a ser dependente de drogas, até como uma tentativa de
controle de uma situação que lhe era extremamente desfavorável
emocionalmente.
28 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

A co-dependência é um processo que envolve a pessoa em


amarras emocionais tirânicas, que provocam muito sofrimento.
Quando acontece algo muito doloroso, e o co-dependente diz a si
mesmo que falhou, está na verdade dizendo que tem controle so-
bre aquele acontecimento. É como se o sofrimento que sente fosse
causado por aquela suposta falha da parte dele. Culpando-se, ele
se prende à esperança de que seria capaz de descobrir onde está o
erro e corrigi-lo, controlando dessa forma a situação e fazendo o
sofrimento cessar. Essa dinâmica está por trás de muitas auto-acu-
sações que o co- dependente faz. O resultado disso é que o co-
dependente experimenta constante fracasso. As atitudes que toma
não darão certo, pois alimentam a culpa e proporcionam motivação
para continuar procurando a solução. A armadilha é que ele acre-
dita que está acertando, quando, na verdade, está sabotando qual-
quer possibilidade de bons resultados, de modo que nada que faça
será suficiente; e promovendo seu fracasso, de modo que tudo o
que conseguir fazer não dará certo. Não tem permissão para sabo-
rear o resultado de seu esforço, pois como pode reconhecer e apro-
veitar tal resultado, sendo tão culpado de tantas coisas?
Não é sem razão que a vida do co-dependente é de uma secura
emocional extraordinária, fazendo com que sofra o tempo todo uma
dor surda e persistente. Sente-se como uma criança órfã, muito
distante de sua casa, perdida na imensidão da vida, sem ninguém
para lhe apontar o caminho. Sua vida parece embaraçada em amar-
ras que não consegue cortar: são os obstáculos e os velhos cami-
nhos, que trataremos no próximo capítulo.
3
OBSTÁCULOS E

VELHOS CAMINHOS

A
h, as crianças! Elas nos fascinam com seu sorriso e sua ale-
gria francos. O que falam e como falam enchem-nos de
ternura e encantamento. Elas são capazes de despertar pro-
fundos sentimentos, que nos comovem e nos lembram de situações
que vivemos na infância.
Se por um lado elas nos fascinam em sua inocência, essa mesma
condição natural as coloca em posição de grande vulnerabilidade,
tanto física como emocional, deixando-as à mercê de danos pro-
fundos que levarão para a vida adulta.

O poder da disfuncionalidade
Uma criança que vive em uma família disfuncional será envol-
vida em dificuldades provocadas por situações criticas sobre as quais
não tem nenhum controle. A disfuncionalidade força os filhos a
assumir prematuramente responsabilidades que ou não eram suas
ou para as quais não estavam capacitados ainda. Essa é uma situa-
ção injusta, pois a criança não tem nenhuma condição de se de-
fender de exigências pesadas e descabidas.
30 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

A ausência de um dos pais, às vezes por razões fora de seu con-


trole (morte, divórcio, doença prolongada, viagens a trabalho), pode
ser outra fonte de geração de co- dependência. Tais circunstâncias
e outras semelhantes forçam as crianças a crescer rápido demais.
Como reação natural de defesa, aceitam prematuramente como
suas as responsabilidades de outros, assumindo o lugar dos pais au-
sentes, acreditando que é sua obrigação fazer isso. As crianças são
excelentes observadoras, percebendo rapidamente o clima difícil
em sua família, mas péssimas intérpretes, assumindo a culpa pelo
que acontece. A conseqüência é o aparecimento de dificuldades
injustas, que as marcam para a vida. Alguns dessas dificuldades
podem ser percebidos logo: baixo rendimento escolar; obstáculo de
estabelecer amizades, uma vez que não se sentem à vontade em
convidar colegas para ir a casa, por vergonha da disfuncionalidade;
um comportamento rebelde, de questionamento das figuras de au-
toridade, como professores, vizinhos e pessoas mais idosas.
Outras dificuldades só surgirão mais tarde, quando as nuvens
sombrias em sua vida são visivelmente perceptíveis. Na vida adul-
ta, tendem a ter grande dificuldade com intimidade, sendo-lhes
custoso estabelecer relacionamentos afetivos com pessoas do outro
sexo. Esses relacionamentos, como é natural, exigem investimento
emocional e a livre expressão de sentimentos. Toda aproximação e
relação interpessoais do co- dependente serão marcadas por gran-
de sentimento de desconfiança, o que impede o estabelecimento
de relacionamentos amadurecidos. Não sabe agir de forma dife-
rente do que viu e recebeu de seus pais. Este é o único referencial
de que dispõe para orientá-lo nos relacionamentos afetivos que vai
estabelecendo em sua vida. A desconfiança gera dificuldades na
formação de uma identidade pessoal equilibrada e saudável, pre-
judicando o encontro de seu rumo de vida.
Comportamentos compulsivos, como trabalho excessivo, comi-
da exagerada, compras desnecessárias, podem se estabelecer como
OBSTÁCULOS E VELHOS CAMINHOS • 31

uma reação emocional, dificultando o estabelecimento de relações


interpessoais construtivas. E se chegar ao casamento, as dificulda-
des serão transferidas tanto para os relacionamentos matrimoniais
como para os relacionamentos parentais.
O filho adulto de pai alcoólatra, se casado e com filhos, poderá
não se sentir à vontade nem com suas emoções nem com as dos
outros. Quando lhe é solicitada uma manifestação emocional pela
esposa ou pelos filhos, geralmente se esquivará de alguma forma.
Isso o torna rígido emocionalmente e distante de sua família, pro-
vocando um distanciamento surdamente dolorido. Poderá ter difi-
culdades para desenvolver projetos pessoais e familiares, como o
término de um curso, a leitura de um livro, a conclusão da reforma
da casa ou da pintura da sala de jantar. Poderá ser difícil manejar o
dinheiro, comprando por impulso coisas que não são tão necessári-
as, ou não conseguindo um controle adequado das contas a pagar.
O relacionamento sexual com sua esposa poderá ser complica-
do. Sabe que o sexo é vital para sentir-se aceito como é, mas tem
dificuldade em dizer que carícia gostaria de fazer ou receber, com
medo ou de desagradar, o que o faria sentir-se culpado, ou de rece-
ber um não, o que o faria sentir-se rejeitado. Torna-se exigente e
ansioso no relacionamento sexual, o que não ajuda em nada para
um bom momento de intimidade. E como não ajuda, acaba sentin-
do-se um pouco mais culpado e rejeitado, incapaz de satisfazer-se
e a sua esposa.
Sua vida profissional pode receber influência direta também,
sem que note por que isso está acontecendo. Tende a ser o melhor
funcionário, responsável e dedicado, às vezes além do necessário e
aceitável. Sua baixa auto-estima não lhe deixa valorizar sua capa-
cidade pessoal, não atribuindo a si mesmo um bom valor pessoal e
profissional, permitindo que outros explorem seu trabalho, sem lhes
exigir um tratamento justo. Não se sente à vontade para dizer não
a propostas inaceitáveis que, apesar disso, aceita. Aí, remói-se em
32 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

um inferno de culpa e ressentimento porque fez o que não gostaria


de ter feito.
A filha de um pai alcoólatra poderá desenvolver a tendência
de sempre se envolver com uma pessoa parecida com seu pai, na
tentativa de ganhar a velha luta pelo amor, que é revivida quando
ela procura estabelecer relacionamentos afetivos com outros ho-
mens. Tenderá a se envolver com uma pessoa que a rejeitará e não
lhe dará a afetividade necessária, ou que certamente a abandona-
rá. Apesar do sofrimento de rejeição que isso lhe traz, poderá não
conseguir tomar as atitudes adequadas para estancar tal sofrimen-
to, pois isso pode significar mais uma derrota, uma vez que consi-
dera um fracasso seu não ter podido ajudar o pai. E se ela o ajudou,
poderá sentir muita culpa, pois, como é que não consegue ajudar a
pessoa-problema agora, uma vez que já conseguiu encontrar uma
solução no passado?
Quando casada, tenderá a ter expectativas a respeito do trata-
mento que gostaria de receber do seu marido, baseada na atenção
que não recebeu do pai. Mas assim, como não se sentiu livre para
solicitar a atenção do pai, não se sente livre para solicitá-la do
marido. O desejo permanece em seu coração, mas não o expressa
em palavras. Seu marido pode não perceber o que ela deseja e, não
atendendo tal desejo, ela se sente frustrada, rejeitada, sem valor,
reatualizando os sentimentos doloridos que experimenta desde a
infância.
Joana, uma bonita garota dependente de cocaína, internou-se
para tratamento levada por seus pais. Durante o tratamento, per-
cebeu que além do problema de dependência química, sofria de
co-dependência associada ao alcoolismo de seu pai. Este, quando
bebia muito, ameaçava sua mãe, dizendo que a mataria. Joana ou-
vira essas ameaças muitas vezes, quando era pequena. E na tenta-
tiva de proteger a mãe, ficava dormindo no corredor da casa para
evitar que o pai a agredisse. Isso nunca aconteceu realmente, mas
OBSTÁCULOS E VELHOS CAMINHOS • 33

foi o suficiente para instilar desconfiança, medo e insegurança em


sua mente. Para proteger-se desses sentimentos, passou a tentar
controlar suas circunstâncias, e como não conseguia, sentia gran-
de peso de responsabilidade. Em determinado momento, experi-
mentou a cocaína e se surpreendeu com as sensações de segurança
e poder que essa droga lhe dava. Como sentia muita carência
afetiva, e a experiência com a cocaína foi prazerosa, ela iniciou seu
processo de dependência química.
É evidente que Joana não era responsável pela disfuncionalidade
em sua família de origem. No entanto, estava carregando um peso
de responsabilidade que não era seu. As dificuldades geradas em
uma família disfuncional cria situações difíceis para o co-depen-
dente. Ele sente-se pressionado emocionalmente por um ambiente
hostil, crítico, manipulador, opressivo e age procurando aliviar essa
pressão, tentando socorrer a pessoa-problema ou tentando evitar
que a família sofra as conseqüências da situação-problema. E se
não conseguir atender a essa solicitação, sentirá tanto culpa por
não ter sido forte e esperto o suficiente para controlar a situação,
como medo de fracassar em desempenhar o papel que lhe foi atri-
buído e aceito por ele. Sua tendência é não se proteger dessas
imposições que acontecem de forma muito sutil. Como as disfunções
familiares o fazem sofrer, procura rapidamente controlar as situa-
ções conflituosas e prontamente acredita que assumir responsabili-
dades será a solução para o sofrimento.
É possível que bem cedo na vida um de seus pais o tenha visto
como uma pessoa forte e lhe pediu, talvez até mesmo de forma indi-
reta, que o protegesse ou suprisse alguma carência. Acreditou que
se não o apoiasse, a pessoa sofreria muito; e se deixasse de apoiar os
outros membros da família, esta se desmoronaria. Isso representa um
custo emocional muito alto para o filho de uma família disfuncional,
pois suas necessidades de atenção, amor, cuidado e segurança não
foram satisfeitas enquanto ele lutava bravamente contra pesadas
34 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

adversidades, disfarçando quão frágil era e quanto necessitava de


carinho. Aprende a negar seus sentimentos, e cresce obrigando-se a
se preocupar com os desejos e solicitações de outras pessoas. Soube
cuidar muito bem dos outros, menos de si mesmo.
A convivência com um dependente químico é o exemplo acaba-
do dessa situação. Seus comportamentos inesperados, cruéis, indife-
rentes, desonestos e difíceis desenvolvem nas pessoas à sua volta
uma dependência emocional, equivalente à dependência de uma
droga. Os familiares passam a viver em função das atitudes do de-
pendente químico. A situação, aqui, toma-se estranha e paradoxal.
De um lado, a pessoa-problema que não tem controle de sua vida
passa a controlar a vida dos outros pela co-dependência. De outro, o
co-dependente aceita o peso extraordinário de suportar a situação-
problema, esperando controlá-la, acabando por perpetuá-la e mantê-
la viva e ativa no seio da família, e perdendo o controle de tudo.

A grande ilusão
Mais estranho ainda, a co-dependência cria a ilusão de bene-
fício, no sentido que permite o esquecimento dos sentimentos do-
loridos experimentados pelo co-dependente, que os tem
anestesiados, já que sua atenção está toda voltada para a pessoa-
problema e as situações constrangedoras que ela cria.
Sem dúvida, toda essa situação é muito perturbadora para o
filho de uma família disfuncional. É um peso ter de alterar compor-
tamentos para escapar de seus sentimentos, justificando tudo o que
sente pelas atitudes do outro. Também é um peso notar que todo
esse esforço não resolveu sua dificuldade. Ele sente muito desâni-
mo e cansaço por essa luta infrutífera.

Os velhos caminhos
Eliana não compreendia por que tinha se casado com um alco-
ólatra, uma vez que ela mesma era filha de pai alcoólatra e jurara
OBSTÁCULOS E VELHOS CAMINHOS • 35

jamais pensar em se casar com alguém que bebesse. O que aconte-


cera para que escolhesse um marido alcoólatra ? Ela não sabia que
um forte componente psicológico havia interferido de forma
determinante na escolha do homem que seria seu marido.
Como filha de pai alcoólatra, ela desenvolveu uma grande fas-
cinação pelas emoções provocadas por pessoas-problema e uma atra-
ção extraordinária pela excitação negativa que essas pessoas
proporcionam, sem o que a vida lhe parecia sem sentido. Sem que
desejasse, ou pelo menos notasse, estava percorrendo velhos cami-
nhos. É como a pessoa que está tão habituada a um certo caminho
que entra por ele distraidamente, quando seu plano não era seguir
por ali. Isso comumente acontece nas situações de co-dependên-
cia, quando o caminhante, tão envolvido em seus problemas e em
como escapar deles, não percebe que está repetindo as mesmas
situações-problema das quais quer escapar.
Eliana passou a trilhar esses velhos caminhos quando aprendeu
a reagir defensivamente aos comportamentos abusivos de seu lar
de origem. Só se sentia segura quando encontrava o mesmo tipo de
comportamento nas pessoas com as quais entrava em contato na
vida adulta. Seus radares emocionais captavam os sinais sutilmen-
te emitidos por outras pessoas-problema, com as quais antigos pa-
drões de comportamento poderiam ser recriados.
Por que Eliana e outros recriariam padrões de comportamento
que queriam evitar a todo custo? A razão disso é que o co-depen-
dente se sente confortável e à vontade com as pessoas com as quais
pode se comportar exatamente como em seu lar disfuncional de
origem. Os sentimentos despertados são familiares, mesmo que seja
o sofrimento em uma situação difícil. O co-dependente tem a sensa-
ção extraordinária de que descobriu o sentido de sua vida, pois en-
controu alguém com a qual poderá reviver toda a sua vida anterior.
Muitas vezes, acredita que agora poderá reparar o sofrimento anteri-
or, através da tentativa de resgatar pessoas e situações-problema.
36 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Eliana não conseguia se relacionar bem com pessoas gentis,


amáveis e mais saudáveis, achando-as aborrecidas e sem graça,
pois estava faltando o desafio de ajudar pessoas, o que, como co-
dependente, era tão significativo para ela. As pessoas saudáveis se
colocariam, naturalmente, à disposição para servi-la, nutrir seu amor,
apoiá-la e estimulá-la positivamente. Mas isso lhe era muito estra-
nho, pois não estava acostumada a tanta atenção. Sentia desconfi-
ança dessas pessoas e o resultado era que um rompimento sempre
acontecia, uma vez que sua satisfação emocional vinha através do
dar-se sem fim aos outros, e não de receber-lhes sua atenção.
O co-dependente escolhe seus relacionamentos e mesmo seu
cônjuge com a impressão de que já conhecia profundamente essas
pessoas. Isso cria uma atração irresistível, tão forte quanto incons-
ciente, de tal forma que faz suas escolhas como que cego à realida-
de que está claramente lhe apontando os riscos envolvidos nessas
escolhas.
Questões não resolvidas na infância, particularmente as relaci-
onadas com abuso e negligência, tendem a desenvolver comporta-
mentos compulsivos que repetem a experiência dolorosa do passado.
Essa propensão impede a liberdade de escolha. O co-dependente
sente-se obrigado a reviver o passado em uma tentativa infrutífe-
ra de lidar com o que ele está negando conscientemente. Quan-
do os problemas se tomam incontroláveis, como fatalmente se
tomarão nessas circunstâncias, o co-dependente reage com gran-
de negação da realidade. Isso pode provocar extraordinária resis-
tência as mudanças que precisa fazer, gerando grandes dificuldades
na recuperação necessária. O sábio rei Salomão disse: "Há cami-
nhos que parecem direito ao homem, mas afinal são caminhos de
morte")

Provérbios 14.12.
OBSTÁCULOS E VELHOS CAMINHOS • 37

Isso acontece com a repetição histórica que leva o co-depen-


dente por velhos caminhos, impedindo o brilho do sol em sua vida.
Pessoas saudáveis e equilibradas não apresentam desafios para o
co-dependente, que tende a sentir que o relacionamento com es-
sas pessoas é aborrecido e sem perspectiva, como se nada de inte-
ressante estivesse acontecendo. Geralmente, o co-dependente não
percebe que uma grande abertura para o futuro reside num relaci-
onamento saudavelmente interdependente. Sem isso, não há como
ver para que lado está brilhando o sol.
Há esperança, porém. É possível encontrar o caminho em dire-
ção a planícies verdejantes onde brilha o sol. É só achar a maneira
correta para se desvencilhar dos dificuldades ou dos obstáculos
injustos que impedem sua caminhada, e isso também inclui os ve-
lhos caminhos. Antes, vejamos outros perigos que rondam a cami-
nhada do co-dependente.
4
O PERIGO DOS PAPÉIS ILUSÓRIOS

Devemos tentar aprender quem realmente somos


e não dizer quem deveríamos ser.
JOHN POWELL I

O
caminho da co-dependência é cheio de armadilhas e si-
tuações de perigo para a caminhada do co-dependente,
que está sempre olhando para cenas ilusórias que lhe es-
condem a realidade. Essas cenas são representadas por atores que
aparecem em seu caminho, encenando papéis muito fascinantes,
que distraem a atenção do caminhante, prometendo-lhe diversão
e lazer, quando, na verdade, estão atrasando a chegada à planície
onde brilha o sol.
Esses atores podem ser os próprios membros da família disfun-
cional, ou uma única pessoa que se alterna na representação dos
vários papéis, de forma tão convincente, que faz com que o co-
dependente acredite que não se trata de uma peça, mas a realida-
de em sua vida. O surgimento desses papéis é resultado das
dificuldades de relacionamento e intimidade enfrentados na con-
vivência com os outros membros da família. São um meio de sobre-
vivência na passagem pela vida, procurando fazer com que a travessia
seja feita com o mínimo de sofrimento possível.

1
Arrancar Mascaras! Abandonar Papéis! 3. ed. São Paulo: Loyola, p. 38.
40 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

No entanto, esses papéis acabam criando muito mais dificulda-


des que soluções. Os papéis tornam-se padrões de comportamento
rígidos e desarrazoados, evitando que os relacionamentos amadu-
reçam e se desenvolvam, desviando ainda mais o co-dependente
do objetivo da caminhada, chegando na falta de intimidade que
tanto abomina, pois os papéis escondem quem as pessoas realmente
são, impedindo que sejam amadas como são.
Uma vez que tais papéis significam a sobrevivência emocional
de cada um dos atores, nenhum deles abre mão de seu papel com
facilidade, mesmo que a razão lhes diga que é melhor modificar
seu comportamento, gerando muitas dificuldades nos outros rela-
cionamentos na vida do co-dependente.
Fora da família, comportamentos diferentes são exigidos das
pessoas, forçando a mudança constante dos papéis. Normalmente,
as pessoas adaptam-se a esses comportamentos diferentes sem muita
dificuldade. Mas isso não é tão simples para o co-dependente, que
se sente inseguro com a mudança dos referenciais emocionais e com
a necessidade de adaptação dos papéis para a convivência social.
Ele consegue adaptar-se, mas a custo de grande esforço emocional.
Experimenta sensações de inadequação e isolamento, não se sen-
tindo à vontade nem no lugar onde está, nem com as pessoas com
quem está, como se as circunstâncias à sua volta devessem ser com-
pletamente diferentes, ainda que não saiba como deveriam ser.
Apesar dessa adaptação, os antigos papéis ficam guardados em
sua memória, para emergirem nos relacionamentos posteriores em
sua vida adulta. Quando ressurgem, criam muitos conflitos e con-
fusão, pois os papéis que funcionaram muito bem em sua família de
origem não funcionam mais na maturidade, uma vez que as situa-
ções agora são diferentes das anteriores. Se aqueles papéis não fo-
rem trocados ou revisados, influenciarão com certeza suas decisões
e emoções, e o co-dependente corre o sério risco de ver seus rela-
cionamentos e sua felicidade destruídos.
O PERIGO DOS PAPÉIS ILUSÓRIOS • 41

Esse drama foi vivido intensamente por Diana. Ela era filha de
um pai alcoólatra e casou-se com um alcoólatra, que, por sua vez,
era filho de alcoólatra também. Anos após se casar, decidiu se se-
parar. Mais tarde, o comportamento social e escolar de sua filha de
catorze anos alterara-se um pouco, e Diana descobriu que ela ex-
perimentara maconha. O estado emocional de Diana ficou em fran-
galhos, pois tanto não esperava isso da filha como não sabia o que
fazer.
Sem que tivesse notado, projetara o papel que ela mesma vive-
ra em sua infância, o de heroína, sobre sua filha. A cada vez que
elogiou e admirou o comportamento responsável de sua filha, esta-
va estabelecendo um alto padrão de comportamento para ela, que,
sem que pudesse dizê-lo, para não magoar sua mãe, achava-o alto
demais. Quando quis tomar algumas decisões por si mesma, viu-se
na necessidade de mentir para a mãe, acreditando estar abaixo das
expectativas dela. Ao descobrir o comportamento da filha, Diana
sentiu-se abalada, pois sua filha não atingira o alto padrão que
projetara sobre ela. Diana acreditava que seu papel de heroína
estivesse superado.
No entanto, ela se reatualizou nas expectativas que transferira
para a filha. Quando percebeu que esta não as atendera, foi como
se ela mesma não as tivesse atendido. Não era sem razão, portanto,
que experimentara grande choque e confusão. Seu estado emocio-
nal só se equilibrou quando percebeu esse mecanismo projetivo
dos papéis, e, a partir daí, corrigiu suas expectativas e permitiu que
sua filha pudesse viver sua vida, ressalvando claramente que não
admitiria o uso de maconha.

Os atores
Os papéis representados pelos atores nas peças à beira do cami-
nho são: o herói, o bode expiatório, o mártir, o mascote, a criança
perdida. Todos esses papéis surgiram na família de Mário.
42 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

O herói
Mário tentava consertar todos os estragos e situações constran-
gedoras causadas pelo alcoolismo em sua família. Queria que sua
família funcionasse de forma adequada e se esforçava para preen-
cher as faltas e erros dos outros familiares. Ajudava sua mãe nas
tarefas de casa, substituindo-a na lavagem de roupa, na prepara-
ção da comida para seus irmãos menores. Saia atrás de seu pai,
procurando-o pelos bares do bairro, medicava-o quando estava de
ressaca, ia esperá-lo na porta da fabrica para ver se conseguia trazê-
lo para casa sem beber. Sendo o filho mais velho, recebia o peso
extraordinário de servir de suporte emocional tanto para seu pai
como para sua mãe e irmãos. Não recebia elogios e apoio da famí-
lia, mas era reconhecido como a criança confiável, conscienciosa,
madura e capaz pelos de fora. Na escola, era um dos melhores alu-
nos, sempre trazendo boas notas para casa. Transferia para a rela-
ção aluno-professor a relação pai-filho, pela qual conseguia ter parte
da aceitação que não tinha em casa.
Sobressaia-se muito bem tanto nas tarefas que lhe eram solici-
tadas como naquelas em que tomava a iniciativa de realizar. Esses
eram alguns benefícios que Mário recebia desse comportamento.
Mas sob esse papel havia um menino que não se permitia vi-
brar com suas vitórias, porque sempre tinha a sensação de fracasso.
Por mais bem-sucedido que tivesse sido, a situação-problema per-
manecia a mesma, senão pior a cada dia. O nível de exigências
sobre si era tão grande que estava sempre se sentindo devedor de
algo para alguém. Tudo o que fazia era percebido apenas como sua
obrigação em tentar superar a disfunção na família.
Mário, o herói, era um diplomata que tentava administrar as
situações-problema de modo a conseguir o alivio da tensão na fa-
mília. Agia intermediando situações difíceis, procurando de todos
os modos possíveis modificá-la para melhor. Conhecia as palavras
exatas para tranqüilizar os irmãos, aplacar sua mãe e manter seu
O PERIGO DOS PAPÉIS ILUSÓRIOS • 43

pai por ali em relativo sossego. Negociador nato, reconhecia antes


de todos os outros as nuvens sombrias no horizonte que podiam
trazer uma tempestade sobre a família e procurava abrigar todo
mundo. Usava até de dissimulações para manter os atritos familia-
res em um nível mínimo.
Uma característica comum do herói é que escolhe uma profis-
são baseado não em seu desejo, mas para atender o desejo de al-
guém da família. Já que ele é o herói, tem de enfrentar o que não
gosta, na esperança de que isso termine por modificar o problema
de casa. E mesmo que tenha escolhido o que deseja, é possível que
nunca tenha certeza da escolha correta, pois qualquer que seja
essa escolha, o problema não se altera. Isso sempre lhe deixará dú-
vidas quanto à decisão.
O herói conseguirá um segundo trabalho para pagar as dívidas
da família, apoiará a pessoa-problema, contratará o advogado que
a livrará de dificuldades com a polícia, assumirá responsabilidades
e executará trabalhos que de outra forma não seriam atendidos. O
herói, ocupado em tantas atividades pelas quais se sente responsá-
vel, não tem tempo para ocupar-se com as próprias dores. Desvia a
atenção de seus problemas, evitando a dor de enfrentá-los. Esse é
um dos benefícios emocionais que obtém nesse papel.
Mas há outros benefícios. Carolina, esposa de um alcoólatra
que se internou para tratamento, enfrentou grandes dificuldades
em mudar sua atitude por causa de benefícios desse tipo. Seu ma-
rido conseguira sucesso financeiro dirigindo uma grande imobiliá-
ria. À medida que o alcoolismo foi tomando conta da vida dele,
Carolina foi assumindo mais e mais o controle dos negócios, desco-
brindo o poder que foi conquistando até o controle total da empre-
sa. Com isso, seu marido tinha mais tempo para beber.
Quando ele decidiu fazer alguma coisa para parar de beber,
Carolina percebeu que teria de abrir mão do controle absoluto. E
isso se tomou uma das grandes dificuldades tanto em sua recupera-
44 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

ção como na do seu marido. Não lhe era fácil sequer pensar em
deixar seu papel de heroína, por causa dos benefícios tanto emoci-
onais quanto financeiros que o controle da situação lhe trouxera.

O bode expiatório
Mário, o herói, tinha outro problema, além do alcoolismo de
seu pai. Elói, seu irmão do meio, representava o papel de bode
expiatório.
Criava muita confusão à sua volta: ao contrario de Mário, ten-
tava aliviar o sofrimento da família procurando chamar atenção
sobre si, através das estripulias que arrumava. Sentindo-se o "res-
ponsável" por tudo o que acontecia em sua família, aceitava ser
punido para com isso resgatar o problema que tanto afligia a todos.
Havia um laço emocional muito forte entre Mário e Elói. Mário
chamava atenção por não ser como Elói, que chamava atenção por
não ser como Mário. Mário reforçava seu heroísmo tentando corri-
gir o que Elói fazia, e este queria aliviar o fardo de responsabilida-
des de Mário oferecendo-se como razão para zangas e repúdios,
desviando a atenção do problema maior da família.
O bode expiatório tem um beneficio emocional muito impor-
tante quando aceita a culpa: recebe a atenção que lhe falta quan-
do todos estão preocupados com os problemas familiares. Se ele for
a causa de tudo, acredita estar suprindo a carência afetiva que
sente. Ele vivencia o provérbio ao pé da letra: "Falem mal, mas
falem de mim". Enquanto falam dele, não falam do problema maior
da família.
Muitas vezes, tenderá a repetir o comportamento da pessoa
disfuncional, querendo com isso expiar a culpa daquele. Só que
com isso o co-dependente poderá criar muitas dificuldades para si
mesmo por ter assumido tal papel, sem ter resolvido o problema
básico. Agora, depois de anos, terá de resolver seus problemas cri-
ados por conta da tentativa de carregar a culpa de toda a família.
O PERIGO DOS PAPÉIS ILUSÓRIOS • 45

Pode haver uma certa variação nesse papel, quando o bode


expiatório passa a perseguir outros membros da família, acusando-
os pelos problemas e dificuldades. Ele fala a todos quais são os erros
que estão cometendo e os cobra por não fazerem tudo perfeitamen-
te. Torna-se uma pessoa desagradável para ter por perto. E a sua
forma de desviar a atenção do problema básico — ao mesmo tempo
exalta sua autojustiça e critica a todos — faz com que as pessoas
não olhem para ele e possam enxergar suas fraquezas. Seu benefí-
cio é esconder-se atrás dessa atitude, evitando o trabalho de corri-
gir seus erros.

O mártir
Elza, mãe de Mário, assumia o papel de mártir. Estava disposta
a pagar qualquer preço pessoal para aliviar a pressão. Sacrificava
tempo, energia e felicidade para manter a família junta e para ten-
tar fazer a pessoa-problema modificar suas atitudes disfuncionais.
Iria até o fim do mundo para conseguir que as coisas ficassem cer-
tas. Por "certas" quer dizer "certas conforme o seu jeito". Às vezes,
conseguia mudar algumas coisas, mas não conseguia que a pessoa-
problema mudasse seus hábitos. Tirava vantagem do aplauso que
recebia por ser esposa e mãe tão devotada àquela família tão pro-
blemática. E talvez até conseguisse resolver o problema, se o mari-
do notasse o sacrifício que fazia e decidisse parar de beber. Sem
que notasse, tirava vantagem do fato de as pessoas verem o sacrifí-
cio que fazia e a aplaudirem por ser tão devotada.
Um dos traços característicos do mártir é beneficiar-se da
autopiedade, reclamando constantemente da situação na qual vive,
dizendo-se — e aos outros — que seria feliz se as coisas fossem dife-
rentes do que são. O mártir acha-se tão bom internamente que nada
do que está acontecendo é justo, que ele não merece isso. Também
se apresenta cheio de autopiedade, e seu choro, reforçando essa ati-
tude, chama atenção para si, pois deseja que todo o mundo perceba
46 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

como ele é coitado. Procura evitar sua mudança pessoal, justifican-


do-se que é o que é por causa da pessoa-problema. É bastante co-
mum encontrar esse papel sendo representado pela esposa e mãe da
família disfuncional. Sente-se culpada diante da sociedade pelo pro-
blema que a sua família está enfrentando e procura resgatar-se dessa
culpa demonstrando aos outros todo o esforço que sacrificialmente
está fazendo para corrigir a disfunção familiar.

O mascote
Francisco, o terceiro filho dessa família, representava o papel
do mascote da família. Sempre fazia brincadeiras sobre tudo e to-
dos. Ria da seriedade do Mário e ridicularizava a rebeldia do Elói.
Todos acabavam se divertindo com Francisco, pois os sofrimentos
que experimentavam sempre ganhavam uma piada. Francisco acre-
ditava que tinha a responsabilidade de fazer com que todos —
incluindo ele mesmo — esquecessem por alguns momentos que a
vida doía assustadoramente. Quando via os familiares rindo, sen-
tia-se importante e valorizado. Freqüentemente o pequeno garoto
que faz todo mundo dar risadas com seu bom humor é mais triste
interiormente que qualquer outro membro da família. Ele repre-
senta na vida real a história do palhaço que ri enquanto o circo
pega fogo, pois o espetáculo tem de continuar.
Na juventude sentiu-se muito isolado e fazia graça para tentar
não se sentir assim. Na maturidade, poderá permanecer imaturo,
tendo dificuldades em olhar seriamente para os problemas de rela-
cionamento procurando, como antes, aliviar a seriedade com que
tais relacionamentos devem ser tratados.
Não é que não possa ter bom humor, pois é possível haver seri-
edade e bom humor ao mesmo tempo. Mas ele pode estar tentando
dizer, com a galhofa e as piadas, que não há problemas, ou tentan-
do desviar a atenção, tanto sua como dos outros, da necessidade
de enfrentar com coragem os problemas que perturbam a todos.
O PERIGO DOS PAPÉIS ILUSÓRIOS • 47

A criança perdida
Sara, a irmã caçula, tentava lidar com a disfunção em sua fa-
mília procurando o tempo todo passar despercebida. Ficava quieta
em seu canto a maior parte do tempo, e quando tinha de movimen-
tar-se, fazia-o da forma mais silenciosa possível. Fazia questão de
não ser notada. Era como se não estivesse ali. Todos gostavam dela
assim, pois não exigia muita atenção. Esse era seu benefício, mas
ao custo de um surdo sentimento de solidão por não se sentir à
vontade para falar sobre suas necessidades. Esforçava-se para ser
simpática com os outros, procurando mostrar que não precisava de
atenção e cuidados. Aplicava seu tempo livre em leituras, em ou-
vir suas músicas prediletas usando seu fone de ouvido e conversan-
do com seus amigos pela Internet.
É provável que mais tarde continuará isolada, com grandes di-
ficuldades em aceitar o envolvimento necessário a relacionamen-
tos afetivos por não conseguir lidar com a exposição de sentimentos
que tais relacionamentos exigem.
Os papéis acima descritos são vivenciados, primordialmente,
pelos filhos de uma família disfuncional. Eles não são rígidos e cada
um poderá atuar com papéis misturados, exercendo um pouco de
dois ou mais papéis: o herói pode agir ao mesmo tempo como masco-
te, o bode expiatório pode ser misturado com a criança perdida, etc.
É importante notar que o cônjuge também exerce esses papéis,
talvez de forma adaptada, pela sua posição dentro da família. Esses
papéis poderão ser representados particularmente pelo cônjuge que,
por sua vez, for filho ou filha de uma família disfuncional. Nessa
condição, tenderá a reatualizar os papéis que viveu antes de esta-
belecer sua família, pois será um papel conhecido. Não haverá es-
tranheza nos sentimentos que experimenta em sua família
disfuncional atual.
Há um efeito ilusório nesses papéis. Eles dão a idéia de que
estão colaborando para a solução da situação-problema, quando
48 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

na realidade isso não está acontecendo. O esforço em representar


os papéis é muito grande, e como o resultado é nulo, o sentimento
de frustração também é grande. Além disso, há um sentimento de
grande confusão quando se percebe que o resultado da vivência
dos papéis é a continuação do problema, quando o desejado era
sua solução. Geralmente o co-dependente não se dá conta de que
o mau resultado é conseqüência da facilitação que provoca.

Os efeitos dos papéis


A facilitação
É natural que as pessoas pertencentes a uma família disfuncional
exerçam seus papéis em autodefesa. No entanto, a vivência desses
papéis poderá não melhorar a situação por causa de um principio
importante das relações disfuncionais: é possível que a pessoa-pro-
blema só se disporá a mudar quando sofrer todas as conseqüências
diretas de seu comportamento inadequado. Só quando o custo da
ação inconveniente for maior que o beneficio é que a pessoa-pro-
blema procurará um meio para mudar essa ação. Qualquer ação
por parte do co-dependente que alivie esse sofrimento é chamada
de facilitação, definida como toda ação executada por outras pesso-
as que, tendo o objetivo principal a resolução do problema, acabam
perpetuando a situação disfuncional que se pretende resolver.
Os co-dependentes, sem conhecimento do princípio acima
descrito, não percebem que atuando conforme os papéis de sua
escolha, estão aliviando a tensão gerada pela situação disfuncional,
evitando que a responsabilidade seja dirigida para a pessoa-proble-
ma e impedindo que ela se disponha a mudar, pois é a única res-
ponsável por resolver a situação.
Para que a situação mude, o herói não deve sair correndo para
resolver algo para a pessoa-problema: não deve pagar suas contas
ou cheques sem fundos; não deve procurar seu carro, se não sabe
onde o deixou; não resolver seus problemas na delegacia de poli-
O PERIGO DOS PAPÉIS ILUSÓRIOS • 49

cia. O bode expiatório não tem de assumir a culpa pelos problemas,


dispondo-se a levar sobre seus ombros a responsabilidade da famí-
lia. O mascote não tem de aliviar a tensão através de brincadeiras,
e a criança perdida deve lutar pelo seu lugar ao sol.
Não é coisa simples o co-dependente modificar seu comporta-
mento abandonando o papel de sua escolha. Ele retira grandes be-
nefícios, quer emocionais quer materiais, da representação. O herói
encontra no aplauso das pessoas à sua volta o reforço que mantém
seu impulso heróico. O bode expiatório sente alivio de suas culpas
imaginárias quando brigam com ele, conseguindo desviar a aten-
ção do problema real. O mascote vê todos rirem, ainda que nervo-
samente, e isso lhe alivia o coração. A criança perdida encontra
refúgio em suas fantasias e imaginações.
Tais benefícios fazem com que o co-dependente ou não consi-
ga ou não queira perceber como esse comportamento perpetua a
situação crítica que enfrenta. Modificá-los é ter de abrir mão des-
ses benefícios em troca da possibilidade de alteração da situação-
problema. Mas como ter certeza de que a mudança valerá a pena?
Quem pode garantir que a pessoa-problema melhorará seu compor-
tamento? Qual a compensação para a troca de papéis? Essas ques-
tões brotam no íntimo dos facilitadores, que só quando estiverem
bastante cansados e convencidos da necessidade de fazer alguma
coisa urgentemente, abrirão mão de uma serie de vantagens para
arriscar uma mudança.
Geralmente, o processo de facilitação é um ponto crítico para o
cônjuge da pessoa-problema. Muitas vezes a situação é tão crítica
que ele não tem outra escolha a não ser tomar a iniciativa necessá-
ria para que ela não se agrave mais ainda. O cônjuge pode ver-se
obrigado a assumir o controle financeiro, tomar decisões sozinho
quanto à educação dos filhos, e a uma série de outras decisões
visando manter a família unida e o mais afastada possível dos pro-
blemas. Essas iniciativas criam a facilitação que, infelizmente, tem
50 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

a propriedade de fazer a situação-problema durar mais tempo que


o desejado.
Como todos estão desesperados à procura de um alívio imedia-
to, percebem rapidamente o resultado — ainda que temporário —
da facilitação, e repetem a ação facilitadora, acreditando ter en-
contrado a solução para o problema.
Suponhamos uma situação de alcoolismo em que o marido seja
o alcoólatra. A esposa estará facilitando enquanto quiser manter
secreto o comportamento disfuncional e solicita a colaboração dos
filhos em enganar o mundo. Ela mentirá para o chefe do marido,
dizendo que ele está doente; tira-o do meio das confusões que ele
cria quando bebe, e algumas vezes da própria cadeia; limpa a con-
fusão toda, tanto física como situacional, que ele vive criando;
acredita que precisa socorrer o marido a fim de defender-se e à sua
família. Com isso, ela perde o maior recurso que possui para mudar
a situação, que é permitir que a realidade atinja o marido com
toda a força, deixando que ele sofra todo o impacto das conseqü-
ências de suas ações.
Somente quando ele começar a sofrer as conseqüências diretas
do beber, tais como pagar suas contas, procurar o carro que esque-
ceu onde deixou, ter de se explicar diretamente ao chefe etc., é
que tem a chance de perceber o que está acontecendo e poderá
decidir fazer algo a respeito.
As crianças acabam se tornando facilitadoras também. Assu-
mindo em sua inocência que o que acontece está de alguma forma
ligado a seus comportamentos, elas aceitam tanta culpa e respon-
sabilidade quanto a mãe. Aprendem a manter a boca fechada, e o
fazem por não terem outra escolha. Sua família é tudo o que elas
têm. E a esposa também pode ter pouca escolha; com quase certeza
trouxe sua co-dependência para o casamento. Ela estava progra-
mada para tudo isso antes mesmo de encontrar-se com aquele que
seria seu marido.
O PERIGO DOS PAPÉIS ILUSÓRIOS • 51

Esses co-dependentes estão tão envolvidos na vida e nos pro-


blemas de outra pessoa que perdem seu senso de autodetermina-
ção. As próprias forças emocionais que geram a co- dependência e
a subseqüente facilitação podem ser utilizadas de forma grande-
mente positiva no sentido de melhorar a situação, simplesmente
por parar com a facilitação. Isso exigirá muito esforço, pois os com-
portamentos foram repetidos por longo tempo, criando um padrão
de ação muito forte. Mas o retomo ao caminho certo levará o co-
dependente em direção ao sol.
5
UM NOVO CAMINHO:

SUPERANDO OS OBSTÁCULOS

O
co-dependente enfrenta forte tempestade emocional den-
tro do coração, onde grossas chuvas de medo, grandes
relâmpagos de raiva, nuvens tenebrosas de culpa e vergo-
nha trovejam, criando inseguranças, fazendo-o procurar ansiosa-
mente o refúgio que precisa. Ele busca abrigo por meio de
comportamentos específicos, tentando controlar esses sentimentos
tempestuosos que, por sua intensidade, podem ser destrutivos. A
principal tentativa de controle é a negação da existência de uma
situação problemática. Essa negação tem uma força extraordiná-
ria, de forma que, enquanto existir, não permitirá que se encontre
soluções adequadas. Negando o problema, o co-dependente per-
manece na perigosa situação de não reconhecer a dimensão da
tempestade rugindo à sua volta, enquanto sofre a inclemência des-
sa tempestade.

Negação da realidade
A negação é um sistema de filtragem de informações desagra-
dáveis, que, sob o impacto de situações constrangedoras, seleciona
o que o co-dependente pode receber do exterior a fim de aliviar a
54 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

sensação de ameaça, rejeitando a realidade difícil à sua volta. Esse


sistema funciona em dois níveis: o da realidade em si e o dos senti-
mentos despertados por essa realidade.
O filtro da realidade em si nega a situação-problema procuran-
do aliviar a ansiedade que ela provoca. A negação surge em toda
família disfuncional, na qual todos, de uma forma ou de outra,
negam os fatos. Ela provoca o surgimento de uma aliança entre os
membros da família, pela qual todos procuram manter as aparênci-
as, como se nada de extraordinário estivesse acontecendo; às ve-
zes, nem discutem o problema entre si. Mesmo que outros parentes
e vizinhos estejam percebendo os fatos, a família tenta negá-los,
não falando nada, procurando manter o "segredo" intocado, o que
na verdade não ocorre, pois todos sabem a realidade.
A negação pode ser tão forte, que o membro da família que
ousar revelar a realidade, ou mesmo sugerir que algo precisa ser
feito, sofrerá criticas e será marginalizado como uma ameaça à "in-
tegridade" da família. Dessa forma, o problema continuará a fazer
estragos quando, pela denúncia da situação-problema, poderia se
tentar uma solução.
Bernardo dependia de crack. Sua família (os pais e a irmã mais
velha) tomou uma atitude defensiva, como se tudo estivesse bem
entre eles. Havia uma rigidez estranha naquelas pessoas. Os pais
não viviam um bom relacionamento. Mas o pai não permitia que se
falasse sobre isso, pois queria negar que tivessem mais dificuldades
além da dependência química do filho. A filha mais velha, que
sempre tomara uma atitude de denúncia daquela situação, era
considerada uma filha-problema, sempre acusada dos piores com-
portamentos pela mãe; nem o pai a apoiava, pois vivia se defenden-
do tornando-se ausente mesmo quando estava em casa.
O problema disfuncional era mais extenso que a dependência
química, e esta só seria adequadamente resolvida a partir de uma
mudança naquela atitude de negação, iniciando um lento processo
UM NOVO CAMINHO: SUPERANDO OS OBSTÁCULOS • 55

de restauração dos vínculos familiares. No entanto, o problema não


era resolvido porque todos, inclusive Bernardo, desviavam a aten-
ção para a filha mais velha, que tinha a coragem de falar abertamen-
te das dificuldades. Tornara-se uma "ameaça", quando, na realidade,
ela queria encontrar uma solução adequada para a família.
Como a realidade a ser vivida é muito difícil e dolorosa, as
pessoas criam, naturalmente, ilusões sobre a realidade devido à
necessidade imperiosa de estabelecer um nível mínimo de prote-
ção emocional numa situação difícil. Alguém que tente controlar
uma situação-problema por negar a realidade será impelido a situ-
ações que requerem mais negação ainda, pois ela aumenta a ne-
cessidade de controle da realidade para que ela não apareça. O
fracasso dessa tentativa de esconder a realidade é inevitável, pois
nenhuma pessoa ou família consegue esconder por muito tempo
uma situação disfuncional. É uma roda-viva, aparentemente sem
saída, e que gira cada vez mais rapidamente.
O filtro dos sentimentos procura barrar as emoções que a rea-
lidade desperta no co-dependente. Ele tenta diminuir a ansiedade
querendo negar que o coração está sendo chacoalhado como um
pequeno e frágil barco navegando em meio a grande tempestade.
Negar a realidade dos sentimentos desagradáveis não fará nem que
ela melhore nem que não exista. Não há mágica que realize isso.
Na essência de todos os esforços do co-dependente para negar a
realidade está o desejo básico de ser feliz, mas quando o co-depen-
dente tenta essa felicidade negando a realidade, evita a possibilida-
de de mudar a própria vida para melhor. É o caminho certo para
muitas frustrações e ansiedades, trilha direta ao olho do furacão.

Aceitação e transformação da realidade


Como acalmar o co-dependente tão ansioso? A calma começa-
rá a brotar em seu coração a partir da aceitação de que não é tão
forte quanto gostaria de ser ou quanto os outros esperam que seja.
56 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Na própria realidade difícil encontram-se os elementos básicos


para transformá-la. O co-dependente deve permitir que a realida-
de atue com suas próprias forças, sem tentar fugir dela. Ao enfren-
tar a realidade e responder às suas indagações encontrará a
serenidade desejada, porque passará a ver as coisas mais claramen-
te, e não ficará assustado com o que não pode ver. A felicidade não
acontece pela manipulação das condições exteriores e das pessoas,
mas do desenvolvimento de uma paz interior que só é alcançada
quando o co-dependente enxergar e aceitar sua falta de controle
sobre os desafios e dificuldades que sua realidade lhe apresenta.
A aceitação da realidade e dos sentimentos que a acompa-
nham devem ser integrados pelo co-dependente. Quando ele co-
meçar a aceitar os fatos tais quais são, descobrirá que todas as
coisas que lhe acontecem, mesmo as desagradáveis, concorrem para
seu bem-estar e que pode viver alegre em meio às situações mais
difíceis. A partir daí, é possível compreender o que realmente se
pode fazer para transformar a realidade.
Aceitar-se a si próprio com suas limitações diante da realidade
tal qual ela é, ou aceitar uma pessoa com seus problemas e as situ-
ações constrangedoras que ela cria, é a essência do amor real. O
amor real não exige a modificação de um individuo quer pelo
encorajamento, quer pela manipulação ou mesmo pela coação:
O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se
vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus inte-
resses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se
alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre,
tudo crê, tudo espera, tudo suporta.'
Quando o co-dependente pára com as manipulações, deixa de ser
manipulado de volta e permite que a outra pessoa se modifique, se ela
escolha modificar-se. A tentativa de modificar a pessoa-problema

' Romanos 13.4-7.


UM NOVO CAMINHO: SUPERANDO OS OBSTÁCULOS • 57

transmite a mensagem de que ela é incapaz de cuidar da própria


vida, ao que ela vai resistir fortemente, insistindo em fazer o errado
até mesmo com mais intensidade, para provar que ela ainda detém o
controle de sua vida. Seu pensamento é 'Ah, é? Então você vai ver!".
Ao aceitar a realidade, o co- dependente dá à outra pessoa a
oportunidade de assumir a responsabilidade sobre sua vida, devol-
vendo-lhe o direito de escolher o que quiser fazer com ela, e, como
resultado, experimentar todas as conseqüências, sejam quais fo-
rem, o que não acontece na manipulação, na negação e no contro-
le. Só então tal pessoa será capaz de avaliar por si mesma se quer
ou não sofrer as conseqüências de suas atitudes inadequadas. Ape-
nas a pessoa-problema pode avaliar se o preço a pagar é alto ou
não, e apenas ela pode escolher tomar quaisquer medidas ou cor-
rer quaisquer riscos necessários para modificar-se. A tarefa de um
cônjuge ou familiar não é endireitar a vida do outro, mas melhorar
a sua. Somente assim é que o co-dependente encontrará alívio da
ansiedade em seu coração.
O co-dependente desenvolve o controle porque acredita que
sua felicidade depende do comportamento da outra pessoa, que
pelo seu problema está impedindo seu bem-estar. Parece que é mais
fácil ignorar sua responsabilidade em se desenvolver, enquanto
esquematiza, manipula e controla a outra pessoa na expectativa de
modificá-la segundo sua imagem e semelhança. Como isso nunca
será alcançado, por mais que se esforce, ficará desencorajado, de-
sanimado, zangado e deprimido porque fracassou.
Esse sofrimento deveria fazer o co-dependente compreender
que tentar modificar uma outra pessoa é frustrante e deprimente,
porque estará assumindo uma responsabilidade que não é sua, en-
quanto abre mão daquela que é sua. Quando o co-dependente
compreende essa verdade e se dispõe a mudar suas atitudes interi-
ores, começa a experimentar o descanso resultante de aceitar a
realidade tal qual é.
58 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Libertando-se dos laços da co-dependência


Adriana decidiu sair de casa, levando consigo sua filha de três
anos. Marcos, seu marido, ficou sem entender o que estava acon-
tecendo. Movido pelo amor a Adriana, Marcos gastava bom tempo
procurando conversar e entender o que estava acontecendo com
sua esposa. Adriana argumentou que precisava de espaço que acha-
va que não tinha, queria experimentar sua própria vida, sem a in-
terferência de qualquer outra pessoa. Nem mesmo ela compreendia
completamente o que desejava. Escolheu essa atitude, na expecta-
tiva de encontrar alguma resposta.
Ela não compreendia que o seu desassossego era gerado pela
co-dependência. Seu pai bebera muito e suicidara-se, provocando
grande trauma na família. Os sentimentos de rejeição, de
inadequação, a baixa auto-estima faziam com que desconfiasse de
todas as pessoas que, de uma forma ou outra, elogiavam seu jeito
de ser, sua inteligência e sua capacidade de administrar sua casa.
Não conseguia ter certeza de que Marcos a amasse, desconfiando
de qualquer atitude que ele tomasse, até mesmo as mais comuns.
Sentia-se insegura desde o seu lar de origem. O que Adriana pre-
cisava era desligar-se emocionalmente do seu lar de origem, en-
tender que Marcos não era seu pai, que sua família atual não era a
sua família de origem.
Decisões como a de Adriana são comuns na experiência do co-
dependente. Cansado da longa caminhada e oprimido pelo peso de
sua vida, quantas vezes o co-dependente não terá se perguntado:
Por que minha vida tem que ser tão difícil? Como sair dessa roda-
viva em que minha vida se tornou? Será que verei o sol? Quando
poderei vê-lo? Quando poderei descansar, deitado no gramado e
aproveitar o calor? Essas perguntas são feitas em seu interior, pois
ele não tem coragem de expressá-las, com medo de mais uma vez
ser rejeitado. São perguntas legítimas, e as respostas não são nem
tão fáceis de encontrar nem de colocar em prática.
UM NOVO CAMINHO: SUPERANDO OS OBSTÁCULOS • 59

O co-dependente anseia muito por uma solução rápida e obje-


tiva. No entanto, as respostas prontas não farão nenhum sentido,
pois cada um deverá buscar a sabedoria para entender o caminho a
seguir. O caminho para a planície ensolarada que procura é forma-
do pelas respostas que achar às perguntas adequadas que fizer para
si. São como setas indicando claramente o caminho interior em
direção ao sol.
São as intuições que aparecerão de forma extraordinária, tra-
zendo-lhe a convicção clara do caminho que o conduzirá ao fim
desejado. Todo co-dependente pode experimentar a alegria de ver
as maravilhas que estão ali dentro, mesmo que tenha passado por
muitos dias escuros, sem saber exatamente por que as nuvens esta-
vam encobrindo o sol. As dificuldades e sofrimentos que enfrenta
estão lhe dando a oportunidade de realização pessoal à medida
que responde as solicitações que a vida lhe apresenta.
Quando se ergue para responder a essas solicitações, encontra
a vontade de Deus para si, que deseja que o co-dependente seja
uma pessoa plenamente amadurecida, realizadora de suas potencia-
lidades e criadora de seu futuro, a partir de decisões adequadas.
Notemos um dialogo muito especial entre duas pessoas especi-
ais, Jesus e a mulher acusada de adultério, depois de ele ter con-
frontado todos os injustos acusadores daquela mulher: "Jesus
endireitou-se, e disse: mulher, onde estão eles? Ninguém te con-
denou? Respondeu ela: ninguém, Senhor. Disse Jesus: nem eu te
condeno. Vai, e não peques mais".2 A resposta de Jesus a essa mu-
lher poderia ser parafraseada assim: "Vai, e não decida mais de
forma inadequada que a prejudique". A vontade de Deus para a
vida do co-dependente é que ele viva intensa e abundantemente,
realizando plenamente o potencial de vida que não conseguiu re-
alizar até agora, preso pelos laços da co-dependência.

João 8.10-11.
60 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Desligamento emocional
Uma das várias funções das nuvens é criar sombras. Nenhum de
nós conseguirá olhar diretamente para o sol, pois a luz nos cegaria.
As sombras criadas pelas nuvens permitem que vejamos com mais
definição os objetos ao redor. As nuvens emocionais também têm a
mesma função. Permitem que vejamos mais claramente o que pre-
cisa ser modificado em nossa vida. Só haverá aproveitamento ple-
no dessa visão se tivermos uma boa disposição de ver a realidade
como ela é e um sincero desejo de tentar mudar nossas estruturas
de pensamento e tentar agir de forma diferente daqui para frente.
Quando as coisas começarem a mudar, o que certamente ocor-
rerá, vamos ver bem melhor e perceber claramente que o sol volta-
rá a brilhar em nossa vida. O co- dependente precisa apenas manter
sua mente aberta e seus ouvidos atentos para ouvir a voz interior
que lhe dirá qual o caminho que deve seguir. Perceberá, então,
que as coisas estarão mudando claramente, trazendo-lhe a certeza
de que o sol, finalmente, brilhará em sua vida.
Para ver o sol é preciso tirar os olhos das nuvens escuras e co-
meçar a olhar ao redor e perceber que, mesmo nos dias mais escu-
ros, não é apenas a escuridão que existe. As flores captam os raios
do sol e os transformam em cores. Quanto mais difícil o tempo,
mais cores as flores têm. O co-dependente habituou-se a acreditar
que a única possibilidade real de vida é o sofrimento, que a única
paisagem que pode ver são as nuvens escuras. Isso pode mudar se
começar a perceber as flores em sua vida: as coisas boas que fez e
que aconteceram apesar do tempo emocionalmente escuro.
Essa mudança de perspectiva acontecerá a partir do momento
em que o co-dependente começar a praticar o desligamento emo-
cional das situações geradoras dos conflitos e dos comportamentos
inadequados da pessoa-problema.
É muito importante a compreensão clara do conceito de desli-
gamento emocional, pois o co-dependente é ávido por prender sua
UM NOVO CAMINHO: SUPERANDO OS OBSTÁCULOS • 61

atenção à pessoa-problema e buscar o sentido de sua vida na solu-


ção da situação-problema, e pensará que se desligar emocional-
mente tanto do problema quanto da pessoa do problema é largar
mão ou da pessoa que está precisando de ajuda ou de tudo o que
representou a razão de ser de sua vida até agora. Estranhará a idéia
por estar tão habituado a trilhar os velhos caminhos através da re-
petição histórica, imaginando que abandonar essa trilha o deixará
sem rumo. Inicialmente resistirá à mudança, pois, acostumado a
evitar de todas as formas o medo de ficar sozinho que experimenta
desde criança, teme que se houver desligamento emocional vai se
ver sozinho novamente, perdendo a oportunidade de reparar as si-
tuações traumáticas da infância e superar o que foi opressivo. É co-
mo se tivesse encontrado uma poção mágica em que se misturam a
possibilidade de retificar velhos erros, ganhar o amor perdido e con-
quistar a aprovação negada. Isso o torna fortemente ligado à pessoa-
problema, tirando dessa ligação grandes benefícios emocionais.
A proposta de desligamento emocional não implica o rompi-
mento de laços afetivos, ou seja, o abandono deliberado dos senti-
mentos profundos que o co-dependente tem pela pessoa-problema.
Muito menos o rompimento do relacionamento. Desligamento emo-
cional é desligar-se do problema da pessoa, e não da pessoa que
tem o problema. É abrir mão da tentativa de controlar seus compor-
tamentos. Também é perceber e aceitar que abrir espaço para que
ela resolva suas questões é amá-la, devolvendo-lhe a dignidade
pessoal por respeitar suas decisões.
Desligar-se emocionalmente implica prestar atenção no que está
acontecendo dentro de si mesmo, perguntando-se constantemen-
te o que suas emoções estão lhe dizendo. E lembrar-se que durante
o período de co-dependência, raramente prestou atenção a suas
emoções. Esse processo poderá ser muito estranho no começo, pela
falta de hábito e pelo fato de o co-dependente não valorizá-las. No
entanto, são elas que lhe dirão onde deve atuar.
62 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

O desligamento emocional exigirá bastante coragem. Envolve


tomar decisões que já deveriam ter sido tomadas há muito tempo,
mas que não o foram por medo. Será preciso romper estruturas de
pensamento cristalizadas durante anos de co-dependência e pe-
netrar em couraças emocionais endurecidas por longo sofrimento.
Talvez até mesmo enterrar um relacionamento que já morreu, pois
somente quando o grão de trigo morrer na terra é que brotará em
profusão de vida.
Aceitar as emoções e passar a prestar atenção em si mesmo é o
inicio do desligamento emocional no coração do co-dependente.
O desligamento emocional permite a reconciliação com o passado,
pois torna possível a aceitação dos fatos históricos que ainda inco-
modam o co-dependente. Permite também a reconciliação com a
pessoa-problema, quer ela mude ou não o comportamento ofensi-
vo, qualquer que seja, pois será possível o confronto dessa pessoa
com as situações abusivas que criou, isentando o co-dependente
do sentimento de culpa que antes evitava a percepção da realida-
de dolorida que vivia e o confronto que a resolveria. Aí tem-se a
chance de uma solução real e, talvez, definitiva do problema.
Filhos podem reconciliar-se com pais separados, acabando com
a mágoa e ressentimento pela separação, descarregando o peso de
culpa que eventualmente estejam sentindo pela decisão de seus
pais.
Se um casamento se rompeu e o sentimento de injustiça e re-
jeição for grande, é possível livrar-se desses sentimentos que per-
sistentemente fazem com que o co-dependente pense que só ele
errou em algum momento do relacionamento, assumindo toda a
culpa pelo acontecido.
A miséria vivida por um pai alcoólatra pode ser compreendida
e aceita pelos seus filhos, que mudam completamente seu relacio-
namento emocional com seu pai, mesmo que a situação-problema
esteja distante no passado. Enfim, qualquer que seja a situação-
UM NOVO CAMINHO: SUPERANDO OS OBSTÁCULOS • 63

problema, a reparação pode ser iniciada a partir do desligamento


emocional.
O processo de desligamento emocional gera dor. No entanto,
essas dores devem ser consideradas naturais, pois é necessário que
as situações dolorosas do passado sejam enfrentadas e o co-depen-
dente perceba que elas podem deixar de ser tão assustadoras como
inicialmente pareceram.

Amor e confiança
Muitas vezes, um relacionamento interpessoal está profunda-
mente abalado e ameaçado de extinção pela intensidade das exi-
gências emocionais envolvidas na situação-problema. Aí será
necessária muita paciência. Amor e confiança são um conjunto de
emoções e atitudes vivas e frágeis. Tais emoções não aparecem
automaticamente mesmo que a pessoa que amamos torne-se sóbria
ou resolver o problema que tem, qualquer que seja.
Ver além da escuridão é permitir que o amor e a confiança se
restaurem em seu devido tempo. Algumas vezes são restaurados;
outras, não. No entanto, ajuda se nos amarmos o suficiente. Amar-
se significa aceitar limites, tanto os nossos como os dos outros, e
aprender a viver bem dentro das circunstâncias que não podemos
mudar.
Matilde lutou vários anos com seu marido alcoólatra, tendo de
substituí-lo várias vezes na fábrica. Além disso, cuidava da casa e
dos dois filhos pequenos. Seu marido, depois de muita luta juntos,
decidiu parar de beber e reiniciou um penoso trabalho de recupera-
ção. Algum tempo depois que ele parou de beber, Matilde começou
a sentir-se mais relaxada quanto ao alcoolismo, ao mesmo tempo que
se sentia bastante insegura e crítica. A ausência da situação-proble-
ma deu-lhe uma sensação de vazio e de falta de motivação. Seu
marido, amando-a e reparando o seu alcoolismo diante dela, usou
de muita paciência e carinho, colaborando para a sua recuperação.
64 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

O processo de recuperação leva tempo, mas Matilde e seu ma-


rido descobriram realidades comuns aos dois que de outra forma
não descobririam. É possível dizer que o tempo todo de lutas em
recuperação podem ser os mais proveitosos de um relacionamento.
A principal lição a aprender é que cada um é responsável por si,
que um pode ajudar o outro, sem envolvimento emocional, cada
um aceitando os próprios limites.
Qualquer que seja a situação vivida pelo co-dependente, o ideal
é ir devagar. É possível que as emoções o impulsionem em uma di-
reção que a razão lhe diz para não seguir; que sua cabeça insista
em que ande por onde seu coração não queira andar. Mas, sobretu-
do, deve procurar desligar-se emocionalmente do problema.
O ideal é sair para ver as flores: ir com calma e tomar o tempo
necessário para fazer aquilo que quer, mas de modo que não ma-
chuque ninguém. Raramente as coisas importantes são urgentes, e
raramente as coisas urgentes são importantes.

O co-dependente e a "recaída emocional"


O processo de recuperação implica que começará a ver as coi-
sas de forma diferente, perceber que o sol está lá, mesmo que não
seja possível vê-lo de imediato. Sua luz esta nas flores. Apesar dis-
so, haverá tempos em que os olhos voltarão a se fixar nas nuvens.
São os momentos quando ressurgem tristezas sem motivos, o que
alguns chamam de "recaída emocional". Todos os antigos senti-
mentos desagradáveis voltam repentinamente, dando a impressão
de que não se conseguiu progresso.
Isso é normal. Algumas vezes esses sentimentos retornam sem
razão aparente, outras vezes se consegue identificar claramente
por que voltaram. Não há por que sentir culpa por experimentar
novamente esses sentimentos, acreditando que não deveriam mais
aparecer. As nuvens sempre voltam a cobrir o sol. Luz e sombra
fazem parte da vida e são necessárias para seu desenvolvimento.
UM NOVO CAMINHO: SUPERANDO OS OBSTÁCULOS • 65

Pela sua tendência de controlar todas as coisas, o co-depen-


dente poderá sentir-se tentado a querer controlar as nuvens escu-
ras. É impossível querer controlar sentimentos e até forçá-los para
fora de seu sistema emocional, pois a função do sistema emocional
é esta mesma: sentir emoções. Andar pela trilha em direção ao sol
é olhar os sentimentos e não se envergonhar, nem fugir e muito
menos escondê-los.
Quando toda a beleza das emoções saltar aos olhos, veremos o
sol. As emoções são as flores que retêm a luz do sol, mesmo na mais
escura noite. Enfrentar o passado é reviver as emoções que as situ-
ações-problema geraram. Essas emoções, mesmo as doloridas e de-
sagradáveis, devem também ser aceitas como corretas e boas, porque
são reais e legítimas. Isso ajuda a não transferir para os outros a
responsabilidade por elas na expectativa que desapareçam, mesmo
aquelas que surgiram como resultado de uma ofensa provocada por
alguém, e, finalmente, cria as condições adequadas para o desen-
volvimento de atitudes reparadoras amadurecidas, que possibili-
tem traçar alvos para o futuro, sem estar mais amarrado ao passado
pelos sentimentos de amargura que tanto prejudicaram e contami-
naram os melhores relacionamentos do co-dependente.
No caminho em direção ao sol não existem soluções fáceis, ape-
nas decisões inteligentes. A caminhada requer esforço, reflexão, a
busca de alternativas de conduta e o aprendizado com os erros
eventualmente cometidos. Talvez se pense qual a vantagem em
sofrer para deixar de sofrer; se não seria mais interessante descobrir
outro meio pelo qual não se sofra mais. Não há como escapar do
sofrimento que acompanha as decisões difíceis que não se gosta de
tomar, mas é possível e preferível aceitar o sofrer pela razão certa.
Todas as decisões tomadas para solucionar a co-dependência
— mesmo aquelas que não nos dão muita segurança, e até mesmo
as que decididamente não deram os resultados esperados — serão
passos certos e seguros em um novo caminho em direção ao sol.
_
6
MARCOS NA TRILHA DO SOL

N
as montanhas suíças encontram-se inúmeros caminhos que
serpenteiam por vales e cruzam rios. Alguns são íngremes,
outros são bem planos. No entanto, por todos os caminhos
encontram-se sinais, ora vermelhos, ora amarelos, marcados tanto
nas pedras como nas árvores, indicando a trilha para o caminhan-
te. Devido ao clima difícil naquelas montanhas, às vezes custa iden-
tificar os sinais, desgastados pelo tempo, exigindo muita atenção
para não se perder pelo caminho.
Na caminhada que o co-dependente empreende em direção
ao sol, também encontrará marcos que indicarão com segurança o
caminho a seguir. Alguns são óbvios, passando até despercebidos,
uma vez que o caminho está claro diante do co-dependente. Ou-
tros não serão tão óbvios, exigindo atenção.
E às vezes, mesmo que percebamos os marcos, o caminho exigi-
rá bastante persistência do co-dependente. Há quatro marcos que
indicam se estamos no caminho certo.

Primeiro marco: Aceitar a co-dependência


O primeiro marco no caminho para a recuperação é a aceita-
ção da co-dependência. Intelectualmente é fácil compreender isso,
68 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

mas emocionalmente não é tão simples assim. Forças poderosas fo-


ram desenvolvidas dentro do co-dependente, a fim de conseguir
controlar as situações-problema que enfrenta diariamente. Ele
aprendeu a depender de mecanismos de defesa e controle. Aceitar
a co-dependência implicará abrir mão desses mecanismos e das
vantagens que oferecem. Exatamente por serem mecanismos de
defesa, com autodefesa própria, o co-dependente se rebelará à sim-
ples menção de que deve deixá-los de lado.
O co-dependente preferirá acreditar ou que algo não está acon-
tecendo ou que o que está acontecendo desaparecerá em um passe
de mágica. E para sua recuperação ter início, ele precisará aceitar
a realidade de sua co-dependência e que será necessário um gran-
de e árduo trabalho para transformar sua vida.
Deverá aceitar a realidade da co-dependência e ter a humil-
dade de aceitar limites. Ele precisa aceitar a realidade de que é
limitado, ou seja, não pode todas as coisas que, como co-depen-
dente, gosta de acreditar que pode.
Os sentimentos de culpa e de grande responsabilidade fazem-
no acreditar que as coisas vão melhorar, caso se esforce um pouco
mais naquilo que está fazendo. No entanto, precisará compreender
que não é onipotente e que não tem controle sobre muitas das situa-
ções que enfrenta. Curiosamente, é essa aceitação que produz paz,
resultante do abrir mão de muitas coisas que eram demasiadamen-
te pesadas para si. Esse é freqüentemente o ponto no qual começa-
rá a ver as belezas da trilha em direção ao sol. Começa a perceber
que sua vida pode ser bem diferente daquela que viveu até aqui.
As pequenas alterações que consegue o encherão de coragem
para continuar. As mudanças começam a fazer sentido e a alegria
começa a brotar. É possível que o co-dependente tenha perdido o
respeito e a confiança na pessoa que ama. Chega-se a esse ponto
porque não se consegue exigir da pessoa-problema o respeito e amor
que se necessita, porque o co-dependente acredita que se isso for
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 69

exigido, ou mesmo apenas falar nisso, não estará ajudando essa


pessoa, mas aumentando a dificuldade, pois ela poderá não gostar
do que lhe falar.
O que não percebe é que o amor não pode existir sem a dimen-
são da justiça, ou seja, exigir da pessoa-problema um comporta-
mento justo é necessário para a proteção do vínculo afetivo, sem o
que ele se destruiria.
É importante perceber a diferença entre atacar o problema e
atacar a pessoa que cria o problema. O que é preciso é atacar o
problema da pessoa, e não a pessoa que tem o problema, não ten-
tando reprimir a raiva e a indignação, mas sim aceitá-las como
genuínas e usá-las para destruir o problema, e então socorrer a
pessoa. À medida que isso ficar claro, o co-dependente lidará me-
lhor com a situação-problema, pois estará agindo de forma huma-
na, como gostaria que o tratassem.
Talvez a mais dolorida perda sentida pelos co- dependentes é a
de seus sonhos, das expectativas esperançosas e românticas a res-
peito do futuro. Pais poderão sentir a perda diante da realidade de
ter um filho que sofra de uma disfuncionalidade qualquer. Esposas
perderão seus sonhos de felicidade diante da realidade de um ma-
rido alcoólatra. Filhos sofrerão perdas se seus pais vierem a se sepa-
rar, e assim por diante.
Essas perdas representam um custo emocional muito alto, pois
o co-dependente abre mão constantemente da própria vontade em
função da pessoa-problema. Sensibilizado por esse custo, tende a
reagir em defesa quando percebe que a recuperação também im-
plicará perdas, pois ela exige o abrir mão de muitas atitudes e cir-
cunstâncias que, talvez, não queira deixar. Faz parte da caminhada
em direção ao sol aprender a aceitar essas perdas, uma vez que faz
parte da recuperação o abrir mão daquilo que o prejudica e de
responsabilidades que não são suas. Não é tolice largar o que não
se pode segurar para segurar o que não se pode largar.
70 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Sentir a perda é muito saudável. Negar esse sentimento é ne-


gar algo natural. Isso pode trazer danos emocionais. O sentimento
de perda, como qualquer emoção, promove certas mudanças fisicas
e a liberação de energia psíquica. Essa energia deverá ser consumida
em um processo de luto natural, em que a perda é reconhecida e
aceita, sendo permitido chorar livremente por ela. Do contrário,
essa energia será liberada de forma que pode ser prejudicial ao siste-
ma físico-emocional. Doenças fisicas e desequilíbrios emocionais
podem ser a penalidade de um sentimento de perda não resolvido.
Aceitar que sonhos românticos não serão realizados, ou chorar
porque outras perdas realmente aconteceram, cria condições para
enfrentar a realidade da forma mais equilibrada possível, e começar
a fazer o melhor a partir daí. Significa estar desejoso de aceitar um
sentimento honesto, e não passar o tempo todo querendo rir da dor.
Lamentar a realidade de uma situação-problema em nossa fa-
mília e a genuína manifestação da percepção de que algo precisa e
pode ser feito é o início do processo de mudança da situação. Isso
não significa ficar na lamúria mórbida da autopiedade. O choro
genuíno que lamenta uma perda é a saída correta do pântano mal-
cheiroso da autopiedade, onde muitos acabaram presos. A vivência
do luto dessas perdas fará com que a recuperação aconteça em
menos tempo que se imagina. O poeta Davi disse com razão: "Ao
anoitecer pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã".'
Mas como aceitar a realidade se uma das grandes dificuldades
da co-dependência é saber qual é a realidade? Bem, a realidade é
que o co-dependente envolveu-se tanto com a outra pessoa a pon-
to extremo de perder de vista a própria realidade: que é impotente
sobre outras pessoas, sobre a situação-problema e sobre outras cir-
cunstâncias que tenta controlar desesperadamente, buscando fu-
gir delas através da fantasia e de outras atitudes escapistas.

' Salmos 30.5.


MARCOS NA TRILHA DO SOL • 71

Aceitação não é adaptação ou resignação diante de situações


tristes e miseráveis, nem tolerância a qualquer tipo de abuso. Pelo
contrário, é o reconhecimento das suas circunstâncias e aceitação
das pessoas significativas em sua vida, como elas são.
A aceitação é um grande paradoxo: uma pessoa não pode mu-
dar seu jeito de ser até que aceite que não pode mudar tal jeito.
Mas a aceitação desse fato já é uma mudança que altera o jeito de
ser da pessoa. Quando o co-dependente aceita que não consegue
mudar, a mudança já se iniciou, pois estará aceitando seu limite.
Somente a partir daí, ele terá paz e habilidade para avaliar as cir-
cunstâncias, fará escolhas apropriadas e resolverá seus problemas.

Segundo marco: Tolerar a dor e o cansaço


Não há caminhante que não conheça a dor do estrênuo exercí-
cio da caminhada. A trilha em direção ao sol é estreita e difícil, e
o que por ela caminha sente, em vários momentos, bastante cansa-
ço e dor pelo esforço. A aceitação dos fatos da realidade da co-
dependência despertam sentimentos muito dolorosos. O bom final
da caminhada dependerá da perseverança do caminhante. Quan-
do o co-dependente aprender a tolerar a dor, terá encontrado o
segundo marco da trilha.
Carina internou a filha para tratamento da dependência quí-
mica. A partir do trabalho realizado pela equipe terapêutica, Carina
percebeu quanto se escorou em sua filha, desde pequena, na ex-
pectativa de que ela atendesse suas carências afetivas. Notou que
teve esse mesmo comportamento com muitas outras pessoas que
ela manipulou para conseguir delas o que desejava, para depois
desprezá-las. Os vínculos que mantinha, até mesmo com os ho-
mens que passaram por sua vida, estavam baseados apenas em con-
seguir atender os próprios desejos. Conseguiu perceber que isso
estava ligado à própria infância, quando viu seus pais se separa-
rem, e sua mãe, ao mesmo tempo ausente e repressora, não lhe
72 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

supriu a atenção que precisava. Isolava-se das pessoas e de sua


mãe numa atitude de muda hostilidade. Ela manipulava a mãe, e
esta, apesar de sua atitude, sentia-se muito culpada, e tentava
diminuir seu sentimento de culpa dando-lhe coisas como TV, rá-
dio, discos, violão, livros, roupas. Como Carina queria essas coisas
e acreditava que elas lhe eram devidas, aceitava-as silenciosamente.
Mais tarde, já mãe e na tentativa de superar seu isolamento emo-
cional, escorou-se em sua filha, exigindo-lhe que suprisse sua ca-
rência afetiva. Isso desequilibrou o relacionamento mãe-filha,
criando um campo fértil para a dependência química de sua filha e
o aprofundamento de sua própria co-dependência.
Carina chorou muito ao notar quanto tinha prejudicado outras
pessoas por exigir delas algo que não lhe deviam, com o conse-
qüente rompimento de relacionamentos que foram muito signifi-
cativos para ela.
O processo de recuperação exige que se aprenda a tratar da
dor de forma diferente daquela que até então estava sendo usada.
É natural que se faça todo o esforço necessário para acabar com
uma dor excessiva. No entanto, é possível que, para acabar com a
dor, tenha-se de sofrer mais um pouco. Se um dente fica infeccio-
nado, essa dor só será eliminada com a dor de enfrentar a broca do
dentista. Querer fugir da dor da broca é sofrer a dor da morte do
dente. A dor sofrida na cadeira do dentista é a dor da cura do
dente. Sofrer a dor da co-dependência é a dor da morte de relaci-
onamentos muito importantes. Sofrer a dor do processo de recupe-
ração é a dor provocada pela restauração desses relacionamentos.
De modo geral, o co-dependente tem cinco formas distintas e
alternadas pelas quais tenta aliviar a dor e o cansaço da caminhada:

1. Negação
Negação não é mentira. É um mecanismo de defesa que filtra as
informações devastadoras e previne que o co-dependente seja so-
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 73

brecarregado por pressões emocionais que podem ser difíceis de


suportar. Ele ou não vê ou não aceita a realidade para evitar, redu-
zir ou prevenir a ansiedade quando se sente ameaçado pela situa-
ção-problema.
O co-dependente fica como que cego para realidades que ou-
tros estão vendo, e quando confrontado com os fatos, recusa-se a
responder adequadamente, pois simplesmente não consegue en-
xergar tais fatos. Ou quando enxerga, prefere acreditar que as coi-
sas não são tão graves quanto está vendo. Chega mesmo a
desvalorizar as informações que recebe de pessoas mais experientes
e até mesmo dos profissionais que procura para sua orientação.
Janete tinha grande dificuldade de relacionamento com seu
marido alcoólatra. Seu sogro, ciente do que acontecia, sugeriu-lhe
que tomasse uma providencia efetiva para tentar conter o alcoolis-
mo, propondo-se a ajudá-la no que fosse necessário. Conversaram
um pouco. Ela disse que achava que o marido bebia porque depois
do nascimento do primeiro filho ele não estava conseguindo acei-
tar a responsabilidade de ser pai, que estava cansado porque o
menino chorava à noite e ele não conseguia dormir. Em nenhum
momento deixou sequer transparecer a idéia de que ele bebia por
ser alcoólatra. Negava um fato que estava claramente diante de si.
Janete não desconhecia o problema do marido. Antes do casa-
mento, já sabia que ele bebia; mas, num processo de negação, não
conseguia aceitar que ele fosse alcoólatra. Janete negava o alcoo-
lismo numa clara tentativa de aliviar seu sofrimento. No entanto,
negar o problema só o aumenta e torna sua solução mais dificil.

2. Raiva
A raiva é um sentimento muito poderoso, que exige uma rea-
ção das pessoas que a sentem. Ela aparece quando alguém é atin-
gido pelo erro de outro, ou é maltratado deliberadamente, ou ainda
vê uma crueldade ou injustiça.
74 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

A raiva faz parte dos mecanismos de resposta biológica que aju-


dam as pessoas a sobreviverem, fazendo-as lutar quando percebem
que seu senso normal de controle sobre sua vida está ameaçado de
alguma forma.
Nem sempre a raiva se manifesta claramente. Ela pode estar
disfarçada em irritação, aborrecimento, ressentimento, fúria, in-
dignação, impaciência. Se a energia poderosa da raiva não for dis-
sipada adequadamente, ela provocará vários problemas ao
organismo, podendo gerar mal-estares, como dores de cabeça, pro-
blemas digestivos como gastrites e úlceras, e circulatórios, como
pressão alta, distúrbios do sono etc.
Não há problema em sentir raiva. A questão é como lidar com
ela. Quando o co-dependente consegue perceber a realidade, ge-
ralmente desagradável, vê-se obrigado a tomar medidas, às vezes
drásticas, que lhe dão muita raiva, pois está sendo forçado a fazer
algo que não deseja fazer. Geralmente, a raiva se expressa em for-
ma de explosão, ou contra a pessoa que provocou a situação-pro-
blema ou contra a pessoa que aponta a realidade da qual quer se
esconder. Em ambos os casos, a raiva está direcionada para os alvos
errados. O que deve ser atacado é o problema que ameaça a todos,
e não a pessoa-problema ou quem aponta o problema.
Com muita freqüência, o co- dependente não se sente à vonta-
de para expressar livremente a raiva. Ele a engole. Quando isso
acontece, está dizendo que não é certo expressá-la, provavelmente
por se sentir responsável pela situação que gerou a raiva. Por exem-
plo: ele fica com raiva de uma atitude inadequada da pessoa-pro-
blema. Mas, acreditando que tem responsabilidades naquela
atitude, não expressa essa raiva. Esse sentimento internalizado se
transformará em culpa, pois sentindo-se responsável pela pessoa-
problema, como pode ter raiva dela? Aí está a culpa formada no
co-dependente, porque ele acredita que não deveria sentir a rai-
va. Mas esse é um sentimento legítimo e faz parte da recuperação
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 75

da co-dependência. Ela existe para apontar o que pode machucar


nos relacionamentos: é uma tentativa de destruir, que pode ser
uma ameaça mediante a liberação de grande energia emocional
descarregada no corpo. Portanto, lidar com a raiva significa aceitá-
la como natural e aprender como orientá-la para o alvo correto.

3. Negociação
A negociação é natural em nossa vida. Nenhum relacionamen-
to pode sustentar-se sem algum grau de negociação. O que pode-
mos aprender é como utilizar esse principio de forma a tornar a
negociação produtiva na recuperação da co-dependência.
Não é saudável negociar para conseguir uma barganha tanto
com a situação-problema como com a pessoa-problema, com outras
pessoas, consigo mesmo e com Deus: "Se você fizer isso e isso, eu
farei aquilo e aquilo". Na co-dependência, acredita-se que conse-
guindo uma boa barganha com a situação-problema, não haverá o
sofrimento de perdas. Esse tipo de negociação não dará os resulta-
dos desejados, pois o que às vezes escapa à percepção é que, devi-
do à natureza da situação, pode-se não conseguir um resultado
adequado, uma vez que a pessoa-problema pode não estar em con-
dições de tomar decisões. Seu raciocínio pode estar prejudicado a
ponto de não ser capaz de aceitar a negociação. Esta deve ter o ob-
jetivo de resolver o problema e deve ser clara em seus termos, dos
quais não se deve afastar, para que o resultado desejado aconteça.
A negociação pode ser usada produtivamente.
Cláudio e Rita eram pais de um jovem que estava bebendo
bastante e causando constrangimentos em seu lar. No entanto, seu
filho não aceitava que tivesse um problema com bebidas e que
tivesse de fazer alguma coisa para parar com as situações constran-
gedoras. Combinaram uma conversa com o filho na qual sua irmã
também estaria presente, ocasião em que apresentariam apenas os
fatos criados a partir da embriaguez: carros batidos, quedas, perdas
76 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

de empregos, brigas, objetos quebrados ou desaparecidos, enfim,


dados concretos que não dependiam de interpretações pessoais para
indicar um problema com a bebida. Combinaram também um tipo
de negociação para uma situação muito comum nesses casos: a
promessa do bebedor-problema de que não mais beberia, ou ao menos
se controlaria para não criar mais aquelas situações constrangedo-
ras. Aceitariam um acordo de que não beberia mais por três meses,
sendo que, se bebesse durante esse prazo, iria incondicionalmente
para tratamento. E o previsto aconteceu: bebeu antes do prazo acor-
dado e foi internado para tratamento. Nesse caso, o importante foi
a compreensão dos pais da necessidade de uma negociação que
preservasse a dignidade de seu filho, deixando-lhe uma possibili-
dade de escolha, ainda que a contragosto.

4. Depressão
É o estado no qual as pessoas se sentem como que secas, vazias,
consumidas, gastas, fatigadas. Sentir-se cansado sem uma causa
física concreta é um dos sinais mais claros da depressão. Ela é ca-
racterizada por uma falta de interesse pelo mundo exterior e pelas
atividades do dia a dia. A pessoa que sofre de depressão pode ficar
parada diante da televisão sem prestar atenção ao que está vendo,
ou com um olhar vazio fixo no espaço. Seus sentimentos ficam muito
confusos e não quer contato com as pessoas significativas para si.
A depressão pode ser resultante de uma negociação mal-suce-
dida. Ela significa um ponto de grande exaustão por se tentar de
tudo sem resultado positivo aparente. A depressão é uma expressão
emocional do sentimento de perda: tem-se a sensação de que todo
esforço acabou em perda de todas as esperanças de alcançar um
bom equilíbrio na relação, e da confiança de realização do futuro.
A depressão é, no entanto, um momento muito especial no pro-
cesso de recuperação, quando sentimentos reprimidos por muito
tempo podem aparecer, permitindo que sejam reconhecidos e acei-
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 77

tos. Apesar dos sentimentos desagradáveis que acompanham a de-


pressão, ela pode ser um instrumento capaz de permitir a compre-
ensão de muita coisa a respeito das emoções do co-dependente.
Abre-lhe a porta para a humildade de reconhecer a impotência
perante o problema. A melhor maneira de lidar com a depressão é
procurar aceitá-la e perguntar o que é possível aprender com ela,
e, se necessário, procurar ajuda profissional.

5. Aceitação
Miguel de Unamuno, escritor espanhol, disse: "... o meio mais
eficaz para destruir uma lei é começar por aceitá-la; aceitar algo
como mal necessário é o começo de sua eliminação". A aceitação,
já discutida anteriormente, não é o abandono da luta, mas o reco-
nhecimento de que a luta existe. Também não é resignação, mas
aprender a viver contente em qualquer situação.
Por ela, o co- dependente atinge uma plena integração entre si,
sua historia e suas emoções. A aceitação permite escolher o melhor
a fazer. E isso dá grande sensação de liberdade e propósito, uma vez
que se atinge um ajuste emocional adequado ao problema que se
enfrenta e se experimenta a paz com as circunstâncias e com as
mudanças necessárias. É a partir daqui que o co-dependente po-
derá perdoar a pessoa-problema, perdoar a si mesmo pelos erros
cometidos e experimentar o perdão de Deus.

Terceiro marco: Lidar com batalha interior


O terceiro marco da caminhada em direção ao sol é a percep-
ção de um conflito emocional interno, uma batalha interior, que
apesar de sua importância, costuma passar despercebida. Quando
o co-dependente a percebe e aprende a lidar com ela, verá clara-
mente que está no caminho ideal.
Todo ser humano é capaz para o amor. Até mesmo biologica-
mente toda pessoa tem condições de reconhecer gestos e expres-
78 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

sões de amor. Ser aceito pelos outros é necessário para sobrevivên-


cia. É através dessa aceitação que desenvolvemos nossa identida-
de. Quando se aplica bastante tempo e esforço emocional em uma
relação e descobre-se que os sentimentos não são correspondidos,
que há falta de apreciação, indiferença, desprezo, e até mesmo
hostilidade, certamente esse amor se transformará em ódio.
Esse ódio desperta o conflito interno, pois como é possível odiar
aquela pessoa que se deveria amar? O raciocínio lógico é que o
amor deveria evitar o ódio. A realidade, porém, é diferente: quem
mais poderia odiar senão aquele que ama? É normal ter uma rea-
ção odiosa mais forte para com as pessoas a quem se ama do que em
relação àquelas que não se conhece.
Há uma pressuposição tradicional falsa de que amor e ódio são
fenômenos polares. Em uma polaridade a falta de um é a presença
do outro. Calor e frio são fenômenos polares: pela sua redução gra-
dual , cria-se o calor.
Amor e ódio, na verdade, estão ligados, apesar de antônimos.
São paixões primárias. O oposto mais correto — pelo menos em rela-
ção ao amor — é a indiferença. Amar alguém significa estar envolvi-
do, identificar-se, envolver-se, sofrer com e por alguém, e partilhar
suas alegrias. Portanto, amar significa participar intimamente da vida
do outro. Explosões de ódio acontecerão quando alguma situação ou
atitude for percebida como traição à confiança, particularmente
quando estão envolvidos aqueles com quem se tem intimidade.
Se, então, é lógico que se sinta ódio em relação aos que são
íntimos, por que se tenta esconder o ódio, ou fugir dele? É que
vivenciar o ódio por aquelas pessoas que se ama traz consigo o
sentimento de culpa. Como proteção a esse sentimento de culpa,
ou se nega o ódio ou tenta-se justificá-lo transferindo para o outro
a responsabilidade desse ódio.
Para uma recuperação adequada, será necessário aceitar a res-
ponsabilidade pessoal desse conflito, ou seja, admitir que esse con-
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 79

Oito é natural e está acontecendo realmente. Ninguém é responsá-


vel por ele, a não ser aquele que o sente. Tanto o amor como o ódio
são emoções genuínas que devem ser tratadas como tal, e devem
ser integradas em cada um. Quando houver essa integração, então
que o co-dependente poderá decidir adequadamente quais as ações
tomará a partir do momento em que as emoções aparecerem.

Quarto marco: Mudar atitudes e comportamentos


O quarto marco que indica um caminhar seguro é a mudança
nas atitudes e comportamentos do co-dependente como resultado
de sua decisão racional de promover essa mudança.
Por incrível que possa parecer, são essas mudanças do co -de-
pendente que promoverão as mudanças nas atitudes da pessoa-
problema. O co-dependente costuma ter dificuldade muito grande
para mudar, pois prefere o ruim que conhece a tentar o bom que
desconhece. Aceitar o ruim lhe dá a idéia de que controla a situ-
ação-problema. Mudar ou tentar mudar a situação-problema lhe
dá a idéia de que está abandonando algo sobre o que tem muita
responsabilidade, o que não quer fazer. O co-dependente precisa
da situação ruim para que tente exercer o controle sobre a vida da
pessoa-problema, sem o que tem a sensação de que perde o sentido
de sua vida.
O co-dependente deve ter em mente que é ele quem decide
quais expectativas atender e da parte de quem. Ele pode decidir
mudar o tipo de vida vivido até agora. Ele pode tomar a decisão
corajosa de desenvolver atitudes reparatórias. Sua vontade, por
muito tempo, ficou presa à vontade da pessoa-problema. Talvez a
principal mudança é perceber que pode exercer sua vontade para
mudar as coisas.
Apresentamos a seguir algumas sugestões de atitudes repara-
tórias que o co- dependente pode tomar para mudar o rumo da sua
caminhada:
80 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

A. Tenha como objetivo amar-se a si mesmo


O co-dependente estará honrando a si mesmo por preservar
uma atitude de auto-aceitação, ou seja, aceitar o que é sem
autojulgamento ou autopunição, sem nenhuma pretensão de ser o
que não é. O co-dependente experimenta uma vaga mas penetran-
te aflição provocada por sua baixa auto-estima. Ele não se sente bem
em lugar nenhum e na presença de nenhuma pessoa. E até consigo
mesmo não se sente bem, nem sequer considera amar a si mesmo.
Há uma instrução deixada por Jesus Cristo a seus seguidores
que tem sido largamente sugerida: "Ame o próximo". Mas a última
parte da instrução, "como a ti mesmo", o co-dependente costuma
deixar de lado. Para os co-dependentes, há uma inversão nessa
parte: eles costumam odiar a si mesmos. É como se uma lei tirânica
lhes dissesse: ame intensamente o outro e odeie-se intensamente
por não amar o outro o suficiente. Dessa forma, o co-dependente se
sente eternamente em débito, por mais que se esforce para pagá-lo.
A baixa auto-estima faz com que se sinta inferior e
inapropriadamente diferente das outras pessoas. Acostumou-se a
esse sentimento de tal forma que constantemente se coloca em
situações impossíveis em que não tem outra escolha a não ser sen-
tir-se mal consigo mesmo. E apesar desse mal-estar, por incrível
que pareça, ele se sente confortável com isso, pois se acostumou a
uma serie de sentimentos desagradáveis derivados de sua co-de -
pendência. Tornou-se tão exigente consigo mesmo que não se per-
mite desfrutar a vida, ter momentos de lazer, e sente culpa se relaxa
um pouco. Sente-se obrigado a um perfeccionismo exagerado, de
tal forma que tem dificuldades em aceitar o sucesso, acreditando
que não fez tanto assim, preferindo aceitar que é um fracassado.
Estabelece para si um alto padrão de conduta, acima de sua
possibilidade, e quando não o atinge, sente mais culpa por não
estar atendendo as próprias exigências. Por causa dessa culpa e
com medo de ser rejeitado, evita intimidade com pessoas que estão

MARCOS NA TRILHA DO SOL • 81

dispostas a amá-lo. Evita compromissos e relacionamentos que seri-


am produtivos para si, acreditando ser ameaças à sua integridade
emocional, para permanecer em relacionamentos destrutivos, acre-
ditando que sua missão é resgatar esses relacionamentos incrivel-
mente complicados e completamente antagônicos a si mesmo.
Costuma pensar que não é capaz de enfrentar o mundo e suas situ-
ações. Isso lhe desperta muita ansiedade e medo.
Célio tinha tal baixa auto-estima. Ele dormia demais pela
manhã e não queria levantar-se, pois tinha de enfrentar o mundo
com uma sensação de mal-estar que queria evitar dormindo. Vivia
brigando com a esposa quando ela o acordava de manhã, pois sai-
am juntos para o trabalho. No trabalho, não conseguia aceitar que
aprendia rapidamente as tarefas destinadas a ele pelo chefe, até
mesmo superando-o em muitos aspectos. Perguntava constante-
mente à esposa como tinha se desempenhado em alguns compro-
missos, querendo ter sempre a certeza de que tinha sido
bem-sucedido, mas sem conseguir aceitar que os aplausos dela lhe
eram devidos. Só começou a mudar esse quadro quando desistiu
de se torturar, dando-se um grande abraço emocional, dizendo a si
mesmo que era bom, inteligente e capaz de realizar grandes coisas,
tanto para si como para outros. Aí começou a aceitar que era ma-
ravilhoso ser o que era, que seus sentimentos eram adequados, que
estava exatamente onde deveria estar, que pertencia ao meio onde
c2 vivia e era aceito.
'à Amar a si mesmo implica dar a si próprio a honra que cada um
1

merece, pois de todos os julgamentos que realizamos na vida, o


mais importante é o que fazemos a respeito de nós mesmos. A ma-
neira como nos vemos, como nos avaliamos influencia todos os as-
pectos da nossa vida: pensamentos, motivações, sentimentos e
comportamentos.
Para amar-se, o co-dependente deve afirmar a si mesmo que
pode ter consciência de seu valor pessoal tanto em direção ao
82 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

mundo exterior como ao interior, sem medo de descobrir o que


está lá para ser descoberto. E aceitar que pode pensar indepen-
dentemente, e ter a coragem parra assumir suas próprias percep-
ções e julgamentos.
Amar a si mesmo é estar disposto a conhecer não somente o
que pensar, mas o que sentir, o que querer, desejar, sofrer, do que
ter medo e raiva — e aceitar o direito de experimentar tais senti-
mento, ao mesmo tempo que se recusa a aceitar culpas indevidas,
e fazer o que for necessário para eliminá-las assim que surgirem.
Muitos co-dependentes vivem constantemente sob o peso terrí-
vel das expectativas dos outros, pois seu envolvimento com as pesso-
as não é baseado na voluntariedade do amor, mas no peso
extraordinário da obrigação. Amar a si mesmo é estar comprometido
com o direito de existir a partir da percepção de que sua vida é um
dom de Deus, não pertence a ninguém além de si mesmo e que esta
vida não deve ser vivida segundo as expectativas de outras pessoas.
Amar a si mesmo é estar em amor com sua própria vida, com suas
possibilidade de crescimento e de experimentar alegria, com o pro-
cesso de descobrimento e exploração de suas distintas possibilidade
humanas. É estar presente consigo mesmo sem deixar de considerar
o outro, mas mostrar ao outro claramente sua individualidade de tal
forma que o outro desenvolva grande respeito por você. E isso requer
grande independência, coragem e integridade. Somente então, o
co-dependente estará em condições de oferecer seu amor voluntari-
amente, sem esperar nada em troca, um amor que tudo sofre, tudo
crê, tudo espera, tudo suporta, porque poderá viver essa verdade
sem qualquer peso de obrigação, mas na liberdade de um compro-
misso pessoal de um perfeito relacionamento com os outros.

B. Permita-se pensar e tomar decisões


O co-dependente tem uma dificuldade muito grande em pen-
sar claramente. Costuma ter medo de que qualquer decisão que
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 83

tome agrave as dificuldades de sua situação-problema e se recusa


a aceitar os pensamentos que tem. Pensar é ter de encarar a reali-
dade dura da qual não pode fugir. A conseqüência é que sofre
bastante. Se de um lado conhece o horror da indecisão, por outro,
fica apavorado por ter de tomar decisões. Pequenas decisões o pa-
ralisam; grandes decisões o sobrecarregam. Essas forças antagôni-
cas prendem-no em uma letargia carregada de culpa. Na tentativa
de fugir desse beco mental, passa a acreditar em mentiras através
de negações, e vive em grande caos e estresse. Seu espírito tornou-
se cheio de sentimentos reprimidos que bloqueiam sua capacidade
de pensar. Ao mesmo tempo, fica preocupado com o que os outros
estão pensando dele, achando que deve ser perfeito a fim de não
cair em seu próprio julgamento fatal.
Sobrecarrega-se com um pesado fardo de exigências; nada
que pense o satisfaz, ao mesmo tempo que se sente obrigado a
tomar decisões que não tem obrigação de tomar, acabando por
não saber que direção seguir. Fica numa situação incrível, qual
aquela descrita pelo poeta: "Se ficar, o bicho come; se correr, o
bicho pega". Esse conflito pode ter sua raiz na idéia de que a
situação-problema se criou por decisões erradas que o co- depen-
dente tomou no passado. E para não correr o risco de errar nova-
mente, não deseja pensar. A sensação que isso provoca é que está
ficando louco. E como a pessoa-problema costuma lhe dizer que
está louco, o co- dependente passa a acreditar nessa deslavada
mentira.
O co-dependente pode avaliar seu comportamento e chegar a
um ponto de equilíbrio que o ajudará a sair desse beco. Decisões
não têm de ser perfeitas, pois é possível ser perfeito na imperfeição;
o ato de tomar uma decisão é perfeito, mesmo que a decisão possa
não ser correta.
Aqui vão sugestões de algumas condutas para ajudar o co-de -
pendente a pensar e tomar decisões próprias.
84 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

1. Busque informar-se o máximo possível a respeito do problema


que lhe incomoda. O ideal é ler bons livros sobre o assunto e
falar com pessoas que possam lhe dar sugestões adequadas, e
não prestar atenção a "conversas de comadres". Não questi-
one a informação no momento que a receber. É a reflexão
posterior que a aceitará ou a rejeitará. Dê tempo para que
suas convicções sejam estabelecidas.
2. Se não tiver chegado a uma conclusão depois de pensar bas-
tante, deixe seus pensamentos em paz, desligando-se por um
pouco daquele problema em questão. Das duas, uma: (a)
quando voltar a pensar encontrará a resposta mais facilmen-
te ou (b) sua mente a encontrará sem mais nenhum esforço.
Em todo esse processo, mantenha a calma. Raramente as
coisas importantes são urgentes e raramente as coisas urgen-
tes são importantes.
3. Além disso, a reflexão sobre o problema pode ser utilizada
como matéria-prima para a prece e a meditação, pelas quais
pode pedir a ajuda de Deus, conforme você o concebe, para
conseguir a sabedoria necessária nesse momento. Não duvi-
de que a resposta virá, pois a prece e a meditação são como
uma antena interior sintonizada que captará o sinal enviado
de dentro de seu próprio ser.
4. Dê-se o direito de desfrutar uma eventual frustração por não
encontrar logo a resposta. Uma preocupação exagerada com
a resposta é abusar de sua mente. Diga a si mesmo que acha-
rá a solução, e não que isso é difícil, complicado, trabalhoso
etc. Pare de dizer que é "estúpido", que não consegue tomar
boas decisões, que não é esperto. Use sua mente, tome deci-
sões, formule opiniões, fale o que pensa. Começar a pensar
significa que você está superando a desconfiança em sua pró-
pria mente e as dificuldades que antes lhe pareciam insupe-
ráveis.
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 85

C. Viva sua própria vida


Viver a própria vida é mais uma atitude reparatória, pois a for-
ma mais segura de se tornar louco é se envolver emocionalmente
na vida de outras pessoas, e a forma mais segura de estar são e feliz
é cuidar dos próprios negócios. Mas isso poderá parecer um projeto
sem graça para o co-dependente, pois terá de olhar para os própri-
os problemas. Ao se envolver com os negócios de outras pessoas, o
co-dependente tem o beneficio emocional de não olhar para si
mesmo.
Mas o custo dessa vantagem é altíssimo: o co-dependente es-
quece de como viver e desfrutar a sua vida, e passa a depender
tanto do outro que não consegue ser feliz, por mais que se esforce.
Há um propósito alegre, gratificante e cheio de sentido no cuidado
de outros. No entanto, isso depende de uma decisão voluntária e
não pode ser uma obrigação pesada, o que será desgastante e qua-
se insuportável para qualquer pessoa que o tentar, sem conseguir
entender como pode ser tão infeliz enquanto faz o que acredita ser
a principal missão de sua vida.
Só quando a pessoa estiver livre para escolher cuidar ou não de
alguém é que poderá fazer isso alegremente, de forma adequada e
sem peso algum. Cuidar de si mesmo é uma atitude que significa:
"Eu sou responsável por mim mesmo. Sou responsável por dirigir
minha vida; por meu bem-estar espiritual, emocional, físico e fi-
nanceiro; por identificar e atender minhas necessidades; por resol-
ver meus problemas ou aprender a viver com aqueles que não posso
resolver. Sou responsável por minhas escolhas; por aquilo que dou
e recebo. Eu também sou responsável por estabelecer e alcançar
meus alvos. Sou responsável por quanto eu aproveito a vida; por
quanta alegria encontro em minhas atividades diárias".
É ter autocuidado, uma atitude de respeito próprio. É viver
intensamente a sugestão de Jesus de amar a si mesmo. O co-de -
pendente estará livre, então, para amar o outro, pois o amor ao
86 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

outro depende da liberdade com que se ama esse outro. Talvez


alguém pergunte: Como posso tomar conta de mim mesmo? A res-
posta é simples: em uma situação qualquer, pare um instante e
pergunte: "O que eu gostaria que essa ou aquela pessoa fizesse por
mim?". E faça por você o que gostaria que o outro lhe fizesse. As-
sim, será possível perceber, com surpresa, que a resposta estará dentro
de cada um de nós.
No décimo primeiro passo do Programa de Doze Passos sugerido
por Alcoólicos Anônimos encontramos a expressão: "... procura-
mos saber a vontade de Deus para nossas vidas...". Geralmente,
essa frase costuma criar extensas polêmicas e grande confusão a
respeito do que é a vontade de Deus, como sabê-la e praticá-la. Há
uma grande quantidade de pessoas que se sentem abandonadas
por Deus, e que, por isso, pensam que não vale a pena saber a
vontade Dele para a vida delas. Não é de estranhar que pensem
que Deus as abandonou: na verdade cada um abandona a si mes-
mo, sente-se abandonado por outros, e, assim, acha-se abandona-
do pelo Criador.
No entanto, a vontade de Deus para cada um é simples. Ele o
criou para ser humano. Ser humano é ser a imagem e semelhança
de Deus. Ora, Deus é amor, e ser sua imagem é ser amoroso, come-
çando por si mesmo. Viver plenamente é ser gentil consigo mesmo
e aceitar-se a si mesmo. É possível ser compassivo consigo mesmo.
Só então alguém desenvolverá uma verdadeira compaixão por ou-
tros. Por dar a si mesmo o que precisa, o co-dependente se tornará
seu próprio conselheiro, confidente, companheiro e melhor amigo
nessa nova aventura que inicia: viver a própria vida. Se ouvir a si
mesmo e a seu Poder Superior, não será enganado. Dando a si mes-
mo o que precisa e aprendendo a viver uma vida autodirigida exi-
ge fé. O co-dependente precisa fazer ao menos um pouquinho cada
dia para começar a andar para a frente. O primeiro passo que der é
a própria fé da qual precisa.
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 87

D.Alegre-se
O co-dependente não costuma ser uma pessoa muito alegre.
Mesmo que esteja rindo, bem lá dentro se sente triste e rejeitado,
e não consegue aceitar os momentos de alegria que a vida lhe
oferece. É difícil sentir alegria quando odeia a si mesmo; quando
não há dinheiro para a padaria porque o alcoólatra bebeu tudo;
quando reprime todas as emoções, preocupado em como o outro
reagiria se as manifestasse; quando está saturado de culpa e deses-
pero; quando tenta controlar rigidamente a si e a mais alguns; quan-
do se preocupa com o que os outros estão pensando a seu respeito.
Faz parte da recuperação que o co-dependente aprenda a não
se levar muito a serio, e comece a sentir-se alegre em realizar seus
deveres diários por sua própria vontade, ou porque quer fazê-los
livremente, ou porque deixa de fazer algo que não queria fazer,
ficando livre para fazer o que realmente gosta. E sair e comprar
algo que deseja — desde que possa comprá-lo ou isso não for uma
compulsão —, e não se sentir culpado por isso; ter a coragem de
fazer algo, mesmo que o sentimento inicial seja de desconforto,
sabendo que isso logo passará e ele estará bem consigo mesmo,
porque prestou atenção a si.
Aprender a desfrutar a vida sem ter a necessidade de atender
exigências interiores e sem se levar muito a serio é uma arte que
todo co-dependente pode aprender. Ria de si mesmo e descubra
como isso pode ser uma grande fonte de alívio e felicidade.

E.Sinta raiva
A raiva é um sentimento que pode ocupar grande parte da vida
do co-dependente. Pode até mesmo tornar-se sua vida. Ela surge
como resposta à ameaça que a situação-problema representa para
ele e diante da impotência em se defender dessa ameaça. No en-
tanto, em uma família co-dependente, é comum não lhe ser permi-
tida a expressão da raiva, com a idéia de que essa expressão
88 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

provocará o comportamento compulsivo: o alcoólatra beberá, o rai-


voso se enraivecerá, a situação ficará pior, as brigas vão acontecer.
Na verdade, a pessoa-problema usará qualquer coisa como descul-
pa para repetir seu comportamento compulsivo, pois é evidente que
não gosta de ouvir quanto os outros ficam irados por seu comporta-
mento inadequado.
A raiva do co-dependente aperta os botões da culpa na pessoa-
problema. Esta retalia também raivosamente, mantendo o co-de-
pendente culpado e acuado em um canto qualquer, pensando que
a pessoa-problema tem razão de reclamar, que ele é responsável por
aquele comportamento compulsivo. O resultado é que o co-de-
pendente não sabe o que fazer com essa raiva. Nesses casos, o co-
mum é que a raiva atinja o pico quando o dependente pede ajuda,
pois estando vulnerável nesse momento, o co-dependente tende a
atacá-lo com sua raiva.
Aí o co-dependente pode adicionar à sua baixa auto-estima e
culpa um pensamento torturante e silencioso: "Ele está certo. Como
eu pude ficar com raiva agora? Eu deveria ter ficado quieto. Eu
deveria estar agradecido. Há alguma coisa errada comigo". Essa
maneira de vivenciar a raiva gera um grande problema, porque
todo mundo envolvido na situação de co-dependência sente rai-
va, e se culpa por isso, reprimindo suas emoções, e, desenvolvendo
outros problemas emocionais, termina por colaborar para a perpe-
tuação desse quadro difícil.
A raiva é um sentimento comum, mas nem por isso fácil de
lidar. Geralmente, as pessoas não foram ensinadas como lidar com
a raiva, mas lhe disseram que era feio, pecaminoso, inaceitável ou
coisa parecida. E quando tentaram lidar com a raiva, acabaram
mais confusas porque não sabiam o que fazer com tal sentimento.
A raiva provoca reações. Ficamos raivosos porque é normal de
nossa natureza sentir raiva. Às vezes preferimos permanecer com
raiva porque isso nos ajuda a ficar menos vulneráveis e mais pode-
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 89

rosos, porque teremos força para nos defender do que nos ameaça.
É como uma armadura protetora. Se estivermos com raiva não nos
sentiremos feridos ou com medo, ou, no mínimo, passaremos por
cima disso tudo.
Como já foi dito antes, o co-dependente tem o direito de estar
com raiva da situação-problema, o que é diferente de ter raiva da
pessoa-problema. O melhor sentimento para com ela deve ser de
compaixão. Mas como é que você terá raiva da situação e ao mes-
mo tempo terá compaixão da pessoa?
É preciso compreender que a raiva que se tem contra a situa-
ção-problema é a própria demonstração de compaixão pela pessoa-
problema, uma vez que se está com raiva do que está destruindo
tanto essa pessoa como as outras à sua volta. Quando a raiva é
aceita e não reprimida, pode-se dirigi-la contra o objetivo correto,
que é a situação-problema, e não a pessoa portadora do problema,
mesmo que ela esteja agindo errado. Somente quando a raiva for
dirigida contra a situação-problema é que se poderá perdoar a pes-
soa pelo erro cometido. Assim, é justo exprimir livremente a raiva,
mesmo que a pessoa-problema não perceba que a raiva não é dirigida
a ela, pois o importante neste momento é que o co-dependente
tenha uma consciência clara do porquê de sua ação. Isso aliviará
tanto o sentimento de raiva como o de culpa, abrindo espaço para
a compaixão.
Aqui estão sugestões de atitudes práticas que ajudarão o co-
dependente a tratar da raiva adequadamente:

I. Permita-se sentir a raiva. Ela é apenas energia emocional. Não


é certa nem errada, pois não tem esse valor moral. Ela apenas
pode ser desagradável. Emoção não é intenção, ainda que possa
conduzir à intenção e mesmo a uma ação inadequada, da qual
poderá vir a se arrepender e, aí, precisará repará-la. Mas não
se arrependa da raiva, pois ela não tem de ser nem justificada
90 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

nem racionalizada. Se a energia estiver ali, sinta-a. Sinta ou-


tras emoções associadas, como dor ou medo.
2. Trate de todos os mitos associados à raiva, tais como: não se
pode ter raiva; ter raiva prejudica o outro; sou pecador por
ter raiva. A graça de Deus é revelada na permissão de sentir
a raiva quando ela for necessária. A Bíblia descreve Deus
em momentos de raiva e o próprio Jesus Cristo teve seus mo-
mentos raivosos.
3. Queime a energia da raiva, saindo para dar uma volta, an-
dando apressadamente em torno do quarteirão, correndo,
pulando. Se puder, grite de raiva.
4. Reconheça e aceite os pensamentos que acompanham o sen-
timento. Se preferir, diga esses pensamentos em voz alta. E se
as pessoas à sua volta se espantarem, diga-lhes que não se
preocupem, não há nada de extraordinário ali, que apenas
está ventilando sua raiva.
5. Examine os pensamentos que acompanham o sentimento, tra-
zendo-os para a luz. Com isso, poderá ver se há algum defei-
to neles, observando padrões repetidos. Discuta a sua raiva
aberta e honestamente, quando isso for apropriado, falando
a pessoas de sua confiança.
6. Não permita que sua raiva o controle, mas assuma a respon-
sabilidade por ela. Falar sobre ela não é perder o controle.
Uma ação impensada estimulada pela raiva é o que configu-
ra perda de controle. Tome uma decisão responsável sobre os
fatos, se uma ação for recomendável.
7. Evite agredir-se ou a outros quando se sentir com raiva. Es-
creva uma carta que não será mandada. Depois, queime-a,
rasgue-a, jogue-a no lixo, livrando-se do peso da raiva.
8. Trate do sentimento de culpa, geralmente associado à raiva.
Há uma culpa verdadeira, a que é gerada por um ato inade-
quado praticado pelo co-dependente. E há uma culpa falsa, a
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 91

de atos inadequados praticados por outros, mas sobre os quais


o co-dependente assume responsabilidade. Ambos são senti-
dos com a mesma intensidade. Mas enquanto a culpa verda-
deira aponta o erro e o ajuda a corrigi-lo, a falsa não o ajuda
em nada, só atrapalha, pois não há nada a ser reparado. A
única responsabilidade possível nessa situação é ter a culpa de
ter assumido uma culpa que não era de sua responsabilidade.

Uma vez identificada a raiva, o co-dependente notará que


ela estará presente muitas vezes. Não é que ele esteja mais raivoso,
apenas estará consciente de sua presença e extensão. O co-depen-
dente deve ter paciência consigo mesmo. Mudança emocional leva
tempo, o que não significa que ela não esteja acontecendo: aceitar
que está tudo bem em sentir raiva quando for necessário já é uma
grande mudança.

F Desenvolva confirmação em si mesmo


O co-dependente tem mais uma característica interessante:
freqüentemente não está certo sobre quem é e em quem acreditar.
É preciso distinguir entre confiança e estupidez. Se não for possível
confiar em alguém, o bom senso é parar de tentar. Não é inteligen-
te nem sábio confiar, por exemplo, em que um alcoólatra vai parar
de beber sem tratar de sua doença.
Mas o co-dependente pode aprender a confiar em si mesmo.
Deve aprender a prestar atenção às mensagens que o mundo exteri-
or está lhe enviando e aprender a prestar atenção ao que seu interior
está lhe dizendo. Se fizer isso, descobrirá em quem deve confiar e
como confiar, pois passará a ter confiança em seu julgamento.

G. Estabeleça limites bem claros


O co-dependente tem dificuldades de estabelecer limites. Li-
mites são atitudes pelas quais se diz aos outros: "Vou até aqui; isto
92 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

é o que eu vou fazer ou não vou fazer; isso eu não vou tolerar de
você". Al-Anon2 tem uma frase interessante a respeito: "Ame o
próximo, mas construa uma cerquinha".
As pessoas-problema não apenas forçam os limites de todas as
pessoas à sua volta, mas passam acintosamente sobre eles. E os co-
dependentes sempre aceitam essa invasão, por acreditarem que o
melhor é não reclamar, e dão um passo para trás, oferecendo mais
espaço para a doença tomar conta. Passam a tolerar coisas impen-
sáveis anteriormente até o ponto em que, saturados, não aceitam o
mais comum dos comportamentos humanos, desconfiando de tudo
e de todos. Além disso, acabam se convencendo de que esse é o
comportamento normal, e que o merecem.
O co- dependente precisa de limites a respeito do que fará tan-
to pelas pessoas como por si mesmo. Os limites que deverá estabe-
lecer poderão ser semelhantes a estes:

• Não permitir que ninguém abuse física e verbalmente de si.


• Não apoiar nem acreditar em mentiras.
• Não permitir o uso de substâncias químicas em casa.
• Não permitir nem comportamento criminoso nem
irresponsável em casa.
• Não salvar pessoas das conseqüências de abuso de
substâncias químicas ou de qualquer outro compor-
tamento irresponsável.
• Não financiar as substâncias químicas ou outro compor-
tamento irresponsável de ninguém.
• Não mentir para protegê-lo ou a si mesmo da situação-
problema.
• Não usar sua casa como centro de desintoxicação de
dependência química, ou de tratamento de qualquer tipo.

'Al-anon é a irmandade que dá apoio aos familiares de alcoólatras em


recuperação com o objetivo de ajudá-los a entender e superar a codependência.
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 93

• Não permitir que a pessoa-problema estrague seu dia, sua


alegria e sua vida.

As emoções apontam para as coisas que saturam nosso sistema


nervoso e que ameaçam nossa integridade emocional, que fazem
com que não se suporte mais as situações-problema, indicando tanto
onde é conveniente estabelecer esses limites como o que é possível
mudar. Será preciso coragem para estabelecer esses limites, pois
requerem tempo e reflexão; pô-los em prática exige energia e con-
sistência. A tendência a desistir surgirá forte, reforçando a idéia
que ou não se é responsável por realizar essas mudanças ou talvez
não valha a pena o esforço. No entanto, tal esforço é sempre recom-
pensador para todos os que se dispuserem a enfrentá-lo.
Os limites claramente estabelecidos expressam as expectativas
das pessoas quanto ao que se deseja, precisa, espera ou teme. É
justo esperar coisas boas e comportamento adequado nos relacio-
namentos interpessoais, mas não é possível esperar atitudes sociais
de pessoas não-sociais, nem esperar resultados diferentes do mes-
mo comportamento inadequado. Então é melhor abrir mão das ex-
pectativas e desligar-se emocionalmente do problema, e evitar forçar
expectativas sobre os outros, tentando controlar o curso dos even-
tos, uma vez que isso apenas agrava a situação.
É importante para o co-dependente ter a certeza de que as ex-
pectativas são realistas e apropriadas, pois se não o forem, ele se
sentirá muito frustrado com a realidade, ao mesmo tempo que não
saberá nem aproveitar as coisas boas que estão acontecendo, nem
transformar uma dificuldade em oportunidade para melhorar.

H. Defina alvos bem claros


O estabelecimento de alvos é outro grande passo em direção à
recuperação. Nada neste mundo nos dá mais segurança do que ter
um sentido de vida e um propósito pelo qual lutar quando acorda-
94 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

mos pela manhã. Pouca coisa nos alegra mais do que alcançar algo
que sempre desejamos.
Há um resultado formidável no estabelecimento de alvos para
a vida. O propósito da vida torna-se claro como o sol e o sentido da
vida é um caminho plano para a caminhada. Forças emocionais,
espirituais e psicológicas são postas em operação, e é incrível como
os fatos vão acontecendo em direção ao cumprimento de cada um
dos desejos do coração. O caminho de uma pessoa em direção a
seus alvos cruzará com os caminhos de outras pessoas, e nesses en-
contros acontecerão trocas que alguns chamariam de "milagres",
resultantes da sincronia entre duas vontades diferentes.
É de grande valor estabelecer alvos, pois isso ajuda a recuperar
o sentido da vida, perdido pelo envolvimento emocional na situa-
ção-problema. As oportunidades que a vida nos apresenta a partir
de uma mudança de atitude serão o impulso necessário para a ca-
minhada em direção ao sol.
Aqui estão algumas sugestões de como estabelecer alvos para
a vida:

1. Transforme todas as coisas que tem a fazer em alvos,


independentemente se são coisas grandes e difíceis, ou
pequenas e fáceis. Tê-las como alvos é o que tornará
mais fácil realizá-las.
2. Cuidado com a palavra "devo". Ela costuma afirmar
uma obrigação que, se por alguma razão não conseguir
ser atendida, criará culpa. Há grande diferença entre
dizer "devo fazer" e "posso fazer". É prudente omitir a
palavra "devo" de seus alvos, substituindo-a por "posso"
ou "eu quero", que estabelecem um compromisso
voluntário consigo mesmo.
3. Estabeleça claramente seus desejos dentro de uma
realidade factível e mensurável, e busque alcançá-los
sem pressa e sem auto-exigências. Uma avaliação
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 95

constante o ajudará a perceber se os atingiu ou não, e


se não o conseguiu, poderá reconsiderá-los a fim de
perceber se não estão fora de sua realidade. Se for assim,
basta ajustá-los a essa realidade.
4. Crie o hábito de escrever seus alvos e seus progressos,
se possível diariamente. Isso lhe dará um senso de
perspectiva de sua direção e progresso e uma
possibilidade de revisão e comparação depois de certo
tempo. Isso também alimenta sua mente com dados,
informações e percepções que são usados para a
criatividade necessária na busca de seus próximos alvos.
5. Utilize seus alvos escritos como motivos para prece e
meditação. O progresso realizado e as correções de
rumo eventualmente necessárias são excelentes recursos
para descobrir a vontade de Deus para sua vida.
6. Compare seus alvos com suas realizações utilizando-se
de suas anotações, perguntando-se: onde estou, o que
aprendi até aqui, o que sei agora. E congratule-se por
suas realizações.
7. Estabeleça alvos gerais, de prazo mais longo, e alvos
mais específicos, de prazo mais curto, avaliando-os
regularmente, e, sempre que necessário, reajuste-os.
8. Faça o que é possível, uma coisa de cada vez em cada
24 horas que tem para viver. E faça-o em paz.
9. Mantenha seus alvos à vista, mas não se per coita obcecar
por eles. Um bom sinal de que o caminho a seguir é
diferente do planejado é quando as coisas não
acontecem conforme o planejado. A vontade de Deus
para sua vida pode ser manifestada nas circunstâncias
de seu dia-a-dia que não acontecem segundo os planos
estabelecidos. Será, então, bom momento para
replanejar alvos à luz da nova realidade.
10. Desenvolva a paciência. Os alvos podem levar tempo
para ser alcançados. E isso pode ser um bom exercício
96 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

de fé. Se existe a convicção de que o alvo é a vontade


de Deus para a sua vida, é conveniente esperar um
pouco se eles não acontecerem imediatamente. O fato
de não acontecerem poderá significar que a direção a
seguir é outra. As coisas acontecem em seu devido
tempo, o tempo de Deus, o nosso tempo, o tempo do
mundo. O tempo das coisas acontecerem é o tempo
quando acontecem.

I. Desenvolva a assertividade
Assertividade é a maneira pela qual uma pessoa expressa afir-
mativa e claramente seus desejos, emoções e pensamentos, apesar
de possíveis críticas a suas convicções. A assertividade é essencial
para comunicações interpessoais claras, uma vez que não deixa
dúvidas a respeito do que se quer e de como se quer.
Desenvolver a assertividade é algo de grande importância na
recuperação da co-dependência, uma vez que a qualidade da co-
municação dos co-dependentes com outras pessoas é muito pobre.
É possível que o co-dependente use as palavras com objetivos
específicos: ou manipular as pessoas para que façam o que deseja;
ou agradar para que não se sinta rejeitado; ou querer esconder-se
com medo de se expor; ou ainda querer aliviar sentimentos de cul-
pa que nem sabe por que estão ali.
Suas palavras podem expressar sentimentos e pensamentos re-
primidos, segundas intenções, baixa auto-estima e vergonha. Todo
co-dependente costuma ser indireto, não falando o que sente, e
desejando desesperadamente que os outros adivinhem tais senti-
mentos e desejos, ficando ressentido quando eles não atendem suas
expectativas. O co-dependente não diz o que deseja dizer, nem
deseja dizer o que diz.
John Powell, autor de um extraordinário livro sobre emoções e
assertividade, afirmou: "... tenho medo de lhe dizer quem sou,
MARCOS NA TRILHA DO SOL • 97

porque você pode não gostar, e é só isso que eu tenho".3 Essa frase
demonstra muito bem a dificuldade que um co-dependente tem
de expressar-se, por não gostar de si mesmo nem confiar em si pró-
prio e em seus sentimentos e pensamentos, achando que suas opi-
niões cheiram mal e que nada valem.
As comunicações não são mágicas. Somos o que falamos e fala-
mos o que somos. A forma como usamos as palavras revelam muito
dos motivos que nos levam a usar essas palavras. Se temos baixa
auto-estima, ela será demonstrada em nossas palavras. Se nos ava-
liarmos pobremente, nossas palavras serão pobres.
Logo, podemos utilizar nossas palavras como instrumentos de
pesquisa de nossas reações emocionais e dos processos psicológicos
pelos quais nos relacionamos com o mundo exterior. Muitas vezes,
dizemos sim quando sabemos que o melhor seria dizer não. Sentimo-
nos culpados por ter dito sim, mas não conseguimos entender por-
que o fizemos. Esse sentimento indica que agora é o momento
adequado de parar e pensar qual foi o motivo atrás desse sim. A
motivação mais freqüente é o medo da rejeição. Acreditamos que
se dissermos "não" o outro não vai gostar. E como é que nos sentire-
mos? Como lidaremos com a rejeição? Acabamos dizendo "sim"
quando queremos dizer "não" porque temos medo de não sermos
aceitos pela outra pessoa. E esse medo é grande gerador da falta de
assertividade.
O desenvolvimento da assertividade ajuda o co-dependente a
dizer o que quer dizer e expressar claramente o significado de seus
sentimentos. O efeito de dizer ao outro o que sente é extraordiná-
rio, particularmente se ficar bem claro que são seus sentimentos,
pelos quais o co-dependente é o único responsável. O outro não
ficará na defensiva ouvindo o que a pessoa está sentindo. O que

3
Porque tenho medo de lhe dizer quem sou. 2. ed. Belo Horizonte: Crescer,
1989.
98 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

confunde muito as comunicações dentro de um processo de co-


dependência é o ouvinte sentir-se culpado pelos sentimentos que
são expressos, e na tentativa de aliviar essa culpa, ataca aquele
que os demonstra. Como na maioria dos casos, o co-dependente
não sabe como lidar com essa situação difícil, e acaba acreditan-
do que a melhor maneira de se proteger é ficar calado a respeito
de suas emoções, na esperança de que a situação-problema desa-
pareça.
Isso não é verdade, e bem lá dentro de si, o co-dependente
sabe disso. A pessoa-problema repete seu comportamento com-
pulsivo apesar de o co-dependente estar calado, e a raiva que
não é expressa acaba se voltando contra o próprio co-dependen-
te, que, confuso, não entende o que se passa consigo, pois tentou
resolver uma situação difícil, não conseguiu e se auto-acusa de
incapacidade de resolver o problema.
Ser assertivo é sentir-se livre e à vontade para falar de seus
problemas e sentimentos, assumindo francamente a responsabili-
dade sobre eles. É libertador dizer "Chega!", "É suficiente r, "Bas-
tar, independentemente da reação da outra pessoa.
Expressar seus sentimentos e problemas e não esperar que os
outros se apressem a socorrê-lo resgata a sua condição de pessoa.
A sensação de equilíbrio e integração resultante compensará to-
dos os esforços feitos para conseguir a assertividade.
7
OMBRO A OMBRO

A
recuperação da co-dependência é um árduo processo de
revisão das motivações que ligam o co-dependente às pes-
soas significativas em sua vida. São as relações interpessoais
que dizem quem é co-dependente e a quem pertence. Mesmo que
essas relações não tenham sido plenamente satisfatórias no supri-
mento de suas necessidades afetivas básicas, é a elas que o co-
dependente está historicamente ligado. Mesmo que ele tenha
rompido os relacionamentos com sua família de origem, não pode
fugir do fato de que descende dessa família. E mesmo que não
conheça tal familia, ou ainda quem é seu pai ou sua mãe, foi gera-
do por essas pessoas, e não pode mudar o fato de que isso o afeta.
São esses relacionamentos que constituem a identidade pesso-
al de todos nós. Assim também a história de todo co-dependente
tem suas semelhanças: o co-dependente é o que é a partir de suas
reações ao seu lar de origem. Se hoje ele sente necessidade de
entender suas reações ao que a vida lhe apresenta, precisará en-
tender uma verdade básica: a melhora da qualidade de sua vida
depende de uma revisão desses relacionamentos.
100 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Quando tratamos de relacionamentos interpessoais, estamos li-


dando com espiritualidade, isto é, o modo pelo qual nos relaciona-
mos com as pessoas. E a forma de conhecer nossa espiritualidade é
prestar atenção nas reações emocionais envolvidas nesses contatos.
É importante fazer distinção entre religiosidade e espiritualidade.
Ambas não são, necessariamente, a mesma coisa. Religiosidade é
seguir um credo religioso, seja ele qual for. É possível ser muito
religioso e nada espiritual. Aliás, historicamente sabemos que as
religiões têm sido usadas como justificativas para muitos desvarios
nos relacionamentos interpessoais. Os homens têm justificado muitas
atitudes agressivas, muitas guerras, muita miséria em nome da re-
ligião. A religião também pode estar a serviço de muitas manipula-
ções e pode criar muitos problemas emocionais além dos que já
enfrentamos.
Espiritualidade é sensibilidade para com o outro; é ter compai-
xão de seu sofrimento, oferecer-se para colocar o ombro, suportan-
do a carga do outro, e ajudá-lo em sua dificuldade; é ver o outro
caído no caminho e parar a viagem para socorrê-lo; é compreender
a dificuldade do outro em sua falta de senso e equilíbrio e, apesar
disso, ter coragem de lhe dizer não, quando isso for o que ele pre-
cisa ouvir. Espiritualidade é ter paciência para com o outro; é não
ter inveja; é não buscar os próprios interesses, não se irritar, não
suspeitar mal.
Talvez uma pergunta surja aqui: "Muito interessante isso. Mas
como posso experimentar essa felicidade toda quando estou tão
envolvido na co-dependência? Isso parece muito longe de minha
realidade, algo quase impossível de ser alcançado, de tal forma
que, se é nos relacionamentos que a espiritualidade será demons-
trada, terei grande dificuldade de ser espiritual, uma vez que meus
relacionamentos estão muito complicados e difíceis". A resposta
para essa interessante pergunta se apresenta no Programa de Doze
Passos sugerido por Alcoólicos Anônimos (A.A.).
OMBRO A OMBRO • 101

O Programa foi criado originariamente para utilização nos


grupos de A.A., como um programa capaz de conduzir um alcoóla-
tra à sobriedade. Foi escrito originariamente por Bill W, um dos
fundadores de A.A., para responder aos que lhe perguntavam como
tinha conseguido parar de beber. Depois de algumas adaptações
sugeridas por seus companheiros de sobriedade, foi adotado pelos
grupos de A.A. e permanece como a base espiritual desses grupos
espalhados pelo mundo inteiro.
A vivência do Programa pelas mulheres dos primeiros alcoóla-
tras que alcançaram a recuperação levou-as a perceber que podi-
am utilizá-lo para si mesmas. E da reunião dos familiares de
alcoólatras que também buscavam a recuperação surgiram os gru-
pos de Al-anon.1
Devido aos resultados extraordinários alcançados na recupera-
ção tanto do alcoólatra como dos familiares co-dependentes, o Pro-
grama de Doze Passos passou a ser utilizado em uma série de outras
situações disfuncionais, tais como: o jogo, a comida exagerada, a
raiva descontrolada, sexo compulsivo, compra compulsiva etc., e
os resultados também foram muito positivos.
Muitos profissionais trabalhando na área de recuperação de si-
tuações disfuncionais têm aprendido a respeitar esse Programa pelo
que ele significa de realidade espiritual que, vivenciada por qual-
quer pessoa, desenvolve a sobriedade tão necessária e procurada
pelas pessoas em geral, e pelos co-dependentes em particular.
O Programa não está baseado em credos ou dogmas específicos
de qualquer religião. No entanto, pressupõe a existência de um

Tradicionalmente, os grupos de Alcoólicos Anônimos usam a sigla A.A.


Os grupos de familiares também adotaram uma sigla derivada de Alcoólicos
Anônimos, que e justamente AI, de alcoólicos, e Anon, de anônimos. Daí o
nome de Al-Anon. A partir daí, vários outros grupos de auto-ajuda surgiram:
N.A., ou seja, Narcóticos Anônimos e seu correspondente familiar, o Nar-Anon,
Neuróticos Anônimos, etc.
102 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Poder Superior a nós mesmos que poderá nos devolver o equilíbrio


emocional perdido na vivência da situação-problema em nossa fa-
mília disfuncional de origem, ou na família que constituímos. Su-
gere a possibilidade de chegarmos a uma boa melhora, senão à
plena restauração da saúde emocional e felicidade através de um
relacionamento renovado com Deus.
Muitas pessoas que questionaram o Programa no início de sua
recuperação como algo que cheirava a religião formal, com o de-
senvolvimento de sua sobriedade passaram a valorizar grandemente
o Programa. Certa pessoa afirmou-se "ateu comunista" assim que
entrou em contato com o Programa. Dentro de poucos dias, perce-
beu a dimensão extraordinária atrás das sugestões do Programa, a
ponto de parar de beber e reorganizar sua vida, tanto pessoal e
familiar como profissional.
Muitos que adotaram o Programa dos Doze Passos corno prática
em sua vida relatam que experimentaram o surgimento de um re-
lacionamento pessoal e transformador com Deus. A vida dessas
pessoas foi enriquecida. Elas começaram a ser transformadas por
conta de um relacionamento amistoso com Deus.
Essa amizade é um caminhar diário com Deus que nos conduz
da confusão e dor para uma vida de paz e serenidade. Muitos hábi-
tos criados na expectativa da superação das condições caóticas da
vida são mudados a cada pequeno passo em direção ao sol. A cami-
nhada é lenta, exige tempo e paciência. Um poder insuspeito
instilará em cada um a força necessária para que o compromisso
com a recuperação seja fortalecido dia a dia.
Um importante sinal de recuperação ocorre quando o co-de-
pendente se torna mais aberto e comunicativo, e começa a valori-
zar o contato com os outros que estão partilhando seu programa de
recuperação. Pessoas que estão participando desse programa se tor-
narão parte importante na vida dos que nele ingressam. Ambos
aprenderão o que um compartilhar aberto pode fazer por cada um
OMBRO A OMBRO • 103

quando se tornam desejosos de revelar-se uns aos outros. À medi-


da que se tornam dispostos a esse compartilhar e aceitar sua pró-
pria natureza repressiva e negativa, descobrirão que esse processo
é reparador e gratificante.
A vivência do Programa de Doze Passos capacita o co-depen-
dente a reexaminar seus relacionamentos interpessoais e descobrir
diariamente novas perspectivas para sua vida. Ele aprenderá a olhar
sem medo para suas sombras e aceitar suas tendências não deseja-
das, como a raiva mal direcionada, o comportamento sexual ina-
dequado, a hostilidade e a agressividade, sabendo que são
resultantes da disfuncionalidade em sua família de origem, e que
podem ser tanto controladas como modificadas para melhor.
Fomos criados à imagem e semelhança de Deus e temos rique-
zas ilimitadas à nossa disposição. No entanto, elas não estarão dis-
poníveis para serem usadas como quisermos, pois corremos o
extraordinário risco de usá-las para nossa destruição. Se tentarmos
isso, descobriremos que há um mecanismo de proteção no processo:
a recusa de Deus em permitir que sua riqueza seja utilizada
destrutivamente. Talvez essa seja uma das razões por que aparente-
mente Deus não responde nossas orações, pois não sabemos orar como
convém. Não é que Deus seja caprichoso, indolente, sarcástico ou
mesmo nem preste atenção em nós. É que não nos atender conforme
nosso desejo é uma de suas maneiras de nos ensinar a agir dia a dia.
Qualquer pessoa pode decidir se destruir, evidentemente, mas por
vontade própria, com recursos próprios. E para isso, não precisa do
poder de Deus. Basta permanecer no antigo caminho. Mas se qui-
ser escapar da destruição do seu caminho, qualquer pessoa encon-
trará os recursos que precisa para a recuperação e reconstrução de
sua vida, pois Deus está pronto para ajudá-la nessa tarefa.
A jornada espiritual sugerida pelo Programa de Doze Passos vai
despertá-lo para uma nova vida e lhe dará uma oportunidade para
experimentar uma grande paz e produtividade. Emoções
104 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

machucadas serão restauradas. Sentimentos de falta de valor, ansi-


edade e inferioridade desaparecerão. A experimentação de um novo
relacionamento com Deus eliminará a necessidade obsessiva da
aprovação dos outros. Sua atenção será capturada pela promessa
de uma aventura maravilhosa chamando-o para uma nova vida em
Deus através de Jesus Cristo.
Vamos dar uma rápida olhada nesse Programa:
12 PASSO - Admitimos nossa impotência perante o álcool e que
tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.'
Esse passo sugere ao co-dependente que reconheça o pro-
blema como ele realmente é, além de se dar conta de que é impo-
tente para mudar coisas, pessoas e circunstâncias que não controla.
É o passo da humildade, da aceitação dos seus limites, pelo qual
aprende a reconhecer até onde pode ir e deliberadamente não ul-
trapassar esses limites. A admissão de sua impotência sobre as coi-
sas que não pode mudar reserva suas forças emocionais e físicas
para mudar o que realmente pode mudar: a si mesmo. Quando o
co-dependente pára de tentar fazer o impossível, está se permitin-
do fazer o que é possível fazer.
22 PASSO - Viemos a crer que um Poder Superior a nós poderia
devolver-nos à sanidade.
2
3 PASSO - Decidimos entregar nossa vida e nossa vontade aos
cuidados de Deus, conforme o concebíamos.
São os passos da aceitação de que suas tentativas de brincar de
Deus se revelaram frustrantes e improdutivas. Esses dois passos per-

Os grupos de apoio para outros tipos de comportamento compulsivo


substituem a palavra "álcool" pela palavra mais adequada ao seu interesse. Os
grupos de Al-anon trocam-na por "alcoolismo", Narcóticos Anônimos por
"drogas", Neuróticos Anônimos por "emoções", Fumantes Anônimos, por
"cigarro" ou "tabaco" e assim por diante.
OMBRO A OMBRO • 105

mitem o reconhecimento, pela fé, de que dentro de cada um de nós


há a imagem e semelhança de Deus; é essa semelhança que permite
a percepção de que ele também é uma pessoa e, desse modo, pode se
comunicar com você em uma relação de amor e respeito mútuo.
Deus, como nós, é pessoa. E como tal, pode se relacionar
conosco. É o que ele mais deseja. Você pode estabelecer essa ami-
zade com ele, independentemente de sua confissão religiosa. E
mesmo que não a tenha, ela não é necessária para que você se
aproxime dele e descubra uma nova dimensão em sua vida, geral-
mente muito desconhecida, pois essa aproximação não depende de
uma confissão religiosa, mas de uma fé simples como a da criança.
Mas como ter fé se já pedimos tanto a Deus que ele modificasse os
outros, mas ele não fez nada para mudar a situação? É fundamental
notar que Deus não estava negando coisas boas para nossa vida,
mas estava procurando nos ensinar que se ele atendesse esse tipo
de oração,estaria reforçando nossa fraca idéia de termos poder e
controle sobre a vida dos outros.
Mas ao não responder conforme nossas pobres idéias, Deus está
nos dando a preciosa oportunidade de reconhecermos nossa impo-
tência perante os outros e que a única pessoa a quem realmente
podemos mudar somos nós mesmos.
Crer em um Poder Superior e entregar sua vida a seus cuidados
é tirar sua vida do controle de outros e parar com a tentativa de
controlar outros, pois isso o levou à submissão total a essa pessoa,
que passou a controlá-lo. Isso não significa resignar-se a um monte
de regras do tipo "pode" e "não pode", ou "deve" e "não deve",
nem mesmo a continuação de sacrifícios, os quais já foram feitos
extensa e intensivamente, sem quaisquer resultados práticos. Esse
é um programa de vida, que atende as mais profundas necessida-
des, habilidades, talentos e sentimentos. O amor que o co-depen-
dente tanto procura não tem sua fonte nas pessoas que procura
controlar, mas em Deus, que o ama incondicionalmente. É uma
106 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

experiência fantástica perceber que não é necessário manipular a


Deus para que ele o ame.
42 PASSO — Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós
mesmos.
52 PASSO — Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e pe-
rante outro ser humano a natureza exata de nossas falhas.

Um de nossos maiores anseios é sermos aceitos pelo que somos,


sem qualquer crítica ou rejeição. O início é pela auto-aceitação,
que também é o inicio da recuperação da co-dependência. Se o
co-dependente se aceitar como é, a necessidade de ser aceito pe-
los outros não será tão dominadora e ele não temerá as críticas ou
eventual rejeição pelos outros. O co-dependente estará desenvol-
vendo amor e honestidade para consigo mesmo, libertando-se da
tirania do que os outros estarão pensando dele.
O inventario pessoal é o meio de auto-avaliação pelo qual pro-
cura entender as causas de suas carências, as formas que foram uti-
lizadas para preenchê-las, os resultados que foram alcançados e as
necessárias mudanças a serem efetuadas. O inventário fornecerá um
padrão adequado de avaliação, ajudando o co-dependente a perce-
ber o que lhe é apropriado e a largar mão do que não é adequado.
Admitir suas faltas abre a porta para o perdão. As feridas emo-
cionais do passado começam a sarar. E quando cicatrizam, deixam
de doer. Será até possível lembrar do sofrimento quando olhar as
cicatrizes, mas já não mais sentirá a dor dos ferimentos do passado.
A conseqüência é uma grande sensação de liberdade.
Um cuidado que é necessário tomar é quanto à autopiedade
que costuma rondar o coração dos co-dependentes. Admissão de
faltas não é razão para lamúrias mórbidas, e partilhar suas dificul-
dades com outras pessoas não pode ser ocasião para destilar o fel
das amarguras da vida, procurando uma valorização neurótica que
apenas perpetua e aumenta a infelicidade.
OMBRO A OMBRO • 1 07- __ _

62 PASSO — Dispusemo-nos inteiramente a deixar que Deus remo-


vesse todos esses defeitos de caráter.
72 PASSO — Humildemente pedimos a Ele que nos livrasse de nossas
imperfeições.

Esses passos sugerem o reconhecimento de que algumas coisas


que o co-dependente esteve fazendo para proteger-se acabaram
por feri-lo ainda mais, e, possivelmente, outras pessoas também.
Sugere a prontidão para assumir os riscos de abrir mão desses
comportamentos e atitudes ultrapassados, tornando-se pronto para
ser mudado e cooperar no processo de mudança. Além disso, o isola-
mento interpessoal provocado pelos seus erros provocou também um
isolamento de Deus, aumentando sobremaneira sua sensação de ali-
enação e seus ressentimentos. E somente a ação de um Deus que é
amor e que está interessado em nossa aproximação dele poderia re-
mover o que provoca interrupção em nosso relacionamento com ele.
Deus tem um especial interesse em restaurar nossa semelhança
com ele, a partir de nossa permissão para que ele modifique a pró-
pria estrutura de nosso caráter.
82 PASSO — Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos
prejudicado, e nos dispusemos a reparar os danos a elas causa-
dos.
92 PASSO — Fizemos reparações diretas a essas pessoas sempre que
possível, salvo quando isso significasse prejudicá-las ou a outrem.

Reparação é o processo pelo qual o co-dependente pode resol-


ver a culpa moral de atos ofensivos cometidos contra uma ou várias
pessoas, bem como resolver os ressentimentos provocados por ofen-
sas que outros cometeram contra si. Se o co-dependente foi o ofensor,
pelo seu pedido de reparações resolve tanto a culpa por ter ofendi-
do alguém como oferece a esse alguém a possibilidade de, conce-
dendo-lhe o perdão, sarar sua mágoa pela ofensa cometida.
_- 108 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Se foi o ofendido, tem a chance de, em perdoar o ofensor, elimi-


nar de seu sistema emocional os ressentimentos que aquela ofensa
criou em si. A sábia ressalva nesses passos refere-se a situações em
que uma reparação poderá ser mais danosa que a não-reparação.
Aí é que o co-dependente pode exercer com plenitude o perdão
que poderá dar a si mesmo, aceitando conscientemente que não
fará a reparação direta para preservar a si e ao outro de danos
maiores.
E, evidentemente, nesse processo reparatório, o co-dependen-
te deve incluir a si mesmo, pois ele sempre acaba sendo o maior
prejudicado pelos atos ofensivos que necessitam de reparação.

100 PASSO — Continuamos fazendo o inventário pessoal, e quando


estávamos errados, nós o admitimos prontamente.
0
11 PASSO — Procuramos, através da prece e da meditação, melho-
rar nosso contato consciente com Deus, na forma em que o con-
cebíamos, rogando-Lhe apenas o conhecimento de sua vontade
em relação a nós e forças para realizar essa vontade.

O inventário moral constante e, preferivelmente, diário, evita


que o acumulo de culpas e ressentimentos, transformados em amar-
gura, acabe por prejudicá-lo e contamine seus relacionamentos com
outras pessoas. É preferível que não durma sem reparar, de algum
modo, suas falhas reconhecidas e aceitas.
A prece e a meditação não deverão ser orações ou rezas que
decorou, repetidas qual papagaio, sem entender e vivenciar seu
conteúdo. Se for assim, esses extraordinários recursos de
autoconhecimento não terão o efeito desejado. O conteúdo psico-
lógico descoberto pela análise pessoal é a matéria prima de suas
preces e meditações. Então o co-dependente tirará o verdadeiro
proveito para seu crescimento pessoal através da prática desses
passos.
OMBRO A OMBRO • 1 09

122 PASSO -Tendo experimentado um despertar espiritual graças


a esses passos, procuramos levar essa mensagem a outros alcoó-
latras e praticar esses princípios em todas as nossas atividades.

A espiritualidade não é medida por quanto alguém é rigoroso


na demonstração formal da fé religiosa, pela freqüência aos cultos
de sua confissão, nem por quanta ajuda seja oferecida aos pobres,
ou quanto conhecimento a respeito de dogmas ele tenha. Aliás,
nem sempre religiosidade é espiritualidade. Pode-se ser muito reli-
gioso e nada espiritual. E pode-se ser bastante espiritual sem estar
filiado a qualquer confissão religiosa.
Espiritualidade se reconhece nas motivações envolvidas nos
relacionamentos interpessoais. Se as motivações estiverem basea-
das no interesse genuíno pelo bem-estar do outro, então poderá ser
dito que se experimenta a espiritualidade, pois poderá oferecer aju-
da, sem impô-la; ser luz, sem procurar ofuscar a visão do outro;
indicar o caminho ao que ainda não pode andar depressa, sem
empurrá-lo e fazê-lo tropeçar. E, finalmente, este programa não se
aplica somente à situação-problema, mas a todas as áreas de nossa
vida, não importa qual seja. Evidentemente, à medida que se am-
plia a aplicação a essas outras áreas, elas também receberão o be-
nefício do Programa de Doze Passos.
A vivência desse Programa pelo co-dependente significa que
ele encontrará outras pessoas que se disporão a colocar seus om-
bros sob sua carga, não para que elas a carreguem, mas para ajudá-
lo a remover o peso excessivo que não precisa carregar. E, com
absoluta certeza, ao iniciar a caminhada, verá que, passo a passo,
experimentará mudanças que jamais pensou ser possíveis.
8
Aí VEM O SOL

T
homas Merton afirmou o seguinte: "Uma felicidade que é
procurada por nós nunca poderá ser encontrada, pois uma
felicidade que é diminuída quando é partilhada não é gran-
de o suficiente para nos fazer felizes")
Essa afirmação é dirigida ao coração do co-dependente. Sua
tendência é procurar a felicidade para si mesmo. No entanto, essa
procura sempre será frustrante, porque a planície ensolarada que
ele procura não está em encontrar a felicidade para si, mas sim na
partilha da intimidade de sua alma com outras pessoas.
Mas, na desesperada tentativa de preencher sua carência afe-
tiva, ele pegou um atalho, logo cedo talvez, em sua trajetória pela
vida. Esse atalho conduziu-o para bem longe de seu objetivo origi-
nal, encontrando apenas uma felicidade falsa e momentânea e um
horizonte cheio de nuvens sombrias de tristeza e frustração. A idéia
de partilhar sua intimidade pareceu-lhe impossível, pois como po-
deria partilhar algo que entendia não ser suficiente para si mesmo?

No man is an Island. New York: Harcourt, Brace & World, 1985, p.3
112 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Para aumentar o pouco de felicidade que experimentava, o co-


dependente esforçou-se compulsivamente no ato que lhe deu um
pouco de prazer a fim de obter mais prazer, apenas para perceber,
frustrado, que nunca conseguiu a felicidade tão desejada. Deu-se
sem conta à pessoa-problema na expectativa de resolver a charada
em que se meteu, sem perceber uma verdade fundamental no amor:
a verdadeira felicidade é encontrada em um amor não egoísta, um
amor que aumenta na proporção em que é partilhado. E não é
suficiente que o amor seja partilhado. Ele tem de ser partilhado
livremente. O amor deve ser oferecido voluntariamente ao amado,
e não imposto a ele. E nem arrancado do amante, mas solicitado
em esperança.
O co-dependente que amou de forma altruísta uma pessoa ego-
ísta já deve ter percebido que não foi feliz. O amor apóia-se na
felicidade do amado. Mas se o amado recebe o amor de forma ego-
ísta, o amante nunca estará satisfeito, pois ele percebe que seu
amor falhou em tomar seu amado feliz.
De modo geral, pode-se dizer que o co-dependente sempre
procurou o que é realmente bom para a pessoa-problema. Mas o
co-dependente costuma ter dificuldade para compreender um as-
pecto importantíssimo: esse amor tem de ser baseado na verdade.
O relacionamento entre o co-dependente e a pessoa-problema, na
maioria das vezes, não é baseado na verdade. Um amor que não vê
distinção entre o bem e o mal, mas ama cegamente apenas em
função da outra pessoa, é ódio, e não amor. Amar cegamente é
amar egoisticamente, porque o alvo de tal amor não é a solução da
dificuldade no relacionamento com o outro, mas apenas fazer com
que o co-dependente sinta-se confortável em seu íntimo. Não querer
ver o problema que está destruindo o relacionamento amoroso en-
tre duas pessoas é não querer enfrentar o desconforto da verdade.
Portanto, quando o co-dependente age assim não está preocupado
com o bem-estar da outra pessoa, mas com o seu próprio bem-estar.
Aí VEM O SOL • 113

Isso é egoísmo. O co-dependente está sinceramente engana-


do. Ele está dizendo que se contenta com a aparência do bem, que
se contenta em sentir-se confortável, sem qualquer consideração
com o bom ou mau efeito que isso tem sobre a pessoa-problema.
O amor genuíno não é nem fraco nem cego. O amor pode ser
enganado por certo tempo. Enquanto o prazer for o primeiro objeti-
vo, o amante está sendo desonesto consigo mesmo e com aqueles a
quem ama. No entanto, esse engano não prosseguirá por muito
tempo, pois logo o amor genuíno detectará a superficialidade do
relacionamento e exigirá um compromisso diferente, pois o amor
são se alegra com a desonestidade.
O co-dependente só será feliz quando buscar muito mais que a
satisfação de seus próprios desejos, mesmo que estejam voltados
para o bem-estar da pessoa-problema. O amor deve torná-lo um
instrumento de Deus na vida dessa pessoa.
Talvez o objetivo de Deus na vida do co- dependente seja usar
o seu amor para atingir os objetivos que Ele tem para com a pessoa-
problema. A vontade do co-dependente deve ser o instrumento de
Deus em ajudar a pessoa-problema a criar o próprio destino. É Deus
quem vai orientá-lo a como utilizar essa vontade. O verdadeiro
amor é agraciado com a prudência que vê claramente e respeita os
desígnios de Deus para cada pessoa individualmente, aceitando
que ele tem um plano para cada ser humano, até mesmo para a
pessoa-problema.
O verdadeiro amor não procura de forma alguma moldar as
pessoas conforme suas frágeis concepções de como elas devam ser;
ele se aproxima de todas as pessoas com temor e tremor, sabendo
que no outro, independentemente de quem seja, está a imagem de
Deus. E se essa imagem está tão distorcida que se torna irreconhe-
cível nas ações desvairadas dessa pessoa, o amor se curva em muda
perplexidade diante do sofrimento profundo que essa distorção pro-
voca, sem exigir transformações impossíveis dessa pessoa.
114 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

Quando o co-dependente procura amar a pessoa-problema com


um coração sinceramente enganado, cai em uma armadilha que não
conseguiu notar antes: a co-dependência produz uma aliança entre
o co-dependente e a pessoa-problema de tal forma que um acaba
não respeitando o direito do outro de ser autônomo. A pessoa-pro-
blema passa a depender do co-dependente para continuar com seu
comportamento disfuncional, e o co-dependente passa a precisar da
disfuncionalidade para continuar atendendo as suas necessidades
emocionais de controle. Não há o respeito mútuo pelo qual o verda-
deiro ser de ambas as pessoas consegue espaço para crescer e expan-
dir assumindo a responsabilidade pessoal por suas decisões.
O resultado é que um procura manter o outro em sujeição às
suas necessidades emocionais, através de doloridos jogos
manipulativos. O amor que sentem um pelo outro fica impedido de
desabrochar completamente por causa da insistência em que cada
um se conforme ao outro, e trabalham de todas as formas possíveis
para conseguir isso. Ambos correm o risco de que esse amor mur-
che e morra, a não ser que se convençam do engano e procurem
oferecer seu amor de forma mais saudável.
Quando aquela aliança permanece entre as pessoas, um e ou-
tro só existem como um recurso para que se preencham necessida-
des afetivas próprias. A manipulação necessária para que isso
aconteça prende um e outro a situações de egoísmo que não nu-
trem adequadamente o amor entre ambos.
Freqüentemente as pessoas envolvidas em tal relacionamento
não se dão conta do engano, porque estão desejosas de fazer qual-
quer concessão ao amado a fim de manter a aliança que estabele-
ceram sem perceber. Mas o resultado é desastroso, pois essa aliança
ataca diretamente o que há de melhor em uma pessoa: sua liberda-
de, sua integridade, sua própria dignidade como pessoa autônoma,
oferecendo quase nada em troca que sustente o relacionamento.
O desastre é mais tenebroso ainda quando se sente um prazer com-
Aí VEM O SOL • 115

placente nessas concessões, dando a idéia falsa de que todos são


atos resultantes de um amor sem interesse nenhum.
O amor que não é enganoso e que honestamente procura a
verdade não faz concessões ilimitadas ao amado. O amor verdadei-
ro não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. O
amor verdadeiro confronta seriamente o amado quando esse prati-
ca um ato iníquo. Iniqüidade é a injustiça de uma pessoa que pro-
cura tirar mais vantagem para si mesma que seus direitos permitem
e que dá aos outros menos que eles devem receber. Quanto mais
alguém procurar ter vantagens sobre os outros, menos pessoa será,
pois a ansiedade em possuir o que ele não tem direito estreita e
diminui sua própria alma. As pessoas envolvidas pela co-depen-
dência caem nesse erro a cada vez que manipulam outros a fim de
conseguir delas a satisfação de seus desejos.
A vida da pessoa-problema está entrelaçada com o próprio des-
tino da vida do co-dependente. Esta é uma verdade da qual ele
jamais escapará. Mas porque tem muito em comum com essa pes-
soa é que o co-dependente pode tornar-se capaz de amá-la com
uma perfeição especial e sem egoísmo, desde que se disponha mui-
to mais a partilhar com ela tal amor. A impossibilidade de separa-
ção torna o amor entre eles especialmente sagrado: é uma
manifestação de Deus na vida do co-dependente. O perfeito amor
termina em felicidade pelo reconhecimento da liberdade que há
em Deus. Deus se dá livremente aos que o amam puramente. Par-
tilha de sua intimidade com eles e a eles revela seus planos.
O amor não-egoísta, por receber de Deus o dom de si mesmo,
torna-se capaz, apenas por esse fato, de amar com perfeita pureza.
Pois o próprio Deus cria a pureza e o amor no coração daquele que
o busca, capacitando-o a amar o outro, até mesmo a pessoa-proble-
ma, com perfeito amor. À medida que o co-dependente perceber
essas realidades profundas, perceberá o vale ensolarado no qual
poderá deitar-se na relva e ver o sol nascer no horizonte. Ali, en-
1 1 6 • QUERO MINHA VIDA DE VOLTA

tenderá, por experimentar, as palavras do poeta Davi: "O Senhor é


meu Pastor, nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos
verdejantes. Leva-me para junto das águas de descanso; refrigera-
me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça por amor de seu
nome".2
Ali, naqueles vales verdejantes, não mais terá nem fome nem
sede, pois terá encontrado o Pão e a Água da vida. Suas mais pro-
fundas necessidades de afeto estarão satisfeitas de tal forma que
poderá partilhar do amor com todas as pessoas, particularmente
com a pessoa-problema.
Seus caminhos serão diferentes daqueles que até aqui trilhou,
porque não mais terá medo da intimidade: "A vereda dos justos é
como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia
perfeito".3
Seu coração se encherá de alegria pela expectativa trepidante
de ver claramente o sentido de sua vida, pois sabe que lá vem o sol.

Salmos 23.1-3.
'Provérbios 4.18.
ONDE PROCURAR AJUDA

Nos endereços a seguir é possível encontrar literatura sobre


alcoolismo e sobre os familiares de alcoólatras, bem como o ende-
reço dos Grupos de Alcoólicos Anônimos e Al-Anon.

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SOBRE O AUTOR

Carlos Roberto Barcelos Dias é psicólogo e teólogo. Tem larga


experiência no tratamento de dependência química, atuando nessa
especialidade desde 1980. Foi terapeuta de duas conceituadas clinicas de
recuperação de famaco-dependências, sendo um dos fundadores e ex-
diretor-técnico do Vitória Centro de Recuperação de farmaco-
dependências, de outubro de 1990 a março de 2005, onde liderou uma
equipe multidisciplinar de terapeutas e consultores em dependência
química. Desenvolveu uma abordagem holistica do Programa de Doze
Passos de Alcoólicos Anônimos e introduziu no Programa Familiar do
Vitória a discussão e tratamento da codependência em uma abordagem
sistêmica. Tem curso de especialização em Farmaco-dependências pela
Rutgers University, Nova Jerséy, EUA, e pela Chit Chat Farms,
Wenersville, Philadelphia, EUA, e especialização em Contemplação e
Aconselhamento pela Intervarsity Fellowship International, em Rasa,
Suíça. Especialização em Terapia Familiar Sistêmica de São Paulo.
Atende em seu consultório particular, e voluntariamente divulga o
"Celebrando a Recuperação" no Brasil.

Contatos com o autor:


• crbdias@uol.com.br
• (11) 5084-6163
SOBRE O LIVRO

Formato: 14 x 21
Mancha: 10,5 x 17,5
Tipologia: Texto: Goudy-Old-Style
(11,5/15,5); título: Helvetica
Condensed (26); subtítulos:
Helvetica Condensed (12)
Tiragem: 3 mil exemplares
1.2 edição: 2006
Impressão: Imprensa da Fé

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