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"Se Deus não existe, tudo é permitido". Essa máxima exprime a idéia defendida por
Ivan Fiódorovitch Karamazov, em "Os Irmãos Karamazov". Mas defender uma ideia
abstrata e aceitar as implicações dela em suas últimas consequências são coisas
completamente diferentes.
De fato, nada tinha, em tese, Ivan a se perturbar com os acontecimentos trágicos
de sua família: seu pai, que ele tanto odiava, estava morto; seu irmão Dmítri, que
era o único obstáculo que ele tinha em relação a Katerina, seria preso; ele ficaria
com uma herença enorme. Para um defensor da ideia de que os "homens-deuses" tudo
podiam nessa terra, que não havia virtude, nem bem, nem mal, que tragédia poderia
haver nessa situação? A verdade é que Ivan não conseguia aceitar sua idéia na
prática, levada às últimas consequências. Ele sabe que assassinato é errado, e
sofre; ele sabe que a desgraça iria recair sobre todos, por sua culpa, e isso o
tormenta.
Smerdiakov, pelo contrário, é totalmente adepto dessa idéia: ele mata Fiódor,
quiça seu pai, por razões não muito esclarecidas, e se beneficia disso. Decerto,
ele contava com a aprovação e até a ajuda de Ivan. Este, por sua vez, ao descobrir
a verdade, passa a odiá-lo, para a surpresa de Smerdiakov; Ivan é incapaz de
aceitar sua filosofia na prática - chegando mesmo a odiar com todas as forças o
valete, querendo mesmo matá-lo, tendo o mesmo personificado sua filosofia.
Ivan sofria: suas idéias o torturavam. O ceticismo o torturava, como podemos ver
em suas conversas com Aliocha; e, depois de todos os ocorridos, os desdobramentos
práticos que sua idéia o levou - o levou a ser omisso e permitir a morte do próprio
pai! -, Ivan já não era mais capaz de suportar sua tragédia. Sua fala no tribunal,
acusando a todos de querer, tal como ele, a morte do próprio pai, é a tentativa de
sua frágil e abalada razão de livrar-se da dor que o acomete, e de sustentar suas
idéias.
A "visita" que o diabo faz à Ivan em seus delírios demonstra bem isso: ora, ele
era descrente, como poderia acreditar no diabo, que representava, de todas as
formas, o que ele negava: o transcendente, os valores morais e a consciência? A
verdade é que Ivan, crendo nisso, discordava, no fundo, profundamente; do
contrário, tendo sua razão tão fortes razões para crer, creria. Mais que isso: o
diabo de Ivan era a representação do que havia de mais baixo, de mais vil na sua
alma; ele mesmo admite-o. Isso reitera o ponto de Ivan sofrer, por suas ideias:
quando o diabo começa a falar do conto d'O Grande Inquisitor e da Grande Catástrofe
Geológica, Ivan, que suportara até então toda a tortura, se irrita de vez e ataca-
o. Eis, portanto, o ponto central de todo sofrimento de Ivan.
Se Dostoiévski tivesse completado sua obra - esta ficou incompleta, após o término
de seu segundo livro, pela morte do mesmo em fevereiro de 1881 -, decerto teríamos
uma eventual transição de Ivan, caso este se recuperasse de sua enfermidade: ele
jamais conseguiria viver com tal peso na consciência. A saber, só haviam duas
soluções para aquela alma: a sua aniquilação ou a redenção. Mas Ivan jamais se
suicidaria: Iva amava viver; mais que ninguém, ele desejava ardentemente viver.
Ivan é a representação perfeita dos perigos do niilismo em um pouco de vista
ético-moral e psicológico, levado às suas últimas consêquencias, mostrando o quão
pretenciosa e obscura pode ser uma alma movida a tais valores. Outros personagens,
como Fiódor, o próprio Smerdiakov e Rakítin também presentam a pretenciosidade e as
crises morais que seguem tal idéia; mas nenhum deles tem, em sua plenitude, a
profundidade de um Ivan, que sofre e chora pela dor de não crer.
Ivan, ao decorrer do romance, enlouquece; podemos perceber bem isso ao fim da
obra. A razão disso fica explícita no seu delírio com o diabo: Ivan perdeu tudo,
menos a razão; não há mais outra coisa naquela alma, senão a razão pura. Ora, ele
conclui, se não há Deus, nem algum plano transcendental, toda qualidade e toda
coisa positiva, e todo defeito e limitação são consequências de como pensamos e
agimos; também não bom ou mal, nem qualquer valor moral - mas mais adiante
abordaremos. Se é dessa forma, o homem deve vencer a si mesmo, deve superar sua
natureza, e por um só meio: a razão. Isso o leva, como dito, à loucura.