Você está na página 1de 239

SUMÁRIO

Artigo 01. Os fundamentos históricos e teórico‐­


metodológicos do Serviço Social brasileiro na
contemporaneidade
Por Maria Carmelita Yazbek

Artigo 02. Teoria das profissões e a análise dos


fundamentos do serviço social
Por Ludson Rocha Martins

Artigo 03. As Dimensões Ético-políticas e Teórico-


metodológicas no Serviço Social Contemporâneo
Por Marilda Villela Iamamoto

Artigo 04. O que Serviço Social quer dizer


Por Vicente de Paula Faleiros

Artigo 05. Um projeto para o Serviço Social crítico


Por Carlos Montaño

Artigo 06. Os fundamentos do Serviço Social e o


enfrentamento ao conservadorismo
Por Maria Carmelita Yazbek

Artigo 07. Tendências atuais no ensino dos


Fundamentos do Serviço Social
Por Marileia Goin
SUMÁRIO

Artigo 08. O debate dos fundamentos do Serviço


Social: o projeto ABEPSS itinerante
Por Rodrigo Teixeira

Artigo 09. O ensino a distância e as tendências da


apropriação dos fundamentos do Serviço Social
Por Antonio Israel Carlos da Silva

Artigo 10. Fundamentos do Serviço Social: atribuições


e competências profissionais
Por Gustavo Javier Repetti e Virginia Alves Carrara

Artigo 11. Fundamentos do Serviço Social: um estudo


das publicações nos periódicos de Portugal
Por Thaisa Teixeira Closs, Isadora Netto e Helena Neves
Almeida

Artigo 12. Apontamentos sobre os fundamentos


históricos e teórico-metodológicos do Serviço Social
brasileiro.
Por Mayra Hellen Vieira de Andrade, Andressa Lima da
Silva, Maria Gabrielle Chaves Silva, Ana Paula Rocha de
Sales Miranda e Patrícia Barreto Cavalcanti

Artigo 13. Os Fundamentos do Serviço Social brasileiro


na produção científica do XV Encontro Nacional de
Pesquisadoreas/es em Serviço Social.
Por Yanca V. A. Silva, Mônica B. da Nóbrega, Anderson. C.
S. Silva e Horácio L. S. Neto.
Você tem dificuldade de articular teoria e prática?

Sente-se insegura frente às requisições institucionais?

Acredita que está sozinha na luta pelos direitos dos


usuários?

Você está na imersão certa. Assista todas as aulas,


leia todos os e-mails e mensagens no whatsapp para
começar a lidar com esses obstáculos.
APROVEITE A COLETÂNEA
DE FUNDAMENTOS DO
SERVIÇO SOCIAL!
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os fundamentos históricos e teórico­metodológicos do Serviço Social 
brasileiro na contemporaneidade 
 
                                
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Maria Carmelita Yazbek 
Professora da Faculdade de Serviço Social da UNLP/Argentina e da PUC/SP 
Os fundamentos históricos e teórico­metodológicos do Serviço Social 
brasileiro na contemporaneidade 
 
Apresentação 
 
Este  texto  coloca  em  questão  os  fundamentos  históricos  e 
teórico/metodológicos  do  Serviço  Social  brasileiro  na  contemporaneidade, 
particularizando  as  décadas  de  80,  90  e  os  primeiros  anos  do  século  XXI.  Algumas 
referências  acerca  do  Serviço  Social  latino‐americano  também  serão  apresentadas. 
Parte do pressuposto de que a profissão e o conhecimento que a ilumina, se explicam 
no movimento histórico da sociedade. Sociedade que é produto de relações sociais, de 
ações recíprocas dos homens entre si, no complexo processo de reprodução social da 
vida. O mundo social é um mundo de relações.   
 
São  múltiplas  as  mediações  que  constituem  o  tecido  de  relações  sociais  que 
envolvem esse processo de produção e reprodução social da vida em suas expressões 
materiais  e  espirituais.  Essas  relações  que  constituem  a  sociabilidade  humana, 
implicam  âmbitos  diferenciados  e  uma  trama  que  envolve  o  social,  o  político,  o 
econômico,  o  cultural,  o  religioso,  as  questões  de  gênero,  a  idade,  a  etnia  etc. 
Dimensões com as quais se defronta cotidianamente o Serviço Social e em relação às 
quais  se  posiciona  quer    do  ponto  de  vista  explicativo  quer  do  interventivo, 
considerados nesta abordagem como dimensões de uma mesma totalidade. 
  
A  análise  dos  principais  fundamentos  que  configuram  o  processo  através  do 
qual  a  profissão  busca  explicar  e  intervir  sobre  a  realidade,  definindo  sua  direção 
social,  constitui  o  principal  objetivo  deste  texto.  É  necessário  assinalar  que  essa 
análise  das  principais  tendências  históricas  e  teórico  metodológicas  da  profissão, 
sobretudo  nas  três  últimas  décadas  não  é  tarefa  fácil  ou  simples,  pois  exige  o 
conhecimento  do  processo  histórico  de  constituição  das  principais  matrizes  de 

1
conhecimento  do  social,  do  complexo  movimento  histórico  da  sociedade  capitalista 
brasileira e do processo pelo qual o Serviço Social incorpora e elabora análises sobre a 
realidade em que se insere e explica sua própria intervenção. 
 
Assim  sendo,  este  texto  apresenta‐se  organizado  em  três  partes:  em  uma 
primeira  introdutória,  onde  são  apresentados  alguns  fundamentos  relativos  ao 
processo histórico de constituição das principais matrizes do conhecimento e da ação 
do Serviço Social brasileiro e em três outras, nas quais se busca uma aproximação às 
principais  tendências  históricas  e  teórico  metodológicas  do  debate  profissional  nos 
anos 80, 90 e 2000. Encerram o texto algumas reflexões acerca das polêmicas atuais 
da profissão. 
 
1  O processo de constituição das principais matrizes do conhecimento e da ação 
do Serviço Social brasileiro 
 
A questão inicial que se coloca é explicitar como se constituem e se desenvolvem 
no Serviço Social brasileiro as tendências de análise e as interpretações acerca de sua 
própria  intervenção  e  sobre  a  realidade  social  na  qual  se  move.  É  claro  que  estas 
tendências,  derivadas  das  transformações  sociais  que  vem  particularizando  o 
desenvolvimento  do  capitalismo  em  nossa  sociedade,  não  se  configuram  como 
homogêneas,  mas  são  permeadas  por  diversas  clivagens,  tensões  e  confrontos 
internos.  Isso porque, a compreensão teórico/metodológica da realidade, fundada no 
acervo  intelectual  que  se  constituiu  a  partir  das  principais  matrizes  do  pensamento 
social  e  de  suas  expressões  nos  diferentes  campos  do  conhecimento  humano,  é 
processo que se constrói na interlocução com o próprio movimento da sociedade. 
 
O ponto de partida consiste, pois, da análise ainda que sumária, do processo de 
incorporação pela profissão: 

2
• de idéias e conteúdos doutrinários do pensamento social da Igreja Católica, em 
seu processo de institucionalização no Brasil;  
 
• das  principais  matrizes  teórico  metodológicas  acerca  do  conhecimento  do 
social na sociedade burguesa; 
 
Tecer  algumas  considerações  sobre  este  processo  é  buscar  compreender 
diferentes  posicionamentos,  lógicas  e  estratégias  que  permearam  o  pensamento  e  a 
ação profissional do serviço social em sua trajetória e que persistem até os dias atuais 
com novas articulações, expressões e redefinições. 
  
Quanto ao primeiro aspecto, é por demais conhecida a relação entre a profissão 
e o ideário católico na gênese do Serviço Social brasileiro, no contexto de expansão e 
secularização  do  mundo  capitalista.  Relação  que  vai  imprimir  à  profissão  caráter  de 
apostolado fundado em uma abordagem da "questão social" como problema moral e 
religioso e numa intervenção que prioriza a formação da família e do indivíduo para 
solução  dos  problemas  e  atendimento  de  suas  necessidades  materiais,  morais  e 
sociais.  O  contributo  do  Serviço  Social,  nesse  momento,  incidirá  sobre  valores  e 
comportamentos de seus "clientes" na perspectiva de sua integração à sociedade, ou 
melhor, nas relações sociais vigentes. 
 
Os  referenciais  orientadores  do  pensamento  e  da  ação  do  emergente  Serviço 
Social  tem  sua  fonte  na  Doutrina  Social  da  Igreja,  no  ideário  franco‐belga  de  ação 
social e no pensamento de São Tomás de Aquino (séc. XII): o tomismo e o neotomismo 
(retomada  em  fins  do  século  XIX  do  pensamento  tomista  por  Jacques  Maritain  na 
França e pelo Cardeal Mercier na Bélgica tendo em vista "aplicá‐lo" às necessidades de 
nosso tempo). 
  

3
É,  pois,  na  relação  com  a  Igreja  Católica  que  o  Serviço  Social  brasileiro  vai 
fundamentar a formulação de seus primeiros objetivos político/sociais orientando‐se 
por posicionamentos de cunho humanista conservador contrários aos ideários liberal 
e marxista na busca de recuperação da hegemonia do pensamento social da Igreja face 
à "questão social". Entre os postulados filosóficos tomistas que marcaram o emergente 
Serviço  Social  temos  a  noção  de  dignidade  da  pessoa  humana;  sua  perfectibilidade, 
sua capacidade de desenvolver potencialidades; a natural sociabilidade do homem, ser 
social e político; a compreensão da sociedade como união dos homens para realizar o 
bem  comum  (como  bem  de  todos)  e  a  necessidade  da  autoridade  para  cuidar  da 
justiça geral. 
  
No que se refere à Doutrina Social da Igreja merecem destaque nesse contexto 
as encíclicas “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII de 1891, que vai iniciar o magistério 
social  da  Igreja  no  contexto  de  busca  de  restauração  de  seu  papel  social  sociedade 
moderna e a “Quadragésimo Anno” de Pio XI de 1931 que, comemorando  40 anos da 
“Rerum Novarum””  vai tratar da questão social, apelando para a renovação moral da 
sociedade e  a adesão à Ação Social da Igreja.  
 
É  necessário  assinalar  que  esta  matriz  encontra‐se  na  gênese  da  profissão  em 
toda a América Latina, embora com particularidades diversas como, por exemplo, na 
Argentina  e  no  Chile  onde  vai  somar‐se  ao  racionalismo  higienista.  (ideário  do 
movimento de médicos higienistas que exigiam a intervenção ativa do Estado sobre a 
questão  social  pela  criação  da  assistência  pública  que  deveria  assumir  um  amplo 
programa preventivo na área sanitária, social e moral). 
 
O  conservadorismo  católico  que  caracterizou  os  anos  iniciais  do  Serviço  Social 
brasileiro começa, especialmente a partir dos anos 40, a ser tecnificado ao entrar em 
contato com o Serviço Social norteamericano e suas propostas de trabalho permeados 
pelo caráter conservador da teoria social positivista. 

4
Efetivamente, a reorientação da profissão, para atender às novas configurações 
do  desenvolvimento  capitalista,  exige  a  qualificação  e  sistematização  de  seu  espaço 
socio‐ocupacional tendo em vista atender às requisições de um Estado que começa a 
implementar  políticas no campo social.  
  
Nesse contexto, a legitimação do profissional, expressa em seu assalariamento e 
ocupação de um espaço na divisão sócio técnica do trabalho, vai colocar o emergente 
Serviço  Social  brasileiro  frente  à  matriz  positivista,  na  perspectiva  de  ampliar  seus 
referenciais  técnicos  para  a  profissão.  Este  processo,  que  vai  constituir  o  que 
Iamamoto (1992, p. 21) denomina de "arranjo teórico doutrinário", caracterizado pela 
junção  do  discurso  humanista  cristão  com  o  suporte  técnico‐científico  de  inspiração  
na  teoria  social  positivista,    reitera  para  a  profissão  o  caminho  do  pensamento 
conservador (agora, pela  mediação das  Ciências Sociais). 
  
Cabe  aqui  uma  explicação:  nem  o  doutrinarismo,  nem  o  conservadorismo 
constituem  teorias  sociais.  A  doutrina  caracteriza‐se  por  ser  uma  visão  de  mundo 
abrangente  fundada  na  fé  em  dogmas.  Constitui‐se  de  um  conjunto  de  princípios  e 
crenças  que  servem  como  suporte  a  um  sistema  religioso,  filosófico,  político,  entre 
outros.  O  conservadorismo  como  forma  de  pensamento  e  experiência  prática  é 
resultado de um contramovimento aos avanços da modernidade, e nesse sentido, suas 
reações  são  restauradoras  e  preservadoras,  particularmente  da  ordem  capitalista.  A 
teoria  social  por  sua  vez  constitui  conjunto  explicativo  totalizante,  ontológico,  e, 
portanto  organicamente  vinculado  ao  pensamento  filosófico,  acerca  do  ser  social  na 
sociedade  burguesa,  e  a  seu  processo  de  constituição  e  de  reprodução.  A  teoria 
reproduz conceitualmente o real, é, portanto, construção intelectual que proporciona 
explicações  aproximadas  da  realidade  e,  assim  sendo,  supõe  uma  forma  de 
autoconstituição,  um  padrão  de  elaboração:  o  método.  Neste  sentido,  cada  teoria 
social  é  um  método  de  abordar  o  real.  O  método  é,  pois  a  trajetória  teórica,  o 
movimento  teórico  que  se  observa  na  explicação  sobre  o  ser  social.  É  o 

5
posicionamento do sujeito que investiga face ao investigado e desta forma é "questão 
da  teoria  social  e  não  problema  particular  desta  ou  daquela  'disciplina'  " 
(NETTO,1984, p. 14).  
 
No caso do Serviço Social, um primeiro suporte teórico‐metodológico necessário 
à qualificação técnica de sua prática e à sua modernização vai ser buscado na matriz 
positivista e  em  sua  apreensão  manipuladora,  instrumental  e  imediata  do  ser  social. 
Este  horizonte  analítico  aborda  as  relações  sociais  dos  indivíduos  no  plano  de  suas 
vivências imediatas, como fatos, como dados, que se apresentam em sua objetividade 
e imediaticidade. O método positivista trabalha com as relações aparentes dos fatos, 
evolui  dentro  do  já  contido  e  busca  a  regularidade,  as  abstrações  e  as  relações 
invariáveis. 
 
É  a  perspectiva  positivista  que  restringe  a  visão  de  teoria  ao  âmbito  do 
verificável, da experimentação e da fragmentação. Não aponta para mudanças, senão 
dentro  da  ordem  estabelecida,  voltando‐se  antes  para  ajustes  e  conservação. 
Particularmente  em  sua  orientação  funcionalista,  esta  perspectiva  é  absorvida  pelo 
Serviço Social, configurando para a profissão propostas de trabalho ajustadoras e um 
perfil  manipulatório,  voltado  para  o  aperfeiçoamento  dos  instrumentos  e  técnicas 
para  a  intervenção,  com  as  metodologias  de  ação,  com  a  "busca  de  padrões  de 
eficiência, sofisticação de modelos de análise, diagnóstico e planejamento; enfim, uma 
tecnificação da ação profissional que é acompanhada de uma crescente burocratização 
das atividades institucionais" (YAZBEK, 1984, p. 71). 
 
O  questionamento  a  este  referencial  tem  início  no  contexto  de  mudanças 
econômicas,  políticas,  sociais  e  culturais  que  expressam,  nos  anos  60,  as  novas 
configurações  que  caracterizam  a  expansão  do  capitalismo  mundial,  que  impõem  à 
América Latina um estilo de desenvolvimento excludente e subordinado. A profissão 
assume  as  inquietações  e  insatisfações  deste  momento  histórico  e  direciona  seus 

6
questionamentos  ao  Serviço  Social  tradicional  através  de  um  amplo  movimento,  de 
um processo de revisão global, em diferentes níveis: teórico, metodológico, operativo 
e  político.  Este  movimento  de  renovação  que  surge  no  Serviço  Social  na  sociedade 
latino‐americana  impõe  aos  assistentes  sociais  a  necessidade  de  construção  de  um 
novo  projeto  comprometido  com  as  demandas  das  classes  subalternas, 
particularmente  expressas  em  suas  mobilizações.  É  no  bojo  deste  movimento,  de 
questionamentos à profissão, não homogêneos e em conformidade com as realidades 
de cada país, que a interlocução com o marxismo vai configurar para o Serviço Social 
latinoamericano  a  apropriação  de  outra  matriz  teórica:  a  teoria  social  de  Marx. 
Embora esta apropriação se efetive em tortuoso processo.  
 
É importante assinalar que é no âmbito do movimento de Reconceituação e em 
seus desdobramentos, que se definem de forma mais clara e se confrontam, diversas 
tendências voltadas a fundamentação do exercício e dos posicionamentos teóricos do 
Serviço Social. Tendências que resultam de conjunturas sociais particulares dos países 
do Continente e que levam, por exemplo, no Brasil, o movimento  em seus primeiros 
momentos,  (em  tempos  de  ditadura  militar  e  de  impossibilidade  de  contestação 
política)  a  priorizar  um  projeto  tecnocrático/modernizador,  do  qual  Araxá  e 
Teresópolis são as melhores expressões. 
 
Já  o  tronco  latino  americano  do  movimento,  sobretudo  no  Cone  Sul,  assume 
claramente  uma  perspectiva  crítica  de  contestação  política  e  a  proposta  de 
transformação  social.  Posição  que,  dificilmente  poderá  levar  à  prática  frente  à 
explosão de governos militares ditatoriais e pela ausência de suportes teóricos claros. 
 
Sem  dúvida,  as  ditaduras  que  tiveram  vigência  no  Continente  deixaram  suas 
marcas nas ciências sociais e na  profissão, que depois  de avançar em uma  produção 
crítica nos anos 60/70 (nos países onde isso foi permitido) é obrigada a longo silêncio. 
 

7
Até o final da década de 70, o pensamento de autores latino‐americanos ainda 
orienta  ao  lado  da  iniciante  produção  brasileira  (particularmente  divulgada  pelo 
CBCISS), a formação e o exercício profissional no país.  Situação que, aos poucos se vai 
modificando com o desenvolvimento do debate e da produção intelectual do Serviço 
Social  brasileiro  e  que  resulta  de  desdobramentos  e  da  explicitação  das  seguintes 
vertentes de análise que  emergiram  no bojo do Movimento de Reconceituação: 
 
• a  vertente  modernizadora  (NETTO,1994,  p.164  e  ss)  caracterizada  pela  
incorporação  de  abordagens  funcionalistas,  estruturalistas  e  mais  tarde 
sistêmicas  (matriz positivista),  voltadas a uma  modernização conservadora e 
à  melhoria  do  sistema  pela  mediação  do  desenvolvimento  social  e  do 
enfrentamento da marginalidade e da pobreza na perspectiva de integração da 
sociedade.  Os  recursos  para  alcançar  estes  objetivos  são  buscados  na 
modernização  tecnológica  e  em  processos  e  relacionamentos  interpessoais. 
Estas opções configuram um projeto renovador tecnocrático fundado na busca 
da eficiência e da eficácia que devem nortear a produção do conhecimento e a 
intervenção profissional; 
 
• a    vertente  inspirada  na    fenomenologia,  que  emerge  como  metodologia 
dialógica,  apropriando‐se  também  da  visão  de  pessoa  e  comunidade  de  E. 
Mounier (1936)     dirige‐se ao vivido humano, aos sujeitos em suas vivências, 
colocando para o Serviço Social a tarefa de "auxiliar na abertura desse sujeito 
existente,  singular,  em  relação  aos  outros,  ao  mundo  de  pessoas"  (ALMEIDA, 
1980,  p.  114).  Esta  tendência  que no  Serviço  Social  brasileiro  vai  priorizar  as 
concepções de pessoa, diálogo e transformação social (dos sujeitos) é analisada 
por  Netto  (1994,  p.  201  e  ss)  como  uma  forma  de  reatualização  do 
conservadorismo presente no pensamento inicial da profissão; 
  

8
• a vertente marxista que remete a profissão  à consciência de sua inserção na 
sociedade  de  classes  e  que  no  Brasil  vai  configurar‐se,  em  um  primeiro 
momento, como uma aproximação ao marxismo sem o recurso ao pensamento 
de Marx. 
 
Efetivamente, a apropriação da vertente marxista no Serviço Social (brasileiro e 
latino‐americano) não se dá sem incontáveis problemas, que aqui não abordaremos, e 
que se caracterizam, quer pelas abordagens reducionistas dos marxismos de manual, 
quer  pela  influência  do  cientificismo  e  do  formalismo  metodólogico  (estruturalista)  
presente  no  "marxismo"  althusseriano  (referência  a  Louis  Althusser,  filosofo  francês 
cuja leitura da obra de Marx vai influenciar a proposta marxista do Serviço Social nos 
anos  60/70  e  particularmente  o  Método  de  B.H.  Um  marxismo  equivocado  que 
recusou a via institucional e as determinações sócio históricas da profissão. 
 
No entanto, é com este referencial, precário em um primeiro momento, do ponto 
de  vista  teórico,  mas  posicionado  do  ponto  de  vista  sócio‐político,  que  a  profissão 
questiona  sua  prática  institucional  e  seus  objetivos  de  adaptação  social  ao  mesmo 
tempo  em  que  se  aproxima  dos  movimentos  sociais.  Inicia‐se  aqui  a  vertente 
comprometida  com  a  ruptura  (NETTO,1994,  p.  247  e  ss)  com  o  Serviço  Social 
tradicional.  
 
Estas  tendências,  que  configuram  para  a  profissão  linhas  diferenciadas  de 
fundamentação  teórico‐metodológica  tenderão  a  acompanhar  a  trajetória  do 
pensamento  e  da  ação  profissional  nos  anos  subsequentes  ao  movimento  de 
Reconceituação  e  se  conservarão  presentes  até  os  anos  recentes,  apesar  de  seus 
movimentos,  redefinições  e  da  emergência  de  novos  referenciais  nesta  transição  de 
milênio.  
 
 

9
Questões para reflexão:  
 
Como se constituem e se desenvolvem no Serviço Social brasileiro as primeiras 
interpretações sobre sua própria intervenção e sobre a realidade social? 
 
Quais as principais vertentes de análise definem‐se para a profissão no âmbito 
do Movimento de Reconceituação?  
 
2  O Serviço Social nos anos 80: as tendências  históricas e teórico metodológicas 
do debate profissional 
 
É, sobretudo com Iamamoto (1982) no início dos anos 80 que a teoria social de 
Marx  inicia  sua  efetiva  interlocução  com  a  profissão.    Como  matriz  teórico‐
metodológica esta teoria apreende o ser social a partir de mediações. Ou seja, parte da 
posição  de  que  a  natureza  relacional  do  ser  social  não  é  percebida  em  sua 
imediaticidade. "Isso porque, a estrutura de nossa sociedade, ao mesmo tempo em que 
põe  o  ser  social  como  ser  de  relações,  no  mesmo  instante  e  pelo  mesmo  processo, 
oculta a natureza dessas relações ao observador" (NETTO, 1995) Ou seja, as relações 
sociais são sempre mediatizadas por situações, instituições etc, que ao mesmo tempo 
revelam/ocultam  as  relações  sociais  imediatas.  Por  isso  nesta  matriz  o  ponto  de 
partida  é  aceitar  fatos,  dados  como  indicadores,  como  sinais,  mas  não  como 
fundamentos últimos do horizonte analítico. Trata‐se, portanto  de um conhecimento 
que não é manipulador e que apreende dialéticamente a realidade em seu movimento 
contraditório. Movimento no qual e através do qual se engendram, como totalidade, as 
relações sociais que configuram a sociedade capitalista. 
 
É  no  âmbito  da  adoção  do  marxismo  como  referência  analítica,  que  se  torna 
hegemônica no Serviço Social no país, a abordagem da profissão como componente da 

10
organização  da  sociedade  inserida  na  dinâmica  das  relações  sociais  participando  do 
processo de reprodução dessas relações (cf. IAMAMOTO, 1982). 
 
Este  referencial,  a  partir  dos  anos  80  e  avançando  nos  anos  90,  vai  imprimir 
direção  ao  pensamento  e  à  ação  do  Serviço  Social  no  país.  Vai  permear  as  ações 
voltadas  à  formação  de  assistentes  sociais  na  sociedade  brasileira  (o  currículo  de 
1982 e as atuais diretrizes curriculares); os eventos acadêmicos e aqueles resultantes 
da  experiência  associativa  dos  profissionais,  como  suas  Convenções,  Congressos, 
Encontros  e  Seminários;  está  presente  na  regulamentação  legal  do  exercício 
profissional e em seu Código de Ética. Sob sua influência ganha visibilidade um novo 
momento e uma nova qualidade no processo de recriação da profissão na busca de sua 
ruptura com seu histórico conservadorismo (cf. NETTO, 1996, p. 111) e no avanço da 
produção de conhecimentos, nos quais a tradição marxista aparece hegemonicamente 
como uma  das referências básicas. Nesta tradição o Serviço Social vai apropriar‐se a 
partir  dos  anos  80  do  pensamento  de  Antonio  Gramsci  e  particularmente  de  suas 
abordagens acerca do Estado, da sociedade civil, do mundo dos valores, da ideologia, 
da  hegemonia,  da  subjetividade  e  da  cultura  das  classes  subalternas.  Vai  chegar  a 
Agnes Heller e à sua problematização do cotidiano, à Georg Lukács e à sua ontologia 
do  ser  social  fundada  no  trabalho,  à    E.P.  Thompson  e  à  sua  concepção    acerca  das 
"experiências  humanas",  à  Eric  Hobsbawm  um  dos    mais  importantes  historiadores 
marxistas  da  contemporaneidade  e  a  tantos  outros  cujos  pensamentos  começam  a 
permear  nossas  produções  teóricas,    nossas  reflexões  e  posicionamentos 
ideopolíticos. 
 
Obviamente,  este  processo  de  construção  da  hegemonia  de  novos  referenciais 
teórico‐metodológicos e interventivos, a partir da tradição marxista, para a profissão 
ocorre  em  um  amplo  debate  em  diferentes  fóruns  de  natureza  acadêmica  e/ou 
organizativa, além de permear a produção intelectual da área.  Trata‐se de um debate 
plural,  que  implica  na  convivência  e  no  diálogo  de  diferentes  tendências,  mas  que 

11
supõe  uma  direção  hegemonica.  A  questão  do  pluralismo,  sem  dúvida  uma  das 
questões  do  tempo  presente,  desde  aos  anos  80  vem‐se  constituindo  objeto  de 
polêmicas e reflexões do Serviço Social. Temática complexa que constitui como afirma 
Coutinho (1991, p. 5 ‐15) um fenômeno do mundo moderno e da visão individualista 
do  homem.  É  o  autor  em  questão  que  problematiza  a  proposta  de  hegemonia  com 
pluralismo,  no  necessário  diálogo  e  no  debate  de  idéias,  apontando  os  riscos  de 
posicionamentos  ecléticos  (que  conciliam  o  inconciliável  ao  apoiarem‐se  em 
pensamentos divergentes). 
 
Assim, em diferentes espaços, o conjunto de tendências teórico‐metodológicas e 
posições  ideopolíticas  se  confrontam,  sendo  inegável  a  centralidade  assumida  pela 
tradição marxista nesse processo. 
 
Este  debate  se  expressa  na  significativa  produção  teórica  do  Serviço  Social 
brasileiro, que vem gerando uma bibliografia própria, e que tem na criação e expansão 
da pós‐ graduação, com seus cursos de mestrado e doutorado, iniciada na década de 
70, um elemento impulsionador. 
 
É  importante  lembrar  que  a  pós‐graduação  configura‐se,  por  definição,  como 
espaço privilegiado de interlocução e diálogo entre as áreas do saber e entre diversos 
paradigmas  teórico‐metodológicos.  Neste  espaço  o  Serviço  Social  brasileiro  vem 
dialogando  e  se  apropriando  do  debate  intelectual  contemporâneo  no  âmbito  das 
ciências sociais do país e do exterior. Também neste espaço, o Serviço Social brasileiro 
desenvolveu‐se  na  pesquisa  acerca  da  natureza  de  sua  intervenção,  de  seus 
procedimentos,  de  sua  formação,  de  sua  história  e,  sobretudo  acerca  da  realidade 
social, política, econômica e cultural onde se insere como profissão na divisão social e 
técnica  do  trabalho.  Avançou  na  compreensão  do  Estado  capitalista,  das  políticas 
sociais, dos movimentos sociais, do poder local, dos direitos sociais, da cidadania, da 
democracia,  do  processo  de  trabalho,  da  realidade  institucional  e  de  outros  tantos 

12
temas. Enfrentou o desafio de repensar a assistência social colocando‐a como objeto 
de  suas  investigações.  Obteve  o  respeito  de  seus  pares  no  âmbito  interdisciplinar  e 
alcançou visibilidade na interlocução com as ciências sociais, apesar das dificuldades 
decorrentes da falta de experiência em pesquisa, do fato de defrontar com restrições 
por  se  constituir  em  disciplina  interventiva  (de  "aplicação")  e  das  dificuldades  na 
apropriação das teorias sociais. Nesta década o serviço Social ganha espaço no CNPq 
como área de pesquisa. 
  
Cabe  também  assinalar  que  nos  anos  80  começam  a  se  colocar  para  o  Serviço 
Social brasileiro demandas, em nível de pós‐graduação, de instituições portuguesas, e 
latino  americanas  (Argentina,  Uruguai,  Chile),  o  que  vem  permitindo  ampliar  a 
influência do pensamento profissional brasileiro nestes países.  
 
Também no âmbito da organização e representação profissional o quadro que se 
observa  no  Serviço  Social  brasileiro  é  de  maturação  (NETTO,  1996,  p.  108  ‐111). 
Maturação que expressa na passagem dos anos 80 para os anos 90 rupturas com o seu 
tradicional  conservadorismo,  embora  como  bem  lembre  o  autor  “essa  ruptura  não 
signifique  que  o  conservadorismo  (e  com  ele,  o  reacionarismo)  foi  superado  no 
interior  da  categoria  profissional"  (p.  111).  Pois,  a  herança  conservadora  e 
antimoderna,  constitutiva  da  gênese  da  profissão  atualiza‐se  e  permanece  presente 
nos  tempos  de  hoje.  Essa  maturidade  profissional  que  avança  no  início  do  novo 
milênio,  se  expressa  pela  democratização  da  convivência  de  diferentes 
posicionamentos  teórico‐metodológicos  e  ideopolíticos  desde  o  final  da  década  de 
1980.  Maturação  que  ganhou  visibilidade  na  sociedade  brasileira,  entre  outros 
aspectos,  pela  intervenção  dos  assistentes  sociais,  através  de  seus  organismos 
representativos,  nos  processos  de  elaboração  e  implementação  da  Lei  Orgânica  da 
Assistência  Social  ‐  LOAS  (dezembro  de  1993).  É  também  no  âmbito  da 
implementação  da  LOAS,e  de  outras  políticas  sociais  públicas,  com  os  processos 

13
descentralizadores que se instituem no país, no âmbito dessas políticas, que observa‐
se a diversificação das demandas ao profissional de serviço social.  
 
É  nesse  contexto  histórico,  pós  Constituição  de  1988  que  os  profissionais  de 
serviço  social,  iniciam  o  processo  de  ultrapassagem  da  condição  de  executores  de 
políticas sociais, para assumir posições de planejamento e gestão dessas políticas. 
 
A  conjuntura  econômica  é  dramática,  dominada  pela  distância  entre  minorias 
abastadas  e  massas  miseráveis.    Não  devemos  esquecer  que  nos  anos  80  (a  “década 
perdida” do  ponto  de vista econômico para a  CEPAL) a pobreza vai se converter em 
tema  central  na  agenda  social,  quer  por  sua  crescente  visibilidade,  pois  a  década 
deixou um aumento considerável do número absoluto de pobres, quer pelas pressões 
de democratização que caracterizaram a transição. A situação de endividamento (que 
cresce  61%  nos  anos  80),  a  presença  dos  organismos  de  Washington  (FMI,  BANCO 
MUNDIAL),  o  consenso  de  Washington,  as  reformas  neoliberais  e  a  redução  da 
autonomia  nacional,  a  adoção  de  medidas  econômicas  e  o  ajuste  fiscal  vão  se 
expressar  no  crescimento  dos  índices  de  pobreza  e  indigência.    É  sempre  oportuno 
lembrar  que,  nos  anos  80  e  90  a  somatória  de  extorsões  que  configurou  um  novo 
perfil para a questão social brasileira, particularmente pela via da vulnerabilização do 
trabalho, conviveu com a erosão do sistema público de proteção social, caracterizada 
por  uma  perspectiva  de  retração  dos  investimentos  públicos  no  campo  social,  seu 
reordenamento  e  pela  crescente  subordinação  das  políticas  sociais  às  políticas  de 
ajuste  da  economia,  com  suas  restrições  aos  gastos  públicos  e  sua  perspectiva 
privatizadora  (cf.  YAZBEK,  2004).    É  nesse  contexto,  e  na  “contra  mão”  das 
transformações que ocorrem na ordem econômica internacional mundializada que o 
Brasil vai instituir constitucionalmente em 1988, seu sistema de Seguridade Social. 
 
 
 

14
Questão para reflexão:  
 
Quais as tendências mais relevantes do Serviço Social nos anos 80 do ponto de 
vista da produção de conhecimentos e do exercício profissional? 
 
3  O Serviço Social nos anos 90: as tendências históricas e teórico­metodológicas 
do debate profissional  
 
Inicialmente,  não  podemos  esquecer  que,  nos  marcos  da  reestruturação  dos 
mecanismos  de  acumulação  do  capitalismo  globalizado,  os  anos  80  e  90  foram  anos 
adversos para as políticas sociais e se constituíram em terreno particularmente fértil 
para o avanço da regressão neoliberal que erodiu as bases dos sistemas de proteção 
social  e  redirecionou  as  intervenções  do  Estado  em  relação  à  questão  social.  Nestes 
anos, em que as políticas sociais vêm sendo objeto de um processo de reordenamento, 
subordinado às políticas de estabilização da economia, em que a opção neoliberal na 
área  social  passa  pelo  apelo  à  filantropia  e  à  solidariedade  da  sociedade  civil  e  por 
programas seletivos e focalizados de combate à pobreza no âmbito do Estado (apesar 
da Constituição de 1988), novas questões se colocam ao Serviço Social, quer do ponto 
de  vista  de  sua  intervenção,  quer  do  ponto  de  vista  da  construção  de  seu  corpo  de 
conhecimentos. 
 
Assim, a profissão enfrenta o desafio de decifrar algumas lógicas do capitalismo 
contemporâneo  particularmente  em  relação  às  mudanças  no  mundo  do  trabalho  e 
sobre  os  processos  desestruturadores  dos  sistemas  de  proteção  social  e  da  política 
social  em  geral.  Lógicas  que  reiteram  a  desigualdade  e  constroem  formas 
despolitizadas  de  abordagem  da  questão  social,  fora  do  mundo  público  e  dos  fóruns 
democráticos  de  representação  e  negociação  dos  interesses  em  jogo  nas  relações 
Estado / Sociedade.  
 

15
Efetivamente,  a  opção  neoliberal  por  programas  seletivos  e  focalizados  de 
combate  à  pobreza  e  o  avanço  do  ideário  da  "sociedade  solidária"  que  implica  no 
deslocamento  para  sociedade  das tarefas  de enfrentar  a  pobreza  e a  exclusão social, 
começa  a  parametrar  diferentes  modalidades  de  intervenção  no  campo  social  na 
sociedade  capitalista  contemporânea  Exemplos  desta  opção  podem  ser  observados 
em diversos países do Continente latino‐americano como no Chile e na Argentina. 
 
Inserido  neste  processo  contraditório  o  Serviço  Social  da  década  de  90,  se  vê 
confrontado  com  este  conjunto  de  transformações  societárias  no  qual  é  desafiado  a 
compreender e intervir nas novas configurações e manifestações da "questão social", 
que  expressam  a  precarização  do  trabalho  e  a  penalização  dos  trabalhadores  na 
sociedade capitalista contemporânea. 
 
Trata‐se  de  um  contexto  em  que  são  apontadas  alternativas  privatistas  e 
refilantropizadas  para  questões  relacionadas  à  pobreza  e  à  exclusão  social.  Cresce  o 
denominado terceiro setor, amplo conjunto de organizações e iniciativas privadas, não 
lucrativas, sem clara definição, criadas e mantidas com o apoio do voluntariado e que 
desenvolvem  suas  ações  no  campo  social,  no  âmbito  de  um  vastíssimo  conjunto  de 
questões, em espaços de desestruturação (não de eliminação) das políticas sociais, e 
de  implementação  de  novas  estratégias  programáticas  como,  por  exemplo,  os 
programas de Transferência de Renda, em suas diferentes modalidades.  
 
Nessa conjuntura, emergem processos e dinâmicas que trazem para a profissão, 
novas  temáticas,  novos,  e  os  de  sempre,  sujeitos  sociais  e  questões  como:  o 
desemprego, o trabalho precário, os sem terra, o trabalho infantil, a moradia nas ruas 
ou  em  condições  de  insalubridade,  a  violência  doméstica,  as  discriminações  por 
questões de gênero e etnia, as drogas, a expansão da AIDS, as crianças e adolescentes 
de  rua,  os  doentes  mentais,  os  indivíduos  com  deficiências,  o  envelhecimento  sem 

16
recursos,  e  outras  tantas  questões  e  temáticas  relacionadas  à  pobreza,  à 
subalternidade e à exclusão com suas múltiplas faces. 
 
Ao  longo  da  década  a  profissão  se  coloca  diante  destas  e  de  outras  questões. 
Destacam‐se  como  alguns  dos  eixos  articuladores  do  debate  profissional  e  que  tem 
rebatimentos em sua ação e produção: 
  
• a  Seguridade  Social,  em  construção  no  país, após  a  Carta  Constitucional  de 
1988, que afirma o direito dos cidadãos brasileiros a um conjunto de direitos 
no  âmbito  das  políticas  sociais  (Saúde,  Previdência  e  Assistência  Social).  A 
noção de Seguridade supõe que os cidadãos tenham acesso a um conjunto de 
certezas e seguranças que cubram, reduzam ou previnam situações de risco e 
de  vulnerabilidades  sociais.  Essa  cobertura  é  social  e  não  depende  do  custeio 
individual direto. A inserção do Serviço Social brasileiro nos debates sobre essa 
cobertura social marcou a década; 
  
• a  Assistência  Social,  qualificada  como  política  pública,  de  Proteção  Social, 
constitutiva da Seguridade Social, constituiu‐se em tema de estudos, pesquisas 
e  campo  de  interlocução  do  Serviço  Social  com  amplos  movimentos  da 
sociedade  civil  que  envolveram  fóruns  políticos,  entidades  assistenciais  e 
representativas dos usuários de serviços assistenciais; 
 
• a  questão  da  municipalização  e  da  descentralização  das  políticas  sociais 
públicas  e  outros  aspectos  daí  decorrentes,  seja  na  ótica  da  racionalização  de 
recursos,  humanos  e  sociais  com  vistas  a  seus  efetivos  resultados,  tanto  na 
perspectiva  de  aproximar  a  gestão  destas  políticas  dos  cidadãos.  Notável  é 
desde os anos 1990, em todo o território nacional a presença e o protagonismo 
do assistente social em fóruns e conselhos vinculados às políticas de saúde, de 

17
assistência  social,  da  criança  e  do  adolescente,  entre  outras,  participando 
ativamente na defesa de direitos e no controle social das políticas públicas. 
 
É  importante  observar  que  esta  presença  tem  início  em  uma  conjuntura 
contraditória  e  adversa,  na  qual  os  impactos  devastadores  sobre  o  processo  de 
reprodução  social  da  vida  se  fazem  notar  de  múltiplas  formas,  mas,  sobretudo  pela 
precarização do trabalho e pela desmontagem de direitos. 
 
É  fundamental  assinalar  que  as  transformações  societárias  que  caracterizam 
esta  década,  vão  encontrar  um  Serviço  Social  consolidado  e  maduro  na  sociedade 
brasileira,  uma  profissão  com  avanços  e  acúmulos,  que,  ao  longo  desta  década 
construiu, com ativa participação da categoria profissional, através de suas entidades 
representativas um projeto ético político profissional para o Serviço Social brasileiro, 
que  integra  valores,  escolhas  teóricas  e  interventivas,  ideológicas,  políticas,  éticas, 
normatizações acerca de direitos e deveres, recursos político‐organizativos, processos 
de  debate,  investigações  e,  sobretudo  interlocução  crítica  com  o  movimento  da 
sociedade na qual a profissão é parte e expressão (cf. NETTO, 1999). 
 
A  direção  social  que  orienta  este  projeto  de  profissão  tem  como  referência  a 
relação  orgânica  com  o  projeto  das  classes  subalternas,  reafirmado  pelo  Código  de 
Ética  de  1993,  pelas  Diretrizes  Curriculares  de  1996  e  pela  Legislação  que 
regulamenta o exercício profissional (Lei n. 8662 de 07/06/93). 
 
Cabe ainda assinalar outra questão que vem permeou o debate dos assistentes 
sociais  nesta  conjuntura:  trata‐se  do  movimento  de  precarização  e  de  mudanças  no 
mercado  de  trabalho  dos  profissionais  brasileiros,  localizado  no  quadro  mais  amplo 
de  desregulamentação  dos  mercados  de  trabalho  de  modo  geral,  quadro  em  que  se 
alteram as profissões, redefinem‐se suas demandas, monopólios de competência e as 
próprias  relações  de  trabalho.  Aqui  situamos  processos  como  a  terceirização,  os 

18
contratos  parciais,  temporários,  a  redução  de  postos  de  trabalho,  a  emergência  de 
novos espaços de trabalho como o Terceiro Setor, a exigência de novos conhecimentos 
técnico‐operativos,  ao  lado  do  declínio  da  ética  do  trabalho  e  do  restabelecimento 
exacerbado  dos  valores  da  competitividade  e  do  individualismo.  Não  podemos 
esquecer  que  a  reestruturação  dos  mercados  de  trabalho  no  capitalismo 
contemporâneo vem se fazendo via rupturas, apartheid e degradação humana. 
 
Do ponto de vista das referências teórico‐metodológicas a questão primeira que 
se  coloca  para  a  profissão  já  no  início  da  década  é  o  confronto  com  a  denominada 
"crise" dos modelos analíticos, explicativos nas ciências sociais, que buscam captar o 
que  está  acontecendo  no  fim  de  século  e  as  grandes  transformações  que  alcançam 
múltiplos  aspectos  da  vida  social.  No  mundo  do  conhecimento  começam  as 
interferências,  não  sem  conflitos,  do  denominado  pensamento  pós  moderno, 
"notadamente em sua versão neoconservadora" (NETTO, 1996, p. 114) que questiona 
e nivela os paradigmas marxista e positivista. Estes questionamentos se voltam contra 
os diferentes "modelos" explicativos por suas macroabordagens apontando que nestas 
macronarrativas  são  deixados  de  lado  valores  e  sentimentos  fundamentais  dos 
homens,  seu  imaginário,  suas  crenças,  afeições,  a  beleza,  os  saberes  do  cotidiano,  os 
elementos  étnicos,  religiosos,  culturais,  os  fragmentos  da  vida  enfim.  A  abordagem 
pós‐moderna dirige sua crítica à razão afirmando‐a como instrumento de repressão e 
padronização,  propõe  a  superação  das  utopias,  denuncia  a  administração  e  o 
disciplinamento  da  vida,  recusa  a  abrangência  das  teorias  sociais  com  suas  análises 
totalizadoras  e  ontológicas  sustentadas  pela  razão  e  reitera  a  importância  do 
fragmento, do intuitivo, do efêmero e do microssocial (em si mesmos) restaurando o 
pensamento conservador e antimoderno. Seus questionamentos são também dirigidos 
à  ciência  que  esteve  mais  a  serviço  da  dominação  do  que  da  felicidade  dos  homens. 
Assim ao afirmar a rejeição à ciência o pensamento pós‐moderno rejeita as categorias 
da razão (da Modernidade) que transformaram os modos de pensar da sociedade, mas 
não emanciparam o homem, não o fizeram mais feliz e não resolveram problemas de 

19
sociedades  que  se  complexificam  e  se  desagregam.    O  posicionamento  pós‐moderno 
busca  resgatar  valores  negados  pela  modernidade  e  cria  um  universo  descentrado, 
fragmentado  relativo  e  fugaz.  Para  Harvey  (1992)  as  características  da  pós‐
modernidade  são  produzidas  historicamente  e  se  relacionam  com  a  emergência  de 
modos mais flexíveis de acumulação do capital.  
 
Observe‐se que a complexidade da questão não está na abordagem de questões 
micro sociais, locais ou que envolvam dimensões dos valores, afetos e da subjetividade 
humana  (questões  de  necessário  enfrentamento),  mas  está  na  recusa  da  Razão  e  na 
descontextualização,  na  ausência  de  referentes  históricos,  estruturais  no  não 
reconhecimento de que os sujeitos históricos encarnam processos sociais, expressam 
visões de mundo e tem suas identidades sociais construídas na tessitura das relações 
sociais  mais  amplas.  Relações  que  se  explicam  em  teorias  sociais  abrangentes,  que 
configuram visões de mundo onde o particular ganha sentido referido ao genérico.   
 
Cabe  assinalar  ainda  que,  todo  este  debate  que  é  apresentado  no  âmbito  das 
ciências sociais contemporâneas como crise de paradigmas, em termos da capacidade 
explicativa  das  teorias  recoloca  a  polêmica  Razão/Intuição  que  tem  repercussões 
significativas  na  pesquisa,  na  construção  de  explicações  sobre  a  realidade  e  na 
definição de caminhos para a ação.   
 
Especificamente no Serviço Social estas questões também se colocam, apesar da 
vitalidade  do  marxismo  como  paradigma  de  análise  e  compreensão  da  realidade  e 
apesar  da  manutenção  da  hegemonia  do  projeto  profissional  caracterizado  pela 
ruptura  com  o  conservadorismo  que  caracterizou  a  trajetória  do  Serviço  Social  no 
país.  Colocam‐se  nos  desdobramentos  e  nas  polêmicas  em  torno  dos  paradigmas 
clássicos e na busca de construção de novos paradigmas; se colocam pela apropriação 
do  pensamento  de  autores  contemporâneos  de  diversas  tendências  teórico‐
metodológicas  como  Anthony  Giddens,  Hannah  Arendt,  Pierre  Bourdieu,  Michel 

20
Foucault,  Juergen  Habermas,  Edgard  Morin,  Boaventura  Souza  Santos,  Eric 
Hobsbawm,  E.P.  Thompson  e  tantos  outros.    Se  colocam  também  nas  formas  de 
abordagem  das  temáticas  relevantes  para  a  profissão  nesta  transição  de  milênio,  na 
busca de interligação entre sujeito e estrutura e entre concepções  macro  e  micro  da 
vida social, na retomada e valorização das questões concernentes à cultura das classes 
subalternas e em outras clivagens e questões relativas aos dominados tanto no plano 
das relações culturais como nas lutas pelo empowerment e contra a discriminação pelo 
gênero, pela etnia, pela idade. (FALLEIROS, 1996, p. 12).  
 
No âmbito da produção inspirada na tradição marxista, estas questões aparecem 
com  o  recurso  à    pensadores  que  abordam  temáticas  da  cultura  das  classes 
subalternas, do sujeito e da experiência cotidiana da  classe  como Gramsci, Heller  e 
Thompson.  
 
Efetivamente,  os  desdobramentos  desta  "crise"  de  referenciais  analíticos, 
permeiam polêmica profissional dos dias atuais e se expressam pelos confrontos com 
o conservadorismo que atualiza‐se em tempos  pós modernos.  
 
Assim,  coloca‐se  como  desafio  à  profissão  ao  longo  de  toda  a  década  de  90,  e 
neste início de milênio a consolidação do projeto ético político, teórico metodológico e 
operativo que vem construindo particularmente sob a influência da tradição marxista, 
"mas  incorporando  valores  auridos  noutras  fontes  e  vertentes  e,  pois  sem  vincos 
estreitos  ou  sectários,  aquelas  matrizes  estão  diretamente  conectadas  ao  ideal  de 
socialidade  posto  pelo  programa  da  modernidade  ‐  neste  sentido,  tais  matrizes  não 
são 'marxistas' nem dizem respeito apenas aos marxistas, mas remetem a um largo rol 
de conquistas civilizatórias e, do ponto de vista profissional, concretizam um avanço 
que é pertinente a todos os profissionais que, na luta contra o conservadorismo, não 
abrem mão daquilo que o velho Lukács chamava de 'herança cultural'." (NETTO, 1996, 
p. 117). 

21
Questão para reflexão:  
 
Quais as principais tendências do Serviço Social, nos anos 90, do ponto de vista 
da produção de conhecimentos e do exercício profissional? 
 
4  Concluindo: as polêmicas dos dias atuais 
   
No início do milênio o Serviço Social brasileiro enfrenta a difícil herança do final 
do  século  anterior,  com  seus  processos  de  globalização  em  andamento,  com  sua 
valorização  do  capital  financeiro,  suas  grandes  corporações  transnacionais,  seus 
mercados, suas mídias, suas estruturas mundiais de poder e as graves consequências 
desta  conjuntura  para  o  tecido  social  em  geral,  configurando  um  novo  perfil  para  a 
questão social; no qual destacamos a precarização, a insegurança e a vulnerabilidade 
do trabalho e das condições de vida dos trabalhadores que perdem suas proteções e 
enfrentam problemas como o desemprego, o crescimento do trabalho informal (hoje 
mais da metade da força de trabalho do país) e das formas de trabalho precarizado e 
sem proteção social.  
 
Trata‐se  de  um  contexto  que  interpela  a  profissão  sob  vários  aspectos:  das 
novas manifestações e expressões da questão social, aos processos de redefinição dos 
sistemas  de  proteção  social  e  da  política  social  em  geral,  que  emergem  nesse 
contexto 1 .  
 
Nesses anos, assim como na última década do século XX, tornaram‐se evidentes 
as inspirações neoliberais da política social brasileira, face às necessidades sociais da 

1  Para  alguns  autores:  trata‐se  de  um  contexto  de  mudanças  irreversíveis,  que  atingem,  em  todo  o 

mundo, o Estado de Bem Estar Social que supunha o pleno emprego e certamente enfrentamos o fim do 
consenso keynesiano, alterações demográficas e mundialização crescente da economia e outras graves 
questões  quanto  ao  financiamento  do  WS.  Temos  aí  a  expansão  dos  Programas  de  Transferência  de 
Renda e o Welfare Mix ou o Welfare Pluralism (Pluralismo de bem estar) que incorpora crescentemente 
a presença dos setores não governamentais e não mercantis da sociedade. 

22
população.  Uma  retomada  analítica  dessas  políticas  sociais  revela  sua  direção 
compensatória e seletiva, centrada em situações limites em termos de sobrevivência e 
seu direcionamento aos mais pobres dos pobres, incapazes de competir no mercado. 
Estas políticas focalizadas permaneceram e se expandiram no governo Lula, como é o 
caso dos programas de Transferência de Renda. 
 
  Efetivamente,  no  país,  apesar  dos  consideráveis  avanços  na  Proteção  Social, 
garantidos  na  Constituição  Federal  de  1988  e  expressos,  por  exemplo,  no  ECA,  na 
LOAS e no SUS, esses últimos anos não romperam com as características neoliberais 
que se expandiram desde os anos 90, face às necessidades sociais da população.  
 
No caso da Assistência Social merece destaque a Política Nacional de Assistência 
Social  –  PNAS  (2004)  que  propõe  uma  nova  arquitetura  institucional  e  política  para 
essa política com a criação de um Sistema Único de Assistência Social ‐ SUAS. O SUAS é 
constituído pelo conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios no âmbito da 
assistência social. É um modo de gestão compartilhada que divide responsabilidades 
para instalar, regular, manter e expandir ações de assistência social.   
 
Desde  então,  são  os  assistentes  sociais  que  estão  implementando  o  SUAS, 
enfrentando  inúmeros  desafios  entre  os  quais  destacamos  a  reafirmação  da 
Assistência  Social  como  política  de  Seguridade  Social,  a  consolidação  e  a 
democratização dos Conselhos e dos mecanismos de participação e controle social; a 
organização e apoio à representação dos usuários; a participação nos debates sobre o 
SUAS,  a  NOB,  os  CRAS  e  os  CREAS;  a  elaboração  de  diagnósticos  de  vulnerabilidade 
dos  municípios;  o  monitoramento  e  a  avaliação  da  política;  o  estabelecimento  de 
indicadores  e  padrões  de  qualidade  e  de  custeio  dos  serviços;  contribuindo  para  a 
construção de uma cultura  democrática, do direito e da cidadania.  
 

23
Outro desafio colocado aos assistentes sociais brasileiros neste início dos anos 
2000, refere‐se aos Programas de Transferência de Renda, sem dúvida uma das faces 
mais  importantes  da  Política  Social  brasileira,  conforme  dados  oficiais  (PNAD  2006) 
chegam  a  quem  precisam  chegar  (11milhões  de  famílias)  Destas,  91%  tem  como 
renda mensal per capita até 1 salário mínimo e 75% delas tem  menos de meio salário 
mensal de renda per capita. Essa PNAD também revela uma questão essencial: os PTR 
não retiram os beneficiários do trabalho (79.1% dos beneficiários trabalham). Ou seja 
o  Bolsa  Família  não  pretende  substituir  a  renda  do  trabalho  e  apesar  das  polêmicas 
que  cercam  o  Programa,  seu  impacto  sobre  as  condições  de  vida    das  famílias  mais 
pobres, sobretudo no Nordeste é incontestável. Ele significa basicamente mais comida 
na mesa dos miseráveis. 
  
É bom lembrar que se escapa às políticas sociais, às suas capacidades, desenhos 
e  objetivos  reverter  níveis  tão  elevados  de  desigualdade,  como  os  encontrados  no 
Brasil, essas políticas também respondem a necessidades e direitos concretos de seus 
usuários. 
 
E os assistentes sociais vêm, em muito, contribuindo, nas últimas décadas, para 
a construção de uma cultura do direito e da cidadania, resistindo ao conservadorismo 
e  considerando  as  políticas  sociais  como  possibilidades  concretas  de  construção  de 
direitos e iniciativas de “contra‐desmanche” nessa ordem social injusta e desigual. 
 
No  âmbito  da  pesquisa  e  da  produção  de  conhecimentos  o  Serviço  Social 
brasileiro chega a 2007 com uma maturidade expressa em seus 25 Programas de Pós‐
Graduação direcionados à formação de recursos humanos com capacidade para atuar 
criticamente na realidade social. 
 
Do ponto de vista dos referentes teórico metodológicos, permanecem as tensões 
e  ambigüidades  que  caracterizaram  o  Serviço  social  brasileiro  na  década  de  1990: 

24
apesar da ruptura com o histórico conservadorismo e da legitimidade alcançada pelo 
pensamento  marxista  ampliam‐se  as  interferências  de  outras  correntes  teórico 
metodológicas, particularmente no âmbito da influência do pensamento pós‐moderno 
e neoconservador e das teorias herdeiras da “perspectiva modernizadora” (Cf. NETTO, 
1996), caracterizadas por seu caráter sistêmico e tecnocrático. 
 
Há  pouco  mais  de  uma  década,  Netto  já  apontava  como  hipóteses  para  o 
encaminhamento dessa tensão uma dupla perspectiva: de um lado a consolidação e o 
aprofundamento  da  hegemonia  da  atual  direção  social  e  de  outro  a  possibilidade  de 
sua reversão ou mudança. Afirmava o autor "[...] num ordenamento social com regras 
democráticas,  uma  profissão  é  sempre  um  campo  de  lutas,  em  que  os  diferentes 
segmentos  da  categoria,  expressando  a  diferenciação  ideopolítica  existente  na 
sociedade,  procuram  elaborar  uma  direção  social  estratégica  para  a  sua  profissão" 
(NETTO, 1996, p. 116). 
 
Para  finalizar  é  necessário  assinalar  que  a  reafirmação  das  bases  teóricas  do 
projeto ético político, teórico metodológico e operativo, centrada na tradição marxista, 
não pode implicar na ausência de diálogo com outras matrizes de pensamento social, 
nem  significa  que  as  respostas  profissionais  aos  desafios  desse  novo  cenário  de 
transformações  possam  ou  devam  ser  homogêneas.  Embora  possam  e  devam  ser 
criativas e competentes. 
 
Questão para avaliação final: 
 
Desenvolva uma reflexão sobre o Serviço Social nos últimos 20 anos: principais 
tendências históricas e teórico metodológicas. 
 
 
 

25
Referências 
 
ALMEIDA,  Ana  Augusta.  A  metodologia  dialógica:  o  Serviço  Social  num  caminhar 
fenomenológico. In: Pesquisa em Serviço Social. ANPESS/CBCISS. Rio de Janeiro, 1990. 
 
COUTINHO,  Carlos  Nelson.  Pluralismo:  dimensões  teóricas  e  políticas.  In:  Cadernos 
ABESS n. 4. Ensino em Serviço Social: pluralismo e formação profissional. São Paulo, 
Cortez, maio 1991. 
 
FALEIROS,  Vicente  de  Paula.  Serviço  Social:  questões  presentes  para  o  futuro.  In: 
Serviço Social e Sociedade. N. 50. São Paulo, Cortez, abril,1996. 
 
HARVEEY, David. Condição Pós moderna. São Paulo, Loyola,1992. 
 
IAMAMOTO,  Marilda  V.;  CARVALHO,  Raul  de.    Relações  Sociais  e  Serviço  Social  no 
Brasil.  Esboço  de  uma  interpretação  histórico‐metodológica.  São  Paulo,  Cortez  Ed., 
CELATS (Lima‐Perú), 1982. 
 
IAMAMOTO,  Marilda  V.  Renovação  e  Conservadorismo  no  Serviço  Social.  Ensaios 
críticos. São Paulo, Cortez Ed., 1992.  
 
KAMEYAMA,  Nobuko.  A  trajetória  da  produção  de  conhecimentos em  Serviço  Social: 
avanços e tendências (1975 ‐1997). In: Cadernos ABESS n. 8. Diretrizes Curriculares e 
pesquisa em Serviço Social. São Paulo, Cortez, nov.1998. 
 
NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1994. 
 
_____. Transformações Societárias e Serviço Social ‐ notas para uma análise 
prospectiva  da  profissão  no  Brasil.  In:  Serviço  Social  e  Sociedade  n.  50.  São  Paulo, 
Cortez, abril, 1996. 
 
SILVA  e  SILVA,  M.  Ozanira  (coord.).  O  Serviço  Social  e  o  popular:  resgate  teórico 
metodológico do projeto profissional de ruptura. São paulo, Cortez, 1995. 
 
YAZBEK, Maria Carmelita (Org). Projeto de revisão curricular da Faculdade de serviço 
Social da PUC/SP. In: Serviço Social e Sociedade n. 14. São Paulo, Cortez, 1984. 
 
 
 
 
 

26
Glossário 
 
Tomismo ‐ referência ao pensamento filosófico de São Tomás de Aquino (1225) um 
teólogo  dominicano  que  escreveu  obra  filosófica  caracterizada  por  uma  perspectiva 
humanista e metafísica do ser que vai marcar o pensamento da Igreja Católica a partir 
do século XIII. Merece destaque na obra de S. Tomás a Suma Teológica. 
 
Neotomismo ‐ retomada do pensamento de São Tomás  a partir do papa Leão XII em 
1879  na  Doutrina  Social  da  Igreja  e  de  pensadores  franco  belgas  como  Jacques 
Maritain  na  França  e  do  Cardeal  Mercier  na  Bélgica  .Buscavam  nesta  filosofia 
diretrizes para a abordagem da questão social.   
 
Método  de  B.H.  ‐  Designação  dada  ao  método  elaborado  pela  equipe  da  escola  de 
Serviço Social de Belo Horizonte no período de 72 a 75 e que propunha a constituição 
de  uma  metodologia  alternativa  às  perspectivas  das  abordagens  funcionalistas  da 
realidade. Buscava articular teoria e ação em sete momentos. 

27
Antônio José Lopes Alves
Verinotio – revista on-line Espaço de interlocução em ciências humanas
de filosofia e ciências humanas n. 20, Ano X, out./2015 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social


Ludson Rocha Martins*

Resumo:
O texto aborda os paradigmas mais relevantes da sociologia das profissões, bem como o pensamento dos maiores
nomes do serviço social brasileiro, apontando as principais diferenças entre tais registros. São assinalados os
elementos inovadores das ideias de José Paulo Netto, Marilda Iamamoto e Vicente Faleiros na discussão do trabalho
do assistente social, defendendo-se a ideia de que de tais autores podem-se extrair algumas bases para o tratamento
universal do fenômeno das profissões.

Palavras-chave:
Teoria das profissões; legitimidade; serviço social.

The theory of professions and the analysis of the fundamentals of


social work

Abstract:
The text addresses the most important standards of Sociology of Professions, and also deals with the way of
thinking of the biggest names of Brazilian Social Service, showing out the main differences between their thoughts.
The text points out all the innovative ideas of José Paulo Netto, Marilda Iamamoto and Vicente Faleiros about
the discussion of the social worker role, claiming that by their works, we can find some bases for the universal
treatment of the phenomenon of professions.

Key words:
Theory of professions; legitimacy; social work.

* Assistente social da Prefeitura Municipal de Nova Lima – MG, mestre em serviço social pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF).

Verinotio revista on-line – n. 11, Ano VI, abr./2010, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

Introdução
Há um aspecto, no mínimo, curioso no desenvolvimento do debate brasileiro sobre os fundamentos do
serviço social. Desde o início dos anos 1980 este campo começou a produzir seus frutos mais representativos
e maduros, diversificando suas polêmicas e ponderações, processo que se consolidou a partir dos trabalhos de
Vicente Faleiros, Marilda Iamamoto e José Paulo Netto. Tal movimento, todavia, processou-se com pouca menção
e referência a outra área, mais ampla e antiga dentro das ciências sociais, qual seja, a análise acerca da natureza e
evolução das profissões especializadas enquanto fenômenos da divisão do trabalho moderna.
Essa questão reúne elementos que devemos notar e salientar: a complexificação dos estudos sobre
os fundamentos da profissão de assistente social no Brasil alcançou seu estágio mais elevado sem a utilização
sistemática de análises que, historicamente, sempre haviam sido mais robustas e profundas do que suas produções,
envolvendo, muitas vezes, grandes nomes da teoria social moderna (como Durkheim, Parsons, Merton, Freidson,
Dubar e outros). Os trabalhos destes, por tratarem do profissionalismo em sua “universalidade”, poderiam ter
auxiliado, decisivamente, na elucidação desta ocupação particular que é o serviço social.
Tal alheamento do serviço social brasileiro contemporâneo (representado pelos seus nomes mais
significativos) não consiste numa mera suposição: é, antes de tudo, um fato de difícil contestação. Iamamoto e
Carvalho já o manifestam em seu texto mais conhecido (Relações sociais e serviço social no Brasil), ao asseverar que sua
linha de análise “não encontra suporte na bibliografia especializada [tradicional] do serviço social e da sociologia das
profissões” (1983, p. 18 - destaques nossos); Netto, por sua vez, não cita (salvo engano) a teoria das profissões em
sua obra. Já uma teórica como Ana Elizabete Mota (2014, p. 26), por exemplo, menciona os estudos sociológicos
sobre as profissões (numa pequena nota), tratando-os, não por acaso, como “outro referencial”. O único nome de
peso que realmente absorve alguns contributos desse campo é Faleiros (2007), principalmente em Saber profissional
e poder institucional; entretanto, o faz por meio de menções sempre curtas, pouco aprofundadas e executadas, na
maior parte das vezes, na forma de notas, não caracterizando, portanto, uma incorporação muito relevante em seu
pensamento (MARTINS, 2014).
A questão, em verdade, é que a relação do serviço social brasileiro – sob a hegemonia da corrente profissional
denominada por José Paulo Netto (2011a) de Intenção de Ruptura – com aquilo que se convencionou chamar de
sociologia das profissões não pode ser qualificada como um simples afastamento. O que clarifica esta condição é
a existência de uma distinção teórico-metodológica que atinge o próprio âmago da determinação do fenômeno
profissional, posta no serviço social de modo diverso das ciências sociais.
Essa separação, mais ou menos rígida, entre os campos guarda raiz na orientação ideoteórica que tem
prevalecido no serviço social desde os anos 1980: o marxismo. O padrão de cientificidade de Marx, com seu
foco nas coisas da efetividade, inclinação ontológica e debate sobre o nascimento, evolução e morte da sociedade
burguesa, produz entre os assistentes sociais outro modo de tematizar as profissões, o qual, vale ressaltar, mantém
diferenças fundamentais com o legado tradicional dos estudos sociológicos.
É importante assinalar brevemente quais são essas distinções. Nas ciências sociais, não obstante as suas várias
nuanças (neoweberianismo, funcionalismo, interacionismo etc.), os grupos profissionais são vistos como estruturas
de poder organizadas que se apossam de um lugar no mercado de trabalho, permitindo que seus agentes gozem
de direitos e privilégios especiais frente a outros trabalhadores e ocupações. Ao menos duas assertivas surgem
a partir dessas ideias. Primeira: a especificidade interventiva; melhor dizendo, o modo de trabalho profissional
é visto como a marca principal que caracteriza uma profissão, formando a sua área de atuação. Naturalmente,
considera-se o campo de trabalho não apenas um espaço de ação, mas uma zona delimitada para produção de um
saber único (e científico) das profissões, pressuposto indispensável para consolidar uma especialização do trabalho
de tipo profissional (DUBAR, 2005; HUGHES, 1958). Segunda: a aceitação coletiva das profissões se reportaria,
fatidicamente, ao problema da legitimidade, ou seja, uma ocupação se tornaria profissão não tanto pela eficácia dos
seus integrantes no cumprimento do seu mandato social, mas, fundamentalmente, pelo seu prestígio – conferido
pelo valor simbólico do seu objeto de conhecimento e intervenção.
Em vista disso, parece-nos que as elaborações de Netto, Iamamoto e Faleiros apontam para outra direção:
neles, a exposição do estatuto de uma ocupação especializada focaliza os vetores e processos exógenos que fundam
as procuras a que tais estruturas atendem. Em vez da sanção administrativa-legal de formas de trabalho que se
afirmam coletivamente, ganham maior foco as grandes forças sociais que, pela sua dinâmica e estruturação, criam
as condições que abrem caminho para o nascimento e consolidação dos efetivos profissionais.
Muito se fala sobre a guinada provocada por essa forma de análise frente às concepções clássicas que
abordam o serviço social; todavia, ainda não se atentou para as diferenças desse pensamento em relação às ciências
sociais. Assim, tal questão permanece inavaliada e suas raízes continuam sem problematização, ocultando um ponto
importante para o debate e para o aprofundamento teórico. Por outros termos: a análise de inspiração marxista
no serviço social já foi avaliada a partir de sua vinculação a uma teoria social (ao contrário de uma ciência social),
que ultrapassa no terreno do saber a própria categoria profissional e o seu conservadorismo (NETTO, 2007). Tal

65
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social

operação abre caminho para consolidar essa ruptura como um fato ligado às ciências sociais dentro mesmo da
investigação do fenômeno das profissões, explicitando as diferenças que a teorização dos assistentes sociais com
elas estabelece a partir do seu vínculo com o padrão de cientificidade inaugurado por Marx.
Contribuir para aprofundar essa determinação é a tarefa que o presente texto se propõe. Para tratar desta
temática desenvolveremos, embora não exaustivamente, algumas reflexões sobre a moderna teoria das profissões.
Em seguida abordaremos o pensamento dos três maiores representantes do debate brasileiro sobre o estatuto do
serviço social. Ao final, enfatizaremos a especificidade das análises de tais nomes, bem como as possibilidades que
seu pensamento oferece para a investigação das profissões.

1 – A teoria das profissões e a questão da legitimidade


As profissões – mecanismos ligados à produção ou prestação de serviços que demandam um agente
especializado – são um objeto problemático, que apresenta propriedades pouco conexas, atuando como uma
estrutura de pertencimento e solidariedade, ao mesmo tempo em que se colocam como um dispositivo de disputa
de prestígio e poder. Suas determinidades foram motivo de longa controvérsia, exibindo a dificuldade de se conferir
um foco à sua apreensão. Não por acaso, os esforços mais contundentes daqueles que as analisam se referem a sua
caracterização como tema (ALMEIDA, 2014).
A tentativa de elucidar o problema, via de regra, levou os teóricos do assunto a reconhecer que as estruturas
de profissionalização vão muito além das fronteiras da economia (DUBAR, 2005; FREIDSON, 1996; 1998), visto
que este tipo de atividade conseguiria moldar a subjetividade dos sujeitos, congregar interesses variados, além
de se constituir como peça-chave na conformação dos sistemas de estratificação social. Surge disso o problema
conceitual e terminológico de circunscrição do campo – profissão não é toda prática laborativa (estas seriam
genericamente nomeadas por “ocupações”), mas um tipo especial de atividade com um status diferenciado. Precisar
esta condição ocupacional sui generis equivaleria a desvendar o escopo do profissionalismo enquanto elemento da
realidade social.
A primeira análise de peso do problema ocorreu pelas mãos de Durkheim (1999), durante sua abordagem
da corporação. O sociólogo francês se esforçava para apontar soluções para os problemas que emergiam com a
consolidação das sociedades industriais no ocidente europeu. Preocupava-o não só a ampliação do pauperismo
das massas e o acirramento dos conflitos entre os grupos de poder, mas, principalmente, a ausência de padrões
coletivos de conduta, expressos na fragilidade das referências morais que substituíram aquelas que existiam no
feudalismo. As agremiações profissionais surgiram, para ele, como uma das armas contra a anomia generalizada
que assolava a vida social. A indispensabilidade moderna dessa forma de organização ocorre:
não por causa dos serviços econômicos que ela poderia prestar, mas da influência moral que poderia ter. (...)
[Sua força deriva de] um poder moral capaz de conter os egoísmos individuais, de manter no coração dos tra-
balhadores um sentimento mais vivo de sua solidariedade comum, de impedir que a lei do mais forte se aplique
de maneira tão brutal nas relações industriais e comerciais (DURKHEIM, 1999, p. XVI).
A corporação não se justificava por si, sua eficácia prática era limitada e poderia se degenerar na proteção cega
dos seus membros. Enquanto instituição ela tinha a missão de erigir uma normatividade cotidiana, estabelecendo
um espaço de produção de valores e sentidos, tal como a família.
De acordo com ele, as profissões surgem como estruturas de mediação entre o mercado e o estado. Embora
a mais importante função da corporação não seja produtiva, ela deve manter sintonia com a economia: se a base
de organização do mercado não é mais o município, como no fim do medievo, mas o estado-nação, ela precisa
abarcar todo o território nacional, estruturando, junto ao setor público, as relações entre os agentes econômicos.
O fenômeno profissional é um dos mecanismos de legitimação da própria ordem, legitimação pela via
da inculcação de valores e códigos de conduta, efeito natural da imposição da sociedade sobre o indivíduo. Para
Durkheim (1999), em última instância, as profissões se legitimam porque existem para estabilizar, apresentar
referências sociais aos sujeitos. Daí o clamor da corporação pelo apoio jurídico do estado (que deve ratificar
sua autonomia relativa), ao mesmo tempo em que ergue para si um direito específico, aplicável apenas aos seus
integrantes.
Claro é que essa imagem superdimensionada da corporação só pôde surgir quando se ignoraram as forças que
sustentam as sociedades ocidentais, nelas inscrevendo processos econômico-políticos cujas fraturas não podem ser
completamente controladas por arranjos institucionais coesionadores submetidos à sua própria lógica – moldada
por termos antagônicos, só temporariamente conciliáveis. O que Durkheim (1999) apresentava, na verdade, era a
utopia conservadora, que advogava a contenção das desigualdades excessivas pelo estado, instituições civis e moral
fortes, prontas para garantir a estabilidade social, com cada agente ocupando o seu lugar adequado na comunidade
societária. Pensava-se que a evolução da vida humana se faz inexoravelmente com a perpetuação de diferenças de
poder, naturais e eternas, porquanto eficientes para o desenvolvimento mesmo, gerando as motivações adequadas

Verinotio revista on-line – n. 20. Ano X, out./2015, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

ao progresso, que alcançou sua forma máxima pelas mãos do capitalismo. A partir da insuperabilidade das estruturas
sociais desiguais, restaria encontrar soluções de convivência que desatassem os problemas morais que permeiam
a coletividade. Essas ideias foram a fonte inicial de inspiração para os fundadores da sociologia das profissões,
destacando-se dentre eles funcionalistas como Carr-Saunders e Wilson, além de Parsons (ALMEIDA, 2014).
O alvo desses estudiosos era assinalar aquilo que convertia uma atividade laboral simples em profissão,
explicitando, a partir disso, os papéis deste tipo de instituição tanto com relação à personalidade dos sujeitos
quanto com relação à sociedade em geral. Na ótica funcionalista uma ocupação ganha condição de profissão
quando alcança uma regulação estatal que instaura formalmente os termos da sua posição social, o que só pode ser
feito pela sua consolidação prévia como área técnica e de saber, calcada numa especialização de serviços.
Parsons (1982), nessa linha, supunha que o fundamental na avaliação de tais grupos era a forma de eles
erguerem a sua validação coletiva. É por isso que conferiu às universidades e centros de formação um papel crucial
na sua institucionalização, visto que o saber seria a justificativa que garantiria a arregimentação legal das estruturas
profissionais. A formação universitária seria tanto um processo de inculcação de valores e conhecimentos como
um ritual de legitimação (cujo ápice é a formatura e a entrega do diploma), por meio do qual se chancelaria a
entrada de agentes exteriores dentro do grupo profissional.
Para ele as profissões apresentariam uma condição ocupacional elevada e valorizada – controlariam o seu
modo de serviço e sua formação, alcançariam rendimentos característicos dos estratos sociais médios, mas só o
fariam quando protegidas pelo estado, que as utilizaria para controlar estrategicamente os nichos destacados da
divisão do trabalho.
Conforme os estudos no campo da sociologia das profissões evoluíram e se diversificaram, a associação entre
o estatuto ocupacional e a questão da legitimidade se aprofundou, indo por caminhos múltiplos e contraditórios.
Foi assim até no interacionismo simbólico – principalmente o de Hughes (1958) –, em que as profissões são
estruturas de interação que visam à autodefesa e promoção dos atores nelas imersos. Para tal corrente o percurso
de uma profissão é único e não pode servir de referência para observar as demais, inexistindo, inclusive, fronteiras
rígidas entre profissão e ocupação.
Hughes (1958; 1963) indicou incisivamente a dependência das ocupações especializadas quanto à esfera
do legítimo, colocando em pauta o conceito de licença, por meio do qual a profissionalização era vista como uma
dinâmica em que uma ocupação – independente da sua origem ou tarefa – adquire a habilitação normativa para o
exercício de uma função social determinada. Para ele a autorização legal era a prova da validade da prática laboral
e limitava o seu exercício apenas àqueles capazes de obter o certificado funcional pelas vias adequadas, ou seja, a
profissionalização denotaria não apenas a conquista de status, mas a capacidade de mantê-lo.
O corpo universitário, conforme Hughes (1963), não apenas promoveria a aprendizagem profissional ou a
ligaria ao prestígio da ciência, mas seria em si mesmo uma instância de justificação jurídica com poder delegado
pelo estado. As universidades operariam a seleção prévia dos integrantes das ocupações profissionais e certificariam
os que conseguem atender a todas as suas exigências e processos.
Sobrepondo-se à autorização acadêmica, sempre de acordo com o autor, existe (na maior parte dos casos)
o credenciamento corporativo, a forma máxima de legitimação do agente profissional, que materializaria a força
das organizações ocupacionais, que efetivariam a proteção, promoção e celebração das profissões. Ligado à licença
haveria ainda o “mandato” – o substrato de relações sociais que exprimiria a função ou conjunto de funções,
simbólica e legalmente reconhecidas, como uma tarefa única do corpo profissional. Trazia-se à tona, por meio
dessa ideia, o problema da especificidade como modo principal de afirmação coletiva das profissões. O mandato,
segundo Hughes (1963), seria uma imagem social, o fundamento do prestígio de uma especialização como prática
distinta e distintiva. Ele exprimiria, portanto, a sua capacidade de controlar certas atividades (ou interações) que se
dirigissem ao enfrentamento de um problema social posto (MENEGHETT, 2009).
Atualmente tais ideias têm sido associadas aos estudos das normatividades engendradas pelo sistema social,
elaborando o reconhecimento profissional como uma conquista político-discursiva, uma forma de ascensão e
proteção dos grupos mais organizados no mercado de trabalho, constituindo o processo profissional (DUBAR,
2005).
Foi, contudo, pela hegemonia das pesquisas neoweberianas, desenvolvidas a partir da década de 1970, com as
análises de Freidson (1996; 1998), que a teoria das profissões alcançou seu ponto mais elevado. Por esta perspectiva
a profissionalização se refere a uma disputa de poder, um processo de monopolização de áreas determinadas
da divisão do trabalho por grupos sociais específicos. As profissões, segundo Freidson (1996), expressam o
princípio ocupacional da organização do trabalho, são uma reação à difusão das relações associativas racionais
(postas pelas burocracias) como base administrativa das sociedades capitalistas, cuja origem se encontraria na
corporação medieval. Para ele, todavia, as profissões não se tratam de uma negação da burocracia (que por si mesma
homogeneíza as ocupações e cerceia o controle do funcionário sobre suas atividades), mas do estabelecimento da
mobilização profissional sob os seus fundamentos societários. Por meio das profissões a organização ocupacional
agora se imbrica organicamente com o estado e passa, ela mesma, a funcionar como uma relação associativa

67
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social

racional, que visa ao domínio de certos nichos do mercado laboral, utilizando a racionalização burocrática contra
seus efeitos perversos.
Segundo o autor, tornar-se profissional é o mesmo que ocupar um lugar diferenciado dentro das estruturas
laborais, gerenciando a consecução do próprio trabalho. Significa ir além do princípio administrativo weberiano por
meio de uma variante deste mesmo princípio: o da administração ocupacional, isto é, a conformação profissional
do trabalho dentro da burocracia. Por meio dessas ideias Freidson elabora seu conceito de profissão.
Meu tipo ideal [de profissão, diz ele] consiste dos seguintes componentes:
● Uma ocupação que empregue um corpo especializado de conhecimentos e qualificações, e que seja desempe-
nhada para a subsistência em um mercado de trabalho formal, gozando de status oficial e público relativamente
alto e considerada não só de caráter criterioso, como fundamentada em conceitos e teorias abstratos.
● Jurisdição sobre um corpo especializado de conhecimentos e qualificações em uma divisão do trabalho espe-
cífica, organizada e controlada pelas ocupações participantes.
● Controle ocupacional da prática desse corpo de conhecimentos e qualificações no mercado de trabalho (seja
uma universidade ou uma empresa), por meio de uma reserva que exija que apenas os membros adequadamen-
te credenciados possam executar as tarefas sobre as quais têm jurisdição e também supervisionar e avaliar seu
desempenho. Estes últimos servem como a classe administrativa da profissão.
● A credencial utilizada para amparar sua reserva de mercado de trabalho é criada por um programa de trei-
namento que se desenrola fora do mercado de trabalho, em escolas associadas a universidades. O currículo de
ensino é estabelecido, controlado e transmitido por membros da profissão que agem como corpo docente em
tempo integral, atuando pouco ou nada no mercado de trabalho cotidiano. O corpo docente serve como classe
cognitiva da profissão. (1996, p. 152 – destaques do autor)
A questão, exposto isso, é que, quando nos colocamos diante do conjunto do debate sobre o fenômeno
profissional, o legítimo surge como núcleo fundamental de investigação do seu estatuto, permeando as abordagens
mais díspares. Mesmo quando o seu peso é relativizado e trabalhado por um pensamento mais complexo e rico –
como no caso das correntes interacionistas e dos estudos de Freidson (1998) –, ele se conforma como o elemento
delineador da profissionalização, ela mesma uma situação legal, que incide sobre certos trabalhadores, cristalizando
formas sociais e culturais singulares. Como afirmamos, as profissões, tal como comumente vistas, teriam na
legitimação o seu traço distintivo. Legitimidade seria o fator que faz que uma profissão seja o que é, dado que a
essência da condição profissional designa um problema de status, que se projeta a partir das interações sociais e das
identidades individuais para o campo jurídico.
Ora, é evidente a força dos argumentos das principais correntes do profissionalismo, entretanto, não se
podem esconder seus limites, sobre os quais se ergue uma teorização muitas vezes restrita ou mistificada. Tal
problema existe porque não se concebem as profissões claramente a partir das necessidades sociais que as originam
e mantêm, não se enfatizando, por isso, que elas são complexos particulares, cuja existência, na atualidade, só pode
ser desvendada pela análise da sociabilidade que as informa, ou seja, a sociabilidade capitalista. Tal constatação
deriva do fato de ser esta a conjuntura societária em que mais se desenvolvem as práticas laborativas; em que surge
todo um contingente de atividades ocupacionais de caráter intelectual e burocrático que impactam a conformação
das classes sociais; em que a especialização e o trabalhador especializado mais são demandados. Isto é, a existência
formalmente reconhecida de estruturas que densificam e recortam a esfera da produção e prestação de serviços é
fruto das práticas sociais que se debruçam sobre os dilemas da divisão do trabalho burguesa, respondendo a eles e
conformando-os ativamente. Se existe diferenciação de status ou uma regulação jurídica profissional é porque esta
foi conquistada econômica e politicamente na totalidade da intervenção ocupacional (o que inclui a articulação
dos agentes das profissões na esfera pública). Em outros termos: o processo de profissionalização obedece a
condicionantes históricas, inteligíveis apenas à luz da compreensão da sociedade que as erige.
Não priorizar e enunciar esse vetor faz surgir uma análise presa a categorizações e aos efeitos do fenômeno,
que não atenta para muitas de suas causas e determinações principais. Daí que as investigações contemporâneas sobre
o estatuto do serviço social caminhem num horizonte tão diferente daquele da teoria das profissões. A prioridade
conferida à determinação social das ocupações gera uma análise que não se prende apenas aos componentes
internos que as fundamenta, mas, antes, e sobretudo, às necessidades sociais coletivamente engendradas. Vejamos
agora como este debate se encaminha, a partir de seus protagonistas mais decisivos.

2 – O debate sobre o estatuto do serviço social


Via de regra, a tradição crítica brasileira aborda a ocupação de assistente social a partir da ideia de que
seu estabelecimento e evolução devem ser buscados não em seu desenvolvimento interno ou nas suas funções
socioculturais, mas nas necessidades objetivas coletivamente engendradas. Nela, o serviço social nasce e se estabelece

Verinotio revista on-line – n. 20. Ano X, out./2015, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

por meio das dinâmicas sociais do capitalismo no final do século XIX, explicadas sob o enfoque privilegiado (mas
não exclusivo) dos intervenientes econômico-políticos que matrizam a vida coletiva.
O debate brasileiro tem se desenvolvido nessa perspectiva desde os anos 1980, absorvendo e reelaborando
os acúmulos do Movimento de Reconceituação, de que herda o espírito crítico. O que se consolida a partir deste
movimento é uma literatura profissional que vai da análise dos fundamentos da profissão (incluindo as reflexões
sobre a sua deontologia, o seu mercado de trabalho, o perfil dos seus agentes), passando pelos estudos sobre os
novos movimentos sociais, os problemas relativos às classes e a temática do trabalho, até as investigações sobre o
estado, a gestão pública e as políticas sociais, dentre outros assuntos.
Esse caminho analítico, pela sua íntima conexão com as ponderações de Marx sobre a vida moderna, tem
se mostrado efetivo para clarificar as bases do trabalho profissional, dimensionando os elementos materiais e
ideopolíticos que as conformam. É desta perspectiva que a orientação conservadora do serviço social mais tem
sido criticada, bem como é nela que se têm procurado desenvolver com mais força alternativas prático-políticas de
intervenção, a partir da construção de um projeto profissional vinculado aos interesses e demandas da população
usuária dos serviços profissionais.
Dito isso, abordaremos agora os contributos dos maiores representantes dessa linha. A exposição se
desenvolve numa ordem que procura esclarecer da melhor forma o estudo das bases do serviço social, aprofundando
a questão a partir de uma visão marxista. Por isso ela começa com a abordagem de Vicente Faleiros (2007; 2013),
prosseguindo com Iamamoto (2009a; 2008) e Netto (2007; 2011a), em quem acreditamos que o problema alcança
sua melhor resolução até o momento.

2.1 – O pensamento de Vicente Faleiros sobre a natureza do serviço social


Faleiros (2007; 2013), um dos nomes mais decisivos do serviço social brasileiro e latino-americano, apresenta
uma teorização de forte relevância histórica, que se marca pelos temas que coloca e pelas diferenças que estabelece
com outras abordagens de peso no debate sobre o trabalho do assistente social.
Para o autor, o nascimento da profissão está associado à evolução das dinâmicas e contradições do
capitalismo no século XX e às lutas dos trabalhadores e movimentos sociais que representam a resistência
aos vetores perversos que estruturam tal sociabilidade. Este cenário (marcado pela intervenção estatal de tipo
keynesiano na economia) é o responsável pela emersão das políticas sociais e, dentro destas, das instituições sociais.
As políticas sociais seriam um conjunto de espaços e atividades, no âmbito da reprodução e da regulação social,
que forneceriam aos trabalhadores e demais grupos coletivos serviços e bens que satisfariam certas necessidades
públicas historicamente situadas. As instituições sociais, por sua vez, são organizações específicas de política social
que lidam com a administração dos conflitos distributivos, ocupando-se das várias políticas setoriais (criança e
adolescente, habitação, saúde, educação e outras). Elas dependem da configuração do quadro sociopolítico em
que se inserem e atendem, basicamente, a três tipos de público: os trabalhadores, os inaptos para o trabalho e os
“inaptos sociais” (como “loucos” e dependentes químicos).
Dentro de tais espaços existem diversos profissionais. Entre eles se estabelece uma forte competição por
recursos, poder e visibilidade. Por estes motivos as instituições sociais tendem a se fechar, refugiando-se na rotina
e no segredo. Nessa dinâmica, elas passam de mecanismos para o alcance de objetivos públicos a fins em si
mesmas. Os seus usuários se transformam em meios para realização das metas institucionais e profissionais, sendo
utilizados para a conquista de status e poder. Essa relação, todavia, não se desdobra apenas a partir das definições
organizacionais: ela também é tensionada pelos interesses e demandas dos usuários, que pressionam as instituições
e seus agentes de forma variada, procurando melhorar as condições de satisfação das suas necessidades (seja numa
perspectiva político-coletiva, seja em uma perspectiva mais individualizada e limitada). Faleiros (2007) pontua que
é nesse lócus que se produz a profissionalidade do assistente social, um trabalhador que, segundo ele, opera as
políticas sociais a partir das suas óbvias mediações administrativo-institucionais.
Esse ator é um agente subordinado no processo decisório institucional, um profissional de linha e não
um profissional de staff. O seu poder (na maioria dos casos) reside na manipulação e articulação de pequenos
recursos junto aos usuários, estabelecendo com tais sujeitos contatos e vínculos muitas vezes próximos do nível
pessoal. Apesar disso, o profissional seria uma espécie de “intelectual orgânico” com potencial para intervir nas
disputas institucionais, favorecendo mais as classes dominantes ou as dominadas, dentro dos limites postos pelo
real (FALEIROS, 2007).
Como mostra Iamamoto (2008), Faleiros formula tal indicação a partir da influência do pensamento
gramsciano, do qual foi um divulgador pioneiro entre os assistentes sociais. O uso de tais ideias, no entanto, é
apenas parcial, uma vez que a exposição de Faleiros se faz por meio de um processo ao qual falta sistematicidade;
a compreensão profunda do político nos estudos gramscianos, a sua referência à cultura, ao trabalhador fordiano
e às relações pedagógicas, por exemplo, não aparecem com a complexidade e magnitude que têm. Isso, inclusive,
esclarece sua menção contínua às ciências sociais e à filosofia contemporânea. Dessa forma, nele, o conceito

69
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social

foucaultiano de poder surge para complementar a noção gramsciana de hegemonia e a ideia de capital social de
Bourdieu aparece como uma expressão prática do fortalecimento incutido pelo trabalho social, não ficando muito
claro se a compatibilização destes registros é possível ou se foi feita de maneira precisa.
Em todo caso, é nessas bases que Faleiros (2007; 2013) fia seu pensamento. Por meio delas ele afirma
que o objeto profissional surge no cotidiano das disputas societárias e deve ser visto como as correlações de
força e hegemonia que conformam e significam a prática dos assistentes sociais nos seus diferentes momentos e
conjunturas. Há aqui uma diferença marcante com relação a estudiosos do serviço social como Iamamoto (2008;
2009) e Netto (2007; 2011). Para Faleiros (2007; 2011), o objeto de intervenção dos assistentes sociais não é a
questão social, mas uma relação de poder, que gera uma área no espaço social que implica instituições, profissionais
e usuários. Dada a especificidade desse campo, existiria a possibilidade efetiva da sua constituição como um saber
singular, capaz, portanto, de originar uma disciplina com cientificidade própria. Segundo o autor, em muitos casos,
a expressão questão social é tomada de forma muito genérica, embora seja usada para definir uma particularida-
de profissional. Se for entendida como sendo as contradições do processo de acumulação capitalista, seria, por
sua vez, contraditório colocá-la como objeto particular de uma profissão determinada, já que se refere a rela-
ções impossíveis de serem tratadas profissionalmente, através de estratégias institucionais/relacionais próprias
do próprio desenvolvimento das práticas do serviço social. Se forem as manifestações dessas contradições o
objeto profissional, é preciso também qualificá-las para não colocar em pauta toda a heterogeneidade de situa-
ções que, segundo Netto, caracteriza, justamente, o serviço social (FALEIROS, 2011, p. 37).
Ocorre que
[O termo] questão social possui vários significados, e não pode ser tomado, sem uma definição rigorosa como
objeto profissional, principalmente pelo serviço social brasileiro e latino-americano. Do ponto de vista episte-
mológico, a questão social precisa vir à luz de diferentes paradigmas, na discussão de seus dimensionamentos
que entendemos estar vinculados às relações sociais.
Na atual conjuntura os enfrentamentos de interesses, grupos, projetos, estão sendo vistos num processo com-
plexo de relações de classe gênero, geração, raça, etnia, culturas, regiões, parentescos, trazendo à discussão as
mediações da subjetividade e que não se resumem tout court na noção de questão social. (FALEIROS, 2011, p.
40)
Faleiros (2011), com base nisso, defende a ideia de que o objeto do serviço social é histórico e mutável.
Analisando a emergência do serviço social brasileiro nos anos 1930, ele identifica a articulação de um paradigma
profissional conservador, que circunscrevia o objeto profissional no terreno da moral, da ordem e da higiene.
Na visão tradicional o trabalho do assistente social consistia, fundamentalmente, em um apoio psicoemocional e
financeiro para que os usuários realizassem “pequenos avanços” num contexto existencial tido como “deficiente”
(FALEIROS, 2007).
Faleiros (2011) assinala que há uma reconstrução do objeto do serviço social no pós-guerra. Nesse cenário,
marcado pela consolidação do capitalismo monopolista (no plano mundial), pelo autoritarismo político e pelo
processo de industrialização no país, a atividade profissional se desloca para a promoção tecnicista da harmonia
social na relação estado/sociedade. Trata-se do período em que os assistentes sociais incorporaram a influência
do ideário desenvolvimentista (principalmente por meio da difusão do chamado serviço social de comunidade), sendo
requisitados pelas empresas e pelo estado para auxiliar na implementação dos projetos e planos de crescimento e
desenvolvimento a partir de ações de minimização e controle dos problemas sociais motivados por essas iniciativas.
Em outro estágio mais recente (que se estende do final dos anos 1970 até hoje) Faleiros (2011) indica a existência
de um novo processo de construção/desconstrução do objeto do serviço social. Este novo contexto é signatário
das mudanças culturais dos anos 1960, do legado do Movimento de Reconceituação, da liberalização política do país
e das transformações na sua estrutura econômica (incluindo a ascensão do neoliberalismo), entre outros fatores.
Nele, o objeto profissional flutua entre (no mínimo) duas tendências: a burocratização e a administração dos serviços
sociais regulados ou prestados pelo estado (com todo o seu minimalismo e mercantilização contemporâneos) e
as dinâmicas de reprocessamento da cidadania, calcadas nas lutas atuais das classes trabalhadoras e dos novos
movimentos sociais.
Assim, na contemporaneidade:
Há uma dinâmica complexa na mudança de relações sociais na família, entre jovens, na busca e perda do em-
prego, de organização e reorganização de entidades e organismos que implica uma profunda reflexão sobre
a inserção do serviço social nesse contexto para esclarecer a construção do nosso objeto nessa realidade. (...)
Nesse sentido é possível discutir alguns cenários, levando em conta a perspectiva histórica até agora considera-
da. O cenário burocrático-administrativo poderá ser reforçado pelo processo de privatização e terceirização, de
redução do estado, redução de pessoal, de corte nas políticas sociais, mas o processo de desinstitucionalização

Verinotio revista on-line – n. 20. Ano X, out./2015, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

poderá abrir perspectivas novas de articulação da inserção social dos excluídos, de trabalho com as vítimas, de
defesa dos direitos sociais. (FALEIROS, 2011, p. 21)
Neste quadro, os “pobres, as mulheres os doentes, os idosos, as crianças, os adolescentes que constituem os
usuários dos serviços sociais” (FALEIROS, 2013, p. 21) estão se consolidando como demandatários específicos e
crescentes das ações públicas e, ao mesmo tempo, consumidores ávidos e atomizados de bens no mercado. Essa
dualidade contemporânea pressiona o serviço social de maneira paradoxal; ela exige o estabelecimento de propostas
de trabalho inovadoras e resolutivas, mas fragiliza os espaços tradicionais da profissão, estimula o imediatismo e
intervenções pouco afeitas à promoção da autonomia dos sujeitos.
Faleiros captura exemplarmente esse dilema profissional, pois, para ele:
a defesa de direitos, como pilar central e o eixo da atuação do serviço social, está sendo questionada pela va-
lorização da focalização do trabalho social no indivíduo e não mais no direito. Esta é a mudança que está se
operando na prática profissional, não em função da adaptação do indivíduo à norma, e nem para garantia de
direitos, mas para que tenha algumas condições, e mais que nunca, motivação para competir, por si mesmo, no
mercado e gerar seus meios de vida (2013, p. 51).
Essas questões levam o autor a sugerir a adoção de um novo paradigma profissional – o da Correlação de
Forças –, visto não apenas como uma forma de explicar a profissão, mas, principalmente, como uma proposta de
intervenção. Para Faleiros, tal paradigma vê a intervenção profissional como um complexo permeado pela
confrontação de interesses, recursos, energias, conhecimentos, inscrita nos processos de hegemonia/contra-
-hegemonia, de dominação/resistência e conflito/consenso que os grupos sociais desenvolvem a partir de
seus projetos societários básicos, fundados nas relações de exploração e de poder. Nesse sentido, os efeitos da
prática profissional enquanto “suprir carências”, “controlar perturbações” ou “legitimar o poder” implicam
correlações de forças (mediações econômicas, políticas e ideológicas) que se articulam com outros efeitos,
como pressionar o poder, ter direito à sobrevivência ou questionar a instituição. Foi o que posteriormente
consideramos metodologia da articulação. O processo de intervenção é visto, aí, para além do relacionamento
e da solução imediata de problemas através de recursos, no contexto das relações sociais. Na particularidade
do serviço social, é fundamental destacar a intervenção nas condições de vida e de trabalho (re-produzir-se)
articuladas à formação da identidade individual e coletiva (re-presentar-se) na vinculação sujeito/estrutura (...).
O objeto do serviço social, como vimos, se constrói na relação sujeito/estrutura e na relação usuário instituição
em que emerge o processo de fortalecimento do usuário diante da fragilização de seus vínculos, capitais ou
patrimônios individuais e coletivos (1999, p. 44).
A base operacional do Paradigma da Correlação de Forças seria a ideia de “empowerment” (que assume,
inclusive, a noção de capital social de Bourdieu). Nesse marco o objetivo é mobilizar os patrimônios (ou capitais)
dos sujeitos atendidos (suas relações afetivas, redes de autoajuda e parentesco, os seus acessos aos bens e serviços
públicos etc.) para contribuir no enfrentamento de situações de fragilização e vulnerabilização social. Trata-se de
promover a capacidade dos usuários de materializar os seus projetos de vida, ampliar o seu acesso ao conhecimento
(inclusive, os saberes técnicos e institucionais) e aos recursos materiais necessários a sua reprodução social.
Mais uma vez aparece aqui uma particularidade central de Faleiros (2011; 2013). No caso, sua ênfase na
problematização da condução do exercício profissional, tema pouquíssimo abordado nas discussões contemporâneas
da categoria, inclusive por Netto e Iamamoto. De fato, até o momento, este autor é quem mais se preocupa
com a análise concreta da prática, formulando indicações objetivas e claras para a atuação dos assistentes sociais,
mesmo com todas as suas limitações. Por isso seu foco em conceitos como poder, “estratégias”, empowerment,
vulnerabilidade, redes e afins.
Como já indicamos, entretanto, isso não se faz sem problemas. Além das questões atinentes à clareza teórica
e metodológica, há o excesso de simplificação da linguagem que, como esclarece Iamamoto (2008), foge por demais
do cânone acadêmico, buscando alcançar um maior público dentro do universo de trabalhadores do serviço social,
mesmo que o resultado implique sacrificar parte da argumentação. Tudo isso nos faz concluir que não existe em
Faleiros (2009; 2011; 2013) uma completa ruptura com a teoria das profissões, no bojo da cientificidade das ciências
sociais. No entanto, o núcleo “duro” da ruptura, que se aprofunda em Iamamoto e Netto, já está consolidado,
de forma que no seu pensamento as diferenças teóricas com este paradigma hegemônico são suficientes para
demarcá-lo como autor que apresenta uma compreensão distinta. Isso fica expresso pela ênfase de Faleiros na
análise histórica, na sua recusa a abstrações sem respaldo no real, no seu foco nas contradições da profissão e do
sistema social, na sua perspectiva global, bem como pela constante investigação das determinações responsáveis
pelas demandas sociais a que a categoria profissional atende.
Temos, assim, um primeiro exemplo do distanciamento do serviço social em relação às assertivas afeitas à
teoria das profissões como campo de estudos e debates sobre o fenômeno ocupacional. Resumindo, em Faleiros
(2009; 2007; 2011; 2013), o serviço social como profissão se processa a partir de uma relação de poder que se

71
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social

constitui por meio dos embates dentro das políticas públicas e suas instituições sociais: “O serviço social se
‘fundamenta’ na negação dos antagonismos do modo de produção capitalista. Ele atua, na prática, na camuflagem
ou diminuição desses antagonismos.” (FALEIROS, 2009, p. 14) O seu reconhecimento é construído dentro desta
relação de força e precisa ser reelaborado em virtude das mudanças históricas que alteram o objeto profissional.
Dada a mutabilidade e o caráter contraditório das relações sociais e, portanto, da própria profissão, é possível
construir uma atuação voltada para os interesses e para o fortalecimento das classes e grupos populares.

2.2 – Iamamoto e o debate sobre os fundamentos do serviço social


Marilda Iamamoto (2008; 2009) é, sem dúvida, um dos maiores nomes do serviço social no Brasil e na
América Latina. É de sua autoria (em conjunto com Raul de Carvalho) a primeira grande investigação acerca do
significado sócio-histórico da profissão no país. Segundo Netto (2011a), o que notabiliza sua obra é a apreensão dos
fundamentos do método de Marx, cuja utilização, marcada pelo uso de fontes clássicas, representou a maturidade
da vertente que protagonizou o processo de renovação do serviço social brasileiro.
A autora analisa a profissão como um complexo emoldurado pela produção e reprodução das relações sociais
no capitalismo. A história, palco dos desafios e soluções, é o seu instrumento principal, que permite a compreensão
da categoria, da década de 1930 até os anos 1960, do Movimento de Reconceituação até a contemporaneidade no
Brasil. Iamamoto (2007) nega, e com forte veemência, o endogenismo típico das formulações tradicionais sobre o
serviço social. Na sua ótica essa especialização não pode ser avaliada a partir de si mesma, de seus instrumentos e
técnicas, de seu estatuto jurídico ou do seu sistema de saber. Ainda que tais fatores sejam importantes, não são eles
os responsáveis pelo surgimento de um profissional como o assistente social.
O que define a profissionalização do serviço social são as demandas que fundam o espectro de determinações
objetivas que tornam possível a atuação dos seus agentes. Ou seja, são os intervenientes macroscópicos, aliados à
capacidade dos profissionais de responder a eles, que firmam tal prática como atividade legalmente sancionada e
socialmente reconhecida (NETTO, 2007). Em outras palavras:
O significado social do trabalho profissional do assistente social depende das relações que estabelece com os sujeitos
sociais que o contratam [e a que atende], os quais personificam funções diferenciadas na sociedade. Ainda que
a natureza qualitativa dessa especialização do trabalho se preserve nas várias inserções ocupacionais, o signifi-
cado social do seu processamento não é idêntico nas diferenciadas condições em que se realiza esse trabalho, porquanto envolvido
em relações sociais distintas. (...) Portanto, essas relações interferem decisivamente no exercício profissional, que
supõe a mediação do mercado de trabalho por tratar-se de uma atividade assalariada de caráter profissional.
(IAMAMOTO, 2008, p. 215 – destaques da autora)
Aqui se evidencia uma análise erigida sobre fundamentos ontológicos efetivos. A materialidade das relações
sociais como pressuposto básico, o caráter contingente dos comportamentos e instituições humanas, a aposta na
totalidade e na verdade científica qualificam a teorização de Iamamoto (2008), separando-a da visão gnosiológica
imperante.
Essa distinção se refrata, é claro, em relação à análise sociológica das profissões. Ao contrário deste topos,
nessa estudiosa não predominam os esquematismos conceituais, as derivações lógicas imediatas, em suma, a
confrontação unilateral entre o real e o pensamento, mas o estudo da estrutura social como foco do processo de
investigação do serviço social. Fica interditada, portanto, a utilização arbitrária de determinações isoladas como
fonte demarcadora do estatuto do serviço social. Daí que o uso das relações de legitimação e de saber (ou de
quaisquer outros elementos) fora do seu contexto seja tido por Iamamoto (2008) como maneira pouco adequada
para clarificar a atividade profissional.
A singularidade desse caminho é formada por três bases: o olhar exógeno à categoria profissional; a avaliação
da atuação do assistente social como um tipo de trabalho assalariado; e o estudo do serviço social como produto das
forças que marcam a sociedade contemporânea. É a concreção destes fundamentos o esteio da argumentação de
Iamamoto (2008; 2009), a fonte sobre a qual se assenta a eficácia da análise, e não uma rede heurística que informa
previamente a cientificidade do seu discurso. Por essa perspectiva, inclusive, ficam delimitados alguns vetores
capazes de esclarecer os fundamentos gerais da própria profissionalização enquanto determinação moderna da
divisão do trabalho.
A questão de fundo é que:
A divisão do trabalho na sociedade determina a vinculação dos indivíduos em órbitas profissionais específicas,
tão logo o trabalho assume um caráter social, executado na sociedade e através dela. Com o desenvolvimento
das forças produtivas sociais do trabalho, sob a égide do capital, o processo de trabalho passa a ser efetuado sob
a forma de cooperação de muitos trabalhadores livres e máquinas no interior da fábrica. Verifica-se, ao mesmo
tempo, um parcelamento das atividades necessárias à realização de um produto, sem precedentes em épocas

Verinotio revista on-line – n. 20. Ano X, out./2015, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

anteriores, agora executados por diversos trabalhadores diferentes e por um sistema de máquinas. Cria-se o
trabalhador parcial, efetuando-se o parcelamento do próprio indivíduo no ato da produção. (IAMAMOTO;
CARVALHO, 1983, p. 17)
Em suma: a densificação da organização do trabalho na produção é o fundamento da multiplicação das
ocupações (dentro e fora do espectro produtivo), pois exige a subdivisão dos trabalhos e, ao mesmo tempo, a sua
articulação com a totalidade da prática social no campo econômico. Por inúmeras mediações e particularizações
esse processo atingiria as mais variadas atividades, na indústria, no comércio e no setor de serviços, fundando novas
categorias profissionais ou ressignificando a atividade de especializações mais antigas, como a medicina, o direito
ou a pedagogia. A ampliação da autonomia relativa, a formação diferenciada, a remuneração e o status jurídico das
ocupações profissionais se desenvolvem nessa dinâmica como uma necessidade do processo de trabalho e uma
conquista (sempre instável) dos agentes de tais instituições. Essa colocação, todavia, não nos permite dizer que
Iamamoto (2008; 2009) elabora uma teoria das profissões, já que o desenvolvimento das suas proposições nesse
sentido é apenas inicial e objetiva, tão somente, estabelecer os fundamentos da análise do trabalho do assistente
social, elaborando uma abordagem sobre o significado social dessa prática.
Com esses supostos a autora remete o núcleo de demandas que convocam o serviço social às situações
conflitivas que nascem do processamento básico do capitalismo, isto é: a contradição entre a socialização crescente
da produção e a apropriação privada da riqueza coletiva. Essa determinação central fez que ela se debruçasse sobre
as problemáticas mais densas da teoria marxista. Os conceitos de trabalho, alienação, valor de uso, valor de troca, as
relações entre as classes sociais e destas com o estado, o caráter contraditório do processo produtivo, a afirmação
política da classe trabalhadora e sua constituição enquanto “classe para si” são temáticas recorrentes em sua obra,
erigidas enquanto elementos indispensáveis para a compreensão da sociedade moderna e, por consequência, do
serviço social.
Em particular, a autora chama a atenção para a questão social, abordada enquanto
o conjunto das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada
vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-
-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade (IAMAMOTO, 2009, p. 27).
Inserido nesse universo, o serviço social nasce e se desenvolve quando o estado (ampliando-se) toma para
si as respostas às manifestações da questão social, num patamar qualitativo e quantitativo diferenciado, por meio
da efetivação de políticas sociais. Segundo a autora, o assistente social é um trabalhador assalariado e sua principal
tarefa reside na operacionalização das políticas sociais, mediante uma atividade de corte burocrático, moralizante e
disciplinador, calcada no contato direto com o público usuário.
A funcionalidade da profissão não se estabelece primordialmente em seus contributos técnicos ou no campo
do saber científico, mas na sua capacidade de contribuir para a manutenção da força de trabalho e dos grupos
ausentes do universo produtivo, por meio de um conjunto de atividades que se destinam a minorar conflitos e
fortalecer consensos. Nas palavras de Iamamoto:
o assistente social é solicitado não tanto pelo caráter propriamente “técnico-especializado” de suas ações, mas,
antes e basicamente, pelas funções de cunho “educativo”, “moralizador” e “disciplinador” que, mediante um
suporte administrativo-burocrático, exerce sobre as classes trabalhadoras, ou, mais precisamente, sobre os seg-
mentos destas que formam a “clientela” das instituições que desenvolvem programas socioassistenciais. Radi-
calizando uma característica de todas as demais profissões, o assistente social aparece como um profissional da
coerção e do consenso (2007, p. 42).
Não obstante, o reconhecimento desse agente não se assenta apenas em sua capacidade de elaborar soluções
para as demandas dos grupos sociais dominantes (os seus empregadores), mas deriva também das respostas
profissionais ofertadas aos setores subalternizados da população (público responsável, em última instância, pela
sua procura). Trata-se, dessa forma, de uma legitimidade tensionada, prenhe de contradições e que se interpõe
entre atores com perfis e vontades distintas e conflitantes.
O que se afirma, em tal ótica, é que a atividade profissional se materializa a partir do atendimento de
interesses sociais polarizados pelas classes sociais fundamentais – burguesia e proletariado – cuja tendência é
a sua cooptação por aqueles que ocupam uma posição dominante (IAMAMOTO; CARVALHO, 1983). Daí a
possibilidade, vislumbrada por Iamamoto (2008), de o agente profissional, compreendendo os limites e potenciais
de sua prática, reorientar o foco de suas ações no sentido do fortalecimento dos grupos e classes populares, que
constituem a imensa maioria dos seus usuários imediatos. Assim, é o próprio caráter contraditório da intervenção
profissional, imersa nas tensões presentes na realidade, que abre caminho para uma atuação baseada em condutos
de reconhecimento que ultrapassem o conservadorismo.

73
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social

Iamamoto (2007) salienta, ainda, o papel desempenhado pelas mediações organizacionais para a compreensão
da categoria profissional, remetendo, em primeiro lugar, para a condição deste agente como um profissional de
nível superior assalariado. Ou seja, o serviço social é uma instituição dentro da divisão sociotécnica do trabalho –
que qualifica certos trabalhadores para exercer uma prática especializada; o assistente social, por sua vez, é o sujeito
que trabalha e o faz por meio de um processo cooperativo formulado dentro das organizações que operam as
políticas e serviços sociais.
Isso explica, inclusive, o porquê da inexistência de um processo de trabalho exclusivo do assistente social,
cujos parâmetros possam ser aplicados a todos, ou quase todos, os seus espaços ocupacionais. Na verdade, o que
há é um processo de trabalho organizacional, pautado nas metas e diretrizes das entidades contratantes. Daí que
a autonomia do assistente social se realize de forma relativa, sendo limitada pelos constrangimentos inerentes ao
contrato de trabalho.
(...) ao vender sua força de trabalho em troca de salário (valor de troca dessa mercadoria), o profissional entrega
ao seu empregador o valor de uso ou o direito de consumi-la durante a jornada estabelecida. Durante a jornada
de trabalho, a ação criadora do assistente social deve submeter-se às exigências impostas por quem comprou
o direito de utilizá-la durante certo período de tempo, conforme as políticas, diretrizes, objetivos e recursos da
instituição empregadora. É no limite dessas condições que se materializa a autonomia do profissional na con-
dução de suas ações (IAMAMOTO, 2009, p. 97 – destaques da autora).
A atividade do assistente social demanda planejamento, instrumentos, insumos, bem como outras práticas
que lhe dão direção e suporte. Sua ação incide sobre um objeto particular – as manifestações da questão social
que se impõe no cotidiano dos sujeitos sociais – e converge para um produto específico: uma nova disposição
das situações trabalhadas, incluindo as ideias e afetos dos indivíduos alvo da intervenção. Por isso, na maior
parte dos casos, a ação profissional se conforma como uma prática voltada para a regulação social, entretanto, o
assistente social pode se alocar como integrante real das cadeias de produção, quando de sua atuação nas empresas
capitalistas, em que passa a fazer parte do trabalhador coletivo. Ou seja, embora a materialidade da intervenção do
serviço social não implique um metabolismo direto com a natureza, os atores dessa ocupação podem desempenhar
funções produtivas mediatizadas, dada sua inserção concreta nos empreendimentos públicos e privados geradores
de capital.
Nessa condição específica, o serviço social é trabalho produtivo porque o assistente social, em conjunto
com outros trabalhadores, participa do empreendimento produtivo, sua intervenção (num contexto ampliado)
é parte (mediatizada) do processo de produção. O trabalho profissional, assim concebido, é um potenciador da
produção e dos serviços, os efeitos da prática do agente profissional (ainda que de forma não imediata) se destinam
a reforçar a lucratividade do empreendimento capitalista. Noutros termos: a atuação do assistente social é capaz
de participar da criação de mais-valor quando está imersa numa relação assalariada na qual o trabalho e seus meios
estão subsumidos ao capital (levando-se em conta a totalidade dos agentes inseridos no processo produtivo, e não
apenas os trabalhadores que realizam a manipulação dos elementos do mundo natural).
Em síntese, para Iamamoto (2008; 2009) o serviço social é uma instituição derivada da modernidade
capitalista, que se forma a partir do acirramento dos conflitos postos pela questão social, tidos como o material
de trabalho da profissão. É no atendimento dessas demandas – sobretudo, quando enquadradas pelo estado na
forma de políticas sociais – que se encontram as bases objetivas que sustentam a categoria profissional. Assim,
o reconhecimento do assistente social é um processo contraditório, calcado nas respostas que fornece aos atores
vinculados ao capital e ao trabalho e nas mediações que o conformam como um trabalhador assalariado e agente
institucional.

2.3 O pensamento de José Paulo Netto sobre a profissionalidade do serviço social


No cenário que discute a natureza da atuação dos assistentes sociais José Paulo Netto se põe como o
formulador de algumas das mais complexas e ricas teorizações, que colocam em pauta a conformação e os limites
profissionais fundamentando-se na problematização do caráter sincrético do serviço social. Sua análise se foca nos
elementos ideoculturais e ideoteóricos que permeiam a profissão e, do ponto de vista histórico, concentra-se na
elucidação dos vetores que conformavam o serviço social tradicional, das suas origens até meados dos anos 1960,
apesar de conter inúmeras indicações para a abordagem da vida profissional que ultrapassam este período.
J. Paulo Netto (2007) salienta que as manifestações da questão social são o objeto de intervenção do serviço
social, forjando-se como o conjunto de componentes responsáveis pelas demandas que inserem essa especialização
na cena pública, permitindo a sua profissionalização. Todavia, para o autor, a conexão genética entre o serviço social
e a questão social não deve ser realizada sem critério. A ligação entre a questão social e a categoria obedece a um
extenso número de condicionantes, que fazem com que a profissão só possa ser compreendida quando vinculada
ao seu acirramento em um contexto determinado: a ordem monopólica. Nessa conjuntura, o desenvolvimento

Verinotio revista on-line – n. 20. Ano X, out./2015, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

do modo de produção capitalista, sem ferir a essencialidade que estrutura a questão social, provocou inúmeras
mudanças societárias, cuja importância possui um imenso significado.
Ocorreu, nesse marco, o nascimento de um novo modelo produtivo e de regulação social (NETTO, 2007), ou
seja, transitou-se do capitalismo concorrencial (século XIX/início do século XX) para o capitalismo monopolista
(do século XX até hoje). Sumariemos as mudanças. De um conjunto de forças produtivas baseadas em pequenas
empresas, em uma organização da produção e dos processos de trabalho ainda rudimentar, em um mercado
consumidor predominantemente nacional e em uma atuação do estado geralmente limitada a garantir às condições
externas a reprodução de capital partiu-se para a dominância de grandes conglomerados industriais e de serviços,
para um modelo produtivo orientado pelas diretrizes tayloristas e fordistas, coligado a um mercado efetivamente
internacional, assim como a um tipo de ação estatal baseada na intervenção sistemática na vida econômica e social
(NETTO, 2007; MONTAÑO, 2006).
Frise-se que esses intervenientes provocaram transformações profundas na questão social e em suas
expressões. A tensão que marca a relação entre capital e trabalho ganhou outros contornos, seja pelas novas
modalidades de resistência e luta das classes trabalhadoras, seja pelo acirramento das suas penúrias, que passaram
a se refratar muito além do ambiente fabril (NETTO, 2007). Está nisso, inclusive, a necessidade de redimensionar
o papel do estado burguês, cujas funções são ampliadas pelo complexo jogo de disputas que agora afetam e
ameaçam a reprodução do ambiente sociopolítico. Tem-se, além disso, uma nova modalidade de ação como
plano indispensável à intervenção do estado. Trata-se de suas funções políticas, destinadas, a partir de vetores
extraeconômicos, a garantir a estabilidade social.
Segundo Netto (2007), ocorrem nesse contexto grandes dificuldades para a manutenção da força de trabalho,
seja pela melhoria civilizacional que eleva o padrão de vida proletário e, por conseguinte, suas exigências ao capital,
seja pela ampliação dos níveis e formas de exploração, as quais, sem controle, ameaçam a própria existência do
trabalhador. Ressalta-se que tanto a face estritamente econômica quanto a político-social do estado estão, sob o
monopolismo, intimamente relacionadas e articuladas. Uma concorre para o sucesso da outra, já que a estabilização
do ambiente sociopolítico, construída pelos sistemas de proteção social, facilita e potencializa a acumulação de
capital, seja pela diminuição das tensões sociais, seja pela ampliação do consumo popular ou pela expansão da
produtividade do trabalho – via políticas educacionais, previdenciárias, de saúde pública e outras. Além disso, é
a própria acumulação capitalista que permite, mediante a absorção de parte da riqueza social via fundo público,
a construção e expansão das políticas sociais. O alargamento do estado, enfim, explicita uma reorganização de
toda vida social diante dos novos desafios impostos pelo acirramento da questão social e de suas refrações. Se tal
conjuntura reflete a funcionalidade do aparelho estatal à ordem burguesa, também exprime as lutas operárias e dos
novos movimentos sociais.
Ora, são essas determinantes, justamente, que permitem ao estado burguês apresentar-se, ainda com mais
força, como representante do interesse geral, como um estado nacional-popular, reforçando sua imagem de árbitro,
mediador de interesses entre grupos e classes, o que fez que as instituições governamentais agora se mostrassem
como responsáveis não só pela manutenção da integração do corpo social, mas pela promoção do seu bem-estar
e desenvolvimento. Um dos principais instrumentos para isso, lembra Netto, foram as chamadas políticas sociais,
sobretudo quando conjugadas às funções econômicas estatais.
É a política social do estado burguês no capitalismo monopolista (e, como se infere desta argumentação, só
é possível pensar-se em política social pública na sociedade burguesa com a emergência do capitalismo mo-
nopolista) configurando a sua intervenção contínua, sistemática, estratégica sobre as sequelas da “questão so-
cial”, que oferece o mais canônico paradigma dessa indissociabilidade de funções econômicas e políticas que
é própria do sistema estatal da sociedade burguesa madura e consolidada. Através da política social, o estado
burguês no capitalismo monopolista procura administrar as expressões da questão social de forma a atender às
demandas da ordem monopólica conformando, pela adesão que recebe de categorias cujas demandas incorpo-
ra, sistemas de consenso variáveis, mas operantes. (NETTO, 2007, p. 27)
Em Netto (2007) a gênese profissional é explicada pelo surgimento e estruturação de um espaço ocupacional
capaz de acolher profissionais como os do serviço social – as políticas públicas e sociais –, momento que obviamente
coincide e só pode ser explicado com a emersão do capitalismo monopolista. Nas políticas sociais, aduza-se, os
assistentes sociais estão alocados naquilo que se tem chamado de espaços de tipo terminal, vinculados à execução
direta dos serviços públicos. Tais profissionais são executores de atividades estatais ligadas à regulação e à reprodução
social, auferindo, via de regra, um contato imediato e sistemático com os sujeitos (mais vulnerabilizados) da classe
trabalhadora, mediante operações prático-empíricas e simbólicas diferenciadas.
A legitimidade do serviço social é, assim, fruto da capacidade dos agentes profissionais de atender a certas
demandas coletivas que emergem no contexto do capitalismo monopolista, requisições estas que se fundamentam
na necessidade de operacionalização de mecanismos de integração social erigidos pelas classes dominantes a partir

75
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social

do estado por elas capturado. Ao mesmo tempo, que deriva também das respostas profissionais ofertadas aos
setores subalternizados da população.
Em suma:
O desenvolvimento capitalista alcança o seu patamar mais alto na ordem monopólica (...). Nela o estado joga
um papel central e específico, dado que lhe cabe assegurar as condições da reprodução social no âmbito da
lógica monopólica ao mesmo tempo em que deve legitimar-se para além desta fronteira (...). Este núcleo ele-
mentar de tensões e conflitos aparece organizado na sua modalidade típica de intervenção sobre a “questão
social”, conformada nas políticas sociais (...) para uma tal intervenção requerem-se agentes técnicos especializa-
dos – novos profissionais, que se inserem em espaços que ampliam e complexificam a divisão social (e técnica)
do trabalho. Entre esses novos atores contam-se os assistentes sociais: a eles se alocam funções executivas na
implementação de políticas sociais setoriais. (NETTO, 2007, pp. 80-1)
Ou seja, o serviço social seria um produto típico do monopolismo, uma instituição derivada das requisições
e necessidades do estado, que muda seus parâmetros e modos de intervenção, carecendo, assim, de instrumentos
e agentes novos. O traço mais marcante do tradicionalismo profissional, nesse contexto, era o fato de a
conformação do serviço social ter por limite a afirmação do capitalismo monopolista, ou seja, as modalidades e
formas de intervenção dos assistentes sociais, o seu sistema de saber, a sua imagem e autoimagem se resumiam
a ser dispositivos de validação dos componentes cotidianos de tal ordem (daí, inclusive, sua afinidade com o
pensamento funcional-positivista). Nela o assistente social nada mais era do que um agente destinado a manipular
variáveis das “situações-problema” vivenciadas por seus usuários, conduzindo seu processo de ajustamento aos
esquemas sociais hegemônicos (vistos como formas sociais naturais, insuperáveis e desejadas). Os profissionais
operavam, assim, uma intervenção que, embora fundamentada em dilemas e demandas coletivas, limitava-se a
ocultar o caráter social das problemáticas dos sujeitos e grupos com que lidavam. O ponto nodal deste processo
é que no tradicionalismo tais vetores estruturam não apenas a prática, mas a identidade profissional, os assistentes
sociais com eles se identificam, assimilando-os e transmitindo-os acriticamente.
Após indicar os fundamentos da emersão e consolidação do serviço social Netto (2007) passa a tratar das
particularidades da profissão, que para ele apresenta uma estrutura sincrética, envolta no que chama de prática
indiferenciada, donde se desdobra o sincretismo ideológico e científico que marca o serviço social. Nesse caminho
ele explicita determinações inestimáveis para o problema de que temos tratado, isto é, identifica, a partir de
uma avaliação marxista, os vetores essenciais que estruturam as bases do serviço social e de qualquer profissão,
fornecendo, assim, indicações para a abordagem dessa temática num nível de abstração elevado.
O seu grande pressuposto é que
qualquer esforço para esclarecer o estatuto profissional do serviço social (...) deve se remeter a um traço com-
pulsório na apreciação do processo de institucionalização de toda a atividade profissional: o dinamismo his-
tórico-social, que recoloca, a cada uma de suas inflexões, a urgência de renovar (e, nalguns casos, de refundar)
os estatutos das profissões particulares. Isto significa que, em lapsos diacrônicos variáveis, todos os papéis
profissionais veem-se em xeque – pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, pelo grau de agudeza e
de explicitação das lutas de classes, pela emergência (ou rearranjo) de novos padrões jurídico-políticos etc. De-
correntemente, a original legitimação de um estatuto profissional encontra-se periodicamente questionada – e
não lhe é suficiente o apelo à sua fundamentação anterior, senão que se lhe põe como premente reatualização
que a compatibilize com as demandas que se lhe apresentam (NETTO, 2007, p. 89).
Ou seja, para José Paulo Netto (2007), o que possibilita e garante o surgimento de uma profissão é a
existência de uma demanda social (fundada nos determinantes econômico-políticos macroscópicos) passível de
ser instrumentalizada por um coletivo de trabalhadores. O estabelecimento de um corpo profissional se baseia
na sua capacidade de fornecer respostas efetivas a essas requisições, o que comporta, inclusive, o seu sentido
sociopolítico mais profundo (isto é, as demandas profissionais cumprem um papel no jogo de forças responsável
pela reprodução de uma sociedade).
Por isso, ele pondera que
a afirmação e o desenvolvimento de um estatuto profissional (e dos papéis a eles vinculados) se opera mediante
a intercorrência de um duplo dinamismo: de uma parte, aquele que é deflagrado pelas demandas que lhe são
socialmente colocadas; de outra, aquele que é viabilizado pelas suas reservas próprias de forças (teóricas e
prático-sociais), aptas ou não para responder às requisições extrínsecas – e este é, enfim, o campo em que incide
o seu “sistema de saber” (NETTO, 2007, p. 92).
Aqui a ruptura com o tradicionalismo e com cientificidade das ciências sociais toma uma das suas formas
mais intensas e bem acabadas. É o mercado de trabalho, com suas oportunidades e exigências, que funda a profissão,
e não só ela, mas qualquer prática ocupacional especializada. Sistema de saber, proteção legal, metodologias de

Verinotio revista on-line – n. 20. Ano X, out./2015, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

intervenção, instrumentos e técnicas não criam a profissionalidade de qualquer ofício, apenas a expressam e
atualizam. Geneticamente, as profissões e ocupações vêm à tona quando as transformações sociais abrem espaço
para sua institucionalidade. Portanto, explicar o estabelecimento, as mudanças e a reprodução de um coletivo
profissional é reconstruir a trama histórica dos fatos, estruturas e relações sociais que o subscrevem e determinam.
Essa resolução é, sobretudo, metodológica, por isso contrasta com as ideias do tradicionalismo e com
a sociologia das profissões, pois reconhece a prática social como elemento primário e fonte conformadora do
escopo da teorização. Além disso, representa o esforço para superar a falsa assertiva que postula a existência de
uma cientificidade própria ao serviço social, inscrevendo suas contribuições no seio mais amplo de uma teoria
social. Trata-se, ademais, de analisar a atuação do assistente social pelo prisma do marxismo, cujos fundadores
não podem ter o seu pensamento enquadrado na divisão do trabalho intelectual contemporânea, bem como não
podem ser tidos como os criadores de uma ciência (esquemática e asséptica) sobre a sociedade.
O pensamento de Netto (2007) é marcado pela totalidade, pela concreticidade contingente do real –
colocada pela problemática marxiana do ser –, além da materialidade como ponto de partida de toda investigação
dos fenômenos humanos, inclusive as profissões e, dentro delas, o serviço social. O autor avalia, assim, o estatuto
profissional salientando a existência de três condicionantes que caracterizam o seu sincretismo medular: I) o
universo de problemas que faz emergir o material de trabalho do serviço social; II) o horizonte prático dos seus
agentes; e III) a sua modalidade específica de intervenção. Ocorre que o extenso número de dilemas postos pela
questão social (o material de trabalho dos assistentes sociais), conformado pelos óbices típicos do monopolismo,
apresenta-se como um complexo fenomênico sincrético posto para intervenção.
A natureza sincrética do serviço social deriva do modo difuso de a questão social se refratar, o que instaura
para a profissão um objeto polifacético e polimórfico que permite associar a sua intervenção a múltiplos segmentos
da vida social, ao mesmo tempo em que bloqueia as possibilidades de se delimitar a sua especificidade. O sincretismo
também é reforçado pelo estado, a partir da sua intervenção parcelar sobre as sequelas da questão social, por meio
das políticas públicas setoriais, que ratificam o atendimento fragmentário das manifestações da questão social feito
pelos assistentes sociais.
O problema é que
Só este fato já confronta o assistente social com o tecido heteróclito em que se move a sua profissionalidade:
a teia em que a vê enredada se entretece de fios econômicos, sociais, políticos, culturais, biográficos etc., que,
nas demandas a que deve atender, só são passíveis de desvinculação mediante procedimentos burocrático-
-administrativos (NETTO, 2007, p. 94).
A natureza da profissão também é reforçada pelo seu modo de imersão no cotidiano, observado como
seu horizonte de atuação. O trabalho do assistente social não costuma estimular atividades de homogeneização
e suspensões: o seu material se situa no campo da heterogeneidade ontológica do cotidiano, em que opera o
rearranjo das suas condições, ressituando-as noutro patamar da própria cotidianidade.
A funcionalidade histórico-social do serviço social aparece definida precisamente enquanto uma tecnologia
de organização dos componentes heterogêneos da cotidianidade de grupos sociais determinados (...), o dis-
ciplinamento da família operária, a ordenação de orçamentos domésticos, a recondução às normas vigentes
de comportamentos transgressores ou potencialmente transgressores, a ocupação de tempos livres, processos
compactos de ressocialização dirigida etc. –, conotando-se como tecnologia de organização do cotidiano, como
manipulação planejada. (NETTO, 2007, p. 96 – destaques do autor)
Por último (e mais importante), existe a forma de intervenção do serviço social como variável explicativa
da sua inscrição no “círculo de giz do sincretismo”. A particularidade da intervenção profissional se encontra na
manipulação de elementos empíricos de um determinado contexto, de maneira a contribuir para reprodução dos
esquemas sociais instituídos. Esta determinação fornece a Netto (2007) os indicativos para clarificar aquilo que
chama de “prática indiferenciada”. Isto é, para o autor, a expressão cabal do sincretismo profissional pode ser
localizada no fato de que a profissionalização do serviço social não modificou de maneira significativa a atuação
dos assistentes sociais quando comparados aos atores inseridos nas suas protoformas. Apesar de a inserção e o
sentido coletivo do trabalho do assistente social serem bastante diversos, a ponto de incluir uma relação de ruptura
com as suas protoformas, a sua prática não comporta resultantes com eficiência muito distinta das iniciativas
assistenciais e de outras profissões.
Existe aqui um paradoxo e ele pode ser formulado da seguinte maneira: como uma intervenção, idealmente
referenciada por um sistema de saber e enquadrada numa rede institucional, revela-se factualmente pouco dis-
criminada e particularizada em face de intervenções cujo referencial é nebuloso e cuja inserção institucional é
aleatória? (NETTO, 2007, p. 100)

77
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social

Essa indagação é respondida pelo autor a partir da análise das condições para a intervenção social na sociedade
burguesa (a positividade que reveste e encobre as relações sociais) e a funcionalidade do seu estado (limitado a
reformas dentro da ordem), fatores que, ao acederem sobre uma profissão que goza de notória subalternidade, faz
que esta nem sequer capitalize as eventuais conquistas motivadas pela sua atuação. O importante é observar que,
segundo Netto,
a especificidade profissional converte-se em incógnita para os assistentes sociais (e não só para eles): a profissiona-
lização permanece um circuito ideal, que não se traduz operacionalmente. As peculiaridades operacionais da sua práti-
ca não revelam a profissionalização: tudo se passa como se a especificação profissional não rebatesse na prática
– o específico prático-profissional do serviço social mostrar-se-ia como a inespecificidade operatória. Em suma:
a profissionalização, para além de estabelecer a referência ideal a um sistema de saber, teria representado apenas
a sanção social e institucional de formas de intervenção (por isso mesmo, agora implicando a preparação formal
prévia para o seu exercício e remuneração monetizada) preexistentes, sem derivar numa diferenciação operatória,
mesmo implicando efeitos dela diversos (2007, p. 104 – destaques do autor).
Tudo isso caracteriza um anel de ferro que limita as possibilidades da profissão. O conteúdo pouco
discriminado da intervenção do serviço social exige que os seus agentes desenvolvam um alto grau de polivalência
laborativa, o que dificulta ainda mais as chances de se diferenciar a categoria de outras, consagrando o seu
sincretismo latente. De acordo com J. Paulo Netto (2007), junto da prática indiferenciada se consolidam ainda o
sincretismo ideológico e o sincretismo científico do serviço social. No primeiro caso (numa avaliação que se refere
apenas ao tradicionalismo) tem-se a junção ou a interação forçada e não mediatizada entre as tradições europeia
e norte-americana no serviço social durante a primeira metade do século XX. Estas tradições possuem origens e
características bastante distintas: o serviço social europeu apresentava uma forte ligação com o confessionalismo
católico, uma recusa importante do diálogo com o pensamento social, além de não endossar as iniciativas do estado
para intervir na questão social (advogando, em lugar dele, pela ingerência do associativismo civil); já o serviço
social estadunidense apresentava laços mais fortes com o estado e com as ciências sociais, um nível mais elevado
de laicidade e o seu conservadorismo não era reacionário. A questão, para Netto (2007), é que essas tradições
passam a se amalgamar sem nenhum critério, aparecendo, muitas vezes, como formas complementares de serviço
social, sendo o modelo europeu mais voltado para intervenção em grupos e o norte-americano mais direcionado
para o caso individual. Mas não só isso: essas tradições, já misturadas, têm seus contributos teóricos disseminados
unilateralmente pelos países periféricos (dentre eles o Brasil).
Já o sincretismo científico é derivado da absorção empreendida pelo serviço social dos influxos do padrão
de cientificidade burguês posto pelas ciências humanas e sociais (sobretudo, o pensamento funcional-positivista).
Segundo Netto:
Uma vez tomado como “profissão da prática” o serviço social pôs-se como vazadouro, receptáculo das ela-
borações produzidas no âmbito das ciências sociais, boa parte delas vetores extremamente expressivos do
pensamento conservador. Atribuindo a elas, e aceitando que elas se arrogassem, o monopólio da produção de
conhecimentos teóricos sobre a sociedade e sua dinâmica, o serviço social realizou uma dupla operação. De
um lado incorporou acriticamente os principais conceitos, noções e categorias – mesmo os mais vulgares – que
tinham curso nas ciências sociais; de outro, legitimou uma curiosa divisão do trabalho: as ciências sociais res-
ponderiam pela produção de conhecimentos e ao serviço social caberia o “território da prática”. (2011b, p. 148)
Sintetizando: para José Paulo Netto (2007), o serviço social é uma atividade derivada dos dilemas e
requisições sociais postos ao estado e às classes dominantes pelo monopolismo, que abre espaço para o surgimento
das políticas sociais, o lócus privilegiado dos profissionais do serviço social. Nelas esses agentes se alocam como
executores terminais, fornecendo o atendimento imediato para microdemandas da população trabalhadora. O
reconhecimento profissional recai, portanto, nesse trabalho de rearticulação sincrética1 dos elementos do cotidiano
das populações vulnerabilizadas ou atingidas pelas sequelas da questão social. O rearranjo do cotidiano – a partir
de conhecimentos teóricos, do senso comum, do bom senso e de atividades burocrático-administrativas – é o
fundamento da atuação do assistente social, que precisa ser afirmada dia a dia, isto é, precisa se consolidar nos
condutos específicos do próprio cotidiano enquanto instância da totalidade social.

1 Excelente termo criado por Andrade (2005) durante sua interpretação do pensamento de Netto.

Verinotio revista on-line – n. 20. Ano X, out./2015, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

Considerações finais
Todo o esforço aqui empreendido procurou clarificar a existência de um distanciamento, ou melhor, de uma
distinção entre as teses hegemônicas na teoria das profissões e as problematizações mais relevantes do serviço
social brasileiro, aspecto pouco notado e problematizado pela bibliografia profissional.
Como já exposto, o núcleo analítico dessa não coincidência teórica nos parece ser a determinação da
legitimidade. É esse o foco heurístico que materializa a oposição entre tais elaborações. O estudo do fenômeno
profissional pela via do legítimo exprime uma opção investigativa que foge do debate ontológico: analisa as
profissões em si mesmas, por meio de projeções intelectuais autônomas, que objetivam fornecer uma descrição e
uma interpretação lógica da questão.
A partir dessas considerações, nossa análise indica que os estudos contemporâneos do serviço social
brasileiro fogem dos pressupostos das ciências sociais sobre as ocupações especializadas, e o fazem por meio de
uma pretensão materialista. Todavia, como abordado, isso não apaga a sua diferenciação interna ou suas similitudes
pontuais com a sociologia das profissões.
Dentre os três estudiosos aqui abordados, Faleiros (2009; 2013) é o que mais se aproxima da sociologia das
profissões: a tentativa de circunscrever um objeto específico, e a partir dele um campo de saber, a incorporação
seletiva de diversas teorias oriundas do pensamento social contemporâneo e a ênfase nas relações de poder como
foco da análise do serviço social demonstram o profundo diálogo que ele mantém com tais estudos. Também por
isso, esse autor é o que mais associado está ao paradigma do legítimo, dado que nele a especificidade funcional e de
saber são elementos de grande importância para caracterização do estatuto profissional.
O mesmo não ocorre com as análises de Iamamoto (2008; 2009) e Netto (2007; 2011a; 2011b), que
apresentam uma ruptura bem mais nítida. Iamamoto (2008; 2009), como já colocado, vislumbra o serviço social
como uma ocupação fruto da produção e reprodução das relações sociais na ordem burguesa. Para ela, a profissão
se constitui a partir do amadurecimento desta sociabilidade, que altera o ambiente econômico, as estruturas políticas
e ideológicas no bojo das disputas macrossocietárias. Especificamente, o serviço social nasce perante o surgimento
da questão social, posta quando as classes trabalhadoras se consolidam como atores políticos em confronto com
as classes dirigentes e com o estado, ampliando a democracia política e exigindo serviços e direitos sociais, ao
mesmo tempo em que lançam no horizonte coletivo a possibilidade de construção doutras formas de convivência
e produção coletiva.
A base do reconhecimento ocupacional se encontra nas relações sociais que envolvem as profissões; ela se
projeta institucionalmente por meio das respostas das categorias profissionais a tais demandas. Trata-se, portanto,
de uma conquista num terreno marcado por interesses e necessidades conflitantes, dimanadas do estado, da
conformação do ambiente organizacional e dos elementos que colimam a relação de assalariamento dos agentes
profissionais. Por isso, teórica e metodologicamente, a resolução de Iamamoto (2008; 2009) é um exercício que
nega a abstração endogenista da legitimidade como parâmetro central de avaliação das ocupações especializadas.
Já José Paulo Netto (2007; 2011a) é, talvez, ainda mais incisivo na diferenciação das suas ideias em relação
aos postulados básicos da teoria das profissões. O autor concebe o serviço social como uma ocupação cujos
fundamentos práticos residem nas manifestações da questão social no capitalismo monopolista. Tal conjuntura
representou um reordenamento estrutural da base produtiva e da regulação social, que alterou a conformação dos
governos, das culturas e dos diversos grupos sociais. Os novos papéis dos atores estatais criaram, principalmente,
um novo leque de estruturas de reprodução social, que extrapola e muito a sua intervenção sociopolítica na fase
concorrencial. Falamos aqui das políticas públicas sociais, espaços que necessitavam de novos profissionais oriundos
das mais diversas áreas e que foram, por isso, o suporte para o nascimento de inúmeras profissões e ocupações.
Entre as novas categorias profissionais estava o serviço social, especialização inserida predominantemente
na execução terminal das políticas sociais. Nela os assistentes sociais realizam operações de transubstanciação
ideológica, a partir da manipulação de variáveis empíricas do cotidiano das populações usuárias dos seus serviços. A
profissão tem no cotidiano – a instância da heterogeneidade, do espontaneísmo e do imediatismo – o seu horizonte
interventivo, nas inúmeras e difusas manifestações da questão social, a matéria-prima do seu trabalho, e na atuação
prático-empírica nos fenômenos afeitos à reprodução e regulação da vida das classes trabalhadoras e grupos
subalternos o seu modo de intervenção. É por isso uma profissão sem especificidade, com funções extremamente
maleáveis e de difícil definição. Além disso, a estrutura profissional torna o serviço social uma ocupação muito
suscetível ao pensamento positivista, dados os seus influxos pragmáticos e formalistas, que fizeram que profissão
criasse um sistema de saber de segundo grau, baseado nos vetores mais conservadores das ciências sociais.
Tais assertivas mostram que em Netto (2007; 2011b) quase inexistem pontos de contato com a teoria das
profissões. Nele o serviço social, visto como atividade reconhecida e legalmente sancionada, não se legitima pelo
seu saber (elaborado como ciência) ou pelas suas singularidades funcionais. O seu reconhecimento provém da
utilidade das suas aptidões, da sua capacidade para materializar as disposições do seu mandato social. Daí que, em

79
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social

última instância, a legitimidade profissional resulta do duplo dinamismo das forças sociais e das energias práticas,
políticas e teóricas da categoria.
Ora, ao formular esse conjunto de colocações não apenas sintetizamos nossa exposição precedente, mas
demarcamos problemas futuros, questões passíveis de novas investigações. Expliquemos: nossos esforços seguiram
um fluxo determinado – partiram da análise da teoria das profissões e do problema da legitimidade para o serviço
social. Buscamos, com isso, subsídios para o estudo da teorização moderna da categoria profissional no país,
procurando explicitar algumas diferenças decisivas que ela mantém com as concepções hegemônicas dentro das
ciências sociais na abordagem do fenômeno ocupacional.
Verificados alguns dos mais relevantes limites da sociologia das profissões, cabe agora uma indicação
final acerca da necessidade e da possibilidade de realizar o caminho inverso. Noutras palavras: parece-nos que as
conquistas e descobertas dos estudos mais avançados sobre o estatuto do serviço social podem ser uma contribuição
valiosa para a revitalização da teoria das profissões. Em vista do caráter ontológico e efetivo destes estudos, eles
poderiam auxiliar o aprofundamento de uma análise marxista do fenômeno profissional em sua generalidade nas
sociedades capitalistas.
Com isso não queremos dizer que o pensamento de Faleiros (2013), Netto (2007) ou Iamamoto (2008; 2009)
contenha uma teoria explícita sobre as profissões: resta saber é se seus lineamentos poderiam ser desenvolvidos
como tais.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, António José. Contributos da sociologia para a compreensão dos processos de profissionalização.
Medi@ções. Setúbal, v. I, n. 2, pp. 115-127, 2010. Disponível em: <http://mediacoes.ese.ips.pt/index.php/
mediacoesonline/article/viewFile/28/pdf_13>, acessado em 1 fev. 2014.
ANDRADE, Marília. “Serviço social: campos de intervenção e protagonistas do agir”. In: KARSCH, Úrsula
Margarida Simon. Estudos do serviço social: Brasil e Portugal v. II. São Paulo: Educ, 2005, pp. 79-120.
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
DUBAR, Claude. A socialização. A construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
______. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional.  Cad. Pesqui. São Paulo,
v. 42, n. 146,  ago. 2012. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
15742012000200003&lng=pt&nrm=iso>, acessado em 1 fev. 2014.
FALEIROS, Vicente de Paula. Estratégias em serviço social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
_______. Saber profissional e poder institucional. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
_______. Metodologia e ideologia do trabalho social. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
______. Estratégias em serviço social. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
______. Globalização, correlação de forças e serviço social. São Paulo: Cortez, 2013.
FREIDSON, Eliot. Para uma análise comparada das profissões: a institucionalização do discurso e do conhecimento
formais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. XI, n. 31, pp. 141-55, 1996.
______. “A teoria das profissões: situação do setor”. In: FREIDSON, Eliot. O renascimento do profissionalismo: teoria,
profecia e política. São Paulo: Edusp, 1998, pp. 47-63.
HUGHES, Everett Cherrington. Men and their work. Londres: The Free Press of Glencoe-Collier Macmillan, 1958.
______. Professions. Daedalus. Massachusetts, v. 92, n. 4, pp. 655-68, 1963.
IAMAMOTO, Marilda V. O serviço social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 3. ed.
São Paulo: Cortez, 2008.
_______. O serviço social na contemporaneidade. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

Verinotio revista on-line – n. 20. Ano X, out./2015, ISSN 1981-061X


Ludson Rocha Martins

_______. Renovação e conservadorismo no serviço social: ensaios críticos. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
______; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-
metodológica. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1983.
MARTINS, Ludson Rocha. Crítica da legitimidade na teoria das profissões e suas contribuições para o debate sobre os fundamentos
do serviço social. 2014. Dissertação (Mestrado) apresentada à Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora.
MENEGHETTI, Gustavo. Profissões e identidades profissionais: um estudo sobre as teorias e conceitos nas ciências
sociais e no serviço social. 2009. Dissertação (Mestrado) apresentada à Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis.
MONTAÑO, Carlos. Um projeto para o serviço social crítico. Rev. Katálysis. Florianópolis, v. IX, n. 2, dez. 2006.
Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802006000200002&lng=pt&
nrm=iso>, acessado em 1 fev. 2014.
_______. A natureza do serviço social: um ensaio sobre sua gênese, a “especificidade” e sua reprodução. 2. ed. São
Paulo: Cortez, 2011.
MOTA, Ana Elizabete. Serviço social brasileiro: profissão e área do conhecimento. Rev. Katálysis. Florianópolis, v.
XVI, n. spe, pp. 17-27, 2013. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
49802013000300003&lng=pt&nrm=iso>, acessado em 3 maio 2014.
NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e serviço social. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
______. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 15. ed. São Paulo: Cortez, 2011a.
_______. “As perspectivas teórico-metodológicas contemporâneas no serviço social”. In: SERVIÇO SOCIAL DO
COMÉRCIO; CENTRO BRASILEIRO DE COOPERAÇÃO DE INTERCÂMBIO DE SERVIÇOS SOCIAIS
(Org.). O trabalho social França-Brasil. São Paulo: Sesc/CBCISS, 2011b, pp. 145-62.
PARSONS, Talcott. Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969.
______. “Estructura social y proceso dinámico: el caso de la práctica médica moderna”. In: El sistema social. Madri:
Alianza, 1982, pp. 274-305.

81
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

As Dimensões Ético-políticas e Teórico-metodológicas no Serviço


Social Contemporâneo∗
∗∗
Por Marilda Villela Iamamoto
El tiempo
Tiene color de noche
De una noche quieta.
...
Y el tiempo se ha dormido
para sempre en su torre.
Nos engañan
Todos los reloges.
El tiempo tiene ya horizontes
(Lorca∗∗∗

Introdução

Vive-se uma época de regressão de direitos e destruição do legado de conquistas


históricas dos trabalhadores em nome da defesa, quase religiosa, do mercado e do capital,
cujo reino se pretende a personificação da democracia, das liberdades e da civilização. A
mistificação inerente ao capital, enquanto relação social alienada que monopoliza os frutos
do trabalho coletivo, obscurece a fonte criadora que anima o processo de acumulação em
uma escala exponencial no cenário mundial: o universo do trabalho. Intensifica-se a investida
contra a organização coletiva de todos aqueles que, destituídos de propriedade, dependem de
um lugar nesse mercado, cada dia mais restrito e seletivo, que lhes permita produzir o

∗ - Texto base da conferencia magistral do XVIII Seminário Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social,. San José,
Costa Rica, 12 de julio de 2004, originalmente publicado nos Anais do referido Seminário: MOLINA, M. L. M. (Org.)
La cuestión social y la formación profesional en el contexto de las nuevas relaciones de poder y la diversidad
latinoamericana. San José, Costa Rica: ALAETS/Espacio Ed./Escuela de Trabajo Social, 2004, p. 17-50.
∗∗ - Assistente Social, Doutora em Ciências Sociais, Professora Titular aposentada da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente Professora Titular da Faculdade de Serviço Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Publicou vários livros, entre os quais: Renovação e Conservadorismo
no Serviço Social (São Paulo,:Cortez Ed., 1992), que atinge hoje a 8ªedição; O Serviço Social na Contemporaneidade:
trabalho e formação profissional (São Paulo: Cortez Ed., 1998) atualmente na 10ªedição; Trabalho e Indivíduo
social.(São Paulo: Cortez, 2001),na 2ªedição; e, em co-autoria com Raul de Carvalho: Relações Sociais e Serviço
Social no Brasil (São Paulo: Cortez Ed., 1982), hoje na 18ºedição.
∗∗∗
LORCA, Federico Garcia. Meditación primera y última. In: Obra poética Completa. São Paulo: Martins
Fontes,1966, pp. 610.
Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 1
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

equivalente de seus meios de vida. Crescem, com isso, as desigualdades e, com elas, o
contingente de destituídos de direitos civis, políticos e sociais. Esse processo é potenciado pelas
orientações (neo)liberais, que capturam os Estados nacionais, erigidas pelos poderes
imperialistas como caminho único para animar o crescimento econômico, cujo ônus recai
sobre as grandes maiorias.

Transformações históricas de monta alteraram a face do capitalismo nos países centrais


e, em particular, na América Latina. Na contratendência de um longo período de crise da
economia mundial, o capitalismo avançou em sua vocação de internacionalizar a produção e
os mercados, requerendo políticas de “ajustes estruturais” por parte dos Estados nacionais.
Preconizadas pelos países imperiais por intermédio dos organismos multilaterais, essas
políticas dão livre curso ao capital especulativo financeiro destituído de regulamentações e à
lucratividade dos grandes conglomerados multinacionais (BORÓN, 1995). Um mundo
internacionalizado requer um Estado dócil aos influxos neoliberais, mas ao mesmo tempo forte
internamente - ao contrário do que é propalado pelo ideário neoliberal da minimização do
Estado - para traduzir essas demandas em políticas nacionais e resistir à oposição e protestos
de muitos, comprometendo a soberania das nações. (PETRAS, 2002)

O projeto neoliberal é expressão dessa reestruturação política e ideológica conservadora


do capital em resposta a perda de rentabilidade e “governabilidade”, que enfrentou durante a
década de 1970 (FIORI, apud SOARES, 2003), no marco de uma onda longa de crise
capitalista (MANDEL, 1985). O capital cria as condições históricas necessárias para a
generalização de sua lógica de mercantilização universal, submetendo aos seus domínios e
objetivos de acumulação o conjunto das relações sociais: a economia, a política, a cultura.

O caráter conservador do projeto neoliberal se expressa, de um lado, na naturalização


do ordenamento capitalista e das desigualdades sociais a ele inerentes tidas como inevitáveis,
obscurecendo a presença viva dos sujeitos sociais coletivos e suas lutas na construção da
história; e, de outro lado, em um retrocesso histórico condensado no desmonte das conquistas
sociais acumuladas, resultantes de embates históricos das classes trabalhadoras,
consubstanciadas nos direitos sociais universais de cidadania, que têm no Estado uma
mediação fundamental. As conquistas sociais acumuladas são transformadas em “problemas

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 2


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

ou dificuldades”, causa de “gastos sociais excedentes”, que se encontrariam na raiz da crise


fiscal dos Estados.

A contrapartida tem sido a difusão da idéia liberal de que o “bem-estar social” pertence
ao foro privado dos indivíduos, famílias e comunidades. A intervenção do Estado no
atendimento às necessidades sociais é pouco recomendada, transferida ao mercado e à
filantropia, como alternativas aos direitos sociais.

Como lembra Yazbek (2001), o pensamento liberal estimula um vasto empreendimento


de “refilantropização do social”, já que não admite os direitos sociais, uma vez que os
metamorfoseia em dever moral: opera, assim, uma profunda despolitização da “questão
social”, ao desqualificá-la como questão pública, questão política e questão nacional.

A atual desregulamentação das políticas públicas e dos direitos sociais desloca a atenção
à pobreza para a iniciativa privada ou individual, impulsionada por motivações solidárias e
benemerentes, submetidas ao arbítrio do indivíduo isolado, e não à responsabilidade pública
do Estado.

As conseqüências de transitar a atenção à pobreza da esfera pública dos direitos para a


dimensão privada do dever moral são: a ruptura da universalidade dos direitos e da
possibilidade de sua reclamação judicial, a dissolução de continuidade da prestação dos
serviços submetidos à decisão privada, tendentes a aprofundar o traço histórico assistencialista
e a regressão dos direitos sociais.

O resultado no campo das políticas públicas na área social, na América Latina, tem sido
o reforço de traços de improvisação e inoperância, o funcionamento ambíguo e sua
impotência na universalização do acesso aos serviços dela derivados. Permanecem políticas
casuísticas e fragmentadas, sem regras estáveis e operando em redes públicas obsoletas e
deterioradas”. (YAZBEK, 2001:37). E reafirma Soares:

A filantropia substitui o direito social. Os pobres substituem os cidadãos. A


ajuda individual substitui a solidariedade coletiva. O emergencial e o provisório
substituem o permanente. As micro-situações substituem as políticas públicas.
O local substitui o regional e o nacional. É o reinado minimalismo do social
para enfrentar a globalização da economia. Globalização só para o grande
capital. Do trabalho e da pobreza cada um cuida do seu como puder. De

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 3


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

preferência, um Estado forte para sustentar o sistema financeiro e falido para


cuidar do social. (SOARES, 2003:12)

O resultado tem sido uma ampla radicalização da concentração de renda, da


propriedade e do poder, na contrapartida de um violento empobrecimento da população;
uma ampliação brutal do desemprego e do subemprego; o desmonte dos direitos
conquistados e das políticas sociais universais, impondo um sacrifício forçado a toda a
sociedade. À reestruturação da produção e dos mercados -apoiada mais em métodos de
consumo intensivo da força de trabalho do que em inovações científicas e tecnológicas de
última geração- somam-se mudanças regressivas na relação entre o Estado e sociedade
quando a referência é a vida de todos e os direitos conquistados pelas grandes maiorias.

A cultura da “pós-modernidade”, na sua versão neoconservadora, é produzida no lastro


do atual estágio do que Harvey (1993) denomina de “acumulação flexível do capital”. Ela é
condizente com a mercantilização universal e sua indissociável descartabilidade,
superficialidade e banalização da vida e gera tremores e cismas nas esferas dos valores e da
ética orientados à emancipação humana. O pensamento pós-moderno contrapõe-se às
teorias sociais que, apoiadas nas categorias da razão moderna, cultivam as “grandes
narrativas”. Assim, questiona, nivelando, os paradigmas positivista e marxista e dilacera
projetos e utopias. Reitera, em contrapartida, a importância do fragmento, do efêmero, do
intuitivo e do micro-social. Invade a arte, a cultura, os imaginários e suas crenças, os saberes
cotidianos, as dimensões étnicas, raciais, religiosas e culturais na construção de identidades
esvaziadas de história (NETTO, 1996;YAZBEK, 2001; SIMIONATO,1999).

Mas, ao mesmo tempo, essa sociedade apresenta um terreno minado de resistências e lutas
travadas no dia a dia de uma conjuntura adversa para os trabalhadores, as quais carecem de maior
organicidade para terem força na cena pública. Este cenário, avesso aos direitos, atesta,
contraditoriamente, a urgência de seu debate e de sua afirmação na realidade latino-americana, em
sua unidade de diversidades. Um debate que considere as particulares condições sócio-históricas e
culturais que, no País, fundam a construção dos direitos enquanto conquistas e/ou concessões do
poder, e os dilemas de sua efetivação na prática social. Esses são, também, dilemas do Serviço Social.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 4


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

Um contexto sócio-histórico refratário aos influxos democráticos exige,


contraditoriamente, a construção de uma nova forma de fazer política - que impregne a
formação e o trabalho dos assistentes sociais- capaz de acumular forças na construção de
novas relações entre o Estado e a sociedade civil que reduzam o fosso entre o desenvolvimento
econômico e o desenvolvimento social, entre o desenvolvimento das forças produtivas e das
relações sociais. Requer, portanto, uma concepção de cidadania e de democracia para além
dos marcos liberais. A cidadania entendida como capacidade de todos os indivíduos, no caso
de uma democracia efetiva, de se apropriarem dos bens socialmente produzidos, de
atualizarem as potencialidades de realização humana, abertas pela vida social em cada
contexto historicamente determinado. Nessa concepção abrangente, a democracia inclui a
socialização da economia, da política e da cultura na direção da emancipação humana,
como sustenta Coutinho (2000).

A cena contemporânea reclama, com urgência, um tempo de “política dos cidadãos”, como
qualifica Nogueira:

concentrada no bem comum, no aproveitamento civilizado do conflito e da


diferença, na valorização do diálogo, do consenso e da comunicação, na
defesa da crítica e da participação, da transparência e da integridade numa
operação que se volta para uma aposta na inesgotável capacidade criativa dos
homens. (NOGUEIRA, 2001:58).

É a “política com muita política”, em contraposição à “pequena política” e à “política dos


técnicos”, a contra-política. Em outras palavras, o novo que perseguimos é o compromisso
com a prevalência do debate público e da participação democrática, que abra caminhos para
que cidadãos organizados interfiram e deliberem nas questões de interesse coletivo, na busca
de consensos possíveis para resolver os conflitos, organizar e viver a vida. (NOGUEIRA,
2001).

Esse é o terreno que atualiza a luta por direitos, fundamental em uma época que
descaracterizou a cidadania ao associá-la ao consumo, ao mundo do dinheiro e à posse das
mercadorias. Um projeto democrático se constrói no jogo de poderes e contra-poderes, na
receptividade às diferenças, na transparência das decisões, com publicização e controle
constante dos atos de poder e na afirmação da soberania popular. Os assistentes sociais

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 5


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

também são seus protagonistas sem abrir mão da crítica e do controle social do Estado. Este é
terreno em que um projeto ético-político profissional comprometido com a universalização dos
direitos pode enraizar-se e expandir-se.

O Serviço Social latino-americano está reconstruindo uma face acadêmica, profissional e


social renovada, cujas origens remontam ao movimento de reconceituação - voltada à defesa
dos direitos de cidadania e dos valores democráticos, na perspectiva da liberdade, da
equidade e da justiça social. Na contramão dos dogmas oficiais, segmentos dos assistentes
sociais têm buscado um compromisso efetivo com os interesses públicos, atuando na defesa
dos direitos sociais dos cidadãos e cidadãs e na sua viabilização junto aos segmentos
majoritários da população, o que coloca a centralidade da questão social para o trabalho e a
formação profissional no contexto latino-americano.

Poder-se-ia dizer que, na América Latina, os assistentes sociais há muito acenaram a


bandeira da esperança - essa rebeldia que rejeita o conformismo e a derrota-, contradizendo
a cultura da indiferença, do medo e da resignação que conduz à naturalização das
desigualdades sociais, da violência, de preconceitos de gênero, raça e etnia. E conseguiram
manter viva a capacidade de indignação ante o desrespeito aos direitos humanos e sociais de
homens e mulheres, crianças, jovens e idosos das classes subalternas com os quais trabalhamos
cotidianamente.

A categoria profissional desenvolve uma ação de cunho sócio-educativo na prestação de


serviços sociais viabilizando o acesso aos direitos e aos meios de exercê-los, contribuindo para
que necessidades e interesses dos sujeitos de direitos adquiram visibilidade na cena pública e
possam, de fato, ser reconhecidos. Esses profissionais afirmaram o compromisso com os
direitos e interesses dos usuários, na defesa da qualidade dos serviços prestados, em
contraposição à herança conservadora do passado. Importantes investimentos acadêmico-
profissionais foram realizados no sentido de se construir uma nova forma de pensar e fazer o
Serviço Social, orientadas por uma perspectiva teórico-metodológica apoiada na teoria social
crítica e em princípios éticos de um humanismo radicalmente histórico, norteadores do projeto
de profissão no Brasil.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 6


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

A exposição, a seguir, considera: a) O Serviço Social contemporâneo: fundamentos


históricos, teórico-metodológicos, e ético-políticos; b) o projeto profissional c) Serviço Social e
as estratégias para o enfrentamento da questão social: desafios para a formação e para o
trabalho profissional.

2. O Serviço Social contemporâneo: fundamentos históricos, teórico-metodológicos e


éticos-políticos

2. 1. Perspectiva de análise
Para analisar a profissão como parte das transformações históricas da sociedade
presente, é necessário transpor o universo estritamente profissional, isto é, romper com uma
visão endógena da profissão, prisioneira em seus muros internos. E buscar entender como
essas transformações atingem o conteúdo e direcionamento da própria atividade profissional;
as condições e relações de trabalho nas quais se realiza; afetam as atribuições, competências
e requisitos da formação do assistente social.

Essa perspectiva exige alargar os horizontes para o movimento das classes sociais e do
Estado em suas relações com a sociedade, não para perder ou diluir as particularidades
profissionais, mas, ao contrário, para iluminá-las com maior nitidez; extrapolar o universo do
Serviço Social para melhor apreendê-lo na história da sociedade da qual ele é parte e
expressão.

O atual quadro sócio-histórico não se reduz, portanto, a um pano de fundo para que se
possa, depois, discutir o trabalho profissional. Ele atravessa e conforma o cotidiano do
exercício profissional do assistente social afetando as suas condições e as relações em que se
realiza o exercício profissional, assim como a vida da população usuária dos serviços sociais.

A análise crítica desse quadro requer um diagnóstico não liberal sobre os processos
sociais e a profissão neles inscrita. Uma análise do Serviço Social que afirme a centralidade do
trabalho na conformação da questão social e dos direitos sociais consubstanciados em

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 7


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

políticas sociais universais, em contraposição às alternativas focalizadas e fragmentadas de


combate à pobreza e à miséria, que trata as maiorias como residuais.

Como pensar o Serviço Social nesse contexto?

Desde a década de oitenta, vem sendo reiterado que a profissão de Serviço Social é uma
especialização do trabalho da sociedade, inscrita na divisão social e técnica do trabalho
social1, o que supõe afirmar o primado do trabalho na constituição dos indivíduos sociais2. Ao
indagar-se sobre significado social do Serviço Social no processo de produção e reprodução
das relações sociais, tem-se um ponto de partida e um norte. Este não é a prioridade do
mercado - ou da esfera da circulação -, tão cara aos liberais. Para eles, a esfera privilegiada
na compreensão da vida social é a esfera da distribuição da riqueza, visto que as leis
históricas que regem a sua produção são tidas como leis “naturais”, isto é, assemelhadas
àquelas da natureza, de difícil alteração por parte da ação humana.

A análise do Serviço Social no âmbito das relações sociais capitalistas visa superar os
influxos liberais que grassam as análises sobre a chamada “prática profissional”, vista como
prática do indivíduo isolado, desvinculada da trama social que cria sua necessidade e
condiciona seus efeitos na sociedade. Os processos históricos são reduzidos a um “contexto”
distinto da prática profissional, que a condiciona ”externamente”. A “prática” é tida como
uma relação singular entre o assistente social e o usuário de seus serviços -, seu “cliente”-
desvinculada da “questão social” e das políticas sociais.

Essa visão ahistórica e focalista tende a subestimar o rigor teórico-metodológico para a


análise da sociedade e da profissão, - desqualificado como “teoricismo” - em favor das visões
empiristas, pragmáticas e descritivas da sociedade e do exercício profissional, enraizadas em
um positivismo camuflado sob um discurso progressista de esquerda. Nessa perspectiva, a
formação profissional deve privilegiar a construção de estratégias, técnicas e formação de

1 - sa perspectiva de análise foi introduzida no Serviço Social brasileiro, em 1982. (Cf. IAMAMOTO & CARVALHO,
1982; IAMAMOTO, 1992).
2 - centralidade do trabalho na constituição dos indivíduos sociais foi diluído nas interpretações do marxismo
herdadas do movimento de reconceituação; um marxismo sem Marx, carregado de fortes marcas do estruturalismo
francês de Althusser e do marxismo soviético e/ou de inspiração maoísta.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 8


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

habilidades – centrando-se no “como fazer’ – a partir da justificativa que o Serviço Social é


uma “profissão voltada à intervenção no social”. Esse caminho está fadado a criar um
profissional que aparentemente sabe fazer, mas não consegue explicar as razões, o conteúdo,
a direção social e os efeitos de seu trabalho na sociedade. Corre-se o perigo do assistente
socialser reduzido a um mero “técnico”, delegando a outros - cientistas sociais, filósofos,
historiadores, economistas, etc - a tarefa de pensar a sociedade. O resultado é um profissional
mistificado e da mistificação, dotado de uma frágil identidade com profissão. Certamente o
Serviço Social é uma profissão que, como todas as demais, envolve uma atividade
especializada - que dispõe de particularidades na divisão social e técnica do trabalho coletivo
- e requer fundamentos teórico-metodológicos, a eleição de uma perspectiva ética e a
formação de habilidades densas de política. A perspectiva de análise da profissão, ora
apresentada, contrapõe-se às concepções liberais e (neo)conservadoras do exercício
profissional.

A reprodução das relações sociais na sociedade capitalista, a partir da teoria social


crítica, é entendida como reprodução da totalidade concreta desta sociedade, em seu
movimento e em suas contradições. É reprodução de um modo de vida que envolve o
cotidiano da vida social: um modo de viver e de trabalhar socialmente determinado.

O processo de reprodução das relações sociais não se reduz, pois, à reprodução da


força viva de trabalho e dos meios materiais de produção, ainda que os abarque. Ele refere-
se à reprodução das forças produtivas sociais do trabalho e das relações de produção na sua
globalidade, envolvendo sujeitos e suas lutas sociais, as relações de poder e os antagonismos
de classes. Envolve a reprodução da vida material e da vida espiritual, isto é, das formas de
consciência social – jurídicas, religiosas, artísticas, filosóficas e científicas - através das quais os
homens tomam consciência das mudanças ocorridas nas condições materiais de produção,
pensam e se posicionam perante a vida em sociedade.

Esse modo de vida implica contradições básicas: por um lado, a igualdade jurídica dos
cidadãos livres é inseparável da desigualdade econômica, derivada do caráter cada vez mais
social da produção, contraposta à apropriação privada do trabalho alheio (quem produz não
é quem se apropria da totalidade do produto do trabalho, da riqueza criada coletivamente).

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 9


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

Por outro lado, ao crescimento do capital corresponde a crescente pauperização relativa do


trabalhador. Esta é a lei geral da produção capitalista, que se encontra na raiz da “questão
social” nessa sociedade.

Assim, o processo de reprodução das relações sociais não é mera repetição ou reposição
do instituído. É, também, criação de novas necessidades, de novas forças produtivas sociais
do trabalho em cujo processo se aprofundam as desigualdades e criam-se novas relações
sociais entre os homens na luta pelo poder e pela hegemonia entre diferentes classes e grupos
na sociedade. Essa é uma noção aberta ao vir-a-ser histórico, à criação do novo, que captura
o movimento e a tensão das relações sociais entre as classes e sujeitos que as constituem, as
formas mistificadas que as revestem, assim como as possibilidades de ruptura com a
alienação por meio da ação criadora dos homens na construção da histórica.

Esse rumo da análise recusa visões unilaterais que apreendem dimensões isoladas da
realidade, sejam elas de cunho economicista, politicista ou culturalista. A preocupação é
afirmar a ótica da totalidade na apreensão da dinâmica da vida social e procurar identificar
como o Serviço Social participa no processo de produção e reprodução das relações sociais.

As condições que peculiarizam o trabalho do assistente social são uma concretização da


dinâmica das relações sociais vigentes na sociedade. Como as classes sociais só existem em
relação, pela mútua mediação entre elas, o trabalho profissional é necessariamente
polarizado pela trama de suas relações e interesses, tendendo a ser cooptado pelas que têm
uma posição dominante. Reproduz, também, pela mesma atividade interesses contrapostos,
que convivem em tensão. Responde tanto a demandas do capital e do trabalho, e só pode
fortalecer um ou outro pólo pela mediação de seu oposto. Participa tanto dos mecanismos de
exploração e dominação, quanto, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da resposta às
necessidades de sobrevivência da classe trabalhadoras, da reprodução do antagonismo
desses interesses sociais, reforçando as contradições que constituem o motor da história. A
partir dessa compreensão é que se pode estabelecer uma estratégia profissional e política
coletiva para fortalecer as metas do capital ou do trabalho, embora elas não possam ser
excluídas do contexto do trabalho profissional.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 10


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

Isso significa que o exercício profissional participa de um mesmo movimento que tanto
permite a continuidade da sociedade de classes quanto cria as possibilidades de sua
transformação. Como a sociedade na qual se inscreve o exercício profissional é atravessada
por projetos sociais distintos - projeto de classes para a sociedade – tem-se um terreno sócio-
histórico aberto à construção de projetos profissionais também diversos, indissociáveis dos
projetos mais amplos para a sociedade. É essa presença de forças sociais e políticas reais –
que não são mera ilusão -, que permite à categoria profissional estabelecer estratégias
político-profissionais no sentido de reforçar interesses das classes subalternas, alvo prioritário
das ações profissionais. Sendo a profissão atravessada por relações de poder, ela dispõe de
um caráter essencialmente político, o que não decorre apenas das intenções pessoais do
assistente social, mas dos condicionantes histórico-sociais dos contextos em que se insere e
atua.

Em síntese, o Serviço Social situa-se no processo de reprodução das relações sociais


como uma atividade auxiliar e subsidiária no exercício do controle social e da ideologia, isto
é, na criação de bases políticas para a hegemonia das classes fundamentais. Intervém, ainda,
através dos serviços sociais, na criação de condições favorecedoras da reprodução da força
de trabalho. Por outro lado, se essas relações são antagônicas; se, apesar das iniciativas do
Estado visando o controle e à atenuação dos conflitos, esses se reproduzem, o Serviço Social
contribui, também, para a reprodução dessas mesmas contradições que caracterizam a
sociedade capitalista.

A profissão é tanto um dado histórico, indissociável das particularidades assumidas pela


formação e desenvolvimento a sociedade brasileira quanto resultante dos sujeitos sociais que
constroem sua trajetória e redirecionam seus rumos. Considerando a historicidade da profissão
- seu caráter transitório e socialmente condicionado - ela se configura e se recria no âmbito
das relações entre o Estado e a sociedade, fruto de determinantes macro-sociais que
estabelecem limites e possibilidades ao exercício profissional inscrito na divisão social e técnica
do trabalho e apoiado nas relações de propriedade que a sustentam.

Pensar o projeto profissional supõe articular essa dupla dimensão: a) de um lado, as


condições macro-societárias que tecem o terreno sócio-histórico em que se exerce a profissão,

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 11


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

seus limites e possibilidades que vão além da vontade do sujeito individual; b) e, de outro
lado, as respostas de caráter ético-político e técnico-operativo- apoiadas em fundamentos
teóricos e metodológicos – de parte dos agentes profissionais a esse contexto. Elas traduzem
como esses limites e possibilidades são apropriados, analisados e projetados pelos assistentes
sociais. O exercício da profissão exige, portanto, um sujeito profissional que tem competência
para propor, para negociar com a instituição os seus projetos, para defender o seu campo de
trabalho, suas qualificações e atribuições profissionais. Requer ir além das rotinas
institucionais para buscar apreender, no movimento da realidade, as tendências e
possibilidades, ali presentes, passíveis de serem apropriadas pelo profissional, desenvolvidas e
transformadas em projetos de trabalho.

2.2. Os fundamentos do processo de institucionalização e desenvolvimento da profissão: trajetória e


desafios
É freqüente a afirmativa que o Serviço Social se torna profissão quando impõe uma base
técnico-científica às atividades de ajuda, à filantropia. Ou, em outros termos, quando se
processa uma tecnificação da filantropia. Essa é a tônica do discurso dos pioneiros e de
grande parte da literatura especializada abrangendo, inclusive, autores do movimento de
reconceituação. Essa é uma visão de dentro e por dentro das fronteiras do Serviço Social,
como se ele fosse fruto de uma evolução interna e autônoma dos sujeitos que a ele se
dedicam.

A profissionalização do Serviço Social pressupõe a expansão da produção e de relações sociais


capitalistas, impulsionadoras da industrialização e urbanização, que trazem, no seu verso, a “questão
social”. A luta dos trabalhadores por seus direitos invade a cena política, exigindo do Estado o seu
reconhecimento público. O Estado amplia-se, nos termos de Gramsci (1978), e passa a administrar e
gerir o conflito de classe não apenas via coerção, mas buscando construir um consenso favorável ao
funcionamento da sociedade no enfrentamento da questão social.

O Estado, ao centralizar a política sócio-assistencial efetivada através da prestação de serviços


sociais, cria as bases sociais que sustentam um mercado de trabalho para o assistente social. O Estado
e os estratos burgueses tornam-se uma das molas propulsoras dessa qualificação profissional,
legitimada pelo poder. O Serviço Social deixa de ser um mecanismo da distribuição da caridade
Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 12
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

privada das classes dominantes - rompendo com a tradicional filantropia -, para transformar-se em
uma das engrenagens da execução das políticas públicas e de setores empresariais, seus maiores
empregadores.

O Serviço Social desenvolve-se dentro de um padrão de desenvolvimento do pós-guerra,


nos “trinta anos gloriosos” que marcaram uma ampla expansão da economia capitalista sob
a hegemonia do capital industrial3.

A expansão industrial, inspirada no padrão fordista-taylorista, voltada à produção em


massa para o consumo de massa, dinamiza a acumulação de capital gerando excedentes,
parcela dos quais é canalizada para o Estado no financiamento de políticas públicas,
contribuindo para a socialização dos custos de reprodução da força de trabalho.

A política keynesiana, direcionada ao “pleno emprego” e à manutenção de um padrão


salarial capaz de manter o poder de compra dos trabalhadores, implicou o reconhecimento
do movimento sindical em sua luta por reivindicações políticas e econômicas. Permitiu, assim,
que famílias pudessem aplicar sua renda monetária para consumir e dinamizar a economia. A
prestação de serviços sociais públicos foi estimulada, criando condições para a constituição e
desenvolvimento da profissão.

Esse padrão de acumulação entrou em crise em meados dos anos setenta, a que se acresce, na
década de 1880, o débâcle do Leste Europeu e a queda do muro de Berlim, reorganizando o poder
no cenário internacional.

Profundas alterações nas formas de produção e de gestão do trabalho têm sido introduzidas ante
as novas exigências do mercado oligopolizado, em um contexto de internacionalização do capital
orquestrada não mais pelo capital industrial, mas pela financeirização da economia.

As mudanças na produção de bens e serviços se complementam com novas relações entre o


Estado e sociedade de classes, fundadas numa visão que atribui ao Estado a responsabilidade
prioritária pelas desgraças e infortúnios que afetam a sociedade. A contrapartida é uma santificação

3 - Recupero, a seguir, elementos analíticos presentes em: Iamamoto (1998).

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 13


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

do mercado e da iniciativa privada, esferas da eficiência, da probidade, da austeridade (Borón, 1995).


O resultado é um amplo processo de privatização da coisa pública: um Estado cada vez mais
submetido aos interesses econômicos e políticos dominantes no cenário internacional e nacional,
renunciando a dimensões importantes da soberania da nação em nome das exigências do grande
capital financeiro e dos compromissos com as dívidas interna e externa.

Tais processos atingem não só a economia e a política afetando, também, as formas de


sociabilidade. Vive-se a “sociedade de mercado” (LECHNER, 1999) e os critérios de racionalidade do
mercado - tido como o eixo regulador da vida social -, invadem diferentes esferas da vida social. Essas
passam a ser analisadas segundo uma lógica pragmática e produtivista que erige a competitividade, a
rentabilidade, a eficácia e eficiência como critérios para referenciar as análises sobre a vida em
sociedade.

Forja-se assim uma mentalidade utilitária, que reforça o individualismo, onde cada um é
chamado a “se virar” no mercado. Ao lado da naturalização da sociedade – “é assim mesmo, não há
como mudar” -, ativam-se os apelos morais à solidariedade, na contraface da crescente degradação
das condições de vida das grandes maiorias.

Esse cenário, de nítido teor conservador, atinge as formas culturais, a subjetividade, a


sociabilidade, as identidades coletivas, erodindo projetos e utopias. E estimula um clima de incertezas
e desesperanças. O enfraquecimento das redes de sociabilidade e sua subordinação às leis mercantis
estimulam atitudes e condutas centradas no indivíduo isolado, em que cada um “é livre” para assumir
os riscos, as opções e responsabilidades por seus atos em uma sociedade de desiguais.

A competitividade internacional torna a qualidade dos produtos um requisito para


enfrentar a concorrência, exigindo, ao mesmo tempo, reduzir custos e ampliar as taxas de
lucratividade. Nessa lógica, o rebaixamento dos custos do chamado “fator trabalho” tem peso
importante: envolve cortes de salário e de direitos conquistados. Surge o trabalhador
polivalente, chamado a exercer várias funções no mesmo tempo e com o mesmo salário.
Verifica-se um amplo enxugamento das empresas com a terceirização e a decorrente redução
do quadro de pessoal, tanto nas empresas quanto no Estado.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 14


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

Esse processo estimula um acelerado desenvolvimento científico e tecnológico para


enfrentar a concorrência intercapitalista, contribuindo para a redução de custos e ampliação
dos níveis de lucratividade; resulta em mudanças nas formas de organizar a produção e
consumir a força de trabalho, envolvendo ampla redução dos postos de trabalho. Reduz-se a
demanda de trabalho vivo ante o trabalho passado incorporado nos meios de produção, com
elevação da composição técnica e de valor do capital. Apoiada na robótica, na micro-
eletrônica, na informática - dentre outros avanços científicos-, a reestruturação produtiva afeta
radicalmente a produção de bens e serviços, a organização e gestão do trabalho, as
condições e relações de trabalho, assim como o conteúdo do próprio trabalho.

Complementam esse quadro radicais mudanças nas relações Estado/sociedade civil


orientadas pela terapêutica neoliberal, traduzida nas políticas de ajuste recomendadas pelo
“Consenso de Washington”. (BAPTISTA,1994). Por meio de vigorosa intervenção estatal a
serviço dos interesses privados articulados no bloco do poder, contraditoriamente, conclama-se,
sob inspiração liberal, a necessidade de reduzir a ação do Estado na questão social mediante a
restrição de gastos sociais, em decorrência da crise fiscal do Estado. O resultado é um amplo
processo de privatização da coisa pública: um Estado cada vez mais submetido aos interesses
econômicos e políticos dominantes no cenário internacional e nacional, renunciando a
dimensões importantes da soberania da nação em nome dos interesses do grande capital
financeiro e de honrar os compromissos morais com as dívidas interna e externa.

A crítica neoliberal sustenta que os serviços públicos, organizados à base de princípios


de universalidade e gratuidade, superdimensionam o gasto estatal. Daí a proposta de reduzir
despesas (e, em especial, os gastos sociais), diminuir atendimentos, restringir meios
financeiros, materiais e humanos para implementação dos projetos. Programas focalizados e
seletivos substituem as políticas sociais de acesso universal. Eles requerem cadastro e
comprovação da pobreza, como se ela fosse residual, com todos os constrangimentos
burocráticos e morais às vítimas de tais procedimentos. Dentre as características daqueles
programas sociais, como sintetiza Soares (2003), tem-se a dependência de recursos externos
para o seu financiamento; o caráter transitório que impede sua continuidade no espaço e
tempo, comprometendo seus impactos e a sua efetividade; o estímulo ao autofinanciamento –
via pagamento direto – em detrimento de formas públicas e distributivas, típicas de regimes

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 15


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

tributários mais justos; a substituição de agentes públicos estatais por “organizações


comunitárias” ou “não governamentais”, financiadas por recursos públicos e que, nem sempre,
preservam o caráter público de suas ações no acesso aos programas e nos contratos de
trabalho de seus agentes. Estes são geralmente submetidos ao trabalho temporário, aos
baixos salários e à precarização. Os critérios de gestão empresarial – custo-benefício,
terceirização, produtividade etc - passam a ser incorporados pelos organismos estatais, ao
mesmo tempo em que é estimulada a privatização, com alto grau de mercantilização dos
serviços sociais. A descentralização das políticas e programas sociais, nem sempre é
acompanhada de correspondente transferência de recursos.

Diante de tais características, o assistente social, que é chamado a implementar e


viabilizar direitos sociais e os meios de exercê-los, se vê tolhido em suas ações que dependem
de recursos, condições e meios de trabalho cada vez mais escassos para as políticas e serviços
sociais públicos.

Esse novo momento de expansão capitalista altera a demanda de trabalho do assistente


social, modifica o mercado de trabalho, altera os processos e as condições de trabalho nos
quais os assistentes sociais ingressam enquanto profissionais assalariados. As relações de
trabalho tendem a ser desregulamentadas e flexibilizadas. Verifica-se uma ampla retração dos
recursos institucionais para acionar a defesa dos direitos e dos meios de acessá-los. Enfim,
tem-se um redimensionamento das condições do exercício profissional que ele se efetiva pela
mediação do trabalho assalariado.

2.3 Questão social e Serviço Social


O Serviço Social tem na “questão social” a base de sua fundação enquanto
especialização do trabalho. “Questão social” apreendida enquanto o conjunto das expressões
das desigualdades da sociedade capitalista que tem uma raiz comum: a produção social é
cada vez mais social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada,
monopolizada por uma parte da sociedade.

Os assistentes sociais, por meio da prestação de serviços sócio-assistenciais nas


organizações públicas privadas, interferem nas relações sociais cotidianas no atendimento às

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 16


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

mais variadas expressões da “questão social” vividas pelos indivíduos sociais no trabalho, na
família, na luta pela moradia e pela terra, na saúde, na assistência social pública, etc.

A “questão social” sendo desigualdade é, também, rebeldia, pois os sujeitos sociais, ao


vivenciarem as desigualdades, a elas também resistem e expressam seu inconformismo. É
nesta tensão entre produção da desigualdade, da rebeldia e da resistência que trabalham os
assistentes sociais, situados nesse terreno movido por interesses sociais distintos, os quais não é
possível abstrair- ou deles fugir- porque tecem a trama da vida em sociedade.

Por isso, decifrar as novas mediações através das quais se expressa a “questão social” na
cena contemporânea é de fundamental importância para o Serviço Social em uma dupla
perspectiva: para que se possa apreender as várias expressões que as desigualdades sociais
assumem na atualidade e os processos de sua produção e reprodução ampliada; e para
projetar e forjar formas de resistência e de defesa da vida. Formas de resistência já presentes,
por vezes de forma parcialmente ocultas, no cotidiano dos segmentos majoritários da
população que dependem do trabalho para a sua sobrevivência. Assim, apreender a “questão
social” é também captar as múltiplas formas de pressão social, de invenção e de re-invenção
da vida, construídas no cotidiano.

Na atualidade, a “questão social” diz respeito ao conjunto multifacetado das expressões


das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a
intermediação do Estado. A “questão social” expressa desigualdades econômicas, políticas e
culturais das classes sociais, mediadas por disparidades nas relações de gênero, características
étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade
civil no acesso aos bens da civilização.

Dispondo de uma dimensão estrutural, a “questão social” atinge visceralmente a vida


dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania. (IANNI, 1992), no embate pelo respeito
aos direitos civis, sociais e políticos e aos direitos humanos. Esse processo é denso de
conformismos e rebeldias, expressando a consciência e a luta pelo reconhecimento dos direitos
de cada um e de todos os indivíduos sociais. É nesse terreno de disputas que trabalham os
assistentes sociais.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 17


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

Foram as lutas sociais que romperam o domínio privado nas relações entre capital e
trabalho, extrapolando a “questão social” para a esfera pública, exigindo a interferência do
Estado no reconhecimento e a legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos,
consubstanciados nas políticas e serviços sociais.

Atualmente, a “questão social” passa a ser objeto de um violento processo de


criminalização que atinge as classes subalternas (IANNI:1992; GUIMARÃES:1979) Recicla-se a
noção de “classes perigosas” - não mais laboriosas-, sujeitas à repressão e extinção. A
tendência de naturalizar a “questão social” é acompanhada da transformação de suas
manifestações em objeto de programas assistenciais focalizados de “combate à pobreza” ou
em expressões da violência dos pobres, cuja resposta é a segurança e a repressão oficiais.
Evoca o passado, quando era concebida como “caso de polícia”, ao invés de ser objeto de
uma ação sistemática do Estado no atendimento às necessidades básicas da classe operária e
outros segmentos trabalhadores. Na atualidade, as propostas imediatas para enfrentar a
“questão social”, no Brasil, atualizam a articulação assistência focalizada/repressão, com o
reforço do braço coercitivo do Estado em detrimento da construção do consenso necessário ao
regime democrático, o que é motivo de inquietação.

Uma dupla armadilha pode envolver a análise da “questão social” quando suas
múltiplas e diferenciadas expressões são desvinculadas de sua gênese comum,
desconsiderando os processos sociais contraditórios - na sua dimensão de totalidade - que as
criam e as transformam.

Corre-se o risco de cair na pulverização e fragmentação das questões sociais, atribuindo


unilateralmente aos indivíduos e suas famílias a responsabilidade pelas dificuldades vividas, o
que deriva na análise dos “problemas sociais” como problemas do indivíduo isolado e da
família, perdendo-se a dimensão coletiva e isentando a sociedade de classes da
responsabilidade na produção das desigualdades sociais4. Por uma artimanha ideológica,
elimina-se, no nível da análise, a dimensão coletiva da questão social, reduzindo-a a uma
dificuldade do indivíduo. A pulverização da “questão social”, típica da ótica liberal, resulta na

4 - A maioria dos programas focalizados de combate à fome e miséria tem, como alvo, a família.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 18


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

autonomização de suas múltiplas expressões – as várias “questões sociais”,- em detrimento da


perspectiva de unidade. Impede-se, assim, o resgate da origem da “questão social” imanente
à organização social capitalista, o que não elide a necessidade de apreender as múltiplas
expressões e formas concretas que assume.

Outra armadilha é aprisionar a análise em um discurso genérico, que redunda em uma


visão unívoca e indiferenciada da questão social, prisioneira das análises estruturais,
segmentadas da dinâmica conjuntural e da vida dos sujeitos sociais. A “questão social” passa
a ser esvaziada de suas particularidades, perdendo o movimento e a riqueza da vida, ao
desconsiderar suas expressões específicas que desafiam a “pesquisa concreta de situações
concretas” (como a violência, o trabalho infantil, a violação dos direitos humanos, os
massacres indígenas, etc.).Concluindo, constata-se hoje uma renovação da velha “questão
social”, inscrita na própria natureza das relações sociais capitalistas, sob outras roupagens e
novas condições sócio-históricas na sociedade contemporânea, aprofundando suas
contradições. Nesse cenário a “velha questão social” metamorfoseia-se, assumindo novas
roupagens. Ela evidencia hoje a imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas
do trabalho social e as relações sociais que o sustentam. Crescem as desigualdades e
afirmam-se as lutas no dia a dia contra as mesmas – na sua maioria silenciada pelos meios
de comunicação - no âmbito do trabalho, do acesso aos direitos e serviços no atendimento às
necessidades básicas dos cidadãos, das diferenças étnico-raciais, religiosas, de gênero, etc.

A hipótese de análise é a de que na raiz do atual perfil assumido pela “questão social”
na América Latina encontram-se as políticas governamentais de favorecimento da esfera
financeira e do grande capital produtivo – das instituições e mercados financeiros e empresas
multinacionais -, como força que captura o Estado, as empresas nacionais, o conjunto das
classes e grupos sociais que passam a assumir o ônus das “exigências dos mercados”.
(SALAMA, 1999; CHESNAIS, 1996). Estabelece-se uma estreita relação entre a
responsabilidade dos governos no campo econômico e financeiro e a liberdade dada aos
movimentos de capital concentrado para atuar, no país, sem regulamentações e controles,
transferindo lucros e salários oriundos da produção para valorizar-se na esfera financeira e
especulativa, que re-configuram a “questão social” na cena contemporânea..

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 19


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

Nessa perspectiva, a “questão social” não se identifica com a noção de exclusão social,
hoje generalizada, dotada de grande consenso nos meios acadêmicos e políticos. Ela torna-se
uma palavra mágica, que tudo e nada explica, ocorrendo uma “fetichização conceitual“ da
noção de exclusão social. (MARTINS, 1997).

Castel (1997) refere-se às “armadilhas da exclusão”, denunciando a sua inconsistência


teórica: uma “palavra valise”, utilizada para definir todas as misérias do mundo. È uma noção
que se afirma pela qualificação negativa – a falta de –, empregada com uma
heterogeneidade de usos, sem dizer, com rigor, no que consiste e de onde vem. O amplo
estudo desenvolvido por Castel (1998) sobre as metamorfoses da questão social parte de uma
noção fortemente enraizada na escola sociológica francesa, na ótica da integração social:
uma “dificuldade central a partir da qual uma sociedade se interroga sobre sua coesão social
e tenta conjurar os riscos de sua fratura” (CASTEL, 1997, 1998). Todavia, sua pesquisa leva-o
a afirmar a centralidade do trabalho assalariado na emergência e desenvolvimento da
“questão social”. Na atualidade, sua base encontra-se no questionamento da função
integradora do trabalho assalariado, com a desmontagem do sistema de proteção e garantia
do trabalho protegido e com status, ou seja, da sociedade salarial. Ela é fruto da
“desestabilização dos estáveis”, da instalação da precariedade, da cultura do aleatório -em
que cada um é chamado a viver o dia a dia -, do crescimento dos “sobrantes”, aqueles que
não têm lugar nesta sociedade. E o caminho anunciado encontra-se na trilha da luta pelo
direito ao trabalho.

Martins (1997, 2002), também questiona o rigor analítico e a novidade da noção de


“exclusão”. A sua novidade a “sua velhice renovada”, resultado de uma metamorfose de
conceitos - passando pelas teorias da marginalidade social e da pobreza -, que procuravam
explicar a ordenação social capitalista e o descompasso crônico que a caracteriza entre o
desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social. Em outros termos, o apelo a inclusão
indica a necessidade de compreensão de uma antiga questão: as desigualdades sociais, um
dos aspectos da crise da sociedade de classes. O chamamento à exclusão supõe a
insuficiência da teoria das classes, diluindo a figura da classe trabalhadora na do excluído,
que não é um sujeito de destino, destituído da possibilidade de fazer história. O protesto
social e político em nome dos excluídos se resolve no horizonte da integração na sociedade

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 20


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

que os exclui, na reprodução ampliada dessa mesma sociedade. O autor salienta que os
“excluídos não protagonizam nem realizam uma contradição no interior do processo
produtivo”, mas são tidos como o resíduo crescente de um desenvolvimento econômico
considerado ‘anômalo’. Redunda em uma luta conformista e fala de um projeto de afirmação
do capitalismo, dos que a ele aderiram. Segundo o autor, o discurso da exclusão é expressão
ideológica de uma praxis limitada da classe média e não de um projeto um anticapitalista e
crítico, cujo desafio é tornar a sociedade beneficiária da acumulação. Considera a exclusão
social “um sintoma grave de uma transformação social, que vem, rapidamente, fazendo de
todos seres humanos descartáveis, reduzidos à condição de coisa, forma extrema da vivência
da alienação e da coisificação da pessoa, como já apontava Marx em seus estudos sobre o
capitalismo” (MARTINS, 2002:20).

2.4. O assistente social como trabalhador assalariado


O Serviço Social é regulamentado como uma profissão liberal, dispondo de estatutos
legais e éticos que atribuem uma autonomia teórico-metodológica, ético-política e técnico-
operativa e à condução do exercício profissional. Ao mesmo tempo, o exercício da profissão
se realiza mediante um contrato de trabalho com organismos empregadores - públicos ou
privados-, em que o assistente social afirma-se como trabalhador assalariado. Estabelece-se
uma tensão entre autonomia profissional e condição assalariada.

Assim, assistente social é também um(a) trabalhador(a) assalariado(a), qualificado(a), que


depende da venda de sua força de trabalho especializada para a obtenção de seus meios de vida. A
objetivação dessa força de trabalho qualificada enquanto atividade (e/ou trabalho) ocorre no âmbito
de processos e relações de trabalho, organizados por seus empregadores, que detêm o controle das
condições necessárias à realização do trabalho profissional. Assim, as alterações que incidem no
chamado “mundo do trabalho” e nas relações entre o Estado e a sociedade - que têm resultado em
uma radicalização da questão social –, atingem diretamente o trabalho cotidiano do assistente social.
O trabalho profissional é, pois, parte do trabalho coletivo produzido pelo conjunto da sociedade,
operando a prestação de serviços sociais que atendem a necessidades sociais e realizando, nesse
processo, práticas sócio-educativas, de caráter político-ideológico, que interferem no processo de
reprodução de condições de vida de grandes segmentos populacionais alvos das políticas sociais.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 21


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

O Serviço Social reproduz-se como uma especialização do trabalho por ser socialmente
necessário: o agente profissional produz serviços que têm um valor de uso, porque atendem as
necessidades sociais. Por outro lado, os assistentes sociais também participam, enquanto
trabalhadores assalariados, do processo de produção e/ou de redistribuição da riqueza social. Seu
trabalho não resulta apenas em serviços úteis, mas ele tem um efeito na produção -ou na
redistribuição- do valor e/ou da mais valia e nas relações de poder político e ideológico. Assim, por
exemplo, na empresa industrial, o assistente social, como parte de um trabalhador coletivo, participa
do processo de reprodução da força de trabalho, essencial à produção da riqueza. Na esfera estatal
participa do processo de redistribuição da mais valia, via fundo público. Aí seu trabalho se inscreve,
também, no campo da defesa e/ou realização de direitos sociais de cidadania, na gestão da coisa
pública. Pode contribuir para o partilha do poder e sua democratização - no processo de construção
de uma “contra-hegemonia” no bojo das relações entre as classes - ou ainda, para o reforço das
estruturas e relações de poder pré-existentes.

Em outros termos, passar da análise profissão para o seu processamento no âmbito de


condições de trabalho e relações sociais determinadas representa um avanço importante. Essa
perspectiva incorpora os avanços teórico-metodológicos, ético-políticos e técnico-operativos
acumulados nas últimas décadas e, ao mesmo tempo, abre um leque de possibilidades, ainda
não integralmente exploradas, no sentido de afinar, com maior rigor, as propostas analíticas
sobre o Serviço Social com as provocações e desafios enfrentados no dia a dia do trabalho
cotidiano.

Embora o assistente social disponha de uma relativa autonomia na sua condução de seu
trabalho – o que lhe permite atribuir uma direção social ao exercício profissional - os
organismos empregadores também interferem no estabelecimento de metas a atingir. Detêm
poder para normatizar as atribuições e competências específicas requeridas de seus
funcionários, definem as relações de trabalho e as condições de sua realização – salário,
jornada, ritmo e intensidade do trabalho, direitos e benefícios, oportunidades de capacitação
e treinamento, o que incide no conteúdo e nos resultados do trabalho. E oferecem o back-
ground de recursos materiais, financeiros, humanos e técnicos para a realização do trabalho
no marco de sua organização coletiva. Portanto articulam um conjunto de condições que

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 22


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

informam o processamento da ação e condicionam a possibilidade de realização dos


resultados projetados5.

Todavia as atividades desenvolvidas sofrem outro vetor de demandas: as necessidades


dos usuários, que, condicionadas pelas lutas sociais e pelas relações de poder, transformam-
se em demandas profissionais, reelaboradas na ótica dos empregadores, no embate com os
interesses dos usuários dos serviços profissionais. É nesse terreno denso de tensões e
contradições sociais que se situa a atividade profissional.

Portanto, as condições de trabalho e relações sociais em que se inscreve o assistente


social articulam um conjunto de mediações que interferem no processamento da ação e nos
resultados individual e coletivamente projetados, pois a história é o resultado de inúmeras
vontades projetadas em diferentes direções que têm múltiplas influências sobre a vida social.
Os objetivos e projetos propostos, que direcionam a ação, têm uma importância fundamental,
na afirmação da condição dos indivíduos sociais como sujeitos da história. Como assinala
Engels:

a vontade move-se pela reflexão e pela paixão. Mas a reflexão e a paixão têm
também uma determinação social, porque são impulsionadas por forças
propulsoras que agem por detrás dos objetivos. Se os objetivos visados, ao
nível individual e coletivo, são produto da vontade, não o são os resultados que
dela decorrem, que passam por múltiplos vínculos sociais no âmbito dos quais
se realiza a ação. (ENGELS, 1977).

5 - A análise do significado social do trabalho profissional, na ótica da totalidade, supõe decifrar as relações sociais
nas quais se realiza em contextos determinados: as condições de trabalho, o conteúdo e direção social atribuídas ao
trabalho profissional, as estratégias acionadas e os resultados obtidos, o que passa pela mediação do trabalho
assalariado e pela correlação de forças econômica, política e cultural no nível societário. Articula, pois, um conjunto
de determinantes a serem considerados: as particulares expressões da questão social na vida dos sujeitos, suas formas
de organização e luta; o caráter dos organismos empregadores, seu quadro normativo, políticas e relações de poder
que interferem na definição de competências e atribuições profissionais; os recursos materiais, humanos e financeiros
disponíveis à viabilização do trabalho. Aliam-se a estes determinantes os compromissos firmados no contrato de
trabalho (salário, jornada, benefícios, etc) e sua efetivação, envolvendo padrões de produtividade, formas de gestão,
entre outras dimensões, que afetam o conteúdo do trabalho do assistente social. Certamente as respostas acionadas
dependem do perfil social e profissional dos assistentes sociais e, em particular, da apropriação teórico-metodológica
para leitura dos processos sociais, princípios éticos, a clareza quanto às competências, atribuições e o domínio de
habilidades adequadas ao trabalho concreto realizado, o que condiciona a eleição das estratégias acionadas, a
qualidade e resultados dos serviços prestados.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 23


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

Logo, não há uma identidade imediata entre a intencionalidade do projeto profissional e


resultados derivados de sua efetivação. Para decifrar esse processo é necessário entender as
mediações sociais que atravessam o campo de trabalho do assistente social.

Concluindo, para atribuir densidade histórica ao projeto profissional é necessário


reconhecer as forças sociais que o polarizam. E, concomitantemente, efetuar a análise da
organização dos processos de trabalho em que se inscreve o assistente social para estabelecer
uma base realista -, sem perder o encanto do sonho e da utopia -, às projeções profissionais e
sua viabilização. Exige caminhar da análise da profissão ao seu efetivo exercício, o que supõe
articular projeto profissional e trabalho assalariado.

3. O projeto profissional

Segundo Netto (1999:95), os projetos profissionais, construídos coletivamente pela


categoria, apresentam a auto-imagem da profissão; elegem valores que a legitimam
socialmente; delimitam e priorizam seus objetivos e funções; formulam requisitos (técnicos,
institucionais e práticos) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos
profissionais e estabelecem balizas de sua relação com os usuários dos seus serviços, com
outras profissões e com as organizações e instituições, públicas e privadas (entre estes,
também e destacadamente, com o Estado, ao qual coube historicamente o reconhecimento
jurídico dos estatutos profissionais).

Os projetos profissionais são indissociáveis dos projetos societários que lhes oferecem
matrizes e valores e expressam um processo de lutas pela hegemonia entre as forças sociais
presentes na sociedade e na profissão. São, portanto, estruturas dinâmicas, que respondem
tanto às alterações das necessidades sociais decorrentes de transformações econômicas,
históricas e culturais da sociedade, quanto expressam o desenvolvimento teórico e prático da
respectiva profissão e as transformações operadas no perfil de seus agentes (idem).

O Serviço Social brasileiro, nas últimas décadas, redimensionou-se e renovou-se no


âmbito da sua interpretação teórico-metodológica no campo dos valores, da ética e da

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 24


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

política. Realizou um forte embate com o tradicionalismo profissional e seu lastro conservador
e buscou adequar criticamente a profissão às exigências do seu tempo, qualificando-a
academicamente. E o Serviço Social fez um radical giro na sua dimensão ética e no debate
nesse plano: constituiu democraticamente a sua base normativa, expressa na Lei da
Regulamentação da Profissão, que estabelece as competências e as atribuições profissionais, e
no Código de Ética do Assistente Social, de 1993. Este prescreve direitos e deveres do
assistente social, segundo princípios e valores humanistas guias para o exercício cotidiano,
dentre os quais destacam-se:

ƒ O reconhecimento da liberdade como valor ético central, que requer o


reconhecimento da autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais
e de seus direitos;

ƒ A defesa intransigente dos direitos humanos contra todo tipo de arbítrio e


autoritarismo;

ƒ A defesa, aprofundamento e consolidação da cidadania e da democracia – da


socialização da participação política e da riqueza produzida;

ƒ O posicionamento a favor da equidade e da justiça social, que implica a


universalidade no acesso a bens e serviços e a gestão democrática;

ƒ O empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, e a garantia do


pluralismo;

ƒ O compromisso com a qualidade dos serviços prestados na articulação com outros


profissionais e trabalhadores. (CRESS-7Região, 2000).

A efetivação desses princípios remete à luta, no campo democrático-popular, pela


construção de uma nova ordem societária. E os princípios éticos ao impregnarem o exercício
quotidiano, indicam um novo modo de operar o exercício profissional. Aqueles princípios
estabelecem balizas para a sua condução nas condições e relações de trabalho em que se
realiza e para as expressões coletivas da categoria profissional na sociedade.
Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 25
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

É nos limites dos princípios assinalados, que se move o pluralismo, que supõe o
reconhecimento da presença de distintas orientações na arena profissional assim como o
embate respeitoso com as tendências regressivas do Serviço Social, cujos fundamentos liberais
e conservadores legitimam o ordenamento social instituído. Porém o pluralismo propugnado
não se identifica com a sua versão liberal, em que todas as tendências profissionais são tidas
como supostamente paritárias, mascarando os desiguais arcos de influência que exercem na
profissão, os diferentes vínculos que estabelecem com projetos societários distintos e
antagônicos, apoiados em forças sociais também diversas.

Os outros pilares em que se apóia o projeto profissional são: a legislação relativa à


regulamentação da profissão6, que representa uma defesa da profissão na sociedade e as
diretrizes curriculares para a formação em Serviço Social, que vêm sendo construídas
coletivamente no bojo do processo de renovação do Serviço Social nos vários países.

O desafio maior para a efetivação desse projeto na atualidade é torná-lo um guia efetivo
para o exercício profissional, o que exige um radical esforço de integrar o dever ser com sua
implementação prática, sob o risco de se deslizar para uma proposta ideal, abstraída da
realidade histórica.

Assim considerado, o projeto profissional expressa uma condensação das dimensões ético-
políticas, teórico-metodológicas e técnico-operativas no Serviço Social, englobando a formação e o
exercício profissional.

6 - A Lei da regulamentação da profissão de Serviço Social no Brasil estabelece as competências e atribuições


privativas do assistente social, que expressam a capacidade de apreciar e dar resolutividade a determinados assuntos:
1)coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar estudos, pesquisas, planos, programas e projetos na área de
Serviço Social; com a participação da sociedade civil; 2) planejar, organizar e administrar programas e projetos em
unidades de Serviço Social; 3) prestar assessoria e consultoria a órgãos da administração pública direta e indireta,
empresas privadas e outras entidades em matéria do Serviço Social; 4) realizar visitas, perícias técnicas, laudos
periciais, informações e pareceres em matéria do Serviço Social; 5) encaminhar providências e prestar orientação
social a indivíduos, grupos e população; 6) realizar estudos sócio-econômicos com os usuários para fins de benefícios
e serviços sociais, junto a órgãos da administração pública direta e indireta, a empresas privadas e outras entidades.
Considera-se que a matéria diz respeito ao objeto ou assunto sobre o que se exerce a força de um agente; área é o
campo delimitado ou o âmbito de atuação do Serviço Social; e a unidade do Serviço Social, mais do que uma unidade
administrativa pode ser interpretada como o conjunto de profissionais dentro da unidade de trabalho.
Atribuir contemporaneidade às funções e atribuições profissionais pressupõe, certamente, apreender e explicar o que o
assistente social faz na realidade, elucidando os fundamentos do trabalho profissional e seu significado social no
processo de reprodução das relações sociais. (Cf. IAMAMOTO, 2002; CRESS-7ª Região,2000).

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 26


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

4. O Serviço Social e as estratégias para o enfrentamento da “questão social”7

As estratégias para o enfrentamento da questão social têm sido tensionadas por projetos
sociais distintos, que presidem a estruturação e a implementação das políticas sociais públicas
e que convivem em luta no seu interior. Vive-se uma tensão entre a defesa dos direitos sociais
e a mercantilização e re-filantropização do atendimento às necessidades sociais, com claras
implicações nas condições e relações de trabalho do assistente social (OLIVEIRA E
SALLES:1998; BRAVO:1996; PEREIRA:1998).

O primeiro projeto, de caráter universalista e democrático aposta no avanço da


democracia, fundado nos princípios da participação e do controle popular, da universalização
dos direitos, garantindo a gratuidade no acesso aos serviços, a integralidade das ações
voltadas à defesa da cidadania de todos na perspectiva da equidade. Pensar a defesa dos
direitos requer afirmar a primazia do Estado – enquanto instância fundamental à sua
universalização - na condução das políticas públicas, o respeito ao pacto federativo,
estimulando a descentralização e da democratização das políticas sociais no atendimento às
necessidades das maiorias. Implica partilha e deslocamento de poder, combinando
instrumentos de democracia representativa e democracia direta, o que ressalta a importância
dos espaços públicos de representação e negociação. Supõe, portanto, politizar a
participação, considerando a gestão como arena de interesses que devem ser reconhecidos e
negociados8.

No Brasil, no âmbito governamental, é da maior importância o trabalho que vem sendo


realizado na seguridade social e, em especial junto aos Conselhos de Saúde e de Assistência
Social nas esferas nacional, estadual e municipal. Somam-se os Conselhos Tutelares e
Conselhos de Direitos, responsáveis pela formulação de políticas públicas para a criança e o
adolescente, para a terceira idade e pessoas portadoras de necessidades especiais9.

7 - Recupero aqui extrato de trabalho publicado anteriormente. Cf. Iamamoto (2002)


8 - Conforme pronunciamento de Marco Aurélio Nogueira no II Encontro Nacional de Serviço Social e Seguridade
Social. Porto Alegre (RS), nov. de 2000.
9 Segundo dados do MPAS/SEAS, em fevereiro de 2000, existiam conselhos de assistência instalados em 4383
municípios, dos 5 506 existentes no Brasil. (Cf. Demonstrativo dos Conselhos, Fundos e Planos de Assistência Social,
fevereiro, 2000).

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 27


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

O propósito é promover uma permanente articulação política no âmbito da sociedade


civil organizada, para contribuir na definição de propostas e estratégias comuns ao campo
democrático. Esse projeto requer ações voltadas ao fortalecimento dos sujeitos coletivos, dos
direitos sociais e a necessidade de organização para a sua defesa, construindo alianças com
os usuários dos serviços na sua efetivação. Nesse sentido é fundamental estimular inserções
sociais que contenham potencialidades de democratizar a vida em sociedade, conclamando e
viabilizando a ingerência de segmentos organizados da sociedade civil na coisa pública.
Ocupar esses espaços coletivos adquire maior importância quando o bloco do poder passa a
difundir e empreender o trabalho comunitário sob a sua direção, tendo no voluntariado seu
maior protagonista. Representa uma vigorosa ofensiva ideológica na construção e/ou
consolidação da hegemonia das classes dominantes em um contexto econômico adverso, que
passa a requisitar ampla investida ideológica e política para assegurar a direção intelectual e
moral de seu projeto de classe em nome de toda a sociedade, ampliando suas bases de
sustentação e legitimidade.

Nesse sentido faz-se necessário reassumir o trabalho de base, de educação, mobilização


e organização popular, que parece ter sido submerso do debate profissional ante o refluxo
dos movimentos sociais10. É necessário ter a clareza que a qualidade da participação nesses
espaços públicos não está definida a priori. Podem abrigar experiências democráticas, que
propiciem a partilha do poder e a intervenção em processos decisórios, ou estimular vícios
populistas e clientelistas no trato da coisa pública.

É de suma importância impulsionar pesquisas e projetos que favoreçam o conhecimento


do modo de vida e de trabalho - e correspondentes expressões culturais - dos segmentos
populacionais atendidos, criando um acervo de dados sobre as expressões da questão social
nos diferentes espaços ocupacionais do assistente social. O conhecimento criterioso dos
processos sociais e de sua vivência pelos indivíduos sociais poderá alimentar ações
inovadoras, capazes de propiciar o atendimento às efetivas necessidades sociais dos
segmentos subalternizados, alvos das ações institucionais. Aquele conhecimento é pré-

10 - CARDOSO (1995), ABREU (2002) e SILVA (1995) são partes de um grupo de intelectuais que vem mantendo vivo
este debate no interior do projeto profissional de ruptura como o conservadorismo.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 28


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

requisito para impulsionar a consciência crítica e uma cultura pública democrática para além
das mistificações difundidas pela mídia. Isso requer, também, estratégias técnicas e políticas
no campo da comunicação social – no emprego da linguagem escrita, oral e midiática -, para
o desencadeamento de ações coletivas que viabilizem propostas profissionais capazes para
além das demandas instituídas.

Esse primeiro projeto é polarizado por um outro tipo de requisição, de inspiração neoliberal, que
subordina os direitos sociais à lógica orçamentária, a política social à política econômica, em especial
às dotações orçamentárias e, no Brasil, subverte o preceito constitucional. Observa-se uma inversão e
uma subversão: ao invés do direito constitucional impor e orientar a distribuição das verbas
orçamentárias, o dever legal passa a ser submetido à disponibilidade de recursos. São as definições
orçamentárias - vistas com um dado não passível de questionamento - que se tornam parâmetros para a
implementação dos direitos sociais, justificando as prioridades governamentais. A leitura dos
orçamentos governamentais, apreendidos como uma peça técnica, silencia os critérios políticos que
norteiam a eleição das prioridades nos gastos, estabelecidas pelo bloco do poder. A viabilização dos
direitos sociais – e em especial aqueles atinentes à seguridade social - pauta-se segundo as regras de
um livro-caixa, do balanço entre crédito e déficit no “cofre governamental”. Conforme foi discutido no
II Encontro de Serviço Social e Seguridade Social, realizado no Brasil, o orçamento público é a “caixa
preta” das políticas sociais governamentais, em especial da seguridade social. A elaboração e
interpretação dos orçamentos passam a ser efetuadas segundo os parâmetros empresariais de
custo/benefício, eficácia/inoperância, produtividade/rentabilidade. O resultado é a subordinação de
respostas às necessidades sociais à mecânica técnica do orçamento público, orientada por uma
racionalidade instrumental. A democracia vê-se reduzida um “modelo de gestão”, desaparecendo os
sujeitos e a arena pública em que expressam e defendem seus interesses. 11

As condições de trabalho e relações sociais em que estão inscritos os assistentes sociais


são indissociáveis da contra-reforma do Estado (BEHRING, 2003). Segundo a ótica oficial,
verifica-se um esgotamento da “estratégia estatizante”, afirmando-se a necessidade de

11 Essas considerações também desafiam as instâncias de formação universitária no sentido de capacitar os


futuros assistentes sociais, mediante elementos teóricos e técnicos, para a leitura crítica dos orçamentos
sociais, de modo a viabilizar estratégias voltadas à negociação de recursos para programas e projetos
sociais que fortaleçam o projeto ético-político ora em construção.
Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 29
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

ultrapassar a administração pública tradicional, centralizada e burocrática. Considera-se que


o Estado deva deslocar-se da linha de frente do desenvolvimento econômico e social e
permanecer na retaguarda, na condição de promotor e regulador desse desenvolvimento.

Observa-se uma clara tendência de deslocamento das ações governamentais públicas –


de abrangência universal- no trato das necessidades sociais em favor de sua privatização,
instituindo critérios de seletividade no atendimento aos direitos sociais. Esse deslocamento da
satisfação de necessidades da esfera pública para esfera privada ocorre em detrimento das
lutas e de conquistas sociais e políticas extensivas a todos. É exatamente o legado de direitos
conquistados nos últimos séculos, que está sendo desmontado nos governos de orientação
neoliberal, em uma nítida regressão da cidadania que tende a ser reduzida às suas dimensões
civil e política, erodindo a cidadania social. Transfere-se, para distintos segmentos da
sociedade civil, significativa parcela da prestação de serviços sociais, afetando diretamente o
espaço ocupacional de várias categorias profissionais, dentre as quais os assistentes sociais.

Esse processo expressa-se numa dupla via: de um lado, na transferência de


responsabilidades governamentais para “organizações da sociedade civil de interesse público”
e, de outro lado, em uma crescente mercantilização do atendimento às necessidades sociais, o
que é evidente no campo da saúde, da educação entre muitos outros.

O chamado “terceiro setor”, na interpretação governamental, é tido como distinto do


Estado (primeiro setor) e do mercado (segundo setor). O chamado “terceiro setor” é
considerado como um setor “não governamental”, “não lucrativo” e voltado ao
desenvolvimento social, e daria origem a uma “esfera pública não estatal”, constituída por
“organizações da sociedade civil de interesse público”. No marco legal do terceiro setor no
Brasil são incluídas entidades de natureza as mais variadas, que estabelecem um termo de
parceria entre entidades de fins públicos de origem diversa (estatal e social) e de natureza
distinta (pública ou privada). Engloba, sob o mesmo título, as tradicionais instituições
filantrópicas; o voluntariado e organizações não governamentais: desde aquelas combativas
que emergiram no campo dos movimentos sociais, àquelas com filiações político-ideológicas
as mais distintas, além da denominada “filantropia empresarial”. Chama atenção a tendência
de estabelecer uma identidade entre terceiro setor e sociedade civil. Esta passa a ser reduzida

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 30


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

a um conjunto de organizações – as chamadas entidades civis sem fins lucrativos -, sendo dela
excluídos os órgãos de representação política, como sindicatos e partidos, dentro de um
amplo processo de despolitização. A sociedade civil tende a ser interpretada como um
conjunto de organizações distintas e “complementares”, destituída dos conflitos e tensões de
classe, onde prevalecem os laços de solidariedade. Salienta-se a coesão social e um forte
apelo moral ao “bem comum”, discurso esse que corre paralelo à reprodução ampliada das
desigualdades, da pobreza e violência. Estas tendem a ser naturalizadas, onde o horizonte é a
redução de seus índices mais alarmantes.

A universalidade no acesso nos programas e projetos sociais, abertos a todos os


cidadãos, só é possível no âmbito do Estado, ainda que não dependam apenas do Estado.
Sendo um Estado de classe expressa a sociedade politicamente organizada e condensa um
campo de lutas e compromissos em que a sociedade civil joga um papel decisivo para
democratizá-lo e controlá-lo. Ao mesmo tempo, é necessário que o Estado se expanda para a
sociedade de modo a fazer prevalecer interesses mais coletivos e compartilhados, o que
depende da luta entre as forças sociais.

Os projetos levados a efeito por organizações privadas apresentam uma característica


básica, que os diferencia: não se movem pelo interesse público e sim pelo interesse privado de
certos grupos e segmentos sociais, reforçando a seletividade no atendimento, segundo
critérios estabelecidos pelos mantenedores. Portanto, ainda que o trabalho concreto12 do
assistente social seja idêntico – no seu conteúdo útil e formas de processamento - o sentido e
resultados sociais desses trabalhos são inteiramente distintos, visto que presididos por lógicas
diferentes: a do direito privado e do direito público, alterando-se, pois, o significado social do
trabalho técnico-profissional e seu nível de abrangência.

Constata-se uma progressiva mercantilização do atendimento às necessidades sociais,


decorrente da privatização das políticas sociais. Nesse quadro, os serviços sociais deixam de
expressar direitos, metamorfoseando-se em atividade de outra natureza, inscrita no circuito de
compra e venda de mercadorias. Estas substituem os direitos de cidadania, que, em sua

12 - Trabalho concreto é aqui utilizado no sentido de Marx, como trabalho de uma qualidade determinada que
produz valores de uso voltados à satisfação de necessidades sociais de uma dada espécie.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 31


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

necessária dimensão de universalidade, requerem a ingerência do Estado. O que passa a


vigorar são direitos atinentes à condição de consumidor (MOTA,1995). Quem julga a
pertinência e qualidade dos serviços prestados são aqueles que, através do consumo,
renovam sua necessidade social. O dinheiro aparece em cena como meio de circulação,
intermediando a compra e venda de serviços, em cujo âmbito se inscreve o assistente social.
O grande capital ao investir nos serviços sociais, passa a demonstrar uma “preocupação
humanitária”, coadjuvante da ampliação dos níveis de rentabilidade das empresas,
moralizando sua imagem social. Trata-se de um reforço à necessidade de transformar
propósitos de classes e grupos sociais específicos em propósitos de toda a sociedade: velha
artimanha, historicamente assumida pelo Estado e que hoje tem a mídia importante aliada
nesse empreendimento.

Os assistentes sociais trabalham com as mais diversas expressões da questão social,


esclarecendo à população seus direitos sociais e os meios de ter acesso aos mesmos. O
significado desse trabalho muda radicalmente ao voltar-se aos direitos e deveres referentes às
operações de compra e da venda. Enquanto os direitos sociais são frutos de lutas sociais e
negociações com o bloco do poder para o seu reconhecimento legal, a compra e venda de
serviços no atendimento a necessidades sociais de educação, saúde, habitação, assistência
social, etc. pertencem a outro domínio - o do mercado -, mediação necessária à realização do
valor e eventualmente da mais valia decorrentes da industrialização dos serviços.

Historicamente, os assistentes sociais dedicaram-se à implementação de políticas


públicas, localizados na linha de frente das relações entre população e instituição ou, nos
termos de Netto (1992), ‘executores terminais de políticas sociais’. Embora este seja ainda o
perfil predominante, não é mais exclusivo, sendo abertas outras possibilidades. O processo de
descentralização das políticas sociais públicas - com ênfase na sua municipalização - requer
dos assistentes sociais – como de outros profissionais - novas funções e competências. Estão
sendo chamados a atuar na esfera da formulação e avaliação de políticas e do planejamento e
gestão, inscritos em equipes multiprofissionais. Os assistentes sociais ampliam seu espaço
ocupacional para atividades relacionadas à implantação e orientação de conselhos de
políticas públicas, à capacitação de conselheiros, à elaboração de planos de assistência
social, acompanhamento e avaliação de programas e projetos. Tais inserções são

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 32


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

acompanhadas de novas exigências de qualificação, tais como o domínio de conhecimentos


para realizar diagnósticos sócio-econômicos de municípios, para a leitura e análise dos
orçamentos públicos identificando recursos disponíveis para projetar ações; o domínio do
processo de planejamento; a competência no gerenciamento e avaliação de programas e
projetos sociais; a capacidade de negociação, o conhecimento e o know-how na área de
recursos humanos e relações no trabalho, entre outros. Somam-se possibilidades de trabalho
nos níveis de assessoria e consultoria para profissionais mais experientes e altamente
qualificados em determinadas áreas de especialização. Registram-se ainda requisições no
campo da pesquisa, de estudos e planejamento, dentre inúmeras outras funções.

Os assistentes sociais, articulados às forças sociais progressistas, vêm envidando esforços


coletivos no reforço da esfera pública, de modo a inscrever os interesses das maiorias nas
esferas de decisão política. O horizonte é a construção de uma “democracia de base” que
amplie a democracia representativa, cultive e respeite a universalidade dos direitos do
cidadão, sustentada na socialização da política, da economia e da cultura. Tais elementos
adquirem especial importância em nossas sociedades latino-americanas, que se constroem no
reverso do imaginário igualitário da modernidade; sociedades que repõem cotidianamente e
de forma ampliada privilégios, violência, discriminações de renda, poder, gênero, etnias e
gerações, alargando o fosso das desigualdades no panorama diversificado das manifestações
da questão social.

É na dinâmica tensa da vida social que se ancoram a esperança e a possibilidade de


defender, efetivar e aprofundar os preceitos democráticos e os direitos de cidadania –
preservando inclusive a cidadania social, cada vez mais desqualificada. E para impulsionar a
construção de um outro padrão de sociabilidade, regido por valores democráticos, o que
requer a redefinição das relações entre o Estado e a sociedade, a economia e a sociedade, o
que depende uma crescente participação ativa da sociedade civil organizada.

Orientar o trabalho nos rumos aludidos, requisita um perfil profissional culto, crítico e
capaz de formular, recriar e avaliar propostas que apontem para a progressiva democratização
das relações sociais. Exige-se, para tanto, compromisso ético-político com os valores
democráticos e competência teórico-metodológica na teoria crítica em sua lógica de

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 33


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

explicação da vida social. Estes elementos, aliados à pesquisa da realidade possibilitam


decifrar as situações particulares com que se defronta o assistente social no seu trabalho, de
modo a conecta-las aos processos sociais macroscópicos que as geram e as modificam. Mas,
requisita, também, um profissional versado no instrumental técnico-operativo, capaz de
potencializar as ações nos níveis de assessoria, planejamento, negociação, pesquisa e ação
direta, estimuladora da participação dos sujeitos sociais nas decisões que lhes dizem respeito,
na defesa de seus direitos e no acesso aos meios de exerce-los.

Para finalizar, a sugestão do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: "Eu tropeço
no possível, mas não desisto de fazer a descoberta que tem dentro da casca do impossível".
Tropeçar no possível, mas sem desistir de fazer a descoberta que tem dentro da casca do
impossível. O projeto ético-político do Serviço Social é certamente um desafio, mas não uma
impossibilidade: o que se apresenta como obstáculo é apenas a casca do impossível, que
encobre as possibilidades dos homens construírem sua própria história.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 34


As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

Bibliografia Citada
ABREU, M. Serviço Social e a organização da cultura. São Paulo: Cortez, 2002.

BAPTISTA, P. N. O Consenso de Washington. A visão neoliberal dos problemas latino-


americanos. Cadernos da Dívida Externa 2. ed. São Paulo: Programa Educativo da Dívida
Externa –PEDEX, 1994. n. 3.

BEHRING, E. R. Brasil em Contra-Reforma. Desestruturação do Estado e perda de direitos. São


Paulo: Cortez, 2003.

BORÓN, A. A sociedade civil depois do dilúvio neoliberal. In: SADER. E. e GENTILI, P. (Orgs.).
Pós neoliberalismo. As Políticas Sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.

BRAVO, M. I. Serviço Social e Reforma Sanitária: Lutas Sociais e Práticas Profissionais. São
Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

CARDOSO, F. G. Organização das classes subalternas: um desafio para o Serviço Social. São
Paulo: Cortez/EDUFMA, 1995.

CASTEL, R. et alii. Desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC, 1997.

______. As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.

CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

COUTINHO, C. N. Contra a Corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo:


Cortez, 2000.

ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, K.; ENGELS, F.
Textos 1. São Paulo: Sociais, 1977.

GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1978.

CRESS. 7ª Região- RJ. Assistente Social: ética e direitos. Coletânea de Leis e Resoluções. Rio de
Janeiro: Lidador, maio de 2000.

GUIMARÃES, A. P. A Crise Agrária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

HARVEY, D. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993.

IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. São Paulo:
Cortez/Celats, 1982.
Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 35
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

IAMAMOTO, M. Renovação e conservadorismo no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1992.

______. O Serviço Social na contemporaneidade. Trabalho e formação profissional. São


Paulo: Cortez, 1998.

______. Projeto profissional, espaços ocupacionais e trabalho do(a) assistente social. In:
CFESS/COFI. Atribuições privativas do(a) asistente social. Brasilia: COFI, 2002. p.13-50.

IANNI, O. A Questão Social. In: A Idéia de Brasil Moderno. São Paulo: Ed.Brasiliense, 1992.
p.87-109.

LECHNER, N. Los condicionantes de la governabilidad democrática en América Latina en fin


de siglo. In: FILMUS, D. (Comp.) Los noventa. Política, sociedad y cultura en América Latina y
Argentina de fin de siglo. Buenos Aires: FLACSO/ EUDEBA, 1999.

MANDEL, E. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

MARTINS, J. S. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes
sociais. Petrópolis: Vozes, 2002.

______. O falso problema da exclusão social e o problema da inclusão marginal. In: Exclusão
social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1977. p.24-38.

MOTA, A. E. Cultura da Crise e Seguridade Social. São Paulo: Cortez, 1995.

NETTO, J. P. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1992.

______. Transformações societárias e Serviço Social: notas para uma análise prospectiva do
Serviço Social no Brasil. Serviço Social e Sociedade 50. São Paulo: Cortez, 1996. p. 87-132.

______. A construção do projeto ético-político do Serviço Sócia frente à crise contemporânea.


In: Crise contemporânea, questão social e Serviço Social. Capacitação em Serviço Social e
política social. Brasília: CFESS/ABEPSS/CEAD/UnB, 1999.

NOGUEIRA. M. A. Em defesa da Política. São Paulo: SENAC, 2001.

OLIVEIRA, H. C; SALLES, M. A (Orgs.) Relatório das Sessões Temáticas. IX Congresso Brasileiro


de Assistentes Sociais. Trabalho e projeto ético-político profissional. CFESS. Goiânia: julho de
1998.

PETRAS, J. Império e políticas revolucionárias na América Latina. São Paulo: Xamã, 2002.

PEREIRA, P. A política social no contexto da seguridade e do Welfare State: a particularidade


da assistência social. In: Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1998. n. 56.

SALAMA, P. Pobreza e exploração do trabalho na América Latina. São Paulo: Boitempo, 1999.

SILVA, M. O. S. O Serviço Social e o Popular. Resgate teórico-metodológico do projeto


profissional de ruptura. São Paulo: Cortez, 1995.
Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 36
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto

SIMIONATO, I. As expressões ídeoculturais da crise contemporânea. In: CFESS/ABEPSS;


CEAD/UnB. (Org.). Capacitação em Serviço Social e Política Social. Crise contemporânea,
questão social e Serviço Social. Módulo I. Brasília: DF: CEAD, 1999. p. 77-90.

SOARES, L. T. O desastre social. Rio de Janeiro: Record, 2003.

YAZBEK, M. C. Classes Subalternas e Assistência Social. São Paulo: Cortez, 1993.

______. Pobreza e exclusão social: expressões da questão social. Revista Temporalis, ABEPSS,
ano III, jan.-jun. de 2001. n. 3. p. 33-40.

Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 37


Repositório Institucional da Universidade de Brasília
repositorio.unb.br

Este artigo está licenciado sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0
Internacional.

Você tem direito de:


Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato.
Adaptar — remixar, transformar, e criar a partir do material.
De acordo com os termos seguintes:
Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se
mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de
maneira alguma que sugira ao licenciante a apoiar você ou o seu uso
Não Comercial — Você não pode usar o material para fins comerciais.

Sem restrições adicionais — Você não pode aplicar termos jurídicos ou medidas de caráter
tecnológico que restrinjam legalmente outros de fazerem algo que a licença permita.

This article is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International


License.

You are free to:


Share — copy and redistribute the material in any medium or format.
Adapt — remix, transform, and build upon the material.
Under the following terms:
Attribution — You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if
changes were made. You may do so in any reasonable manner, but not in any way that
suggests the licensor endorses you or your use.
NonCommercial — You may not use the material for commercial purposes.
No additional restrictions — You may not apply legal terms or technological measures that
legally restrict others from doing anything the license permits.

Esta licença está disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/


O que Serviço Social quer dizer
What does social work mean

Vicente de Paula Faleiros*

Resumo: Este artigo trata da concepção/definição do Serviço Social


em uma perspectiva histórica e teórica, levando em conta o contexto
em que foi formulada e seus pressupostos. Tem como objetivo contra‑
por, de forma crítica, os enunciados discursivos sobre a profissão, sem
nenhum propósito evolutivo ou exaustivo. O método foi de consulta
bibliográfica a livros publicados de autores que tenham servido de
referência e a definições de associações profissionais. O resultado da
pesquisa mostrou uma diversidade de posições a partir do funciona‑
lismo e do marxismo, da história e das práticas de serviço social.
Palavras‑chave: Serviço Social. Definição de Serviço Social. Recon‑
ceituação.

Abstract: This article deals with the conceptions/definitions of social work from a theoretical and
historical perspective, taking into account its context and presuppositions. The objective is a critical
analysis of the discursive enunciations about the social work profession without any evolutional or
exhaustive aim. The research method was a bibliography consultation of recognized authors, as well
as of professional organizations. The results show that there is a diversity of positions from functiona‑
lism and marxism and from social movements and institutional practice.
Key‑words: Social work. Social work definition. Reconceptualization.

O
objetivo deste artigo é o de considerar os pressupostos que historica‑
mente foram construídos para o estabelecimento de uma definição de
Serviço Social. A elucidação desses pressupostos permite analisar não
as definições isoladas, mas seu contexto e sua articulação com as de‑

* Assistente social, Ph.D em Sociologia, pesquisador I‑A do CNPq, professor da Universidade Católica
de Brasília e colaborador da UnB — Brasília, Brasil. Coordenador do Cecria. E‑mail: vicentefaleiros@terra.
com.br.

748 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
terminações sociais, econômicas, culturais e políticas. Não é pretensão deste estu‑
do fazer um percurso histórico exaustivo do Serviço Social, mas da construção do
discurso sobre o Serviço Social quanto a uma definição em vários contextos, a
partir de sua formulação no início do século XX à primeira década do século XXI.
A construção do discurso sobre a definição do Serviço Social busca não só
traduzir uma síntese enunciativa de elementos componentes do que se considera
constituinte do Serviço Social, mas de articulá‑lo com as determinações históricas
e estruturais de sua construção e desconstrução.
Possenti e Souza‑e‑Silva (2008) consideram discursos constituintes aqueles
que reconhecem a sua própria autoridade de definição, operando uma função na
produção simbólica, tendo como referência uma visão científica ou profissional e
que dão sentido a atos de reconhecimento e de legitimidade e também buscam uma
coesão em torno dos mesmos.
A construção de uma definição sobre Serviço Social passa por disputas não
só linguísticas, mas ideológicas e políticas, processadas no enfrentamento de pro‑
jetos políticos e de produção de sentidos no cotidiano e de construção de estratégias
e operações que sinalizam formas de ação dos profissionais.
Quando Silva (2004) fala de Mary Richmond, coloca como subtítulo de seu
trabalho “Um olhar sobre os fundamentos do Serviço Social”, ou seja, seu discurso
fala de uma busca do que é fundamental para se entender o Serviço Social de casos.
Richmond, segundo a autora, enfatiza a interação entre “personalidade e meio so‑
cial”, com o pressuposto do ajustamento de indivíduo a indivíduo e entre o homem
e o meio social.
Esse discurso, considerado fundador, sinaliza como objeto da profissão o
ajustamento social, o que é retomado reiteradamente nas definições de Serviço
Social antes da Segunda Guerra Mundial. Fontoura (1959, p. 113) em um livro
publicado em 1ª edição em 1949, afirma que o Serviço Social:

é o conjunto de técnicas que tem por objeto reajustar a personalidade humana, no


sentido do seu pleno desenvolvimento físico, intelectual, moral e social, com o fim de
tornar o homem mais feliz e proporcionar maior bem‑estar à comunidade.

Enumera dezenove outras definições, inclusive do 1º Congresso Brasileiro de


Serviço Social de 1947, que ressalta sua origem cristã na solução de problemas
sociais:

Serviço Social é a atividade destinada a estabelecer por processos científicos e téc‑


nicos o bem‑estar da pessoa humana, individualmente ou em grupo, e constitui re‑

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011 749
curso indispensável à solução cristã e verdadeira dos problemas sociais. (Fontoura
1959, p. 123)

Os problemas sociais são denominados de “deficiências sociais”, que devem


ser enfrentadas “por meios científicos”, conforme definição adotada no 1º Congres‑
so Brasileiro de Direito Social de 1941: “Serviço Social é toda a ação dos poderes
públicos, dos indivíduos ou das obras particulares tendo por objetivo prevenir, curar
ou minorar por meio científicos as deficiências dos indivíduos e das coletividades”
(Idem, p. 122).
Nas várias definições salientadas por Fontoura, o discurso constituinte se
refere ao ajuste às condições sociais existentes e à correção de falhas ou males da
sociedade ou à promoção do bem‑estar.
A proposta de Fontoura e de outros autores é a de, por um lado, considerar
uma evolução da caridade para a ação social e para o Serviço Social, incluindo
neste uma ruptura com a filantropia e a piedade e incluindo uma visão técnica e
científica da intervenção social.
A articulação entre a ação paliativa, curativa e preventiva fez parte da defini‑
ção, tendo como valor a justiça social principalmente fundada nos parâmetros das
encíclicas papais Rerum Novarum, de 1893 e Quadragesimo Anno, de 1933. A
legitimidade do discurso está na construção de uma profissão cristã, que venha ao
mesmo tempo promover o ajuste do indivíduo ao meio, a justiça social, o bem‑es‑
tar com um procedimento técnico‑científico.
Nessa visão da profissão predominam as questões da adaptação do sujeito a
seu meio, a suas condições de trabalho (no capitalismo), aos valores dominantes,
ou da melhora da satisfação consigo mesmo.
Essa concepção perpassa, de forma persistente na formação e na prática,
quase todo o século XX. Em 1970, Bartlett (1979) reitera essa definição de bom
funcionamento social, centrado na noção de “equilíbrio/interação” entre as pessoas
e o meio, com orientação para as pessoas com problema. Ainda em 1982, reitera‑se
essa definição que reaparece no livro de Helen Northen, publicado no Brasil em
1984, que considera que:

Os objetivos para os quais a prática é dirigida reside no domínio das relações psicos‑
sociais ou vida social, e o profissional pode intervir em diversos sistemas‑cliente, em
qualquer nível de necessidade — fortalecimento, prevenção ou cura e pode usar mo‑
dalidades de prática individual, de família ou grupo. (Northen, 1984, p. 43)

Ainda em 1995, Germain e Gitterman ressaltam que a função profissional é a


de minimizar os estressores externos e potencializar os recursos internos e as pes‑

750 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
soas. Para os autores, o trabalhador social vai buscar as forças pessoais, familiares
e ambientais. Na mediação das trocas entre a população e seu meio, os trabalhado‑
res sociais encontram diariamente a falta de adaptação (fit) entre as necessidades
da população e seu meio (p. 28). Ao mesmo tempo, para os autores, “os valores do
serviço social constituem um conjunto de crenças que definem o que a profissão
considera ser desejável e bom” (p. 29), o que implica a aceitação da sociedade
dominante.
Toda essa proposta visa fortalecer o funcionamento psicossocial e maximizar
as potencialidades das pessoas. A seu ver, mesmo a prevenção pressupõe a correção
do mau funcionamento social. Esse discurso se ancora no funcionalismo dominan‑
te nos Estados Unidos e expresso nas teorias de Parsons (1902‑79), que publica em
1937 o livro The structure of social action.
No livro Sociedades, Parsons (1969, p. 16) define a ação como “estruturas e
processos, por meio dos quais os seres humanos formam intenções significativas e,
com maior ou menor êxito, as executam em situações concretas”. Volta à relação
entre personalidade e meio, construindo‑se na cultura as orientações da ação pela
personalidade ou pelo organismo, que aprende e se adapta ao meio, sendo as inten‑
ções fundadas em padrões e valores que configuram a ordem social. Para ele, o
processo de adaptação funciona por meio da integração ao sistema social.
O discurso da adaptação se torna mais complexo na articulação das funções
da manutenção do padrão dominante pela integração e realização de objetivos,
tanto pelos governos como pela economia e os sujeitos ou personalidades.
Assim, fundamentos ou pressupostos do Serviço Social, nas perspectivas do
bom funcionamento social, são constitutivos do funcionalismo. Essa teoria, por sua
vez, tem como pressuposto que o sistema capitalista vigente e dominante é consti‑
tutivo da sociedade, e seus valores de adaptação são sistêmicos ou normais.
A ruptura com essa visão normativa e com esse discurso pode ser apontada
em 1942 quando Bertha Capen Reynolds (1942) coloca que o Serviço Social deve
ser visto na estrutura social, assinalando que as concepções que consideram o
Serviço Social como algo “bom” contra os males sociais são estáticas, pois “não
levam em conta que o Serviço Social está dinamicamente unido com a sociedade
contemporânea”.
Deve ser visto na sua construção e sem as divisões de caso, grupo e comuni‑
dade ou de campos de ação e na discussão teórica. Também em relação com os
movimentos sociais, ela considera uma visão amadora aquela que se restringe a
problemas sociais ou à solução de problemas sociais, devendo‑se articular o eco‑
nômico, o social e o psicológico. Além de sair de uma prática autoritária, busca
uma orientação de diagnóstico mais complexa e uma orientação que investigue as

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011 751
forças e potencialidades da própria população. Segundo ela, o assistente social deve
integrar o conhecimento de si com o conhecimento do outro e, neste sentido, incor‑
porando os conhecimentos da psicanálise e também considerando as demandas da
população.
Reynolds rompe com a definição de uma helping profession para visão de uma
protecting society em relação aos “desavantajados” (1942, p. 29). Critica a relação
entre o que ajuda e o que é ajudado como relação de superioridade, levantando a
questão de que a ajuda está estruturada pela sociedade, inclusive como a indústria
do socorro e a ausência do Estado.
O pressuposto de que se deve qualificar a ajuda pela ciência ou pela técnica
foi desconstruído por Reynolds como parte da estrutura capitalista e da indústria
da ajuda, configurada como prática autoritária e ainda com uma orientação mora‑
lista e ilusória. A autora conclui pela necessidade de uma aprendizagem contínua
do assistente social na relação com a população em dificuldade e com a população
sem transtorno, também devendo‑se articular a relação profissional com a de su‑
pervisor, de professor, bem como com a de executivo. Considera o Serviço Social
uma arte complexa de articulação entre teoria e prática, em ruptura com a visão
moralista. Salienta a necessidade do profissionalismo, de um corpo de conhecimen‑
tos e competências para o enfrentamento de situações novas de forma qualificada
(“The tasks to be done for human welfare are no our toy”, p. 336). Reynolds chama
a atenção para a necessidade de um significado mais amplo de trabalho social como
na URSS, na Inglaterra e na China, implicando “que em qualquer lugar que se
trabalhe, deve‑se fazê‑lo para o todo”.
Os pressupostos dos discursos de Reynolds, já por influência do marxismo,
foram aprofundados e politizados pelo Radical Social Work dos anos 1970, como
veremos.
Nos anos 1970 constrói‑se também a perspectiva de análise do Serviço Social
por influência das teorias de Foucault, passando a ser visto como uma forma de con‑
trole social (Dechamps, 1994). Verdès‑Leroux (1986) considera que o controle social
implicado no Serviço Social se coloca inicialmente como contenção das “classes
perigosas”, e no processo de industrialização, como forma de obtenção da pacificação
de classes, com todo um “equipamento ideológico” para esse enfrentamento.
Karz (2004) pergunta se podemos e ou devemos definir o trabalho social e
nos leva a refletir sobre ele como um lugar de pertencimento, de identidade, de
execução de tarefas, enfim, como uma questão de disputa de espaços, poder, repre‑
sentações. Esse mesmo autor chama a atenção para o processo de reprodução
ideológica que cabe ao Serviço Social na sociedade capitalista, como uma forma
de controle social, de manutenção do status quo, inclusive articulando‑se ao Esta‑

752 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
do capitalista. Essa função ideológica seria própria do trabalho social no seu pro‑
cesso de trabalho, pois sua matéria‑prima seria as situações sociais significadas
ideologicamente.
A questão da articulação do Serviço Social com a estrutura produtiva do ca‑
pitalismo foi sendo cada vez mais aprofundada (Faleiros, 1972; Iamamoto, 1982;
Netto, 1991; Raichelis, 2009). Nos anos 1970, Faleiros afirmava que “o Serviço
Social se fundamenta na negação dos antagonismos do modo de produção capita‑
lista” (1972, p. 12). Nessa linha o Radical Social Work (Brake e Bailey, 1975;
Statham, 1978; Brake e Bailey, 1980) trouxe uma crítica não só ao capitalismo, mas
também ao liberalismo, ao assinalar que a relação presente no Serviço Social im‑
plica uma desigualdade de poder e se articula à provisão de serviços sociais próprios
das políticas dominantes.
No entanto, considera‑se que a radicalidade na ação às vezes guarda uma
relação com certo humanismo radical, mas levando em conta sua implicação ide‑
ológica no sentido de um compromisso com a classe trabalhadora. Esta foi a
questão‑chave do movimento de reconceituação na América Latina.
Conforme Faleiros (2005), a reconceituação, de linha marxiana, foi situada
como o oposto ao Serviço Social tradicional com o questionamento crítico na busca
de uma fundamentação teórica no marxismo, como fez a Escola de Serviço Social
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais de 1972 a 1975 (Santos, 1982)1
e a Escuela de Trabajo Social de Valparaiso. Não se tratava, nesse caso, de repetir
fórmulas do materialismo vulgar, mas de construir um projeto político da profissão.
Buscava‑se uma articulação, um compromisso, do Serviço Social com as reais ne‑
cessidades da classe trabalhadora em suas relações históricas no contexto das socie‑
dades capitalistas, em geral e em particular (Palma et al., 1972, p. 34).
Faz‑se a crítica não somente ao capitalismo em geral, mas à sua forma depen‑
dente, concentradora e excludente na América Latina. A isso se agrega uma pro‑
funda crítica ao positivismo, ao indivíduo‑problema e à mobilização de recursos.
Ou seja, rompe‑se com a lógica “pessoa/meio ambiente”, própria do funcionalismo,
como acima enunciado. Nesse sentido, toma‑se como referência da ação a funda‑
mentação dialética como ruptura com o linearismo do planejamento, então domi‑
nante no exercício profissional. Há um processo de dupla ruptura: com a ideologia
da adaptação e seu tecnicismo e com a metodologia e a epistemologia positivistas.
A estrutura do planejamento que supõe diagnóstico, definição de objetivos,
execução e avaliação serviu de parâmetro para a definição do Serviço Social no

1. Trata‑se de um trabalho escrito em 1979.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011 753
processo desenvolvimentista, com diferentes expressões, sejam voltadas para a
integração no sistema dominante, seja para uma ação comprometida com a mudan‑
ça, configurando‑se o assistente social como agentes de mudança (Lima, 1974;
Celats, 1986). Na perspectiva de planificação enfatiza‑se, por um lado, o processo
de participação e democracia, ou por outro, o metodologismo (Santos, 1982) próprio
da racionalidade técnico‑burocática (Faleiros, 2010).
No texto do Celats (1986) há ênfase para a participação. O Serviço Social é
situado como uma profissão integrada no setor público ou privado, configurando
um tipo de especialização do trabalho na sua divisão social e que contribui para o
fortalecimento (calificación) dos usuários e das organizações populares, com uma
“privilegiada dimensão política”, definindo‑se o profissional como “um ator polí‑
tico por excelência”, atuante em espaços institucionais que são por sua vez contra‑
ditórios e ao mesmo tempo limitados.
Nesse texto (Celats, 1986, p. 33) afirma‑se que o Serviço Social, no contexto
institucional, não tem se identificado com a opção de assumir atitudes críticas
diante das políticas sociais. Por sua vez, ao sistema capitalista não interessa uma
definição muito clara do papel que o Serviço Social deve cumprir, configurando‑se
uma diversidade de ações tendentes tanto ao burocratismo como ao espontaneísmo
e ao empirismo.
Já no início dos anos 1980 busca‑se aprofundar a inserção do Serviço Social
nas relações de trabalho institucionalizadas. Weisshaupt (1985) considera que ob‑
jetivos profissionais e objetivos institucionais se articulam, pois o profissional é um
agente subordinado na hierarquia, e seu objeto é estabelecido na relação de poder
institucional, confirmando‑se em sua pesquisa que é dominante a integração da
população aos canais institucionais.
Essa vertente da análise institucional (Faleiros, 2007; Martin e Royer, 1987;
Sousa, 1982; Weisshaupt, 1985; Serra, 2000; Bisneto, 2009) considera não só as
relações de poder, como os processos de trabalho, a condição de contratos na lógi‑
ca capitalista, mas diversificando‑se sua análise conforme o tipo de organização
onde se inscreve, por exemplo: organizações estatais, empresariais, não governa‑
mentais, de trabalhadores e mesmo autônomas (Cefess/Abepss, 2009). Essa diver‑
sidade ou heterogeneidade de ações advém da própria diversidade de inserção do
Serviço Social.
É nessa diversidade e no confronto teórico e histórico de sua formação e
formulação que se coloca hoje o desafio de se encontrar uma definição que possa
agregar propostas de ação, valores e métodos. O propósito do Serviço Social, se‑
gundo a Associação de Assistentes Sociais Norte‑Americanos (NASW, 2011) é a
promoção do direito e da autodeterminação, com uma atitude de empatia para com

754 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
o sujeito, mas levando em conta a cultura, as linguagens, as classes, as diversidades
étnicas, habilidades, orientações religiosas, sexuais e diferentes expressões dos
indivíduos. Afirma ainda que os assistentes sociais devem considerar “a pessoa no
meio ambiente” (person‑in‑environment) com níveis macro e micro, com habilida‑
des para influenciar mudanças políticas e desenvolvimento nos níveis local, esta‑
dual e federal, considerando os sistemas de cuidado, além de promover a pesquisa.
Diferentemente da relação de pessoa e ambiente, a definição considera a pessoa no
seu contexto.
O exercício da profissão, presente na definição da Federação Internacional de
Trabalhadores Sociais (Fits, 2011), implica considerar a complexidade da ação, e
não apenas a diversidade da intervenção, articulando‑se a mudança com a resolução
de problemas e a participação na busca dos direitos humanos e da justiça social:

O exercício da profissão de assistente social ou trabalhador social promove a mudan‑


ça social, a resolução de problemas no contexto das relações humanas e a capacidade
e empenhamento das pessoas na melhoria do “bem‑estar”. Aplicando teorias de com‑
portamento humano e dos sistemas sociais, o trabalho social focaliza a sua intervenção
no relacionamento das pessoas com o meio que as rodeia. Os princípios de direitos
humanos e justiça social são elementos fundamentais para o trabalho social.

Nessa perspectiva, o Serviço Social pressupõe os princípios dos direitos hu‑


manos e da justiça social, o que está presente na consideração do Serviço Social
progressista dos Estados Unidos e da Inglaterra. Figueira‑McDonough (2007)
afirma que além dos princípios liberais da liberdade e da igualdade, o Serviço Social
deve articular a autonomia individual com a promoção da justiça social, na pers‑
pectiva dos direitos à liberdade e à igualdade. Assinala, no entanto, que na prática
trabalha mais no sentido de promoção da autonomia que da justiça social e da
participação democrática. Mas assinala que a busca da justiça é central para a pro‑
fissão, sendo o que a distingue das outras. Isto implica análise das contradições da
democracia liberal, das instituições e da identificação de políticas e do envolvimen‑
to profissional com as políticas de promoção da justiça social.
Em pesquisa realizada com assistentes sociais portugueses, Amaro (2009)
constata que os valores de justiça dão identidade à profissão, mas constata também
que falar de transformação, empowerment, justiça e respeito implica uma concre‑
tização na prática, embora a maioria dos profissionais considere que a mudança é
uma característica emblemática da intervenção em Serviço Social. Essa mudança
assume diferentes enfoques, como mudar a oportunidade, a situação, a mentalida‑
de e a sociedade.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011 755
Na realidade, o exercício do Serviço Social não se tensiona apenas entre pro‑
postas diferentes por parte dos profissionais, mas entre propostas societárias de
mudanças. Nesse sentido, os profissionais brasileiros mobilizados pelas suas orga‑
nizações profissionais (CFESS‑Cress‑Abepss) construíram uma proposta ético‑po‑
lítica com compromisso democrático, da cidadania, de participação política e de
crítica ao capitalismo e ao neoliberalismo “na luta pela construção de um novo
projeto societário que tem como princípios fundamentais a liberdade e a justiça
social” (CFESS‑Cress, 1996). Essa perspectiva está presente no Código de Ética
Profissional e vem sendo reafirmada nas manifestações políticas dos profissionais,
o que se pode constatar nos sites do CFESS e dos Cress.
O CFESS (2011) propôs uma definição de Serviço Social no Congresso de
Bem‑Estar Social de Hong Kong de 2010 assim formulada:

O(A) trabalhador(a) social atua no âmbito das relações sociais, junto a indivíduos,
grupos, famílias, comunidade e movimentos sociais, desenvolvendo ações que forta‑
leçam sua autonomia, participação e exercício de cidadania, com vistas à mudança nas
suas condições de vida. Os princípios de defesa dos direitos humanos e justiça social
são elementos fundamentais para o trabalho social, com vistas à superação da desigual‑
dade social e de situações de violência, opressão, pobreza, fome e desemprego.

Essa definição considera o propósito de fortalecimento da autonomia, da ci‑


dadania da participação e de mudanças nas condições de vida. Esta perspectiva
remete às relações de poder e correlações de forças formuladas por Faleiros (1997),
segundo a qual o processo de intervenção profissional implica os pressupostos de
deciframento analítico da estrutura, da conjuntura e da situação, numa perspectiva
relacional e de articulação da participação do sujeito e atuação em redes e vínculos
que permitam mediações gerais e particulares de assegurar direitos e que se trans‑
formem em estratégias de ação.

Considerações Finais
A redefinição do Serviço Social se articula a um processo histórico de crítica e
autocrítica construído na interlocução da profissão com os movimentos sociais e lutas
para mudar as condições particulares de vida das classes trabalhadoras e das condições
gerais de reprodução da força de trabalho e do modo de produção capitalista.
Mesmo o fato de o Serviço Social emergir como profissão no contexto do
capitalismo industrial no final do século XIX e início do XX não impediu que in‑

756 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
corporasse valores e ações próprios da filantropia religiosa, não deixando de ser um
anacronismo. Anacronismo que se enraizava na ideologia religiosa das massas e no
interesse de legitimar a ordem dominante pela “bondade”.
No entanto, já na época de sua fundação emergiram as polêmicas sobre Ser‑
viço Social. Por exemplo, Jane Adams, contemporânea de Mary Richmond, defen‑
dia princípios feministas, de democratização, de respeito à diversidade cultural e
de paz. Tanto assim que foi contemplada com o Prêmio Nobel da Paz (Travi, 2009).
Como vimos acima, Bertha Reynolds já se inspirou no marxismo para uma crítica
à visão adaptativa do Serviço Social em 1942.
No processo de acumulação capitalista, os exercícios profissionais foram se
construindo articulados a uma expressão de controle dos segmentos dominados, de
legitimação ideológica da ordem, de fragmentação de problemas, de individualiza‑
ção das demandas sociais, de integração aos objetivos institucionais. No entanto,
numa perspectiva de politização desses exercícios, de pressão das organizações e
movimentos sociais e de crítica à relação entre Serviço Social e capitalismo, vários
grupos de profissionais, tanto na Europa, como nos Estados Unidos e na América
Latina, produziram uma análise de seu contexto e de suas funções, ao mesmo tem‑
po que se mobilizaram para uma perspectiva de mudança, de defesa de direitos, de
participação e de articulação das demandas cotidianas diversificadas a projetos
societários de transformação das relações de dominação e de exploração na busca
de afirmação dos direitos humanos, da justiça social, da equidade, com respeito à
diversidade social, cultural e de orientação sexual, religiosa ou política.
O gráfico a seguir assinala essas dimensões, as quais foram sendo historica‑
mente construídas de forma não só contraditória, mas também polêmica.
Em primeiro lugar, é preciso salientar que o conceito de “meio” (environment)
é profundamente criticado na visão marxista, pela consideração da estrutura capi‑
talista e da produção/reprodução das desigualdades onde se insere o Serviço Social.
A estrutura socioeconômica se articula à dimensão política do Estado, da cidada‑
nia e das políticas, mas são ligadas, na democracia, a direitos humanos e direitos
reconhecidos (ver linhas laterais do triângulo), por um lado, e à participação, que
envolve organização, mobilização, ação política. O Serviço Social se articula a
uma visão política da sociedade e aos valores de justiça e equidade no enfrenta‑
mento da desigualdade.
No centro do triângulo observamos que as demandas sociais hoje são anali‑
sadas no contexto da estruturação sociopolítica e econômica, do saber profissional
e das significações e expressões dos sujeitos em relação com sua diversidade, suas
trajetórias, seus sofrimentos, exigindo do profissional que não só as tome em con‑
sideração, mas as articule com os direitos e procedimentos/instrumentos, bem como

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011 757
com as dimensões singulares e particulares das relações, percepções e condições
da situação em relação às determinações mais gerais e em seu significado geral.
Trata‑se, assim, de um processo complexo de mediações políticas numa estrutura
marcada pela exploração e pela dominação do ser humano e pela desigualdade no
contexto capitalista e num Estado neoliberal. Desta forma, há que se considerar o
gráfico a seguir de forma contraditória e conflituosa, como é o próprio Serviço
Social na sua compreensão dialética. Nessas mediações estão implicadas as relações
de poder e processos de trabalho nas instituições, onde se exige o deciframento
crítico pela relação estrutura/conjuntura/situação e pela relação teoria/prática/.
valores/movimentos profissionais e sociais/sujeitos em relação.

Gráfico I
Dimensões implicadas historicamente na redefinição do Serviço Social

Demandas
Direitos
Participação humanos/direitos

SUJEITOS EM RELAÇÃO
movimentos diversidades

Poder e processos de trabalho

INSTITUIÇÕES

Relação teoria/prática/valores
Valores de justiça, Estado
equidade. Saber cidadania
e organização políticas

758 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
Recebido em 21/8/2011  ■  Aprovado em 5/9/2011

Referências bibliográficas
AMARO, Maria Inês Martinho Antunes. Urgências e emergências do Serviço Social con‑
temporâneo: contributos para a discussão dos fundamentos da profissão. 2009. Tese (Dou‑
torado) — sob a orientação do prof. Vicente de Paula Faleiros. Faculdade de Ciências Hu‑
manas, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa.
ANDER‑EGG, Ezequiel. Metodología del trabajo social. Barcelona: El Ateneo, 1982.
BARTLETT, Harriett. A base do Serviço Social. São Paulo: Pioneira Editora, 1979.
BISNETO, José Augusto. Serviço Social e saúde mental: uma análise institucional da prá‑
tica. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
BRAKE, Mike; BAILEY, Roy (Org.). Radical social work. Nova York: Pantheon Books,
1975.
______. Radical social work and practice. Londres: Edward Arnold, 1980.
CASTRO, Manuel Manrique. História do Serviço Social na América Latina. Tradução de
José Paulo Netto e Balkys Villa Lobos. São Paulo: Cortez, 2000.
CBCISS — Documento de Sumaré. Debates Sociais — Suplemento n. 8. Rio de Janeiro:
CBCISS, 1988.
CELATS. La práctica profesional del trabajador social. Lima: Hvmanitas, 1986.
CFESS. Proposta do CFESS para definição de Serviço Social. Disponível em: <www.cfess.
org.br> Acesso em: 19 ago. 2011.
CFESS/ABEPSS. Serviço social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília:
CFESS/ABEPSS, 2009.
CFESS‑CRESS. Serviço Social a caminho do século XXI: o protagonismo ético‑político do
conjunto CFESS‑CRESS. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 50, p. 172‑190, abr.
1996.
CHOPOART, Jean‑Noël. Les mutations du travail social. Paris: Dunod, 2000.
DECHAMPS, Ivan. Le travail social écartelé: pour un chemin praticable entre l’aide et le
contrôle. Bruxelas: Editions Vie Ouviére, 1994.
FALEIROS, V. P. Estratégias em Serviço Social. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
______. Saber profissional e poder institucional. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011 759
FALEIROS, V. P. A crise do planejamento. Serviço Social & Saúde, Campinas, v. 9, p. 1‑25,
2010.
______. Reconceituação do Serviço Social no Brasil: uma questão em movimento. Serviço
Social & Sociedade, São Paulo. v. 26, n. 84, p. 21‑36, nov. 2005.
______. Trabajo social: ideología e método. Buenos Aires: Ecro, 1972.
FIGUEIRA‑McDONOUGH, Josefina. The Welfare State and SOCIAL WORK: pursuing
social justice. Londres: Sage, 2007.
FITS. Definição de Serviço Social. Disponível em: <http://www.ifsw.org/p38000377.html>
Acesso em: 19 ago. 2011
FONTOURA, Amaral. Introdução ao Serviço Social. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Au‑
rora, 1959.
GERMAIN, Carel B.; GITTERMAN, Alez. The life model of social work practice. Nova
York: Columbia University Press, 1995.
GRANEMANN, Sara. Processos de trabalho e Serviço Social. In: Capacitação em Serviço
Social. Reprodução social, trabalho e Serviço Social. Brasília: CFESS/Abepss/Cead, 1999,
v. 2.
IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil.
São Paulo: Cortez, 1982.
KARZ, Saül. Pourquoi le travail social. Définitions, figures, clinique. Paris: Dunod, 2004.
LIMA, Boris A. Contribución a la metodología del trabajo social. Caracas: Universidade
Central da Venezuela, 1974.
MARTIN, D.; ROYER, P. (Org.). L’intervention institutionnelle en travail social. Paris:
L’Harmattan, 1987.
NASW. Social work practice in health care settings. 2005. Disponível em: <http://www.
socialworkers.org/practice/standards/NASWHealthCareStandards.pdf>. Acesso em: 19 ago.
2011.
NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1991.
______. La crisis del proceso de reconceptualización del servicio social. In: ALAYÓN,
Norberto et al. Desafío al servicio social. ¿Crisis de la reconceptualización? Buenos Aires:
Humanitas, 1975.
NORTHEN, Helen. Serviço social clínico. Um modelo de prática. Rio de Janeiro: Agir, 1984.
PALMA, Eloisa Pizarro de et al. Que es trabajo social. Valparaíso: Ediciones UCV, 1972.

760 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
PARSONS, Talcott. Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. São Paulo: Pio‑
neira, 1969.
POSSENTI, Sirio; SOUZA‑E‑SILVA, Maria Cecília Pérez de (Org.). Cenas da enunciação.
São Paulo: Parábola, 2008.
RAICHELIS, Raquel. O trabalho do assistente social na esfera estatal. In: CFESS/Abepss.
Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CEFESS/Abepss,
2009. v. 1.
REYNOLDS, Bertha Capen. Learning and teaching in the pratice of social work. Nova
York: Rinehart & Company, 1942.
SANTOS, Leila Lima. Textos em Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1982.
SERRA, Rose. M. S. Crise de materialidade no Serviço Social: repercussão no mercado
profissional. São Paulo: Cortez, 2000.
SILVA, Ilda Lopes Rodrigues da. Mary Richmond: um olhar sobre os fundamentos do Ser‑
viço Social. Rio de Janeiro: CBCISS, 2004.
SILVA, M. Ozanira da Silva e (Coord.). O Serviço Social e o popular. São Paulo: Cortez,
1995.
SOUZA, Maria Luiza. Serviço Social e instituição: a questão da participação. São Paulo:
Cortez, 1982.
STATHAM, Daphne. Radicals in social work. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1978.
TRAVI, B. (Org.). Reconstrucción biográfica de la trayectoria profesional, académica y
política de las pioneras del Trabajo Social (EEUU, 1860‑1935). Prog. de Investigación
PITS‑EPHyD. Dto. de Cs. Sociales. Universidad Nacional de Luján, Argentina. 2009. Reg.
Prop. Intelectual, Expte: 799455. Dcción. Nacional del Derecho de Autor.
VASCONCELOS, Ana Maria de. A prática do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2002.
VERDÈS‑LEROUX, Jeannine. Trabalhador social: práticas, hábitos, ethos, formas de in‑
tervenção. São Paulo: Cortez, 1986.
WEISSHAUPT, Jean Robert (Org.). As funções socioinstitucionais do Serviço Social. São
Paulo: Cortez, 1985.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011 761
Um projeto para o Serviço
Social crítico
A critical Social Work project

R esumo A bstract
As transformações sociais contem- Contemporary social transformations,
porâneas, operadas pela programática operated by the neoliberal program under
neoliberal sob o comando do capital the command of financial capital, bring
financeiro, trazem novos desafios ao new challenges to the group of citizens
conjunto de cidadãos e de homens e and men and women who live by the sale
mulheres que vivem da venda de sua força of their labor power. Social workers,
de trabalho. Os assistentes sociais, individually and collectively, are not
individual e coletivamente, não são alheios separate from this reality. The profession
a esta realidade. A profissão já se was characterized by its confrontation with
caracterizou por enfrentar estes desafios, these challenges and its questioning and
questionando e problematizando seu papel analysis of its role in society, in its attempt
na sociedade, tentando assumir perfis mais to assume more critical profiles and
críticos e comprometidos com os interesses commitments to the interests of workers
dos trabalhadores e dos setores subalter- and the subaltern sectors. An example of
nos. Exemplo disso são o “Movimento de this is the “Reconceptualization Move-
Reconceptualização” e a posterior tentativa ment” and the later attempt to define an Carlos Montaño
de definir um “Serviço Social Alternativo” “Alternative Social Service” concerned
preocupado com o sentido de sua prática, with the meaning of its practice, with the Doutor em Serviço Social.
com o processo de conhecimento crítico, process of critical knowledge, with a
com a crítica ao capitalismo e às situações criticism of capitalism and its situations of Professor e investigador da Universidade
de injustiça social. Os desafios atuais levam social injustice. The current challenges Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
a, superando anteriores debilidades, include overcoming earlier weaknesses, Documento original apresentado no
construir coletivamente um projeto ético- collectively constructing an ethical- Fórum de Debate La profesionalización
político profissional que possa enfrentar political professional project that can del Trabajo Social en el siglo XXI:
com competência e compromisso, no interior competently and committedly confront, at rupturas y continuidades – de la
das forças sociais progressistas, as the heart of progressive social forces, the Reconceptualización al proyecto Ético-
condições nas quais vivem os trabalha- conditions in which workers live (with or Político, no marco do Encuentro
dores (com e sem emprego) e os demais without employment) as well as other Latinoamericano de Trabajo Social.
setores subalternos. subaltern populations. Universidad Nacional de La Plata,
Palavras-chave: Serviço Social crítico, Key words: critical Social Work, ethical- Argentina, 25 a 27 de agosto de 2005.
projeto ético-político, Serviço Social e political project, Social Work and neolibe- Tradução de Santo Gabriel Vaccaro do
neoliberalismo. ralism. original Un proyecto para el Servicio
Social crítico.

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
142 Carlos Montaño

1 O capital e sua crise: inflexões nas resses hegemônicos do grande capital) e sua defe-
sa dos direitos e conquistas sociais (a partir de de-
políticas sociais e no Serviço Social
mandas e de lutas das classes trabalhadoras e su-
balternas); isto reflete uma prática profissional que
1.1 O capital, as políticas sociais e o Serviço é essencialmente política, inserida no interior das
Social contradições entre as classes, ocupando um espa-
ço de disputa de interesses5;

É
com o desenvolvimento do capitalismo · o Serviço Social, condicionado pelas estruturas soci-
monopolista, sua expansão produtivo-co- ais e pelas demandas institucionais (geralmente re-
mercial consolidada após a Segunda Guerra presentantes dos interesses hegemônicos), ainda as-
(1945) e com as lutas de classes, que surge e se expande sim pode apresentar um certo protagonismo e uma
um padrão de resposta às manifestações da “questão soci- margem de manobra relativa ao orientar sua ação
al”, fundamentalmente mediante a intervenção das políti- profissional; na medida em que dirige seu processo de
cas sociais estatais1 . No marco destas, cria-se um espaço formação não meramente para o atendimento direto
socioocupacional que será parcialmente ocupado por uma das demandas institucionais, mas formando um pro-
emergente profissão, o Serviço Social2 . Este surgimento fissional crítico e competente, que organize o coletivo
da profissão muitas vezes foi confundido com a evolução em entidades fortes e representativas e que consolide
das “formas não-profissionais de ajuda” para sua códigos de ética claramente orientados em certos va-
“profissionalização”3 . Na verdade, a profissão de Serviço lores definidos coletivamente, o assistente social pode
Social surge e se expande embrionariamente vinculada ao ver reforçada sua margem de manobra para uma prá-
surgimento e à expansão das políticas sociais estatais. Es- tica profissional que, sem eliminar os
tas últimas constituem-se, assim, na “base de sustentação condicionantes sistêmicos, privilegie a garantia
funcional-ocupacional” da profissão4 . O assistente social dos direitos sociais conquistados.
surge como implementador das políticas sociais; dessa for- Logicamente esta última determinação da prática pro-
ma, o que sucede com estas, atinge e afeta aquele. fissional só pode ter fundamento a partir da existência
Assim, as políticas sociais constituem instrumentos de de um projeto profissional com suas dimensões ética e
intervenção estatal funcionais ao então projeto hegemônico política, construído coletivamente, que reforce este
do capital (produtivo), embora tensa e contraditoriamente protagonismo relativo do corpo profissional. Sem isso,
representem conquistas das classes trabalhadoras e su- deriva-se inevitavelmente no “messianismo” das vonta-
balternas. Direitos conquistados para ter certas necessi- des e opções individuais ou no “fatalismo” que reside na
dades atendidas pelo Estado, o que por sua vez significa resignação a respeito dos condicionantes sistêmicos.
que o status quo e a acumulação capitalista permanecem
inalterados. 1.2 A crise do capital e a resposta neoliberal
O sentido social das políticas sociais (sua função de
reprodução do sistema socioeconômico e político e do É consenso entre os intelectuais que o sistema capita-
status quo) e sua tensão e contradição internas (consti- lista, após quase 30 anos de clara expansão econômica
tuir direitos conquistados pelas classes subalternas) são (1945-1973), ingressa em uma profunda crise: do seu pa-
transferidos para aqueles atores que com elas trabalham: drão de produção (fordista), do seu sistema de regulação
os assistentes sociais. Estes passam a ter, em sua prática, (keynesiano), do seu Estado (de Bem-Estar Social), do
o sentido social das políticas sociais. Com isto, aparece tipo de trabalhador (especializado), da sua racionalidade
uma primeira determinação da prática profissional: (positivista), crise fiscal, do padrão dólar, das fontes
· o Serviço Social constitui (a partir de sua vinculação energéticas (petróleo), do subconsumo. Na realidade, o
embrionária com as políticas sociais) uma engre- que se observa hoje é uma crise geral, sistêmica.
nagem na reprodução das relações sociais e do Diante de tal fenômeno, a fração da classe hegemônica
sistema dominante; sua prática social resulta fun- (o grande capital financeiro) aliada aos capitais nacionais
cional à manutenção da ordem social e às rela- desenvolve uma nova forma de enfrentar a crise, por um
ções capitalistas (a exploração do trabalho, o con- lado ampliando a exploração do trabalhador e, por outro, sub-
trole social, a diminuição das lutas sociais e a acu- jugando os pequenos e médios capitais. Surge assim, posteri-
mulação de capital). ormente a um surto de ditaduras militares, a nova resposta
Mas esta afirmação não pode ignorar as outras duas do capital à crise: o projeto neoliberal. A programática
determinações desta prática: neoliberal representa, portanto, a atual estratégia
· o Serviço Social desenvolve sua intervenção em hegemônica de reestruturação geral do capital (que para
um espaço de tensão e contradição entre sua a América Latina segue o receituário do Consenso de Wa-
função de reprodução do sistema (a partir dos inte- shington, de 1989) frente à crise e às lutas de classes, e que

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 143

deriva basicamente em três frentes articuladas: o combate da sociedade, particularmente em relação às já precárias
ao trabalho (às leis e políticas trabalhistas e às lutas sindi- estruturas de atenção, assistência e segurança social. Pas-
cais e da esquerda) e as chamadas “reestruturação produ- sa-se da política social e da assistência social como um
tiva” e “(contra-)reforma do Estado”6 . direito do cidadão (garantido pela ação estatal) para a ação
voluntária, filantrópica, assistencialista, clientelista (desen-
1.3 Repercussões nas conquistas das classes volvida no âmbito das organizações e pelos indivíduos da
subalternas e no Serviço Social sociedade civil).
Por outro lado, observam-se inflexões na profissão
Nesse sentido, dadas as substanciais transformações repercutindo significativamente em pelo menos três ní-
no mundo do trabalho, de tal forma a afetar a realidade veis: 1) em sua condição de trabalhador – aumentando
das classes trabalhadoras, principais usuárias das políti- o desemprego profissional, precarizando o vínculo traba-
cas sociais, e dadas as alterações desenvolvidas no âmbi- lhista, levando a uma tendência à “desprofissionalização”;
to dos Estados nacionais, organismos responsáveis, por 2) em sua demanda direta e indireta – aumentando e
excelência, pelas respostas às refrações da “questão so- diversificando as manifestações da “questão social” en-
cial”, sendo as políticas sociais mediações entre o Estado frentadas pelo assistente; e 3) em sua prática de campo
e as classes sociais, pode-se então afirmar que, conse- – reduzindo os recursos para implementar serviços soci-
qüentemente, as políticas sociais no atual contexto ais; demandando o “tarefismo” ou o “ativismo” que su-
neoliberal são substancialmente alteradas em suas orien- bordina a qualidade do atendimento à quantidade; com a
tações e em sua funcionalidade. “desuniversalização” das políticas sociais, atuando o as-
Como solução parcial à crise capitalista, o neoliberalismo sistente social em micro-espaços; com tendência à
pretende a reconstituição do mercado livre, reduzindo e in- “filantropização” e ao “assistencialismo” e, inclusive, à
clusive eliminando a intervenção social do Estado em di- “mercantilização” dos serviços sociais (retirando-lhes a
versas áreas e atividades. Assim, nessa nova estratégia dimensão de direito de cidadania).
hegemônica (neoliberal) do grande capital, é concebido um
novo tratamento à “questão social”. Cria-se uma modali- 2. A necessidade de uma resposta profis-
dade polimórfica de respostas às necessidades individuais,
diferentes conforme o poder aquisitivo de cada pessoa. Por- sional progressista, crítica, comprometida e
tanto, tais respostas não constituiriam um direito, mas uma competente
atividade filantrópica/voluntária ou um serviço
comercializável; também a qualidade dos serviços respon- É assim que a situação atual desafia a profissão a en-
de ao poder aquisitivo da pessoa; a universalização cede frentar estas inflexões e construir respostas coletivamen-
lugar à focalização e à municipalização; a “solidariedade te. Claro que as possibilidades de concretização destes
social” passa a ser localizada, pontual, identificada com a desafios profissionais não são alheias às tendências soci-
auto-ajuda e com a ajuda-mútua. ais e às correlações de forças existentes.
É assim que, no que concerne ao novo tratamento da
“questão social”, a orientação das políticas sociais esta- 2.1 P r o j e t o s s o c i e t á r i o s e p r o j e t o s p r o f i s -
tais é alterada de forma significativa. Elas são privatizadas, s i o n a i s
transferidas ao mercado e/ou inseridas na sociedade civil;
por sua vez, contra o princípio universalista e de direito de Atualmente, é possível identificar a disputa de, pelo
cidadania, são focalizadas, isto é, dirigidas exclusivamente menos, três grandes projetos de sociedade: a) o projeto
aos setores portadores de necessidades pontuais, o que neoliberal (de inspiração monetarista, sob o comando do
permite sua precarização; finalmente, elas são também capital financeiro, que procura, no atual contexto de crise,
descentralizadas admi- desmontar os direitos tra-
nistrativamente, levando balhistas, políticos e so-
as regiões pobres a ter O Serviço Social desenvolve sua ciais historicamente con-
que se contentar com a quistados pelos trabalha-
administração de recursos intervenção em um espaço de tensão dores, acentuando a ex-
insuficientes para suas ploração de quem vive do
respostas sociais7 . e contradição entre sua função de trabalho e sugando os
Com isto ocorrem, pequenos e os médios ca-
por um lado, claras per- reprodução do sistema [...] e sua defesa pitais); b) o projeto refor-
das de direitos conquis- mista (tanto em sua ver-
tados pelos trabalhado- dos direitos e conquistas sociais... tente liberal-keynesiana
res e setores subalternos como social-democrata,

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
144 Carlos Montaño

representando o expansionismo do capitalismo produtivo/ · Um projeto profissional não é algo isolado, mas
comercial conjuntamente com algum grau de desenvolvi- necessariamente inspirado em e articulado com
mento dos direitos civis, políticos, sociais e trabalhistas) e c) projetos societários. Portanto, o projeto profissio-
o projeto revolucionário (fundamentalmente de inspira- nal importa, redimensiona e se insere em determi-
ção marxista que busca, gradual ou abruptamente, a subs- nados valores, ideologias, projetos, articulado com
tituição da ordem capitalista por uma sociedade sem clas- atores sociais que representam os valores, ideolo-
ses, sem exploração e regida pelo trabalho emancipado). gias e projetos profissionais hegemônicos. Além
Destes projetos se desprendem diversos valores e prin- disso, os projetos profissionais não só se inserem
cípios8 que orientam comportamentos e valores profissio- em projetos e valores sociais mas estão, de alguma
nais. Em termos gerais, pode se constatar hoje um certo maneira, condicionados pelo lugar que ocupam na
ecleticismo profissional no sentido de reunir componen- correlação de forças na sociedade.
tes dos diversos projetos sociais (com seus valores e prin- · Um projeto profissional, se legítimo e plural, mes-
cípios antagônicos). Quando isto ocorre, fica comprome- mo que articulado com uma determinada correla-
tida qualquer tentativa de construção de um projeto ético- ção de forças internas, desdobra-se em um projeto
político profissional realmente progressista; o resultado é de formação profissional, em um código de éti-
um mosaico de partes constitutivas de tais projetos reuni- ca, em uma organização acadêmica e/ou
das acriticamente, o que acaba por reforçar o projeto corporativa profissional, que estabelecem rela-
hegemônico da classe dominante. Isto leva à necessidade ções e interlocução com atores sociais em função
de explicitar características de um novo projeto ético-po- da articulação de seus valores e projetos.
lítico profissional capaz de fazer frente ao contexto · Considerando a “questão social”9 , as lutas de classes
neoliberal, tal como se pretende construir. e as desiguais condições de vida, a partir da relação
de exploração entre capital e trabalhadores,
2.2 O projeto ético-político profissional: um logicamente um projeto ético-político profissional deve
projeto em processo de construção coletiva ser sensível aos interesses das classes trabalha-
doras e às populações mais desfavorecidas. Os
Assim, toda ação que procure enfrentar e reverter as interesses das classes trabalhadoras e dos grupos
atuais tendências neoliberais deve partir das seguintes subalternizados devem permear um projeto como tal.
considerações:
· Deve ser determinada a partir da construção/con- 2.3 Fundamentos do projeto profissional
solidação não apenas de ações individuais, mas crítico e progressista a partir das perspectivas
de um projeto profissional hegemônico que inte- histórico-críticas
gre e articule as dimensões ética e política. Pro-
jeto este construído democraticamente pelo cole- Torna-se assim necessária a clara caracterização e
tivo profissional. Por isso, mais do que um proje- construção de um projeto profissional crítico e progres-
to significa um “processo” que está em cons- sista a partir de “tendências histórico-críticas”, fundado
trução. A polêmica, os debates, as produções teó- em princípios e valores tais como: a liberdade (não só
ricas, a correlação de forças internas da profis- formal, negativa, mas que considere a potencialidade), a
são, que agrupa tendências e subtendências, tudo democracia substantiva (e a democratização); a cida-
isso constitui o processo de construção de um pro- dania e sua expansão, ampliando os direitos humanos,
jeto ético-político profissional. civis, políticos e sociais; a justiça social (e a igualdade
· Porém, o pluralismo e o consenso não substituem a social, que não se confundem com a identidade); as polí-
necessidade de constituir maiorias, construção de- ticas sociais universais, não-contributivas, de qualidade
mocrática e plural, sem prescindir de uma clara e constitutivas de direito de cidadania; a ampliação da es-
direção social legítima. Pluralismo e respeito às fera pública; a eliminação de toda forma de explora-
minorias não eliminam a legítima hegemonia da mai- ção, dominação e submissão como sistema de convi-
oria, não equivalem à soma das partes, da mesma vência social e de desenvolvimento de uma essencial ci-
forma como consenso não equivale à ausência de dadania e da emancipação humana.
dissensos; aquele se constrói a partir da articula- O fato do assistente social estar no contexto das con-
ção (dada a partir de determinada correlação de tradições e dos conflitos entre classes (o que não significa
forças) destes, superando-se assim os vazios “con- que possua um papel “mediador” entre elas) faz deste
sensos do óbvio” – ou seja, aqueles acordos acei- profissional, particularmente, um ator essencialmente po-
tos por todas as tendências, que de tão “lavadas”, lítico. Político (não partidário) no sentido de participante
são esvaziadas de seus conteúdos essenciais, como desta relação conflituosa entre as classes. Relação
declarações de “combate à pobreza”, etc. (onde atua o assistente social) que se expressa de várias

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 145

formas: déficit de consumo, incapacidade de acesso a de- criticar algo. Neste caso, o marco referencial para ava-
terminados bens e/ou serviços, questões salariais, desem- liar um postulado ou um objeto não é o contraste com a
prego, discriminação (de todas as formas: sexual, de gê- realidade, mas a subjetividade dos juízos de valor de um
nero, étnica e racial, xenofobia, etária, etc.), mortalidade, indivíduo. Quando se rechaça algo, critica-se a partir de
dependência química, entre tantas outras manifestações um juízo de valor.
da “questão social”. Nesse sentido, a falta de visão de tal A reflexão crítica do Serviço Social (ou a busca de um
situação certamente vem para reforçar (inclusive de for- Serviço Social crítico) sustenta-se nas teorias críticas (aque-
ma inconsciente) a situação existente e os interesses das las que buscam a verdade a partir do reflexo teórico apropri-
classes dominantes (que direta ou indiretamente se apre- ado da realidade) sobre a estrutura e as dinâmicas sociais. É
sentam como empregadoras do profissional). Faz-se ne- contra esta reflexão (crítica) que se desenvolve uma crítica,
cessário, então, tornar explícito o compromisso ético-po- com sentido de rechaço, censura, juízo de valor. É nesse últi-
lítico através da defesa dos valores do trabalho – tra- mo sentido que textos/autores “contestadores” serão referi-
balho emancipado do capital, contra a exploração e a do- dos, não como críticos, mas como críticas.
minação do homem sobre o homem – e da defesa dos
direitos historicamente conquistados pelas classes tra-
3.1 As diversas manifestações de “contes -
balhadoras e pelos setores subalternos – direitos tra-
balhistas, sociais, políticos e de cidadania. tação” ao projeto ético-político crítico e
Isso significa o comprometimento do assistente social progressista e às “perspectivas histórico-
em centrar sua ação profissional nesses valores, o que su- críticas”: seus argumentos centrais
põe um claro corpo ético-político (Códigos de Ética) que
oriente e controle o exercício profissional a partir dos con- Efetivamente, durante quase duas décadas, o Serviço
sensos criados pelos coletivos profissionais e da articula- Social na América Latina sofreu uma espécie de imobilismo
ção com outros atores institucionais e sociais, objetivando intelectual. Pouco debate, pouca polêmica, pouco
reforçar seu papel na correlação de forças existente. enfrentamento de idéias. Como se todos pensassem igual,
como se todas as contribuições fossem confluentes. En-
tre outras coisas, isto se devia à ênfase metodologista que
3 O debate de idéias no interior da profissão imperava na produção acadêmica e nas preocupações com
as práticas singulares, assim como a quase ausência de
A partir destas propostas – que têm por objetivo con- produção teórica mais recente.
tribuir com um processo coletivo de criação de um projeto A saída à luz de novas análises sociais no novo con-
ético-político profissional, crítico, competente e compro- texto neoliberal, de novas reflexões sobre o papel social
metido com os valores já enunciados, dotando o profissio- da profissão, partindo de categorias e conceitos centrados
nal daquele relativo protagonismo dentro das determinantes na emancipação do trabalho, na plena cidadania, ten-
estruturais no campo tenso e contraditório que enquadra do como referenciais teóricos autores, clássicos ou não,
a prática profissional –, começam a surgir contestações e de sólido fundamento dialético e crítico, tudo isso mobili-
enfrentamentos10. Mas, poderiam entender-se estas con- zou novas e velhas adormecidas energias e polêmicas.
testações como uma crítica à crítica do Serviço Social Amplos setores do coletivo profissional “contagiaram-se”
(ou a um Serviço Social crítico)? com esta nova onda de debate crítico e comprometido12 ,
Para começar, o conceito de crítica aceita duas com estes novos questionamentos e considerações que
acepções bem diferentes. Primeiramente, crítica como tentavam entender de forma diferente questões centrais
busca da verdade, confrontando a teoria com a realida- para a profissão que até então não haviam encontrado
de (com a prática social)11 . Neste caso, o objetivo da respostas satisfatórias.
crítica é a fiel reprodução teórica da realidade; a verdade, O simples fato de despertar o adormecido espírito de
que existe na realidade material, deve ser corretamente estabelecer polêmica entre idéias no interior de nossa pro-
refletida na teoria. Um postulado teórico é verdadeiro ou fissão já constitui um elemento extremamente positivo
falso não por sua “aplicabilidade” a uma realidade singu- deste novo debate.
lar, não pela “adequação” a este ou aquele método consi- Não obstante, nada consistente reúne unanimidade de opi-
derado científico, mas por sua fidelidade ao objeto em ques- niões na história humana. Assim surge a reação e o
tão. Crítica aqui significa busca da verdade, tendo a reali- enfrentamento, contestando e/ou rejeitando a tentativa de in-
dade como critério de veracidade e a teoria (crítica) como centivar a construção de um projeto ético-político, crítico e
fiel reflexo daquela. comprometido. Não sem um grande número de significativos
Diferentemente, o segundo significado de crítica (tal- equívocos de interpretação (cuja análise de conjunto seria te-
vez o mais utilizado no cotidiano) remete à ação de jul- diosa e desnecessária), essa “contestação”, recolhida nos tex-
gar desfavoravelmente, censurar ou rechaçar algo: tos já relacionados, apresenta os seguintes argumentos:

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
146 Carlos Montaño

a) considera que as análises histórico-críticas Trabalho Social, acusando-o de profissão origina-


desqualificam a imagem do Serviço Social, contri- da numa herança conservadora católica que, le-
buindo para seu desprestigio social; vada depois ao campo secular, tecnificada e mo-
b) concebe as diversas contribuições histórico-críticas dernizada, teria mantido no entanto as ‘manchas’
como homogêneas, atribuindo-lhes uma suposta de sua espúria origem intocadas, dentro de ‘um
perspectiva brasileira; cunho conservador-reformista’ [...] esta
c) parte da ilusão sobre a possibilidade de autodeter- ‘diabolização’ do Trabalho Social presente em mui-
minação do sentido da prática profissional, a tos autores da última década se inscreve numa in-
partir da mera vontade e de opções individuais; terpretação fortemente niilista, substanciada pela
d) caracteriza como funções profissionais centrais a chamada ‘desilusão respeito do socialismo real’
mediação de conflitos e a integração social; (PORZECANSKI, 2001, p. 75, grifo nosso).
e) prioriza as micro-experiências como caminho para
a solução de “problemas” ou conflitos singulares e Se tivéssemos que caracterizar os inimigos do Ser-
locais, deixando em segundo plano as conquistas viço Social, encontrar-nos-íamos com três tipos
estruturais e universais e as lutas centrais; principais, dois externos e um interno à profis-
f) o imediato, o emergente, ocupa lugar central, hipo- são [...] c) o inimigo interno ao que nos referimos
tecando qualquer projeto de médio ou longo prazo; não o parece a primeira vista, pois usa uma lin-
g) promove um retorno aos autores tradicionais do guagem parecida à de todos no conjunto profissi-
Serviço Social, descartando as reflexões críticas e onal e freqüentemente se dirige aos colegas com
superadoras dos mesmos; aparentes intenções construtivas. Na realidade se
h) apresenta uma explícita ou implícita rejeição à convertem em destruidores do Serviço Social, antes
reconceptualização e identifica sumariamente as por não conseguir compreendê-lo, mesmo que em
propostas de construção coletiva de um projeto alguns casos possam fazê-lo por oportunismo ide-
ético-político profissional com aquele movimento; ológico [...] Assim vemos no prólogo de um texto
i) em alguns textos “contestadores” aparece visivel- muito recente de Carlos Montaño [...] (DI CARLO,
mente uma tendência anti ou pós-marxista, en- 2001, p. 20, grifo nosso). […] debater os supostos
tendendo que a proposta de construção de um pro- básicos constitutivos específicos do trabalho so-
jeto ético-político se esgotaria nesta perspectiva; cial profissional, com outras correntes de inter-
j) finalmente, percebe-se uma clara negação e re- pretação, que no nosso entendimento entendem
jeição ao debate acadêmico responsável e explí- mal esta profissão e em conseqüência terminam
cito, através da desqualificação e tergiversação de atacando-o com a intenção, ou confusão, de
seus interlocutores. modificá-la na sua razão de ser (DI CARLO, 2004,
p. 7, grifo nosso).
3.2. Crítica à “crítica crítica”: abrem-se a
polêmica e o debate interno A repercussão destas tendências na formação pro-
fissional [...] Atenta contra a identidade profissional
A seguir são enumerados os argumentos centrais ex- e contra seu desenvolvimento, da mesma forma que
pressos nestas contestações, assim como a nossa refle- o fez há umas décadas a chamada etapa de
xão crítica de seus conteúdos. ‘reconceituação’, a qual freou durante anos o
desenvolvimento da profissão (CORTINAS, 2003,
(I) A consideração de que a análise crítica “desqualifica” p. 28). Faz pouco tempo expressei [...] minha pre-
a imagem do Serviço Social, contribuindo para seu ocupação pelas tendências detratoras manifesta-
desprestígio. das na literatura contemporânea sobre o Servi-
Esta constitui a hipótese central esgrimida pelos ço Social Profissional (SSP) e sobre o perigo que
contestadores das “perspectivas histórico-críticas”. Con- elas ocasionavam ao influir fortemente nos vas-
siste na idéia de que a análise crítica, consolidada na his- tos setores da profissão. Da leitura do livro ‘Ca-
tória social capitalista, particularmente na América Lati- pitalismo Monopolista e Serviço Social’, cujo
na, à medida que constata certa função de reprodução do autor é o Professor José Paulo Netto, surgem ni-
sistema e do status quo, estaria contribuindo para tidamente grandes discordâncias de suas afirma-
desprestigiar e desqualificar a imagem da profissão. Es- ções e reforçam a expressada preocupação. Este
tas são algumas afirmações13 : livro se propõe demonstrar o caráter conservador e
reacionário dos Serviços Sociais, tanto no
Com a energia e o zelo de um inquisidor medieval, institucional como no profissional. Produto do
Iamamoto se lançou em 1992 a levar a processo ao desenvolvimento capitalista, seu destino [do

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 147

Trabalho Social] é acunhá-lo, servi-lo [...] Estas ori- […] a partir do momento em que o pobre se be-
gens marcam sua substanciação, a especificidade neficia do sistema de assistência deve, por isso
conservadora ou reacionária da profissão. A mesmo, submeter-se a vários controles médicos.
legitimação [da profissão] [...] contém sempre o Com a Lei dos pobres aparece, de forma ambí-
pecado original da filantropia, ao serviço da classe gua, algo importante na história da medicina
burguesa, dentro do sistema capitalista. Netto acu- social: a idéia de uma assistência controlada, de
sa de sincretismo o Serviço Social [...]. A obses- uma intervenção médica que tanto é uma ma-
são que manifesta pela reprodução da socieda- neira de ajudar os mais pobres[…] como um
de [...] o conduz a tomar uma atitude detratora controle através do qual as classes ricas ou seus
para com os S. S. institucionais e seus agentes, representantes no governo asseguram a saúde
os profissionais, pela sua ação a favor dos inte- das classes pobres e, por conseguinte, a prote-
resses burgueses (CORTINAS, 2003a, p. 17, 18, 23, ção das classes ricas.
grifo nosso).
Deve-se considerar as análises foucaultianas como um
Na nossa profissão existe uma polêmica mais “ataque” ao médico ou à medicina? É este autor um
de corte ideológico do que científico, na qual cer- “inquisidor medieval” do profissional da saúde? É este um
to setor de trabalhadoras e trabalhadores soci- “inimigo interno” da instituição hospitalar?
ais afirmam que se trata de uma profissão cria- Parece, então, que “amoldar” a imagem da realidade
da pelas classes dominantes para contribuir a aos desejos não deveria fazer parte do horizonte intelec-
manter o status quo social [...] Na verdade é o tual. Se a análise da história exibe a tensão existente na
momento para que, no lugar de fazer afirma- prática profissional do Serviço Social – por um lado forja-
ções de ruptura com a profissão de trabalho soci- da na função social que as políticas sociais transferem à
al, façam um esforço por contribuir a que o la- profissão (estas como parte de estratégias capitalistas,
bor profissional seja realizado cada vez com mai- ainda que permeadas por demandas das classes subalter-
or eficácia e com melhores condições nas), e por outro, no relativo protagonismo profissional para
institucionais [...] Seguir pelo caminho de afir- reconduzir sua formação e ação –, este fato não deve ser
mações desintegradoras unicamente confirma o escondido ou rejeitado com a finalidade de não “ferir”
perigo da ideologização [...] (SAN GIÁCOMO, in uma imagem profissional que se considera ideal. O com-
DI CARLO, 2004, p. 88,89- 97, grifo nosso). promisso com a verdade deve ser superior à necessidade
corporativa de dotar a profissão da imagem desejada.
É interessante esta preocupação com um suposto “ata- Além disso, a possibilidade de um relativo protagonismo
que” à profissão, partindo de seus supostos “inimigos inter- profissional (que não elimina completamente os deter-
nos” ao, supostamente, “diabolizar” o Serviço Social, “acu- minantes sistêmicos) para orientar esta prática no sentido
sando-o” de reacionário e servil aos interesses do capital. de reforçar direitos conquistados por trabalhadores e ci-
Será que a diferença entre uma “acusação” e uma aná- dadãos, em geral só encontra terreno fértil na análise crí-
lise histórica não é percebida? É possível discrepar das tica da realidade histórica, que determina a particularida-
análises históricas feitas pelos autores das “perspectivas de da profissão do Serviço Social.
histórico-críticas”, mas resulta sintomático que estas se- Por outro lado, resulta claramente endogenista (voltar-
jam rotuladas e consideradas como “acusações” que se-á a isto) pensar que a constatação de que a profissão
desqualificam a imagem profissional. Como deveria pro- cumpre um papel particular na reprodução do sistema social
ceder um intelectual cuja análise histórica sobre a inserção (acumulação de capital, manutenção das relações sociais e
do Serviço Social no capitalismo monopolista revela uma do status quo) acarretaria automaticamente no suposto ca-
certa funcionalidade (funcionalidade em nítida tensão com ráter “conservador” de seus membros; ou supor que este
as orientações ético-políticas individuais e coletivas dos as- papel pode ser revertido pelo posicionamento “progressista”
sistentes sociais) da profissão a serviço da reprodução do dos mesmos. O caráter funcional da profissão (ainda que
sistema e do status quo? Deveria negar os resultados da tenso e complexo) depende mais dos determinantes estrutu-
investigação e da história para não “atacar a imagem pro- rais e da correlação de forças e dinâmicas sociais do que das
fissional”? Deveria criar uma imagem “positiva” da profis- opções de seus membros (sejam estes “conservadores” ou
são, ainda que historicamente infundada e falsa? não). Uma coisa é conceber o papel do Serviço Social na
Em uma perspectiva claramente diferente da tradição reprodução da ordem dominante, outra é supor que o indiví-
marxista, Michel Foucault analisa o desenvolvimento da duo é quem é conservador. Este equívoco é extremamente
medicalização como parte de um projeto de controle, de comum na profissão, o que levou, algumas vezes, a se atri-
poder social dos setores dominantes sobre a população. buir um caráter necessariamente conservador aos assisten-
Para Foucault, (1985, p. 95), tes sociais de outrora (os precursores) ou a se considerar o

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
148 Carlos Montaño

assistente social como “agente de transformação”. Nem ne- presentam as relações entre os povos desses países. Mas
cessariamente “conservador” nem “agente de transforma- aqui não se está falando de governos, e sim de debates
ção”. O papel, o sentido social da profissão, depende mais profissionais, de perspectivas teórico-metodológicas e éti-
dos resultados das lutas de classes, dos projetos societários co-políticas, enfim, de projetos profissionais.
em discussão e da estratégia hegemônica, do que das con- Se assim fosse, se as “perspectivas histórico-críticas”
cepções e opções dos seus membros. fossem identificadas com o Brasil, seria então legítimo pen-
sar seus contestadores como a “perspectiva uruguaia”?16
(II) O apelo nacionalista, ao homogeneizar as Nesse suposto caso, dever-se-ia pensar em uma “disputa
considerações críticas através da expressão “perspec- entre nações”? Este apelo nacionalista logicamente consti-
tiva brasileira”. tui uma forma de escamotear ou driblar o verdadeiro fun-
Os contestadores das “perspectivas histórico-críticas” damento da polêmica: não se trata de um enfrentamento
realizam uma homogeneização imprópria, identificando es- entre nações, mas de um debate entre perspectivas teóri-
tas perspectivas (por si heterogêneas) com uma instituição co-metodológicas e tendências ideológico-políticas que
(a UFRJ ou a PUC-SP)14 ou com uma nação (Brasil)15 . redundam em diferentes projetos profissionais. Tendên-
Primeiramente, deve-se registrar a heterogeneidade cias “histórico-críticas” – comprometidas com a garan-
destas “perspectivas histórico-críticas”, incorporando con- tia e o desenvolvimento de direitos civis, trabalhistas e soci-
cepções e tendências variadas da tradição marxista ais, com políticas sociais universais e constitutivas de direi-
(Marx, Lukács, Gramsci, Mandel, dentre outros), corren- to cidadão, com a justiça social e a liberdade, com o
tes neo-kantianas (pela via, por exemplo, de Habermas), aprofundamento da democracia, com a emancipação do
tendências pós-modernas (recorrendo a Boaventura de trabalho e do homem (perspectivas que vão desde a social-
Sousa Santos e outros), elaborações do pensamento li- democracia até as socialistas) e inclusive, em alguns casos,
beral (“cidadania”, “pluralismo”, “Estado de Bem-Estar tendo como horizonte a superação do sistema de explora-
Social”, etc.). Para seus contestadores, esta heteroge- ção e de classes; e tendências “endogenistas” – que valo-
neidade se desvanece e se reduz a um pensamento su- rizam a filantropia, a benemerência, assim como valores
postamente homogêneo. abstratos como o “bem-comum” e a “conciliação entre clas-
Em segundo lugar, é necessário mostrar que nem a Uni- ses” (a exemplo das Encíclicas Rerun Novarum e
versidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ) nem a Pontifícia Quadragesimo Anno), que aceitam como inalterável o sis-
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) podem ser tema social imperante (perspectivas antimarxistas,
consideradas internamente como homogêneas. Muito me- tocquevillianas, neoliberais, pós-modernas, etc.). Tendên-
nos reduzir ambas instituições a um pensamento suposta- cias estas impossíveis de serem divididas entre nações, mas
mente uniforme. Objetos de estudo e perspectivas de análise presentes no interior de cada país.
são vários e diversificados em ambas instituições. Aqui o que divide “fronteiras” não são os limites
Em terceiro lugar, e a partir de um claro desconheci- nacionais, mas as divergências entre projetos sociais
mento do debate profissional brasileiro, é equivocado supor e profissionais, entre perspectivas teórico-
que este seja homogêneo, sem polêmicas, dominando por metodológicas. E estas divergências existem em todos
uma tendência específica. O processo de construção de os países. A “oposição entre nações” tem o evidente ob-
um projeto profissional no Brasil não prescindiu nem pres- jetivo de esconder a real polêmica, apelando ao naciona-
cinde de um árduo, rico e polêmico debate de idéias. Na lismo e ocultando o debate entre ideologias, perspectivas
verdade, existem autores e tendências variadas no Brasil teórico-metodológicas e projetos profissionais. O capital
(como em qualquer contexto) que se expressam com abso- é internacional, portanto, a articulação entre cidadãos, tra-
luto respeito e liberdade, processando suas diferenças nos balhadores, intelectuais, profissionais, etc, que defendem
foros profissionais e estabelecendo negociações e delibe- as conquistas históricas das classes subalternas e que vis-
rações nos organismos profissionais correspondentes. lumbram uma nova sociedade sem classes e sem explo-
O que se constata então, nesta homogeneização, é um ração, esta articulação, apesar de organizar-se em pri-
verdadeiro apelo nacionalista. A idéia de que a polêmica meira instância nos espaços nacionais, deve alcançar uma
esteja apresentada entre nações não tem fundamento. Algo dimensão internacional.
como um suposto “imperialismo brasileiro” colonizando os Aqui se observa também outro aspecto colateral: o des-
demais países latino-americanos. Mesmo conhecendo o crédito no protagonismo das instituições e nos colegas de
papel que o governo brasileiro desempenha na região (ver, outros espaços institucionais e de outras nações. Como men-
por exemplo, os conflitos de interesses no Mercosul ou o ciona Porzecanski (2001, p. 77) “A linha interpretativa da
caso do gás boliviano com a Petrobrás) não se pode con- UFRJ tem influído, no entanto, nas questões disciplinares no
fundir governos com suas populações , muito menos com Uruguai […]”. Em sua concepção, não seriam os colegas
os processos e tendências de um heterogêneo coletivo pro- uruguaios que internamente, a partir de seu debate acadêmi-
fissional. As relações entre governos nacionais pouco re- co e profissional e de sua correlação de forças internas (no

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 149

que se refere a temáticas e perspectivas), tomam decisões Assim, um Projeto Profissional tem a intencionalidade de,
conscientes, que podem ser confluentes com alguns sem pretender desconhecer as determinações sociais da pro-
posicionamentos de colegas de outros países. Esta autora fissão, dotar o Serviço Social de um protagonismo maior, de
parece entender o contrário, que se trataria da influência forma a ampliar o espaço de sua legitimidade em direção à
externa que coloniza alguns ingênuos e desprotegidos profis- ação que confirme e amplie os direitos sociais e as conquis-
sionais uruguaios, como se afirmasse: “perdoa-os, não sa- tas populares. Se o assistente social, individualmente e a
bem o que fazem!”. O mesmo ocorre quando se atribui influ- partir de suas opções pessoais, não determina o sentido de
ência da PUC-SP no meio profissional argentino17. sua prática (condicionada pelos determinantes macrossociais),
o coletivo profissional, organizado conjuntamente em torno
(III) O “endogenismo” analítico, a “naturalização” da de um projeto profissional ético-político (determinando sua
profissão e o “messianismo” existentes na ilusão da auto- formação, seus temas de estudo e investigação, seu código
determinação do sentido da prática profissional. de ética, suas normas institucionais, etc.), poderá ampliar em
Os textos contestadores das “perspectivas histórico- algum grau seu protagonismo na determinação parcial do
críticas” apresentam fortes e explícitas tendências sentido social de sua ação.
“endogenistas”, ou seja, a perspectiva de análise que aborda Assim, numa perspectiva endogenista, a crise de legi-
os fenômenos (neste caso a profissão) meramente a par- timidade profissional não seria obra da crise social e
tir de seus elementos internos, sem considerá-los como sistêmica, que repercute na estrutura de proteção social e
resultado de processos históricos mais amplos. No caso nos direitos conquistados, comprimindo (focalizando e
do Serviço Social, a abordagem endogenista considera precarizando) as políticas sociais estatais. Ela seria o re-
como atores/sujeitos os seus próprios profissionais (não sultado do “ataque” de certos “inimigos internos” que “jul-
as classes sociais, o Estado, a mulher como sujeitos cole- gam o Serviço Social”19 .
tivos); os fenômenos que desencadearam o surgimento Mas tal perspectiva endogenista freqüentemente acom-
da profissão são assim determinados a partir de movi- panha um processo de “naturalização” da profissão em suas
mentos internos à prática da assistência e da ajuda (e não funções, “missões”, objetivos, etc. São alguns exemplos disto:
a partir da passagem do capitalismo concorrencial para o
monopolismo, do projeto hegemônico do capital, do O Trabalho Social ocupa um lugar natural ao
surgimento de um “Estado de Bem-Estar Social” ou das lado das classes que lutam e consagram con-
conquistas de lutas de classes); a legitimidade profissional quistas sociais […] (CORTINAS, 2003, p. 32, grifo
estaria dada então por sua “especificidade” (e não pelo nosso).
espaço ocupacional e funcional criado pelas políticas so-
ciais dentro de um contexto histórico determinado), etc.18 . Nesta luta de contrários é obvio que o compro-
Neste flagrante endogenismo, pensa-se – equivocada- misso do Trabalho Social estará sempre do lado
mente – que a constatação do papel social da profissão sig- da defesa do humano [sic] (CORTINAS, 2003, p.
nificaria, conseqüentemente, uma “acusação”, a cada assis- 33, grifo nosso).
tente social, de ser “conservador”; um raciocínio formal e
pobre no sentido de: “se a profissão é funcional ao sistema [...] o Trabalho Social tem como missão buscar
imperante é porque seus membros são conservadores”. Da a integração social e moral do indivíduo à so-
mesma forma, para romper com este “estigma” da profissão ciedade para seu próprio bem (DI CARLO, 2004,
seria suficiente a opção individual do profissional; algo assim p. 12, grifo nosso).
como: “o profissional ‘conservador’ terá um desempenho
reprodutor do status quo, enquanto o assistente social ‘pro- O problema não é somente teórico, em termos de pers-
gressista’ desenvolverá uma prática transformadora”. As- pectiva. A naturalização destas questões acaba colocando-
sim, para que a profissão tenha uma função progressista basta as como dados ahistóricos, inalteráveis e, portanto, seus
que os assistentes sociais sejam progressistas; chega-se, postulados operam como verdadeiros axiomas (naturais).
então, à constação de que o papel funcional da profissão Neste processo, o tão buscado debate coletivo sobre qual
com a reprodução da ordem estaria afirmando o caráter con- deve ser “a missão” da nossa profissão, sobre quais devem
servador dos seus membros. ser seus “compromissos ético-políticos”, passa a ser subs-
Este silogismo formal não reflete a realidade nem o pen- tituído por estes axiomas elaborados no escritório de algum
samento dos autores das “perspectivas histórico-críticas”. intelectual que assim o determinou. Ao invés do corpo pro-
Na realidade, nestas correntes entende-se que o papel soci- fissional debater e fundamentar as diversas posturas sobre
al do Serviço Social (na reprodução do social e do status estes temas para formular um “Projeto Ético-Político Pro-
quo) está fortemente condicionado pela estrutura e pe- fissional” a partir do consenso gerado, reconhecendo as
las dinâmicas sociais, expressas fundamentalmente pela orientações das maiorias, o debate seria substituído pelo
correlação de forças e pelas lutas de classes. axioma; “o projeto profissional” elaborado a partir do deba-

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
150 Carlos Montaño

te coletivo é substituído pela “missão natural” determinada Em seu artigo, Di Carlo (2004, p. 10, grifo nosso) afirma
unilateralmente como “óbvia” por alguém. que os autores da PUC-SP “põem a consciência política
Mas esta naturalização muitas vezes conduz a um ver- do assistente social atuante na realidade sobre as suas res-
dadeiro “fatalismo”, ao cristalizar as condições atuais como ponsabilidades como profissional”, dissociando desta
imutáveis, rígidas, perenes, ingressando assim num forma a “consciência política” do assistente social da sua
possibilismo resignado e hipotecando as possibilidades de “responsabilidade profissional”. É possível pensar a res-
um horizonte distinto. Isto é o que se vê em definições como ponsabilidade profissional de um sujeito sem que esteja for-
“o trabalho social possível” (DI CARLO, 2004, p. 13). temente arraigada em sua consciência política? Segue o
Outro aspecto que anda junto com o endogenismo e a autor: “Não é nossa obrigação formar adictos políticos para
naturalização dos processos relacionados ao desenvolvimen- tendências políticas, credos ou grupos ideológicos” (p. 11),
to da profissão é o “messianismo”. Tratado por Iamamoto confundindo orientações ético-políticas de um profissional
(1997, p. 183 e ss.), o “messianismo utópico” considera (ou do coletivo) com posturas partidárias (tendências,
como determinantes da prática profissional “as intenções, dogmas, credos). Já Diego Palma mostra como “muitos
os propósitos do sujeito profissional individual”, promoven- trabalhadores sociais – movidos por um realismo que aba-
do um “voluntarismo” e uma “visão heróica” e “ingênua” fava toda ilusão – propiciaram, a meados dos anos 70, um
da ação do indivíduo. A conseqüência disto é clara: por que retorno para ‘o profissional’[...] como uma atividade clara-
um “Projeto Ético-Político” para a profissão, se cada indi- mente distinta do fazer político”. Para este autor, “‘o pro-
víduo determinaria por si mesmo o sentido e a orientação fissional’ não representa uma atuação objetivamente neutral
de sua prática profissional?; por que um projeto coletivo se no conflito das classes; muito pelo contrário, o trabalhador
é entendido que a “missão natural” está dada, ou que a social, nesse projeto, representa uma função importante no
mera intencionalidade do indivíduo é suficiente para dar sen- processo de enquadramento das classes subordinadas al
tido à própria ação profissional? Mais uma vez opta-se pela esquema de dominação” (PALMA, 1985, p. 94).
direção individual ao invés da construção coletiva. Mas, se a reconceptualização muitas vezes cometeu o
Mas o problema se amplia quando se reconhecem os erro de confundir “tarefa profissional” com “tarefa políti-
determinantes externos, alheios à vontade individual de um co-partidária” (sem que com esta afirmação se ignore o
profissional, ao ver que o sentido de sua prática profissional contexto histórico dos anos 60), por outro lado esse movi-
não está autodeterminado, mas fortemente condicionado mento contribuiu em algo fundamental: incluir na agenda
pela estrutura e dinâmica social, onde as classes sociais do debate profissional a necessidade de politizar (não
apresentam interesses antagônicos, onde existe nítida “partidarizar”) a prática profissional, entendendo-a não
hegemonia do grande capital (hoje particularmente do fi- como um agir neutro e intermediador, mas como uma ati-
nanceiro), etc. A partir de tais constatações (ver as cita- vidade tensa, política, inserida em um espaço de contradi-
ções anteriores), pensar que seria “natural a localização ção e de conflito de interesses.
da profissão ao lado dos mais desfavorecidos” ou que é Deve-se ainda manifestar que o pensamento conser-
“óbvio o compromisso com as classes subalternas” é um vador (no Serviço Social) também é político, também ser-
equívoco teórico com sérias implicações políticas na práti- ve a interesses particulares (neste caso, das classes domi-
ca: pensa-se que se está do lado do trabalhador, do nantes), só que o negando, escondendo-o ou o ignorando.
“povo”, do explorado ou do submergido, por uma su- A partir desta separação do agir profissional em relação
posta condição natural da profissão ou pela mera op- à sua consciência política, com a clara “despolitização pro-
ção e vontade do indivíduo, mas, na verdade, e sem fissional”, outras conjeturas aparecem para mostrar mais
necessariamente sabê-lo, está-se ocupando um lugar indícios de um pensamento conservador. Afirma Di Carlo
na engrenagem das relações sociais dominantes, onde (2004, p. 12, grifo nosso): “Em primeiro lugar cabe conside-
o capital detém explícita posição hegemônica20 . A úni- rar que a necessidade de viver numa sociedade integra-
ca forma de alterar tal situação é a partir da tomada de da é uma necessidade humana universal”, sendo que “o
consciência do papel social real da profissão e de sua Trabalho Social tem como missão buscar a integração so-
tensão – saturá-lo da contradição entre a funcionalidade cial e moral do indivíduo à sociedade […]”. Aparece
sistêmica e a ação que reforça interesses populares e direi- aqui seu projeto profissional (em contraposição ao coleti-
tos conquistados, politizando a prática profissional21 . vo projeto ético-político) até agora implícito: a integração
social e moral do individuo à sociedade. Cabe mencio-
(IV) Indícios de um pensamento conservador. nar que “integração” não condiz com “lutas de classes” e
Em muitos dos textos contestadores das “perspecti- que “inclusão” não elimina a “exploração”. Estes são con-
vas histórico-críticas” é possível constatar indícios cla- ceitos visivelmente reprodutores do sistema social e de seu
ros de um pensamento conservador. Esta afirmação status quo. Com tal “despolitização” da prática profissio-
será fundamentada, sobretudo, por um texto em particu- nal, Di Carlo (p.13, grifo nosso) tenta então definir a profis-
lar (DI CARLO, 2004). são: “Entendemos por trabalho social real em parte o que

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 151

se exerce bem na realidade atual… e junto com este, o aqui um desdobramento daquele conservadorismo: o cur-
que é possível exercer, diferenciando-os das construções to-prazo, o local e singular e o imediato, hipotecando
puramente irrealizáveis”. É isto o que o autor chama de e deixando em segundo plano qualquer estratégia que
“trabalho social real ou possível”, ou seja, “o possível” é “o tenha um horizonte de longo-alcance, universal e
real”, reproduzindo assim o pensamento conservador que mediato. O conservadorismo aqui assume a nova rou-
congela a “situação atual” (o possível e o impossível hoje), pagem pós-moderna.
perpetuando-a para o futuro. Existe uma clara resignação O Serviço Social não pode, com sua ação, “transfor-
ao possível. Nada mais funcional aos interesses das clas- mar” os determinantes macroestruturais, não pode elimi-
ses poderosas. nar a exploração, as contradições entre capital e trabalho;
Afirmamos, primeiramente, que a tarefa do intelectual por isso (as correntes tradicionais e conservadoras da pro-
consiste na análise crítica da realidade (inclusive do “ser- fissão) desconsideram a crítica ao papel que a profissão
viço social real”), sem mistificações, desvendando-a e tem na estrutura social. Se o Serviço Social não determi-
desnudando-a. Por sua vez, ao perpetuar a (atual e su- na a estrutura, então a estrutura não determina o Serviço
posta) “impossibilidade” de construir um Serviço Social Social, parecem afirmar estes autores. Algo assim como:
crítico e comprometido com os valores já tratados, Di Carlo “se a profissão não pode alterar a realidade macro, não é
incorre em dois problemas: a) desconhece que seus preciso se preocupar com ela”. Então o Serviço Social
interlocutores são enfáticos em afirmar que o sentido, o não teria apenas um papel na estrutura social, mas papéis
significado e o papel social da prática profissional não localizados, reduzidos a suas funções e atividades cotidia-
dependem apenas (nem fundamentalmente) da nas. Para estes autores, são as atividades cotidianas dos
intencionalidade de seus atores (o que significaria um cla- profissionais que determinariam sua função social (e não
ro endogenismo e messianismo), mas das relações soci- o lugar que ocupam na dinâmica e estrutura sociais).
ais, da correlação de forças e das estruturas e dinâmicas Não obstante, sem pretender que a intervenção do
sociais – não é possível ignorar os determinantes históri- assistente social pudesse alterar as relações
cos e estruturais; b) resigna-se à “inalterabilidade” (em macroestruturais, é no espaço entre as classes, entre os
um claro fatalismo), ignorando ou desconsiderando o re- interesses de classes, que se insere o profissional (não
lativo protagonismo dos profissionais para reconduzir, den- como mediador entre elas, claro), tendo, portanto, um pa-
tro de certos limites, sua prática a partir não somente de pel (ético-político) em tais relações. O fato de que a inter-
posições e de capacidades individuais, mas fundamental- venção profissional se desenvolva em torno de manifes-
mente de um coletivo projeto ético-político, construído a tações da “questão social” (desemprego, desnutrição, vi-
partir do debate, das alianças e das maiorias; além do que, olência doméstica, fome, falta de acesso a determinados
a correlação de forças, a dinâmica e inclusive a estrutura bens ou serviços, etc.) sem poder alterar seus fundamen-
sociais, também são históricos, e portanto não imutáveis. tos (exploração, lutas de classes, etc.) não desmente que
o Serviço Social tenha um papel na estrutura social (emi-
(V) O apelo às microexperiências locais e o rechaço à nentemente funcional na reprodução do sistema e do status
função profissional macrossocial. quo e, contraditoriamente, o eventual reforço/fragilização
Efetivamente, e derivado daquela tendência conser- de direitos e conquistas sociais).
vadora, talvez neste caso unido a uma reatualizada “críti-
ca romântica ao capitalismo”22 , os textos contestadores (VI) A redução das respostas profissionais às situa-
em geral incorporam um forte apelo às microexperiências ções emergenciais e imediatas e o conseqüente rechaço
singulares e localizadas (como campo de intervenção por estratégias e projetos de longo alcance.
do assistente social); assim, o espaço de inserção direta Em consonância com o anterior, a proposta dos
do profissional pareceria conformar o horizonte da análi- “contestadores” não apenas rechaça o universal, ao con-
se social. Não existe (ou não se consideram) estrutura centrar-se exclusivamente no local-singular, mas também
social, relações entre classes, questões universais. Exis- rechaça o médio e o longo prazo ao esgotar suas energias
tem, sim, espaços comunitários locais, relações no imediato.
interpessoais, questões singulares. Efetivamente, a dinâmica das demandas emergenciais
Assim, partindo da idéia de que a realidade que inte- e imediatas parece colocar o assistente social em um
ressa ao assistente social é apenas aquela que cerca sua carrossel de respostas imediatas. A reprodução desta re-
prática profissional direta, privilegiam-se as concepções lação demanda-emergencial / resposta-imediata, leva
de “poder local”, do “empoderamento”, das “identidades o profissional (e a profissão) a uma lógica pragmática,
particulares”, rejeitando as teorias universais, as críticas movido pela “pre-ocupação”.
da sociedade capitalista (especialmente a teoria marxis- Segundo Kosik (1989, p. 63, 64), no contexto do capi-
ta), da sociedade de classes, das relações entre classes tal o homem, em sua alienada vida cotidiana, é tomado
(exploração, dominação, lutas de classes). Encontra-se pela “preocupação”. Para ele, a “preocupação” é o as-

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
152 Carlos Montaño

pecto fenomênico, alienado, da práxis do indivíduo. Estar- mente não pode prescindir das formas de mediação pre-
se-ia assim substituindo a categoria de trabalho pela de sentes na práxis social e política.
ocupação e, portanto, a atividade criadora pela mera Da mesma forma, é fundamental saturar a prática pro-
reprodução. Na vida cotidiana (desde que alienada, como fissional de mediações, rompendo a relação imediata,
o é no contexto capitalista), mais do que trabalhar, “ocu- utilitarista ou ativista, entre fato/percepção/resposta, per-
pa-se” das coisas que requerem resposta direta e imedia- mitindo o entendimento da vida cotidiana como instância
ta e que são mantenedoras da ordem vigente. De acordo particular que articula as situações singulares com a totali-
com este autor, “a passagem do ‘trabalho’ para a ‘preo- dade social. Desta forma, de acordo com Kosik (1989, p.
cupação’ reflete, de maneira mistificada, o processo de 78), “para que o homem possa descobrir a verdade da
fetichização das relações humanas, [...] onde o mundo cotidianidade alienada, deve conseguir desligar-se dela,
humano se manifesta à consciência diária [...] como um liberá-la da familiaridade, exercer sobre ela uma ‘violên-
mundo já feito”. cia’”.
Ou seja, a ocupação responde a necessidades singula- A mediação (que não deve ser entendida como
res e imediatas dentro de um mundo dado e aparentemente “intermediação” de situações de conflito) constitui, portan-
imutável, naturalizado, perpetuado23. Tem uma prática ape- to, uma necessidade imperiosa para superar o imediatismo
nas reprodutora, sem criar nada novo, portanto sem trans- alienante. Segundo Pontes (2003), para Lukács a media-
formar. Assim, “na perspectiva da ‘preocupação’, o mundo ção se refere ao conjunto de particularidades que relaci-
objetivo e sensivelmente prático se dissolveu, transformou- ona dialeticamente o universal e o singular. O cotidiano
se no mundo dos significados traçados pela subjetividade constitui, assim, um campo de mediações que, não obstante,
humana. É um mundo estático no qual a manipulação, o não aparecem ao sujeito de forma direta, mas lhe são ocul-
ocupar-se e o utilitarismo, representam o movimento do in- tas. É necessário, portanto, “superar o plano do imediatismo
divíduo preso da solicitude, em uma realidade já feita e aca- (da aparência) em busca da essência”, o que exige “cons-
bada cuja gênese está oculta” (KOSIK, 1989, p. 66). truir intelectualmente mediações para reconstruir o pró-
Com isso, o assistente social tradicional apenas opera, prio movimento do objeto” (PONTES, 2003, p. 41). Para
manipula os instrumentos, os aparelhos, mesmo que não Pontes (2003, p. 210), “a captura pela razão dos sistemas
conheça a estrutura e sua dinâmica, nem a realidade além de mediações (ocultos sob os fatos sociais) permite por
da fenomenalidade, da pseudoconcretude. Tem um co- meio de aproximações sucessivas ir-se negando à
nhecimento instrumental, operativo, não crítico, nem fun- facticidade/imediaticidade, e desvelar-se as forças e pro-
damental. Na verdade, ele é quem é instrumentalizado, cessos que determinam a gênese (nascimento) e o modo
manipulado, refuncionalizado para a reprodução do siste- de ser (funcionamento) dos complexos e fenômenos que
ma que não conhece e que considera como dado, estrutu- existem em uma determinada sociedade”24.
ralmente inalterável. Assim, o caminho que vai do abstrato para o concreto,
O assistente social tradicional (e o implícito projeto partindo do concreto real, surge como a verdadeira possi-
conservador) tende a se comportar desta maneira, “ocu- bilidade de superar a visão caótica da totalidade, os fatos
pando-se” com atividades dentro de um sistema conside- isolados, supostamente auto-explicados tal como são apre-
rado como já dado e imutável. Tende a se “preocupar” e sentados de forma imediata, direta, ao sujeito, para uma
a atuar de forma imediata, sem crítica, sem contribuir com compreensão mediada que apreenda a dialética da rela-
a transformação, somente algumas modificações imedia- ção entre o universal e o singular, entre as leis tendenciais
tas, localizadas, que respondam a suas carências diretas; e as situações que enfrenta diariamente.
atua de modo desarticulado, imediato, direto, nos “proble-
mas” singulares, em uma ilusória realidade des-totalizada, (VII) O retorno aos autores “clássicos” do Serviço
deseconomizada, despolitizada, imutável, sem história. Este Social e a tendência ao rechaço da reconceptualização.
agente deixa de ser sujeito, passa a materializar-se em Existe, entre os textos contestadores, a proposta de um
um sistema supra-histórico. Já não se faz (nem se pensa) retorno à bibliografia clássica do Serviço Social (Mary
a História, mas apenas histórias, singulares e cotidianas. Richmond, Gordon Hamilton etc.). Algo assim como: “o
Neste sentido, dotar a prática profissional (que se de- estudo de sociólogos ou economistas sobre a estrutura so-
senvolve no cotidiano) de consciência humano-genéri- cial pode apoiar-se em teorias universais, mas o estudo da
ca, desalienada, é tarefa fundamental para romper com prática profissional do assistente social deve ser local e sus-
a instrumentalização que o capital faz desta prática. Para tentado pelos textos clássicos ‘específicos’ da profissão”.
Lukács (apud ANTUNES, 1999, p. 169), “a vida cotidiana Sem nenhum afã de retirar a importância desta bibliografia
constitui a mediação objetivo-ontológica entre a simples para a formação profissional, tornam-se necessárias duas
reprodução espontânea da existência física e as formas observações. A primeira é que aqueles textos não dão mais
mais elevadas de genericidade”. Assim, a passagem das conta da realidade social atual a partir, fundamentalmente,
necessidades imediatas para o humano-genérico certa- das experiências que incorporam direitos sociais conquista-

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 153

dos na passagem do século XIX para o XX, particularmen- endogenismo característico deste movimento, que muitas
te na realidade dos países latino-americanos, onde tais con- vezes autonomizou o desenvolvimento profissional das lu-
quistas, mesmo que precárias, ocorrem tardiamente. São tas de classes, do advento do capitalismo monopolista e
textos que remetem à história da profissão, mas não conti- do projeto do grande capital, do papel dos chamados Es-
nuam a fazer sua história. A segunda e fundamental obser- tados de Bem-Estar e de suas políticas sociais28 ; em rela-
vação é que tais autores e textos “clássicos” são expressão ção a um certo rechaço ao Serviço Social institucional e à
do endogenismo, do positivismo e do funcionalismo que condenação da assistência como “assistencialismo” (as
marcaram teórica e politicamente a gênese do Serviço So- “perspectivas histórico-críticas” consideram a assistên-
cial25 . Assim, a opção por estes autores tradicionais ou cia como um direito conquistado pelo cidadão)29 e inclusi-
clássicos como referências centrais representa, sem dúvi- ve em relação ao “fatalismo” (que levou a impugnar a
da, a opção por certas correntes do pensamento liberal/ prática institucional, proclamando como única alternativa
positivista/funcionalista e, portanto, significam opções po- profissional a “mágica” passagem às “comunidades”) e
líticas: as ações corretivas localizadas e imediatas (do ao “messianismo” (onde a auto-proclamação de “agentes
“disfuncional”, do “desintegrado”) por parte do profissio- de transformação” e a nova denominação de “Trabalho
nal, que redundam na manutenção da estrutura social e Social” e “trabalhadores sociais” – ao invés de “Serviço
do status quo. Social” e “assistentes sociais”–, seriam suficientes para
Relacionado a isto se constata também, nos textos que redirecionar o sentido da prática profissional30 . Finalmen-
contestam as propostas de construção coletiva de um “pro- te, reafirmam-se as observações de Netto frente à “críti-
jeto ético-político profissional”, um forte rechaço ao Mo- ca conservadora à reconceptualização”31 .
vimento de Reconceptualização. Um exemplo é a con-
tundente frase de Di Carlo (2004, p. 15), quando afirma (VIII) Tendência ao pós ou antimarxismo.
que a Escola de Serviço Social uruguaia, assim como muitos A heterogeneidade que caracteriza as “perspectivas his-
professores e estudantes, nos anos 70, foi “ameaçada como tórico-críticas”, como já vimos, invalida qualquer pretensão
todas as latino-americanas pela reconceptualização de adjetivá-las como “marxistas”. Mas as diversas tendên-
paralisante […]”, o que levou-o, naquela época, a defen- cias marxistas na profissão sem dúvida fazem parte deste
der o “Trabalho Social real”; ou a afirmação de Cortinas coletivo. Não obstante, uma característica presente na ge-
(2003, p. 28): “[…] da mesma forma que o fez há umas neralidade daqueles que contestam estas perspectivas con-
décadas a chamada etapa de ‘reconceptualização’, a qual siste em um forte e claro anti ou pós-marxismo32 .
freou durante anos o desenvolvimento da profissão.” Efetivamente, um dos avanços do movimento de
A reconceptualização foi “paralisante”? Este não foi um reconceptualização foi ter estabelecido interlocução com
movimento que, no acerto e no erro, questionou e tentou o “pensamento marxista”. No entanto, seu limite está
repensar o papel do profissional? Então não foi “paralisante”, marcado pela incorporação de um marxismo sem Marx;
mas inovador. O problema para estes autores é discordar fundamentalmente mediante manuais e divulgadores liga-
da reconceptualização justamente pelo que significou em dos à Terceira Internacional ou marxismo oficial
termos de mudança, e não por ser “paralisante”. (Harnecker, Stalin), pensadores estruturalistas (Althusser,
Mas estar ou não de acordo com este movimento é o jovem Poulantzas) ou de experiências revolucionárias
um direito. O equívoco é atribuir aos autores das “pers- localizadas (Mao, Che).
pectivas histórico-críticas” a mesma condição daqueles Os limites destas correntes são superados no debate
postulados. Algumas pontuações precisam ser feitas nes- atual, quando intelectuais marxistas do Serviço Social re-
te caso. Primeiro, que efetivamente deve-se constatar que correm à própria obra de Marx (Iamamoto, Netto, Mota),
estes autores e sujeitos profissionais que postulam a cons- a pensadores “dialéticos” de tradição marxista (pela via
trução coletiva de um “projeto ético-político” são herdei- hegeliana) como Gramsci (Simionatto, Maciel, Franci G.
ros do espírito crítico e inovador que prevalecia no cha- Cardoso) ou Lukács (Netto, Barroco, Guerra), a historia-
mado Movimento de Reconceptualização. Segundo, que dores marxistas como Hobsbawm, a pensadores desta
este movimento era extremamente heterogêneo e dentro tradição preocupados na contemporaneidade capitalista,
dele diversas correntes formularam e responderam cer- como Mandel, Mészaros, Petras, Borón. Com estas mu-
tas questões de forma variada, muitas vezes acertando, danças de percurso, a contribuição marxista pós-
muitas vezes incorrendo em equívocos. Terceiro, que os reconceptualização, superando os limites anteriores, está
autores das “perspectivas histórico-críticas” na atualida- em condições de dar novas respostas a velhas e novas
de realizam uma superação dos verdadeiros limites da- questões: gênese, fundamentos e significado social do
quele movimento. Superação em relação a um pensamento Serviço Social; o papel do Estado de “bem-estar”, as po-
progressista que, no entanto, não conseguiu romper com líticas sociais estatais e sua relação com a profissão;
a lógica positivista26 no que se refere às tendências neoliberalismo e reforma do Estado; a prática profissional
epistemológicas e metodológicas 27 , em relação ao a partir do novo contexto social e mudanças nas deman-

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
154 Carlos Montaño

das institucionais, etc. c) A falta de referencialidade e a ausência quase


As contestações às “perspectivas histórico-críticas”, sistemática de citações: é desconcertante consta-
em boa parte, estão saturadas de anti e de pós-marxismo; tar como nestes textos, quase em sua totalidade,
porém não conseguem visualizar estas mudanças de per- não se recorre a referências e citações de seus
curso no atual debate dos autores marxistas, estabelecen- interlocutores. É possível observar-se, em alguns
do, assim, suas críticas em função dos limites existentes casos, ausência de bibliografia ou daquela referen-
no contexto reconceptualizador. No entanto, é possível te aos autores que “contestam”; em outros casos,
identificar alguns textos contestadores a estas “perspecti- o debate sobre supostos “postulados” de seus
vas histórico-críticas”, que provêm de vertentes marxis- interlocutores sem recorrer a citações identifican-
tas (como são os casos de Cortinas e San Giácomo); em do fontes. O resultado disso é claro: o leitor não
tais casos observa-se como as contestações, visivelmen- tem como comprovar se a versão exposta realmente
te, partem dos mesmos limites anteriormente presentes é fiel e reflete fidedignamente o pensamento de seu
no “marxismo invadido da lógica positivista”. autor ou se, pelo contrário, está ali configurada uma
tergiversação. Assim, desconhecimento do
(IX) A negação ao debate acadêmico e aberto, medi- interlocutor, tergiversação de seu pensamento e
ante diversos recursos. ausência de citações e referências (necessárias ao
É sabido, nas teorias da comunicação humana, que o debate acadêmico) permitem que autores debatam
“rechaço ao conteúdo” de uma mensagem não equivale com as imagens que eles mesmos podem construir
ao “rechaço à comunicação”, ao diálogo. Debater, discu- sobre os postulados de seus interlocutores.
tir, confrontar idéias (inclusive rechaçá-las), tudo isso faz d) Partir de axiomas e verdades irrefutáveis: já tra-
parte da comunicação, especialmente do debate acadê- tado neste artigo como “naturalização”, o partir de
mico. Por outro lado, “rechaçar a comunicação”, evitar o “axiomas” – “missões” supostamente dadas e inal-
diálogo, escapar do debate de idéias, pode ser o resultado teráveis, “compromissos” naturais e óbvios, etc. –
da “desqualificação” de seu interlocutor33 . Seguem al- descaracteriza o processo de construção coletiva a
guns exemplos de características geralmente presentes partir do debate de idéias, substituindo-o por estas
em tais textos, que configuram uma tendência à supostas “verdades” já dadas.
“desqualificação do interlocutor” e, portanto, ao “rechaço e) Estigmatização de seus interlocutores: observa-
ao debate” acadêmico e aberto: se, finalmente, o rechaço ao debate mediante o re-
a) O desconhecimento de seus interlocutores e de sua curso da “estigmatização” de seus interlocutores. Em
obra: efetivamente, chama atenção o profundo desco- diversas passagens dos vários textos contestadores
nhecimento da obra e da biografia dos interlocutores das “perspectivas histórico-críticas”, seus autores são
que pretendem contestar. Exemplos como o de Corti- adjetivados como “inquisidores medievais”
nas (2003) onde realiza suas considerações sem se- (Porzecanski, sobre Iamamoto), “um materialista
quer ter acessado os textos que “contesta”, apenas a pretensamente dialético” (Cortinas, sobre Netto), “ini-
partir da leitura do pequeno ensaio de Di Carlo (2001). migos internos da profissão” (Di Carlo, sobre
Ou o caso de Porzecanski (2001), que identifica a obra Montaño), para dar apenas alguns exemplos. É in-
de Iamamoto em um texto de 1992, uma década depois compreensível como se pode defender um debate
de seu texto original. Ou inclusive o caso de San (na polêmica e no confronto de idéias) aberto,
Giácomo (DI CARLO, 2004), que renomeia esta autora pluralista, acadêmico com este tipo de recursos.
como “Lamamoto”. Exemplos como estes são apenas Na verdade o que se evidencia é una forma de evitar o
amostras de uma leitura parcial e apressada dos confronto de idéias, de fugir do debate.
interlocutores e das obras que pretendem enfrentar. Algo
inadmissível no debate acadêmico responsável.
b) A tergiversação e a deformação do pensamento Comentários finais
de seus interlocutores: já teceu-se algumas consi-
derações sobre as tergiversações que Porzecanski Em síntese, frente à proposta de construir coletiva-
realiza sobre os postulados de Iamamoto e de mente um projeto ético-político que dote o assistente soci-
Montaño (MONTAÑO, 2002). Registra-se algo se- al de um perfil crítico, de um sentido político e de um com-
melhante no caso de Cortinas (2003a) sobre o tex- portamento ético em sua prática profissional, ampliando sua
to de Netto, que aqui excederia os espaços para incidência nos processos em que intervém, se interpõe uma
este artigo. Quando desconhecimento do “contestação” que pretende restaurar o sentido social tra-
interlocutor e tergiversação de seus postulados an- dicional (e, portanto, conservador) da profissão.
dam juntos, o resultado é nefasto: a absoluta parci- Substitui a análise crítica da história pela naturaliza-
alidade e relativismo no debate. Mas tem mais. ção do papel social da profissão. Substitui, assim, a cons-

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 155

trução coletiva de um projeto profissional pela vontade ______. A questão social no capitalismo. Revista Temporalis,
individual de cada assistente social, embora mais sub- Brasília, Abepss, n. 3, 2001.
metido (sem sabê-lo ou, inclusive, negando-o) aos KOSIK, K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
determinantes estruturais e à correlação de forças exis-
MONTAÑO, C. La naturaleza del Servicio Social. Un ensayo
tentes (hegemônicas do capital).
sobre su génesis, su especificidad y su reproducción. São Paulo:
Um projeto que tenta dar maior protagonismo ao coletivo Cortez, 1998. 208 p. (Biblioteca Latinoamericana de Serviço
profissional em uma direção ética e política (a partir de de- Social, n. 4).
terminados valores), ou a ação voluntária e individual, que
______. O Serviço Social frente ao neoliberalismo. Mudanças
acredita na auto-atribuição do sentido da prática profissional
na sua base de sustentação funcional-ocupacional. Serviço
e ao fazê-lo, sem saber e sem querer, se submete (ou se Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 53, 1997.
resigna) a uma ação meramente reprodutora. Esta parece
ser a disjuntiva em que está imersa esta profissão hoje. ______. Ladran, Sancho! Señal que cabalgamos. Réplica a algu-
nos ensayistas desconcertados. In: FORO SURÁ, Costa Rica,
enero 2002, n. 66. Disponible en <http://cariari.ucr.ac.cr/~trasoc/
Recebido em 08.04.2006.
suradoc.htm>.
Aprovado em 02.06.2006.
MOTA, A. E. Cultura da crise e Seguridade Social. São Paulo:
Cortez, 1995.
R eferências
NETTO, J. P. A crítica conservadora à Reconceptualização.
Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 5, 1981.
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a
afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. ______. Capitalismo monopolista y Servicio Social. São Paulo:
Cortez, 1997. 200 p. (Biblioteca Latinoamericana de Servicio
BORGIANNI, E.; MONTAÑO, C. La Política Social hoy. São Social, n. 1).
Paulo: Cortez, 2000a. 304 p. (Biblioteca Latinoamericana de
Servicio Social, n. 5). PALMA, D. La práctica política de los profesionales. El caso
del Trabajo Social. Lima, Celats, 1985.
______. Metodología y Servicio Social hoy en debate. São
Paulo: Cortez, 2000b. 232 p. (Biblioteca Latinoamericana de PETRAS, J. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e
Servicio Social, n. 6). Europa. Blumenau, FURB, 1999, 433 p. (Coleção Sociedade e
Ambiente, n. 3).
BORGIANNI, E.; MONTAÑO, C.; GUERRA, Y. Servicio Social
Crítico. Hacia la construcción del nuevo proyecto ético-político PONTES, R. Mediación: categoría fundamental para el trabajo
profesional. São Paulo: Cortez, 2003. 352 p. (Biblioteca del asistente social. In: BORGIANNI, E.; GUERRA, Y.;
Latinoamericana de Servicio Social, n. 6). MONTAÑO, C. (Orgs.). Servicio Social Crítico. São Paulo:
Cortez, 2003. 352 p. (Biblioteca Latinoamericana de Servicio
COLMAN, E. O que é Serviço Social? Vigência de um ‘velho’ Social, n. 10).
problema e desafio para a formação Professional. Serviço Social
em Revista, Londrina, UEL, n. 1, 1998. PORZECANSKI, T. Algunas cuestiones disciplinares del Trabajo
Social. Revista Fronteras, Montevideo, Universidad de la
CORTINAS, R. A propósito de algunas tendencias críticas en el República-DTS, n. 4, 2001.
Servicio Social Profesional. Revista de Trabajo Social,
Montevideo, Eppal, n. 27, 2003. WATZKLAWICK et al. Teoría de la comunicación humana.
Interacciones, patologías y paradojas. Barcelona: Herder, 1987.
______. Debatiendo con José Paulo Netto. Análisis crítico del
libro ‘Capitalismo monopolista y Servicio Social’. Revista de
Trabajo Social, Montevideo, Eppal, n. 28, 2003a. Notas
DI CARLO, E. Reflexiones y refutaciones. In: DI CARLO, E.;
SAN GIACOMO, O. Una introducción al Trabajo Social. Univ. 1 Ver Borgianni; Montaño (2000a, b).
Mar del Plata, 2001.
2 Ver Iamamoto (1997, cap. II) e Netto (1997, cap. I).
______. (Org.). La profesión de Trabajo Social: naturaleza, sig-
3 Ver Montaño (1998, cap. 1).
nificado social y formas de acción profesional. Univ. Nacional
Mar del Plata, 2004. 4 Ver Montaño (1997).
FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social. In: ______. 5 Sobre isto ver Iamamoto (1997, p. 143 e ss.), ao tratar do
Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985. “profissional da coerção e do consenso”; e Guerra
(BORGIANNI, GUERRA e MONTAÑO, 2003, p. 185 e ss.),
IAMAMOTO, M. Renovação e conservadorismo no Serviço
sobre a “instrumentalização do Serviço Social”.
Social. Ensaios críticos. São Paulo: Cortez, 1992.
6 Ver Montaño (2002).
______. Servicio Social y división del trabajo. Un análisis crí-
tico de sus fundamentos. São Paulo: Cortez, 1997. 224 p. 7 Ver Laurell (BORGIANNI e MONTAÑO, 2000a, b) e Montaño
(Biblioteca Latinoamericana de Servicio Social, n. 2). (2002).

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
156 Carlos Montaño

8 No primeiro caso, privatização/desnacionalização/ 13 Todas as citações foram traduzidas pelo autor


desestatização, eliminação de direitos sociais, civis, políticos
14 UFRJ: ver Porzecanski (2001, p. 75,77); PUC-SP: ver Di Carlo
e trabalhistas, (contra) reformas estatais e reestruturações
(2004, p. 10). Sintomático é que cada um destes autores
produtivas para desonerar o capital em suas
atribua institucionalidade ao debate, “coincidentemente”
responsabilidades fiscais e tributárias, criando novas áreas
com os acordos de mestrado nos respectivos países:
lucrativas. No segundo caso, nacionalização/publicização/
Argentina-Brasil (mediante o convênio UNLP e PUC-SP) e
estatização, estimulando e protegendo a indústria mediante
Uruguay-Brasil (UDELAR e UFRJ).
a injeção de recursos públicos para o capital, mas
reconhecendo e respondendo demandas e necessidades de 15 Ver Di Carlo (2001, p. 26-27; 2004, p. 10).
setores trabalhistas. Finalmente, no projeto revolucionário,
16 Lembrando que Prozecanski, San Giácomo, Di Carlo e
o desenvolvimento de uma sociedade sem classes fundada
Cortinas são todos uruguaios.
na emancipação humana e organizada mediante a associação
de livres produtores, a erradicação do comando do capital, 17 Ver Di Carlo (2004, p. 10).
da exploração e das formas de dominação. 18 Sobre o “endogenismo” profissional ver Montaño (1998,
9 “Questão social”, entendida por Iamamoto (2001, p. 11) como cap. 1).
“indissociável do processo de acumulação (capitalista) e 19 Como é exemplo a afirmação de Di Carlo (2004, p. 14), ao
dos efeitos que produz sobre o conjunto das classes determinar que pareceria que os “críticos do Serviço Social
trabalhadoras (desemprego, fome, pobreza, emigração, etc.), real ou possível querem destruir esta profissão”, correndo o
que se encontra na base da exigência de políticas sociais “risco objetivo da aniquilação da profissão”.
públicas”. Assim, expressa tanto “disparidades econômicas,
políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por 20 Como corretamente observa Iamamoto (1997), “fatalismo e
relações de gênero, características étnico-raciais e formações messianismo são ambos prisioneiros de uma análise da
regionais, pondo em movimento as relações entre amplos prática social que não dá conta da historicidade do ser social
segmentos da sociedade civil e o poder estatal”, como gerado na sociedade capitalista”.
também “envolve simultaneamente uma luta franca e aberta 21 Sobre isto ver Iamamoto (1997, p. 104, 108 e ss.)
pela cidadania”. Ou seja, “A questão social tem a ver com a
emergência da classe operária (a partir do contexto da 22 Sobre a “Crítica romântica do capitalismo” ver: Marx (A
revolução industrial) e seu ingresso no cenário político miséria da filosofia); Marx e Engels (A ideologia alemã);
(constituindo-se como classe-para-si)” (idem, p. 17). Engels (Do socialismo utópico ao socialismo científico);
Lukács (O assalto à razão); Netto (Lukács e a crítica da
10 Citemos apenas alguns: Di Carlo (2001, 2004.), Cortinas (2003, filosofia burguesa).
2003a), Porzecansk (2001), Colmam (1998), entre outros.
23 Para Kosik (1989, p. 64), “o ocupar-se é o comportamento
11 Na segunda Tese sobre Feuerbach, Max afirma que “é na prática prático do homem no mundo já feito e dado; é manejo e
(social, histórica) onde o homem tem que demonstrar a verdade”. manipulação dos aparelhos no mundo, mas não é criação do
12 Prova disso são os seminários que começaram a surgir mundo humano”.
neste início de século sobre o Serviço Social Crítico e sobre 24 Pontes (2003, p. 216-7) exemplifica da seguinte forma:
o Projeto Ético-Político Profissional. Ver, a modo de exemplo: “Quando um problema de um pequeno agrupamento de
a) Seminario Internacional: Identidad, Tendencias y pessoas (ou até de um único indivíduo) [...] passa a ser
Proyecto Ético-Político del Trabajo Social. Universidad compreendido como pertencente a tantos outros [...], então,
Mayor de San Andrés. La Paz, Bolivia, 19 a 22 de agosto de aquela situação única, que se afigurava no plano da
2003; b) Jornada de reflexión: La dimensión política del singularidade como problema individual-familiar, mediatiza-
ejercicio profesional. Universidad Nacional de Córdoba, se. Essa mediação se dá pelas leis sociais e particulariza
1 e 2 de julho de 2005; c) Encuentro Latinoamericano de pelas determinações históricas, ganhando, por
Trabajo Social. La formación y la intervención profesional aproximações sucessivas, concretude no entrecruzamento
en la sociedad contemporánea: hacia la construcción de dos complexos sociais que compõem a realidade”.
un proyecto ético-político. La Plata, Argentina, 26 e 27 de
agosto, 2005; d) I Encuentro Latinoamericano de Trabajo 25 Sobre isto ver Iamamoto (1997, p. 159 y ss.), ao discutir “a
Social. El Trabajo Social Crítico en el contexto herança conservadora do Serviço Social”.
latinoamericano, propuestas alternativas para la 26 Sobre isto ver Quiroga (BORGIANNI; MONTAÑO, 2000b,
construcción de una nueva sociedad. Bogotá, Colombia, p. 9 e ss).
5 a 8 de outubro de 2005; e) El trabajo comunitario,
intervención social, política y ética. Mendoza, Argentina, 27 Ver Lima e Rodríguez; Netto; Montaño (ibid, p. 35-51, 121 e
2 a 4 de dezembro de 2005; f) Seminario Nacional: ss.)
Construyendo la ciudadanía: desafíos e escenarios do 28 Sobre isto ver Iamamoto e Netto (IAMAMOTO, 1992, p.
Trabajo Social Latinoamericano. Universidad Católica de 131) e Montaño (1998, p. 5 e ss).
Santiago de Guayaquil, 11 e 12 de julho de 2005. Além de
textos, conferências e palestras, cursos realizados sobre 29 Ver Yazbek (BORGIANNI; MONTAÑO, 2000 a, b).
estes temas. 30 Sobre isto ver Iamamoto (1997, p.183).

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 157

31 Mencionemos apenas três das críticas conservadoras que 33 Afirmam Watzklawick e colaboradores (1987, p. 76) que com
Netto (1981, p. 66, 68-69) comenta: a) “a reconceptualização o recurso da “desqualificação” um sujeito “pode se
determinou a ideologização profissional”; para Netto, “o comunicar de maneira tal que sua própria comunicação ou a
Serviço Social clássico e tradicional – assim como qualquer do outro fiquem invalidadas. As desqualificações abarcam
modalidade de intervenção sociopolítica – sempre esteve uma ampla gama de fenômenos comunicacionais, tais como
matrizado por parâmetros ideológicos inequívocos”. Assim, a auto-contradições, incongruências, mudanças de tema,
“reconceptualização mostrou que o Serviço Social enquanto tangencializações, orações incompletas, mal-entendidos,
profissão nunca ultrapassou o horizonte ideológico estilo obscuro ou maneirismos idiomáticos, interpretações
burguês”, o que mostra que “o verdadeiro problema não literais da metáfora e interpretação metafórica das expressões
consiste em integrar ou não componentes ideológicos – literais, etc”.
consiste em qual componente ideológico deve ser integrado”;
portanto, “no fundo, o que se contesta no processo de
reconcpetualização não é ‘ter ideologia’, mas ‘ter ideologia de Carlos Montaño
esquerda’”; b) “a reconceptualização desprofissionalizou o montano@ess.ufrj.br
Serviço Social pela via da politização”; Netto comenta que Universidade Federal do Rio de Janeiro
é inevitável que uma profissão se veja perpassada pelas Escola de Serviço Social
dinâmicas, tendências e relações sociais num determinado Av. Pasteur, 250 – Campus Praia Vermelha
contexto; nesse sentido, “considerar o processo de
Rio de Janeiro – RJ
reconceptualização ‘politizador’ porque refletiu e assimilou
as marcas fulcrais de seu tempo (e onde profissionais
CEP: 22290-140
chegaram a fazer opções políticas), significa … reconhecer a
incapacidade do Serviço Social tradicional para se adequar às
novas demandas sociais”; c) “a reconceptualização
instaurou um hiato entre os centros de formação e as
agências de intervenção”; afirma o autor que “não cabe (aos
centros de formação) simplesmente suprir a demanda real e
imediata posta pelo mercado de trabalho. A formação
universitária…prepara quadros profissionais considerando
tanto a realidade dada como detectando as tendências virtuais
que condicionarão novas demandas. A formação não pode
ser posta a serviço das necessidades imediatas, que neste
caso sempre foram reduzidas às necessidades institucionais
das agências de intervenção” (agências estas representantes,
direta ou indiretamente, dos hegemônicos interesses do
grande capital).
32 Petras (1999, p. 17-20), caracterizando o “pós-marxismo” como
a postura intelectual da moda, a partir do espaço deixado pela
esquerda reformista com o triunfo do neoliberalismo, determina
dez argumentos básicos que compõem tal corrente de
pensamento: 1) o suposto fracasso do socialismo e o fim das
ideologias; 2) a acusação de reducionismo marxista na ênfase
da determinação de classe; 3) o Estado como inimigo da
democracia e da liberdade, propondo como contratendência
o protagonismo da sociedade civil; 4) a afirmação de que a
planificação centralizada leva à burocracia, enquanto o
mercado conduz a um maior consumo e distribuição eficiente;
5) a preferência do poder estatal pelas lutas localizadas mais
do que pelas de esquerda tradicionais; 6) a idéia de que as
revoluções sempre acabam mal, preferindo lutar pela
consolidação da democracia [dentro do sistema]; 7) o enterro
da classe como categoria, erguendo em seu lugar outras
identidades; 8) o descrédito sobre as lutas de classes,
preferindo a cooperação governamental e internacional [para
responder às necessidades na busca do bem comum]; 9) a
desconsideração de imperialismo como fenômeno
significativo; 10) a necessidade de que as organizações
populares não apenas respondam às demandas sociais, mas
que se voltem cada vez mais para a captação de recursos
externos.

KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
293

DOI 10.34019/1980-8518.2020.v20.32934

Os fundamentos do Serviço Social e o


enfrentamento ao conservadorismo
Maria Carmelita Yazbek*

RESUMO
O artigo apresentado analisa os fundamentos do conservadorismo clássico, a relação com o
Serviço Social na sua gênese e a posterior ruptura. Destaco a centralidade dos fundamentos na
abordagem sobre a profissão, entendendo aqui por fundamentos a matriz histórico-ontológica,
explicativa da realidade e da profissão, sob múltiplos aspectos, e que permeia a interlocução
entre o Serviço Social e realidade. Concluímos sobre a necessidade de enfrentamento à ofensiva
conservadora que caracteriza o tempo presente.

PALAVRAS-CHAVE: Conservadorismo, Serviço Social, Fundamentos

The fundamentals of Social Work and the fight against conservatism


ABSTRACT
This article analyzes the fundamentals of classical conservatism, the relationship with Social
Work in its genesis and the subsequent rupture. It highlights the centrality of the fundamentals
in the approach to the profession, here understanding the historical-ontological matrix, which
explains reality and the profession, under multiple aspects, and which permeates the dialogue
between Social Work and reality. It concludes about the need to confront the conservative
offensive that characterizes the present time.

KEYWORDS: Conservatism, Social Work, Fundamentals

*
Maria Carmelita Yazbek é professora da PUC/SP, pesquisadora 1 A do CNPq, mestrado (1977) e doutorado
(1992) em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós doutoramento no âmbito de
ciências políticas pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – USP.

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Maria Carmelita Yazbek

Inicialmente cabe apresentar os referentes que orientam a minha reflexão sobre o


Serviço Social e o necessário enfrentamento à ofensiva conservadora que caracteriza o tempo
presente. Assim, em primeiro lugar reafirmo, a centralidade dos fundamentos em minha
abordagem sobre a profissão, entendendo aqui por fundamentos a matriz histórico-ontológica,
explicativa da realidade, e da profissão, sob múltiplos aspectos, e que permeia a interlocução
entre o Serviço Social e realidade. Fundamentos que na atualidade se expressam na abordagem
histórico-crítica, fundada na Teoria Social de Marx e na Tradição Marxista e que se colocam
como base para o projeto profissional hegemônico, expressando uma direção social que se
estrutura nas dimensões histórico-ontológicas, teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-
operativas.
Cabe assinalar que o núcleo central do debate brasileiro contemporâneo sobre
Fundamentos se estrutura a partir de um determinado modo de entender a profissão, à luz da
Teoria Social Marxiana, no âmbito das relações sociais constitutivas da ordem capitalista,
consideradas as particularidades de sua condição periférica e que supõe:
- uma abordagem da história a partir das classes sociais e de suas lutas, entendendo as
diversas manifestações da “questão social” e as suas estratégias de enfrentamento, como âmbito
privilegiado da intervenção profissional.
- uma apreensão da realidade totalizante, ontológica e em movimento contraditório que
294
apreende o ser social a partir de determinações e mediações. Ou seja, as relações sociais são
sempre mediatizadas por situações, instituições, contextos nos quais se engendram como
totalidade as relações sociais que configuram a sociedade capitalista e que revelam/ocultam as
relações sociais imediatas. Nesta perspectiva, a reprodução das relações sociais é entendida (cf.
IAMAMOTO, 2011) como a reprodução da totalidade da vida social, o que engloba não apenas
a reprodução da vida material, mas também a reprodução espiritual da sociedade e das formas
de consciência social através das quais o homem se posiciona na vida social. Desta forma, a
reprodução das relações sociais é a reprodução de toda a trama de relações da sociedade.
- uma concepção da profissão no contexto da divisão social do trabalho, que é sócio-
técnica, mas é também sexual e étnico-racial. E, assim sendo, uma concepção de profissão que
tem na centralidade do trabalho e dos trabalhadores e de suas lutas um eixo definidor de sua
natureza.
- finalmente, uma concepção de profissão que a situa como área de produção de
conhecimentos, sobre o processamento dessa especialização do trabalho coletivo, sobre as
condições de vida da população com a qual trabalha, e especialmente sobre a realidade social,
econômica, política e cultural onde se insere. (cf. MOTA, 2016) Marx dizia que explicar a

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo

realidade não é apenas descobrir os nexos que a constituem, mas ajudar essa realidade a se
constituir.
Trago, portanto aqui, uma apreensão do Serviço Social que não é indiferente do ponto
de vista teórico, social e político e parte da posição inaugurada por Iamamoto em 1982, de que
o significado social da profissão só pode ser desvendado em sua inserção na sociedade, ou seja,
“a análise da profissão, de suas demandas e atribuições, em si mesmas não permite desvendar
a lógica no interior da qual ela ganha sentido. Assim sendo, é preciso ultrapassar a análise do
Serviço Social em si mesmo para situá-lo no contexto de relações mais amplas que constituem
a sociedade capitalista, particularmente, no âmbito das respostas que esta sociedade e o Estado,
pela mediação das Políticas Sociais, constroem, frente à questão social1 e às suas manifestações,
em múltiplas dimensões.” (YAZBEK, 2009, p. 3) Essas dimensões constituem a sociabilidade
humana e estão presentes no cotidiano da prática profissional, condicionando-a e atribuindo-
lhe características particulares. Ao afirmarmos o caráter histórico e político do Serviço Social
que resulta de relações sociais, econômicas, políticas, culturais que moldam sua necessidade
social, suas características e definem seus usuários, partimos da posição de que a profissão é
uma construção histórica e contextualizada, situando-se nos processos de reprodução social da
sociedade capitalista, sendo objeto de múltiplas determinações historicamente processadas.
Gostaria ainda de lembrar que esse processo de reprodução da totalidade das relações
295
sociais na sociedade é um “processo complexo, que contém a possibilidade do novo, do diverso,
do contraditório, da mudança. Trata-se, pois, de uma totalidade em permanente reelaboração,
na qual o mesmo movimento que cria as condições para a reprodução da sociedade de classes
cria e recria os conflitos resultantes dessa relação e as possibilidades de sua superação (cf.
YAZBEK, 2009).
Cabe lembrar aqui que, conforme José de Souza Martins (1975, p. 74), os processos
sociais, constitutivos da vida em sociedade (e em nossa análise a dimensão da profissionalidade
expressa no trabalho profissional), comportam uma dupla dimensão: de um lado expressam
determinações sociais econômicas e políticas, historicamente constituídas (sobre as quais a
profissão não tem ingerência) e de outro, o projeto dos sujeitos aí envolvidos. Condição que
possibilita aos profissionais uma relativa autonomia no desempenho de suas atribuições e
competências (cf. IAMAMOTO, 2007).
Enfrentar e explicitar essa contradição constitutiva do trabalho do assistente social a

1
A Questão Social é expressão das desigualdades sociais constitutivas do capitalismo. Suas diversas
manifestações são indissociáveis das relações entre as classes sociais que estruturam esse sistema e nesse sentido
a Questão Social se expressa também na resistência e na disputa política.

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Maria Carmelita Yazbek

partir da relativa autonomia de que dispõe, no confronto cotidiano, entre sua condição de
assalariamento e a realização de seu projeto, é condição para seu desvelamento. Assim sendo,
é preciso ter presente que: “Não há espaços sem contradição, não há como o Serviço Social
deixar de participar desse processo, cuja direção está sempre em disputa, pois fazemos parte
dela em qualquer contexto” (YAZBEK, 2018, p. 101). Não é uma escolha, participar ou não
desse processo e das disputas que contem.
Sabemos, pela nossa história, que tivemos fortes marcas de fundamentos doutrinários,
positivistas e sabemos também que o pensamento conservador nos persegue, nos engendra, de
múltiplas formas. Isso porque suas marcas penetram o modo capitalista de pensar, de modo
global e especialmente a Cultura Política Brasileira, as Políticas Sociais, nossos âmbitos de
trabalho, e a própria vida das classes subalternas, com as quais trabalhamos cotidianamente.
Processo que não se dá sem resistências, pois sabemos também que, nas últimas três décadas,
o Serviço Social brasileiro construiu um projeto, para a profissão, sob a direção do pensamento
marxiano e da tradição marxista, com múltiplas faces. E, tendo esses referentes como
balizamento é que devemos enfrentar a ofensiva conservadora colocada, nessa difícil
conjuntura.
Contexto de crise estrutural do capital que avança em seu caráter ultraliberal, predatório
e na banalização da vida. Contexto que, do ponto de vista da Economia Política, configura um
296
tempo de devastação como nos lembra Antunes, “uma fase ainda mais destrutiva da barbárie
neoliberal e financista” (ANTUNES, 2018, p. 10).
Os indicadores que revelam esse quadro crescem a cada dia, agravados há alguns meses,
pelo contexto da pandemia da Covid-19, que vem evidenciando a desigualdade estrutural do
país. Desigualdade que cresce no mundo global e especialmente na América Latina. No
relatório de desenvolvimento humano de dezembro 2019, do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD), a América Latina foi apontada como a região do mundo com a
maior desigualdade de renda e o Brasil como o 7º país mais desigual do mundo. Neste
continente, os 10% mais ricos concentram uma parcela maior da renda (37%) do que em
qualquer outra região do planeta ou cidade, segundo o estudo.
Segundo o estudo: “Em 2020, a regressão econômica e social que decorre da crise
sanitária imposta por onda viral de dimensão mundial encontra os países latino-americanos já
debilitados pela estagnação econômica (0,2% de variação média anual do PIB entre 2010-
2019) [...] Sabe-se que a onda viral atual resulta da forma degradante com que o
desenvolvimento capitalista tem explorado a natureza. As emissões dos gases de efeito estufa,
o desmatamento e a mudança climática agridem o conjunto dos biomas, forçando a liberação

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo

crescente de vetores propagadores das doenças virais2. [...] Nesse contexto, o Estado que até
pouco tempo era visto dominantemente como o centro dos problemas nacionais pelo
receituário neoliberal transformou-se rapidamente na condição necessária para sair do quadro
regressivo atual. [...}
No relatório conjunto da Cepal e OIT3, de maio de 2020, o decrescimento do PIB
estimado em 5,3% provocará a elevação da taxa de desemprego de 8,1%, em 2019, para 11,5%,
em 2020. Com o crescimento de 3,4 pontos percentuais na taxa de desemprego, a região deverá
comportar mais 11,5 milhões de novos desempregados” (CEPAL/OIT, 2020).
No Brasil, chegamos ao final do ano, conforme dados do IBGE, com um crescimento
de 35,9% do desemprego em relação ao mês de maio, com impactos de 5 % a mais para as
mulheres, especialmente as negras. Ademais, o desassalariamento amplia-se, com maior
presença, evidenciando o crescimento da informalidade e de ocupações por conta própria.
São tempos difíceis onde se entrecruzam com a crise estrutural do capital, compondo
uma totalidade, outras crises que venho destacando em minhas análises recentes. Relembrando
rapidamente:
Em primeiro lugar destaco – “as profundas transformações observadas nas últimas
décadas, na esfera da acumulação capitalista expressas na reestruturação produtiva e na
financeirização da Economia com seus impactos no mundo do trabalho, na “questão social” e
297
na Política Social, âmbito privilegiado de nossa intervenção” (YAZBEK,2019, p. 87).
Esse é o primeiro ponto e, como sabemos, a desigualdade e a concentração de renda que
se intensificam nas atuais formas de acumulação capitalista, trazem como consequência a
radicalização da questão social, outro conceito que expressa relações capitalistas.
Aprofunda-se a exploração do trabalho. Como lembra Raichelis (2018, p. 51):
Aprofunda-se a tendência do capital de redução do número de trabalhadores
contratados, gerando economia de trabalho vivo [...] amplia-se o desemprego
estrutural além da precarização e deterioração da qualidade do trabalho, dos
salários e das condições em que ele é exercido, que se agravam ainda mais se
considerando os recortes de gênero, geração, raça e etnia.

Sabemos, pelo debate acumulado no âmbito do Serviço Social, que a Questão Social e
a desigualdade são elementos estruturantes da sociabilidade capitalista. Questão que se
reformula e se redefine, mas permanece substantivamente a mesma por se tratar de uma questão

2 Somente na Amazônia encontra-se mapeado a existência de 3,2 mil tipos de coronavírus, nem todos letais ao ser
humano. Em cada 1% de avanço no desmatamento da Amazônia, nota-se, por exemplo, a expansão de 23% na
incidência de casos de malária e 9% de leishmaniose. Para mais detalhes, ver: ANTHONY et al. (2017) e
MAXMEN (2017).
3
Cf. CEPAL/OIT (2020), El trabajo en tiempos de pandemia: desafíos frente a la enfermedad por coronavirus
(COVID-19). Coyuntura Laboral en América Latina y el Caribe.

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Maria Carmelita Yazbek

estrutural, constitutiva das relações capitalistas, de sua divisão da sociedade em classes e da


disputa pela riqueza socialmente construída, cuja apropriação é profundamente desigual no
capitalismo. Supõe a consciência dessa desigualdade e a resistência à opressão por parte da
“classe que vive do trabalho” (cf. YAZBEK, 2004, p. 33).
É fundamental ainda assinalar algumas novas configurações e expressões que a “questão
social” assume nos contraditórios tempos presentes, condensando “múltiplas desigualdades
mediadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais, mobilidades
espaciais, formações regionais e disputas ambientais, colocando em causa amplos segmentos
da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural –
enraizada na produção social contraposta a apropriação privada do trabalho –, a ‘questão social’
atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania, no embate
pelo respeito aos direitos civis, sociais e políticos e aos direitos humanos” (IAMAMOTO, 2018,
p.72).
Cabe lembrar ainda, que uma análise crítica da ‘questão social’ no tempo
presente exige que sejam lembrados os processos de formação do país, desde
a colonização, um empreendimento mercantil, que caminhou na direção de
uma economia composta de senhores e escravos, na qual as marcas do
patrimonialismo-paternalista vão plasmar a sociedade brasileira. “O par
senhor-escravo assentou as bases de uma estrutura social bipolar, que formou
a maior parte da nação. A casa grande e a senzala são o brasão dessa
sociedade” (Oliveira, 2018: 29). Desse modo é fundamental não esquecer que 298
o caráter predatório das relações coloniais e do escravismo deixou, sem dúvida
suas marcas na história do país e implantou bases importantes na construção
da lógica que vem presidindo a expansão do capitalismo dependente na
periferia em tempos mais recentes, bem como as características próprias da
questão social brasileira (YAZBEK, p. 90).

Traço da formação social do país, a conjugação do “avanço” com o “atraso” assegurou


desde sempre sucesso para a dominação burguesa.
Nesse sentido, a natureza desse capital precisa ser desvelada, decifrada, para entender o
seu ataque contra a Política. Configura-se assim, uma segunda dimensão dessa profunda crise:
é a desqualificação e despolitização da Política, em um contexto onde se colocam em questão
os sentidos da Política, dimensão que não abordaremos aqui.
Âmbito onde é possível entender o ataque do Capital contra as políticas sociais em
relação às quais a conclusão que se chega é que não interessa a esse “capital manter políticas
sociais organizadas e financiadas pelo Estado” (MARQUES, 2018, p. 110) Desse modo,
podemos entender que esse avanço e especialmente do capital financeiro, que assumiu o
controle da acumulação, sobre as políticas sociais é uma característica do capitalismo
contemporâneo globalmente, Característica que, aliada ao novo padrão de acumulação

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo

caracterizado pela flexibilização produtiva, com sua nova morfologia do mundo do trabalho
com desemprego, redução de salários e precarização do trabalho e ausência de direitos, tem
como resultado a ampliação de situações de trabalho desprotegido, o aumento da pobreza e o
desmonte da proteção social.
E chegamos aqui à uma terceira dimensão dessa grande crise a ser considerada: as
mudanças que podemos observar no âmbito da Sociabilidade e da Cultura Política que
justificam e sustentam a ordem capitalista e especialmente esse processo mais amplo de
acumulação. Nesse âmbito, vivemos tempos de ofensiva conservadora, de avanço do
irracionalismo, do obscurantismo de ameaças à democracia e de redução dos direitos, tempos
de regressão conservadora que se expressa no avanço da defesa das instituições tradicionais,
na naturalização da desigualdade, no acirramento dos preconceitos, no racismo, no feminicídio,
na homofobia e na criminalização dos movimentos sociais, entre outros aspectos. Trata-se de
um contexto de ascensão global, ao poder de forças conservadoras por toda parte, com altíssimo
teor de violência e barbárie, que nos lembram, para ficarmos apenas no século XX, os anos
1930 que antecederam a segunda guerra mundial e os anos mais recentes de regimes ditatoriais
militares da América do Sul. [...] “É como se tais forças jamais tivessem desparecido de fato,
mas apenas feito um recuo estratégico temporário à espreita de condições favoráveis para sua
volta triunfal” (ROLNIK, 2018) Contexto de paradoxos, onde articulam forças reativas
299
distintas e no qual vai se tornando
evidente que o capitalismo financeirizado precisa destas subjetividades rudes
temporariamente no poder. São como seus capangas que se incumbirão do
trabalho sujo imprescindível para a instalação de um Estado neoliberal:
destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu
imaginário e erradicar da cena seus protagonistas – entre os quais,
prioritariamente, as esquerdas em todos os seus matizes. [...] A torpe
subjetividade destes (neo)conservadores é arraigadamente classista e racista,
para não dizer colonial e escravocrata, o que os leva a querer cumprir este
papel, sem qualquer barreira ética e numa velocidade vertiginosa. Quando
nem bem nos damos conta de uma de suas tacadas, uma outra já está em vias
de acontecer (ROLNIK, 2018).

Estou colocando aqui em evidência, um movimento que expressa um processo de


refuncionalização do conservadorismo na sociedade burguesa no histórico processo de sua
constituição como uma das bases de manutenção da ordem capitalista após 1848 até os dias
atuais. Entendo que a partir daí o pensamento conservador assume progressiva importância nas
bases que sustentam a ordem capitalista até chegar a expressões ultrarreacionárias desse
conservadorismo que flerta com ideias sinistras (cf. Rodrigues4)

4
Reflexões desenvolvidas pela profa. Mavi Rodrigues no I Encontro da Rede Mineira de Grupos de Estudos sobre

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Maria Carmelita Yazbek

Muito sumariamente gostaria de apresentar algumas considerações sobre marcas que


caracterizaram o processo histórico de desenvolvimento do pensamento conservador de suas
gêneses ao neoconservadorismo contemporâneo/refuncionalizado e ultrarreacionário.5
Inicialmente é fundamental lembrar que o conservadorismo como forma de pensamento
e experiência prática é resultado de um contra movimento aos avanços da modernidade, e nesse
sentido, suas reações são restauradoras e preservadoras. Edmund Burke (1729-1797), com a
publicação de sua obra Reflexões sobre a Revolução em França, em 1790 marca o início do
debate sobre o Pensamento Conservador. É considerado um dos fundadores do
conservadorismo. O conservadorismo moderno é, pelo menos em sua forma filosófica, produto
da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Produto não intencional, involuntário, (e
recusado pelos protagonistas de ambas, não obstante, seu produto). O que as duas revoluções
questionavam e traziam como expressões da modernidade iluminista, era defendido por
conservadores como Burke. Só em 1830 o conservadorismo começa a fazer parte do discurso
político europeu, mas seu conteúdo já pode ser encontrado no trabalho de Burke. Aí trabalha
os temas essenciais do conservadorismo, defende a importância do feudalismo e de outras
estruturas históricas como a família patriarcal, a comunidade local, a Igreja, as associações e a
região. É importante assinalar que Burke era irlandês, anglicano e ligado à aristocracia da terra,
defendia valores religiosos para a vida social, a recristianização da sociedade, a pureza da fé, a
300
defesa da propriedade privada e a autoridade. Seu pensamento combate o iluminismo e vai
influenciar o pensamento sociológico, presente em autores como Auguste Comte (1798-1857),
Pierre Frédérick Le Play (1806-1882) e especialmente em Émile Durkheim (1858-1917) onde
está presente o mais importante elo entre o conservadorismo e o estudo do comportamento
humano.
Burke, foi filósofo e político, mas não escreveu nenhuma obra sobre Teoria Política.
Seus pensamentos são expostos em cartas, discursos e panfletos. Há em sua obra uma
fascinação pela Idade Média e pelo Código Feudal da cavalaria. Na perfeição dos grandes
senhores e na religião é que Burke buscava inspiração. De sua ênfase na defesa do passado é
que surgem valores como comunidade, autoridade, hierarquia, parentesco. O passado é para os
conservadores a terra firme. Para ele o poder democrático é instável e o pensamento
conservador é restaurador, preservador e reforça a autoridade moral.

de Fundamentos do Serviço Social (REMGEFSS) realizado nos dias 1 a 3 de dezembro de 2020.


5
Cabe destacar que parte dos referentes históricos e teóricos aqui apresentados, constam de estudo por mim
apresentado no texto Fundamentos Históricos e Teórico-metodológicos e as Tendências Contemporâneas no
Serviço Social (YAZBEK, 2018).

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo

Para Nisbet (1987, p. 17)


à medida em que o cosmopolitismo do Iluminismo se espalhava, cada vez
mais os conservadores se voltavam para suas próprias histórias, tradições,
santos, heróis, seus governos, seus nobres, os trabalhos de artesãos, pesquisas
de dialetos nativos, de questões regionais, de literatura folclórica, de criadores
de arte e de heróis militares dum passado distante. Poetas, atores,
compositores, artistas, artesãos, historiadores, trabalhavam com o material de
suas comunidades, em vez de irem para as capitais da Europa, assumindo e
buscando preservar valores e culturas locais.

Esse primeiro momento, de gênese é abordado por alguns autores como


Conservadorismo Clássico (por ex. por Leila Escorsim Netto, 2011). Neste primeiro momento,
no século XIX as tendências conservadoras orientadas principalmente por princípios religiosos
apelavam às tradições que tinham sustentado a Europa por mais de mil anos, e o
Conservadorismo joga contra ao avanço do projeto modernizador de sociedade como uma
forma de pensamento anti-iluminista, portanto, contrário à razão, embora consciente e reflexivo
desde o princípio, na medida em que surge como um contra movimento em oposição consciente
ao movimento progressista, altamente organizado, coerente e sistemático. Mas, a trajetória
desse pensamento, apresenta múltiplas faces e formas de expressão até chegar a nosso tempo
como ultrarreacionário, de acordo com Pacheco (2020)6. Como se compatibilizaram
crescentemente Conservadorismo e Capitalismo? Apesar da diversidade de hipóteses e
abordagens sobre esse processo, podemos destacar algumas explicações. 301
Karl Mannheim (MANHEIN, K., 1981) dá o seguinte tratamento à questão:
partindo do conservadorismo alemão da primeira metade do século XIX, vai
abordar o pensamento conservador a partir do romantismo, que vai situar
como oponente histórico do iluminismo. Afirma o autor que o romantismo se
apossou de antigas formas de vida e pensamento e colocou-as contra o
racionalismo. Nesse sentido o conservadorismo moderno provém do modo de
vida do passado; se contrapõe ao Racionalismo e se coloca como alternativa à
sociedade capitalista. [...] Porém, para ele o pensamento é produto de um
modo de vida e nesse sentido contrapõe na sociedade capitalista a convivência
de dois estilos de pensamento:1- conservador (periférico em relação ao
capitalismo; irracional) 2 – capitalista (racionalista e moderno). Assim, o
Conservadorismo, embora periférico ao capitalismo ampararia suas intenções
que se expressam no racionalismo. Isso porque, o conservadorismo, enquanto
consciência do passado, embora periférico ao capitalismo, se exprime
mediado por categorias da sociedade capitalista (racional) (YAZBEK, 2018,
p. 55).

O que se constata é o que Lefebvre (1974), autor no âmbito da Tradição Marxista,


denomina de Rapto Ideológico de categorias que são reinterpretadas. Assim, o pensamento

6
Novamente, retomo aqui reflexões desenvolvidas pela profa. Mavi Pacheco Rodrigues no I Encontro da
REMGEFSS, realizado nos dias 1 a 3 de dezembro de 2020.

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Maria Carmelita Yazbek

conservador deixa de se antagonizar com o capitalismo criando o que Martins (1982) denomina
de um único estilo de pensamento, exprimindo um modo de vida. Nesse sentido, o
conservadorismo não significa apenas a pertinência de ideias presentes na herança intelectual
do século XIX, mas de ideias que atualizadas se transformaram em bases de manutenção da
ordem capitalista. Esse rapto, que expressa a disputa de projetos que emergem com a sociedade
capitalista, obscurece suas contradições e busca encobrir suas desigualdades.
Após a Revolução de 1848, os conservadores vão se posicionar especificamente contra
um dos dois projetos presentes na Revolução Francesa, aquele que defende a emancipação
humana. E vão se aliar aos que defendem a manutenção da ordem capitalista, uma vez que
defender a propriedade privada está de acordo com os seu principal interesse. Nesse sentido o
Conservadorismo é um “fenomeno Multiforme que cumpre funções distintas na pauta da luta
de classes” (RODRIGUES, 2020).
Assim, p.ex., com o advento do neoliberalismo no enfrentamento da crise estrutural do
capital a partir dos anos de 1970, convivemos com faces reformistas desse pensamento,
expresso por autores como Anthony Guiddens (2007) com suas teses sobre a Terceira via e a
reestruturação social democracia; Ulrich Beck (2011) com suas teses sobre a sociedade de
Risco, Pedro Hespanha (2002) com as noções de globalização, risco e Incerteza globais e
Boaventura Souza Santos (2002) com suas abordagens acerca da crise paragmática que
302
caracterizaria os denominados tempos pós-modernos e outros.
Atualmente, com o avanço da “nova direita” no plano internacional e também no Brasil
com a sua moral familista e religiosa, chegamos a um tempo de crescimento do
conservadorismo de traços fascistas, expresso no individualismo competitivo exacerbado,
preconceituoso, pressionado pelo consumo e que vive com um grau de incerteza e ansiedade
sem precedentes. O resultado é o avanço do conservadorismo e da ofensiva reacionária. O
conservadorismo é imprescindível para o capitalismo financeiro global.
Para Evangelista (2020)
Observa-se na política brasileira hoje o uso da religião para fazer avançar suas
pautas: Não é apenas sobre determinados grupos religiosos buscando impor
sua moral para a totalidade da sociedade via políticas de Estado, mas é,
também, sobre as novas facetas do conservadorismo brasileiro usando a
religião para se comunicar com o povo, [...] alcançando um segmento religioso
que cresce em todos os estratos sociais, mas está predominantemente na base
da pirâmide social, em áreas urbanas e periféricas onde a população vive
cotidianamente a ausência do Estado. Estamos falando também de uma
população em sua maioria de baixa renda, negra e feminina.

Contexto que se completa, pela exposição da face hiperautoritária do


ultraneoliberalismo, nos termos de Dardot e Laval, (2016, p. 21) que afirmam

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo

o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica.


É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro,
estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas
da vida [...]. É um sistema que emprega ‘técnicas de poder inéditas sobre as
condutas e as subjetividades. Ele não pode ser reduzido à expansão espontânea
da esfera mercantil e do campo de acumulação do capital.

Para Harvey, nessa mesma direção, o neoliberalismo mercantiliza de forma ilimitada as


relações sociais. Situação que se agrava com “o ingresso da chamada ‘nova direita’ na
conjuntura internacional” num processo de “exportação, do centro para a periferia”. É também
Harvey que vai colocar a proximidade do pensamento pós moderno em sua ruptura com a
dimensão da totalidade e a fragmentação do real com as estratégias de acumulação
financeirizada e a reestruturação produtiva. Nesse contexto, crescem as vertentes
irracionalistas, em sua relação com a ideologia fascista, especialmente a nazifascista no mundo
europeu. O irracionalismo
dissemina o pessimismo, o anti-humanismo, o individualismo e desvaloriza a
verdade objetiva, dissimulando as contradições sociais e naturalizando suas
consequências. O irracionalismo e o conservadorismo encontram condições
favoráveis para se desenvolver em momentos de crise social. (BARROCO,
2015, p. 624)

Cabe destacar que é nos Estados Unidos da América que a regressão conservadora,
agora denominada neoconservadora, vai assumir formas semelhantes às que encontramos no
processo que se evidenciou nas eleições brasileiras de 2018. Com destaque para projetos de 303
regulação da moral e dos costumes, a partir da compreensão de que no ocidente aprofunda-se
uma crise de valores que destrói as bases da moralidade social e a família. A crise moral que
alcança a sociedade americana, sua cultura e suas universidades, passa a ser vista como capaz
de desmantelar a estabilidade da sociedade norte americana.
Os neoliberais constituem a liderança da Nova Direita e representam o grupo
que se preocupa com a orientação político-econômica atrelada à noção de
mercado. Os neoconservadores são aqueles que definem os valores do passado
como melhores que os atuais e lutam pelas tradições culturais. Os populistas
autoritários são, em geral, grupos de classe média e de classe trabalhadora que
desconfiam do Estado e se preocupam com a segurança, a família, o
conhecimento e os valores tradicionais (LIMA e HYPOLITO, 2019).

Para Rodrigues (2020) trata-se de um conservadorismo de novo tipo, de caráter


reacionário e a “ameaça que ele carrega não é a mesma dos anos de 1990”.
De outro lado, para o Serviço Social essa ofensiva conservadora que confronta a cultura
profissional no âmbito de seu projeto ético-político, teórico-metodológico e técnico-operativo
e a nova sociabilidade capitalista, coloca-se como questão de grande tensionamento, pois se
trata, para nós profissionais do Serviço Social, de uma interlocução com o adverso. Como lutar

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Maria Carmelita Yazbek

por outra ordem societária, por um mundo melhor, pela liberdade, pela equidade, pela justiça,
pela construção de direitos, contra práticas racistas, homofóbicas, contra o feminicídio, contra
o genocídio da população negra, entre outras aspectos, nesse contexto? Como levar adiante este
embate desigual? Luta que só se luta no coletivo – um traço dessa nossa história..., mas que
deve ser de cada um, todos os dias, em todas circunstâncias.
Os desafios frente ao quadro aqui brevemente apresentado são enormes, imensuráveis e
permeiam múltiplas dimensões de nosso cotidiano,
O desafio frente ao quadro aqui brevemente apresentado no âmbito da luta pelo
reconhecimento público e a construção dos direitos sociais da população com a qual trabalhamos
é enorme, imensurável. E é nesse âmbito que devemos localizar o significado
CONTRADITÓRIO de nosso trabalho profissional, especialmente na gestão e
operacionalização de políticas sociais: na disputa pelos sentidos da sociedade, na luta contra o
desmanche de direitos cuja regulação vai passando para espaços do mundo privado; na
construção de parâmetros capazes de deter a privatização do público, e a destruição da política,
na perspectiva de construir a hegemonia dos interesses das classes que vivem do trabalho em
nossa sociedade. Isso a política social pode construir, deve construir. E é por isso que a Política
Social pode ao menos minimizar os impactos das transformações aqui analisadas e construir
direitos...
304
Em síntese, de modo geral a profissão é interpelada e desafiada pela necessidade de
construir direitos e outras mediações políticas e ideológicas expressas sobretudo por ações
de resistência e de alianças estratégicas no jogo da política em suas múltiplas dimensões, por
dentro dos espaços institucionais e especialmente no contexto das lutas sociais. Seja no tempo
miúdo do cotidiano, por dentro dos espaços institucionais onde atuamos, politizando nossas
iniciativas, buscando novas práticas, buscando espaços a ocupar como conselhos e fóruns,
considerando as variadas lutas e propostas de resistência. Seja no apoio às resistências
cotidianas das classes subalternas em suas lutas em nossa sociedade, expressando que
profissionalmente caminhamos junto aos nossos usuários.
dando origem a uma nova modalidade de resistência: surge a consciência de
que a resistência tem que incidir igualmente nesta esfera. Isto aparece nos
novos tipos de movimento social que vêm desestabilizando aqui e acolá o
poder mundial do capitalismo financeirizado na determinação dos modos de
existência que lhe são necessários. A propagação deste tipo de resistência, que
se intensificou após o tsunami dos ditos golpes de Estado provocados pelo
novo regime por toda parte, tem surgido principalmente entre as gerações mais
jovens e, mais contundentemente, nas periferias dos grandes centros urbanos.
Nestes contextos, destacam-se especialmente os citados movimentos das
mulheres (numa nova dobra do feminismo), dos LGBTQI (numa nova dobra
das lutas no campo da homossexualidade, transexualidade, etc, na qual estas

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo

se juntam em torno de alguns objetivos e refinam suas estratégias) e, também,


dos negros (numa nova dobra de suas lutas anti-raciais). (ROLNIK, 2018)

Em síntese, de modo geral a profissão é interpelada e desafiada pela necessidade de


construir direitos e outras mediações políticas e ideológicas expressas sobretudo por ações
de resistência e de alianças estratégicas no jogo da política em suas múltiplas dimensões, por
dentro dos espaços institucionais e especialmente no contexto das lutas sociais. Seja no tempo
miúdo do cotidiano, por dentro dos espaços institucionais onde atuamos, politizando nossas
iniciativas, buscando novas práticas, buscando espaços a ocupar como conselhos e fóruns,
considerando as variadas lutas e propostas de resistência. Seja no apoio às resistências
cotidianas das classes subalternas em suas lutas em nossa sociedade, expressando que
profissionalmente caminhamos junto aos nossos usuários.

REFERÊNCIAS
ANTHONY, Simon J. et al. Global Patterns in Coronavirus Diversity. Virus Evolutions, vol.
3. Issue 1, 2017. Disponível em <https://academic.oup.com/ve/article/3/1/vex012/3866407>..
Acesso em .05/05/2020
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: Rumo a uma Outra Modernidade. Belo Horizonte: Editora
34, 2011.
CEPAL/OIT. El trabajo en tiempos de pandemia: desafíos frente a la enfermedad por
coronavirus (COVID-19). Coyuntura Laboral en América Latina y el Caribe. n. 22. Santiago,
mai. 2020. Disponível em Informe CEPAL-OIT: El trabajo en tiempos de pandemia: Desafíos
305
frente a la enfermedad por coronavirus (COVID-19) (ilo.org).
CLOSS, Thaisa Teixeira. Fundamentos do Serviço Social: um estudo a partir da produção da
área. Curitiba, Ed. CRV, 2017.
DARDOT e LAVAL. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo:
Boitempo, 2016.
EVANGELISTA, Ana Carolina. Crentes ou não, políticos conservadores se apropriam da
religião para avançar. Entrevista especial com Ana Carolina Evangelista. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/605266. Acesso em 04 dez. 2020.
GUIDENS, Anthony. O debate global sobre a Terceira Via. (org.) São Paulo, UNESP, 2007.
GOIN, Mariléia. Fundamentos do Serviço Social na América Latina e no Caribe. Campinas:
Papel Social, 2019.
HESPANHA, Pedro e CARAPINHEIRO, Graça. Risco Social e Incerteza. Pode o Estado
Social recuar mais? LISBOA: Afrontamento, 2001.
LIMA, Iana Gomes e HYPOLITO, Álvaro. A expansão do neoconservadorismo na educação
brasileira Educação e Pesquisa. vol.45, São Paulo, Epub, 2019. Acesso em 15 ago. de 2019.
IAMAMOTO, Marilda. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. Uma interpretação
histórico metodológica. 33ª edição. São Paulo: Cortez, 2011.
LEFEBVRE, Henry. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Península, 1974.
LÖWY. Michael. Conservadorismo e extrema direita na Europa e no Brasil. Serviço Social e
Sociedade, N. 124. São Paulo: Cortez, 2015.
MARQUES, Rosa Maria. O capitalismo financeiro e as políticas sociais: a nova face da
contemporaneidade. In. RAICHELIS, Raquel; VICENTE, Damares; ALBUQUERQUE,
Valéria (Orgs.). A nova morfologia do Trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Maria Carmelita Yazbek

MAXMEN, Amy. Bats are Global Reservoir for Deadly Coronavirus. Nature, vol. 546, 2017.
Disponível em <https://www.nature.com/news/bats-are-global-reservoir-for-deadly-
coronaviruses-1.22137>. Acesso em .04 de nov. de 2020.
MOTA, Ana Elizabete. Serviço Social Brasileiro: insurgência intelectual e legado Político. In
OLIVEIRA E SILVA, Maria Liduina (Org.). Serviço Social no Brasil. História de Resistências
e de ruptura com o conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2016.
MARTINS, José de Souza. Capitalismo e Tradicionalismo. Estudos sobre as contradições da
sociedade agraria no Brasil. São Paulo: Pioneira,1975.
NETTO, Leila Escorsim. O Conservadorismo Clássico. Elementos de Caracterização e
Crítica. São Paulo: Cortez, 2011.
NISBET, Robert. O Conservadorismo. Lisboa: Estampa,1987.
OLIVEIRA, Francisco. Uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018.
_____. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
RAICHELIS, Raquel. Serviço Social: trabalho e profissão na trama do capitalismo
contemporâneo. In: RAICHELLIS, Raquel; VICENTE, Damares; ALBUQUERQUE, Valéria
(Orgs.). A nova morfologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.
_____. Polêmicas Teóricas na análise marxiana do trabalho no Serviço Social. Revista Em
Pauta, Vol. 16, N. 4, Rio de Janeiro, 1º sem. 2018, p.154-170.
ROLNIK, Suely. A nova modalidade de golpe de Estado: um seriado em três temporadas
In Outras Palavras. Disponível em https://outraspalavras.net/sem-categoria/666381/. 2018.
Acesso em 09 de set. de 2019.
RODRIGUES, Mavi, Pacheco. I Encontro da REMGEFSS, realizado nos dias 1 a 3 de
dezembro de 2020. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=6jwRKqG1d0s&list=
UUZkeJkJiLdCrhTBUjAQXTWw&index>.
SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente. São Paulo: Cortez, 2000.
YAZBEK, Maria Carmelita. Serviço Social e seu projeto ético político em tempos de
devastação: resistências, lutas e perspectivas. In YAZBEK, Maria Carmelita; IAMAMOTO, 306
Marilda Villela. Serviço Social na história. América Latina, África e Europa. São Paulo:
Cortez, 2019.
______. Serviço Social, Questão Social e Políticas Sociais em tempos de degradação do
trabalho humano, sob o domínio do capital financeiro. Serviço Social em Revista. Vol.21, N.1.
UEL, 2018.
______. O significado sócio-histórico da profissão. In Serviço Social: Direitos Sociais e
Competências Profissionais. Curso de Especialização à Distância. Brasília: CFESS/ ABEPSS,
2009.
YAZBEK, Maria Carmelita; IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social na história.
América Latina, África e Europa. São Paulo: Cortez, 2019.

Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que
permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja
corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

http://doi.org/10.15448/1677-9509.2019.2.35948

Serviço Social no Brasil e em Cuba

Tendências atuais no ensino dos Fundamentos do Serviço Social


Current Trends in Teaching Social Work Fundamentals

Marileia Goin iD
Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil.



RESUMO – O artigo, fruto da pesquisa de pós-doutoramento, analisa o ensino dos Fundamentos do


Serviço Social, considerando as tendências atuais relativas à formação em nível brasileiro e as expressas na
operacionalidade formativa no âmbito das Unidades de Formação Acadêmica. Trata-se de pesquisa documental,
realizada nos Projetos Pedagógicos dos Cursos selecionados das Regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste. A definição
da amostra deu-se a partir da demarcação da instituição presencial mais antiga em cada região, com trajetória
consolidada no âmbito da graduação e da pós-graduação. Os resultados apontam que apesar de a formação
presencial em Serviço Social dar-se, tendencialmente, em instituições de natureza privada e concentrada
na Região Sudeste do Brasil, percebe-se que o ensino dos Fundamentos se assentam no caráter dialético e
ontológico, próprios do cariz marxiano, com notórios esforços de abandono da concepção tricotômica entre
história, teoria e método.
Palavras-chave: Fundamentos. Serviço Social. Projetos Pedagógicos.

ABSTRACT – The article, the result of postdoctoral research, analyzes the teaching of the Fundamentals of
Social Work, considering the current trends related to training at the Brazilian level and those expressed in
the formative operability within the Academic Training Units. This is a documentary research carried out in
the Pedagogical Projects of the selected Courses of the South, Southeast and Midwest. The definition of the
sample was based on the demarcation of the oldest presential institution in each region, with a consolidated
trajectory in the graduate and postgraduate levels. The results indicate that although the presential formation in
Social Work tends to occur in private institutions and concentrated in the Southeast of Brazil, it is clear that the
teaching of the Fundamentals is based on the dialectical and ontological character, characteristic of the nature
of marxist, with notorious efforts to abandon the trichotomous conception of history, theory, and method.
Keywords: Fundamentals. Social Work. Pedagogical Projects.

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


2 Marileia Goin

H
á quase quatro décadas o Serviço Social vem constituindo insurgência ao lugar que historicamente
lhe fora atribuído na realidade brasileira – a sociedade está marcada pela herança escravista,
patrimonialista, patriarcal, machista e conservadora –, ao fundar um amplo movimento ideo-político
profissional, cujas bases se assentam na aproximação fiel com a teoria de cariz marxiano. Todavia, são os
vetores conjunturais dos anos 1990 que potencializam a incursão e a robustez da incorporação teórico-
metodológica, cuja difusão teórica, com lealdade, evidencia-se nos instrumentos ético-jurídicos – a exemplo
do Código de Ética – e formativos – Diretrizes Curriculares –, os quais enfeixam um conjunto de mudanças,
cujo ponto de partida está na apreensão da própria profissão e nas bases que o assentam e legitimam
histórica e socialmente.
Elementarmente, é a partir da revisão curricular de 1996 que os Fundamentos do Serviço Social
ganham novo tônus. Com a substituição das disciplinas voltadas para a História do Serviço Social, Teoria do
Serviço Social e Metodologia do Serviço Social, matriz disposta no currículo aprovado pelo MEC em 1982,
na medida em que as dimensões históricas, teóricas e metodológicas tornam-se orgânicas e imanentes,
diluídas no conjunto de atividades pedagógicas no decurso da formação profissional.
A nova lógica curricular toma a indissociabilidade entre história, teoria e realidade como eixo
articulador da proposta – cujo método é indispensável para seu processo de desocultamento –, de modo a
romper com a endogenia presente no passado profissional – olhar o Serviço Social nele e por ele mesmo – e
possibilitar defrontá-la com os processos sociais, de modo a retornar à profissão como produto e produtora
desses processos, no intento de reconstruí-la em suas múltiplas determinações, como concreto pensado.
Nessa via, as diretrizes traduzem a concepção adotada no âmbito de três Núcleos de Fundamentos –
Núcleo de Fundamentos Teórico-Metodológico da vida social1, Núcleo de Fundamentos da Formação Sócio-
Histórica da Sociedade Brasileira2 e Núcleo de Fundamentos do Trabalho Profissional3 – os quais articulam
um conjunto de conhecimentos elementares à formação e ao trabalho profissional. Não se tratam de eixos
hierarquizados, classificatórios e autônomos, mas interdependentes e indissociáveis, que expressam níveis
diferenciados e complementares de abstração para decifrar a profissão na dinâmica societária e ancoram
os Fundamentos do Serviço Social. Aliás, é na articulação que a sua apreensão se torna possível.
Busca-se, nessa acepção, superar o enquadramento em disciplinas isoladas e prover de dinamicidade
os conteúdos, de modo que os componentes curriculares estabeleçam interface e diálogo entre os enunciados
núcleos. Exigência teórica e desafio político, o novo trato dado ao eixo História, Teoria e Método no Serviço
Social constitui os três núcleos e por ele é constituído, em sua relação dialética, pois como demarca Iamamoto
(2014), situar o Serviço Social na história é distinto da história do Serviço Social.

Parte do pressuposto de que a  história da sociedade é o terreno privilegiado para


apreensão das particularidades do Serviço Social: do seu modo de atuar e de pensar
incorporados ao longo de seu desenvolvimento. Sendo a profissão um produto sócio-
histórico, adquire sentido e inteligibilidade na dinâmica societária da qual é parte e
expressão. Decifrar essa especialização do trabalho supõe, nesse sentido, elucidar os
processos sociais que geram a sua necessidade social, o significado de suas ações no
campo das relações de poder econômico e político – das relações entre as classes e destas
com o Estado –, assim como a inscrição do Serviço Social no debate teórico e cultural
de seu tempo. Portanto, situar o Serviço Social na história é distinto de uma história
do Serviço Social reduzida aos muros da profissão, que tende a erigir o discurso dos
profissionais como achados conclusivos da pesquisa. Esses, ao contrário, são materiais
a serem submetidos ao crivo da crítica teórico-metodológica, redimensionando o seu
significado no jogo das forças sociais (IAMAMOTO, 2014, p. 621-622, grifos da autora).

Nessa esteira, o pressuposto do significado sócio-histórico e ideo-político da profissão reside no


âmbito da sua particularidade como especialização do trabalho coletivo, inscrito na divisão social e técnica
do trabalho, organicamente vinculada às expressões da “questão social”, sejam elas conjunturais ou
estruturais. A profissão só pode ser entendida, assim, no movimento histórico da sociedade, no processo
de reprodução das relações sociais, o qual não se trata apenas de reprodução material no seu sentido

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


Tendências atuais no ensino dos Fundamentos do Serviço Social 3

amplo, englobando produção, consumo, distribuição e troca de mercadorias (IAMAMOTO, 2008), mas da
reprodução da totalidade da vida social, de determinado modo de vida, de valores, de práticas culturais e
políticas, que permeiam as formas de consciência social por meio das quais o homem se posiciona na trama
das relações em sociedade (YAZBEK, 2009).
A superação de vieses mecanicistas e historicistas tem proeminência nessa abordagem ao passo
que remete a um “[...] debate teórico-metodológico que permita pensar a profissão no seu processo de
constituição e desenvolvimento, as exigências frente às transformações sócio-históricas, bem como a
vinculação do projeto profissional aos diferentes projetos societários em disputa” (SIMIONATTO, 2004, p. 33).
Desse modo, o entendimento dos Fundamentos do Serviço Social ultrapassa a noção formalista de
matéria curricular – os conhecidos Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos do Serviço Social – para
situá-los na totalidade histórica, a partir dos

elementos que (a) alicerçam e assentam as bases da formação e do trabalho profissional


ao longo de sua trajetória sócio-histórica e (b) conferem configuração particular à
profissão em face da processual e orgânica relação com a realidade, interpondo-lhe a
necessária apropriação das matrizes do conhecimento do social e do movimento da
sociedade para prover de direção social e política o trabalho profissional, seja por viés
conservador, seja emancipatório (GOIN, 2019, p. 31).

Os referidos elementos ultrapassam a análise do Serviço Social como evolução da caridade e da ajuda,
evitando pensar nele e por ele mesmo, para assentar suas bases no contexto do contraditório, do dinâmico
e do diverso das relações sociais, as quais lhe atribuem configurações particulares. E, para isso, seja em
termos do seu significado social, em termos de suas atribuições, competências, atitudes (investigativa,
propositiva, ética e democrática) ou ainda respostas profissionais que a sociedade e o Estado constroem face
às múltiplas manifestações e dimensões de seu objeto de trabalho. Assim, são fundantes dessa abordagem “a
concepção de profissão no movimento histórico da sociedade capitalista; a questão social e suas expressões
e configurações como âmbito privilegiado do exercício profissional; e o trabalho como categoria fundante
para analisar o exercício do Serviço Social na sociedade capitalista” (YAZBEK, 2018, p. 48).
É nessa ótica que se propõe analisar o ensino dos Fundamentos do Serviço Social no bojo de três
regiões brasileiras4 – Sul, Sudeste e Centro Oeste –, tendo como ponto de partida os Projetos Pedagógicos
de três universidades5 que se destacam na formação graduada e pós-graduada em termos sócio-históricos
e teórico-políticos em âmbito profissional. Oriunda do projeto de pós-doutoramento6 realizado na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), a intencionalidade reside na apreensão da lógica que ancora
o ensino dos Fundamentos, de modo a identificar se ainda encontram-se presentes resquícios advindos da
divisibilidade dos conteúdos ou se prevalece a articulação entre o conjunto de conhecimentos indissociáveis
(história, teoria e método) à formação e ao trabalho profissional.

1 O ensino dos Fundamentos do Serviço Social nos Projetos Pedagógicos dos Cursos

Debruçar-se no estudo do ensino dos Fundamentos do Serviço Social é tarefa improtelável e


politicamente necessária no tempo presente, em face dos desafios inscritos na história recente da
sociedade brasileira, especialmente no avanço do contramovimento exercido às teorias sociais.7 O conhecido
pensamento pós-moderno, que toma corpo a partir dos anos 1990 com a crise dos paradigmas, com a crise
dos modelos explicativos, penetra, sobretudo, nas Ciências Sociais – mesmo período que a perspectiva
marxista ganha tônus no Serviço Social brasileiro.
Esse pensamento não só critica os avanços da modernidade, afirmando que a razão é instrumento
de repressão, como “cria um universo descentrado, fragmentado, relativo e fugaz” (YAZBEK, 2018, p. 76),
e pressupõe a restauração do passado, do tradicionalismo, do irracionalismo. Daí advém a intolerância, a
ausência do diálogo entre os diferentes, a defesa de posições conservadoras, a discriminação, dentre outros,
que ferem diretamente a valoração ética disposta no Código de Ética Profissional de 1993.

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


4 Marileia Goin

Apesar das características historicamente produzidas pela ausência de referentes histórico-estruturais


– o que quer dizer que não são oriundas do tempo presente –, a proeminência está em como o avanço desse
tipo de pensamento incide no âmbito da profissão, tendo em vista o aparato político imerso nas Diretrizes
Curriculares de 1996 e a acelerada ampliação do número de cursos de Serviço Social no Brasil a partir dos
anos 1990.
Informações da Sinopse Estatística da Educação Superior Brasileira (INEP, 2018), do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), evidenciam que, dos quatrocentos e dezoito (418)
cursos de Serviço Social ofertados na modalidade presencial – vale lembrar que se somam a esse número
33 na modalidade à distância8, que totalizam 451 cursos no Brasil –, apenas 17% são públicos, ao passo
que trezentos e quarenta e sete (347) são privados, cujo percentual perpassa os 83%. Assim, a primeira
tendência evidenciada é a formação majoritariamente privada, conforme demonstrado no Quadro 1.

Quadro 1 – Cursos presenciais de Serviço Social no Brasil, conforme natureza (público ou privado)

Estado Nº de cursos Público Privado


Acre 2 0 2
Alagoas 9 2 7
Amapá 1 0 1
Amazonas 10 2 8
Bahia 35 2 33
Ceará 20 2 18
Distrito Federal 9 2 7
Espírito Santo 6 1 5
Goiás 4 1 3
Maranhão 14 1 13
Mato Grosso 6 1 5
Mato Grosso do Sul 6 0 6
Minas Gerais 40 12 28
Pará 12 2 10
Paraíba 10 3 7
Paraná 29 11 18
Pernambuco 16 4 12
Piauí 15 1 14
Rio de Janeiro 42 7 35
Rio Grande do Norte 13 2 11
Rio Grande do Sul 18 3 15
Rondônia 4 0 4
Roraima 2 1 1
Santa Catarina 7 2 5
São Paulo 76 6 70
Sergipe 8 1 7
Tocantins 4 2 2
Total 418 71 347
Fonte: Sistematização das autoras a partir de INEP (2018).

No Quadro 1, chama atenção, de um lado, a inexistência de cursos de Serviço Social públicos


presenciais em 4 das 27 unidades federativas do Brasil9, das quais 3 se encontram na Região Norte e uma
na Região Centro Oeste (Acre, Amapá, Mato Grosso do Sul e Rondônia) – o que significa a ausência de
cursos públicos presenciais de Serviço Social em aproximadamente 15% das regiões Brasil – , e, de outro, o

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


Tendências atuais no ensino dos Fundamentos do Serviço Social 5

registro de apenas um curso público em outros 7 estados (Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso,
Piauí, Roraima e Sergipe), em que apenas a Região Sul não se encontra indicada.
Outro destaque é relativo ao estado de Roraima, ao passo que tem 50% da oferta de natureza privada
e 50% de natureza pública, único estado a apresentar tal característica formativa no âmbito do Serviço
Social. Apesar da equivalência numérica dos cursos em relação à natureza institucional, a divergência se
encontra no número de matrículas: enquanto a universidade pública registrou 99 matrículas no ano de
2017, a privada registrou 1.268 no mesmo período (INEP, 2018) Isso demonstra que 93% das matrículas
na graduação em Serviço Social no estado são privadas, equivalendo a 1.110% a mais de matrículas na
instituição privada que na pública.
O estado de São Paulo, diferentemente da realidade roraimense, oferta sozinho, 17% dos cursos
brasileiros, sendo 92% em instituições privadas. Tal percentual se eleva ainda mais se considerado o número
de matrículas, ao passo que 21.069 estão nessas instituições privadas, percentual que equivale a 96% do total
de 22.008 matrículas no estado. Por outro lado, os 8% restantes (públicos) são responsáveis por apenas 4%
de discentes matriculados/as no curso. A configuração expressa no estado indicado é relativa à sua região,
uma vez que a Sudeste concentra, sozinha, 40% da formação brasileira (INEP, 2018) – a segunda tendência
da formação profissional em Serviço Social no tempo hodierno é a concentração na Região Sudeste.
Das 153.548 matrículas registradas, no Brasil, no total dos 451 cursos (presencial e à distância),
135.801 (89%) são em instituições privadas e apenas 17.747 (11%) em instituições públicas, o que equivale
a uma diferença percentual de 600% entre a segunda e a primeira. Em relação ao número de concluintes,
esse distanciamento não se reduz, aliás, se eleva, mesmo que minimamente, uma vez que dos/as 27.971
concluintes, apenas 9,8% (2.753) são oriundos/as de instituições públicas, enquanto 90,2% (25.218) são
de privadas e, dentre esses, aproximadamente 54% estão na modalidade à distância e 46% na presencial.
A terceira tendência revelada é a quase equiparação numérica entre os/as concluintes da modalidade
presencial e à distância, indicador que intensifica o debate acerca do perfil que se está formando nas duas
modalidades e em que medida essa formação dialoga com as Diretrizes da ABEPSS.
Na ótica do número de concluintes, informações das entidades representativas da categoria indicam
que se, em 2007, o montante de profissionais Assistentes Sociais contornava os 70.000 no Brasil, a partir da
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) e do fomento à formação na modalidade
à distância, conforme previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), a ampliação da
oferta de vagas ao curso de Serviço Social, na modalidade presencial e à distância, o número dobrou num
lastro de sete anos, chegando a 145.000 Assistentes Sociais em 2014, e a 182.000, em 2018 (GOIN, 2019).
Em termos percentuais, entre 2007 e 2018, o número de Assistentes Sociais no Brasil aumentou em torno
de 160%, que o coloca em segundo lugar no ranking mundial.
É evidente que a profissão multiplicou o contingente profissional a partir da virada do Século – e
porque não dizer na última década –, mas ao revés, os insuficientes monitoramentos de como as diretrizes
curriculares perpassam o bojo desse universo de cursos deixam em suspenso as abordagens que estão
ancorando os Fundamentos do Serviço Social. Evidencia-se uma categoria cada vez mais heterogênea,
exposta a inúmeras concepções de profissão, de formação, de entendimento acerca das particularidades
profissionais, de objeto profissional, de direcionamento profissional e, quiçá, de seu significado social no
âmbito da divisão social e técnica do trabalho. Para tanto, é preciso lembrar das tendências ao Coaching
Social, ao empreendedorismo social, à responsabilidade social e recentemente ao Design Thinking no
Serviço Social10.
Em pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS),
em 2006, quatro tendências foram apontadas quanto às formas de organização e concepção da matéria
“Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos do Serviço Social”: (1) Tendência de tratamento dos
conteúdos das matérias perpassando os diferentes núcleos que estruturam as novas diretrizes, sendo
que a visão dos Fundamentos do Serviço Social ultrapassa a própria profissão e a sua particularidade,
ao ser articulada ao movimento totalizante da sociedade; (2) Tendência de tratamento dos conteúdos
em componentes curriculares agrupados como “Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos do
Serviço Social”, numa perspectiva fragmentária, sem (a) perpassar os diferentes núcleos de fundamentos e

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


6 Marileia Goin

(b) garantir unidade no trato entre história, teoria e método; (3) Tendência de tratamento do eixo história,
teoria e método de forma dicotômica e reducionista acerca da concepção dos Fundamentos do Serviço
Social, em que seus conteúdos são organizados e tratados de forma isolada; e (4) Tendência de tratamento
do eixo história, teoria e método no âmbito da própria profissão, com eixo articulador por período e não
por núcleos de fundamentos, mantendo a visão reducionista quanto aos Fundamentos do Serviço Social
(CARDOSO, 2007).
Nos Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs) relativos às UFAs pesquisadas11 – projetos que também
são políticos ao indicar a direção e a intencionalidade explicitamente definida – o ensino dos Fundamentos do
Serviço Social dialoga com a primeira tendência apontada por Cardoso (2007). Todavia, apesar da diversidade
curricular, a lógica estruturante dos currículos pressupõem, como aponta a UFA 2 (2008), a não fragmentação
na apreensão dos processos, a partir da contextualização e da articulação do pensamento dominante
e suas formas de materialização, assim como a não dicotomização da relação necessária entre os três
núcleos.
Os PPCs, nessa via, estão sintonizados “com os aspectos socioculturais, abarcando a criação e
recriação de saberes, consoante ao quadro sócio-histórico que atravessa e conforma o cotidiano do exercício
profissional do assistente social, afetando suas condições e relações de trabalho” (UFA 1, 2011, p. 14). Assim,
sendo o fundamento da formação profissional a realidade social,

a apreensão da sociedade brasileira é tida como base para a definição das diretrizes
fundamentais da formação que se explicitam na direção social do curso. Tal direção
social se define com base nas demandas postas pelo movimento da sociedade, visando
à articulação efetiva de um projeto social das classes subalternas em suas relações com
as forças dominantes, o que implica a consolidação de uma legitimidade da profissão
junto àquelas classes, bem como o compromisso real e efetivo com os interesses
coletivos e históricos da classe trabalhadora na construção de uma nova hegemonia
na relação entre as classes sociais” (UFA 3, 2009, p. 13).

O perfil do/a profissional de Serviço Social expressa (a) a apreensão crítica do processo sócio-histórico
como totalidade; (b) as particularidades do Serviço Social no bojo de desenvolvimento do capitalismo, em
sua formação histórica e em seus processos sociais contemporâneas que configuram a sociedade brasileira;
(c) a apreensão teórica enquanto fundamento para o desvelamento da realidade social e a constituição
de mediações no âmbito das condições concretas de realização do trabalho profissional; e (d) a clareza de
que a dimensão técnico-operativa não se trata da aplicação da teoria e tampouco prescinde das dimensões
teórico-metodológica e ético-política, pois tem na teoria os subsídios para a apreensão da dinâmica social
por meio da investigação e, a partir disso, por meio do seu caráter ético e político, articula respostas às
situações singulares com as quais se defronta (UFA 1, 2011).
Um profissional culturalmente versado e politicamente atento ao tempo histórico, ao não-dito,
supõe diálogo com as fontes inspiradoras do conhecimento para (a) decifrar as bases sócio-históricas e os
determinantes da sociedade de classes; e (b) elucidar as tendências presentes no movimento da realidade,
ao entender as manifestações particulares no campo em que incide a intervenção, no intento de não reificar
o saber fazer, subordinando-o ao direcionamento do fazer e recusando espontaneísmos, voluntarismos e
determinismos profissionais (IAMAMOTO, 2007). A hegemonia não é dada para sempre. É preciso consolidá-
la. Portanto, constituir mediações políticas, teóricas, culturais e técnicas é imprescindível para articular o
projeto profissional à conjuntura, de modo particular às reais condições do trabalho profissional (UFA 3,
2009).
As expressões do alinhamento com as Diretrizes e, especificamente, com o compromisso
teórico-político assumido com o que se constitui como Fundamentos do Serviço Social, abaixo se
encontra sistematizado no Quadro 2, em termos de disciplinas obrigatórias ofertadas pelos cursos
pesquisados, o qual dá a tônica concreta do modo como pedagogicamente fazem interface na formação
profissional.

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


Tendências atuais no ensino dos Fundamentos do Serviço Social 7

Quadro 2 – Sistematização das disciplinas obrigatórias nominadas nos Projetos Pedagógicos


das Unidades de Formação Acadêmica

UFA 1 UFA 2 UFA 3


Disciplinas Obrigatórias
Centro Oeste Sul Sudeste
Introdução ao Serviço Social 01 – –
Introdução a Sociologia 01 – –
Introdução a Filosofia/Fundamentos Filosóficos para o Serviço Social 01 – 02
Introdução a Antropologia 01 – –
Introdução ao Pensamento Teológico/Cultura Religiosa – 01 02
Introdução aos Direitos Sociais e Políticas Sociais – 01 –
Introdução a Psicologia/ Psicologia Social 01 – 01
Construção Social do Sujeito – 01 –
Realidade Social e questões contemporâneas – 01 –
Análise da Conjuntura Socioeconômica – 01 –
Teorias explicativas da realidade e o Serviço Social – 01 –
Questão Social e Serviço Social/Trabalho e Questão Social 01 01 02
Trabalho e Sociabilidade 01 – –12
Movimentos Sociais/Classes e Movimentos Sociais/Laboratório de Práticas Coletivas e
01 01 01
Movimentos Sociais
Economia Política e Capitalismo/Configurações da Sociedade Capitalista 01 01 –
Teoria Sociológica 01 – 02
Teoria Política – – 01
Construção da Identidade do Assistente Social – 01 –
Fundamentos Históricos e Téorico-Metodológicos do Serviço Social 03 – 04
Oficina de Formação Profissional/ Laboratório de Formação Profissional – 01 04
Fundamentos Éticos/ Ética Profissional/ Ética e Cidadania 01 02 01
Projetos Societários e Profissão – – 01
Serviço Social e Projeto Ético-Político – 01 –
Laboratório de Processos Analíticos da Realidade – 01 –
Oficina de Trabalho Profissional/ Laboratório de Processos Interventivos do Serviço Social/
– 03 04
Processos Interventivos com Sujeitos Coletivos/ Processos Interventivos com Famílias
Gestão e Planejamento do Trabalho Profissional – 01 –
Introdução aos Processos de Trabalho do Assistente Social13/Processo de Trabalho e Serviço
02 02 –
Social/ Laboratório de Processos de Trabalho do Assistente Social14
Investigação em Serviço Social – – 01
Pesquisa Social/ Métodos e Técnicas quantitativos e qualitativos em Pesquisa Social/Teoria de
03 02 –
Pesquisa Social e Elaboração de Projetos/Tratamento e Análise dos dados em Pesquisa
Direito e Legislação Social – – 01
Política Social/ Política Social e sistema de proteção social 01 01 02
Seguridade Social – assistência social/Política e Sistema Único de Assistência Social 01 01 –
Seguridade Social – previdência/ Política de Previdência Social 01 01 –
Seguridade Social – saúde/Saúde coletiva e Sistema Único de Saúde 01 01 –
Política Habitacional – 01 –
Pobreza e Identidades Subalternizadas – 01 –
Planejamento, Administração e Gestão Social/Gestão Social/Gestão Social e Terceiro Setor 01 01 02
Orçamentos e Fundos Públicos – 01 –
Avaliação Social e Construção de Indicadores – 01 –
Assessoria, Consultoria e Supervisão – 01 –
Empreendedorismo e Responsabilidade Social – 01 –
Preservação Socioambiental e Processos Societários – 01 –
Núcleo Temático – – 04
Estágio 02 03 04
PTCC/TCC/Seminário TCC 02 01 03
Fonte: Sistematização realizada pelas autoras a partir dos Projetos Pedagógicos das Unidades de Formação Acadêmica 1, 2 e 3.

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


8 Marileia Goin

O Quadro 2 explicita o registro de 45 disciplinas obrigatórias ofertadas pelas 3 UFAs15, as quais


evidenciam a permissiva flexibilização na oferta dos conteúdos – prevista nas Diretrizes do Ministério
da Educação, de 200216 – seja na organização da semestralidade, ou na distribuição dos conteúdos e
na incidência das matérias básicas17, as quais não se encontram presentes em sua totalidade nos PPCs
analisados. Elementar ressaltar que a previsão das matérias básicas não suprime a autonomia dos cursos e
das universidades no planejamento curricular, pois se trata de um aparato político no processo de formação
profissional e na tentativa de manutenção hegemônica dos pressupostos teórico-metodológicos que
tomaram solidez a partir dos anos 1990, essencialmente com a Lei de Regulamentação da profissão, com
o Código de Ética (1993) e com as Diretrizes Curriculares da ABEPSS (1996).
Destaca-se, nessa esteira, algumas tendências reveladas na análise do ensino dos Fundamentos do
Serviço Social, sistematizados nas disciplinas elencadas no Quadro 2:
a) No tocante aos Núcleos de Fundamentos, que constituem e consolidam os Fundamentos do
Serviço Social, apenas 2 grupos de disciplinas18 apontadas não a compõem, o que demonstra
que aproximadamente 94% das disciplinas previstas nas grades curriculares fazem menção aos
elementos que assentam as bases e alicerces profissionais, seja em termos de formação, seja em
termos de trabalho profissional;
b) A relação entre profissão e realidade – que se trata de um dos expressivos ganhos das atuais
Diretrizes em relação às de 1982 – é privilegiada, uma vez que está explícito o reconhecimento
de que a profissão se faz na realidade e não sobre a realidade, para o qual carece de mediações
que perpassam o trabalho profissional. Sua representação pode ser concretada em exemplos
como “Realidade Social e questões contemporâneas”, “Análise de Conjuntura Socioeconômica”,
“Teorias explicativas da Realidade”, “Formação Social e Econômica”, “Trabalho e Sociabilidade”,
“Movimentos Sociais/Classes e Movimentos Sociais/Laboratório de Práticas Coletivas e
Movimentos Sociais”, “Laboratório de Processos Analíticos da Realidade” e “Economia Política e
Capitalismo/Configurações da Sociedade Capitalista” – relativas à apreensão da realidade e suas
múltiplas interfaces que compõem a vida social, sustentadas em aparato teórico-metodológico
– e “Oficina de Trabalho Profissional/Laboratório de Processos Interventivos do Serviço Social/
Processos Interventivos com Sujeitos Coletivos/Processos Interventivos com Famílias”, “Gestão
e Planejamento do Trabalho Profissional”, “Introdução aos Processos de Trabalho do Assistente
Social/Processo de Trabalho e Serviço Social/Laboratório de Processos de Trabalho do Assistente
Social” – atinentes às mediações com o trabalho profissional;
c) A presença, na totalidade dos PPCs analisados, da disciplina “Questão Social”, o que indica o
seu reconhecimento enquanto objeto profissional e elemento fundante da profissão no bojo
do desenvolvimento do capitalismo monopolista, que resulta em inflexões do reordenamento
das relações entre capital e trabalho, das respostas do Estado e da organização política da classe
trabalhadora;
d) A previsão, em todas as UFAs, do Estágio Supervisionado e do Trabalho de Conclusão de Curso,
atividades curriculares elementares do processo de formação em Serviço Social, que permitem a
aproximação do discente-estagiário/a aos espaços de inserção sócio-ocupacional do/a assistente
social, mediante o acompanhamento de supervisores/as de campo e acadêmico/a, e a consolidação
da síntese teórico-crítica do processo formativo, a partir de temática eleita pelo/a próprio
discente;
e) A superação, em todos os PPCs, do isolamento e da abordagem autonômica do eixo “História,
Teoria e Método”, prevalecendo um novo tratamento integrado e consubstanciado na sua
indispensável unidade dialética;
f) A ausência, na UFA 2, da disciplina nominada “Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos
do Serviço Social”, sendo que nessa evidencia-se a presença das disciplinas “Teorias explicativas
da realidade” e “Construção da Identidade do Assistente Social”, cujos conteúdos programáticos,
entende-se, remetem ao debate sobre a particularidade do Serviço Social em âmbito histórico,
teórico e metodológico. Ademais, a ausência dos conhecidos FHTMs demarca a opção política da

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


Tendências atuais no ensino dos Fundamentos do Serviço Social 9

universidade, ao imprimir a tentativa de ruptura com a temporalização fragmentada em décadas,


tão comum nos currículos e na abordagem da disciplina;
g) O aparecimento da nomenclatura “Processos de Trabalho do Assistente Social”, que embora
assim se encontre nas Diretrizes de 1996, os debates e produções contemporâneas em âmbito
profissional deram conta de reconhecer, a partir do adensamento da leitura marxiana, que os
processos de trabalho são coletivos, portanto, não pertencem a uma ou outra categoria – com
isso, não são dos/as assistentes sociais e tampouco esses desenvolvem o trabalho profissional de
forma isolada, mas como parte de um trabalho combinado e coletivo. Nessa via, os/as profissionais
assistentes sociais se inserem em processos de trabalho;
h) A exiguidade no trato da formação social brasileira – que aparece de forma transversal nas
disciplinas, todavia de forma exígua –, em suas particularidades sociais, culturais, políticas e
econômicas. É nessa via que se percebe a desaparição de debates como colonialidade, economia
periférica, dependência, questão racial e formação do mundo do trabalho, fulcrais para assentar
as bases que configuram a formação brasileira e as particularidades do diálogo entre Estado e
sociedade;
i) A ausência do debate sobre pensamento pós-moderno e seus impactos profissionais, seja em
termos de formação, ou em termos de trabalho profissional. A referência não é de menção
ao conservadorismo, mas às discussões que explicitem os riscos e perigos de incorporação do
pensamento pós-moderno e do ecletismo, de modo a evitar os resvalos sincréticos;
j) O diminuto trato ao eixo técnico-operativo na UFA 1, considerando que a disciplina “Processo de
Trabalho” é a única que prevê em seu ementário o diálogo concreto com o trabalho profissional.
Sem o fito de hierarquizar o operativo em detrimento do teórico, a formação teórico-metodológica
prescinde da construção de mediações teórico-práticas para dar vivacidade às teorizações que, por
sua natureza, constituem a base teórica sólida à luz de uma “concepção de homem e de mundo”.
Pelo caráter profissional, essa base precisa ser transposta para seus processos interventivos, de
modo a alcançar o miúdo do cotidiano, em sua dimensão concreta e contraditória, para não tornar
a formação teoricista e deslocada de um de seus fundamentos, a realidade social.
Na direção aludida, são notórios os esforços para o abandono da concepção tricotômica entre
história, teoria e método, no âmbito dos PPCs analisados. Sobretudo, o desafio impelido está na efetiva
observância nos processos formativos e pedagógicos, uma vez que a previsibilidade não garante sua
operacionalização, a qual, aliás, pode ratificar o pensamento formal-abstrato na formação profissional e,
consecutivamente, torna-se reflexo, em termos de trabalho profissional, se a incorporação da razão crítico-
dialética não ultrapassar o formalismo instrumental na captura de mediações à apreensão crítica da realidade
social.

A profissão não tem o poder de revelar-se a si mesma; só pode ser desvelada no


rompimento com o profissionalismo estreito e endógeno, para o amplo horizonte do
movimento da sociedade da qual é parte e expressão. Imperativo, pois, compreender
a profissão como um processo, ou seja, ela se transforma ao se transformarem as
condições e relações nas quais se inscreve, o que aponta para a necessidade de
contextualizar sempre o significado social da profissão em cada conjuntura histórica,
identificando as novas mediações que operam alterações nos processos de reprodução
da vida social, âmbito privilegiado do trabalho profissional, configurando um novo
perfil de demandas postas à profissão e de respostas que ela constrói (ABESS/CEDEPSS,
1995, p. 15).

Fugir das amarras fragmentárias e reducionistas, – as mais descomplicadas de serem operacionalizadas


porque não exigem mediações, haja vista que se sustentam em fundamentos antiontológicos – e mergulhar
na dinâmica crítico-dialética dos Fundamentos do Serviço Social é tarefa constante e implica na superação
(a) do teoricismo, entendido como a apropriação idealista do real, em que a transmissão de conteúdos
teóricos bastam para o domínio de sólido referencial teórico, em face da centralidade teórica em detrimento

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


10 Marileia Goin

do seu diálogo fecundo com a realidade social; (b) das abordagens metodologistas e o privilégio do debate
de instrumentos, técnicas e estratégias enquanto constitutivas da dimensão técnico-operativa, que não se
basta por ela mesma, uma vez que só pode ser entendida se articulada às dimensões teórico-metodológica
e ético-política; e (c) das abordagens evolucionistas, cronológicas e etapistas, restritas no predomínio do
passado sobre o presente19.
O ponto cêntrico do debate sobre Fundamentos do Serviço Social está na incorporação da dinâmica
dialética, própria da matriz marxiana, que não dissociabiliza História, Teoria e Método e tampouco prioriza
um sobre o outro ou os fragmenta. Apenas o esforço nesse que se denomina de ponto cêntrico possibilita
ultrapassar a barreira da abordagem mecanicista, idealista, estruturalista e determinista e adentrar no
campo fecundo da abordagem dialética.

Notas finais de um debate inconcluso

O debate acerca dos Fundamentos do Serviço Social, indubitavelmente, permanece inconcluso. Talvez
aqui resida o desafio mais robusto à profissão atualmente, uma vez que o distanciamento da apreensão
dialética dos Fundamentos resulta, não somente, em equívocos teórico-conceituais, mas nas sendas que se
abrem às tendências marxistas-estruturalistas, funcionalistas ou às críticas infundadas de que o marxismo
“não dá conta da realidade” – típicas do pensamento pós-moderno. José Paulo Netto (2016, p. 67, grifos
do autor) é categórico ao afirmar que

o neoconservadorismo próprio às posturas pós-modernas constituiu e constitui


um vetor de erosão das bases do projeto ético-político e vem conferindo verniz de
legitimação a concepções e práticas que, invocando este projeto, tendem efetivamente
a pô-lo em questão. E, por via de consequência, não creio ser razoável [...] vislumbrar
a emergência de uma inflexão na atual direção social da profissão, reversão que, a
meu juízo, instaurará o quadro de uma profunda regressividade no movimento do
Serviço Social no Brasil.

A articulação entre história, teoria e método permite que a profissão olhe pelo “espelho retrovisor”
numa alusão contemplativa do passado e dos seus avanços, mas também possibilita que se constitua num
momento necessário para situar por onde andar. Isso porque ele revela as possibilidades concretas de seguir
adiante. Sobretudo, é o aceite ontológico e dialético que permite ultrapassar a contemplação, de cariz
fetichizado e repetitivo, para adentrar nos fecundos desafios postos pelo tempo presente, sem negar-lhe
as disputas imersas nesse contexto – teóricas e de projetos –, mas asseverando o gozo de sua hegemonia,
pelo menos no campo acadêmico-profissional.

Referências
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL (ABEPSS). Proposta Básica para o Projeto de
Formação Profissional. Recife: ABESS/CEDEPSS, 1995.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL (ABEPSS). Diretrizes gerais para o Curso de
Serviço Social (Com base no Currículo Mínimo aprovado em Assembleia Geral Extraordinária de 8 de novembro de 1996).
Rio de Janeiro, 1996. Disponível em: http://www.abepss.org.br/files/Lei_de_Diretrizes_Curriculares_1996.pdf.
Acesso em: 27 jul. 2019. https://doi.org/10.26512/ser_social.v14i30.12988

CARDOSO, Franci Gomes. Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos do Serviço Social: tendências quanto à
concepção e organização de conteúdos na implementação das diretrizes curriculares. Temporalis, Brasília, ano VII, n. 14,
p.31-53, jul.-dez. 2007.

GOIN, M. Fundamentos do Serviço Social na América Latina e no Caribe: conceituação, condicionantes sócio-históricos e
particularidades profissionais. Campinas/SP: Papel Social, 2019.

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


Tendências atuais no ensino dos Fundamentos do Serviço Social 11

IAMAMOTO, Marilda Vilella. Renovação e conservadorismo no Serviço Social: ensaios críticos. 9. ed. São Paulo: Cortez,
2007.

IAMAMOTO, Marilda Vilella; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação
histórico-metodológica. 25. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

IAMAMOTO, Marilda Vilella. A formação acadêmico-profissional no Serviço Social brasileiro. Serviço Social e Sociedade,
São Paulo, n. 120, p. 609-639, out./dez. 2014. https://doi.org/10.1590/0101-6628.001

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Sinopse estatística da educação
superior: graduação. Brasília, 2017. Disponível em: http://inep.gov.br/censo-da-educacao-superior. Acesso em: 25 set.
2019. https://doi.org/10.1590/s1413-24782008000200007

MOTA, Ana Elizabete. 80 anos do Serviço Social brasileiro: conquistas históricas e desafios na atual conjuntura. Serviço
Social & Sociedade, São Paulo, n. 128, p. 39-53, jan./abr. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n128/0101-
6628-sssoc-128-0039.pdf. Acesso em: 01 set. 2019. https://doi.org/10.1590/0101-6628.092

NETTO, José Paulo. Para uma história nova do Serviço Social no Brasil. In: SILVA, Maria Liduína de Oliveira (org.). Serviço
Social no Brasil: história de resistências e de ruptura com o conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2016. https://doi.
org/10.1590/0101-6628.080

SIMIONATTO, Ivete. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos do Serviço Social. Temporalis, Brasília, ano IV, n. 8,
p. 31-42, jul.-dez. 2004.

YAZBEK, Maria Carmelita. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos do Serviço Social. In: CONSELHO FEDERAL DE
SERVIÇO SOCIAL (CFESS); Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS). Serviço Social: direitos
sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. p. 143-163. https://doi.org/10.1590/0101-6628.140

YAZBEK, Maria Carmelita. Fundamentos Históricos e Teórico-metodológicos e as tendências contemporâneas no Serviço


Social. In: GUERRA, Yolanda et al. Serviço Social e seus fundamentos: conhecimento e crítica. Campinas/SP: Papel Social,
2018. p. 47-84. https://doi.org/10.20396/sss.v9i2.8634892

Notas
Articula conhecimentos que possibilitam a apreensão do ser social enquanto totalidade histórica, de modo a situar historicamente o
1

processo de constituição e desenvolvimento do modo de produção capitalista. Ao abordar as teorias modernas e contemporâneas, fornece
os componentes que serão particularizados nos demais núcleos de fundamentos.
2
Articula conhecimentos relativos às particularidades da formação social brasileira, de modo a explicitar suas características econômicas,
políticas, sociais e culturais, orientada pelas faces agrária e urbana.
3
Articula conhecimentos para subsidiar o trabalho profissional competente, ético e crítico, fundamentado a profissão como especialização
do trabalho coletivo, partícipe de processos de trabalho, que atrela à sua dimensão técnico-operativa a intelectiva e ontológica, teórica e
politicamente referenciada.
4
A definição pelas regiões foi intencional, na medida em que elas estabelecem vínculos medulares com a autora, seja em termos de formação,
seja em termos de trabalho profissional – nesse último, a docência.
5
A definição da amostra deu-se a partir das instituições mais antigas de cada região, com ampla trajetória na formação graduada e pós-
graduada. Em face de uma das regiões a universidade mais antiga distanciar-se do critério estabelecido, optou-se pela segunda universidade
mais antiga. Por isso, de modo a evitar a exposição das universidades pesquisadas – embora não haja prejuízo, em termos éticos, no caso de
uma possível identificação –, serão identificadas nessa produção como Unidade de Formação Acadêmica 1 (UFA 1), Unidade de Formação
Acadêmica 2 (UFA 2) e Unidade de Formação Acadêmica 3 (UFA 3).
6
O pós-doutoramento foi realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), sob supervisão da Professora Dra. Maria
Carmelita Yazbek, e contou com Bolsa CAPES, fruto do “Prêmio CAPES de Teses, Edição 2017”, na área “Serviço Social”.
7
Em caráter complementar, vale lembrar que as teorias sociais constituem matriz explicativa da realidade de forma totalizante, que incorpora
a dimensão filosófica e permite a profissão fazer o movimento de desocultamento da realidade. Cada teoria tem um método de abordar a
realidade e de explicar o ser social burguês, em seu processo de constituição e reprodução. A teoria social, assim, é um constructo intelectual
e proporciona explicações aproximadas da realidade, cujo padrão de elaboração é o método.
8
Destaca-se que aqui não estão reportados os números de polos que ofertam Serviço Social na modalidade à distância, mas de instituições
no Brasil.
9
26 estados e o Distrito Federal.
10
Pressupõe o uso de soluções inovadoras no trato com os “problemas sociais”. Trata-se, todavia, de uma reedição dos clássicos problemas
de caráter funcionalista, associado ao uso de ideias criativas à sua solução.
11
Indispensável registrar que as UFAs 2 e 3 encontram-se me processo de revisão curricular, sendo seus PPCs datados de 2008 e 2009,
respectivamente. A UFA 1 tem seu PPC vigente datado de 2011.

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


12 Marileia Goin

12
A disciplina relativa à trabalho foi inserida na “Questão Social e Serviço Social”, por trata-se do eixo central “Questão Social”.
13
Embora entende-se que os processos de trabalho são coletivos e não do profissional, a indicação exposta trata-se da nomenclatura adotada
no Projeto Pedagógico do Curso (PPC).
14
Idem nota anterior.
15
A UFA 1 associa a oferta de 140 créditos de disciplinas obrigatórias, o que corresponde a 70% dos créditos (2100 horas) para integralização
do curso, a outros 60 na modalidade optativa (900 horas), das quais 24 créditos (360 horas) são de módulo livre – disciplinas de módulo
livre são aquelas que podem ser cursadas em qualquer departamento da universidade, sem necessidade de estarem previstas no Projeto
Pedagógico do Curso em formação.
16
As Diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 2002, esvazia o conteúdo político imerso das Diretrizes da ABEPSS, as quais
assentam o direcionamento ético e político da formação profissional.
17
Indicadas no item 3.2 das Diretrizes da ABEPSS, as matérias básicas Sociologia, Ciência Política, Economia Política, Filosofia, Psicologia,
Antropologia, Formação Sócio-Histórica do Brasil, Direito, Política Social, Acumulação Capitalista e Desigualdades Sociais, Fundamentos
Históricos e Teórico-Metodológicos do Serviço Social, Processos de Trabalho do Serviço Social, Administração e Planejamento em Serviço
Social, Pesquisa em Serviço Social e Ética Profissional podem ser tratadas em disciplinas, seminários temáticos, oficinas/laboratórios e
atividades complementares (monitorias, pesquisa, extensão, seminários, etc.), os quais são considerados componentes curriculares e
mecanismos formativos (ABEPSS, 1996).
18
“Introdução ao Pensamento Teológico/Cultura Religiosa” – em que pese a herança institucional, que a institui enquanto disciplina obrigatória,
independentemente da área ou curso de formação em nível graduado – e “Empreendedorismo e Responsabilidade Social”.
19
Como lembra Netto (2016), a defesa do projeto ético-político não se basta pela mera reiteração e retórica. É preciso investir na pesquisa e
na elaboração de uma nova história, uma vez que as condições que gestaram e constituíram o conhecido Projeto ético-político não são as
mesmas da virada do Século. Há que debruçar no estudo dos rebatimentos dessas mudanças na profissão e de modo a profissão processou
tais impactos.

Recebido em: 11/10/2019


Aprovado em: 08/11/2019.
Publicado em: 30/01/2020.

Correspondência para:
Universidade de Brasília (UnB)
Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Serviço Social
Campus Universitário Darcy Ribeiro – Asa Norte
70910-900, Brasília, DF, Brasil

Autora:
Marileia Goin
Assistente Social pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2006). Mestre em Serviço Social pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS, 2016). Pós-Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP, 2019). Docente do Curso de Serviço Social
da Universidade de Brasília (UnB).
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-4859-3098
E-mail: mari.goin@hotmail.com

Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019


O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL:
O PROJETO ABEPSS ITINERANTE

Social Work Fundamentals Debate: the itinerant ABEPSS project

Rodrigo Teixeira*
https://orcid.org/0000-0002-2993-5294

RESUMO
O artigo tem por objetivo apresentar um breve balanço das oficinas da terceira edição Projeto ABEPSS
Itinerante, de 2016, cujo tema foi o debate dos fundamentos do Serviço Social. O ABEPSS Itinerante é uma
estratégia política e pedagógica para a ampliação e difusão da lógica que sustenta as Diretrizes Curriculares.
O artigo estrutura-se a partir de um breve histórico das edições anteriores do Projeto (2012 e 2014); o perfil
das/os participantes das oficinas de 2016; e aponta alguns desafios ao debate dos fundamentos do Serviço
Social. A metodologia utilizada foi a análise dos seis relatórios, um de cada regional da ABEPSS. Conclui-se
pela necessária continuidade do projeto, por maior disseminação da proposta, apontando alguns
elementos para as ações da entidade e das Unidades de Formação Acadêmicas.

PALAVRAS-CHAVE
Fundamentos do Serviço Social. ABEPSS Itinerante. Formação Profissional. Trabalho e Formação.

ABSTRACT
The article aims to present a brief overview of the workshops of the third edition of the ABEPSS Itinerant
Project, 2016, whose theme was the debate on the fundamentals of Social Work. ABEPSS Itinerante is a
political and pedagogical strategy for the expansion and diffusion of the logic that supports the Curricular
Guidelines. The article is structured based on a brief history of the previous editions of the Project (2012 and
2014); the profile of the 2016 workshop participants; and points out some challenges to the debate on the
fundamentals of Social Work. The methodology used was the analysis of the six reports, one from each
ABEPSS regional. It concludes by the necessary continuity of the project, by greater dissemination of the
proposal, pointing out some elements for the actions of the entity and the Academic Training Units.

KEYWORDS: Fundamentals of Social Work. ABEPSS Itinerant. Professional Training. Work and Professional
Training.

Submetido em: 30/4/2020. Aceito em: 19/10/2020.

*
Assistente Social. Doutor em Serviço Social. Professor da Universidade Federal Fluminense - Rio das
Ostras. (UFF, Rio das Ostras, Brasil). Rua Recife, Lotes, 1-7, Jardim Bela Vista, Rio das Ostras (RJ), CEP.:
28895-532. E-mail: rodrigosersocial@gmail.com.

DOI 10.22422/temporalis.2020v20n40p57-69

© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2019 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative
Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o
material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo
que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
77
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
RODRIGO TEIXEIRA

INTRODUÇÃO

A Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), nos


últimos anos, desenvolveu um projeto que visa difundir a lógica das Diretrizes

O
Curriculares por meio de uma política de educação permanente1 chamado ABEPSS
Itinerante. Esse projeto é uma estratégia política e pedagógica na defesa da direção social
crítica da profissão frente à precarização da formação e do trabalho profissional.

Trata-se de uma estratégia política no sentido de permitir uma aproximação da ABEPSS


com as Unidades de Formação Acadêmicas (UFA’s); de conhecer mais de perto as
dificuldades e as particularidades de cada regional da ABEPSS; articular-se com os sujeitos
envolvidos na formação profissional; ampliar o número de filiações à entidade (individuais
e institucionais); apresentar suas ações concretas; possibilitar um espaço de articulação
entre as escolas; e reafirmar a direção social e política da formação profissional.

É uma estratégia pedagógica no sentido de aprofundar teoricamente os temas


propostos; reafirmar a matriz teórica que sustenta o projeto de formação profissional a
partir das particularidades sócio-históricas das regionais; permitir uma análise dos
processos históricos que a profissão construiu; e conhecer as tendências e os avanços nos
debates acerca do trabalho e da profissão. Além de sua estratégia política e pedagógica,
o Projeto ABEPSS Itinerante é também um amplo espaço de investigação sobre as
tendências contemporâneas do trabalho e da formação profissional e que deve ser
explorado pela entidade e por pesquisadores da área.

Nesse sentido, os objetivos desse artigo são apresentar o perfil dos participantes e os
principais desafios identificados nos relatórios, da terceira edição do projeto, que incidem
no debate dos Fundamentos do Serviço Social. Foram analisados todos os relatórios
regionais do Projeto ABEPSS Itinerante, do ano de 2016, das seis regionais da ABEPSS
(Centro-Oeste, Leste, Nordeste, Norte, Sul e Sul I). Destaca-se que esse estudo foi parte
da pesquisa para a tese de doutorado finalizada e apresentada em agosto de 20192. Os
relatórios permitiram um aprofundamento da análise, uma aproximação à realidade
concreta dos cursos, dos espaços sócio-ocupacionais, dos campos de estágio e dos
desafios à direção de um projeto de profissão vinculado a uma perspectiva crítica.

Muitos são os desafios para construir ações na direção de um projeto de formação


profissional com qualidade. Em meados dos anos 1990, quando este projeto passa a ser
difundido na categoria profissional, avança também a ofensiva capitalista de saída da
crise inaugurada nos anos 1970. Importante elencar que a conjuntura atual desencadeada
a partir de um período de crise do capital da década de 1970 do século XX alterou o
padrão de acumulação capitalista (HARVEY, 2012) e, com este, a construção de novos
elementos sociais, culturais, econômicos e políticos, como a emergência de um
capitalismo flexível, a intensificação do capitalismo financeiro, a transferência da
acumulação de capital ao setor de serviços em detrimento da produção, entre outros
elementos3.

1
A concepção de educação permanente pode ser encontrada em CFESS, ABEPSS, ENESSO (2012).
2
A análise dos dados para a tese foi autorizada pela entidade.
3
Ver Antunes (1995), Behring e Boschetti (2006), entre outros.
78
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

Nos anos de 1980, no mundo, e, especificamente, nos anos 1990, no Brasil, vivenciou-se
uma intensificação do neoliberalismo, que traz como repercussão: a prioridade imediata
para deter a inflação por meio da recuperação da taxa de lucros; a derrota do movimento
sindical; o crescimento das taxas de desemprego, concebido como um mecanismo
natural e necessário de qualquer economia eficiente; o aumento das desigualdades no
conjunto dos países periféricos4 (ANDERSON, 1995).

Em tempo de capital fetiche,

[...] o processo de financeirização indica um modo de estruturação da economia


mundial. A esfera estrita das finanças, por si mesma, nada cria. Nutre-se da
riqueza criada pelo investimento capitalista produtivo e pela mobilização da
força de trabalho no seu âmbito (IAMAMOTO, 2009, p. 24).

Os elementos da conjuntura colocam desafios concretos para consolidar a direção social


nas ações do Serviço Social. A precarização dos postos de trabalho, a contratação
temporária ao invés da contratação efetiva via concursos públicos, a perseguição política
nos cargos públicos, o patrulhamento ideológico, os valores pós-modernos e o cariz
neoliberal das políticas sociais pressionam o profissional no tensionamento entre o
projeto profissional e seu estatuto de assalariamento5. Por isso o debate sobre os valores
desse projeto são essenciais para a análise dos limites e possibilidades, da coerência ética
entre discurso e ação profissional, debate que deve ser aprofundado na formação
profissional. Segundo Iamamoto (2009), ocorre uma “[...] tensão entre projeto ético-
político e alienação do trabalho, indissociável do estatuto assalariado” (IAMAMOTO,
2009, p. 39).

Cabe destacar que a terceira edição do Projeto ABEPSS Itinerante aconteceu em meio à
conjuntura de Golpe Jurídico Midiático Parlamentar, ocorrido em 2016, e que segue em
curso6. Nessa conjuntura, fortalecer o projeto ABEPSS Itinerante, em todos os estados, e
chegar cada vez mais próximo dos diferentes sujeitos envolvidos na formação
profissional transforma-o numa resistência política de maior grandeza no interior do
Serviço Social.

Este artigo apresentará um breve histórico das últimas edições e os dados quantitativos e
qualitativos do Projeto ABEPSS Itinerante, de 2016. Os dados quantitativos demonstraram
que o Projeto tem ampliado a participação dos diferentes sujeitos da formação, assim
como permitiu, mesmo que de maneira superficial, a construção de um perfil dos
participantes da edição pesquisada, com o intuito de entender melhor seus resultados. Os
dados qualitativos permitiram a construção de desafios que impactam e dificultam a
direção social expressa na lógica que sustenta e estrutura as Diretrizes Curriculares da
ABEPSS, de 1996. Tais desafios particularizam-se nas regionais da ABEPSS, a partir das
condições sócio-históricas distintas do desenvolvimento dos cursos, da intervenção do

4
Este artigo é escrito em meio ao isolamento social para contenção da disseminação do novo coronavírus,
Covid-19. Tal pandemia mundial pode ocasionar uma alteração na forma de intervenção do estado. Há
diferentes tendências acerca desse debate, que não cabe nessa nota, contudo a saída pós-crise pandêmica
dependerá das forças organizadas e em disputa. Sabe-se que muito irá alterar-se em maior ou menor
medida na intervenção do estado.
5
Ver Iamamoto (2009) e também pesquisas recentes que podem ser encontradas em Raichellis (2020) e
Raichellis, Albuquerque e Vicente (2018).
6
Compartilha-se a análise do Golpe de 2016 a partir dos autores Dehmier (2017); Brás (2017) entre outros.
79
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
RODRIGO TEIXEIRA

Estado nas políticas sociais e da articulação da categoria profissional como sujeito


coletivo.

ABEPSS ITINERANTE: HISTÓRICO E DESENVOLVIMENTO

Ao buscar a origem do projeto ABEPSS Itinerante na voz de seus sujeitos protagonistas, a


presidente da ABEPSS, gestão 2011-2012, Claudia Mônica dos Santos, relata, no
documentário ABEPSS 70 Anos7, que a ideia iniciou ainda na gestão anterior (2009-2010),
na regional leste da ABEPSS. Antes da oficina regional, houve a iniciativa de construir um
minicurso sobre o projeto de formação profissional.

A ABEPSS Itinerante era a nossa menina dos olhos, a gente gostava muito dessa
ideia, foi muito interessante a forma com que ela surgiu. Por que ela surgiu na
oficina regional da ABEPSS Leste, na gestão anterior, essa oficina regional foi em
Juiz de Fora. Estávamos organizando a oficina regional, e nós tivemos uma ideia, a
oficina começaria às duas horas da tarde de segunda-feira. E eu coloquei: - vamos
fazer um minicurso de manhã sobre o projeto de formação profissional? Porque a
gente já estava avaliando, muitas pessoas novas, formando, fazendo mestrado,
doutorado, indo para a docência... Conheciam os documentos, liam, procuravam
conhecer o projeto de formação. Mas não conheciam [...] toda a história do
movimento de construção do projeto de formação profissional, que culminou nos
documentos [...] E aí tivemos uma ideia. Foi muito engraçada. Olha, não vai ter
muita gente, vamos ter [...] 30 vagas, porque a gente queria fazer um minicurso em
formato de oficina, então tem que ser pouca gente. Vamos abrir vagas para 30
pessoas. Não vai encher [...] abrimos a inscrição. No primeiro dia, mais de 100
pessoas querendo fazer. [...] Tivemos que abrir 04 turmas.

Foi com o êxito dessa experiência que, conforme relata Claudia Mônica dos Santos, ao
construírem a proposta de gestão 2011-2012, o nome do Projeto surgiu e compôs as ações
estratégicas daquela gestão. Segundo seu depoimento, o projeto ABEPSS Itinerante
surgiu como uma estratégia contra a precarização da formação e como resistência frente
ao desmonte do ensino superior8.

Em 2011, após um longo debate sobre a avaliação do processo de implementação das


Diretrizes Curriculares9, o objetivo do projeto ABEPSS Itinerante foi

[...] fortalecer as estratégias político-pedagógicas de enfrentamento à


precarização do ensino superior, por meio da difusão ampla dos princípios,
conteúdos e desafios colocados para a consolidação das Diretrizes Curriculares
como instrumento fundamental na formação de novos profissionais (reforço dos
eixos: Fundamentos, Trabalho, Questão Social, Ética, Pesquisa e Ensino da
Prática) (ABEPSS, 2011, p. 15).

A primeira edição foi planejada e discutida com vários sujeitos profissionais, no ano de
2011, e desenvolvida nas regionais, no ano de 2012. Teve como público-alvo “[...] docentes
dos cursos de Serviço Social, supervisores de estágio, membros de comissões de
formação dos CRESS e discentes de mestrado e doutorado na área” (ABEPSS, 2011, não
paginado).

7
DOCUMENTÁRIO ABEPSS 70 anos. 14 maio 2017. 1 vídeo (1:33:36). Publicado pelo canal TV ABEPSS.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j1f9a_9NLiw. Acesso em: 20 mar. 2020.
8
O detalhamento das motivações para o desenvolvimento do projeto pode ser encontrado em ABEPSS
(2011).
9
Pesquisa desenvolvida em 2006 e publicada na revista Temporalis n. 14 (ABEPSS, 2007).
80
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

Em formato de curso, com professores de referência em cada área, teve como título
ABEPSS Itinerante: as diretrizes curriculares e o projeto de formação profissional. A
metodologia foi desenvolvida em sete módulos articulados, um projeto arrojado e de
fôlego que contou com uma carga horária de 60 horas presenciais. A avaliação foi
extremamente positiva. Apontou que a experiência coletiva do Projeto ABEPSS Itinerante
mostrou-se como um elemento aglutinador de esforços em torno do fortalecimento do
projeto de formação profissional10.

Na continuidade do projeto, em 2014, a gestão da ABEPSS desenvolveu o tema dos


Estágios Supervisionados nas oficinas do Projeto ABEPSS Itinerante com o título Estágio
Supervisionado em Serviço Social: desfazendo os nós e construindo alternativas.

A direção nacional, na gestão 2013-2014, considerando a avaliação do formato e com o


intuito de realizar o Projeto com um dinamismo maior e com maior abrangência no país,
desenvolveu a metodologia de oficinas para os encontros do Projeto ABEPSS Itinerante,
em sua segunda edição. Com carga horária de 16h, dividido em 02 dias de 8h, cada
regional desenvolveu as oficinas em articulação com o CRESS e a ENESSO. A avaliação foi
muito positiva, por envolver distintos sujeitos da formação profissional, incluindo nessa
edição discentes de graduação, além de docentes, supervisores de campo e
representantes dos CRESS’s.

Como resultado da segunda edição do projeto ABEPSS Itinerante, foi apontada a


necessidade do debate sobre a lógica de articulação entre conhecimento e realidade, a
partir da unidade entre história, teoria e método nos Fundamentos do Serviço Social. O
encaminhamento da segunda edição foi a continuidade do projeto ABEPSS Itinerante
com a temática dos Fundamentos do Serviço Social (TEIXEIRA; GURGEL; AQUINO, 2016).

A ABEPSS, gestão 2015-2016, realizou a terceira edição do Projeto nos meses de julho e
novembro de 2016, cujo título foi Fundamentos do Serviço Social em Debate: formação e
trabalho profissional. A Comissão Organizadora do Projeto manteve, nesta terceira
edição, o formato bem avaliado das oficinas de 20h, possibilitando o debate a partir da
realidade das UFA’s. Os conteúdos foram divididos em três unidades: 1) O processo de
construção e implementação das Diretrizes Curriculares da ABEPSS na particularidade da
sociedade brasileira frente às atuais transformações societárias; 2) A concepção dos
Fundamentos do Serviço Social: principais mediações e desafios da formação e do
trabalho profissional; 3) Estratégias de resistência na sustentação do projeto ético-
político profissional frente ao avanço do conservadorismo na sociedade e na profissão
(ABEPSS, 2016).

A partir das análises dos relatórios, foi possível destacar como avanços a elaboração de
dois vídeos publicados pela ABEPSS, no seu canal da rede social youtube TV ABEPSS. O
primeiro11, referente à chamada das/os participantes com professoras/es de 04 regionais
da ABEPSS; o segundo12, que compôs a metodologia das oficinas, se tratou de uma

10
A avaliação completa, os principais dados acerca dos sujeitos envolvidos e os encaminhamentos podem
ser encontrados em Abreu (2013).
11
PROJETO ABEPSS ITINERANTE. 1 vídeo (5:10). 29 jul. 2016. Publicado pelo canal TV ABEPSS.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wPns1nQ5Gl0&t=6s. Acesso em: 20 mar. 2020.
12
VÍDEO AULA ABEPSS ITINERANTE. 23 ago. 2016. 1 vídeo (55:25). Publicado em Abepss Itinerante.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CSCVzMdzkko&t=28s. Acesso em: 20 mar. 2020.
81
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
RODRIGO TEIXEIRA

videoaula com a Profa. Dra. Rosangela Batistoni, apresentado em todas as oficinas do


Projeto. Outro elemento de importante destaque é que todo planejamento,
desenvolvimento e avaliação foram construídos em conjunto com o Grupo Temático de
Pesquisa da ABEPSS: Serviço Social, Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional.

As análises demonstraram uma avaliação extremamente positiva no que se refere à


metodologia e à temática proposta, assim como a competência teórica e técnica das/os
facilitadoras/es ao conduzirem temas densos e complexos em formato de oficinas. Outro
elemento foi a ampliação da participação estudantil, de fundamental importância, mesmo
entendendo que este espaço é destinado, prioritariamente, a docentes e supervisores/as
de campo. Os desafios às próximas edições foram: a ampliação na divulgação, a
necessidade da ABEPSS estar mais próxima às UFA’s, a garantia de um formato dinâmico
que garanta a qualidade e densidade teóricas.

Dentre os temas elencados para a continuidade do Projeto, o tema dos Fundamentos do


Serviço Social foi proposto como continuidade em quase todos os relatórios. A partir das
tendências identificadas, a ABEPSS, gestão 2017-2018, optou pela ênfase das
competências e atribuições profissionais na articulação com os fundamentos. As oficinas
regionais ocorreram no ano de 2018 com o título “Os Fundamentos do Serviço Social:
atribuições e competências em debate”13.

ABEPSS ITINERANTE DE 2016: SEUS SUJEITOS

As três edições do projeto ABEPSS Itinerante vêm apresentando uma crescente na


quantidade de oficinas desenvolvidas nos estados. Em 2012, foram realizadas 14 turmas
do curso; em 2014, foram realizadas 32 oficinas; e, em 2016, foram realizadas 34 oficinas.
Os estados participantes também aumentaram representativamente. Em 2012, o projeto
foi desenvolvido em 13 unidades federativas, em 2014, foram 23 e, em 2016, foram 25
unidades federativas14.

Para analisar com profundidade os dados qualitativos sobre o Projeto ABEPSS Itinerante,
de 2016, é preciso conhecer o perfil dos participantes dessa terceira edição.

Foram analisados 06 relatórios regionais, fruto das oficinas do Projeto ABEPSS Itinerante,
de 2016, desenvolvidas nos meses de junho a novembro, em todas as Regionais da
ABEPSS. As oficinas ocorrem em 24 estados e no Distrito Federal. Por motivos de logística
local e da própria articulação precária, não foi possível a execução das oficinas nos
Estados do Amapá e Acre. O projeto contou com 34 oficinas. Em decorrência do tamanho
de alguns estados e do número de escolas, algumas unidades da federação realizaram
mais de uma oficina.

A regional Centro Oeste realizou quatro oficinas. No estado de Goiás, foram realizadas
duas oficinas, uma na capital e outra na Cidade de Goiás. O Distrito Federal e Mato Grosso
realizaram uma oficina cada, em suas respectivas capitais. Participaram das oficinas da

13
Para alcançar os objetivos desse artigo, optou-se por trabalhar mais densamente os elementos do Projeto
ABEPSS Itinerante de 2016.
14
Os dados de 2012 podem ser encontrados em Abreu (2013) e o de 2014 em Teixeira, Aquino e Gurgel
(2016).
82
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

regional Centro Oeste 58 pessoas15 de quatro universidades. Os/as participantes


caracterizaram-se em 21 profissionais assistentes sociais16, 20 assistentes sociais
docentes, 16 discentes de graduação e uma representante do CRESS. Das quatro
universidades presentes, três delas são públicas e uma confessional.

A Regional Leste realizou sete oficinas. O Espírito Santo realizou uma oficina em Vitória.
Em Minas Gerais, foram realizadas três oficinas, na capital e nas cidades de Montes Claros
e Uberaba. O Rio de Janeiro realizou três oficinas, uma na capital e as demais nas cidades
de Cabo Frio e Volta Redonda. O total de participantes da regional Leste somou 196
pessoas de 23 UFA’s. A maioria dos/as participantes foi de assistentes sociais docentes, 64
pessoas; seguido por 54 discentes de graduação; 45 profissionais assistentes sociais; 20
discentes de pós-graduação e 13 representantes dos CRESS’s. Das 23 UFA’s presentes, 12
delas eram públicas, 10 privadas e uma confessional.

A Regional Nordeste realizou nove oficinas. O Ceará e a Paraíba realizaram duas oficinas
em cada Estado. No Ceará, ocorreu uma na capital e uma na cidade de Iguatú. Na Paraíba,
ocorreu uma na capital e uma na cidade de Sousa. Nos Estados de AL, BA, PE, SE e RN,
ocorreu uma oficina em cada Estado, todas nas capitais. Participaram das oficinas da
Regional Nordeste 211 pessoas de 58 UFA’s. A regional caracterizou-se por articular o
maior número de UFA’s. Das 211 pessoas, 92 foram assistentes sociais docentes, o maior
índice de participação docente das regionais; seguidos por 47 profissionais assistentes
sociais; 37 discentes de graduação, 14 discentes de pós-graduação e 21 representantes
dos CRESS’s. As UFA´s constituíram-se em 41 unidades privadas: 15 públicas e duas
confessionais.

A Regional Norte realizou sete oficinas. As cidades em que ocorreram as oficinas foram:
Belém (PA), Boa Vista (RR), Manaus (AM), Palmas (TO), Porto Velho (RO), São Luiz (MA) e
Terezina (PI). Em todas as cidades ocorreu 01 oficina. A regional Norte teve um total de
232 pessoas, a maior participação regional nas oficinas. Foram contabilizadas 34 Unidades
de Formação Acadêmicas. Das 232 pessoas participantes, 65 eram assistentes sociais
docentes, 58 profissionais assistentes sociais, 81 discentes de graduação, 15 discentes de
pós-graduação e 13 representantes dos CRESS’s da regional. Das 34 UFA’s, seis delas são
públicas, 26 são privadas e duas são confessionais ou provenientes de fundação
educacional.

A Regional Sul I realizou três oficinas. O Estado do Paraná realizou sua oficina em
Curitiba. Os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul descentralizaram suas oficinas
nas respectivas cidades, Lages (SC) e Caxias do Sul (RS). Participaram das oficinas 101
pessoas de 21 UFA’s. Os/as assistentes sociais docentes que participaram somaram 46, 19
profissionais assistentes sociais, 25 discentes de graduação, duas discentes de pós-
graduação e nove representantes dos CRESS´s. As 21 UFA’s participantes constituíram-se

15
O relatório da regional Centro Oeste não apresentou os dados quantitativos dos Estados de Mato Grosso
e do Distrito Federal. Dessa forma, os dados destas localidades tornaram-se comprometidos.
16
Sabe-se que o indicador Profissionais Assistentes Sociais não é o mais indicado, uma vez que assistentes
sociais são profissionais, regulamentados por legislação específica. Contudo, esse termo foi utilizado para
diferenciar as/os Assistentes Sociais Docentes. Cabe destacar que docentes do curso de Serviço Social são
um dos principais sujeitos a quem se destina o projeto ABEPSS Itinerante. Não foram identificados, nos
relatórios, docentes não assistentes sociais que participaram das oficinas.
83
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
RODRIGO TEIXEIRA

em 11 unidades privadas, sete públicas e três confessionais ou provenientes de fundação


educacional.

A Regional Sul II realizou quatro oficinas: uma na cidade de Campo Grande (MS) e três
oficinas no estado de São Paulo, sendo uma na capital e as demais nas cidades de
Araçatuba e São José do Rio Preto. A regional Sul II contou com a presença de 120
pessoas de 28 UFA’s. Das 120 pessoas, 43 são assistentes sociais docentes, 36 são
profissionais assistentes sociais, 23 discentes de graduação, sete discentes de pós-
graduação e 11 representantes dos CRESS’s. As 28 Unidades de Formação Acadêmicas
constituíram-se em duas públicas, 22 privadas, quatro confessionais ou provenientes de
fundação educacional.

O gráfico a seguir demonstra o número total de participantes por regional.

Gráfico 1: Total de Participantes do Projeto ABEPSS Itinerante por Regional, 2016.

Fonte: Relatórios Regionais do Projeto ABEPSS Itinerante de 2016.

A regional Norte teve a maior incidência de participação, 232 pessoas, 25% do total;
seguidos da Regional Nordeste com 211 pessoas, o que representa 23% do total; a regional
Leste contou com a presença de 196 participantes, 21% do total; a regional Sul II contou
com a presença de 120 pessoas, cerca de 13% do total de participantes; a regional Sul I
teve 101 participantes, 11% do total e a Regional Centro Oeste com 58 pessoas, o que
representou 7% do total.

Outro dado importante que auxilia na caracterização dos sujeitos presentes nas oficinas e
ajuda a entender os dados são as características dos participantes por segmento.
Podemos observar no Gráfico 2.

Gráfico 2: Distribuição dos Participantes por Segmento, 2016.

Fonte: Relatórios Regionais do Projeto ABEPSS Itinerante de 2016.

84
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

Assistentes sociais docentes foi o segmento que mais participou do projeto ABEPSS
Itinerante, em 2016, 330 participantes, 36% do total; os/as discentes de graduação
também tiveram uma participação significativa, 236 participantes deste segmento, 26% do
total; os/as profissionais assistentes sociais17 totalizaram 226 pessoas, cerca de 25% do
total; 68 participantes estavam representando seus respectivos CRESS’s, 7,5% do total; e
58 participantes são discentes de pós-graduação, 6,5% do total.

Esses dados permitem verificar que os debates sobre os Fundamentos do Serviço Social
atingiram um número de assistentes sociais docentes maior que o de assistentes sociais
não docentes, já que o projeto tem por objetivo os/as docentes, prioritariamente. A
participação considerável das/os profissionais assistentes sociais permite, contudo,
dialogar com os dados na relação trabalho e formação profissional.

Os dados revelam que é necessário ampliar a participação das/os discentes de pós-


graduação, uma vez que muitas/os deles são docentes em potencial para os cursos de
Serviço Social em todo o Brasil. Segundo os dados do Relatório Quadrienal da CAPES para
a área de Serviço Social18, publicado em 2017, que compreende o período de 2013 a 2016,
no ano de 2016, havia 2.249 discentes de mestrado e 82819 discentes de doutorado em
Serviço Social, em todo o país. Considerando um total de 3.077 discentes de pós-
graduação em Serviço Social, somente 58 participaram das oficinas do Projeto ABEPSS
Itinerante, o que representa 1,9% do total de discentes, número muito reduzido
considerando a potencialidade de futuras/os docentes, de ampliação das pesquisas em
andamento e da disseminação das Diretrizes Curriculares da ABEPSS entre este
segmento.

O Gráfico 3 permite compreender qual a característica das Unidades de Formação


Acadêmicas (UFA’s) proveniente dos participantes.

Gráfico 3: Distribuição das UFA’s participantes por organização acadêmica, 2016.

Fonte: Relatórios Regionais do Projeto ABEPSS Itinerante de 2016.

As UFA’s privadas participaram em maior quantidade, 110 unidades, 66% do total; as 43


UFA’s públicas corresponderam a 26%; as 13 UFA’s confessionais ou fundações
corresponderam a 8% do total.

17
Os dados dos relatórios não permitem identificar se os/as profissionais assistentes sociais são
supervisores/as de campo ou não.
18
CAPES. Relatório da Avaliação Quadrienal: Serviço Social. Brasília (DF), 2017. Disponível em:
http://www1.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/relatorios-finais-quadrienal-2017/20122017-
Servico-Social-quadrienal.pdf. Acesso em: 12 mar. 2019.
19
Foram subtraídos os números de desligamento e abandono, em ambas as modalidades.
85
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
RODRIGO TEIXEIRA

Segundo os dados do Censo da Educação Superior, de 2016, publicado pelo Instituto


Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o total de cursos em Serviço
Social no Brasil, considerando ensino presencial e a distância, somavam 435 UFA’s. A
ABEPSS, por meio do projeto ABEPSS Itinerante, atingiu mais de 38% das escolas, 166
unidades das 435 totais. Considerando o esforço de grande magnitude da entidade, da
militância de seus membros, da disponibilidade militante de seus facilitadores, uma
entidade que apresenta dificuldades financeiras de maior grandeza, pode-se constatar
um número elevado de escolas que o projeto ABEPSS Itinerante atingiu.

Outro dado importante, que nos ajuda a analisar o impacto do Projeto ABEPSS Itinerante
para os cursos de Serviço Social é a relação das unidades filiadas à ABEPSS e o número de
escolas que participaram do Projeto. Segundo o site da ABEPSS 20, em 2016, eram 41
escolas filiadas, três na regional Centro Oeste, oito na regional Leste, nove na regional
Nordeste, seis na regional Norte, nove na regional Sul I e seis na regional Sul II.

Das 41 escolas filiadas que constavam no site, 38 escolas participaram do Projeto ABEPSS
Itinerante, em 2016; e três escolas não participaram, sendo uma na regional Sul II e duas
na regional Sul I. Assim, aproximadamente, 93% das escolas filiadas à ABEPSS
participaram do Projeto, o que pode demonstrar a adesão das UFA’s filiadas e a
credibilidade da entidade junto a estas escolas.

Contudo, ao constatarmos que 41 escolas eram filiadas à ABEPSS e 407 cursos estavam
aptos a se filiarem21, somente 10,07% das UFA’s eram filiadas à entidade, um número ainda
muito reduzido. Ao deparar-se com a abrangência do Projeto ABEPSS Itinerante, ou seja,
38% do total das escolas, sendo que somente 10% do total são filiadas à entidade, reforça-
se o papel político do Projeto ABEPSS Itinerante. Ou seja, é necessário que o Projeto
possa captar também filiações institucionais à entidade22. Não foram encontrados dados
das/os filiadas/os individuais nos relatórios analisados.

Cabe destacar que das 34 oficinas, 11 delas ocorreram em cidades do interior do país, mais
de 32% das oficinas ocorreram fora das capitais. Esse é um destaque importante para a
análise dos dados, pois permite vir à baila um amplo debate sobre as particularidades do
trabalho e da formação em cidades de médio e pequeno porte, revelando uma necessária
interiorização da ABEPSS. O que chama a atenção nos relatórios é que os debates sobre
mandonismo, autoritarismo, clientelismo, coronelismo, marcas da formação sócio-
histórica do Brasil, foram mais discutidos nas oficinas do interior, não sendo apontados
nos relatórios das oficinas que ocorreram nas capitais. Tais aspectos da formação sócio-
histórica do Brasil não são características particulares do interior, mas transversais à
formação social do país.

20
ABEPSS. Unidades de formação acadêmica filiadas à ABEPSS. Brasília (DF), ©2020. Disponível em:
http://www.abepss.org.br/unidades-de-formacao-academica-filiadas-a-abepss-37. Acesso em: 15 ago. 2018.
21
Segundo o Estatuto da ABEPSS, somente as escolas presenciais cujo Projeto Político Pedagógico do Curso
está condizente às Diretrizes Curriculares da ABEPSS de 1996, estão aptas a se filiarem à entidade.
22
Ao revisitar os dados para a construção desse artigo, foram encontradas 99 escolas filiadas à ABEPSS, em
abril de 2020. Esse dado pode demonstrar que o Projeto ABEPSS Itinerante incide nas filiações, contudo,
merece ainda maiores estudos comparativos entre as UFA’s que participaram e as que se filiaram, ou
regulamentaram-se, nesse período de tempo. ABEPSS. Unidades de formação acadêmica filiadas à ABEPSS.
Brasília (DF), ©2020. Disponível em: http://www.abepss.org.br/unidades-de-formacao-academica-filiadas-a-
abepss-37. Acesso em: 7 abr. 2020.
86
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

De um modo geral, pode-se caracterizar o perfil dos sujeitos que participaram das
oficinas, em sua maioria, assistentes sociais docentes dos cursos de Serviço Social
presencial. Com maior prevalência de assistentes sociais docentes da regional Nordeste.
A maior participação, em geral, encontra-se na regional Norte do país. Os participantes,
em sua maioria, são provenientes das Unidades de Formação Acadêmicas privadas.

PRINCIPAIS DESAFIOS AO DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL


IDENTIFICADOS NOS RELATÓRIOS ANALISADOS

Os relatórios foram encaminhados pelas direções de cada regional. Em alguns, continham


reflexões das/os profissionais que ministraram a oficina, uma iniciativa que muito
contribuiu para a reflexão, ou seja, pesquisadoras/es dos fundamentos apresentando
análises sobre a oficina que ministraram. Há particularidades regionais que, para a
dimensão do artigo, não poderão ser melhor desenvolvidas. Salientam-se aqui, elementos
que versaram em todos os relatórios regionais23:

01) As oficinas ocorreram logo após o Golpe Parlamentar Jurídico e Midiático que o Brasil
enfrentou no ano de 2016, portanto, esse debate não passou incólume. Os retrocessos na
democracia e a onda reacionária do Congresso Nacional foram debatidos em todas as
oficinas. Aparecem nos relatórios sínteses acerca dos debates sobre: a) a prioridade do
indivíduo e dos valores burgueses na votação dos deputados ao impeachment; b) a
retirada de uma presidente eleita e que afeta a frágil democracia construída, a duras
penas, no Brasil; c) a conjuntura de retrocessos nos direitos sociais; d) os movimentos
sociais contestatórios ao impeachment e a organização coletiva dos trabalhadores; e) os
impactos da conjuntura que repercutem no trabalho de assistentes sociais nas políticas
públicas, ocasionando um duplo impacto nas particularidades da profissão. Os elementos
pontuados podem demonstrar que os debates realizados nas oficinas não estavam
apartados de uma perspectiva mais ampla da realidade social. Assim, pode-se constatar
que os debates não foram realizados de forma endogenista24 para a análise da profissão e
da formação profissional;

02) A precarização na formação e no trabalho profissional foi discutida em todas as


oficinas, que se desenvolveram como espaço privilegiado para o intercâmbio de
experiências, de análises aprofundadas acerca das condições de trabalho.

Sobre a precarização na formação profissional, destacam-se os debates acerca do avanço


do ensino a distância, da superficialidade dos conteúdos trabalhados em alguns cursos
presenciais – principalmente os privados e abertos ao capital financeiro –, o
sucateamento do ensino superior público, as precárias condições do trabalho docente e
da dificuldade de estudantes na permanência na universidade.

Acerca da precarização no trabalho profissional, os principais debates podem ser


pontuados da seguinte forma: os baixos salários de assistentes sociais, os duplos ou
triplos vínculos de trabalho, o trabalho intermitente, por contrato, a imposição de metas
a serem alcançadas, número mínimo de atendimentos sociais, e os mais recentes:

23
Realizar-se-á em tópicos para dinamizar e pontuar os principais desafios. Entende-se que cada desafio
poderia ser apreendido em um artigo específico. Há ainda a necessidade de captar as mediações em cada
um tópicos apresentados.
24
Ver mais em Montaño (2007).
87
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
RODRIGO TEIXEIRA

teleatendimento e trabalho remoto. Foi identificado também que o debate da


precarização do trabalho foi realizado em conjunto como o debate da precarização das
políticas sociais que, em período de contrarreforma do Estado, de avanço do
neoliberalismo e da redução do financiamento das políticas sociais, acentuam-se nos
rebatimentos do trabalho profissional e na condição de trabalhadora/or assalariada/o;

03) Os relatórios apontam também que há desafios ao Estágio Supervisionado. Este


segue como um “nó crítico25” na formação profissional. Mesmo depois de uma edição do
Projeto ABEPSS Itinerante sobre Estágio e Supervisão, da atenção da entidade na
elaboração e debates acerca da Política Nacional de Estágios e da permanente
construção do Fórum Nacional de Estágios em Serviço Social – fomentado pela ABEPSS –
esse componente curricular segue como um desafio frente à realidade dos cursos e do
trabalho profissional. São desafios postos pelas condições objetivas para sua execução,
como: as poucas vagas de estágio, a falta de supervisão direta, as condições éticas e
técnicas no trabalho profissional que impactam os estágios, estagiárias/os como mão de
obra barata, entre outras. Ao mesmo tempo, tais desafios são postos nos debates
teórico-metodológicos: a supervisão acadêmica que não debate o campo de estágio, e
sim conteúdos pré-estabelecidos de forma rigorosa no planejamento semestral, o debate
nas supervisões acadêmicas mais voltadas ao planejamento, execução e avaliação das
políticas em detrimento do trabalho profissional, a falta de fóruns de estágio nas UFA´s, a
dificuldade de análise das expressões da questão social nas particularidades dos campos
de estágio, entre outros. Tais elementos não permitem aos discentes, no momento de
estágio, analisar o conjunto das determinações sócio-históricas, nas particularidades do
seu território e das respostas profissionais, comprometendo a análise dos Fundamentos
do Serviço Social e não construindo as necessárias sínteses nesse momento privilegiado
da formação;

04) Identificou-se uma tensão acerca da concepção de história expressa no debate das
Diretrizes Curriculares, e aquela expressa nos Projetos Políticos Pedagógicos dos Cursos
(PPPC).

As Diretrizes Curriculares da ABEPSS, de 1996, avançam na concepção da história como


luta de classes, como ação propriamente humana, em tensionamento constante, e
aponta a necessidade de apreensão das contradições postas na realidade, destacando o
sujeito como protagonista da história26. Alguns relatórios apontaram que a perspectiva
de história ainda está muito colada a uma perspectiva cronológica para a análise da
realidade e da profissão.

Em algumas oficinas, as/os participantes revelaram que a apreensão da história estava


mais próxima à historiografia da profissão, dos movimentos da categoria como etapas
estanques, e que não necessariamente estavam vinculadas a uma concepção materialista
da história, mesmo que a cronologia tenha sua importância para a análise histórica.

Foi identificado que, muitas vezes, a concepção de Fundamentos do Serviço Social


apareceu vinculada somente à disciplina de Fundamentos Históricos e Teórico-
metodológicos do Serviço Social e não como o conjunto dos componentes curriculares
que permitem uma análise da realidade e da profissão; os relatórios apontaram que

25
Referência ao Projeto ABEPSS Itinerante de 2014.
26
Ver Marx e Engels (1982); Marx (1987); Engels (1986), entre outros.
88
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

muitas UFA’s expressam, nos seus PPPC’s, as Diretrizes Curriculares aprovadas pelo MEC,
em 2001, e não as concepções amplamente discutidas no documento aprovado pela
ABEPSS, em 996, e reformatado, sem perder a direção social, em 1999, pela comissão de
especialistas27;

05) Os relatórios apontaram, às vezes de forma mais explícita, outras de forma mais
implícita, que há, na análise da realidade e da profissão, a falta ou a pouca apreensão de
perspectiva de totalidade.

A partir do legado da reconceituação, dos movimentos críticos da categoria, do Código


de Ética de 1993, da Lei 8662/93 e das Diretrizes Curriculares da ABEPSS28, analisa-se a
profissão de Serviço Social como uma totalidade histórica, síntese de múltiplas
determinações que são apanhadas pelo pensamento por mediações concretas, ou seja,
das singularidades às lei gerais da sociedade capitalista, que retornam em
particularidades complexas, campo de mediações29 no trabalho profissional. Esse
movimento pode ser apreendido, principalmente, mas não só, pela lógica que sustenta os
três Núcleos de Fundamentação das Diretrizes Curriculares30, a lógica inovadora da
formação profissional. Ou seja, a unidade desses núcleos de fundamentação, de seus
conteúdos, expressa de maneira articulada o conjunto das matérias necessárias para a
análise da realidade e da profissão numa perspectiva de totalidade, tendo por finalidade a
construção de ações profissionais no trabalho de assistentes sociais31. Essa falta de
perspectiva de totalidade é a falta, ou a parcial apreensão, do método materialista,
histórico e dialético, base de sustentação do projeto de formação32;

06) Foi apreendido nos relatórios que há, na formação e no trabalho profissional, alguns
equívocos na análise do significado social da profissão. Os relatórios apontaram que a
análise da profissão na divisão social e técnica do trabalho, que tem nas expressões da
questão social seu objeto de intervenção e a/o assistente social é a/o agente profissional,
trabalhadora/or assalariada/o, que vende sua força de trabalho, tem uma incidência
grande do ponto de vista do discurso, mas que ainda, nos espaços sócio-ocupacionais e
na formação profissional, essa concepção deve ser aprofundada nas ações cotidianas.

Foi comum verificar nos relatórios, a partir das repostas dos sujeitos e das análises
apresentadas pelas/os facilitadoras/es que ministraram as oficinas, que há uma confusão
entre os objetivos da Política Social e os objetivos do Serviço Social nos diferentes
espaços sócio-ocupacionais. Muitas vezes o debate apontou que a direção social da
profissão está subsumida à direção social da política social que, por sua vez, é
fragmentada, descontinuada e superficial em seu alcance.

27
Para melhor conhecer a história das Diretrizes Curriculares, ver Iamamoto (2014), ABEPSS (2007), entre
outros.
28
Aliados a intelectuais que inauguraram esse debate na profissão, destaques a Iamamoto e Carvalho
(2011); Netto (2005), entre outros.
29
Ver Lukács (1968, 1981); Pontes (2009), entre outros.
30
Os Núcleos de Fundamentação são: Núcleos de Fundamentos Teórico-metodológicos da Vida Social;
Núcleos de Fundamentos da Formação Sócio-histórica do Brasil; e Núcleo de Fundamentos do trabalho
Profissional; ver ABEPSS (1997).
31
Para um aprofundamento do debate, ver Teixeira (2019)
32
Uma referência importante desse debate pode ser encontrado em Moljo e Silva (2018).
89
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
RODRIGO TEIXEIRA

Muitos relatórios apontam que a formação continuada de profissionais tem ocorrido mais
pelo material dos Ministérios para execução da política social do que respostas
profissionais ancoradas no acúmulo teórico-metodológico do Serviço Social;

Na formação profissional, pode-se verificar que o eixo estrutural, em alguns PPPC’s, não
está no trabalho e na questão social; se a questão social não é central, a execução final da
política social pode ganhar um lugar de centralidade da formação. Se os estágios
supervisionados não debatem o trabalho profissional assentado nas atribuições e
competências, nos princípios fundamentais do Código de Ética e no acúmulo teórico
acerca da profissão, a centralidade recai no modo como a política social deve ser
executada e o que se espera do trabalho de assistentes sociais nela; perde-se, assim, a
potencialidade que a profissão tem em construir respostas para além dos objetivos da
política social, respostas vinculadas à análise crítica da realidade, calcada nos movimentos
sociais vinculados à classe trabalhadora. Esse parece ser um dos principais desafios ao
debate dos Fundamentos do Serviço Social nessa conjuntura;

07) A imediaticidade no trabalho de assistente social também foi encontrada nos


relatórios. Uma conjuntura de retrocessos, aliada à precarização do trabalho e da
formação, à falta de uma perspectiva de totalidade histórica acerca da profissão, à falta
ou parcial apropriação do método marxiano, faz com que as ações profissionais não
ultrapassem a imediaticidade.

Analisou-se que, muitas vezes, a razão sensível é priorizada nas respostas profissionais
em detrimento da razão dialética. Concorda-se com Coelho (2013) que, nas ações
imediatas, há uma direção social. O trabalho de assistentes sociais na aparência do
fenômeno reproduz as relações sociais vigentes. Nesse sentido, nas oficinas do Projeto
ABEPSS Itinerante, muito debateu-se sobre a unidade teoria-prática no trabalho
profissional, o cotidiano que ao mesmo tempo aliena e permite possibilidades de
afirmação da perspectiva crítica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há desafios particulares para o debate dos Fundamentos do Serviço Social que foram
apontados nos relatórios e pouco pôde-se discutir aqui. São desafios que apontam à
necessidade de mais pesquisas nos relatórios das diversas edições do Projeto ABEPSS
Itinerante. Tais relatórios devem tornar-se fonte de pesquisa para futuras produções
intelectuais, ainda pouco exploradas, o que aponta também a necessidade de maior
cuidado na condução do Projeto ABEPSS Itinerante referente às sínteses, relatórios e
sistematizações. Foi também possível perceber relatórios muito descritivos e pouco
analíticos, com falta de dados quantitativos e com inconsistência entre a descrição da
atividade e a análise teórica.

Contudo aponta-se a necessidade de continuidade do debate dos Fundamentos do


Serviço Social, ampliando as pesquisas acadêmicas, os debates na categoria, as reflexões
das entidades da profissão.

Por meio das sínteses aqui apresentadas e dos dados trabalhados, pode-se concluir que o
Projeto ABEPSS Itinerante é uma atividade essencial para difundir a lógica das Diretrizes
Curriculares, debatendo com diferentes sujeitos da formação profissional, visando

90
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

melhorias na formação e no trabalho profissional na direção social que a profissão


constrói há mais de 40 anos.

Os dados quantitativos mostram que a ABEPSS tem a preocupação com a ampliação do


debate e do enraizamento das ações, ampliando o número de oficinas, de Estados
envolvidos e dos sujeitos que participaram. Mas deve atentar-se à necessidade de
ampliação da participação de docentes e discentes de pós-graduação.

Os desafios destacados devem ser analisados pela ABEPSS, pelas UFA´s e pelo conjunto
da categoria, no sentido de construir alternativas para ampliar o debate dos
Fundamentos do Serviço Social, na direção da perspectiva de totalidade histórica, da
relação realidade e profissão, reafirmando a lógica que sustenta as Diretrizes Curriculares.

O Projeto ABEPSS Itinerante é uma realidade e necessita esforços de todos os sujeitos


envolvidos na categoria profissional. Deve chegar mais próximo de docentes, discentes
de graduação e pós-graduação, supervisoras/es de campo e das/os representantes dos
CRESS’s e do CFESS.

Em todas as edições, muitos sujeitos estiveram envolvidos no processo. Que muitas/os


outras/os possam envolver-se também. Vida longa ao Projeto ABEPSS Itinerante!

REFERÊNCIAS

ABEPSS. ABEPSS ITINERANTE: Os Fundamentos do Serviço Social em Debate: formação e


trabalho profissional. Rio de Janeiro: ABEPSS, 2016. Disponível em:
http://www.abepss.org.br/arquivos/textos/documento_201607292128532079990.pdf.
Acesso em: 26 dez. 2020.

ABEPSS. Projeto ABEPSS Itinerante: O Estágio Supervisionado em Serviço Social:


desfazendo nós e construindo alternativas. Rio de Janeiro: ABEPSS, 2013.

ABEPSS. Projeto ABEPSS Itinerante: as Diretrizes Curriculares e o projeto de formação


profissional do Serviço Social. Rio de Janeiro: ABEPSS, 2011.

ABEPSS. Diretrizes gerais para o curso de serviço social. Rio de Janeiro: ABEPSS, 1996.
Disponível em:
http://www.abepss.org.br/arquivos/textos/documento_201603311138166377210.pdf.
Acesso: 2 out. 2018.

ABREU, Maria Helena Elpídio. A Experiência da “ABEPSS Itinerante”: a atualidade do


projeto de formação profissional frente à contrarreforma da educação. Temporalis,
Brasília (DF), ano 13, n. 25, p. 113-132, jan./jun. 2013. Disponível em:
https://periodicos.ufes.br/index.php/temporalis/article/view/4853. Acesso em: 26 dez.
2020.

ANDERSON. Pierre. Balanço do Neoliberalismo. SADER, Emir; GENTILI, Pablo. Pós-


Neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Paz e Terra: São Paulo, 1995.

91
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
RODRIGO TEIXEIRA

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre a metamorfose e a centralidade do


mundo do trabalho. São Paulo: Cortez/Unicamp, 1995.

BEHRING. Elaine; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história.


São Paulo, Cortez: 2006.

BRAZ, Marcelo Reis. O Golpe, as Ilusões Democráticas e a Ascensão do Conservadorismo


Reacionário. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 128, p. 85-103, jan./abr. 2017. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/sssoc/n128/0101-6628-sssoc-128-0085.pdf. Acesso em: 26 dez.
2020.

CFESS. Política de Educação Permanente do Conjunto CFESS-CRESS. Brasília, 2012.


Disponível em http://www.cfess.org.br/arquivos/BROCHURACFESS_POL-EDUCACAO-
PERMANENTE.pdf. Acesso em: 26 dez. 2020.

COELHO, Marilene A. Imediaticidade na Prática do Assistente Social. Serviço Social:


temas, textos e contextos. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

DEMIER, Felipe. Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de


Janeiro: Mauad X, 2017.

ENGELS. Friederich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: . Global


Editora, 1986.

HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança


cultural. 22. ed. São Paulo: Loyola, 2012.

IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul de. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil:
esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 33. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

IAMAMOTO, Marilda Villela. A Formação Acadêmico-profissional do Serviço Social


Brasileiro. Serviço Social e Sociedade, Cortez: São Paulo, n. 120. out./dez., 2014.

IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em Tempo de Capital Fetiche: capital


financeiro, trabalho e questão social. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2009.

LUKÁCS, Gyorge. Determinações para a Crítica Particular do Desenvolvimento da


Sociologia. In: Sociologia. São Paulo: Ática, 1981. (Coleção Grandes Cientistas Sociais)

LUKÁCS, Gyorge. Introdução a uma Estética Marxista. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1968.

MARX, Karl; ENGELS, Friederich. A Ideologia Alemã. 3. ed. São Paulo: Ciências Humanas,
1982.

MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global
Editora, 1987.

92
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

MOLJO, Carina Berta; SILVA José Fernando Siqueira da. Cultura Profissional e tendências
teóricas atuais: o Serviço Social brasileiro em debate. In: GUERRA, Yolanda et. al. (org).
Serviço Social e seus Fundamentos: conhecimento e crítica. Campinas: Papel Social, 2018.

MONTAÑO, Carlos. A Natureza do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2007.

NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 4. ed. São Paulo: Cortez
Editora: 2005.

PONTES, Reinaldo. Mediação e Serviço Social. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

RAICHELLIS, Raquel. Atribuições e Competências Profissionais Revisitadas: a “nova”


morfologia do trabalho no Serviço Social. In: CFESS. Atribuições e Competências do/a
Assistente Social em Questão. Brasília: 2020. v. 2.

RAICHELLIS, Raquel; ALBUQUERQUE. Valéria; VICENTE, Damares. A Nova Morfologia do


Trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.

TEIXEIRA, Rodrigo José. Fundamentos do Serviço Social: uma análise a partir da unidade
dos núcleos de fundamentação das Diretrizes Curriculares da ABEPSS. 2019. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

TEIXEIRA, Rodrigo José. AQUINO, Isaura; GURGEL Telma. Estágio Supervisionado em


Serviço Social: desfazendo os nós e construindo alternativas. Temporalis, Brasília (DF),
ano 16, n. 31, p.401-417, jan./jun. 2016. Disponível em:
https://publicacoes.ufes.br/temporalis/article/view/13351. Acesso em: 26 dez. 2020.

_________________________________________________________________________________________
Rodrigo TEIXEIRA
Possui graduação em Serviço Social pela Universidade de Taubaté (2004) e mestrado em Serviço Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Atualmente é professor assistente da Universidade
Federal Fluminense. Tem experiência na área de Serviço Social, com ênfase em Serviço Social, atuando
principalmente nos seguintes temas: serviço social, política social, história oral, linguagem profissional e
experiência.
_________________________________________________________________________________________

93
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 77-93, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
O ensino a distância
e as tendências da
apropriação
dos fundamentos
do Serviço Social
Distance learning and trends in the appropriation of the
foundations of Social Work

Antonio Israel Carlos da Silva*

Resumo – O artigo problematiza a relação entre a ampliação de novos


agentes profissionais pela via do ensino a distância (EAD) e as tendenciais
repercussões na apropriação dos fundamentos teórico-metodológicos e
ético-políticos do Serviço Social brasileiro. Realizou-se revisão de litera-
tura e pesquisa documental, no sentido de identificar as mediações peda-
gógicas que envolvem a apreensão do conhecimento na formação profis-
sional à distância. Identificou-se que, tendencialmente, a formação à dis-
tância se particulariza por uma reconfiguração teórico-cultural e ideoló-
gica, se compararmos ao projeto hegemônico de formação do Serviço
Social brasileiro.
Palavras-chave: ensino a distância; Serviço Social; capitalismo contem-
porâneo.

Abstract – The article discusses expansion of new professional agents


through distance learning and the trends repercussions in grasping the
theoretical-methodological and ethical-political foundations of the Bra-
zilian social work. A literature review and documentary research were
conducted in order to identify the pedagogical mediations that involve
the apprehension of knowledge in distance professional education. It was
identified that the distance education tends to be characterized by a theo-
retical-cultural and ideological reconfiguration, if compared to the hege-
monic project of formation of the Brazilian Social Work.
Keywords: distance learning; social work; contemporary capitalismo.

..............................................................................
* Mestre e doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com período san-
duíche na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Grupo de Es-
tudos e Pesquisas sobre Trabalho (GET/UFPE) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Fundamentos do Serviço
Social Contemporâneo (NEFSSC/UFRJ). Bolsista Capes. E-mail: israelsscarlos@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/
0000-0002-7340-0609.

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


134 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

Introdução

Neste artigo discutimos a problemática do ensino a distância (EaD)


na formação profissional em Serviço Social e suas repercussões no estudo
dos fundamentos teórico-metodológicos da profissão. Para tanto, realizamos
revisão de literatura em autores que discutem a política educacional e a
formação profissional em Serviço Social no Brasil. Fizemos, também, pes-
quisa documental no Guia de percurso do estudante de Serviço Social (2013),
da Universidade do Norte do Paraná (Unopar), equivalente ao projeto po-
lítico-pedagógico da referida instituição, no sentido de identificar as me-
diações pedagógicas que envolvem a apreensão do conhecimento na for-
mação profissional.
Além da introdução e das considerações finais, o artigo está divido
em dois itens. No primeiro, discutimos a concepção de fundamentos histori-
camente elaborada pelo Serviço Social brasileiro; e, no segundo, problema-
tizamos o ensino a distância e as dificuldades no estudo dos fundamentos
na formação profissional.
O debate apresentado neste artigo surge no cenário de ampliação
de cursos de Serviço Social no EaD. Do total de 451 cursos de Serviço So-
cial em funcionamento no Brasil, 379 são ofertados no ensino privado e 72
no ensino público. O EaD representa 33 cursos, ofertados em sua integra-
lidade no ensino privado. Do total de 153.548 matrículas para o curso de
Serviço Social, 61% (92.781) ocorreram no EaD e 39% (60.767, sendo
17.747 no público e 43.015 no privado) no ensino presencial (INEP, 2018).
Para darmos continuidade à discussão, temos que explicitar que
certamente o Serviço Social brasileiro vem sendo posto à prova pelas
determinações macrossocietárias que o atingem. Pensemos aqui que o ce-
nário de adensamento da crise orgânica do capitalismo contemporâneo
incide sobre as diversas formas de expressão econômica, social, política,
cultural e ética da vida social. Dessa maneira, como profissão inserida na
dinâmica própria de reprodução das relações sociais de classe, o Serviço
Social não está exilado das reverberações dessas transformações societárias,
sobretudo ao identificarmos que, enquanto profissão que assume um deter-
minado projeto profissional – alinhado a um projeto societário de combate
e reversão da sociabilidade burguesa –, vê-se tensionado ante os compro-
missos de recomposição da hegemonia burguesa.
Cabe ressaltar que, conforme Simionatto (1993), a concepção de
hegemonia discutida por Gramsci corresponde ao esclarecimento das
relações entre infraestrutura e superestrutura, à forma como as classes sociais
se relacionam e exercem as suas funções no bloco histórico. No interior do
bloco histórico, as forças dominantes sofrem a oposição das forças emer-
gentes, dominadas, num movimento de luta pela construção de uma nova
ordem social. Ademais, falar de hegemonia implica discutir também a crise
de hegemonia, que diz respeito ao enfraquecimento da direção política da

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 135
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

classe no poder, ou, ainda, ao enfraquecimento da direção política e perda


de consenso.
O enquadramento histórico contemporâneo aprofunda os limites
absolutos do capitalismo e suas crises (MÉSZÁROS, 2008), incidindo sobre
a mundialização e enraizamento da lógica neoliberal na produção objetiva
e subjetiva das classes sociais, com impactos brutais na periferia do ca-
pitalismo. O cenário expressa um amplo movimento de regressão civilizatória
(MOTA, 2017), que atinge o modo de ser e de existir das classes sociais,
ampliando o arco de expropriações da força de trabalho, readequando os
padrões de proteção social e retirando direitos sociais.
É nesse cenário que a formação dos(as) trabalhadores(as) vem
sendo permeada pela perspectiva de disseminação de práticas sociais que
inibem o confronto de projetos antagônicos de sociedade. Além disso, essas
práticas estimulam a conciliação de interesses de classe, fomentando um
associativismo desmedido, despolitizando os potenciais de disputas de hege-
monia.
A nosso ver, o EaD, no ensino de formação graduada, expressa
um mecanismo pedagógico inserido nas supostas medidas de democra-
tização do acesso, vistas como compensatórias aos níveis de desigualdade
social nas formações sociais concretas. Assume funcionalidade político-
ideológica fundamental na conformação de projetos classistas (NEVES, 2006),
ao conseguirem dos segmentos subalternos o consentimento ativo ao novo
modelo de educação escolar. Isto é, conforme identificamos ao longo do
artigo, as particularidades e legalidades pedagógicas do EaD (SILVA; AMA-
RAL, 2019) alinham-se à formação de intelectuais urbanos de novo tipo.
No bojo das mudanças em curso nos projetos educacionais e
diante do cenário de descentralização administrativa e interiorização das
políticas sociais, a racionalidade do empresariado da educação apostou no
curso de Serviço Social como novo e estratégico “nicho de mercado”. Dessa
maneira, tensionou a formação profissional ao movimento de superca-
pitalização e industrialização do setor de serviços (MANDEL, 1982).
O novo gerenciamento das tecnologias da informação e co-
municação (TICs) na educação tem seu percurso relacionado às mudanças
organizacionais no processo produtivo, sobretudo diante da passagem da
predominância do fordismo para o modelo de acumulação flexível (HARVEY,
1993). Este período corresponde ao estágio do desenvolvimento capitalista
em que o uso da técnica ganhou força motriz, ainda mais intensa e funcional,
através da informatização, redução do capital variável e flexibilização das
relações e direitos do trabalho, demarcando novas formas de aviltamento
da força de trabalho.
Ademais, a problemática apresentada mantém relação com o de-
bate desenvolvido por Harvey (2014), ao discutir os processos tecnológicos
como mediação das novas configurações entre espaço e tempo. Nesse sen-
tido, o avanço da tecnologia tem contribuído com a diminuição das distân-

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


136 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

cias geográficas, tornando a especialidade e a temporalidade do capital in-


seridas em uma ordem social mais dinâmica. As amplas transformações nos
transportes, na produção e na comunicação permitiram que o acesso a infor-
mações instantâneas se desenvolvesse como imperativo à reprodução dos
interesses das classes dominantes, agindo sob a base ideológica, política e
ética da vida social.
Em especial, o aprofundamento do projeto neoliberal nos séculos
XX e XXI ganhou diretrizes de ação a partir da força sociopolítica dos orga-
nismos internacionais, a citar Banco Mundial (BM), Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e Fundo Monetário
Internacional (FMI), com a disseminação de novas concepções de relações
pedagógicas, sintonizadas à ampliação das TICs nas práticas educativas. O
EaD entrou no pacote de medidas, entendido como empreendimento que
promoveria a ampliação da formação de professores para a educação básica
e para a formação de novos bacharéis, sobretudo nos cursos de ciências
humanas ou ciências sociais aplicadas, na periferia do capitalismo.
O potencial de conversão do ensino em mercadoria rentável
operou a dinamização da economia em setores que, em paralelo, viram na
mercantilização do conhecimento uma via de acesso à valorização do
capital. É o caso da articulação da educação com o mercado editorial, as
empresas de consultoria, gestão e confecção de material didático. Além
disso, com o objetivo de aperfeiçoar a perspectiva da educação como serviço
lucrativo no Brasil, o empresariado tem criado meios e estratégias para dis-
putar a consciência da classe trabalhadora.
Tendo isso em vista, segundo dados do Inep (2016), o avassalador
processo de expansão do ensino privado corresponde atualmente a 87,5% do
total das IES no país, com participação de apenas 12,5% do ensino público.
Ademais, dados do Inep (2016) evidenciam ainda que o número
de matrículas de estudantes nos cursos de graduação a distância tem aumen-
tado no Brasil, atingindo quase 1,4 milhão em 2015, o que representa 17,4%
do total de matrículas na educação superior. Enquanto o número de matrí-
culas no ensino presencial cresceu 2,3% entre 2014 e 2015, no EaD, a
ampliação foi de 3,9%. No cenário de financeirização da economia, os
programas governamentais Programa Universidade Para Todos (ProUni) e
Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) permitiram o estreitamento da
relação entre Estado e ensino privado no Brasil.
O sentido do empresariamento corresponde às medidas de racio-
nalização administrativa voltadas à redução de custos, aumento da eficiência
e disponibilidade de captação de lucro e produtividade. É nesse processo
que a funcionalidade das TICs é hipertrofiada: 1) como componente do
gerencialismo de ações administrativas nas unidades de ensino e na for-
mulação de protocolos; e 2) como instrumento de ensino e aprendizagem,
mediatizando o processo pedagógico e construindo novas culturas peda-
gógicas, cujo meio virtual assume centralidade.

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 137
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

Em síntese, práticas educativas contemporâneas estão sendo in-


fluenciadas pelas racionalidades atribuídas ao potencial das TICs na
sociabilidade humana. Esse processo tem resultado em culturas de formação
que hipertrofiam os posicionamentos valorativos da formação por compe-
tências e do ideário do “aprender a aprender”. A “nova pedagogia da
hegemonia” transmite a ideia de que aprender sozinho é mais relevante do
que acumular o conhecimento historicamente elaborado pela humanidade.
Projeta-se uma linha funcional de valorização da experiência sensível do
cotidiano reificado, como esferas do saber individual (DUARTE, 2008).
Nesse sentido, a questão da metodologia individual adapta-se
muito bem à modalidade ensino a distância, já que parte do pressuposto de
que a “virtualização” das práticas educativas seria funcional à massificação
do acesso ao conhecimento. A nova organização pedagógica que se desenha
com a ampliação do EaD e a racionalidade empresarial que lhe constitui
tendem a incidir sobre a apropriação dos fundamentos do Serviço Social.
A ampliação dessa nova modalidade no processo formativo dos(as)
assistentes sociais tem operado muitas problemáticas relativas a questões
de ordem pedagógica1, a dimensões políticas e de caráter teórico-meto-
dológico. Nesse sentido, a nosso ver, há um descompasso entre a rica pro-
dução teórico-metodológica e político-profissional hegemônica na profissão
e a sua incorporação por amplos segmentos de agentes profissionais. Para
esse descompasso contribui o processo de empobrecimento teórico-cultural
da categoria e, ao que parece, a modalidade EaD, pela natureza que assume
na particularidade brasileira, exerce papel preponderante na responsa-
bilidade de desqualificação profissional.
É preciso destacar a inadequação que o processo de formação a
distância apresenta em relação ao projeto de formação hegemônico do
Serviço Social, aprovado nas diretrizes gerais para o curso de Serviço Social
em 1996. Do ponto de vista pedagógico, a própria existência da modalidade
EaD demarca um descompasso ao ideal de formação presencial, laica, gra-
tuita, pública e universal que as diretrizes curriculares postulam. Ademais,
a apropriação dessa modalidade de ensino pelo empresariado da educação
produz conflitos ideológicos, teóricos e culturais entre a racionalidade em-
presarial das unidades de ensino e o projeto profissional, hegemônico, do
Serviço Social brasileiro, matizado no referencial teórico rigoroso, denso e
articulado criticamente em categorias ontológicas.

Da concepção de fundamentos do Serviço Social brasileiro

Particularmente nos anos 1980, diante dos acúmulos do processo


de intenção de ruptura – movimento que operou no plano ideopolítico e
..............................................................................
1
Conforme evidencia a dissertação de Silva (2018).

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


138 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

teórico a busca pela ruptura com o histórico conservadorismo profissional


(NETTO, 1986) –, o debate sobre os fundamentos do Serviço Social enraíza-
se na perspectiva de superar a fragmentação da tricotomia história, teoria e
método, antes predominante nas formulações teóricas e didático-peda-
gógicas na formação profissional. Contudo, a revisão de 1982 não possi-
bilitou a superação da visão tradicional do Serviço Social de caso, grupo e
comunidade, componentes ideoteóricos que alimentaram os debates sobre
a profissão.
A reformulação do currículo, sob a versão de diretrizes curriculares
gerais para o curso de Serviço Social, em 1996, operou inflexões significativas
no plano da formação profissional. O novo projeto de formação situa o ne-
cessário rigor teórico-metodológico no acompanhamento da dinâmica socie-
tária e permite atribuir um estatuto teórico e ético-político para a formação
e o exercício profissional, capaz de responder aos desafios da história pre-
sente (SANTOS, 2018).
As novas diretrizes pensam a unidade entre formação e exercício
profissional como aspecto central ao debate do processo formativo; para
tanto, a concepção acerca dos fundamentos do Serviço Social é informada
na perspectiva da totalidade histórica. Essa torna-se matriz explicativa fun-
damental para o entendimento da realidade social em movimento e das
particularidades profissionais às demandas societárias.
A partir de 1996, história, teoria e método assumem novos con-
tornos na formação profissional. Na condição de pressupostos que perpassam
toda a formação, devem ser vistos como unidades na diversidade, ou seja,
não podem ser analisados, discutidos ou ensinados de forma fragmentada e
dissociada, em formato de disciplinas isoladas e sem conexão. Fruto do
avanço coletivo de pensar essa unidade constitutiva da formação, sobressai
a reflexão de que não é somente a mudança de nomenclatura das disciplinas
sobre esses assuntos, que passam a ser chamadas predominantemente de
“Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos do Serviço Social”, que
soluciona o problema de concepção, tratamento e referencialidade didático-
pedagógica do ensino sobre os fundamentos.
Já sabemos que situar o Serviço Social na história é diferente de
discutir uma história isolada do Serviço Social (IAMAMOTO, 2014), que
reproduza uma expressão endógena na análise profissional. Por isso, as
dimensões históricas, teóricas e metodológicas passam a ser reconhecidas
como indissociáveis e complementares nessa nova concepção de funda-
mentos do Serviço Social. Ademais, quando nos referimos aos fundamentos,
não podemos reduzi-los ao plano da história, como se representassem uma
construção cronológica e sequencial de fatos que ocorreram no Serviço
Social, da institucionalização ao tempo presente.
A lógica de elaboração de núcleos de fundamentação, ou seja, a
tentativa de sintetizar e agrupar grandes “blocos” de debate que devem al-
cançar centralidade na formação, assume papel significativo para não frag-

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 139
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

mentar os conteúdos na formação profissional. Nesse sentido, para Santos


(2018), os núcleos de fundamentos do trabalho profissional, da formação
sócio-histórica brasileira e da vida social reforçam duas direções com-
plementares: 1) são níveis distintos de abstração do tratamento do exercício
profissional em seus fundamentos; e 2) indicam diferentes tipos de matérias
que expressam áreas de conhecimento. Do ponto de vista pedagógico, essas
matérias se distribuem em diferentes componentes curriculares – disciplinas,
seminários e oficinas temáticas, laboratórios de pesquisa, estágio supervi-
sionado e atividades complementares.
O levantamento de Cardoso (2007), na pesquisa realizada pela
Abepss (gestão 2005/2006; 2007/2008), apontou a dificuldade de com-
preensão e materialização do debate sobre os “Fundamentos Históricos e
Teórico-Metodológicos do Serviço Social”. Na ocasião da investigação foram
indicadas tendências problemáticas: a) tendência de dicotomização e frag-
mentação das matérias e disciplinas em história, teoria e método; e b) trata-
mento dos fundamentos como história, com visão reducionista sobre os
fundamentos. Ao atualizar a problemática, Santos (2018) nos indica que os
relatórios do projeto Abepss Itinerante apontam ainda a dificuldade docente
em compreensão da nova lógica das diretrizes curriculares.
Acrescentaríamos que a necessidade de refletir sobre os funda-
mentos é imperativa, diante da entrada de novos sujeitos na docência em
Serviço Social, muitos dos quais não acompanharam o processo de constru-
ção da nova lógica curricular. Além disso, há outro aspecto que merece
problematizações de maior vulto: a ampliação de cursos de Serviço Social,
sobretudo no ensino privado, presencial, e de modo ainda mais alarmante
no ensino a distância. Este último (SILVA, 2018, 2016; SILVA; AMARAL,
2019) tende a promover mudanças na formação, tanto no universo ideo-
teórico, como nas dimensões didático-políticas, isto é, alterando as formas
de apropriação dos fundamentos.
A apropriação dos fundamentos exige a compreensão do Serviço
Social como uma totalidade histórica e em movimento na realidade concreta.
Desse modo, como explicita Santos (2018), as dimensões históricas, teóricas
e metodológicas passam a ser reconhecidas como formas indissociáveis e
complementares nessa concepção de fundamentos. Não obstante os
elementos de continuidade ao processo de adensamento e aprimoramento
dos fundamentos da profissão, concordamos com Guerra (2018) ao situar
que esse debate envolve um conjunto problemático de questões, diante dos
diferentes projetos de sociabilidade, de educação e de profissão, que deter-
mina a dinâmica formativa de assistentes sociais.
Surgem diferenças teóricas em distintas forças políticas que, por
vezes, destoam da concepção de profissão e da perspectiva de perfil profis-
sional desenhado nas diretrizes curriculares, desconsiderando o estatuto
profissional e os referenciais de legitimidade profissional, o significado sócio-
histórico da profissão, o valor do conhecimento para a profissão e a relação

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


140 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

entre conhecimento e profissão. Além disso, também com relação ao lugar


que ocupa o processo de estágio curricular, ademais do tratamento equi-
vocado das dimensões técnico-operativas.
Sem dúvidas, o ensino dos fundamentos enfrenta dificuldades em
tempos de avanço do pensamento pós-moderno, da cultura reificada do
capitalismo tardio (JAMESON, 1996) que incide sobre a produção do conhe-
cimento crítico. Outro fator que influencia é o amplo movimento de avilta-
mento pelo qual passa a formação profissional, em meio a refuncionalização
da universidade às demandas do mercado e ampliação do tipo de formação
privada e/ou determinada pelas particularidades do meio virtual/a distância.
Trata-se, pois, de implicações de diversas ordens, que buscam imprimir a
racionalidade hegemônica burguesa na dinâmica formativa.
Ademais dos problemas estruturais, a dificuldade de uma abor-
dagem do Serviço Social sintonizado à tridimensionalidade dos conteúdos
dos núcleos de fundamentação tem deixado lacunas na formação profissional
(GUERRA, 2018). Temos que considerar que os núcleos de fundamentação
constitutivos da formação (fundamentos do trabalho profissional, funda-
mentos da formação sócio-histórica brasileira e fundamentos da vida social)
não podem ser tratados de forma hierárquica, e, sim, como elementos de
unidade indissociável à construção de formas explicativas da vida social,
da realidade brasileira e do trabalho profissional.

O ensino a distância e as tendenciais repercussões


na apropriação dos fundamentos do Serviço Social

Em diferentes momentos históricos, a formação profissional em


Serviço Social recorreu a livros – alguns clássicos do pensamento social –,
aulas presenciais, debates e conferências de eventos, estágio supervisionado,
atividades de pesquisa e extensão e aos próprios movimentos de participação
política como estratégias pedagógicas do processo de formação profissional.
Contudo, um elemento novo passa a existir na profissão, sobretudo a partir
de 2006, com a introdução de cursos de Serviço Social na modalidade
EaD. Certamente, e como vimos anteriormente, a categoria profissional to-
mou posição no sentido de situar as incompatibilidades entre o ensino a
distância e o projeto crítico de formação profissional em Serviço Social.
Passados mais de dez anos de Serviço Social na referida moda-
lidade de ensino, urge problematizarmos as formas de acesso ao conhe-
cimento por parte dos estudantes no EaD, de modo que, ao destacar tais di-
mensões constitutivas da formação, poderemos ter um quadro inicial das
tendências e repercussões teórico-políticas e ideológicas que se expressam
na particularidade do processo formativo a distância. Outrossim, é preciso
considerar a dificuldade de acesso a informações sobre essa modalidade de
ensino, em parte ocultadas pelo empresariado da educação, o que tem

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 141
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

repercutido no desafio de pesquisar a formação profissional em Serviço


Social no EaD.
No sentido de identificar as repercussões do ensino a distância
no estudo dos fundamentos do Serviço Social, como forma aproximativa à
problemática apresentada, acreditamos que é fundamental analisar a estru-
tura e o formato de apreensão do conhecimento na referida modalidade.
Para tanto, realizamos pesquisa documental no Guia de percurso ao estu-
dante (2013) da Unopar, no sentido de identificar as mediações pedagógicas
que envolvem o formato de acesso ao conhecimento no EaD e suas reper-
cussões na apropriação dos fundamentos.
Convém situar que esta é uma das líderes na oferta de cursos de
Serviço Social no EaD, com 21 mil vagas ofertadas anualmente, distribuídas
em quase 500 polos de apoio, além de pioneira na oferta dos cursos a
distância no Brasil, e que vem, desde 2006, especificamente oferecendo o
curso de Serviço Social na modalidade EaD. Além disso, é integrante do
Grupo Kroton Educacional2, um dos mais fortes no âmbito do empresa-
riamento da educação brasileira. Cabe ressaltar, também, que a elaboração
do material didático da referida instituição é realizada pela empresa de
consultoria educacional britânica Person Education (2016), a qual tornou-
se uma das maiores empresas educacionais no mundo, atuando no mercado
de editoração e de novas tecnologias da informação e comunicação na
área da educação.
O acesso ao material de análise da pesquisa nos permitiu identificar
que o material didático da instituição segue homogeneizado para todos os
polos, sendo elaborado pela figura dos prfessores conteudistas3. Desen-
volvido em oito semestres letivos, o curso de Serviço Social EaD da Unopar
apresenta 42 disciplinas ao longo da formação4.
O formato pedagógico do curso de Serviço Social da Unopar dis-
põe de video-aulas, conteúdos digitais, contato on-line entre professores e
estudantes e recurso ao apostilamento como estratégia de viabilização do
conteúdo. Tal formato pedagógico entra em expansão no cenário em que a
força sociopolítica dos organismos internacionais determina as políticas
educacionais brasileiras e latino-americanas. Difundem concepções ideoló-
gicas que reforçam o fetichismo tecnológico, através da ideia de “sociedade
da informação”, junto com o ideário da empregabilidade, a formação por
competências e os discursos do “capital humano” (LIMA, 2011; FRIGOTTO,
2010; SILVA, 2018, 2016). Nesse sentido, assume, hegemonicamente, a
funcionalidade de potencializar a disseminação de arranjos éticos e políticos
..............................................................................
2
Hoje, o Brasil tem uma das maiores empresas educacionais do mundo: a Kroton Educacional, com quase 50
anos de trajetória. Tornou-se um monopólio educacional no mundo em 2014, com a compra da Anhanguera S.
A., possuindo quase 1,5 milhão de alunos e cerca de 726 polos de graduação EaD credenciados pelo MEC
(KROTON EDUCACIONAL, 2017).
3
Responsáveis pela elaboração do conteúdo teórico do material didático.
4
Para um estudo sobre a organização curricular do curso de Serviço Social da Unopar, ver nossa produção
anterior na Revista Em Pauta, n. 37, v. 14 (SILVA, 2016).

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


142 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

que tendem a reiterar o senso comum e difundir ideologias orgânicas à


reprodução social do modo de pensar das classes dominantes.
A destituição do caráter coletivo da formação é marca constitutiva
que particulariza o EaD, haja vista que essa modalidade opera um movimento
de interlocução dos alunos diretamente com máquinas que transmitem video-
aulas já elaboradas, colocando o estudante em condição de passividade
frente ao processo de ensino-aprendizagem. A possibilidade de uma prática
pedagógica perpassada pelo debate e diálogo constante entre os diversos
sujeitos que compõem o processo formativo é subsumida, ou, quando muito,
restrita aos web-chats, que envolvem troca de mensagens entre estudantes-
estudantes e professores-estudantes.
Destacamos aqui que o estudo de Silva (2018) contribuiu para
evidenciar o EaD como uma prática pedagógica deslocada do caráter
coletivo, necessário à formação profissional crítica. A dissertação enfatiza,
a partir de depoimentos de egressos de cursos de Serviço Social no EaD de
diferentes instituições de ensino superior à distância com polos em Pernam-
buco, que a ausência de maior acompanhamento direto por parte da equipe
de professores e tutores levou a uma dificuldade de apropriação da “herança
cultural” do Serviço Social brasileiro. Inclusive, essa ausência mobiliza-se
pela configuração da relação entre conhecimento e formação, tendo em
vista que os referenciais teóricos clássicos do pensamento social e, em alguns
casos, até mesmo os próprios autores da profissão, não eram alvo de estudo
nessa modalidade de ensino.
Além dos problemas de ordem pedagógica, que envolvem a relação
entre professor e aluno, devemos refletir sobre como os conteúdos da for-
mação são sistematizados, uma vez que eles se apresentam como base teórica
para o estudo dos fundamentos da profissão. No caso da Unopar, observamos
que a organização temática dos fundamentos não condiz com a direção
dos núcleos de fundamentação propostos nas diretrizes curriculares: núcleos
de fundamentos do trabalho profissional, núcleo de fundamentos da vida
social e núcleo de fundamentos da formação sócio-histórica brasileira.
Na Unopar, a distribuição do conteúdo acompanha uma temática
semestral, que se desdobra em um conjunto de disciplinas relativas às
temáticas. O curso é oferecido em oito semestres e são estas as temáticas:
Fundamentos Teórico-Metodológicos da Vida Social I, II, III (do 1º ao 3º se-
mestre); Fundamentos do Trabalho Profissional I e II (do 4º ao 5º semestre);
Trabalho Profissional: Fundamentos para a Intervenção I, II e III (do 6º ao 8º
semestre). Ocorre que a proposta pedagógica estudada assume maior cen-
tralidade no debate sobre a intervenção profissional, ao evidenciar um maior
agrupamento de disciplinas com foco no “como fazer” profissional, com
tendências a denotar o conhecimento prático como superior às mediações
teóricas constitutivas da compreensão de profissão. Ademais, desconsidera
os núcleos de fundamentos da formação sócio-histórica brasileira como
parte integrante da formação.

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 143
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

É preciso situar que, por se tratar de um estudo aproximativo e


dados os limites deste artigo, não foi possível evidenciar o que está presente
nos materiais didáticos e o que faz referência aos fundamentos do Serviço
Social. Sem dúvidas, o estudo desses conteúdos apresenta relevância, no
sentido de problematizar o tratamento e a concepção de fundamentos pre-
sentes na realidade da formação profissional a distância.
Acrescentaríamos que a proposta de apostilamento expressa a
uniformidade do conteúdo e a compra de pacotes educacionais já elaborados
por consultores como prática comum nos grandes grupos empresariais, o
que confere dificuldades de maior autonomia docente em relação ao con-
teúdo a ser ministrado em sala de aula.
Ao tratar dos conteúdos didático-pedagógicos que se apresentam
na formação a distância, Barreto (2012) considera que eles são pensados
para serem “autoexplicativos”, dispensando mediações pedagógicas cons-
titutivas das práticas educativas crítico-reflexivas, promovendo ações peda-
gógicas associadas à resolução de “dúvidas pontuais” nos polos presenciais.
Aferimos daí que os pacotes de ensino assepticamente programados por es-
pecialistas, cujo conteúdo vem sendo marcado por empobrecimento cultural,
constituem formas de controle das relações sociais capitalistas na produção
e divulgação do conhecimento (FRIGOTTO, 2010).
Tomando como referência a instituição analisada, em nosso enten-
dimento, as repercussões da formação profissional a distância no estudo
dos fundamentos do Serviço Social tendem a se expressar sob muitos cami-
nhos tendenciais. No plano político-pedagógico, a ausência de referencia-
lidade presencial e coletiva tem conferido a impossibilidade de que a sala
de aula se torne um espaço de constituição de ricas objetivações de estu-
dantes e professores. Historicamente, a sala de aula tem sido o lugar de
debates, conflitos e trocas coletivas que poderiam desenvolver sínteses teóri-
cas num aprendizado que, não isento de contradições e polêmicas, poderia,
na particularidade da formação profissional em Serviço Social, mobilizar
reflexões críticas e mesmo ser palco de disputa de ideias.
No plano teórico-metodológico, estamos diante de um cenário
de configurações do formato e do tipo de conhecimento acessado à massa
de novos segmentos profissionais que vem sendo formada no EaD. Podemos
considerar que mesmo no ensino presencial público, historicamente referen-
ciado como ensino qualificado, os fundamentos do Serviço Social vêm
passando por compreensões equivocadas, lacunas e ausências de discussões,
por vezes, com argumentos de dissociação da relação teoria e prática, dentre
outras dimensões, conforme tem pontuado o Projeto Abepss Itinerante (2018).
Isto posto, é fundamental trazer à tona como no EaD os fundamentos do
Serviço Social vêm sendo discutidos, tanto no plano do formato apostilado,
quanto nas video-aulas que se tornam as sínteses pedagógicas de acesso ao
conhecimento por parte dos estudantes.

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


144 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

No terreno da formação, a subtração dos aportes referenciais do


projeto de formação historicamente desenhado pelas diretrizes curriculares
da Abepss tende a expressar, nas novas agências de formação, inéditas
configurações ao Serviço Social brasileiro. No contexto das disputas de
projetos societários e, por sua vez, de concepções teórico-políticas, emergem
conflitos e tensões acerca da relação teoria/prática, que se manifestam desde
a verbalização do senso comum de que “na prática a teoria é outra”, até
mesmo a um discurso de que, por ser uma profissão de natureza interventiva,
a formação profissional deve orientar-se pelo “como fazer profissional”,
distanciando ou mesmo fragilizando o repertório teórico-crítico que, en-
quanto categoria profissional, acumulamos nos últimos anos. Em outras
palavras, a tendência de fragilização teórico-metodológica da formação,
diante das ofensivas que a política educacional vem recebendo na
atualidade, tem deslocado o lugar que a teoria ocupa ao longo do processo
formativo, promovendo uma fratura na unidade teoria e prática.
Os conflitos e as tensões acerca das bases analíticas de apreensão
da realidade social e das particularidades da profissão poderão desdobrar-
se, particularmente no EaD, nas seguintes linhas tendenciais: 1) no redimen-
sionamento da forma de acesso ao conhecimento acerca dos fundamentos
teórico-práticos da profissão, haja vista um movimento de apostilamento e
de hipertrofia de recursos midiáticos que ocorre na formação a distância; 2)
na ausência de recurso à literatura clássica das teorias sociais, especialmente
do marxismo como fonte teórico-política essencial para o entendimento da
realidade social e das particularidades da profissão, bem como a possível
recorrência a autores estranhos ao universo categorial marxiano e marxista;
3) na tendência ao metodologismo ou o privilégio do ensino da dimensão
interventiva no eixo de fundamentos do trabalho profissional das diretrizes
curriculares da Abepss; restringindo esse debate à questão dos instrumentos
e técnicas na formação profissional, a partir de uma apropriação pragmática
e tecnicista “do que fazer e do como fazer”; deslocando os fundamentos da
dimensão técnico-operativo do vínculo com as dimensões teórico-me-
todológicas e ético-políticas; e 4) no conservadorismo/ecletismo teórico: o
processo de padronização do conteúdo teórico da formação tende a ser
elaborado por influência de pensamentos difusos e distantes dos referenciais
teóricos e políticos que assumem hegemonia na formação profissional em
Serviço Social. A vala do ecletismo teórico e as expressões de conserva-
dorismo podem assumir a tônica do conteúdo formativo, desenhado em
apostilas, que sintetizam o material didático-pedagógico.

Conclusões

O cenário que se abriu à formação profissional em Serviço Social


no Brasil, nos últimos anos, tem demonstrado tensões, conflitos e contradi-

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 145
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

ções de fundo. Particularmente, o contexto de expansão de políticas sociais,


sob a égide do chamado neodesenvolvimentismo e diante da centralidade
da assistência social na conformação das políticas sociais brasileiras (MOTA,
2010), conferiu demanda por novos agentes profissionais. Nesse processo,
a racionalidade sociopolítica do empresariado viu o curso de Serviço Social
como um novo “nicho de mercado”, sobretudo em meio à interiorização
das atividades profissionais.
Atualmente, e como já situamos em ocasiões anteriores deste
artigo, 60% da categoria profissional está sendo formada no EaD (INEP,
2018), o que nos coloca em alerta quanto à qualidade e ao tipo de formação
que vem sendo ofertada nessa realidade pedagógica. Nesse sentido, a
categoria profissional tomou forte posição de enfrentamento nos últimos
anos, lançando campanhas e documentos que explicitaram incompa-
tibilidades entre o ensino de graduação a distância e o projeto de formação
do Serviço Social, umbilicalmente vinculado ao projeto ético-político pro-
fissional.
No bojo das incompatibilidades existem tendências ideológicas,
teóricas e culturais que se movem na particularidade do EaD, sobretudo se
nos reportarmos ao EaD como projeto de expansão do ensino num país que
apresenta a heteronomia educacional, como expressão da dependência
econômica e político-cultural com os países de capitalismo hegemônico. A
nosso ver, essa modalidade de ensino tende a reproduzir um tipo de
educação teórico-culturalmente residual e desqualificada às classes
trabalhadoras mais empobrecidas, perfil que se destina à educação que se
afasta do modelo de universidade presencial, responsável pela formação
de quadros intelectuais. No entanto, a universidade pública brasileira
também tem sido impactada pelas amplas propostas de alterações das
políticas educacionais. Em tempos difíceis de contrarreforma universitária,
o ensino e a pesquisa são prejudicados.
Por isso, quando nos referimos aos desafios da apropriação dos
fundamentos teórico-metodológicos do Serviço Social no EaD queremos
afirmar que tendencialmente há uma reconfiguração teórico-cultural e
ideológica da formação, se compararmos ao projeto hegemônico de
formação do Serviço Social que consta nas diretrizes curriculares da Abepss.
Contudo, este último não pode ser visto como mera petição de princípios,
mas como expressão de um acúmulo cultural radicalmente crítico.
Nosso artigo buscou explicitar que a formação no EaD apresenta
desafios da referida apropriação do ponto de vista pedagógico, teórico e
ideológico. Diante disso, o Serviço Social precisa acumular insumos e
desenvolver pesquisas que evidenciam a realidade da formação nas
plataformas virtuais para que, desse modo, possa colher subsídios que
sustentem os enfrentamentos concretos a essa modalidade de ensino. É
estratégico continuarmos na luta pela defesa de um projeto educacional
radicalmente crítico, presencial, gratuito, laico e de qualidade.

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


146 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

Referências

ABEPSS. Projeto Abepss itinerante. Os fundamentos do Serviço Social: as


atribuições e competências em debate. 2018. Disponível em: http://
www.abepss.org.br/arquivos/textos/documento_201804131207199954
220.pdf. Acesso em: abr. 2019.
BARRETO, R. Uma análise do discurso hegemônico acerca das tecnologias
na educação. Perspectiva, Florianópolis, v. 30, n. 1, jan./abr., 2012.
CARDOSO, F. G. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos do Ser-
viço Social: tendências quanto à concepção e organização dos conteúdos
na implementação das diretrizes curriculares. Temporalis, Brasília, ano 7,
n. 14, 2007.
DUARTE, N. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? São
Paulo: Autores Associados, 2008.
FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva. São Paulo: Cortez,
2010.
GUERRA, Y. Consolidar avanços, superar limites e enfrentar desafios: os
fundamentos de uma formação profissional crítica. In: GUERRA, Y. et al.
Serviço Social e seus fundamentos: conhecimento e crítica. Campinas: Papel
Social, 2018.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Cortez, 1993.
HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo,
2014.
IAMAMOTO, M. A formação acadêmico-profissional no Serviço Social bra-
sileiro. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 120, out./dez., 2014.
INEP. Censo da educação superior. 2015. Disponível em: http://inep.gov.br/
censo-da-educacao-superior. Acesso em: out. 2016.
INEP. Censo da educação superior. 2017. Disponível em: http://inep.gov.br/
censo-da-educacao-superior. Acesso em: out. 2018.
JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São
Paulo: Ática, 1996.
KROTON EDUCACIONAL. 2017. Disponível em: http://www.kroton.com.br/.
Acesso em: abr. 2017.
LIMA, K. A política de educação superior à distância nos anos de neolibe-
ralismo. Perspectiva, Florianópolis, v. 29, n. 1, jan./jun. 2011.
MANDEL, E. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008.

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 147
} O ENSINO A DISTÂNCIA E AS TENDÊNCIAS DA APROPRIAÇÃO – SILVA, A. I. C. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45218

MOTA, A. E. A centralidade da assistência social na seguridade social bra-


sileira nos anos 2000. In: MOTA, A. E. (org.). O mito da assistência social:
ensaios sobre Estado, política e sociedade. São Paulo: Cortez, 2010.
MOTA, A. E. A regressão civilizatória e as expropriações de direitos e das
políticas sociais. Argumentum, Vitória, v. 9, n. 3, set./dez., 2017.
NETTO, J. P. Teoria, método e história na formação profissional. Cadernos
Abess, São Paulo, n. 3, 1986.
NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no
Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 2006.
NEVES, L. M. W. A reforma da educação superior e a formação de um novo
intelectual urbano. In: NEVES, L. Educação superior: uma reforma em pro-
cesso. São Paulo: Xamã, 2006.
PEARSON EDUCATION. [2016]. Disponível em: https://br.pearson.com/.
Acesso em: out. 2016.
SANTOS, C. M. Prefácio. In: GUERRA, Y. et al. Serviço Social e seus fun-
damentos: conhecimento e crítica. Campinas: Papel Social, 2018.
SILVA, A. I. C. Crítica à formação profissional em Serviço Social no ensino
a distância. Em Pauta, Rio de Janeiro, n. 37, v. 14, 2016.
SILVA, A. I. C. Os ideários dos egressos da formação profissional em Serviço
Social no ensino a distância. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) –
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal de
Pernambuco, 2018.
SILVA, A.I.C; AMARAL, A. S. Regressividade no direito à educação, ten-
dências pedagógicas do EaD e Serviço Social brasileiro. Ser Social, Brasília,
n. 45, v. 21, 2019.
SIMIONATTO, I. A concepção de hegemonia em Gramsci. Serviço Social e
Sociedade, São Paulo, ano 14, v. 43, 1993.
UNOPAR. Universidade do Norte do Paraná. Guia de percurso do curso de
Serviço Social. 2013. Disponível em: Acesso em: abr. 2015.

DOI: 10.12957/rep.2019.45218
Recebido em 15 de março de 2019.
Aprovado para publicação em 04 de julho de 2019.

A Revista Em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea está licenciada com uma Licença Creative
Commons Atribuição 4.0 Internacional.

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2 o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 134 - 148


148 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO

FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL: ATRIBUIÇÕES E COMPETÊNCIAS PROFISSIONAIS

The fourth edition of ABEPSS Itinerante.


Social Work Foundations: Professional duties and competences

Gustavo Javier Repetti


https://orcid.org/0000-0002-8074-7002

Virginia Alves Carrara


https://orcid.org/0000-0001-9318-0749

RESUMO
O relatório que aqui apresentamos é parte da documentação e registro da quarta edição do projeto ABEPSS
ITINERANTE sob coordenação da ABEPSS durante o biênio 2017-2018, intitulado Os Fundamentos do Serviço
Social: as atribuições e competências profissionais em debate. O documento situa historicamente o projeto -
sua construção e execução -, sua lógica, como continuidade das três edições anteriores, como estratégia
político-acadêmica de enfrentamento ao processo de precarização da formação profissional, das condições
de trabalho de assistentes sociais e aos ataques constantes às instâncias de organização acadêmico-
política. Apresentamos os dados referentes à sua implementação nas 34 oficinas em 22 estados do país e no
Distrito Federal, com a participação aproximada de 1300 pessoas entre profissionais e estudantes. Os
principais desafios para a formação, o trabalho e a organização política de assistentes sociais no Brasil são
apresentados, apontando algumas estratégias para o seu enfrentamento.

PALAVRAS-CHAVE
ABEPSS Itinerante. Formação profissional. Trabalho profissional. Organização política. Diretrizes
Curriculares.

ABSTRACT
This report is part of the documentation of the fourth edition of the ABEPSS ITINERANTE project
coordinated by ABEPSS during the 2017-2018 period, entitled Social Work Foundations: Professional Duties
and Competences Under Debate. This document presents the historical context where the project took
place, explains the logic of the project in the continuum of the three previous editions. This project is a


Assistente Social. Doutor em Serviço Social. Professor adjunto IV do Departamento de Fundamentos do
Serviço Social, Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (UFRJ, Rio de Janeiro,
Brasil). Avenida Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Rio de Janeiro (RJ), CEP.: 21941-901. E-mail:
gustavo.essufrj@yahoo.com.br.

Assistente Social. Pós-Doutora. Professora Associada II da Universidade Federal de Ouro Preto. (UFOP,
Ouro Preto, Brasil). rua Professor Paulo Magalhães Gomes, 122, Ouro Preto (MG), CEP.: 35400-000. E-mail:
vcarrara@ufop.edu.br.

DOI 10.22422/temporalis.2020v20n40p284-299

© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2019 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative
Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o
material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo
que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
284
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES

political and academic strategy to confront the process of precarization of professional training, working
conditions of social workers, and to face the attacks against academic and political organizations. This
document presents data about the implementation of the project at 34 workshops in 22 states as well as in
the Federal District of Brazil. Around 1300 people participated including professionals and students. This
document also presents the principal challenges for training, work, and the political organization of social
workers in Brazil, and proposes strategies to overcome them.

KEYWORDS
ABEPSS Itinerante. Professional Training. Professional Work. Politic Organization. Curricular Guidelines.

Submetido em: 30/4/2020. Aceito em: 19/10/2020.

INTRODUÇÃO

E ste relatório é parte da documentação e registro da quarta edição do Projeto


ABEPSS ITINERANTE: Os Fundamentos do Serviço Social: as atribuições e
competências profissionais em debate, executado pela Gestão 2017 - 2018: Quem é
de luta, resiste! A Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social - ABEPSS -
em articulação com o Conjunto CFESS/CRESS e a ENESSO, ao longo do processo de
consolidação do Projeto Ético-Político, vem construindo estratégias de enfrentamento e
combate à precarização da formação e do trabalho profissional.

Tornou-se uma exigência precípua esta articulação político-acadêmica, especialmente


pelos desafios advindos da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB),
com fortes traços neoliberais, que ao longo dos anos seguintes significou a consolidação
da lógica mercadológica na política de educação através das várias contrarreformas
operadas.

A LDB, Lei nº 9.394, aprovada em 1996, foi elaborada no contexto brasileiro pós-ditadura
civil-militar-empresarial, numa conjuntura internacional marcada pelo avanço político-
econômico neoliberal. A definição da política de educação nacional expressou os projetos
de educação em disputa e as diferentes concepções de mundo presentes na sociedade
brasileira profundamente marcada pela desigualdade de classe, pelo racismo, pelo
heteropatriarcado, que nos leva a perguntar: educar para qual sociedade?

É no bojo dessa dinâmica que as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Serviço Social
(1996) foram elaboradas, a partir do aprofundamento dos avanços do Currículo Mínimo
(1982). De acordo com Abreu (2007) a proposta apresentada pela ABEPSS sofreu
substantivas alterações em seu processo de aprovação pelo Conselho Nacional de
Educação (CNE)1. No mesmo sentido, Grave (2013) afirma que as diretrizes construídas
pela entidade foram, no seu processo de aprovação, esvaziadas da sua lógica2.

1
Resolução nº 15, de 13 de março de 2002. Estabelece as Diretrizes Curriculares para os cursos de Serviço
Social. O Presidente da Câmara de Educação Superior, no uso de suas atribuições legais e tendo em vista o
disposto na Lei 9.131, de 25 de novembro de 1995, e ainda o Parecer CNE/CES 492/2001, homologado pelo
Senhor Ministro de Estado da Educação em 9 de julho de 2001, e o Parecer CNE/CES 1.363/2001,
homologado em 25 de janeiro de 2002 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2002).
2
O projeto original foi comprometido com alterações inclusive sobre “[...] o perfil de bacharel em Serviço
Social onde constava ‘profissional comprometido com os princípios e valores norteadores do Código de
Ética do Assistente Social’, que foi retirado e substituído por ‘utilização de recursos da informática’ [...]”,
entre outros elementos, segundo Iamamoto (2012, p. 43, grifos da autora).
285
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO. FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

Os imperativos do contexto político-econômico neoliberal impõem regressividade aos


direitos sociais, avanço da lógica pragmática, privatista e de cumprimento de métricas a
fim de atender aos interesses do mercado. O processo de expansão do ensino superior
(seja em instituições públicas ou privadas) na modalidade presencial não se materializou
com o investimento necessário para a garantia de uma formação profissional de
qualidade. Nesse cenário, as modalidades de formação semipresencial e à distância (EAD)
- já previstas na neoliberal LDB- gradativamente se consolidaram e expandiram na área de
Serviço Social, apesar dos intensos enfrentamentos encampados pela entidade. Nesse
contexto, a ABEPSS intensificou a construção de estratégias tendentes à consolidação da
implantação das Diretrizes Curriculares de 1996 junto aos cursos de Serviço Social tanto
das escolas filiadas à entidade quanto daquelas não filiadas.

Uma das respostas da entidade para acompanhar este processo foi a avaliação3 realizada
pela ABEPSS a respeito da implementação das Diretrizes Curriculares quando dos 10 anos
de sua aprovação. Com os seus resultados, apontou-se uma série de limites e desafios
que demandaram enfrentamento pelas sucessivas gestões da ABEPSS, constituindo o
Projeto ABEPSS ITINERANTE uma das estratégias político-pedagógicas construídas4.

O objeto desta quarta edição centrou-se nas atribuições e competências profissionais de


assistentes sociais captadas na relação entre o trabalho e a formação profissional e
analisadas à luz dos fundamentos históricos, teórico-metodológicos e ético-políticos do
Serviço Social.

O documento que aqui apresentamos sistematiza o processo de planejamento e


desenvolvimento dessa edição, os seus aspectos gerais, as tendências encontradas nos
debates e os principais desafios para a formação, para o trabalho profissional e para
organização política de assistentes sociais.

OS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL: ATRIBUIÇÕES E COMPETÊNCIAS


PROFISSIONAIS EM DEBATE

O Projeto ABEPSS ITINERANTE constitui uma ação de fortalecimento do conjunto de


estratégias em defesa da formação e do trabalho profissional com qualidade que vem
sendo construídas na indissociabilidade das lutas coletivas junto ao conjunto
CFESS/CRESS e a ENESSO através das comissões de formação dos CRESS’s na sua
execução. A retomada da discussão das Diretrizes Curriculares, com ênfase nos
Fundamentos do Serviço Social, nas atribuições e competências profissionais, vem sendo
demandada nos encontros da categoria, no sentido de enfrentar o aligeiramento da
formação e o avanço das forças neoconservadoras que atravessam o Serviço Social,
reduzindo a formação a um conjunto de repasses de conteúdos e procedimentos de
intervenção numa direção tecnicista e meramente funcional aos interesses do mercado.
Isto é, um treinamento sustentado em uma concepção de competência reduzida à
perspectiva instrumental que se distancia da concepção de competência crítica definida
como a capacidade de desvelar as contradições constitutivas da sociedade capitalista que
se apresentam ao nosso exercício profissional, apreendidas como múltiplas expressões da

3
Cujos resultados foram publicados em: Abepss (2007).
4
Para maiores informações a respeito das edições anteriores do projeto Cf. Teixeira, Aquino e Gurgel,
(2016) e Abreu (2013).
286
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES

questão social, e não como problemas sociais fragmentados. Competência crítica supõe a
apreensão da indissociabilidade das dimensões teórico-metodológica, ético-política e
técnico-operativa. Em outros termos, reduzir a concepção de competência apenas à
competência instrumental imposta pelo mercado de trabalho, como se saber fazer
pudesse se autonomizar das dimensões de por que e para que fazer, fortalecerá
intervenções profissionais funcionais à reprodução da ordem vigente.

Na sequência das três edições anteriores, o projeto se propôs a fortalecer a concepção de


fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos do Serviço Social que
consubstanciam a lógica das Diretrizes Curriculares da ABEPSS na problematização do
trabalho profissional e das requisições institucionais em articulação com a formação,
como um dos elementos de sustentação do projeto ético-político; fortalecendo, assim, o
projeto de formação profissional do Serviço Social brasileiro.

A proposta abordou os fundamentos históricos, teórico-metodológicos e ético-políticos


do Serviço Social na particularidade da sociedade brasileira frente às atuais
transformações societárias; as determinações do trabalho assalariado: o assistente social
como trabalhador assalariado; a crise capitalista, metamorfoses no mundo do trabalho e
seus desdobramentos nas condições e relações de trabalho e na formação profissional
dos assistentes sociais e as atribuições e competências sócio-profissionais e políticas, as
demandas profissionais e requisições institucionais e as tendências expressas nas
respostas profissionais na contemporaneidade.

A proposta do projeto ABEPSS ITINERANTE recupera e revigora a concepção de Serviço


Social que tem como solo a história da sociedade, na compreensão das particularidades
da profissão como especialização do trabalho coletivo, que para tanto requer a
apreensão das determinações sócio-históricas do seu processo de institucionalização na
realidade brasileira, como também “[...] a herança cultural que vem respaldando as
explicações efetivadas pelo Serviço Social sobre as relações sociais, suas práticas, suas
sistematizações e seus saberes” (ABEPSS, 1996, p. 67). Nesta direção, a elaboração e
desenvolvimento do Projeto ABEPSS ITINERANTE em suas quatro edições têm tido a
tarefa desafiadora de recolocar sistematicamente na agenda do conjunto da categoria
um dos pressupostos mais importantes do Serviço Social

[...] o significado sócio-histórico e ídeo-político do Serviço Social está inscrito no


conjunto de práticas sociais que são acionadas pelas classes e mediadas pelo
Estado, em face das sequelas da questão social [...] Afirma-se que a
particularidade do Serviço Social, como especialização do trabalho coletivo,
inscrito na divisão social e técnica do trabalho, está organicamente vinculada às
configurações estruturais e conjunturais da questão social e às formas históricas
do seu enfrentamento, que são permeadas pela ação dos trabalhadores, do
capital e do Estado
(ABEPSS/CEDEPESS, 1996, p. 154 apud ALMEIDA et al., 1997, p. 27-28).

O projeto de educação pública, gratuita, laica, socialmente referenciada, presencial e


universal está sendo frontalmente atacado pelo projeto do capital para a educação
(ANDES-SN, 2019). Na área de Serviço Social isso significa a tentativa de destruição da
lógica curricular inovadora proposta pelas Diretrizes Curriculares para os Cursos de
Serviço Social de 1996, que busca superar a fragmentação do processo de ensino e
aprendizagem, a indissociabilidade universidade e sociedade, adensar o pensamento
287
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO. FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

crítico nos processos de investigação/intervenção, enfim, incorporar a razão dialético-


materialista imprescindível para a apreensão da realidade social.
O Projeto ABEPSS ITINERANTE5 traz “[...] o Serviço Social para o centro e na articulação
da formação profissional, como eixo estruturante do currículo e engrenagem que
movimenta os conteúdos dos núcleos de fundamentação” (GUERRA, 2018, p. 29). Dessa
forma, o projeto se afirma como uma das estratégias político-didático-pedagógicas de
fortalecimento do nosso patrimônio acadêmico-político e sócio-profissional, diante da
hegemonia da racionalidade instrumental.

O processo de planejamento6 iniciou-se em agosto de 2017 com reuniões remotas


seguidas de uma reunião presencial durante a Oficina Nacional da ABEPSS em novembro
de 2017. Na sequência, foi realizada uma oficina preparatória em Nova Almeida (ES), no
mês de fevereiro de 2018 objetivando um amplo debate sobre o projeto e a formação das
facilitadoras que participaram da execução das oficinas em todo o Brasil, garantindo a
tradição de construção coletiva e democrática da entidade. A participação do professor
Dr. Mauro Luiz Iasi foi fundamental, contribui com esse processo de formação na
perspectiva da educação popular, escolhida como a metodologia a ser desenvolvida nas
oficinas regionais nesta edição do projeto7.

A 4° Edição do projeto ABEPSS ITINERANTE8 na região Centro Oeste ocorreu em distintas


datas, durante os meses de junho a setembro do corrente ano, estabelecidas de acordo
com a particularidade de cada Estado. Observa-se que os módulos I e II ocorreram em
dois blocos no estado de Goiás e no Distrito Federal e de forma concentrada em três dias
no estado de Mato Grosso. O total de participantes foi de 86 pessoas.

Na Regional Leste as oficinas se desenvolveram no Rio de Janeiro (Capital e Campos dos


Goytacazes); Espírito Santo (Vitória, Capital) e Minas Gerais (Belo Horizonte, Juiz de Fora,
Montes Claros, Viçosa e Uberaba). Contabilizou-se um total de 258 participantes.

5
A proposta do projeto com os objetivos, conteúdos trabalhos nos módulos, e a metodologia, estão
disponíveis em: http://www.abepss.org.br/abepssitinerante4edicao-71.
6
A comissão organizadora Nacional foi composta por membros da Executiva Nacional da Abepss, das
diretorias regionais da entidade, uma representação do Conselho Federal de Serviço Social e uma
representação do GTP da ABEPSS Serviço Social, Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional.
Contamos ainda com a fundamental contribuição da professora Dra. Rosângela Batistoni que gentilmente
autorizou a edição da palestra por ela proferida, em novembro de 2017, no I Seminário Nacional sobre os
Fundamentos do Serviço Social realizado na UFRJ. O vídeo foi utilizado como material didático-pedagógico
durante a execução do projeto. É fundamental destacar, ainda, o apoio político e financeiro do Conjunto
CFESS/CRESS como também das unidades de formação acadêmica que acolheram a realização das oficinas.
7
O projeto foi executado no período de abril a setembro de 2018, se desenvolveu em 22 estados mais o
Distrito Federal, e foram realizadas de 34 oficinas com a presença de 1319 participantes aproximadamente.
Afirmamos que o número é aproximado devido a diversidade de formas de registro identificadas nos
relatórios regionais. Observam-se diferenças entre número de inscritos, de participantes, de concluintes,
nem todos os relatórios apresentam essas especificações. Outra questão a ser destacada diz respeito à
classificação dos participantes por segmento. A referência a “docentes”, neste relatório, não nega a
atividades docente como atribuição privativa de assistentes sociais. Entretanto, ocorreu participação de
docentes não assistentes sociais, por isso a categoria docentes inclui assistentes sociais no exercício da
docência universitária e docentes não assistentes sociais.
8
Uma breve exposição dos dados quantitativos é importante para podermos dimensionar o alcance do
projeto em tempos de condições precárias de trabalho que se traduzem em dificuldades para a participação
de atividades como essa.
288
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES

Na região Nordeste o total de participantes nas oito oficinas realizadas em seis dos sete
estados que a compõem foi de 289, tendo sido realizadas em Maceió (Alagoas) Salvador
(Bahia) Fortaleza e Iguatu (Ceará), Patos e Campina Grande (Paraíba), Recife
(Pernambuco) e Aracaju (Sergipe).

A região Norte realizou seis oficinas distribuídas nas cidades de Belém (Pará), Palmas
(Tocantins), Teresina (Piauí), São Luís (Maranhão), Manaus (Amazonas) e Boa Vista
(Roraima), contabilizando 324 participantes.

A região Sul I realizou oficinas nos três estados que a compõem (Paraná. Santa Catarina e
Rio Grande do Sul) com 117 participantes aproximadamente.

Na Região Sul II foram realizadas seis oficinas, dentre as quais cinco tiveram lugar no
estado de São Paulo e uma em Mato Grosso do Sul, com 245 participantes.

CONTEXTO SÓCIO HISTÓRICO DA REALIZAÇÃO DAS OFICINAS: ASPECTOS GERAIS E


REPERCUSSÕES

Os relatórios regionais destacam aquilo que parece uma tendência constante nos eventos
da profissão em relação a inscrição e efetiva participação. Observou-se em todas as
regionais que esta relação guardou uma proporção de 50%, isto é, em todas as oficinas
participou apenas a metade do contingente que tinha realizado inscrição online. Segundo
análise dos regionais isto foi um dos elementos que obstaculizou a participação, pois a
capacidade total de vagas não foi utilizada.

Os relatórios regionais apontam para a conjuntura nacional do período em que se


desenvolveram as oficinas, como mais um elemento a incidir sobre a mobilização e
participação dos profissionais e estudantes. A execução da vereadora Marielle Franco e
do motorista Anderson Gomes no Rio de Janeiro na noite do dia 14 de março significou
um marco que impactou a organização política e a agenda dos movimentos de esquerda
e do amplo campo do pensamento progressista. O país estava em pleno processo de
eleições gerais, com acirramento dos discursos ultraconservadores em meio a utilização
das chamadas fake news. Em direção contrária, o movimento #EleNão, iniciado e liderado
pelas mulheres, se posicionava e buscava se contrapor ao avanço da ultradireita. Eventos
de variadas naturezas se somaram a este contexto: de caráter político/social como a
greve dos caminhoneiros, político/organizativo/acadêmicos como a agenda do mês de
maio no Serviço Social, ou de caráter recreativo/comercial como a copa do mundo e
foram assinalados como empecilhos no processo de execução das oficinas.

Quanto ao perfil do público participante nas oficinas observa-se a expressiva participação


de supervisores de campo e de estudantes de graduação. Destaca-se nos relatórios
regionais que a participação de discentes de pós-graduação é quase nula. Quanto à
participação docente, observa-se – diferente da terceira edição - a inexpressiva presença
docente, seja na condição de supervisores acadêmicos ou não.

Nesta quarta edição do projeto realizou-se um grande esforço para garantir a execução
descentralizada das oficinas, e essa dinâmica de interiorização foi positivamente avaliada
em todas as regiões.

289
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO. FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

Na secção que se segue, apresentaremos as principais tendências do debate e os desafios


para a formação, para o trabalho profissional e para a organização política da categoria a
partir da análise dos seis relatórios regionais.
PRINCIPAIS DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO PARA O TRABALHO PROFISSIONAL E PARA A
ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DE ASSISTENTES SOCIAIS

Nas três dimensões analisadas -formação, trabalho e organização política- a crise


estrutural do capital, seus desdobramentos nas formas de expressão contemporânea da
questão social e as estratégias do capital para o seu enfrentamento adquiriram
centralidade. Todas as oficinas destacaram as mudanças no mundo do trabalho
caracterizando novas formas de vínculos empregatícios que implicam profundos
retrocessos nos direitos laborais historicamente conquistados, onde os trabalhadores
assumem novas formas como Pessoa Jurídica (PJ), Microempreendedor Individual (MEI)
ou trabalhador voluntário. A terceirização, a precarização do trabalho, os baixos salários9,
a polivalência, a necessidade de vários vínculos para sobreviver, o caráter gerencialista
das políticas sociais e o produtivismo são alguns dos traços presentes no debate que
acirram a fragmentação da classe trabalhadora. Essa fragmentação impacta a categoria
profissional e se combina com um forte processo de ataque às tradicionais formas de
organização política, uma tendência à demonização da política, dos partidos políticos e
um ataque frontal à organização sindical. O desmonte do estado de direito e o
desfinanciamento das políticas sociais se agravam, sobretudo, nos municípios de
pequeno porte – mas não somente - com a interferência da política local no trabalho
profissional, o que tem significado um reforço à retrógada concepção do primeiro
damismo, do clientelismo, da lógica do favor, elementos que atravessam a formação
sócio histórica brasileira. Expressão dessa fragmentação pode ser identificada com o
relato surgido durante os debates a respeito de um revigoramento de defesas de pautas
conservadoras e até reacionário-fascistas por parte de uma parcela de profissionais, não
hegemónica, que revela, no mínimo, um total desconhecimento dos princípios
fundamentais do Código de Ética profissional. Deve-se destacar que se trata de uma
tendência geral na sociedade brasileira que se expressa com particularidade no âmbito
profissional.

Esse panorama coloca grandes desafios para o exercício profissional sintonizado com os
valores e princípios do Projeto Ético Político Profissional. A identificação de atribuições e
competências profissionais é atravessada por uma confusa e, às vezes, mimética relação
entre política social e profissão. Este dilema compareceu nos debates de todas as oficinas
e se desdobrou nas seguintes questões. Em primeiro lugar, parcela de assistentes sociais
afirma haver pouco conhecimento das atribuições e competências profissionais por parte
dos contratantes dos serviços de assistentes sociais e por parte dos outros profissionais
das equipes. Informam que esta falta de conhecimento se traduz em “requisições
tradicionais, conservadoras”, como: aconselhamento, adequação de comportamento,
técnicas de Serviço Social de Caso, atividades de recreação, ajustamento social,
tratamento com base na remoção dos fatores psicossociais, etc.

Identificamos, aqui, a necessidade de distinguir o que é uma atribuição privativa, o que é

9
Enfatizou-se a invasão dos espaços de trabalho no espaço do tempo livre dos trabalhadores,
especialmente com o uso dos recursos tecnológicos comunicacionais. Destacou-se aqui a pertinência do
debate salarial para a categoria profissional.
290
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES

uma competência profissional e o que é uma requisição institucional10. Parece ter


invadido o discurso profissional a afirmação de que as instituições colocam à profissão
“demandas conservadoras”. Evidentemente, uma análise aprofundada a respeito da
natureza e significado do pensamento conservador e seu papel na constituição da ciência
e das profissões modernas supera as possibilidades do presente relatório. Entretanto,
vale lembrar que as profissões modernas emergem como parte do processo de
reconfiguração da intervenção do Estado visando a conservação da ordem social. Dessa
forma, a funcionalidade das instituições burguesas se desenvolve na manutenção do
status quo, na defesa dos interesses do capital. Outrossim, é preciso (re) afirmar que não
são as instituições burguesas as instâncias definidoras daquilo que são nossas atribuições
privativas e competências profissionais. Se são elas que nos contratam, e o fazem desde
as suas demandas, aquelas [as atribuições privativas], são definidas a partir da concepção
de profissão sustentada em uma concepção de mundo que orienta a organização coletiva
do Serviço Social brasileiro. Isto é, as instituições irão requerer de assistentes sociais os
mais variados trabalhos quase sempre tendentes a manutenção da ordem social. É
responsabilidade do coletivo profissional criar respostas profissionais coerentes com a
concepção de profissão que nos orienta. Por isso, afirmações como “perspectivas
conservadores, mesmo não tendo hegemonia, ainda perpassam a profissão”, como
afirmado nos debates, devem ser problematizadas, pois, devemos perguntarmos: é
possível eliminar o pensamento conservador do debate profissional, sem superar a
ordem burguesa?

Nos debates, apresentou-se a necessidade de se conhecer as atribuições dos outros


profissionais, alegação surgida sob a justificativa de “ir ao enfrentamento quando são
colocadas as demandas que são de outros profissionais”. Entendemos que essa assertiva
parte do pressuposto de que o conhecimento das atribuições e competências de outras
profissões nos capacitaria para a construção de estratégias de enfrentamento aos
desafios cotidianos postos ao nosso trabalho. É, todavia, a compreensão do lugar da
nossa profissão na divisão sócio técnica do trabalho, das suas particularidades como
especialização do trabalho coletivo que nos permitirá identificar nossas atribuições
competentemente. É este resgate que nos possibilita formação e trabalho com
competência teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política, requisitos
fundamentais que nos permitem defrontar com capacitação crítico-analítica, situações
como as elencadas. Destaca-se, ainda, no âmbito desta reflexão a menção ao fato da
profissão ser secundarizada por outras profissões fato interpretado por alguns
profissionais como “preconceito”11.

A temática sobre a desregulamentação das profissões foi explicitada nos trabalhos


desenvolvidos nas oficinas. Com a flexibilização das relações trabalhistas a profissão de
Serviço Social vem sendo impactada seja na desregulamentação, seja na
desespecialização, expressando as diferentes formas de precarização do exercício
profissional (GUERRA, 2010). Consideramos um desafio central a ser enfrentado,
especialmente quando temos nas políticas públicas os cargos com função genérica e
inespecífica, a exemplo do Técnico de Referência presente nos Centros de Atenção

10
Os participantes receberam com antecedência as referências bibliográficas, de leitura obrigatória para o
aproveitamento dos debates. No aspecto aqui apontado foi sugerida a leitura de Guerra (2016).
11
Para um aprofundamento a respeito do debate sobre o lugar subsidiário [o que não significa
secundarizado] da profissão na divisão sócio-técnica do trabalho Cf. Iamamoto e Carvalho 1982.
291
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO. FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

Psicossocial (CAPS), gerando “[...] a subordinação do trabalho do assistente social, ao


mesmo tempo que as particularidades de cada profissão são subsumidas a esta função
genérica onde todos fazem de tudo” (SILVA-TOMAZ, 2019, p. 50). Aspecto fundamental a
ser considerado é a condição de assalariamento, pois no contexto de agudização da
precarização das condições empregatícias intensifica-se a tensão entre o que é
demandado a Assistentes Sociais e o que estes têm como atribuições e competências
profissionais.

Evidenciou-se, nas discussões travadas ao longo das oficinas, questionamentos quanto ao


que se designou como “dilemas éticos decorrentes da definição de atribuições e
competências profissionais”, uma vez que os valores expressos e defendidos pelo PEP
estão na contramão da moralidade burguesa. Esses dilemas foram apresentados nos
debate como obstáculos para a “aplicabilidade” do código de ética diante das exigências
institucionais. Essa afirmação levanta duas questões distintas, mas indissociáveis. Em
primeiro lugar, faz-se menção às distinções entre atribuições e competências
profissionais, mas sem adentrar no significado dessa diferenciação. Em segundo lugar, a
pretensão de aplicabilidade é estranha ao entendimento dos valores e da ética profissional
“[...] como instrumento que possui uma dimensão jurídico-normativa, mas que pulsa, tem
vida e é atual quando compreendemos que as normas, os direitos e os deveres nele
inscritos são inspirados em uma concepção ética cujo fundamento é a ontologia do ser
social” (BARROCO; TERRA; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012, p. 21). Os
princípios e os valores éticos presentes no Código de Ética nos “[...] exige reflexão e
atitude críticas cotidianas sobre nosso agir pessoal e profissional à luz da liberdade, da
democracia, da justiça social, da equidade, e da emancipação humana tecendo um campo
de possibilidades que afirma e supera os direitos e deveres nele presentes” (BARROCO;
TERRA; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012, p.22).

As dificuldades na apreensão das atribuições e competências podem ser também


verificadas na já citada identificação entre profissão e política social. Compareceram nos
debates declarações de que o desmonte do trabalho do assistente social no Sistema
Único de Assistência Social (SUAS) tem ocorrido devido às gestões esperarem um trabalho
técnico sem críticas, e ainda que no sistema capitalista política social não é para funcionar.
Afirmações como estas nos levam a perguntar: qual a natureza e função da profissão?
Qual a natureza e função da política social? Compreender os fundamentos da política
social é uma das exigências teórico-metodológicas requeridas a assistentes sociais, a fim
de que se entenda a sua constituição e desenvolvimento na sociedade burguesa, a partir
do capitalismo monopolista de Estado, como um dos enfrentamentos à questão social,
objeto de intervenção e investigação profissional. A política social é comandada por uma
determinação político-econômica que a faz ser tal como é, independente da vontade
profissional. Ao que parece, essa questão é adjudicada a “problemas diversos nas gestões
públicas, que ainda são eminentemente políticas e não técnicas” o que explicaria o fato,
segundo essa análise, das políticas sociais não avançarem “nem mesmo no que propõem
as legislações em termos de uma gestão democrática. As políticas sociais avançam nas suas
legislações, porém os gestores não acompanham essas inovações e modernizações”. Além
de atribuir responsabilidade a uma certa vontade política ou capacidade de gestão,
desconhecendo a natureza e função social da política social no capitalismo
contemporâneo, aparece uma falsa cisão entre técnica e política que reproduz a
fragmentação típica das profissões modernas, funcional à reprodução da ordem social na

292
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES

perspectiva apologética, segundo a análise luckacsiana (LUKÁCS, 1992). Nessa mesma


linha de análise, alguns participantes indicaram falências nas condições éticas e técnicas
para o desenvolvimento do trabalho profissional, recursos humanos insuficientes, lugar
físico inadequado para material sigiloso, falta de tempo disponível para planejamento do
trabalho e para atualização/estudo. Estas características, se descoladas da configuração
contemporânea da intervenção do Estado perante a questão social podem aparecer,
como “queixas”. Pode-se identificar, nos relatórios depoimentos de frustrações e
adoecimento de profissionais atrelados ao fato de que estes não têm tempo para a
reflexão e muitas vezes acabam cumprindo tarefas administrativas que não requerem
formação especializada. Por isso, afirmamos a necessidade de aprofundar o debate
acerca da natureza e função social da profissão na contemporaneidade, e da natureza e
função social da política social como possibilidade de mediação do trabalho profissional.
Apreender essa concepção é indispensável para superar qualquer perspectiva fatalista ou
messiânica, como muito bem analisado por Iamamoto (1994).

A competência crítica para desvelar a realidade social e pensar formas de intervenção é


condição não apenas para a garantia de uma intervenção profissional qualificada, como
também, porque nos é exigido em nossa relação com os usuários “[...] garantir a plena
informação e discussão sobre as possibilidades e consequências das situações
apresentadas [...]” (BARROCO; TERRA; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012, p.
172), “[...] democratizar as informações e o acesso aos programas disponíveis no espaço
institucional [...]” ((BARROCO; TERRA; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012, p.
174). Neste sentido, devemos ter competência linguística, isto é capacidade de adequar a
nossa modalidade linguística ao contexto a fim de explicar, de construir a análise e as
respostas junto com a população usuária dos serviços, já que outro aspecto apresentado
nos debates foi a forma como a mídia constrói e utiliza a difusão de ideologias
mistificadoras, manipulatórias sobre as interpretações das múltiplas expressões da
questão social. As desigualdades de classe, raça, gênero e sexualidade e as lutas e
resistências da população são publicizadas criminalizando as estratégias coletivas para o
seu enfrentamento, criminalizando os movimentos sociais, instalando falácias a respeito
da redução da maioridade penal, mentirosas previsões sobre reincidência nas medidas
socioeducativas, dentre outras inverdades que atendem aos interesses dominantes.
Enfim, a hipertrofia do uso das redes sociais aparece como um entrave na formação da
consciência política da população, dos usuários dos serviços sociais.

Observa-se, nas estratégias e respostas do Estado frente à precarização das condições de


trabalho e de vida, e da agudização das múltiplas expressões da questão social, um
profundo processo de militarização da vida social onde se evidencia, mais uma vez, um
padrão de intervenção social que identifica questão social como caso de polícia.

Outro desafio encontrado por assistentes sociais nos diversos espaços de trabalho –
segundo apontado - é conseguir desenvolver pesquisa. Os registros de algumas oficinas
indicaram que as considerações e debates sobre a sistematização da intervenção
profissional foram inexpressivos, assim como as referências à dimensão investigativa e à
pesquisa como competência profissional, chamando a atenção para o caráter policialesco
dos processos de investigação quando estes são desenvolvidos. É fundamental destacar
que a pesquisa, na perspectiva do projeto ético político, remete a um componente
constitutivo da formação e do trabalho profissional. Essa concepção nos alerta para a

293
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO. FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

superação do equívoco de alocar a pesquisa no âmbito da formação profissional, e dentro


dela, na Pós-graduação. Entendemos que a competência crítica, na perspectiva assinalada
em parágrafos anteriores, exige o exercício da pesquisa no desenvolvimento do trabalho
profissional. Evidentemente, a pesquisa adquire particularidades em cada um desses
âmbitos, o que não supõe hierarquias, senão exigências diferenciadas de acordo com as
demandas postas à profissão tanto na formação quanto no trabalho profissional.
A partir da concepção de indissociabilidade entre as dimensões do trabalho profissional,
da formação e da organização política de assistentes sociais observamos que o cenário
até aqui traçado impõe desafios para a formação profissional já que ela passa por um
processo de precarização e desfinanciamento que não apenas é funcional à transferência
de orçamento público para o grande empresariado educacional transnacional, mas
também é funcional à formação de um perfil profissional alinhado com esses interesses,
que cada vez mais se distancia da proposta das nossas diretrizes curriculares.

Dessa forma, a precarização e os ataques frontais ao trabalho docente no ensino superior


refletem na qualidade do ensino superior que cada vez mais se orienta para uma
formação destinada exclusivamente às exigências do mercado de trabalho. Nesse
sentido, parece que a identificação política social/profissão se fortalece nessa perspectiva
de formação que parece mais um treinamento tecnicista que uma formação intelectual
crítica. A partir dos debates, observou-se que se opera um processo de apropriação de
termos e conceitos das políticas sociais pela profissão. Assim, há uma tendência a perder
de vista o lugar da política social como mediação importante para o exercício profissional,
mas que não elucida, totalmente, a natureza e função social da profissão12.

Sem sombra de dúvidas, o ensino à distância (única modalidade de ensino em alguns


municípios) constitui uma das maiores ameaças à formação profissional de qualidade,
contribuindo com a redução do custo com o trabalho docente. Os ataques à resolução
CFESS 533/2008, um instrumento legal de enfrentamento ao desmonte do projeto de
profissão em curso, foram apontados como sério desafio a ser enfrentado. O estágio
supervisionado ocupou e ocupa um lugar privilegiado como espaço de defesa de um
projeto de formação profissional socialmente referenciado. Durante as oficinas,
supervisores de campo relataram que os discentes provenientes das escolas EAD têm
profundo desconhecimento das dimensões teórico-metodológicas, ético-políticas e
técnico-operativas. Afirmou-se que as “novas metodologias” postas para o processo de
ensino-aprendizagem na área de Serviço Social como as chamadas “metodologias
ativas”, são exemplos dos processos de ensino voltados para o desenvolvimento de
competências e habilidades determinadas pelos organismos internacionais, do qual o
Processo de Bolonha é nítida expressão. Essa questão, como tendência para a política de
formação superior deve ser cuidadosamente analisada para evitar perspectivas
moralizadoras. Isto é, o mencionado desconhecimento, por parte dos estudantes, no que
se refere as dimensões da profissão responde a essa lógica de formação e não pode se
reduzir ao âmbito das escolhas individuais.

Destaca-se, através dos relatórios, que há assistentes sociais que compreendem


equivocadamente, ou de maneira limitada, que formação importante é aquela voltada
para capacitação em políticas sociais. Mais uma vez, não se trata de responsabilizar
individualmente os sujeitos. Trata-se de uma lógica de formação profissional funcional e
12
Para um aprofundamento desse debate Cf. Netto (1992).
294
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES

coerente com as demandas do mercado, que define e forma assistentes sociais para
exclusivamente atender ao que é necessário ao mercado. A tendência à responsabilização
individual pode se reproduzir, também, quando se faz referência ao novo perfil dos
estudantes. Nos debates afirmou-se que estaríamos presenciando um perfil de
estudantes mais pragmáticos, que vendo no diploma superior a chance de se inserir no
mercado de trabalho, encontram nos cursos em EaD, especialmente devido aos custos
das mensalidades, as “condições” para a realização de seus estudos. Diante dessas
colocações, que correspondem com a realidade vivenciada por um importante segmento
de discentes de Serviço Social, reforçamos a necessidade de sua interpretação como
expressões na vida singular desses sujeitos de uma política de exclusão da maioria da
população do acesso à possibilidade de uma educação superior de qualidade.

Uma questão que deve ser destacada, pois comparece expressivamente nos debates e se
repete desde as edições anteriores do projeto ABEPSS ITINERANTE, é uma demanda a
respeito da necessidade de que a formação profissional articule melhor a relação
teoria/prática. Essa demanda recorrente nos remete aos fundamentos da profissão, à
lógica das Diretrizes Curriculares em sua proposta inovadora de formação profissional.
Essa expressão fenomênica, qual seja, a constante reclamação pela relação teoria/prática
nos alerta para a necessidade de continuarmos aprofundando esse debate e sinaliza que
a escolha do tema para a quarta edição do projeto ABEPSS ITINERANTE foi bastante
acertada.

Outra questão que merece destaque é a referência nos debates à dificuldade de “atrair”
assistentes sociais para serem supervisores de campo. Duas questões devem ser
cuidadosamente pensadas. Em primeiro lugar, a referência parece ser sempre às
dificuldades da supervisão de campo e pouco ou nada se problematiza acerca da
supervisão acadêmica que transita por desafios similares. Em segundo lugar, os debates
apontam questões que responsabilizam os estudantes por essa dificuldade. Afirma-se nos
relatórios que os alunos chegam com deficiências de fundamentação teórica, “à espera de
dicas de como fazer, passivos e pouco propositivos o que desmotiva os profissionais a
oferecerem vagas”, “não veem nos estagiários parceiros, mas alguém que precisa de
condução, que exige tempo e dedicação, acarretando mais trabalho”. Relatos dessas
características expõem a necessidade de aprofundar o debate a respeito da natureza do
componente curricular estágio supervisionado. Trata-se de um momento da formação
profissional e, por isso, requer da supervisão de campo e acadêmica. Entretanto,
afirmações como as citadas parecem requisitar do estagiário um
posicionamento/comportamento que não lhe compete, isto é, parece que se espera do
estagiário o comportamento de mais um funcionário que venha a descomprimir os
serviços assoberbados pela ausência de concursos públicos ou contratações. Foram
relatadas as dificuldades que estagiários possuem para realizar uma leitura crítica da
realidade social “aliando teoria-prática e de proporem formas diferenciadas de
intervenção”, reiteramos, parece estar se desconhecendo o lugar pedagógico desse
componente curricular, já que em alguns relatos essas “dificuldades” dos estagiários
aparecem como justificadoras da negativa para a abertura de vagas de estágio
supervisionado. Ao mesmo tempo, os estudantes encontram sérias dificuldades para
permanecerem na universidade por conta do desmonte da política de assistência
estudantil e são obrigados a privilegiar estágios remunerados, o que significa, muitas
vezes, a secundarização da dimensão pedagógica desse componente curricular pela

295
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO. FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

necessidade de subsistência.

As condições de trabalho já abordadas nos parágrafos acima seriam, também,


responsáveis pela redução de campos de estágio, segundo alguns relatos, em função do
caráter temporário dos contratos.

Uma análise da realidade centrada na biografia individual dos sujeitos pode ser verificada
nas reflexões durante as oficinas e destacadas nos relatórios, como explicitamos em
parágrafos anteriores. Destacou-se o fato de que as novas gerações de estudantes estão
cada vez mais passivas e preocupadas com a certificação da sua participação em eventos,
pouco participativos em sala de aula, e indo para os estágios sem o conhecimento de seus
direitos, de sua condição de estagiário, atribuições e competências. Sem uma leitura que
permita apreender essas biografias individuais como expressões singulares de
determinações universais retrocederemos a análises culpabilizadoras e moralizadoras,
apesar de que as mesmas oficinas chamaram a atenção para a preocupação a respeito de
uma tendência a psicologização da questão social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sistematização dos debates desenvolvidos por todo o país na execução da quarta


edição do projeto ABEPSS ITINERANTE apontam desafios em várias dimensões. Em
primeiro lugar, enfatizamos a necessidade de dar continuidade ao projeto visto a
demanda pelo aprofundamento do estudo a respeito da lógica das diretrizes curriculares
de 1996 e dos desafios para a sua implementação e consolidação, o que constitui,
inclusive o objetivo precípuo do projeto. Esta necessidade se reafirma quando
identificamos nos debates referências a dificuldade para a efetivação do caráter
teórico/prático da formação em Serviço Social, dificuldade em ensinar os fundamentos, o
debate da ética e da ética profissional, a fragmentação entre disciplinas teóricas e
práticas13 e a necessidade de compreensão histórica da profissão. Nesse mesmo sentido,
observa-se o destaque para a necessidade de reflexão acerca dos instrumentos de
trabalho do assistente social, do Estágio Supervisionado (intensificando o debate sobre a
supervisão acadêmica), sobre questão social e formação da sociedade brasileira, gênero,
feminismo, diversidade sexual e questão racial como componentes curriculares
obrigatórios. Afirmou-se a necessidade de reflexão acerca da formação docente/aspectos
pedagógicos em Serviço Social no âmbito da pós-graduação surgindo, inclusive, uma
proposta de criação de unidades curriculares obrigatórias na pós-graduação para a
formação docente na perspectiva de retomada dos fundamentos da profissão.

Esses desafios demandam a construção de respostas coletivas fortalecendo as entidades


representativas da profissão. Dentre as principais propostas observamos o
fortalecimento ou criação das ações de extensão nas faculdades privadas, lembrando do
projeto em curso quanto a curricularização da extensão com profundo impacto nas
estruturas curriculares, impondo desafios a lógica das Diretrizes Curriculares para os
Cursos de Serviço Social. Enfatizou-se a necessidade de aumento da oferta de
especializações e/ou outros cursos de pós-graduação lato sensu, considerando que os

13
Cabe destacar que essa afirmação já supõe um equívoco, pois a divisão entre disciplinas teóricas e
práticas é estranha à lógica das diretrizes curriculares.
296
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES

concursos públicos já exigem pós-graduação e nem sempre a pós-graduação stricto sensu


atende as necessidades dos profissionais. Outro aspecto importante diz respeito à
proposta de construção de espaços coletivos, ou fortalecimento dos já existentes. É o
caso de espaços de socialização de experiências exitosas tanto no âmbito do estágio
supervisionado quanto do exercício profissional, sobretudo aquelas que ressignificam as
requisições institucionais. Propôs-se a criação/fortalecimento de fóruns de supervisão de
estágio em Serviço Social, como também a criação de seminários ou fóruns de
coordenadores de curso de Serviço Social. Destacou-se da importância da inserção de
assistentes sociais em movimentos sociais e outras instâncias organizativas de
enfrentamento aos retrocessos sociais. Uma preocupação recorrente em todas as
oficinas, segundo a sistematização dos debates, refere à apreensão do exercício da
docência em Serviço Social como atribuição privativa de assistentes sociais e, por isso, a
necessidade de construção de estratégias para a ampliação da participação desse
segmento em espaços como o projeto ABEPSS ITINERANTE.

A análise dos seis relatórios regionais, cujas principais tendências aqui apresentamos,
confirma que o debate sobre os fundamentos do Serviço Social com ênfase nas
atribuições e competências profissionais foi acertado, mas, evidentemente, não
esgotado. Nesse sentido, a continuidade do projeto como estratégia político-pedagógica
de defesa do projeto de profissão construído no Brasil nos últimos 40 anos é
fundamental.

REFERÊNCIAS

ABEPSS. Temporalis, Brasília (DF): Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço


Social, n. 14. jul./dez. 2007. Tema: Diretrizes Curriculares do Curso de Serviço Social: sobre
o processo de implementação.

ABEPSS. Lei de diretrizes curriculares de 1996. Rio de Janeiro, 1996.

ABREU, M. H. E. Experiência da “Abepss Itinerante”: A Atualidade do Projeto de


Formação Profissional Frente À Contrarreforma Da Educação. Temporalis, Brasília (DF):
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, ano 13, n. 25, jan./jul.2013.

ABREU, Mariana Maciel. Apresentação da Revista Temporalis. Diretrizes Curriculares do


Curso de Serviço Social: sobre o processo de implementação. Temporalis, Brasília (DF):
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, n. 14. Ano VII, jul./dez. 2007.

ALMEIDA, N. L. T. et al. Proposta básica para o projeto de formação profissional: novos


subsídios para o debate. Cadernos Abess, São Paulo, n.7, p. 15-57, 1997.

ANDES-SN. Projeto do Capital para a Educação: análise e ações para a luta. Volume 2.
Brasília (DF), 2019. Disponível em: https://www.andes.org.br/sites/publicacoes . Acesso
em: 22 mar. 2020.

BARROCO, Maria Lucia; TERRA, Sylvia Helena; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL
(Orgs). Código de Ética do/a Assistente Social Comentado. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Resolução nº 15, de 13 de março de 2002.


297
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO. FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

Estabelece as Diretrizes Curriculares para os cursos de Serviço Social. Brasília (DF), 2002.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES152002.pdf. Acesso em: 22
mar. 2020.

GUERRA, Y. A formação profissional frente aos desafios da intervenção e das atuais


configurações do ensino público, privado e a distância. Revista Serviço Social e
Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 104, 2010.

GUERRA, Y. Consolidar avanços, superar limites e enfrentar desafios: os fundamentos de


uma formação profissional crítica. In: GUERRA, Y. et al. (Orgs.). Serviço Social e seus
Fundamentos: conhecimento e crítica. Campinas: Papel Social, 2018. p.25-46.

GUERRA, Y. et al. Atribuições, competências, demandas e requisições: o trabalho do


assistente social em debate. Mesa temática coordenada: Fundamentos do trabalho do/a
assistente social no contexto de reconfiguração das políticas sociais no Brasil. In:
ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL, 15., 2016, Ribeirão
Preto -SP. Anais [...]. Ribeirão Preto: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social, 2016.

IAMAMOTO, M. V. Projeto profissional, espaços ocupacionais e trabalho do(a) assistente


social na atualidade. In: CFESS. Atribuições privativas do/a assistente social em questão.
1. ed. ampl. Brasília (DF): CFESS, 2012. Disponível em:
http://www.cfess.org.br/arquivos/atribuicoes2012-completo.pdf. Acesso em: 20 mar.
2020.

IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no Serviço Social. Ensaios Críticos. 2ª


ed. São Paulo: Cortez, 1994.

IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de


uma interpretação histórico-metodológica. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1982.

LUKÁCS, G. Para uma crítica marxista da sociologia: a decadência ideológica e as


condições gerais da pesquisa científica. São Paulo: Ática, 1992. (Coleção grandes
cientistas).

NETTO, José. Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo: Cortez, 1992.

SILVA-TOMAZ, C. O trabalho do assistente social na saúde mental: a experiência dos CAPS


III / CERSAMs Minas Gerais (Brasil). Trabajo Social Global – Global Social Work, v. 9, n. 17,
p. 41-64, 2019. doi:10.30827/tsg-gsw.v9i17.9181. Disponível em:
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7168698. Acesso em: 15 mar. 2020.

TEIXEIRA, Rodrigo; AQUINO, Isaura; GURGEL, Telma. Estágio Supervisionado em Serviço


Social: desfazendo os nós e construindo alternativas. Temporalis, Brasília (DF):
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, ano 16, n. 31, jan./jun. 2016.

298
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES

_________________________________________________________________________________________
Gustavo Javier Repetti
Assistente Social formado pela Facultad de Trabajo Social de la Universidad Nacional de La Plata, Argentina
(2001). Mestre (2008) e Doutor (2013) em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professor adjunto IV do Departamento de Fundamentos do Serviço
Social, ESS/UFRJ. Membro pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre os Fundamentos do Serviço
Social na Contemporaneidade (NEFSSC).

Virginia Alves Carrara


Graduada em Serviço Social pela UFJF. Especialização e mestrado em Ciência da Religião pela UFOP.
Doutorado em Serviço Social pelo Programa de Pós Graduação em Serviço Social pela PUC/RJ. Pós-
doutoramento no Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, Portugal. Professora Associada II da
Universidade Federal de Ouro Preto. Coordenadora do Núcleo de Extensão e Estudos em Formação e
Trabalho em Serviço Social - NEESFT. Participou da Diretoria Nacional da ABEPSS, Gestão 2017/2018 Quem é
de Luta, Resiste, como Coordenadora de Relações Internacional. Foi representante do Cone Sur (Argentina,
Uruguai, Paraguai, Chile e Brasil) do Consejo Fiscalía da Alaeits, Gestão 2016/2018. Participa da Comissão de
Coordenação da Rede Iberoamericana de Investigação em Serviço Social/Red Iberoamericana de
Investigación en Trabajo Social.
_________________________________________________________________________________________

299
Temporalis, Brasília (DF), ano 20, n. 40, p. 284-299, jul./dez. 2020.  ISSN 2238-1856
See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/312214309

FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL: um estudo das publicações nos


periódicos de Portugal

Conference Paper · December 2016

CITATIONS READS

0 935

3 authors, including:

Helena Almeida
University of Coimbra
85 PUBLICATIONS   60 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

(Re) CONHECER O SERVIÇO SOCIAL: DIMENSÕES TEÓRICAS, POLITICAS, CONTEXTUAIS E OPERATIVAS View project

PhD research View project

All content following this page was uploaded by Helena Almeida on 12 January 2017.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Thaisa Teixeira Closs
Isadora Netto
Helena Neves Almeida

FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL:


um estudo das publicações nos periódicos de Portugal

Resumo: O trabalho sistematiza dados parciais de pesquisa


sobre os Fundamentos do Serviço Social em Portugal, a qual
foi desenvolvida através de estudo documental de duas
revistas portuguesas, mediante revisão de 253 artigos
publicados nos anos de 2000 a 2015, conformando um banco
de dados composto de 50 artigos que tratam sobre
Fundamentos do Serviço Social, representando 19,76% das
publicações das revistas. Verifica-se a inexistência de
produções que abordam diretamente o tema, sendo que as
mesmas concentram-se nos seguintes eixos temáticos:
trabalho profissional (40%), historicidade do Serviço Social
(32%), dimensão ético-político (14%) e teórico-metodológica
(14%).
Palavras-chaves: Fundamentos do Serviço Social, produção
do conhecimento, tendências teórico-metodológicas.
Abstract: The paper systematizes partial data from the
research about the Fundamentals of Social Work in Portugal,
which was developed through documental study of two
Portuguese journals, reviewing 253 papers published between
2000 and 2015, conforming a data base composed of 50
papers that treat about Fundamentals of Social Work,
representing 19,76% of these journal’s publications. It is verified
the inexistence of works that approach the issue directly, and
their focus on the following themes: professional work (40%),
historicity of Social Work (32%), ethic-politics dimension (14%)
and theoretical-methodologic (14%).
Keywords: Fundamentals of Social Work, production of
knowledge, theorical-methodologic trends

1
1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho sistematiza dados parciais de pesquisa1 sobre os Fundamentos


do Serviço Social em Portugal, a qual analisa a produção recente da área sobre o tema. Foi
desenvolvida através de estudo documental de artigos duas revistas2 portuguesas e
entrevistas com docentes de Serviço Social deste país. A análise da produção se deu a
partir da revisão de 253 artigos publicados nos anos de 2000 a 2015, conformando um
banco de dados composto 50 artigos que tratam sobre Fundamentos do Serviço Social,
representando 19,76% das publicações das revistas. A pesquisa partiu do arcabouço
conceitual de tese de doutoramento (CLOSS, 2015) sobre os Fundamentos do Serviço
Social no Brasil, a qual analisou 2031 artigos de onze revistas brasileiras da área,
publicados entre os anos de 1993 a 2013, concluindo que 15,91% da produção destes
periódicos possuem descritores relacionados aos Fundamentos do Serviço Social, ao passo
que a abordagem direta desta temática é extremamente reduzida (0,49% das publicações).
Verifica-se, em Portugal, que a produção sobre Fundamentos também é diminuta, pois não
há publicações, nas revistas estudadas, que tratem diretamente do tema, registrando-se
somente uma tese de doutoramento (AMARO, 2012) nesta área.
Partiu-se da premissa analítica, conforme Closs (2015), de que os Fundamentos do
Serviço Social consistem na matriz explicativa da realidade e da profissão, particular ao
Serviço Social, (re) construída processualmente na sua trajetória histórica no movimento da
realidade brasileira, a qual possui uma dimensão teórico-metodológica – porque fornece as
bases explicativas da compreensão da realidade, da profissão, dos processos societários –
e uma dimensão ético-política, condensada na direção social da profissão, nos valores e
compromissos que orientam a intervenção na realidade. Tal matriz explicativa – constituída
pelas dimensões teórico-metodológica e ético-política – fundamenta e materializa-se na
dimensão técnico-operativa da profissão. O material que ora se apresenta, tendo em vista
os limites para uma abordagem mais ampla dos achados da pesquisa, expõe incialmente os
pressupostos teóricos do estudo e os dados sobre as produções identificadas nas revistas
portuguesas. Após, contextualiza a profissão em Portugal e apresenta sinteticamente o
debate sobre a dimensão teórico-metodológica do Serviço Social, a partir dos documentos
analisados. Por fim, sistematiza considerações acerca dos dados obtidos na pesquisa.

2. SERVIÇO SOCIAL EM PORTUGAL E PRODUÇÕES SOBRE FUNDAMENTOS NOS


PERIÓDICOS

1
A pesquisa foi realizada através de missão de estudos que contou com financiamento do Programa de Bolsas Ibero-
americanas para jovens pesquisadores doutores do banco Santander (Edital 2015).
2
Quais sejam: Revista Lócus Social (Universidade Católica Portuguesa) e Revista Intervenção Social (Universidade Lusófona).
2
A formação de assistentes sociais em Portugal, tal como no Brasil, tem início da
década de 1930, tendo como primeiras escolas o Instituto de Serviço Social de Lisboa
(1935), a Escola Norma Social de Coimbra (1937) e a Escola do Porto (1956). A
institucionalização acadêmica e profissional do Serviço Social tem como cenário o Estado
Novo - regime autoritário e corporativista - conformando uma formação com influências
médico-sanitaristas e com um viés doutrinário e conservador (MARTINS, 1999). A
regulamentação desta formação, datada de 1939, na década de 1950 e 1960 é revisada,
implicando, respectivamente, o aumento o curso de três para quatro anos e o
reconhecimento desta formação como curso superior (BRANCO, 2009).
Na década de 1960 a formação passa por uma reorientação, com a introdução de
disciplinas das Ciências Sociais e dos “métodos” em Serviço Social, sob influência das
abordagens norte-americanas e posteriormente da ênfase desenvolvimentista, as quais irão
coexistir com as práticas tradicionais (BRANCO, FERNANDES, 2005). Após a Revolução de
1974, o Serviço Social, num cenário de democratização que possibilita avanços a profissão,
vivencia um processo de redimensionamento de suas práticas, formação e conhecimentos.
Sob influência das correntes do serviço social crítico latino-americanos, inicia-se um
questionamento à metodologia clássica do Serviço Social (BRANCO, 2009). Verifica-se, ao
longo da trajetória da profissão, interlocuções e intercâmbios sistemáticos com o Serviço
Social brasileiro desde os anos 1960, inicialmente no quadro das tendências
desenvolvimentistas e após no processo de reconceitualização, seguidas da colaboração na
qualificação da pós-graduação, bem como, mais recentemente, por parcerias na
investigação e produção de conhecimento nos marcos da internacionalização do ensino
superior (MARTINS; CARRARA, 2015).
Destaca-se o reconhecimento tardio do grau de licenciatura (1989) e também da
inserção dos cursos de Serviço Social em universidades públicas, que ocorre nos anos
20003. Neste contexto, o processo de Bolonha4, iniciado em 1998, transformou a educação
superior na Europa, tendo um grande impacto na formação da área e no processo de lutas
profissionais em torno da licenciatura, acarretando uma diversidade de planos de estudos,
componentes curriculares e duração dos cursos (MARTINS ET AL, 2015). Demarca-se,
neste contexto, a “natureza classista e elitista da organização de um sistema de ensino
superior que perde a referência da formação pessoal, social e da cultura intelectual, para
uma formação curta, instrumentalizada para o mercado” (MARTINS; TOMÉ, 2008, p. 6).

3
Somente em 2000/2001 inicia-se o funcionamento, na Universidade dos Açores, da primeira licenciatura no ensino
universitário público.
4
A Declaração de Bolonha objetiva criar na Europa um espaço de ensino superior globalmente harmonizado, visando a
mobilidade e a empregabilidade dos estudantes, bem como a adoção de sistema de formação por ciclos, a definição de um
sistema de créditos e a adoção de um sistema de graus acadêmicos comparáveis (MARTINS, TOMÉ, 2008).

3
Esse processo implicou na redução do tempo de formação do Serviço Social, especialmente
no 1º ciclo, com duração diferenciada entre as escolas (6 a 8 semestres). Tal redução,
conforme Martins et al (2015), impacta na minimização de conteúdos voltados à dimensão
teórico-metodológico e ético-politica, fornecendo os contornos de uma formação pragmática,
com ênfase para o desenvolvimento de competências que respondam às demandas técnico-
administrativas de políticas sociais focalistas.
A pós-graduação em Serviço Social em Portugal é constituída também na década de
1980, através de cooperação entre o Instituto Superior de Lisboa e a PUC-SP e, em 1996, o
doutoramento em Serviço Social. A partir de 1995 são constituídos mestrados sob
responsabilidade exclusiva de universidades portuguesas e, em 2003, o primeiro curso de
Doutoramento na Universidade Católica Portuguesa. Atualmente – conforme Branco (2009)
e consulta em sítios eletrônicos das universidades - existem em Portugal 17 cursos de
Licenciatura, 11 programas de Mestrado e 4 programas de Doutorado em Serviço Social.
Nesta trajetória histórica, entre os anos de 1935 a 2009, formaram-se 14.875
diplomados em Serviço Social e, no que tange aos espaços sócio-ocupacionais, o setor
público é o principal campo de atuação, especialmente os Ministérios da Justiça e
Segurança Social, seguidos pelas Organizações Sociais Sem Fins Lucrativos que
representam 83,4% dos equipamentos sociais existentes no país características que levam
a uma dualização das estruturas de carreiras e das condições remuneratórias (BRANCO,
2009). Outros aspectos que impactam na profissão são os processos migratórios dos
profissionais em busca de oportunidades de trabalho, a inserção em programas de
voluntariado e em estágios profissionais e, ainda, o desemprego, que atinge
estimativamente entre 10 a 12% dos licenciados de Serviço Social (MARTINS ET AL, 2015).
Destaca-se também a ausência de regulamentação referente ao exercício
profissional e de diretrizes curriculares para a formação em Serviço Social, bem como a
inexistência de uma Ordem Profissional que atue na regulação e fiscalização do exercício
profissional. Isso reforça a dualização referida e uma tendência de precariedade das
condições de trabalho, acentuada pelos impactos das políticas de austeridade fiscal na
estruturação de serviços sociais públicos. Registra-se a existência de Associação dos
Profissionais de Serviço Social (fundada em 1978), a qual tem lutado pelo seu
reconhecimento como Ordem Profissional através da criação de legislação para tal fim e
adota documentos normativos da International Federtion of Social Work no que tange à
definição de Serviço Social e as diretrizes éticas.
A pesquisa visou identificar como as produções das revistas portuguesas analisam
os Fundamentos do Serviço Social e suas dimensões constitutivas (CLOSS, 2015),
interligadas dialeticamente, quais sejam: a história da profissão, as tendências teórico-
4
metodológicas, a compreensão sobre o objeto profissional, a dimensão ético-política e o
trabalho profissional. Em termos sintéticos, o eixo da história do Serviço Social abarca a
análise da trajetória da profissão na realidade sócio-histórica nacional, numa perspectiva
totalizante que considera a história com eixo articulador (SIMIONATTO, 2004), de modo a
apreender as transformações que se processam nas diferentes dimensões que constituem o
Serviço Social como totalidade histórica (CARDOSO, 2007), ou seja, o trabalho, a formação,
o conhecimento e a organização político-profissional. Já a análise da dimensão teórico-
metodológica abarca a apreensão das matrizes de pensamento social que fundamentam
historicamente a profissão, de como estas são incorporadas nos modos de pensar e intervir
do Serviço Social, considerando também a incidência de tais matrizes na formação e na
produção de conhecimento (ABEPSS, 1996). No que tange à dimensão ético-política, esta
engloba a análise da direção social, dos valores e princípios que orientam o exercício
profissional, considerando como tal dimensão se expressa em normativas éticas (Códigos
nacionais e documentos internacionais). Na sequência, o outro eixo consiste na análise das
concepções de objeto de trabalho, considerando o debate brasileiro da questão social como
matéria de profissional (IAMAMOTO, 2008), embora esta dimensão necessite ser
apreendida no quadro das tendências teórico-metodológicas e da análise das concepções
sobre o trabalho profissional5. Por fim, destaca-se o trabalho profissional, apreendido em
sua conexão com as configurações da questão social, as tendências teórico-práticas do
exercício profissional, a estruturação do mercado de trabalho, a organização dos assistentes
sociais e legislações que o regulamentam.
A partir destas premissas teóricas e da construção de descritores para a revisão
das publicações das revistas, construiu-se banco de dados dos artigos sobre Fundamentos
do Serviço Social, cuja caracterização encontra-se sistematizada no quadro a seguir.

Quadro 1: Produções sobre Fundamentos do Serviço Social nos periódicos de Portugal


Eixo temático das produções Revista Locus Social (n= 30) Revista Intervenção Social (n= 233)
Abs. % Abs. %

Fundamentos do Serviço Social 0 0 0 0

História do Serviço Social 8 26,66 8 3,43

Dimensão teórico-metodológica 1 3,34 6 2,58

Dimensão ético-política 0 0 7 3

Trabalho profissional 0 0 20 8,58

Total 9 30 41 17,59
Fonte: Sistematização das autoras. Dados obtidos na coleta de dados da pesquisa documental.

5
Dentre as revistas pesquisadas não foi identificada uma tendência de debate direto sobre o objeto profissional.
5
A revista Lócus Social possui 30 artigos publicados no período, sendo que 30%
destas versam sobre dimensões temáticas dos Fundamentos (9 de 30), em sua maioria
sobre a dimensão histórica da profissão no contexto contemporâneo (6 de 9), seguida pelo
debate da pesquisa sobre a trajetória histórica do Serviço Social (2 de 9) e, com menor
incidência (1 de 9), registra-se o eixo temático da dimensão teórico-metodológica do Serviço
Social. No que tange à Revista Intervenção Social, registram-se 233 artigos publicados, dos
quais 41 versam sobre dimensões dos Fundamentos (17,59%). A produção concentra-se,
predominantemente, no eixo trabalho profissional (20 de 41), através da abordagem da
atuação do assistente social na política de saúde, empresas, política habitacional,
desenvolvimento local, política de educação, instituições autárquicas, bem como terceira
idade, infância e juventude. Como segunda tendência, situa-se o debate histórico da
profissão (8 de 41), especialmente a formação profissional na conjuntura recente, a trajetória
da primeira escola e da produção de conhecimento em Serviço Social. Na sequência, a
dimensão ético-política da profissão é tema de 6 de 41 artigos, os quais analisam os
principais valores e princípios que orientam a atuação dos assistentes sociais. Como última
tendência, em igual frequência, situa-se o debate teórico-metodológico do Serviço Social, a
partir das seguintes abordagens: os campos paradigmáticos do Serviço Social, o
conhecimento e prática do Serviço Social a partir do pensamento de Pierre Bourdieu, a
relação teoria-prática e os modelos de intervenção, a centralidade do empowerment.
Sobre esta última tendência das produções, destaca-se, inicialmente, a
sistematização de Amaro (2008), a qual propõe uma categorização sobre campos
paradigmáticos e teorias do Serviço Social, a partir da articulação das vertentes sociológicas
e matrizes do pensamento social com o conhecimento e o trabalho da profissão. A primeira
vertente, denominada “perspectivas da ordem e da regulação”, fundamenta-se nos
pressupostos do funcionalismo e do interpretativismo, conformando uma visão mais clássica
e conservadora da ação profissional, ou seja, aquela que objetiva a manutenção do
equilíbrio do sistema e a preservação da sociedade existente, marcada pela abordagem
psicologizante dos problemas sociais. Em direção oposta, destaca a autora (2008), o
“Serviço Social Estrutural”, ancora-se na tradição marxista e estruturalista e compreende a
sociedade como “um composto de estruturas que, apesar de serem construídas pelos
indivíduos, lhe são exteriores e exercem funções de dominação e exploração” (p. 71). Neste
quadro, esta vertente enfatiza a análise de nível macro e um projeto político para a
sociedade e sua reestruturação, tendo como horizonte a emancipação dos setores
oprimidos da sociedade e enfatizando a conscientização como estratégia profissional.
Já a terceira vertente, denominada de “Serviço Social Crítico” - recupera
“postulados do marxismo e do feminismo e articula-os com os contributos mais recentes da
6
teoria social crítica e das perspectivas da pós-modernidade” (AMARO, 2008, p. 72),
configurando-se como uma vertente ativista pós-marxista e pós-estruturalista. Nesse
sentido, caracteriza a autora (2008), que tal vertente preocupa-se em analisar
estruturalmente os problemas pessoais da população atendida, a partir de um olhar vigilante
e crítico sobre as funções de controle e opressão exercidas pela profissão, enfatizando a
questão do poder a partir da influência foucaltina e balizando a intervenção pelas noções de
empowerment e conscientização. Por fim, a autora (2008) situa a vertente da “teoria da
Correlação de Forças”, fundamentada na produção de Vicente de Paula Faleiros,
destacando que a mesma supera as limitações da vertente Estrutural e Crítica, pois “encara
o Serviço Social como uma mediação entre atores e estruturas, num jogo de forças e
poderes em que o assistente social deve tomar partido pelo lado mais fraco” (p. 73). Esta
vertente é enfatizada pela autora como uma alternativa de atuação profissional no mundo
contemporâneo, com um ideal de equidade e justiça social, visando um processo de
fortalecimento e empowerment frente a autonomia e cidadania dos usuários, a partir de um
enfoque que visa capacitar os sujeitos na sua relação com as estruturas sociais opressoras.
Verifica-se que o conceito de empowerment é o que possui maior frequência entre
as produções analisadas, perpassando tanto os dois últimos campos paradigmáticos
discutidos por Amaro (2008), como também sendo tema central de artigos das revistas
portuguesas, seja no eixo teórico-metodológico como também na discussão do trabalho
profissional. Neste horizonte, Pinto (2009) discute o empowerment no trabalho dos
assistentes sociais, compreendendo o mesmo como “princípio político e
técnico/metodológico e como instrumento das políticas sociais e do trabalho social” (p. 399),
enfatizando que, embora esta noção seja polissêmica, um ponto comum entre as diferentes
conceituações é a ênfase para a categoria poder6. Nesta perspectiva, a autora (2009) define
empowerment como um processo articulação, criação e utilização de recursos pelos
sujeitos, comunidades e grupos que implique no acréscimo de poder - social, cultural,
político, econômico – tendo em vista aumentar a eficácia do exercício da cidadania. Destaca
também a relevância do conceito do empowerment para a recriação do Serviço Social, pois
o mesmo “volta a enfatizar a união do sujeito com o seu contexto, a indissolubilidade dos
vários níveis de análise da pessoa-na-situação, a união do micro e macro da prática social”
(PINTO, 2009, p. 408), potencializando o alinhamento da profissão com a procura da justiça
e da mudança social, com vista ao desenvolvimento dos sujeitos, uma vez que tal conceito
não deve restringir-se a intervenção somente no plano individual.

6
“Qualquer conceptualização de empowerment radica não só no conceito de poder, mas também na constatação dos
diferenciais de poder que existem nas sociedades e de uma valoração axiológica desses diferenciais. O empowerment implica
a possibilidade real de mudar os desequilíbrios de poder, seja a nível individual ou coletivo” (PINTO, 2009, p. 402).
7
A ênfase para o empowerment no exercício profissional, com vistas à promoção de
uma cidadania ativa, também está presente na produção de Silva (2003) que, além de
tematizar a categoria poder, atribui centralidade ao fomento da participação. Trata-se, na
ótica do autor (2003), de um processo que envolve mudanças na relação do assistente
social com os utentes, a partir de partilha de saber, de processos decisórios, envolvendo
uma dimensão educacional e emancipatória que implica o acesso aos direitos, processo de
capacitação para a aquisição de consciência crítica que conduza à autoderminação e
autonomia. A conjugação entre as dimensões macro e micro do empowerment na
intervenção profissional - tal como destacada por Pinto (2009) - também está presente nesta
produção, definidas como a “(i) dimensão que procura promover um trabalho - a longo prazo
- com o intuito de propugnar modificações na estrutura social, e a (ii) dimensão que coloca a
ênfase na necessidade de resposta as procuras imediatas dos utentes” (SILVA, 2003, p.
37).
Na sequência, identifica-se como tendência de parte das produções a discussão
do conhecimento e ação do Serviço Social a partir do pensamento de Pierre Bourdieu.
Andrade (2001) discute o campo7 do Serviço Social, analisando o agir dos assistentes
sociais a partir de três eixos correlacionados: os saberes, constituídos por categorias
teóricas, éticas e políticas, conformando um referencial ético-político e teórico-metodológico;
os poderes, que indagam sobre tipos de normatividade que orientam o agir e a vida social;
as subjetividades e subjetivações, considerando os assistentes sociais e os destinatários da
ação como sujeitos de desejos, portadores de memorias, patrimônios simbólicos e culturais.
Neste horizonte, compreende o campo do Serviço Social como constituído socialmente e
legalmente sancionado, mas que também possui uma dimensão instituinte. Ou seja, as
correlações de forças - sejam estas internas ou externas ao campo - ao serem articuladas
com as opções ético-políticas, teórico-metodológicas e culturais do assistente social,
conformam um agir que “pode orientar-se prevalentemente para a regulação, controle e
colonização dos sujeitos destinatários da intervenção, ou para a emancipação e eliminação
da violência simbólica” (ANDRADE, 2001, p. 225). A partir desta abordagem da profissão, a
autora (2008, p. 228) destaca como objeto de trabalho “a situação social vivenciada pelos
destinatários da intervenção do assistente social que é posta nesse espaço, bem como a
rede de relações particulares e também estruturais e processuais envolvidas” que será alvo
de transformação na ação direta de intervenção.

7
“O campo é o lugar de uma forma específica de capital simbólico. O capital científico é fundado sobre atos de conhecimento e
reconhecimento de competências. O campo possui uma estrutura que é mutável e que se define através da posse e
distribuição do capital simbólico entre os agentes sociais constitutivos do campo e pela correlação de forças gerada
(ANDRADE, 2001, p. 225).
8
Também dentre esta tendência teórico-metodológica, situa-se a produção de
Carvalho (2012), a qual realiza uma análise histórica da profissão a partir de três
“espaços/tempos” do conhecimento e ação do Serviço Social, considerando dimensões
como os valores, teorias, instituições, funções sociais, status e cultura, quais sejam: o da
“ação voluntária autónoma”8, compreendido entre o final do séc. XIX até a década de 1920;
o da “ação individualizada e tecnicista”9, situado entre a década de trinta e a de sessenta do
século XX; e desde a década de 1970 a atualidade, a consolidação de um conhecimento em
Serviço Social denominado de “ação pluralista e tendencialmente acumulativa”. Este último
espaço/tempo, conforme a autora (2012, p. 29), é marcado pelo capitalismo desorganizado,
pelo repensar do Estado providência e do paradigma científico dominante, associando-se ao
conhecimento plural da vida social, processo em que a “cumulatividade decorre da
construção do objeto de ação do Serviço Social e a pluralidade da perspectiva teórica para o
analisar”. Assim, o campo do Serviço Social, desde sua gênese, relaciona-se com questões
da desigualdade social entre os setores da sociedade, sendo o objeto da profissão visto
como os “problemas associados a indivíduos, que têm em comum o estarem
frequentemente numa posição de desigualdade, quer por questões individuais ou societais”
(CARVALHO, 2012, p. 29), o que por sua vez, associa-se a “participação do indivíduo e dos
grupos enquanto membros de pleno direito na sociedade. É, então, essa realidade
objetivada, da cidadania social, que poderemos reivindicar como objeto de conhecimento e
de ação do Serviço Social” (p.30). No que tange à pluralidade, a autora compreende que
esta constitui-se por distintas abordagens profissionais, aglutinadas em duas perspectivas: a
emancipadora10, associada ao Serviço Social radical, crítico e consciencializador; e a
perspectiva reguladora de normalização social e ênfase individual, presente em práticas de
práticas de planeamento na construção de procedimento teórico-metodológico como de
diagnóstico, planeamento e execução da ação.
Por fim, situa-se as produções que enfatizam a relação teoria-prática e a
metodologia de intervenção em Serviço Social. Santos (2012) destaca a relevância de
serem adotados modelos de intervenção social para a organização da prática profissional a
partir de uma abordagem polissêmica11, tendo em vista uma postura inovadora e proativa do
assistente social. Neste quadro, destaca o Modelo de Gestão de Casos como voltado para a
mudança social, para o bem-estar e a autonomia, o qual exige um trabalho em rede onde

8
“Neste contexto, prevaleceu um Serviço Social que era “quase uma ordem religiosa”, que pressupunha uma intervenção junto
dos indivíduos das classes sociais mais baixas, de modo a integrarem-se nas normas coletivas e nos valores predominantes,
inculcados pelos que possuíam poder real e simbólico” (CARVALHO, 2012, p. 22).
9
Neste espaço-tempo, a ação do Serviço Social centra-se nos métodos de caso, grupo e comunidade (CARVALHO, 2012).
10
As produções de autores como Lenna Dominelli, Jan Fook e Karen Healy são caracterizadas como pertencentes à tendência
do Serviço Social crítico, ao passo que as formulações do canadense Maurice Maureau são situadas no quadro do Serviço
Social radical e, ainda do brasileiro Paulo Freire como principal fonte da tendência consciencializadora (CARVALHO, 2012).
11
Tal abordagem “preconiza uma intervenção transversal e global com incidência ao nível das estruturas sociais e
comunitárias, no sentido de obter uma apreensão crítica da realidade social (postura holística)” (SANTOS, 2012, p. 133).
9
agentes como o Estado, atores sociais estratégicos e a própria família são recursos
fundamentais para processos de ruptura da exclusão e desfiliação social. Enfatiza que o
processo operativo da gestão de caso - assentado nas estratégias-chave da colaboração,
comunicação e coordenação - ocorre da seguinte maneira (SANTOS, 2012):
avaliação/diagnóstico, que seria o conhecimento profundo, desenvolvido a partir de
genogramas e eco-mapas, da pessoa e do seu contexto; seguido pelo o planejamento, o
qual possui de natureza integrada e estratégica, a fim de responder as questões trazidas
pelo utente e sua família; e, após, a intervenção, desenvolvida com base num contrato
escrito com indicadores e tarefas propostas, prevendo mudanças e ações em conjunto entre
profissionais e utentes.
O debate dos modelos de intervenção também está presente na produção de Pena
(2012), destacando que os mesmos dão sustentação a articulação entre teoria e prática, ou
seja, descrevem a ação do assistente social. Para a autora, tais modelos podem ser
tipificados em termos históricos, sendo denominados de: tradicionais, pois consistem em
propostas de caráter psicologizante, psicodinâmico e comportamentalista, enfatizando a
modificação de condutas individuais; crítico e radicais, propondo a mudança social e a
participação comunitária e coletiva, destacando a conscientização e sustentando-se em
referenciais marxistas; e contemporâneos, com ênfase para interações das pessoas com o
meio social numa perspectiva holística, embasando-se na teoria geral dos sistemas e
matrizes sociológicas e filosóficas como a fenomenologia, a ação comunicativa e o
interacionismo simbólico.
Ainda no que tange às abordagens teórico-metodológicas do exercício profissional,
identifica-se a ênfase para a discussão de métodos do Serviço Social. Para Pena (2012) tais
métodos são influenciados pelas visões e interesses ideológicos de cada contexto histórico
e, na atualidade, é necessário reconfigurar e superar a fragmentação dos métodos clássicos
(Caso, Grupo e Comunidade), potencializando o trabalho em redes e uma visão holística na
compreensão de processos sociais e individuais. Para tanto, a autora (2012) identifica como
fases do método do Serviço Social: a identificação do problema social ou do pedido, a
análise da situação, a avaliação preliminar e operacional, a elaboração do projeto de
intervenção, a execução do projeto, a avaliação e finalização do projeto.

3. CONCLUSÃO

Os dados obtidos na pesquisa evidenciam a diminuta abordagem dos Fundamentos


do Serviço Social na produção das revistas área, os quais são tematizados,
predominantemente, através dos eixos temáticos da historicidade e do trabalho profissional.

10
No que tange à dimensão teórico-metodológica do Serviço Social, enfatizada na discussão
deste trabalho, identifica-se a tendência de um pluralismo metodológico (TONET, 1995)
marcado por distintas abordagens na compreensão da realidade e da profissão, delineando
abordagens ecléticas e sincréticas (NETTO, 2011) no âmbito dos Fundamentos, através de
distintas matrizes do pensamento social, inclusive trazendo impactos para a identidade
profissional. Sobre este tema, pesquisa de Amaro (2012, p.164-165) identifica a existência
de um “obscurantismo identitário” da profissão em Portugal, engendrado pela polarização
entre as tendências do Serviço Social clássico e pelo frágil debate da história profissional,
das correntes que a atravessam e suas implicações práticas, redundando numa identidade
vaga e imprecisa. Este processo também está relacionado com a não consolidação de um
projeto comum de formação profissional, com a recente consolidação da pós-graduação,
bem como com a dificuldade de regulamentação da profissão em Portugal.
Neste contexto, um dos eixos presentes nas produções consiste na caracterização
das diferentes tendências do Serviço Social português e europeu, as quais convergem no
que tange à compreensão da permanência de tendências “clássicas” relacionadas
historicamente com o Serviço Social tradicional (NETTO, 2011), caracterizadas pela
regulação social e por abordagens psicologizantes dos problemas sociais. Em outro polo,
situam-se tendências caracterizadas como “críticas”, “radicais”, “estruturais”,
“consciencializadoras” e, ainda, pautadas na “teoria da correlação de forças”, perpassadas
por diversas matrizes teórico-metodológicas, embora se destaque como ponto comum, com
exceção do Serviço Social estrutural – cuja denominação em si é problemática, por associar
o marxismo neste âmbito – e da vertente consciencializadora, a ênfase para o
empowerment como dimensão do trabalho do assistente social. Tal noção, é tematizada a
partir de distintos pressupostos teórico-metodológicos, bem como se constitui numa
dimensão presente nas diretrizes liberais-conversadoras do Banco Mundial para as políticas
sociais. Neste quadro, Carvalho (2015) chama a atenção ao “fetiche do empoderamento”,
marcado por mistificações que ocultam as contradições de classe a partir da ênfase na
potencialização de capacidades individuais e de grupos no enfrentamento das
desigualdades e na eficácia de programas sociais. Demarca-se assim, os riscos de uma
incorporação acrítica desta noção controversa pela profissão, assentada numa
compreensão difusa de poder que não o apreende de forma totalizante em seus vínculos
com a apropriação privada e desigual da riqueza socialmente produzida, a qual está na
gênese das múltiplas desigualdades e relações sociais assimétricas que se expressam no
cotidiano da vida social.
Além da ênfase para o empowerment, também verifica-se o debate de modelos e
métodos do Serviço Social, o que evidencia a permanência da histórica tendência
11
endogenista (MONTANO, 2007) na busca uma especificidade interventiva assentada em
esquemas formais de intervenção, o que pode reforçar lógicas tecnicistas. Tal tendência
está associada a existência de um finalismo metodológico no âmbito dos Fundamentos
(AMARO, 2012, p. 94), caracterizado pelo processo em que “o cumprimento do método
passa adquirir estatuto de fim”, ou seja, a centralidade de técnicas de diagnóstico,
planejamento e avaliação em detrimento na relação profissional com a população e da
clareza de direção social do trabalho. Por fim, destaca-se que as considerações tecidas no
que tange a dimensão teórico-metodológica serão adensadas com o debate da produção
dos demais eixos temáticos, o que foge aos limites de exposição deste trabalho.

4. REFERÊNCIAS
ABEPSS. Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social. 1996.
AMARO, M. I. Os campos paradigmáticos do Serviço Social: proposta para uma
categorização das teorias em presença. Revista Lócus Social, Lisboa, n. 1, CESSS, 2008.
____. Urgências e emergências do Serviço Social: Fundamentos da profissão na
contemporaneidade. Lisboa: Universidade Católica, 2012.
ANDRADE, Marília. Campo de intervenção do serviço social: autonomias e heteronomias do
agir. Revista Intervenção Social, Lisboa, n. 23-24, 2001.
BRANCO, F. A profissão de assistente social em Portugal. Lócus Social, Lisboa, n. 3, 2009.
BRANCO, F; FERNANDES, E. Le service social au Portugal: trajectoire et enjeux. In:
DESLAURIERS, J, HURTUBISE, D.(Org.), Le travail social international. Éléments de
Comparaison, Canadá. Les Presses de l’Université Laval, 2005.
CARDOSO, F. G. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos do serviço social:
tendências quanto à concepção e organização de conteúdos na implementação das
diretrizes curriculares. Revista Temporalis, Brasília, n. 10, 2007.
CARVALHO, M. I. L. Construção dos espaços de conhecimento e de ação em Serviço
Social. Revista Intervenção Social, Lisboa, n. 40, 2012.
CARVALHO, I. O fetiche do “empoderamento”: do conceito ideológico ao projeto político-
econômico: IN: MONTAÑO, C. (org.). O canto da sereia: crítica a ideologia e aos projetos do
“terceiro setor”. São Paulo: Cortez, 2015.
CLOSS, T. T. Fundamentos do Serviço Social: um estudo a partir da produção da área.
Tese de doutorado. Porto Alegre: PUCRS, 2015. Disponível em:
http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/7533.
IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e
questão social. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.
MARTINS, A.; TOMÉ, M. R. Formação contemporânea do Serviço Social em Portugal.
Revista em Pauta, Rio de Janeiro, n. 21, 2008.
____; CARRARA, V. A emigração dos assistentes sociais portugueses: faces do trabalho e
do desemprego em tempos de crise e austeridade. Serviço Social & Sociedade, São Paulo,
n. 121, Cortez, 2015.
MARTINS, A. Gênese, emergência e institucionalização do Serviço Social português.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para Ciência e Tecnologia, 1999.

12
_____.; CARRARA, V. Serviço Social português e brasileiro em diálogo: internacionalização
da formação profissional. Revista em Pauta, Rio de Janeiro, n. 33, v. 12, 2014.
MONTAÑO, C. E. A natureza do serviço social: um ensaio sobre sua gênese, sua
“especificidade” e sua reprodução. São Paulo: Cortez, 2007.
NETTO, J.P. Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo: Cortez, 2011.
PENA, M.J. Da construção do conhecimento ao processo metodológico em serviço social.
Revista Intervenção Social, Lisboa, n. 40, 2012.
PINTO, C. Serviço Social na modernidade tardia: que empowerment é possível? Revista
Intervenção Social, Lisboa, n. 35, 2009.
SANTOS, C. C. Organização da prática profissional do serviço social em modelos de
intervenção social. Revista Intervenção Social, Lisboa, n. 39, 2012.
SIMIONATTO, I. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos do serviço social. Revista
Temporalis, Brasília, n 8, 2004.
SILVA, M. M. Empowerment: possível estratégia da prática profissional em direcção à
cidadania activa. Revista Intervenção Social, Lisboa, n. 27, 2003.
TONET, I. Pluralismo Metodológico: um falso caminho. Revista Serviço Social e Sociedade,
São Paulo, n. 48, 1995.

13

View publication stats


16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais
Tema: “40 anos da “Virada” do Serviço Social”
Brasília (DF, Brasil), 30 de outubro a 3 de novembro de 2019

Eixo: Serviço Social, Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional.


Sub-eixo: Ênfase em Fundamentos.

APONTAMENTOS SOBRE OS FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEÓRICO-


METODOLÓGICOS DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO

Mayra Hellen Vieira de Andrade1


Andressa Lima da Silva2
Maria Gabrielle Chaves Silva3
Ana Paula Rocha de Sales Miranda4
Patrícia Barreto Cavalcanti5

Resumo: Este artigo objetiva resgatar a discussão dos fundamentos históricos e teórico-
metodológicos que marcaram a trajetória do Serviço Social brasileiro, destacando os desafios
profissionais contemporâneos. Metodologicamente, trata-se de levantamento bibliográfico e
documental, de caráter qualitativo, orientado pelo materialismo histórico-dialético.
Palavras-chave: Serviço Social. Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos. Projeto Ético-
Político Profissional.

Abstratc: This article aims to recover the discussion of the historical and theoretical-methodological
foundations that marked the trajectory of the Brazilian Social Service, highlighting the contemporary
professional challenges. Methodologically, this is a bibliographical and documentary survey, of a
qualitative character, guided by historical-dialectical materialism.
Keywords: Social Service. Historical and Theoretical-Methodological Foundations. Professional
Ethical-Political Project.

1 INTRODUÇÃO

A institucionalização do Serviço Social no Brasil se deu por sua inserção na divisão


social e técnica do trabalho, sendo, portanto, atravessado pelas inflexões oriundas do
contexto social, político e econômico de cada período.
Assim, considerando os rebatimentos da realidade sobre a profissão, o presente
artigo objetiva discutir os fundamentos históricos e teórico-metodológicos que marcaram a
trajetória do Serviço Social brasileiro, destacando os desafios profissionais decorrentes das

1 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal da Paraíba. E-mail: mayra-


hellen@hotmail.com.
2 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal da Paraíba. E-mail: mayra-
hellen@hotmail.com.
3 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal da Paraíba. E-mail: mayra-
hellen@hotmail.com.
4 Professor com formação em Serviço Social. Universidade Federal da Paraíba. E-mail: mayra-
hellen@hotmail.com.
5 Professor com formação em Serviço Social. Universidade Federal da Paraíba. E-mail: mayra-
hellen@hotmail.com.
2

transformações da sociedade contemporânea a partir de reflexões teóricas resultantes de


levantamento bibliográfico e documental, ancorado no materialismo histórico-dialético.
Para tanto, optou-se por partir de um breve resgate socio-histórico de sua trajetória,
considerando a dinamicidade e complexidade da realidade. Desta maneira, em sua primeira
parte, buscou-se situar a emersão do Serviço Social sob os marcos do capitalismo
monopolista e, por conseguinte, do acirramento da exploração do capital sob o trabalho e
suas contradições sociais. Em seguida, traçou-se uma linha do tempo, apontando os
principais acontecimentos que marcaram o desenvolvimento da profissão, assim como os
avanços e retrocessos. E por fim, tencionou-se apresentar a constituição do Projeto Ético-
Político Profissional (PEPP) como expressão do amadurecimento teórico-metodológico da
categoria, bem como os desafios postos coetaneamente.
Portanto, é pertinente salientar que devido a limitada capacidade extensiva deste
trabalho buscaremos apresentar um debate central em torno da temática proposta, com o
intuito de facilitar a compreensão do/a leitor/a acerca do movimento dinâmico que perpassa
a constituição do Serviço Social brasileiro enquanto profissão, ao longo da sua trajetória.

2 DA GÊNESE AOS ANOS 1980: PARTICULARIDADES DO PROCESSO DE


INSTITUCIONALIZAÇÃO E VINCULAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL À REALIDADE

O Serviço Social brasileiro emergiu no âmbito do capitalismo monopolista,


notadamente nos anos 1930, quando o Estado passou a regular as tensões existentes entre
as classes sociais, contribuindo com a sua legitimação enquanto profissão. Desta forma,
considera-se que o processo de institucionalização da profissão, de um modo geral, está
ligado à intervenção do Estado nas ações de regulação social.
Sua vinculação inicial se deu no ideário católico, conferindo à profissão uma
perspectiva reguladora, visto que os problemas sociais eram tratados como sendo de ordem
moral e/ou religiosa, recebendo um tratamento conservador, psicologizante, individualista e
moralizador (AGUIAR, 2001). Por esta razão, as ações do Serviço Social foram
desenvolvidas de modo a integrar os indivíduos, considerados desajustados, à sociedade,
através de ações que incidissem sobre valores e comportamentos daqueles, posto que seus
problemas eram considerados de ordem moral e não social (CASTRO, 2007).
Nessa perspectiva, o emergente Serviço Social brasileiro apresentava
posicionamentos de cunho humanista-conservador, tendo como referências a Doutrina
Social da Igreja, o ideário franco-belga e o pensamento de São Tomás de Aquino: tomismo
e neotomismo, sendo o neotomismo a primeira base filosófica que norteou o Serviço Social,
conciliando-a com a fé cristã, notadamente sob influência das encíclicas papais Rerum

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


3

Novarum e Quadragésimo Anno e foi a partir desta vinculação com a Igreja Católica que o
primeiro curso de Serviço Social foi criado, em 1936.
Este perfil conservador católico foi mantido até a primeira metade da década de
1940, quando se iniciou seu processo de tecnificação, a partir da influência norte-americana
e da adoção do Positivismo, conformando o “arranjo teórico doutrinário” (IAMAMOTO,
1992), a partir do que houve uma valorização das técnicas na profissão, de modo a atender
as transformações sociais e demandas da época do Estado interventor e da sociedade,
reclamando uma redefinição do assistencialismo católico e da própria doutrina social da
Igreja (CASTRO, 2007).
Nos anos 1960, as inquietações e os questionamentos relativos ao “Serviço Social
Tradicional” iniciados nos anos 1950 e que circundavam o Movimento de Reconceituação
Latino-Americano deram origem à renovação profissional, um processo global de mudanças,
mas que devido ao cenário autocrático, confluíram para uma nova direção nas mudanças
internas da profissão, cujas discussões redundaram no pluralismo profissional, e disputa
pelos espaços (NETTO, 2011).
A abertura de cursos de graduação nas universidades públicas e, posteriormente,
de pós-graduação permitiram aproximação da profissão com as discussões das Ciências
Sociais e ampliação do escopo investigativo, o que favoreceu o desenvolvimento de uma
“massa crítica” que, nos anos 1980 e 1990, influenciaram as discussões que engendraram o
atual PEPP, voltando-se para um projeto ligado à classe trabalhadora, e sob influência do
marxismo.
Assim, considera-se que mesmo diante de um cenário adverso aos direitos sociais
– se tomados como universais e garantidos em lei –, mas, sobretudo, aos direitos políticos e
civis, a renovação favoreceu a revisão da profissão nos seus aspectos teóricos e
metodológicos, com o propósito de repensar as estratégias de atuação. Em termos teóricos,
este processo se estruturou em três momentos: a “perspectiva modernizadora” (vertente
positivista), com metodologias voltadas ao tecnicismo, burocratismo, com ênfase no
racionalismo, de modo a romper com o empirismo tradicional na profissão, mas que se
traduziam numa separação entre sujeito e objeto; a “perspectiva de reatualização do
conservadorismo” (vertente fenomenológica), priorizando a concepção de sujeito, e uma
metodologia dialógica e compreensiva que fugia a análises macro societárias; e a
“perspectiva de intenção de ruptura” (vertente marxista), impulsionada pelo “Método Belo
Horizonte” (1972-1975), remetendo a profissão à consciência de sua inserção e
aproximação às camadas trabalhadoras na sociedade de classes (NETTO, 2011).
Necessário se faz esclarecer que, em termos teórico-metodológicos, na perspectiva
“modernizadora” o Serviço Social buscou se munir de habilidades e técnicas, bem como

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


4

elaborar instrumentos que pudessem favorecer o desenvolvimento do país, inclusive


ratificando a necessidade de planejamento de suas ações para maior eficiência do seu
trabalho e dos recursos disponibilizados. A adoção do planejamento em si, a despeito das
lacunas observadas e da adesão ao discurso oficial, representou o despertar para a
necessidade de rompimento com o imediatismo e o improviso, ainda que tenha se
deslocado para o âmbito do burocratismo e da própria restrição de direitos e vigilância dos
usuários. Há que se destacar ainda o intercâmbio entre a profissão e outras categorias que
foi viabilizado com o aumento do mercado de trabalho e sua inclusão em setores onde não
existia antes.
Em relação à perspectiva de “reatualização do conservadorismo”, além da
influência histórica do ideário cristão e do conservadorismo na profissão, os impactos
restritos das ações “modernas” repercutiram para o fortalecimento da corrente que havia
entrado em declínio, demonstrando o interesse permanente pelo resgate das questões
subjetivas – ainda que alheias ao contexto onde se dão – e uma preocupação teórico-
metodológica em investir tal perspectiva de tônus científico pela adoção de uma filosofia que
sobrepujasse o exclusivismo da empiria, mas que não perdesse de vista os valores
presentes na gênese da profissão.
Na perspectiva de “intenção de ruptura”, a despeito do mérito de seu pioneirismo na
profissão, as aproximações feitas mediante o uso de manuais e leituras equivocadas,
alheias às colocações das fontes originais repercutiram negativamente no desenvolvimento
de um viés economicista e partidarista que ainda hoje ressoa entre a categoria, mas que,
sem dúvida, teve como principal mérito a adoção da categoria mediação, permitindo ir além
da aparência, confrontando-se com práticas imediatistas e, portanto, restritivas de direitos e
de uma visão integral dos sujeitos.
Do mesmo modo que em relação aos aspectos teórico-metodológicos, os anos
entre 1960 e 1980 confluíram para atualizações nos Códigos de Ética, de modo a aproximá-
los das alterações societárias e históricas, cujo principal avanço correspondeu à inclusão do
valor da liberdade no Código de 1986, representando uma importante evolução no sentido
da ruptura com o conservadorismo, observada de forma mais premente no Código de 1993
ainda vigente.
A importância do caráter inovador da inclusão desse valor/princípio ético reside,
entre outras razões, na compreensão da necessidade de se manifestar contrariamente ao
regime – o que não ocorreu de maneira contundente na perspectiva que havia tido maior
ressonância entre a categoria: a “modernizadora” – e em defesa ao direito de organização
política e sindical reprimido durante o período autocrático; no entendimento da necessidade
de mudança de postura em relação aos usuários com quem atua, buscando romper com

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


5

práticas tuteladoras, infantilizadoras e moralizadoras que nortearam as ações e as


metodologias empregadas pela profissão; e na adoção de uma postura política que se
vinculava formalmente à classe trabalhadora, opondo-se a posturas neutras e
conservadoras que fundamentaram ideológica, cultural e teoricamente a profissão,
posicionando-se contrariamente ao padrão burguês de desigualdade, desmistificando a
exploração capitalista e desvelando as expressões da “questão social” intensificadas
durante o referido regime e tratadas pelo binômio repressão/assistência (SILVA E SILVA,
2006).
Embora tal posicionamento tenha sido observado formalmente nos anos 1980, foi
no final da década de 1970 que ele se engendrou, a partir do estabelecimento de um quadro
mais favorável ao rompimento com o tradicionalismo, posto que foi neste período que o
regime militar começou a entrar em declínio, ao passo em que se fortaleceram os
movimentos sociais e em prol da redemocratização, cuja disputa entre classes foi
representada na promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) que, embora
tenha significado uma conquista no que concerne à seguridade social, vem sendo
vituperada desde o início dos anos 1990, como reflexo da adoção do ideário neoliberal e da
própria organização da classe burguesa em defesa da sua hegemonia em detrimento dos
direitos sociais garantidos à classe trabalhadora.
Em termos legal-formais, a promulgação da CF/1988 representou um instrumento
de sustentação para a prática profissional, tendo em vista que os/as assistentes sociais que
atuam com políticas, serviços e direitos sociais passaram a trabalhar na perspectiva de
defesa dos direitos e garantias sociais estabelecidos, bem como qualidade dos serviços,
deixando de ser uma categoria voltada mormente para o controle da classe trabalhadora,
ainda que o processo contraditório entre as classes e as demandas institucionais e dos
empregadores não possam ser ignoradas (YAZBEK, 2009).
Conforme apontam Iamamoto e Carvalho (2014, p. 615),

O Serviço Social beneficia‑se de amplo movimento de lutas pela democratização da


sociedade e do Estado no país, com forte presença das lutas operárias que
impulsionaram a crise da ditadura militar do período 1964-84. No contexto de
ascensão dos movimentos sociais, das lutas em torno da elaboração e aprovação da
Carta Constitucional de 1988 e da defesa do Estado de direito, a categoria foi sendo
socialmente questionada pela prática política de diferentes segmentos da sociedade
civil com o avanço das lutas democráticas. Tal processo condiciona,
fundamentalmente, o horizonte de preocupações emergentes no âmbito do Serviço
Social no país e passa a exigir novas respostas profissionais, o que derivou em
significativas alterações nos campos do ensino, da pesquisa e da organização
político-corporativa dos assistentes sociais.

Ademais, além da aproximação com as discussões pertinentes às Ciências Sociais,


o diálogo e a interlocução com outras categorias nos seus campos de trabalho, a ampliação

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


6

dos temas investigados, o estabelecimento do pluralismo nas três esferas profissionais, a


tentativa de conciliação da formação com a realidade, e a proposição de rompimento com o
“Serviço Social Tradicional” e com a corrente teórica conservadora a partir da adoção do
marxismo, é pertinente destacar o quão decisiva para a profissão e para parte das situações
elencadas, foi a contribuição de Iamamoto nesse processo de amadurecimento intelectual,
quando, em 1982, publicou juntamente com Raul de Carvalho o livro: “Relações Sociais e
Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica”, relacionando
a teoria social de Marx e o Serviço Social, abrindo espaço para abordagens críticas
(NETTO, 2011), cujas discussões e principalmente a adoção da teoria social crítica
certamente foram recuperadas posteriormente na elaboração das Diretrizes Curriculares,
sinalizando o início da utilização dos termos “trabalho e classe trabalhadora”.
Portanto, foi no bojo desse debate que o Serviço Social começou a definir uma
concepção mais crítica para sua inserção no processo de reprodução das relações sociais.
Através da aproximação com o pensamento de Marx, a profissão, por meio da perspectiva
dialética, encontrou respaldo para apreender as mediações da realidade social e a
totalidade social. Com isso, o Serviço Social caminhou para a construção do seu atual
projeto profissional, posto que a teoria social crítica passou a inspirá-lo ao tentar combinar a
nova perspectiva teórica à dimensão interventiva.

3 PROJETO ÉTICO-POLÍTICO PROFISSIONAL E SERVIÇO SOCIAL


CONTEMPORÂNEO

O Projeto Ético-Político Profissional (PEPP) do Serviço Social brasileiro resultou de


conquistas históricas alcançadas pelo engajamento de segmentos expressivos da categoria
profissional e a gênese da sua construção data da transição da década de 1970 para 1980,
com a perspectiva de “intenção de ruptura”, instigada no III Congresso Brasileiro de
Assistentes Sociais (CBAS), cuja relevância reside no fato de, tendo sido construído num
contexto de redemocratização da sociedade brasileira, representar a recusa explícita ao
conservadorismo, muito presente no Serviço Social da época, e a instauração do pluralismo
político na profissão.
Em concordância com Santana (2000, p. 80):

Os assistentes sociais, preocupados com a modernização do país e da profissão,


assumem posições predominantemente favoráveis à reprodução das relações
sociais. Porém, a partir da década de 1980, os setores críticos (em geral,
respaldados na teoria marxista) assumem a vanguarda da profissão. É no bojo
desse processo de renovação do Serviço Social que o pluralismo se institui e inicia a
construção do que hoje chamamos de projeto ético-político da profissão.

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


7

Segundo Netto (1999), o projeto profissional é um projeto de caráter coletivo e


histórico, uma vez que foi construído coletivamente com a adesão de grande parte da
categoria, considerando os processos históricos pelos quais a categoria vivenciou, tendo
como eixo fundamental o reconhecimento da liberdade como valor central, assegurando o
seu compromisso com a autonomia, a emancipação e o crescimento dos sujeitos sociais.
Todavia, conforme destaca Ramos (2006), embora o Projeto Ético-Político do
Serviço social esteja vinculado a um projeto societário que visa a superação da ordem
capitalista, o mesmo apresenta dificuldades para elaborar um projeto anticapitalista, de
esquerda, pois os rebatimentos das investidas do capital nesse processo em favor da
acumulação são enormes.
Em linhas gerais, o PEPP foi criado na segunda metade da década de 1970;
avançou significativamente nos anos 1980, em razão da construção do Código de Ética de
1986 e das Diretrizes Curriculares de 1982; e nos anos 1990 atingiu sua consolidação, no
sentido de seu amadurecimento teórico-metodológico e ético-político, tendo como uma de
suas expressões a Lei de Regulamentação da Profissão (nº 8.662/93), o Código de Ética de
1993, e as Diretrizes Curriculares de 1996, aprovadas pela Associação Brasileira de Ensino
e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), os três últimos representando sua base legal e
materialização, ainda que siga em processo de implementação e reafirmação contínuo.
Todavia, ainda que o Serviço Social tenha renovado seu aporte teórico-
metodológico para adequar sua intervenção às exigências do momento histórico em que
vivíamos, a partir de então, começou a sentir no âmbito da profissão os rebatimentos
conjunturais da ofensiva neoliberal, da reestruturação do mundo do trabalho e da
contrarreforma do Estado (NETTO, 1999), sendo notório que o projeto profissional vem
enfrentando grandes dificuldades na contemporaneidade, em virtude de uma conjuntura
marcada pelo avanço do ideário neoliberal, pelo fortalecimento de bases conservadoras e
pela barbarização das relações sociais, e cabe aqui mencionar que todos estes traços são
opostos à sua essência.
Assim, passamos a viver um momento histórico complexo, sendo perceptível o
agravamento das múltiplas expressões da “questão social”; a crescente procura por serviços
sociais; o desemprego estrutural, o aumento da seletividade no campo de acesso às
políticas sociais; a forte concentração de renda, poder e capital nas mãos de uma minoria,
dentre outros. Cabe aqui ressaltar que as transformações operadas nas esferas produtiva e
estatal alteraram as relações entre Estado e sociedade, exigindo, consequentemente dos/as
profissionais, a apreensão dos processos macroscópicos que transpassam as esferas da
sociedade.

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


8

Recorde-se que o Serviço Social tem sua gênese na sociedade capitalista


monopolista, logo surge como uma demanda posta pelo capital, que posteriormente foi
institucionalizado e legitimado pelo Estado e pelo empresariado, inserindo-o na divisão
social e técnica do trabalho (YAZBEK, 2009). Nesse contexto, toda alteração na
configuração da forma de sociabilidade instaurada aponta rebatimentos para a profissão,
como asseverado por Iamamoto e Carvalho (2014, p. 611):

O exercício da profissão exige um sujeito profissional que tenha competência para


propor e negociar com a instituição os seus projetos, para defender o seu campo de
trabalho, suas qualificações e atribuições profissionais. Requer ir além das rotinas
institucionais para buscar apreender, no movimento da realidade e na aproximação
as forças vivas de nosso tempo, tendências e possibilidades aí presentes passíveis
de serem apropriadas pelo profissional e transformadas em projetos de trabalho
profissional.

Assim, como uma especialização do trabalho coletivo, o Serviço Social reúne em


seu seio as contradições de todo o contexto social. Desse modo, a complexidade da
realidade social na contemporaneidade aponta para o exercício profissional dos/as
Assistentes Sociais novos desafios, requisitando novas estratégias de intervenção. Para
Iamamoto (2015), o principal desafio profissional da atualidade é apreender o conjunto de
necessidades, sejam elas sociais, políticas, culturais ou econômicas localizadas na relação
capital/trabalho e traçar medidas resolutivas e para tanto faz-se mister uma apropriação
mais adequada do arcabouço teórico-metodológico de que dispõe para que o uso de seus
instrumentais não viole as propostas ético-políticas em vigor no PEPP, mas ao contrário,
possa fortalecê-las.
Nesse sentido, os/as profissionais precisam construir mecanismos de ligação entre
as demandas e suas necessidades fundantes, só assim conseguirão aproximar-se dos
desafios postos à profissão e encaminhar providências, posto que a realidade social é
revestida de contradições que requerem um olhar para além da imediaticidade dos
fenômenos. É preciso levar em consideração todas as determinações das relações sociais
buscando conhecê-las e interpretá-las à luz de uma perspectiva crítica, mas isto só é
possível se houver acúmulo teórico, conhecimento da realidade e capacidade de fazer
interlocução desse acúmulo com a realidade, incluindo os usuários como interlocutores nas
ações e não como sujeitos passivos e, para isto, é necessário aproximação com estes
sujeitos, de uma parte e, de outra, conscientização dos sujeitos, é preciso saber ouvir, mas
também refletir coletivamente, acionar os mecanismos legais, transcender as ações
individuais, propor trabalho multiprofissional e intersetorial e isto requer estratégias de médio
e longo prazos.

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


9

Destarte, o cenário que se instaurou no Brasil a partir de 1990 além de expressar


modificações no chamado “mundo do trabalho”, passou a demandar dos/as profissionais do
Serviço Social um amadurecimento teórico e intelectual que lhes permita apreender as
mediações que configuram o contexto de transformações e desvendar as novas
manifestações da “questão social”, sem ignorar os efeitos deletérios da economia e da
política que se acumulam também sobre as antigas expressões da “questão social”,
adensando o cenário adverso para a classe trabalhadora em um momento em que o Estado
se retrai, desencadeando uma série de medidas em torno de cortes no campo das políticas
sociais e inviabilizando direitos sociais reconhecidos em lei (IAMAMOTO, 2015).
Dessa forma, os/as Assistentes Sociais em seu cotidiano profissional passam a
deparar-se fortemente com a ampliação da seletividade e focalização das políticas sociais,
ao mesmo tempo em que são requisitados a responder com medidas efetivas às demandas
que lhes são apresentadas, confrontando-se com a valorização desmedida do mercado de
consumo e a financeirização do capital em detrimento da produção e do mercado de
trabalho formal, o que reforça os desafios postos à profissão, exigindo dos/as profissionais
qualificação contínua e diálogo com os princípios éticos e políticos que orientam o PEPP.

Os/as profissionais de Serviço Social estão permanentemente desafiados/as pela


própria crítica, no cotidiano da prática profissional, diante das escolhas das
concepções de mundo que se impõem e se repõem em um movimento dialético, no
confronto com as condições objetivas do exercício da profissão; condições
determinadas e regidas pelas condições objetivas das sociedades capitalistas de
desenvolvimento desigual e combinado, que nos países latino-americanos se
expressam na exacerbada desigualdade histórica. (LOPES, 2016, p. 324).

Em relação ao quadro teórico-epistemológico, os anos 1990 também recuperaram a


ideologia conservadora a partir do resgate do positivismo – neopositivismo – e da ascensão
da pós-modernidade com seu viés subjetivo e efêmero, reforçando no Serviço Social as
discussões sobre metodologias individuais de trabalho e o resgate ao psicologismo,
interferências que não passaram incólumes aos grupos representativos da categoria que
buscam resistir aos intentos voltados ao resgate das marcas tradicionais ainda presentes na
profissão. Do mesmo modo, foram observadas mudanças no sistema educacional nacional
e nos últimos anos o fortalecimento do ensino a distância e de experiências alheias ao que é
proposto no PEPP, cujos debates não podem ser ignorados.
Diante disso, é notório que a profissão na contemporaneidade vive um momento de
resistência política instigada pela conjuntura de enfrentamento às novas configurações do
conservadorismo que perdura no seio do Serviço Social. Em vista disso, destaca-se a
responsabilidade dos processos de formação profissional, assim como da fiscalização e
orientação das entidades representativas, no intuito de contar com profissionais críticos e

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


10

propositivos que possam se mostrar proativos frente à insuficiência de condições objetivas e


às contradições da sociedade de classes.
Entretanto, a despeito da defesa por sua autonomia e da própria classe
trabalhadora, é pertinente salientar que a carência das condições objetivas para efetivação
do seu trabalho se dá pelo fato dos/as Assistentes Sociais se afirmarem socialmente como
trabalhadores assalariados, logo possuírem a força de trabalho, mas não os meios para
materializá-la, dado que dependem das entidades empregadoras para isso e, portanto,
estando à mercê das intempéries que assolam as políticas sociais e as entidades onde
realizam seu trabalho, seja no âmbito público – com cortes de gastos – seja no setor privado
– com o resgate a estratégias de participação para controle e maior exploração, além de
seletividade das ações assistenciais.
Por fim, ressalta-se que em meio aos desafios sociais impostos pela ofensiva
neoliberal, o Serviço Social permanece no campo da luta e da resistência, buscando
construir canais de diálogo nos mais variados espaços socio-ocupacionais, fortalecendo o
processo de construção de uma sociedade emancipada.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face destas considerações, compreende-se que a construção do legado


histórico da profissão não se deu de maneira linear, pelo contrário, desde sua gênese
apresentou características complexas que nem sempre foram apreendidas pela própria
categoria profissional. Desse modo, a compreensão dos fundamentos históricos e teórico-
metodológicos do Serviço Social brasileiro leva a pensar em que campo das forças
societárias a profissão foi se construindo.
Refletir sobre o Serviço Social contemporâneo é analisar antes de tudo o
movimento político, econômico, cultural e social da sociedade vigente, uma vez que as
transformações societárias impõem à profissão novos desafios. Dessa forma, entender a
realidade dentro de um processo global complexo requer o conhecimento das contradições
que perpassam a sociedade capitalista, haja vista a necessidade de decifrá-la para construir
uma intervenção criativa que seja capaz de preservar a viabilização dos direitos sociais.
Ademais, destaca-se o salto qualitativo da profissão em termos de direcionamento
ético-político – materializado pelo PEPP –, visto que ao longo dos anos a categoria
profissional assumiu o seu compromisso com os princípios fundamentais que regem a
profissão, de modo a ocupar o lugar que lhes cabe na luta por uma sociedade mais justa e
igualitária.

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


11

Portanto, ao longo deste trabalho evidenciou-se que a trajetória histórica do Serviço


Social é marcada por momentos de rupturas e continuidades e que o agir profissional dos/as
Assistentes Sociais se delineia no contexto da reprodução das relações sociais, constando-
se o quanto é desafiadora a atuação profissional na contemporaneidade e reafirmando-se a
necessidade dos/as profissionais se fortalecerem nos espaços socio-ocupacionais, através
do amadurecimento teórico-crítico e intelectual alcançado pela categoria ao longo dos anos,
buscando construir articulações junto aos atores sociais dos movimentos democráticos e
populares, construindo e reconstruindo sua identidade profissional no conjunto das relações
sociais concretas, sem perder de vista a história, de modo a evitar a retomada de questões
superadas mediante reflexão coletiva em prol de um projeto societário e emancipatório.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e Filosofia: das origens a Araxá. 6. ed. São
Paulo: Cortez, Piracicaba, SP: Universidade Metodista de Piracicaba, 2001.

CASTRO, Manuel Manrique. História do Serviço Social na América Latina. 8. ed. São
Paulo: Cortez, 2007.

IAMAMOTO, Marilda Villela. Renovação e Conservadorismo no Serviço Social: ensaios


críticos. São Paulo, Cortez, 1992.

______. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 2. ed.


São Paulo: Cortez, 2015.

______; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de
uma interpretação histórico‐metodológica. 16. ed. São Paulo: Cortez: CELATS, 2014.

LOPES, Josefa Batista. O Movimento de Reconceituação do Serviço Social na América


Latina como marco na construção da alternativa crítica na profissão: a mediação da
organização acadêmico-política e o protagonismo do Serviço Social brasileiro. In: OLIVEIRA
E SILVA, Maria Liduína de (Org.). Serviço Social no Brasil: história de resistências e de
ruptura com o conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2016. p. 311-344.

NETTO, José Paulo. A Construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social frente à crise
contemporânea. In: CFESS; ABEPSS; CEAD. Capacitação em Serviço Social e política
social: Módulo 1: Crise contemporânea, questão social e Serviço Social. Brasília: CEAD-
UNB, 1999. p. 93-110.

______. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. 16. ed.
São Paulo: Cortez, 2011.

SANTANA, Raquel Santos. O desafio da implantação do Projeto Ético-Político do Serviço


Social. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 62, p. 73-92, mar. 2000.

SILVA e SILVA, Maria Ozanira (Coord.). O Serviço Social e o popular: resgate teórico-
metodológico do projeto profissional de ruptura. 3. ed., São Paulo: Cortez, 2006.

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


12

RAMOS, Sâmya Rodrigues. Organização política dos (as) assistentes sociais brasileiros
(as): a construção histórica de um patrimônio coletivo na defesa do projeto profissional In:
Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, nº 88. p.160-181. 2006.

YAZBEK, Maria Carmelita. O significado sóciohistórico da profissão. In: CFESS/ABEPSS.


Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS,
2009, p. 125-141.

Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054


Eixo: Serviço Social, fundamentos, formação e trabalho profissional.
Sub-eixo: Fundamentos históricos e teórico-metodológicos.

OS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO NA PRODUÇÃO


CIENTÍFICA DO XV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORAS/ES EM
SERVIÇO SOCIAL (ENPESS)

YANCA VIRGÍNIA ARAÚJO SILVA1


MÔNICA BARROS DA NÓBREGA2
ANDERSON CARLOS DOS SANTOS SILVA3
HORÁCIO LEITE DE SOUZA NETO4

Resumo: Este trabalho sistematiza os resultados preliminares da pesquisa sobre os Fundamentos do


Serviço Social brasileiro na contemporaneidade, ora em andamento. Está vinculada ao Programa
Institucional de Iniciação Científica – PIBIC/UEPB/CNPq, cota 2017-2018, tendo como objetivo
principal analisar na produção científica da área as tendências mais significativas sobre os
Fundamentos da profissão na contemporaneidade. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e
documental, tendo como material empírico os trabalhos apresentados no XV Encontro Nacional de
Pesquisadoras/es em Serviço Social, 2016. Fundamenta-se na teoria social crítica e assume
relevância visto que os seus resultados já revelam uma parca produção acerca do tema.
Palavras-chave: Serviço Social. Fundamentos. Produção Científica.

Abstract: This paper systematizes the preliminary results of a research about the Foundations of the
Brazilian Social Work in the contemporaneity, now in progress. This work is linked to the Institutional
Program for Scientific Initiation Scholarships - PIBIC/UEPB/CNPq, quota 2017-2018, aiming mainly to
analyse, in the scientific productions in the area, the most significant trends about the Foundations of
the profession in the contemporaneity. It is a bibliographical and documentary research, having as
empirical material papers presented at the XV National Meeting of Researchers in Social Work, 2016.
It is based on critical social theory and it is particularly relevant since its results already show a scarce
production on the theme.
Keywords: Social Work. Foundations. Scientific Production.

1. INTRODUÇÃO

O Serviço Social brasileiro vem sendo objeto de estudo de reconhecidos


pesquisadores da área, principalmente daqueles que fundamentados na teoria social crítica,
buscam apreendê-lo como uma totalidade, no movimento contraditório da sociabilidade

1 Estudante de Graduação, Universidade Estadual da Paraíba, E-mail: yancavasilva@gmail.com.


2 Professor com formação em Serviço Social, Universidade Estadual da Paraíba, E-mail:
yancavasilva@gmail.com.
3 Estudante de Graduação, Universidade Estadual da Paraíba, E-mail: yancavasilva@gmail.com.
4 Estudante de Graduação, Universidade Estadual da Paraíba, E-mail: yancavasilva@gmail.com.
2

burguesa, na qual emerge e se desenvolve, destacando a sua vinculação com a


denominada “questão social5”.
Dessa forma, pensar sobre os Fundamentos do Serviço Social na contemporaneidade,
leva-nos a considerar a conjuntura atual de crise capitalista e suas expressões na
sociedade. Contexto este que repercute sobre as políticas sociais, o mundo do trabalho, o
papel do Estado, a produção de conhecimento, ideários e modos de vida, identidades e
formas de sociabilidade; colocando desafios as mais diversas práticas sociais nas quais se
incluem as práticas profissionais, que são impulsionadas a repensarem, dentre outros, os
seus Fundamentos.
Closs (2015) afirma que os Fundamentos do Serviço Social dizem respeito à matriz
explicativa da realidade e da profissão, particular ao Serviço Social, (re)construída
processualmente na sua trajetória histórica no movimento da realidade brasileira, a qual
porta dimensões teórico-metodológicas e ético-políticas que fundamentam a dimensão
técnico-operativa desta profissão. Segundo a referida autora, esta matriz, atualmente,
conforma-se a partir da conjugação de método/teoria marxistas e valores emancipatórios na
análise histórico-crítica totalizante do Serviço Social, profissão cujo núcleo central reside no
debate teórico-metodológico marxista, na análise da sua historicidade, na abordagem
teórica da “questão social” e da categoria trabalho, assim como do projeto ético-político
profissional.
Nossa proposta investigativa vem sendo desenvolvida à luz do método critico dialético,
tendo como propósito revelar a dinâmica do movimento entre a aparência e a essência do
objeto de estudo. Logo, o que buscamos é a apreensão do objeto na totalidade de relações
que o determina, na tentativa de reproduzir, no âmbito do pensamento, a riqueza e
complexidade do movimento do real. Portanto, como totalidade social rica em
determinações e contradições, típicas de um determinado processo histórico que se
desenvolve com o protagonismo dos sujeitos sociais.
Metodologicamente caracteriza-se como uma pesquisa bibliográfica e documental,
tendo como material empírico os trabalhos apresentados nos Anais do XV Encontro
Nacional de Pesquisadoras/es em Serviço Social (ENPESS) , realizado no período de 04 a
09 de dezembro de 2016, em Ribeirão Preto /SP, no qual foram celebrados os 80 anos do

5
Para Netto (2001), o termo “questão social” historicamente foi adotado pela burguesia subsumindo o caráter
político da luta dos trabalhadores por melhores condições de vida e de trabalho à fluidez de algo de natureza
“social”, o que justifica o uso das aspas. A partir da segunda metade do século XIX, a expressão “questão social”
deixou de ser usada indistintamente por críticos sociais de diferenciados lugares do espectro ídeo-político,
deslizando paulatinamente, mas nitidamente, para o vocabulário próprio do pensamento conservador. Ou seja,
passou a ser empregada a partir da separação entre o econômico e o social, dissociando as questões
econômicas das “questões sociais”.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


3

Serviço Social no Brasil, os 20 anos das Diretrizes Curriculares e os 70 anos da Associação


Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS).
A pesquisa bibliográfica Segundo Gil (2002, p.44) “é desenvolvida com base em
material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”. A principal
vantagem desta pesquisa está no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama
de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente (idem,
p.45).
No que concerne a pesquisa documental, há uma profunda semelhança à pesquisa
bibliográfica, sendo a natureza das fontes a principal diferença: enquanto na pesquisa
documental, os materiais utilizados geralmente não receberam ainda um tratamento
analítico, na pesquisa bibliográfica os assuntos abordados recebem contribuições de
diversos autores (Gil, 2002, p.46).
A pesquisa em andamento vem demandando um amplo levantamento bibliográfico das
fontes que constituirão o aporte teórico da pesquisa, reuniões sistemáticas para
planejamento das etapas da pesquisa, bem como estudo e discussões de temáticas
pertinentes ao objeto de estudo.
Para a definição da amostra partimos do mapeamento e levantamento dos trabalhos
apresentados nos Anais do XV ENPESS, priorizando as comunicações orais de autoria de
doutores e doutorandos, considerando o possível aprofundamento teórico necessário à
análise crítica da totalidade do real, apresentados no eixo temático Serviço Social:
fundamentos, formação e trabalho profissional, disponíveis no Compact Disc (CD) do
Encontro.
Assim, utilizamos como recurso a palavra-chave FUNDAMENTOS, tendo sido possível
localizar apensas 15 (quinze) dos 1.031 (mil e trinta e um) artigos contidos no CD. A partir
deste mapeamento foi possível perceber que os artigos não estão devidamente identificados
por eixo e nível de qualificação dos autores, não atendendo assim a proposta original desta
pesquisa.
Nesse sentido, recorremos ao relatório elaborado pelo Grupo Temático de Pesquisa
(GTP): "Serviço Social, Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional" que tem o objetivo
de dar visibilidade à produção científica referente ao Eixo Serviço Social: fundamento,
formação e trabalho profissional apresentados do XV ENPESS.
Após a leitura do referido relatório, especialmente dos apêndices, foi possivel
identificarmos 62 (sessenta e dois) trabalhos com ênfase no eixo de Fundamentos, sendo
52 (cinquenta e dois) destes na modalidade comunicação oral, coordenados pela Profª. Drª.
Maria Rosângela Batistoni, 06 (seis) na modalidade de pôster e 04 (quatro) mesas temáticas
sob a coordenação da Profª. Drª. Marina Maciel Abreu. Outros 106 (cento e seis) foram

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


4

identificados com ênfase na Formação e 89 (oitenta e nove) referentes ao Trabalho


Profissional.
De todos os trabalhos apresentados na modalidade de comunicação oral, 52
(cinquenta e dois) com ênfase no eixo dos Fundamentos, apenas 08 (oito) atendiam aos
critérios desta investigação, ou seja, de autoria de doutores e/ou doutorandos, compondo
assim a nossa amostra final.
Após a delimitação da amostra, elaboramos um roteiro de leitura para coleta de dados,
com posterior agrupamento do seu conteúdo a partir de eixos norteadores orientados pelos
objetivos da pesquisa.
Para a sistematização e análise crítico/analítica pormenorizada de todo o material
coletado, consideraremos os elementos historicamente mais importantes, as conexões
existentes entre esses elementos e a identificação dos elos fundamentais que efetuam a
mediação entre a essência e a aparência do fenômeno em pauta. Enfim, para a apreensão
do objeto de estudo acreditamos ser imprescindível um processo permanente de
aproximações sucessivas que possibilite desvendar as totalidades que constituem o
contraditório universo do referido objeto de estudo.
A motivação por esse tema advém de resultados de pesquisas anteriores, realizadas
nas teses de doutoramento defendidas nos Programas de Pós-Graduação em Serviço
Social, vinculadas ao PIBIC/UEPB/CNPq - cotas 2013/2014, 2014/2015. Nessas
experiências foi possível constar uma diversidade de temas que vem circunscrevendo o
interesse dos pesquisadores na área de Serviço Social, o que denota a intensa interlocução
da profissão com o movimento da sociedade, permitindo compreendê-la densa de
historicidade (IAMAMOTO, 2007).
No amplo arco de temas priorizados identificamos que as políticas públicas lideram em
termos de número de teses, em especial as políticas sociais, espaço em que se inscreve
majoritariamente a atuação do/a assistente social. Contudo, constatamos que a totalidade
de teses que tratam de temáticas relativas aos Fundamentos é diminuta, ou seja, são
exíguos os estudos que versam sobre o tema.
Fato esse que nos despertou o interesse pelo estudo dos Fundamentos da profissão
na contemporaneidade, sintonizando-se com as atividades desenvolvidas no Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Proteção Social (GETRAPS)6, ligado ao
Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

6
O GETRAPS é constituído de docentes e alunos de graduação e pós-graduação que desenvolvem pesquisas
de iniciação científica e de mestrado, cujas temáticas estão voltadas para a relação capital x trabalho e para os
fundamentos do Serviço Social, consolidando uma linha de pesquisa que integra o Projeto Pedagógico do Curso
de graduação em Serviço Social da UEPB e contribui para o fortalecimento da Pós- graduação em Serviço Social
desta universidade.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


5

Nesse sentido acreditamos, portanto, que os resultados da presente proposta


investigativa poderão contribuir para o alargamento e o aprofundamento das discussões na
agenda profissional acerca dos Fundamentos do Serviço Social brasileiro, na medida em
que poderá se constituir numa aproximação qualificada ao objeto de pesquisa, possibilitando
dar visibilidade a importância de estudos e debates em torno desta temática na
contemporaneidade e subsidiar estratégias coletivas de fortalecimento profissional com
direção política, ética e teórica condizente com o projeto ético-politico do Serviço Social.
Como ressalta Iamamoto (2007, p. 240), devemos, pois, “[...] realizar a viagem de retorno à
profissão [...]”.
Por fim, considerando as questões aqui postas, lançamos as seguintes
indagações, as quais estão orientando a nossa investigação: o que vem sendo priorizado
pelos pesquisadores da área sobre os Fundamentos do Serviço Social na
contemporaneidade? De que maneira estes fundamentos vem sendo abordados na
produção cientifica da profissão? Enfim, quais as tendências mais significativas da produção
científica do Serviço Social brasileiro acerca dos Fundamentos da profissão?

2. BREVE RECUPERAÇÃO HISTÓRICA SOBRE O SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO

O Serviço Social, de acordo com Netto (1996a, p.111) nasceu intimamente


relacionado com as peculiaridades do tratamento conferido à “questão social”, no âmbito da
sociabilidade burguesa fundada na ordem monopólica, na qual prevalece uma racionalidade
segmentadora e manipuladora do real. No Brasil, como ressalta Iamamoto (1997), o Serviço
Social surgiu na década de 1930, fruto da iniciativa de grupos e frações de classes
dominantes, no bojo do reformismo conservador, que se expressaram através da Igreja
Católica. Surgiu, portanto, como uma estratégia de classe, no plano de um projeto burguês
de reformas dentro da ordem, objetivando a integração da classe trabalhadora, no momento
em que o Estado e a Igreja resolveram assumir para si o enfrentamento da “questão social”.
Dito isto, foi, pois, no bojo da relação com a Igreja Católica que o Serviço Social
brasileiro fundamentou a formulação de seus primeiros objetivos político/sociais, tendo como
norte posicionamentos de cunho humanista conservador, contrários aos ideários liberal e
marxista na procura de recuperação da hegemonia do pensamento social da Igreja frente à
“questão social” (YAZBEK, 2009).
O conservadorismo católico que caracterizou a gênese do Serviço Social no Brasil,
segundo Yazbek (2009, p. 147) somente começou a ser tecnificado a partir, sobretudo, dos
anos 1940 ao entrar em contato com o Serviço Social norte-americano e com suas
proposições de trabalho permeadas pelo caráter conservador de viés positivista, o qual

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


6

“restringe a visão de teoria ao âmbito do verificável, da experimentação e da fragmentação”,


voltando-se para ajustes e manutenção da ordem estabelecida.
Nesse sentido, para a referida autora, um primeiro suporte teórico-metodológico
imprescindível à qualificação técnica de sua prática e à sua modernização vai ser buscado
na matriz positivista e em sua apreensão manipuladora, instrumental e imediata do ser
social. Contudo, este referencial somente foi submetido a critica no contexto dos anos
1960,quando a profissão, assumindo as inquietações e insatisfações daquele momento
histórico passou a direcionar seus questionamentos ao Serviço Social tradicional7 por meio
de um amplo movimento, em diferentes níveis: teórico, metodológico, operativo e político.
Netto (1996 a), tomando como substrato para a sua análise a cultura profissional, da
sua gênese até a década de 1960, e pretendendo esclarecer o estatuto teórico do Serviço
Social, bem como identificar à especificidade da prática profissional, conclui que o fio
condutor da afirmação e desenvolvimento do Serviço Social como profissão, além do
conservadorismo, é o sincretismo, e afirma ser este o princípio constitutivo do Serviço
Social. Isto é, a profissão adotou ecleticamente e acriticamente um saber intrínseco das
Ciências Sociais para então desenvolver um conhecimento instrumental que se pretendia
específico.
Portanto, a partir das novas configurações no contexto político-econômico gestadas
com a ditadura civil militar e sua crise, se tornou possível e se pôs como socialmente
necessária uma renovação no interior do Serviço Social, que puderam ser observadas no
campo da pesquisa, da formação profissional, da organização politica-coorporativa dos/as
assistentes sociais e no mercado de trabalho profissional.
Essa renovação, de acordo com Netto (1996b), expressa por diferentes tendências e
nomenclaturas - Modernização Conservadora, Reatualização do Conservadorismo e
Intenção de Ruptura, significou um avanço no Serviço Social brasileiro, visto que lhe
conferiu uma nova formatação profissional, mesmo que sem negar, inicialmente, as bases
teóricas expressas no passado recente.
Como ressalta Cardoso (2013), tanto a primeira quanto à segunda tendência
(Modernização Conservadora e Reatualização do Conservadorismo, respectivamente) se
inscreveram no âmbito de um projeto profissional de viés conservador, ao passo que,
mesmo laicizada e elevada ao status universitário, não imprimiram à profissão,
teleologicamente, a superação da sociedade de classes, cuja perspectiva emancipatória

7 Para Netto (1996b), o Serviço Social tradicional é a prática do/as assistentes sociais empirista, reiterativa,
paliativa e burocratizada, fundamentada por uma ética liberal-burguesa, cuja doutrina consiste na correção de
resultados psicossociais considerados indesejáveis, com uma concepção de natureza idealista ou mecanicista
do movimento da realidade social, sendo pressuposta a ordenação capitalista da vida como um dado factual
eliminável.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


7

somente foi expressa a partir dos anos 1980, com a instauração da terceira vertente, ou
seja, a intenção de ruptura.
No que se refere à Modernização Conservadora, esta se constitui na tentativa de
buscar cientificidade para a profissão, bem como a modernização com enfoque no caráter
técnico-operativo, sem romper, contudo, com as bases positivistas, numa clara adesão a
uma nova roupagem conservadora.
Já a Reatualização do conservadorismo, nas palavras de Netto (1996b), com o
propósito de negar o positivismo, sem a pretensão de superá-lo, quando a distensão militar
causava indignação pela ausência de liberdade civil e política, o Serviço Social brasileiro
buscou, de um lado, abrir mão do acervo positivista e, de outro, descreditar do referencial
dialético-crítico, de aparato marxista, fundamentando-se na fenomenologia, de maneira
vulgarizada, o que acabou impossibilitando uma análise rigorosa e crítica da realidade e,
consequentemente, de intervenções profissionais que pudessem ser parametradas e
avaliadas por critérios teóricos e sociais objetivos. Dessa forma, a intervenção profissional
não ultrapassava o campo da ajuda psicossocial para o desvelamento do sentido à pessoa,
ficando apenas no diálogo, isolando assim o usuário do movimento do real em sua
totalidade.
Com relação à tendência de intenção de ruptura, é necessário destacar que foi a
interlocução entre o Serviço Social e a teoria social de Marx, a qual se vincula a uma
vertente revolucionária, cancelando qualquer lastro conservador que vai se configurar
justificada, por um lado, pelo contexto histórico da época e, de outro, pelas próprias
características desta matriz teórica, especialmente apta para subsidiar correntes
sócioprofissionais de sentido crítico (NETTO, 1989).
No entanto, o que se pretendia ser uma renovação do Serviço Social, acabou sendo
uma aproximação inicialmente enviesada à tradição Marxista (NETTO, 1996b); mediação
essa que se deu por fontes secundárias, pouco qualificadas e num registro de forte
ecletismo8. Para Iamamoto (1998, p. 211- 212) uma:

[...] aproximação a um marxismo sem Marx. O resultado foi um universo teórico


presidido por fortes traços ecléticos, dando lugar a uma ‘invasão, às ocultas, do
positivismo no discurso marxista do Serviço Social’. Traço eclético potenciado por uma
herança intelectual e política de salientes raízes conservadoras e positivistas, da qual
o Serviço Social é caudatário e contra a qual se insurgia o movimento de
reconceituação.

8 Conforme Tonet (1995, p. 35), o ecletismo se constitui na liberdade de tomar ideias de vários autores e articula-
las segundo a conveniência do pensador, sem, contudo, verificar com rigor a compatibilidade de ideias e
paradigmas diferentes, resultando numa verdadeira “colcha de retalhos”. Portanto, não possibilitando a
apreensão do real na sua totalidade.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


8

Como podemos observar o discurso que se pretendia marxista passou a conviver com
uma bagagem teórica eclética, incapaz de efetivar as intenções declaradas, corroborando
na não concretização integral da ruptura anunciada (IAMAMOTO, 1998).
Apesar disso, devemos ressaltar que o pioneiro estudo que marcou a incorporação da
obra marxiana no Serviço Social brasileiro data dos anos 1980, mais precisamente em 1982,
com a obra Relações Sociais e Serviço Social no Brasil - esboço de uma interpretação
histórico-metodológica, de autoria de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho, que apreende o
Serviço Social como uma profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho,
localizada no processo de produção e reprodução das relações sociais (NETTO, 1996b).
Superados os problemas iniciais com a tradição marxista, o Serviço Social passou a
se debruçar sobre os desafios que a história do país tem descortinado à profissão,
dialogando e se apropriando do debate intelectual contemporâneo no campo das Ciências
Sociais do país e do exterior. Desenvolveu-se na pesquisa sobre a natureza de sua
intervenção, de seus procedimentos, de sua história e, principalmente, acerca da realidade
social, política, econômica e cultural onde se insere. Logo, adquiriu o respeito de seus iguais
no âmbito interdisciplinar e conseguiu visibilidade na interlocução com as Ciências Sociais
(YAZBEK, 2000).
Closs (2015) destaca que um marco significativo da problematização dos
Fundamentos do Serviço Social tem como contextualização histórica e teórica o debate
travado em torno da revisão das diretrizes curriculares para a formação em Serviço Social,
desde o currículo de 1982 ao atual projeto de formação profissional de 1996. Portanto, o
processo coletivo de debate e de definição dos eixos centrais, que fundamentam a formação
profissional e explicita as principais tendências do debate teórico-metodológico sobre a
profissão na contemporaneidade.
O recurso à busca dos fundamentos das coisas, da realidade, e mesmo da profissão,
“só tem sentido, em primeiro lugar, quando se opera com uma razão racionalista, historicista
e dialética” (GUERRA, 2004, p.14), recurso este imprescindível para apreensão da
dimensão ontológica do real.
Nesse sentido, de acordo com Ortiz (2010), nos anos 1990 o Serviço Social pode
aprimorar a tendência de ruptura com o denominado Serviço Social “tradicional”,
configurando-a em um projeto profissional com clara direção social e política, expressando
não apenas o amadurecimento interno da profissão, mas sua posição política em face ao
contexto de crise do capital.
No entanto, nesta década, bem como no limiar do século XXI, o quadro
econômico, político, cultural e social do país apresenta repercussões significativas para os
Fundamentos teórico-metodológicos do Serviço Social. Segundo Yazbek (2009), apesar da
vitalidade do marxismo como perspectiva de análise, os desdobramentos das polêmicas em

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


9

torno dos paradigmas clássicos e na busca de construção de novos paradigmas, no Serviço


Social se colocam pela apropriação do pensamento de autores contemporâneos de diversas
tendências teórico-metodológicas como Anthony Giddens, Hannah Arendt, Pierre Bourdieu,
Michel Foucault, Juergen Habermas, Edgard Morin, Boaventura Souza Santos etc., como
também nas formas de abordagem das temáticas relevantes para a profissão, na busca
incessante de conceber uma interligação entre sujeito e estrutura e entre concepções macro
e micro da vida social, dentre outras. Isso significa que, apesar da ruptura com o viés
conservador e da legitimidade adquirida pelo pensamento marxista ampliam-se as
interferências de outras correntes teórico-metodológicas, principalmente no âmbito da
influência do pensamento pós-moderno9.
Embora o Serviço Social goze de avanços significativos conquistados ao longo de
sua história, em particular aqueles já explanados por grande parte dos estudiosos da área,
a saber, a consolidação da sua maturidade intelectual, o seu reconhecimento e validação
acadêmica como área de produção de conhecimento e, sobretudo, a constituição de uma
vertente crítica, responsável pela renovação da imagem profissional, a onda conservadora
que avança desde os finais dos anos 1980 no Brasil ameaça, como bem explicou Guerra
(2011), as tendências de fundar na razão a constituição dos processos e sua explicação,
invadindo o Serviço Social e potencializando os vetores mais conservadores e regressivos
da cultura profissional.
Sendo assim, como nos mostra Yazbek (2009), as consequências desta "crise" de
referenciais analíticos, atravessa a polêmica profissional na atualidade e se expressa pelos
confrontos com o conservadorismo que se atualiza em tempos pós-modernos. Logo, se
coloca como desafio à profissão a consolidação do projeto ético-político, construído sob a
influência da tradição marxista.
Devemos ressaltar que se põe hoje para a categoria profissional, como já observou
Ortiz (2007), a livre escolha entre permanecer com a prevalência da direção social
estratégica do projeto ético-político pautado na tradição marxista ou aderir às tendências
fundamentadas em abordagens comportamentais, voluntaristas, holistas, dentre outras. A
escolha consciente, tampouco, somente poderá ocorrer através de um rigoroso investimento
numa formação profissional crítica, sendo imprescindível o papel da universidade e das
entidades representativas da categoria.
Não obstante a influência das teorias pós-modernas no Serviço Social, em particular
na sua produção teórica, percebe-se também posturas de resistência frente a esse ideário.
É nítida, no âmbito da categoria profissional, a postura de seguimentos que defendem

9Segundo Sousa (2005), a pós-modernidade se restringe ao que é efêmero, descontínuo, fragmentado. Ao negar
a totalidade, a razão dialética e as metanarrativas privilegiam a dimensão fenomênica da realidade, não
apreendendo a essência do real.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


10

ferrenhamente a direção social estratégica fundamentada na tradição marxista, de uma


produção de conhecimento teórico que se paute na perspectiva de apreensão da realidade
enquanto uma totalidade rica em determinações e de uma prática profissional em sintonia
com o projeto ético-político. Enfim, de uma forte retomada do processo de busca aos
fundamentos ontológicos e de apreensão da realidade em sua totalidade com vista a
instrumentalizar uma prática profissional conectada com a justiça social e a emancipação
humana.

3. OS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO NA PRODUÇÃO


CIENTÍFICA DO XV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORAS/ES EM
SERVIÇO SOCIAL

Sem dúvidas, o ENPESS é um grande evento de pesquisadoras/es da área de Serviço


Social , que contribui , dentre outros, para a formação continuada; para a produção científica
e técnica da profissão; para a socialização das pesquisas e das experiências profissionais;
para o fortalecimento da categoria e para o adensamento da produção do conhecimento e
posicionamentos políticos.
O ENPESS é um evento bienal e a sua XV edição, como já dito anteriormente, foi
realizada no período de 04 a 09 de dezembro de 2016, no Centro de Convenções de
Ribeirão Preto - SP tendo como tema: "20 anos de diretrizes curriculares, 70 de ABEPSS e
80 de Serviço Social no Brasil. Formação e Trabalho profissional - reafirmando as diretrizes
curriculares da ABEPSS”.
Nesta edição, o Encontro elegeu o objetivo de debater acerca do conjunto de
determinações que perpassam a formação profissional frente ao processo de
mercantilização do ensino superior brasileiro e os desafios para a reafirmação dos princípios
e valores do projeto ético-político profissional. Com base nas Diretrizes Curriculares de
1996, do Código de Ética de 1993 e da Lei de Regulamentação da Profissão foi debatido o
protagonismo da organização da categoria que construiu um legado crítico para a formação,
a pesquisa e para o trabalho profissional, com ênfase para os 70 anos da ABEPSS e 80 do
Serviço Social brasileiro.
O evento contou com a presença de assistentes sociais, professores, pesquisadores,
estudantes, militantes e demais interessados convidados a contribuir com o debate
intelectual e político e com o intercâmbio acadêmico e profissional. Além da densa
programação constituída de Colóquios, Conferências, Mesas Redondas, apresentação de
trabalhos e lançamentos de livros, contou com atividades culturais, confraternizações e
comemoração dos 20 anos das Diretrizes Curriculares, 70 anos da ABEPSS e 80 anos da
profissão de Serviço Social no Brasil.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


11

Com base nas investigações empreendidas nos artigos selecionados, foi possível
percebermos a prevalência de estudos a respeito do trabalho como fonte de toda riqueza
social, como categoria fundante do mundo dos homens (MARX, 1978), sobre o trabalho
do/da assistente social, sobre a relação existente entre o Serviço Social e o método crítico
dialético, sobre a produção do conhecimento acerca dos fundamentos do Serviço Social,
bem como, um significativo enfoque conferido ao tema do projeto ético-político profissional,
em particular acerca das possibilidades de seu fortalecimento.
Observamos, por exemplo, o debate sobre a atualidade do referido projeto
profissional, visto que a sociabilidade burguesa, em especial o Estado, atravessam
avalanches em decorrência da racionalidade capitalista em sua fase imperialista,
impactando diretamente as profissões e, consequentemente, os projetos profissionais.
Verificamos na unanimidade dos artigos analisados a afirmação da pertinência do
método critico dialético para o Serviço Social, apreendido como sendo o mais adequado
para atender aos interesses teóricos, metodológicos, éticos e políticos da categoria
profissional.
Sobre os Fundamentos do Serviço Social, dos 08 (oito) artigos analisados 03 (três)
tratam do tema, o que nos possibilita inferir que na produção científica em apreço
permanece a tendência já identificada por estudiosos da área. Ou seja, como já observou
Closs (2015), a produção que aborda diretamente os Fundamentos da profissão é bastante
diminuta.
Portanto, no que se refere às tendências sobre os Fundamentos do Serviço Social na
produção científica em apreço, podemos destacar: a teoria social crítica, enquanto
Fundamento do Serviço Social na atualidade; o Projeto Ético-Político, enquanto direção
social da profissão; o trabalho enquanto categoria fundante do ser social e o trabalho
profissional em tempos de crise estrutural do capital.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto podemos ressaltar que analisar na produção científica do Serviço


Social brasileiro as tendências mais significativas sobre os Fundamentos da profissão na
contemporaneidade não é tarefa fácil ou simples, visto que exige como ressalta Yazbek
(2009), a apreensão do processo histórico de constituição das principais matrizes de
conhecimento do social, do movimento histórico da sociedade capitalista brasileira e do
processo pelo qual o Serviço Social incorpora e elabora análises sobre a realidade em que
se insere e explica sua própria intervenção.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


12

Os achados iniciais nos permitem inferir que, apesar de todos os esforços para que
os artigos analisados fossem retirados exclusivamente do eixo temático sobre os
Fundamentos do Serviço Social percebe-se que este não é o foco das discussões travadas
nessa produção. Constatamos que as tendências predominantes na produção científica
deste eixo são: a teoria social crítica, enquanto Fundamento do Serviço Social na
atualidade; o Projeto Ético-Político, enquanto direção social da profissão; o trabalho
enquanto categoria fundante do ser social e o trabalho profissional em tempos de crise
estrutural do capital.
Desse modo, reiteramos que os resultados desta pesquisa portam uma relevância
acadêmica e social, dada ao papel decisivo que assume a produção cientifica sobre os
Fundamentos da profissão na contemporaneidade e na instrumentalização do assistente
social para a construção de projetos de intervenção e para a intervenção propriamente dita.
Portanto, condição necessária para fundamentar uma intervenção profissional conectada
com os interesses dos segmentos majoritários da sociedade e, assim, fortalecer o projeto
profissional de ruptura com a herança conservadora e confessional da profissão.
Enfim, esperamos que os resultados alcançados possam oferecer subsídios capazes
de contribuir para o aprofundamento do debate sobre os Fundamentos do Serviço Social
brasileiro na contemporaneidade e instigar o interesse de pesquisadores sobre futuros
estudos sobre o tema, pois o nosso propósito não é esgotar as problematizações sobre a
temática, mas, sim, desvendar as tendências mais significativas sobre os Fundamentos da
profissão.
Acreditamos, enfim, que este tema constitui-se como um fecundo campo aberto à
investigação, na medida em que ainda há muito que se explorar sobre os Fundamentos do
Serviço Social brasileiro na contemporaneidade.
Na nossa trajetória enquanto pesquisadoras/es identificamos que as produções de
referência para o estudo dos Fundamentos do Serviço Social brasileiro na
contemporaneidade são parcas, apesar das produções sobre o Serviço Social serem
consistentes, contudo reduzidas, se comparadas às resultantes de pesquisas sobre as
políticas públicas, especialmente as políticas sociais.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL -


ABEPESS. Apresentação ENPESS. Disponível em:
<http://www.abepss.org.br/enpess/apresentacao-enpess-27>. Acesso em: 18 mar.
2018.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


13

______. XV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL


(ENPESS). Anais [...]. Formação e Trabalho Profissional: reafirmando as Diretrizes
Curriculares da ABEPSS. BRASILIA: ABEPSS, 2016.

_____. GRUPO TEMÁTICO DE PESQUISA. "Serviço Social, Fundamentos,


Formação e Trabalho Profissional". 2016. Disponível em:
<http://www.abepss.org.br/gtps-apresentacao.html>. Acesso em: 30/05/2018.

CARDOSO, P. F. G. Ética e projetos profissionais: os diferentes caminhos do


Serviço Social no Brasil. Campinas, SP: Papel Social, 2013.

CLOSS, T. C. Fundamentos do Serviço Social: um estudo a partir da produção da


área. Tese (Doutorado em Serviço Social)-Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Faculdade de Serviço Social. Porto Alegre: Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, 2015.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
Disponível em:
<https://professores.faccat.br/moodle/pluginfile.php/13410/mod_resource/content/1/c
omo_elaborar_projeto_de_pesquisa_-_antonio_carlos_gil.pdf>. Acesso em: 13 abr.
2018, às 14:40.

GUERRA, Y. D. A. A pós-graduação em Serviço Social no Brasil: um patrimônio a


ser preservado. Temporalis - Revista da Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa em Serviço Social, Brasília: ABEPSS, n. 22, p. 125 -158, 2011.

______. A força histórico-ontológica e crítico-analítica dos fundamentos. Revista


Praia Vermelha: estudos de política e teoria social, Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de
Serviço Social, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, n. 10, p. 12- 45,
2004.

IAMAMOTO. M. V. Renovação e conservadorismo no Serviço Social. 4. ed. São


Paulo: Cortez, 1997.

_______. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação


profissional. São Paulo: Cortez Editora, 1998.

_______.Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e


questão social. São Paulo: Cortez Editora, 2007.

MARX, K. O Capital: manuscritos econômicos-filosóficos e outros textos escolhidos.


Seleção de textos de José Arthur Giannotti. Tradução de José Carlos Bruni (et. al.).
2. ed. São Paulo : Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).

NETTO, J. P. Cinco notas a propósito da “questão social”. Temporalis: Revista da


Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, Brasília: ABEPSS,
ano 2, n. 3, p.41-50, 2001.

______. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 2. ed. São Paulo: Cortez


Editora, 1996a.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


14

______. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço social no Brasil Pós-
64. 3.ed. São Paulo: Cortez, 1996b.

______. O Serviço Social e a tradição marxista. Revista Serviço Social e


Sociedade, São Paulo: Cortez Editora, n. 30, p. 89-102, 1989.

ORTIZ, F. G. O Serviço Social no Brasil: os fundamentos de sua imagem social e


da autoimagem de seus agentes. Rio de janeiro: E-papers, 2010.

_____. Desafios contemporâneos para o Serviço Social: algumas considerações.


Libertas -Revista da Faculdade de Serviço Social /UFRJ – Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, v. 6 e7, n. 1 e 2. Juiz de Fora, 2007, p.1-31.
.Disponível em:
<http://www.editoraufjf.com.br/revista/index.php/libertas/article/view/1764/1240>.
Acesso em: 20 maio 2018.

TONET, I. O Pluralismo Metodológico: um falso caminho. Revista Serviço Social e


Sociedade, São Paulo: Cortez Editora, n. 48, p. 35-57, 1995.

YAZBEK, M. C. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos do Serviço Social.


In: SERVIÇO Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília:
CFESS/ABEPSS, 2009, p. 143-163.

Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


~

Você também pode gostar