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Colaboração de
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Silvia Malamud
SEQUESTRADORES
ALMdeAS
Colaboração de
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Malamud, Silvia
16-07970 CDD-158.2
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www.agwm.com.br
editorial@agwm.com.br
Desejo que este livro cumpra a função de
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Aos meus filhos, Betina e Bruno,
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Agradeço à Maria Beatriz de Oliveira Frazão Gonçalves e
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Sumário
Prefácio
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Apresentação
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Assassinos silenciosos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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2. Por que não? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Momento de reflexão........................................................... 87
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Máximas de alertamento
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do vocabulário de Márcia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . 111
4. Camila não parou para pensar – Foi algo mais forte que ela . . . . . . . . . . . . 119
Momento de reflexão
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
Era do Narcisismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . 146
Máximas de alertamento
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
usurpadores de almas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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3. Eu vou pagar essa multa, mas você não vai me escapar! . . . . . . . . . . . . . . . . . 164
conta de mim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . 172
8. Eu tenho alternativa? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . 193
9. Senti-me usada e enganada. Por que ele tinha feito aquilo? . . . . . . . . . . . . 197
Momento de reflexão
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
Predadores urbanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Máximas de alertamento
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
imune a eles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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4 Depoimentos e tratamentos
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273
Momento de reflexão
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313
Máximas de alertamento
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319
Como reconhecer se você é uma vítima de gaslighting e como sair desse ciclo tóxico? . . .
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5 Vida ou existência?
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algum desconforto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Brainspotting . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 346
Exercício para quando a alma já se encontra resgatada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Epílogo
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Prefácio
Conheci Silvia em 2006 e nosso primeiro contato foi para que eu pudesse ajudá ‑la com
meu trabalho. Mas logo percebi que eu é que preci‑
saria de sua ajuda. Conhecê ‑la, naquele momento, foi fundamental para minha
sobrevivência e para o resgate da minha alma.
Eu não tinha a menor ideia do que se passava em minha vida e do quanto esse fator
influenciava o meu desenvolvimento como um todo. Talvez ela tenha sintonizado de
imediato o sequestro da minha alma e que eu primeiro precisaria me fortalecer,
superando algumas questões emergenciais.
Foi assim que conheci seu valioso trabalho, nossa situação de encon‑
tro se inverteu e acabei iniciando uma desafiante jornada interior que me levaria ao meu
verdadeiro propósito de vida. Fui por ela cuidada e tratada através de terapias rápidas e
avançadas de reprocessamento cerebral de traumas, como EMDR, Brainspotting e outros
(ver significado e maiores detalhes no capítulo 6). Em poucas sessões, pude me recuperar
e superar situações difíceis da minha infância e adolescência que, sem saber, ainda
regiam minha existência. Recuperei memórias perdidas, digeri conteú‑
dos difíceis de vida e pude ressignificar crenças sobre mim mesma e sobre a realidade em
que vivia. Com a ajuda de Silvia, ousei mudar cenários e pude conquistar uma vida
repleta de significados, muito maiores do que eu jamais teria imaginado. Aprendi que
existe crescimento pós ‑traumático pela via positiva para todos nós, quaisquer que sejam
as circunstâncias anteriormente vivenciadas.
balho que me fez conhecer meu verdadeiro eu. Num estado de consciência forte e
intenso, que lhe possibilita enxergar além, ela não somente ajudou a resgatar minha alma,
como a de muitas pessoas a quem a recomendei e de outras tantas que tenho
conhecimento.
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Silvia Malamud
É muito difícil perceber que estamos vivendo um sequestro de alma e, mais penoso
ainda, admitir que isso possa ocorrer em nossas vidas. Mas uma profissional com a
experiência e a conduta de Silvia pode identificar com clareza e confiabilidade a
existência desses comportamentos. Silvia consegue devolver a pessoa para si mesma,
auxiliando ‑a a cuidar e confiar novamente em sua própria vida. Utilizando recursos
modernos e não invasivos, ela é assertiva e fecha todas as brechas para que você
mantenha o foco na resolu‑
ção de seus problemas. A partir desse momento, você consegue optar por se proteger,
reconhecendo com veemência o que é lesivo para sua alma, podendo rumar para o que é
verdadeiramente prazeroso e saudável, seguindo adiante no propósito do autorresgate e
do encontro com suas reais potencialidades.
dadas e, depois, que reúnam condições para saírem dos estados hipnóticos e passivos em
que vivem, libertando ‑se dessas situações. É um aprendizado sobre a importância do
autoconhecimento, do autorrespeito e da mudança drástica, que ocorre quando a pessoa
fica apta e decide sair de padrões viciados de esquecimento de si mesma, da submissão
cega e inconsciente, de abusos emocionais de toda ordem. Servirá de ferramenta útil para
que muitas pessoas consigam identificar os “sequestradores de almas” e apren‑
dam táticas que funcionem para desfazer as teias emocionais em que eles aprisionam
suas vítimas.
Utilize este guia também para tomar consciência de quem você é, para que possa se
afastar de situações e pessoas nocivas que talvez queiram se aproveitar abusivamente de
sua energia vital, mesmo que aparentem desejar o seu bem.
Não duvide de sua intuição. Não espere nem mais um minuto para
Você tem o direito de decidir. Você pode escolher sua alegria, sua liberdade.
Viviane Ferreira
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Apresentação
Assassinos silenciosos
Querem corromper sua sanidade, porque assim fica mais fácil a sua submissão. Seduzem
‑no por onde você é mais seduzível. Quebram aos poucos sua autoestima. Minam sua
energia e se nutrem insaciavelmente de tudo o que você é. São inconvenientes e nem
todos estão preparados para lidar socialmente com os outros. Dizem que só têm você e
que você é a ponte para o mundo. Incutem pena, culpa e cuidados reparadores.
Livre ‑se o mais rápido possível desses lobos em pele de cordeiro – o des‑
tino desse tipo de relação invariavelmente é letal. Esteja alerta. Busque ajuda, fuja e saiba
que nesse momento todos os seus medos são plantados por eles.
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Silvia Malamud
desastrosos que o predador emocional, dia após dia, vai roubando sua lucidez. Suas ações
funcionam como uma espécie de droga venenosa que é gradativamente injetada e tem
uma única função, a de intoxicá ‑lo. Acorde, você está correndo risco de vida. Acredite
em você e em suas mínimas per‑
Vítimas desse tipo de assassinos silenciosos, em geral, têm uma visão cor ‑de ‑rosa da
vida e acreditam que serão capazes de reparar absolutamente todo o mal ‑estar do outro,
até mesmo suas mudanças repentinas de humor.
Para essa empreitada, muitas vezes atravessam seus próprios limites de tole‑
tativas de confortá ‑lo são pouquíssimas vezes apaziguadas e, com isso, as vítimas pouco
a pouco vão perdendo toda a sua vitalidade e força psíquica.
Tanto nos predadores, como nas vítimas, existe uma crença negativa sobre si mesmo. A
diferença é o tipo de atitude. O predador, por ser frágil, não suporta ver a vida projetada
fora de si mesmo. Inveja e quer destruir. Ao ver o outro existindo, ele tem a dimensão da
sua não existência e quer des‑
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Sequestradores de Almas
observando ‑as, e, ao menor deslize, que na maioria das vezes nem é deslize, as
desqualificam moralmente, literalmente acabando com elas. Na maioria das vezes, esse
padrão de relação assediadora ocorre dentro de casa e longe da visão externa, o que
dificulta o entendimento de todos, até o das vítimas em questão.
A função deste livro não é a de dar nome aos vilões ou mesmo às víti‑
mas. O propósito é oferecer um guia de sobrevivência para todos aqueles que estiverem
passando por relacionamentos abusivos, que estejam vivendo um esquecimento de si
mesmo, um autoboicote. Lembrando que cada his‑
tória de vida é particular e única, e os motivos pelos quais se pode tornar tanto presa
como sequestrador são infinitos.
Este guia de sobrevivência é para todos aqueles que se veem ou que já estiveram num
sofrimento sem fim, aprisionados em suas questões, repetindo ‑se em infindáveis dias,
com baixa esperança de mudança. Relata histórias de vida, com exemplos de casos
atendidos em consultório (com a devida permissão para serem expostos e ainda assim
protegendo a iden‑
teza de que você poderá se tornar um agente capaz de tomar atitudes perante situações
‑limite similares ou iguais às que envolvem grande parte das tramas deste livro .
Embora tenha usado, em alguns textos, exemplos de vítimas do sexo feminino, devo
deixar claro que muitos homens também passam por situações dessa ordem.
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Silvia Malamud
A ideia é revelar o tema também para quem não tem noção de que essas vivências
existem e mesmo para acordar aqueles que estão sequestrados e não sabem o que se
passa em sua vida.
Desejo que você, leitor, possa substancialmente ampliar a qualidade de sua presença em
sua sagrada jornada terrena, buscando conhecimento e sem‑
pre trilhando novos caminhos de lucidez em todas as áreas da sua vida. Tudo isso
somado ao prazer de existir, que é o que vale e o que de verdade importa.
Cabe ressaltar que este livro não tem em absoluto a intenção de ser visto ou lido como
algo de cunho científico ou acadêmico, mas sim, como uma máxima de alerta para
pessoas comuns, que em algum momento já ouviram falar sobre esse tema, e mesmo para
quem nunca ouviu e nem suspeitou que possa estar envolvido nesse tipo de
trama/cárcere. Desejo que possam ter acesso a esse importante tema, bem como a suas
possíveis e devastadoras consequências quando não se está desperto.
Que este guia faça jus ao serviço proposto, que é o de despertar aqueles que estão
imersos num sofrimento aparentemente sem fim.
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– Sinto ‑me fora da minha própria história, como se a minha vida tivesse sido roubada.
– Algo precisa ser radicalmente mudado em minha vida, mas não sei por onde começar,
nem como e o que fazer.
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nando que tome uma atitude, alertando ‑o para a urgência de chutar o balde?
Se estiver assim, seu sofrimento é compreensível, pois uma das maio‑
“anulado”.
Por outro lado, você pode estar beirando uma importante crise que também poderá levá
‑lo à total inversão existencial, ou seja, à possibilidade real de uma transformação radical
em sua vida. E se tiver alguma dúvida sobre a possibilidade ou não de obter êxito nesse
momento, tenha absoluta certeza de que, sim, você pode virar a mesa!
Histórias sobre esses momentos cruciais é que não faltam. Enorme per‑
No entanto, se não tomar nenhuma atitude e, tarde demais, perceber o desastre de uma
vida que há tempos poderia ter sido mais audaciosa, a dor ficará ainda maior.
das, frequentemente nos perguntamos por que é tão difícil agir e transfor‑
mar situações que deixaram de fazer sentido e que nos ferem profunda‑
mente. É fato que todos nós, em algum momento de nossa vida, passamos por situações
dessa ordem, mas o tema aqui referido se torna emergencial quando diz respeito a tudo o
que pode significar o Sequestro da Alma nas relações afetivas, sejam elas de que ordem
forem.
Tudo indica que não. Onde existe a falta de si mesmo, padrões de infe‑
licidade incomensuráveis são vivenciados. Jamais dará certo uma vida que não caminha a
favor de si.
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Ocorre que num momento máximo de crise, quando nos damos conta
Sair do lugar conhecido, ousando mudar, para buscar a felicidade, é algo simples, porém,
extremamente difícil de concretizar. A felicidade tão almejada está na confiança de um
vir a ser ainda não conhecido, não vivido.
tades poderão vir e muitas vezes elas serão desconhecidas. Mas, além delas, também
ocorrerão encontros inusitados, vivências únicas e alianças novas.
doença cujo prognóstico era bastante difícil. Quando soube, ousou vender a maioria de
seus pertences, contar ao chefe de trabalho tudo o que sem‑
pre o incomodou e falar abertamente aos seus familiares sobre suas mágoas.
Decidiu também expressar todo o seu amor e carinho, como nunca antes havia
experimentado. Determinou ‑se a seguir viagem pelo mundo durante um ano, entendendo
que talvez fosse seu último período de vida relativa‑
mente saudável, antes que a doença o tomasse. Ficou combinado que, se algum problema
surgisse, sua esposa o resgataria onde estivesse. Passados oito meses e sem que
aparecesse qualquer sintoma, uma dúvida surgiu em sua mente: “Será que realmente
estou doente?”.
Voltando para sua cidade natal, após quase um ano de período sabático, refez os exames
e, para a surpresa de todos, a doença não só não mostrou evidência alguma, como a área
antes danificada estava recuperada. Os pen‑
samentos que vieram foram: “Será que os exames da época estavam equi‑
vocados?”, “Houve uma cura espontânea?”, “Por que tudo isso aconteceu?”.
Esse “por quê”, na verdade, não importa. O que valeu foi a abertura para que o resgate da
vida surgisse.
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Essa história foi vivida por causa de um susto, mas acredito que a cora‑
gem para mudar não seja despertada apenas quando se é impulsionado de modo tão
ameaçador.
A ameaça está no dia a dia, no modo como vivemos, na anestesia em relação ao que não
nos faz bem. Está na insalubridade das situações de vida que impomos a nós mesmos e
no esquecimento do que é lesivo para a alma.
Por incrível que pareça, mesmo em meio a essas adequações mal solu‑
cionadas que vivemos que, no final das contas, vamos “empurrando com a barriga”,
nosso sistema físico é bastante forte. Aprendemos a levar uma vida carregando situações
danosas para nós mesmos, esquecendo o que é bom e saudável.
Um dia, porém, a casa cai e o mal que aparentemente advem disso, transforma ‑se em
oportunidade única de mudança. Apenas não precisaría‑
Tenho uma recordação sobre a minha primeira infância que me mostra o quanto fui
criada solta... Talvez “meio largada” fosse a expressão mais adequada. Lembro ‑me de
horas e mais horas, quando ainda muito pequena, em que ficava perambulando sozinha
no clube frequentado por toda a famí‑
lia. Certamente meus pais achavam o local seguro e, portanto, enquanto ficavam jogando
cartas com os amigos, deixavam ‑me “solta” para que fizesse o que bem entendesse.
Com 6 ou 7 anos, ora praticava algum esporte coletivo, ora ficava perambulando pelo
clube ou brincava com outras crianças no playground.
Lembro ‑me das sensações que tinha naquela época. Frequentemente, per‑
ce bia ‑me solta demais durante um tempo muito longo, era muito pequena e sem os
meus pais por perto. Sentimentos de desconforto, não muito cla‑
ros para mim na época, mas que hoje entendo como solidão, abandono e 26
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Cresci aprendendo a ter que dar conta de mim sozinha e acredito que bem antes do tempo
em que as crianças de verdade costumam se virar.
Escolhia os meus esportes, saía e ficava horas e horas na casa de vizinhos, até que eu
mesma resolvia voltar, embora minha mãe estivesse lá com os seus afazeres e me desse
atenção quando eu pedia. Orientava ‑me dentro de casa com os horários, a higiene e a
organização.
Quando eu tinha 12 anos, passamos férias numa praia e, certa ocasião, estava na entrada
do prédio, batendo papo com alguns meninos, até que resolvemos dar uma caminhada
pelas redondezas. Esses garotos, assim como eu, também deviam estar viajando com os
pais e, como eram apartamentos alugados, ninguém ainda se conhecia.
Passado algum tempo, voltei para casa, e para minha surpresa, pela pri‑
meira vez na vida, deparei ‑me com a minha mãe bastante nervosa comigo.
Fiquei totalmente paralisada e perplexa com a atitude dela e também sem entender
porque teria que agir repentinamente de modo diferente do usual. Ninguém nunca havia
conversado comigo sobre os possíveis perigos de sair com estranhos. Até aquele
momento fatídico, sempre havia tirado as minhas conclusões sobre como deveria
funcionar de acordo com as ati‑
tudes dos meus pais para comigo. Não tinha a menor ideia de que poderia haver situações
diferentes das que havia aprendido.
No final, senti ‑me muito triste e culpada achando que era uma pessoa má, que tinha feito
algo de muito errado e que talvez merecesse aqueles beliscões.
Fui para a terapia reprocessar uma série de abusos emocionais que passei ao longo da
vida. Dificilmente conseguia impor o meu não, o meu 27
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“isso não está me fazendo bem”, o meu “aqui é o meu limite, esta é a sua linha vermelha,
por favor, não ultrapasse daqui para dentro”.
tir daquele momento e como aquele foi um divisor de águas que passou a moldar grande
parte da minha conduta.
Durante a terapia de reprocessamento cerebral em EMDR, descobri que minha mãe ficou
desesperada pelo medo e pela falta de responsabi‑
lidade dela ao ter me deixado solta e porque eu poderia ter eventualmente passado por
algum perigo maior. Por não dar conta de lidar com esses sentimentos difíceis,
inconscientemente, projetou toda a sua culpa em mim. Eu era a culpada por, aos 12 anos,
ter sido irresponsável, mesmo nunca tendo qualquer tipo de diálogo com meus pais e
zero de orientação, nessa ordem.
O fato é que, para proteger minha mãe, tendo uma boa mãe internali‑
zada, preferi assumir a culpa dela, ou seja, por ela. O problema é que, como aquele dia se
configurou em algo bastante assustador e traumático, foi como se tivesse caído o
disjuntor e todas as luzes dentro de mim subita‑
mente tivessem sido apagadas... Logo depois, quando tudo se iluminou novamente, saí
dessa história achando que os erros ou abusos dos outros, sempre eram minha culpa e que
eu deveria fazer de tudo para agradar as pessoas, mesmo as ruins; afinal, eu poderia deixá
‑las muito bravas comigo, sendo eu uma pessoa má e ainda correndo o risco de não ser
amada e de ficar no desamparo e na solidão, tão conhecida e tantas vezes sentida...
Ao longo da vida, machuquei ‑me demais por causa dessa crença distor‑
Observação: existem infindáveis situações que podem fazer com que as pessoas sejam
tanto vítimas como abusadoras.
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Compreendendo a trama:
A alma é a nossa força vital, nossa essência, nosso bem mais precioso.
É o que conjuga nossa identidade total no mais amplo sentido, até mesmo no que
transcende a compreensão comum. Nela, em nossa alma, está agre‑
gada nossa energia vital que fortalece a concretização do verdadeiro sentido da vida. Por
isso, quanto mais inconsciente de si mesma a pessoa estiver, mais poderá estar na mira de
predadores emocionais, daqueles que têm dificuldades emocionais importantes em
relação à validação de sua própria existência. Consciente ou inconscientemente,
imaginam que com esse “bem”, ou seja, com a posse da alma de alguém, conseguirão
compensar suas mais profundas carências e frustrações.
Por mais terrível e inconcebível que isso possa parecer, pelas evidên‑
cias das histórias selecionadas, você poderá reconhecer a sua própria histó‑
ria de vida, bem como relacioná ‑la com a de outras pessoas que conhece.
O sequestrado, logo de início, não se percebe prisioneiro. Por outro lado, tem a estranha
sensação de que sua essência, dia após dia, está sendo minada num sofrimento
sistemático, silencioso e contínuo, como se uma espécie de aura sutil de apatia fosse
pouco a pouco se instalando.
Gradativamente, percebe ‑se subtraído de suas forças vitais e isso vai dificultando mais e
mais a identificação da verdadeira causa de sua angústia.
Não percebe sua energia vital sendo desperdiçada nas mãos de um outro, no caso, do
sequestrador. Dentro do contexto psicológico, estaríamos falando sobre personalidades
narcisistas perversas, narcisismo maligno, psicopatas, dependentes e codependentes
emocionais etc.
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Silvia Malamud
Quando já conscientes da condição de sequestro, quase sempre não têm força emocional
ou física para enfrentar seus algozes. Levantar e fugir da situação o quanto antes, torna
‑se ação praticamente impossível. Faltam ener‑
gia, disposição, referências sobre o tema, bem como meios para escapar...
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Constantemente, Paula se questionava sobre como aquele cara havia entrado em sua vida.
Naquele exato momento tentava se lembrar, mas os comprimidos já começavam a fazer
efeito, dificultando qualquer esforço de memória; como sempre, nos últimos tempos o
melhor era aquele pen‑
Apenas tinha consciência de que seus problemas começaram a partir do evento Robson e
que ele ainda estava em sua vida...
Deitada no sofá, em meio à leve sensação da chuva batendo na janela, já sem forças,
tentava se lembrar de como ele fora parar lá; se dava conta de que, naquele momento,
parecia ter sido um longo tempo, mas tinha acon‑
tecido em apenas dois anos. Pouco tempo para uma mudança tão radical em sua vida.
“Mais uma”, pensou ela; a diferença, porém, apresentava ‑se em meio a um cenário
devastador jamais vivenciado.
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Pouco a pouco, suas recordações iam gradativamente tomando espaço e, como flashes
sequenciais, dançavam em sua mente. A primeira imagem era a de Robson na sacada do
seu apartamento contemplando a vista. No chão da sala, duas malas. Em seguida,
lembrou ‑se do exato momento em que entrou em sua casa e a estranha sensação de que
algo de muito errado estaria acontecendo, como se uma voz interior a avisasse do perigo
que a aguardava. Ao mesmo tempo, relembrou o quanto insistiu em não se dar ouvidos...
Recordou ‑se de sentir sua moradia invadida tanto quanto a si mesma. Lembrou ‑se
também do inequívoco momento da dispersão dessa sensação, quando viu Robson
sorrindo, saindo da sacada, mostrando a mesa da sala de jantar organizada para dois,
confundindo ‑a em sua percep‑
ção primeira e em seu mal ‑estar inicial... Mal sabia que a sua confusão per‑
ceptiva seria vivenciada incontáveis vezes a partir daquela noite. Mal sabia que a
banalização do fato de não ouvir sua voz interior poderia causar um dano emocional
desastroso e sem precedentes em sua vida.
– Surpresa! Querida, está insuportável ficar longe de você. – Essas foram as palavras
inauguradoras das boas ‑vindas de Robson a si mesmo no terri‑
tório dela.
Naquela ocasião, ainda não havia percebido que sua privacidade acabara de terminar,
apenas sobrara a intuição de que algo não estava nada bem, mas, como se estivesse sob
efeito de uma poderosa droga, seu mal ‑estar foi paula‑
tinamente sendo diluído pela “compensação” do jantar, pelo carinho e pela atenção
desvelada. No final da noite, Paula convenceu ‑se de que estava apai‑
xonada. Ou acreditava estar. Vez ou outra, ainda um aviso silencioso teimava em lhe vir à
mente, em assobiar nos seus ouvidos, mas nada que uma taça de vinho ou as conversas
infindáveis de Robson não a fizessem, em instantes, esquecer, deixando de lado tudo o
que antes parecia ser importante para ela.
Era como se estivesse sob o efeito de alguma magia que tinha o poder de gradativamente
ir mudando seus focos, seus objetivos, suas referências...
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estava ocorrendo a todo vapor. Injetada em suas veias, impregnava cada respiração sua,
cada espaço vazio do seu livre pensar. A degradação de sua personalidade fora
inaugurada e, exatamente por conta disso, ficava mais e mais difícil para ela reconhecer o
que de fato estava sucedendo.
Paula preparava ‑se para entrar na sala do chefe. Ao tirar os óculos de aros finos e ver sua
imagem refletida no espelho do luxuoso banheiro da empresa, perguntou ‑se novamente
se estava feliz com o que via. Quarenta e poucos anos, algumas marcas nos olhos e ao
redor da boca, todas escon‑
didas devidamente por maquiagem suave e discreta. Mas não eram essas as impressões
que buscava.
Ao olhar no fundo dos próprios olhos, queria realmente saber se lá, dentro de si, estava
satisfeita. Perguntou ‑se novamente se aquela sua rela‑
ção estaria fazendo‑a feliz. Lembrou ‑se da discussão da noite anterior com Robson, seu
companheiro, e uma linha quente e dolorida pareceu dilacerar seu peito. Mais que nunca,
desejara apenas uma noite de carinho e prazer, sem que se transformasse em mais uma
discussão insuportável, resul‑
tando em péssima noite. Nada do que ela falava estava correto, nada do que fazia era
digno de elogio, e mais: absolutamente toda conversa, quando Robson não falava sobre si
mesmo, vangloriando ‑se de seus feitos, era sobre como Paula não o escutava, como ela
não dava espaço para que ele contasse sobre sua vida, enfim, todas as colocações de
Robson tinham o infindável intuito de culpá ‑la por algo que, na maioria das vezes, tinha
um motivo difuso. Isso, sem contar quando queria apenas conversar antes de dormir, ou
mesmo ficar em silêncio, e Robson insistia no sexo a qualquer preço, nova‑
mente na tentativa de culpá ‑la por não estar disposta naquele momento.
Paula não tinha vez, mas ainda não tinha consciência de nada do que estava acontecendo.
Ainda como resultado de quando Paula tentava se posicionar, Robson ameaçava deixá
‑la, o que fazia com que ela começasse a se sentir frágil e, por algum motivo ainda
obscuro, dependente daquele homem e daquela relação. Uma sensação estranha pela qual
jamais, em tempo algum, havia passado. No final das brigas, ameaçada, preferia calar ‑se
para não pas‑
sar pelo sofrimento da possível perda afetiva. Chegava a se desculpar, mesmo sabendo
que não tinha culpa. Afinal, ele ficava bravo e magoado demais 33
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quando ela tinha seus posicionamentos. Sua percepção sobre si mesma começava a ficar
bastante confusa.
Era como se constantemente tivesse que provar que estava à altura de outras mulheres
vencedoras. Mas, apesar de toda a correria do trabalho, tinha algum tempo livre, e nessas
horas a melancolia e o vazio da solidão a pega‑
vam totalmente desprevenida. Quando menos esperava, percebia a casa vazia e a cama
grande demais...
tes acima do limite, viciadas na tentativa de agradar aos outros e perdoando facilmente.
Têm um histórico em suas relações
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possível a soma.
Paula estava olhando CDs de jazz, quando Robson se aproximou pedindo licença para
ver o mesmo tipo de música. Uma palavra de educação, um sor‑
Ela nem reparou se poderia haver outras intenções. Se tivesse notado, na certa estaria
mais preparada. Estava acostumada a receber cantadas discre‑
tas ou abertas em todos os lugares, não desejava envolver ‑se com conquista‑
dores baratos.
“Mas ele foi tão simpático”, pensou... Apenas pediu licença, fazendo algum comentário
do qual nem se lembrava ao certo, algo como “adoro essa banda”. Algo mais para si
mesmo do que para ela. Parecia sincero. Não parecia um conquistador. Nada de: “Você
tem muito bom gosto” ou coisas do gênero.
Sem que percebesse, estavam conversando. Ela queria algumas opiniões e ele parecia
entender do assunto. Que mal há em perguntar? Além do que... ele era encantadoramente
charmoso, mostrando ‑se bastante prestativo.
cafeteria próxima.
sado em tudo o que Paula falava. Trocaram telefones e dias depois ele ligou.
Que tal um almoço? “Por que não?”, pensou ela. Ele veio muito elegante e discreto. Ela
elogiou sinceramente a sua vestimenta.
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Mais informações: ele nunca se casara, embora tivesse morado com outras duas
mulheres. Ela divorciara ‑se recentemente. O amor havia terminado.
– Sério. De que adianta estar com uma pessoa se não tiver paixão?
Paula não tinha certeza do que estava acontecendo. Estava mesmo falando com um quase
desconhecido sobre amor, paixão, relacionamento?
Parecia que a conversa estava indo longe demais para um primeiro encon‑
tro, mas ele era tão encantador, tão sedutor e parecia convicto em tudo o que dizia...
Abordava assuntos que ela sempre sonhara num relaciona‑
– Por que vocês terminaram? – Paula queria saber por que aquele “par‑
Que diabo de resposta era aquela? “Intensidade demais?” Paula, que vinha de um
relacionamento tão morno, ficou se perguntando o que seria o término de um casamento
por ser muito “intenso”.
pática, beirando a ousadia. Paula sorria cada vez que abria um e ‑mail desses.
Como ele era criativo! Às vezes era mais de uma mensagem. No começo, estranhava e
respondia de forma educada e reservada. Era precavido manter certa distância.
Logo depois, começou a desejar suas mensagens. Ficava realmente decepcionada quando
não lhe chegava nada.
Quando ficou três dias sem uma palavra de Robson, sentiu uma angús‑
cinar, repreendendo ‑se violentamente. “Que coisa ridícula. Isso não é papel para uma
mulher como eu.” Mas ao receber a mensagem de Robson dizendo: 36
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sagem continuava. “E, para provar, que tal jantarmos hoje?”. Por que não?
deiro adestramento.
Por que não abrir mais essa porta àquele estranho que a estava cati‑
vando? Por que não deixar a vida correr seu rumo e se relacionar novamente?
Paradoxalmente, ela em breve saberia que o que estava lhe faltando naquela ocasião era
de fato uma visão racional, porém, extremamente difí‑
O namoro foi intenso e Paula parecia estar voltando aos seus tempos de adolescência.
Não socialmente, mas em seus pensamentos e em seus sentimentos. Não conseguia parar
de pensar em Robson. Em cada encontro 37
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era surpreendida por algo inusitado, como se ele pudesse ler seus mais ínti‑
mos desejos. Flores, presentes, ingressos para alguma peça, noites român‑
ticas, repletas de amor e sexo, tudo na exata medida que sempre sonhara.
Achava incrível o que estava lhe acontecendo, custava a acreditar que era verdade.
Ficava perplexa tentando imaginar como seria possível tanta sin‑
tonia, como ele poderia saber tanto sobre tudo o que a satisfazia e mais, como podia ser
tão agradável?
Em alguns momentos, porém, sentia certa culpa por não saber se estava à altura para
corresponder a tamanha benevolência, tantos eram os acertos e as atenções dirigidas a
ela. O que Paula nem suspeitava era que essa estra‑
nha sensação viria a ser apenas o começo de uma trama cheia de percalços e de difícil
detecção. Driblando esses sentimentos silenciosos, sutis e anta‑
“Um encanto”, diziam em coro as colegas mais próximas, e ele, como não poderia deixar
de ser, era sempre simpático e atencioso com todas, embora na maioria das vezes, por
gostar tanto de Paula, Robson fizesse questão de subtraí ‑la da presença das amigas, para
ficarem só ele e ela se curtindo.
tantes para ficarem apenas os dois, juntos. Em outras situações em que fazia os
programas que estava acostumada a fazer, por algum motivo, Robson passava mal ou
tinha algum tipo de problema que fazia com que o compro‑
Com o passar do tempo, Paula começava a notar que, quase sempre, ao chegar em casa,
alguma “coisinha” de Robson tinha ficado por ali. Uma escova de dentes, uma camisa,
uma gravata. Sentia um prazer imenso ao encontrar objetos dele ali, muito embora,
paradoxalmente, algo em seu íntimo a fizesse sentir certa aversão pelos “esquecimentos”
e, mais ainda, pela falta de comentários a esse respeito, por parte dele. Não entendia e
preferia não dar ouvidos a essa íntima percepção que por vezes sobrevinha de modo
silencioso. Afinal, racionalizava buscando autoconvencimento: ter algo dele em casa até
poderia ser visto como romântico...
Ela não sabia ao certo como aquele hábito havia começado e nem o momento em que se
deu conta dele, mas aos poucos Robson foi se mostrando 38
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E, sem que percebesse, Robson já tinha em sua posse a chave da casa, e, vez ou outra, ele
e um jantar a aguardavam, sempre acompanhados de um bom vinho.
Ele era apaixonado por vinhos. Sabia a melhor safra, as melhores uvas, a melhor região
para o plantio. Frequentava reuniões em que as pessoas comiam e discutiam sobre vinhos
todas as semanas. Certa vez, Paula foi convidada para ir a uma dessas reuniões. Achou
um pouco enfadonho por não entender muito sobre o assunto, mas pensou ser algo muito
charmoso e sofisticado e, na sequência, decidiu aguentar algumas horas de uma con‑
versa não muito interessante. Pensou: já que Robson sempre lhe fora tão prestativo, por
que não buscar satisfazê ‑lo também? De fato, Paula não era muito afeita a vinhos. Mas
tudo era tão novo e tão sedutor...
E Robson foi ficando. Às vezes, passava o fim de semana inteiro na casa de Paula,
outras, a semana toda. Isso a incomodava demais. Sentia sua privacidade sendo invadida,
mas não conseguia se posicionar, pois esse era um terreno que começava a se configurar
delicado no relacionamento.
Nas poucas vezes em que tentou esboçar o assunto, ele se mostrou ofen‑
via sair para se encontrar com as amigas, ou mesmo quando decidia ir a um happy hour.
Nessas ocasiões, e sempre por algum motivo diferente, Robson 39
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acabava trazendo um peso desnecessário para a situação e isso acionava nela um intenso
desejo de amenizar o clima gerado na tentativa de agradá ‑lo.
Absolutamente nada que disesse era suficiente para que ele mudasse de humor. Na
verdade, a única coisa que mudava o clima naqueles momen‑
tos era quando ela desistia do que estava fazendo ou do que pretendia fazer e voltava para
ficar com ele. Para piorar, se ousasse falar sobre a desconfor‑
tável sensação instalada na relação, ele negava com veemência. Essa dinâ‑
mica começava a acontecer diante de qualquer coisa com que sentisse não estar de
acordo, se ousasse se expressar. A marca da relação, enfim, come‑
çava a se definir.
Paula se sentia paralisada ao impor algo importante para si mesma por conta das
respostas dúbias de Robson. Com o passar do tempo, todas as suas percepções eram
assoladas por dúvidas. No discurso de Robson, a palavra tinha um significado; seus
gestos, porém, geralmente mostravam o oposto. Nessas horas não havia diálogo possível,
até que Paula, esgotada e culpada, calava ‑se, sentindo ‑se impotente em suas questões e
até duvi‑
Muitas vezes, Paula sentia ‑se um pouco sufocada. Não era raro estar tomando banho e
de repente perceber Robson observando ‑a.
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Quando questionado sobre esse excesso de preocupação, não raramente magoava ‑se,
mudando outra vez de humor e acusando Paula por sua insen‑
sibilidade perante os supostos cuidados. O que viria a seguir? Será que ele ia querer
também controlar seus exames médicos periódicos, suas roupas etc.?
ção seria normal. Sentia ‑se completamente confusa e sem definição para nada.
Certo dia, Paula estava malhando na academia quando alguém lhe tapou os olhos e, para
sua surpresa, era Robson...
– Que bacana!
Um dia, brigaram.
– Preciso do meu espaço – disse ela.
– Tudo bem. Entendo. É que eu preciso muito de você e parece que está meio enjoada de
mim. Você sabe o quanto eu te amo. Você é a minha ponte para o mundo!
Por uns dias, Robson sumiu por completo. Naquele tempo, Paula jamais suspeitaria que
essa atitude pudesse apenas ser parte da estratégia do “bote”
No começo, foi bom ter sua privacidade de volta. Mas, logo depois, não conseguia deixar
de pensar em Robson. Sentia falta de sua atenção prestativa e de seus “carinhos”. O que
não era bom, repentinamente, pare‑
ceu ser necessário para sua sobrevivência emocional, para que pudesse sentir‑se bem.
Sem que se desse conta, suas inseguranças e carências mais primitivas já haviam sido
disparadas pela qualidade da relação entre ela e Robson. Sentia ‑se e estava fragilizada
como a criança que algum dia fora e que, como todas, em algum momento, já sentira
desamparo, solidão, medo, dúvida e insegurança...
Poucos dias depois, sem mais suportar, decidiu ligar para Robson, que se mostrou meio
indiferente durante a conversa, o que a deixou ainda mais 41
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insegura e ansiosa por tê ‑lo de volta. A partir desse momento, Robson come‑
camente tudo. Agora não tinha mais certeza de nada. Apenas entendia que naquele
momento parecia precisar dele mais que nunca, uma angústia que chegava a ser física
rasgava seu peito. O que vestiria? Como teria uma opinião sobre uma decisão importante
de trabalho? Para quem pergunta‑
ria se a maquiagem estava suficiente? Que remédios tomaria quando ficasse doente?
Coisas que nunca antes havia sentido necessidade de perguntar para outra pessoa, pois
sempre sentira que era dona de si mesma, agora começa‑
vam a tomar posse de suas cenas. Chegou ao ponto de sentir falta até das enfadonhas
confrarias do vinho e de suas infindáveis conversas.
Ainda que talvez fosse inconsciente, a ausência de Robson já fazia parte de suas
inteligentes articulações de domínio e rapto, e estava dando certo!
Será que havia deixado escapar a pessoa com quem mais tivera afini‑
dade?, pensava. Bem no fundo, porém, pairavam dúvidas silenciosas sobre se realmente
tais afinidades existiam. O problema maior é que, de algum modo inexplicável, Paula se
sentia como se estivesse estranhamente presa...
Em sua pesquisa interior, percebendo ‑se agora de modo mais distanciado, podia
observar, lá em seu íntimo, que estava se sentindo bem por estar afastada de Robson. O
problema é que, ao mesmo tempo em que se sentia bem, era assaltada por algo que
achava ser um sentimento de falta, talvez de tudo o que vivera com ele. Na verdade,
estava sendo programada. Paula estava confusa.
Entre um pensamento e outro, perguntava ‑se em qual momento havia ficado tão
seduzida por aquele homem. O que de verdade havia aconte‑
cido? Mas a suposta saudade e a paixão não deixavam Paula ir longe nessa análise. Tinha
apenas um pensamento fixo: precisava ter Robson de volta a qualquer custo.
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verso emocional. Paula resolveu deixá ‑lo agir como queria, ao mesmo tempo que ia mais
e mais se submetendo aos seus caprichos, pois entendia que era melhor tê ‑lo dentro de
sua vida, fosse do jeito que fosse, do que não tê ‑lo.
‑estar, Paula ia ficando cada vez mais insegura, instável e frágil. Sentia como se algo lhe
faltasse, como se estivesse em meio a uma anemia crônica em que a cada dia sua
vitalidade se diluísse mais e mais. Naquele tempo, todas essas sensações difusas ainda
eram mescladas em sua intensa e dinâmica rotina de atividades diárias de trabalho. Nada
estava claro, apenas nuances dessas sensações a assolavam sem nenhuma representação
nítida em sua mente ou em seus pensamentos.
metida. Sentia falta de carinho, mesmo sabendo que todas as suas percep‑
No dia anterior, Robson tinha feito uma brincadeira (pelo menos fora assim que soara
para ela) de como seria bom se os dois morassem juntos.
Assim não mais precisariam ficar horas separados, ou mesmo perguntando onde o outro
estava. Paula sorriu e disse que realmente isso seria bom. E
nheiro e, por medo de uma possível ausência, não queria “ouvir a si mesma”
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Rapto e cativeiro
O primeiro passo é o da sedução sem limites. O seques‑
vítima. Ele mostra como ela é feliz ou como deveria ser, pois
pessoa. Por outro lado, faz questão de criar aspectos que evi‑
da alma.
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cebeu como a autoconfiança gradativamente foi sendo minada durante o convívio com
Robson.
Começou com uma opinião não pedida. Era fim de semana e ela estava fechada em si
mesma, pois precisaria confrontar o diretor de uma grande empresa sobre uma ideia com
a qual não concordava. Paula tinha plena convicção de que estava certa e precisava
mostrar isso ao diretor. Ao vê ‑la ensimesmada, Robson fez um comentário e ela explicou
‑lhe o que ocorreria na segunda ‑feira.
– Você realmente tem certeza de que sabe a conduta e o caminho certos a seguir?
– Com certeza. Mas eu tiro as minhas conclusões com base em fatos e também na minha
experiência de carreira.
– Tudo bem, tudo bem. Não precisa ficar nervosa. Eu sei que você é muito competente
no que faz, mas eu só queria saber se você realmente sabe o que está fazendo... Quero
apenas ajudar, porque, às vezes, você trans‑
– Acontece que...
– Não, mas eu tenho certeza que você deve saber o que está fazendo, acho que deve...
Claro que sabia, mas, quando foi falar com o diretor sobre sua opinião na segunda ‑feira,
as palavras de Robson atravessaram sua mente. Estaria mesmo certa? Julgava que seu
companheiro a conhecia. Estaria ele certo em sua dúvida? Estaria ela dando o melhor
conselho àquele diretor? A ponta de indecisão e dúvida instalada transpareceu em seu
semblante e o diretor da empresa percebeu de imediato.
– Claro que acredito – disse ela, mas sabia que não era cem por cento verdade.
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– Você vem aqui, à minha empresa, faz uma análise detalhada sobre os nossos
procedimentos e vem com uma sugestão com a qual eu não concordo.
– Eu concordo. Mas o que a minha experiência está dizendo é que você tem dúvidas
sobre estar certa. Como posso seguir uma ideia com a qual não concordo se, ainda por
cima, percebo que você também não?
pante de sinceridade que só os mais idosos têm, disparou: – Você não está vendo? Está
em seus olhos, em seus gestos e em seu tom de voz.
rente, não foi aprovada. A empresa acabou por contratar outra consultoria.
Isso era normal no mundo dos negócios. Nem sempre todas as ideias de Paula eram
aprovadas pelas empresas para as quais prestava serviços, mas aquela tinha sido a
primeira vez que um cliente havia mudado de ideia por causa de sua postura, ou seja, de
sua insegurança. O chefe de Paula cha‑
mou ‑a para uma conversa. Teceu vários elogios, mas apontou que de maneira alguma os
consultores poderiam demonstrar insegurança quando falavam com um cliente.
Robson. Tentou fazê ‑lo de uma maneira jocosa, mas, no fundo, não queria admitir que
ele pudesse ser o responsável por minar sua segurança. Come‑
çava também a ter dúvidas sobre si mesma, sobre se de verdade era tão confiante e
segura como sempre pensara ser.
Um conflito havia se armado na cabeça de Paula. Como assim, ele era o responsável?
“Eu sou a responsável pelos meus atos, pelas minhas ideias.” Antes de conversar com
Robson, prometeu a si mesma que não se deixaria influenciar pelas opiniões dos outros,
mesmo que fossem as do seu companheiro.
– Sei.
– Então. Eles não aceitaram a minha opinião e contrataram outra empresa de consultoria.
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– Eu sabia.
– Claro que não. Como posso deixar você insegura se você disse que tinha certeza de
suas ideias? Além do mais – continuou Robson em meio a um sorriso –, eu só falei o que
eu estava percebendo, e você tem que admi‑
– Mas não se preocupe. Eu sempre estarei aqui pra te dar uma força.
Paula era mulher autoconfiante que sempre tinha suas próprias ideias.
Estaria Robson querendo tomar as decisões por ela? Seria esse um modo de ele cuidar
dela? Em meio a esses pensamentos, convenceu ‑se que desse modo estaria mais segura e
confortável. Pela primeira vez na vida passou por sua cabeça que seria bom se alguém
dirigisse o barco para ela. Alguém em quem ela confiasse.
nheiro. Quando chegou em casa, porém, Robson estava pronto para sair.
– Vamos?
– Como não? Eu não te liguei na hora do almoço para avisar que hoje tem uma reunião
especial da Confraria do Vinho?
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– Pois é. Você deve ter esquecido. Eu tenho notado que você anda muito esquecida...
çava a ter dúvidas sobre a relação em que estava, mas não conseguia identi‑
ficar o que poderia estar acontecendo. Tinha conduzido sua vida muito bem antes de
encontrar Robson, mas estava cada vez mais distraída. Será que Robson estaria
apontando coisas em Paula que ela mesma não havia notado antes? Seria isso possível? A
única coisa de que tinha absoluta certeza naquele momento era de que algo não ia bem, e
às vezes tinha a estranha sensação de se sentir esvaziada por completo, como se o que
antes sempre fora impor‑
– Robson, eu não sou esquecida. Ou melhor, eu esqueço as coisas como todo mundo.
Robson ignorou sua fala e pegou uma caixa de presente com fitas.
– Pra você.
– O que é?
– Abre.
– Robson. Eu...
tiria nem para si mesma): primeira, o vestido não era nem de longe algo que teria
comprado, a outra, o fato de ter Robson atrás dela, com o queixo grudado em seu ombro.
Seu sorriso repentinamente lhe sugeriu algo estra‑
nhamente maquiavélico. Não parecia ternura.
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Num susto, Paula foi mentalmente acometida por uma cena macabra, como se a qualquer
momento ele fosse morder seu pescoço. Rapidamente tratou de apagar essa imagem.
– Obrigada.
– De nada, amor. Mas agora vá, tome um banho rápido e fique mais linda ainda.
damente.
– Tudo bem, a gente combinou, mas pode deixar para outro dia – disse com uma
expressão vaga.
– Nós não combinamos. Eu apenas...
Teriam combinado mesmo? Estaria Paula tão estressada que havia se esquecido da
bendita Confraria? E o vestido? O que faria agora? Estava indis‑
posta, triste e confusa com os acontecimentos do dia. Além de tudo isso, agora se sentia
culpada por magoar Robson.
– Não precisa.
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– Eu vou.
– Ótimo.
Vagamente, Paula lembrou ‑se de que havia planejado assistir a um filme e comer pipoca
enquanto caminhava para o banho.
A reunião na Confraria era muito emocionante. Para eles, é claro. Os homens chegavam
com as esposas ou namoradas a tiracolo e combina‑
vam o que tomariam antes, durante e depois da ceia. O assunto era sem‑
pre o mesmo: vinho, vinho e vinho. Paula não se incomodava com aquilo e até havia
estudado um pouco para não ficar por fora das conversas. Nem todas as parceiras
compareciam, mas o que mais a incomodava era que Robson sempre a queria presente
nesses encontros. Desconfiava do por quê; a impressão era de que precisava desfilar, de
que ele a exibia mesmo sem dar atenção a ela, ou talvez de que quisesse também levá ‑la
pela coleira. Não tinha certeza, apenas sabia que em nenhuma dessas situações se sentia
confortável. Pensava que talvez ele quisesse apenas sua compa‑
nhia, mas, se assim fosse, por que a imposição desmedida? Por que se sen‑
tia tão mal com tudo aquilo? Por que tão frequentemente sentia ‑se acuada e obrigada a
fazer o que não queria? Por que nessa relação encontrava ‑se na constante obrigação de
agradar? Em nome do quê? Que medo e que fragilidade estariam se instalando nela? O
que significaria toda a pertur‑
bação que estava começando a tomar conta de todas as áreas de sua vida?
Haveria algum lugar seu, um local onde poderia novamente se sentir confortável e
segura? Tudo indicava que não, só se encontrava mais e mais angustiada, por vezes sem
saída. Quando buscava a autossupera‑
ção, percebia que ficava mais difícil se recuperar, cada vez se sentindo mais fraca, mais
frágil e mais minada em suas forças... Para onde teriam ido seus tão reconhecidos
recursos psicológicos, toda aquela potência que sempre tivera?
tes. Lá, elas eram o que mais chamava a atenção de Paula. Atraentes e char‑
samente, dizendo que não queriam estar ali. Rosa, por exemplo, certa vez foi ao banheiro
com Paula e lá confidenciou que detestava aqueles encontros.
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Estava ali praticamente forçada. “Por que vem, então?”, perguntou. Rosa disse que não
queria contrariar o marido. Ele gostava tanto daquilo.
Já tinham passado muito tempo no banheiro e era hora de voltar, mas Rosa parecia querer
segurar Paula. Olhou para ela no espelho, viu uma mulher sorridente, mas de olhar triste,
e ouviu o que tinha a dizer. Rosa começou por falar dos filhos crescidos, na faculdade, e
depois emendou com a soli‑
Paula era uma mulher muito diferente dela. Para começar, não tinha filhos e o trabalho
era sua motivação. Não entendia como as mulheres podiam sim‑
plesmente ser donas de casa, sem emprego, dependentes financeira e emo‑
cionalmente dos maridos. De três palavras, duas estavam relacionadas ao marido. Do que
ele gostava, do que não gostava, de como queria as roupas, do que pensava das ideias
dela. Paula estava ficando angustiada. Rosa falava de seus medos, desejos e anseios. O
marido era sempre a referência e, o que era pior, parecia ser a única referência. Paula
achou aquilo tudo um absurdo e sorriu em seu interior, imaginando que estava longe de
viver assim, emocio‑
taria, ou se desaprovaria qualquer coisa que fizesse. Paula ficou perplexa diante da
própria percepção e resolveu que era hora de voltarem à mesa.
Paula perguntou ‑se o que estava fazendo ali. Estaria somente cumprindo um
compromisso social? Queria fazer parte disso? Sentiu um arrepio de mal ‑estar e
percebeu que não estava tão distante da vida que Rosa levava.
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– Por quê?
– Você não foi rude. Simplesmente não me identifico com o assunto e com as pessoas.
tro com casais, Paula não foi e Robson não a tratou diferente, apenas chegou com um
sorriso enorme, contando que o encontro fora muito divertido. Ela mostrou ‑se
interessada em saber o que havia acontecido, mas só por edu‑
cação, pois não se interessava nem um pouco. No outro encontro, era o aniversário de
Robson. Ela lhe perguntou o que gostaria de fazer. Disse que adoraria comemorar o
aniversário com a Confraria... e com ela, claro.
Paula suspirou e o acompanhou, afinal, era seu aniversário e não ousaria decepcioná ‑lo.
Ela aguentou. No próximo encontro, Robson insistiu para que fossem juntos novamente,
pois tinha uma surpresa. Paula não queria ir, mas “uma surpresa”? O que poderia ser?
Chegando lá, Robson e seus amigos tinham preparado uma seleção de vinhos do ano do
nascimento de Paula. De imediato, sentiu algo de estranho naquilo tudo, mas não pôde
negar que foi muito atencioso da parte deles.
Depois desses feitos, das poucas vezes que tentou resistir a ir aos encon‑
tros da confraria, sentiu ‑se muito mais culpada que anteriormente. Robson, como não
poderia deixar de ser, evidenciou o carinho e a consideração que tiveram para com ela no
dia da escolha das safras e, na sequência, como esperado, emanou o conhecido e
insuportável clima de descontentamento em cima de Paula que, por fim, vencida, voltou
a frequentar as reuniões da confraria, fazendo disso um hábito inquestionável. Estava lá.
Sempre.
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Paula estava pronta para falar com o chefe. Sabia o que ele queria dizer e estava triste,
pois não tinha argumentos. Simplesmente perdera a confiança. Estaria ficando velha?
Sem energia? Como pudera mudar tanto em apenas seis meses? Só lhe restava ouvir o
que o chefe tinha a lhe dizer e tentar argumentar com o que lhe viesse à mente. Não
gostava disso. Não gostava de ir despreparada para nenhuma reunião, principalmente
uma como essa. Sabia que seu último cliente havia pedido outro consultor.
Sofrera a humilhação de ter que passar todas as suas análises para um colega de trabalho.
Ao encontrar‑se com o chefe, Paula notou em seu semblante uma forte expressão de
preocupação:
– Eu não sei o que pode ter saído errado com esse cliente. Fiz uma análise profunda da
situação, sempre procurando oferecer as melhores alternativas.
– Não estou falando do cliente A ou do cliente B. Estou querendo saber o que aconteceu
com a profissional que contratei. E mais: quero saber o que aconteceu com a pessoa que
eu conheci. Posso ser sincero?
– Claro.
– Quando você enfrentou o seu divórcio, cheguei a pensar que ficaria seriamente abalada,
mas logo vi que você deu a volta por cima. Mas agora você parece bem diferente, a cada
dia você tem ficado mais fraca e mais insegura. Sinceramente, tenho a impressão de que
você está sempre ausente e “sonada”. Não quero me meter em sua vida particular, mas
você me disse que não está morando sozinha, é isso?
– Robson, não é?
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– Isso.
– Muito simpático. Pelo que lembro, acho que estão juntos já faz algum tempo, certo?
Vindo de outra pessoa, perguntas sobre sua vida particular poderiam ofendê ‑la, mas
Paula sabia que Vicente só queria saber como ajudá ‑la. Tam‑
bém percebeu que estava relacionando o seu baixo rendimento profissional com seu
relacionamento pessoal. Pensou em uma resposta padrão: “Que é isso, chefe? Robson é
meu companheiro. Meu amigo mais sincero”. Mas sua intuição a travou e ela pensou
antes de responder com tamanha veemência.
Robson era, de fato, sua referência, a pessoa mais importante. Sempre que precisava de
algum conselho, corria para ele. Ele também opinava sobre vários assuntos em relação à
sua vida pessoal e profissional, mesmo quando ela não pedia. Também era frequente
interferir em sua alimenta‑
saíam com mais pessoas, Robson mostrava ‑se articulado e sabia como agradar. Parecia
adorar ser o centro das atenções e, nessas saídas, embora ficasse meio apagada, Paula
chegava a pensar que Robson era um presente em sua vida.
Um presente de grego, talvez? Ela estava pronta para se defender desse tipo de
pensamento do mesmo modo que defendia Robson com unhas e dentes. Por um momento
e pela primeira vez, Paula estava chegando à conclusão de que aquela pessoa que tinha
entrado em sua vida poderia ser o disparador de suas recentes angústias. Perante essa
dúvida, apenas conseguiu dizer a Vicente, ainda sem muita convicção:
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– Ele te apoia?
Vicente respirou fundo. Uma expressão de angústia desenhava ‑se em seu rosto. Ele
parecia querer chacoalhar Paula pelos ombros e dizer: “Acorde!”, mas limitou ‑se a falar:
– Paula, pense bem. Tenho a impressão de que você não está conse‑
guindo perceber a situação. Tente analisar de maneira menos emocional, suas emoções
estão embaçando sua visão. Sendo assim, fica muito difícil você ter clareza sobre o que
de fato pode estar acontecendo em sua vida.
Pergunte ‑se até que ponto o seu companheiro deseja o seu crescimento ou se, na
verdade, o que ele deseja é ter você precisando dele.
– Como assim?
– O que é mais fácil de conduzir: um cavalo manso ou um cavalo que escolhe o próprio
caminho?
– Chefe!
– Como amigo, é só isso que posso lhe falar. Como seu chefe eu preciso lhe dizer que o
seu nível profissional está muito aquém do que a empresa precisa, portanto, infelizmente
me verei obrigado a demiti ‑la, caso não per‑
ceba mudanças significativas em seus resultados. Desculpe se estou sendo duro, Paula,
mas tenho certeza de que você mesma já percebeu que o seu trabalho não é mais o
mesmo.
Paula emudeceu.
– E mais uma coisa – continuou. – Só estou dizendo isso porque sei que ainda existe a
Paula que conheci dentro de você, e mais, sei também que ela quer e precisa
desesperadamente sobreviver. Isso está bastante claro para mim. E essa é a Paula que
sempre admirei. Por favor, não jogue fora sua vida.
Paula saiu da sala em silêncio. Sabia que teria que tomar alguma atitude.
Tinha que encarar a situação de frente. Mas, acima de tudo, tinha que falar com Robson.
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– Como?
– É você, Robson. Não sei direito como, mas a minha vida era muito melhor sem você.
– Querida, você está sem noção de como as coisas estão, você não está numa boa fase da
sua vida, me deixa te ajudar. O problema está em você e não em mim.
– Com certeza que não. Eu não tenho, ou pelo menos nunca tive
problema algum de confiança em mim mesma sobre como eu deveria ou não me colocar
em meu trabalho, e, pensando bem, também não tive nenhuma questão dessa ordem em
nenhuma área da minha vida antes de te conhecer.
– É uma desculpa sua. Você não deu certo com seu ex ‑marido e diz que não dá certo
comigo agora. Você não consegue entender que você é a cau‑
– Como assim? Estou começando a achar que você é quem pode estar minando a minha
segurança...
Paula sentia ‑se como uma rainha. Uma rainha prisioneira dentro do próprio castelo. Não
conseguia traduzir em palavras seus sentimentos, mas tinha plena consciência de que, no
momento, era uma pessoa infeliz. Des‑
motivada, acima do peso (Robson sempre tinha um prato calórico para a ceia), com
problemas no trabalho e nas finanças. O casal dividia as despe‑
sas, mas Robson era o responsável pelas contas e passava a ligeira impressão 56
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de estar ficando no prejuízo. Mais um detalhe: Paula não tinha mais pri‑
vacidade. Robson não demonstrava ciúme, mas fazia questão de controlar todos os seus
hábitos. Nas conversas com terceiros, a última palavra era sempre a dele. Se alguém
perguntava algo diretamente a Paula, ele sempre dava um jeitinho de responder em seu
lugar.
– No fundo, Paula, você é uma egoísta. Só pensa em você. E mesmo assim não consegue
nem se defender nesse seu “empreguinho”.
– É mesmo? Você me disse que está quase sendo despedida. Se não fosse eu para te dar
um apoio, você já tinha desabado.
– Robson. Eu quero que você vá embora.
Ela já nem sabia quando a casa tinha se tornado dos dois. Mas ele falava com tanta
propriedade...
– Mas eu não.
– Eu garanto que no seu outro casamento você não recebia nem um quarto do carinho
que eu te dou. É ou não é?
– É, mas...
– Aposto que seu ex ‑marido tentava, mas você nunca abria a guarda.
– Reconheça, Paula. Seu casamento acabou por sua culpa e agora você quer acabar com
este. Quer que eu, que te amo tanto, vá embora. Você está desperdiçando sua felicidade.
Quer saber? Eu não vou embora. E sabe por quê? Porque eu te amo. Eu não vou deixar
você jogar fora aquilo que tem de melhor, e além do mais você não está bem, não vou te
deixar assim, desse modo.
Na empresa em que Paula trabalhava havia um limite e ela acabou sendo demitida. Sabia
que aquele dia chegaria, pois não mais conseguia se concentrar no trabalho.
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– A culpa foi sua, Paula! Você não demonstrou segurança. Não demons‑
trou competência. Agora a nossa situação financeira só vai depender de mim. Eu só
gostaria de saber: o que você faria se eu não estivesse aqui para te proteger?
Primeiro alguns comprimidos naturais para dormir, depois alguns mais fortes. Ele
conseguia os comprimidos em mercados obscuros, pois não admitia que ela procurasse
ajuda profissional, dizia que ia passar... Dizia que ele mesmo seria capaz de auxiliá ‑la no
que fosse necessário.
dar pela manhã, nem sequer tinha forças para abrir o jornal. Era mais fácil ingerir os
comprimidos que preparar seu currículo. A televisão pas‑
sou a ser sua companheira. Ao chegar em casa, Robson a criticava por sua falta de
iniciativa. Por outro lado, já que Paula não conseguia nada no mercado de trabalho, ele
tentaria através de seus contatos encontrar algo para ela.
rativo eram as informações que Robson trazia do trabalho dele. Paula parou de procurar
emprego. Por ele se dedicar apenas à sua vida profissional, as únicas relações de
amizades que tinha eram com pessoas do escritório.
Como Paula estava desempregada, também estava reclusa em relação às amizades, pois
Robson detestava “bagunça” em casa. Além disso, Paula tam‑
bém estava desanimada para começar qualquer tipo de argumentação que fosse, o
trabalho era o elo com os colegas. Com o passar do tempo, a casa foi ficando abandonada
e Robson conseguiu uma diarista para organizar e limpar. Paula já não sentia que o
apartamento era dela. Na verdade, não sentia mais nada. Uma profunda apatia envolvia
seu dia a dia. O emprego que Robson prometera não veio e Paula não perguntou por ele.
Todos os dias pareciam os mesmos. Ao perceber que amanhecia outra vez, Paula se
perguntava se já tinha vivido aquele dia. Era sexta‑feira? Ué? Sexta não foi ontem? Os
dias não eram mais que horas passadas e horas por vir. Seu tempo de realizações parecia
distante e, quando se lembrava dele, era como se estivesse vendo um filme sobre outra
pessoa.
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fraria. Vestia ‑se muito bem, maquiava ‑se extraordinariamente e procurava sorrir para os
amigos de Robson. Não tinha forças para iniciar nenhum diálogo profundo. Tudo era
trivial. Se tivesse forças, Paula se assustaria ao perceber como estava parecida com
algumas mulheres da mesa. Não no sentido de se preocupar com casa, marido e filhos,
mas com a expressão apagada de quem não tem desejos, anseios ou sonhos.
Às vezes, queria chorar, mas nem forças para isso tinha. Em sua cabeça, não havia
motivos para estar triste, portanto, não havia motivos para cho‑
rar. Seu companheiro cuidava dela, nada lhe faltava em casa, possuía sem‑
pre um vestido novo, não precisava trabalhar. O que mais lhe faltava?
olhando a tela. Olhava atrás dela. Olhava através da janela. Podia ver outros prédios,
casas ao longe e, lá no fundo, o céu. Muito, muito azul. Não conse‑
guia parar de olhar aquela imensidão. Até onde iria aquele azul? Há quanto tempo aquela
imensidão estava ali antes dela? Quanto tempo ficaria depois que ela se fosse? Como
tudo era grande... Como ela era pequena e minús‑
Estava paralisada e, pior, desperdiçando seu escasso tempo na Terra vendo televisão e
pensando em qual comida descongelaria. Definitivamente, essa não era a vida que ela
havia projetado para si mesma.
qual, depois de muitos dias, estava deixando de ser apática. Não queria 59
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também se criticar. Queria apenas trocar de roupa e sair, mas até isso era um martírio,
pois pensava sempre no que Robson acharia de suas esco‑
lhas. Mas não naquele dia. Optou por um conjunto simples que não exigisse muita força
de pensamento. Não queria quebrar aquele frágil e importante momento.
A algumas quadras do apartamento de Paula havia uma pracinha. Ela transpôs o portão
receosa, como se estivesse chegando a uma festa para a qual não havia sido convidada e
a qualquer momento alguém fosse pedir que se retirasse. Sentou ‑se num banco de
cimento e observou o ambiente à sua volta. Crianças. Muitas crianças se divertindo e
brincando. Escorrega‑
dores, gangorras, balanços. Paula fechou os olhos, deixou o sol invadir seu rosto,
concentrando ‑se naquele som. Os gritinhos pareciam música. Como aqueles seres
humanos poderiam estar tão felizes? E ela? Ela, aparentemente sem preocupações, tinha
alguém cuidando dela, mas estava infeliz.
Muitos pensamentos. Paula não queria raciocinar. Naquele momento, queria só ouvir o
som das crianças. Queria compartilhar daquela felicidade.
E por que não podia ser? O que a atrapalhava? Estava bem de saúde, era uma mulher
inteligente, batalhadora, tinha um companheiro que gos‑
tava dela, que a amava. Mas, apesar dessa conclusão, a sensação era a de que havia
fracassado.
“Esqueça o passado”, pensou ela. Aquelas crianças não pensavam no passado. Estavam
sendo felizes apenas vivendo aquele momento.
Estava decidido, a partir de agora ela sentiria novamente a sua vida pulsar!
Após essa decisão, Paula sentiu suas forças se renovarem. Precisava se organizar. Para
tanto, falaria com Robson à noite e perguntaria sobre o emprego prometido. Não
precisaria ser algo grande. Começaria por baixo e aos poucos mostraria sua competência.
Ela sabia como convencer as pes‑
soas e Robson seria sua porta de entrada. Estava tão feliz por tê ‑lo ao seu lado. Como ele
tinha aguentado tanto tempo com ela depressiva daquele jeito? Recriminou ‑se. Naquele
momento não devia pensar no passado. O
que importava era que os dois estavam juntos. Ela o receberia à noite como 60
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uma mulher renovada. Prepararia um jantar. Isso. Paula, uma mulher dis‑
Desta vez, foi Robson que teve uma surpresa ao chegar em casa. Ima‑
ginava que a esposa estaria deitada ou vendo televisão, mas não estava.
Um cheiro diferente invadiu suas narinas. A mesa estava posta com detalhes românticos
e Paula o recebeu vestindo uma roupa sensual, dando ‑lhe um beijo sedutor. Ele sorriu
forçadamente, questionando o que estaria acontecendo.
sorriso.
Durante o jantar, Paula estava muito falante. Contou como havia pre‑
parado o prato de que ele gostava, como tinha feito tudo sozinha e sobre o prazer de
preparar. Também revelou seus planos. Queria voltar a traba‑
lhar. Falou de suas qualidades, de suas perspectivas, e perguntou sobre aquele emprego
que ele havia lhe prometido.
Paula não se importou. Disse que falaria com seus contatos, procuraria no jornal e
enviaria seu currículo para as empresas, caso não conseguisse nada com ele. Estava com
um brilho esfuziante, e Robson, que não mudava o sorriso congelado do rosto, disse:
– Vai mandar seu currículo para as empresas?
– Sim.
– Que bom.
– Mas é claro que estou, meu amor. Só que... Só que eu me preocupo com você. O
mercado está muito competitivo e geralmente pedem referên‑
– Sei disso.
– Ora. Todo mundo passa por problemas pessoais. Não sou a única.
– Mas quem está empregando não está interessado nos seus problemas pessoais. E se
você tiver outra crise no novo emprego?
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– Como é que você sabe? Ou melhor, como é que o novo empregador vai saber? Ele vai
pegar dois currículos. Em uma mão tem o de um profis‑
sional que está procurando trocar de emprego, que quer crescer dentro da organização,
que quer novos desafios.
– E na outra está o seu: demitida. Por quê? Problemas pessoais. Qual dos dois ele
escolheria?
– Isso é passado, Paula. Qual dos dois você pensa que ele vai escolher?
– Robson, por que você está fazendo isso comigo? – Os olhos de Paula estavam se
enchendo de lágrimas.
– Para o seu bem. Eu quero te chamar à realidade. Você não entende, mas eu faço isso
porque te amo. Pense bem. Você faz o seu currículo, fica empolgada e depois, quando
receber um monte de “nãos”, ficará muito mais deprimida do que já está. Agora preste
atenção. Foco. Se você estivesse selecionando candidatos, você aceitaria um currículo
como o seu? De uma mulher que em algum momento tenha sido competente, mas
mostrou ‑se insegura, não aguentando pressões, e acabou sendo demitida.
– Eu...
– Responda.
– Não.
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avaliação confirmava que estava diante de uma pessoa sem capacidade para nada. No
canto de seus lábios, um sorriso de pena e por dentro uma sutil sensação de posse, de
poder e de cuidador...
De rejúbilo.
– É para o seu bem, meu amor. Você tem de encarar a realidade. Não está bem, deixe que
eu cuide de você. Com o tempo e aos poucos você retoma sua vida. Você está indo bem,
minha querida, não tem do que recla‑
Paula olhava seu prato. Não tinha vontade de dizer mais nada.
Robson deu uma garfada e encheu a boca como se nada tivesse acon‑
tecido.
– Hum. Está tudo uma delícia. Parabéns – falou de boca cheia, com as sobrancelhas
levantadas.
de seus impulsos.
Tomou dois sem água. Prometeu a si mesma que naquele dia olharia os jornais. Ao sentir
os comprimidos descerem pela garganta, sabia que que‑
braria a promessa. Estava cansada de prometer coisas para si mesma sem conseguir
cumprir. Em meio à sua desilusão, olhou novamente para o vidro 63
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de comprimidos. Tomou mais dois. Logo o sono reconfortante novamente viria. Que
horas seriam? Não importava. Quatro comprimidos a fariam esque‑
Antes de os remédios fazerem efeito, Paula viu a porta do guarda ‑roupa aberta. No chão,
estava a pasta de Robson. Devia ter caído de dentro do móvel e alguns papéis estavam
espalhados. Mexeu alguns músculos na ten‑
tativa de levantar ‑se para pegar os tais papéis, mas começou a sentir ‑se meio mole. Os
papéis não sairiam dali mesmo. Era melhor deixá ‑los onde esta‑
lope no meio dos papéis lhe pareceu familiar. Já sob o efeito dos remédios e em meio a
um esforço tremendo, saiu da cama, abaixando ‑se para pegá ‑lo.
Dissera a ela que havia entregue e o executivo que o recebera tinha ficado bastante
impressionado com suas qualificações e experiências, era somente uma questão de tempo
até ser contratada.
No entanto, ali estava o currículo. Por que ele teria mentido? Qual seria o motivo de ter
inventado toda aquela história? Para quê? Por que lhe dar falsas esperanças?
Era difícil pensar com os comprimidos fazendo efeito. Sentou ‑se nova‑
ginar que provavelmente a intenção de Robson seria a de protegê ‑la, mas do quê? Queria
lhe dar esperanças. Mas de que valeriam falsas esperanças?
Será que Robson acreditava mesmo que ela não seria capaz de conseguir um novo
emprego?
“Por que ele está fazendo isso comigo? Como eu posso me levantar desse modo? Esse
tipo de proteção que ele me oferece está me aprisionando mais que qualquer outra coisa...
Sinto ‑me minada, sem saída! Parece que só de pensar nisso me sinto mais sem saída
ainda... Meu Deus! Estou ficando louca...”
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Doía pensar. Era mais fácil tomar mais dois comprimidos. E por que não? Além do mais,
Robson poderia estar certo. Ou não?
Seus pensamentos estavam confusos, ficava difícil discernir entre o certo e o errado,
entre o justo e o injusto. Paula estava num verdadeiro caos existencial. Fragmentos de
quem era antes pareciam ficar distantes. Nesse momento, era tomada por um medo
avassalador. Acometida por ondas de tremores e calafrios só de imaginar como poderia
ficar depois de uma pos‑
Então, se não lhe restava nem o emprego prometido por Robson, o que sobrava em sua
vida?
Somente os comprimidos...
Com certeza, depois de um bom sono pensaria com mais calma. Por que não tomar mais
dois, então? Na verdade, por que não tomar o vidro inteiro? Era de sono profundo que
precisava. Um sono muito profundo.
Queria muito esse sono profundo. Um sono sem dores, sem lembran‑
ças, sem angústias ou falta de perspectivas. Apenas um sono reparador. Para acordar,
quem sabe, em outra vida. Numa vida onde tudo magicamente poderia ser melhor e
talvez dar certo...
mente fechou ‑os. A consciência foi ficando distante. “Venha, sono, venha.
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Paula não sabia ao certo quando o sono profundo passou a ser um ter‑
rível mal ‑estar. A tontura e a vontade de vomitar eram enormes, sentia que não tinha
forças nem para manter a respiração. Parecia estar se afogando no seco. Estados entre
consciência e inconsciência oscilavam constantemente.
velmente uma ambulância. Parecia estar sonhando, enquanto observava pessoas à sua
volta, olhando ‑a com curiosidade. Logo depois, sentiu alguns tubos serem enfiados em
sua boca, um suor frio somado a uma profunda e intermitente dor.
ção de que ele, ao vê ‑la naquele estado, de imediato não havia corrido para o telefone ou
tomado qualquer outra atitude de urgência. Não. Ele havia ficado parado, observando ‑a.
Era aterrorizante cogitar que talvez Robson pudesse estar sentindo algum tipo de prazer
mórbido ao vê ‑la sofrer. Como um menino que vê um inseto morrendo sem a mínima
compaixão, apenas curiosidade. Paula queria tirar essa cena da cabeça. Desejava que
fosse ima‑
ginação, mas em seu íntimo sabia que era real e essa percepção acabava por misturar ‑se
à sua dor.
fundo, sem sofrimentos, sem sonhos. Ao acordar, teve a sensação de que muitos dias
haviam se passado. Sentia uma dor imensa no estômago e na garganta, imaginou que
provavelmente havia sido entubada. Uma sensação avassaladora de vazio, de fome, de
ânsia de resgate, de resgate da alma, de resgate da vida...
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Sentiu que alguém segurava sua mão. Antes de abrir os olhos, pensava que Robson
estivesse ao seu lado, mas no íntimo desejou que não fosse, principalmente, por causa da
persistente lembrança da imagem dele obser‑
vando ‑a. O pior é que não sabia como perguntar a Robson se aquela seria uma imagem
verdadeira ou fruto de um pesadelo. Tinha medo da resposta, embora no fundo já
soubesse a verdade.
Pensou por alguns instantes em seus parentes. Toda a sua família mais próxima morava
muito distante e jamais saberia ao certo do estado em que se encontrava. Na verdade,
jamais acreditariam que ela estivesse sofrendo de depressão. Paula sempre fora o
exemplo de força e de sucesso na família.
Era motivo de orgulho para todos. Seus parentes eram todos, ao seu modo, bem
‑sucedidos, mas a liderança de Paula e sua grande determinação sem‑
Não acreditava que eles estivessem por perto. Robson deveria estar ao seu lado. Mas ao
abrir os olhos teve a grata surpresa de ver a pacífica figura do ex ‑chefe, Vicente.
– Bem ‑vinda – disse ele com a voz calma e serena de sempre, ainda esboçando um leve
sorriso. Ao vê ‑lo, a despeito de toda a dor e do descon‑
Vicente apertou a mão de Paula com força, até que uma forte emoção irrompeu em seu
peito... Fechou os olhos e chorou. Sentia ‑se amparada como há muito necessitava ser.
Vicente não parecia estar analisando ‑a ou julgando ‑a. Estava apenas ali, presente e
como amigo. Pela primeira vez, sem palavras, pôde ser compreendida em toda a
amplitude de seu deses‑
pero. Só agora ela se dava conta da seriedade da situação. Mas, naquele momento, apenas
sentiu alívio e conforto por Vicente estar ali.
Os dois ficaram por muito tempo de mãos dadas, sem falar. Em meio às suas angústias,
Vicente representava um passado distante. Um passado no qual Paula era uma mulher
dona da própria vontade. E agora estava em uma cama de hospital, indefesa, impotente.
Seu único movimento nos últi‑
mos meses fora atentar contra a própria vida. Como teria chegado a essa situação? Por
que havia chegado ao ponto de cometer esse ato covarde contra a própria vida?
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Foi a única coisa que Paula pôde dizer. Vicente assentiu. Tentou não sentir pena, mas era
muito triste ver a mulher que ele havia admirado, e em quem tinha apostado tanto, nesse
estado deprimente.
mentos de Paula. Escreveu alguns números em uma prancheta e saiu. Um médico chegou
alguns instantes depois. Olhou de maneira sisuda para ela e perguntou se Vicente era seu
parente, orientando ‑o para que se retirasse.
mas perguntas. Em seguida, detalhou seu estado. Haviam feito uma lavagem estomacal e
o procedimento fora eficiente. Disse que um psiquiatra falaria com ela em breve.
– Psiquiatra?
mir. Isso é caracterizado como tentativa de suicídio. Agora não há perigo, mas para
liberação ou internação em uma clínica psiquiátrica é necessária a avaliação de um
profissional para estudar seu caso e checar se a senhora pode correr risco de atentar
contra a própria vida novamente.
midos não a mataria, apenas... apenas a faria descansar. Sair mais rapida‑
Onde estaria Robson? Trabalhando? Por que ainda não havia aparecido?
Surgiu no quarto um homem de jaleco, muito novo, com uma espessa cabeleira negra.
Era o psiquiatra. Sentou ‑se ao seu lado, apresentou ‑se e logo perguntou:
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Paula não entendia por que tinha tentado se matar, mas a pergunta a fez chegar perto.
Resolveu falar. Falou aos poucos, mas depois as palavras fluíram com mais facilidade.
Entregou sua fraqueza de corpo e alma para aquele desconhecido.
– Tenho a sensação de que minha vida está muito triste. Eu tinha um emprego. Tinha uma
vida. Depois larguei tudo. Sim. Fui despedida, mas parece que eu desisti antes. Fui
ficando insegura com o passar dos dias. A insegurança tornou ‑se tanta que não
conseguia mais tomar decisões. Após perder o emprego, não tive forças para procurar
outro. Na verdade, tive medo de ser rejeitada. Eu sinto um vazio enorme dentro de mim e
não sei como preencher. Eu só queria descansar dessa angústia de viver e de não ter uma
vida para chamar de minha...
tava. Despejou todos os seus medos para a pessoa que estava decidindo se ela seria ou
não internada num hospital psiquiátrico. Talvez estivesse louca mesmo, cogitava...
– Você não mora sozinha, não é? – disse olhando sua ficha. – Seu com‑
– Robson?
Paula não tinha mais certeza do que falar sobre Robson. Não sabia se ele realmente a
estaria apoiando. Aparentemente sim. Sabia de todas as suas fraquezas e parecia tentar
ajudar, mas sua última lembrança era ver o currí‑
culo sem ter sido aberto nem entregue. Não sabia o que Robson estava querendo. Ou,
aterrorizada em meio às suas percepções, não ousava sequer pensar a respeito.
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Silvia Malamud
Nesse momento Robson entrou. Primeiro, olhou para o médico ao lado de Paula. Sua
expressão teve uma mudança quase imperceptível. De homem frio e calculista para
sofredor. O psiquiatra não notou o movimento sutil e Paula só o percebeu em seu íntimo.
Robson lançou ‑se sobre ela e a abraçou chorando, ou só parecia chorar? O psiquiatra o
controlou e disse que estava tudo bem. Robson olhou fundo nos olhos de Paula e disse:
Após a cena “tocante”, o psiquiatra explicou toda a situação da forma mais clara e
transparente possível ao casal. Paula poderia ser liberada. Na opinião dele, ela não
tentaria o suicídio novamente. Para ser liberado, o casal deveria fazer um acordo. Uma
espécie de “pacto antissuicida”. Ele apresentou uma série de ações que ela deveria
cumprir à risca para evitar a internação, que, no seu caso, poderia ser traumática.
Paula teria que se comunicar caso sentisse que a situação estava pio‑
rando, teria que consultar um médico frequentemente e não poderia tomar decisões
importantes, pois uma decisão errada em um momento frágil pode‑
ria prejudicá ‑la. O casal precisaria reduzir os momentos de estresse e ela precisaria ter o
apoio constante da família, além de auxílio psicológico. Uma outra coisa fez a expressão
de Robson mudar um pouco: o psiquiatra disse que ambos deveriam evitar expressões
que denotassem a atitude de Paula como “fraqueza” ou “covardia”. Na opinião dele,
Paula estava doente e não era covarde. Por isso mesmo, ela teria que pensar e chegar a
uma conclusão sobre por que tinha cometido tal ato. Por fim, o psiquiatra deu seu
telefone e se colocou à disposição para qualquer comunicação que ela quisesse ter.
Após essas informações, o doutor disse que precisaria conversar com Robson, para dar
recomendações mais específicas. Paula agradeceu e perguntou se era possível falar com
Vicente, que devia estar esperando do lado de fora.
Paula sentiu uma força enorme e não admitiu ser tratada como doente.
– Mas, Paula...
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Virou ‑se para Paula. – Você está se sentindo disposta a receber visitas?
– Sim.
O doutor conduziu Robson, que saiu na frente, mostrando ‑se um pouco contrariado...
Quem era aquele médico para colocar ‑se entre ele e Paula?
Era como se ele estivesse perdendo o controle da situação, mas naquele momento
resolveu não criar caso. Depois, conversaria com Paula e reto‑
maria o seu lugar de poder, afinal, ela estava frágil e certamente ouviria a tudo o que ele
dissesse.
– Paula, é bom saber que você está bem. Aproveite esse momento.
Como poderia aproveitar um momento em uma cama de um hospital?, ela se perguntou.
Vicente parecia não estar compreendendo seu estado.
– Aproveitar o momento?
– Pense em sua situação não como um estado de fraqueza, mas como se você estivesse
dando um toque para si mesma. Um valioso toque.
– Tem uma voz aí dentro de você tentando de todos os modos lhe dizer algo importante.
“Veja bem: imagine que você esteja em um fosso profundo, escuro, frio e úmido. Percebe
que tem uma corda levando até o topo do fosso, mas você não tem forças para subir. Lá
em cima, em volta do fosso, só existe uma pessoa. Você grita e pede para ela te puxar.
Ela ouve o seu grito, mas parece não prestar atenção. Permanece lá em cima em meio a
um sorriso distraído, apreciando as coisas da vida em volta dela, as luzes, os cheiros etc.
Parece bem distraída. Por vezes, olha para você, mas não percebe sua angústia. O
Grita mais alto. Berra até ficar rouca e desesperada para sair dali. Como aquela pessoa
não te percebe sofrendo e gritando? Repentinamente, você 71
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nota que a corda está amarrada exatamente nessa pessoa que te observa sem ter nenhuma
ação, e pensa no que fazer. Se puxar muito forte você fará com que ela caia e se
machuque. Cogita que, se essa pessoa desatenta tam‑
bém estivesse em perigo de queda, quem sabe uma pudesse ajudar a outra a sair daquela
trama de extrema angústia? E mesmo sabendo que estaria cometendo uma violência
contra a outra pessoa, sabe que ela é a única que poderia tirá ‑la dali, então, numa aposta
de sobrevivência, você a puxa, levando ‑a ao buraco! A outra pessoa cai de imediato,
machucando ‑se muito. A queda, porém, parece ter um efeito despertador. E no momento
do encontro você diz: ‘Estou aqui nesse buraco, esquecida, esvaziada, faminta e sem
forças. Percebe agora o meu sofrimento?’. Ainda em com‑
pleto desânimo, mas com um fio de esperança, você aguarda a reação da outra pessoa...
Das duas, uma: ou ela fica perplexa e finalmente percebe a gravidade da situação,
dizendo: ‘Como pude deixar você aqui embaixo tanto tempo sozinha? Vamos sair daqui
juntas’. Ou se revolta e grita com você: ‘Você é louca de me puxar aqui para baixo?
Agora vamos ficar as duas presas neste buraco!’”.
sação emocional muito intensa. Parecia que diversas nuvens estavam se dis‑
– A pessoa que estava fora do poço é você mesma, a Paula repleta de recursos, porém
distraída com tudo à sua volta, com sua vida cotidiana. E
agora que foi puxada para o fundo do poço, tem a opção de permanecer embaixo,
sofrendo e machucada, ou escolher se resgatar e se ajudar a sair dele. Este é um momento
excelente para você ver tudo claramente. Agora que está dolorida, mas desperta, é hora
de juntar forças com seu verda‑
Ela entendeu. Tinha tentando cometer suicídio para chamar a atenção sobre si mesma.
Seu eu a tinha puxado lá para baixo. Essa era a única maneira de ver o que realmente
estava acontecendo. Pela primeira vez em muito tempo, compreendeu sua situação. E o
que era melhor (ou mais assusta‑
mento. Não sabia ainda o que fazer, mas tinha plena certeza de que qualquer 72
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– Obrigada, Vicente.
Vicente não a olhou com pena, e ela ficou grata por isso.
– A vida não é fácil, mas estamos aqui para vivê ‑la e usar de toda a nossa capacidade e
inteligência para fazê ‑lo. É o que devemos a nós mes‑
Paula recebeu alta. Vicente ofereceu sua casa no campo para que ela passasse o fim de
semana com Robson. Um sítio a alguns quilômetros de distância da cidade grande.
Robson não havia gostado da ideia, mas o psi‑
quiatra achou que seria boa oportunidade para que Paula pudesse renovar forças antes de
voltar ao ambiente onde tudo havia acontecido. Robson fez o possível para que a viagem
não acontecesse, a ideia era ter Paula em casa e sob seu controle. Mas Vicente deu um
empurrãozinho para levá ‑la até lá.
Deixou o carro da empresa e um motorista à sua disposição. Robson disse que tinha
muito trabalho e que seria praticamente impossível acompanhá ‑la e muito menos ela ir
sozinha. Paula adiantou ‑se dizendo que não teria pro‑
blemas quanto a isso. Logo foi alertando Robson de que conhecia a família que tomava
conta do sítio e que estaria bem.
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nava se toda aquela nova percepção seria verdadeira e se estaria ficando louca com tudo
o que começava a vislumbrar. E se estivesse certa? E se Robson a quisesse controlar? E
pior, se assim fosse, que tipo de controle ele teria sobre ela, para quê, com qual
finalidade? Seria Robson diferente de tudo o que até então ele havia “vendido” sobre si
mesmo para ela? Perguntas dessa ordem, somadas às estranhas sensações a respeito da
qualidade de seu relacionamento, começavam a incomodá ‑la...
ria mais bem acompanhada pelo casal que cuidava do sítio que pelo próprio Robson. Para
ele, havia algo de muito estranho e errado que sobrevinha de modo sutil no
comportamento do companheiro de Paula, algo de difícil detecção que com certeza não
era bom. Notava que na frente dos outros Robson era muito cordato, simpático e
atencioso, parecendo aderir a tudo que fosse para o bem de Paula, mas, com um olhar
mais atento, observando através de sua postura aparentemente impecável, a impressão
que dava era completamente outra. Para Vicente, Robson parecia estar escondendo algo e
isso o incomodava tremendamente. De algum modo, sentia ‑se em parte responsável pelo
resgate de Paula. Ainda mais agora que ela parecia estar se associando novamente a um
aspecto de si mesma que estivera aparen‑
temente esquecido e que era bem mais próximo da pessoa que o cativara e fizera com que
ele, Vicente, a contratasse em meio a inúmeras outras candidatas. Como um leão que
cuida de seus filhotes, Vicente foi tomado por um incomensurável instinto selvagem de
amor e de proteção a Paula, transformando ‑se em seu mais fiel aliado. Ele sabia que a
sua cria era tão forte como ele.
Depois desse início de resgate, de modo gradativo, Paula começava a ser acometida por
um outro olhar para tudo. Caso Robson fosse uma das 74
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causas de seu sofrimento, por mais difícil que fosse conceber essa hipótese, confiava que
saberia lidar com o que pudesse vir à tona e tomaria a atitude necessária para se sentir
bem novamente.
O sítio de Vicente era simples, porém, aconchegante. Havia uma casa central toda feita
de madeira e uma varanda que fazia frente a um enorme gramado. Árvores em volta do
sítio davam um clima acolhedor e pacífico.
Na primeira manhã, bem cedinho, Paula sentou ‑se em uma cadeira reclinável
contemplando a paisagem. O som dos animais e do vento batendo nas árvores penetrava
em seus ouvidos, proporcionando ‑lhe um enorme sentimento de paz. Em meio a toda
essa vivência, Robson chegou inespe‑
radamente, meio sem jeito e um pouco impaciente, sentou ‑se ao seu lado.
– Bem.
– Que bom.
Robson parecia estar muito atencioso e preocupado com a situação de Paula, mas ela
estava distante, não distraída, apenas distante. Estava séria.
dira consertar isso o quanto antes. Paula continuou olhando para o campo e disse,
resolvida:
– Robson.
– Sim?
Paula virou ‑se para olhar Robson de frente. Ele fora sua referência até alguns dias atrás,
porém, naquele momento, percebeu que não mais pre‑
sava era ela mesma. Ainda assim, resolveu dar corda para ele desenvolver o que
pensava...
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– O que tem minha situação? – Tentou não colocar nenhum tipo de ironia em suas
palavras.
Robson continuou:
– Paula, veja! Você está tão deprimida que quase tirou sua vida.
Era verdade. Ele estava preocupado com ela, ou usando essa verdade para impedir que se
erguesse novamente. Paula queria protestar, mas per‑
cebeu que não mais precisaria. Não precisava se colocar diante daquele homem, não
importava mais. O que ela queria era uma vida nova, do seu jeito, e não a que ele ou
qualquer outra pessoa escolheria para ela. Ao per‑
ceber que não precisava convencer os outros de como tocaria sua própria vida, toda a
amargura em discutir com Robson num passe de mágica se dissipou. Restou apenas a
curiosidade em saber por qual motivo Robson estaria tentando fazer com que ela
permanecesse no mesmo estado deplorá‑
vel. Notava agora que aquilo era um jogo e se dispôs a jogá ‑lo. Percebeu que, nas
incontáveis vezes em que tentava se justificar para ele, pelo motivo que fosse, sempre
saía como perdedora, porque sempre ele era o mestre em articular respostas prontas, que,
no final das contas, acabavam por sub‑
bava confirmando para si mesma sua suposta inutilidade e fragilidade, mesmo que ela
tivesse a absoluta certeza de que o que estava fazendo era o correto. Ao término de cada
diálogo ou discussão, era padrão ficar exausta, totalmente minada e sem forças. Além de
todo esse prejuízo emocional, sem‑
pre sobrevinha a terrível sensação de precisar de colo e proteção. Sentia ‑se como uma
criança indefesa que precisava ceder, mesmo que passando por cima de si mesma.
Naqueles derradeiros momentos, acreditava ser vital para sua sobrevivência obter um
olhar de aprovação, mesmo que insignificante, e algumas migalhas de um suposto amor...
Ainda que injusto no começo, no final, tudo perdia o sentido se ela pudesse ao menos se
sentir acolhida por Robson. E com isso ele fora 76
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ganhando mais espaço na relação e ficando cada vez mais forte, mais pode‑
roso e mais importante diante de Paula, e também o intermediário dela para com o
mundo.
Com toda essa nova percepção que lhe sobrevinha à mente, e talvez ainda para confirmar
se era real, Paula decidiu naquele momento conti‑
– Vamos voltar o quanto antes para casa. Para o nosso lar. Lá eu vou poder cuidar de
você como merece e precisa. Então, quando a gente per‑
ceber que você está bem, eu vou falar com o meu amigo sobre aquele emprego. Algo que
não exija muito de você e da sua situação delicada. Ou então você poderá trabalhar
comigo atendendo aos telefonemas, essas coi‑
sas, entende? Você é comunicativa e pode até me ajudar com isso, e eu vou poder cuidar
de você, impedindo que nada te desequilibre.
Paula concordava com a cabeça. Não era a primeira vez que Robson falava com ela como
se fosse uma criança, mas ela nunca parecia se incomo‑
dar com aquilo. Porém, agora era diferente. Paula se esforçou enormemente para não
deixar transparecer sua raiva e indignação.
Aquele homem, que fazia parte de sua vida, que fora sua referência, que cuidava dela e
dizia que a amava quase todos os dias, agora parecia que de verdade não queria tanto o
seu bem. Parecia mais querer ter a sua posse, a sua dependência. Era simples e claro
assim.
E era só isso.
Robson terminou:
– Eu te amo, vamos sair dessa juntos.
Tudo estava translúcido para Paula. A essa altura, já tinha certeza do que deveria ser
feito. Retirou sua mão das mãos dele educadamente, olhou ‑o nos olhos e falou devagar,
para que não restasse nenhuma dúvida:
– Robson.
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tas como reféns que estão sob tortura, com medo de serem
novamente criticadas, desqualificadas e subestimadas. Com
– Hoje é sábado, quero que você volte para a cidade hoje, pegue suas coisas e saia da
minha casa o mais rápido possível.
Naquele exato momento, Paula gostaria de ter uma máquina fotográfica para poder
gravar a expressão de Robson. Primeiro, o sorriso pálido per‑
maneceu por mais alguns instantes enquanto o seu cérebro rapidamente processava a
informação. Ao ver que Paula falava sério, resolveu contornar a situação, produzindo um
riso nervoso:
– Não, Robson. Você tem o fim de semana para sair da minha casa.
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Paula se perguntou se valia a pena explicar. O que Robson era? Valia a pena lhe contar
que ela sabia que ele só a queria se estivesse sob seu domí‑
nio e subjugada? E ele? Teria plena consciência do que estava fazendo com ela? E se
tivesse, valeria a pena dizer que ela havia descoberto seu plano?
Paula queria levantar ‑se e gritar que ele não a amava. Esbravejar por ele ter tomado
conta da sua vida a ponto de desestabilizá ‑la por completo. Mas, no fundo, sabia que se
isso tinha acontecido era porque também ela, mesmo que inconsciente e mesmo sendo
uma vítima dessa terrível situação na qual se encontrava, de algum modo havia permitido
que acontecesse. Por ora, estava convicta de que não valeria a pena o desgaste de ter que
se expor novamente e ainda correr o provável risco de ele argumentar como sempre ou
fechar a cara, deixando aquele clima horrível e conhecido.
para obter mais domínio sobre suas presas. São experts em táticas sedutoras, exercendo
enorme fascínio sobre as pes‑
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– Deve, sim. E todos esses anos que eu perdi ao seu lado? Se formos contabilizar, Paula,
você é minha devedora!
Paula percebeu que Robson começava a tornar ‑se instável. A cada momento que ele
constatasse que ela não era mais sua presa e que não mais exercia poder sobre ela, ele se
tornaria mais e mais violento. Percebia ódio saindo pelo seu olhar. Ela definitivamente
não queria aquela situação para si mesma. Viu o caseiro no gramado a alguns metros de
distância. O motorista de Vicente chamava ‑se Rafael e ainda estava no sítio, mais
precisamente na cozinha, conversando com a mulher do caseiro. Paula desconfiava,
inclu‑
sive, que Vicente havia deixado Rafael propositalmente por lá, por alguma razão... Ela
concluiu que precisava se precaver contra aquele homem que estava sendo
desmascarado...
perado que Robson não teve tempo para acompanhá ‑la, mas após alguns instantes correu
atrás de Paula, encontrando ‑a na cozinha, perto de Rafael.
– Rafael! – Sua voz era decidida, tentava não demonstrar o medo que começava a sentir
do companheiro. – O senhor Robson irá embora agora.
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Rafael logo percebeu que o clima estava tenso. Paula era amiga de seu chefe e, se ele
tinha pedido para cuidar dela, decididamente era isso o que faria. Levantou ‑se
imediatamente, procurando impor respeito.
Robson percebeu que de nada adiantaria apelar ou ficar violento. De modo frio e
calculista, disse ‑lhe:
Robson saiu bufando. Rafael ameaçou ir atrás dele, mas ela o deteve, segurando seu
braço:
olhar da varanda, mas a certa distância. Acomodou ‑se dentro do carro e, em seguida,
Rafael ocupou o volante.
Em um ímpeto inesperado, Robson saiu do carro e foi andando rapida‑
mente em direção a Paula. Ao vê ‑lo vindo, seu coração falhou uma batida.
“O que ele vai fazer? Vai cometer algum ato violento?” Em um instante, Paula entendeu
todos os crimes passionais que os pares cometiam contra os companheiros. Ficou
paralisada de medo. Com muito esforço, conseguiu virar ‑se para se afastar. Mas Robson
alcançou ‑a e segurou seu braço com força. Ela estava indefesa.
Virou ‑se e encarou Robson. Sua expressão era a de mais puro ódio. O
Rafael surgiu atrás de Robson, colocando a mão em seu ombro. Aquilo era o suficiente.
Paula soltou ‑se.
Robson voltou, afastando ‑se lentamente, ainda olhando para Paula, berrando:
– Não acaba...
Quando voltou para casa, o apartamento estava vazio. Por precaução, pediu para o
zelador trocar a fechadura da porta. Tratou de cortar os vínculos 81
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o mais rápido possível. Não sabia ao certo como estava sua situação finan‑
ceira e passou o dia fazendo ligações, verificando cartões e encerrando contas. Não sabia
também quanto dinheiro era seu e quanto era de Robson, mas não queria falar com ele a
esse respeito. Na segunda ‑feira, ao ligar para o banco, não ficou surpresa quando seu
gerente informou que Robson havia tentado retirar todo o dinheiro de uma das aplicações
em conjunto.
Paula tinha se precavido e pedido ao gerente, no fim de semana, por e‑mail, que
bloqueasse as retiradas até segunda ordem.
De certa forma, apesar dos problemas, sentia ‑se muito bem por estar viva e atuante, e
mais ainda porque agora estava de verdade decidindo o que fazer por conta própria.
Perguntou ‑se por que ficara tanto tempo na letargia. Porém, sempre com um pé atrás,
pois não conseguia garantir que não cairia novamente, ou que não entraria em depressão
pela falta do com‑
panheiro. “Um dia depois do outro”, pensou Paula. Ainda não tinha uma noção clara do
tipo de relacionamento em que havia entrado...
– Acho que não vamos chegar a um acordo. Que tal se os advogados decidissem isso?
– Para que advogados? Vamos nos encontrar e decidir em conjunto como sempre fizemos
tudo.
Encontrar ‑se com Robson era a última coisa que queria no momento e a conversa já
estava longa demais.
– Melhor não. Vamos deixar isso com os advogados. Agora é diferente, prefiro desse
modo.
– Paula. Não estou acreditando, estou sofrendo demais, será que você não sente nada por
mim? O que aconteceu? Por que você está fria comigo desse jeito? O que foi que eu fiz?
Era verdade. O que ele tinha feito? Do que podia acusá ‑lo? Ninguém tinha amarrado
uma corda em seu pescoço. Paula não sabia, ou não queria 82
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admitir que havia sido sequestrada emocionalmente, mas sabia que a par‑
tir de agora daria ouvidos à sua voz interior. Não mais ficaria na beira do buraco, vendo a
si mesma, lá embaixo, gritar desesperadamente. Ouviria a si mesma, aliás, já estava
ouvindo. E, no momento, queria ficar o mais longe possível de Robson. Precisava
encerrar a ligação:
– Robson. Estou melhor assim. Até logo.
Embora mantivesse contato com Vicente, e mesmo este oferecendo ‑lhe um emprego,
Paula achou que ele já havia feito muito por ela. Mais do que isso, sentia que agora
precisava caminhar com as próprias pernas. “Se eu não ganhar minha autoconfiança
sozinha, não vou poder fazer isso nova‑
De início não foi fácil, mas para sua surpresa e contradizendo todos os argumentos de
Robson, além de seu currículo, foi nas entrevistas de emprego que Paula reconquistou
seu lugar de trabalho. Com sua segu‑
rança resgatada, a cada entrevista que fez Paula foi mais e mais confir‑
Pouco a pouco, foi percebendo que, quanto mais se distanciava dele, mais forte e mais
resgatada ficava. Seu advogado disse que ele protestava contra tudo. Queria sentar com
ela e discutir as coisas. Paula tinha bons motivos para não querer que isso ocorresse. No
momento, estava mais preocupada em ter a sua própria vida de volta. Sabia que não
deveria se envolver com Robson novamente. E quanto mais melhorava, mais entendia o
quanto pre‑
Após algumas semanas, Paula conseguiu um emprego promissor. Seria o braço direito da
gerente de uma consultoria. Não se importava se ainda não estava ocupando o cargo de
chefia que já havia conquistado anterior‑
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Certo dia, Robson foi esperá ‑la na frente de sua empresa. Ele estava bem.
versar amigavelmente.
Paula olhou aquele homem. Lembrou ‑se de que fora tomando um café que ele se
aproximara dela pela primeira vez. Lembrou ‑se de todo o cari‑
Depois, veio a imagem muito nítida de como começara a ficar insegura no emprego. De
como ela pedia toda e qualquer opinião a Robson sobre tudo o que fazia. De como os
seus conselhos foram sempre para que ela desis‑
tisse de algo, tomasse uma decisão medrosa, ou que se isolasse de algum problema, dos
amigos e, por fim, do mundo. O discurso sempre era em nome de protegê ‑la.
E ali estava ele, novamente sedutor, com seu sorriso e com braços pron‑
tos para abraçá ‑la no intuito de colocá ‑la novamente por baixo de suas asas.
Teve medo. Ouviu ‑se gritando internamente. Ficou tonta. Não era fácil escapar daqueles
cuidados e carinhos sedutores, mas tinha que fazê ‑lo. Não teria novamente nenhum tipo
de acordo afetivo com aquele homem, pois ele sempre estaria pronto para segurar as
rédeas de sua vida, bloqueando sua energia vital, paralisando ‑a.
– Robson. Vá embora, por favor. Eu não quero mais me envolver com você, de maneira
alguma. Nem por amizade.
Paula respirou fundo. Por alguns instantes, quase entrou num abismo ao sentir que o
mundo parecia ser difícil sem Robson, mas respirou fundo, voltando ‑se rapidamente
para si mesma, e pensou: “Mas é muito melhor sem ele”.
– Não.
E Robson foi ficando para trás. Era um belo dia de inverno e o sol estava deliciosamente
aconchegante. Era uma bela mulher, numa nova vida.
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Momento de reflexão
relacionamentos afetivos
sas maneiras. Os conflitos sempre existiram, apenas mudando cenários de acordo com a
época histórica. O afeto relacionado ao amor existe, indepen‑
Nossos cérebros nos diferenciam das outras espécies, possibilitando ‑nos distintos tipos
de vivências. Estas, por sua vez, são experimentadas de acor do com as particularidades
de cada um e não dependem da manifesta‑
ção da vontade.
Sabe ‑se que as personalidades são construídas em meio a diversos fatores vivenciados
durante o período da infância.
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sua pouca experiência de vida. No entanto, por mais incrível que possa pare‑
cer, são as vivências do início da vida que costumam desenhar a maioria dos cenários e
comportamentos do universo adulto. Tais vivências serão revela‑
das pelas mais variadas formas de amar, de ser e de dar afeto. As pesquisas dizem que
tudo está relacionado com a compreensão das experiências infan‑
tis. Há, portanto, de se suspeitar que ambientes pouco salutares possam ser a matriz de
adultos com organizações psíquicas duvidosas, muito embora esse pressuposto de modo
algum funcione como regra para todas as condutas indesejáveis e nem sempre se aplique
aos casos dos Sequestradores de Almas.
veis no início da vida, são totalmente passíveis de transitar por situações de angústia
severa, que podem desembocar em estados emocionais bas‑
tante alterados.
Cada pessoa é única no seu modo de perceber e de ser afetada pelos fatos que a
acometem e não é sempre que os resultados emocionais são rotuláveis dentro dos padrões
convencionais de conhecimento. É comum algumas transitarem por determinadas
situações de vida em que não dão conta de manter a estabilidade emocional, enquanto
outras nem se abalam.
variáveis que podem ocorrer na formulação da identidade defensiva, mas, como vimos,
não é apenas isso que os define.
Quando os gatilhos das angústias são ativados, os alarmes de desequi‑
líbrio são deflagrados, mas, ao que parece, nos sequestradores esse gatilho‑
‑alarme está numa cega e constante ativação. Os mais conscientes por vezes se percebem
agindo de modo distinto do que gostariam de ser, notam as 88
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próprias mudanças de humor, mas, como são presas de si mesmos, esses lampejos de
lucidez não se mostram suficientes para tirá ‑los da condição de autossequestro na qual se
encontram. Permanecem totalmente obedientes aos obscuros comandos do inconsciente,
que freneticamente tentam expur‑
gar toda a dor e as experiências traumáticas dessa forma. Vivem numa espé‑
cie de autopossessão, funcionando como autômatos, sem muita ideia sobre o modo como
agem, nem o por quê.
É interessante observar também a existência do outro lado da moeda, ou seja, será que
existe algum tipo de personalidade específica que costuma ser vítima desse tipo de
predador?
Numa conquista amorosa, por exemplo, alguém que necessite muito da confirmação
afetiva do outro e que ainda tenha dificuldade em avaliar aspectos relacionados à
autoestima, na certa, poderá correr o risco de fazer aliança com algum parceiro sem ter o
menor discernimento se este é adequado ou não.
“amarem”. São regidos por profunda e obscura dor emocional. Em momento algum,
porém, capacitam ‑se a entrar em contato com seus contextos afliti‑
vos; ao contrário, cegamente projetam nas vítimas o pior de suas mais dila‑
São esplêndidos estrategistas, sendo de bom termo nunca menosprezar suas capacidades
intelectivas, pois aprendem a fazer absolutamente de tudo para sobreviverem
emocionalmente e não entrarem em contato com angús‑
tias que certamente os desequilibrariam de modo drástico. Na verdade, são reféns de si
mesmos. Agem em meio a jogadas estratégicas e, quando flagra‑
dos, costumam sentir ‑se vítimas das situações. Nessas ocasiões, não é inco‑
mum suas reações transitarem por desejos de vingança e agressões verbais e físicas, ou
mesmo ignorarem completamente o denunciador.
cional ou perigo real de morte, a consciência dos fatos não vem à tona.
O péssimo status emocional em que o parceiro ou familiar costuma ficar apenas serve
para confirmar crenças de desvalia projetadas em relação 89
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ao outro. Ao mesmo tempo que sentem necessidade de cuidar, imaginando suas vítimas
frágeis e sem a menor condição de guiarem a própria vida, nutrem enorme desprezo por
elas.
Na etapa da conquista, são tudo de bom. Comportam ‑se como bons moços, cheios de
amor para dar, mostrando ‑se sensíveis em relação à dor do outro, adequando ‑se a
qualquer necessidade que as vítimas escolhidas possam ter. Pouco tempo depois, quando
já estão donos da situação, pas‑
ças, “menos ‑valia” e dúvidas sobre todas as suas ações e desejos. Não têm a menor
noção da imensa tortura emocional que os move. Como mestres, em meio a artimanhas e
articulações, seduzem, mentindo de modo totalmente verossímil. São verdadeiros
predadores emocionais, vampiros energéticos, que pouco a pouco vão minando toda a
energia vital de suas presas, que se encontram fragilizadas, com as almas sequestradas.
tradores têm de si mesmos, de suas intenções, leva ‑os a crer que o que existe é apenas o
desejo de cuidar bem do outro. Cuidam tanto até o ponto de o outro não dar mais conta
de existir. Fica projetado na vítima tudo o que não é bom e que precisa ser “arrumado”.
Encaminhamento demolidor de vida. Para o sequestrador, nada está bom o suficiente e
tudo poderia ter sido feito melhor. Atua num padrão incessante, ininterrupto e obsessivo
em relação às suas presas. Não tem a capacidade empática sobre o que de ver‑
líbrio às emoções dos parceiros, dos familiares escolhidos como vítimas, ou mesmo de
algum colega de trabalho. Os bullyings mais eficientes e de difícil detecção são
elaborados por esses inteligentes sequestradores.
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mas e depois das possíveis reações descritas, numa frieza indescritível, tais
sequestradores tendem a mudar o foco, recomeçando novas empreitadas de busca. O
distanciamento afetivo que o sequestrador tem de si próprio, a partir desse momento,
passa a ser projetado com maior veemência no ex ‑sequestrado, que logo deixará de
existir para ele. A vítima, nessas ocasiões, se ainda não estiver bem estruturada – o que é
o mais comum depois desse terremoto existencial –, tende a ficar mais atônita ainda ao
enxergar a exten‑
Conheço um casal que poderia ser visto a distância como um casal modelo. Ela, linda,
jeitosa, delicada, de boa família e ainda excelente pro‑
fissional. Ele, não menos capaz, carreira promissora, bom partido. Suzana, nome que
daremos a tal moça, não sabe o que fazer para agradar o marido, que por sua vez parece
ser bastante atencioso para com ela.
Ano passado tive a oportunidade de rever esse gracioso casal, que mora em Miami.
Confesso que não pude deixar de notar que, após quase dois anos sem vê ‑los, uma
diferença sutil, mas ao mesmo tempo brutal, ficou clara no momento em que reencontrei
o casal. Suzana continua delicada e ainda com um sorriso doce, mas perdeu visivelmente
o seu conhecido brilho. Por instantes me perguntei o que poderia ter acontecido em sua
vida. Ele, vamos chamá ‑lo de Matias, ao contrário dela, continua com o mesmo porte de
quando o vi pela primeira vez.
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dele ou alguma conversa caminha para um clima desagradável quando ele está junto e
fica com a opinião irredutivelmente adversa à dos outros sobre algum tema abordado.
Outra coisa, quase nunca está de acordo com os programas escolhidos entre amigos e, a
priori, sempre conclui que suas ideias são as melhores. Nas ocasiões em que é preterido,
prefere abdicar de qualquer companhia, saindo sozinho com a esposa. Abrir mão dos
seus programas e de suas ideias? Jamais!
mente não foi diferente. Escolhemos ir ao cinema, mas Matias parecia não se satisfazer
com nenhuma opção de filme. Mostrou ‑se mal ‑humorado e impaciente, apesar de ter
concordado anteriormente com o programa. Após algum tempo, decidiu que não queria
mais ir, oferecendo outra opção de passeio, sobre o qual todos já haviam conversado
antes e ninguém queria fazer. Nesse momento, nossos amigos se entreolharam e, ainda
tentando mudar o humor de Matias, buscaram convencê ‑lo a ir junto, o que foi impos‑
nou que Suzana se levantasse e, de modo educado, disse que preferia ver um filme em
casa e que, “na boa”, poderíamos ir tranquilamente ver o filme que havíamos combinado.
E fez questão de frisar: “Na boa, façam seus pro‑
gramas, não quero incomodar vocês, tá tudo bem”.
Pois bem, ela ficou como você deve estar imaginando, passada! Tentou argu‑
mentar algo, mas foi em vão. Além de não ter sido ouvida, não quisemos nem pensar no
que poderia acontecer nos bastidores se ela o contestasse mais do que vimos. Muito sem
graça, pediu desculpas a todos, e, por fim, o casal acabou se retirando. No dia seguinte,
novamente saímos juntos, mas, como situações desse tipo eram recorrentes, algumas
pessoas acabaram inventando desculpas e optaram por não fazer o programa com eles.
No terceiro dia, não havendo mais saída, e porque todos sempre gostaram muito de
Suzana, decidiram sair. Desta vez, como sempre acontece e não exata‑
mente numa ordem previsível, de acordo com nossos amigos, ele se com‑
portou de modo impecável... E ela, visivelmente abatida, tentou divertir ‑se, como era da
sua natureza e como sempre fizera conosco. Como vocês sabem, 92
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turmas de amigos ficam bem mais coloridas quando os que estão presentes somam,
trazendo suas opiniões, mesmo que distintas. São ideias que em geral têm algo em
comum com o grupo, ou, se não têm, buscam ter ou se adap‑
tam. Nesse caso, porém, ficou evidente que, além da dificuldade de Matias em se adaptar,
ele vive uma situação afetiva com a parceira que a desesta‑
Suzana se encontra num difícil e delicado momento no qual todos já percebem a cilada
em que se meteu e – a olhos vistos – ela definha em sua luz própria.
zando emocionalmente suas presas, até que elas evoluam para um estado de total falência
de si mesmas.
cias emocionais, em que praticamente pisa em ovos com receio de uma nova mudança de
rumo no humor do parceiro, desperte e vá para bem longe dessa pseudorrelação, desse
bate e alisa.
Por isso mesmo, aqui vai o meu alerta de sempre: quanto mais desper‑
tos, melhor!
Quem nos faz sentir bem nos envia boa energia. Pessoas que nos sugam estão
literalmente drenando o que há de vital em nós mesmos. Funcio‑
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tabilize o outro e propicie brechas para que a tal vampirização ocorra. Tam‑
bém são mestres na percepção, sabem por onde e como podem atacar, iden‑
tificam pontos de fragilidade emocional, até que, sem perceber, suas vítimas recebem a
“mordida fatal” e, a partir disso, se inicia o Sequestro da Alma.
Toda vez que estiver bem na presença de alguém e, na sequência do encontro, passar a
gradativamente sentir‑se cansado, tenha certeza de que se trata de encontro com um
vampiro energético.
Sempre existe uma voz interior nos alertando quando estamos correndo perigo. Se estiver
começando um relacionamento ou se já estiver em um no qual perceba algo
minimamente estranho, dê espaço para se ouvir e jamais ouse duvidar de si mesmo.
Honre o que perceber e, por mais ínfimo que possa parecer, pode ser que já se encontre
no início de um encantamento de difícil detecção e discernimento.
Se estiver sob efeito desses vampiros energéticos, sua alma sequestrada permanecerá
como se estivesse contaminada por uma espécie de hipno‑
tismo crônico e altamente tóxico. O caminho que poderá levá ‑lo a ter cla‑
reza sobre o que de fato está ocorrendo até que se chegue ao ponto de ruptura sempre é
bastante trabalhoso. Por isso mesmo, livre ‑se do contato com o predador assim que
perceber algo nesse sentido.
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observe como se sente quando está dentro e quando está fora delas. Não se esqueça
também de comparar como era a sua vida e seus sentimentos em geral antes de se
relacionar com tal pessoa. Faça também uma pesquisa sobre como estão suas carências
mais íntimas, pergunte ‑se o que de fato necessita e veja se, aparente e magicamente, elas
parecem terem sido nutri‑
das pelo parceiro, ao mesmo tempo que você tem a sensação de que há algo de muito
errado em tudo o que está acontecendo. Como se fosse um misto de conforto e de mal
‑estar caminhando juntos e de mãos dadas...
Aproveite a oportunidade dos momentos em que você ainda consegue se distanciar
emocionalmente dessa relação e reveja como você funciona normalmente e como fica
quando em companhia dessa pessoa. Separe o joio do trigo e lembre ‑se de que estar
apaixonado ou lidando de modo afe‑
nado, jamais há espaço para o surgimento de ruído algum alertando de que algo não vai
bem.
pulação é tão estrategicamente perversa, que se torna difícil dar ‑se conta ou mesmo
acreditar que sua vida está sendo roubada. Fique esperta e preste atenção, porque o
resultado dessa trama é a real falta de força para falar de assuntos pessoais, para
raciocinar e, por fim, para se sentir viva. O destino desse tipo de relação é que a sua
energia vital passe a pertencer apenas e tão somente ao vampiro energético, sequestrador
de sua alma.
Todos os vampiros energéticos falam demais e sempre passam certo clima ruim na
intimidade do ambiente de suas relações. São experts, por exemplo, em culpar o outro
quando algo não caminha de acordo com o que desejam.
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Detalhes importantes: quase todos nunca se encaixam em seu grupo de amigos, algo
sempre destoa e muitas vezes essa é uma sensação só sua e deve ser levada muito a sério.
E por não se encaixarem, automaticamente você também já não se encaixará no local
nem com as pessoas com as quais sempre se deu bem. Embora ele possa parecer
extremamente simpático e solícito, gradativamente, vai distanciá ‑lo de seu meio e de seu
habitat até você não conseguir mais interagir com praticamente ninguém de seu cír‑
culo social, pois sua energia estará totalmente sequestrada e a serviço do sequestrador.
Você não mais pertencerá a si mesmo, e sim a ele!
Quando o sequestrador ficar à vontade com seus amigos, mesmo assim, você ficará de
fora. Não mais existirá espaço no mundo para você, a não ser com ele.
Importantíssimo: Ao ter consciência de que está nesse tipo de relação, se não tiver
sucesso em sua fuga, não vacile e
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tam se defender das influências ambientais e das pessoas, mas ficam a maior parte do
tempo estressados, deprimidos ou desvitalizados. Têm enormes dificuldades em
reconhecer a fronteira entre o próprio eu e o outro. Não têm noção de onde e de quando
colocar limites pessoais em situações nocivas.
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Além disso, agem como recicladores de energia dos outros e dos ambientes, mas têm
limites de suportabilidade que lhes são vitais.
guem convencer as futuras presas modulando ‑se nas mais diversas varia‑
ções emocionais de acordo com as particularidades apresentadas em cada vítima. Para
tanto, ora tornam ‑se os amantes perfeitos, ora os doadores de afeto, ora os maiores
expoentes em tudo o que fazem, e outras vezes se apresentam às vítimas como os
maiores coitadinhos, vítimas de suas pró‑
prias histórias (imaginadas). Vão agindo em meio à infinita criatividade, sempre, porém,
regidos pelo impulso predador.
cias, porém, esses tais sequestradores jamais conseguem acessar, ou seja, não têm
capacidade suficiente para abranger todo tipo de status de consciência‑
‑dial ‑frequência das pessoas em geral. A sorte é que, por mais que possam tentar,
existem locais de acesso impossível para eles, pessoas sobre as quais eles nunca
conseguem fazer uma leitura por terem mecanismos formados como se fossem uma pele
psíquica protetora. Estas, por não serem carentes em excesso, não terem medo de
abandono e estarem totalmente estrutura‑
das em pensamentos saudáveis sobre si mesmas, sabem ter clareza sobre como impor
limites quando as coisas não estão boas para o seu lado, e tam‑
bém porque não costumam perder a sua identidade nos outros. Sua pos‑
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Máximas de alertamento
bilizando ‑se em meio a amigos, trabalhando, tendo horas de lazer, enfim, vivendo a vida.
Agora retire um véu, como se antes você não pudesse suspei‑
tar que, nesse mesmo cenário, predadores estariam à espreita, e ainda fazendo uso de
algumas vestimentas terrenas hoje reconhecidas pela roupagem do politicamente correto.
Nesse mesmo cenário, imagine que esses humanoides silenciosamente estariam farejando
suas próximas vítimas, observando quais poderiam servi ‑los melhor, sendo o alimento
mais rápido e mais fácil.
Atente ainda que, nos dias de hoje, qualquer pessoa pode tornar‑se possível presa desse
tipo de psicopatas predadores de energia vital. O pior de tudo é que esses subtipos
humanos são muitos e transitam soltos por aí, fazendo toda a sorte de estragos diante de
um quadro singular que reina em nosso século.
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O grande alerta é que a maioria das pessoas podem ser vítimas de tais espécimes. Em
alguns casos, até possíveis questões emocionais que poderiam tê ‑las atraído são
totalmente descartadas. De modo geral, qual‑
quer um pode servir de isca e de prato principal para o deleite de tais assas‑
sinos silenciosos.
riam como máquinas biológicas também com suas almas roubadas, se é que têm alguma.
Transitariam por aí apenas como meros mecanismos de inter‑
ferência, servindo a outras origens que se alimentariam das energias por eles roubadas.
Será?
Qualquer que seja sua resposta e sua crença, o importante é saber que eles de verdade
estão por aí e que, a partir de agora, definitivamente você terá a oportunidade de estar
desperta, consciente e, portanto, protegida das possíveis investidas. Após conceber que
eles existem e que estão entre nós, verá como é fácil reconhecê ‑los, evitando, assim, o
desastre que significa sucumbir em suas garras.
ras do universo.
cas capazes de perceber os assombrosos aspectos por trás das máscaras de aparência de
tais humanoides. Invariavelmente todos dessa espécie, como máquinas biológicas, agem
de modo sistemático, com poucas variações e sem capacidade para mais.
Para tanto, fazem uso de alguns truques que ardilosamente variam dentro do seguinte
esquema:
ção ilimitada. Elogiam e ouvem seus alvos visando alimentar o ego das futuras presas.
Agem determinados a encantar e a engrande‑
Mesmo aqueles que são menos suscetíveis a esse tipo de investida, quando são alvos,
dificilmente escapam.
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4. Projetam em suas vítimas que tenham cuidados reparadores para com eles mesmos,
inventam que eles, sim, são as verdadeiras e úni‑
trações em meio a teatros dramáticos, até que se acredite piamente em seus discursos
desoladores. E no momento em que você cair em mais essa armadilha de ilusão
mentirosa, já estará deitado na cama que o abusador lhe fez. E seu travesseiro estará
recheado de chanta‑
nas parte de uma encenação teatral, por meio da qual visam ganhar tempo para amarrar a
presa ainda mais. O problema sempre será
• Você pode falar, reclamar e estrebuchar, infinitamente, será o mesmo que nada. Eles
apenas se deleitam, ao mesmo tempo que literal‑
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seu sistema físico vai energeticamente rachando, e assim fica mais fácil ser sugada. Além
de tudo, quando você estiver sem forças, eles o punirão, deixando ‑o mais por baixo
ainda, por exemplo, amea‑
Se estiver engradado, perceba que a porta sempre esteve aberta, nunca houve chave
alguma. Respire fundo e comece a observar como um filme que não lhe pertence e do
qual você decidiu não mais fazer parte. Ouse ser o único autor de sua própria história. Se
tiver ainda dificuldade para resgatar ‑se e lembrar ‑se de como é ser livre, faça terapia,
faça coisas que ativem a vida que existe em você. Resgate ‑se por onde sua intuição o
levar, e o principal: confie em si mesmo.
das por conta da imensa dor e da desestabilização um dia sentidas. Matam e morrem em
nome de nunca mais entrarem em contato com o sofrimento e o trauma em algum tempo
vividos. O problema é que não dá para apagar o que não foi reprocessado. Nesse caso
específico, seria necessário fazer tera‑
pia para que determinados aspectos obscuros do Self (sentido de si mesmo) pudessem ser
reintegrados e redimensionados no psiquismo. Ao contrá‑
rio disso, tais vampiros dissociam ‑se da dor emocional cegamente, proje‑
tando o aspecto traumático na vítima escolhida. É nessa confusão que a dinâmica dessa
trama acontece: por um lado, existe a busca pelo outro, pelo alimento e pelo amor; por
outro, coexistem sentimentos secretos de ódio, inveja e desprezo.
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Indiferença emocional, frieza e falta de empatia estão logo abaixo de todo o jogo que
envolve o sequestro. Num local mais inacessível ainda do psiquismo, reside uma grande
e impensável dor. Em meio a tudo isso, o vampiro sequestrador desenvolve habilidosas
estratégias de percurso até o momento do derradeiro sequestro e vampirização da vítima.
O problema é que, diferentemente da ficção, após a mordida, a presa jamais se tornará
um vampiro, e se não conseguir se libertar depressa, cortando laços e mudando
radicalmente sua frequência, o prognóstico nunca será dos melhores.
Não poucas vezes, a vítima escolhida tem boa autoestima e se encontra fortalecida em
seu caminho de vida, mas, para muitos desses sequestrado‑
res, isso só torna o desafio da empreitada ainda mais empolgante. Como um radar,
sondam o ambiente buscando alguma fresta emocional mal resolvida e, por menor e mais
escondida que esteja, por serem os reis da percepção nesse sentido, eles sempre as
encontram. Inteligentes, direcionam todo tipo de conhecimento que tenham e, se
necessário, vão em busca de aprender coisas novas para adular o alvo do momento.
Nos hipersensíveis, os ataques costumam ser certeiros e mais fáceis por conta do coração
aberto e do excesso de empatia que essa categoria humana tem em relação à dor do outro
e do mundo. Muitas vezes se deixam enga‑
nar no contato com os sequestradores por perceberem um pano de fundo de carência real,
mas não têm a capacidade de perceber que, por causa desse tipo de carência, eles se
transformaram em sofisticados manipuladores de difícil detecção até para os mais
sensíveis, quando ainda desavisados.
Antídoto
Como antídoto, se após o contato com eles passar a sentir fraqueza e desânimo em todas
as áreas de sua vida, antes que isso se torne alguma doença ou depressão, reorganize suas
forças e dê ouvidos à sua voz inte‑
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Veja esse momento de lucidez como uma oportunidade única para abrir ainda mais os
olhos, dinamizando todas as forças para sair dessa situação muito mais forte do que
entrou.
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Márcia, casada e mãe de três filhos, sabia que a filha estava dormindo.
Camila tinha trabalhado a semana inteira e domingo era um dos únicos momentos em
que podia desfrutar de sua cama até mais tarde. Mas nada em relação à filha era
suficientemente importante a ponto de comovê ‑la.
Entendia, pelo simples motivo de Camila morar em sua casa, que ela deveria acordar
cedo e obedecer a todas as regras que lhe viessem à cabeça.
Na verdade, Márcia já levantava enfurecida só de pensar que a filha ainda dormia. Anos
a fio, entrava no quarto de Camila no meio do sono, escan‑
carando a porta e abrindo a janela para que o cômodo ficasse totalmente claro. Avisava a
filha que era hora de limpar seu próprio quarto, reclamando incessantemente sobre
objetos de uso pessoal que não estariam no local adequado, queixando ‑se também da
limpeza do quarto. Como se não bas‑
doméstico barulhento.
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Mesmo que Márcia soubesse que era dona da própria casa e já exercia autoridade sobre a
filha em seu papel de mãe, ela não tinha a menor cons‑
ciência de por que agia daquela forma. Se acaso a filha ousasse reclamar, reagiria, como
sempre, incutindo ‑lhe um sentimento de culpa na tentativa de convencê ‑la de quanto era
relaxada e de quanto ela, como mãe, sacrifi ‑
cava ‑se pelos filhos e pela família, até acordando mais cedo para deixar tudo em ordem
para todos. Esse era o mecanismo perverso de manipulação que costumava aplicar. Tinha
a habilidade de camuflar suas ações, pautadas por sentimentos de ódio e de desprezo, e
transformá ‑las em culpa e inade‑
Como golpe fatal de uma mágoa inventada, lembrava que a casa era dela, ameaçando
Camila de que, se não a compreendesse, poderia ir embora.
Desse modo, Camila ficava refém das manipulações da própria mãe, apri‑
dendo do que lhe viesse à mente, Márcia fazia seu jogo de um jeito apa‑
tar sutilmente sobre o motivo que a levava a agir de modo tão intempes‑
tivo com a própria filha. O que a ativava tanto a ponto de ficar tão irritada?
ciência, freneticamente insistia em não mais ouvir a própria pergunta, pois, no fundo, não
desejava ter uma resposta, ou quem sabe não desse conta de saber mais sobre si mesma.
Porém, a impaciência e o desdém a cegavam, tomando a frente e
negando tudo o que de verdade a filha poderia ser. Então, mergulhada em seu próprio
hipnotismo, para Márcia, Camila era uma inútil comparada a ela e merecia ser tratada
com desprezo.
Quando Camila ousava reclamar, apenas ignorava ou jogava alguma palavra de culpa no
ar. Sentia uma espécie de prazer na superioridade que lhe sobrevinha quando notava a
filha murchar, levantando ‑se da cama 106
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logo cedo, já como uma derrotada, como uma perdedora. Sentia ‑se vin‑
gada. Mas vingada de quê? Da filha? Sentia que um estranho prazer a asso‑
tia, ou seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro, era uma palavra que não
constava em seu dicionário particular, muito embora nos acio‑
nasse outros sentimentos empáticos e de compaixão pelos sofrimentos que havia passado
na própria vida. Havia adestrado os filhos para a enxer‑
garem de tal modo. O papel de vítima e o fato de contar como era uma boa pessoa, de
algum modo, confirmavam para Márcia que ela era especial, o que lhe conferia prestígio
e atenção e, por fim, identidade.
A vida de Márcia, esta, sim, era a vida de uma perdedora, mas jamais admitiria isso para
si mesma. Sua vida não dera certo como havia projetado e, ao ver a filha em um emprego
estável, sentia uma inveja latejante. Camila representaria a mulher que ela não fora. Por
isso mesmo, nutria certo prazer ao ver aquele rosto derrotado. Era como se o mundo não
fosse bom para ninguém. E, se não fora para ela, não seria justo que fosse para a filha. Na
verdade, não suportava ver qualquer tipo de luz brilhando fora dela.
Como todos os seres humanos, tinha seus sonhos, mas tivera uma limi‑
tada formação cultural e um marido bem distante dos padrões que sonhara.
Após anos de casamento, via na família o reflexo de sua incapacidade de gerir a própria
vida. Afinal, ser apenas uma dona de casa, cuidar dos filhos e do marido estava muito
aquém de alguns dos seus projetos de vida, que incluíam ascensão profissional e social.
veu não comprar a briga e foi embora atrás de uma vida emocional mais leve, ou seja:
com menos críticas e cobranças. O filho mais velho, por sua vez, também teve a rara
consciência do que o esperava e resolveu partir para estudar longe com a intenção de
nunca mais voltar. Já o filho do meio, Jorge, era o preferido de Márcia. Ocupava o lugar
do “marido” ideal ou da 107
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criança de ouro, o filho preferido. O mais bonito, mais trabalhador e mais amado.
Recebia os carinhos e afagos da mãe, mas, mesmo estando tão pro‑
tegido, sentia ‑se sufocado e, com uma desculpa qualquer, arrumou um emprego e
decidiu alugar um quarto perto do trabalho. Já Camila...
– Que foi? Você sabe que eu tenho uma rotina. Não posso deixar de fazer as coisas só
porque você acha que pode dormir até tarde. E mais: não admito que você fique
vagabundeando na cama enquanto tem muito traba‑
lho para fazer em casa. Afinal, você também mora aqui, não é?
Márcia queria que a filha sentisse, embora não fosse verdade, que ela era preguiçosa e
que fazia corpo mole, como se isso fosse um padrão. Ambas sabiam que aquilo estava
longe de ser real, mas funcionava à medida que um imenso mal ‑estar se instalava.
Camila constantemente ficava magoada com as atitudes hostis de que era alvo, ao mesmo
tempo que Márcia esbo‑
çava algo como se fosse uma sutil satisfação. Por vezes, Camila entrava em estado de
perplexidade quando lhe passava pela mente que a sua própria mãe poderia estar agindo
de tal modo apenas com o intuito de desestabi ‑
lizá ‑la. Nesses breves momentos, chegava a questionar se a mãe não gostava dela, mas
logo dispensava aquele tipo de pensamento, culpando ‑se por ima‑
ginar algo de tal ordem em relação à própria mãe. A todo custo e talvez ainda para salvar
a imagem de mãe boa dentro de si mesma, preferia acreditar que ela própria poderia ser a
provocadora da ira de Márcia.
Com isso, Camila caminhou até a cozinha para se certificar de onde vinha o barulho que
a tinha acordado.
– Claro que não. Estou preparando um prato especial. É rapidinho de fazer. É o que seu
irmão mais gosta e ele vem almoçar aqui hoje.
Pronto. Todas as informações estavam ali. Se fosse um prato rápido, então, poderia ser
feito outra hora. E dizer que era para o irmão era outro dardo lançado ao alvo; afinal, a
mãe raramente fazia um prato para ela, enquanto o irmão sempre ganhava almoços
especiais. Será que Camila perceberia essas mensagens sutis ou ainda duvidaria das
evidências?
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Márcia notou que a filha tomou ar para responder, mas percebeu tam‑
bém que Camila estava cansada, com muito sono e desgastada. Viu quando ela suspirou
com ar de tristeza, misturada à sua impotência diante da mãe, encaminhando ‑se ao
banheiro, arrastando os chinelos, para tomar um banho, pois seu descanso de fim de
semana havia terminado.
“Só os outros têm direito de reclamar”, pensou Camila, pois o irmão era a pessoa mais
desbocada que ela conhecia, além de viver se queixando de tudo. Nessas ocasiões, a mãe
o repreendia falsamente, em meio a um sorriso permissivo.
Podia sentir ‑se renovada, como se o cansaço da filha a tivesse nutrido, dei‑
xando ‑a mais forte.
Seria o bastante para aquele início de dia? Claro que não. Porém, tinha noção de que
precisava conter seus impulsos. Embora fosse compelida a dizer o maior número de
humilhações possíveis, segurava ‑se. Como código de funcionamento, por mais difícil
que fosse, sabia que como mãe deveria também agir de modo carinhoso. Por vezes, tinha
a intuição de que, se avan‑
çasse demais, a filha literalmente não suportaria. Além das evidências, as consequências
poderiam ser desastrosas.
nho, mas logo depois, quando a filha relaxava e abria a guarda, enviava algum tipo de
informação que novamente causaria mágoa e desespero.
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tantes. Não raro, ainda nessas “limpezas”, descobria algo guardado em segredo, como
bilhetes de namorados ou mesmo seus diários. Márcia não conseguia se conter por muito
tempo e, na primeira oportunidade que surgia, de modo velado ou não, usava o que sabia
contra a própria filha.
E assim, mais e mais o mal ‑estar provocado em Camila era acionado: uma palavra de
desconforto, uma chicotada emocional. Márcia sempre sabia onde tocar e o que dizer. Por
que fazia aquilo? Isso ela não sabia...
Márcia estava ansiosa com a chegada do filho. Contra a vontade dela, ele decidira morar
em um apartamento nos arredores do centro da cidade, com a desculpa de que era mais
perto do trabalho. Na verdade, o que queria mesmo era privacidade, e a mãe, embora o
mimasse demais, era bastante invasiva. Queria ter liberdade, entre outras coisas, para
levar diversas namoradas ao seu apartamento. A mãe, porém, não o deixava em paz e
regularmente arrumava uma desculpa para visitá ‑lo, sempre pegando roupas sujas e
trazendo de volta comida e roupa lavada.
De coitado e magrinho, Jorge não tinha nada. Pelo contrário: estava acima do peso e
procurava levar vida mansa em um trabalho que não lhe exigia muito.
A paixão ou obsessão da mãe pelo filho a impedia de ver como Jorge era de verdade, e
ele abusava. Pedia descaradamente uma mesada sema‑
nal que a mãe lhe oferecia de bom grado. Toda vez que Camila chamava a atenção da
mãe para isso, Márcia se enfurecia como se ela estivesse falando mal de uma adorada
divindade.
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No fundo, Márcia sabia que o filho não queria se esforçar por uma vida melhor, mas de
que isso importava? Era seu queridinho, sua eterna criança de ouro, faria qualquer coisa
por ele. Além do mais, ela tinha uma espécie de obscuro prazer ao ver como a filha
ficava desestabilizada quando se dava conta da atenção excessiva que dedicava ao filho.
A relação entre Jorge e Camila era de aversão mútua e Márcia parecia reger esse tipo de
orquestração. Camila achava o irmão abusado e folgado, e Jorge, por sua vez, fazia
questão de falar que a irmã, além de feia, era mal ‑amada.
Sempre que Jorge vinha visitá ‑la, Márcia se preparava como se estivesse indo para um
encontro com o namorado, vestindo ‑se com o que tinha de melhor. A casa limpa e a
mesa posta faziam parte desse cenário.
Adorava cinema e domingo era um dos poucos dias em que a rotina cansa‑
tiva dava uma trégua e lhe permitia assistir a algum filme. Comprara um aparelho de
DVD para seu quarto, mas Márcia insistira para colocá ‑lo na sala, afinal, o que estava
dentro da casa era propriedade de todos. Dificil‑
mente, Camila conseguia dar sequência à sua diversão, pois sempre era interrompida por
Márcia, que lhe pedia para cuidar de alguma das supostas obrigações da casa.
E naquele dia, como sempre ocorria, mesmo cansada, teve de ajudar a mãe na arrumação
da casa. Era ‑lhe difícil conter a insatisfação perante as incessantes obrigações impostas
pela mãe; pior, via‑se obrigada a perma‑
necer de bom humor. Mesmo em meio a todo esse clima, ao chegar, Jorge resolvia
importunar Camila de todas as maneiras possíveis.
– E aí, tudo bem, feia? – Esse era um dos apelidos “carinhosos” que o irmão dera a ela.
rendo para abraçá ‑lo. Fez questão de reparar em como ele estava lindo, embora um
pouco magro, segundo ela. Pegou a mochila com a roupa suja que Jorge havia acabado
de jogar no sofá.
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As palavras “por favor” e “obrigada” não faziam parte do vocabulário de Márcia quando
se dirigia à filha.
teação, Camila, submissa, desligou o aparelho. Foi para a área de serviço e colocou as
roupas na máquina, enquanto ouvia a mãe conversar com o filho recém ‑chegado. Não
podia deixar de se sentir excluída. A exaltação da mãe para com o irmão sempre dava a
sensação de que ele estivera mais de um ano fora de casa, embora inacreditavelmente
fosse apenas uma semana e às vezes até menos que isso.
Márcia levou o filho para a cozinha e não parava de falar. Contava o que havia feito
durante a semana, o que havia comido e até como tinha dor‑
mido. Na sequência, perguntava como tinha sido a semana dele, enquanto ele começava a
contar das espertezas que utilizava no trabalho. A cada comentário, Márcia fazia questão
de exaltar as qualidades do filho: “Como você é inteligente, só podia ser meu filho
mesmo”.
Camila, silenciosamente, comparava as atitudes do irmão com as de um menino de oito
anos.
Quando ouviu que os dois estavam começando a comer sem ela (Márcia não admitia que
Camila almoçasse sozinha quando o irmão estava presente), Camila se aproximou da
mesa para se servir. Quando a viram, como num pacto de pensamentos em comum, os
dois se entreolharam e riram como se fossem dois adolescentes comentando sobre
alguma colega malvestida:
Antônio havia sido namorado de Camila. Márcia sabia que estava tocando em terreno
perigoso, que a filha poderia explodir a qualquer momento, já que falavam de seu ex
‑namorado. Mas, com o apoio de Jorge ali presente, resolveu arriscar mesmo assim:
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causa da família dela, fato que a marcara bastante, a ponto de nunca ter conseguido
realmente perdoar a mãe por isso.
– Preciso de um tempo para ver se a pressão lá em casa diminui, Antônio – disse ela.
O tempo acabou esfriando a relação e a pausa transformou ‑se em tér‑
mino, até que os dois nunca mais se falaram e ele acabou se envolvendo com outra moça.
Bastou que Camila terminasse o namoro para que Márcia passasse a atribuir elogios ao
seu ex ‑namorado. Era incrível como, desde então, ela começou a se interessar e a saber
mais e mais sobre a vida dele. Não era difí‑
cil ter informações sobre o que andava fazendo; além de conhecer sua família, Antônio
morava nas redondezas e havia estudado a vida toda com seus filhos.
– Olha que interessante, Camila, foi só ele terminar com você que des‑
lanchou na carreira. Ele é tão comunicativo... No fundo, eu não sei por que você
terminou com ele... Além de ser um sujeito batalhador, ele tem demons‑
Camila não parou para pensar. Foi algo mais forte que ela.
Camila tentava relembrar à mãe sobre as intermináveis vezes em que ela desqualificara o
namorado. Mas sempre era derrotada quando fazia isso.
Márcia reagia com a sua violência velada, em meio a argumentos de que tudo que falava
era apenas com o intuito de que a filha, na sua ingenui‑
dade, conhecesse como são as pessoas e a vida. Enfim, de acordo com Márcia, o intuito
era de alerta para que a filha pudesse direcionar o namo‑
rado no que fosse preciso. Era em momentos desse tipo que Camila come‑
rido, mas sua mãe tinha a infalível capacidade de fazê ‑la questionar a si 114
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mesma. Quando ainda insistia em contra ‑argumentar, querendo a todo custo que a mãe
visse o que realmente havia feito, Márcia culpava a filha por não compreender seus
“nobres” propósitos. Por fim, Camila, não pou‑
cas vezes, explodia, e, embora aos olhos de todos sua reação parecesse ser de raiva, era
apenas de desespero.
Nessas ocasiões, era comum ser vista como a vilã da família, como uma pessoa agressiva
que não compreendia a “bondade” da mãe. Para aju‑
dar esse clima terrível a ficar ainda pior, Márcia – aparentemente desolada por conta das
reclamações da filha – encontrava no filho mais velho, a sua criança de ouro, o seu maior
aliado. E isso só aumentava a sensação de desamparo e inadequação em Camila.
– Não aguento mais a senhora falar no nome dele, vira e mexe faz ques‑
tão de me lembrar, ou de que ele existe, ou de como ele está se dando bem.
Tenho a impressão de que fica me jogando na cara o que perdi por ter rom‑
Quando tudo ficava desesperador, Camila cegava ‑se a ponto de em algumas vezes
arremessar contra a parede qualquer coisa que tivesse nas mãos. Em outra ocasião em
que se vira totalmente acuada e alucinada‑
gara a brecar em si mesma um forte impulso de avançar fisicamente para agredi ‑la.
Embora assustada com as reações da filha, Márcia claramente percebia quando atingia os
pontos máximos de suportabilidade dela, mas mesmo assim insistia em continuar
desafiando‑a .
– Bata! Eu quero ver uma filha ter coragem de bater na própria mãe!
Como sempre, Camila, chorando, recolhia ‑se a seu quarto. Márcia, por sua vez, em meio
a lapsos indisfarçáveis de êxtase contido, continuava o seu dia, porém, visivelmente
imune ao ocorrido.
Passados alguns dias, o casamento de Antônio se realizou. Márcia sabia que não poderia
falar abertamente sobre o assunto para a filha, ape‑
nas vestiu uma de suas roupas mais bonitas e foi à igreja, mas não sem antes perguntar:
– Claro que não. E você não foi convidada, não entendo por que está indo.
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– Não fomos convidadas porque você não sabe se comportar como boa perdedora. Na
verdade, você devia era me agradecer por eu estar indo lá representar a família de cabeça
erguida, mesmo que todos saibam que você deixou escapar um bom partido. Nem todos
são tão imaturos como você! É
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vesse com inveja. Será que tudo o que percebera que sua mãe havia feito contra o
namoro era fruto de sua imaginação ou do excesso de sensibili‑
dade? Talvez a mãe tivesse razão quando dizia que ela levava tudo muito ao pé da letra.
Será?
Jorge, que também tinha decidido ir ao casamento, numa aliança com a mãe, sem perder
a oportunidade de irritar a irmã, comentou:
Conversa vai, conversa vem e acabamos falando de você. Bom, primeiro ele 117
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disse que estava muito feliz e tal, mas depois me falou que um dia desses entrou em um
site de relacionamento e achou a sua foto...
Não era possível que fossem fazer isso. Os dois iam comentar um acon‑
lia, justo aqueles que teriam a obrigação de protegê ‑la e não de humilhá ‑la.
Camila estava em estado de choque. Jorge não percebia direito o que estava fazendo.
Afinal, em sua cabeça, estava apenas tirando um sarro. De algum modo, Márcia sabia e,
embora não assumisse para si mesma, secreta‑
– O Antônio disse que se espantou ao ver sua foto. Ele comentou que você estava... como
posso dizer... acabada! – disse o irmão.
– Acho que ele deu graças a Deus por não ter casado com você!
E a gargalhada continuou. A verdade é que Jorge, por ser o preferido da mãe, de algum
modo, via ‑se obrigado a compactuar com ela nessa trama per‑
versa; afinal, como filho de uma mãe tão abusadora, ele jamais ousaria ser diferente
disso, pois estaria pondo em risco o seu lugar e o amor oferecido pela mãe, que vinha
subliminarmente condicionado, entre outras coisas, a esse tipo de postura perante a irmã.
No fundo do inconsciente, sabia que mesmo o seu lugar de recebimento afetivo era frágil.
Na trama familiar não era permitido ver nem a irmã de outra maneira, nem a si mesmo,
sob o risco da perda do afeto, abandono e descaso da mãe. Márcia, por sua vez, durante
toda a vida havia presenciado inúmeras situações familiares que a fizeram acreditar que,
quando criança, fora extremamente boazinha para os seus pais; ela não podia dar
problema para nenhum deles porque ambos eram muito ocupados em seus trabalhos, pois
o dinheiro sempre era pouco para a sobrevivência de todos.
Dessa maneira, em sua história de vida, Márcia jamais lidara com suas reais carências e
sentimentos. Uma dinâmica repleta de ressentimentos velados.
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4. Camila não parou para pensar – Foi algo mais forte que ela Jogou o prato no chão e
avançou contra o irmão. Era apenas uma
ameaça para que ele parasse com aquilo. Mas a força com que jogou o prato foi maior do
que ela previra...
A mãe parou de rir no momento em que foi atingida por um estilhaço do prato quebrado
que voou sobre ela.
Quando deu por si, Camila viu que a mãe havia sido ferida.
O estilhaço havia feito um corte no braço de Márcia, que, rapidamente, simulou uma
tontura e caiu no chão.
– O que foi que você fez? – continuava Jorge – Você é louca! Você é louca! – gritava ele,
enquanto tentava segurar a mãe.
A essa altura, Camila não percebia mais nada. Tremia dos pés até à cabeça. Aos poucos,
Márcia mostrou que estava se recuperando do susto.
Sentia prazer e dor ao mesmo tempo. Sabia o quanto a filha se martirizaria por ter
causado mal à própria mãe e ela não perderia a oportunidade de lhe infligir mais culpa,
até mesmo, aproveitando a deixa para convencê ‑la de que ela nunca levava na
brincadeira os comentários que todos faziam sobre ela. Uma estratégia supereficiente que
conseguia fazer com que Camila duvi‑
Não fora nada grave. Camila e Jorge a levaram para o hospital. Ninguém sabia como
explicar direito o que tinha acontecido, mas Márcia tomou a frente e, com voz segura e
firme, disse que tudo não havia passado de um “acidente”.
Camila era a que menos falava. Estava muda e envergonhada. Jorge queria dizer a todos
o que havia acontecido. A irmã havia se descontrolado a ponto de atirar o que tinha nas
mãos no chão. Márcia, em um dos pou‑
cos momentos em que olhara feio para o filho, impediu ‑o de divulgar o que havia
ocorrido dentro das quatro paredes de sua casa. O intuito não era proteger Camila, mas
sim não mostrar algo que não fosse bonito a respeito de sua família para o mundo
exterior.
O médico estranhou a resposta e a expressão dos filhos. Tinha alguma coisa errada ali.
Porém, como a própria mãe tinha dito que havia sido um acidente, ele resolveu não
aumentar a questão.
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Além do que a mãe, acidentada (ou não), era muito simpática. Respon‑
dia aos seus cuidados de forma submissa e sempre com sorriso sincero, agradecendo pelo
curativo.
Ao voltar para casa, Camila trancou ‑se no quarto e não foi trabalhar no dia seguinte. O
filho fez questão de não se afastar da mãe, cuidando dela como se fosse uma criança
frágil. Ele também não foi trabalhar no dia seguinte, mas, no seu caso, não pelo choque e
sim porque seria uma exce‑
– Minha mãe levou uma facada! – Embora fosse mentira, usou esse escandaloso
argumento para causar impacto em seu chefe.
Camila ouvia tudo de seu quarto. Não sabia o que pensar, mas tinha certeza de que,
embora não tivesse feito nada de tão grave, havia se tornado uma pessoa horrível ao
perder o controle. Em seu íntimo, só se fortificava numa certeza: precisava urgentemente
sair daquela casa ou uma tragédia maior acabaria ocorrendo.
Com certo alívio, logo após essa conclusão, imediatamente fez sua mala e ligou para uma
amiga. Perguntou se poderia passar a noite na casa dela.
“Sem problemas”, disse a amiga, um pouco relutante. Durante o dia ela pro‑
curaria um lugar para morar. A única certeza que tinha naquele momento é que poderia
ser qualquer lugar, desde que fosse bem longe da mãe e do irmão. Ainda não sabia como
viveria, mas o mal ‑estar e a culpa por ter per‑
Logo que tomou a decisão, ficou assustada. Onde moraria, seu salário a sustentaria de
modo independente? Aos poucos, imaginou a vida longe da mãe e, apesar da culpa que
sentia, vislumbrou que poderia ser maravilhoso estar sozinha e ser dona do próprio nariz.
Ninguém mais pegaria em seu pé.
Teria seus próprios horários e, principalmente, seus atos não estariam mais sob o olhar
crítico de Márcia. Na verdade, perguntou ‑se por que não tinha feito isso antes, e o que
era medo no começo tornou ‑se uma sensação de poder e liberdade.
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Esperou que o irmão partisse. Não demorou muito, apenas o tempo de ele falar com o
chefe, logo após o almoço foi embora, ainda fingindo ‑se extremamente preocupado com
a mãe.
Alguns momentos depois, Camila saiu do quarto com a mala. Márcia estava deitada no
próprio quarto; Camila planejou sair e, depois, mais tarde, falaria com a mãe. E quando
soubesse por que tinha perdido a razão daquele jeito, por mais difícil que fosse, pediria
desculpas.
“Onde estava com a cabeça para fazer isso? Só porque eles estavam rindo de mim? Que
mal tem eles falarem do meu ex ‑namorado? Isso não justifica minhas ações”, pensou ela.
Estava no corredor pronta para abrir a porta e ir embora, perdida em seus pensamentos,
quando ouviu a voz da mãe às suas costas:
Camila segurava a mala. Até aquele momento a mãe não tinha dito nada diretamente a
ela. Fora uma surpresa quando Márcia escondera do médico o que havia acontecido.
Não sabia por que ela havia feito aquilo. A mãe sempre demonstrava um ódio imenso
quando ela fazia algo supostamente errado. Pensara que aquela situação seria um prato
cheio para que ela a acusasse de agredi ‑la na frente de todos.
– Sei...! – Márcia viu que a filha chorava, parecia estar frágil, mas aquela decisão de ir
embora a pegou de surpresa. Tinha ‑a subestimado. Jamais ima‑
ginara que teria coragem para partir ou fugir. Não podia permitir que isso acontecesse,
sua ira em relação à filha ainda era muito intensa e, se acaso ela saísse de casa, não
haveria espaço para desferir toda essa fúria sobre ela.
Aquilo não podia acontecer. Pensou rapidamente na melhor forma de reverter a situação.
Se agredisse a filha de imediato, dizendo que aquilo havia sido um ato de violência, faria
com que a sensação de culpa fosse enorme e a dor reforçaria sua decisão de partir.
Porém, se implorasse para que ficasse dizendo que a amava, provavelmente soaria falso e
Camila do mesmo modo partiria. Tinha que ser rápida e esperta para adiar a situação.
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Do ponto de vista da filha, ela estava certa. Tinha que pensar em outra estratégia.
Num lampejo, Márcia percebeu que Camila estava começando a ficar lúcida sobre o que
teria acontecido durante toda a sua vida. Naquele momen to também se assustou com a
breve visão que teve de si mesma, porque nem ela tinha noção clara sobre as condutas
abusivas que adotava em relação à filha. Camila, por sua vez, para ganhar a almejada
liberdade, usava a des‑
culpa de que tinha receio de se descontrolar novamente, podendo até ferir alguém. Era
uma batalha pela sobrevivência psíquica da vida de cada uma.
A partir daquele momento de lucidez, de algum modo, Márcia soube que seria uma luta
árdua para manter Camila na posição emocional anterior.
– Eu acho que você está certa. – Precisava dar a falsa sensação de segu‑
A filha mostrou ‑se triste ao ver que a mãe queria sua saída, mas por outro lado estava
sendo surpreendida pelo esboço de uma nova sensação querendo se inaugurar: a de bem
‑estar.
– Mas é que...
– É que dói tanto! – E Márcia, curvou ‑se fazendo uma careta de dor.
– O que foi?
A dor da culpa atingiu Camila em cheio. Largou a mala e aproximou ‑se da mãe. Tinha
sido a responsável por aquela dor. Naquele momento, esque ‑
ceu ‑se por completo das sensações que estavam vindo, como também de que fora
provocada. Esqueceu ‑se de que a liberdade estava próxima. A sensação 122
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era de que estava acordando de um sonho bom e que a realidade a estava chamando: era
sua mãe, a mulher que lhe dera à luz que estava sofrendo.
Precisava cuidar dela ao menos como um ato de reparação. Parecia que finalmente
Márcia acolheria o seu amor.
Ajudou ‑a a sentar ‑se no sofá. Estava inconformada consigo mesma ao pensar como
pudera ser tão fria abandonando a mãe naquele momento de fraqueza. Onde estava com a
cabeça? Ela parecia tão frágil.
dou ‑a a tirar os esparadrapos que prendiam a gaze. Isso machucou sua pele. Márcia teve
um ímpeto de mau humor para com a filha, mas dessa vez conseguiu se conter.
– Desculpe.
– Não se preocupe.
– Não. Tudo bem. Eu... eu acho que as coisas estão no banheiro. Volto já.
E a filha saiu da sala em direção ao banheiro. Márcia respirou fundo no sofá. Não
deixaria a filha partir assim. Embora agindo de modo semicons‑
riso. Em sua profunda carência de mãe, Camila retribuiu o sorriso e por um momento
esqueceu ‑se de tudo o que havia acontecido. Sentiu ‑se útil e próxima à mãe como nunca
havia estado. Culpou ‑se por ter visto a mãe de modo tão negativo e, de repente, todo o
ocorrido perdeu o sentido. Na verdade, parecia mais sonho que realidade.
Márcia sorria em meio a um ar de cansaço. Ao final da limpeza, pediu para a filha ligar a
televisão. Perguntou se poderia ficar por alguns momentos junto com ela no sofá.
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– Claro – disse Camila. E então as duas ficaram próximas, no sofá, vendo televisão em
silêncio.
Márcia estava satisfeita, pois conservara a filha ao seu lado, e Camila estava feliz por
estar próxima da mãe. Será que o acidente servira para final‑
mente unir as duas? Daria tempo ao tempo e quem sabe as duas poderiam conviver em
paz? Quem sabe...
lável de ir embora daquela casa. Era movida por algo que parecia ser um grito silencioso
de sobrevivência, um pedido de libertação. Não sabia ao certo o que estava acontecendo,
mas parecia que, depois do último episó‑
tão de elogiar Camila durante o encontro. Falou como a filha estava sempre presente,
cuidando dela, fazendo questão de frisar que havia sido um acidente.
Aos poucos, Camila começava a relaxar novamente, sentindo ‑se bem na própria casa.
Claro que a incomodavam um pouco as constantes neces‑
sidades da mãe. Mas satisfazê ‑las fez com que ela não mais se lembrasse das suas
próprias.
Márcia tinha em mente o quanto naquele momento ela precisava ser agradável com a
filha para que esta mudasse com convicção qualquer per‑
cepção ou sentimento negativo em relação a ela. Mas definitivamente essa postura não
era da sua natureza. Cansava ‑a ter que sorrir constantemente a cada afeto demonstrado
pela filha. Embora mantivesse a paciência, sabia que era questão de tempo para voltar a
ser quem era. Sabia que tinha poder sobre a filha; bastava, por exemplo, olhar a janela e
arquear os ombros que a filha já perguntava:
– Frio?
E corria para fechá ‑la. Ao satisfazer a mãe, Camila sentia que poderia se curar de sua
grande carência afetiva. Inconscientemente, imaginava que a boa mãe sempre havia
existido. Márcia, por sua vez, em seu jogo sedutor, 124
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sempre agradecia à filha com um breve sorriso, esboçando algum afeto ao mesmo tempo
que emanava a necessidade de ser cuidada. De algum modo, sabia que tinha poder sobre
a filha, sabia o quanto Camila necessitava de sua aprovação. Ainda com o objetivo de
fazer de tudo que estivesse a seu alcance para manter a filha sob suas asas, chegou ao
ponto de se submeter a assistir com ela a filmes que jamais veria sozinha. Mas Márcia
era vinga‑
tiva e detestava fazer coisas por obrigação, mesmo tendo um objetivo maior em jogo. No
fundo, estava se corroendo por dentro e sabia que, mais dia, menos dia, sua ira afloraria.
Percebia como Camila era imatura emocio‑
Como uma sequestrada que ganha banho de sol de seu sequestrador, Camila imaginava
que, só por ter recebido algumas semanas de afago, tudo estaria bem; com o passar dos
dias, sentia um estranho carinho por seu algoz.
Até a relação com o irmão estava diferente. Márcia avisou ao filho que Camila precisava
de um tempo para acalmar seus ânimos e pediu para Jorge pegar leve com ela. Jorge,
mesmo sem entender, achou melhor obedecer à mãe. Não fazia a menor ideia de que essa
atitude seria mais uma de suas estratégias de poder. Chegou a cogitar se a mãe havia
ficado mais sensível por causa do acidente, mas na verdade tanto fazia para ele.
Com o tempo, o braço de Márcia já estava curado e ela sentia falta de ação. Como seu
aniversário estava próximo, resolveu dar um presente a si mesma. Sabia que Camila
estava preparando ‑lhe uma festa surpresa. Um dia, porém, Jorge ligou convidando ‑a
para comemorar o dia do aniversário dela em outro local e, sem pensar em mais nada, ela
aceitou.
Márcia fingia não perceber os preparativos para sua festa surpresa. Não seria nada fora
do comum. Alguns poucos amigos e familiares, um bolo, salgados e doces. Ela achava
aquilo tudo desnecessário e brega, mas a filha parecia estar muito feliz em poder
organizar aquela surpresa. Quando estava sozinha em casa, entrou no quarto de Camila,
viu a lista de convidados e copiou os nomes.
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Sabia que, no sábado de seu aniversário, Camila pediria a Jorge que levasse a mãe para
algum lugar por algum tempo, enquanto os convidados chegariam. Provavelmente, esse
seria o momento em que ela arrumaria a casa para a festa.
Márcia estava achando a atitude da filha hilária e, como sempre, sem empatia alguma,
chegava a achar engraçadas as tentativas inglórias de Camila fazer tudo escondido.
usurpadores de alma, e, por mais difícil que possa parecer, eles estão muito mais entre
nós do que podemos supor. Sua marca
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Num rompante, teve uma ideia que julgou poder ser mais engraçada ainda que a da filha.
Igualmente, resolveu fazer sua própria festa de ani‑
versário escondida. Ficava em êxtase, pensando na execução dessa ideia e mais ainda ao
imaginar a cara de surpresa da filha ao ver que também seria pega desavisada. Seu plano
seria executado no momento apropriado.
No sábado, Camila estava exultante, porém, discreta, para a mãe não perceber sua
excitação. Márcia observava tudo, mas disfarçava como se não estivesse acontecendo
nada. Na hora combinada, Jorge chegou e con‑
Camila nem bem esperou os dois saírem para ajeitar a casa e esperar os convidados.
– Nada. Agora pare o carro e ligue para os convidados avisando sobre o novo endereço e
horário da festa. Acho melhor Camila não ir mesmo à festa, vai que ela apronta mais uma
de suas explosões.
Assim feito, correram para a casa de Jorge para que ela pudesse se tro‑
Jorge deu uma desculpa esfarrapada aos convidados, dizendo que a irmã estava doente e
não poderia vir.
Ao perceber que algo de errado poderia ter acontecido e na ausência de respostas aos
seus telefonemas para o irmão, Camila começou a ligar 127
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vam, perplexa e com vergonha de revelar o que de verdade havia ocorrido, em estado de
choque, Camila emudeceu.
– Coitadinha, Camila está tão doente. Acho que está em crise, num momento difícil da
vida. Nem falamos muito da festa para ela, para não se sentir culpada por não vir. Por
isso mesmo não podemos nos demorar muito no jantar.
fonema de Camila.
– O que aconteceu? Por qual motivo vocês fizeram isso? Por que não me avisaram? –
Sua voz beirava o desespero.
– O que foi?
Você andava tão quieta... Achei que você precisava do seu espaço e preferi te poupar.
Afinal de contas, você tem vindo de um momento emocional‑
mente delicado, desde o evento do prato. Você sabe o quanto tenho me esforçado para
que você melhore suas condições emocionais.
çou a duvidar de si mesma, dos seus sentimentos iniciais, bem como de todo o ocorrido.
Será que sua mãe estaria tentando poupá ‑la de verdade?
Seria isso amor? Estava confusa. Seus sentimentos variavam entre raiva, culpa, tristeza
profunda. Até que por fim um sono incomensurável tomou conta dela. Era melhor dormir
e esquecer de mais um episódio difícil de entender. Sabia que, se fosse argumentar ainda
mais com a mãe ou o irmão, 128
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certamente eles a fariam sentir ‑se a pior das pessoas, alguém incompreen‑
ridas demonstravam exatamente o oposto, ou seja, desamor, ou algo pior ainda e que ela
nem saberia nomear. Por outro lado, contudo, as falas da mãe, ainda com a ajuda do
irmão, ecoavam em sua mente e a faziam perceber a cena de modo totalmente inverso.
Era em ocasiões desse tipo que tudo perdia o sentido e Camila, paralisada, não tinha
vontade de fazer mais nada na vida.
Passaram ‑se alguns segundos e, nesse vaivém dramático de percepção, Camila foi
acometida por uma fúria avassaladora. Isso sempre vinha nos momentos em que percebia
as cenas de modo mais lúcido. Novamente deci‑
diu ligar para a mãe, mas desta vez ela não atendeu. Sabia que era um movi‑
mento perigoso, se acaso a mãe atendesse ficaria altamente ofendida com suas
reclamações. Nessas horas, Camila tinha a exata noção do quanto Már‑
Durante a festa, o pensamento de Márcia estava em outro lugar. Podia ver a cena
claramente como se estivesse presente: Camila desligando o tele‑
fone, olhando em volta, observando a decoração que havia feito para ela.
De fato, não poderia estar em casa, pois a filha voltaria sua fúria contra ela e Jorge. Para
que os ânimos esfriassem, decidiu ir direto da festa passar 129
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o fim de semana na casa de amigos. Além do mais, sabia que não teria a menor paciência
para ouvir e ver os lamentos da filha, não merecia passar por isso justo no dia de seu
aniversário.
Enquanto isso, em casa, após rememorar cada detalhe ocorrido, Camila tomou a decisão
de ir embora. Ao se lembrar das últimas semanas em que tudo parecia estar calmo e após
revisitar inúmeras cenas de sua vida, recor ‑
dou ‑se de como aquele movimento era cíclico. Sempre que era desestabili‑
zada pelas atitudes da mãe, um período de silêncio e de paz se instalava na relação até
que Camila pudesse se sentir novamente relaxada, imaginando ser amada. Perguntava ‑se
se a mãe estaria fingindo, e se assim fosse? Seria muita loucura... Qual motivo a faria
agir dessa maneira? Por mais difícil que pudesse ser, descobriria que sua percepção era
verdadeira.
‑feira. Camila ainda desejava falar com a mãe, queria alguma explicação e Márcia teria o
fim de semana inteiro para pensar no que faria.
Márcia voltou de seu fim de semana tranquila e bem ‑disposta. Camila estava em
silêncio. Percebendo o clima da filha, pediu desculpas pelo ocor‑
rido, mas Camila queria saber o que tinha acontecido em detalhes. Márcia
desconversava, mudando de assunto como se aquilo não fosse importante.
Se a filha insistia, fazia questão de aumentar o tom de voz, mostrando ‑se levemente
ofendida com a insistência. Submissa, Camila calava ‑se.
A impossibilidade de ter uma conversa e resolver as coisas fez com que ela aos poucos
fosse novamente adiando sua partida. Os dias foram voltando ao normal, mas, desta vez,
Márcia notou que Camila estava dife‑
rente, desmotivada, beirando uma depressão. Deixou de esbravejar e agora parecia estar
indiferente a tudo, sem forças para discutir.
Márcia já estava incomodada com a apatia da filha. Nada do que sempre fazia surtia
efeito e aquilo também não era agradável. Em seu funcionamento, 130
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Cinco mulheres estavam na sala tomando chá e falando da vida. Camila estava junto,
mas, como sempre, isolada e apática. De repente, o interfone tocou. Márcia atendeu. Era
Fernanda. Antes de pedir para que subisse, Márcia disse alto (mais alto que pretendia,
mas não pôde se controlar):
Márcia fingiu ‑se surpresa e olhou para as colegas, dizendo ao interfone antes de
responder para Camila:
sar ao menos indignação. Sua atitude mostrava que ainda lhe restava alguma força.
Perante a pergunta da mãe, Camila começou a esboçar uma resposta:
– Mãe. Ela... – Não encontrou palavras para dizer justamente o que queria dizer, não
queria se encontrar com a mulher que estava vivendo com aquele que fora sua paixão.
Perante o olhar atento de suas amigas, Márcia se fez de vítima como se tivesse cometido
uma grande gafe!
– Eu encontrei a Fernanda por acaso e como não nos víamos há um tempo resolvi
convidá ‑la.
– Não pensei que você ainda estaria magoada por tudo o que aconteceu...
Camila, pela primeira vez depois do imprevisto, notou que todos à sua volta olhavam
para ela. Sentiu vergonha. Tinha que dizer alguma coisa, afinal, 131
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a bola estava com ela. Se protestasse contra aquele ato, confessaria aberta‑
mente que ainda sentia alguma coisa pelo ex ‑namorado. Se dissesse que não havia
problema, teria que encará ‑la e ouvir comentários do casamento que poderia ter sido
dela. Como a mãe podia tê ‑la colocado naquela situação tão constrangedora? Engoliu a
seco e fez uma opção:
quanto Camila aguardava a visita não desejada. Fernanda era muito simpá‑
tica e cumprimentou a todas com sincero prazer. Deteve ‑se um instante a mais com
Camila, a quem procurou demonstrar simpatia, sabendo que um caldeirão fervia dentro
dela. Márcia observava discretamente cada detalhe.
mente no ar. Vez ou outra Márcia pegava Camila com o olhar perdido em Fernanda. O
que estaria pensando a filha? “Ela parece ser tão feliz. Eu é que deveria estar em seu
lugar.” Depois observava que Camila mudava de expressão. Devia estar pensando que
era uma bobagem. Se os dois não esta‑
vam juntos não era culpa de Fernanda. Na verdade, a culpa era de...
E então olhava de repente para a mãe. Márcia precisava, sutilmente, introduzir o tema do
casamento de Fernanda para ver a reação de Camila.
– Claro que sim – disse a amiga de Márcia. – Fernanda, por exemplo, parece estar muito
bem.
Fernanda não percebeu que estava fazendo parte do jogo de Márcia, aliás ninguém
percebeu, apenas Camila.
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Carinho e atenção. Aquilo era tudo de que Camila precisava. E como estava longe de
tudo aquilo...
Márcia percebia que a filha estava passando do limite do incômodo e que em breve se
retiraria, mas a todo custo queria mantê ‑la ali ouvindo.
Mas foi há muito tempo. Ainda bem que não deu certo, não é, Fernanda?
Pega de surpresa, Camila sorria nervosamente, enquanto sua mente parecia estar a
duzentos por hora. Como queria sair dali, mas discretamente.
Não queria dar bandeira de que estava incomodada. Ao mesmo tempo, pare‑
cia que algo dentro dela explodiria a qualquer momento. Seu lado racional tentava contê
‑la, mas, se não fizesse alguma coisa, algo bem desagradável aconteceria. Tinha tentado
escapar, mas a mãe a impedira. De novo a mãe.
Antecipou a cena e viu exatamente isto: ela, passando desesperada por cima de todos e
grudando as mãos no pescoço daquele ser. Nem precisaria usar toda a sua força, um
quarto do que sofrera todos esses anos seria o sufi‑
ciente para calar a voz daquela pessoa que sempre lhe fazia tão mal.
“Que mulher”, pensava Camila. “Que frieza, que esperteza!” A emoção tomou conta
dela. Não conseguia mais pensar. Seu íntimo estava vindo à tona com toda a força e ela
não conseguia e não queria mais se segurar. Sabia que tudo aquilo era um plano armado
pela mãe.
No entanto, algo estranho se dava em sua mente. Sua emoção queria fazê ‑la explodir,
cometer algum ato insano: esganar a própria mãe ou mesmo 133
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deixar tudo sair de dentro dela com um imenso grito. A lembrança do aci‑
dente passado servira como um freio de mão, mas ao mesmo tempo mos‑
trara que era exatamente aquilo que a mãe queria que ela fizesse. Daquele momento em
diante, não mais importava a causa e nem o porquê.
E, de repente, a constatação veio como uma bomba: Márcia não tinha raiva, apenas
queria vê ‑la sofrer. Era simplesmente isso. Camila percebeu naquele momento que não
valia a pena descobrir por que a mãe nutria aquela vontade. Ela simplesmente a tinha.
A pergunta era dirigida a Márcia, que reagiu como se não fosse com ela.
– Como?
Camila já não olhava para as pessoas na sala, mas diretamente para Márcia. Esta, por sua
vez, sentiu que tinha ultrapassado o limite. Era jus‑
tamente esse o seu objetivo, mas, pela primeira vez, teve medo da filha.
Camila continuou:
Márcia não esperava ver a filha destemida daquele modo, seu olhar a assustava, parecia
que algo estava errado.
– Não importa. Você armou tudo isso. – Seu tom era menos uma acusa‑
ção e mais uma constatação. Camila não queria convencer a mãe ou as outras pessoas,
estava apenas tomando a sua próxima decisão: nada importa. Olhou para as pessoas à sua
volta: vocês não importam!
E saiu da sala para seu quarto. Tirou a mala do guarda ‑roupa e começou a colocar suas
coisas nela. Quando havia feito a mala da primeira vez, tivera uma terrível sensação de
culpa. Não agora. Uma profunda sensação de ine‑
vitabilidade tomava conta dela. “Estou sendo torturada. Tenho que fugir.”
Da outra vez, colocou várias lembranças, papéis, fotos, coisas que a ligavam
sentimentalmente ao seu passado. Não naquele momento. Quando se foge de um
cativeiro, de um aprisionamento, carrega ‑se apenas o necessário. Por isso, estava
levando o essencial.
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Márcia estava esperando para ver como ela sairia do quarto. As coisas não caminhavam
como de costume. Tentava se desculpar com as amigas, mas sua preocupação estava na
filha. De repente, todo o poder que exercia sobre ela pareceu simplesmente desaparecer.
Sentia ‑se estranha. Embora não se desse conta, durante toda uma vida tecera uma teia
aprisionando a filha, porém, agora percebia quão frágil eram ela e a teia. Jamais havia
imaginado que algo dessa ordem pudesse de verdade acontecer e agora estava perto de
passar por uma grande frustração. Será que existia algum meio de detê ‑la?
Camila saiu do quarto. Estava com a mala pronta. “Ela vai partir?”, pen‑
sou. A filha dirigiu ‑se para a porta de saída. Aquela ação pegou Márcia de surpresa.
Mesmo assim, ainda achou que ela voltaria para falar alguma coisa (um impropério ou
um pedido de desculpas), ou ficaria trancada no quarto, chorando. Mas pelo jeito estava
decidida a ir embora.
Márcia levantou ‑se deixando as visitas na sala, sem pedir licença, e alcançou a filha no
corredor, colocando a mão em seu ombro.
Camila já havia escutado aquelas palavras antes. Lembrou ‑se como aquela voz tinha
poder sobre ela. Mas agora sabia que o poder estava com ela e não mais com a mãe.
Camila sorriu, olhou fundo em seus olhos.
Márcia espantou ‑se com a segurança da filha, mas não desistiria facil‑
Camila pensou se valeria a pena responder alguma coisa. Não tinha o menor respeito por
aquela pessoa que, por tanto tempo, havia abusado moralmente dela. Não lhe devia nada.
Não queria lhe dar nem mais uma gota de seu ser. Não queria nem mesmo demonstrar
que não havia mais correntes morais e emocionais limitando ‑a, prendendo ‑a. Olhou
primeiro para a mão da mãe em seu ombro e disse com firmeza:
Por um segundo, Márcia tremeu. Aquela não era sua filha. Não era a pessoa que dependia
dela, que baseava todos os seus atos e pensamentos na esperança da sua aprovação. Ela
constatou, através daquele olhar, que 135
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Camila estava livre de seus domínios. Sentiu a frustração de um animal que perde a
presa. Como se não mais tivesse o controle dos próprios atos, tirou vagarosamente a mão
do ombro de Camila e afastou ‑se.
Camila, por sua vez, virou ‑se, abriu a porta, saiu e fechou ‑a sem olhar uma única vez
para trás. Sair sem nem sequer dizer uma palavra foi o golpe de misericórdia. Márcia
queria uma explosão, um grito, um olhar de ódio, mas ganhou a pior de todas as ofensas
que uma vítima pode oferecer ao torturador: a indiferença.
Quase como sonâmbula, Márcia voltou para a sala, pois já não tinha para onde ir. Foi à
janela e de lá pôde ver a filha chamando um táxi e par‑
“Fiquem mais um pouco”. Sabia em seu íntimo que não adiantava mais bancar a vítima
da crueldade de sua filha, que tinha acabado de abandonar a mãe. Afinal, sabia que
Camila já não se importava com o que ela fazia ou deixava de fazer.
Sentiu um vazio imenso ao ver a filha partir daquela maneira. Não que estivesse
arrependida, apenas culpava ‑se por não ter sido mais esperta, por ter subestimado
Camila, e, por fim, como era esperado, colocou ‑se na posi‑
O que faria de sua vida a partir de agora? Onde encontraria alguém que lhe oferecesse o
mesmo padrão de relacionamento? Precisava daquilo para sobreviver.
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Com os pensamentos perdidos, percebeu, um longo momento depois, que não estava
sozinha. Aquela voz familiar a tinha despertado.
– Dona Márcia. Faz um tempão que a senhora está aí na janela, estou ficando
preocupada.
Com carinho, Fernanda a conduziu até o sofá, como se estivesse lidando com alguém
muito especial. E Márcia deixou ‑se levar.
Márcia olhou nos olhos de Fernanda. Ela tinha um sorriso sincero e triste. Quase carente.
– Não precisa, minha filha. Você pode ficar comigo alguns instantes?
– Muito obrigada – disse sem jeito, desviando o olhar em meio a um sorriso tímido.
Márcia também sorriu. Fernanda parecia ser uma mulher muito gen‑
til, porém era nítida uma certa insegurança em seu sorriso. Tinha um olhar bondoso e
preocupado. Era claro que tinha certa carência afetiva e imensa vontade de agradar.
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Por sua vez, a Camila pós ‑libertação começou uma nova vida. Mas, teve que reaprender,
ou talvez aprender pela primeira vez, a se conhecer de modo bastante distinto do que lhe
haviam ensinado sobre si mesma.
Passou por uma jornada de autoconhecimento que se encaminhou para muito além de
tudo o que pudesse ter anteriormente imaginado.
Apesar de feliz por se sentir dona de si mesma, teve de lidar com inú‑
meros conflitos e sentimentos perturbadores que culminaram na busca por terapia. Era
necessário para que pudesse se reinventar. Enfim, depois de algum tempo, reconheceu e
se curou dos efeitos nocivos do Narcisismo Destrutivo familiar de que foi vítima.
Este é um tema de difícil detecção, no entanto, mais comum do que se pode imaginar.
Em geral, nós, as vítimas de pais com Narcisismo Destru‑
tivo, passamos a funcionar na vida adulta de modo bastante semelhante àquele de quando
éramos reféns. Nossas atitudes são o resultado de uma série de abusos emocionais que
nos privaram da possibilidade de termos uma visão clara sobre nós mesmos, sobre a
legitimidade de nossos desejos e, portanto, sobre nossa autonomia. Como consequência,
a visão de reali‑
dade costuma ser de desafio, pois sentimos que as pessoas em geral podem estar
novamente querendo usurpar nossas verdades interiores (como nas incontáveis vezes em
que isso já nos aconteceu...), ou querendo retirar de campo nossos desejos e sentimentos,
como se eles não fossem tão impor‑
tantes assim, e, por fim, corremos o risco de, repetidamente, nos encon‑
fazê ‑lo em suas demandas, ora atuamos com excesso de reatividade pelo receio de
sermos “engolido” por possíveis demandas e manipulações. O que se passa lá no fundo,
porém, é que temos muito receio de sermos rejeita‑
dos, e, por fim, perdermos o amor de quem nos oferece, e, por isso mesmo, 138
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Se o todo que relatei lhe fizer sentido e se você quiser conferir mais, vendo se pode ter
sequelas por ter passado por esse tipo de experiência de vida, veja se os tópicos abaixo se
relacionam com o modo como você funciona:
tos afetivos, estes sempre são confusos, causando ‑lhe angústias? Cos‑
tuma se deprimir ao entrar em contato com um vazio interior e com a falta de propósito
em sua vida? Vira e mexe se dá conta de que está se autodepreciando?
Se acaso se identificar com alguns itens dessa lista, pode ser que seja uma vítima de pais
que tiveram falta de conexão emocional com você e que sempre exigiram
comportamentos como se tivesse que ter uma espécie de devoção cega a eles.
Provavelmente, também sempre destruíram tudo de bom em que você poderia brilhar,
pois, em seus adoecimentos, jamais suportariam ver alguém brilhar mais que eles
próprios, e, desse modo, usa‑
ram e abusaram da autoridade que tinham sobre você, fazendo de tudo para 139
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desqualificá ‑lo, visto que, no imaginário deles, apenas eles são os que podem brilhar. Por
mais difícil que seja de conceber, esse tipo de pais incessante‑
Mais temas que podem ajudá -lo a reconhecer se esse for seu caso Pais com Narcisismo
Destrutivo jamais respondem às suas necessida‑
des ou às suas preocupações reais. Funcionam com total indiferença afetiva, embora
preguem o oposto em seus discursos, já que não suportam serem malvistos. Atente que as
ações são o que conta como verdade e não o que é dito. Nessa trama, absolutamente
todos carecem de empatia e as emoções, quando aparecem, fazem parte de articulação
teatral.
tos de frustração, raiva, culpa e incapacidade. Por mais que possam fazer pelos pais, estes
jamais se mostrarão satisfeitos e, de algum modo, sempre vão inferir algum tipo de
crítica desvalorizadora.
Se acaso este relato o tocar, comece a buscar significados diferentes para sua vida, assim
como eu fiz.
Como foi definido no início, este tema é de difícil detecção, porém, muito mais comum
do que se supõe. Se necessário, busque ajuda tera‑
pêutica. Lembre ‑se de que sua vida é seu maior valor, portanto, ame ‑se acima de tudo e
faça absolutamente tudo que estiver ao seu alcance para se autossuperar.
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Momento de reflexão
mas que a mãe narcisista pode sofrer. Embora seus discursos, geralmente narcísicos,
digam o oposto de tudo que possa denegrir a imagem delas como mães perfeitas e
exemplares, é em suas atitudes para com o próximo, e principalmente para com os
próprios filhos, que esse montante emocional é drenado. Nesse pacote fica claro que,
como no conto da Branca de Neve, absolutamente ninguém pode ser mais bela que ela,
mais especial, mais inteligente ou o que seja que a possa ofuscar. Nesse sentido, a ideia
de que os filhos, mais especificamente a filha mulher possa vir a ocupar o seu lugar na
sucessão de mulheres da família, fica praticamente impossível de se concretizar. A filha
por sua vez, enquanto não acordar, ficará sem vez para efetivamente existir. Assim, a
mãe que deveria proteger e passar com orgulho o seu bastão para a filha, representante da
nova geração, não o faz 141
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e, pior, a encara como uma eterna concorrente e rival. Joga sujo porque usa a bandeira da
boa mãe, da que cria os filhos com amor etc.
Mães narcísicas perversas se autointitulam como boas e amorosas, mas suas reais
atitudes, que na maioria das vezes são percebidas somente nos bastidores, são as que vão
revelá ‑las de fato, que, com toda a certeza, estão distante do que pregam, até
perversamente, confundindo a sanidade e a percepção das próprias filhas. São mães
funcionais, ou seja, fazem o serviço que mecanicamente sabem que precisam fazer.
Nesse pacote, porém, agem sem qualquer empatia e sem alma em tudo o que seria afeto.
Suas filhas jamais se sentem ouvidas porque, de verdade, nunca o foram.
Como resultado de vida, tais filhas de mães narcísicas malignas podem passar uma vida
inteira tentando validar o que sentem, já que nunca tive‑
ras vezes, terão que se deparar com sentimentos de vazio interior e medo de relações
mais íntimas por conta da rejeição sofrida.
A sensação emocional passada por essas mães é de que o que se faz nunca está bom e
poderia ser melhor, e que elas, as mães, certamente fariam ou fazem melhor. Se acaso a
filha estiver com alguma dor ou dificuldade, ou a ignoram por completo, ou, o que é mais
comum, desqualificam o peso desse sofrimento, contando que o delas sempre é ou foi
maior.
Filhas de mães narcísicas sabem da regra de nunca poderem ter acesso emocional à mãe,
um sofrimento profundo e silencioso. Com isso, imagi‑
nem o estado de abuso emocional que podem viver. Não existem frontei‑
ras pessoais. Toda individualidade é simplesmente negada porque “não se existe” quando
se tem uma mãe com um adoecimento dessa ordem. Existe um grito surdo. As filhas não
são atendidas em suas necessidades emocio‑
nais, mas isso jamais pode ser revelado por conta do castigo ou da ofensa que esse fato
representaria ao narcisismo da mãe. Se fosse reclamar, a filha já seria nomeada como
agressiva ou ingrata. O pior abuso se transforma na obediência cega de tais filhas quando
são induzidas a confirmar mundo afora que está tudo bem dentro de casa. O estado de
concordância de tais filhas parece ser menos mau que a retaliação e a rejeição vindas da
mãe. A espera é a de um reconhecimento e um afeto que jamais virão. O pano de fundo
dessa 142
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trama são a rejeição e a tentativa da filha de ser amada. Muitas vivem uma vida inteira
em busca de um olhar de verdadeiro amor, até entenderem que ele nunca virá desse tipo
de mãe, mas para se liberarem e poderem ser amadas de verdade essas filhas têm de se
libertar desse drama.
berem um mínimo de afeto, mais desprezo a essa devoção elas terão. É a lei.
Por sua vez, para sua sobrevivência psíquica, a mãe narcisista per‑
versa luta, com todas as suas forças, contra tudo e todos protegendo ‑se de um possível
acesso ao seu Self verdadeiro, por medo de um suposto ata‑
que desintegrador que vem de fora. Com isso, cria máscaras e mais másca‑
ras de perfeição para proteger esse frágil Self interior. Haja terapia!
Dificilmente você verá ou ouvirá em nossos tempos artigos sobre mães e pais
abusadores, bem como sobre o significado e a extensão desse termo.
O fato é que o arquétipo da mãe ou do pai terrível não encontra espaço palpável na
atualidade do politicamente correto. Como seria possível os pais, que deveriam amar e
proteger os filhos acima de tudo, os prejudicas‑
sem? Nos subterrâneos, porém, pouquíssimo abaixo de tudo o que pode ser visível, é o
local onde se encontram as reais condições da pseudovida de inúmeros filhos que, na
maioria das vezes, confundem ‑se de modo enlou‑
quecido quando, por exemplo, os pais vivem falando que os amam, mas as suas ações
demonstram exatamente o oposto.
Outra questão relevante é que a vítima desse tipo de sequestro de alma está desde o
nascimento atada a essa trama, e sua autopercepção, por‑
tanto, pode parecer duvidosa. Isso costuma ocorrer até o momento em que encontra
dados suficientes para identificar de modo preciso o que está de fato ocorrendo.
Filhos desse tipo de criação estão desde muito cedo presos num cár‑
cere onde o algoz decide quando e como o refém sobreviverá, oferece ‑lhe comida e
condições de sobrevivência, porém, cobra, para isso, um preço 143
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tia fazem parte desse cenário. O sequestrado, desde cedo, aprende que deve se submeter
aos maus ‑tratos, aos perversos jogos de poder e de submis‑
são, porque entende que o algoz não é mau, ou não é tão mau assim, haja vista que este o
nutre de alimentos, portanto, de vida. Nessa situação, a conhecida Síndrome de
Estocolmo3, que ocorre quando se cria um vínculo afetivo com o torturador, tem espaço
fértil para o seu desenvolvimento.
sável sobre se estariam sofrendo maus ‑tratos, mesmo que velados. Um sofri‑
mento silencioso que passa por tortura psicológica, ânsia pelo amor verda‑
deiro, insegurança sobre como agir, baixa autoestima e medo da perda do alimento, do
amor.
Esses algozes são mães, pais ou pessoas que ficam no lugar de supos‑
cisistas perversos que, nesses casos, continuam “perfeitos”, com a vítima fazendo o papel
de “louca”.
3. Síndrome de Estocolmo é o estado psicológico em que uma pessoa, submetida a uma
situação de sequestro emocional, começa a se sentir afeiçoada por seu agressor.
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Absolutamente, tudo tem que passar pelo crivo perceptivo de tais abu‑
sadores. Os filhos, em vez de falarem entre si, apenas se comunicam por intermédio
desses genitores, o que confere o poder que os narcisistas tanto perseguem e com o qual
tanto se deleitam. Nas brigas em família é que a situação costuma ficar mais em
evidência. Geralmente, um dos filhos é o bom e o outro o mau, e os pais são a única fonte
de informação entre todos, o que os faz se sentirem mais e mais importantes – êxtase
máximo para esse tipo de personalidade. Fazem o intempestivo serviço de, nas brigas,
contro‑
lar o fluxo das informações, interpretando o que ouvem por meio de seus próprios
critérios. Esse truque faz as pessoas ficarem mais desequilibradas e mais dependentes dos
poderosos genitores.
Não se contesta um narcisista, não há espaço para isso. Eles sempre têm alguma desculpa
ou uma explicação fácil. Quando são confrontados, cos‑
nos; ou se vitimizam, dizendo que são pais e que querem o melhor para os filhos. Em sua
doença narcísica, porém, a falta de empatia continua impe‑
Em meio a todo esse cenário difícil de sobrevivência, é possível que você possa estar se
perguntando o quanto é viável sair bem e ileso de uma trama dessa ordem. A cura
emocional, bem como o resgate de si mesmo, começa quando se percebe que há algo de
muito errado nesse tipo de rela‑
car ajuda terapêutica. Geralmente existe toda uma vida de vício emocional que
impulsiona esse tipo de funcionamento neurológico e esse é o desafio a ser enfrentado,
além das inúmeras respostas automáticas que movem as ações em meio às crenças
negativas e infundadas que foram criadas.
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Despadronizar ‑se e resgatar ‑se descobrindo sua verdadeira natureza será o toque mágico
que fará sua existência desabrochar em sua plenitude.
Era do Narcisismo
Imagine uma civilização inteira flagrada numa única foto que, quando revelada,
mostraria infinitos selfies humanos. Sim, exatamente o que você está pensando, como se,
num dado momento, alguém resolvesse tirar uma única foto da humanidade inteira e
absolutamente todos saíssem em tais fotos como nessas que a gente tem visto por aí, as
selfies, quando a pessoa posa para si mesma ainda desejando sair bem na foto!
Estamos na Era do Narcisismo, em que todos os desejos pessoais têm urgência para
serem conquistados a qualquer preço. Existe pressa em satis‑
fazer a si mesmo e, para que isso ocorra, na maioria das vezes, o outro acaba servindo
apenas como uma ponte para que tal propósito aconteça. A tônica dessa nova era é a do
“vou me dar bem a qualquer custo”. Nesse pacote, cabem vestimentas perfeitas
adequadas às demandas dos intentos e uma cegueira crônica a qualquer coisa que possa
significar vida além disso.
feitos, bem como o sofrimento que as move para agirem de tal modo. Para que talvez
você possa se identificar nesse padrão, ou mesmo identificar pes‑
soas que o cercam, observe aqueles que são extremamente competitivos ou mesmo os
que aparentemente não competem, mas que fazem isso parecer uma espécie de diferença
especial. Observe também como na nossa socie‑
dade, por mais benevolente que a pessoa possa parecer, se acaso surgir um ego narcísico
que apenas visa se reafirmar, acaba transparecendo no meio desse ato de suposta
bondade. Fazer um serviço e deixar fluir ou mesmo estar num fluxo criativo de algo é
estar num lugar emocional bastante dife‑
tes: se num dia estão ótimos, no mesmo dia podem se encontrar no pior 146
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dos mundos. Atentem que isso de longe não se encontra no espectro da bipolaridade.
Essa situação apenas diz respeito a angústias e ansiedades importantes que ocorrem por
conta da dificuldade permanente de os nar‑
cisistas alcançarem os desejos projetados. Para eles, esses desejos jamais serão
satisfatoriamente realizados. Na super ‑recente história da era em que estamos
mergulhados, alcançar a tocha olímpica é apenas uma obra de ficção impossível de ser
alcançada, pois sempre que se está chegando perto ela reaparece, porém, um pouquinho
mais distante. Se, num dia, os nar‑
cisistas sentem que estão no topo, é porque por alguns instantes entra‑
dada e padecem.
Para evitar a queda livre da frágil imagem que têm de si mesmos, travam uma luta
inglória na qual, incessantemente, tentam se resgatar por meio de conhecidos
mecanismos de defesa que apenas visam a auto ‑osten tação, com o objetivo de
sustentarem suas frágeis construções psicológicas, conhe‑
cidas por “ego”. Por conta de todo esse sufoco, tornam ‑se estrategistas ao extremo e
acabam não chegando muito perto de nada, e, mesmo quando parecem estar mais
próximos e mais emocionais, apenas estão vivenciando uma variação deles mesmos que
faz parte de suas estratégias. Nessas oca‑
Sem saber, usam a distância emocional tanto para si mesmos como para com os outros
como precaução.
Nas relações pessoais, por serem frágeis, não suportam ver a vida proje‑
tada fora de si mesmos. Automaticamente, invejam e querem destruir. Para não correrem
nenhum risco de falência do ego, ao verem o outro existindo, mesmo que de modo
inconsciente, têm a dimensão da sua não existência e, portanto, vão querer destruir tudo o
que vai dar significado e vida ao que supostamente representa uma ameaça. Como tática,
em suas artima‑
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por qualquer motivo: por terem ficado magoados, mal ‑humo rados, irrita‑
mente detectado.
Na saúde emocional, o outro da relação, seja de que ordem for, existe, tem sentimentos,
limites e gostos pessoais, e estes, além de serem vistos, são legitimados e, como
consequência, devidamente respeitados.
dade de ajudá ‑lo a reconhecer ‑se como vítima ou como algoz. Por isso, seja o mais
claro possível nas suas respostas.
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De um lado:
3. Percebe não conseguir ser você mesmo em uma relação, como se os seus sentimentos
mais verdadeiros e sinceros estivessem aprisio‑
4. Costuma abrir mão de seus desejos e escolhas para manter a boa relação, mesmo
sabendo que o outro dá muito pouco em troca e
6. Costuma ter dificuldade para discernir se seus sentimentos sobre sua liberdade são
verossímeis ou não?
7. Sente dúvida sobre si mesmo a ponto de se sentir culpado e egoísta por questionar
determinados assuntos sobre a relação em que se encontra?
8. Sente ‑se obrigado a fazer coisas em conjunto que, pelo seu estilo de personalidade,
não gostaria de fazer nem junto nem separado?
9. Toda vez que vai tomar alguma atitude, realizar alguma ação, o outro lhe oferece
argumentações em várias direções que você acaba parali‑
10. Fica preso como se estivesse andando em círculos, repetindo ‑se nesse tipo de
situação desagradável para você?
11. Tem medo de cair em profunda depressão ou mesmo de já estar nessa situação e por
vezes sente medo de enlouquecer?
13. Sente ‑se acuado, induzido a sentimentos de inadequação e culpa quando deseja fazer
valer seus desejos e pensamentos?
14. Frequentemente nota que, toda vez que expõe sua opinião ao par‑
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Por outro:
ber gradativamente induzindo o outro a precisar de você até para tomar as mínimas
decisões?
ções verbais com a finalidade de incitar o outro a fazer exatamente o que você deseja ou
o que acha ser correto?
aura de desligamento?
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Máximas de alertamento
Os narcisistas perversos destrutivos imaginam ‑se como seres especiais, com muito mais
importância que a maioria dos mortais. Amam ‑se de modo grandioso e acabam agindo
quase que cegamente para sanarem necessida‑
des emocionais específicas, por exemplo, serem admirados mais que o nor‑
mal. Não levam ninguém em conta e apenas os seus próprios desejos é que valem. Por
mais incrível que possa parecer, pessoas com essa patologia são totalmente inconscientes
sobre o modo como funcionam, fato que também caracteriza esse tipo de adoecimento do
psiquismo.
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O narcisismo predador, quando tem origem na criação, se não for devidamente cuidado,
pode ter efeitos devastadores por toda uma vida.
Quando os filhos dessas pessoas sentem que algo vindo dos pais não está sendo
emocionalmente saudável e ousam reivindicar algo de melhor para si mesmos, são
imediatamente dissuadidos de pensarem de tal modo, com tanta veemência e inserção de
culpa, que começam a duvidar de suas próprias percepções. Aprendem a abandonar a
própria integridade pelo medo do desamparo e do desamor. Levam a vida desistindo de si
mesmos e de suas necessidades primordiais em nome de cuidar para que os pais fiquem
felizes e satisfeitos em suas infinitas demandas. Quando crescem, porém, os efeitos
negativos do narcisismo destrutivo parental revelam ‑se nas dificuldades que os filhos
passam a ter em suas relações afetivas, na satisfação para com a vida, na dúvida sobre o
que é lesivo, na possibili‑
dade de, como consequência, atrair mais relacionamentos abusivos, sem conseguirem
discernir e confiar no que sentem. Tudo isso ainda em meio à pouquíssima autoestima.
1. Seus pais costumavam mostrar ‑se frágeis ou contar histórias de vida sofridas a ponto
de você sentir que tinha que ampará ‑los emo‑
2. Frequentemente, você tentava agradar seus pais para que eles o vis‑
sem com bons olhos, para de algum modo poder ser visto? Talvez
para receber uma migalha de afeto? Talvez eles estivessem tão auto‑
centrados que você encontrou esse meio para que eles pudessem
olhos, sem indiferença ou crítica ou sem jogarem culpas em você, ou mesmo num
momento em que você poderia sentir que não estaria
3. Você já teve a percepção de seus pais serem indiferentes aos seus sentimentos?
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6. Se você não fosse obediente aos desejos deles e mesmo se eles esta‑
vam frustrados com algo da vida, você sentia que era o alvo de pro‑
jeções negativas?
9. Quando pediam algo, tinham que ser atendidos de imediato, sob ameaça de jogarem a
culpa em você, e ainda ficavam altamente
ofendidos e raivosos?
mos dizendo que eram humanos, mas que você não foi suficiente‑
Por outro lado, você também poderá se identificar como um adulto que recebeu tais
influências se: dificilmente consegue satisfazer seus pró‑
prios desejos porque fica buscando identificar e acalmar as necessidades dos outros.
Aliás, você foi treinado a vida inteira para fazer isso e agora sente ‑se responsável pelo
bem ‑estar de todos. Especiali zou ‑se em des‑
cobrir o que os outros necessitam, mas não consegue impor limites pes‑
res emocionais.
Se essa foi sua vida, saiba que a maioria das vítimas, se não todas, necessitam de terapia
profunda e acolhedora para que o resgate dos valores pessoais e da autoestima de verdade
ocorram.
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usurpadores de almas
veis e, como característica comum a todos, para eles não existe impedimento possível
quando decidem cumprir alguma tarefa em nome do outro.
Solícitos ao extremo, até passando por cima dos próprios limites pes‑
soais desde muito cedo, são desistentes de suas necessidades básicas, embora não se
deem conta. Alguns chegam a suspeitar, mas, por conta dessa com‑
plexa demanda de sobrevivência, não têm espaço interno para tal clareza autoperceptiva.
Freneticamente, tentam agradar ao outro na tentativa de que os seus ambientes interno e
externo possam permanecer estáveis.
Os momentos nos quais conseguem relaxar sempre são por algum olhar que manifeste
aprovação. E por mais cordiais que possam parecer, vivem à espreita, reféns de um terror
silencioso, com medo de serem atacadas, mesmo que por ameaças veladas.
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Precisam que alguém passe a mão em sua cabeça e lhes diga que a par‑
ceria está harmônica, que está tudo bem e que não correm risco algum.
E como toda situação traumática acaba se repetindo nos mais diver‑
sos cenários, acabam buscando parceiros que agem do mesmo modo abu‑
sivo a que já foram submetidos, até que um dia possam cuidar de verdade de si mesmas
antes de cuidar do outro.
Se essa explanação lhe fez algum sentido, neste momento você pode estar se perguntando
como e se é possível sair dessa trama. A resposta está no aprendizado de saber que a
morada, a casa interna que está localizada dentro si mesmo, é e sempre será o seu bem
maior. Apenas a própria pessoa pode se cuidar nesse nível de entendimento e, portanto,
acolher ‑se na medida certa e de verdade se proteger seja do que for.
Uma das dicas é poder observar com bastante seriedade o que é lesivo à alma, o que não
é bom e definitivamente aprender tomando atitudes con‑
cretas para se proteger. Se acaso perceber ‑se ultrapassando limites físicos e emocionais
de suportabilidade, precisa cuidar de seus excessos de benevo‑
Proteja ‑se contando a si mesmo que não quer maus ‑tratos, que não aceita nem se
permite sofrer por e com pessoas que abruptamente mudam de humor, julgam
perversamente ou inventam verdades sobre você. Pro ‑
teja ‑se não gastando energia para agradar, na tentativa de fazer com que os mais
próximos permaneçam emocionalmente estáveis, e atente que, se acaso mudarem de
humor bruscamente, o real motivo pode muito bem ser apenas uma questão pessoal deles
e não sua.
Cuide ‑se ativando sua lucidez e entendendo de uma vez por todas que a culpa das ações
infundadas e aterrorizantes do outro são de responsabili‑
Os que cedem demais, os que esquecem de colocar cercas entram em falência e morrem
cedo.
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Terceira história:
Estou só. Sento no sofá da sala, olho pela janela e por fim consigo rela‑
xar respirando livremente. Vivencio um imenso prazer ao sentir meu tórax e meus
pulmões se ampliarem a cada respiração. Chove lá fora e as gotas de chuva misturam ‑se
com as lágrimas que agora rolam com fervor pela minha face. Rosto e janela molhados.
E eu, inteiramente comigo mesma, vivenciando a minha solitude, não a solidão. Ainda
bem!
tro mim e que fazia acontecer grande parte das minhas ações impensadas.
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Pode parecer um tanto difícil de entender de início, mas, ao longo de meu processo
terapêutico, descobri que todos temos dentro de nós vários outros eus que vez por outra
tomam o comando da nossa vida. Esses eus acabam agindo de modo independente e sem
serem convidados por nós mesmos, que, erroneamente, julgamos ser os únicos
protagonistas de nossas próprias histórias... Ledo engano. Todos esses outros eus atuantes
em nós funcionam e foram criados em algum momento de nossa vida com o intuito de
nos proteger de situações difíceis. Sempre houve algo em mim atuando como se fosse um
ser autônomo e independente da minha vontade. Esse outro eu, ao qual denomino “Eu
Assustado”, seguia com atitudes próprias mediante uma lógica que certamente não fazia
pacto com o que lucidamente eu desejava. Sempre após um breve momento de impulso,
questionava ‑me do porquê de ter agido daquela forma; acho até que esse tipo de situação
acontece com a maioria de nós. A bem da verdade, sempre desconfiei que de algum
modo todos nós funcionamos assim. O que não sabia até passar pelo processo de
autoconhecimento em terapia é que são poucos os que, como eu, têm consciência desse
padrão de ação do psiquismo.
lidade, porém ainda não liberto de outros que entram em cena sem avisar.
Aquele Eu Assustado que acabara de ser “desintegrado” certamente era um dos meus
piores aspectos... Foi uma “morte” muito dolorosa, porém, necessária para dar um “up”
saudável e definitivo em minha vida.
mento cerebral ao qual havia acabado de me submeter, mas feliz como há muitos anos
não me sentia. Era dona de mim novamente, forte, enfim, dona de minha própria
existência.
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todos nós somos compostos dos mais diversos eus e, dependendo da situa‑
ção emocional e de vida, esses eus se manifestam com maior ou menor intensidade.
Passei a dar conta de como esses meus eus funcionavam den‑
cando o meu ser essencial, destruindo ‑me aos poucos, sempre atraindo pessoas não
saudáveis para mim. Se esse outro eu não fosse “morto”, aca‑
veis naquela época, quando ainda não sabia nada sobre a vida.
Vou explicar melhor: quando eu era muito pequena, sempre que me sentia acuada e com
medo, algo em mim me transformava em uma criança inibida e cordata. Concordava com
tudo, obedecendo o que vinha, enfim, fiquei subserviente para sobreviver. Provavelmente
para não ouvir berros ou talvez apanhar, e também para ser amada, enfim, para
sobreviver. Não era bom sentir raiva, me rebelar... Então, com o tempo, já adulta, nas
situações difíceis nas quais poderia me posicionar, simplesmente acabei me esque‑
cendo de que poderia falar, reclamar e agir a meu favor de modo diferente desse padrão
aprendido. Como consequência, ao menor sinal de rejeição, que às vezes nem era real,
esse suposto eu defensor avançava desenfreada‑
mente à minha frente, de modo independente e sem ser convidado. Agia cegamente
através do que fora programado em meu cérebro, não conse‑
guia sequer compreender que não havia mais ameaças, e, mesmo se hou‑
vesse algo similar ao que ele reconhecia como ameaça, as minhas respostas não eram
adequadas às circunstâncias reais. Hoje sei que o meu eu adulto ao longo da vida já havia
adquirido inúmeros recursos que me permitiriam lidar com determinadas situações de
modo diferente do que quando era criança, mas na hora H o que pulava à frente era o tal
Eu Assustado e defensor.
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O problema é que esse tal de “Eu Defensor”, enquanto não fosse morto, incessantemente
trazia ‑me dúvidas sobre tudo, entorpecendo minha per‑
Simultaneamente ao momento em que pude eliminá ‑lo, notei que já não havia vínculo
algum com ele. Compreendi isso quando subitamente revivesci toda a minha vida num
flash durante o reprocessamento cerebral.
Pude ver e reviver exatamente todos os motivos e os porquês que fizeram com que esse
meu Eu Defensor criasse vida própria. Revivi tudo aquilo com a consciência de agora,
até que repentinamente aquele padrão foi perdendo todo o seu significado em mim. Todo
o meu sistema percebeu profunda‑
mente que não mais precisaria de aspecto algum dentro de mim enlou‑
dor emocional que estava passando e criou esse aspecto “protetor”. Tinha por volta de 5
anos. Naquele tempo, ainda sem os recursos e conhecimen‑
tos de hoje, protegi ‑me criando esse eu como se fosse um “Eu Babá” que cuidaria de
mim em situações difíceis.
O fato é que cresci e esse Eu Babá não se atualizou, continuando a me proteger em meio
a seu parco conhecimento de realidade de quando tinha apenas 5 anos. O mais
interessante é que, durante a sessão de reproces‑
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desprendendo de seus significados, até se transformar numa imagem que mais parecia
com um sonho distante em minha mente; e foi ficando mais e mais longe da minha
percepção, até desaparecer por completo.
Após toda essa recente lembrança, volto a olhar para a chuva caindo do lado de fora da
janela, ao mesmo tempo que sinto lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Sei que agora é
apostar no que tem dentro de mim e confiar nas novas experiências que virão.
Outro “eliminado” foi meu ex ‑namorado. Este também está morto, no meu coração,
claro. Hoje também consegui definitivamente terminar com ele. Mesmo assim, antes
desse reprocessamento, ficamos em um vai ‑não ‑vai frenético e doentio durante algum
tempo, até que esse término finalmente se deu. “Só amigos”, dizia ele. “Só a saideira”,
“só esta noite”. E eu me via numa montanha ‑russa onde satisfazia meus desejos ao
mesmo tempo que me martirizava com culpa por ainda estar vivendo tudo aquilo.
Reclamava de coisas e ele passava por cima, não me ouvindo, como se eu não existisse.
A sensação mais comum era a de um dia ter entrado no mar e de nunca ter conseguido
sair de lá. Sempre que me via na areia, as ondas acabavam por me levar novamente mar
adentro, e eu, assolada pela correnteza, ia mais e mais perdendo forças... Mas isso foi
antes. Hoje de manhã, ao fechar a porta do apartamento na sua cara, mesmo com meu
corpo querendo seu abraço, ansiando por seu cheiro e desejando ‑o com todos os meus
sentidos, lutei ferozmente contra as minhas referências enraizadas e viciadas, até que,
finalmente, consegui vencer, mandando ‑o embora. Senti que o matara.
E dentro de mim uma criança, uma pequena recém ‑nascida que cho‑
meira vez. Frágil ainda, sensível, porém, cheia de vida. Essa era eu dando boas ‑vindas a
mim mesma.
Minha história
Eu não queria entendê ‑lo. Eu só tinha raiva. Não queria saber os moti‑
vos pelos quais ele fazia aquilo. Bastava apenas que ele deixasse de existir.
Meu pai me batia. Apesar do universo popular clamando que pai nunca 161
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deveria “sentar a mão” nos filhos, ele assim o fazia. Mas a violência física não era a pior.
À medida que crescia, fui descobrindo como ele conseguia des‑
cobrir nossos maiores medos (meus e de meu irmão mais novo), usando ‑os com maestria
para nos dar noites de pavor, sem sono.
Éramos uma família em boa situação financeira. Ele exercia uma fun‑
ção de encarregado em uma indústria metalúrgica e era considerado mão de ferro pelos
patrões, o que muito os agradava, mas não aos outros funcioná‑
ver algum conflito, não importando a razão, tendia sempre para o lado mais forte, no
caso, o dos donos. O pior ainda era a crueldade com que fazia questão de tratar os
colegas de trabalho. Ouvi falar de casos de funcioná‑
rios que tiveram que trabalhar até machucados. Mesmo sendo difícil de conceber nos dias
de hoje, em um país civilizado, alguém colocando uma meta de produção acima da saúde
física de uma pessoa, não consigo tirar da cabeça que o que lhe causava prazer era ver o
funcionário trabalhando pressionado e com dor. Parecia impossível, mas infelizmente era
verdade...
Com o tempo, acabou se aposentando. Queria continuar a trabalhar, mas, graças aos
novos direcionamentos, tipos como ele já eram obsoletos e prejudiciais ao
relacionamento entre patrões e empregados. Processos poderiam acontecer e, por conta
disso, ele foi mandado para casa ainda enquanto eu e meu irmão éramos adolescentes.
Para nosso desprazer, ele tinha mais tempo para passar conosco, e agora, mais que nunca,
nós pas‑
mais novo, Rafael, montávamos cabanas com cobertores e ele chegava do trabalho
destruindo aquilo. Naqueles momentos, arrancava um ou outro do quarto pela orelha,
impondo ‑nos grandes surras devido a alguma tra‑
quinagem real ou por vezes imaginada por ele. Não me recordo de nenhum momento de
afeição. Os poucos que vinham, na verdade, eram armadi‑
lhas para mais uma tortura psicológica ou física. Crescemos desconfiados e sem amor.
Um dia a família foi para a praia pela primeira vez. Eu tinha uns 10 anos e meu irmão por
volta de 8. Pegamos guarda ‑sol, esteira, cadeiras de armar 162
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vamos em temporada baixa e não havia muita gente na praia. Lem bro ‑me de que o
tempo estava esquisito, chuviscando vez ou outra. Mesmo assim, achei maravilhoso
aquele mundo de água que se descortinava aos meus pés; Rafael, porém, havia ficado
com medo e não queria entrar na água.
Nosso pai, percebendo todo aquele medo do meu irmão, colocou um meio sorriso no
rosto e, como uma espécie de torturador sádico, foi logo perguntando a Rafael do que ele
tinha medo. Inocentemente, Rafael sol‑
tou uma série de motivos infantis, comentando que aquilo tudo era muito grande, que
havia os peixes, as ondas e, além de tudo aquilo, ele tinha medo de se afogar. Confessar
medos e ser acolhido pode aliviar o estresse, mas não foi o caso, principalmente porque,
além de ativar os medos de meu irmão, meu pai ainda plantou muitos outros em sua
mente. Pode parecer mentira, mas não foi. Na sequência, começou a contar que alguns
peixes adoravam comer crianças, que ele podia se afogar mesmo e que era muito fácil se
per‑
der naquele mar enorme... Meu irmão começou a chorar e ele, sem se conter, ria de forma
irônica, sem parar...
Num ato de revolta, Rafael soltou um palavrão dizendo que aquilo tudo era mentira. Fez
‑se repentino silêncio no ar e nosso pai de uma hora para outra parou de rir, ficando
carrancudo e, ao mesmo tempo, com olhar ameaçador. Terrificados, ambos sentimos uma
ameaça sinistra em seu olhar, de algum modo ele se vingaria, sabíamos como ele
funcionava...
Fiquei paralisada com aquela voz. Nada de bom sairia dali. Ele sim‑
Nessa parte, é importante falar da extrema incapacidade de minha mãe tomar alguma
atitude a nosso favor. Algumas vezes ela até protestava, mas, diante do primeiro tom de
voz mais alto e desafiador de meu pai, ela simples‑
mente se calava. E novamente foi o que aconteceu: perante tamanha cena de violência,
minha mãe pediu para que meu pai parasse com todo aquele ter‑
rorismo, ao que ele simplesmente mandou um “cala a boca”, dizendo que sabia o que
estava fazendo, e ela passou a esconder o rosto em seu grande chapéu de praia, sendo
mais forte a vergonha que sentia dos outros que a 163
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vontade de fazer algo pelo próprio filho, que naquele momento estava sendo humilhado
pelo pai e violentamente arrastado pela areia da praia.
Desesperada, eu corria atrás dele tentando fazer algo, lembro que dava soquinhos nas
costas dele implorando para que parasse, mas, com um sim‑
ples empurrão dele, caí sentada na areia, chorando. Durante anos da minha vida, os gritos
de Rafael ecoavam em meus ouvidos. Na sequência, quando os dois chegaram à água, ele
então levantou meu irmão pelo pé, deixando que as ondas lhe cobrissem a cabeça, a
ponto de ele entrar em pânico com o excesso de água que o fazia parar de respirar por
alguns segundos. Naquele fatídico momento, percebi como a impotência é uma das
sensações mais duras de se vivenciar; não consegui fazer nada para proteger meu irmão.
Cansado da brincadeira, ele largou meu irmão, que agora chorava na água rasa,
recebendo o impacto das pequenas ondas. Ele voltou para o guarda ‑sol satisfeito
enquanto desesperadamente eu corri e abracei Rafael.
Hoje, mais velha, sei que alguns pais se utilizam de maneira mais bruta para que os filhos
percam o medo, mas eu tinha certeza de que esse não era o caso. A única certeza
envolvida era o prazer em ver meu irmão sofrer sem nenhum direito à defesa. Essa era
minha raiva, minha indignação e meu desespero.
Ainda não sabia e, para o meu sofrimento, demoraria muito para per‑
ceber o quanto e como essas vivências terríveis com meus pais marcariam todas as
minhas outras relações afetivas, levando ‑me numa espiral deca‑
peuta, que me acolheu e literalmente me ajudou a abrir os olhos para minha própria vida
e para a vida que eu ainda tenho pela frente, agora talvez eu não estivesse contando
minha história.
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Desejo que este relato possa ajudar outras pessoas que passaram por situações difíceis na
vida e que precisam urgentemente se recompor em outros significados. Estou aqui para
contar que sempre é possível virar a mesa e mudar totalmente o modo de ver a realidade,
de agir e seguir em frente.
Como tudo tem um fim, um dia o ciclo de sofrimento relacionado ao meu pai também
teve um fim, ou pelo menos se amainou.
Meu irmão adorava ler. Isso era até certo ponto um pouco preocupante, pois nos livros
ele parecia entrar em outros mundos, em mundos menos vio‑
Certa vez, um colega irresponsável de Rafael pediu para pegar um livro da biblioteca em
seu nome. Ingenuamente ele assim o fez. O colega de Rafael acabou se esquecendo de
devolver o livro e uma multa foi se acumulando em seu nome. Meu irmão, com medo de
uma represália de nosso pai, nada falou, nem ao menos para mim. Passavam ‑se os dias e,
quando Rafael cobrava o livro do colega, este não lhe dava a mínima. Notei que estava
esquisito, mas ele tinha medo de admitir o que havia aconte‑
cido. Achei estranho que ele não pegasse mais livros: preocupada, porém, com meus
próprios problemas, acabei negligenciando uma atenção. Um dia recebemos uma ligação
da biblioteca e meu pai atendeu. Nossa mãe, que trabalhava fora (creio eu que mais para
fugir do marido que por neces‑
sidade), não estava em casa. Nosso pai fora informado de que um livro no nome de
Rafael estava atrasado e ele deveria pagar uma multa e devolver o livro. Lembro ‑me da
reação de pânico de Rafael ao ouvir nosso pai dizendo:
“O quê? Livro? Multa?”. Seu pequeno segredo havia sido descoberto e agora temia pelo
castigo. Como era de seu feitio, enquanto entendia a situação, nosso pai pensava em
como tirar proveito do terror que seria isso. Dessa vez não foi diferente, ele desligou o
telefone e foi logo olhando amea çadora‑
Rafael tremia e queria fugir, mas estava paralisado de medo. Com muito receio e já com
os olhos cheios de água, tentou explicar que o livro estava com um colega e que esse
colega tinha perdido o livro.
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Com muita calma, esboçando algo de prazer diante do horror de Rafael, ele disse:
– Então, deixe ‑me ver se entendi. Você emprestou um livro no seu nome para um colega
e agora o amiguinho disse que perdeu. – Rafael tremia. Ele continuou: – Eu não criei
filho para ser o trouxa de ninguém! Tem uma multa, sabia? – E foi se aproximando
lentamente de Rafael.
– “Ele disse que vai pagar”? Já não basta ser besta o suficiente para emprestar coisas aos
outros em seu nome, também vai acreditar na palavra desse malandro?
– Mas...
Rafael nem teve tempo de retrucar, pois um forte tapa lhe acertou a face, a ponto de ele ir
direto ao chão. E nós dois sabíamos que viriam outros de onde viera aquele. Comecei a
ficar desesperada. Instintivamente, gritei:
“Para!”, mas ele só olhou para mim e, terrificada, calei ‑me novamente, sen‑
tindo ‑me um nada para defender meu irmão. Também sentia muita culpa, por que
sempre ele e eu não? Eram perguntas que ressoavam dentro de mim como um eco
surdo... Por quê? Por quê? Naquele momento, voltou ‑se para meu irmão, pegou ‑o pelo
braço, levantando ‑o e gritou ‑lhe bem pró‑
ximo à face:
Enquanto berrava, ele ia sacudindo meu irmão pelos braços. Pulei em suas costas,
tentando arranhar o seu rosto. Ele soltou meu irmão, que caiu no chão, e tirou ‑me das
costas como quem espanta uma mosca. Jogou ‑me do outro lado da sala e bati com a
cabeça na base do sofá.
mente, mas, na verdade, apenas alguns segundos se passaram depois desse empurrão. Ao
meu lado, estava uma mesa de centro de sala. Em cima, um vaso enorme de vidro
comportava uma planta também enorme. Sem
nenhuma dúvida sobre o que tinha que fazer, peguei o vaso, subi no sofá e calculei que
precisava usar de todas as minhas forças para acertá ‑lo e fazer com que soltasse Rafael.
O primeiro impacto na cabeça não fez o barulho que pensei que faria. Desequilibrei ‑me
e caí no chão, sentada. Ele soltou 166
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Rafael e ficou de joelhos, meio zonzo. Levantei ‑me do chão, peguei o vaso novamente e
fui logo acertando nele o segundo golpe. Desta vez o barulho foi enorme, pois o vaso
literalmente se quebrou em sua cabeça. Até hoje a imagem dele caído de bruços, como
um gigante impotente, com a terra do vaso na cabeça, aparece em meus sonhos. Só ouvia
minha própria respira‑
ção e os soluços de Rafael, que não conseguia tirar os olhos esbugalhados do pai no chão,
desacordado.
Peguei ‑o pela mão e saímos de casa. Eu queria ir para bem longe, muito longe dali.
Queria ir para outra família, outra vida. Nunca havia me sen‑
tido tão responsável por alguém quanto por meu irmão naquele momento, e não pensava
nas consequências do que havia feito.
A alguns quarteirões da nossa casa, morava minha madrinha. Foi a única ideia que me
veio à mente. Eu e meu irmão fugimos para lá. Ao nos ver em sua porta, abalados pelo
acontecido, ela nos recolheu de imediato. Era uma pessoa muito carinhosa e logo viu o
roxo no braço de Rafael. Sabia que nosso pai era uma pessoa violenta e logo deduziu que
algo de grave teria aconte‑
visão. Não precisávamos de palavras... E, em meio a muito carinho e tato, convenceu ‑me
a ir para seu quarto, onde consegui contar detalhadamente o que havia acontecido. Ao
ouvir, suspirou profundamente, balançando a cabeça, disse que ligaria para a polícia e
que não deixaria que nada de mal acontecesse com a gente.
Nosso pai foi socorrido e levou alguns pontos na cabeça. Como ele foi parar no hospital e
a polícia teve que ser informada, o juizado de menores acabou vindo nos ver. Quando
encontramos com nossa mãe eu desabei.
Abracei ‑a fortemente e soluçava de tanto chorar. Abraçava com força, quase com raiva.
Queria lhe perguntar como podia deixar aquele homem violento conviver com os
próprios filhos. E por que não fazia nada para nos proteger?
Não fui visitá ‑lo no hospital. Naquela época, eu não soube o que havia acontecido
juridicamente. Lembro que falamos com um juiz que nos fez 167
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várias perguntas e nos tranquilizou, avisando que estávamos protegidos pela lei e que
nada de mal nos aconteceria se contássemos a verdade.
Durante o período em que ele estava internado, ficamos em casa. Depois soubemos que
ele levou uma bronca feroz desse tal juiz e teve uma séria ameaça de ir para a cadeia caso
algo dessa ordem ocorresse novamente.
Depois disso, nossa relação nunca mais foi a mesma. Lembro ‑me do dia em que ele
voltou para casa. Não me disse uma palavra. Só olhava para mim com um misto de
espanto e raiva. A impressão que me deu era que de agora em diante a situação entre nós
fora invertida e que, a partir daquele momento, a ameaça seria eu. Sabia, portanto, que
ele não encostaria mais nem um dedo em mim ou em meu irmão. Mesmo assim, na
primeira noite, Rafael saiu de seu quarto e veio dormir comigo. Trancamos o quarto à
chave e tivemos uma noite de expectativa. Dormi muito pouco, imaginando que a
qualquer momento ele poderia arrombar a porta para mais uma surra, e, quando peguei
no sono, tive sonhos horríveis. Porém, nada disso aconte‑
ceu. Parece que, a partir daquele episódio, definitivamente consegui marcar território
diante daquela besta.
Após alguns meses, meus pais se separaram. Ele saiu de casa para nunca mais voltar. E
eu nunca mais o vi. Mas, para meu desespero e minha cura, tive que revê ‑lo muitas e
muitas vezes em minha mente, em minhas recor‑
dações. Também na terapia, tive que me confrontar com tudo o que havia me acontecido
e com o quanto todas aquelas vivências haviam impactado a minha existência como um
todo. Principalmente, no meu estranho padrão de me vincular afetivamente a pessoas que
de algum modo traziam os piores aspectos do meu pai somados ao descaso da minha
mãe. E eu, na tentativa e na ilusão de que estes – algum dia – se tornariam bons e amo‑
rosos, projetando neles a ilusão de ter um pai e uma mãe suficientemente bons, fato que
nunca ocorreu e que jamais ocorrerá. Enquanto não fiz o luto dessa situação, enquanto
não reprocessei e compreendi tudo o que aconteceu e o quanto me afetou, não pude
encerrar essa história da minha vida. Até aquele momento, era como se eu estivesse
vivendo um sonho recorrente em diferentes cenários da vida; todos, porém, com o
mesmo conteúdo emocional.
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O tempo passou e seguimos em frente. Na época, não sabia se era influência de minha
criação, mas na juventude fui marcada por relacio‑
namentos em que era desconfiada, insegura, e muitas vezes tachada como fria e distante.
Simplesmente não conseguia me entregar ou me envolver sentimentalmente, tinha
medos, raivas subterrâneas, culpas mal resolvi‑
das, enfim, era muito confusa. E como não ia bem nos relacionamentos, meu foco acabou
sendo a carreira. Segui com a profissão de jornalista.
Hoje, pensando mais sobre minha escolha profissional, talvez tenha sido para que o
mundo pudesse ler e compreender minhas explicações, minhas denúncias. Mais de uma
vez ouvi dos professores que era uma aluna muito objetiva, perspicaz, insistente e
sensata, e tinha um grande futuro pela frente.
– Karina, minha querida, você é ótima aluna, mas falta algo no que você faz, e esse algo
se chama paixão.
– Isso é o que está nos livros e nos manuais. Não podemos ser tenden‑
ciosos. Temos que relatar os fatos. Eu sei de cor. Escrevi vários textos dizendo
justamente isto.
– Mas eu pensei...
– Pura besteira. Somos humanos, ou você acha que só porque somos jornalistas estamos
isentos das histórias humanas? Ou do próprio humano em nós mesmos? Tomamos
partido, sim, senhora, e quem não admite isso se coloca em um pedestal de base frágil.
Em seu texto, por exemplo, algo não é explícito, falta paixão. No detalhe de suas
descrições, os leitores têm que 169
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ver que tem uma pessoa escrevendo, relatando, revelando, enfim, um ser humano. Veja,
quando Neil Armstrong pisou na Lua foi como se estivesse levando toda a humanidade
junto, por mais técnico, militar, piloto e cien‑
ter. Cardoso era bem mais velho que eu e, ao seu modo, discreto, inteli‑
gente e sedutor. Quando o trabalho não saía do jeito que ele queria, seus berros podiam
ser ouvidos por toda a redação e, a cada vez que um grito seu explodia ecoando pelas
salas, um gélido arrepio corria em minha pele.
Era uma sensação estranha que eu não sabia definir se de prazer ou de medo, ou quem
sabe os dois... Senti que logo ele percebeu que de algum modo me sentia atraída, mas
sabiamente não demonstrou. Nem eu acreditava que poderia me apaixonar por um
homem que vivia gritando; naquele tempo eu não sabia absolutamente nada sobre mim...
Ele não dava muita atenção aos estagiários. Era muito impetuoso. Um dia vi uma câmera
fotográfica voar longe das mãos de um repórter, pois a foto que estamparia a matéria
havia ficado muito aquém do que ele necessitava.
Certa vez, ele precisou fazer uma viagem, pois estava trabalhando em uma reportagem
sobre um grande esquema de corrupção governamental.
Cardoso precisava urgentemente ir a Brasília. Os editores não queriam que ele fosse
sozinho e precisavam de uma pessoa que fosse mais centrada, pre‑
cisa e imparcial para acompanhá ‑lo. Fui escalada e ambos fomos para a capital do país.
Oficialmente, eu só iria para auxiliar no que e se precisasse, uma espécie de office ‑girl
de repórter. Extraoficialmente, precisava evitar que ele cometesse algum equívoco. No
avião, ele se mostrou reservado e meio mal ‑humorado, tratando ‑me secamente. Até
imaginava o motivo, pois ele jamais aceitaria uma babá cuidando de cada movimento
seu. Li todo o seu material de pesquisa, mais as reportagens ainda não publicadas. Estava
impressionada com sua perspicácia e inteligência, o que fez crescer minha 170
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admiração e atração por ele. Procurei ao máximo não demonstrar nada e manter a
objetividade. Depois de algum tempo de voo, pediu um whisky, largou a leitura e pareceu
relaxar. Olhou para mim por um longo tempo, como se estivesse fazendo isso pela
primeira vez.
– Então, você veio para cuidar de mim, não é? Espero que me mostre se é capaz de fazer
isso...
Durante todo o voo, eu fingia que estava interessada em outro assunto, mas a verdade é
que não conseguia tirar a atenção dele. A todo custo tentava disfarçar meu coração
acelerado.
– Prove que você é capaz de cuidar de mim. Eu vou dar um escândalo neste avião por um
motivo que acho justo, mas, como sei que sou muito esquentado, você precisará me
conter.
Ao dizer isso, começou a berrar impropérios sobre a comida do avião e sobre o serviço.
Parecia uma criança mimada. Todos voltaram os olha‑
res para nós e uma comissária veio em nossa direção. Eu não sabia o que fazer. Aquele
homem mais velho, quase meu patrão, estava dando um escân‑
dalo terrível. O que fazer? Tentei acalmá ‑lo a todo custo, mas cada vez que tentava dar
uma palavra de conforto ele se exacerbava ainda mais.
Então veio ‑me a consciência da situação. Respirei fundo, segurei ‑o pelo braço, deixei
meu rosto bem próximo ao seu e disse, de modo bem sério e autoritário:
– Cale a boca.
Ele me olhou com estranheza e um meio sorriso abriu ‑se em seus lábios.
Disfarcei dizendo que ele tivera uma pequena crise de pânico, mas que agora estava tudo
bem e ela não precisaria se preocupar.
171
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cional ocorra.
Eles se encontrariam em um local não informado para mim. Na verdade, ele me proibiu
terminantemente de ir com ele. Na hora do encontro, fiquei raciocinando sobre o que
poderia acontecer. A quem deveria obedecer. A Cardoso, que me mandava ficar quieta
em meu quarto, ou aos donos do jornal, que orientaram para que eu vigiasse cada passo
do tempestuoso repórter. Decidi que o mais prudente era seguir as recomendações de
quem pagava meu salário. Usando um pouco de charme, consegui convencer o
recepcionista a me dar a chave do quarto de Cardoso, dizendo que ele havia esquecido
algo importante e eu precisava pegar para entregar pessoal‑
mente. Logo ao entrar, vi um pequeno bloco de papel em branco. Percebi que uma folha
havia sido arrancada e a pressão do lápis ainda estava sobre a folha abaixo, o que me fez
identificar o endereço. Daí por diante foi fácil, rumei para um restaurante discreto
localizado num hotel de negócios.
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Não sabia direito o que fazer assim que chegasse. Simplesmente me plantaria ao lado de
Cardoso e do informante ou da informante e espera‑
ria que me convidasse para sentar. E foi o que fiz quando cheguei. O infor‑
mante, um homem careca e barrigudo que não reconheci, me olhou de cima a baixo.
Cardoso arregalou os olhos, não acreditando que eu estava ali.
Naquele momento, tomei consciência de que tinha feito uma grande bes‑
teira. Uma pessoa mais experiente que eu não sairia por aí simplesmente cumprindo
ordens sem pensar antes. Eu deveria saber que Cardoso estava correto por ir sozinho se
encontrar com o tal informante. Outra pessoa junto poderia dar um sinal de desconfiança,
de quebra de contrato. Foi o que aconteceu. Lentamente o informante pegou seu
guardanapo, limpou a boca e disse que não tinham mais nada a conversar. Levantou ‑se,
fez uma mesura muito educada a mim e saiu sem falar mais nada.
homem parecia ser muito resoluto. Após a tentativa frustrada, Cardoso, ainda sentado,
me atravessou o olhar como se fosse uma flecha. Levantou ‑se, dei‑
xou o dinheiro da conta e saiu sem dizer nada. Tentei acompanhá ‑lo, mas ele
simplesmente pegou um táxi e sumiu de vista. Sem saber o que fazer, mas tendo a certeza
de que tinha feito uma enorme bobagem, comprome‑
tendo a reportagem mais importante do ano por pura inexperiência, voltei para o hotel.
Cardoso ainda não havia chegado. Fiquei horas no quarto, meio desnorteada, esperando
sem saber o que fazer. Devia pegar um voo de volta e pedir demissão antes que me
mandassem embora? Ou esperar Cardoso voltar e confrontá ‑lo? Em meio a esses
pensamentos, acabei por cochilar e, ao acordar, me dirigi a seu quarto. Respirei fundo e
bati à porta.
Ouvi um “entra” seco. A porta estava aberta. O quarto era grande, bem iluminado.
Cardoso estava na sacada, segurando um copo. Apontou para uma poltrona,
comandando:
– Senta.
mente começou a me rondar. E, à medida que falava, foi contando todos os detalhes do
caso. É claro que eu já sabia de tudo, mas, ouvindo de sua 173
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boca, de seu ponto de vista, tudo aparecia sob outro ângulo, outra dimen‑
são. Enquanto falava, com voz grossa e precisa, ora se aproximando, ora se afastando, eu
me sentia cada vez mais culpada, como uma criança que tinha estragado uma coisa
importante, só pelo fato de não entender o que estava acontecendo. Uma sensação de
déjà ‑vu incontrolável foi tomando conta de mim. Ele não estava brigando comigo, nem
querendo que eu visse a luz da razão. Ele estava me torturando! Não parava de falar.
Eu queria sair correndo dali, mas sua voz era tão envolvente e seu con‑
teúdo tão real que eu simplesmente não podia me mexer. Ao mesmo tempo que o temia,
estava seduzida e de algum modo excitada, afinal ele estava falando comigo, contando
como pensava, falando do seu raciocínio, de sua intimidade... Estava olhando para mim e
eu de algum modo adorando vê ‑lo falar comigo. Queria ouvir tudo o que aquele homem
tinha a me dizer. Será que estava sentindo prazer naquilo tudo?
Ao final, perguntou se eu sabia o que tinha acontecido, que eu tinha estragado todo um
trabalho de meses com a minha simples interrupção.
mou muito de mim, invadindo meu campo de segurança. A essa altura, não mais
conseguia disfarçar minha respiração ofegante. Um silêncio cons‑
trangedor (para mim) aconteceu então. Podia sentir o calor de sua respi‑
ração, mas, assustada, não podia dizer qual seria sua próxima ação. Me daria um tapa?
Gritaria comigo? Riria da minha cara? Me beijaria? A única coisa que eu sabia era que,
fosse o que ele fosse fazer, estava rendida, sem voz e sem forças para me defender. E, no
meu desespero, queria que ele fizesse alguma coisa.
Novamente e após tantos anos, sentia ‑me impotente. Havia sido fisgada por algo
desconhecido, conhecido, assustador...
Quando o telefone tocou e quebrou o silêncio, não pude deixar de dar um pequeno grito.
Ele afastou ‑se lentamente e foi atender o aparelho, sem tirar os olhos de mim. Assim que
ouviu a voz do outro lado da linha, mudou completamente. Estava meio tonta, mas pude
ouvir alguma coisa.
– O quê? Quem? Você tem certeza de que é isso que quer fazer? Que horas? Onde? Tudo
bem, tudo bem.
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Ao desligar o telefone, Cardoso ria. Ria muito alto. Acendeu um cigarro, olhou para mim
e disse:
– Parece que o nosso informante ainda está bicando a isca. Não desis‑
E saiu de perto da porta, voltando à sacada, bebericando seu whisky e fumando seu
cigarro. Eu sabia que ele não diria mais nada. Com as forças abaladas, consegui me
levantar e lentamente fui para meu quarto.
Naquela noite, não consegui dormir um só minuto. Não sabia o que esperar do encontro,
que inesperadamente transcorreu de forma leve e precisa. De alguma forma aquele
senhor tão cheio de informações se afei‑
Naquela noite, cheguei ao hotel repleta de informações. Subi direto para o quarto de
Cardoso, que deveria estar ansioso por minha chegada, embora não demonstrasse. Eu,
pelo contrário, não consegui nem tentei esconder minha excitação ao passar as
informações. Ele estava sentado na poltrona em que havia ficado na noite anterior e
simplesmente me olhou de cima a baixo e me ordenou (ordenou!):
E eu contei cada detalhe do ocorrido com veracidade impressionante, porém, sem ser
aquela pessoa fria e calculista, mas de maneira apaixonada.
mente havia tomado conta de mim e era uma sensação incrível, uma sensa‑
Terminei meu relato ajoelhada aos pés de Cardoso, que continuava imóvel, com seu copo
de whisky e o cigarro.
Ao final, ele colocou o whisky em uma mesinha, deitou o cigarro no cinzeiro, olhou bem
fundo em meus olhos e disse:
– Boa menina...
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E me beijou lentamente.
Namorar aquele homem não era fácil. Era um ás no trabalho. Todos queriam seu
conselho. Ele não escondia que estava saindo com a estagiária e eu não escondia que
estava saindo com o famoso repórter. Acabei apare‑
Ao final do ano, fui efetivada no jornal, mas tinha a impressão de que para Cardoso eu
seria sempre uma estagiária.
Certa vez, estávamos tendo várias reuniões sobre o direcionamento de uma matéria em
que vários repórteres estavam envolvidos. Ele era o coordenador da matéria e nós
estávamos sujeitos às suas decisões. Eu tinha uma opinião muito convicta sobre um
direcionamento e, não sei sincera‑
lidade e acabaram por ficar do meu lado. Cardoso não se mostrou constran‑
gido. Talvez apenas eu tenha notado seu olhar, não só em mim, mas pene‑
trando em mim, em toda a minha alma. Um sorriso conhecido se formou em seus lábios.
Senti alguém notando o meu constrangimento, pois havia gostado daquele olhar.
ção. Eu tinha uma posição. Ele me perguntou por que não havíamos dis‑
cutido isso antes e por que eu havia preferido levar as diferenças ao público.
Tentei argumentar que éramos profissionais e tentávamos apenas lutar pelo que era
correto. Tentei dizer, mas não consegui terminar a frase. Num 176
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ímpeto, Cardoso deu um soco na mesa, que se partiu em meu colo. Quando tentei
protestar sobre aquele absurdo ele já estava em minha frente, segu ‑
rando ‑me pelos cabelos e fazendo com que eu olhasse para cima, para seus olhos. Meu
Deus. O que era tudo aquilo? Como é que eu, uma mulher adulta, poderia estar me
sujeitando àquilo? Fiquei simplesmente sem pala‑
vras, uma raiva começou a me dominar por completo. Quem era ele para tocar em meu
corpo sem minha autorização? No entanto, eu não podia fazer nada. Estava paralisada. O
som da mesa quebrando ainda parecia uma bomba estourando em meus tímpanos. Ele
simplesmente me disse que eu nunca mais fizesse aquilo. Achei um absurdo e tinha
certeza de que sairia dali e iria direto para a polícia, quando ele berrou em meu ouvido:
– Nunca!
O grito gelou a minha espinha e uma chave que parecia tomar conta dos meus sentidos
havia sido desligada. Ele soltou meus cabelos e caí da cadeira, batendo os joelhos nos
vidros quebrados da mesa. Chorei. Chorei muito. Já não sabia o que devia sentir e do que
devia gostar. Eu só queria chorar. Não me importava que ele estava acima de mim,
observando ‑me. Aos poucos fui levantando a cabeça, o rosto ainda cheio de lágrimas.
Ao contemplar seu rosto, senti medo novamente. Ele estava enorme e tremia, não de
medo, mas de raiva. Foi tudo muito rápido. Quando ia pronunciar a primeira palavra,
senti sua mão forte batendo em meu rosto. Caí no chão estatelada.
Desmaiei. Não pelo tapa, mas pela exaustão pela qual minha mente havia passado.
Acordei na cama dele não sei quanto tempo depois. Ele havia me tro‑
cado e me levado para a cama. O quarto estava escuro e senti medo. Acendi a luz do
abajur e ele não estava. Mesmo após a violência, desejei que ele esti‑
vesse comigo, me abraçando e me protegendo. Mas não estava. Levantei ‑me, olhei no
apartamento inteiro. Não estava na própria casa.
No dia seguinte, teríamos outra reunião com a diretoria. Ele não apa‑
tante. Eu sabia que era por causa do que tinha acontecido ontem. Eu devia me sentir
confortada e reforçar minha posição sobre a matéria. Mas, por incrível que pudesse
parecer, eu praticamente podia sentir a sua presença.
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Ele sabia que a “lembrança” da noite anterior estaria presente, pairando sobre minha
memória, fazendo efeito como se ele estivesse fisicamente ali. Podia sentir seu hálito
atrás do meu pescoço. Sua mão rondando meus cabelos, pronta para puxá ‑los. Um misto
de medo e prazer ia tomando conta de mim e foi como se estivesse ainda sendo torturada
pela lembrança da noite anterior. Repentinamente, ainda que tentando disfarçar meu ner‑
vosismo e para o espanto de todos, reverti minha posição, concordando com o chefe de
reportagem, que não estava presente naquele momento. Apenas em minha mente.
Alguns meses depois, fomos morar juntos. Foi uma relação de muita sensualidade, mas,
ao mesmo tempo, violenta e doentia. Toda vez que acon‑
tecia algum problema no jornal, ele descontava na nossa relação. Ou então, se eu fazia
parte do problema, ele dava um jeito de transferir a total respon‑
sabilidade do problema para mim. Eu me sentia terrivelmente atraída por aquele homem,
mas suas mudanças de humor me deixavam maluca. De um momento para outro, o seu
tom cordial e bem ‑humorado podia tornar ‑se ameaçador e sinistro. Eu vivia em
constante apreensão.
Quando estávamos em momentos românticos, de uma hora para outra, ele começava a
elogiar a beleza de alguma mulher e esse elogio acabava se transformando no desejo
confesso por ela. A mudança ocorria de uma maneira tão planejada que eu nem percebia
quando ela se dava. De uma hora para outra, ele estava me minimizando perante alguma
outra mulher. Quando percebia minha raiva, ele começava a rir dizendo que era apenas
um teste para saber se eu realmente gostava dele, imagine.
Eu, por minha vez, precisava constantemente da aprovação dele, talvez como prova de
amor. Lembro ‑me de uma vez, quando lhe mostrei uma reportagem que havia preparado
para o dia seguinte. Organizei o texto no computador e imprimi para entregar ‑lhe, mas,
quando chegou, vi que estava mal ‑humorado. Estava tão excitada com o conteúdo do
que havia escrito que, mesmo assim, o entreguei para sua avaliação. O que foi um erro.
Ele sentou ‑se na poltrona e começou a ler. Ao final, fiquei aguardando seu pare‑
cer. Ele simplesmente levantou ‑se e, lentamente, foi até o vaso sanitário, despejando o
meu texto nele e dando a descarga na sequência. Eu não podia 178
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acreditar no que ele havia feito, mas, antes mesmo que eu pudesse respirar, ele já foi
falando:
– Isso é um lixo e merece ir para esse lugar. Quem você pensa que é para escrever essa
mediocridade? Se está morando comigo, não pode fazer uma coisa dessas. Vai aprender a
escrever.
Ele então deu um meio sorriso ao ver meus olhos arregalados, já em lágrimas. A essa
altura, começava a me questionar por qual motivo esta‑
ria com um homem desses. Por que me sentia tão atraída por toda essa violência gratuita?
Em cada nova discussão, ia me sentindo mais e mais fraca. Fazia de tudo para receber a
aprovação daquele homem. Não sei se foi por causa de sua constante exigência, mas
meus textos ganharam mais atenção no jornal e iniciei uma carreira ascendente, o que
acabou por causar inveja nele.
Para ele nada estava bom e isso era totalmente contrário ao que diziam meus editores.
Quanto mais me dedicava, mais desgaste tinha em meu rela‑
mos e eu me sentia acabada e com culpa por ter prazer mesmo assim e, de certo modo,
desejar aquilo; estava adoecendo. Quanto mais subia no jor‑
nal, mais ele me desprezava, e a coisa realmente começou a pegar quando suas “patadas”
saíram do ambiente familiar para o ambiente de trabalho.
Um dia veio o convite para que eu escrevesse um livro. Perguntei a Cardoso o que ele
achava e o que recebi foi:
– Você não tem competência para isso, mas ok, pode ir em frente.
Esse foi o início do período mais difícil do nosso relacionamento. Ele não queria ver o
que eu estava escrevendo e, embora desesperada para lhe mostrar, acabava me fechando.
Tinha certeza de que ele queria ler com a mesma intensidade com que eu queria mostrar.
Perguntava ‑me constan‑
temente como é que isso podia ser saudável? Ao invés de compartilharmos 179
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Fiquei trabalhando no jornal até tarde, pesquisando vários temas para o livro. Tinha
passado algumas partes do texto para um editor e ele achou que tudo estava caminhando
muito bem. Tinha certeza de que o livro seria um sucesso. Inclusive esse editor havia
comentado isso com Cardoso. Per‑
guntei ao editor qual tinha sido a reação dele. O editor pareceu meio con‑
fuso diante da minha pergunta e respondeu que ele ficara com um olhar distante, apenas
dizendo:
– Boa garota!
doso estava meio alto pela bebida e já havia fumado vários cigarros. Parecia que estava
sentado na poltrona há horas.
– Eu sei – respondi.
– Parabéns. Inclusive – ele continuou –, você deixou seu notebook em casa e eu tomei a
liberdade de ler alguns trechos.
– Fácil – ele disse. – Você é muito fácil de se desvendar. Não se tem nenhum estímulo em
conviver com você.
Então, começou nossa discussão. Ignorei primeiro o fato de ele já querer me humilhar e
lhe perguntei com que direito ele se achava para ler algo sem minha autorização.
Respondeu que estava na casa dele e tinha o direito sobre tudo o que estivesse naquele
teto.
– É o que você pensa. Permito que você more comigo enquanto for conveniente. Mas
isso não vem ao caso agora – e continuou – quero falar sobre esse lixo que está
produzindo. Eu até aturo que esses editores tenham mau gosto, pois eles pagam o meu
salário, mas você, não. Será que nesse tempo todo em que conviveu comigo você não
aprendeu nada? Você é burra?
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Tem alguma deficiência de pensamento? Não consegue separar o que é bom do que é
ruim?
Eu estava muito cansada e simplesmente queria pegar meu notebook, correr dali e me
trancar em meu quarto. Ao pegá ‑lo, percebi que estava molhado e cheio de cinzas. Ele
praticamente tinha depredado meu aparelho.
– Não precisa se preocupar com esse treco, mesmo porque não tem nada nele. Apaguei
tudo.
Fiquei tonta, sem saber o que dizer ou o que fazer. No momento, não lembrei que grande
parte do trabalho já estava salvo no computador do jor‑
nal. Uma raiva tomou conta do meu ser. Em vez de argumentar, parti para cima dele com
todas as minhas forças. Ele levantou ‑se da poltrona e facil‑
mente me segurou pelos pulsos, olhou bem fundo nos meus olhos e disse:
Ele riu e caminhou para a sacada. Nesse momento, o tempo começou a se passar em
câmera lenta. Ao ouvir sua risada, vê ‑lo de costas e contemplar meu trabalho depredado,
não tive dúvidas do que precisava fazer. Peguei o aparelho e atirei com toda a minha
força na direção de sua cabeça. Car‑
doso, que já estava bêbado, caiu desmaiado. Eu me sentei no chão da sala e comecei a
chorar convulsivamente. Sentia alívio pelo silêncio, mas ao mesmo tempo estava
despedaçada. Ele continuava imóvel, mas respirava.
Arras tei ‑me até o telefone e consegui chamar a ambulância. Antes de des‑
Em seguida, desmaiei.
doso também estava acordando, mas meio tonto. O paramédico insistiu para que ele fosse
ao hospital. Eu disse que iria depois. Perguntou o que havia acontecido. Cardoso, ainda
zonzo, simplesmente disse que tropeçara e batera a cabeça.
Eu o acompanhei ao hospital. Constataram, após uma radiografia, que não era nada
grave, mas precisaria ficar em observação. Fizeram ‑lhe um 181
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curativo, sedaram ‑no e eu fui para casa, fiz uma pequena mala e saí direto para a casa do
meu irmão. Avisei a um amigo que ele estava no hospital.
Alguns dias depois, pedi para meu irmão que fosse pegar o restante de minhas coisas,
mas Cardoso se recusou a entregá ‑las. Queria falar comigo antes. Só de pensar em revê
‑lo na mesma casa, fui tomada por um imenso cansaço. Sentia dores por todo o corpo. Eu
havia passado aqueles dias numa apatia imensa. Gostava de Cardoso, mas nossa relação
era impossí‑
vel. Não queria encontrá ‑lo em nossa casa e, na verdade, não sabia se queria encontrá ‑lo
novamente. Marcamos em um café. Ele estava me esperando, charmoso e educado. Fez
piadas sobre a situação e disse que aquele dia tinha sido estressante. Pediu para que eu
voltasse. Na verdade, insistiu. Eu disse que precisava pensar. Ele respirou fundo e falou
para eu levar o tempo que quisesse. A partir desse dia, ele se tornou outro. Nunca foi o
tipo romântico, e eu sempre preferi que assim fosse, pois nunca havia gostado da coisa
cheio de mimos e frescuras. No trabalho, passou a me tratar com mais educação e
respeito. Quando precisava analisar algum texto meu, era direto e consciencioso.
Passados mais alguns dias, veio um convite para jan‑
tar. Confesso que estava confusa. Queria muito mudar a nossa situação, pois não a
achava nada saudável, mas nos dias em que demos um tempo che‑
guei à conclusão de que precisava de uma vida a dois “bem temperada”, eu era daquele
jeito e não tinha como negar. Após o jantar em um restaurante sofisticado, acabei
voltando para nosso apartamento.
Por algum tempo, nossa convivência foi pacífica. Continuei com o trabalho em meu
livro, até que finalmente o terminei. No dia do lança‑
mento, ele foi distribuído entre meus colegas de trabalho. Entreguei o exem‑
plar dele pessoalmente, mas fiz questão de fazê ‑lo no jornal. Não queria uma cena em
casa, afinal, ele poderia ficar com o orgulho ferido. Ele me sorriu e disse:
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Eu sorri e respondi:
– Ok. Vou lê ‑lo com parcimônia e dar minha opinião mais sincera.
– Assim espero.
E me afastei. Nesse dia fizeram ‑me uma festa surpresa. Cardoso não apareceu. Tenho
certeza de que estava devorando meu livro. A noite de autógrafos seria naquele mesmo
dia, em uma livraria conhecida. Cheguei em casa para me trocar e não vi Cardoso. Fiquei
triste, pois pensei que ele viria comigo. Tudo bem, talvez estivesse lá me esperando para
fazer uma surpresa.
Meus melhores amigos e minha família estavam presentes, bem como meus colegas de
jornal. E onde estava Cardoso? Não apareceu, claro. Era muito para seu ego devastado.
Cumpri todas as etiquetas, mas estava triste com sua falta. Quando estava autografando
os livros, uma mão familiar me entregou um livro para que eu autografasse.
Levantei a cabeça lentamente e vi duas pessoas conhecidas. Segurando meu livro estava
Cardoso e, ao seu lado, meu pai, aquele que me batia e que por anos a fio torturou a mim
e ao meu irmão.
mento. Eu penso que uma figura tão importante para sua vida não pode‑
ria ficar de fora neste momento tão peculiar. E, aproveitando, parabéns pelo livro.
Os dois sorriam aquele meio sorriso amaldiçoado. Cardoso sabia dos meus problemas
com meu pai. Sabia que era a última pessoa que eu queria ver na vida, no entanto, lá
estava ele, prostrado à minha frente, esperando por um autógrafo, deliciando ‑se com
meu constrangimento. E o pior, quem estava me proporcionando esse momento tão
indelicado... Cardoso, meu companheiro. Aquele que deveria cuidar de mim estava, na
verdade, des ‑
Nessa hora, Rafael, meu irmão, veio me salvar. Quando notou o que estava acontecendo,
eu já estava em pé, praticamente desmaiando. Aproximou ‑se 183
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e me segurou pelos ombros. Olhou para nosso pai e pediu gentilmente que se retirasse.
– Você não acha que já causou problemas demais? – Em seguida, olhou para Cardoso e
disparou: – E você também!
Cardoso olhou bem feio para meu irmão, como se ele estivesse aca‑
bando com sua diversão, mas não queria fazer uma cena pública. Ambos se retiraram.
Cardoso comentou que comemorariam em um bar o sucesso da filha e da companheira.
A noite havia acabado para mim. Eu supunha que Cardoso apareceria com uma surpresa
não muito agradável, mas sua crueldade e a evidência de tudo chegaram a um ponto
ousado demais. E, embora eu estivesse pre‑
parada para tudo, senti a velha impotência tomando posse de mim, ambos estragaram
meu precioso momento.
Mais tarde, voltei ao apartamento decidida a pegar minhas coisas e nunca mais voltar.
Rafael insistiu para ir comigo, mas eu disse que precisava resolver aquele problema
sozinha, ou então não me levantaria novamente.
Além disso, supunha eu, Cardoso já tinha chegado ao seu limite e não ten‑
Eu estava enganada.
Eu ia matá ‑lo. Era só isso que eu queria fazer. Fiquei imaginando como poderia fazer
isso. Provavelmente, estava bêbado e um empurrão pela sacada resolveria o problema.
Seria ótimo ver seu corpo caído em meio às folhas de meu livro que ele fez questão de
arrancar.
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O motorista, vendo ‑me parada no meio da calçada, ficara preocupado e ainda não tinha
ido embora. Aquele toque de uma pessoa comum me fez voltar à realidade. Se eu subisse
àquele apartamento, provavelmente nunca sairia. Sim. Nunca sairia. O pior aconteceria e
tudo ficaria em minha mente, para sempre. Uma tortura na qual o torturador nunca cessa
de agir. O inferno recomeçaria novamente.
vida, parece que tudo flui do modo como deveria ser. O pro‑
que não temos o menor poder para mudar essas tais reali‑
dades indesejáveis.
rança pessoal.
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sita entrar em contato com algo que lhe sugira algum tipo
lá quando...
Todo o meu corpo queria subir ali e acabar com a vida de meu compa‑
nheiro, mas alguma coisa gritava dentro de mim para que eu fugisse daquele cativeiro.
Fugisse para longe, para bem longe e nunca mais voltasse. A soli‑
dão deveria ser melhor que aquele inferno. Fuja, menina, fuja! Já estava do lado de fora,
agora era me bancar para seguir em frente.
Dessa vez o taxista tinha saído do carro e estava em minha frente. Eu não conseguia
focalizá ‑lo. Via através dele. O que estava vendo mesmo era a imagem de Cardoso
bêbado, rasgando meu livro e meu corpo, lutando para controlar a raiva que estava dentro
de mim.
Reuni todas as minhas forças e disse chorando, quase sem forças, num sussurro, para o
homem simples que estava à minha frente tentando me ajudar:
– Socorro.
– O quê?
– Socorro...
ços de quem me acudia. Não tinha forças para mais nada. O taxista ia tocar a campainha
do meu prédio. Consegui pedir que não. Que ele sim‑
plesmente me levasse dali. Deitou ‑me no banco de trás, dei o endereço de meu irmão e
ele me levou para lá, para longe daquele apartamento, longe do meu cativeiro.
Naquele momento, recostada no banco de trás do carro, exausta, senti que tinha escapado
da desgraça em minha vida.
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A separação foi feita por advogados. Dessa vez, estava escaldada e não queria nem ver a
cara de meu antigo companheiro. Um dos editores do jornal, sabendo de nossa separação,
decidiu nos colocar em lugares dife‑
rentes. Tratava‑o friamente, mesmo com ele querendo insistir em uma con‑
versa. Não queria saber. Simplesmente escolhi tirá ‑lo de minha vida, para me proteger;
escolhi pela minha vida, mesmo gostando dele. Após o livro, recebi ofertas para trabalhar
em outros jornais. Apesar de ter um vínculo com meu local de origem, aceitei
prontamente. Assim, cortaria qualquer tipo de vínculo com meu ex ‑companheiro.
Passei por um período de apatia e dedicação ao trabalho. Claro que sentia falta de
Cardoso, mas tentei compensar isso me dedicando cem por cento ao trabalho.
Ocasionalmente saía com outros rapazes, mas nada muito sério.
E foi novamente através do trabalho que conheci meu primeiro marido e segundo
companheiro.
Fazendo uma matéria sobre política, conheci um lobista de uma grande empresa
farmacêutica. Era um rico advogado francês com muita influên‑
cia no mercado. Seu nome era Gerárd. A indústria em questão dispunha para ele vários
“brinquedos” para percorrer o mundo. Queríamos fazer uma reportagem sobre ele e meu
editor conseguiu marcar um jantar. Fui con‑
vocada para fazer a entrevista. Iríamos eu e meu editor. Já tinha bastante experiência em
convencer meus entrevistados. Li um dossiê completo sobre Gerárd: meia ‑idade,
divorciado duas vezes, dois filhos, vivia pelo mundo defendendo a companhia
farmacêutica. Sua base atual era o Brasil, onde estava resolvendo uma pendência que se
arrastava por meses.
nava bem a língua, apesar do sotaque carregado. Escolheu um bom vinho e ficamos
jogando um pouco de conversa fora até entrarmos na pauta, rela‑
cionada ao seu sistema de trabalho e como agia pelo mundo. Gerárd, porém, 187
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ria e discretamente mudava de assunto. Eu mais ouvia que falava, mas pude notar que o
francês, vez ou outra, lançava um olhar mais demorado em minha direção. Após algum
tempo levantei ‑me para ir ao toalete. Quando estava me preparando para sair, refazendo
minha maquiagem em frente ao espelho feminino, Gerárd surgiu repentinamente,
pedindo desculpas para as outras moças que lá estavam.
– Seu editor é, como se diz em sua língua, um saco. Que tal fugirmos daqui!?
Agora!
Disse que o motorista de sua empresa estava esperando lá fora. Deu a marca e a cor do
carro, foi ‑se desculpando novamente com as outras mulhe‑
ria a história, então, imaginei que ele na certa não se importaria de ser vítima de uma
descortesia, se fosse em nome de um objetivo maior. Peguei minha bolsa e fui. De fato,
um motorista já estava me esperando com a porta do carro aberta. Dentro dele, Gerárd
me esperava. Dei meu sorriso cúmplice e fomos embora.
– Como assim?
– Não jantamos ainda. Leve ‑me a um lugar bem brasileiro. Nada de sofisticação para
turista ver. Eu quero sentir a verdadeira comida brasileira.
Ser uma jornalista dedicada tem várias vantagens e uma delas é ser bem informada.
Conhecia uma senhora que tinha aberto um restaurante simples junto com os filhos. Ela
era do interior, ficou viúva e num ato de coragem largou tudo e montou seu restaurante
na cidade grande. Havia feito uma reportagem sobre ela e acabamos de algum modo
ficando próximas. Liguei para ela perguntando se podia preparar um cardápio especial
bem brasileiro 188
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para um amigo meu. Ela topou com prazer e lá fomos nós, eu com meu
“amigo” francês.
Sua pequena ousadia tinha feito com que ganhasse um ponto em meu conceito. Além de
que Gerárd não parecia interessado diretamente em mim.
Parecia mais com um bon vivant querendo descobrir coisas novas e boas da vida. Eu,
pelo menos, ao que parecia, era apenas um instrumento para o novo.
O jantar transcorreu maravilhosamente. Dona Ana foi muito simpática e fez questão de
tratar Gerárd com toda cortesia possível. Gerárd, por sua vez, era um gentleman.
Debruçou ‑se em elogios à comida dela, bem como à casa e à decoração, cheia de objetos
antigos da roça, como máquinas de costura, quadros, lampiões. O teto lembrava as
antigas casas de barro. Uma música de moda de viola temperava o ambiente e um cheiro
de comida de panela de ferro completava o sabor da roça.
Somente em um momento reparei que Gerárd fechou o rosto. Um dos filhos de Dona
Ana veio à mesa e, após alguns momentos de conversa, per‑
cebendo que eu e meu acompanhante éramos apenas amigos, deu uma pequena flertada
comigo. Pude sentir uma pequena onda de energia nega‑
tiva de Gerárd, mas que ele rapidamente disfarçou. Em seguida, começou a especular
sobre minha vida. Queria saber dos meus relacionamentos anteriores. Perguntava de
maneira aparentemente trivial e não percebi, pelo menos no momento, que ele estaria
anotando tudo mentalmente. Sempre fui muito discreta e não queria falar dos meus
relacionamentos assim, com um estranho, mas tudo parecia tão trivial e aquele homem
era tão sedutor que me abri além do que tencionava. Ele, por sua vez, também me falou
muito de si, sem ser demasiadamente chato. Dois casamentos, filhos que não mora‑
vam com ele e atualmente vivendo mais em hotéis que na própria casa.
– Nice. Vamos?
Eu ri.
– Excelente. Hoje é sexta. Podemos passar o fim de semana e voltamos na segunda ‑feira.
O clima está ótimo por lá no momento. Podemos passar em sua casa e pegar o
passaporte. Não se preocupe com roupas.
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Dei uma risadinha e tomei um gole de bebida. O que queria aquele homem? Estava
falando sério. A razão não me disse para duvidar. Aquela pes‑
soa movimentava milhões por mês. Influenciava congressos e ministros. Do que seria ele
capaz?
Era mais um desafio. E agora? Deveria pagar para ver ou recuar demons‑
trando razão e talvez medo? Ele não era um desconhecido e não devia ser um psicopata
que sumia com as pessoas secretamente. Como saber? Como saber se na verdade ele não
estava ali simplesmente tirando um sarro de mim, da minha pouca experiência?
– Ok! Eu topo.
Ele sorriu novamente. Perguntei ‑me pela milésima vez se estava falando sério. E o pior é
que estava mesmo. Fomos até meu apartamento para pegar meu passaporte, que por sorte
estava válido, e, claro, fiz uma malinha básica.
Não sabia ao certo o que colocar nela. Ainda pensei que se aparecesse com alguma coisa
ele riria da minha cara e diria:
– Você achou que a gente realmente fosse fazer uma viagem transcon‑
E se fosse mesmo verdade? O que usaria na França? Aquilo estava muito surreal para o
meu gosto. Resolvi ir de acordo com a correnteza. Ele disse que eu não precisava levar
nada. Ok. Contra todo o meu lado feminino gri‑
tando, peguei apenas uma bolsa maior, meu passaporte e desci o elevador.
Gerárd estava no carro, esperando. Quando voltei, ele estava falando em francês com seu
motorista. Ao chegarmos ao aeroporto, fomos conduzidos a uma área VIP e de lá para
um jato particular com o emblema da compa‑
nhia farmacêutica francesa. Aquilo, com certeza, poderia dar um problema ético se a
reportagem fosse para a frente.
– Não se preocupe. Isto aqui vai ficar entre nós. Qualquer coisa e você pode dizer que eu
só concedi dar qualquer tipo de entrevista nestas con‑
dições. Sou um homem ocupado e não posso me dar ao luxo de ter tempo para dar
entrevistas.
– E isso é verdade?
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lhosamente decorado com três bancos brancos reclináveis. Entre dois deles estava uma
mesinha. Um sofá do mesmo estofamento e ao fundo uma mesa de negócios sem papéis
ou qualquer coisa que denotasse falta de organi‑
pio enquanto o avião já taxiava. Ele recusou. Devia estar empanturrado de comida
brasileira. Fiz o mesmo. Em francês, o piloto nos informou que che‑
Recostou ‑se do outro lado do corredor e pareceu cochilar enquanto as luzes da cabine
diminuíam e o avião decolava. Recostei ‑me também em uma das confortáveis poltronas
e vi o avião subir e a grande cidade ficar a meus pés.
Após alguns instantes, levantou ‑se e sugeriu que eu relaxasse enquanto ele fazia algumas
ligações. Pediu desculpas por não lhe fazer companhia, mas eram assuntos de extrema
urgência. Em breve conversaríamos.
Sentou ‑se à mesa do escritório e iniciou um diálogo com alguém sem que eu pudesse
ouvir do que se tratava.
O céu estava claro e minha cabeça estava a mil. Tentava agir como se fizesse uma
viagem internacional toda semana, mas meu coração estava ace‑
– Um momento, por favor. Antes gostaria que você falasse com alguém que está na
França. Por favor.
Conduziu ‑me então para o fundo do avião, ao escritório, onde uma linda e sofisticada
mulher de meia ‑idade estava na tela. Com um sorriso enorme, disse que se chamava
Nicole e era secretaria de Gerárd. Pediu desculpas por seu português ser horrível e disse
que, se preferisse, poderíamos conversar 191
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em inglês. Falou como estava o tempo em Nice (muito sol) e de maneira descontraída
perguntou minhas medidas e meu gosto por roupas. Percebeu que fiquei bem sem jeito
com a situação, mas tentou me tranquilizar, como se fizesse isso todos os dias, e disse
que era especialista em situações inu‑
sitadas. Gerárd, que naquele momento estava sentado olhando o escuro da janela,
adorava fazer isso. Dei minhas medidas e meus gostos e Nicole foi anotando tudo em um
papel. Foi objetiva e prática em suas perguntas, sem nunca perder a simpatia. Pelo jeito,
simpatia e sedução eram caracte‑
rísticas marcantes para se trabalhar com Gerárd. Ao final, se despediu sem que eu
soubesse ao certo o que ela faria. Fechei os olhos e respirei fundo.
– Preocupações. Preocupações. Será que você não consegue relaxar um minuto? – Gerárd
surgiu com uma taça de vinho.
– Você vai saber quando chegar lá. Vamos conversar um pouco. Este é um excelente
vinho.
nais. Já sabia a maioria das respostas, claro, mas queria entender por que ele havia
tomado determinados caminhos. O que vi foi nada mais, nada menos que um homem
apaixonado pela vida e pelo que fazia. Adorava influenciar pessoas e convencê ‑las a
aceitar determinados pontos de vista, independen‑
– Não sei ao certo. Talvez fazer as pessoas perceberem que tudo é mutá‑
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Anotei a frase. Parecia soar bem. Ele desviava muito bem do verdadeiro assunto: o lobby
que estava fazendo no Brasil atualmente, mas eu esperava voltar a esse assunto em breve.
soa. – Aproximou ‑se alguns centímetros. – Eu gostaria de saber coisas sobre você,
confesso. Mas, como é uma viagem “profissional”, vamos deixar isso para depois.
– Ainda temos dez horas de viagem. Gostaria que repousasse um pouco porque o dia está
muito bonito em Nice e podemos aproveitar para passear e conversar mais um pouco.
Boa noite e obrigado por ter vindo. Aqui entre nós, estava sentindo muito falta de uma
companhia “de verdade”.
Em seguida, deixou ‑me ali em meus pensamentos por cima do oceano.
Eu já estava preparada para repelir qualquer ataque de sedução, pois todo o clima estava
chamando para isso. Mas ele simplesmente desligou sua luz de leitura e pareceu entrar
em sono profundo. Eu também estava exausta, mas minha cabeça fervilhava. Talvez
aquele homem quisesse apenas com‑
panhia mesmo. Eu estava me sentindo muita cheia de mim por pensar que uma pessoa
daquele calibre estivesse querendo me seduzir. O conforto da poltrona e o barulho quase
imperceptível do motor das turbinas aos pou‑
E uma pontada de prazer invadiu ‑me ao perceber que estava adorando tudo aquilo.
8. Eu tenho alternativa?
Gerárd surgiu barbeado, muito bem ‑disposto e perguntando se eu havia tido um bom
sono. Tomei uma ducha e uma roupa simples e confortável estava 193
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à minha espera. Foi servido um monumental café da manhã. Gerárd comeu pouco e disse
que em breve estaríamos chegando.
Era uma linda manhã de sábado e a cidade estava movimentada, embora não
estivéssemos em época de temporada.
Passamos pelo centro e pegamos uma estrada à beira ‑mar. Alguns qui‑
lômetros depois, entramos em uma casa rústica de muito bom gosto. Nicole estava nos
esperando e me conduziu ao quarto de hóspedes. Lá, abriu a porta do closet e uma série
de vestidos, calças, blusas estavam pendurados em um cabideiro, além de sapatos.
– Espero que seja do seu gosto – ela disse em um português carregado de sotaque
francês. Sem dúvida, Gerárd a fizera aprender a nova língua para tratar com seus clientes
brasileiros.
tamente. Agradeci a Nicole dizendo que aquilo não era necessário. Tentei pescar alguma
coisa dela sobre a personalidade de seu patrão, mas ela esquivou ‑se com maestria, não
demonstrando vontade de falar (coisa que em geral os empregados adoram fazer, falar
bem ou mal do chefe). Natural‑
mente, ser uma pessoa discreta era mais um dos requisitos para se traba‑
lhar com Gerárd. Ela, então, entregou seu cartão e disse que eu poderia chamá ‑la a
qualquer hora se tivesse qualquer necessidade. Agradeci nova‑
mente e ela se foi. Gerárd havia me dito que almoçaríamos e depois daría‑
mos um passeio pela cidade velha. Após uma reconfortante ducha, peguei um vestido de
veranico, um calçado confortável, um chapéu charmoso, um elegante lenço e óculos
escuros. Senti ‑me a típica turista. Ele me aguardava com uma bermuda, uma camisa e
um chapéu de motorista. Tudo branco.
Parecia um jogador de tênis. Estava em uma ampla sala com decoração rús‑
tica, porém rica nos detalhes. Cadeiras de palha, mesa de madeira e vários objetos que
lembravam navios, um timão, um navio dentro da garrafa, uma bússola antiga. As janelas
eram enormes e delineavam a vista para o mar, o qual estava muito próximo. Bastava
descer uma escadinha.
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Desta vez ele fez questão de dirigir um carro esporte e sem capota. Pelo que entendi o
carro era dele.
Fomos a um restaurante na cidade velha, na parte alta da cidade. Uma vista incrível de
telhados vermelhos e o mar ao fundo. No restaurante, Gerárd foi tratado como um velho
conhecido, que é o que deveria ser. Parecia estar entusiasmado e eu podia ver que muito
disso era porque estava acompa‑
ção, Gerárd foi me contando as histórias da cidade e um pouco dele. Não era nascido ali.
Era filho de agricultores do interior da França e, quando adoles‑
cente, um grande proprietário praticamente tirara a terra dos pais através de uma
negociata. Isso tinha lhe influenciado profundamente a vida. Achava absurdo que algo
que fora de sua família por tantas gerações simplesmente fosse tirado de uma hora para
outra. Prometera a si mesmo que jamais lhe tirariam o que era seu por direito. Os
casamentos? Gerárd parecia não querer entrar muito profundamente nesses assuntos.
– Elas se foram, ou fugiram, não sei. – Depois acrescentou, rindo: – Não devo ser um
homem fácil de se conviver.
tador. Não era como Cardoso, que desde nosso primeiro encontro tinha se mostrado uma
pessoa violenta e com enorme ego. Gerárd era simpático, sedutor e charmoso. Um
gentleman. Não sei se era assim mesmo ou se eram meus olhos que queriam vê ‑lo assim.
mente apaixonada.
Não sei se foi pelo vinho, ou por estar encantada, mas comecei a rela‑
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Às vezes, fitava ‑o e percebia que estava me encarando, sempre em meio a um sorriso.
Desviava os olhos e fingia que estava com o foco em outra coisa.
No carro, na volta, perguntou se havia gostado do lugar que escolhera para morar.
Respondi que era um dos lugares mais encantadores que havia conhecido, e era verdade.
Ele pareceu sorrir por dentro e convidou ‑me para jantar em sua casa, mais à noite.
– Eu tenho alternativa?
Arrependi ‑me no exato momento de ter dito aquilo. Não era eu que vivia dizendo que
tudo era profissional? E o pior é que queria obter muitas informações ainda, mas, depois
dessa derrapagem, ele deve ter percebido que eu estaria longe de ser confiável
profissionalmente. Era isso. Um teste para saber se todos esses mimos e surpresas
abalariam meu lado jornalista.
dizer, mas queria dar a entender que eu era uma profissional. Aquela frase podia não ter
soado do jeito que eu queria, mas não deixaria aquilo acon‑
tecer novamente.
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Mas como queria ou não queria dizer, permaneci calada, esperando que o silêncio fizesse
sua parte.
Gerárd percebeu que algo estava diferente. Esforçou ‑se para que o clima ficasse leve,
porém eu não colaborava. Exausto do esforço de puxar algum assunto, ele resolveu se
calar também e um silêncio pesado se formou. Aca‑
bei me acostumando ao seu jeito de perguntar a coisa certa na hora certa e continuei não
dizendo nada, embora quisesse que ele perguntasse por que eu estava calada. Seria por
causa do que ela disse na estrada? Sim. Era exa‑
tamente isso que eu queria que ele perguntasse. Mas ele também se calou, sabia jogar.
A culpa se instalou sobre mim. “Que diabo! Estou aqui em um lugar maravilhoso e
recebendo toda a atenção de um homem especial e o que eu faço? Acabo destratando
essa pessoa, mesmo ela sendo tão gentil comigo!”
Gerárd tinha descido as escadas que davam para a praia. Após alguns minutos de culpa,
resolvi ir atrás dele. Olhava fixamente para as ondas.
Cheguei por trás, pus a mão em seu ombro e o virei para mim.
– Desculpe, Gerárd. Sua companhia está de fato maravilhosa. Eu até achei que merecia
me culpar por aceitar essa viagem, mas não vou fazer isso. Se você achou que eu não sou
profissional...
Não conseguia dizer mais nada. Apenas segurei o seu rosto e o trouxe para junto de meus
lábios.
E aí esqueci de tudo, tudo mesmo.
9. Senti ‑me usada e enganada. Por que ele tinha feito aquilo?
Acordei sozinha na cama do quarto de Gerárd. Ele estava na praia, nadando, bem
cedinho. Em uma mesa estavam um vaso cheio de flores, um biquíni e um maiô. Um
convite para acompanhá ‑lo. Escolhi o maiô.
sar de a mulher profissional estar martelando minha cabeça a todo momento, 197
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tentando me culpar. Mas sem sucesso, pois eu só pensava no que tinha acontecido na
noite anterior e como tinha sido bom. E pensava no presente sem nenhuma consequência.
Na sala, havia uma mesa cheia de frutas e sucos. Uma senhora, que se apresentou como
cozinheira de Gerárd e se chamava Anete, disse para ficar à vontade. Em um francês
difícil de decifrar, disse que em breve serviria o café e que o senhor Gerárd estava na
praia. A senhora carinhosamente disse que, se eu fosse para lá, tomasse ao menos um
suco.
Tomei um suco maravilhoso e fui à praia. Gerárd aproveitava o sol fraco da manhã e
caminhava pela areia. Quando me viu, veio em minha direção.
Nós nos beijamos e ele me forçou a entrar na água. Estava fria, mas gostosa.
que não queríamos nos constranger, mas estávamos como dois namora‑
dos. Após um tempo, ele se ajeitou na cadeira, olhou profundamente para o mar e disse,
simpático e com um sorriso:
Eu ri, mas ele estava com um brilho no olhar. Fui perdendo a risada e disse:
– Contar o quê?
– Tudo. Você não precisa fazer uma reportagem?
E então desandou a falar sobre todos os seus esquemas, todo o suborno que costumava
usar, os altos escalões do poder que precisava corromper.
Pedi licença no começo da conversa, peguei um papel e uma caneta e comecei a anotar.
Podia anotar? Ele disse que sim com a cabeça. Perguntei sobre tudo. E ele ia me
respondendo ao longo da narrativa.
Ele deu de ombros como se estivesse fazendo a coisa mais comum do mundo:
– Tudo.
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Ele me olhou com jeito de quem derruba políticos o dia inteiro. Olhei com certa
desconfiança. Por que estava me contanto tudo aquilo depois da nossa noite?
vamos voando de volta ao Brasil. Ele estava muito calado, mas não aparen‑
tava preocupação. Estava mais em estado de contemplação. Às vezes, olhava para mim e
sorria.
Eu, por minha vez, estava danada. Tinha uma matéria nas mãos, mas fizera uma viagem
romântica e passara duas noites com a fonte da infor‑
mação. Era uma bela sinuca. Estava pensando nisso, quando reparei que Gerárd olhava
para mim com um sorriso encantador. Mandei a razão às favas e me acolhi em seu
ombro. Sentindo seu contato físico, esqueci nova‑
mente todas as minhas preocupações. Aquela viagem terminou em uma segunda ‑feira
em meu apartamento. E o homem pelo qual havia me apaixo‑
No dia seguinte, saí cedo para o trabalho. Deixei Gerárd em casa dor‑
mindo. No jornal, estava meu editor vermelho de raiva. Naquele encontro no restaurante
francês, recebera um recado dizendo que estávamos pedindo desculpas, mas não
ficaríamos para o jantar. Depois disso, não ouvira falar mais da gente. Estava quase indo
à polícia. Então relatei tudo o que havia acontecido (quase tudo). Ele achou maravilhoso
e me pediu os detalhes. Eu os dei, quase todos, e ele me encomendou a reportagem
completa. Disse que precisava de uns dois ou três dias para isso. Ele disse que eu me
apressasse.
E agora? O que escrever? Se escrevesse tudo o que Gerárd me havia relatado, ele
perderia o emprego e talvez enfrentasse um processo nacional.
Mas queria que eu contasse. Queria. Ele não havia dito que de uma maneira ou de outra
me contaria tudo? Então. Esse foi o sinal para que publicasse tudo o que eu quisesse.
Então, assim fiz. Relatei as informações de Gerárd 199
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dida nesses pensamentos, fui tirando a culpa por acabar com a vida profis‑
guei às mesmas respostas. Fiquei torcendo para ele ligar, o que aconteceu mais tarde.
Estava com uma voz muito calma. Receei um pouco, tomei cora‑
gem e falei sobre a reportagem e sobre as consequências para ele. Gerárd nem me deixou
terminar. Disse que ficasse tranquila e não me preocupasse com nada. Ele já era bem
grandinho e sabia o que fazer. Pediu que não tocasse mais no assunto. Em seguida,
começou a me recontar a nossa histó‑
ria e falar de como tudo havia sido maravilhoso. Agradeceu pela noite e disse que não via
a hora de se encontrar comigo novamente, se fosse possível.
Eu queria muito que fosse, mas não sabia como ele reagiria à publica‑
ção. Tinha medo que, mesmo me dando carta branca, nunca mais olhasse em minha cara.
Afastei as preocupações ouvindo sua voz. Resolvi que, se eu o procurasse, “se”, seria só
depois da publicação.
Mandei ‑a via e ‑mail para meu editor. Ao chegar ao jornal, ele estava com cara de
poucos amigos. Um dos diretores estava junto e fomos para a sala de reuniões, já fui
perguntando se a minha reportagem estava ruim ou se estavam duvidando de alguma
coisa. Negaram ambas as coisas. Acredita‑
vam nela e tudo estava muito bem escrito... Mas nada daquilo podia ser publicado. Me
pediram desculpas, mas disseram que aquela reportagem já não interessava ao jornal.
Meu queixo caiu. Não estava entendendo nada. Como assim? Tinha
alguma coisa que eu não sabia? Aos poucos um nome me veio à mente: Gerárd. E a ficha
começou a cair. Ele havia mexido seus pauzinhos. Havia me contado tudo porque sabia
que nada seria publicado. Não consegui e não queria disfarçar minha ira. Comecei a
protestar. Meu editor foi me acal‑
diretor foi duro comigo. Disse que eu podia espernear, mas precisava saber as regras da
casa. Se não quisesse trabalhar com o jornal, a porta estava aberta.
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– Pois muito bem – eu disse e saí da sala bufando. Aquilo só podia ter o dedo de Gerárd.
Eu não podia acreditar. Liguei para o celular dele. Ele não atendeu. Senti vontade de
jogar o aparelho pela janela. Ele tinha um escritório que ficava no centro da cidade. Saí
do jornal, peguei um táxi e rumei para lá. Ele teria que me dizer se tinha alguma coisa a
ver com aquela farsa.
xariam entrar se Gerárd não autorizasse. Próximo dali, ficavam as portas dos elevadores.
Não tive dúvida. Pulei a catraca e corri para uma das por‑
tas. O elevador se fechou enquanto os seguranças estavam atordoados com uma louca
pulando a catraca. Ao chegar ao seu andar, dois homens de terno já estavam à minha
espera e me agarraram pelos braços. Comecei a gritar na frente da porta de vidro de seu
escritório. A secretária estava em alerta, provavelmente ligando para ele. Quando
estavam tentando me enfiar no elevador, Gerárd finalmente apareceu e acalmou a
situação. Disse para os brutamontes que eu era sua convidada e pediu desculpas pelo
tumulto.
Ele então me encaminhou para a sua sala. Soltando fogo pelas ventas, entrei rapidamente.
Ele entrou atrás de mim, receoso, e fechou a porta. Eu andava de um lado para o outro.
– Foi você que fez isso? Não minta pra mim. Você me usou pra passar a noite comigo?
Foi isso?
Nunca diga a uma mulher que não está calma que ela precisa se acalmar.
– Seu canalha! – gritei. – Você pensa que o mundo é um tabuleiro de xadrez? Pensa que
as pessoas são peças na sua mão? Pois eu não sou, enten‑
Me senti usada e enganada. Por que ele tinha feito aquilo? Por que me contar tudo para
que eu não pudesse usar? Por quê?
Não sabia para onde ir. Semanas de preparação para a reportagem joga‑
das fora. Aquela era a primeira vez que eu via realmente a demonstração de poder de
Gerárd e fiquei assustada. Como alguém pode simplesmente impedir uma publicação de
um órgão da imprensa livre? Como?
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plando o pequeno lago na imensidão da cidade. Alguns dias atrás, estava olhando para o
mar e o mundo era maravilhoso. Agora olhava para um lago malcuidado. Estava frio e
ameaçava chover. Não sei quanto tempo fiquei por ali, encostada na grade que me
separava do laguinho, até que me virei e próximo estava Gerárd, sentado em um banco e
segurando um casaco.
Eu me aproximei mais calma, porém muito magoada, e sentei ‑me ao seu lado. Ele me
ofereceu o casaco e eu deixei que colocasse. O contato dele com minha pele foi
reconfortante. Fiquei ao seu lado em silêncio. Por alguns momentos, ninguém disse nada.
Ficamos só contemplando a natureza empa‑
– Nunca contei para ninguém o meu sistema de trabalho, mas vi algo especial em você.
– Uma bela frase feita. Mas eu precisava fazer papel de trouxa nessa história?
– Você já estava fazendo, acreditando que seu jornal tinha algum inte‑
resse patriótico pesquisando minha vida e meu trabalho. Eu só fiz você ver para quem
realmente está trabalhando.
– E para quem?
– Você disse que eu estou jogando xadrez? Não estou. Eu também sou uma peça nas
mãos dos jogadores.
– Que jogadores?
– Como assim?
– Uma repórter não segue as pessoas? Não vai atrás delas e descobre o que lhes
interessa?
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– Meses.
– Você já conseguiu.
– Não quero você por uma noite. Quero você em minha vida. Quero essa mulher
inteligente e sensível, e agora, espero, mais realista. Gostou da minha cidade? Venha
morar comigo.
– Se você reagiu no jornal do mesmo jeito que estava em meu escritório, então creio que
você já não tem emprego.
– Eu quero.
– Eu quero!
E nos beijamos naquela praça fria, enquanto começava a chuviscar. Mais uma vez havia
jogado meu destino nas mãos de outra pessoa.
10. Vê se pode! Ele queria se encontrar comigo em Paris A mudança não ocorreu
rapidamente. Levei alguns meses para me
mudar para outro continente. Meu irmão estava casado e preocupado com os problemas
dele. Minha mãe também havia se casado novamente e vivia com o marido em outro
Estado. Meu editor implorou para que eu não me mudasse, mas não tinha nada a perder.
Além do quê, eu estava terrivel‑
mente decepcionada com o jornal e com o mundo político depois que des‑
cobri (ou me fizeram descobrir) os verdadeiros interesses do jornal. A única coisa que me
interessava era Gerárd. Não queria saber de convicções polí‑
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Mas eu queria tapar o sol com a peneira e pensava que o errado não era ele que oferecia
suborno, mas os outros que aceitavam. E, amarrada a essa frágil convicção, deixei‑me
levar por aquele homem. Mesmo largando o jornal, não queria deixar de trabalhar
(embora ele não quisesse), fiquei um tempo em sua casa (minha futura casa), procurando
emprego e aperfei‑
Como Nice é uma cidade turística e meu francês ainda era meio capenga, acabei
mandando uma proposta para uma revista americana. Gostaram muito do meu trabalho e
poderia ficar na França falando sobre moda e cultura europeia, especificamente a
francesa. Poderia me estabelecer em Nice, mas teria que viajar pela França e talvez pelo
resto da Europa. Gerárd se opôs.
Não conseguiu dar um motivo muito claro, mas percebi que ele não queria que eu
viajasse tanto. Mesmo sem sua aprovação, esperei a resposta. Que veio negativa. Por
telefone, entrei em contato perguntando o porquê da recusa, visto que estava qualificada
e tinham gostado de meu material. Res‑
ponderam que era uma questão de corte de gastos. Achei muito estranho, porque foram
eles que ofereceram a vaga. Enfim, um dia um editor de uma revista francesa me ligou e
disse que estava muito interessado em meu traba‑
tar. Muito conveniente para mim. Muito conveniente para Gerárd também, pensei.
Aceitei o emprego e comecei a escrever uma coluna duas vezes por semana para essa
revista francesa.
Gerárd vivia em uma ponte aérea maluca entre a França e o Brasil. Sem‑
pre que podia, voltava para passar dois ou três dias da semana comigo. Era muito
amoroso e atencioso. Falávamo ‑nos todos os dias e ele fazia questão de ler tudo o que eu
escrevia e dar suas opiniões e críticas.
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trá ‑los em um restaurante. Pela simpatia deles, dei uma de guia turística e lhes falei
pessoalmente onde comer, o que fazer, quais as melhores praias.
Estranhamente, quando a esposa se ausentou por alguns instantes, o marido me confessou
que estava em um processo de separação e que aquela era uma última tentativa de se
reconciliarem. Ele pegou em minha mão e agra‑
deceu muito a ajuda. Porém, seu olhar revelava um pouco mais que agrade‑
cimento. Quando ela voltou, tentei manter a simpatia, mas achei tudo muito estranho.
Tratei de dispensar o casal o quanto antes, sem ser indeli‑
cada. Ao voltar para casa, pensei que deveria ser mais cuidadosa e não me envolver com
meus leitores dessa maneira. Assim que cheguei em casa meu celular tocou. Era Gerárd.
Perguntou se estava tudo bem. Se eu estava em casa. Respondi que tinha acabado de
almoçar com um casal de leitores americanos. Ele queria mais informações sobre o casal.
Eu não quis contar por telefone o ocorrido com o marido. Deixaria para falar quando
chegasse.
Perguntei quando ele viria, Gerárd desconversou e disse que tinha muito trabalho.
Desligou um tanto quanto reticente. Senti algo estranho na liga‑
No dia seguinte me ausentei durante todo o dia e ao chegar em casa encontrei Gerárd na
sala, sentado em sua poltrona, de uma maneira um tanto quanto sinistra. Ao me ver,
colocou um sorriso no rosto, beijou ‑me e quis saber como eu estava, o que tinha feito.
Antes de responder, per‑
guntei por que tinha vindo sem avisar. Ele sorriu e disse de forma que parecia leviana:
– É minha casa, minha companheira. Por acaso não posso largar tudo e vir correndo para
os seus braços? – Deu uma gargalhada. – Você está escon‑
Ri dele, mas fiquei com uma certa pulga atrás da orelha. Ele quis saber mais detalhes do
casal que eu havia encontrado. Como se chamavam, de onde eram e como foi exatamente
que nos encontramos. Eu disse tudo, mas o interrogatório começou a me incomodar.
Como assim, ele chega do nada 205
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e começa uma caça às bruxas? Eu não tinha nada a temer, pelo contrário, era uma mulher
extremamente apaixonada, talvez vivendo o momento de maior felicidade de minha vida.
Acabei não contando sobre o marido.
Ele me olhou desconfiado e perguntou se eu não tinha mais nada a dizer, mais nada a
acrescentar.
Por um momento, parecia que ele estava pronto para explodir. Fez uma expressão que eu
já conhecia bem. Fiquei um pouco tonta. Era um misto de dureza na boca e sobrancelhas
em “v”. Quando viu que eu estava assustada, Gerárd desfez a careta e disse com ar
jocoso:
– O que é isso, querida? Não quero te dizer nada. Só vim aqui porque estava com
saudades da minha amada.
Em seguida, dirigiu ‑se a uma pequena adega que ficava na sala, pegou um vinho e abriu.
– Eu estou aqui, contigo. E isso é o que importa. Estamos protegidos em minha casa,
quero dizer, em nossa casa – continuou de maneira um tanto quanto irônica. – Eu apenas
gosto de proteger o que é meu.
Você, obviamente, não é posse minha. Eu não poderia te controlar, nem se quisesse. A
única coisa que temos, além do nosso amor, é a confiança. – Em seguida levantou sua
taça. – Um brinde à confiança.
Brindei, mas aquela conversa estava muito, muito estranha. Como eu nunca tinha
passado por aquela situação com Gerárd, então, a novidade me causou uma paralisia no
momento. Não soube nem o que dizer, mas obvia‑
mente ele estava me escondendo alguma coisa. Ele queria dizer algo, mas não disse. Nem
voltamos ao assunto porque ele relaxou (ou pareceu rela‑
xar) e mudou de conversa. Disse como estavam o Brasil, seu trabalho e seus problemas.
Também relaxei e estava ansiosa por ouvir notícias do Brasil.
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– Negócios. Muito trabalho. Mas eu estava morrendo de saudades. Não resisti em fazer
essa surpresa.
No dia seguinte, embarcou cedo no jatinho da empresa, deixando ‑me ali, cheia de
suspeitas. Continuei minha rotina na cidade, avaliando restau‑
Algumas semanas depois, recebi um e ‑mail do homem que viera com a esposa. Dizia
que a viagem de reconciliação não havia dado certo e que estavam separados. Respondi
lamentando, torcia para que ambos fossem felizes no futuro. Descaradamente, o ex
‑marido me respondeu dizendo que estaria em Paris no próximo fim de semana e
perguntou se eu não poderia encontrá ‑lo na cidade.
Respondi friamente que não. Fui além. Pedi, por favor, que não me escrevesse mais.
Pronto. Quando Gerárd chegou (coincidentemente um dia depois dessa correspondência),
estava tão irritada com o homem que con‑
– Vê se pode. Ele queria se encontrar comigo em Paris. Bem que eu estranhei quando ele
pegou em minha mão no restaurante.
– Não.
– Pois ele pegou e me falou que estava se separando da esposa. Agora ele me vem com
essa. Francamente.
Quando eu disse essas palavras, tive a sensação que um peso enorme foi tirado dos
ombros de Gerárd. Ele respirou fundo e pediu que eu não me correspondesse com essa
dose de intimidade com os leitores. Afinal, nunca se sabe quem pode ser o leitor. Já
imaginou se fosse algum psicopata?
Eu sorri, abracei ‑o e disse que tomaria cuidado dali por diante. Ele sugeriu que eu
mudasse meu e ‑mail. Eu disse que por contrato tinha que divulgar meu endereço
eletrônico, justamente para que os leitores tirassem suas dúvidas.
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Esqueci ‑me do ocorrido e nem me lembrei de que o ex ‑marido estaria no fim de semana
em Paris. Passou ‑se o fim de semana e no meio da semana seguinte lembrei ‑me dele e
fiquei aliviada por não ter recebido nenhum e ‑mail.
– Deve ter se tocado – pensei comigo e deixei passar. O que se seguiu foi estranho e
insólito. Passados alguns dias, meu editor na França mandou um comunicado pela
internet dizendo que todos os colaboradores deve‑
riam ter e ‑mail fictícios, que seriam diretamente enviados para a revista e depois
encaminhados para os destinatários. A justificativa era que a revista estava sendo
avaliada em uma pesquisa e precisaria centralizar as mensa‑
Achei tudo muito furado e imediatamente fiz uma ponte com a ideia de Gerárd de que
nenhum colaborador deveria ter um e ‑mail na revista. Não era possível. Eu não tinha
dito a ninguém o que havia acontecido. Mesmo porque não era nada demais. Muitos
leitores folgados deveriam entrar em contato diariamente com os autores das matérias.
Na verdade, eu tinha con‑
tado somente para Gerárd. Será que ele teria ligado para meu editor? Será que ele teria
algum tipo de influência na revista? Percebi que já não achava tão absurdo pensar que ele
tivesse feito isso. Já estava achando ‑o ciumento demais. De um tempo para cá, quando
saíamos pela praia, começara a cha‑
Por conta disso e de uma crescente indisposição, passamos a ir muito pouco à praia.
Fazia questão que eu não fosse sozinha. Que esperasse por ele. Às vezes eu não dizia que
ia sozinha (pois não perderia uma praia daquelas), ele me ligava à noite coincidentemente
e perguntava se eu tinha saído. Eu não conseguia mentir e dizia a verdade. Ele ficava
meio nervoso.
Dizia que era um perigo andar na praia sozinha. Eu fazia charminho e dis‑
Saíamos menos para a cidade e ele sempre queria voltar. Queria ficar em casa. Lá ele era
romântico, doce e sensível. Eu tinha toda a sua atenção.
Até demais, para falar a verdade. Ele queria estar sempre junto, sempre conversando.
Mudava o humor por um instante, quando eu atendia a uma ligação e era algum colega
do Brasil, ou mesmo da cidade.
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Portanto, não achei estranho imaginar que Gerárd tivesse influenciado o editor de algum
jeito. Fiquei alguns dias matutando essa ideia quando dois homens bateram à porta de
casa. Eram da polícia. Queriam saber se podiam fazer algumas perguntas informais sobre
uma ocorrência em Paris.
Mas o que eu teria feito em Paris? Os policias insistiram que eram só algu‑
mas perguntas, mas se quisesse poderia fazer o favor de ir à delegacia. Como não devia
nada a ninguém, chamei os dois para conversarem na sala. Fui ficando boquiaberta
quando os policiais relataram o fato e enxerguei a liga‑
– Um americano estava de passagem por Paris e, quando saiu do hotel, à noite, foi
brutalmente espancado. Ele está fora de perigo, mas hospitalizado.
O caso gerou um incidente internacional. Nas diversas linhas de investiga‑
ção, uma diz que foi vingança. Os policiais franceses checaram seu e ‑mail e descobriram
que dois deles eram direcionados para a senhora.
cano. Não. Não. Era impossível. Relatei o caso do casamento falido dele e de como
queria que eu fosse a Paris. Mas, e eles podiam ver pelo e ‑mail, eu dissera
categoricamente “não” ao americano. Perguntaram se eu havia con‑
Perguntei se eles queriam dizer que meu companheiro tinha parte nisso.
Claro que não, disseram, só estavam checando os fatos. Deram ‑me um car‑
tão para que ligasse caso tivesse qualquer dúvida e disseram que entrariam em contato se
tivessem uma informação relevante. E partiram.
Gerárd não podia ter feito isso. Ele teria que ter acesso aos meus e ‑mails para saber
quem era esse tal americano. Será que estava me vigiando?
Quanto mais pensava, mais atônita ficava. Uma intuição dizia que deve‑
ria apurar aqueles fatos. Primeiro, saber se estava ou não sendo vigiada, ou seguida.
Lembrei ‑me do dia em que ele tinha aparecido de surpresa no dia posterior ao encontro
com o casal e de como achava que eu estivesse escon‑
dendo alguma coisa dele. Lembrei ‑me de que não havia contado que o americano tinha
pegado em minha mão. Somente semanas depois contara isso. Alguém havia dito a ele
que eu tinha me encontrado com um casal 209
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americano? Estava sendo seguida? Não podia ser. Aquele paraíso se trans‑
net, vi todas as pessoas que trabalhavam na revista, depois vi os diretores, então quis
saber dos acionistas. Para minha surpresa, descobri que Gerárd era um dos grandes
acionistas da revista. Ele praticamente devia mandar lá.
Teria Gerárd entrado em contato com a revista americana e influenciado para que eu não
conseguisse o emprego e assim não tivesse que viajar pela Europa toda? E depois uma
revista que era praticamente dele oferecera um emprego impossível de recusar.
“Claro que sim, sua burra”, pensei comigo. Uma parte queria acreditar no marido, mas a
outra estava percebendo o monstro no qual meu compa‑
Precisava falar com ele. Liguei e disse o que tinha acontecido com a polícia (sem citar
nenhuma de minhas suspeitas):
– Só a verdade. Eu acho que eles estão desconfiados de que você tem alguma coisa a ver
com isso.
– Minha querida, não se preocupe. Na certa, deve ser algum engano terrível, eu vou
resolver isso.
– Não vamos mais falar nisso. – E mudou de assunto. Disse que estaria na França o
quanto antes e desligou.
Dois dias depois Gerárd apareceu. Logo fui perguntando sobre o pro‑
blema com o americano. Ele disse que aquilo havia sido resolvido. Como?, perguntei.
Ele disse que fora um terrível engano. Descobriram ter sido um assalto e o caso havia
sido encerrado.
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Tentou me acalmar dizendo que a única maneira de ele saber onde estava hospedado o
americano seria olhando meu e ‑mail. E jamais violaria minha privacidade.
Novamente fui à internet e descobri onde estava internado. Liguei para o hospital. O
americano estava incomunicável. Na dúvida, se queria saber a verdade ou não, comprei
uma passagem e voei para Paris naquele mesmo dia. Antes de ir ao hospital, passei em
uma loja de informática e deixei meu notebook para limpeza. Disse que depois voltaria
para pegá ‑lo. Encontrei o hospital do americano. Podia receber visitas? Só de parentes.
Eu era sua irmã, disse. Dei minha identidade e entrei no quarto. Realmente estava bem
machucado, com faixas em várias partes do corpo. Ao me ver, fez uma cara de terror.
Pediu que me afastasse, disse que era louca.
Não estava entendendo nada. Pedi que se acalmasse. Ele me disse algo muito estranho.
Que não era porque tinha aceitado meus “acordos” que pre‑
– Quer dizer que você não sabe que um advogado me visitou, entregou uma quantia em
dinheiro e disse para aceitar e dar o fora do país?
– O quê?
– Disse também que se continuasse a paquerar senhoras casadas as coisas podiam piorar
– confessou um pouco envergonhado.
E acho que faltava aquilo para saber que, de fato, Gerárd tinha feito um atentado contra
aquele homem. Pedi desculpas. Disse que entraria em contato. Voltei à loja de
informática e o dono me perguntou se eu não tinha um antivírus. Disse que sim. Então
me falou que devia ser muito fraco, pois encontrara instalados vários vírus que roubavam
senhas do usuário do computador.
Voltei a Nice disposta a ter uma conversa muito séria com Gerárd quando voltasse.
No dia seguinte, ele estava em casa. Fui fria. Ele também estava com ar pesado.
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– Por quê?
– Estou sendo seguida? Por que esse notebook estava infestado de vírus que roubam
senhas? Por que o americano disse que estava sendo amea‑
ria a verdade dele. Ele negou, mas continuei a quase berrar em seus ouvi‑
dos. Não acreditava. Por que ele tinha aparecido justamente no dia em que o americano
havia segurado minha mão? Alguém tinha enviado uma foto daquele momento. Era isso?
Era isso? Era? Era?
– O que você queria que eu fizesse? Ele tentou roubar você de mim!
– Querida. Você é minha esposa. Minha companheira. Minha. E o que é meu, ninguém
tira, está ouvindo? Ninguém tira!
Ele dizia como se estivesse falando não para mim, mas através de mim.
– Eu não queria. Mas como ia cuidar de você de longe? Tive que colo‑
car uma pessoa para te olhar. Para saber se havia algum perigo à sua volta.
– Todo o dia?
Respirei fundo. Até onde aquela conversa estava indo? Um desejo de fugir tomou conta
violentamente de mim. Queria estar bem longe dele nesse momento. Mas tinha a
sensação que não podia contar nada para aquele homem. E isso me dava mais pânico,
que tentei com todas as minhas forças controlar.
– E funcionou. Você está aqui, sã e salva, meu amor. E agora? Podemos mudar de
assunto?
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Fiz seu jogo e concordei com tudo. Tentei sorrir, mas percebeu que estava nervosa.
Tentei disfarçar dizendo que naquela noite tinha ficado muito abalada com tudo aquilo e
que tinha certeza de que ele estava fazendo o melhor por mim. Fomos dormir e senti
muito medo. Ele me abraçava forte e tive a sensação de que estava dentro de uma planta
carnívora se fechando...
Foi um fim de semana difícil. Tentei ficar o mais longe possível dele, mas era impossível.
Porém, em minha mente, estava traçando um plano de fuga. Assim que partiu, resolvi
que precisava partir também. Tinha que sair de Nice com a certeza de que não estaria
sendo seguida. Do mesmo jeito que cheguei, resolvi partir: com uma pequena bolsa,
peguei um táxi, pedi para o motorista tomar vários caminhos, depois peguei mais um
táxi. Fui até a rodoviária e por fim entrei em um ônibus para a Espanha. Em Madri,
hospedei ‑me em uma pequena pousada até pegar um voo para o Brasil.
Antes, comprei um celular (deixei o meu propositadamente em casa) e liguei para meu
antigo editor. Contei meus medos básicos e disse que estava voltando. Perguntei se ele
poderia me receber no aeroporto e, com sua resposta afirmativa, agradeci imensamente.
No aeroporto, fiquei aguar‑
dando no embarque à espera do meu voo. Nervosa, mas aliviada por estar longe daquele
homem. E, claro, também estava com o coração partido.
Tinha ficado neurótica? Será que imaginei que Gerárd colocaria a minha vida em perigo?
Nesse momento de devaneio, um senhor distinto (que me pareceu meio familiar) me
entregou um telefone celular e partiu. Por reflexo, peguei o telefone e disse: “Alô?”. Do
outro lado da ligação Gerárd respon‑
deu um frio “alô”. Disse que não imaginara que eu estivesse fazendo aquilo, fugindo
como uma ingrata. Sem perder a calma, tentou me humilhar e em seguida quis fazer com
que voltasse atrás. Confessei que estava assustada e não queria me encontrar com ele.
Ainda mais depois que colocara pessoas para me seguirem. De onde tinha vindo aquele
homem? Era ele que vinha me seguindo por toda Nice? Gerárd retrucou perguntando se
achava que era louco. Não respondi. Disse, após um silêncio, que queria voltar ao Brasil.
Depois conversaríamos. Ele repetiu que eu era mulher dele. Que não podia fazer aquilo.
Por último, com toda a calma, quando viu que não tinha saída, adotou um tom casual.
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Desliguei o telefone com medo e raiva. Em seguida, começou a tocar novamente. Joguei
‑o no chão e pisei até que se calasse. Sabia que estava sendo seguida. Quantos homens
estariam atrás de mim? Meu editor, que estaria me esperando, corria perigo? E minha
família? Por via das dúvidas, entrei em uma lan house, criei uma conta, gravei algumas
coisas e as joguei na “nuvem”. Mandei uma cópia da gravação para algumas pessoas
confiá‑
veis e, inclusive, para o meu marido. Para que soubesse o que tinha feito.
Não sei se isso influenciou em alguma coisa, mas nada me aconteceu no voo, nem
mesmo quando meu editor me pegou no aeroporto. Pergun‑
tei se podia dormir em sua casa. Disse que sim. No caminho, vi a sombra de Gerárd por
todos os lados. Pediu que me acalmasse e lhe contasse tudo.
Naquela noite, tentei dormir, mas estava com medo. Medo de até onde as garras de meu
“companheiro” podiam ir. Medo das ameaças veladas e da possibilidade real de algo
muito ruim acontecer comigo.
11. Como não vivia de brisa, voltei a procurar trabalho Então me isolei. Fechei ‑me
dentro de casa como se fosse uma tarta‑
ruga encolhida no casco. Não saía para nada. Tinha medo da campainha, do telefone, do
correio. E, por incrível que pareça, Gerárd não entrou em contato comigo. Às vezes, o
telefone tocava e ninguém dizia nada do outro lado da linha. Eu começava a gritar o
nome dele, pedindo que me deixasse em paz. Em seguida a linha caía. Foi um período
duro em que o medo foi meu companheiro. Depois de algumas semanas, recebi tudo o
que era meu 214
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em algumas caixas sem remetente. Aquilo me assustou mais ainda, mas, por outro lado,
parecia que Gerárd tinha desistido de mim.
mos um dia, para que eu pudesse espairecer. Fomos a um café no centro da cidade, muito
agradável, cheio de gente bonita. Consegui relaxar sem ficar olhando minha sombra. Em
um certo momento, meu amigo recebeu um telefonema e se retirou um instante. Um
garçom se aproximou e me entre‑
gou um bilhete, apontando para uma mesa onde não havia mais ninguém.
Abri intrigada o pequeno recado. Apenas uma frase: “Nunca se esqueça de mim”.
Passei mais alguns meses dentro de casa, imaginando ser seguida aonde quer que eu
fosse. Não recebia visitas porque, se o apartamento tivesse grampos, estaria sendo vista e
ouvida. Era como se Gerárd estivesse sentado no sofá, olhando diretamente para mim
vinte e quatro horas por dia. Meu editor recomendou que eu fosse à polícia ou ao
psicólogo, avisou ‑me que, de um jeito ou de outro, por ameaça real ou não, minha
integridade estava em perigo. Estava tão assustada que não tinha forças para ir nem a um
lugar nem a outro. Também não entrava na internet, pois desconfiava que meu notebook
estivesse cheio de grampos. Estava ficando mais que neurótica. Os dias se passavam e eu
ficava cada vez mais medrosa.
Um dia, cheguei à conclusão de que precisava fazer alguma coisa ou findaria meus dias
dentro de um pequeno apartamento. Fui ao parque da frente e me sentei em uma mureta
em frente ao playground. Estava uma linda tarde de outono; os pequenos e esfuziantes
gritos das crianças, naquele momento, me soaram como música. Fechei os olhos e
respirei fundo, imersa naquele oásis bem no meio da selva de pedra. Uma menina de
mais ou menos três anos veio em minha direção, empinando uma pipa. De repente, ela
parou do meu lado e se deu conta de que eu estava próxima. Ao me perceber, olhou nos
meus olhos e me ofereceu a linha para que eu empi‑
nasse o seu brinquedo. Fiquei paralisada na frente daquele toco de gente, provavelmente
muito mais feliz e livre que eu, vivendo a simplicidade e a grandiosidade daquele
momento, mesmo sem saber. Peguei a linha e passei 215
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a mão em sua cabeça loirinha. Estava tão sensível e fragilizada que come‑
cei a chorar. Tentei disfarçar para que não pensassem que eu era uma pessoa em
desequilíbrio. Devolvi a linha, agradeci e ela se foi com o brinquedo.
Depois daquele dia, algo mágico aconteceu dentro de mim e não senti mais medo.
Aparentemente, deixei de ficar refém de meus fantasmas. Depois do evento da criança
com a pipa, optei pela vida no sentido maior que um dia já havia conhecido.
Como não vivia de brisa, voltei a procurar trabalho. Se estavam me vigiando, procurei
não me importar. Não devia nada a ninguém. Gerárd sabia que eu não exporia sua vida e
seu trabalho, pelo menos, deveria saber.
Além do quê, eu tinha minhas garantias postadas no mundo virtual e ele sabia disso.
Atualizei meus contatos e me empreguei em uma modesta editora, onde fazia reportagens
sobre cultura geral.
Aos poucos fui voltando a me socializar, mas dos relacionamentos íntimos eu queria
distância. Todos que me abordavam eu já encarava como futuros agressores. Via neles o
futuro. Sabia que os mimos, sorrisos e elogios eram só disfarces para me conquistar e, em
seguida, cedo ou tarde, viriam violências de toda forma, ameaças, posse. Os homens se
tornaram objetos para mim. Não sempre, mas algumas vezes eu os usava por uma noite
ou duas e em seguida sumia. Sim. Praticamente fugia deles. Do meu trabalho, nem
pensar. O trabalho era meu oásis e eu não queria que nenhuma relação afetiva pudesse
perturbar a nova sensação de paz recém ‑conquistada.
Os meses foram passando e eu, cada vez mais desacreditada dos rela‑
cionamentos. Pensava que ficaria sozinha o resto da vida, mas, mesmo em meio a esses
direcionamentos de vida autoimpostos e contra minha von‑
tade, uma tristeza enorme repentinamente me tomava. Sabia que a vida dos casais não era
uma maravilha, mas será que não poderia ter uma vida normal?
Uma vida sem agressões, posse ou ameaças? Os homens passaram a ser um perigo, e
mesmo que me afeiçoasse a alguém, depois de algumas semanas, ou mesmo dias, já
imaginava todo o romance se transformando em algo que violentamente e de uma hora
para outra fosse me acuar. O que estava acon‑
tecendo comigo? Sabia que havia algo de errado em mim. Meu lado racional começava a
me dizer que não eram os homens o problema, e sim eu!
216
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tou também que, apesar de não querer se intrometer, gostaria de indicar uma pessoa que
talvez pudesse me ajudar. Era uma terapeuta que ela havia conhecido por meio de uma
indicação, quando um dia precisara muito, e agora gostaria de fazer o mesmo comigo. Se
eu quisesse saber mais informa‑
nhia, percebi ‑me extremamente deprimida e solitária numa vida sem sen‑
tido. Recentemente tinha conhecido uma pessoa bacana e nós havíamos ficado juntos
algumas noites. Mas assim que ele tentou participar da minha vida eu o afastei como
sempre fazia. Ele, por sua vez, continuava a me ligar ou enviar mensagens que eu não
queria responder. Eu estava literalmente me torturando por fazer isso.
trei uma série de artigos dela sobre questões de relacionamentos afetivos de toda ordem e
me identifiquei. Vários deles me chamaram a atenção, princi‑
ções para que a ferida cicatrize. Da mesma maneira, nosso sistema cria condições para
que a cura de emoções perturbadoras ocorra. Muitas vezes, porém, na época em que
algumas questões difíceis nos acontece‑
ram, ainda tínhamos pouca idade e, por conta disso, nossos recursos de sobrevivência não
estavam plenamente desenvolvidos. O mecanismo 217
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Silvia Malamud
çar aquele ponto ‘congelado’, o organismo fica como que possuído pelo pacote
dissociado da consciência, exteriorizando de modo cego seus medos e defesas. Tudo isso
para se proteger de algo que talvez nem mais afetasse a pessoa na realidade atual.
Quando em EMDR,
o caminho neurológico do agora se junta com esses tempos difíceis, podendo reprocessar,
dessensibilizar e digerir tudo o que ficou indi‑
gesto até que pensamentos, emoções e a maneira de lidar de modo saudável com a vida
sejam totalmente redimensionados.”
Confesso que fiquei impressionada com o que lia e com o sentido que esse novo mundo
de possibilidades ia se apresentando como real à medida que entrava mais e mais em
contato com o tema. Não tinha ideia, porém, que estava prestes a iniciar uma jornada que
ressignificaria minha vida como um todo. Inúmeras interrogações assolavam minha
mente... Pensava que, absolu‑
tamente, todos os meus dramas afetivos deviam ter um padrão de atração que eu
vivenciava sem saber. Estava ansiosa para me descobrir e conhecer meus motivos
profundos, que estavam além da minha percepção comum. Queria reprocessar ambientes
conhecidos meus, que traziam toda sorte de vivên‑
cias indesejáveis para minha vida. Entendi que podemos mudar o circuito neurológico de
resposta viciadas para um padrão muito mais satisfatório!
Li todos os artigos que encontrei a respeito disso e fiquei extremamente curiosa para
conhecer mais. Seria mesmo possível reprogramar o cérebro para que pudéssemos fazer e
ser apenas aquilo que nos faz bem? O que nos deixa felizes de verdade e, portanto,
saudáveis? Seria essa a nossa verdadeira natureza? Mandei um e ‑mail para a psicóloga,
autora dos artigos, elogiando e ainda assim duvidando de algumas coisas. Parecia ‑me tão
fantástico, que achava impossível. Ela me respondeu na mesma noite, agradeceu o
contato e 218
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tada avenida. Era discreto, porém, de muito bom gosto. A terapeuta me recebeu no
horário combinado. Sentamos em poltronas confortáveis e ela, após alguns segundos de
silêncio, perguntou ‑me se eu já havia feito tera‑
pia antes. Enquanto respondia, sentia que ela me observava em cada gesto, cada postura,
cada palavra. Mas não me incomodava com isso. Era como se eu estivesse passando por
um leve Raio X, mas não de maneira impessoal.
balharíamos se eu decidisse por fazer a terapia. Comentou também que faria uma espécie
de questionário sobre algumas questões da minha história de vida para que me
conhecesse mais e também para que pudéssemos sele‑
219
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ral sobre minha saúde, integridade física e mental, iniciamos uma profunda visita
direcionada ao meu histórico de vida.
Era bem claro que a brutalidade de meu pai devia ter influenciado o modo como eu
lidava com os meus relacionamentos. Tinha influenciado, sim, mas para mim, até então
era óbvio que aquilo não era a causa dos meus problemas com os homens e que eles eram
o problema, sempre.
Afinal, tinha consciência de tudo. Não havia um trauma de infância com meu pai que
tivesse sido apagado da memória. Tudo estava claro em minha mente.
Contei tudo da relação difícil que tivera com ele. Sem chorar, sem trau‑
cias insanas, sua impaciência para com os filhos, suas atitudes violentas, e mesmo sua
presença, que sempre me deixava petrificada, com medo do próximo surto de mau
humor, com medo que seus ataques começassem.
Depois de revelar em detalhes aspectos de suas ações, surpreendi ‑me dizendo que não
tinha a menor ideia de como todas as lembranças haviam me chegado à mente e que
nunca havia pensado ou falado tanto sobre esse tema com ninguém, talvez, nem comigo
mesma...
Ela me respondeu que a consciência é pontual, que o cérebro sabe que vai ser tratado e
que tudo o que vem na terapia é o necessário e imprescin‑
dível para o momento. Que esse processo, por conta disso, promove mais e mais a
autoconfiança na medida em que os conteúdos que surgem têm espaço preciso para
serem acatados e cuidados. O paciente compreende que a sua máquina biológica sempre
funciona a seu favor, ainda mais quando bem direcionada.
Então, começou a me falar sobre o EMDR. Explicou sobre a seriedade desse tipo de
processo terapêutico, sobre as fascinantes bases científicas e contou que só pessoas
altamente especializadas de fato poderiam aplicá ‑lo.
Isso por causa do manejo e também pelo conhecimento teórico, prático e vivencial que
habilita o profissional da área a lidar com possíveis catarses emocionais e também com
os estados de ego, ou seja, com outros aspectos 220
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tes e que vez por outra tomam posse de nós, ou seja, nosso Eu Executivo, aquele que
comanda o nosso dia a dia. Depois de várias explicações, ela me disse que era
impressionante a mudança de paradigma, posto que o paciente sai do papel de paciente,
tornando ‑se o agente responsável por sua própria cura. Entendi que só o fato de se sair
da posição de estagnação e de se saber dono do próprio processo já mostra o início da
instalação de um caminho mais saudável em todas as áreas da vida.
Ela, sempre muito direta, disse ‑me que essa convivência com meu pai estava mal
adaptada em mim, apesar de eu estar plenamente consciente do que havia acontecido.
Disse que havia aspectos pouco claros que denun‑
ciavam em mim situações de vida com cenários diferentes, porém, com o mesmo
conteúdo emocional da história que vivi com meu pai. Era como se fosse um sonho
recorrente, porém, ao vivo...
O que fui notando ao longo da terapia, poderiam parecer coisas óbvias, mas certamente
estavam longe disso. Começava a entrar em contato com situações que jamais havia
reparado o quanto me faziam mal. Por exemplo: depois que me “recuperei” do
relacionamento com Gerárd, dizia a mim mesma, na brincadeira, que eu não tinha jeito
mesmo. Que o negócio seria virar freira. E, quando estava na companhia de outras
pessoas, começava a entrar na vibração delas e caía em chavões, dizendo que tudo estava
difícil mesmo, que os homens de verdade não existiam. Tudo isso regado a muitas
risadas. E foi com essa mesma linha de pensamento que descrevi à tera‑
– Você está acreditando nisso e programa o seu cérebro para que essa sua realidade
interna se projete no mundo externo. Talvez você já esteja vivendo nessa trama há mais
tempo do que contou a si mesma. Por mais que racionalmente não deseje isso, algo
dentro de você, além de exteriori‑
221
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Quanto mais acordados estivermos, melhor. Se você está dizendo para o seu cérebro que
os homens não prestam, então ele só vai reconhecer o mundo afora dessa maneira,
incluindo pessoas que não prestam e que não são capa‑
zes de te fazer feliz... Cenários diferentes, mas todos repetindo seus des‑
Mas a grande questão aqui é como e por que você chegou a essa
crença. Em qual ponto de sua jornada você precisou acreditar em tudo isso, que caminhos
emocionais a conduziram para esse estado? Quais circuitos cerebrais enfatizaram esse
estado de realidade? Estamos entrando em con‑
tato com alguns alvos terapêuticos para depois especificá ‑los mais profun‑
tas: onde está você nisso tudo? Onde estamos nós? E pior:
222
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sas de fato funcionavam. Notei como minhas amigas que estavam sempre sozinhas se
juntavam em um grupo porque de algum modo necessitavam confirmar a “decisão”
inconsciente de estarem sozinhas, para quem sabe se protegerem do que machucou cada
uma a ponto de elas viverem dessa maneira. De não batalharem um relacionamento. E
precisavam estar juntas para reforçar a ideia inconsciente, no final, para apoiarem umas
às outras...
Sabia de outros grupos de mulheres que pensavam o oposto, ou de outras maneiras, mas
era com aquele grupo específico que até o momento mais me identificava. Estava
começando a entender... Da mesma maneira, exis‑
tem pessoas que se juntam para reclamar que estão sempre sem dinheiro, de como a vida
está difícil, e de fato, sempre estavam sem dinheiro e, para estas, a vida é uma passagem
por uma dura estrada...
A reclamação semanal na redação era a segunda ‑feira. Quase todos vinham de cara
amarrada e resmungando sobre como trabalhar na segunda‑
‑feira era triste. Eu também achava isso e vinha sempre trabalhar de mau humor, estava
contaminada por aquele padrão. Quando olhei para mim mesma, percebi que adorava a
segunda ‑feira, adorava o que fazia e, na verdade, sempre que retomava o trabalho estava
ansiosa por recomeçar a semana! A partir dessa tomada de consciência, fiz uma
experiência: comecei a dizer para todos que a segunda ‑feira era o meu dia preferido e
comecei a trabalhar com um sorriso estampado no rosto. Eram duas as razões: uma
porque de fato era um excelente dia para mim, e outra, porque estava come‑
çando a ser a dona da minha própria história, das minhas próprias per‑
cepções... E, por incrível que pareça, a segunda ‑feira passou a ser meu dia mais
produtivo na redação. Fui, então, percebendo os incríveis círculos sociais do senso
comum nos quais a gente acaba entrando sem perceber...
Isabel, a moça que havia me indicado a terapeuta, passou a ser uma grande 223
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amiga. Ela reclamava do trabalho quando algo real acontecia, não como um vício cego.
Não ficava mal ‑humorada quando todos estavam de mau humor.
Era o jeito dela, autêntica em suas questões pessoais, mas muito igual a outras pessoas e
a algumas da redação. E ela não vivia escondida em uma caverna. Mesmo em meio às
diferenças, convivia muito bem com todos, sempre muito querida. Parece que não fazer
tudo igual ao que todo mundo fazia não era uma questão para ela e, por conseguinte, e de
modo interes‑
cionar. Eu, por exemplo, até aquela percepção, era uma maria vai com as outras, sem a
menor ideia de que funcionava dessa maneira, e pior, sem ao menos saber dos meus
principais gostos, sem me levar a sério. Medo de ser rejeitada? Muito provavelmente, só
que não tinha consciência desse fato. Lembro ‑me de, numa das sessões, minha terapeuta
dizendo:
“Tudo é vibração. Você sabe por que você não atravessa uma
parede? Porque os átomos do seu corpo não vibram igual aos áto‑
mos da parede, mas às vezes você pode se enganar a ponto de vibrar como os átomos de
uma parede, mas isso jamais será você mesma.
Tem gente que vibra por toda uma vida naquilo que não é.”
Claro que era um exemplo simbólico de algo maior, mas foi o suficiente para que eu
alavancasse ainda mais minha percepção de que tudo no uni‑
juntam em grupos ou com amigos com o mesmo tipo de crença acerca da realidade.
Todas vibram naquela sintonia e, se você começa a vibrar 224
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surpreendente.”
Você sabia que exatamente todas as nossas memórias
No decorrer das sessões a que me submeti em EMDR e Brainspotting, fui mais e mais
adquirindo autonomia sobre o meu sentir, sobre o meu querer, sobre os meus desejos.
Como consequência, acabei me afastando de determinados grupos e me sintonizando a
outros que faziam mais sen‑
bendo coisas sutis que antes passavam despercebidas. Cores, cheiros, pes‑
soas, olhares, posturas de outros. Algumas pessoas que eu conhecia não me causavam
uma boa impressão e eu sabia dizer por quê. Passei a inves‑
tir nesse meu lado que sempre me contava as coisas e que antes não ouvia.
Cada vez que fazia um reprocessamento em EMDR, ia me sentindo mais e mais viva,
mais acordada, como se a energia vital antes represada em 225
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Decidi convidar Isabel e ela prontamente aceitou. Na data prevista, chegamos a uma
pequena cidade repleta de rios, cachoeiras e muito verde.
Confesso que a princípio fiquei um tanto receosa, pensando que, mesmo com o cenário
exuberante, seria um dia perdido, pois aquilo tudo era extre‑
mamente diverso das referências que sempre usei para direcionar minha vida. Por mais
que estivesse mudando, aquilo ainda era diferente demais para a minha cabeça.
Imaginava que ficaríamos com flores na cabeça can‑
tando canções ao sol e eu não era muito chegada a essas coisas. Na verdade, o que
sucedeu foi exatamente o oposto. A palestra, ao contrário do que ima‑
rais, que naquele momento possibilitava a minha conexão com tudo o que é harmônico,
com tudo o que é esteticamente belo.
çamos o dia com um belo café da manhã repleto de frutas colhidas na região, pão feito no
local e vários tipos de grãos. O grupo era de fato bem distante do que eu havia pensado,
composto em sua maioria por profissionais libe‑
rais, empresários e artistas. Pelo que entendi, a maioria tinha seu trabalho
Durante o café, podíamos nos inscrever para as diversas palestras. Minha terapeuta nos
recomendou que também conhecêssemos outro palestrante.
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cionamento do universo estaria fazendo ali, naquele ambiente? De fato, o dia havia sido
feito para quebrar paradigmas. Mais barreiras minhas, por incrí‑
vel que pareça, agradavelmente estavam sendo desconstruídas. Ele expôs, com base em
fatos científicos, uma visão sobre o funcionamento da mecâ‑
nica da natureza, como coisas que usualmente não entendemos podem ter explicações
inimagináveis. Saímos bem impressionadas com o que ouvimos.
No almoço, fiquei refletindo sobre o que tinha ouvido e como havia coisas para aprender
sobre esse novo mundo que estava se abrindo para mim. A tarde era meio livre, depois
teríamos outras palestras e vivências.
Isabel pesquisou por lá e descobriu que um grupo faria uma caminhada até uma
cachoeira próxima. Estava muito quente e um banho seria bem ‑vindo, pensei. De
repente, dei ‑me conta de que eu nunca tinha sequer colocado os pés em uma cachoeira.
Tinha sido criada em clubes e praias de condomí‑
no meio da mata, por uma trilha estreita. Uma bela caminhada com o sol entrando pelas
copas das árvores. Em alguns lugares, a trilha se alargava e duas pessoas podiam
caminhar lado a lado. Foi quando Reinaldo se apro‑
Reinaldo era médico e tinha um consultório na capital. Fazia parte do grupo que
administrava o local. Conhecia tudo à nossa volta e me dava expli‑
cações sobre as árvores e sobre como os animais que ali residiam tinham ido parar
naquela região. Era um pouco mais velho que eu, muito magro e com cabelos escuros
espetacularmente penteados. Achei até engraçado.
Tinha feições retas, um sorriso largo e mostrava ser muito divertido, numa conversa que
foi se tornando mais e mais agradável no decorrer da trilha.
De repente, uma clareira se abriu e um lugar maravilhoso apareceu bem na nossa frente.
Uma queda d’água que saía de um vão de pedras e caía em um pequeno lago, com areia
em volta e água até o joelho. O grupo ficou com roupas de banho e foi logo caindo na
água. Tirei a roupa de cima, ficando só de maiô, mas fiquei encarando aquele ambiente.
Estava muito quente, 227
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mas, ao colocar o pé no lago, parecia que estava sentindo a água mais fria da minha vida.
Reinaldo se aproximou todo molhado e me incentivou a entrar.
– Eu recomendo que você entre de uma vez. O frio e o medo duram apenas um segundo.
Confie, pode vir, é seguro.
Eu podia sentir os respingos gelados vindo da queda. Queria muito entrar debaixo
daquela água, mas meu corpo resistia.
– Três – ele disse. E com um leve empurrão dele pulamos juntos. Foi como se tivesse
sido imediatamente congelada. A água fria passou pelo meu corpo, parecendo estar
dentro dele também, e fiquei totalmente arrepiada.
Gritei com todas as minhas forças. Meus gritos foram abafados pelo barulho da água nas
pedras. E, por mais gelada que estivesse, eu não queria sair dali.
A água batia forte em minha cabeça e eu queria continuar gritando! Era um misto de
alegria, liberdade e expansão! Naquele momento, abandonei meus medos e receios junto
com a água. De repente, uma onda de liberdade inva‑
diu meu corpo. Queria que cada poro meu fosse limpo por aquela água corrente. Aos
poucos fui me acostumando com a temperatura. Debaixo da queda d’água era possível
respirar; assim, fui sentindo o peso da cachoeira em meu corpo, deliciando ‑me com as
sensações, sentindo que de verdade não estava em perigo e poderia me soltar.
Após o banho, encostei ‑me numa pedra lisa e abri os olhos. Entre a água e a queda havia
um espaço e dava para ver as pessoas próximas, nadando no lago, como se eu estivesse
em outro mundo. Notei que Reinaldo estava ao meu lado, sorrindo. Perguntou se estava
tudo bem. Mesmo mais acostumada com a água muito fria eu fiz um “sim” com a cabeça,
ainda tremendo.
Fiz um “não” com a cabeça e ri. Gargalhei, na verdade. Ficamos os dois rindo do outro
lado da cachoeira.
Tomei o pouco sol que passava entre as árvores, deitada na pedra. Fica‑
mos ali por volta de umas duas horas e voltamos. Eu me sentia em êxtase, 228
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completamente consciente do meu corpo e das minhas ações, ao lado de pessoas de boa
energia.
tando sobre sua profissão. Eu o ouvia prazerosamente. Não queria falar muito; além
disso, me dava enorme prazer ouvir sobre suas convicções e crenças.
Ele vinha de uma família de médicos e disse que tinha sofrido muito com o sonho de
curar as pessoas na realidade do país, principalmente, quando precisara fazer residência
em hospitais públicos, no começo da car‑
reira. Todos os seus colegas reclamavam muito e ele simplesmente decidiu que aquilo
não o afetaria. Ao final, confessou ter ficado um pouco mais duro, mais realista e mais
empático com o desespero daqueles que não sabiam o que fazer em momentos difíceis. A
família queria que ele logo abandonasse a residência obrigatória para poder ficar na
clínica do pai. Ele decidiu que ficaria com o pai, mas apenas depois de formado, e
mesmo assim continua‑
ria a trabalhar em hospitais públicos, com gente simples e necessitada. E era o que estava
fazendo no momento, além de se dividir na administração da fazenda da família, a
mesma que era utilizada para esses eventos.
Até aquele momento, Reinaldo não tinha tentado me conquistar e por alguns momentos
tive medo de ter medo. Eu estava gostando muito de tudo, do local, das pessoas, da
cachoeira, e não queria ficar preocupada se alguém estava ou não me passando alguma
cantada. Ou pior, me preo‑
mação bastante interessante. Um grupo de teatro faria uma performance ao pôr do sol, e
à noite, com a lua cheia, teríamos um luau.
texto convencional com começo, meio e fim. Usaram o gramado como espaço de
apresentação e, utilizando alguns objetos do cotidiano, decla‑
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simples que faziam o que desejavam, e como elas eram criativas... O resul‑
ria e, quando dei por mim, estava muito emocionada, secando uma lágrima.
Olhei à minha volta meio envergonhada, mas notei que as pessoas não esta‑
tes. Uma delas, muito simpática, bonita e dona de excelente energia, disse que era ela
quem agradecia. Perguntei como era o nome do grupo.
– Ninas – ela respondeu.
– Mas um colega disse pra gente se chamar algo do tipo Lindas... Disse que seria mais
comercial.
ríamos nos preparar para o luau. Naturalmente caminhamos juntos e juntos nos sentamos.
Conversamos um pouco e mais à noite fomos para o luau. O
céu estava límpido e todos usavam roupa branca. A lua brilhava forte, ilu‑
minando tudo, mesmo com todas as luzes da fazenda desligadas. Um grupo de cordas,
com um violoncelo, um violino e um violão começou a tocar no meio de uma grande
roda feita por nós. Nunca havia participado de momento tão mágico. Estava ficando
praticamente hipnotizada. Instinti‑
vamente, procurei Reinaldo na roda. Ele estava de olhos fechados, ouvindo a música e
“tomando um banho de lua”. Reparei como ele estava bonito de branco. Ele lentamente
abriu os olhos e me encarou. Parecia saber que eu estava olhando para ele. Fiquei com
muita vergonha, mas ele, de novo, brin dou ‑me com um lindo sorriso. Apontou para
mim e mostrou a minha 230
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roupa fazendo um sinal de positivo, como se quisesse dizer que eu estava bonita. Estava
com um vestido leve branco. Fiz sinal de agradecimento. Ele então levantou ‑se e veio
sentar‑se ao meu lado. Passou o braço pelo meu ombro e me apertou com intimidade. (E
eu adorei.)
– Lindo!
Sorri e coloquei a cabeça em sua barriga. Ele apoiou ‑se em um braço só e, com a mão,
começou a fazer carinhos em meus cabelos. Respirei fundo e relaxei ao sentir o calor
daquela mão suave.
as minhas angústias, meus medos, meu passado... Apenas existiam a lua, a música e
aquele homem novo em minha vida.
Acabando o luau, todos foram para seus quartos. Ele me acompanhou, mas, como
administrador, tinha outro lugar para ficar. Todos estavam embria‑
gados pela magia. Eu e Reinaldo estávamos meio sem saber o que fazer.
Devo ter ficado com a expressão mais imbecil do mundo, mas ele logo completou:
– Agora, sim!
Ri muito e apertei ‑a com força. Levei sua mão aos meus lábios e dei um beijinho nela.
Ele trouxe a minha para perto dos seus e fez o mesmo.
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Nosso alojamento era feito de madeiras grossas com um corredor e vários quartos
simples e confortáveis. Como as pessoas estavam entrando nos quar‑
tos, acho que ficamos meio intimidados para fazer algo mais íntimo, como nos beijar.
Mas não precisava. Tudo até ali tinha sido perfeito. Eu não queria forçar nada e ele
também não. Pelo menos, não aparentava. Demos um forte abraço e nos separamos.
Entrei no meu quarto e Isabel estava na cama, com um sorriso maroto.
– Foi. – E rimos juntas. Isabel, porém, foi muito discreta, não me per‑
guntando mais nada. Também não comentei o que havia acontecido, afinal, nem eu sabia
direito.
– Fico feliz por vê ‑la tão brilhante assim. – E virou ‑se para dormir.
Estaria eu apaixonada novamente? Será que isso era bom? Respirei fundo e me deitei,
pensando no dia divino que acabava de terminar. A cla‑
ridade da lua ainda iluminava as frestas da janela. Eu estava muito cansada pela palestra,
a cachoeira, o luau e... Reinaldo. Adormeci rapidamente, feliz como há muito não me
sentia.
O cenário era o lago da fazenda onde estávamos. Um sol forte, quente e incômodo
iluminava. Do outro lado do lago estava Reinaldo, ace nando ‑me.
mente, como se quisesse me avisar de algo. De repente, o lago foi ficando maior e ele,
para meu desespero, foi ficando mais distante, até que sua figura desapareceu no
horizonte e o lago se transformou num enorme mar.
Enquanto eu fazia força para ver onde estava Reinaldo, uma mão enorme pesou em meu
ombro. Virei ‑me e estava bem pequena, vendo meu pai de cima, encarando ‑me. Ao
mesmo tempo que parecia bravo, gargalhava. Era um gigante assustador e muito
musculoso.
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Com muita facilidade, ele me pegou pelo pé e foi me arrastando pela areia. Doía muito.
Olhei em volta para ver se alguém poderia me ajudar, mas as pessoas, debaixo de seus
guarda ‑sóis, apontavam para mim e garga‑
lhavam também. Minha mãe estava sob um desses guarda ‑sóis, lendo uma revista. Eu
gritava para que ela me ajudasse, mas parecia esconder o rosto atrás do chapéu,
envergonhada; não queria participar daquilo. Senti a água em minhas costas raladas pela
areia. E assim que entrei na água, puxada pelo gigantesco monstro que era meu pai, não
senti mais a areia. Parecia que estava em um lugar muito profundo. Ele então levantou
‑me pelo pé e disse:
Estava tudo escuro e eu tinha medo de abrir os olhos. Foi me dando um desespero porque
estava prendendo a respiração e nada de meu pai me levantar. Comecei a me debater. Ele
me levantou e senti o sal ardendo em meus olhos. Ele ria e me disse, gargalhando:
Desta vez não tive tempo de respirar fundo e engoli água salgada. Abri os olhos em
desespero e só vi meus braços batendo inutilmente na água. Estava ficando sem fôlego e
desesperada quando ele me puxou. Mas, ao tentar res‑
pirar, percebi que quem segurava meu pé não era mais meu pai, mas Car‑
doso, meu primeiro marido. Ele ria também e rapidamente enfiou minha cabeça debaixo
d’água. Desta vez senti medo e também raiva, muita raiva por me sentir tão impotente.
Procurei segurar as pernas dele. Assim que o fiz, dei uma mordida na perna magra de
Cardoso. Ele me levantou. Não estava mais na praia, mas no jato de Gerárd. Meu pai,
Cardoso e Gerárd estavam em suas poltronas segurando taças de champanhe e
gargalhando.
Quem me segurava pelo pé desta vez, para meu desespero, era Reinaldo. Ele me sacudia
e gritava: “Deita na minha barriga, deita!”. E com isso os outros homens explodiam em
risadas. “Vamos ver se você aprendeu realmente a nadar.” Então abriu a porta do avião e
me jogou lá de cima e eu caí. Sentia o vento bater em meu rosto, o chão se aproximar,
mas ainda podia ouvir as malditas gargalhadas. E quanto mais me aproximava do chão,
mais altas 233
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ficavam as gargalhadas. Senti que, ao chegar à terra, doeria muito, mas aca‑
– O que foi? – perguntou Isabel, que tinha acordado com meu grito.
Tremia e meu lençol estava todo suado. Um raio de sol entrava pela janela do quarto.
Ela não disse mais nada. Levantou ‑se e começou a arrumar as coisas dela.
– Fique quieta. Eu não vou deixar você ir embora sozinha – ela retrucou.
Eu estava sem forças para responder. Se ela ia embora comigo, melhor para mim. Só
queria sair, andar, fugir, desaparecer de tudo e de todos. Estava me sentindo deprimida,
desesperada. A imagem do meu sonho me dava náu‑
seas, tinha a sensação terrível de que qualquer relação afetiva que tivesse sempre seria
uma cópia desastrosa do sofrimento que vivi com meu pai.
Entramos no carro sem nos despedir de ninguém. Estava desesperada, sentindo um medo
terrível, mas não fazia ideia do quanto estava transtor‑
nada. Isabel respirava profundamente durante a viagem e eu fui colocando minhas blusas
porque sentia frio, muito frio. Me encolhi e tentei me con‑
centrar na respiração de minha amiga. Aquilo me acalmou um pouco, mas queria chegar
desesperadamente em casa.
– Eu vou ficar.
Comecei a argumentar que não precisava, que estava tudo bem, mesmo sabendo que não
estava. Ela então disse, muito séria:
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Sua fala foi a conta para que eu desabasse a chorar convulsivamente e desmoronei em
seu ombro. Ela me apoiou e me deitou na cama. Sen‑
tou ‑se ao meu lado. Eu chorava convulsivamente. Por quê? Por quê? Era a única coisa
que eu conseguia dizer. Isabel ficou alisando meus cabelos sem falar nada. Eu só
chorava. O que estava acontecendo comigo? Por que uma coisa que parecia ser tão boa,
tão reconfortante estaria evocando ima‑
gens tão ruins em mim? Imaginei ‑me com Reinaldo. A paixão, os carinhos e a felicidade
batendo à porta. Depois a convivência. As diferenças. As pequenas discussões. As
discórdias ditas em volume alto. Ima ginei ‑me abrindo meu coração a outro homem e
depois recebendo de volta todos os medos que havia confessado. Vi ‑me apaixonada e me
entregando com‑
Por que o mundo tinha que ser daquele jeito? Por que Reinaldo não pode‑
tante de Isabel, mas não tinha forças para falar com ela. Só conseguia cho‑
rar. E, quando pensava que poderia estar jogando fora uma chance de ser feliz, chorava
mais e mais.
Um sono sem sonhos, sem preocupações. Acordei exausta, acabada, como se estivesse
saindo de uma grande ressaca. Levantei fraca, camba‑
leando. Saí do quarto e Isabel estava no sofá, lendo um livro. Assim que me viu, correu
em minha direção perguntando se estava tudo bem. Eu disse que sim e perguntei que
horas eram. Ela me contou que eu tinha dormido o dia inteiro e que estava começando a
anoitecer. Avisou que havia telefonado para a fazenda e dito que tivemos um problema
para resolver com urgência, mas que agora estava tudo bem.
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Silvia Malamud
Eu não queria nem ouvir. Percebeu e perguntou o que eu queria. Disse que ela não
precisava se preocupar. Eu estava bem. Agradeci imensamente a companhia, mas afirmei
que precisava ficar só. Com muito custo convenci Isabel a voltar para sua casa. Em
nenhum momento, perguntou ‑me o que havia acontecido. Deixou ‑me aberta para falar,
se eu assim quisesse; e eu não quis ou não pude. Até hoje agradeço por sua discrição e
seu respeito pelo meu momento. Isabel foi embora muito a contragosto e eu permaneci
perdida em meio aos meus pensamentos. Sabia que tudo ia passar e que acabaria por
esquecer Reinaldo, do mesmo modo que fora com os outros.
Era melhor assim. Era melhor perdê ‑lo agora e me proteger que ver sua possível
violência acabar comigo.
Na segunda, voltei a trabalhar e novamente Isabel mostrou ‑se muito discreta. Não
encontrei com minha terapeuta durante a semana. Estava em uma apatia geral, sem forças
para fazer nada além do meu trabalho. Ao fim do dia, voltava para casa, ligava a
televisão e passava as noites mudando de canal. A pouca força que tinha era gasta no
trabalho. Às vezes, Isabel ten‑
tava puxar uma conversa, mas eu me mostrava apática, e ela, por sua vez, afastava ‑se
com expressão triste.
Passadas algumas semanas, e mais recuperada, resolvi entrar em meu perfil na rede
social de que fazia parte. Lá estava o pedido de Reinaldo para se relacionar comigo.
Pensei naquilo por um instante. Reinaldo já fazia parte do meu passado. Já era algo bem
distante. Respirei fundo e resolvi trilhar o que julgava ser o caminho mais seguro para
mim mesma, rejeitando a ami‑
zade de Reinaldo.
Passaram ‑se mais algumas semanas e estava me sentindo muito solitária, quando resolvi
entrar novamente na rede social. Perguntei ‑me se não poderia me relacionar de uma
maneira “saudável” com Reinaldo. Como amigo. Lem‑
brei como ele tinha tentado ser agradável comigo. Será que não podia ser assim para pelo
menos iniciarmos uma amizade sem compromissos amorosos?
Ele não respondeu. Fiquei ansiosa esperando por algum sinal. Depois me condenei,
afinal, eu é que tinha largado tudo, incluindo seu carinho, sua 236
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atenção. E com certeza dei a entender que estava na dele. E agora não fazia sentido
nenhum esperar uma resposta de quem eu havia abandonado.
Dias depois, não conseguia tirar Reinaldo da cabeça. Seu carinho, sua atenção, seu
sorriso, sua lembrança. Digitei outra mensagem então, recrimi‑
Era verdade, mas não devia ter dito isso. Procurei um jeito de apagar, mas era tarde.
Novamente fiquei sem resposta. Uma tristeza enorme me aba‑
teu. Como se eu tivesse jogado fora uma chance de ser feliz. Mas espere um momento.
Eu não estava justamente querendo ser só amiga dele? Tinha von‑
tade de gritar de agonia. Queria ser só amiga de Reinaldo, mas agora que ele não me
respondia, e eu sentia que o queria ao meu lado para o resto da vida...
Estava assinada por Reinaldo. Meu coração disparou no momento em que li a mensagem.
Não sabia direito o que responder. Tentei levar no humor, como era do feitio dele:
“Não sabia direito o que dizer. Você simplesmente fugiu. Pensei que tinha feito alguma
coisa errada.”
“Eu dou.”
Respirei fundo. Eu queria muito. Muito mesmo. Mas tinha medo. Eu não era boba. Sabia
o que havia acontecido na fazenda e sabia que podia aconte‑
cer novamente. Também sabia que podia decepcioná ‑lo e afastá ‑lo novamente de minha
vida, e eu não queria isso. Talvez não quisesse um relacionamento 237
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sério. Talvez estivesse muito apegada a mim mesma, mas não queria perdê ‑lo.
Eu ri e ele deve ter rido do outro lado. Queria muito estar com ele novamente. Perguntou
‑me se eu gostaria de sair uma noite dessas. Eu não estava ocupada. Era fim de semana.
Perguntei, meio em tom de brinca‑
deira, se podia ser naquela noite. Ele escreveu que tudo bem, e marcamos de nos
encontrar em algumas horas. Foi o suficiente para que eu entrasse em pânico novamente,
e todas as expectativas ruins ameaçaram suplantar o imenso desejo de me encontrar com
Reinaldo. Pensei desesperadamente em ligar desmarcando, mas era um pouco tarde para
isso. Ele devia estar a caminho. Íamos sair juntos, e aí? Eu teria que impor um limite.
Não queria avançar o sinal. Estava revendo ‑o depois de ter passado um trauma horrível.
Só queria vê ‑lo. Dizer que não queria ter nenhuma intimidade com ele era uma mentira.
Mas não sabia se estava preparada para me entregar a alguma paixão ou ao que quer que
sugerisse um tom mais íntimo.
estar atraente para ele, ainda que com o freio de mão puxado. Ele me pegou em frente ao
meu prédio. Estava com um sorriso imenso, mas um pouco frio.
Com razão. Eu havia fugido da última vez. Entramos no carro e senti que ele fez o
possível para deixar o ambiente leve. Apesar da tensão evidente, conseguimos falar sobre
trivialidades. Em determinado momento, pergun‑
Com músicas ao vivo de muito bom gosto, sentamos de frente um para o outro e ficamos
nos encarando por alguns momentos. Eu estava muito tensa, mas era um prazer vê ‑lo
novamente na minha frente. Ele também parecia estar meio sem jeito, embora fizesse o
possível para me deixar à von‑
tade. E, quando me perguntou sobre aquela noite e principalmente sobre o dia seguinte
em que havia fugido, foi de uma maneira tão leve que resolvi me abrir para aquele
homem, que conhecia pouco, mas no fundo, sentia que me conhecia tão bem.
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Expliquei por que tinha medo dos homens. A terapia estava me aju‑
mento do que me afligia em relação aos homens que eu atraía estava muito consciente e
eu tentava trabalhar diariamente minhas percepções. Na última sessão, antes da viagem,
havia começado a elaborar o tema sobre a minha relação com o meu pai. Havíamos
inclusive definido um alvo de perturba‑
Reinaldo ouviu atentamente o que eu dizia, às vezes fazendo alguma pergunta específica,
querendo saber um pouco mais sobre os detalhes, e eu os dava. Sentia que não tinha nada
a perder. Quando viu que eu estava no auge da angústia do relato, pegou em minha mão
dizendo que estava tudo bem, que tudo se resolveria.
À medida que contava a história, ia sentindo um alívio tremendo. Mesmo assim, doses de
ansiedade tomavam conta de mim. Pensava no que aquele homem poderia estar querendo
de mim... Estaria ele ali me ouvindo por algum interesse oculto? Assim como meu pai
tantas e tantas vezes fez, será que ele, sabendo sobre minhas falhas, depois as usaria
contra mim? Fui ficando tensa e desconfiada a ponto de não mais conseguir disfarçar e a
ponto de ele também perceber...
– Por que você está nervosa? Está tudo bem – dizia atentamente.
– Eu sei. Eu sei.
E cada vez sabia menos. Ele, que estava de frente para mim, sentou ‑se ao meu lado.
Comecei a tremer um pouco. Eu me sentia como se fosse duas em uma. Por um lado,
queria ‑o ao meu lado, protegendo ‑me de verdade, e por outro, não. Era claro que existia
alguém dentro de mim cheia de medos.
Aquele homem ao meu lado, tentando me reconfortar, seria de verdade meu aliado ou
meu inimigo? Estava paralisada, em total terror. Eu não que‑
ria nada daquilo, queria apenas um homem normal, mas não conseguia escapar dessas
sensações... Como seria isso possível? Naquele momento estava repleta de dúvidas, cega
e alucinada, bem no olho do meu turbi‑
lhão emocional.
Um silêncio constrangedor tomou conta de nós dois. Olhei fundo em seus olhos. Queria
que ele me beijasse, mas tinha um imenso receio. Queria 239
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mandar o medo para o quinto dos infernos, mas ele estava ali, impregnado em mim.
Queria uma relação saudável, mas tinha pânico de me machucar novamente. Já estava
dolorida demais. Estava em uma corda bamba onde, de um lado, estavam a vida, a
felicidade e a oportunidade; do outro, o conhe‑
cido medo e a mais que conhecida forma de lidar com ele e o desejo de ficar onde a gente
se reconhece, que, por pior que seja, parece nos proteger para não sofrermos ainda mais
com algo desconhecido.
Eis que em meio a esses pensamentos ele se aproximou, beijando ‑me ternamente. Tentei
retribuir, mas minha cabeça estava tão a mil que não consegui. Fiquei mexendo os lábios
com a cabeça rodando. Ele não pareceu perceber. Resolvi não me culpar por isso. Sim.
Estava confusa. Ele começou a falar como se nunca tivéssemos nos beijado. Mudou de
assunto. Falou de algo leve. Brincou com o nosso beijo. Senti ‑me mais à vontade.
Passou as mãos pelas minhas costas. O que ele queria? Não estava vendo que eu estava
confusa? No entanto, o braço dele era tão reconfortante. Fui ficando cada vez mais
nervosa. Ele me perguntou se tinha algum problema em fazer aquele carinho. Ele queria
algo a mais. Era muito claro. Eu também. Come‑
Coisas que eu realmente estava sentindo. Mas a dúvida continuava. Estaria ele usando da
sua percepção só para me conquistar, ou estava realmente preocupado com minha
situação?
Recomeçou a passar a mão em meu cabelo. Eu precisava tanto daquilo, mas, ao mesmo
tempo, me incomodava... Tinha tantos receios... A única coisa que podia fazer era tentar
ficar indiferente. Sem dúvida que ele que‑
ria algo mais, sem dúvida que eu também. E meu outro eu estava em uma batalha comigo
mesma querendo novamente comandar uma fuga.
Ele me beijava, eu não negava seu beijo, mas ao mesmo tempo não retribuía como sabia
que poderia. Que situação! Acho que ele percebeu.
Disse a ele que era melhor irmos. Enquanto caminhávamos até o carro, que estava
estacionado a alguns quarteirões, ele falava sobre trivialidades e às vezes engatava com
uma opinião sobre relacionamento, de repente, pegou em minha mão. Fiquei um pouco
receosa, mas ele me olhou sorrindo: 240
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culdade em me acessar. Ele devia estar buscando aquela cumplicidade que tivéramos na
fazenda. Aquele momento mágico de soltura. Porém, perce‑
bia que eu estava distante. E estava mesmo. Na fazenda, eu me sentia livre, liberta de
todos os meus medos e protegida pela magia do lugar, e ali, junto ao homem pelo qual
estava atraída, sentia como se meus medos fossem reais e estivessem caminhando ao
nosso lado, ou como um grupo fazendo torcida para que nos afastássemos.
Comecei a sentir como devia ser difícil lidar com isso pelo ponto de vista de Reinaldo.
Com certeza, estava me desejando, me querendo, mas sabia que eu passava por um
momento difícil. Talvez soubesse que ele, como representante dos homens, naquele
momento era o botão que disparava todos os meus medos. O que ele podia fazer? Juras
de amor? Prometer amor eterno, prometer que jamais me trataria mal? Claro que não
podia fazer isso. Era óbvio. Estávamos começando a nos conhecer. Na verdade, a única
coisa que ambos poderíamos fazer era dar uma chance para nós mesmos.
O problema é que naquele momento eu não queria dar essa chance. Não conseguia, e ele
percebeu. Nossa caminhada foi triste. Principalmente para ele, que deve ter se
decepcionado muito comigo. Eu simplesmente estava em outra vibração e resolvi não me
culpar por isso.
– Eu acho – ele disse – que foi a primeira vez que eu beijei uma bo ‑
neca. – Aquilo poderia ter me ofendido, mas era a pura verdade. – Uma boneca – ele
continuou para o meu desalento –, uma boneca não recusa o seu beijo, mas ela não
retribui, porque não tem alma para decidir se quer aquilo ou não. – Então, olhou ‑me bem
no fundo dos meus olhos: – E você, no momento, está sem alma.
Reinaldo estava certo. Não queria me ofender, estava simplesmente constatando uma
verdade. Era assim que me sentia. Escrava, presa, sem alma, sem reação...
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Silvia Malamud
Sem forças para reagir. Ele estava ali, propondo ‑me uma coisa nova, e eu presa, refém
dos meus medos do passado.
Quando estávamos próximos de casa, Reinaldo foi me dizendo que, se eu precisasse, que
gritasse e pedisse ajuda. Eu, em vez de ficar triste, fui me sentindo cada vez mais apática.
Parecia que estava entregue ao meu estado de medo ou de conveniência.
Definitivamente, tinha desis‑
tido de apostar ou estava acreditando que não era possível. Reinaldo mos‑
trava ‑se todo solícito, mas eu sabia, ou pelo menos imaginava que sabia, que aquilo era
apenas mais um jogo de conquista. No fundo, no fundo, era mais um que ia querer ter
poder sobre minha pessoa. Na certa, queria me levar para a cama, queria me ver na maior
intimidade que dois seres humanos podem ter, e, depois de eu estar entregue e indefesa,
usar tudo isso contra mim.
Deixei Reinaldo falar, ficando cada vez mais apática. Quando me dei‑
xou na porta do apartamento, ele não se convidou para subir e eu também não o fiz.
Agradeci a companhia da noite e nos despedimos com um beijo frio, morto e cheio de
conveniência.
E ele tinha partido. Provavelmente para nunca mais voltar. Eu não vol‑
taria, se fosse ele. Sentia ‑me triste, porém, conformada. Naquela noite, havia desistido
do meu futuro. Agarrei ‑me ao passado e violentamente decidi que era nele que ficaria...
Era triste, mas não queria saber de mais dores. Não queria saber de grandes esperanças
em um relacionamento a dois. Minha crença maior era que tudo dessa ordem sempre se
transformaria em amar‑
gura, como se fosse uma espécie de lei inexorável. Não queria mais sofrer, mas
paradoxalmente estava sofrendo. Tinha a ilusão do controle da dor emocional, que agora
vejo ser um enorme engano. Estava totalmente cega e não sabia. Encontrava ‑me num
looping sem fim.
Mas, naquele momento, era isso que havia decidido. Não sofrer mais, mesmo sofrendo
por estar sozinha.
Abri a porta de meu apartamento, entrei, me troquei, com a imagem de Reinaldo triste e
impotente. Coloquei um pijama sem graça e deitei ‑me.
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Naquela noite, fiquei pensando que estava escrava de meu passado. Refém dos meus
antigos sequestradores, e agora... refém de mim mesma, do que sobrara de mim. No
fundo, queria continuar daquele jeito. Sequestrada –
afinal, estava acostumada.
Depois disso, passei meus dias em uma apatia monstruosa. Afastei ‑me bruscamente de
Isabel.
É a lei.
No começo, ela tentou se aproximar, querendo saber o que estava acontecendo. Mas eu,
como ninguém, sabia como me isolar, e ela, muito a contragosto, foi se afastando até não
poder mais compartilhar da minha vida. Parei as sessões de terapia. A terapeuta também
não insistiu, pelo menos não diretamente, mas, quando mandei um e ‑mail dizendo que ia
dar um tempo (um tempo bem longo, eu planejava), ela apenas me respondeu que
somente eu poderia escolher trilhar um outro caminho. Colocou ‑se à disposição para
quando eu quisesse conversar.
Como imaginei, Reinaldo não deu mais sinal de vida. Não o vi mais nem na internet e
também não entrei em contato.
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15. Eu me sentia viva e livre. Liberta do meu cativeiro interior Terminada a minha
tentativa de ser feliz no amor, visto que chegara à conclusão de que isso não seria
possível para mim, voltei ao trabalho e à minha rotina antiga.
sentado na redação. Todos paramos nossos trabalhos e, depois que foi apresentado, disse
que faria um programa de exercícios para quem estivesse interessado. Falou ‑nos dos
benefícios de se praticar esportes e dos males do sedentarismo. O programa seria
composto de duas aulas semanais em sua academia. Eu me inscrevi, não sei ao certo se
foi pelo desejo de uma vida mais saudável ou pela voz decidida de Nestor. O fato era que
precisava fazer algo durante os momentos em que não estava trabalhando. O tédio já con‑
Nestor tinha uma academia de médio porte dentro de um shopping center e cerca de dez
pessoas se inscreveram no programa. Começou com uma ginástica comandada por ele de
forma leve até que no final todos esta‑
vam suados e exaustos. Eu adorei. Parecia que meu corpo começava a acor‑
dar. Estava desligada há muito tempo, me senti simplesmente eletrizada. Era a aluna mais
assídua e mais comprometida da redação. Eu, que passara dias falando só o necessário,
desandava a soltar a língua e, como uma tagarela, contava a todos sem parar como me
sentia bem. E quem aguentava isso era Nestor, que ficava conversando comigo sobre
dietas, exercícios, corridas de rua. O exercício físico passou a ser meu hobby. Comecei a
comprar revistas especializadas e a competir em corridas de rua, junto com meu
professor. Ele era muito atencioso, mas durante as aulas virava um carrasco. Gritava com
os alunos, dizendo que eles podiam fazer melhor. Pegava especificamente em meu pé,
gritando comigo e me desafiando para que eu fizesse sempre mais, constantemente me
alertava de que eu poderia forçar um pouquinho 244
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mais. E eu... adorava. Dava o meu máximo. Sentia orgulho por cada dor nova adquirida
na academia.
Logo após um feriado prolongado, estava programada uma corrida de rua na qual eu e
Nestor nos inscrevemos. Passei o feriado treinando e ultra‑
passei uma de minhas metas. Fui para a corrida, um domingo bem cedinho, ansiosa por
contar as novidades a meu professor. Quando o vi, no meio dos outros corredores,
aquecendo ‑se, corri para ele. Estava de costas, dei ‑lhe um tapa na nuca e disse:
Ele se virou meio enfurecido, mas quando me viu deu um meio sorriso constrangedor.
Disse um “que bacana” meio fraco e vi que alguma coisa estava estranha. Ele percebeu
que eu notei, mas não tocou no assunto.
Apontou para a grade que separava os corredores do público e uma linda mulher com
uma menina de uns dois anos no colo acenava em nossa direção.
Devo confessar que fiquei relativamente decepcionada quando soube que Nestor era
casado e tinha uma filha. Tentei disfarçar o meu constrangi‑
ção um tanto quanto constrangedora. Não que estivéssemos fazendo alguma coisa errada,
mas Nestor nunca mencionara que era casado e eu, acho, o cumprimentara com uma
intimidade além do que era conveniente entre professor e aluna.
Era uma corrida mista, na qual os homens largavam junto com as mulhe‑
res. Tomamos nossas posições e ele me desejou boa sorte. Largamos. Estava tão confusa.
Não me sentia apaixonada por meu professor, mas sabia que estava atraída. Nunca
falamos de coisas pessoais, mas acho que me sentia motivada em meu novo hobby, pelo
exercício me fazer tão bem ou por jul‑
gar que Nestor estava querendo o meu bem ‑estar, desafiando ‑me. Será que ele tinha
percebido isso? Com certeza, afinal, as mulheres deveriam cair a seus pés, todas carentes,
todas querendo uma pequena atenção daquele Apolo em forma de homem. E eu? Eu era
mais uma delas. Trazer a família ali era um jeito de dizer: “Olha aí. Eu sou
comprometido. Fique na sua.
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Nosso relacionamento é profissional”. Como fui burra! Como podia ter pas‑
sado por dois relacionamentos sérios e ainda ser tão burra. Burra!
E me xingando fui acelerando, e, quando vi, estava entre as primeiras colocadas. Ganhar
eu não ganhei, mas foi minha melhor posição em corridas de rua. Ao final, não procurei
Nestor para lhe contar a novidade. Pelo con‑
Conversaria com ele como sempre havia conversado, fazendo o maior esforço possível
para não dar bandeira.
Tentei me concentrar na ginástica. Esforcei ‑me mais que devia e acabei tendo uma leve
torção. Nestor parou a música e foi ver o que tinha acon‑
tecido comigo. Para quem queria ficar discreta, acabei atraindo todos os olhares. Disse
para ninguém se preocupar comigo. Saí da academia me esfor‑
çando ao máximo para não demonstrar que meu pé estava dolorido, mas estava. Muito.
Após uma noite de agonia, fui ao médico no dia seguinte.
Ganhei uma tala e uma semana de repouso, sem exercício. Obviamente, não fui à
academia.
Nestor apareceu na redação e foi ver o que acontecera comigo (na ver‑
dade, eu queria muito era que ele tivesse ido lá só por minha causa). Olhou meu pé, disse
que sentiria minha falta na academia, mas esperava por mim assim que eu melhorasse.
Agradeci com um sorriso amarelo, ainda me cul‑
pando por ter torcido o pé. Quando estava saindo ele se voltou e me deu os parabéns pela
corrida. Agradeci novamente:
– O treinador ajudou.
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Era a vez de ele dar um sorriso amarelo. Então, respirou fundo e apro ‑
– Não. Foi você quem venceu. Não tenha falsa modéstia. Eu te admiro muito!
E saiu, deixando ‑me com aquelas palavras ecoando na mente. Fiquei rememorando
aquela frase para encontrar algum tipo de insinuação ou segunda intenção. Claro que,
aparentemente, não queria me envolver com um homem casado. Mas meu ego queria
aquele homem interessado em mim, como queria. Se ele demonstrasse interesse, bem, eu
veria o que faria depois. Mas até agora, além da relação professor/aluna, e do interesse
em meu desenvolvimento, ele não tinha demonstrado nada. Será que eu preci‑
sava me movimentar? Insinuar alguma coisa? Não. Eu já havia passado por problemas
demais para me envolver com pessoas comprometidas. Resolvi colocar uma pedra sobre
o assunto.
Porém, no quinto dia de repouso, recebi uma ligação. Era Nestor, preo‑
damente tentei jogar esse pensamento fora. Afinal, eu não era uma adoles‑
Conforme prometido, fui à aula. Nestor me deu atenção especial (ou foi impressão
minha). Pedia para eu não forçar nada e, toda vez que dava algum exercício novo, olhava
para mim com expressão que me pedia para ir com calma. Ao final, ele se aproximou e
disse que estava muito feliz com a minha volta, mas que eu pegasse leve nos exercícios.
tando se eu conhecia algum curso de francês. Disse que estava planejando uma viagem à
França e queria saber se eu podia indicar alguma escola.
Perguntei quanto tempo ele tinha antes da viagem e ele não explicitou bem.
Achei (ou queria achar) uma desculpinha meio esfarrapada; mesmo assim, dei minhas
indicações.
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Alguns dias depois, ele me ligou agradecendo por ter recomendado as aulas de francês.
Parecia estar ligando do celular. Disse ‑me que provavel‑
mente se matricularia no mês que vem. Respondi que, se tivesse alguma dúvida, seria um
prazer ajudar. Falou ‑me então de uma corrida que acon‑
teceria em uma cidade distante e perguntou se eu queria ir com ele. Eu disse que sim.
Estava doida para correr novamente. Ele mandaria a ficha de ins‑
Senti que Nestor não queria desligar e que tudo aquilo era só uma des‑
culpa. O que queria realmente dizer ainda não tinha vindo à tona. E além do mais, tudo o
que estava dizendo por telefone podia ser dito pessoal‑
mente na academia. Pensei em não dar o braço a torcer. Afinal, se ele queria alguma
coisa, que deixasse isso claro. Meio sem jeito, perguntou se eu gos‑
taria de marcar um dia para bater um papo sobre a França. Desliguei meu alerta e
respondi que tudo bem. Seria ótimo. Então, se não tivesse problema para mim,
poderíamos marcar depois da academia. Tudo bem, eu disse. Ele agradeceu e nos
despedimos.
O doce sabor do flerte encheu minha alma. Eu não queria saber se estava fazendo algo
errado ou certo. Só queria deixar esse bom momento da conquista e da paquera tomar
conta de mim.
nos saíam e veio o convite formal. Fomos para a praça de alimentação do shopping onde
ficava a academia e ele foi me perguntando coisas sobre a França. Provavelmente viajaria
em companhia da mulher e da filha, presumi.
– Na verdade, eu acho que vou sozinho. Eu e minha esposa estamos nos separando.
Fiz uma cara de “puxa vida, que chato”, mas no fundo estava urrando de felicidade.
– Nós não estamos nos dando bem, por uma série de motivos. A gente já está
conversando sobre isso faz um tempo, mas com essa coisa do bebê...
Eu, que já havia passado por duas separações, fiz o papel da pessoa mais compreensiva
do mundo. Entendia tudo pelo que estava passando e 248
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me ofereci para dar uma força. Disse também que crises aconteciam com todos os casais.
Provavelmente era só uma fase.
Para minha alegria ele estava chateado, mas não pareceu demonstrar muita tristeza pelo
término do casamento. Parecia mais uma consequência da vida. Tomei coragem e uma
certa dose de ousadia e perguntei:
– Mas vem cá. Já que você está se abrindo comigo eu preciso te per‑
guntar, só para entender mais a situação. Tem mais alguém na jogada?
Outra mulher?
Meu coração perdeu uma batida e eu, calmamente, retirei minha mão da mesa. Ficamos
sem jeito.
– Desculpe. Mas eu acho que você percebe quando uma pessoa está a fim de você, não é?
– Nestor, não quero causar problema pra ninguém. Minha vida já é uma bagunça enorme
pra eu arranjar mais uma confusão pra minha cabeça.
– Eu ia dizer que acho que me enganei. Mas eu tenho certeza que não.
Achei meio despeitado ele dizer aquilo. Quem ele pensava que era?
– Não precisa ficar ofendida. Eu só acho que, se nós dois estamos que‑
– Você é casado.
Mas que porcaria. Sim. Eu estava atraída por ele. Será que estava tão estampado assim na
minha cara? O certo (se é que existe certo e errado) era dizer a ele para resolver os
próprios problemas e depois... depois que ele estivesse sozinho, poderíamos conversar e
quem sabe... quem sabe, podia rolar alguma coisa.
Eu não queria ter um caso nessa altura da vida, mas estava tendo. Nós nos
encontrávamos regularmente em meu apartamento. Pelo menos uma vez por semana. Ele
ainda morava com a esposa e a filha. Raramente, falávamos 249
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de seu casamento. Às vezes, insinuava que sua casa estava um inferno! Eu, já o
interrompia. Não queria ser o depósito de humores de Nestor. Não se separou e não dava
sinal de que isso ia acontecer em breve. De minha parte... não me importei. Estávamos
juntos há um mês e comecei a gostar dessa coisa de não ter compromisso sério. Não me
sentia posse de ninguém.
Ele ia e vinha toda semana. Fingíamos, na academia, que não tínhamos nenhuma
intimidade e estava tudo certo. De minha parte, não havia con‑
Até que comecei a notar certo ciúme, certa cobrança da parte de Nestor.
Pensei comigo: “O quê? De novo? Será que estou amarrada a um tipo pos‑
sessivo?”. Tentei olhar com atenção para isso, mas estava tão inebriada pelo amor recente
que não me atentei para seu ciúme. E, aos poucos, estava dando satisfação da minha vida
pessoal a Nestor.
– Vem cá – disse eu em uma briga. – Por que você não se separa de sua esposa e depois
vem falar sobre ciúme?
Rompi com ele naquela noite. Eu não ia repetir o mesmo padrão. Não sei se resistiria a
mais um relacionamento possessivo.
E todo rompimento, vejo isso com clareza hoje, era porque eu resistia a ser “posse” dele.
Se eu dissesse que ia sair com as amigas, ele brigava dizendo que eu não precisava fazer
isso, que estava abusando do fato de ele ser casado e não poder estar comigo. Ao menor
sinal de violência, eu terminava.
Até que, um dia, cansada de terminar e também do ciúme dele, deixei passar. Em uma
cena de ciúme, para não brigar, disse que ele estava certo.
E cada dia fui ficando mais passiva em relação aos seus humores. Não que‑
ria um homem no mesmo padrão, mas não queria estar sozinha e não queria que ele se
separasse por mim. Como tudo estava cômodo, fui dei‑
xando o blá, blá, blá de Nestor continuar.
No começo, era brincadeira. Depois, a coisa foi ficando mais séria. Uma ameaça velada,
um medo colocado na brincadeira. O absurdo da situação 250
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de ser amante, porém, ser posse do outro, foi me deixando, aos poucos, desesperada. Eu
precisava pôr um fim nisso.
demos por e ‑mail, e eu desabafei falando que estava entrando em outra espiral
destrutiva. Marquei uma consulta, desta vez totalmente decidida a não fugir mais de mim
mesma.
Eu disse que não sabia como estava com um homem daqueles nova‑
mente. Ela me disse que eu estava com o modelo de homem que conhecia, apenas. E ela
tinha razão; até aquele momento, só sabia estar com homens doentiamente agressivos e
possessivos. Infelizmente, era atraída por aquele tipo de homem que, no final, apesar de
me seduzir, sempre me destruía emocionalmente. Foi durante as sessões de
reprocessamento que pude acessar em minha mente um lado mais saudável meu. Foi
quando me lem‑
Uma luz no fim do túnel começava a se esboçar dentro de mim como possibilidade de
cura emocional. Revi outras cenas saudáveis, não referen‑
tes às parcerias afetivas; eram situações de bem ‑estar e de amor próprio que pude viver
em várias áreas da minha vida. Pude me reconhecer no meu melhor e definitivamente me
associar à força que sempre tive para chegar aonde estou. As sessões me ajudaram
profundamente para que eu pudesse em definitivo resgatar o melhor de mim, ao mesmo
tempo que ia me des‑
prendendo do que foi lesivo, bem como de todas as informações negativas que estavam
impressas em mim e que deturpavam a possibilidade de ter um caminho melhor.
envolto por ambiente de iluminação, ou seja, sempre soube analisar de forma racional o
que acontecia comigo. Mesmo as coisas que não enten‑
dia ou que não conseguia decidir eram envoltas pela clareza dos fatos. O
251
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problema é que apenas saber das coisas, de verdade, não era o suficiente para que eu
pudesse virar a página resolvendo ‑as. Minha vida ininterrup‑
tamente mostrava ‑me isso. Sabia que era atraída por homens dominado‑
res e sabia que isso tinha influência de meu pai. Só não conseguia resolver o mal ‑estar
que isso gerava.
Na terapia, pude entender que, para mudar o meu referencial emotivo, precisaria digerir
sentimentos que me foram tóxicos ao longo da vida.
dos em mim naqueles difíceis e assustadores momentos que passei com meu pai e com
minha mãe... Pude ressignificar toda a visão distorcida de realidade que fui tendo a partir
daqueles traumas. Definitivamente, com‑
preendi que o meu modelo de vida veio de um pai abusador e que eu não havia me
associado a ele sendo uma abusadora também, mas que conti‑
nuava sendo a vítima indefesa ao tentar arrumar parceiros parecidos, para, lá no fundo,
acreditar que eles poderiam ser bons... ou que meu pai não era tão mau...
Foi muito difícil aceitar a realidade dos fatos, mas foi só no momento em que fiz uma
espécie de luto – entendendo que, apesar do pai que tive, consegui sobreviver – que pude
seguir adiante. Estava saindo de um trauma complexo que congelava grande parte da
minha existência, do meu modo de ser e das minhas referências. Deturpava grande parte
das percepções que anteriormente eu imaginava serem claras. Só quando entendi que, por
mais duro que fosse, meus pais eram aquilo mesmo e não havia como mudá ‑los,
somente a partir dessa percepção interior é que pude começar a mudar meu mapa de
relacionamentos.
Lembro ‑me claramente que, numa das sessões, refiz várias cenas per‑
tetor e amigo. Esse fato confortou minha criança interior tão sofrida, carente e assustada.
O reprocessamento tem dessas coisas, criam ‑se imagens, cenas e situações em alguns
momentos, ajudando a mudar os nossos códigos internos mesmo que saibamos que o fato
concreto não ocorreu. Afinal, tudo é percepção!
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Nas cenas, minha mãe também me colocava no colo e me dava muito amor. Eu sabia que
era minha mãe interna fazendo isso. Eram aspectos meus que iam e vinham para me
acolher, me salvar das situações difíceis pelas quais passei. Adulta, soube que era uma
cura emocional: eu é que estava sendo mãe e pai de mim mesma, acolhendo e cuidando
de mim.
Houve outras situações não menos importantes, até que por fim pude mudar totalmente
minha sintonia, que estava baseada em dor e sofrimento.
ber isso). Estava em conflito com minha própria existência. O objetivo de todo ser
humano é sentir ‑se bem. É sentir ‑se em paz. É viver em plenitude, dando e recebendo
afeto. Porém, o único tipo de “afeto” a que eu estava ligada, que estava sintonizando, era
o que meu pai me deu: medo, raiva, bru‑
namento saudável, você pula fora! Afasta ‑se. O seu eu não reco‑
nhece aquilo. Tem medo de que aquilo possa te prejudicar. Percebe o paradoxo?”
çava a curtir com muito mais intensidade também um sorriso, uma luz dife‑
Sentia ‑me mais presente em tudo, mais viva. Tudo isso me tocava profun‑
Antes, lembrava ‑me dos meus relacionamentos com muita dor. Uma imensa dor. E só de
imaginar que meus futuros relacionamentos tivessem 253
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Durante o tratamento toda essa percepção foi se transformando. Parecia que tudo aquilo
tinha acontecido na minha outra vida... E não seria isso mesmo?
Uma outra vida dentro da minha vida estava surgindo. Pela primeira vez, não mais me
enxergava na possibilidade de estar em nenhum tipo de rela‑
Em meio ao tratamento, recebi mais uma ligação de Nestor. Ele queria se encontrar
comigo. Não tínhamos terminado nem estávamos juntos. Foi ao meu apartamento e,
quando entrou, já senti algo de muito ruim. Muito pesado. Quando nos encontrávamos,
nos agarrávamos loucamente. Desta vez, meu corpo sentiu aversão pelo seu toque. Eu o
afastei. Pela primeira vez eu o afastei. Sem entender minha reação, ele já foi querendo
saber com quem eu o estaria traindo, afinal, eu nunca o tinha rejeitado. Quando contei
que não havia ninguém em minha vida, ele não acreditou.
cações. Pela primeira vez na vida, eu estava vendo a situação com outras lentes. Não
queria Nestor ali. Toda aquela situação repentinamente me pareceu distante e alheia a
mim. Percebi que não me importava com a resposta que daria nem com o que ele estaria
pensando. Eu simplesmente não estava mais conectada àquele tipo de relacionamento,
não tinha mais sentido para mim.
Nos despedimos e ele foi embora bastante ressabiado. Não marcamos de nos encontrar
novamente, mas sabia que em breve ele me ligaria. Sim, ele. Eu sabia que não ligaria
mais.
Fui à minha sessão de terapia naquele mesmo dia. Falei das minhas sensações. Achava
estranho, porque sempre tinha gostado de um homem com “pegada”, mas agora aquilo
tudo era esquisito. Estava ótima, mas não me reconhecia, sabia que estava bem diferente
do que sempre fora. De algum modo, estava me divertindo com as minhas mudanças,
sentia ‑me legitima‑
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Estava sensibilizada com minha própria história de vida, não com pena de mim mesma,
mas sensibilizada, totalmente consciente. A sensação era de que, à medida que a minha
terapeuta me acolhia, eu também podia me acolher profundamente, me abraçar e chorar
por tudo o que passei, ficar agrade‑
cida por ter sobrevivido e emocionada por poder conquistar um novo e melhor lugar
dentro de mim mesma. Sentia ‑me como naquele dia, naquela cachoeira da fazenda, onde
eu gritava loucamente. Aos poucos fui me acal‑
mando, respirando fundo e me sentindo plena.
Saí do consultório leve e decidida, sabendo do fundo do coração que nenhum Nestor
jamais faria parte da minha vida novamente.
Era um sábado de manhã. Chegou ao meu apartamento querendo fazer o que sempre
fazia. Eu o detive outra vez e disse que queria terminar com tudo aquilo definitivamente.
– Não estou falando disso. Sou eu. Não tem espaço na minha vida para você. Na verdade,
tem muito espaço, mas eu não te quero nele.
Provavelmente, ele não entendeu. Foi se aproximando e pude sentir seu cheiro.
– Eu sei que a gente se quer, que você me deseja. Então... – E foi se aproximando.
Como explicar para ele? Deveria? Cheguei a sentir desejo, ele me sedu‑
zia, a diferença é que desta vez eu tinha absoluta certeza do quanto esse tipo de união
poderia ser lesiva para mim. Recuei e fui firme comigo mesma.
Ele mordeu os lábios. Não sabia se ia explodir, cheguei a ficar com receio da sua reação,
mas ele achou melhor ir embora.
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Ele saiu e ficou me olhando do outro lado da porta, como que me desa‑
Eu me aproximei. Olhei bem fundo em seus olhos e fechei a porta. Da janela, fiquei
olhando ‑o sair do prédio. Deu uma olhada para cima e me afastei da janela.
Sentei ‑me no sofá e respirei fundo. Estava em paz comigo mesma. Sabia que estava
fazendo o melhor para mim. Matando aquele homem dentro de mim. Matando todos os
homens que deixei que me fizessem mal.
E sentindo ‑me limpa como há muito, muito tempo não sentia. Aquele espaço só poderia
ser preenchido com muito afeto, carinho e compreen‑
são mútua.
E agora? O que faria da minha vida? Percebi que não importava. Não me preocupava
com isso. Olhava as pessoas, homens de paletó, senho‑
ras, crianças de mãos dadas com a mãe, office ‑boys apressados. O café che‑
Liberta do meu cativeiro interior. Podia andar pelas ruas novamente sabendo que não
importava com quem ficaria, pois tinha certeza de que seria alguém que me fizesse bem.
Do mesmo jeito que eu estava fazendo bem a mim mesma.
Peguei o celular na bolsa e fiquei olhando para ele. Onde estaria Rei‑
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Procurei seu número na agenda. Podia ligar. Sem medo. Afinal, eu estava livre do
cativeiro, do meu sequestrador. Eu era eu mesma.
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Momento de reflexão
Narcisismo perverso, a patologia emocional do século XXI
ções deflagradas, embora ainda pouco denunciadas, são extremamente atuais e estão
localizadas na multiplicidade de ações que os narcisistas perversos estrategicamente
articulam.
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Agora, mais que nunca, devemos estar atentos às pessoas com Trans‑
torno de Personalidade Narcisista Perversa, que sabidamente transitam entre nós. O alerta
é para também prestar bastante atenção se estamos nos relacio‑
nando com alguém dessa ordem, pois, mais que nunca, eles estão agindo entre nós de
modo silencioso e a detecção é difícil até para os mais avisados.
Existem mais homens que mulheres dentro desse espectro, mas isso em nada invalida a
existência do sexo feminino em ação. Seja como for, ambos os sexos, quando se
encontram nesse estado, funcionam como predadores emo‑
lação. Funcionam como vampiros na medida em que entendem que, para sobreviverem,
precisam esvaziar a vítima de tudo o que significa existência para ela. Isso pode abranger
sua identidade de origem, roupas, família, amigos, cultura etc. A vítima nunca pode
aparecer porque qualquer brilho de vida, por menor que seja, acaba por “irritar”,
ameaçando o eu narcísico do perverso.
E, como todo perverso que se preze, são mestres em burlar a lei e a moral com
inimaginável capacidade de transgressão do que quer que seja.
dade. Tem a habilidade de confundir tanto a percepção das vítimas, como a das pessoas
externas à relação, agindo por meio de suas táticas seduto‑
Nos relacionamentos afetivos, tem a “manha” de se tornar intocável a ponto de não ser
responsabilizado, por exemplo, por suas traições. De algum modo, culpará a vítima por
toda e qualquer atitude imoral que ele, 260
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o narcisista, possa ter. Sempre praticará suas crueldades e, por mais severas que possam
ser, dirá que é por conta do suposto mau comportamento do parceiro. Opera por meio de
condutas altamente opressoras, que são tidas pela psicologia como um dos piores casos
de perversão.
O narcisista frequentemente deleita ‑se com sua crescente sensação de poder, controle e
capacidade de destruir o outro, e com isso acaba dimi‑
nuindo ‑o a qualquer custo. Quanto mais poder, mais delirante fica. Essas aberrações
costumam ocorrer dentro de sua própria casa, no lugar onde não necessita vestir nenhum
personagem. Costuma humilhar parceiros e filhos, se estes existirem na trama, mantendo
todos num clima de terror e de domínio psicológico.
guem quebrar alguém, diminuindo quem está à sua volta, e, como são perversos, farão o
impossível para que suas vítimas transgridam também tudo o que signifique leis morais e
de caráter para si mesmas. Projetam nelas todo o ódio da existência dos limites e da lei
que de algum modo as presas acabam representando para eles. Ficam cegos, fazendo de
tudo para que elas se corrompam no que acreditam como sagrado e correto.
Os narcisistas perversos agem desse modo, mesmo sabendo que as leis existem; porém,
em algum momento da vida, tiveram uma cisão interna, passando a negá ‑las de modo
frenético, inconsciente e escondido, inclusive para si mesmos. Em suas artimanhas, vão
trair e convencer as vítimas de que podem passar por cima disso, ainda infundindo
culpas, dores emocio‑
nais e por vezes físicas. O sentido oculto disso está na perversão, no prazer de fazer as
vítimas transgredirem tudo o que lhes é mais sagrado, ou seja, tudo o que traz algum
sentido moral. Muitos, inclusive, até chegam a rou‑
bar dinheiro e objetos das vítimas, mas têm a capacidade de fazer tudo pare‑
cer duvidoso, embora seja fato conhecido. O prazer está na transgressão da lei, e daqui
advém também o prazer de acionar a transgressão da lei pelo 261
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outro. Os perversos sabem que existem as leis públicas e pessoais, mas têm imenso
deleite em transgredi ‑las e com isso avançam por todos os limites de suportabilidade do
outro, apenas para poderem ter o gozo da quebra da lei (negação fálica). São viciados e
reféns deste tipo de comportamento.
Com isso, Freud desenvolve a sua mais que reconhecida teoria sobre o narcisismo.
Postula que esse desenvolvimento ocorre no período em que o prazer está centrado no
próprio corpo e na fase do autoerotismo. Numa evolução normal, esse afeto seria dirigido
para outros objetos e pessoas dife‑
cepção de que o outro existe e que tem sentimentos e gostos distintos. Em resumo, todo
esse movimento pode ser gerador de crises, posto que os limi‑
tes do outro se revelam e, para amar alguém fora de si mesmo, é preciso lidar com tais
limites. Amar e aceitar as diferenças entre o que sou eu e o que é o outro é a tarefa a ser
concluída.
ções com o passar do tempo, o que significa que, quando estão em algum
relacionamento, a situação de exigência vai se agravando cada vez mais, chegando a ter
consequências insuportáveis para quem convive com eles.
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tema. Se fossem psicopatas, seriam caracterizados como de grau leve, se é que existe
essa expressão quando se pensa no dano causado a outro ser humano. Nesse formato, eles
não chegariam a explicitamente matar e jamais se transformariam em serial killers, muito
embora acabem simbolicamente agindo de igual modo. Em seu universo paralelo, criam
suas próprias leis de conduta, e nele são os únicos reis soberanos. E é nesse lugar de
suposto poder, escondido de todos, que costumam agir com total tirania sobre o
emocional das vítimas escolhidas. O problema maior é que esse mundo secreto paralelo
não fica apenas na imaginação, pois agem e usam pessoas reais para tais intentos.
Muitos estudos confirmam que quase todos os psicopatas costumam vir de um histórico
de ambiente familiar bastante conturbado, permeado por constantes discussões, brigas e
abusos de toda sorte. Mas a ideia não se fecha por aí; muitos, porém, com as mesmas
características de ação, não têm histórico algum que se assemelhe ao exposto. Outras
fontes dizem que pes‑
soas desse tipo já nascem assim e jamais mudarão sua conduta. Outros, ainda, afirmam
que padrões de funcionamento dessa ordem vêm com o DNA da pessoa. Será?
Ao que parece, desde muito cedo, ainda enquanto somos crianças ou bebês, em alguns
casos ocorre severa dificuldade para suportar e mesmo para lidar com situações que
geram sentimentos extremamente perturba‑
dores. As vivências podem ser tão ameaçadoras para nossa sobrevivência, que nossa
mente acabe por criar algo como um falso Self, ou seja, um falso eu que funcionaria
como uma espécie de babá protetora do Self verdadeiro.
A função seria protegê ‑lo de sentir coisas que poderiam fragmentá ‑lo a ponto de fazê ‑lo
perder ‑se de si mesmo. O fato é que esse Eu Babá pode, no fim das contas, passar a
existir de modo tão forte e permanente no psiquismo da pessoa, que acabe eliminando
por completo toda a possibilidade do Self verdadeiro ser ele mesmo. Esse suposto Eu
Babá tomaria posse de todo o sistema como uma personalidade independente, com traços
muito mais 263
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racionais e muito menos empáticas com a realidade. Numa analogia, seria uma tela de
proteção com características próprias que ficou sendo a dona do pedaço. Nesse sentido,
se não tivermos julgamento algum, por pior que sejam os efeitos das atitudes desse Eu
Babá para com as pessoas, ele por si só não estaria categorizado nem como bom, nem
como ruim, visto que sua primeira intenção é apenas proteger o seu eu interior, a quem,
aqui, estamos atribuindo o nome de Self.
ria chegar ao ponto de ter vida própria de modo tão independente, porque assim o
verdadeiro eu irrecuperavelmente se apagaria. A partir de então, toda a estrutura
biológica começaria a agir como uma espécie de robô sem sentimento algum, uma casca
sem alma, incapaz de acessar o sentir e que evita tudo o que possa provocar alguma
lembrança de que sentimentos existem – já que eles são a grande ameaça de novamente
machucar o Self.
Agora, por um instante, imagine ‑se compartilhando seu mundo com pessoas que vivem
sob o domínio desse Eu Babá. Pense no estrago que podem fazer nos universos
relacionais...
Em todos esses anos em que estudo relacionamentos dessa ordem, foco central deste
livro, não consigo deixar de ficar perplexa com alguns casos com que me deparo e com a
impermeabilidade perceptiva dos tais narcisis‑
tas perversos. Os sintomas que classicamente denunciam esses tipos estão configurados
como ausência de culpa e ações milimetricamente planejadas que visam provocar a
destruição de tudo o que pode significar Self no outro.
O que a princípio foi criado apenas como escudo para a sobrevivência do Self passa a
funcionar como uma arma letal. Portanto, qualquer brilho emo‑
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dos como pessoas frias, racionais e mentirosas, interagem com as pessoas apenas
intelectualmente, sem criar vínculos afetivos reais.
busca de algo que os beneficie. Por isso, além da conhecida falta de empa‑
sário, agirão por meio de ameaças veladas ou não, com castigos morais externando o veio
sádico e tirânico que também possuem. Uma das fontes que mais lhes oferecem prazer é
ver o outro subjugado, com sofrimento psíquico e moral.
Uma das minhas hipóteses diz respeito a um efeito autorregulador do organismo que
temos desde muito pequenos. A criança precisa ter conexão com o cuidador e, quando
não tem ou não é suficiente, de algum modo, ela vai se autorregular em prazer. O olhar
do cuidador na criança ou no bebê promove algo em sincronia que ativa tanto o cuidador
como o bebê em alegria recíproca. Desperta a gana de existir na criança através da
conexão do afeto positivo que acontece entre ambos. Essa é uma ati‑
quência, leva a criança a saber que pode conquistar coisas pela via posi‑
tiva. Por outro lado, se essa conexão falha, então, para a sobrevivência do sistema, outro
padrão de autorregulação do organismo pode se desenvolver, 265
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no caso, algo que propicie prazer. Mas como esse prazer não é ensinado de modo salutar,
quando falta conexão, a futura criança se deprime, dissocia ou imprime uma busca de
prazer pela via negativa, por exemplo. E por aí o cérebro vai associando ‑se a mais e
mais incentivos que lhe propiciem esse canal de prazer pela via não salutar. Como a
conexão não foi suficiente‑
mente feita, pode ser que o outro não exista e o prazer fique sempre auto‑
centrado e o outro não se torne uma pessoa, e sim um objeto de auxílio para a obtenção
do autoprazer.
Predadores urbanos
desejo cego de se ter poder e posse a qualquer custo tem sido uma das fór‑
mulas mais explosivas e danosas da nossa atualidade. Ter dinheiro, status social e vida
boa pode até ser o sonho dourado de milhares, mas também pode ser a fonte causadora
de denúncias falsas sobre o semelhante: abuso de poder, assédio moral e outros
malefícios. O jogo da mentira é só uma das estratégias criadas para se apostar nas
conquistas. Vale tudo em nome do poder, em nome de ultrapassar e vencer. Nessa corrida
inglória, o suposto vencedor da difamação – muitas vezes usada como passaporte para as
vitórias sobre o outro –, em geral, é o maior perdedor. E o caluniado, aquele que foi
passado para trás, aquele que nem ao menos teve a chance de ser acreditado em meio às
falsas acusações, ou cai em depressão, ou pensa em vingança.
Nas relações pessoais, a coisa fica mais difícil ainda. As de longa data são as mais
difíceis de serem desvendadas. Mesmo quando um dos pares entrega fortunas na mão do
parceiro, incluindo a própria vida, muitas vezes, o suposto prejudicado nem mais percebe
o quanto foi lesado, apenas sobrevive.
Recebi, certa vez, uma senhora cujo marido havia falecido e dilapi‑
dado toda a fortuna deixada pelo pai dela, sendo que nunca de fato havia 266
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rendo sempre mais; essa senhora acabava cedendo. Depois do falecimento do marido,
deu ‑se conta de que não havia sobrado praticamente nada, e pior, não podia contar com
os filhos porque estes haviam aprendido, pelo modelo de relação com o pai, a não levar
em conta a mãe, e repetiam o exem‑
mente aqueles que sempre estendem a mão para que o outro cresça são os que se tornam
as vítimas mais fáceis desse tipo de armação duvidosa. Os cenários podem variar, mas o
conteúdo da trapaça sempre é o mesmo: o outro é a ponte para que eu alcance o que
desejo e ponto; e muitas vezes a vida do outro é o que desejo. Nessas situações, a inveja e
a cobiça são camufladas estrategicamente por camaradagem, amizade e boa companhia,
as ferramentas mais utilizadas por esse tipo de predadores urbanos.
Subir, escalar as alturas é o lema! Preste atenção, seja onde estiver trabalhando e mesmo
em sua vida pessoal, observe como esses predado‑
res funcionam como autômatos. Cenas emotivas e amizades são apenas estratégias
automáticas desse tipo de ação para toda sorte de conquistas.
Se você for da turma do outro lado da moeda, fique esperto quando as questões acima
relacionadas lhe saltarem aos olhos pelo excesso. Descon‑
Nunca é tarde para dizer não e fechar as portas quando perceber que algo não está
correto. Melhor ganhar a si mesmo de volta que perder ‑se pela ganância desenfreada de
outro. Melhor ser incorruptível quando a primeira percepção de que algo não está correto
lhe sobrevém e levar ‑se a sério, sendo o melhor amigo de si mesmo.
Tenho recebido inúmeros casos em meu consultório de pessoas que não se ouviram e se
deixaram levar. Depois das perdas, perguntam ‑se como não viram o que estava
acontecendo ou como nem sequer vislumbraram o que poderia acontecer.
clusão de que em algum momento sempre percebiam que algo não ia bem, porém,
confiaram demais no outro e menos nas próprias percepções.
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Na terapia, inaugura ‑se o oposto: abre ‑se espaço para a validação das percepções, para a
validação da alma, aquela que sempre percebe tudo. Você conta para si mesmo o que de
algum modo já sabia e se fortalece para criar movimentos e ações em seu próprio
benefício.
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Máximas de alertamento
Quando um manipulador narcisista perverso perceber que sua vítima ficou consciente,
em primeiro lugar, começará a se rebelar, ameaçando sair da relação. Seu objetivo é
acuar e assustar a presa. Se esse posicionamento não mais fizer efeito, ele entrará na fase
do “volte a dormir”... Ele se tornará tudo o que a vítima sempre quis e, estrategicamente,
em alguns momen‑
tos, agirá como um sujeito agradável e adorável. Se acaso estiver tentando sair desse
drama, não se iluda, esse cálculo apenas visa trazê ‑lo de volta para a cadeia de sedução
onde até pouquíssimo tempo você estava. Faz parte de um círculo vicioso e letal, se você
não sair dele definitivamente, seu destino certamente será a morte psíquica ou física. E se
acaso ainda estiver mer‑
tivamente esqueça essa ideia. Tais manipuladores, no geral, caracterizam ‑se 269
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como seres profundamente malévolos. Atravessam a vida cheios de raiva, como bolhas
explosivas repletas de ódio, mas não contam nem para si mes‑
mos que assim são. Por isso mesmo é que, de modo obscuro, destilam suas piores
emoções nos outros. Atente que o que diferencia os manipuladores narcisistas do mal dos
narcisistas comuns sempre será o nível de sadismo e crueldade implicado nas relações.
dade dos narcisistas psicopatas, a resposta é complicada. Alguns autores vão colocá ‑las
na conta de situações de incesto vivenciadas concreta ou ilusoriamente. Um manipulador
dessa ordem também tem sido muitas vezes fruto de uma relação perversa com um pai,
irmão ou irmã. Quaisquer que sejam os motivos ou modos pelos quais se tornaram o que
são, não é possível tratar terapeuticamente esses indivíduos, por várias razões. A pri‑
meira de todas é que, na verdade, eles não estão buscando ajuda. Têm orgu‑
lho do que são e não reconhecem que há um problema. Os seus sistemas de crenças
também estão bloqueados para enfrentar quaisquer tipos de críti‑
Se não se pode tratá ‑los, a solução possível está no enquadramento, quando as vítimas
aprendem a não autorizarem mais ninguém a prejudicar o seu espaço pessoal. Esse
enquadramento também começa com a cons‑
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coisas, quando o afeto é grande demais e um dos parceiros geralmente está de algum
modo adoecendo a olhos vistos ou mesmo reclamando de atitudes que, a princípio,
possam parecer queixas confusas, mas, na pri‑
vacidade, têm a primordial função de desestabilizar a vítima para que o narcisista seja a
única existência válida e maravilhosa. E o pior, invertem a história, vendendo a imagem
de que são vítimas de parceiros doentes...
Isso é altamente perverso, mas apenas mais uma das facetas de tais narci‑
sistas manipuladores.
Porque muitos estão em lugar de poder, a sociedade faz vista grossa e lhes dá impunidade
para enganar a todos o tempo todo. Para evitar que sejamos manipulados, devemos
primeiro aceitar que essas pessoas exis‑
tem e que são deliberadamente maliciosas e sorrateiras. A ideia é definir limites pessoais
de autorrespeito e respeito àqueles que sofrem nas garras desses sádicos perversos e
narcisistas. Numa sociedade narcísica, repleta de tais aberrações, torna ‑se necessidade
vital fazer esse tipo de alerta.
gência, pela criatividade etc. Seja como for, ficar esperto antes de embarcar num possível
relacionamento, no qual tudo a princípio encanta e seduz, é a grande dica para não ser
fisgado de modo indevido. Vampiros energé ‑
ticos sempre parecerão mais atraentes que a maioria, mas somente com o olhar atento e
reconhecendo como funcionam é que você poderá perceber o quanto diferem das pessoas
comuns.
Quando se está na mira de tais predadores, quanto mais consciente você estiver a respeito
de como eles costumam agir, mais facilmente per‑
ceberá que todas as investidas terão o único e derradeiro intuito de cap ‑
turá ‑lo, imantando sua atenção a eles. No princípio do enredamento, o objetivo dos
encantadores ataques sempre será em função de suprir suas necessidades mais íntimas e
pessoais. Portanto, se algo de estranho e sedu‑
tor, além do normal, saltar ‑lhe à mente, sua atenção deverá ser redobrada.
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É por meio de ações desmedidas e magicamente nutridoras de tais carências que esses
humanoides destilam seu veneno, entorpecendo a noção de reali‑
dade das futuras presas. Ao conseguirem dopar a clareza perceptiva de seus alvos,
conseguem a proeza de paralisá ‑los, deixando ‑os na expectativa de serem supridos por
algo que sempre lhes fez falta. Essa é a principal arma dos vampiros energéticos.
Infelizmente, costumam enganar a todos com bastante agilidade. São extremamente
habilidosos, estrategistas e manipu‑
ladores para conseguir o que desejam, pois seu único e derradeiro intuito é o de sugar
toda a energia vital dos alvos. Transformam ‑se em verdadeiros camaleões, mudando de
forma, de modo de pensar e de falar, conforme a frequência de suas escolhas.
Como vampiros famintos que sugam o sangue das vítimas, de várias maneiras eles as
entorpecerão, ao mesmo tempo que aspirarão suas ener‑
gias até que morram de verdade ou fiquem como verdadeiras almas pena‑
Os vampiros emocionais estão longe de saberem que podem gerar e ter luz própria.
nais. É por essas fendas que tais predadores ladina e insidiosamente tenta‑
rão roubar a alma dos desavisados. Suas artimanhas servem para provocar toda sorte de
inseguranças que por fim visam desconstruir a autoestima e o sentido de si mesmas das
vítimas escolhidas.
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.....................................
Depoimentos e tratamentos
Todos nós corremos risco de passar por experiências de vida passíveis de serem espelhos
reversos de nossas raivas mais profundas, nossas carên‑
cias e insanidades, por exemplo, ao querer e mesmo entender que necessita ser amado
mais que tudo nessa vida, pode ser que lá na frente seu parceiro o rejeite e, pior, jogue na
sua cara suas maiores carências e complexos em relação às questões emocionais mal
resolvidas.
bém funciona como antídoto valioso para começar a busca de alvos internos e metas
claras para a transformação radical dentro desse assustador circuito de realidade. Começo
por perguntar se têm conhecimento de que algumas pessoas podem ser totalmente
picadas por pernilongos, enquanto outras ocupando o mesmo espaço não sofreram uma
picada sequer. Por que será que alguns são imunes e outros não? Dizem que as pessoas
imunes aos ataques 273
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dos pernilongos têm uma quantidade de vitaminas do complexo B que os faz passar
longe delas. Por analogia, o processo terapêutico vai pela mesma ordem, ajudando na
imunização com uma espécie de complexo B emocional.
mente a urgência dos acontecimentos com terapia competente e pontual, tendo como alvo
o que antes não teve condições nem suporte para vir à tona.
Não precisando projetar em nada e em ninguém o que falta, o que se odeia e muito
menos o que se persegue. Não abrindo espaço também para ser depó‑
guém é – nem jamais será – muleta para outrem. E se acaso por algum tempo for,
cuidado, tudo tem um preço e às vezes pode custar sua vida.
nho especial de transformação e de transcendência, haja vista que ajuda a iluminar nossa
vida em geral.
O antídoto para o sequestro: buscar rapidamente ferramentas para que sua transformação
pessoal ocorra e, na sequência, fazer acontecer. Estar imune e fortalecido para lidar com
esse tipo de situação e se habilitar a ter compe‑
tências para, se for o caso, tomar atitudes mais drásticas no sentido da auto‑
proteção. O importante é agir com bom senso, visando sua saúde emocional.
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Nasci nos anos 1970 e cresci num país comunista até a queda do
Muro do Berlim em 1989. Tinha 15 anos, e ainda me lembro das restrições de onde vivi
até então. Tinha curiosidade de conhecer o mundo, culturas e pessoas diferentes, mas não
era possível. Estava vivendo numa prisão social com a qual parecia que conviveria a vida
inteira. Podíamos viajar para fora do país apenas uma vez a cada dois anos, e só com
permissão oficial, e de preferência para outro país do bloco comunista. As pessoas
evitavam falar com estrangeiros na rua, por medo de serem denunciadas à polícia secreta.
Por que estou contando algo que aconteceu há tanto tempo? Porque acabei revivendo
uma situação similar de sequestro, de medo, mais psicoló‑
gico que físico, mas não por isso menos prejudicial, em meu casamento de onze anos
com uma pessoa que era para ser meu Príncipe Encantado...
Assim que tive a oportunidade, nos anos 1990, viajei para o exterior, fazendo programas
de intercâmbio. Ia estudar qualquer coisa, mas o mais importante era conhecer o mundo.
Sentia que podia finalmente conhecê ‑lo, agora que tinha saído da prisão. Em um dos
programas do qual participei, acabei conhecendo uma pessoa de nacionalidade diferente,
encantadora, extremamente conquistadora. Era muito fácil dividir com ele as coisas que
gostava de fazer, uma corrida no parque, uma viagem, o cardápio num res‑
Por razões macroeconômicas, acabamos decidindo mudar para o país dele, enquanto a
crise na Europa não passava. Até hoje, mais de treze anos depois, não consegui voltar aos
lugares onde gostaria de ter permanecido e não existe a probabilidade de isso acontecer
nos próximos dez anos, ou seja, até nossos filhos chegarem à maioridade.
recer alguns sinais de que tinha praticamente abdicado de minha vida ante‑
rior, muito por questões geográficas e logísticas. Não prestei muita atenção 275
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neles na época, apesar da dor e da frustração que senti; só começaram a fazer sentido
bem depois, quando comecei meu tratamento terapêutico, no momento em que estava me
sentindo à beira do abismo.
quando não estava me sentindo bem, percebi que ele fazia de tudo para não ficar por
perto. Parecia que eu estava com lepra. Não só não sentia apoio ou preocupação por parte
dele, mas acabei me sentindo culpada por estar doente, quando ele queria aproveitar a
vida.
Durante os anos seguintes, com muitos problemas na família dele e na empresa, além do
nascimento de nossos filhos, acabei aos poucos dei‑
xando mais de lado ainda coisas e atividades de que gostava, que me faziam bem, como
desenhar, dançar, ir a um museu ou ao teatro, visitar amigos, a maioria dele, receber
amigos dos meninos em casa, ir aos aniversários dos colegas dos meninos e até visitar a
minha família no meu país de ori‑
Era um gasto de energia tão grande para tentá ‑lo convencer a fazer algo de que eu
gostava, que aos poucos fui desistindo. Desisti de dançar, de desenhar, de ir aos museus.
ber mais uma crítica, mais uma bronca ou mais alguma ordem. Ou era por‑
que eu fazia o que fazia, ou era porque não fazia o que não fazia, ou porque gostava do
que gostava, ou porque não gostava do que não gostava. Nunca sabia qual seria a
próxima crítica, a próxima reclamação, a próxima ordem, e muito menos por qual
motivo. Tinha chegado a um ponto em que estava com medo de falar, de expressar
qualquer opinião ou sentimento que fosse, porque tudo era usado no momento ou depois
como prova ou desculpa para mais uma bronca. E as críticas sempre vinham por meio de
ironia, agressi‑
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exigia e mais me acuava. Enfim, vivia tensa e com medo de errar, nunca sabia qual seria
o meu próximo suposto erro.
Entre as brigas que acabei assumindo, a ponto de enfrentá ‑lo, muitas foram relacionadas
aos nossos filhos, como:
nham apenas que ficar olhando para as peças (isso parecia im possível 277
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próprios brinquedos.
2. Ele ficava tão mal ‑humorado, que me senti proibida de continuar recebendo os
amiguinhos das crianças em casa. Ficava incomodado com a bagunça e se trancava no
escritório enquanto houvesse crian‑
3. Além de puni ‑los verbalmente, escondia os brinquedos favoritos deles como forma de
educação.
nhum argumento lógico a seu lado, ainda me punia com algo que chamo hoje de “gelo
emocional”. Simplesmente parava de falar comigo por dias, às vezes por semanas,
ignorando ‑me como se eu não existisse. Melhorava à medida que se passavam os dias,
ficava um pouco mais “bonzinho” e tro‑
cava algumas palavras comigo. Eram os momentos em que eu o percebia querendo fazer
sexo. Ludibriada e, no fim, com medo, eu acabava cedendo, mas depois voltava tudo ao
“normal”, isto é ao gelo emocional.
Nesse processo de desistir de mim mesma na tentativa de fazê ‑lo me aceitar e parar de
me criticar, acabei me vendo numa prisão muito similar àquela na qual vivi a infância e a
adolescência. Tinha medo de falar, de brincar com nossos filhos, de falar com outras
pessoas, de desejar. Estava proibida de viajar, ou viajaria com um custo emocional tão
grande que às vezes acabava simplesmente desistindo. Vivia com medo dentro da minha
própria casa.
mia, uma bola de futebol com tanta força que quebrou um espelho grande e pesado que
tínhamos em casa, um porta ‑retratos que deixou um buraco no móvel do banheiro;
quebrar a marteladas o meu celular, não me deixar dormir acendendo todas as luzes da
casa ou me proibindo de deitar, e me ameaçar, dizendo que faria da minha vida um
inferno até eu ir embora deste país sozinha, sem os meninos.
Os motivos dessas atitudes? A cada momento ele mudava para algo diferente e inusitado.
Ou era porque eu havia comprado panelas de uma cor que ele classificava como feia, ou
porque organizava os livros nas prateleiras 278
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e ele achava o meu senso estético horrível. Ou porque ia pegar água na mesa, durante o
jantar, na hora em que ele decidia que não era para inter‑
romper a fala dele ou o fluxo do jantar, ou porque eu ia trazer mais comida e não avisava
que ia levantar da mesa para pegar... E por aí vai...
Tinha medo de colocar o copo de água do lado direito ou esquerdo da mesa porque
poderia ser criticada. Nunca sabia da reação dele para o que quer que eu fosse fazer.
Fiquei muitos anos me perguntando onde estava errando, por que não estava conseguindo
em nenhum momento fazê ‑lo entender o que sentia, o quanto estava me magoando,
somente para escutar que eu não tinha nenhum senso de humor. Não imaginava que
existissem pessoas que real‑
mente não conseguem sentir nada pelos outros, que ficam bem somente quando os outros
ao redor estão mal.
mos livres do nosso pai?”, a vida foi ficando mais e mais insuportável. O
pior era que, em público, tínhamos que aparecer como a família perfeita, pois sabíamos
que, se não fosse assim, dentro de casa seríamos punidos.
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Nessa hora, decidi que já era mais do que o momento de mostrar aos meus filhos que o
que estava acontecendo não era aceitável, que não era esse modelo de mulher submissa e
homem agressivo que eu gostaria que eles aprendessem como algo normal. Busquei
ajuda terapêutica. Acredito que foi um processo rápido, mas eu já tinha passado do limite
e chegado a um desespero enorme.
No momento em que estou escrevendo este relato, passaram ‑se nove meses que consegui
a decisão judicial de separação de corpos, com ele saindo de casa, e a guarda das
crianças. Joguei no lixo toda a estabilidade finan‑
ceira que, por bem ou por mal, eu tinha, mas estou melhor comigo mesma, muito mais
feliz, com um enorme desejo de viver, de brincar com meus filhos, de ficar perto de
amigos e pessoas especiais. Surpresa! Não sinto mais medo em minha própria casa. Há
muito ainda para vir, todo o processo de divórcio está extremamente complicado e
demorado, mas estou respirando o ar da liberdade de ser dona de mim mesma
novamente... Espero não per‑
der isso de novo daqui em diante. Na primeira vez já nasci numa prisão, da segunda fui
enganada e acabei entrando sozinha... Acho que já deu de prisão para esta vida.
Vivi um sequestro de alma por muito tempo. Ao todo, foram dezesseis anos de
relacionamento. Não sei precisar quando exatamente o sequestro começou, mas sei que
foi nos primeiros anos de convivência.
No começo, tive a oportunidade de me valorizar e ficar fora, longe dele, mas achei que
estava seguindo meu sentimento e minha vontade, hoje vejo que na verdade estava
renunciando a mim, desvalorizando ‑me. Não enxer‑
guei e não li os sinais para ficar longe. Estava enganosamente encantada e a vontade dele
tomou conta da relação de maneira violenta e grosseira.
Logo no primeiro ano, teve um momento de invasão, de violência. Eu estava dormindo
na casa de umas amigas, pois íamos para a praia no dia 280
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seguinte, cedinho. Ele me procurou na casa delas, me pegou firme no braço para eu não
ir e falou comigo de maneira bruta.
ria para não me sentir tão dominada. Acho que fiquei e fui depois com ele e um amigo,
no meu carro. A perversão e o assédio moral foram se insta‑
lando e eu fui aceitando, submetendo ‑me e entrando cada vez mais na teia perversa, sem
perceber a dimensão de tudo aquilo na minha vida.
ção. Depois, nos detalhes, nos olhares, nas críticas, fica minando nossa ener‑
gia, como um vampiro. Quando vamos falar do que incomoda, ele volta a ser carinhoso e
nos envolve na terrível trama novamente.
gem. Naquele momento, eu achava que estava chorando porque aquela fase muito boa da
minha vida tinha acabado e uma nova fase cheia de obri‑
gações na cidade grande começava. Mas hoje vejo que chorei tanto porque estava indo
contra minha vontade e meu coração, agia mais pela influên‑
cia daquela pessoa que por mim. Eu não tinha real necessidade de ir. Não estava num
bom trabalho, pelo contrário, eu não era valorizada. Demorei quase um ano para
conseguir um trabalho realmente bacana.
Depois de alguns anos, casamos e a violência silenciosa aumentou.
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Um pouco antes de nos casarmos, descobri uma traição dele e contei ‑lhe que sabia. Ele
quis que explicasse como sabia, e depois veio me acusando de viajar muito pelo meu
trabalho, dizendo que a culpa de ele ter me traído era minha, por viajar tanto... Eu jamais
deveria ter aceitado aquilo em sã consciência, mas já não distinguia o que era certo.
Minha mãe não gostava dele e não queria que eu me casasse, mas não a escutei. Pelo
contrário, ainda conversava com ela buscando de alguma forma convencê ‑la de que o
relacionamento era bom.
Em todas as conversas que tinha com esse homem, no final, ele era o perfeito e eu
sempre a culpada, e ele ainda me obrigava a pedir desculpas.
Enquanto não pedisse perdão, não conversava comigo direito e me olhava com ódio. Por
muitos anos eu o admirei, pois o raciocínio dele era muito claro, e me parecia bom.
Achava lindo alguém poder pensar tão clara‑
Esse tipo de pessoa sabe conduzir muito bem as conversas para nos manter sequestrados,
pois conhece como ninguém nossa fraqueza emo‑
cional e sabe as palavras certas para reverter a situação sempre que quiser, e, na hora em
que precisamos dela, não pensa duas vezes em ser dócil, carinhosa e amável. Nesse
momento, esquecemos todas as humilhações e caímos na dela.
Há uma situação específica que ilustra bem o que vivi: eu daria uma palestra no dia
seguinte numa feira muito importante para mim. Já eram 23h30 e eu ainda ia revisar o
material da palestra. Terminamos de jantar e fui para o computador. Ele sabia que eu
ainda ia trabalhar, então, ante‑
ci pou ‑se e sentou à frente do meu computador. Queria ver sites de motos, simplesmente
ver, coisa que poderia fazer a qualquer momento. Falei que precisava ainda revisar a
palestra. Ele disse:
Estava com muito nojo dele e não queria chegar nem perto, de tanta raiva por ele fazer
aquilo comigo. Nem se mexeu, continuou a ver os sites.
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Eu estava com vários livros e materiais para trabalhar em mãos. Joguei tudo no chão, de
raiva, e me sentei, esperando que ele saísse. Ele se levantou e me chamou de louca por
fazer aquilo e ainda me ameaçou: mais um ataque daqueles e ele iria embora.
Fiquei quieta, fui para o computador terminar minha palestra e ele foi para o quarto
dormir. No dia seguinte, olhava ‑me com ar de raiva, de repro‑
lada, muito demorada”. Assim, sempre saíamos de casa em clima ruim. Ele ficava na
dele, sentado, esperando, com aquele olhar de raiva para cima de mim, que subtendia:
“Você é enrolada, é lerda”. Mas não se levantava um segundo sequer para ajudar a
arrumar as coisas de nossa filha para poder‑
mos sair logo. Arrumava as próprias coisas, ficava esperando e depois me criticava. O
tempo todo me criticava, pois tudo o que ele fazia era perfeito e tudo o que eu fazia era
péssimo; chegava até a pedir para eu trocar de roupa, e eu obedecia. Se íamos ao clube
com minha filha ainda pequena, agora, com cerca de 2 anos, ele ia para a academia do
clube e nós duas éramos obrigadas a ficar com fome, esperando ‑o sair da academia para
comermos.
Senão, ele já me lançava aquele olhar terrível, que me fazia sentir péssima.
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Vivi nessa tensão horrível durante anos com zero respeito por mim, até que, em 2008,
quando estava pensando em ter o segundo filho, tive um diagnóstico de câncer de mama.
Essa foi minha salvação, por incrível que pareça! Foi muito chocante receber o
diagnóstico, eu estava com 35 anos.
Mas foi no tratamento que acordei para a vida e comecei a perceber de verdade as coisas
que ele fazia. A primeira quimioterapia que fiz foi na vés‑
pera do aniversário dele. A expectativa era de que eu ainda estivesse bem no primeiro
dia, então, marcamos para sair e comemorar com amigos. Mas logo depois da químio,
passei muito mal, fiquei do avesso. Todos os amigos disseram que entenderiam
completamente se desmarcássemos. Mas ele quis ir e me deixou em casa com a
empregada e minha filha de 3 anos. Mesmo sabendo que a químio é um processo muito
delicado, que pode provocar sérias reações alérgicas pelas quais se tem que ir
imediatamente ao hospital, ele não podia de deixar de comemorar o próprio aniversário
com os amigos, pois ficar comigo não era o suficiente. Precisava dos amigos bajulando
‑o.
No dia seguinte, eu continuava muito enjoada, como já havia saído com minha filha
durante a semana para comprar o presente dele, demos nesse dia. Algumas semanas
depois, tivemos uma conversa e ele veio reclamar que 284
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eu não havia comprado um bolo para comemorar seu aniversário! É insano imaginar que
alguém pense isso diante do que eu estava passando, mas é a realidade. Ele é que deveria
ter ficado em casa comigo e comprado um bolo junto com minha filha para
comemorarmos o aniversário em família. Mas, como sempre, não fazia nada por nós e
ainda me cobrava e me criticava.
Durante o tratamento ocorreram mais coisas horrorosas e piores que essa, então
enxerguei a pessoa terrível que estava ao meu lado. Ele chegou a reclamar com um
amigo que agora eu era o centro das atenções e todos queriam saber só de mim, e não
davam mais atenção para ele!
tratamento, ele quis, de todo jeito, passar a virada do ano na praia, alugar uma casa com
os amigos. Mesmo sabendo que seria muito crítico para mim, pois a geladeira precisaria
ficar impecável, para eu não ter nenhuma con‑
taminação. Imagine como seria fazer isso numa casa com 14 pessoas em pleno verão?
Além do mais, eu não podia tomar sol, não podia entrar na piscina nem no mar! No ano
anterior, tínhamos passado o réveillon na praia, em uma casa alugada pela minha mãe,
que tinha somente um quarto com ar ‑condicionado. O vampirão fez questão de ficar
nesse quarto, e não deixá ‑lo para minha mãe, como deveria ser se tivesse o mínimo de
respeito por ela.
Naquele ano, com os amigos, ficaríamos na casa sem ar ‑condicionado, o que seria
inadmissível para ele antes. Mas com os amigos dele e a mulher no meio da
quimioterapia podia!
Fomos para a praia, deixamos nossa filha lá com a babá e voltamos a São Paulo, pois eu
tinha uma quimioterapia para fazer na segunda ‑feira.
No domingo, fomos ao shopping. Ele comprou roupas para mim, se fez de bonzinho e
quis ir ao cinema. Estava lotado e a pessoa ao meu lado estava com o nariz escorrendo;
eu quis mudar de lugar, pois não era recomendado para mim ficar ao lado de alguém
nesse estado, já que minha imunidade estava baixa, mas ele reclamou e não quis sair do
lugar. No dia seguinte, fomos ao hospital para a quimioterapia e à noite fizemos as malas
para voltar ao litoral. Deixamos minha mala e a dele uma ao lado da outra. Na terça
‑feira, cedo, pegamos as coisas, ele desceu tudo, colocou no carro e 285
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fomos. Chegando à praia, descarregou o carro, e, quando fui desfazer minha mala, ela
não estava lá! Ele simplesmente pegou a mala dele e nem olhou para a minha, que estava
ao lado da dele, com as roupas para mim e minha filha usarmos no Ano ‑Novo. Pior é
que ainda veio me culpando, dizendo que eu que tinha que dar um jeito nas coisas... que
a culpa era minha. Eu tinha feito quimioterapia um dia antes!
No fim do dia, foi para a casa de um amigo beber cerveja e eu fui sozi‑
nha comprar um vestido para minha filha passar a virada do ano. E pior, tive que levar o
imbecil até a casa do amigo dele e depois buscar! Repito, tinha feito a químio no dia
anterior! Minha sorte é que naquela sessão fiquei bem...
Mas três dias depois disso, um dia antes da data em que iríamos embora, a geladeira
ficou um horror e passei mal a noite inteira. Vomitava a cada trinta minutos. A orientação
em quimioterapia é que qualquer coisa desse tipo é muito perigosa e o paciente deve ligar
para a equipe médica e ir para o hospital. O imbecil ao meu lado na cama não se mexeu
nem um minuto para me perguntar se eu precisava de algo. De manhã, falei que passei
mal e estava com febre. Ele me perguntou o que eu queria fazer, e respondi: “Temos que
ir embora!”. Era óbvio que eu não podia continuar ali!
Saímos, pegamos um trânsito horrível, demoramos umas oito horas para chegar em casa.
Chegando, ele se virou para mim e disse: “Bom, amanhã você vai sozinha no hospital,
certo? Porque já perdi hoje meu dia inteiro com você”. No dia seguinte, saiu para ir à
academia, à massagem, sei lá o quê, e nem quis saber de cuidar da minha filha, já que eu
precisava ir ao hospital tomar injeção... Agora percebo que, contando assim, parece filme
de terror, mas é a verdade!
mento contra o câncer, mas queria comemorar com minha família e pedi à empregada
para fazer um bolo de uma receita que gosto muito, ele ficou mudo na mesa, como um
defunto, me olhando, e depois reclamou que o bolo estava ruim.
Tentei falar com ele algumas vezes e a história era sempre a mesma, ele usava seus
argumentos elaborados e bem colocados e queria que eu saísse da conversa pedindo
desculpas. Mas, com a ajuda da psicoterapia e 286
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de pessoas próximas, consegui enxergar a verdade, e a única coisa que pensava era que
no final do tratamento eu ia me separar. Já não me envol‑
via nas conversas, pois sabia que seria sempre a mesma coisa. Também não fazia sexo há
vários meses.
Mesmo com todas as evidências, foi difícil ficar firme na minha decisão de ir em frente,
precisei de provas concretas para me convencer. Soube com certeza que ele estava me
traindo durante pelo menos dez anos, e com a mesma pessoa que descobrira antes do
casamento. Dei ‑me conta de que o que tive nunca foi um casamento de verdade, que ele
nunca foi íntegro e verdadeiro na relação. Que o tempo todo queria me manipular para
fazer as coisas que ele queria, acima de tudo. Percebi que precisava pisar em mim, me
ver mal para ele ficar bem, sugando minha energia e minha autoestima.
cebi que o que eu queria falar naquela cena era: “Então, vá embora mesmo, pegue suas
coisas e suma daqui!”. Pois eu é que não deveria mais aturar aquele psicopata me
chamando de louca, me pisando, me culpando de tudo e me lançando aquele olhar
horrível. Todos os medos que eu tinha da sepa‑
ração, de ficar sozinha, foram vencidos na terapia, pois percebi que sozinha eu já estava.
Também percebi que tive o câncer para acordar de vez que, se não me separasse, eu
morreria.
Sabia que para conseguir de fato colocar um ponto ‑final naquilo tudo nunca poderia ser
através de uma conversa franca, como eu sempre fazia.
Pois numa conversa franca ele sempre viria com seus argumentos, de maneira
conquistadora, me convencendo de que eu estava errada. Nisso, ele era sem‑
pre mais forte. Eu nunca conseguiria sair daquela trama assim. Então, mudei de
estratégia. Fui sincera também, isso é verdade, mas de uma maneira que não deixava
espaço para argumentos. Eu o chamei para uma conversa e disse que não o amava mais e
que não dava mais! De forma pacífica e tran‑
quila. Não tinha forças para fazer de outro jeito, pois sabia que ele refutaria para vencer
na conversa.
Assim, consegui me livrar daquele perverso narcisista. No começo da separação ainda foi
muito difícil. Ele foi agressivo várias vezes, no início até 287
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fisicamente, depois nas palavras e nos e ‑mails. Não se conformava de estar perdendo a
presa dele. Agora, mais de quatro anos após o divórcio, ele ainda tentava continuar
agindo como um perverso conquistador, nas situações com minha filha e em outros fatos
de minha vida, mas consegui colocar um fim definitivo em qualquer tipo de conversa
direta com ele, pois mesmo nos e ‑mails continuava me agredindo. Sei que minha filha
ainda precisa conviver com ele e vai periodicamente para sua casa, mas qualquer
conversa comigo é apenas por e ‑mail ou com minha secretária.
Logo depois da separação, conheci uma pessoa maravilhosa que me enxerga e me ama
como sou, que é um verdadeiro companheiro. Agora, sim, sei o que é ser amada e estar
num casamento de verdade.
Renan não brincava fora de casa quando era criança. Sua mãe tinha medo. Muito medo.
Ele era de uma cidade do interior e ficava na janela vendo as outras crianças brincarem
na rua. Um dia, deu uma escapadela e foi correr com os outros meninos. Um deles não ia
muito com sua cara e lhe deu um empurrão enquanto estavam correndo. Ficou com o
joelho e as mãos ralados.
A mãe, ao ficar sabendo, não foi brigar com ele. Foi bater boca com a mãe do outro
garoto e o levou junto. Aquilo lhe trouxe muita vergonha.
Das raras vezes em que ia à piscina, lembrava ‑se que dificilmente podia ficar ao sol. Era
obrigado a ficar embaixo do guarda ‑sol, junto com a mãe, pois ela não queria que
prejudicasse sua pele.
Seu pai insistia uma ou duas vezes, mas depois sempre o deixava aos cuidados da mãe. O
pai era muito preocupado... consigo mesmo. Vivia se exercitando e se olhando no
espelho. A mãe o acompanhava. Como os dois eram lindos, podia se lembrar. A mãe
estava sempre bem vestida, maquiada (até dentro de casa), preocupada com a
alimentação e os exercícios. Não que se importassem com uma vida saudável. Sua maior
preocupação, Renan concluiu anos mais tarde, era com a estética. Quantas vezes vira a
mãe 288
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chateada com algo e, ao se encontrar com alguém importante, exibia o seu melhor sorriso
e seu charme inesgotável.
Renan, criança, às vezes olhava para uma vitrine e comparava os pais com os manequins
das lojas. De fato, eram muito parecidos. Impecáveis.
A diferença era que geralmente os manequins não tinham cabelo e tanto seu pai como
sua mãe o tinham do tipo louro, faiscante. Ambos tinham olhos azuis. Renan não teve a
mesma sorte, ou azar; nasceu com cabelos escuros.
Às vezes, os pais brigavam para saber a quem tinha puxado aquele cabelo
“diferente”. Mas não precisava se preocupar, pois herdara também a beleza do avô. Era
uma criança muito bonita e tornou ‑se um jovem mais bonito ainda.
E ali, olhando ‑se no espelho, envolto por luzes fortes (praticamente íntimo delas) e
sendo maquiado para o próximo desfile, Renan lembrava ‑se de como a mãe sempre dizia
que era belo e que precisaria usar sua beleza para brilhar na vida. E o decreto dela se
cumpriu... Estava brilhando. Era um dos modelos mais requisitados do país e também
muito reconhecido no exterior. E foi em meio a essa consciência que a figura de
Deborah, sua mãe, apareceu ao seu lado, no espelho.
E ela então, como sempre fazia, começou a ralhar com a maquiadora, dando palpites,
concluindo que o tom da maquiagem não estava adequado ao seu perfil, e por aí tomava
um percurso sem fim... E Renan, paralisado, apenas observava a batalha da mãe para que
cada centímetro quadrado do seu rosto fosse valorizado. Nesses momentos de observação
daquela imensa proteção, não podia deixar de perceber como, apesar dos anos se
passando, a mãe continuava bonita. Tinha mais de 50 anos, mas conservar a juventude
parecia uma obsessão. Lembrou ‑se de seus anos mais difíceis, quando enfrentaram a
doença do pai. Foi muito dolorido ver aquele corpo perfeito e cheio de vigor murchar dia
após dia. Sentiu bastante o fato de Deborah ter que se afastar aos poucos,
proporcionalmente à medida que a doença do pai avançava. Mas Renan entendia, sabia
que seu desconforto se misturava com a dor de perder o marido querido. Como lição
dessa época, Renan pôde ter a consciência, ainda enquanto adolescente, de como tudo era
frágil e de como a beleza podia ser apenas aparente.
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Deborah tornou ‑se viúva muito jovem e bonita. Entregou ‑se de corpo e alma ao filho e à
sua profissão. Fez as melhores fotos, os melhores con‑
tatos, a melhor política, e o filho estava encaminhado. Renan ajudava, e muito, afinal,
tinha aprendido com os pais como ser simpático e sedutor.
dente, era mais fácil receber elogios, carinho e atenção. Então, ele sorria...
cos amigos, e Deborah fazia questão de ir a qualquer lugar em que ele estivesse presente.
Renan começou a sentir mais fortemente que queria conhecer outras pes‑
soas e ter outras companhias além da mãe. Sentia que precisava se tornar independente
dela, por mais que a amasse.
Para ele, era um fato tranquilo ter a consciência de que, desde pequeno, não se
interessava pelo sexo oposto. Com o passar do tempo, começar a dese‑
jar outros homens foi uma consequência natural. Para ele, mas não para sua mãe. Não
que ela se opusesse ao fato de ele querer ficar com pessoas do mesmo sexo. O que ela
não queria era que Renan ficasse ao lado de “qual‑
quer” pessoa. No fundo, queria o filho somente para si. E aquele amor come‑
çou a sufocá ‑lo. Como começou a vida profissional ainda adolescente, sua mãe tinha que
acompanhá ‑lo. Na verdade, ele foi percebendo que, para ela, era mais que uma simples
obrigação. Era um prazer estar com ele nos even‑
Também nas festas, antes e após os desfiles, sua mãe sempre dava um jeito de ficar ao
lado dele. Como era muito cortejado e várias pessoas esta‑
vam sempre à sua volta, ela acabava por funcionar como uma espécie de escudo
protetor... Nessas ocasiões, era totalmente impossível se interessar por qualquer pessoa,
ou sair com alguma delas, pois era terminantemente proibido pela mãe.
teve que se deparar com forte resistência vinda de Deborah e isso gerou inú‑
meros conflitos emocionais entre ambos, que acabavam sempre em algum 290
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tipo de chantagem com ele, gerando culpas e mais culpas, até que ele aca‑
basse a conversa pedindo desculpas, sentindo ‑se um ingrato com a mãe e, por fim, um
péssimo filho.
síaco, à beira ‑mar. O produtor do desfile era muito amigo de Deborah e Renan.
Durante uma festa, após o trabalho, o interesse entre ambos foi recíproco.
Os dois deram um jeito de fugir e acabaram passando a noite juntos. Não era a primeira
vez que Renan se aventurava escondido... Não tinha outro jeito.
sessa por conta do sumiço e, para castigá ‑lo, tinha fechado a conta no resort, e logo que
o viu foi avisando que iriam embora e que o tal produtor que arranjasse outra pessoa para
desfilar no lugar de seu filho.
Naquela ocasião traumática, Renan ainda era muito jovem e menor de idade. Até tentou
fazer uma insurreição contra a mãe, mas ela, naquele momento, era mais forte
emocionalmente e conseguiu de novo fazê ‑lo sen‑
Abandonar o trabalho era uma falta grave, mas, depois desse aconte‑
cimento, Deborah fez uma verdadeira campanha negativa em cima do tal produtor.
Ameaçou espalhar algumas “verdades” nos meios de comunica‑
ção, contando tudo o que sabia, e foi tão feroz em sua ira que acabou con‑
Renan ficou conhecido como o profissional que tinha a empresária mais perigosa do
meio artístico. Não era permitido, em hipótese alguma, alguém mexer com o seu filho. E,
de maneira muito mais secreta e velada, ele dava um jeito de ter seus encontros para
conseguir minimamente sua sobrevivência afetiva.
A vida foi assim até o dia em que Renan conheceu Milton, maquiador em desfiles dos
quais havia participado. Acabaram se encontrando algumas vezes. O flerte se
transformou em paixão e Milton a todo custo queria assu‑
mir o romance. Renan desaprovou totalmente a ideia, pois conhecia a mãe e sabia que, se
aquela relação fosse divulgada, muito provavelmente ela faria de tudo para acabar com a
carreira de seu novo amor.
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pero de Renan, sua mãe surgiu à porta. Ela dirigiu ‑se à mesa e olhou com sorriso duro
para o filho:
Ela manteve o olhar frio, pois sabia que estava sendo desafiada.
Renan, incomodado com a situação, não relaxou mais. Disse que sua mãe ficaria uma
fera e que com certeza o prejudicaria. Milton, porém, era muito decidido.
– Agora mesmo ela deve estar telefonando pra saber quem é você e onde trabalha, pra
ver por onde vai dar um jeito de avacalhar com sua vida.
– Você não conhece minha mãe. Está disposto a arriscar sua carreira por causa de nossa
relação?
– Claro que sim. Por dois motivos. Primeiro por você e depois porque adoro uma boa
briga! E vamos ver quem ganha essa parada!
Renan soltou o ar, exausto. Sabia que a mãe tentaria prejudicar seu relacionamento. Sabia
que ele mesmo teria que enfrentá ‑la, mas não sabia como. Não sabia nem por onde
começar. Talvez o fato de estar com Milton já fosse um bom começo, mesmo que ainda
não soubesse se gostava dele o suficiente a ponto de enfrentar a mãe ou se estaria nesse
relacionamento justamente para confrontá ‑la. Estava confuso demais. Em todo caso,
decidiu pagar para ver o que sucederia.
Ao chegar em casa, naquela noite, sentada em um grande sofá, Deborah estava à sua
espera.
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– Quanto tempo?
– Então, vocês estão se encontrando secretamente. Que lindo... Você, Renan, mais que
ninguém, já deveria saber o quanto eu odeio quando fazem algo pelas minhas costas!
Renan tentou explicar à mãe que estava apaixonado. Implorou para que ela entendesse,
que não se metesse, pelo menos dessa vez...
– O que eu entendo é que esse rapaz quer se aproveitar de sua fama e de seu sucesso para
subir na vida, está na cara, só você que não vê isso, é justamente porque caiu na dele e
agora está apaixonado. Ele é um aprovei‑
tador. Mas não se preocupe que eu não vou deixar ninguém se aproveitar da sua
inocência!
– Você fala como se eu fosse um garoto. E parece que todo mundo que se aproxima de
mim é por causa de algum interesse. Será que nin‑
guém pode se aproximar de mim pelo que eu sou? Pela minha pessoa? Será que todo
mundo só quer se aproveitar de mim?
– Só sua mãe que não, querido, apenas eu que não, pelo visto...
E mostrou a ele imagens de Milton em várias baladas, abraçado com várias outras
pessoas.
teceria se eu pesquisasse mais por aí. Agora, me diga. Depois de ver isso, ainda quer ficar
com ele?
Renan não podia acreditar. De fato, não gostou das fotos, mas não tinha nada a ver com o
passado de Milton. O que importava era o que estavam sentindo agora um pelo outro. E
foi justamente o que disse a sua mãe, que respondeu com amargor:
– Você às vezes é tão inocente, que me dá dó. Eu não vou deixar isso acontecer, pode
deixar, vou continuar cuidando de você...
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Ela caiu na poltrona, aparentando estar meio zonza e mostrando ‑se profundamente
magoada.
– Você está disposto a me deixar por esse tal amiguinho baladeiro que conheceu ontem?
Será que tudo isso que tivemos juntos até agora não conta nada?
– Você está distorcendo as minhas palavras, mãe. Veja, eu não estou te preterindo por um
outro. Do modo como você fala até parece que você não é minha mãe e sim uma
namorada! E eu não quero ver você acabando com a vida do Milton, entende?
– Faço isso por você, meu querido, como filho. Preocupo ‑me demais com você, veja,
somos só você e eu, somos um pelo outro e não quero ver você ferido. – E começou a
chorar copiosamente.
E, como num ciclo vicioso, sentindo ‑se imensamente culpado, Renan apiedou ‑se da
mãe, correu para abraçá ‑la, esquecendo ‑se ou tentando esque cer ‑se de todo o resto.
Convencendo ‑se e confundindo ‑se em suas verdades iniciais...
– E você não é feliz aqui comigo? Não está tudo bem? Eu não te protejo e não te faço
feliz?
– Como você pode dizer isso? Você não foi casada com meu pai? Do jeito que você está
falando eu não vou pode ser feliz com outra pessoa.
– Eu jamais te disse isso, Renan. Por que às vezes você tem que ser tão agressivo
comigo? Você merece ser feliz, sim. Acontece que eu não quero que você se machuque, e
eu, mais que ninguém, reconheço quando uma pessoa é aproveitadora. Vejo de longe.
Será que você não pode confiar em sua mãe?
– Será que você não pode deixar que eu me vire um pouco sozinho?
Pra variar? Eu preciso aprender com meus erros... – ainda tentava Renan.
Sabia que aquela conversa não ia dar em nada. Amava sua mãe, mas para ela ele seria
sempre um menino que precisava ser protegido, e nessas ocasiões duvidava se de fato a
mãe não teria razão sobre tudo mesmo...
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Deborah mudou de tática. Disse que estava com dor de cabeça e ia se retirar. Deu um
beijo de boa ‑noite no filho, falando que depois retomariam essa conversa. Renan foi para
seu quarto e ficou pensando na situação. Pela primeira vez, mesmo com dificuldade de
ter total discernimento, estava enfrentando a mãe. E estava feliz por isso. Afinal, o que o
impediria de sair dali, naquele exato instante, e passar a noite com Milton? Resolveu que
faria isso mesmo, pois queria comemorar aquele início de enfrentamento com seu
companheiro.
– Vou sair.
– Mas eu pensei que íamos jantar juntos. Ia preparar uns bolinhos que eu sei que você
gosta.
– Mas, mãe...
Renan ficou com o coração partido. Deixou a bolsa de lado e abraçou a mãe.
Ela deu um enorme sorriso e começaram a conversar sobre o trabalho e algumas fofocas
do meio artístico. Em nenhum momento conversaram sobre Milton. Parecia que não
haviam tido nenhuma discussão.
Alguns dias depois, Renan estava no apartamento de Milton, que não tinha um
empregador fixo. Vivia fazendo freelancer em vários eventos, e era muito requisitado.
Naquela noite, Milton olhou friamente para Renan e ini‑
Renan gelou. Não ficou muito satisfeito com a notícia, mas estava feliz pelo namorado
ter uma oportunidade interessante.
– Só que?
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Renan já imaginava isso. Sem dúvida era uma coisa boa, mas e agora?
sou na mãe. Será que era uma estratégia dela para separar os dois? Se era, com certeza
era algo bem inteligente. Ao invés de prejudicá ‑lo, fizera ‑o rece‑
ber uma oferta que não poderia recusar. Renan ficou triste e Milton perguntou qual era o
problema. Não estava feliz pela proposta?
Renan não sabia se ria ou chorava. Abandonar tudo e ir embora para outro país com o
namorado? Era um belo salto. E sua mãe? E seu trabalho como modelo?
– Sua mãe vai ter que aceitar. E com certeza você vai achar mais tra‑
Se era um golpe da mãe, o tiro poderia sair pela culatra, pois a ideia de mandar Milton
embora podia ser, na verdade, uma oportunidade para sair das garras da mãe. No entanto,
Renan tremeu. Será que conseguiria aban‑
donar a mãe? Certamente que seria um grande passo na vida. Será que conseguiria
escapar de suas garras? Tinha força para isso?
– Você quer que eu vá com você?
estressante. Uma semana inteira de trabalho. Sua mãe o acompanhava, como sempre.
Tinham algumas horas entre um desfile e outro e Renan resolveu conversar com a mãe
seriamente. Já havia conversado anteriormente com Milton e decidido partir com ele para
viver em outro país. Mas isso não significava que não se veriam mais. Assim que
estivessem estabilizados, quem sabe, ela até poderia ir morar na mesma cidade (Milton
não supor‑
tava a ideia de morar com Deborah). Pensava em como apresentar essa ideia para sua
mãe...
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Perguntou se sabia e ela demonstrou muita surpresa. Disse que ele ia aceitar e se mudar
para os Estados Unidos.
– Eu não disse, meu filho? Ele não estava interessado em você. Na pri‑
– O quê?
tida, ela não entenderia, mas depois, com certeza, ouviria a voz da razão.
– Mãe. Acho que não vale a pena entrarmos em uma discussão. É tudo muito simples.
Não precisamos complicar as coisas. Eu te amo, mas quero viver com Milton. Preciso ter
minha vida independente também.
– Mas e sua mãe? Você vai me abandonar? Depois de tudo o que cons‑
– Deu pra me ameaçar agora? Esse homem está estragando sua cabeça mesmo. Está
fazendo você se virar contra sua própria mãe.
– Eu estou cheio das suas frases feitas. Nós nos queremos bem.
– Pois eu não vou deixar. Está entendendo? Você não vai sair de perto de mim. Eu já
perdi meu marido. Não vou agora perder meu filho para qualquer um.
– Acho que a senhora está doente, mãe, não é possível. Agora estou vendo tudo mais
claro. Precisa se tratar.
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Milton não estava trabalhando no desfile, mas nesse mesmo dia veio assistir a Renan. Ao
se encontrarem nos bastidores, Renan explicou a dis‑
cussão que tivera com a mãe e pediu que Milton fosse embora por enquanto.
Mas pedir para ele não fazer algo era a mesma coisa que obrigá ‑lo a fazer.
rando ‑o, a mãe. Era uma das únicas da plateia que não sorriam. Deborah ora olhava para
ele e ora encarava Renan. Por pouco não se desconcentrou perante aqueles olhares
ameaçadores.
Na última passagem, já de noite, Renan notou que a mãe não estava mais presente. Após
o desfile houve a tradicional comemoração e, de novo, Deborah, que costumava
encontrar o filho no camarim e fazer contatos nessas festas, também não estava. Já se
preparando para ir embora, recebeu uma ligação de um número desconhecido. Uma voz
grossa perguntou se ele conhecia sua mãe. Disse que estava tudo bem, mas que precisava
compa‑
recer ao hospital por conta de uma ocorrência médica. Não podia dar mais informações
por telefone.
Milton fez questão de ir com ele ao hospital que ficava próximo ao local do desfile. Lá
chegando, foi colocado em contato com o médico de plantão, que informou que Deborah
havia sofrido um acidente e quebrado alguns ossos. Precisaria passar por uma pequena
cirurgia e ficar em observação.
rista do carro envolvido no acidente. Estava muito abalado e, com os olhos vermelhos,
disse que nunca tinha atropelado ninguém na vida. Quando viu, ela já estava na frente do
carro. Só conseguira brecar depois do impacto.
Ainda meio abalado pelas notícias, Renan agradeceu a atenção e pediu para ver Deborah.
Milton ficou conversando com o motorista. Depois de 298
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passar por uma série de corredores, entrou no quarto onde estava a mãe.
Estava coberta com um fino lençol, com um dos pés engessado e levantado por uma
corda e o rosto todo cheio de hematomas.
Ao ver a mãe, tão linda, com a face toda machucada, Renan ficou pro‑
fundamente abalado. Aproximou ‑se dela e começou a fazer carinhos em sua testa. Ela
abriu os olhos e contemplou o filho. Tentou esboçar um sor‑
riso, mas não conseguiu. Aquilo fez com que ele abraçasse o rosto da mãe, chorando.
Ficaram nessa posição por alguns minutos. Disse para não se preocupar, que estava tudo
certo e que ficaria com ela para o que precisasse.
Uma enfermeira surgiu e pediu que ele se retirasse. Deu um beijo na testa da mãe e saiu
enxugando os olhos.
Recebeu o abraço de Milton. Este disse que o motorista tinha deixado seus contatos e que
o seguro cuidaria das despesas.
Uma raiva foi crescendo dentro de Renan. Disse que ia processar o moto‑
– Ele trouxe uma cópia do boletim de ocorrência. Não estava bêbado e nunca cometeu
nenhuma infração de trânsito. Pelo que eu li, ele estava dentro do limite de velocidade. –
Milton ficou pensativo, mas resolveu dizer o que estava pensando. – Parece que sua mãe
estava distraída e entrou na frente do carro.
De fato, não era coisa a se dizer naquele momento, pois a raiva que estava sentindo foi
canalizada para o companheiro.
– Você está querendo dizer que minha mãe se atirou na frente do carro?
Em quem você está querendo botar a culpa? Eu sei que você não gosta dela, mas precisa
insinuar isso?
– Não. Eu quero ficar aqui. Acho que ela precisa de alguém que goste dela.
trolou ‑se para não brigar. Viu que ele estava fora de si.
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– Renan. Você pode até despejar sua raiva em cima de mim, mas não tente me culpar
pelo que aconteceu. Entre não gostar dela e querer que ela se acidente é um caminho
muito longo.
– Desculpe, mas é que ela está tão machucada. Parece que está sentindo tanta dor.
Milton sentou ‑se ao seu lado e abraçou o companheiro. Era muito triste vê ‑lo assim.
Depois de alguns minutos, disse:
– Você quer ir pra casa? Não dá pra fazer nada agora. Ela vai dormir a noite inteira.
– Não precisa.
– Não seja estúpido. Não vou sair do seu lado quando você mais precisa.
– Obrigado.
ria às voltas com a recuperação da mãe, que no final também passou a ser sua
recuperação, só que uma recuperação emocional. Milton aguardou o desenrolar dessa
história e apostou na libertação do companheiro.
Nesse caso específico, aos poucos Renan pôde ver que, no final das contas, apesar de
lutar com todas as forças para mantê ‑lo agarrado a ela, a maior fragilidade e o maior
medo do abandono eram de Deborah.
Aos poucos e com muito amor, foi se distanciando, apostando em si mesmo e em sua
independência em todas as áreas da vida. Deborah pas‑
sou por vários momentos diferentes e parece que até hoje não aceita que o filho tenha
vida própria, o que dificulta tudo. No início, variou entre fases de depressão,
agressividade excessiva para com o filho e manipulações de toda ordem.
Renan, apesar de ter tentado de tudo para apaziguar os ânimos da mãe e suas culpas, teve
profunda dificuldade em se libertar. Com o tempo, foi em busca de ajuda terapêutica
competente e pôde ver com total cla‑
reza onde estava e o que de verdade estaria acontecendo na relação que fora 300
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construída com a mãe. Pôde finalmente redesenhar seu cenário emocional, mudando sua
realidade externa, agora sem culpa alguma.
A mãe de Renan abriu espaço para se sociabilizar mais e até arrumou um namorado, mas
sempre que pode e quando o filho fica mais próximo, ainda hoje, cegamente tenta
diminuir suas competências de homem adulto, desqualificando suas conquistas e de
algum modo contando vantagem sobre como poderia ter sido melhor se ele tivesse ficado
com ela. É difícil, mas ele já tira a mãe de letra, e o melhor, sem se sentir afetado
emocionalmente!
Clarissa veio para a terapia na certeza de que passou tempo demais sobrevivendo ao
sequestro de sua alma, vinte e três anos de casamento.
Hoje, tem plena consciência do que ocorreu, observando, inclusive, que o período
extenso demais deu ‑se por conta do hipnotismo gerado pelo seques‑
trador, somado aos seus anseios em manter a família unida à base de refe‑
rências sólidas. Hoje, também reconhece que o maior exemplo que pode ter dado aos
filhos é de que é possível acordar em qual tempo for e que a vida 301
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continua pulsando. Seus filhos, apesar de todo o sofrimento, têm hoje plena noção de
como era o funcionamento do pai e da mãe, que durante o período de casamento esteve
sequestrada, impossibilitada, até, de ser validada como tal pelos próprios filhos.
fissão dele após o casamento, e abraçou os negócios do sogro, muito bem de vida na
época. Quando Arlindo estava com 10 anos, o pai obcecado, sempre desejando mais
posses, investiu todo o capital imprudentemente, perdendo de modo drástico o montante
acumulado durante os anos de casamento. A partir dessa época, a família foi para a
situação oposta da abun‑
dância financeira, indo morar num bairro pouco favorecido. Começaram a passar por
limitações anteriormente impensáveis. Foi no meio de toda essa mudança de vida que
aconteceu a morte de seu irmão mais novo.
O pai ainda tentou algumas empreitadas, mas todas acabaram por afun‑
dar ainda mais a família e, com o decorrer do tempo, todos passaram a ser ajudados
financeiramente por uma pequena herança que o sogro havia dei‑
Ainda nesse tempo, o pai de Arlindo teve que hospedar a mãe em seu lar, uma vez que
ela não conseguia mais se sustentar sozinha. Uma questão crucial da trama é que essa
mãe era extremamente autoritária e sua vinda exacerbou a subjugação do pai de Arlindo
aos ditames dela. Isso se deu até o dia de sua morte, que ocorreu muitos anos depois.
Nessa controvérsia de sentimentos e de situações, o homem não deu conta de enfrentar o
desa‑
grado visível que tinha em relação às atitudes e posturas da mãe e, em vez disso, negando
seus sentimentos evidentes, optou por demonstrar aos filhos 302
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o quanto amava essa mãe para que eles aprendessem como deveriam agir para com ele.
Com a chegada da avó paterna, a irmã de Arlindo viu ‑se obri‑
gada a dormir com ela, e ele, por falta de espaço, passou a dormir na casa de um vizinho.
O pai de Arlindo manteve uma relação de idealismo em relação à filha mais velha e de
esquecimento em relação ao agora filho menor. A mãe seguiu os passos comportamentais
do pai em relação aos filhos.
Arlindo veio de uma família técnica em saber lidar com a realidade, mas com profundas
fendas emocionais mascaradas pela “exatidão” da con‑
A irmã de Arlindo casou ‑se com um rapaz promissor que, mais tarde, revelou ‑se numa
situação de importante alteração emocional. Do mesmo modo que o pai de Arlindo, esse
rapaz tinha um ódio não vivenciado pela mãe que, na relação a dois, era altamente
projetado na parceira, a irmã de Arlindo. Isso a levou ao ponto de correr risco de vida.
Assustada com os homens, resolveu se separar, ficando “protegida” ao lado do pai, no
reinado da filha idealizada. Essa moça fez algumas tentativas infrutíferas com outros
homens ao longo da vida, sempre, porém, com a bandeira da idealização do pai. Ocorre
que ninguém suportaria uma mulher tão “especial”, e ela acabou ficando no lugar seguro,
que era ao lado desse pai.
Para o pai, a esposa vivia ao seu lado como uma sombra sem maiores significados.
Projetou nela todo o desprezo, todo o ódio que tinha pelas mulheres, ou seja, pela própria
mãe.
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tivesse consciência plena desse fato, tal parceira deveria existir nos moldes dos desejos e
desígnios dessa trama familiar.
Arlindo contou que, logo de cara apaixonou‑se por Clarissa. Disse que foi como se já a
conhecesse. Logo que se casaram, porém, entendeu que ela era exigente como sua mãe...
Dizia que nunca estava satisfeita com nada, além de estar totalmente despreparada para
ser uma boa esposa ou boa dona de casa. Clarissa, ao contrário, disse que não
compreendia essa colocação do marido e, por mais que demonstrasse amá ‑lo e ser
dedicada, ele sempre acabava desqualificando ‑a de modo perverso, ou seja, nas
linguagens subli‑
minares e muitas vezes de modo expresso também.
trara o amor de sua vida. Um rapaz falante, cheio de ideias e ideais... Namo‑
raram cerca de três anos e Clarissa contou que, durante esse período, começou a perceber
atitudes em Arlindo que a faziam questionar se seria realmente feliz com ele. Arlindo
dizia que nunca admitia um erro porque, em sua
soal dos dois foi se revelando na relação. Arlindo, sem opção emocional, gradativamente
foi demonstrando severa identificação com o pai. Ao seu modo, pouco a pouco foi
retirando o espaço vital de Clarissa, sequestrando tudo o que seria expressão de vida da
esposa. Nesse sentido, as articulações de Arlindo eram violentas, impositivas; aos filhos,
mostrava perversamente que seria melhor mãe que a própria mãe. Rejeitava tudo o que
Clarissa fazia, por exemplo, o que cozinhava para ele e para os filhos era recebido com o
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“simples” comentário de que aquilo tinha gosto de comida de hospital. No meio ‑tempo,
entrava na cozinha e mostrava para ela e para os filhos como era melhor cozinheiro, e aos
poucos ia invadindo o espaço da cozinha.
Além de tudo isso, agia como o pai fora com sua mãe, não a ouvia. Desen‑
volveu uma relação perversa na qual externamente vivia para o mundo, pois adorava
mostrar para o pai uma relação de aparências afetivas quando, na intimidade da vida do
casal, nem sequer conversava com a esposa. Estra‑
nhamente para Clarissa, desde o início do casamento, Arlindo demonstrou pouco
interesse por temas que gerassem qualquer tipo de intimidade afe‑
tiva no casal. Quando ela sugeria algo mais romântico, mais íntimo, a res‑
posta era vaga, e mesmo quando Clarissa tomava alguma atitude para ficar mais íntima,
ele a repudiava, dizendo que parecia pateticamente ridícula fazendo tudo daquilo...
Na época, Clarissa não tinha muita consciência do que estaria ocorrendo de fato, mas
sentia ‑se triste e solitária. Revelou que não tinha como entender claramente a situação
devastadora da trama na qual estava envolvida. Anos a fio, iludia ‑se achando que tudo
mudaria para melhor, nas raras vezes em que Arlindo oferecia um olhar mais direto ou
mesmo uma nesga de afeto.
Com o passar do tempo e por não aguentar mais a sensação de solidão e de incongruência
entre o que acontecia dentro de sua suposta intimi‑
dade com o marido e o que ele demonstrava para o mundo exterior, Clarissa decidiu
encarar um processo terapêutico e compreendeu que as pessoas não mudam tão
facilmente quando não existe um trabalho interior sério.
Mas foi com ela. Subitamente, na terapia de casal, Clarissa caiu em si mesma,
entendendo toda a trama relacional que vivia, os quês e os por‑
quês. A partir daí, colocou um ponto ‑final naquele ciclo vicioso. Decidiu que não seria
como a sogra foi e que sua história de vida, a partir desse momento, seria outra, ou seja, a
sua própria...
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Inconformado por seu personagem ter sido denunciado, Arlindo usou de todas as
manipulações possíveis para manter o status anterior. Não sabia ser diferente do que lhe
fora “ensinado”. Destilou ódio e tentou impor medo caso sua parceira ousasse sair do
vício emocional e do papel no qual ambos estavam envolvidos. Tudo em vão. Clarissa já
havia acordado e decidira sim‑
Fragmentos de uma relação narcisista e a consciência pós -resgate Por algum tempo me
perguntei inúmeras vezes: por que eu fiquei?
A resposta é fácil. Não sabia que ele estava me agredindo, mesmo ele me interrogando,
acusando de ter feito coisas que nunca fiz, ofendendo, humi‑
ceiro, isolando, proibindo, punindo com um silêncio agressivo, falando mal de mim para
quem me admirava, desdenhando de minhas realizações pro‑
fissionais e pessoais, praticando em mim lavagem cerebral diária que me fazia pensar que
estava enlouquecendo.
mente perturbado, e acreditava que eu era a única pessoa na Terra que pode‑
ria ajudá ‑lo a enfrentar seus problemas. Nunca tinha ouvido falar em violên‑
cional, física e financeiramente, juntei meus cacos e fui embora. Não sabia como seria
difícil, sabia apenas que não queria mais aquilo para mim.
cabelos, terminando por acariciar uma parte do meu rosto, olhando para mim em silêncio.
Um dia, com a cabeça no seu colo, eu disse que gostava muito quando ele fazia aquilo.
Ele, com a pose de quem reinava no mundo, 306
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respondeu: “Você não é mais feliz porque não quer. Se você me obedecesse mais, sua
vida seria muito mais fácil”. Somente agora, depois de muita tera‑
pia e de muito estudar aquela personalidade doentia, é que pude me curar para
reconhecer e nunca mais me relacionar com tipos assim, e também compreender o que
ele realmente queria dizer.
Após ter vivido essa relação por quatro anos e finalmente compreendido que eu havia
sido sequestrada, hipnotizada, violentada em todos os senti‑
dência emocional que me levou a tolerar todo aquele tempo de abuso, preci‑
sei ter certeza de que não cairia de novo. Achei que só saberia quando me encontrasse
outra vez em nova relação.
Assim, quase um ano e meio depois, conheci uma pessoa que parecia realmente
encantadora. Ele tinha características perfeitas: a mesma idade que eu, bonito, solteiro,
sem filhos, bem formado, engraçado, sociável, falava constantemente de Deus e de
família. A receita perfeita para idealizar o príncipe encantado. Como costumo dizer, tinha
as características objetivas de um parceiro perfeito. Mas quando temos no histórico uma
experiência com psicopatas, ficamos atentos aos pequenos sinais. Aqueles deslizes que
ignoramos lá atrás, ou melhor, que escolhemos ignorar para não estragar a idealização
que criamos sobre a pessoa. Ficamos atentos às características subjetivas do indivíduo.
Havia observado que ele não gostava de pagar nada e que em menos de um mês já fazia
planos de se mudar para minha casa. Na sequência, ainda meio sem se abrir totalmente,
passou a quase que exigir um emprego dentro da minha empresa. Além de todos esses
avisos, ainda havia o bip ‑bip constante e misterioso de seu celular, madrugada adentro.
Quando estava em minha casa, queria dirigir meu carro, deixando claro que eu não
poderia dirigir o dele quando estivesse na sua. Nos restaurantes, padarias e
supermercados, ao chegar a conta, descaradamente olhava em outra direção. No começo,
dizia que estava passando por uma fase financeira difícil. Depois, continuou com a
mesma postura frente às contas, não tocando mais nesse assunto.
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Ah, deixe ‑me mencionar que assim que nos conhecemos sugeriu que eu parasse de fazer
coisas que costumeiramente fazia. Esse padrão de com‑
portamento é repetitivo. A primeira coisa que tentam é podar quem somos, roubando
nossa identidade. Na verdade, eles a admiram tanto, que dese‑
jam destruí ‑la, posto que não conseguem incorporar aquilo que você tem e que lhes falta.
Pois bem, atenta que eu estava, assim que percebi os primeiros sinais, coloquei ‑me em
movimento. Mesmo tendo o cuidado de não projetar sobre a pessoa uma experiência
anterior ruim, comecei a observar e me inteirar através de amigos em comum sobre quem
era exatamente aquele homem.
Não demorou nada para descobrir que era preguiçoso, acordava ao meio‑
‑dia e passeava no trabalho por um par de horas, vitimizando ‑se porque “o chefe não o
deixava mostrar todo o seu potencial”. Soube que em casa era um parasita, que não tinha
o hábito de pagar sequer um pãozinho e, apesar do bom salário, preferia viver às custas
dos pais idosos. O seu dinheiro ser‑
via apenas para seus caprichos pessoais e, para meu pavor, pagar prostitu‑
tas. Sim. Descobri que o homem era viciado em prostituição. Quando tinha muito,
pagava aquelas de luxo, quando tinha pouco, qualquer uma de rua servia. “Praticava”
diariamente e, quando não havia prostituição, mastur ‑
bava ‑se pela internet mesmo. Compulsivo por sexo e sujeira, simples assim.
tar” aquela situação. Se a pessoa não estiver alerta, facilmente entrará nessa dinâmica e
pouco depois estará de novo vivendo uma relação doentia, por exemplo, querendo ajudá
‑lo a “superar” a tal compulsão. Pessoas doado‑
ras versus sugadores sádicos. Mistura explosiva de um encontro simbiótico, sádico que
pode levar tanto à morte física como à psíquica. Enfim, letal.
Na minha vida, não! O que fiz? Cortei completamente. Fui ao contato zero com um corte
rápido, limpo e indolor. Percebi que na minha vida não havia mais espaço para mentiras,
vitimizações, idealizações infantis, abuso e 308
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míscuas. Quando são homens, utilizam o sexo como forma de coisificar a mulher e,
quando mulheres, usam ‑no como forma de tirar o que podem, além de torná ‑lo
dependente, dada a importância do sexo para o macho.
Usam o sexo de forma suja e compulsiva, o que muitas vezes faz com que a vítima ache
que tem “uma vida sexual maravilhosa” com o abusador, ideia essa bem distorcida.
Portanto, se ainda está se relacionando com um desses tipos, é melhor fazer exames e, se
ainda estiver saudável, proteja ‑se e saia disso antes que seja tarde demais.
Estou na praia, embaixo da sombra de um guarda ‑sol. Ao meu lado, vejo alguém: minha
irmã mais nova. Sinto um desconforto nos pés: a areia sob eles está muito gelada... A
sombra do guarda ‑sol escurece, continua a escurecer e me encobre por completo. Sinto
muito frio.
Olho para o lado e vejo minha irmã, também encoberta por uma som‑
bra gélida. Não é a mesma sombra do meu guarda ‑sol, mas a sensação de desconforto
dela parece ser a mesma.
A sombra me persegue. Para onde quer que eu vá, sinto ‑me toldado pela sensação
glacial e ameaçadora da sombra do guarda ‑sol. Olho para a minha irmã e percebo que
ela se encontra na mesma situação que eu: há uma som‑
Aos poucos, parece que começo a me acostumar com a sombra; parece que ela se torna
comum à minha vida. Ela passa a integrar meu mundo.
Mais uma vez, olho para a minha irmã. A sombra continua sobre ela. A sombra dela
parece estar mais escura, mais pesada que a minha. Apesar disso, ela não parece ter se
acostumado com a sombra, tal como ocorreu comigo.
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Sou levado a crer que ninguém nota que estou sob uma sombra, mas eu sei: ela existe e
me circunda por todos os lados! Quanto à minha irmã, parece que todos notam a sombra
que a atormenta e a escuridão que tanto a perturba. Minha irmã demonstra insatisfação e
angústia.
portante. Porém, não demonstro toda essa angústia para ninguém. Guardo tudo isso
comigo. Talvez não queira mostrar para a minha irmã que estou numa situação tão ruim...
Escuto: “Você se acostumou a fazer o que não gosta?”, “Você está pre‑
Sair da sombra expor ‑me ‑ia à luz, ao sol? Lembro ‑me da sensibilidade e do ardor que
sinto quando a luz do sol entra em contato com os meus olhos, lembro ‑me da minha
aversão ao banho de sol.
Será que a sombra me protege das coisas que me incomodam (sim, o medo da luz) ou me
acostumei a sofrer (leia ‑se: à vida fria que levo sob a sombra) na solidão (leia ‑se:
ninguém sabe ou percebe a minha tristeza)?
Os pensamentos se cruzam: “Eu sei o que me incomoda, do que eu não gosto?”, “Meus
sentidos e sentimentos estão apagados?”, “Estou desconec‑
No dia seguinte, sinto ‑me em curto ‑circuito. Fico pensativo, durmo acor‑
Estou acorrentado pela sombra? Ela me domina e me controla? Sigo em curto ‑circuito!
Os meus olhos parecem não enxergar a amplitude da realidade que me cerca. Tento ver
além da sombra. Há no horizonte pequenas sombras que cintilam constantemente e
impedem a minha visão integral das coisas.
mente ver?”. Lembro ‑me de que minha irmã sonhou com a seguinte frase: They can
look, but they cannot see! (Eles podem olhar, mas não podem ver!) Quero ter controle do
que ocorre à minha volta. Bate a necessidade de buscar minha independência, minha
liberdade. Quero ver tudo, preciso 310
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enxergar a realidade que me cerca. Quero sair da sombra, ela tampa a ampli‑
A luz que tanto repudio parece ser minha salvação. Sou forte para enfrentá ‑la? Será que
consigo entrar em contato com a luz que ilumina os arredores que tanto quero enxergar?
Os meus olhos se acostumarão com a luz escaldante do sol? A minha pele suportará os
raios que contra ela incidirão?
Estranho, minha irmã vem me contar sobre o significado da luz para a Kabbalah e diz:
“Que bom que você vê, né?”. Sim, eu vejo. Vejo que, na verdade, nada vejo!
Preciso me ativar; preciso me movimentar. Sinto que preciso entrar em estado de alerta:
movo a cabeça e os olhos para os lados; quero uma saída para o meu alheamento. Preciso
assumir o controle das coisas! Sinto ‑me fortalecido, mais vivo e mais consciente... Grito:
“Não quero mais a sensa‑
ção gélida da sombra”, “Não quero ficar acorrentado aqui na sombra, não quero mais esta
prisão”, “Estou pronto, estou preparado”.
Decidido. Vou enfrentar a luz que tanto me amedronta, mas que tanto me é importante
para iluminar a verdade das coisas. É o caminho que tenho que seguir para conseguir ver
além, para ver o que a sombra esconde...
ções fantasiosas a seu favor para tornar o ambiente ou a pessoa que vive à sua volta
desconectada da real realidade. Ele é mestre nisso.
É arrogante com pessoas de nível inferior ao dele (porteiros etc.), não respeita sinalização
de trânsito. Nada do mundo exterior serve. Para ele só importa a forma como acha que
deve tratar seus filhos, assim como suas 311
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próprias roupas e seu café da manhã – o jornal posto à mesa e as xícaras naquela
determinada posição.
Ele se sente dono de mim, usa frases do tipo “você me desobedeceu”, é tirano nas
relações do dia a dia, mete ‑se no ambiente familiar tentando con‑
trolar empregadas, babás. Acha ‑se no direito ainda de mexer na minha conta bancária,
critica a forma como me visto, como me comporto... Se as vontades dele não são feitas
(como sair para jantar ou para ir ao cinema porque estou com cólica, por exemplo), fica
irado durante dias e leva tudo absolutamente para o lado pessoal.
Ao mesmo tempo, não se incomoda (ou nem percebe) que fala muito alto, sempre, que o
sorriso dele é sedutor só com quem merece (alguém em quem ele tenha interesse) e que a
soberba dele é tão grande que o torna extremamente determinado em tudo que faz.
É vaidoso, mas quase mesquinho. Mantém sempre um ar de seriedade extrema, mesmo
quando a situação pede descontração. É altamente des‑
confiado, mas leal às pessoas que lhe interessam. Vive sempre em um mundo
necessariamente cheio de segredos e mistérios. Adora negócios escusos, pois estes o
tornam uma pessoa para quem alguém, um dia, deverá favores. E ele vai cobrá ‑los!
sado turbulento, para que ele seja seu “salvador da pátria”. Não se sente viril. Tem
problema de ejaculação rápida, mas logo joga a culpa nelas por não o terem estimulado o
suficiente. É covarde, medroso, mas veste uma máscara de Don Juan.
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Momento de reflexão
A pergunta que fica, porém, é como e por onde começar a sair da situa‑
ção agora deflagrada. E se acaso até este momento o sequestrador ainda não notou que
foi desmascarado, tanto melhor para a vítima.
Entender e reprocessar os porquês de ter entrado nesse tipo de cilada é assunto para
tratamento psicológico de ponta. Sugiro terapias de reproces‑
tando sempre para buscar um profissional gabaritado nessa área, mas que também tenha
entendimento específico sobre a amplitude que pode envol‑
ver o tema do Sequestro de Alma. A vivência por si só é traumatizante em excesso e
pode ser, até mesmo, observada como trauma complexo, no qual 313
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não há uma só situação traumática envolvida, mas uma experiência de tempo estendido
altamente traumatizante.
sigo mesma, decretando de modo eficientemente trabalhado que situações como essa
jamais poderão fazer parte de sua história pessoal novamente. Para tanto, é importante
verificar e reprocessar frestas de carência emocional e de insegurança sobre o seu próprio
valor, passaporte de que o tal sequestrador fez uso para que seu ataque fosse bem
‑sucedido. É por meio desse estreito canal que esses estrategistas costumam adentrar a
vida das pessoas desavisadas.
vel, a conhecida frase “orai e vigiai” funciona. Observa ‑se o “orai” sendo o campo ativo
de contato com a energia vital da pessoa, que se conecta com tudo o que existe de
sagrado e que está na mesma frequência. O “vigiai” é estar absolutamente cônscio de
quem se é, das arestas emocionais, e sem‑
pre estar em ação para se autossuperar num constante despertar, com os olhos bem
abertos e por toda vida.
No caso do resgate, num primeiro momento, é comum que as pessoas vivenciem imenso
medo de não conseguirem retomar a vida como era antes de tudo acontecer, o que é
verdade, mas não do modo que se supõe. Após a experiência, a vítima passa a se
conhecer bem mais que anteriormente, sendo evidente e natural que não seja mais a
mesma de antes, o que é ótimo.
No momento de fuga, de nada ajudará se culpar por ter entrado nessa roubada ou por ter
se deixado iludir. A questão certeira é entender que houve acidente de percurso na
jornada da alma. A partir de agora, a meta é reali‑
Agora é a hora exata para reunir forças antes minadas, reorganizar recur‑
sos pessoais e aprontar ‑se para dar o salto certeiro rumo ao resgate de si mesmo, rumo
ao seu renascimento!
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Importantíssimo: esteja lúcido sobre tudo e, ainda assim, evite acusar ou confrontar o
sequestrador, pois certamente
Você que já percebeu como eles funcionam, você que está saindo de uma relação com um
narcisista perverso, fique bem atenta, é bastante pro‑
vável que ele ainda tente burlar sua decisão de rompimento. Nessa hora, o mais comum é
que ele comece a agir exatamente como se fosse um vírus de computador do qual será
difícil se livrar enquanto sua imunização não esti‑
ver completa. Por diversos modos, e insidiosamente, ele tentará detectá ‑la buscando
algum fio condutor que porventura ainda esteja solto... As tenta‑
tivas de novamente contaminá ‑la podem vir por meio de algum telefonema, mensagem,
encontro casual e mesmo por um pensamento fortemente focado em você, acredite ou
não!
Para perceber se de algum modo ele ainda consegue alcançá ‑la, observe se nesses
contatos e, mediante essas tentativas, ainda é acometida por algum tipo de mal ‑estar, se
seu peito chega a doer fisicamente mesmo sabendo que a relação está definitiva e
irreversivelmente rompida. Preste atenção se ainda, vez por outra, fica nostalgicamente
possuída pelas memórias dos momen‑
tos bons, como se tudo o que foi ruim, e que reconhecidamente não foi pouco,
magicamente deixasse de existir... Se assim for, atente que você corre o risco de ficar
novamente dopada, mesmo já estando resgatada. Cuidado, se notar que por vezes ainda
fica assim, saiba que, qualquer que seja o tempo de estadia nesse padrão, por menor que
possa lhe parecer, é certo que ainda estará lhe roubando energia vital, roubando ‑lhe,
portanto, a própria vida.
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A regra do Não Contato é uma das mais eficientes, se não a principal ação para
solucionar de vez determinados tipos de relacionamentos tóxicos.
sitam desse tipo austero de proteção a si mesmas. Nessas ocasiões, quando existem filhos
envolvidos, a situação de início pode parecer confusa e difícil, mas, com o tempo, as ex
‑vítimas percebem claramente que saíram de uma trama obscura que, até então,
inutilmente tentavam denunciar.
Como de algum modo ainda estavam falando de dentro dessa bolha dra‑
mática e sob uma ótica que a todos embaçava, a possibilidade, naquelas condições, de
que todos os demais pudessem ter uma visão lúcida sobre o que estaria de fato
acontecendo era praticamente zero. Quando elas, porém, após denunciarem os ocorridos,
afastam ‑se das cenas, dão a opor‑
tunidade a todos os que estão à volta de separar o joio do trigo. Uma aposta que costuma
dar certo, porque a postura cada vez mais saudável, lúcida e carregada de vida própria
que a ex ‑refém passa a ter tende a colo‑
rir o cenário dramático em que todos viveram até então com as cores vivas de uma
realidade saudável.
Qualquer pessoa que se envolver com um narcisista, por qualquer período que seja, com
certeza, terá uma ligação tensa e forte com essa pes‑
soa. É exatamente essa trama energética e viscosa, que gruda tanto no seu emocional
como em seu universo psíquico, que precisará ser enfraquecida até se desmantelar por
completo. Quando e se você decidir pelo Não Con‑
tato, verá que a desintoxicação e a desimpregnação vão ocorrer de modo muito mais
rápido e eficiente.
Como num vício tóxico, você passará pela fase da abstinência e, nesse momento, se
retomar o contato de algum modo, saiba que sofrerá as conse‑
quências de modo drástico. No Não Contato, o tempo servirá para que você 316
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recupere toda a sua energia. Portanto, terá que resistir a qualquer investida ou mesmo
recaída de ordem pessoal. Isso desde que esteja plenamente cons‑
ciente do inferno onde esteve. Você pode recuperar a liberdade de ser quem é, usando o
seu tempo para ser livre. Essa decisão é para restaurar a sua sanidade. Lembre ‑se disso.
Lembre ‑se também que, se voltar a ter contato, automaticamente verá sua energia
drenada, ficará novamente deprimida e com a vida paralisada.
A essa altura, você já sabe bem o que é estar assim. Atente que, quando o Não Contato é
dificultado, por conta de filhos muito pequenos ou porque o sequestrador é um membro
da família, a solução de limitar ao máximo o contato ou mesmo de ter um mediador pode
ajudar sobremaneira.
1. Saia de qualquer envolvimento profissional ou financeiro que possa ter com ele.
2. Proteja ‑se cortando todo o contato por e ‑mail, mensagem, chat, tele‑
lar e tudo o que servir para algum tipo de contato por parte dele.
3. Limpe sua casa de absolutamente tudo que tiver relação com ele.
4. Jamais vá a locais em que exista a possibilidade de ele estar. Se ele ainda assim for à
sua casa, não atenda a porta.
5. Se o vir em público, evite qualquer tipo de contato visual e saia do espaço em comum
o mais rápido possível. Esse é o preço da
sua sanidade.
7. Nunca ouse acessar websites onde ele tiver fotos, como um perfil no Facebook etc.
Delete, apague tudo de seu computador. Não se
8. Se acaso tiverem amigos em comum, ou o que seja, avise que você não deseja ouvir
nenhuma notícia ou comentário sobre ele e, defi‑
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Até quando dura o Não Contato? Até você ter certeza de que ele não a afeta em mais
nada. Até o momento em que você pensar nele ou o vir e não acreditar que um dia pôde
estar envolvida com um sujeito assim. O tempo para chegar a esse ponto é indefinido,
mas com certeza chegará lá, e ainda nessa vida! Seja feliz, ajude ‑se.
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Máximas de alertamento
Alguma vez lhe disseram algo com convicção e depois negaram, dizendo que nunca
haviam dito tal coisa? Nas vezes em que denunciou que os acor‑
dos mudavam totalmente de rumo, diziam que não se lembravam de terem dito ou
combinado nada? Frequentemente o acusavam de ter falado ou feito algo que tinha
certeza absoluta de não ter feito ou dito? Nas vezes em que denunciava atitudes sem
coerência dessa ordem, referiam ‑se a você como se fosse uma espécie de louco?
Alguma vez seu abusador o ameaçou com violência ou mesmo foi vio‑
E você? Chegou a duvidar de si mesmo? Pensou que estava perdendo a sanidade? Não,
você não é louco, longe disso, é apenas mais uma vítima de um dos tipos de abuso
emocional mais devastadores e mais difíceis de 319
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serem percebidos, porém, muito real. Uma lavagem cerebral velada, na qual a violência
ocorre através das falsas informações sequencialmente introduzidas no intuito de criar
dúvidas na memória e na percepção, induzindo a vítima a acreditar que é insana.
As ações vêm através da negação de fatos e eventos, do que se fez e do que se disse.
Essas manobras se chamam gaslighting, uma forma de manipulação e de abuso
emocional insidiosa, muito difícil de ser reco‑
dade por parte das vítimas desse abuso, que custam a acreditar que as verdades impostas
sobre elas não passam de mentiras descabidas que ape‑
nas visam desquali ficá ‑las para mantê ‑las cordatas e em cárcere. Mediante essas
estratégias, as vítimas são transformadas em reféns de parceiros, mães e pais perversos.
As personalidades perversas sabem da realidade, mas não se afetam nem com nem por
ela, então, usam artimanhas como as de dourar a pílula camuflando seus intentos, porque
sabem que manter pessoas em cárcere não é legal. Mascaram, e o que é pior, funcionam
inventando histórias de convencimento sobre seus atos, a ponto de eles próprios
acreditarem no que dizem; lá no fundo, porém, numa camada mais abaixo de si mesmos,
como se um outro eu existisse, agem como verdadeiros predadores. E, como num
sequestro, as vítimas escolhidas pouco a pouco vão cedendo a própria existência em troca
de pão e água (migalhas de afeto).
A peça teatral Gas Light, de 1938, e suas adaptações para o cinema, lançadas em 1940 e
1944, motivaram a origem do termo por causa da manipulação psicológica sistemática
utilizada pelo personagem principal contra uma vítima. O enredo diz respeito a um
marido que tenta conven‑
cer sua esposa e outras pessoas de que ela é louca, manipulando pequenos elementos do
ambiente e, posteriormente, insistindo que ela está errada ou que se lembra das coisas
incorretamente quando ela aponta tais mudanças.
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O título original decorre do escurecimento das luzes alimentadas por gás na casa do
casal, que acontece quando o marido usa as luzes no sótão, enquanto busca um tesouro
escondido. A esposa percebe com precisão o escurecimento das luzes e discute o
fenômeno, mas o marido insiste que ela está apenas imaginando uma mudança no nível
de iluminação. O termo gaslighting é utilizado desde 1960 para descrever a manipulação
do sen‑
Induzem ‑nas a não mais confiarem em seus sentidos; por fim, deixam ‑nas
emocionalmente frágeis e sem poder. Um dos piores estágios ocorre quando passam a
acreditar que seus pontos fortes jamais existiram.
res insidiosamente farão uso do gaslighting como tentativa de acuar o outro, a ponto de
ele duvidar do próprio senso de realidade, colocando ‑o em dúvida, até mesmo, em
relação às suas próprias memórias. Uma falência altamente destrutiva sobre tudo o que
pode significar identidade.
brados, até a negação total de evidências concretas de um ocorrido. A parte mais difícil é
quando as vítimas começam a entrar em falência perceptiva, 321
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chegando a acreditar nas verdades impostas e culpando ‑se por terem ousado acusar o
cônjuge. O golpe fatal acontece quando as vítimas começam a se sentir confusas,
duvidando da própria verdade, como se os fatos não pro‑
As falsas memórias acabam se alojando na mente das vítimas que, pouco a pouco, vão se
esquecendo de si mesmas. Por serem constantemente acua‑
vas, descaso, falta de empatia e, por fim, abandono. E por mais que os fatos confirmem a
veracidade dos ocorridos, a princípio, as vítimas acabam ficando confusas e no final
caem no esquecimento de si mesmas.
Muitas das vítimas de tais Sequestradores de Almas chegam a crer que de fato são
inúteis, esquecendo ‑se por completo de quem um dia já foram.
Algumas, ainda, quando acontece de ficarem mais conscientes da arapuca onde estão, já
devastadas emocionalmente, desacreditam que podem mudar o seu destino. Infelizmente,
um dos grandes alertas que promove o acordar, muitas vezes, vem por meio de doenças
sérias ou depressão.
Tenho várias pacientes que sofreram e ainda estavam passando por esse tipo de abuso e,
no decorrer do tratamento terapêutico de Reprocessamento Cerebral em EMDR e
Brainspotting, entraram em contato com suas memó‑
Com isso, as memórias puderam se tornar cada vez mais claras, até que o todo emocional
e cognitivo implicado pudesse ser totalmente redimensio‑
nado, impulsionando para uma nova vida. Saíram mais fortalecidas, deter‑
nal do ser humano, não é necessário esquecer o fato gerador do sentimento doloroso, mas
sim, lembrar ‑se corretamente do que de fato aconteceu.
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do outro, roubando os conceitos das pessoas com quem se relacionou ou mesmo quando
acha que saiu dessas relações levando um pedaço impor‑
tante da vida dos ex ‑parceiros. Ledo engano. Mal sabem que esse tipo de movimento
apenas os leva mais e mais para suas derradeiras derrotas espirituais, destino de todos
desse tipo.
O que nem sequer suspeitam é que a cada nova investida amorosa tra‑
vestida de sedução, mais e mais se afundarão na própria lama. Geralmente sem se darem
conta do quanto são responsáveis por suas próprias desgra‑
ças, sempre acabarão atraindo toda espécie de mau agouro para a própria vida. Uma
espécie de maldição os ronda em meio a uma nuvem negra que apenas os já avisados,
vacinados ou mais sensíveis conseguem ver.
res vítimas do destino difícil que sempre encontram em sua história e jamais se
responsabilizam por nada do que possam ter feito em relação à sua vida complicada e
negativa. Culpa, por exemplo, é uma palavra inexistente em seu dicionário pessoal.
Ironicamente, sempre se acham e agem como se fossem eles as vítimas. Com o tempo e
como fato comum a todos desse tipo, toda sorte de encrencas e de dificuldades, até de
ordem financeira, acaba sendo uma constante em seu caminho. E a vida costuma mostrar
todas essas verda‑
rias. Dizem que apenas estavam tentando acertar, mas que, infelizmente, não deram sorte,
ou que suas parceiras anteriores eram muito temperamentais, ou loucas, ou de um nível
muito distinto dos seus. O fato é que a culpa nunca será deles, como também não
demonstrarão às novas presas o seu estado temperamental de mudanças de humor,
ameaças de abandono e mau ‑caratismos de toda ordem até que elas estejam envolvidas.
Se você está nessa trama, saiba que a mentira, entre outros tipos de abuso, será a tônica
forte da relação até você duvidar de si mesma, passando 323
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em cima de sua lucidez e sanidade. Acorde o quanto antes e fuja desse tipo sedutor, que,
na verdade, é um assassino silencioso e a levará à sua falência emocional e a toda sorte
de doenças. Busque ajuda e livre ‑se o quanto antes.
tentativa de soltura.
2. Outra coisa que pode ocorrer é uma última tentativa sua de resgate de algo com que,
por pior que fosse, você já
Nessa hora, pode apostar que ele já tem outra vítima nas
mãos ou na mira.
Não olhe para trás, o mal já passou. Se por acaso ele já estiver com um novo alguém,
aparentemente estando tudo bem, jamais ouse pensar que você não foi boa o suficiente.
Melhor, na verdade você só não foi boa o suficiente para ele.
Revelou ‑se o funcionamento. Você descobriu a trama em que estava envolvida, apenas
isso, e depois, apesar das inúmeras e sedutoras tentativas 324
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para enredá ‑la novamente, sabe que nada mais teria força para conseguir isso, por mais
que às vezes pudesse até ficar tentada. Porque você, enfim, viu e denunciou a si mesma o
que viu e onde estava. E, a partir de então, ficou incorruptível na sua percepção correta.
Faça ‑se um favor. Nunca mais duvide de si mesma. Nunca.
E se ele já estiver com outra, sim, ele a substituiu. E deve estar mergu‑
lhado em uma daquelas fases de sedução pelas quais você já passou. Sinto em lhe dizer,
mas você foi apenas mais um corpo que passou na vida dele, não uma pessoa.
Mérito seu ter ‑se libertado. Não olhe para trás, apenas para a frente. A vida de verdade a
espera e está bem aí na sua frente para ser vivida. Você sobreviveu e está viva. Seja feliz.
Dê a si mesma esse presente magnífico que é a sua vida livre de volta. E mais:
• Leia e leve muito a sério suas sensações. São elas que sempre lhe indicaram o caminho
correto a seguir.
• Se por acaso sentir que algo não é bom, não faça, não vá. Se sentir que é bom, confie,
flua!
• Desse modo você ficará literalmente imune a esse tipo de predador e longe de qualquer
situação que lhe possa ser lesiva.
máxima de alerta contra qualquer tipo de abuso emocional que pode ocorrer pela via do
silêncio.
325
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• Aprender a se bancar no que é lesivo e ser o seu próprio cuidador, aprender a ser seu
melhor amigo.
• Ser um bom pai e uma boa mãe para si mesmo. Lembre ‑se, sempre e antes de mais
nada, é você quem cuida de você mesmo, impedindo, por exemplo, quaisquer tipo de
maus ‑tratos a si mesmo, como men‑
• Lembre ‑se: um parceiro afetivo jamais poderá causar ‑lhe o medo do abandono.
• Viver em harmonia com o outro é excelente, mas melhor ainda é estar em harmonia
quando precisar dizer um não ou emitir sua pró‑
pria opinião. Quanto mais você estiver ciente e desperto dentro des‑
ses pressupostos, mais estará imune a pessoas mal ‑intencionadas e adoecidas. O medo
do abandono e do desamparo fazem parte da
• Se você for uma vítima, busque ajuda terapêutica para poder hon‑
rar e confiar em seus próprios julgamentos. Siga em frente. Há muita vida fora disso.
Ao final, dentro desta sociedade adoecida, a maioria fica a todo momento driblando a
hipótese de ser alguém inadequado. Como consequência, para não entrar em contato com
esses difíceis sentimentos e ainda em seus meca‑
mente competitivos. Afastam ‑se do universo das sensações, através do qual poderiam
vislumbrar o encontro consigo mesmos, apenas lançando ‑se para o que julgam ser
sensacional. E tudo se transforma num imenso show nar‑
tração ou tristeza, antes consideradas como fatos normais da vida, haverá alguma droga
específica para resolver essas questões. Tais drogas visam 326
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aliviar o momento ou mesmo deixá ‑lo mais interessante. Podem ser desde drogas
propriamente ditas, como remédios psiquiátricos ou para regime consumidos de forma
abusiva, até excesso de ginástica, trabalho, namoro, sexo ou o que quer que possa
despertar algum frisson e, no melhor dos termos, trazer a mínima sensação de alegria
efêmera, ainda que sem nenhum conteúdo estável...
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Vida ou existência?
Mudanças nos ensinam que nada é permanente. Incitam ‑nos a crescer e nos capacitam a
lidar com as adversidades da vida. Por mais terríveis e dramáticas que realmente possam
ser, se bem trabalhadas, podem ajudar no autoconhecimento, promovendo o
fortalecimento do eu real. Uma possibi‑
lidade de saber quem se é no íntimo, o que se deseja como objetivo de vida, quando não é
mais possível retornar ao passado.
Mudanças de vida, na maioria das vezes, são de difícil assimilação; nossa personalidade
repentinamente se vê empurrada para viver o impensável. A emergência e a rapidez desse
tipo de dinâmica costumam dificultar o acesso imediato aos recursos naturais que nos
garantem a sobrevivência de modo equilibrado, afinal, adaptar ‑se ao novo sempre exige
tempo para processar.
Por outro lado, abre ‑se a oportunidade para pôr em ação habilidades nunca antes
acordadas.
329
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guém está isento de entrar em contato com o inesperado, com o inexorável, com as
frustrações. Um dos exemplos mais clássicos e muitas vezes traumá‑
ticos fica naqueles que se veem obrigados a mudar de escola, cidade, emprego ou mesmo
país. Nestes, é comum o surgimento de resistências emocionais, quando os protagonistas
se veem com dificuldade de iniciar novos conta‑
tos que certamente os fariam crescer.
Mudanças sempre trazem novas ideias, novos ideais. Ter isso em mente é o início para
aventurar ‑se no novo e desconhecido momento. Abrir ‑se para novas possibilidades de
modo positivo e buscar surpreender ‑se, com a mente aberta para o inusitado, abre espaço
para que nossas habilidades se desen‑
ridas, mesmo que o retorno delas seja impossível. É possível, porém, driblar a saudade
criando novos laços de amizade, ainda que cultivando antigos, apesar da distância,
quando esse for o caso.
por um distanciamento concreto das pessoas que amamos, das pessoas com quem
estamos acostumados a conviver. Mas, nos dias de hoje, parece que o mundo literalmente
encolheu. Em instantes, podemos ver as pessoas ama‑
das pela tela de um computador e mesmo saber de tudo o que se passa com os outros, por
conta das redes sociais. Fazer uso desses aparatos tem efeito contundente no
abrandamento da dor da ausência. A vida real, porém, ocorre fora das telas do
computador.
O que fazer nos primeiros dias pós ‑mudança, quando a tristeza e a angús‑
tia são mais intensas? Como aliviar essas sensações tão ruins? Olhar para fora,
literalmente, e ver a natureza. Entrar em contato com a respiração.
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Intencione sentir ‑se vivo nas coisas que lhe dão prazer. Se estiver num local de sol, sinta
intensamente o calor do sol, a brisa, o frio ou o calor. Bus‑
que sentir ‑se integrado à atmosfera do lugar para começar. Caminhe pelos órgãos dos
sentidos e acolha as recordações sem rejeitar e sem se demorar demais nelas. Acolha
porque tem o direito de sentir saudades, tristeza e angústia, mas não se deixe levar por
isso para que esses sentimentos não disparem o estado de melancolia.
Nos momentos mais difíceis, faça um esforço consciente para conectar ‑se com o que
proporciona prazer concreto. Evite ter pena de si mesmo pela situação imposta, pois esse
tipo de sentimento será seu pior inimigo e só o levará para baixo.
tável, é hora de buscar ajuda externa. Um processo terapêutico de auxílio sempre é bem
‑vindo e pode ajudar a transformar para muito melhor a per‑
cepção de tudo o que envolve a mudança. Isso inclui fatores emocionais que não estão
claros e que podem ser totalmente resolvidos, como a ansie‑
dagem do EMDR faz como se a pessoa tire uma foto (mental) da imagem, do momento
mais perturbador que signifique a mudança, por exemplo, e a partir daí essa metodologia,
que trabalha com movimentos bilaterais, entre o protocolo e outras coisas, faz que a
pessoa reprocesse absolutamente todo o conteúdo emocional que a deixa triste e com
dificuldades de transcender esse difícil momento. O interessante dessa abordagem é que
no momento do reprocessamento, quando se escolhe uma experiência perturbadora, todas
as 331
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situações da vida da pessoa que têm ligação e que de algum modo contri‑
buíram para essa situação surgem como algo holográfico, sem tempo, porém atual na
questão, visando a promoção do bem ‑estar emocional.
Funcionamos assim, está no nosso DNA, somos fadados à cura, por exemplo, se você se
corta, seu organismo visa recuperar os tecidos, a auto‑
Dor e tristeza em excesso pela mudança são aspectos de um suposto cenário que contém
todo um histórico de situações emocionais mal resol‑
vidas que foram disparadas pelo fator mudança. O EMDR pode ir pela ima‑
gem que ocasionou o sintoma caminhando até as origens, reprocessando todo o conteúdo
emocional até transformar o mal ‑estar do presente, aliviando crenças negativas que
invadem um futuro incerto. Ao reprocessar contextos internos, a realidade externa
efetivamente pode ser vista e redesenhada com todo o colorido que merece.
A magia da transformação
cido, pelas viagens às vidas passadas, jamais escapamos dos obscuros con‑
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Vou explicar melhor: se por acaso você estiver numa situação que o angus‑
tia, certamente estará inserido em algum cenário físico que simultaneamente dispare as
tais sensações.
tante, ou mesmo por meio de um cenário concreto de vida, tendo em vista que
absolutamente todos estes se apresentam como formas psíquicas e criativas na tentativa
de autossuperação das questões emocionalmente conflituosas.
O EMDR promove esse tipo de acesso sem o perigo de deixar traumas, porque a função
dessa abordagem é justamente a oposta, curar traumas e reprocessar situações
perturbadoras.
Imagine, por exemplo, uma pessoa que não consegue falar em público e que acessa por
conta do protocolo utilizado no EMDR algo muito distante do seu agora, no qual
supostamente toda essa dificuldade teve início. Acessa uma cena distante que dispara a
mesma sensação emocional da timidez de agora...
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Acessou a professora de infância reclamando de suas notas, acessou, enfim, o seu medo
de errar. Acessou sonhos recorrentes e todos vieram por asso‑
radas sobre si mesmo, e por aí reprogramou toda sua linha temporal de existência,
transformando de forma totalmente inovadora o modo como estava habituado a ser no
presente. O assunto perdeu o sentido e, por ter sido totalmente reprocessado, as conexões
neurológicas, antes viciadas num padrão de comportamento e de resposta, transformam
‑se por completo, mudando ‑o como um todo.
rente, a pessoa também passará por novas experiências e assim por diante...
Sempre comento com meus pacientes que anos após o resgate de si mesmos é que vão se
dar conta da real dimensão do que passaram enquanto estiveram sequestrados por
predadores emocionais.
vados em situações que absolutamente nada têm a ver com fatos ocorridos anteriormente.
Inúmeras vezes, situações corriqueiras ainda poderão acio‑
nar nessas pessoas aceleração cardíaca, angústia, tremores, sensação de quei‑
mação na área do peito, da barriga ou do estômago, entre outras. Tudo isso porque os
sistemas físicos e a alma ainda não se recuperaram plenamente dos traumas que esse tipo
de relação devastadora promove.
das que pacientes pós ‑resgate tiveram durante as sessões de reprocessamento em terapia
de EMDR e Brainspotting. Lembrando que essas terapias têm a capacidade de
espontaneamente colocar o paciente em várias situações que foram danosas a fim de
redimensioná ‑las.
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Com esse tipo de ajuda terapêutica, a inteligência de sobrevivência vai tecendo uma
espécie de colcha de retalhos sobre todo o ocorrido, extrava‑
grande para resolver algo que ele dizia que não era bom no momento, o que ativava meu
grande mal ‑estar. A partir daí, a conversa não fluía mais e eu falava sempre sozinha;
chorava muito e ele nunca falava nada. Se eu quisesse ir embora, dava na mesma. Não
fazia questão de sequer me acalmar. Quanto mais me deixasse desestabilizada, mais ele
gostava. O único jeito era ficar ao lado dele...
eu ir ao médico. Sentia ‑me cuidada quando me dava remédios, mesmo quando ele era
tão ruim comigo. Lembranças de momentos difíceis com ele, a sensação de impotência e
de desespero, e o desconforto no peito eram constantes. Hoje vejo que ele dizia coisas, às
vezes pelo telefone, que eram apenas para me despertar desespero; por qual‑
“Agora não quero mais conversar”, e não dava mais respostas, dizendo apenas: “sim”,
“não”, “tá”, e isso me colocava numa ansiedade em busca de respostas. Tentava ficar
quieta, esperando passar...
Pedia ‑me para não ir à casa dele e, enquanto falava isso, eu ia colocando roupas numa
sacolinha e ia lá... e chegava à casa dele, e ele, com aquela cara muito feia, me dizia:
“Você veio aqui para conversar?”.
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E nessas ocasiões, que eram frequentes, ele me dizia: “Você é a santa, né? Você não faz
nada...”. E falava que, se o obedecesse, eu seria mais feliz. No começo, quando eu ainda
tinha forças, dizia que ele era insa‑
ciável, que queria alguma coisa que não existe. Com o tempo, fui me calando, adoecendo
mais e mais... Não sei como fui cair nisso...
a acessar seus próprios históricos pessoais, em que prepararam as redes que facilitaram
para que se tornassem presas desses narcisistas perversos Descobri que sempre quis
superar expectativas. Quando a pes‑
soa muda estando comigo, o primeiro ímpeto é fugir e o segundo é mudar de atitude, ser
mais agradável... E, quando funciona, tento me adaptar cada vez mais, mas fico magoada.
Falo dessa mágoa, mas quando falo é incômodo, eu me adapto e minto para mim mesma.
Lembro agora que fazia isso em casa, com minha mãe... Tentativas de não sentir aquilo
que estou sentindo. Ou porque acho que estou exagerando, ou se tenho tanto medo da
pessoa escapar, ir embora e não me amar, faço de conta que a pessoa não está fazendo
isso comigo. Quando se trata de alguém muito próximo, eu me vejo
sando por semelhante situação sabe o que isso significa e como todo tipo de ajuda
também é importante.
Ocorre que todos nós crescemos, mas nossa máquina cerebral ainda pode estar enviando
informações antigas sobre nós mesmos, fazendo ‑nos agir do modo que não desejamos;
todas as áreas da existência ficam com‑
Quando você atravessa a moldura de algum impacto emocional, que usualmente costuma
cercá ‑lo, reprocessa o tempo que deu início a todo esse 336
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tos e crenças, antes mal focados, conseguem definitivamente realizar o seu fluxo
contínuo como se fossem um rio límpido correndo livre, sem desvios ou quaisquer outros
impedimentos.
Feche os olhos, respire fundo e observe a sua própria respiração. Pouco a pouco, vá
percebendo que dentro de você existe um universo não pal‑
pável, só seu e que lhe pertence. Sim, você pertence a si mesmo e a mais ninguém,
portanto, absolutamente nenhuma pessoa jamais terá a capa‑
xiste. Engano. Você é, sempre foi e sempre será o absoluto para si mesmo.
Vale lembrar ‑se de como funcionamos: as nossas máquinas biológicas são modeladas
por meio de uma tecnologia fantástica que visa a própria sobrevivência. Somos
tecnologicamente programados para isso. Podemos pedir ajuda quando estamos tristes e
sair das crises, sejam elas quais forem, mas, no final, sempre quem faz o serviço somos
nós mesmos. Ninguém o fará para nós. A lição de casa do autodesenvolvimento é
somente de res‑
ponsabilidade nossa e no fundo todos nós sabemos disso. Uma mão esten‑
dida e um olhar amigo até podem ajudar, mas jamais serão suficientes para fazer o que
temos que fazer por nós mesmos. O crescimento e o aprendi‑
Por apenas um momento, olhe para dentro de sua tela interior e observe as imagens e os
acontecimentos do mundo afora apenas como imagens.
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Observe tudo o que se passa como se fossem cenários que vêm e vão, e que passam pelas
vidas de todos nós. Respire fundo e conecte ‑se com sua respiração enquanto faz este
exercício. Espere por alguns instantes e, quando sentir ‑se mais relaxado em seu próprio
corpo, oriente seu olhar para compreender que esses são apenas cenários criativos
desenhados, com‑
posições que muitas vezes criamos em conjunto com outras pessoas... Na sequência,
mude seu olhar de posição e veja as mesmas cenas como se você estivesse planando
numa vista aérea, voando ou dentro de um avião.
Observe esse filme da vida como se fossem paisagens e perceba que elas dão certo
apenas enquanto fazem sentido para aqueles que as constroem.
Irrestritamente, todas as criações têm um começo, um meio e um fim, e quando são feitas
em conjunto, portanto, parceiros de criação, pelos moti‑
vos mais adversos, podem desistir de participar dos processos, partindo para desenhar
outras histórias, em outros cenários... Faz parte da vida.
Portanto, permanecer sofrendo por uma suposta rejeição, quando o outro desiste de
participar do mesmo cenário que você, é apego à criativi‑
dade do que está sendo desenhado em conjunto ou do que já foi construído até agora.
Seria como um artista que se confunde com sua própria obra.
Se após esse exercício, ainda assim, estiver colado a essa situação, ainda pensando por
demais e sofrendo, como cura emocional, sugiro que feche os olhos novamente e faça
uma série de respirações profundas e prazerosas até que se sinta mais confortável dentro
de si mesmo. Em seguida, observe ‑se na tela que lhe provoca a sensação que o faz sentir
‑se mal com a suposta rejeição ou o que seja; redesenhe ‑se nela a ponto de começar a
sentir ‑se pleno e feliz na nova realidade que está criando em sua tela interior. Para que
esse intento realmente aconteça, em primeiro lugar, você deve ir de encontro a esse
cenário e, na sequência, vê ‑lo também como uma imagem criada e des colar ‑se dela, a
ponto de deixá ‑la ir verdadeiramente. Fazendo isso, você estará apto para criar e se
associar a outra nova tela, até que esta um dia também possa se esvair e você possa partir
novamente para outras infinitas experiências. Sem apego.
rer. Tem gente que faz esportes e num dado instante não se identifica mais 338
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com uma situação; a meditação também pode ajudar muito. Pode ‑se estar tomando um
banho e isso ocorrer. Basta focar no objetivo de se descolar de um cenário perturbador e
confiar que seu cérebro fará o serviço.
Às vezes, quando se compreende essa dica, tudo fica mais fácil, mas para algumas
pessoas a detecção dessas telas não é tão simples assim. As pessoas em geral se
esquecem de si mesmas e fica difícil de fazer o autorresgate de modo individual. Nessas
ocasiões, o suporte e o auxílio terapêutico com pessoas capacitadas podem fazer toda a
diferença. Ajustes serão necessá‑
sando por algum tipo de crise ou de perturbação, com máxima consciência de que não
mais consegue resolver suas questões por si mesmo.
Ora estamos dentro de algum contexto familiar, ora mergulhados dentro das leis de um
trabalho ou em alguma outra situação sociocultural que sempre nos exigirá regras e mais
regras sobre como supostamente deve‑
ríamos agir.
Regras em geral não são más, pelo contrário, facilitam nossa vida em vários sentidos.
Porém, não devemos esquecer de que todo excesso pode gerar danos de toda ordem. O
maior risco que podemos correr se estiver‑
cia, e, por fim, o aprisionamento de nosso ser essencial em uma trama que, ao atar,
também pode cegar para a realidade externa e interna.
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A crise nesse sentido pode ocorrer no momento em que não nos enten‑
demos mais nos vários sentimentos e sensações pelos quais somos acometi‑
dos e que se mostram desconectados com as aparentes realidades factuais nas quais
sempre estivemos inseridos. Podemos, até mesmo, chegar ao ponto de nos sentirmos em
total ruptura com o rumo da nossa vida.
Outra cena comum, nesse estado, são as sensações mais depressivas e a falta de desejo de
ações anteriormente conhecidas como empolgantes. O
receio do descontrole tanto nos estados mais passivos como nos mais ativos fica em
evidência. O que passa a reinar é o medo do caos interior...
Quando não nos visitamos, pouco a pouco a nossa percepção vai sendo minada.
Passamos a achar normal uma vida medíocre, sem grande enten‑
dimento sobre nós mesmos. Mais e mais, vamos perdendo a referência de quem somos, e
o pior é que acabamos por nos convencer de que a baixa qualidade de prazer que temos
na vida é normal.
sando ao nosso eu de que algo não vai bem. Esse é o precioso momento em que temos a
chance de buscar ajuda emergencial e de fazer terapia a fim de nos ganharmos de volta. É
nessa hora que temos a certeza de que tudo pode ser diferente. Uma oportunidade para
entrarmos em contato 340
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com várias das nossas questões e de nos atualizarmos como existências plenas. É a
chance!
É claro que temos toda uma história que nos construiu e que ainda constrói tanto os
nossos pensamentos, como a maneira de nos compreen‑
dermos como entidades dentro de toda essa trama. Isso inclui todas as nossas
possibilidades de ação até o presente momento.
soas a mentira de que podem controlar tudo. Não podemos controlar nada enquanto
formos frutos inconscientes de outros tipos de controle e de outras tantas instâncias
psicológicas que nos controlam à nossa revelia.
Até podemos participar de “filmes” que não nos pertencem, mas ape‑
nas por alguns momentos e sempre com um pé em nosso próprio “filme existencial”.
Quer um antídoto para não se perder num filme que não é seu? Conheça a si mesmo.
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do estado de sequestro
Com esse método, que é uma terapia cerebral, realiza‑se o reprocessamento dessas
situações e experiências difíceis que nos impedem de seguir adiante em meio aos nossos
melhores sonhos e desejos. É uma nova abordagem chamada EMDR – Eye Movement
Desensitization and Reprocessing, ou Des‑
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Essa forma de psicoterapia utiliza o movimento dos olhos para curar questões emocionais
perturbadoras. Isso, somado a um protocolo espe‑
cífico, ajuda a reprocessar as lembranças difíceis e mal adaptadas que de algum modo
nos prendem ao passado, e integra as informações que fica‑
ram separadas nos dois hemisférios cerebrais. Funciona como se estivesse reproduzindo a
etapa do sono REM – Rapid Eye Movement, ou Movimento Rápido Ocular, quando o
cérebro vai processando as informações do dia a dia, mais o que não conseguiu digerir
emocionalmente quando em estado de vigília.
Desde então, o EMDR tem mostrado a possibilidade de cura emocional para qualquer
situação em que possamos estar envolvidos. Uma revolução palpável nos aspectos de
consciência e lucidez e nas reais possibilidades de melhor existir.
No tratamento com EMDR, conta ‑se com um protocolo que deve ser rigorosamente
seguido com a finalidade de que terapeuta e cliente tenham acesso a todos os detalhes
que envolvem a situação que será reprocessada e redimensionada. Nele observamos
aspectos emocionais envolvidos, pensa‑
mentos visuais e tácteis que são feitos de modo bilateral e estes auxiliam os hemisférios
cerebrais a realizarem o processo de modo profundo.
significador de sua própria vida. Passa a confiar muito mais em si mesmo à medida que
permite que o cérebro execute o reprocessamento e o cure.
Somos fadados à cura, está em nosso DNA, como código. Se você se corta, sabe que o
seu corpo cicatrizará graças ao cérebro.
Se o campo de mutação for feito de modo adequado, o processo de cura também está
fadado a ocorrer.
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nhe o movimento dos dedos do psicólogo de um lado para outro. Enquanto isso, o
terapeuta pede que ele recorde a cena mais traumática de algum epi‑
A pesquisa sobre movimentos oculares rápidos, que ocorrem durante o sono, é relevante
para esclarecer o êxito do EMDR. Estudos demonstram que todos processamos as
experiências do dia durante as etapas do sono REM. Em situações normais, o cérebro
“revê” as experiências do dia, pro ‑
No entanto, quando temos alguma experiência traumática, parece que o cérebro não
consegue processar o evento e o incidente permanece aprisio‑
curso do EMDR com extensões inimagináveis, e isso requer conhecimento prévio para
que o suporte seja eficiente. A terapia EMDR, por ser um repro‑
cessamento que envolve as conexões neurológicas, pode ser entendida como uma espécie
de ginástica mental, na qual uma rede neurológica viciada num tipo de conexão passa a
funcionar de modo diferente do usual. Outros efei‑
tos referem ‑se a sonhos e sentimentos diferentes do usual, ou mudanças nos hábitos, nos
relacionamentos interpessoais e na forma de pensar.
Todos nós vivemos inúmeras situações que disparam sentimentos e sensações de difícil
compreensão, e, mesmo inconscientemente, procuramos soluções para o que nos
incomoda. A procura por nos resolver, conhecendo 345
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a nós mesmos nos mais diversos níveis, está intimamente relacionada com o desejo da
alma, da revelação de algo obscuro, mas que emocional‑
Brainspotting
menta terapêutica neurobiológica que tem acesso direto aos sistemas autô‑
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Sequestradores de Almas
terror quando algo, por menor que seja, o ativa. Esse ponto está conge‑
lado em algum lugar do cérebro e assim ficará enquanto não for devida‑
A metodologia aponta para um ponto específico no cérebro onde está localizada a carga
energética e emocional de um ou mais traumas conge‑
Os pontos cerebrais, quando estimulados para a liberação, revelam ‑se por meio de
respostas reflexas que vão descondicionando as respostas emo‑
Corpo e psique não conseguem deixar de ser afetados quando começam a formar uma
espécie de reservatório energético desses conteúdos de difí‑
Imagine que você agora é uma águia sobrevoando montanhas em pleno voo livre.
Perceba ‑se sentindo como águia, respirando como águia. Observe ainda seu corpo de
águia, o tamanho, o peso, a respiração. Sinta a batida do coração pulsando em seu peito
de águia, veja suas penas e todo o seu colo‑
rido. Tenha em mente que tudo isso agora lhe pertence e que neste momento 347
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é você. Usufrua, ao longo do voo, da experiência e do prazer de ser uma águia de modo
total e ainda assim em plena consciência de ser você mesmo.
nhecer voando. Observe as paisagens por onde passa e, se quiser, mude o rumo do voo de
acordo com seus desejos. Usufrua da liberdade de ir e vir, do prazer de lidar só e
unicamente com seu comando interior. Oriente ‑se pela infalível guiança interna de
prazer na sensação de se deixar levar ape‑
Ouse dar voos rasantes e também experimente voar nas alturas até sen‑
tir o ar lhe faltar. Agora, faça piruetas ao ar livre, voe em linha reta, de trás para adiante,
invente seus voos!
Veja como as cores, quando distantes, perdem o tom forte, desfigurando formas e
evidenciando ‑as como se fossem borrões de aquarela. Em seu voo, aproveite ainda para
observar como os cenários ficam difíceis de deci‑
frar tanto na visão muito aproximada, como na de muito longe. Continue a experiência de
voo exercendo a liberdade de experimentar, reciclando anti‑
Fique mais um pouco planando e sinta para qual direção está indo o vento, se vai chover,
se há sol, se a temperatura está quente, fria ou mais ou menos... Veja se está com sede ou
fome e, se acaso estiver, faça seu voo até algum local onde possa se reabastecer e
descansar um pouco.
Perceba que você é definitivamente o dono de seu próprio destino e aprecie esse fato.
Perceba também que na verdade sempre o foi, apenas não o sabia.
Comece a observar as cenas de seu voo ficando distantes, pouco a pouco perdendo o
significado maior, perdendo a importância de alguns coloridos de outrora. Aprenda
definitivamente a deixar para trás o que deve ser deixado e prossiga sob seu comando
lúcido, guiando o próprio voo. E se necessitar entender detalhes ou aspectos de alguma
situação ou cena, já sabe que poderá se aproximar bastante, mas nunca a ponto de perder
o foco, a dimensão do real e do sagrado exposto pela natureza e escolhido por você para
vivenciar e ver.
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Daqui por diante, lembre ‑se de que você é quem define seu próprio voo, sempre. Antes,
por falta de consciência, acabou por “permitir” que outros traçassem seus próprios
projetos de voo para você. Por falta de consciência, ainda, entrou em filmes e cenários
que não tinham nada a ver com o que de verdade o satisfaz. Agora, porém, em seu voo
solitário, aprendeu a reconhe‑
cer sua alma e já sabe fazer uso do prazer único que isso lhe oferece e que de fato é o real
sentido de sua vida. Não havendo, portanto, espaço para que você se corrompa nos
desejos dos outros ou até mesmo no seu próprio.
pre adiante. Sendo sempre um ser mutante e criativo, que se reconhece em si mesmo a
cada respiração.
Você é forte. Sua vida sempre será um novo recomeço a cada dia que passa. Lembre ‑se
de que você está eternamente na alvorada da vida. Seus momentos devem ser únicos e
prazerosos. Sua jornada é única. Sua ação no mundo lhe oferece infinitas possibilidades
de ser criador de sua própria his‑
tória. Evite ser condescendente consigo mesmo, abrindo espaço para se quei‑
cantes na construção de seu modo de ser, influenciando a maneira como você pensa e
age. Já é hora de retirar o véu de seus olhos e definitivamente ser você mesmo. Ficar com
o bom e libertar o que já não lhe serve. Assumir a liderança de sua própria vida sem
pestanejar, assumindo, portanto, todos os riscos que envolvem o estar vivo.
É nessa trajetória que saímos definitivamente da zona de conforto sobre a qual tantos
falam. Deixamos para trás os comodismos que nos dão a ilusão 349
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Silvia Malamud
de que isso seria a própria vida. Deixamos também para trás todas as fan‑
tasias de que somos menos ou mais que qualquer outra pessoa e caminha‑
mos para uma percepção única de nós mesmos, na qual o que importa é definitivamente a
sensação inequívoca de ser feliz. Um estado que por si só é recompensa. Um estado sem
dependência emocional e sem subterfúgios.
Um lugar que pode ser plenamente alcançado por todos nós, aqui e agora.
É hora de ousar, de colocar toda a sua vitalidade de modo consciente em suas ações,
pensamentos e emoções.
mente, requer a incorruptibilidade, pois só através dela é que alcançamos o status de ser e
de nos bancar no que realmente somos. Mesmo que depois, com a liberdade que todos
nós temos, possamos rumar para um novo posicionamento.
Atente que essa é a sua vida e, neste momento, é tudo o que você pos‑
sui. Pense no que está fazendo efetivamente por você nessa sua vida? Já é hora de agir a
seu favor, você não acha? Se não for agora, quando?
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Epílogo
Já passou.
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