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conhecimento do social, do complexo movimento histórico da sociedade capitalista
brasileira e do processo pelo qual o Serviço Social incorpora e elabora análises sobre a
realidade em que se insere e explica sua própria intervenção.
Assim sendo, este texto apresenta‐se organizado em três partes: em uma
primeira introdutória, onde são apresentados alguns fundamentos relativos ao
processo histórico de constituição das principais matrizes do conhecimento e da ação
do Serviço Social brasileiro e em três outras, nas quais se busca uma aproximação às
principais tendências históricas e teórico metodológicas do debate profissional nos
anos 80, 90 e 2000. Encerram o texto algumas reflexões acerca das polêmicas atuais
da profissão.
1 O processo de constituição das principais matrizes do conhecimento e da ação
do Serviço Social brasileiro
A questão inicial que se coloca é explicitar como se constituem e se desenvolvem
no Serviço Social brasileiro as tendências de análise e as interpretações acerca de sua
própria intervenção e sobre a realidade social na qual se move. É claro que estas
tendências, derivadas das transformações sociais que vem particularizando o
desenvolvimento do capitalismo em nossa sociedade, não se configuram como
homogêneas, mas são permeadas por diversas clivagens, tensões e confrontos
internos. Isso porque, a compreensão teórico/metodológica da realidade, fundada no
acervo intelectual que se constituiu a partir das principais matrizes do pensamento
social e de suas expressões nos diferentes campos do conhecimento humano, é
processo que se constrói na interlocução com o próprio movimento da sociedade.
O ponto de partida consiste, pois, da análise ainda que sumária, do processo de
incorporação pela profissão:
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• de idéias e conteúdos doutrinários do pensamento social da Igreja Católica, em
seu processo de institucionalização no Brasil;
• das principais matrizes teórico metodológicas acerca do conhecimento do
social na sociedade burguesa;
Tecer algumas considerações sobre este processo é buscar compreender
diferentes posicionamentos, lógicas e estratégias que permearam o pensamento e a
ação profissional do serviço social em sua trajetória e que persistem até os dias atuais
com novas articulações, expressões e redefinições.
Quanto ao primeiro aspecto, é por demais conhecida a relação entre a profissão
e o ideário católico na gênese do Serviço Social brasileiro, no contexto de expansão e
secularização do mundo capitalista. Relação que vai imprimir à profissão caráter de
apostolado fundado em uma abordagem da "questão social" como problema moral e
religioso e numa intervenção que prioriza a formação da família e do indivíduo para
solução dos problemas e atendimento de suas necessidades materiais, morais e
sociais. O contributo do Serviço Social, nesse momento, incidirá sobre valores e
comportamentos de seus "clientes" na perspectiva de sua integração à sociedade, ou
melhor, nas relações sociais vigentes.
Os referenciais orientadores do pensamento e da ação do emergente Serviço
Social tem sua fonte na Doutrina Social da Igreja, no ideário franco‐belga de ação
social e no pensamento de São Tomás de Aquino (séc. XII): o tomismo e o neotomismo
(retomada em fins do século XIX do pensamento tomista por Jacques Maritain na
França e pelo Cardeal Mercier na Bélgica tendo em vista "aplicá‐lo" às necessidades de
nosso tempo).
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É, pois, na relação com a Igreja Católica que o Serviço Social brasileiro vai
fundamentar a formulação de seus primeiros objetivos político/sociais orientando‐se
por posicionamentos de cunho humanista conservador contrários aos ideários liberal
e marxista na busca de recuperação da hegemonia do pensamento social da Igreja face
à "questão social". Entre os postulados filosóficos tomistas que marcaram o emergente
Serviço Social temos a noção de dignidade da pessoa humana; sua perfectibilidade,
sua capacidade de desenvolver potencialidades; a natural sociabilidade do homem, ser
social e político; a compreensão da sociedade como união dos homens para realizar o
bem comum (como bem de todos) e a necessidade da autoridade para cuidar da
justiça geral.
No que se refere à Doutrina Social da Igreja merecem destaque nesse contexto
as encíclicas “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII de 1891, que vai iniciar o magistério
social da Igreja no contexto de busca de restauração de seu papel social sociedade
moderna e a “Quadragésimo Anno” de Pio XI de 1931 que, comemorando 40 anos da
“Rerum Novarum”” vai tratar da questão social, apelando para a renovação moral da
sociedade e a adesão à Ação Social da Igreja.
É necessário assinalar que esta matriz encontra‐se na gênese da profissão em
toda a América Latina, embora com particularidades diversas como, por exemplo, na
Argentina e no Chile onde vai somar‐se ao racionalismo higienista. (ideário do
movimento de médicos higienistas que exigiam a intervenção ativa do Estado sobre a
questão social pela criação da assistência pública que deveria assumir um amplo
programa preventivo na área sanitária, social e moral).
O conservadorismo católico que caracterizou os anos iniciais do Serviço Social
brasileiro começa, especialmente a partir dos anos 40, a ser tecnificado ao entrar em
contato com o Serviço Social norteamericano e suas propostas de trabalho permeados
pelo caráter conservador da teoria social positivista.
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Efetivamente, a reorientação da profissão, para atender às novas configurações
do desenvolvimento capitalista, exige a qualificação e sistematização de seu espaço
socio‐ocupacional tendo em vista atender às requisições de um Estado que começa a
implementar políticas no campo social.
Nesse contexto, a legitimação do profissional, expressa em seu assalariamento e
ocupação de um espaço na divisão sócio técnica do trabalho, vai colocar o emergente
Serviço Social brasileiro frente à matriz positivista, na perspectiva de ampliar seus
referenciais técnicos para a profissão. Este processo, que vai constituir o que
Iamamoto (1992, p. 21) denomina de "arranjo teórico doutrinário", caracterizado pela
junção do discurso humanista cristão com o suporte técnico‐científico de inspiração
na teoria social positivista, reitera para a profissão o caminho do pensamento
conservador (agora, pela mediação das Ciências Sociais).
Cabe aqui uma explicação: nem o doutrinarismo, nem o conservadorismo
constituem teorias sociais. A doutrina caracteriza‐se por ser uma visão de mundo
abrangente fundada na fé em dogmas. Constitui‐se de um conjunto de princípios e
crenças que servem como suporte a um sistema religioso, filosófico, político, entre
outros. O conservadorismo como forma de pensamento e experiência prática é
resultado de um contramovimento aos avanços da modernidade, e nesse sentido, suas
reações são restauradoras e preservadoras, particularmente da ordem capitalista. A
teoria social por sua vez constitui conjunto explicativo totalizante, ontológico, e,
portanto organicamente vinculado ao pensamento filosófico, acerca do ser social na
sociedade burguesa, e a seu processo de constituição e de reprodução. A teoria
reproduz conceitualmente o real, é, portanto, construção intelectual que proporciona
explicações aproximadas da realidade e, assim sendo, supõe uma forma de
autoconstituição, um padrão de elaboração: o método. Neste sentido, cada teoria
social é um método de abordar o real. O método é, pois a trajetória teórica, o
movimento teórico que se observa na explicação sobre o ser social. É o
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posicionamento do sujeito que investiga face ao investigado e desta forma é "questão
da teoria social e não problema particular desta ou daquela 'disciplina' "
(NETTO,1984, p. 14).
No caso do Serviço Social, um primeiro suporte teórico‐metodológico necessário
à qualificação técnica de sua prática e à sua modernização vai ser buscado na matriz
positivista e em sua apreensão manipuladora, instrumental e imediata do ser social.
Este horizonte analítico aborda as relações sociais dos indivíduos no plano de suas
vivências imediatas, como fatos, como dados, que se apresentam em sua objetividade
e imediaticidade. O método positivista trabalha com as relações aparentes dos fatos,
evolui dentro do já contido e busca a regularidade, as abstrações e as relações
invariáveis.
É a perspectiva positivista que restringe a visão de teoria ao âmbito do
verificável, da experimentação e da fragmentação. Não aponta para mudanças, senão
dentro da ordem estabelecida, voltando‐se antes para ajustes e conservação.
Particularmente em sua orientação funcionalista, esta perspectiva é absorvida pelo
Serviço Social, configurando para a profissão propostas de trabalho ajustadoras e um
perfil manipulatório, voltado para o aperfeiçoamento dos instrumentos e técnicas
para a intervenção, com as metodologias de ação, com a "busca de padrões de
eficiência, sofisticação de modelos de análise, diagnóstico e planejamento; enfim, uma
tecnificação da ação profissional que é acompanhada de uma crescente burocratização
das atividades institucionais" (YAZBEK, 1984, p. 71).
O questionamento a este referencial tem início no contexto de mudanças
econômicas, políticas, sociais e culturais que expressam, nos anos 60, as novas
configurações que caracterizam a expansão do capitalismo mundial, que impõem à
América Latina um estilo de desenvolvimento excludente e subordinado. A profissão
assume as inquietações e insatisfações deste momento histórico e direciona seus
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questionamentos ao Serviço Social tradicional através de um amplo movimento, de
um processo de revisão global, em diferentes níveis: teórico, metodológico, operativo
e político. Este movimento de renovação que surge no Serviço Social na sociedade
latino‐americana impõe aos assistentes sociais a necessidade de construção de um
novo projeto comprometido com as demandas das classes subalternas,
particularmente expressas em suas mobilizações. É no bojo deste movimento, de
questionamentos à profissão, não homogêneos e em conformidade com as realidades
de cada país, que a interlocução com o marxismo vai configurar para o Serviço Social
latinoamericano a apropriação de outra matriz teórica: a teoria social de Marx.
Embora esta apropriação se efetive em tortuoso processo.
É importante assinalar que é no âmbito do movimento de Reconceituação e em
seus desdobramentos, que se definem de forma mais clara e se confrontam, diversas
tendências voltadas a fundamentação do exercício e dos posicionamentos teóricos do
Serviço Social. Tendências que resultam de conjunturas sociais particulares dos países
do Continente e que levam, por exemplo, no Brasil, o movimento em seus primeiros
momentos, (em tempos de ditadura militar e de impossibilidade de contestação
política) a priorizar um projeto tecnocrático/modernizador, do qual Araxá e
Teresópolis são as melhores expressões.
Já o tronco latino americano do movimento, sobretudo no Cone Sul, assume
claramente uma perspectiva crítica de contestação política e a proposta de
transformação social. Posição que, dificilmente poderá levar à prática frente à
explosão de governos militares ditatoriais e pela ausência de suportes teóricos claros.
Sem dúvida, as ditaduras que tiveram vigência no Continente deixaram suas
marcas nas ciências sociais e na profissão, que depois de avançar em uma produção
crítica nos anos 60/70 (nos países onde isso foi permitido) é obrigada a longo silêncio.
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Até o final da década de 70, o pensamento de autores latino‐americanos ainda
orienta ao lado da iniciante produção brasileira (particularmente divulgada pelo
CBCISS), a formação e o exercício profissional no país. Situação que, aos poucos se vai
modificando com o desenvolvimento do debate e da produção intelectual do Serviço
Social brasileiro e que resulta de desdobramentos e da explicitação das seguintes
vertentes de análise que emergiram no bojo do Movimento de Reconceituação:
• a vertente modernizadora (NETTO,1994, p.164 e ss) caracterizada pela
incorporação de abordagens funcionalistas, estruturalistas e mais tarde
sistêmicas (matriz positivista), voltadas a uma modernização conservadora e
à melhoria do sistema pela mediação do desenvolvimento social e do
enfrentamento da marginalidade e da pobreza na perspectiva de integração da
sociedade. Os recursos para alcançar estes objetivos são buscados na
modernização tecnológica e em processos e relacionamentos interpessoais.
Estas opções configuram um projeto renovador tecnocrático fundado na busca
da eficiência e da eficácia que devem nortear a produção do conhecimento e a
intervenção profissional;
• a vertente inspirada na fenomenologia, que emerge como metodologia
dialógica, apropriando‐se também da visão de pessoa e comunidade de E.
Mounier (1936) dirige‐se ao vivido humano, aos sujeitos em suas vivências,
colocando para o Serviço Social a tarefa de "auxiliar na abertura desse sujeito
existente, singular, em relação aos outros, ao mundo de pessoas" (ALMEIDA,
1980, p. 114). Esta tendência que no Serviço Social brasileiro vai priorizar as
concepções de pessoa, diálogo e transformação social (dos sujeitos) é analisada
por Netto (1994, p. 201 e ss) como uma forma de reatualização do
conservadorismo presente no pensamento inicial da profissão;
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• a vertente marxista que remete a profissão à consciência de sua inserção na
sociedade de classes e que no Brasil vai configurar‐se, em um primeiro
momento, como uma aproximação ao marxismo sem o recurso ao pensamento
de Marx.
Efetivamente, a apropriação da vertente marxista no Serviço Social (brasileiro e
latino‐americano) não se dá sem incontáveis problemas, que aqui não abordaremos, e
que se caracterizam, quer pelas abordagens reducionistas dos marxismos de manual,
quer pela influência do cientificismo e do formalismo metodólogico (estruturalista)
presente no "marxismo" althusseriano (referência a Louis Althusser, filosofo francês
cuja leitura da obra de Marx vai influenciar a proposta marxista do Serviço Social nos
anos 60/70 e particularmente o Método de B.H. Um marxismo equivocado que
recusou a via institucional e as determinações sócio históricas da profissão.
No entanto, é com este referencial, precário em um primeiro momento, do ponto
de vista teórico, mas posicionado do ponto de vista sócio‐político, que a profissão
questiona sua prática institucional e seus objetivos de adaptação social ao mesmo
tempo em que se aproxima dos movimentos sociais. Inicia‐se aqui a vertente
comprometida com a ruptura (NETTO,1994, p. 247 e ss) com o Serviço Social
tradicional.
Estas tendências, que configuram para a profissão linhas diferenciadas de
fundamentação teórico‐metodológica tenderão a acompanhar a trajetória do
pensamento e da ação profissional nos anos subsequentes ao movimento de
Reconceituação e se conservarão presentes até os anos recentes, apesar de seus
movimentos, redefinições e da emergência de novos referenciais nesta transição de
milênio.
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Questões para reflexão:
Como se constituem e se desenvolvem no Serviço Social brasileiro as primeiras
interpretações sobre sua própria intervenção e sobre a realidade social?
Quais as principais vertentes de análise definem‐se para a profissão no âmbito
do Movimento de Reconceituação?
2 O Serviço Social nos anos 80: as tendências históricas e teórico metodológicas
do debate profissional
É, sobretudo com Iamamoto (1982) no início dos anos 80 que a teoria social de
Marx inicia sua efetiva interlocução com a profissão. Como matriz teórico‐
metodológica esta teoria apreende o ser social a partir de mediações. Ou seja, parte da
posição de que a natureza relacional do ser social não é percebida em sua
imediaticidade. "Isso porque, a estrutura de nossa sociedade, ao mesmo tempo em que
põe o ser social como ser de relações, no mesmo instante e pelo mesmo processo,
oculta a natureza dessas relações ao observador" (NETTO, 1995) Ou seja, as relações
sociais são sempre mediatizadas por situações, instituições etc, que ao mesmo tempo
revelam/ocultam as relações sociais imediatas. Por isso nesta matriz o ponto de
partida é aceitar fatos, dados como indicadores, como sinais, mas não como
fundamentos últimos do horizonte analítico. Trata‐se, portanto de um conhecimento
que não é manipulador e que apreende dialéticamente a realidade em seu movimento
contraditório. Movimento no qual e através do qual se engendram, como totalidade, as
relações sociais que configuram a sociedade capitalista.
É no âmbito da adoção do marxismo como referência analítica, que se torna
hegemônica no Serviço Social no país, a abordagem da profissão como componente da
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organização da sociedade inserida na dinâmica das relações sociais participando do
processo de reprodução dessas relações (cf. IAMAMOTO, 1982).
Este referencial, a partir dos anos 80 e avançando nos anos 90, vai imprimir
direção ao pensamento e à ação do Serviço Social no país. Vai permear as ações
voltadas à formação de assistentes sociais na sociedade brasileira (o currículo de
1982 e as atuais diretrizes curriculares); os eventos acadêmicos e aqueles resultantes
da experiência associativa dos profissionais, como suas Convenções, Congressos,
Encontros e Seminários; está presente na regulamentação legal do exercício
profissional e em seu Código de Ética. Sob sua influência ganha visibilidade um novo
momento e uma nova qualidade no processo de recriação da profissão na busca de sua
ruptura com seu histórico conservadorismo (cf. NETTO, 1996, p. 111) e no avanço da
produção de conhecimentos, nos quais a tradição marxista aparece hegemonicamente
como uma das referências básicas. Nesta tradição o Serviço Social vai apropriar‐se a
partir dos anos 80 do pensamento de Antonio Gramsci e particularmente de suas
abordagens acerca do Estado, da sociedade civil, do mundo dos valores, da ideologia,
da hegemonia, da subjetividade e da cultura das classes subalternas. Vai chegar a
Agnes Heller e à sua problematização do cotidiano, à Georg Lukács e à sua ontologia
do ser social fundada no trabalho, à E.P. Thompson e à sua concepção acerca das
"experiências humanas", à Eric Hobsbawm um dos mais importantes historiadores
marxistas da contemporaneidade e a tantos outros cujos pensamentos começam a
permear nossas produções teóricas, nossas reflexões e posicionamentos
ideopolíticos.
Obviamente, este processo de construção da hegemonia de novos referenciais
teórico‐metodológicos e interventivos, a partir da tradição marxista, para a profissão
ocorre em um amplo debate em diferentes fóruns de natureza acadêmica e/ou
organizativa, além de permear a produção intelectual da área. Trata‐se de um debate
plural, que implica na convivência e no diálogo de diferentes tendências, mas que
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supõe uma direção hegemonica. A questão do pluralismo, sem dúvida uma das
questões do tempo presente, desde aos anos 80 vem‐se constituindo objeto de
polêmicas e reflexões do Serviço Social. Temática complexa que constitui como afirma
Coutinho (1991, p. 5 ‐15) um fenômeno do mundo moderno e da visão individualista
do homem. É o autor em questão que problematiza a proposta de hegemonia com
pluralismo, no necessário diálogo e no debate de idéias, apontando os riscos de
posicionamentos ecléticos (que conciliam o inconciliável ao apoiarem‐se em
pensamentos divergentes).
Assim, em diferentes espaços, o conjunto de tendências teórico‐metodológicas e
posições ideopolíticas se confrontam, sendo inegável a centralidade assumida pela
tradição marxista nesse processo.
Este debate se expressa na significativa produção teórica do Serviço Social
brasileiro, que vem gerando uma bibliografia própria, e que tem na criação e expansão
da pós‐ graduação, com seus cursos de mestrado e doutorado, iniciada na década de
70, um elemento impulsionador.
É importante lembrar que a pós‐graduação configura‐se, por definição, como
espaço privilegiado de interlocução e diálogo entre as áreas do saber e entre diversos
paradigmas teórico‐metodológicos. Neste espaço o Serviço Social brasileiro vem
dialogando e se apropriando do debate intelectual contemporâneo no âmbito das
ciências sociais do país e do exterior. Também neste espaço, o Serviço Social brasileiro
desenvolveu‐se na pesquisa acerca da natureza de sua intervenção, de seus
procedimentos, de sua formação, de sua história e, sobretudo acerca da realidade
social, política, econômica e cultural onde se insere como profissão na divisão social e
técnica do trabalho. Avançou na compreensão do Estado capitalista, das políticas
sociais, dos movimentos sociais, do poder local, dos direitos sociais, da cidadania, da
democracia, do processo de trabalho, da realidade institucional e de outros tantos
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temas. Enfrentou o desafio de repensar a assistência social colocando‐a como objeto
de suas investigações. Obteve o respeito de seus pares no âmbito interdisciplinar e
alcançou visibilidade na interlocução com as ciências sociais, apesar das dificuldades
decorrentes da falta de experiência em pesquisa, do fato de defrontar com restrições
por se constituir em disciplina interventiva (de "aplicação") e das dificuldades na
apropriação das teorias sociais. Nesta década o serviço Social ganha espaço no CNPq
como área de pesquisa.
Cabe também assinalar que nos anos 80 começam a se colocar para o Serviço
Social brasileiro demandas, em nível de pós‐graduação, de instituições portuguesas, e
latino americanas (Argentina, Uruguai, Chile), o que vem permitindo ampliar a
influência do pensamento profissional brasileiro nestes países.
Também no âmbito da organização e representação profissional o quadro que se
observa no Serviço Social brasileiro é de maturação (NETTO, 1996, p. 108 ‐111).
Maturação que expressa na passagem dos anos 80 para os anos 90 rupturas com o seu
tradicional conservadorismo, embora como bem lembre o autor “essa ruptura não
signifique que o conservadorismo (e com ele, o reacionarismo) foi superado no
interior da categoria profissional" (p. 111). Pois, a herança conservadora e
antimoderna, constitutiva da gênese da profissão atualiza‐se e permanece presente
nos tempos de hoje. Essa maturidade profissional que avança no início do novo
milênio, se expressa pela democratização da convivência de diferentes
posicionamentos teórico‐metodológicos e ideopolíticos desde o final da década de
1980. Maturação que ganhou visibilidade na sociedade brasileira, entre outros
aspectos, pela intervenção dos assistentes sociais, através de seus organismos
representativos, nos processos de elaboração e implementação da Lei Orgânica da
Assistência Social ‐ LOAS (dezembro de 1993). É também no âmbito da
implementação da LOAS,e de outras políticas sociais públicas, com os processos
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descentralizadores que se instituem no país, no âmbito dessas políticas, que observa‐
se a diversificação das demandas ao profissional de serviço social.
É nesse contexto histórico, pós Constituição de 1988 que os profissionais de
serviço social, iniciam o processo de ultrapassagem da condição de executores de
políticas sociais, para assumir posições de planejamento e gestão dessas políticas.
A conjuntura econômica é dramática, dominada pela distância entre minorias
abastadas e massas miseráveis. Não devemos esquecer que nos anos 80 (a “década
perdida” do ponto de vista econômico para a CEPAL) a pobreza vai se converter em
tema central na agenda social, quer por sua crescente visibilidade, pois a década
deixou um aumento considerável do número absoluto de pobres, quer pelas pressões
de democratização que caracterizaram a transição. A situação de endividamento (que
cresce 61% nos anos 80), a presença dos organismos de Washington (FMI, BANCO
MUNDIAL), o consenso de Washington, as reformas neoliberais e a redução da
autonomia nacional, a adoção de medidas econômicas e o ajuste fiscal vão se
expressar no crescimento dos índices de pobreza e indigência. É sempre oportuno
lembrar que, nos anos 80 e 90 a somatória de extorsões que configurou um novo
perfil para a questão social brasileira, particularmente pela via da vulnerabilização do
trabalho, conviveu com a erosão do sistema público de proteção social, caracterizada
por uma perspectiva de retração dos investimentos públicos no campo social, seu
reordenamento e pela crescente subordinação das políticas sociais às políticas de
ajuste da economia, com suas restrições aos gastos públicos e sua perspectiva
privatizadora (cf. YAZBEK, 2004). É nesse contexto, e na “contra mão” das
transformações que ocorrem na ordem econômica internacional mundializada que o
Brasil vai instituir constitucionalmente em 1988, seu sistema de Seguridade Social.
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Questão para reflexão:
Quais as tendências mais relevantes do Serviço Social nos anos 80 do ponto de
vista da produção de conhecimentos e do exercício profissional?
3 O Serviço Social nos anos 90: as tendências históricas e teóricometodológicas
do debate profissional
Inicialmente, não podemos esquecer que, nos marcos da reestruturação dos
mecanismos de acumulação do capitalismo globalizado, os anos 80 e 90 foram anos
adversos para as políticas sociais e se constituíram em terreno particularmente fértil
para o avanço da regressão neoliberal que erodiu as bases dos sistemas de proteção
social e redirecionou as intervenções do Estado em relação à questão social. Nestes
anos, em que as políticas sociais vêm sendo objeto de um processo de reordenamento,
subordinado às políticas de estabilização da economia, em que a opção neoliberal na
área social passa pelo apelo à filantropia e à solidariedade da sociedade civil e por
programas seletivos e focalizados de combate à pobreza no âmbito do Estado (apesar
da Constituição de 1988), novas questões se colocam ao Serviço Social, quer do ponto
de vista de sua intervenção, quer do ponto de vista da construção de seu corpo de
conhecimentos.
Assim, a profissão enfrenta o desafio de decifrar algumas lógicas do capitalismo
contemporâneo particularmente em relação às mudanças no mundo do trabalho e
sobre os processos desestruturadores dos sistemas de proteção social e da política
social em geral. Lógicas que reiteram a desigualdade e constroem formas
despolitizadas de abordagem da questão social, fora do mundo público e dos fóruns
democráticos de representação e negociação dos interesses em jogo nas relações
Estado / Sociedade.
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Efetivamente, a opção neoliberal por programas seletivos e focalizados de
combate à pobreza e o avanço do ideário da "sociedade solidária" que implica no
deslocamento para sociedade das tarefas de enfrentar a pobreza e a exclusão social,
começa a parametrar diferentes modalidades de intervenção no campo social na
sociedade capitalista contemporânea Exemplos desta opção podem ser observados
em diversos países do Continente latino‐americano como no Chile e na Argentina.
Inserido neste processo contraditório o Serviço Social da década de 90, se vê
confrontado com este conjunto de transformações societárias no qual é desafiado a
compreender e intervir nas novas configurações e manifestações da "questão social",
que expressam a precarização do trabalho e a penalização dos trabalhadores na
sociedade capitalista contemporânea.
Trata‐se de um contexto em que são apontadas alternativas privatistas e
refilantropizadas para questões relacionadas à pobreza e à exclusão social. Cresce o
denominado terceiro setor, amplo conjunto de organizações e iniciativas privadas, não
lucrativas, sem clara definição, criadas e mantidas com o apoio do voluntariado e que
desenvolvem suas ações no campo social, no âmbito de um vastíssimo conjunto de
questões, em espaços de desestruturação (não de eliminação) das políticas sociais, e
de implementação de novas estratégias programáticas como, por exemplo, os
programas de Transferência de Renda, em suas diferentes modalidades.
Nessa conjuntura, emergem processos e dinâmicas que trazem para a profissão,
novas temáticas, novos, e os de sempre, sujeitos sociais e questões como: o
desemprego, o trabalho precário, os sem terra, o trabalho infantil, a moradia nas ruas
ou em condições de insalubridade, a violência doméstica, as discriminações por
questões de gênero e etnia, as drogas, a expansão da AIDS, as crianças e adolescentes
de rua, os doentes mentais, os indivíduos com deficiências, o envelhecimento sem
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recursos, e outras tantas questões e temáticas relacionadas à pobreza, à
subalternidade e à exclusão com suas múltiplas faces.
Ao longo da década a profissão se coloca diante destas e de outras questões.
Destacam‐se como alguns dos eixos articuladores do debate profissional e que tem
rebatimentos em sua ação e produção:
• a Seguridade Social, em construção no país, após a Carta Constitucional de
1988, que afirma o direito dos cidadãos brasileiros a um conjunto de direitos
no âmbito das políticas sociais (Saúde, Previdência e Assistência Social). A
noção de Seguridade supõe que os cidadãos tenham acesso a um conjunto de
certezas e seguranças que cubram, reduzam ou previnam situações de risco e
de vulnerabilidades sociais. Essa cobertura é social e não depende do custeio
individual direto. A inserção do Serviço Social brasileiro nos debates sobre essa
cobertura social marcou a década;
• a Assistência Social, qualificada como política pública, de Proteção Social,
constitutiva da Seguridade Social, constituiu‐se em tema de estudos, pesquisas
e campo de interlocução do Serviço Social com amplos movimentos da
sociedade civil que envolveram fóruns políticos, entidades assistenciais e
representativas dos usuários de serviços assistenciais;
• a questão da municipalização e da descentralização das políticas sociais
públicas e outros aspectos daí decorrentes, seja na ótica da racionalização de
recursos, humanos e sociais com vistas a seus efetivos resultados, tanto na
perspectiva de aproximar a gestão destas políticas dos cidadãos. Notável é
desde os anos 1990, em todo o território nacional a presença e o protagonismo
do assistente social em fóruns e conselhos vinculados às políticas de saúde, de
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assistência social, da criança e do adolescente, entre outras, participando
ativamente na defesa de direitos e no controle social das políticas públicas.
É importante observar que esta presença tem início em uma conjuntura
contraditória e adversa, na qual os impactos devastadores sobre o processo de
reprodução social da vida se fazem notar de múltiplas formas, mas, sobretudo pela
precarização do trabalho e pela desmontagem de direitos.
É fundamental assinalar que as transformações societárias que caracterizam
esta década, vão encontrar um Serviço Social consolidado e maduro na sociedade
brasileira, uma profissão com avanços e acúmulos, que, ao longo desta década
construiu, com ativa participação da categoria profissional, através de suas entidades
representativas um projeto ético político profissional para o Serviço Social brasileiro,
que integra valores, escolhas teóricas e interventivas, ideológicas, políticas, éticas,
normatizações acerca de direitos e deveres, recursos político‐organizativos, processos
de debate, investigações e, sobretudo interlocução crítica com o movimento da
sociedade na qual a profissão é parte e expressão (cf. NETTO, 1999).
A direção social que orienta este projeto de profissão tem como referência a
relação orgânica com o projeto das classes subalternas, reafirmado pelo Código de
Ética de 1993, pelas Diretrizes Curriculares de 1996 e pela Legislação que
regulamenta o exercício profissional (Lei n. 8662 de 07/06/93).
Cabe ainda assinalar outra questão que vem permeou o debate dos assistentes
sociais nesta conjuntura: trata‐se do movimento de precarização e de mudanças no
mercado de trabalho dos profissionais brasileiros, localizado no quadro mais amplo
de desregulamentação dos mercados de trabalho de modo geral, quadro em que se
alteram as profissões, redefinem‐se suas demandas, monopólios de competência e as
próprias relações de trabalho. Aqui situamos processos como a terceirização, os
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contratos parciais, temporários, a redução de postos de trabalho, a emergência de
novos espaços de trabalho como o Terceiro Setor, a exigência de novos conhecimentos
técnico‐operativos, ao lado do declínio da ética do trabalho e do restabelecimento
exacerbado dos valores da competitividade e do individualismo. Não podemos
esquecer que a reestruturação dos mercados de trabalho no capitalismo
contemporâneo vem se fazendo via rupturas, apartheid e degradação humana.
Do ponto de vista das referências teórico‐metodológicas a questão primeira que
se coloca para a profissão já no início da década é o confronto com a denominada
"crise" dos modelos analíticos, explicativos nas ciências sociais, que buscam captar o
que está acontecendo no fim de século e as grandes transformações que alcançam
múltiplos aspectos da vida social. No mundo do conhecimento começam as
interferências, não sem conflitos, do denominado pensamento pós moderno,
"notadamente em sua versão neoconservadora" (NETTO, 1996, p. 114) que questiona
e nivela os paradigmas marxista e positivista. Estes questionamentos se voltam contra
os diferentes "modelos" explicativos por suas macroabordagens apontando que nestas
macronarrativas são deixados de lado valores e sentimentos fundamentais dos
homens, seu imaginário, suas crenças, afeições, a beleza, os saberes do cotidiano, os
elementos étnicos, religiosos, culturais, os fragmentos da vida enfim. A abordagem
pós‐moderna dirige sua crítica à razão afirmando‐a como instrumento de repressão e
padronização, propõe a superação das utopias, denuncia a administração e o
disciplinamento da vida, recusa a abrangência das teorias sociais com suas análises
totalizadoras e ontológicas sustentadas pela razão e reitera a importância do
fragmento, do intuitivo, do efêmero e do microssocial (em si mesmos) restaurando o
pensamento conservador e antimoderno. Seus questionamentos são também dirigidos
à ciência que esteve mais a serviço da dominação do que da felicidade dos homens.
Assim ao afirmar a rejeição à ciência o pensamento pós‐moderno rejeita as categorias
da razão (da Modernidade) que transformaram os modos de pensar da sociedade, mas
não emanciparam o homem, não o fizeram mais feliz e não resolveram problemas de
19
sociedades que se complexificam e se desagregam. O posicionamento pós‐moderno
busca resgatar valores negados pela modernidade e cria um universo descentrado,
fragmentado relativo e fugaz. Para Harvey (1992) as características da pós‐
modernidade são produzidas historicamente e se relacionam com a emergência de
modos mais flexíveis de acumulação do capital.
Observe‐se que a complexidade da questão não está na abordagem de questões
micro sociais, locais ou que envolvam dimensões dos valores, afetos e da subjetividade
humana (questões de necessário enfrentamento), mas está na recusa da Razão e na
descontextualização, na ausência de referentes históricos, estruturais no não
reconhecimento de que os sujeitos históricos encarnam processos sociais, expressam
visões de mundo e tem suas identidades sociais construídas na tessitura das relações
sociais mais amplas. Relações que se explicam em teorias sociais abrangentes, que
configuram visões de mundo onde o particular ganha sentido referido ao genérico.
Cabe assinalar ainda que, todo este debate que é apresentado no âmbito das
ciências sociais contemporâneas como crise de paradigmas, em termos da capacidade
explicativa das teorias recoloca a polêmica Razão/Intuição que tem repercussões
significativas na pesquisa, na construção de explicações sobre a realidade e na
definição de caminhos para a ação.
Especificamente no Serviço Social estas questões também se colocam, apesar da
vitalidade do marxismo como paradigma de análise e compreensão da realidade e
apesar da manutenção da hegemonia do projeto profissional caracterizado pela
ruptura com o conservadorismo que caracterizou a trajetória do Serviço Social no
país. Colocam‐se nos desdobramentos e nas polêmicas em torno dos paradigmas
clássicos e na busca de construção de novos paradigmas; se colocam pela apropriação
do pensamento de autores contemporâneos de diversas tendências teórico‐
metodológicas como Anthony Giddens, Hannah Arendt, Pierre Bourdieu, Michel
20
Foucault, Juergen Habermas, Edgard Morin, Boaventura Souza Santos, Eric
Hobsbawm, E.P. Thompson e tantos outros. Se colocam também nas formas de
abordagem das temáticas relevantes para a profissão nesta transição de milênio, na
busca de interligação entre sujeito e estrutura e entre concepções macro e micro da
vida social, na retomada e valorização das questões concernentes à cultura das classes
subalternas e em outras clivagens e questões relativas aos dominados tanto no plano
das relações culturais como nas lutas pelo empowerment e contra a discriminação pelo
gênero, pela etnia, pela idade. (FALLEIROS, 1996, p. 12).
No âmbito da produção inspirada na tradição marxista, estas questões aparecem
com o recurso à pensadores que abordam temáticas da cultura das classes
subalternas, do sujeito e da experiência cotidiana da classe como Gramsci, Heller e
Thompson.
Efetivamente, os desdobramentos desta "crise" de referenciais analíticos,
permeiam polêmica profissional dos dias atuais e se expressam pelos confrontos com
o conservadorismo que atualiza‐se em tempos pós modernos.
Assim, coloca‐se como desafio à profissão ao longo de toda a década de 90, e
neste início de milênio a consolidação do projeto ético político, teórico metodológico e
operativo que vem construindo particularmente sob a influência da tradição marxista,
"mas incorporando valores auridos noutras fontes e vertentes e, pois sem vincos
estreitos ou sectários, aquelas matrizes estão diretamente conectadas ao ideal de
socialidade posto pelo programa da modernidade ‐ neste sentido, tais matrizes não
são 'marxistas' nem dizem respeito apenas aos marxistas, mas remetem a um largo rol
de conquistas civilizatórias e, do ponto de vista profissional, concretizam um avanço
que é pertinente a todos os profissionais que, na luta contra o conservadorismo, não
abrem mão daquilo que o velho Lukács chamava de 'herança cultural'." (NETTO, 1996,
p. 117).
21
Questão para reflexão:
Quais as principais tendências do Serviço Social, nos anos 90, do ponto de vista
da produção de conhecimentos e do exercício profissional?
4 Concluindo: as polêmicas dos dias atuais
No início do milênio o Serviço Social brasileiro enfrenta a difícil herança do final
do século anterior, com seus processos de globalização em andamento, com sua
valorização do capital financeiro, suas grandes corporações transnacionais, seus
mercados, suas mídias, suas estruturas mundiais de poder e as graves consequências
desta conjuntura para o tecido social em geral, configurando um novo perfil para a
questão social; no qual destacamos a precarização, a insegurança e a vulnerabilidade
do trabalho e das condições de vida dos trabalhadores que perdem suas proteções e
enfrentam problemas como o desemprego, o crescimento do trabalho informal (hoje
mais da metade da força de trabalho do país) e das formas de trabalho precarizado e
sem proteção social.
Trata‐se de um contexto que interpela a profissão sob vários aspectos: das
novas manifestações e expressões da questão social, aos processos de redefinição dos
sistemas de proteção social e da política social em geral, que emergem nesse
contexto 1 .
Nesses anos, assim como na última década do século XX, tornaram‐se evidentes
as inspirações neoliberais da política social brasileira, face às necessidades sociais da
1 Para alguns autores: trata‐se de um contexto de mudanças irreversíveis, que atingem, em todo o
mundo, o Estado de Bem Estar Social que supunha o pleno emprego e certamente enfrentamos o fim do
consenso keynesiano, alterações demográficas e mundialização crescente da economia e outras graves
questões quanto ao financiamento do WS. Temos aí a expansão dos Programas de Transferência de
Renda e o Welfare Mix ou o Welfare Pluralism (Pluralismo de bem estar) que incorpora crescentemente
a presença dos setores não governamentais e não mercantis da sociedade.
22
população. Uma retomada analítica dessas políticas sociais revela sua direção
compensatória e seletiva, centrada em situações limites em termos de sobrevivência e
seu direcionamento aos mais pobres dos pobres, incapazes de competir no mercado.
Estas políticas focalizadas permaneceram e se expandiram no governo Lula, como é o
caso dos programas de Transferência de Renda.
Efetivamente, no país, apesar dos consideráveis avanços na Proteção Social,
garantidos na Constituição Federal de 1988 e expressos, por exemplo, no ECA, na
LOAS e no SUS, esses últimos anos não romperam com as características neoliberais
que se expandiram desde os anos 90, face às necessidades sociais da população.
No caso da Assistência Social merece destaque a Política Nacional de Assistência
Social – PNAS (2004) que propõe uma nova arquitetura institucional e política para
essa política com a criação de um Sistema Único de Assistência Social ‐ SUAS. O SUAS é
constituído pelo conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios no âmbito da
assistência social. É um modo de gestão compartilhada que divide responsabilidades
para instalar, regular, manter e expandir ações de assistência social.
Desde então, são os assistentes sociais que estão implementando o SUAS,
enfrentando inúmeros desafios entre os quais destacamos a reafirmação da
Assistência Social como política de Seguridade Social, a consolidação e a
democratização dos Conselhos e dos mecanismos de participação e controle social; a
organização e apoio à representação dos usuários; a participação nos debates sobre o
SUAS, a NOB, os CRAS e os CREAS; a elaboração de diagnósticos de vulnerabilidade
dos municípios; o monitoramento e a avaliação da política; o estabelecimento de
indicadores e padrões de qualidade e de custeio dos serviços; contribuindo para a
construção de uma cultura democrática, do direito e da cidadania.
23
Outro desafio colocado aos assistentes sociais brasileiros neste início dos anos
2000, refere‐se aos Programas de Transferência de Renda, sem dúvida uma das faces
mais importantes da Política Social brasileira, conforme dados oficiais (PNAD 2006)
chegam a quem precisam chegar (11milhões de famílias) Destas, 91% tem como
renda mensal per capita até 1 salário mínimo e 75% delas tem menos de meio salário
mensal de renda per capita. Essa PNAD também revela uma questão essencial: os PTR
não retiram os beneficiários do trabalho (79.1% dos beneficiários trabalham). Ou seja
o Bolsa Família não pretende substituir a renda do trabalho e apesar das polêmicas
que cercam o Programa, seu impacto sobre as condições de vida das famílias mais
pobres, sobretudo no Nordeste é incontestável. Ele significa basicamente mais comida
na mesa dos miseráveis.
É bom lembrar que se escapa às políticas sociais, às suas capacidades, desenhos
e objetivos reverter níveis tão elevados de desigualdade, como os encontrados no
Brasil, essas políticas também respondem a necessidades e direitos concretos de seus
usuários.
E os assistentes sociais vêm, em muito, contribuindo, nas últimas décadas, para
a construção de uma cultura do direito e da cidadania, resistindo ao conservadorismo
e considerando as políticas sociais como possibilidades concretas de construção de
direitos e iniciativas de “contra‐desmanche” nessa ordem social injusta e desigual.
No âmbito da pesquisa e da produção de conhecimentos o Serviço Social
brasileiro chega a 2007 com uma maturidade expressa em seus 25 Programas de Pós‐
Graduação direcionados à formação de recursos humanos com capacidade para atuar
criticamente na realidade social.
Do ponto de vista dos referentes teórico metodológicos, permanecem as tensões
e ambigüidades que caracterizaram o Serviço social brasileiro na década de 1990:
24
apesar da ruptura com o histórico conservadorismo e da legitimidade alcançada pelo
pensamento marxista ampliam‐se as interferências de outras correntes teórico
metodológicas, particularmente no âmbito da influência do pensamento pós‐moderno
e neoconservador e das teorias herdeiras da “perspectiva modernizadora” (Cf. NETTO,
1996), caracterizadas por seu caráter sistêmico e tecnocrático.
Há pouco mais de uma década, Netto já apontava como hipóteses para o
encaminhamento dessa tensão uma dupla perspectiva: de um lado a consolidação e o
aprofundamento da hegemonia da atual direção social e de outro a possibilidade de
sua reversão ou mudança. Afirmava o autor "[...] num ordenamento social com regras
democráticas, uma profissão é sempre um campo de lutas, em que os diferentes
segmentos da categoria, expressando a diferenciação ideopolítica existente na
sociedade, procuram elaborar uma direção social estratégica para a sua profissão"
(NETTO, 1996, p. 116).
Para finalizar é necessário assinalar que a reafirmação das bases teóricas do
projeto ético político, teórico metodológico e operativo, centrada na tradição marxista,
não pode implicar na ausência de diálogo com outras matrizes de pensamento social,
nem significa que as respostas profissionais aos desafios desse novo cenário de
transformações possam ou devam ser homogêneas. Embora possam e devam ser
criativas e competentes.
Questão para avaliação final:
Desenvolva uma reflexão sobre o Serviço Social nos últimos 20 anos: principais
tendências históricas e teórico metodológicas.
25
Referências
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fenomenológico. In: Pesquisa em Serviço Social. ANPESS/CBCISS. Rio de Janeiro, 1990.
COUTINHO, Carlos Nelson. Pluralismo: dimensões teóricas e políticas. In: Cadernos
ABESS n. 4. Ensino em Serviço Social: pluralismo e formação profissional. São Paulo,
Cortez, maio 1991.
FALEIROS, Vicente de Paula. Serviço Social: questões presentes para o futuro. In:
Serviço Social e Sociedade. N. 50. São Paulo, Cortez, abril,1996.
HARVEEY, David. Condição Pós moderna. São Paulo, Loyola,1992.
IAMAMOTO, Marilda V.; CARVALHO, Raul de. Relações Sociais e Serviço Social no
Brasil. Esboço de uma interpretação histórico‐metodológica. São Paulo, Cortez Ed.,
CELATS (Lima‐Perú), 1982.
IAMAMOTO, Marilda V. Renovação e Conservadorismo no Serviço Social. Ensaios
críticos. São Paulo, Cortez Ed., 1992.
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avanços e tendências (1975 ‐1997). In: Cadernos ABESS n. 8. Diretrizes Curriculares e
pesquisa em Serviço Social. São Paulo, Cortez, nov.1998.
NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1994.
_____. Transformações Societárias e Serviço Social ‐ notas para uma análise
prospectiva da profissão no Brasil. In: Serviço Social e Sociedade n. 50. São Paulo,
Cortez, abril, 1996.
SILVA e SILVA, M. Ozanira (coord.). O Serviço Social e o popular: resgate teórico
metodológico do projeto profissional de ruptura. São paulo, Cortez, 1995.
YAZBEK, Maria Carmelita (Org). Projeto de revisão curricular da Faculdade de serviço
Social da PUC/SP. In: Serviço Social e Sociedade n. 14. São Paulo, Cortez, 1984.
26
Glossário
Tomismo ‐ referência ao pensamento filosófico de São Tomás de Aquino (1225) um
teólogo dominicano que escreveu obra filosófica caracterizada por uma perspectiva
humanista e metafísica do ser que vai marcar o pensamento da Igreja Católica a partir
do século XIII. Merece destaque na obra de S. Tomás a Suma Teológica.
Neotomismo ‐ retomada do pensamento de São Tomás a partir do papa Leão XII em
1879 na Doutrina Social da Igreja e de pensadores franco belgas como Jacques
Maritain na França e do Cardeal Mercier na Bélgica .Buscavam nesta filosofia
diretrizes para a abordagem da questão social.
Método de B.H. ‐ Designação dada ao método elaborado pela equipe da escola de
Serviço Social de Belo Horizonte no período de 72 a 75 e que propunha a constituição
de uma metodologia alternativa às perspectivas das abordagens funcionalistas da
realidade. Buscava articular teoria e ação em sete momentos.
27
Antônio José Lopes Alves
Verinotio – revista on-line Espaço de interlocução em ciências humanas
de filosofia e ciências humanas n. 20, Ano X, out./2015 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Resumo:
O texto aborda os paradigmas mais relevantes da sociologia das profissões, bem como o pensamento dos maiores
nomes do serviço social brasileiro, apontando as principais diferenças entre tais registros. São assinalados os
elementos inovadores das ideias de José Paulo Netto, Marilda Iamamoto e Vicente Faleiros na discussão do trabalho
do assistente social, defendendo-se a ideia de que de tais autores podem-se extrair algumas bases para o tratamento
universal do fenômeno das profissões.
Palavras-chave:
Teoria das profissões; legitimidade; serviço social.
Abstract:
The text addresses the most important standards of Sociology of Professions, and also deals with the way of
thinking of the biggest names of Brazilian Social Service, showing out the main differences between their thoughts.
The text points out all the innovative ideas of José Paulo Netto, Marilda Iamamoto and Vicente Faleiros about
the discussion of the social worker role, claiming that by their works, we can find some bases for the universal
treatment of the phenomenon of professions.
Key words:
Theory of professions; legitimacy; social work.
* Assistente social da Prefeitura Municipal de Nova Lima – MG, mestre em serviço social pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF).
Introdução
Há um aspecto, no mínimo, curioso no desenvolvimento do debate brasileiro sobre os fundamentos do
serviço social. Desde o início dos anos 1980 este campo começou a produzir seus frutos mais representativos
e maduros, diversificando suas polêmicas e ponderações, processo que se consolidou a partir dos trabalhos de
Vicente Faleiros, Marilda Iamamoto e José Paulo Netto. Tal movimento, todavia, processou-se com pouca menção
e referência a outra área, mais ampla e antiga dentro das ciências sociais, qual seja, a análise acerca da natureza e
evolução das profissões especializadas enquanto fenômenos da divisão do trabalho moderna.
Essa questão reúne elementos que devemos notar e salientar: a complexificação dos estudos sobre
os fundamentos da profissão de assistente social no Brasil alcançou seu estágio mais elevado sem a utilização
sistemática de análises que, historicamente, sempre haviam sido mais robustas e profundas do que suas produções,
envolvendo, muitas vezes, grandes nomes da teoria social moderna (como Durkheim, Parsons, Merton, Freidson,
Dubar e outros). Os trabalhos destes, por tratarem do profissionalismo em sua “universalidade”, poderiam ter
auxiliado, decisivamente, na elucidação desta ocupação particular que é o serviço social.
Tal alheamento do serviço social brasileiro contemporâneo (representado pelos seus nomes mais
significativos) não consiste numa mera suposição: é, antes de tudo, um fato de difícil contestação. Iamamoto e
Carvalho já o manifestam em seu texto mais conhecido (Relações sociais e serviço social no Brasil), ao asseverar que sua
linha de análise “não encontra suporte na bibliografia especializada [tradicional] do serviço social e da sociologia das
profissões” (1983, p. 18 - destaques nossos); Netto, por sua vez, não cita (salvo engano) a teoria das profissões em
sua obra. Já uma teórica como Ana Elizabete Mota (2014, p. 26), por exemplo, menciona os estudos sociológicos
sobre as profissões (numa pequena nota), tratando-os, não por acaso, como “outro referencial”. O único nome de
peso que realmente absorve alguns contributos desse campo é Faleiros (2007), principalmente em Saber profissional
e poder institucional; entretanto, o faz por meio de menções sempre curtas, pouco aprofundadas e executadas, na
maior parte das vezes, na forma de notas, não caracterizando, portanto, uma incorporação muito relevante em seu
pensamento (MARTINS, 2014).
A questão, em verdade, é que a relação do serviço social brasileiro – sob a hegemonia da corrente profissional
denominada por José Paulo Netto (2011a) de Intenção de Ruptura – com aquilo que se convencionou chamar de
sociologia das profissões não pode ser qualificada como um simples afastamento. O que clarifica esta condição é
a existência de uma distinção teórico-metodológica que atinge o próprio âmago da determinação do fenômeno
profissional, posta no serviço social de modo diverso das ciências sociais.
Essa separação, mais ou menos rígida, entre os campos guarda raiz na orientação ideoteórica que tem
prevalecido no serviço social desde os anos 1980: o marxismo. O padrão de cientificidade de Marx, com seu
foco nas coisas da efetividade, inclinação ontológica e debate sobre o nascimento, evolução e morte da sociedade
burguesa, produz entre os assistentes sociais outro modo de tematizar as profissões, o qual, vale ressaltar, mantém
diferenças fundamentais com o legado tradicional dos estudos sociológicos.
É importante assinalar brevemente quais são essas distinções. Nas ciências sociais, não obstante as suas várias
nuanças (neoweberianismo, funcionalismo, interacionismo etc.), os grupos profissionais são vistos como estruturas
de poder organizadas que se apossam de um lugar no mercado de trabalho, permitindo que seus agentes gozem
de direitos e privilégios especiais frente a outros trabalhadores e ocupações. Ao menos duas assertivas surgem
a partir dessas ideias. Primeira: a especificidade interventiva; melhor dizendo, o modo de trabalho profissional
é visto como a marca principal que caracteriza uma profissão, formando a sua área de atuação. Naturalmente,
considera-se o campo de trabalho não apenas um espaço de ação, mas uma zona delimitada para produção de um
saber único (e científico) das profissões, pressuposto indispensável para consolidar uma especialização do trabalho
de tipo profissional (DUBAR, 2005; HUGHES, 1958). Segunda: a aceitação coletiva das profissões se reportaria,
fatidicamente, ao problema da legitimidade, ou seja, uma ocupação se tornaria profissão não tanto pela eficácia dos
seus integrantes no cumprimento do seu mandato social, mas, fundamentalmente, pelo seu prestígio – conferido
pelo valor simbólico do seu objeto de conhecimento e intervenção.
Em vista disso, parece-nos que as elaborações de Netto, Iamamoto e Faleiros apontam para outra direção:
neles, a exposição do estatuto de uma ocupação especializada focaliza os vetores e processos exógenos que fundam
as procuras a que tais estruturas atendem. Em vez da sanção administrativa-legal de formas de trabalho que se
afirmam coletivamente, ganham maior foco as grandes forças sociais que, pela sua dinâmica e estruturação, criam
as condições que abrem caminho para o nascimento e consolidação dos efetivos profissionais.
Muito se fala sobre a guinada provocada por essa forma de análise frente às concepções clássicas que
abordam o serviço social; todavia, ainda não se atentou para as diferenças desse pensamento em relação às ciências
sociais. Assim, tal questão permanece inavaliada e suas raízes continuam sem problematização, ocultando um ponto
importante para o debate e para o aprofundamento teórico. Por outros termos: a análise de inspiração marxista
no serviço social já foi avaliada a partir de sua vinculação a uma teoria social (ao contrário de uma ciência social),
que ultrapassa no terreno do saber a própria categoria profissional e o seu conservadorismo (NETTO, 2007). Tal
65
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social
operação abre caminho para consolidar essa ruptura como um fato ligado às ciências sociais dentro mesmo da
investigação do fenômeno das profissões, explicitando as diferenças que a teorização dos assistentes sociais com
elas estabelece a partir do seu vínculo com o padrão de cientificidade inaugurado por Marx.
Contribuir para aprofundar essa determinação é a tarefa que o presente texto se propõe. Para tratar desta
temática desenvolveremos, embora não exaustivamente, algumas reflexões sobre a moderna teoria das profissões.
Em seguida abordaremos o pensamento dos três maiores representantes do debate brasileiro sobre o estatuto do
serviço social. Ao final, enfatizaremos a especificidade das análises de tais nomes, bem como as possibilidades que
seu pensamento oferece para a investigação das profissões.
ao progresso, que alcançou sua forma máxima pelas mãos do capitalismo. A partir da insuperabilidade das estruturas
sociais desiguais, restaria encontrar soluções de convivência que desatassem os problemas morais que permeiam
a coletividade. Essas ideias foram a fonte inicial de inspiração para os fundadores da sociologia das profissões,
destacando-se dentre eles funcionalistas como Carr-Saunders e Wilson, além de Parsons (ALMEIDA, 2014).
O alvo desses estudiosos era assinalar aquilo que convertia uma atividade laboral simples em profissão,
explicitando, a partir disso, os papéis deste tipo de instituição tanto com relação à personalidade dos sujeitos
quanto com relação à sociedade em geral. Na ótica funcionalista uma ocupação ganha condição de profissão
quando alcança uma regulação estatal que instaura formalmente os termos da sua posição social, o que só pode ser
feito pela sua consolidação prévia como área técnica e de saber, calcada numa especialização de serviços.
Parsons (1982), nessa linha, supunha que o fundamental na avaliação de tais grupos era a forma de eles
erguerem a sua validação coletiva. É por isso que conferiu às universidades e centros de formação um papel crucial
na sua institucionalização, visto que o saber seria a justificativa que garantiria a arregimentação legal das estruturas
profissionais. A formação universitária seria tanto um processo de inculcação de valores e conhecimentos como
um ritual de legitimação (cujo ápice é a formatura e a entrega do diploma), por meio do qual se chancelaria a
entrada de agentes exteriores dentro do grupo profissional.
Para ele as profissões apresentariam uma condição ocupacional elevada e valorizada – controlariam o seu
modo de serviço e sua formação, alcançariam rendimentos característicos dos estratos sociais médios, mas só o
fariam quando protegidas pelo estado, que as utilizaria para controlar estrategicamente os nichos destacados da
divisão do trabalho.
Conforme os estudos no campo da sociologia das profissões evoluíram e se diversificaram, a associação entre
o estatuto ocupacional e a questão da legitimidade se aprofundou, indo por caminhos múltiplos e contraditórios.
Foi assim até no interacionismo simbólico – principalmente o de Hughes (1958) –, em que as profissões são
estruturas de interação que visam à autodefesa e promoção dos atores nelas imersos. Para tal corrente o percurso
de uma profissão é único e não pode servir de referência para observar as demais, inexistindo, inclusive, fronteiras
rígidas entre profissão e ocupação.
Hughes (1958; 1963) indicou incisivamente a dependência das ocupações especializadas quanto à esfera
do legítimo, colocando em pauta o conceito de licença, por meio do qual a profissionalização era vista como uma
dinâmica em que uma ocupação – independente da sua origem ou tarefa – adquire a habilitação normativa para o
exercício de uma função social determinada. Para ele a autorização legal era a prova da validade da prática laboral
e limitava o seu exercício apenas àqueles capazes de obter o certificado funcional pelas vias adequadas, ou seja, a
profissionalização denotaria não apenas a conquista de status, mas a capacidade de mantê-lo.
O corpo universitário, conforme Hughes (1963), não apenas promoveria a aprendizagem profissional ou a
ligaria ao prestígio da ciência, mas seria em si mesmo uma instância de justificação jurídica com poder delegado
pelo estado. As universidades operariam a seleção prévia dos integrantes das ocupações profissionais e certificariam
os que conseguem atender a todas as suas exigências e processos.
Sobrepondo-se à autorização acadêmica, sempre de acordo com o autor, existe (na maior parte dos casos)
o credenciamento corporativo, a forma máxima de legitimação do agente profissional, que materializaria a força
das organizações ocupacionais, que efetivariam a proteção, promoção e celebração das profissões. Ligado à licença
haveria ainda o “mandato” – o substrato de relações sociais que exprimiria a função ou conjunto de funções,
simbólica e legalmente reconhecidas, como uma tarefa única do corpo profissional. Trazia-se à tona, por meio
dessa ideia, o problema da especificidade como modo principal de afirmação coletiva das profissões. O mandato,
segundo Hughes (1963), seria uma imagem social, o fundamento do prestígio de uma especialização como prática
distinta e distintiva. Ele exprimiria, portanto, a sua capacidade de controlar certas atividades (ou interações) que se
dirigissem ao enfrentamento de um problema social posto (MENEGHETT, 2009).
Atualmente tais ideias têm sido associadas aos estudos das normatividades engendradas pelo sistema social,
elaborando o reconhecimento profissional como uma conquista político-discursiva, uma forma de ascensão e
proteção dos grupos mais organizados no mercado de trabalho, constituindo o processo profissional (DUBAR,
2005).
Foi, contudo, pela hegemonia das pesquisas neoweberianas, desenvolvidas a partir da década de 1970, com as
análises de Freidson (1996; 1998), que a teoria das profissões alcançou seu ponto mais elevado. Por esta perspectiva
a profissionalização se refere a uma disputa de poder, um processo de monopolização de áreas determinadas
da divisão do trabalho por grupos sociais específicos. As profissões, segundo Freidson (1996), expressam o
princípio ocupacional da organização do trabalho, são uma reação à difusão das relações associativas racionais
(postas pelas burocracias) como base administrativa das sociedades capitalistas, cuja origem se encontraria na
corporação medieval. Para ele, todavia, as profissões não se tratam de uma negação da burocracia (que por si mesma
homogeneíza as ocupações e cerceia o controle do funcionário sobre suas atividades), mas do estabelecimento da
mobilização profissional sob os seus fundamentos societários. Por meio das profissões a organização ocupacional
agora se imbrica organicamente com o estado e passa, ela mesma, a funcionar como uma relação associativa
67
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social
racional, que visa ao domínio de certos nichos do mercado laboral, utilizando a racionalização burocrática contra
seus efeitos perversos.
Segundo o autor, tornar-se profissional é o mesmo que ocupar um lugar diferenciado dentro das estruturas
laborais, gerenciando a consecução do próprio trabalho. Significa ir além do princípio administrativo weberiano por
meio de uma variante deste mesmo princípio: o da administração ocupacional, isto é, a conformação profissional
do trabalho dentro da burocracia. Por meio dessas ideias Freidson elabora seu conceito de profissão.
Meu tipo ideal [de profissão, diz ele] consiste dos seguintes componentes:
● Uma ocupação que empregue um corpo especializado de conhecimentos e qualificações, e que seja desempe-
nhada para a subsistência em um mercado de trabalho formal, gozando de status oficial e público relativamente
alto e considerada não só de caráter criterioso, como fundamentada em conceitos e teorias abstratos.
● Jurisdição sobre um corpo especializado de conhecimentos e qualificações em uma divisão do trabalho espe-
cífica, organizada e controlada pelas ocupações participantes.
● Controle ocupacional da prática desse corpo de conhecimentos e qualificações no mercado de trabalho (seja
uma universidade ou uma empresa), por meio de uma reserva que exija que apenas os membros adequadamen-
te credenciados possam executar as tarefas sobre as quais têm jurisdição e também supervisionar e avaliar seu
desempenho. Estes últimos servem como a classe administrativa da profissão.
● A credencial utilizada para amparar sua reserva de mercado de trabalho é criada por um programa de trei-
namento que se desenrola fora do mercado de trabalho, em escolas associadas a universidades. O currículo de
ensino é estabelecido, controlado e transmitido por membros da profissão que agem como corpo docente em
tempo integral, atuando pouco ou nada no mercado de trabalho cotidiano. O corpo docente serve como classe
cognitiva da profissão. (1996, p. 152 – destaques do autor)
A questão, exposto isso, é que, quando nos colocamos diante do conjunto do debate sobre o fenômeno
profissional, o legítimo surge como núcleo fundamental de investigação do seu estatuto, permeando as abordagens
mais díspares. Mesmo quando o seu peso é relativizado e trabalhado por um pensamento mais complexo e rico –
como no caso das correntes interacionistas e dos estudos de Freidson (1998) –, ele se conforma como o elemento
delineador da profissionalização, ela mesma uma situação legal, que incide sobre certos trabalhadores, cristalizando
formas sociais e culturais singulares. Como afirmamos, as profissões, tal como comumente vistas, teriam na
legitimação o seu traço distintivo. Legitimidade seria o fator que faz que uma profissão seja o que é, dado que a
essência da condição profissional designa um problema de status, que se projeta a partir das interações sociais e das
identidades individuais para o campo jurídico.
Ora, é evidente a força dos argumentos das principais correntes do profissionalismo, entretanto, não se
podem esconder seus limites, sobre os quais se ergue uma teorização muitas vezes restrita ou mistificada. Tal
problema existe porque não se concebem as profissões claramente a partir das necessidades sociais que as originam
e mantêm, não se enfatizando, por isso, que elas são complexos particulares, cuja existência, na atualidade, só pode
ser desvendada pela análise da sociabilidade que as informa, ou seja, a sociabilidade capitalista. Tal constatação
deriva do fato de ser esta a conjuntura societária em que mais se desenvolvem as práticas laborativas; em que surge
todo um contingente de atividades ocupacionais de caráter intelectual e burocrático que impactam a conformação
das classes sociais; em que a especialização e o trabalhador especializado mais são demandados. Isto é, a existência
formalmente reconhecida de estruturas que densificam e recortam a esfera da produção e prestação de serviços é
fruto das práticas sociais que se debruçam sobre os dilemas da divisão do trabalho burguesa, respondendo a eles e
conformando-os ativamente. Se existe diferenciação de status ou uma regulação jurídica profissional é porque esta
foi conquistada econômica e politicamente na totalidade da intervenção ocupacional (o que inclui a articulação
dos agentes das profissões na esfera pública). Em outros termos: o processo de profissionalização obedece a
condicionantes históricas, inteligíveis apenas à luz da compreensão da sociedade que as erige.
Não priorizar e enunciar esse vetor faz surgir uma análise presa a categorizações e aos efeitos do fenômeno,
que não atenta para muitas de suas causas e determinações principais. Daí que as investigações contemporâneas sobre
o estatuto do serviço social caminhem num horizonte tão diferente daquele da teoria das profissões. A prioridade
conferida à determinação social das ocupações gera uma análise que não se prende apenas aos componentes
internos que as fundamenta, mas, antes, e sobretudo, às necessidades sociais coletivamente engendradas. Vejamos
agora como este debate se encaminha, a partir de seus protagonistas mais decisivos.
por meio das dinâmicas sociais do capitalismo no final do século XIX, explicadas sob o enfoque privilegiado (mas
não exclusivo) dos intervenientes econômico-políticos que matrizam a vida coletiva.
O debate brasileiro tem se desenvolvido nessa perspectiva desde os anos 1980, absorvendo e reelaborando
os acúmulos do Movimento de Reconceituação, de que herda o espírito crítico. O que se consolida a partir deste
movimento é uma literatura profissional que vai da análise dos fundamentos da profissão (incluindo as reflexões
sobre a sua deontologia, o seu mercado de trabalho, o perfil dos seus agentes), passando pelos estudos sobre os
novos movimentos sociais, os problemas relativos às classes e a temática do trabalho, até as investigações sobre o
estado, a gestão pública e as políticas sociais, dentre outros assuntos.
Esse caminho analítico, pela sua íntima conexão com as ponderações de Marx sobre a vida moderna, tem
se mostrado efetivo para clarificar as bases do trabalho profissional, dimensionando os elementos materiais e
ideopolíticos que as conformam. É desta perspectiva que a orientação conservadora do serviço social mais tem
sido criticada, bem como é nela que se têm procurado desenvolver com mais força alternativas prático-políticas de
intervenção, a partir da construção de um projeto profissional vinculado aos interesses e demandas da população
usuária dos serviços profissionais.
Dito isso, abordaremos agora os contributos dos maiores representantes dessa linha. A exposição se
desenvolve numa ordem que procura esclarecer da melhor forma o estudo das bases do serviço social, aprofundando
a questão a partir de uma visão marxista. Por isso ela começa com a abordagem de Vicente Faleiros (2007; 2013),
prosseguindo com Iamamoto (2009a; 2008) e Netto (2007; 2011a), em quem acreditamos que o problema alcança
sua melhor resolução até o momento.
69
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social
foucaultiano de poder surge para complementar a noção gramsciana de hegemonia e a ideia de capital social de
Bourdieu aparece como uma expressão prática do fortalecimento incutido pelo trabalho social, não ficando muito
claro se a compatibilização destes registros é possível ou se foi feita de maneira precisa.
Em todo caso, é nessas bases que Faleiros (2007; 2013) fia seu pensamento. Por meio delas ele afirma
que o objeto profissional surge no cotidiano das disputas societárias e deve ser visto como as correlações de
força e hegemonia que conformam e significam a prática dos assistentes sociais nos seus diferentes momentos e
conjunturas. Há aqui uma diferença marcante com relação a estudiosos do serviço social como Iamamoto (2008;
2009) e Netto (2007; 2011). Para Faleiros (2007; 2011), o objeto de intervenção dos assistentes sociais não é a
questão social, mas uma relação de poder, que gera uma área no espaço social que implica instituições, profissionais
e usuários. Dada a especificidade desse campo, existiria a possibilidade efetiva da sua constituição como um saber
singular, capaz, portanto, de originar uma disciplina com cientificidade própria. Segundo o autor, em muitos casos,
a expressão questão social é tomada de forma muito genérica, embora seja usada para definir uma particularida-
de profissional. Se for entendida como sendo as contradições do processo de acumulação capitalista, seria, por
sua vez, contraditório colocá-la como objeto particular de uma profissão determinada, já que se refere a rela-
ções impossíveis de serem tratadas profissionalmente, através de estratégias institucionais/relacionais próprias
do próprio desenvolvimento das práticas do serviço social. Se forem as manifestações dessas contradições o
objeto profissional, é preciso também qualificá-las para não colocar em pauta toda a heterogeneidade de situa-
ções que, segundo Netto, caracteriza, justamente, o serviço social (FALEIROS, 2011, p. 37).
Ocorre que
[O termo] questão social possui vários significados, e não pode ser tomado, sem uma definição rigorosa como
objeto profissional, principalmente pelo serviço social brasileiro e latino-americano. Do ponto de vista episte-
mológico, a questão social precisa vir à luz de diferentes paradigmas, na discussão de seus dimensionamentos
que entendemos estar vinculados às relações sociais.
Na atual conjuntura os enfrentamentos de interesses, grupos, projetos, estão sendo vistos num processo com-
plexo de relações de classe gênero, geração, raça, etnia, culturas, regiões, parentescos, trazendo à discussão as
mediações da subjetividade e que não se resumem tout court na noção de questão social. (FALEIROS, 2011, p.
40)
Faleiros (2011), com base nisso, defende a ideia de que o objeto do serviço social é histórico e mutável.
Analisando a emergência do serviço social brasileiro nos anos 1930, ele identifica a articulação de um paradigma
profissional conservador, que circunscrevia o objeto profissional no terreno da moral, da ordem e da higiene.
Na visão tradicional o trabalho do assistente social consistia, fundamentalmente, em um apoio psicoemocional e
financeiro para que os usuários realizassem “pequenos avanços” num contexto existencial tido como “deficiente”
(FALEIROS, 2007).
Faleiros (2011) assinala que há uma reconstrução do objeto do serviço social no pós-guerra. Nesse cenário,
marcado pela consolidação do capitalismo monopolista (no plano mundial), pelo autoritarismo político e pelo
processo de industrialização no país, a atividade profissional se desloca para a promoção tecnicista da harmonia
social na relação estado/sociedade. Trata-se do período em que os assistentes sociais incorporaram a influência
do ideário desenvolvimentista (principalmente por meio da difusão do chamado serviço social de comunidade), sendo
requisitados pelas empresas e pelo estado para auxiliar na implementação dos projetos e planos de crescimento e
desenvolvimento a partir de ações de minimização e controle dos problemas sociais motivados por essas iniciativas.
Em outro estágio mais recente (que se estende do final dos anos 1970 até hoje) Faleiros (2011) indica a existência
de um novo processo de construção/desconstrução do objeto do serviço social. Este novo contexto é signatário
das mudanças culturais dos anos 1960, do legado do Movimento de Reconceituação, da liberalização política do país
e das transformações na sua estrutura econômica (incluindo a ascensão do neoliberalismo), entre outros fatores.
Nele, o objeto profissional flutua entre (no mínimo) duas tendências: a burocratização e a administração dos serviços
sociais regulados ou prestados pelo estado (com todo o seu minimalismo e mercantilização contemporâneos) e
as dinâmicas de reprocessamento da cidadania, calcadas nas lutas atuais das classes trabalhadoras e dos novos
movimentos sociais.
Assim, na contemporaneidade:
Há uma dinâmica complexa na mudança de relações sociais na família, entre jovens, na busca e perda do em-
prego, de organização e reorganização de entidades e organismos que implica uma profunda reflexão sobre
a inserção do serviço social nesse contexto para esclarecer a construção do nosso objeto nessa realidade. (...)
Nesse sentido é possível discutir alguns cenários, levando em conta a perspectiva histórica até agora considera-
da. O cenário burocrático-administrativo poderá ser reforçado pelo processo de privatização e terceirização, de
redução do estado, redução de pessoal, de corte nas políticas sociais, mas o processo de desinstitucionalização
poderá abrir perspectivas novas de articulação da inserção social dos excluídos, de trabalho com as vítimas, de
defesa dos direitos sociais. (FALEIROS, 2011, p. 21)
Neste quadro, os “pobres, as mulheres os doentes, os idosos, as crianças, os adolescentes que constituem os
usuários dos serviços sociais” (FALEIROS, 2013, p. 21) estão se consolidando como demandatários específicos e
crescentes das ações públicas e, ao mesmo tempo, consumidores ávidos e atomizados de bens no mercado. Essa
dualidade contemporânea pressiona o serviço social de maneira paradoxal; ela exige o estabelecimento de propostas
de trabalho inovadoras e resolutivas, mas fragiliza os espaços tradicionais da profissão, estimula o imediatismo e
intervenções pouco afeitas à promoção da autonomia dos sujeitos.
Faleiros captura exemplarmente esse dilema profissional, pois, para ele:
a defesa de direitos, como pilar central e o eixo da atuação do serviço social, está sendo questionada pela va-
lorização da focalização do trabalho social no indivíduo e não mais no direito. Esta é a mudança que está se
operando na prática profissional, não em função da adaptação do indivíduo à norma, e nem para garantia de
direitos, mas para que tenha algumas condições, e mais que nunca, motivação para competir, por si mesmo, no
mercado e gerar seus meios de vida (2013, p. 51).
Essas questões levam o autor a sugerir a adoção de um novo paradigma profissional – o da Correlação de
Forças –, visto não apenas como uma forma de explicar a profissão, mas, principalmente, como uma proposta de
intervenção. Para Faleiros, tal paradigma vê a intervenção profissional como um complexo permeado pela
confrontação de interesses, recursos, energias, conhecimentos, inscrita nos processos de hegemonia/contra-
-hegemonia, de dominação/resistência e conflito/consenso que os grupos sociais desenvolvem a partir de
seus projetos societários básicos, fundados nas relações de exploração e de poder. Nesse sentido, os efeitos da
prática profissional enquanto “suprir carências”, “controlar perturbações” ou “legitimar o poder” implicam
correlações de forças (mediações econômicas, políticas e ideológicas) que se articulam com outros efeitos,
como pressionar o poder, ter direito à sobrevivência ou questionar a instituição. Foi o que posteriormente
consideramos metodologia da articulação. O processo de intervenção é visto, aí, para além do relacionamento
e da solução imediata de problemas através de recursos, no contexto das relações sociais. Na particularidade
do serviço social, é fundamental destacar a intervenção nas condições de vida e de trabalho (re-produzir-se)
articuladas à formação da identidade individual e coletiva (re-presentar-se) na vinculação sujeito/estrutura (...).
O objeto do serviço social, como vimos, se constrói na relação sujeito/estrutura e na relação usuário instituição
em que emerge o processo de fortalecimento do usuário diante da fragilização de seus vínculos, capitais ou
patrimônios individuais e coletivos (1999, p. 44).
A base operacional do Paradigma da Correlação de Forças seria a ideia de “empowerment” (que assume,
inclusive, a noção de capital social de Bourdieu). Nesse marco o objetivo é mobilizar os patrimônios (ou capitais)
dos sujeitos atendidos (suas relações afetivas, redes de autoajuda e parentesco, os seus acessos aos bens e serviços
públicos etc.) para contribuir no enfrentamento de situações de fragilização e vulnerabilização social. Trata-se de
promover a capacidade dos usuários de materializar os seus projetos de vida, ampliar o seu acesso ao conhecimento
(inclusive, os saberes técnicos e institucionais) e aos recursos materiais necessários a sua reprodução social.
Mais uma vez aparece aqui uma particularidade central de Faleiros (2011; 2013). No caso, sua ênfase na
problematização da condução do exercício profissional, tema pouquíssimo abordado nas discussões contemporâneas
da categoria, inclusive por Netto e Iamamoto. De fato, até o momento, este autor é quem mais se preocupa
com a análise concreta da prática, formulando indicações objetivas e claras para a atuação dos assistentes sociais,
mesmo com todas as suas limitações. Por isso seu foco em conceitos como poder, “estratégias”, empowerment,
vulnerabilidade, redes e afins.
Como já indicamos, entretanto, isso não se faz sem problemas. Além das questões atinentes à clareza teórica
e metodológica, há o excesso de simplificação da linguagem que, como esclarece Iamamoto (2008), foge por demais
do cânone acadêmico, buscando alcançar um maior público dentro do universo de trabalhadores do serviço social,
mesmo que o resultado implique sacrificar parte da argumentação. Tudo isso nos faz concluir que não existe em
Faleiros (2009; 2011; 2013) uma completa ruptura com a teoria das profissões, no bojo da cientificidade das ciências
sociais. No entanto, o núcleo “duro” da ruptura, que se aprofunda em Iamamoto e Netto, já está consolidado,
de forma que no seu pensamento as diferenças teóricas com este paradigma hegemônico são suficientes para
demarcá-lo como autor que apresenta uma compreensão distinta. Isso fica expresso pela ênfase de Faleiros na
análise histórica, na sua recusa a abstrações sem respaldo no real, no seu foco nas contradições da profissão e do
sistema social, na sua perspectiva global, bem como pela constante investigação das determinações responsáveis
pelas demandas sociais a que a categoria profissional atende.
Temos, assim, um primeiro exemplo do distanciamento do serviço social em relação às assertivas afeitas à
teoria das profissões como campo de estudos e debates sobre o fenômeno ocupacional. Resumindo, em Faleiros
(2009; 2007; 2011; 2013), o serviço social como profissão se processa a partir de uma relação de poder que se
71
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social
constitui por meio dos embates dentro das políticas públicas e suas instituições sociais: “O serviço social se
‘fundamenta’ na negação dos antagonismos do modo de produção capitalista. Ele atua, na prática, na camuflagem
ou diminuição desses antagonismos.” (FALEIROS, 2009, p. 14) O seu reconhecimento é construído dentro desta
relação de força e precisa ser reelaborado em virtude das mudanças históricas que alteram o objeto profissional.
Dada a mutabilidade e o caráter contraditório das relações sociais e, portanto, da própria profissão, é possível
construir uma atuação voltada para os interesses e para o fortalecimento das classes e grupos populares.
anteriores, agora executados por diversos trabalhadores diferentes e por um sistema de máquinas. Cria-se o
trabalhador parcial, efetuando-se o parcelamento do próprio indivíduo no ato da produção. (IAMAMOTO;
CARVALHO, 1983, p. 17)
Em suma: a densificação da organização do trabalho na produção é o fundamento da multiplicação das
ocupações (dentro e fora do espectro produtivo), pois exige a subdivisão dos trabalhos e, ao mesmo tempo, a sua
articulação com a totalidade da prática social no campo econômico. Por inúmeras mediações e particularizações
esse processo atingiria as mais variadas atividades, na indústria, no comércio e no setor de serviços, fundando novas
categorias profissionais ou ressignificando a atividade de especializações mais antigas, como a medicina, o direito
ou a pedagogia. A ampliação da autonomia relativa, a formação diferenciada, a remuneração e o status jurídico das
ocupações profissionais se desenvolvem nessa dinâmica como uma necessidade do processo de trabalho e uma
conquista (sempre instável) dos agentes de tais instituições. Essa colocação, todavia, não nos permite dizer que
Iamamoto (2008; 2009) elabora uma teoria das profissões, já que o desenvolvimento das suas proposições nesse
sentido é apenas inicial e objetiva, tão somente, estabelecer os fundamentos da análise do trabalho do assistente
social, elaborando uma abordagem sobre o significado social dessa prática.
Com esses supostos a autora remete o núcleo de demandas que convocam o serviço social às situações
conflitivas que nascem do processamento básico do capitalismo, isto é: a contradição entre a socialização crescente
da produção e a apropriação privada da riqueza coletiva. Essa determinação central fez que ela se debruçasse sobre
as problemáticas mais densas da teoria marxista. Os conceitos de trabalho, alienação, valor de uso, valor de troca, as
relações entre as classes sociais e destas com o estado, o caráter contraditório do processo produtivo, a afirmação
política da classe trabalhadora e sua constituição enquanto “classe para si” são temáticas recorrentes em sua obra,
erigidas enquanto elementos indispensáveis para a compreensão da sociedade moderna e, por consequência, do
serviço social.
Em particular, a autora chama a atenção para a questão social, abordada enquanto
o conjunto das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada
vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-
-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade (IAMAMOTO, 2009, p. 27).
Inserido nesse universo, o serviço social nasce e se desenvolve quando o estado (ampliando-se) toma para
si as respostas às manifestações da questão social, num patamar qualitativo e quantitativo diferenciado, por meio
da efetivação de políticas sociais. Segundo a autora, o assistente social é um trabalhador assalariado e sua principal
tarefa reside na operacionalização das políticas sociais, mediante uma atividade de corte burocrático, moralizante e
disciplinador, calcada no contato direto com o público usuário.
A funcionalidade da profissão não se estabelece primordialmente em seus contributos técnicos ou no campo
do saber científico, mas na sua capacidade de contribuir para a manutenção da força de trabalho e dos grupos
ausentes do universo produtivo, por meio de um conjunto de atividades que se destinam a minorar conflitos e
fortalecer consensos. Nas palavras de Iamamoto:
o assistente social é solicitado não tanto pelo caráter propriamente “técnico-especializado” de suas ações, mas,
antes e basicamente, pelas funções de cunho “educativo”, “moralizador” e “disciplinador” que, mediante um
suporte administrativo-burocrático, exerce sobre as classes trabalhadoras, ou, mais precisamente, sobre os seg-
mentos destas que formam a “clientela” das instituições que desenvolvem programas socioassistenciais. Radi-
calizando uma característica de todas as demais profissões, o assistente social aparece como um profissional da
coerção e do consenso (2007, p. 42).
Não obstante, o reconhecimento desse agente não se assenta apenas em sua capacidade de elaborar soluções
para as demandas dos grupos sociais dominantes (os seus empregadores), mas deriva também das respostas
profissionais ofertadas aos setores subalternizados da população (público responsável, em última instância, pela
sua procura). Trata-se, dessa forma, de uma legitimidade tensionada, prenhe de contradições e que se interpõe
entre atores com perfis e vontades distintas e conflitantes.
O que se afirma, em tal ótica, é que a atividade profissional se materializa a partir do atendimento de
interesses sociais polarizados pelas classes sociais fundamentais – burguesia e proletariado – cuja tendência é
a sua cooptação por aqueles que ocupam uma posição dominante (IAMAMOTO; CARVALHO, 1983). Daí a
possibilidade, vislumbrada por Iamamoto (2008), de o agente profissional, compreendendo os limites e potenciais
de sua prática, reorientar o foco de suas ações no sentido do fortalecimento dos grupos e classes populares, que
constituem a imensa maioria dos seus usuários imediatos. Assim, é o próprio caráter contraditório da intervenção
profissional, imersa nas tensões presentes na realidade, que abre caminho para uma atuação baseada em condutos
de reconhecimento que ultrapassem o conservadorismo.
73
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social
Iamamoto (2007) salienta, ainda, o papel desempenhado pelas mediações organizacionais para a compreensão
da categoria profissional, remetendo, em primeiro lugar, para a condição deste agente como um profissional de
nível superior assalariado. Ou seja, o serviço social é uma instituição dentro da divisão sociotécnica do trabalho –
que qualifica certos trabalhadores para exercer uma prática especializada; o assistente social, por sua vez, é o sujeito
que trabalha e o faz por meio de um processo cooperativo formulado dentro das organizações que operam as
políticas e serviços sociais.
Isso explica, inclusive, o porquê da inexistência de um processo de trabalho exclusivo do assistente social,
cujos parâmetros possam ser aplicados a todos, ou quase todos, os seus espaços ocupacionais. Na verdade, o que
há é um processo de trabalho organizacional, pautado nas metas e diretrizes das entidades contratantes. Daí que
a autonomia do assistente social se realize de forma relativa, sendo limitada pelos constrangimentos inerentes ao
contrato de trabalho.
(...) ao vender sua força de trabalho em troca de salário (valor de troca dessa mercadoria), o profissional entrega
ao seu empregador o valor de uso ou o direito de consumi-la durante a jornada estabelecida. Durante a jornada
de trabalho, a ação criadora do assistente social deve submeter-se às exigências impostas por quem comprou
o direito de utilizá-la durante certo período de tempo, conforme as políticas, diretrizes, objetivos e recursos da
instituição empregadora. É no limite dessas condições que se materializa a autonomia do profissional na con-
dução de suas ações (IAMAMOTO, 2009, p. 97 – destaques da autora).
A atividade do assistente social demanda planejamento, instrumentos, insumos, bem como outras práticas
que lhe dão direção e suporte. Sua ação incide sobre um objeto particular – as manifestações da questão social
que se impõe no cotidiano dos sujeitos sociais – e converge para um produto específico: uma nova disposição
das situações trabalhadas, incluindo as ideias e afetos dos indivíduos alvo da intervenção. Por isso, na maior
parte dos casos, a ação profissional se conforma como uma prática voltada para a regulação social, entretanto, o
assistente social pode se alocar como integrante real das cadeias de produção, quando de sua atuação nas empresas
capitalistas, em que passa a fazer parte do trabalhador coletivo. Ou seja, embora a materialidade da intervenção do
serviço social não implique um metabolismo direto com a natureza, os atores dessa ocupação podem desempenhar
funções produtivas mediatizadas, dada sua inserção concreta nos empreendimentos públicos e privados geradores
de capital.
Nessa condição específica, o serviço social é trabalho produtivo porque o assistente social, em conjunto
com outros trabalhadores, participa do empreendimento produtivo, sua intervenção (num contexto ampliado)
é parte (mediatizada) do processo de produção. O trabalho profissional, assim concebido, é um potenciador da
produção e dos serviços, os efeitos da prática do agente profissional (ainda que de forma não imediata) se destinam
a reforçar a lucratividade do empreendimento capitalista. Noutros termos: a atuação do assistente social é capaz
de participar da criação de mais-valor quando está imersa numa relação assalariada na qual o trabalho e seus meios
estão subsumidos ao capital (levando-se em conta a totalidade dos agentes inseridos no processo produtivo, e não
apenas os trabalhadores que realizam a manipulação dos elementos do mundo natural).
Em síntese, para Iamamoto (2008; 2009) o serviço social é uma instituição derivada da modernidade
capitalista, que se forma a partir do acirramento dos conflitos postos pela questão social, tidos como o material
de trabalho da profissão. É no atendimento dessas demandas – sobretudo, quando enquadradas pelo estado na
forma de políticas sociais – que se encontram as bases objetivas que sustentam a categoria profissional. Assim,
o reconhecimento do assistente social é um processo contraditório, calcado nas respostas que fornece aos atores
vinculados ao capital e ao trabalho e nas mediações que o conformam como um trabalhador assalariado e agente
institucional.
do modo de produção capitalista, sem ferir a essencialidade que estrutura a questão social, provocou inúmeras
mudanças societárias, cuja importância possui um imenso significado.
Ocorreu, nesse marco, o nascimento de um novo modelo produtivo e de regulação social (NETTO, 2007), ou
seja, transitou-se do capitalismo concorrencial (século XIX/início do século XX) para o capitalismo monopolista
(do século XX até hoje). Sumariemos as mudanças. De um conjunto de forças produtivas baseadas em pequenas
empresas, em uma organização da produção e dos processos de trabalho ainda rudimentar, em um mercado
consumidor predominantemente nacional e em uma atuação do estado geralmente limitada a garantir às condições
externas a reprodução de capital partiu-se para a dominância de grandes conglomerados industriais e de serviços,
para um modelo produtivo orientado pelas diretrizes tayloristas e fordistas, coligado a um mercado efetivamente
internacional, assim como a um tipo de ação estatal baseada na intervenção sistemática na vida econômica e social
(NETTO, 2007; MONTAÑO, 2006).
Frise-se que esses intervenientes provocaram transformações profundas na questão social e em suas
expressões. A tensão que marca a relação entre capital e trabalho ganhou outros contornos, seja pelas novas
modalidades de resistência e luta das classes trabalhadoras, seja pelo acirramento das suas penúrias, que passaram
a se refratar muito além do ambiente fabril (NETTO, 2007). Está nisso, inclusive, a necessidade de redimensionar
o papel do estado burguês, cujas funções são ampliadas pelo complexo jogo de disputas que agora afetam e
ameaçam a reprodução do ambiente sociopolítico. Tem-se, além disso, uma nova modalidade de ação como
plano indispensável à intervenção do estado. Trata-se de suas funções políticas, destinadas, a partir de vetores
extraeconômicos, a garantir a estabilidade social.
Segundo Netto (2007), ocorrem nesse contexto grandes dificuldades para a manutenção da força de trabalho,
seja pela melhoria civilizacional que eleva o padrão de vida proletário e, por conseguinte, suas exigências ao capital,
seja pela ampliação dos níveis e formas de exploração, as quais, sem controle, ameaçam a própria existência do
trabalhador. Ressalta-se que tanto a face estritamente econômica quanto a político-social do estado estão, sob o
monopolismo, intimamente relacionadas e articuladas. Uma concorre para o sucesso da outra, já que a estabilização
do ambiente sociopolítico, construída pelos sistemas de proteção social, facilita e potencializa a acumulação de
capital, seja pela diminuição das tensões sociais, seja pela ampliação do consumo popular ou pela expansão da
produtividade do trabalho – via políticas educacionais, previdenciárias, de saúde pública e outras. Além disso, é
a própria acumulação capitalista que permite, mediante a absorção de parte da riqueza social via fundo público,
a construção e expansão das políticas sociais. O alargamento do estado, enfim, explicita uma reorganização de
toda vida social diante dos novos desafios impostos pelo acirramento da questão social e de suas refrações. Se tal
conjuntura reflete a funcionalidade do aparelho estatal à ordem burguesa, também exprime as lutas operárias e dos
novos movimentos sociais.
Ora, são essas determinantes, justamente, que permitem ao estado burguês apresentar-se, ainda com mais
força, como representante do interesse geral, como um estado nacional-popular, reforçando sua imagem de árbitro,
mediador de interesses entre grupos e classes, o que fez que as instituições governamentais agora se mostrassem
como responsáveis não só pela manutenção da integração do corpo social, mas pela promoção do seu bem-estar
e desenvolvimento. Um dos principais instrumentos para isso, lembra Netto, foram as chamadas políticas sociais,
sobretudo quando conjugadas às funções econômicas estatais.
É a política social do estado burguês no capitalismo monopolista (e, como se infere desta argumentação, só
é possível pensar-se em política social pública na sociedade burguesa com a emergência do capitalismo mo-
nopolista) configurando a sua intervenção contínua, sistemática, estratégica sobre as sequelas da “questão so-
cial”, que oferece o mais canônico paradigma dessa indissociabilidade de funções econômicas e políticas que
é própria do sistema estatal da sociedade burguesa madura e consolidada. Através da política social, o estado
burguês no capitalismo monopolista procura administrar as expressões da questão social de forma a atender às
demandas da ordem monopólica conformando, pela adesão que recebe de categorias cujas demandas incorpo-
ra, sistemas de consenso variáveis, mas operantes. (NETTO, 2007, p. 27)
Em Netto (2007) a gênese profissional é explicada pelo surgimento e estruturação de um espaço ocupacional
capaz de acolher profissionais como os do serviço social – as políticas públicas e sociais –, momento que obviamente
coincide e só pode ser explicado com a emersão do capitalismo monopolista. Nas políticas sociais, aduza-se, os
assistentes sociais estão alocados naquilo que se tem chamado de espaços de tipo terminal, vinculados à execução
direta dos serviços públicos. Tais profissionais são executores de atividades estatais ligadas à regulação e à reprodução
social, auferindo, via de regra, um contato imediato e sistemático com os sujeitos (mais vulnerabilizados) da classe
trabalhadora, mediante operações prático-empíricas e simbólicas diferenciadas.
A legitimidade do serviço social é, assim, fruto da capacidade dos agentes profissionais de atender a certas
demandas coletivas que emergem no contexto do capitalismo monopolista, requisições estas que se fundamentam
na necessidade de operacionalização de mecanismos de integração social erigidos pelas classes dominantes a partir
75
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social
do estado por elas capturado. Ao mesmo tempo, que deriva também das respostas profissionais ofertadas aos
setores subalternizados da população.
Em suma:
O desenvolvimento capitalista alcança o seu patamar mais alto na ordem monopólica (...). Nela o estado joga
um papel central e específico, dado que lhe cabe assegurar as condições da reprodução social no âmbito da
lógica monopólica ao mesmo tempo em que deve legitimar-se para além desta fronteira (...). Este núcleo ele-
mentar de tensões e conflitos aparece organizado na sua modalidade típica de intervenção sobre a “questão
social”, conformada nas políticas sociais (...) para uma tal intervenção requerem-se agentes técnicos especializa-
dos – novos profissionais, que se inserem em espaços que ampliam e complexificam a divisão social (e técnica)
do trabalho. Entre esses novos atores contam-se os assistentes sociais: a eles se alocam funções executivas na
implementação de políticas sociais setoriais. (NETTO, 2007, pp. 80-1)
Ou seja, o serviço social seria um produto típico do monopolismo, uma instituição derivada das requisições
e necessidades do estado, que muda seus parâmetros e modos de intervenção, carecendo, assim, de instrumentos
e agentes novos. O traço mais marcante do tradicionalismo profissional, nesse contexto, era o fato de a
conformação do serviço social ter por limite a afirmação do capitalismo monopolista, ou seja, as modalidades e
formas de intervenção dos assistentes sociais, o seu sistema de saber, a sua imagem e autoimagem se resumiam
a ser dispositivos de validação dos componentes cotidianos de tal ordem (daí, inclusive, sua afinidade com o
pensamento funcional-positivista). Nela o assistente social nada mais era do que um agente destinado a manipular
variáveis das “situações-problema” vivenciadas por seus usuários, conduzindo seu processo de ajustamento aos
esquemas sociais hegemônicos (vistos como formas sociais naturais, insuperáveis e desejadas). Os profissionais
operavam, assim, uma intervenção que, embora fundamentada em dilemas e demandas coletivas, limitava-se a
ocultar o caráter social das problemáticas dos sujeitos e grupos com que lidavam. O ponto nodal deste processo
é que no tradicionalismo tais vetores estruturam não apenas a prática, mas a identidade profissional, os assistentes
sociais com eles se identificam, assimilando-os e transmitindo-os acriticamente.
Após indicar os fundamentos da emersão e consolidação do serviço social Netto (2007) passa a tratar das
particularidades da profissão, que para ele apresenta uma estrutura sincrética, envolta no que chama de prática
indiferenciada, donde se desdobra o sincretismo ideológico e científico que marca o serviço social. Nesse caminho
ele explicita determinações inestimáveis para o problema de que temos tratado, isto é, identifica, a partir de
uma avaliação marxista, os vetores essenciais que estruturam as bases do serviço social e de qualquer profissão,
fornecendo, assim, indicações para a abordagem dessa temática num nível de abstração elevado.
O seu grande pressuposto é que
qualquer esforço para esclarecer o estatuto profissional do serviço social (...) deve se remeter a um traço com-
pulsório na apreciação do processo de institucionalização de toda a atividade profissional: o dinamismo his-
tórico-social, que recoloca, a cada uma de suas inflexões, a urgência de renovar (e, nalguns casos, de refundar)
os estatutos das profissões particulares. Isto significa que, em lapsos diacrônicos variáveis, todos os papéis
profissionais veem-se em xeque – pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, pelo grau de agudeza e
de explicitação das lutas de classes, pela emergência (ou rearranjo) de novos padrões jurídico-políticos etc. De-
correntemente, a original legitimação de um estatuto profissional encontra-se periodicamente questionada – e
não lhe é suficiente o apelo à sua fundamentação anterior, senão que se lhe põe como premente reatualização
que a compatibilize com as demandas que se lhe apresentam (NETTO, 2007, p. 89).
Ou seja, para José Paulo Netto (2007), o que possibilita e garante o surgimento de uma profissão é a
existência de uma demanda social (fundada nos determinantes econômico-políticos macroscópicos) passível de
ser instrumentalizada por um coletivo de trabalhadores. O estabelecimento de um corpo profissional se baseia
na sua capacidade de fornecer respostas efetivas a essas requisições, o que comporta, inclusive, o seu sentido
sociopolítico mais profundo (isto é, as demandas profissionais cumprem um papel no jogo de forças responsável
pela reprodução de uma sociedade).
Por isso, ele pondera que
a afirmação e o desenvolvimento de um estatuto profissional (e dos papéis a eles vinculados) se opera mediante
a intercorrência de um duplo dinamismo: de uma parte, aquele que é deflagrado pelas demandas que lhe são
socialmente colocadas; de outra, aquele que é viabilizado pelas suas reservas próprias de forças (teóricas e
prático-sociais), aptas ou não para responder às requisições extrínsecas – e este é, enfim, o campo em que incide
o seu “sistema de saber” (NETTO, 2007, p. 92).
Aqui a ruptura com o tradicionalismo e com cientificidade das ciências sociais toma uma das suas formas
mais intensas e bem acabadas. É o mercado de trabalho, com suas oportunidades e exigências, que funda a profissão,
e não só ela, mas qualquer prática ocupacional especializada. Sistema de saber, proteção legal, metodologias de
intervenção, instrumentos e técnicas não criam a profissionalidade de qualquer ofício, apenas a expressam e
atualizam. Geneticamente, as profissões e ocupações vêm à tona quando as transformações sociais abrem espaço
para sua institucionalidade. Portanto, explicar o estabelecimento, as mudanças e a reprodução de um coletivo
profissional é reconstruir a trama histórica dos fatos, estruturas e relações sociais que o subscrevem e determinam.
Essa resolução é, sobretudo, metodológica, por isso contrasta com as ideias do tradicionalismo e com
a sociologia das profissões, pois reconhece a prática social como elemento primário e fonte conformadora do
escopo da teorização. Além disso, representa o esforço para superar a falsa assertiva que postula a existência de
uma cientificidade própria ao serviço social, inscrevendo suas contribuições no seio mais amplo de uma teoria
social. Trata-se, ademais, de analisar a atuação do assistente social pelo prisma do marxismo, cujos fundadores
não podem ter o seu pensamento enquadrado na divisão do trabalho intelectual contemporânea, bem como não
podem ser tidos como os criadores de uma ciência (esquemática e asséptica) sobre a sociedade.
O pensamento de Netto (2007) é marcado pela totalidade, pela concreticidade contingente do real –
colocada pela problemática marxiana do ser –, além da materialidade como ponto de partida de toda investigação
dos fenômenos humanos, inclusive as profissões e, dentro delas, o serviço social. O autor avalia, assim, o estatuto
profissional salientando a existência de três condicionantes que caracterizam o seu sincretismo medular: I) o
universo de problemas que faz emergir o material de trabalho do serviço social; II) o horizonte prático dos seus
agentes; e III) a sua modalidade específica de intervenção. Ocorre que o extenso número de dilemas postos pela
questão social (o material de trabalho dos assistentes sociais), conformado pelos óbices típicos do monopolismo,
apresenta-se como um complexo fenomênico sincrético posto para intervenção.
A natureza sincrética do serviço social deriva do modo difuso de a questão social se refratar, o que instaura
para a profissão um objeto polifacético e polimórfico que permite associar a sua intervenção a múltiplos segmentos
da vida social, ao mesmo tempo em que bloqueia as possibilidades de se delimitar a sua especificidade. O sincretismo
também é reforçado pelo estado, a partir da sua intervenção parcelar sobre as sequelas da questão social, por meio
das políticas públicas setoriais, que ratificam o atendimento fragmentário das manifestações da questão social feito
pelos assistentes sociais.
O problema é que
Só este fato já confronta o assistente social com o tecido heteróclito em que se move a sua profissionalidade:
a teia em que a vê enredada se entretece de fios econômicos, sociais, políticos, culturais, biográficos etc., que,
nas demandas a que deve atender, só são passíveis de desvinculação mediante procedimentos burocrático-
-administrativos (NETTO, 2007, p. 94).
A natureza da profissão também é reforçada pelo seu modo de imersão no cotidiano, observado como
seu horizonte de atuação. O trabalho do assistente social não costuma estimular atividades de homogeneização
e suspensões: o seu material se situa no campo da heterogeneidade ontológica do cotidiano, em que opera o
rearranjo das suas condições, ressituando-as noutro patamar da própria cotidianidade.
A funcionalidade histórico-social do serviço social aparece definida precisamente enquanto uma tecnologia
de organização dos componentes heterogêneos da cotidianidade de grupos sociais determinados (...), o dis-
ciplinamento da família operária, a ordenação de orçamentos domésticos, a recondução às normas vigentes
de comportamentos transgressores ou potencialmente transgressores, a ocupação de tempos livres, processos
compactos de ressocialização dirigida etc. –, conotando-se como tecnologia de organização do cotidiano, como
manipulação planejada. (NETTO, 2007, p. 96 – destaques do autor)
Por último (e mais importante), existe a forma de intervenção do serviço social como variável explicativa
da sua inscrição no “círculo de giz do sincretismo”. A particularidade da intervenção profissional se encontra na
manipulação de elementos empíricos de um determinado contexto, de maneira a contribuir para reprodução dos
esquemas sociais instituídos. Esta determinação fornece a Netto (2007) os indicativos para clarificar aquilo que
chama de “prática indiferenciada”. Isto é, para o autor, a expressão cabal do sincretismo profissional pode ser
localizada no fato de que a profissionalização do serviço social não modificou de maneira significativa a atuação
dos assistentes sociais quando comparados aos atores inseridos nas suas protoformas. Apesar de a inserção e o
sentido coletivo do trabalho do assistente social serem bastante diversos, a ponto de incluir uma relação de ruptura
com as suas protoformas, a sua prática não comporta resultantes com eficiência muito distinta das iniciativas
assistenciais e de outras profissões.
Existe aqui um paradoxo e ele pode ser formulado da seguinte maneira: como uma intervenção, idealmente
referenciada por um sistema de saber e enquadrada numa rede institucional, revela-se factualmente pouco dis-
criminada e particularizada em face de intervenções cujo referencial é nebuloso e cuja inserção institucional é
aleatória? (NETTO, 2007, p. 100)
77
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social
Essa indagação é respondida pelo autor a partir da análise das condições para a intervenção social na sociedade
burguesa (a positividade que reveste e encobre as relações sociais) e a funcionalidade do seu estado (limitado a
reformas dentro da ordem), fatores que, ao acederem sobre uma profissão que goza de notória subalternidade, faz
que esta nem sequer capitalize as eventuais conquistas motivadas pela sua atuação. O importante é observar que,
segundo Netto,
a especificidade profissional converte-se em incógnita para os assistentes sociais (e não só para eles): a profissiona-
lização permanece um circuito ideal, que não se traduz operacionalmente. As peculiaridades operacionais da sua práti-
ca não revelam a profissionalização: tudo se passa como se a especificação profissional não rebatesse na prática
– o específico prático-profissional do serviço social mostrar-se-ia como a inespecificidade operatória. Em suma:
a profissionalização, para além de estabelecer a referência ideal a um sistema de saber, teria representado apenas
a sanção social e institucional de formas de intervenção (por isso mesmo, agora implicando a preparação formal
prévia para o seu exercício e remuneração monetizada) preexistentes, sem derivar numa diferenciação operatória,
mesmo implicando efeitos dela diversos (2007, p. 104 – destaques do autor).
Tudo isso caracteriza um anel de ferro que limita as possibilidades da profissão. O conteúdo pouco
discriminado da intervenção do serviço social exige que os seus agentes desenvolvam um alto grau de polivalência
laborativa, o que dificulta ainda mais as chances de se diferenciar a categoria de outras, consagrando o seu
sincretismo latente. De acordo com J. Paulo Netto (2007), junto da prática indiferenciada se consolidam ainda o
sincretismo ideológico e o sincretismo científico do serviço social. No primeiro caso (numa avaliação que se refere
apenas ao tradicionalismo) tem-se a junção ou a interação forçada e não mediatizada entre as tradições europeia
e norte-americana no serviço social durante a primeira metade do século XX. Estas tradições possuem origens e
características bastante distintas: o serviço social europeu apresentava uma forte ligação com o confessionalismo
católico, uma recusa importante do diálogo com o pensamento social, além de não endossar as iniciativas do estado
para intervir na questão social (advogando, em lugar dele, pela ingerência do associativismo civil); já o serviço
social estadunidense apresentava laços mais fortes com o estado e com as ciências sociais, um nível mais elevado
de laicidade e o seu conservadorismo não era reacionário. A questão, para Netto (2007), é que essas tradições
passam a se amalgamar sem nenhum critério, aparecendo, muitas vezes, como formas complementares de serviço
social, sendo o modelo europeu mais voltado para intervenção em grupos e o norte-americano mais direcionado
para o caso individual. Mas não só isso: essas tradições, já misturadas, têm seus contributos teóricos disseminados
unilateralmente pelos países periféricos (dentre eles o Brasil).
Já o sincretismo científico é derivado da absorção empreendida pelo serviço social dos influxos do padrão
de cientificidade burguês posto pelas ciências humanas e sociais (sobretudo, o pensamento funcional-positivista).
Segundo Netto:
Uma vez tomado como “profissão da prática” o serviço social pôs-se como vazadouro, receptáculo das ela-
borações produzidas no âmbito das ciências sociais, boa parte delas vetores extremamente expressivos do
pensamento conservador. Atribuindo a elas, e aceitando que elas se arrogassem, o monopólio da produção de
conhecimentos teóricos sobre a sociedade e sua dinâmica, o serviço social realizou uma dupla operação. De
um lado incorporou acriticamente os principais conceitos, noções e categorias – mesmo os mais vulgares – que
tinham curso nas ciências sociais; de outro, legitimou uma curiosa divisão do trabalho: as ciências sociais res-
ponderiam pela produção de conhecimentos e ao serviço social caberia o “território da prática”. (2011b, p. 148)
Sintetizando: para José Paulo Netto (2007), o serviço social é uma atividade derivada dos dilemas e
requisições sociais postos ao estado e às classes dominantes pelo monopolismo, que abre espaço para o surgimento
das políticas sociais, o lócus privilegiado dos profissionais do serviço social. Nelas esses agentes se alocam como
executores terminais, fornecendo o atendimento imediato para microdemandas da população trabalhadora. O
reconhecimento profissional recai, portanto, nesse trabalho de rearticulação sincrética1 dos elementos do cotidiano
das populações vulnerabilizadas ou atingidas pelas sequelas da questão social. O rearranjo do cotidiano – a partir
de conhecimentos teóricos, do senso comum, do bom senso e de atividades burocrático-administrativas – é o
fundamento da atuação do assistente social, que precisa ser afirmada dia a dia, isto é, precisa se consolidar nos
condutos específicos do próprio cotidiano enquanto instância da totalidade social.
1 Excelente termo criado por Andrade (2005) durante sua interpretação do pensamento de Netto.
Considerações finais
Todo o esforço aqui empreendido procurou clarificar a existência de um distanciamento, ou melhor, de uma
distinção entre as teses hegemônicas na teoria das profissões e as problematizações mais relevantes do serviço
social brasileiro, aspecto pouco notado e problematizado pela bibliografia profissional.
Como já exposto, o núcleo analítico dessa não coincidência teórica nos parece ser a determinação da
legitimidade. É esse o foco heurístico que materializa a oposição entre tais elaborações. O estudo do fenômeno
profissional pela via do legítimo exprime uma opção investigativa que foge do debate ontológico: analisa as
profissões em si mesmas, por meio de projeções intelectuais autônomas, que objetivam fornecer uma descrição e
uma interpretação lógica da questão.
A partir dessas considerações, nossa análise indica que os estudos contemporâneos do serviço social
brasileiro fogem dos pressupostos das ciências sociais sobre as ocupações especializadas, e o fazem por meio de
uma pretensão materialista. Todavia, como abordado, isso não apaga a sua diferenciação interna ou suas similitudes
pontuais com a sociologia das profissões.
Dentre os três estudiosos aqui abordados, Faleiros (2009; 2013) é o que mais se aproxima da sociologia das
profissões: a tentativa de circunscrever um objeto específico, e a partir dele um campo de saber, a incorporação
seletiva de diversas teorias oriundas do pensamento social contemporâneo e a ênfase nas relações de poder como
foco da análise do serviço social demonstram o profundo diálogo que ele mantém com tais estudos. Também por
isso, esse autor é o que mais associado está ao paradigma do legítimo, dado que nele a especificidade funcional e de
saber são elementos de grande importância para caracterização do estatuto profissional.
O mesmo não ocorre com as análises de Iamamoto (2008; 2009) e Netto (2007; 2011a; 2011b), que
apresentam uma ruptura bem mais nítida. Iamamoto (2008; 2009), como já colocado, vislumbra o serviço social
como uma ocupação fruto da produção e reprodução das relações sociais na ordem burguesa. Para ela, a profissão
se constitui a partir do amadurecimento desta sociabilidade, que altera o ambiente econômico, as estruturas políticas
e ideológicas no bojo das disputas macrossocietárias. Especificamente, o serviço social nasce perante o surgimento
da questão social, posta quando as classes trabalhadoras se consolidam como atores políticos em confronto com
as classes dirigentes e com o estado, ampliando a democracia política e exigindo serviços e direitos sociais, ao
mesmo tempo em que lançam no horizonte coletivo a possibilidade de construção doutras formas de convivência
e produção coletiva.
A base do reconhecimento ocupacional se encontra nas relações sociais que envolvem as profissões; ela se
projeta institucionalmente por meio das respostas das categorias profissionais a tais demandas. Trata-se, portanto,
de uma conquista num terreno marcado por interesses e necessidades conflitantes, dimanadas do estado, da
conformação do ambiente organizacional e dos elementos que colimam a relação de assalariamento dos agentes
profissionais. Por isso, teórica e metodologicamente, a resolução de Iamamoto (2008; 2009) é um exercício que
nega a abstração endogenista da legitimidade como parâmetro central de avaliação das ocupações especializadas.
Já José Paulo Netto (2007; 2011a) é, talvez, ainda mais incisivo na diferenciação das suas ideias em relação
aos postulados básicos da teoria das profissões. O autor concebe o serviço social como uma ocupação cujos
fundamentos práticos residem nas manifestações da questão social no capitalismo monopolista. Tal conjuntura
representou um reordenamento estrutural da base produtiva e da regulação social, que alterou a conformação dos
governos, das culturas e dos diversos grupos sociais. Os novos papéis dos atores estatais criaram, principalmente,
um novo leque de estruturas de reprodução social, que extrapola e muito a sua intervenção sociopolítica na fase
concorrencial. Falamos aqui das políticas públicas sociais, espaços que necessitavam de novos profissionais oriundos
das mais diversas áreas e que foram, por isso, o suporte para o nascimento de inúmeras profissões e ocupações.
Entre as novas categorias profissionais estava o serviço social, especialização inserida predominantemente
na execução terminal das políticas sociais. Nela os assistentes sociais realizam operações de transubstanciação
ideológica, a partir da manipulação de variáveis empíricas do cotidiano das populações usuárias dos seus serviços. A
profissão tem no cotidiano – a instância da heterogeneidade, do espontaneísmo e do imediatismo – o seu horizonte
interventivo, nas inúmeras e difusas manifestações da questão social, a matéria-prima do seu trabalho, e na atuação
prático-empírica nos fenômenos afeitos à reprodução e regulação da vida das classes trabalhadoras e grupos
subalternos o seu modo de intervenção. É por isso uma profissão sem especificidade, com funções extremamente
maleáveis e de difícil definição. Além disso, a estrutura profissional torna o serviço social uma ocupação muito
suscetível ao pensamento positivista, dados os seus influxos pragmáticos e formalistas, que fizeram que profissão
criasse um sistema de saber de segundo grau, baseado nos vetores mais conservadores das ciências sociais.
Tais assertivas mostram que em Netto (2007; 2011b) quase inexistem pontos de contato com a teoria das
profissões. Nele o serviço social, visto como atividade reconhecida e legalmente sancionada, não se legitima pelo
seu saber (elaborado como ciência) ou pelas suas singularidades funcionais. O seu reconhecimento provém da
utilidade das suas aptidões, da sua capacidade para materializar as disposições do seu mandato social. Daí que, em
79
Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social
última instância, a legitimidade profissional resulta do duplo dinamismo das forças sociais e das energias práticas,
políticas e teóricas da categoria.
Ora, ao formular esse conjunto de colocações não apenas sintetizamos nossa exposição precedente, mas
demarcamos problemas futuros, questões passíveis de novas investigações. Expliquemos: nossos esforços seguiram
um fluxo determinado – partiram da análise da teoria das profissões e do problema da legitimidade para o serviço
social. Buscamos, com isso, subsídios para o estudo da teorização moderna da categoria profissional no país,
procurando explicitar algumas diferenças decisivas que ela mantém com as concepções hegemônicas dentro das
ciências sociais na abordagem do fenômeno ocupacional.
Verificados alguns dos mais relevantes limites da sociologia das profissões, cabe agora uma indicação
final acerca da necessidade e da possibilidade de realizar o caminho inverso. Noutras palavras: parece-nos que as
conquistas e descobertas dos estudos mais avançados sobre o estatuto do serviço social podem ser uma contribuição
valiosa para a revitalização da teoria das profissões. Em vista do caráter ontológico e efetivo destes estudos, eles
poderiam auxiliar o aprofundamento de uma análise marxista do fenômeno profissional em sua generalidade nas
sociedades capitalistas.
Com isso não queremos dizer que o pensamento de Faleiros (2013), Netto (2007) ou Iamamoto (2008; 2009)
contenha uma teoria explícita sobre as profissões: resta saber é se seus lineamentos poderiam ser desenvolvidos
como tais.
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81
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto
Introdução
∗ - Texto base da conferencia magistral do XVIII Seminário Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social,. San José,
Costa Rica, 12 de julio de 2004, originalmente publicado nos Anais do referido Seminário: MOLINA, M. L. M. (Org.)
La cuestión social y la formación profesional en el contexto de las nuevas relaciones de poder y la diversidad
latinoamericana. San José, Costa Rica: ALAETS/Espacio Ed./Escuela de Trabajo Social, 2004, p. 17-50.
∗∗ - Assistente Social, Doutora em Ciências Sociais, Professora Titular aposentada da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente Professora Titular da Faculdade de Serviço Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Publicou vários livros, entre os quais: Renovação e Conservadorismo
no Serviço Social (São Paulo,:Cortez Ed., 1992), que atinge hoje a 8ªedição; O Serviço Social na Contemporaneidade:
trabalho e formação profissional (São Paulo: Cortez Ed., 1998) atualmente na 10ªedição; Trabalho e Indivíduo
social.(São Paulo: Cortez, 2001),na 2ªedição; e, em co-autoria com Raul de Carvalho: Relações Sociais e Serviço
Social no Brasil (São Paulo: Cortez Ed., 1982), hoje na 18ºedição.
∗∗∗
LORCA, Federico Garcia. Meditación primera y última. In: Obra poética Completa. São Paulo: Martins
Fontes,1966, pp. 610.
Serviço Social e Saúde: Formação e Trabalho Profissional 1
As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço Social contemporâneo
Marilda Villela Iamamoto
equivalente de seus meios de vida. Crescem, com isso, as desigualdades e, com elas, o
contingente de destituídos de direitos civis, políticos e sociais. Esse processo é potenciado pelas
orientações (neo)liberais, que capturam os Estados nacionais, erigidas pelos poderes
imperialistas como caminho único para animar o crescimento econômico, cujo ônus recai
sobre as grandes maiorias.
A contrapartida tem sido a difusão da idéia liberal de que o “bem-estar social” pertence
ao foro privado dos indivíduos, famílias e comunidades. A intervenção do Estado no
atendimento às necessidades sociais é pouco recomendada, transferida ao mercado e à
filantropia, como alternativas aos direitos sociais.
A atual desregulamentação das políticas públicas e dos direitos sociais desloca a atenção
à pobreza para a iniciativa privada ou individual, impulsionada por motivações solidárias e
benemerentes, submetidas ao arbítrio do indivíduo isolado, e não à responsabilidade pública
do Estado.
O resultado no campo das políticas públicas na área social, na América Latina, tem sido
o reforço de traços de improvisação e inoperância, o funcionamento ambíguo e sua
impotência na universalização do acesso aos serviços dela derivados. Permanecem políticas
casuísticas e fragmentadas, sem regras estáveis e operando em redes públicas obsoletas e
deterioradas”. (YAZBEK, 2001:37). E reafirma Soares:
Mas, ao mesmo tempo, essa sociedade apresenta um terreno minado de resistências e lutas
travadas no dia a dia de uma conjuntura adversa para os trabalhadores, as quais carecem de maior
organicidade para terem força na cena pública. Este cenário, avesso aos direitos, atesta,
contraditoriamente, a urgência de seu debate e de sua afirmação na realidade latino-americana, em
sua unidade de diversidades. Um debate que considere as particulares condições sócio-históricas e
culturais que, no País, fundam a construção dos direitos enquanto conquistas e/ou concessões do
poder, e os dilemas de sua efetivação na prática social. Esses são, também, dilemas do Serviço Social.
A cena contemporânea reclama, com urgência, um tempo de “política dos cidadãos”, como
qualifica Nogueira:
Esse é o terreno que atualiza a luta por direitos, fundamental em uma época que
descaracterizou a cidadania ao associá-la ao consumo, ao mundo do dinheiro e à posse das
mercadorias. Um projeto democrático se constrói no jogo de poderes e contra-poderes, na
receptividade às diferenças, na transparência das decisões, com publicização e controle
constante dos atos de poder e na afirmação da soberania popular. Os assistentes sociais
também são seus protagonistas sem abrir mão da crítica e do controle social do Estado. Este é
terreno em que um projeto ético-político profissional comprometido com a universalização dos
direitos pode enraizar-se e expandir-se.
2. 1. Perspectiva de análise
Para analisar a profissão como parte das transformações históricas da sociedade
presente, é necessário transpor o universo estritamente profissional, isto é, romper com uma
visão endógena da profissão, prisioneira em seus muros internos. E buscar entender como
essas transformações atingem o conteúdo e direcionamento da própria atividade profissional;
as condições e relações de trabalho nas quais se realiza; afetam as atribuições, competências
e requisitos da formação do assistente social.
Essa perspectiva exige alargar os horizontes para o movimento das classes sociais e do
Estado em suas relações com a sociedade, não para perder ou diluir as particularidades
profissionais, mas, ao contrário, para iluminá-las com maior nitidez; extrapolar o universo do
Serviço Social para melhor apreendê-lo na história da sociedade da qual ele é parte e
expressão.
O atual quadro sócio-histórico não se reduz, portanto, a um pano de fundo para que se
possa, depois, discutir o trabalho profissional. Ele atravessa e conforma o cotidiano do
exercício profissional do assistente social afetando as suas condições e as relações em que se
realiza o exercício profissional, assim como a vida da população usuária dos serviços sociais.
A análise crítica desse quadro requer um diagnóstico não liberal sobre os processos
sociais e a profissão neles inscrita. Uma análise do Serviço Social que afirme a centralidade do
trabalho na conformação da questão social e dos direitos sociais consubstanciados em
Desde a década de oitenta, vem sendo reiterado que a profissão de Serviço Social é uma
especialização do trabalho da sociedade, inscrita na divisão social e técnica do trabalho
social1, o que supõe afirmar o primado do trabalho na constituição dos indivíduos sociais2. Ao
indagar-se sobre significado social do Serviço Social no processo de produção e reprodução
das relações sociais, tem-se um ponto de partida e um norte. Este não é a prioridade do
mercado - ou da esfera da circulação -, tão cara aos liberais. Para eles, a esfera privilegiada
na compreensão da vida social é a esfera da distribuição da riqueza, visto que as leis
históricas que regem a sua produção são tidas como leis “naturais”, isto é, assemelhadas
àquelas da natureza, de difícil alteração por parte da ação humana.
A análise do Serviço Social no âmbito das relações sociais capitalistas visa superar os
influxos liberais que grassam as análises sobre a chamada “prática profissional”, vista como
prática do indivíduo isolado, desvinculada da trama social que cria sua necessidade e
condiciona seus efeitos na sociedade. Os processos históricos são reduzidos a um “contexto”
distinto da prática profissional, que a condiciona ”externamente”. A “prática” é tida como
uma relação singular entre o assistente social e o usuário de seus serviços -, seu “cliente”-
desvinculada da “questão social” e das políticas sociais.
1 - sa perspectiva de análise foi introduzida no Serviço Social brasileiro, em 1982. (Cf. IAMAMOTO & CARVALHO,
1982; IAMAMOTO, 1992).
2 - centralidade do trabalho na constituição dos indivíduos sociais foi diluído nas interpretações do marxismo
herdadas do movimento de reconceituação; um marxismo sem Marx, carregado de fortes marcas do estruturalismo
francês de Althusser e do marxismo soviético e/ou de inspiração maoísta.
Esse modo de vida implica contradições básicas: por um lado, a igualdade jurídica dos
cidadãos livres é inseparável da desigualdade econômica, derivada do caráter cada vez mais
social da produção, contraposta à apropriação privada do trabalho alheio (quem produz não
é quem se apropria da totalidade do produto do trabalho, da riqueza criada coletivamente).
Assim, o processo de reprodução das relações sociais não é mera repetição ou reposição
do instituído. É, também, criação de novas necessidades, de novas forças produtivas sociais
do trabalho em cujo processo se aprofundam as desigualdades e criam-se novas relações
sociais entre os homens na luta pelo poder e pela hegemonia entre diferentes classes e grupos
na sociedade. Essa é uma noção aberta ao vir-a-ser histórico, à criação do novo, que captura
o movimento e a tensão das relações sociais entre as classes e sujeitos que as constituem, as
formas mistificadas que as revestem, assim como as possibilidades de ruptura com a
alienação por meio da ação criadora dos homens na construção da histórica.
Esse rumo da análise recusa visões unilaterais que apreendem dimensões isoladas da
realidade, sejam elas de cunho economicista, politicista ou culturalista. A preocupação é
afirmar a ótica da totalidade na apreensão da dinâmica da vida social e procurar identificar
como o Serviço Social participa no processo de produção e reprodução das relações sociais.
Isso significa que o exercício profissional participa de um mesmo movimento que tanto
permite a continuidade da sociedade de classes quanto cria as possibilidades de sua
transformação. Como a sociedade na qual se inscreve o exercício profissional é atravessada
por projetos sociais distintos - projeto de classes para a sociedade – tem-se um terreno sócio-
histórico aberto à construção de projetos profissionais também diversos, indissociáveis dos
projetos mais amplos para a sociedade. É essa presença de forças sociais e políticas reais –
que não são mera ilusão -, que permite à categoria profissional estabelecer estratégias
político-profissionais no sentido de reforçar interesses das classes subalternas, alvo prioritário
das ações profissionais. Sendo a profissão atravessada por relações de poder, ela dispõe de
um caráter essencialmente político, o que não decorre apenas das intenções pessoais do
assistente social, mas dos condicionantes histórico-sociais dos contextos em que se insere e
atua.
seus limites e possibilidades que vão além da vontade do sujeito individual; b) e, de outro
lado, as respostas de caráter ético-político e técnico-operativo- apoiadas em fundamentos
teóricos e metodológicos – de parte dos agentes profissionais a esse contexto. Elas traduzem
como esses limites e possibilidades são apropriados, analisados e projetados pelos assistentes
sociais. O exercício da profissão exige, portanto, um sujeito profissional que tem competência
para propor, para negociar com a instituição os seus projetos, para defender o seu campo de
trabalho, suas qualificações e atribuições profissionais. Requer ir além das rotinas
institucionais para buscar apreender, no movimento da realidade, as tendências e
possibilidades, ali presentes, passíveis de serem apropriadas pelo profissional, desenvolvidas e
transformadas em projetos de trabalho.
privada das classes dominantes - rompendo com a tradicional filantropia -, para transformar-se em
uma das engrenagens da execução das políticas públicas e de setores empresariais, seus maiores
empregadores.
Esse padrão de acumulação entrou em crise em meados dos anos setenta, a que se acresce, na
década de 1880, o débâcle do Leste Europeu e a queda do muro de Berlim, reorganizando o poder
no cenário internacional.
Profundas alterações nas formas de produção e de gestão do trabalho têm sido introduzidas ante
as novas exigências do mercado oligopolizado, em um contexto de internacionalização do capital
orquestrada não mais pelo capital industrial, mas pela financeirização da economia.
Forja-se assim uma mentalidade utilitária, que reforça o individualismo, onde cada um é
chamado a “se virar” no mercado. Ao lado da naturalização da sociedade – “é assim mesmo, não há
como mudar” -, ativam-se os apelos morais à solidariedade, na contraface da crescente degradação
das condições de vida das grandes maiorias.
mais variadas expressões da “questão social” vividas pelos indivíduos sociais no trabalho, na
família, na luta pela moradia e pela terra, na saúde, na assistência social pública, etc.
Por isso, decifrar as novas mediações através das quais se expressa a “questão social” na
cena contemporânea é de fundamental importância para o Serviço Social em uma dupla
perspectiva: para que se possa apreender as várias expressões que as desigualdades sociais
assumem na atualidade e os processos de sua produção e reprodução ampliada; e para
projetar e forjar formas de resistência e de defesa da vida. Formas de resistência já presentes,
por vezes de forma parcialmente ocultas, no cotidiano dos segmentos majoritários da
população que dependem do trabalho para a sua sobrevivência. Assim, apreender a “questão
social” é também captar as múltiplas formas de pressão social, de invenção e de re-invenção
da vida, construídas no cotidiano.
Foram as lutas sociais que romperam o domínio privado nas relações entre capital e
trabalho, extrapolando a “questão social” para a esfera pública, exigindo a interferência do
Estado no reconhecimento e a legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos,
consubstanciados nas políticas e serviços sociais.
Uma dupla armadilha pode envolver a análise da “questão social” quando suas
múltiplas e diferenciadas expressões são desvinculadas de sua gênese comum,
desconsiderando os processos sociais contraditórios - na sua dimensão de totalidade - que as
criam e as transformam.
4 - A maioria dos programas focalizados de combate à fome e miséria tem, como alvo, a família.
A hipótese de análise é a de que na raiz do atual perfil assumido pela “questão social”
na América Latina encontram-se as políticas governamentais de favorecimento da esfera
financeira e do grande capital produtivo – das instituições e mercados financeiros e empresas
multinacionais -, como força que captura o Estado, as empresas nacionais, o conjunto das
classes e grupos sociais que passam a assumir o ônus das “exigências dos mercados”.
(SALAMA, 1999; CHESNAIS, 1996). Estabelece-se uma estreita relação entre a
responsabilidade dos governos no campo econômico e financeiro e a liberdade dada aos
movimentos de capital concentrado para atuar, no país, sem regulamentações e controles,
transferindo lucros e salários oriundos da produção para valorizar-se na esfera financeira e
especulativa, que re-configuram a “questão social” na cena contemporânea..
Nessa perspectiva, a “questão social” não se identifica com a noção de exclusão social,
hoje generalizada, dotada de grande consenso nos meios acadêmicos e políticos. Ela torna-se
uma palavra mágica, que tudo e nada explica, ocorrendo uma “fetichização conceitual“ da
noção de exclusão social. (MARTINS, 1997).
que os exclui, na reprodução ampliada dessa mesma sociedade. O autor salienta que os
“excluídos não protagonizam nem realizam uma contradição no interior do processo
produtivo”, mas são tidos como o resíduo crescente de um desenvolvimento econômico
considerado ‘anômalo’. Redunda em uma luta conformista e fala de um projeto de afirmação
do capitalismo, dos que a ele aderiram. Segundo o autor, o discurso da exclusão é expressão
ideológica de uma praxis limitada da classe média e não de um projeto um anticapitalista e
crítico, cujo desafio é tornar a sociedade beneficiária da acumulação. Considera a exclusão
social “um sintoma grave de uma transformação social, que vem, rapidamente, fazendo de
todos seres humanos descartáveis, reduzidos à condição de coisa, forma extrema da vivência
da alienação e da coisificação da pessoa, como já apontava Marx em seus estudos sobre o
capitalismo” (MARTINS, 2002:20).
O Serviço Social reproduz-se como uma especialização do trabalho por ser socialmente
necessário: o agente profissional produz serviços que têm um valor de uso, porque atendem as
necessidades sociais. Por outro lado, os assistentes sociais também participam, enquanto
trabalhadores assalariados, do processo de produção e/ou de redistribuição da riqueza social. Seu
trabalho não resulta apenas em serviços úteis, mas ele tem um efeito na produção -ou na
redistribuição- do valor e/ou da mais valia e nas relações de poder político e ideológico. Assim, por
exemplo, na empresa industrial, o assistente social, como parte de um trabalhador coletivo, participa
do processo de reprodução da força de trabalho, essencial à produção da riqueza. Na esfera estatal
participa do processo de redistribuição da mais valia, via fundo público. Aí seu trabalho se inscreve,
também, no campo da defesa e/ou realização de direitos sociais de cidadania, na gestão da coisa
pública. Pode contribuir para o partilha do poder e sua democratização - no processo de construção
de uma “contra-hegemonia” no bojo das relações entre as classes - ou ainda, para o reforço das
estruturas e relações de poder pré-existentes.
Embora o assistente social disponha de uma relativa autonomia na sua condução de seu
trabalho – o que lhe permite atribuir uma direção social ao exercício profissional - os
organismos empregadores também interferem no estabelecimento de metas a atingir. Detêm
poder para normatizar as atribuições e competências específicas requeridas de seus
funcionários, definem as relações de trabalho e as condições de sua realização – salário,
jornada, ritmo e intensidade do trabalho, direitos e benefícios, oportunidades de capacitação
e treinamento, o que incide no conteúdo e nos resultados do trabalho. E oferecem o back-
ground de recursos materiais, financeiros, humanos e técnicos para a realização do trabalho
no marco de sua organização coletiva. Portanto articulam um conjunto de condições que
a vontade move-se pela reflexão e pela paixão. Mas a reflexão e a paixão têm
também uma determinação social, porque são impulsionadas por forças
propulsoras que agem por detrás dos objetivos. Se os objetivos visados, ao
nível individual e coletivo, são produto da vontade, não o são os resultados que
dela decorrem, que passam por múltiplos vínculos sociais no âmbito dos quais
se realiza a ação. (ENGELS, 1977).
5 - A análise do significado social do trabalho profissional, na ótica da totalidade, supõe decifrar as relações sociais
nas quais se realiza em contextos determinados: as condições de trabalho, o conteúdo e direção social atribuídas ao
trabalho profissional, as estratégias acionadas e os resultados obtidos, o que passa pela mediação do trabalho
assalariado e pela correlação de forças econômica, política e cultural no nível societário. Articula, pois, um conjunto
de determinantes a serem considerados: as particulares expressões da questão social na vida dos sujeitos, suas formas
de organização e luta; o caráter dos organismos empregadores, seu quadro normativo, políticas e relações de poder
que interferem na definição de competências e atribuições profissionais; os recursos materiais, humanos e financeiros
disponíveis à viabilização do trabalho. Aliam-se a estes determinantes os compromissos firmados no contrato de
trabalho (salário, jornada, benefícios, etc) e sua efetivação, envolvendo padrões de produtividade, formas de gestão,
entre outras dimensões, que afetam o conteúdo do trabalho do assistente social. Certamente as respostas acionadas
dependem do perfil social e profissional dos assistentes sociais e, em particular, da apropriação teórico-metodológica
para leitura dos processos sociais, princípios éticos, a clareza quanto às competências, atribuições e o domínio de
habilidades adequadas ao trabalho concreto realizado, o que condiciona a eleição das estratégias acionadas, a
qualidade e resultados dos serviços prestados.
3. O projeto profissional
Os projetos profissionais são indissociáveis dos projetos societários que lhes oferecem
matrizes e valores e expressam um processo de lutas pela hegemonia entre as forças sociais
presentes na sociedade e na profissão. São, portanto, estruturas dinâmicas, que respondem
tanto às alterações das necessidades sociais decorrentes de transformações econômicas,
históricas e culturais da sociedade, quanto expressam o desenvolvimento teórico e prático da
respectiva profissão e as transformações operadas no perfil de seus agentes (idem).
política. Realizou um forte embate com o tradicionalismo profissional e seu lastro conservador
e buscou adequar criticamente a profissão às exigências do seu tempo, qualificando-a
academicamente. E o Serviço Social fez um radical giro na sua dimensão ética e no debate
nesse plano: constituiu democraticamente a sua base normativa, expressa na Lei da
Regulamentação da Profissão, que estabelece as competências e as atribuições profissionais, e
no Código de Ética do Assistente Social, de 1993. Este prescreve direitos e deveres do
assistente social, segundo princípios e valores humanistas guias para o exercício cotidiano,
dentre os quais destacam-se:
É nos limites dos princípios assinalados, que se move o pluralismo, que supõe o
reconhecimento da presença de distintas orientações na arena profissional assim como o
embate respeitoso com as tendências regressivas do Serviço Social, cujos fundamentos liberais
e conservadores legitimam o ordenamento social instituído. Porém o pluralismo propugnado
não se identifica com a sua versão liberal, em que todas as tendências profissionais são tidas
como supostamente paritárias, mascarando os desiguais arcos de influência que exercem na
profissão, os diferentes vínculos que estabelecem com projetos societários distintos e
antagônicos, apoiados em forças sociais também diversas.
O desafio maior para a efetivação desse projeto na atualidade é torná-lo um guia efetivo
para o exercício profissional, o que exige um radical esforço de integrar o dever ser com sua
implementação prática, sob o risco de se deslizar para uma proposta ideal, abstraída da
realidade histórica.
Assim considerado, o projeto profissional expressa uma condensação das dimensões ético-
políticas, teórico-metodológicas e técnico-operativas no Serviço Social, englobando a formação e o
exercício profissional.
As estratégias para o enfrentamento da questão social têm sido tensionadas por projetos
sociais distintos, que presidem a estruturação e a implementação das políticas sociais públicas
e que convivem em luta no seu interior. Vive-se uma tensão entre a defesa dos direitos sociais
e a mercantilização e re-filantropização do atendimento às necessidades sociais, com claras
implicações nas condições e relações de trabalho do assistente social (OLIVEIRA E
SALLES:1998; BRAVO:1996; PEREIRA:1998).
10 - CARDOSO (1995), ABREU (2002) e SILVA (1995) são partes de um grupo de intelectuais que vem mantendo vivo
este debate no interior do projeto profissional de ruptura como o conservadorismo.
requisito para impulsionar a consciência crítica e uma cultura pública democrática para além
das mistificações difundidas pela mídia. Isso requer, também, estratégias técnicas e políticas
no campo da comunicação social – no emprego da linguagem escrita, oral e midiática -, para
o desencadeamento de ações coletivas que viabilizem propostas profissionais capazes para
além das demandas instituídas.
Esse primeiro projeto é polarizado por um outro tipo de requisição, de inspiração neoliberal, que
subordina os direitos sociais à lógica orçamentária, a política social à política econômica, em especial
às dotações orçamentárias e, no Brasil, subverte o preceito constitucional. Observa-se uma inversão e
uma subversão: ao invés do direito constitucional impor e orientar a distribuição das verbas
orçamentárias, o dever legal passa a ser submetido à disponibilidade de recursos. São as definições
orçamentárias - vistas com um dado não passível de questionamento - que se tornam parâmetros para a
implementação dos direitos sociais, justificando as prioridades governamentais. A leitura dos
orçamentos governamentais, apreendidos como uma peça técnica, silencia os critérios políticos que
norteiam a eleição das prioridades nos gastos, estabelecidas pelo bloco do poder. A viabilização dos
direitos sociais – e em especial aqueles atinentes à seguridade social - pauta-se segundo as regras de
um livro-caixa, do balanço entre crédito e déficit no “cofre governamental”. Conforme foi discutido no
II Encontro de Serviço Social e Seguridade Social, realizado no Brasil, o orçamento público é a “caixa
preta” das políticas sociais governamentais, em especial da seguridade social. A elaboração e
interpretação dos orçamentos passam a ser efetuadas segundo os parâmetros empresariais de
custo/benefício, eficácia/inoperância, produtividade/rentabilidade. O resultado é a subordinação de
respostas às necessidades sociais à mecânica técnica do orçamento público, orientada por uma
racionalidade instrumental. A democracia vê-se reduzida um “modelo de gestão”, desaparecendo os
sujeitos e a arena pública em que expressam e defendem seus interesses. 11
a um conjunto de organizações – as chamadas entidades civis sem fins lucrativos -, sendo dela
excluídos os órgãos de representação política, como sindicatos e partidos, dentro de um
amplo processo de despolitização. A sociedade civil tende a ser interpretada como um
conjunto de organizações distintas e “complementares”, destituída dos conflitos e tensões de
classe, onde prevalecem os laços de solidariedade. Salienta-se a coesão social e um forte
apelo moral ao “bem comum”, discurso esse que corre paralelo à reprodução ampliada das
desigualdades, da pobreza e violência. Estas tendem a ser naturalizadas, onde o horizonte é a
redução de seus índices mais alarmantes.
12 - Trabalho concreto é aqui utilizado no sentido de Marx, como trabalho de uma qualidade determinada que
produz valores de uso voltados à satisfação de necessidades sociais de uma dada espécie.
Orientar o trabalho nos rumos aludidos, requisita um perfil profissional culto, crítico e
capaz de formular, recriar e avaliar propostas que apontem para a progressiva democratização
das relações sociais. Exige-se, para tanto, compromisso ético-político com os valores
democráticos e competência teórico-metodológica na teoria crítica em sua lógica de
Para finalizar, a sugestão do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: "Eu tropeço
no possível, mas não desisto de fazer a descoberta que tem dentro da casca do impossível".
Tropeçar no possível, mas sem desistir de fazer a descoberta que tem dentro da casca do
impossível. O projeto ético-político do Serviço Social é certamente um desafio, mas não uma
impossibilidade: o que se apresenta como obstáculo é apenas a casca do impossível, que
encobre as possibilidades dos homens construírem sua própria história.
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tecnológico que restrinjam legalmente outros de fazerem algo que a licença permita.
Abstract: This article deals with the conceptions/definitions of social work from a theoretical and
historical perspective, taking into account its context and presuppositions. The objective is a critical
analysis of the discursive enunciations about the social work profession without any evolutional or
exhaustive aim. The research method was a bibliography consultation of recognized authors, as well
as of professional organizations. The results show that there is a diversity of positions from functiona‑
lism and marxism and from social movements and institutional practice.
Key‑words: Social work. Social work definition. Reconceptualization.
O
objetivo deste artigo é o de considerar os pressupostos que historica‑
mente foram construídos para o estabelecimento de uma definição de
Serviço Social. A elucidação desses pressupostos permite analisar não
as definições isoladas, mas seu contexto e sua articulação com as de‑
* Assistente social, Ph.D em Sociologia, pesquisador I‑A do CNPq, professor da Universidade Católica
de Brasília e colaborador da UnB — Brasília, Brasil. Coordenador do Cecria. E‑mail: vicentefaleiros@terra.
com.br.
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terminações sociais, econômicas, culturais e políticas. Não é pretensão deste estu‑
do fazer um percurso histórico exaustivo do Serviço Social, mas da construção do
discurso sobre o Serviço Social quanto a uma definição em vários contextos, a
partir de sua formulação no início do século XX à primeira década do século XXI.
A construção do discurso sobre a definição do Serviço Social busca não só
traduzir uma síntese enunciativa de elementos componentes do que se considera
constituinte do Serviço Social, mas de articulá‑lo com as determinações históricas
e estruturais de sua construção e desconstrução.
Possenti e Souza‑e‑Silva (2008) consideram discursos constituintes aqueles
que reconhecem a sua própria autoridade de definição, operando uma função na
produção simbólica, tendo como referência uma visão científica ou profissional e
que dão sentido a atos de reconhecimento e de legitimidade e também buscam uma
coesão em torno dos mesmos.
A construção de uma definição sobre Serviço Social passa por disputas não
só linguísticas, mas ideológicas e políticas, processadas no enfrentamento de pro‑
jetos políticos e de produção de sentidos no cotidiano e de construção de estratégias
e operações que sinalizam formas de ação dos profissionais.
Quando Silva (2004) fala de Mary Richmond, coloca como subtítulo de seu
trabalho “Um olhar sobre os fundamentos do Serviço Social”, ou seja, seu discurso
fala de uma busca do que é fundamental para se entender o Serviço Social de casos.
Richmond, segundo a autora, enfatiza a interação entre “personalidade e meio so‑
cial”, com o pressuposto do ajustamento de indivíduo a indivíduo e entre o homem
e o meio social.
Esse discurso, considerado fundador, sinaliza como objeto da profissão o
ajustamento social, o que é retomado reiteradamente nas definições de Serviço
Social antes da Segunda Guerra Mundial. Fontoura (1959, p. 113) em um livro
publicado em 1ª edição em 1949, afirma que o Serviço Social:
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curso indispensável à solução cristã e verdadeira dos problemas sociais. (Fontoura
1959, p. 123)
Os objetivos para os quais a prática é dirigida reside no domínio das relações psicos‑
sociais ou vida social, e o profissional pode intervir em diversos sistemas‑cliente, em
qualquer nível de necessidade — fortalecimento, prevenção ou cura e pode usar mo‑
dalidades de prática individual, de família ou grupo. (Northen, 1984, p. 43)
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soas. Para os autores, o trabalhador social vai buscar as forças pessoais, familiares
e ambientais. Na mediação das trocas entre a população e seu meio, os trabalhado‑
res sociais encontram diariamente a falta de adaptação (fit) entre as necessidades
da população e seu meio (p. 28). Ao mesmo tempo, para os autores, “os valores do
serviço social constituem um conjunto de crenças que definem o que a profissão
considera ser desejável e bom” (p. 29), o que implica a aceitação da sociedade
dominante.
Toda essa proposta visa fortalecer o funcionamento psicossocial e maximizar
as potencialidades das pessoas. A seu ver, mesmo a prevenção pressupõe a correção
do mau funcionamento social. Esse discurso se ancora no funcionalismo dominan‑
te nos Estados Unidos e expresso nas teorias de Parsons (1902‑79), que publica em
1937 o livro The structure of social action.
No livro Sociedades, Parsons (1969, p. 16) define a ação como “estruturas e
processos, por meio dos quais os seres humanos formam intenções significativas e,
com maior ou menor êxito, as executam em situações concretas”. Volta à relação
entre personalidade e meio, construindo‑se na cultura as orientações da ação pela
personalidade ou pelo organismo, que aprende e se adapta ao meio, sendo as inten‑
ções fundadas em padrões e valores que configuram a ordem social. Para ele, o
processo de adaptação funciona por meio da integração ao sistema social.
O discurso da adaptação se torna mais complexo na articulação das funções
da manutenção do padrão dominante pela integração e realização de objetivos,
tanto pelos governos como pela economia e os sujeitos ou personalidades.
Assim, fundamentos ou pressupostos do Serviço Social, nas perspectivas do
bom funcionamento social, são constitutivos do funcionalismo. Essa teoria, por sua
vez, tem como pressuposto que o sistema capitalista vigente e dominante é consti‑
tutivo da sociedade, e seus valores de adaptação são sistêmicos ou normais.
A ruptura com essa visão normativa e com esse discurso pode ser apontada
em 1942 quando Bertha Capen Reynolds (1942) coloca que o Serviço Social deve
ser visto na estrutura social, assinalando que as concepções que consideram o
Serviço Social como algo “bom” contra os males sociais são estáticas, pois “não
levam em conta que o Serviço Social está dinamicamente unido com a sociedade
contemporânea”.
Deve ser visto na sua construção e sem as divisões de caso, grupo e comuni‑
dade ou de campos de ação e na discussão teórica. Também em relação com os
movimentos sociais, ela considera uma visão amadora aquela que se restringe a
problemas sociais ou à solução de problemas sociais, devendo‑se articular o eco‑
nômico, o social e o psicológico. Além de sair de uma prática autoritária, busca
uma orientação de diagnóstico mais complexa e uma orientação que investigue as
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forças e potencialidades da própria população. Segundo ela, o assistente social deve
integrar o conhecimento de si com o conhecimento do outro e, neste sentido, incor‑
porando os conhecimentos da psicanálise e também considerando as demandas da
população.
Reynolds rompe com a definição de uma helping profession para visão de uma
protecting society em relação aos “desavantajados” (1942, p. 29). Critica a relação
entre o que ajuda e o que é ajudado como relação de superioridade, levantando a
questão de que a ajuda está estruturada pela sociedade, inclusive como a indústria
do socorro e a ausência do Estado.
O pressuposto de que se deve qualificar a ajuda pela ciência ou pela técnica
foi desconstruído por Reynolds como parte da estrutura capitalista e da indústria
da ajuda, configurada como prática autoritária e ainda com uma orientação mora‑
lista e ilusória. A autora conclui pela necessidade de uma aprendizagem contínua
do assistente social na relação com a população em dificuldade e com a população
sem transtorno, também devendo‑se articular a relação profissional com a de su‑
pervisor, de professor, bem como com a de executivo. Considera o Serviço Social
uma arte complexa de articulação entre teoria e prática, em ruptura com a visão
moralista. Salienta a necessidade do profissionalismo, de um corpo de conhecimen‑
tos e competências para o enfrentamento de situações novas de forma qualificada
(“The tasks to be done for human welfare are no our toy”, p. 336). Reynolds chama
a atenção para a necessidade de um significado mais amplo de trabalho social como
na URSS, na Inglaterra e na China, implicando “que em qualquer lugar que se
trabalhe, deve‑se fazê‑lo para o todo”.
Os pressupostos dos discursos de Reynolds, já por influência do marxismo,
foram aprofundados e politizados pelo Radical Social Work dos anos 1970, como
veremos.
Nos anos 1970 constrói‑se também a perspectiva de análise do Serviço Social
por influência das teorias de Foucault, passando a ser visto como uma forma de con‑
trole social (Dechamps, 1994). Verdès‑Leroux (1986) considera que o controle social
implicado no Serviço Social se coloca inicialmente como contenção das “classes
perigosas”, e no processo de industrialização, como forma de obtenção da pacificação
de classes, com todo um “equipamento ideológico” para esse enfrentamento.
Karz (2004) pergunta se podemos e ou devemos definir o trabalho social e
nos leva a refletir sobre ele como um lugar de pertencimento, de identidade, de
execução de tarefas, enfim, como uma questão de disputa de espaços, poder, repre‑
sentações. Esse mesmo autor chama a atenção para o processo de reprodução
ideológica que cabe ao Serviço Social na sociedade capitalista, como uma forma
de controle social, de manutenção do status quo, inclusive articulando‑se ao Esta‑
752 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
do capitalista. Essa função ideológica seria própria do trabalho social no seu pro‑
cesso de trabalho, pois sua matéria‑prima seria as situações sociais significadas
ideologicamente.
A questão da articulação do Serviço Social com a estrutura produtiva do ca‑
pitalismo foi sendo cada vez mais aprofundada (Faleiros, 1972; Iamamoto, 1982;
Netto, 1991; Raichelis, 2009). Nos anos 1970, Faleiros afirmava que “o Serviço
Social se fundamenta na negação dos antagonismos do modo de produção capita‑
lista” (1972, p. 12). Nessa linha o Radical Social Work (Brake e Bailey, 1975;
Statham, 1978; Brake e Bailey, 1980) trouxe uma crítica não só ao capitalismo, mas
também ao liberalismo, ao assinalar que a relação presente no Serviço Social im‑
plica uma desigualdade de poder e se articula à provisão de serviços sociais próprios
das políticas dominantes.
No entanto, considera‑se que a radicalidade na ação às vezes guarda uma
relação com certo humanismo radical, mas levando em conta sua implicação ide‑
ológica no sentido de um compromisso com a classe trabalhadora. Esta foi a
questão‑chave do movimento de reconceituação na América Latina.
Conforme Faleiros (2005), a reconceituação, de linha marxiana, foi situada
como o oposto ao Serviço Social tradicional com o questionamento crítico na busca
de uma fundamentação teórica no marxismo, como fez a Escola de Serviço Social
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais de 1972 a 1975 (Santos, 1982)1
e a Escuela de Trabajo Social de Valparaiso. Não se tratava, nesse caso, de repetir
fórmulas do materialismo vulgar, mas de construir um projeto político da profissão.
Buscava‑se uma articulação, um compromisso, do Serviço Social com as reais ne‑
cessidades da classe trabalhadora em suas relações históricas no contexto das socie‑
dades capitalistas, em geral e em particular (Palma et al., 1972, p. 34).
Faz‑se a crítica não somente ao capitalismo em geral, mas à sua forma depen‑
dente, concentradora e excludente na América Latina. A isso se agrega uma pro‑
funda crítica ao positivismo, ao indivíduo‑problema e à mobilização de recursos.
Ou seja, rompe‑se com a lógica “pessoa/meio ambiente”, própria do funcionalismo,
como acima enunciado. Nesse sentido, toma‑se como referência da ação a funda‑
mentação dialética como ruptura com o linearismo do planejamento, então domi‑
nante no exercício profissional. Há um processo de dupla ruptura: com a ideologia
da adaptação e seu tecnicismo e com a metodologia e a epistemologia positivistas.
A estrutura do planejamento que supõe diagnóstico, definição de objetivos,
execução e avaliação serviu de parâmetro para a definição do Serviço Social no
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processo desenvolvimentista, com diferentes expressões, sejam voltadas para a
integração no sistema dominante, seja para uma ação comprometida com a mudan‑
ça, configurando‑se o assistente social como agentes de mudança (Lima, 1974;
Celats, 1986). Na perspectiva de planificação enfatiza‑se, por um lado, o processo
de participação e democracia, ou por outro, o metodologismo (Santos, 1982) próprio
da racionalidade técnico‑burocática (Faleiros, 2010).
No texto do Celats (1986) há ênfase para a participação. O Serviço Social é
situado como uma profissão integrada no setor público ou privado, configurando
um tipo de especialização do trabalho na sua divisão social e que contribui para o
fortalecimento (calificación) dos usuários e das organizações populares, com uma
“privilegiada dimensão política”, definindo‑se o profissional como “um ator polí‑
tico por excelência”, atuante em espaços institucionais que são por sua vez contra‑
ditórios e ao mesmo tempo limitados.
Nesse texto (Celats, 1986, p. 33) afirma‑se que o Serviço Social, no contexto
institucional, não tem se identificado com a opção de assumir atitudes críticas
diante das políticas sociais. Por sua vez, ao sistema capitalista não interessa uma
definição muito clara do papel que o Serviço Social deve cumprir, configurando‑se
uma diversidade de ações tendentes tanto ao burocratismo como ao espontaneísmo
e ao empirismo.
Já no início dos anos 1980 busca‑se aprofundar a inserção do Serviço Social
nas relações de trabalho institucionalizadas. Weisshaupt (1985) considera que ob‑
jetivos profissionais e objetivos institucionais se articulam, pois o profissional é um
agente subordinado na hierarquia, e seu objeto é estabelecido na relação de poder
institucional, confirmando‑se em sua pesquisa que é dominante a integração da
população aos canais institucionais.
Essa vertente da análise institucional (Faleiros, 2007; Martin e Royer, 1987;
Sousa, 1982; Weisshaupt, 1985; Serra, 2000; Bisneto, 2009) considera não só as
relações de poder, como os processos de trabalho, a condição de contratos na lógi‑
ca capitalista, mas diversificando‑se sua análise conforme o tipo de organização
onde se inscreve, por exemplo: organizações estatais, empresariais, não governa‑
mentais, de trabalhadores e mesmo autônomas (Cefess/Abepss, 2009). Essa diver‑
sidade ou heterogeneidade de ações advém da própria diversidade de inserção do
Serviço Social.
É nessa diversidade e no confronto teórico e histórico de sua formação e
formulação que se coloca hoje o desafio de se encontrar uma definição que possa
agregar propostas de ação, valores e métodos. O propósito do Serviço Social, se‑
gundo a Associação de Assistentes Sociais Norte‑Americanos (NASW, 2011) é a
promoção do direito e da autodeterminação, com uma atitude de empatia para com
754 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
o sujeito, mas levando em conta a cultura, as linguagens, as classes, as diversidades
étnicas, habilidades, orientações religiosas, sexuais e diferentes expressões dos
indivíduos. Afirma ainda que os assistentes sociais devem considerar “a pessoa no
meio ambiente” (person‑in‑environment) com níveis macro e micro, com habilida‑
des para influenciar mudanças políticas e desenvolvimento nos níveis local, esta‑
dual e federal, considerando os sistemas de cuidado, além de promover a pesquisa.
Diferentemente da relação de pessoa e ambiente, a definição considera a pessoa no
seu contexto.
O exercício da profissão, presente na definição da Federação Internacional de
Trabalhadores Sociais (Fits, 2011), implica considerar a complexidade da ação, e
não apenas a diversidade da intervenção, articulando‑se a mudança com a resolução
de problemas e a participação na busca dos direitos humanos e da justiça social:
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011 755
Na realidade, o exercício do Serviço Social não se tensiona apenas entre pro‑
postas diferentes por parte dos profissionais, mas entre propostas societárias de
mudanças. Nesse sentido, os profissionais brasileiros mobilizados pelas suas orga‑
nizações profissionais (CFESS‑Cress‑Abepss) construíram uma proposta ético‑po‑
lítica com compromisso democrático, da cidadania, de participação política e de
crítica ao capitalismo e ao neoliberalismo “na luta pela construção de um novo
projeto societário que tem como princípios fundamentais a liberdade e a justiça
social” (CFESS‑Cress, 1996). Essa perspectiva está presente no Código de Ética
Profissional e vem sendo reafirmada nas manifestações políticas dos profissionais,
o que se pode constatar nos sites do CFESS e dos Cress.
O CFESS (2011) propôs uma definição de Serviço Social no Congresso de
Bem‑Estar Social de Hong Kong de 2010 assim formulada:
O(A) trabalhador(a) social atua no âmbito das relações sociais, junto a indivíduos,
grupos, famílias, comunidade e movimentos sociais, desenvolvendo ações que forta‑
leçam sua autonomia, participação e exercício de cidadania, com vistas à mudança nas
suas condições de vida. Os princípios de defesa dos direitos humanos e justiça social
são elementos fundamentais para o trabalho social, com vistas à superação da desigual‑
dade social e de situações de violência, opressão, pobreza, fome e desemprego.
Considerações Finais
A redefinição do Serviço Social se articula a um processo histórico de crítica e
autocrítica construído na interlocução da profissão com os movimentos sociais e lutas
para mudar as condições particulares de vida das classes trabalhadoras e das condições
gerais de reprodução da força de trabalho e do modo de produção capitalista.
Mesmo o fato de o Serviço Social emergir como profissão no contexto do
capitalismo industrial no final do século XIX e início do XX não impediu que in‑
756 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
corporasse valores e ações próprios da filantropia religiosa, não deixando de ser um
anacronismo. Anacronismo que se enraizava na ideologia religiosa das massas e no
interesse de legitimar a ordem dominante pela “bondade”.
No entanto, já na época de sua fundação emergiram as polêmicas sobre Ser‑
viço Social. Por exemplo, Jane Adams, contemporânea de Mary Richmond, defen‑
dia princípios feministas, de democratização, de respeito à diversidade cultural e
de paz. Tanto assim que foi contemplada com o Prêmio Nobel da Paz (Travi, 2009).
Como vimos acima, Bertha Reynolds já se inspirou no marxismo para uma crítica
à visão adaptativa do Serviço Social em 1942.
No processo de acumulação capitalista, os exercícios profissionais foram se
construindo articulados a uma expressão de controle dos segmentos dominados, de
legitimação ideológica da ordem, de fragmentação de problemas, de individualiza‑
ção das demandas sociais, de integração aos objetivos institucionais. No entanto,
numa perspectiva de politização desses exercícios, de pressão das organizações e
movimentos sociais e de crítica à relação entre Serviço Social e capitalismo, vários
grupos de profissionais, tanto na Europa, como nos Estados Unidos e na América
Latina, produziram uma análise de seu contexto e de suas funções, ao mesmo tem‑
po que se mobilizaram para uma perspectiva de mudança, de defesa de direitos, de
participação e de articulação das demandas cotidianas diversificadas a projetos
societários de transformação das relações de dominação e de exploração na busca
de afirmação dos direitos humanos, da justiça social, da equidade, com respeito à
diversidade social, cultural e de orientação sexual, religiosa ou política.
O gráfico a seguir assinala essas dimensões, as quais foram sendo historica‑
mente construídas de forma não só contraditória, mas também polêmica.
Em primeiro lugar, é preciso salientar que o conceito de “meio” (environment)
é profundamente criticado na visão marxista, pela consideração da estrutura capi‑
talista e da produção/reprodução das desigualdades onde se insere o Serviço Social.
A estrutura socioeconômica se articula à dimensão política do Estado, da cidada‑
nia e das políticas, mas são ligadas, na democracia, a direitos humanos e direitos
reconhecidos (ver linhas laterais do triângulo), por um lado, e à participação, que
envolve organização, mobilização, ação política. O Serviço Social se articula a
uma visão política da sociedade e aos valores de justiça e equidade no enfrenta‑
mento da desigualdade.
No centro do triângulo observamos que as demandas sociais hoje são anali‑
sadas no contexto da estruturação sociopolítica e econômica, do saber profissional
e das significações e expressões dos sujeitos em relação com sua diversidade, suas
trajetórias, seus sofrimentos, exigindo do profissional que não só as tome em con‑
sideração, mas as articule com os direitos e procedimentos/instrumentos, bem como
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com as dimensões singulares e particulares das relações, percepções e condições
da situação em relação às determinações mais gerais e em seu significado geral.
Trata‑se, assim, de um processo complexo de mediações políticas numa estrutura
marcada pela exploração e pela dominação do ser humano e pela desigualdade no
contexto capitalista e num Estado neoliberal. Desta forma, há que se considerar o
gráfico a seguir de forma contraditória e conflituosa, como é o próprio Serviço
Social na sua compreensão dialética. Nessas mediações estão implicadas as relações
de poder e processos de trabalho nas instituições, onde se exige o deciframento
crítico pela relação estrutura/conjuntura/situação e pela relação teoria/prática/.
valores/movimentos profissionais e sociais/sujeitos em relação.
Gráfico I
Dimensões implicadas historicamente na redefinição do Serviço Social
Demandas
Direitos
Participação humanos/direitos
SUJEITOS EM RELAÇÃO
movimentos diversidades
INSTITUIÇÕES
Relação teoria/prática/valores
Valores de justiça, Estado
equidade. Saber cidadania
e organização políticas
758 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 108, p. 748-761, out./dez. 2011
Recebido em 21/8/2011 ■ Aprovado em 5/9/2011
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Um projeto para o Serviço
Social crítico
A critical Social Work project
R esumo A bstract
As transformações sociais contem- Contemporary social transformations,
porâneas, operadas pela programática operated by the neoliberal program under
neoliberal sob o comando do capital the command of financial capital, bring
financeiro, trazem novos desafios ao new challenges to the group of citizens
conjunto de cidadãos e de homens e and men and women who live by the sale
mulheres que vivem da venda de sua força of their labor power. Social workers,
de trabalho. Os assistentes sociais, individually and collectively, are not
individual e coletivamente, não são alheios separate from this reality. The profession
a esta realidade. A profissão já se was characterized by its confrontation with
caracterizou por enfrentar estes desafios, these challenges and its questioning and
questionando e problematizando seu papel analysis of its role in society, in its attempt
na sociedade, tentando assumir perfis mais to assume more critical profiles and
críticos e comprometidos com os interesses commitments to the interests of workers
dos trabalhadores e dos setores subalter- and the subaltern sectors. An example of
nos. Exemplo disso são o “Movimento de this is the “Reconceptualization Move-
Reconceptualização” e a posterior tentativa ment” and the later attempt to define an Carlos Montaño
de definir um “Serviço Social Alternativo” “Alternative Social Service” concerned
preocupado com o sentido de sua prática, with the meaning of its practice, with the Doutor em Serviço Social.
com o processo de conhecimento crítico, process of critical knowledge, with a
com a crítica ao capitalismo e às situações criticism of capitalism and its situations of Professor e investigador da Universidade
de injustiça social. Os desafios atuais levam social injustice. The current challenges Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
a, superando anteriores debilidades, include overcoming earlier weaknesses, Documento original apresentado no
construir coletivamente um projeto ético- collectively constructing an ethical- Fórum de Debate La profesionalización
político profissional que possa enfrentar political professional project that can del Trabajo Social en el siglo XXI:
com competência e compromisso, no interior competently and committedly confront, at rupturas y continuidades – de la
das forças sociais progressistas, as the heart of progressive social forces, the Reconceptualización al proyecto Ético-
condições nas quais vivem os trabalha- conditions in which workers live (with or Político, no marco do Encuentro
dores (com e sem emprego) e os demais without employment) as well as other Latinoamericano de Trabajo Social.
setores subalternos. subaltern populations. Universidad Nacional de La Plata,
Palavras-chave: Serviço Social crítico, Key words: critical Social Work, ethical- Argentina, 25 a 27 de agosto de 2005.
projeto ético-político, Serviço Social e political project, Social Work and neolibe- Tradução de Santo Gabriel Vaccaro do
neoliberalismo. ralism. original Un proyecto para el Servicio
Social crítico.
KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
142 Carlos Montaño
1 O capital e sua crise: inflexões nas resses hegemônicos do grande capital) e sua defe-
sa dos direitos e conquistas sociais (a partir de de-
políticas sociais e no Serviço Social
mandas e de lutas das classes trabalhadoras e su-
balternas); isto reflete uma prática profissional que
1.1 O capital, as políticas sociais e o Serviço é essencialmente política, inserida no interior das
Social contradições entre as classes, ocupando um espa-
ço de disputa de interesses5;
É
com o desenvolvimento do capitalismo · o Serviço Social, condicionado pelas estruturas soci-
monopolista, sua expansão produtivo-co- ais e pelas demandas institucionais (geralmente re-
mercial consolidada após a Segunda Guerra presentantes dos interesses hegemônicos), ainda as-
(1945) e com as lutas de classes, que surge e se expande sim pode apresentar um certo protagonismo e uma
um padrão de resposta às manifestações da “questão soci- margem de manobra relativa ao orientar sua ação
al”, fundamentalmente mediante a intervenção das políti- profissional; na medida em que dirige seu processo de
cas sociais estatais1 . No marco destas, cria-se um espaço formação não meramente para o atendimento direto
socioocupacional que será parcialmente ocupado por uma das demandas institucionais, mas formando um pro-
emergente profissão, o Serviço Social2 . Este surgimento fissional crítico e competente, que organize o coletivo
da profissão muitas vezes foi confundido com a evolução em entidades fortes e representativas e que consolide
das “formas não-profissionais de ajuda” para sua códigos de ética claramente orientados em certos va-
“profissionalização”3 . Na verdade, a profissão de Serviço lores definidos coletivamente, o assistente social pode
Social surge e se expande embrionariamente vinculada ao ver reforçada sua margem de manobra para uma prá-
surgimento e à expansão das políticas sociais estatais. Es- tica profissional que, sem eliminar os
tas últimas constituem-se, assim, na “base de sustentação condicionantes sistêmicos, privilegie a garantia
funcional-ocupacional” da profissão4 . O assistente social dos direitos sociais conquistados.
surge como implementador das políticas sociais; dessa for- Logicamente esta última determinação da prática pro-
ma, o que sucede com estas, atinge e afeta aquele. fissional só pode ter fundamento a partir da existência
Assim, as políticas sociais constituem instrumentos de de um projeto profissional com suas dimensões ética e
intervenção estatal funcionais ao então projeto hegemônico política, construído coletivamente, que reforce este
do capital (produtivo), embora tensa e contraditoriamente protagonismo relativo do corpo profissional. Sem isso,
representem conquistas das classes trabalhadoras e su- deriva-se inevitavelmente no “messianismo” das vonta-
balternas. Direitos conquistados para ter certas necessi- des e opções individuais ou no “fatalismo” que reside na
dades atendidas pelo Estado, o que por sua vez significa resignação a respeito dos condicionantes sistêmicos.
que o status quo e a acumulação capitalista permanecem
inalterados. 1.2 A crise do capital e a resposta neoliberal
O sentido social das políticas sociais (sua função de
reprodução do sistema socioeconômico e político e do É consenso entre os intelectuais que o sistema capita-
status quo) e sua tensão e contradição internas (consti- lista, após quase 30 anos de clara expansão econômica
tuir direitos conquistados pelas classes subalternas) são (1945-1973), ingressa em uma profunda crise: do seu pa-
transferidos para aqueles atores que com elas trabalham: drão de produção (fordista), do seu sistema de regulação
os assistentes sociais. Estes passam a ter, em sua prática, (keynesiano), do seu Estado (de Bem-Estar Social), do
o sentido social das políticas sociais. Com isto, aparece tipo de trabalhador (especializado), da sua racionalidade
uma primeira determinação da prática profissional: (positivista), crise fiscal, do padrão dólar, das fontes
· o Serviço Social constitui (a partir de sua vinculação energéticas (petróleo), do subconsumo. Na realidade, o
embrionária com as políticas sociais) uma engre- que se observa hoje é uma crise geral, sistêmica.
nagem na reprodução das relações sociais e do Diante de tal fenômeno, a fração da classe hegemônica
sistema dominante; sua prática social resulta fun- (o grande capital financeiro) aliada aos capitais nacionais
cional à manutenção da ordem social e às rela- desenvolve uma nova forma de enfrentar a crise, por um
ções capitalistas (a exploração do trabalho, o con- lado ampliando a exploração do trabalhador e, por outro, sub-
trole social, a diminuição das lutas sociais e a acu- jugando os pequenos e médios capitais. Surge assim, posteri-
mulação de capital). ormente a um surto de ditaduras militares, a nova resposta
Mas esta afirmação não pode ignorar as outras duas do capital à crise: o projeto neoliberal. A programática
determinações desta prática: neoliberal representa, portanto, a atual estratégia
· o Serviço Social desenvolve sua intervenção em hegemônica de reestruturação geral do capital (que para
um espaço de tensão e contradição entre sua a América Latina segue o receituário do Consenso de Wa-
função de reprodução do sistema (a partir dos inte- shington, de 1989) frente à crise e às lutas de classes, e que
KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
Um projeto para o Serviço Social crítico 143
deriva basicamente em três frentes articuladas: o combate da sociedade, particularmente em relação às já precárias
ao trabalho (às leis e políticas trabalhistas e às lutas sindi- estruturas de atenção, assistência e segurança social. Pas-
cais e da esquerda) e as chamadas “reestruturação produ- sa-se da política social e da assistência social como um
tiva” e “(contra-)reforma do Estado”6 . direito do cidadão (garantido pela ação estatal) para a ação
voluntária, filantrópica, assistencialista, clientelista (desen-
1.3 Repercussões nas conquistas das classes volvida no âmbito das organizações e pelos indivíduos da
subalternas e no Serviço Social sociedade civil).
Por outro lado, observam-se inflexões na profissão
Nesse sentido, dadas as substanciais transformações repercutindo significativamente em pelo menos três ní-
no mundo do trabalho, de tal forma a afetar a realidade veis: 1) em sua condição de trabalhador – aumentando
das classes trabalhadoras, principais usuárias das políti- o desemprego profissional, precarizando o vínculo traba-
cas sociais, e dadas as alterações desenvolvidas no âmbi- lhista, levando a uma tendência à “desprofissionalização”;
to dos Estados nacionais, organismos responsáveis, por 2) em sua demanda direta e indireta – aumentando e
excelência, pelas respostas às refrações da “questão so- diversificando as manifestações da “questão social” en-
cial”, sendo as políticas sociais mediações entre o Estado frentadas pelo assistente; e 3) em sua prática de campo
e as classes sociais, pode-se então afirmar que, conse- – reduzindo os recursos para implementar serviços soci-
qüentemente, as políticas sociais no atual contexto ais; demandando o “tarefismo” ou o “ativismo” que su-
neoliberal são substancialmente alteradas em suas orien- bordina a qualidade do atendimento à quantidade; com a
tações e em sua funcionalidade. “desuniversalização” das políticas sociais, atuando o as-
Como solução parcial à crise capitalista, o neoliberalismo sistente social em micro-espaços; com tendência à
pretende a reconstituição do mercado livre, reduzindo e in- “filantropização” e ao “assistencialismo” e, inclusive, à
clusive eliminando a intervenção social do Estado em di- “mercantilização” dos serviços sociais (retirando-lhes a
versas áreas e atividades. Assim, nessa nova estratégia dimensão de direito de cidadania).
hegemônica (neoliberal) do grande capital, é concebido um
novo tratamento à “questão social”. Cria-se uma modali- 2. A necessidade de uma resposta profis-
dade polimórfica de respostas às necessidades individuais,
diferentes conforme o poder aquisitivo de cada pessoa. Por- sional progressista, crítica, comprometida e
tanto, tais respostas não constituiriam um direito, mas uma competente
atividade filantrópica/voluntária ou um serviço
comercializável; também a qualidade dos serviços respon- É assim que a situação atual desafia a profissão a en-
de ao poder aquisitivo da pessoa; a universalização cede frentar estas inflexões e construir respostas coletivamen-
lugar à focalização e à municipalização; a “solidariedade te. Claro que as possibilidades de concretização destes
social” passa a ser localizada, pontual, identificada com a desafios profissionais não são alheias às tendências soci-
auto-ajuda e com a ajuda-mútua. ais e às correlações de forças existentes.
É assim que, no que concerne ao novo tratamento da
“questão social”, a orientação das políticas sociais esta- 2.1 P r o j e t o s s o c i e t á r i o s e p r o j e t o s p r o f i s -
tais é alterada de forma significativa. Elas são privatizadas, s i o n a i s
transferidas ao mercado e/ou inseridas na sociedade civil;
por sua vez, contra o princípio universalista e de direito de Atualmente, é possível identificar a disputa de, pelo
cidadania, são focalizadas, isto é, dirigidas exclusivamente menos, três grandes projetos de sociedade: a) o projeto
aos setores portadores de necessidades pontuais, o que neoliberal (de inspiração monetarista, sob o comando do
permite sua precarização; finalmente, elas são também capital financeiro, que procura, no atual contexto de crise,
descentralizadas admi- desmontar os direitos tra-
nistrativamente, levando balhistas, políticos e so-
as regiões pobres a ter O Serviço Social desenvolve sua ciais historicamente con-
que se contentar com a quistados pelos trabalha-
administração de recursos intervenção em um espaço de tensão dores, acentuando a ex-
insuficientes para suas ploração de quem vive do
respostas sociais7 . e contradição entre sua função de trabalho e sugando os
Com isto ocorrem, pequenos e os médios ca-
por um lado, claras per- reprodução do sistema [...] e sua defesa pitais); b) o projeto refor-
das de direitos conquis- mista (tanto em sua ver-
tados pelos trabalhado- dos direitos e conquistas sociais... tente liberal-keynesiana
res e setores subalternos como social-democrata,
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representando o expansionismo do capitalismo produtivo/ · Um projeto profissional não é algo isolado, mas
comercial conjuntamente com algum grau de desenvolvi- necessariamente inspirado em e articulado com
mento dos direitos civis, políticos, sociais e trabalhistas) e c) projetos societários. Portanto, o projeto profissio-
o projeto revolucionário (fundamentalmente de inspira- nal importa, redimensiona e se insere em determi-
ção marxista que busca, gradual ou abruptamente, a subs- nados valores, ideologias, projetos, articulado com
tituição da ordem capitalista por uma sociedade sem clas- atores sociais que representam os valores, ideolo-
ses, sem exploração e regida pelo trabalho emancipado). gias e projetos profissionais hegemônicos. Além
Destes projetos se desprendem diversos valores e prin- disso, os projetos profissionais não só se inserem
cípios8 que orientam comportamentos e valores profissio- em projetos e valores sociais mas estão, de alguma
nais. Em termos gerais, pode se constatar hoje um certo maneira, condicionados pelo lugar que ocupam na
ecleticismo profissional no sentido de reunir componen- correlação de forças na sociedade.
tes dos diversos projetos sociais (com seus valores e prin- · Um projeto profissional, se legítimo e plural, mes-
cípios antagônicos). Quando isto ocorre, fica comprome- mo que articulado com uma determinada correla-
tida qualquer tentativa de construção de um projeto ético- ção de forças internas, desdobra-se em um projeto
político profissional realmente progressista; o resultado é de formação profissional, em um código de éti-
um mosaico de partes constitutivas de tais projetos reuni- ca, em uma organização acadêmica e/ou
das acriticamente, o que acaba por reforçar o projeto corporativa profissional, que estabelecem rela-
hegemônico da classe dominante. Isto leva à necessidade ções e interlocução com atores sociais em função
de explicitar características de um novo projeto ético-po- da articulação de seus valores e projetos.
lítico profissional capaz de fazer frente ao contexto · Considerando a “questão social”9 , as lutas de classes
neoliberal, tal como se pretende construir. e as desiguais condições de vida, a partir da relação
de exploração entre capital e trabalhadores,
2.2 O projeto ético-político profissional: um logicamente um projeto ético-político profissional deve
projeto em processo de construção coletiva ser sensível aos interesses das classes trabalha-
doras e às populações mais desfavorecidas. Os
Assim, toda ação que procure enfrentar e reverter as interesses das classes trabalhadoras e dos grupos
atuais tendências neoliberais deve partir das seguintes subalternizados devem permear um projeto como tal.
considerações:
· Deve ser determinada a partir da construção/con- 2.3 Fundamentos do projeto profissional
solidação não apenas de ações individuais, mas crítico e progressista a partir das perspectivas
de um projeto profissional hegemônico que inte- histórico-críticas
gre e articule as dimensões ética e política. Pro-
jeto este construído democraticamente pelo cole- Torna-se assim necessária a clara caracterização e
tivo profissional. Por isso, mais do que um proje- construção de um projeto profissional crítico e progres-
to significa um “processo” que está em cons- sista a partir de “tendências histórico-críticas”, fundado
trução. A polêmica, os debates, as produções teó- em princípios e valores tais como: a liberdade (não só
ricas, a correlação de forças internas da profis- formal, negativa, mas que considere a potencialidade), a
são, que agrupa tendências e subtendências, tudo democracia substantiva (e a democratização); a cida-
isso constitui o processo de construção de um pro- dania e sua expansão, ampliando os direitos humanos,
jeto ético-político profissional. civis, políticos e sociais; a justiça social (e a igualdade
· Porém, o pluralismo e o consenso não substituem a social, que não se confundem com a identidade); as polí-
necessidade de constituir maiorias, construção de- ticas sociais universais, não-contributivas, de qualidade
mocrática e plural, sem prescindir de uma clara e constitutivas de direito de cidadania; a ampliação da es-
direção social legítima. Pluralismo e respeito às fera pública; a eliminação de toda forma de explora-
minorias não eliminam a legítima hegemonia da mai- ção, dominação e submissão como sistema de convi-
oria, não equivalem à soma das partes, da mesma vência social e de desenvolvimento de uma essencial ci-
forma como consenso não equivale à ausência de dadania e da emancipação humana.
dissensos; aquele se constrói a partir da articula- O fato do assistente social estar no contexto das con-
ção (dada a partir de determinada correlação de tradições e dos conflitos entre classes (o que não significa
forças) destes, superando-se assim os vazios “con- que possua um papel “mediador” entre elas) faz deste
sensos do óbvio” – ou seja, aqueles acordos acei- profissional, particularmente, um ator essencialmente po-
tos por todas as tendências, que de tão “lavadas”, lítico. Político (não partidário) no sentido de participante
são esvaziadas de seus conteúdos essenciais, como desta relação conflituosa entre as classes. Relação
declarações de “combate à pobreza”, etc. (onde atua o assistente social) que se expressa de várias
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Um projeto para o Serviço Social crítico 145
formas: déficit de consumo, incapacidade de acesso a de- criticar algo. Neste caso, o marco referencial para ava-
terminados bens e/ou serviços, questões salariais, desem- liar um postulado ou um objeto não é o contraste com a
prego, discriminação (de todas as formas: sexual, de gê- realidade, mas a subjetividade dos juízos de valor de um
nero, étnica e racial, xenofobia, etária, etc.), mortalidade, indivíduo. Quando se rechaça algo, critica-se a partir de
dependência química, entre tantas outras manifestações um juízo de valor.
da “questão social”. Nesse sentido, a falta de visão de tal A reflexão crítica do Serviço Social (ou a busca de um
situação certamente vem para reforçar (inclusive de for- Serviço Social crítico) sustenta-se nas teorias críticas (aque-
ma inconsciente) a situação existente e os interesses das las que buscam a verdade a partir do reflexo teórico apropri-
classes dominantes (que direta ou indiretamente se apre- ado da realidade) sobre a estrutura e as dinâmicas sociais. É
sentam como empregadoras do profissional). Faz-se ne- contra esta reflexão (crítica) que se desenvolve uma crítica,
cessário, então, tornar explícito o compromisso ético-po- com sentido de rechaço, censura, juízo de valor. É nesse últi-
lítico através da defesa dos valores do trabalho – tra- mo sentido que textos/autores “contestadores” serão referi-
balho emancipado do capital, contra a exploração e a do- dos, não como críticos, mas como críticas.
minação do homem sobre o homem – e da defesa dos
direitos historicamente conquistados pelas classes tra-
3.1 As diversas manifestações de “contes -
balhadoras e pelos setores subalternos – direitos tra-
balhistas, sociais, políticos e de cidadania. tação” ao projeto ético-político crítico e
Isso significa o comprometimento do assistente social progressista e às “perspectivas histórico-
em centrar sua ação profissional nesses valores, o que su- críticas”: seus argumentos centrais
põe um claro corpo ético-político (Códigos de Ética) que
oriente e controle o exercício profissional a partir dos con- Efetivamente, durante quase duas décadas, o Serviço
sensos criados pelos coletivos profissionais e da articula- Social na América Latina sofreu uma espécie de imobilismo
ção com outros atores institucionais e sociais, objetivando intelectual. Pouco debate, pouca polêmica, pouco
reforçar seu papel na correlação de forças existente. enfrentamento de idéias. Como se todos pensassem igual,
como se todas as contribuições fossem confluentes. En-
tre outras coisas, isto se devia à ênfase metodologista que
3 O debate de idéias no interior da profissão imperava na produção acadêmica e nas preocupações com
as práticas singulares, assim como a quase ausência de
A partir destas propostas – que têm por objetivo con- produção teórica mais recente.
tribuir com um processo coletivo de criação de um projeto A saída à luz de novas análises sociais no novo con-
ético-político profissional, crítico, competente e compro- texto neoliberal, de novas reflexões sobre o papel social
metido com os valores já enunciados, dotando o profissio- da profissão, partindo de categorias e conceitos centrados
nal daquele relativo protagonismo dentro das determinantes na emancipação do trabalho, na plena cidadania, ten-
estruturais no campo tenso e contraditório que enquadra do como referenciais teóricos autores, clássicos ou não,
a prática profissional –, começam a surgir contestações e de sólido fundamento dialético e crítico, tudo isso mobili-
enfrentamentos10. Mas, poderiam entender-se estas con- zou novas e velhas adormecidas energias e polêmicas.
testações como uma crítica à crítica do Serviço Social Amplos setores do coletivo profissional “contagiaram-se”
(ou a um Serviço Social crítico)? com esta nova onda de debate crítico e comprometido12 ,
Para começar, o conceito de crítica aceita duas com estes novos questionamentos e considerações que
acepções bem diferentes. Primeiramente, crítica como tentavam entender de forma diferente questões centrais
busca da verdade, confrontando a teoria com a realida- para a profissão que até então não haviam encontrado
de (com a prática social)11 . Neste caso, o objetivo da respostas satisfatórias.
crítica é a fiel reprodução teórica da realidade; a verdade, O simples fato de despertar o adormecido espírito de
que existe na realidade material, deve ser corretamente estabelecer polêmica entre idéias no interior de nossa pro-
refletida na teoria. Um postulado teórico é verdadeiro ou fissão já constitui um elemento extremamente positivo
falso não por sua “aplicabilidade” a uma realidade singu- deste novo debate.
lar, não pela “adequação” a este ou aquele método consi- Não obstante, nada consistente reúne unanimidade de opi-
derado científico, mas por sua fidelidade ao objeto em ques- niões na história humana. Assim surge a reação e o
tão. Crítica aqui significa busca da verdade, tendo a reali- enfrentamento, contestando e/ou rejeitando a tentativa de in-
dade como critério de veracidade e a teoria (crítica) como centivar a construção de um projeto ético-político, crítico e
fiel reflexo daquela. comprometido. Não sem um grande número de significativos
Diferentemente, o segundo significado de crítica (tal- equívocos de interpretação (cuja análise de conjunto seria te-
vez o mais utilizado no cotidiano) remete à ação de jul- diosa e desnecessária), essa “contestação”, recolhida nos tex-
gar desfavoravelmente, censurar ou rechaçar algo: tos já relacionados, apresenta os seguintes argumentos:
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Um projeto para o Serviço Social crítico 147
Trabalho Social] é acunhá-lo, servi-lo [...] Estas ori- […] a partir do momento em que o pobre se be-
gens marcam sua substanciação, a especificidade neficia do sistema de assistência deve, por isso
conservadora ou reacionária da profissão. A mesmo, submeter-se a vários controles médicos.
legitimação [da profissão] [...] contém sempre o Com a Lei dos pobres aparece, de forma ambí-
pecado original da filantropia, ao serviço da classe gua, algo importante na história da medicina
burguesa, dentro do sistema capitalista. Netto acu- social: a idéia de uma assistência controlada, de
sa de sincretismo o Serviço Social [...]. A obses- uma intervenção médica que tanto é uma ma-
são que manifesta pela reprodução da socieda- neira de ajudar os mais pobres[…] como um
de [...] o conduz a tomar uma atitude detratora controle através do qual as classes ricas ou seus
para com os S. S. institucionais e seus agentes, representantes no governo asseguram a saúde
os profissionais, pela sua ação a favor dos inte- das classes pobres e, por conseguinte, a prote-
resses burgueses (CORTINAS, 2003a, p. 17, 18, 23, ção das classes ricas.
grifo nosso).
Deve-se considerar as análises foucaultianas como um
Na nossa profissão existe uma polêmica mais “ataque” ao médico ou à medicina? É este autor um
de corte ideológico do que científico, na qual cer- “inquisidor medieval” do profissional da saúde? É este um
to setor de trabalhadoras e trabalhadores soci- “inimigo interno” da instituição hospitalar?
ais afirmam que se trata de uma profissão cria- Parece, então, que “amoldar” a imagem da realidade
da pelas classes dominantes para contribuir a aos desejos não deveria fazer parte do horizonte intelec-
manter o status quo social [...] Na verdade é o tual. Se a análise da história exibe a tensão existente na
momento para que, no lugar de fazer afirma- prática profissional do Serviço Social – por um lado forja-
ções de ruptura com a profissão de trabalho soci- da na função social que as políticas sociais transferem à
al, façam um esforço por contribuir a que o la- profissão (estas como parte de estratégias capitalistas,
bor profissional seja realizado cada vez com mai- ainda que permeadas por demandas das classes subalter-
or eficácia e com melhores condições nas), e por outro, no relativo protagonismo profissional para
institucionais [...] Seguir pelo caminho de afir- reconduzir sua formação e ação –, este fato não deve ser
mações desintegradoras unicamente confirma o escondido ou rejeitado com a finalidade de não “ferir”
perigo da ideologização [...] (SAN GIÁCOMO, in uma imagem profissional que se considera ideal. O com-
DI CARLO, 2004, p. 88,89- 97, grifo nosso). promisso com a verdade deve ser superior à necessidade
corporativa de dotar a profissão da imagem desejada.
É interessante esta preocupação com um suposto “ata- Além disso, a possibilidade de um relativo protagonismo
que” à profissão, partindo de seus supostos “inimigos inter- profissional (que não elimina completamente os deter-
nos” ao, supostamente, “diabolizar” o Serviço Social, “acu- minantes sistêmicos) para orientar esta prática no sentido
sando-o” de reacionário e servil aos interesses do capital. de reforçar direitos conquistados por trabalhadores e ci-
Será que a diferença entre uma “acusação” e uma aná- dadãos, em geral só encontra terreno fértil na análise crí-
lise histórica não é percebida? É possível discrepar das tica da realidade histórica, que determina a particularida-
análises históricas feitas pelos autores das “perspectivas de da profissão do Serviço Social.
histórico-críticas”, mas resulta sintomático que estas se- Por outro lado, resulta claramente endogenista (voltar-
jam rotuladas e consideradas como “acusações” que se-á a isto) pensar que a constatação de que a profissão
desqualificam a imagem profissional. Como deveria pro- cumpre um papel particular na reprodução do sistema social
ceder um intelectual cuja análise histórica sobre a inserção (acumulação de capital, manutenção das relações sociais e
do Serviço Social no capitalismo monopolista revela uma do status quo) acarretaria automaticamente no suposto ca-
certa funcionalidade (funcionalidade em nítida tensão com ráter “conservador” de seus membros; ou supor que este
as orientações ético-políticas individuais e coletivas dos as- papel pode ser revertido pelo posicionamento “progressista”
sistentes sociais) da profissão a serviço da reprodução do dos mesmos. O caráter funcional da profissão (ainda que
sistema e do status quo? Deveria negar os resultados da tenso e complexo) depende mais dos determinantes estrutu-
investigação e da história para não “atacar a imagem pro- rais e da correlação de forças e dinâmicas sociais do que das
fissional”? Deveria criar uma imagem “positiva” da profis- opções de seus membros (sejam estes “conservadores” ou
são, ainda que historicamente infundada e falsa? não). Uma coisa é conceber o papel do Serviço Social na
Em uma perspectiva claramente diferente da tradição reprodução da ordem dominante, outra é supor que o indiví-
marxista, Michel Foucault analisa o desenvolvimento da duo é quem é conservador. Este equívoco é extremamente
medicalização como parte de um projeto de controle, de comum na profissão, o que levou, algumas vezes, a se atri-
poder social dos setores dominantes sobre a população. buir um caráter necessariamente conservador aos assisten-
Para Foucault, (1985, p. 95), tes sociais de outrora (os precursores) ou a se considerar o
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assistente social como “agente de transformação”. Nem ne- presentam as relações entre os povos desses países. Mas
cessariamente “conservador” nem “agente de transforma- aqui não se está falando de governos, e sim de debates
ção”. O papel, o sentido social da profissão, depende mais profissionais, de perspectivas teórico-metodológicas e éti-
dos resultados das lutas de classes, dos projetos societários co-políticas, enfim, de projetos profissionais.
em discussão e da estratégia hegemônica, do que das con- Se assim fosse, se as “perspectivas histórico-críticas”
cepções e opções dos seus membros. fossem identificadas com o Brasil, seria então legítimo pen-
sar seus contestadores como a “perspectiva uruguaia”?16
(II) O apelo nacionalista, ao homogeneizar as Nesse suposto caso, dever-se-ia pensar em uma “disputa
considerações críticas através da expressão “perspec- entre nações”? Este apelo nacionalista logicamente consti-
tiva brasileira”. tui uma forma de escamotear ou driblar o verdadeiro fun-
Os contestadores das “perspectivas histórico-críticas” damento da polêmica: não se trata de um enfrentamento
realizam uma homogeneização imprópria, identificando es- entre nações, mas de um debate entre perspectivas teóri-
tas perspectivas (por si heterogêneas) com uma instituição co-metodológicas e tendências ideológico-políticas que
(a UFRJ ou a PUC-SP)14 ou com uma nação (Brasil)15 . redundam em diferentes projetos profissionais. Tendên-
Primeiramente, deve-se registrar a heterogeneidade cias “histórico-críticas” – comprometidas com a garan-
destas “perspectivas histórico-críticas”, incorporando con- tia e o desenvolvimento de direitos civis, trabalhistas e soci-
cepções e tendências variadas da tradição marxista ais, com políticas sociais universais e constitutivas de direi-
(Marx, Lukács, Gramsci, Mandel, dentre outros), corren- to cidadão, com a justiça social e a liberdade, com o
tes neo-kantianas (pela via, por exemplo, de Habermas), aprofundamento da democracia, com a emancipação do
tendências pós-modernas (recorrendo a Boaventura de trabalho e do homem (perspectivas que vão desde a social-
Sousa Santos e outros), elaborações do pensamento li- democracia até as socialistas) e inclusive, em alguns casos,
beral (“cidadania”, “pluralismo”, “Estado de Bem-Estar tendo como horizonte a superação do sistema de explora-
Social”, etc.). Para seus contestadores, esta heteroge- ção e de classes; e tendências “endogenistas” – que valo-
neidade se desvanece e se reduz a um pensamento su- rizam a filantropia, a benemerência, assim como valores
postamente homogêneo. abstratos como o “bem-comum” e a “conciliação entre clas-
Em segundo lugar, é necessário mostrar que nem a Uni- ses” (a exemplo das Encíclicas Rerun Novarum e
versidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ) nem a Pontifícia Quadragesimo Anno), que aceitam como inalterável o sis-
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) podem ser tema social imperante (perspectivas antimarxistas,
consideradas internamente como homogêneas. Muito me- tocquevillianas, neoliberais, pós-modernas, etc.). Tendên-
nos reduzir ambas instituições a um pensamento suposta- cias estas impossíveis de serem divididas entre nações, mas
mente uniforme. Objetos de estudo e perspectivas de análise presentes no interior de cada país.
são vários e diversificados em ambas instituições. Aqui o que divide “fronteiras” não são os limites
Em terceiro lugar, e a partir de um claro desconheci- nacionais, mas as divergências entre projetos sociais
mento do debate profissional brasileiro, é equivocado supor e profissionais, entre perspectivas teórico-
que este seja homogêneo, sem polêmicas, dominando por metodológicas. E estas divergências existem em todos
uma tendência específica. O processo de construção de os países. A “oposição entre nações” tem o evidente ob-
um projeto profissional no Brasil não prescindiu nem pres- jetivo de esconder a real polêmica, apelando ao naciona-
cinde de um árduo, rico e polêmico debate de idéias. Na lismo e ocultando o debate entre ideologias, perspectivas
verdade, existem autores e tendências variadas no Brasil teórico-metodológicas e projetos profissionais. O capital
(como em qualquer contexto) que se expressam com abso- é internacional, portanto, a articulação entre cidadãos, tra-
luto respeito e liberdade, processando suas diferenças nos balhadores, intelectuais, profissionais, etc, que defendem
foros profissionais e estabelecendo negociações e delibe- as conquistas históricas das classes subalternas e que vis-
rações nos organismos profissionais correspondentes. lumbram uma nova sociedade sem classes e sem explo-
O que se constata então, nesta homogeneização, é um ração, esta articulação, apesar de organizar-se em pri-
verdadeiro apelo nacionalista. A idéia de que a polêmica meira instância nos espaços nacionais, deve alcançar uma
esteja apresentada entre nações não tem fundamento. Algo dimensão internacional.
como um suposto “imperialismo brasileiro” colonizando os Aqui se observa também outro aspecto colateral: o des-
demais países latino-americanos. Mesmo conhecendo o crédito no protagonismo das instituições e nos colegas de
papel que o governo brasileiro desempenha na região (ver, outros espaços institucionais e de outras nações. Como men-
por exemplo, os conflitos de interesses no Mercosul ou o ciona Porzecanski (2001, p. 77) “A linha interpretativa da
caso do gás boliviano com a Petrobrás) não se pode con- UFRJ tem influído, no entanto, nas questões disciplinares no
fundir governos com suas populações , muito menos com Uruguai […]”. Em sua concepção, não seriam os colegas
os processos e tendências de um heterogêneo coletivo pro- uruguaios que internamente, a partir de seu debate acadêmi-
fissional. As relações entre governos nacionais pouco re- co e profissional e de sua correlação de forças internas (no
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Um projeto para o Serviço Social crítico 149
que se refere a temáticas e perspectivas), tomam decisões Assim, um Projeto Profissional tem a intencionalidade de,
conscientes, que podem ser confluentes com alguns sem pretender desconhecer as determinações sociais da pro-
posicionamentos de colegas de outros países. Esta autora fissão, dotar o Serviço Social de um protagonismo maior, de
parece entender o contrário, que se trataria da influência forma a ampliar o espaço de sua legitimidade em direção à
externa que coloniza alguns ingênuos e desprotegidos profis- ação que confirme e amplie os direitos sociais e as conquis-
sionais uruguaios, como se afirmasse: “perdoa-os, não sa- tas populares. Se o assistente social, individualmente e a
bem o que fazem!”. O mesmo ocorre quando se atribui influ- partir de suas opções pessoais, não determina o sentido de
ência da PUC-SP no meio profissional argentino17. sua prática (condicionada pelos determinantes macrossociais),
o coletivo profissional, organizado conjuntamente em torno
(III) O “endogenismo” analítico, a “naturalização” da de um projeto profissional ético-político (determinando sua
profissão e o “messianismo” existentes na ilusão da auto- formação, seus temas de estudo e investigação, seu código
determinação do sentido da prática profissional. de ética, suas normas institucionais, etc.), poderá ampliar em
Os textos contestadores das “perspectivas histórico- algum grau seu protagonismo na determinação parcial do
críticas” apresentam fortes e explícitas tendências sentido social de sua ação.
“endogenistas”, ou seja, a perspectiva de análise que aborda Assim, numa perspectiva endogenista, a crise de legi-
os fenômenos (neste caso a profissão) meramente a par- timidade profissional não seria obra da crise social e
tir de seus elementos internos, sem considerá-los como sistêmica, que repercute na estrutura de proteção social e
resultado de processos históricos mais amplos. No caso nos direitos conquistados, comprimindo (focalizando e
do Serviço Social, a abordagem endogenista considera precarizando) as políticas sociais estatais. Ela seria o re-
como atores/sujeitos os seus próprios profissionais (não sultado do “ataque” de certos “inimigos internos” que “jul-
as classes sociais, o Estado, a mulher como sujeitos cole- gam o Serviço Social”19 .
tivos); os fenômenos que desencadearam o surgimento Mas tal perspectiva endogenista freqüentemente acom-
da profissão são assim determinados a partir de movi- panha um processo de “naturalização” da profissão em suas
mentos internos à prática da assistência e da ajuda (e não funções, “missões”, objetivos, etc. São alguns exemplos disto:
a partir da passagem do capitalismo concorrencial para o
monopolismo, do projeto hegemônico do capital, do O Trabalho Social ocupa um lugar natural ao
surgimento de um “Estado de Bem-Estar Social” ou das lado das classes que lutam e consagram con-
conquistas de lutas de classes); a legitimidade profissional quistas sociais […] (CORTINAS, 2003, p. 32, grifo
estaria dada então por sua “especificidade” (e não pelo nosso).
espaço ocupacional e funcional criado pelas políticas so-
ciais dentro de um contexto histórico determinado), etc.18 . Nesta luta de contrários é obvio que o compro-
Neste flagrante endogenismo, pensa-se – equivocada- misso do Trabalho Social estará sempre do lado
mente – que a constatação do papel social da profissão sig- da defesa do humano [sic] (CORTINAS, 2003, p.
nificaria, conseqüentemente, uma “acusação”, a cada assis- 33, grifo nosso).
tente social, de ser “conservador”; um raciocínio formal e
pobre no sentido de: “se a profissão é funcional ao sistema [...] o Trabalho Social tem como missão buscar
imperante é porque seus membros são conservadores”. Da a integração social e moral do indivíduo à so-
mesma forma, para romper com este “estigma” da profissão ciedade para seu próprio bem (DI CARLO, 2004,
seria suficiente a opção individual do profissional; algo assim p. 12, grifo nosso).
como: “o profissional ‘conservador’ terá um desempenho
reprodutor do status quo, enquanto o assistente social ‘pro- O problema não é somente teórico, em termos de pers-
gressista’ desenvolverá uma prática transformadora”. As- pectiva. A naturalização destas questões acaba colocando-
sim, para que a profissão tenha uma função progressista basta as como dados ahistóricos, inalteráveis e, portanto, seus
que os assistentes sociais sejam progressistas; chega-se, postulados operam como verdadeiros axiomas (naturais).
então, à constação de que o papel funcional da profissão Neste processo, o tão buscado debate coletivo sobre qual
com a reprodução da ordem estaria afirmando o caráter con- deve ser “a missão” da nossa profissão, sobre quais devem
servador dos seus membros. ser seus “compromissos ético-políticos”, passa a ser subs-
Este silogismo formal não reflete a realidade nem o pen- tituído por estes axiomas elaborados no escritório de algum
samento dos autores das “perspectivas histórico-críticas”. intelectual que assim o determinou. Ao invés do corpo pro-
Na realidade, nestas correntes entende-se que o papel soci- fissional debater e fundamentar as diversas posturas sobre
al do Serviço Social (na reprodução do social e do status estes temas para formular um “Projeto Ético-Político Pro-
quo) está fortemente condicionado pela estrutura e pe- fissional” a partir do consenso gerado, reconhecendo as
las dinâmicas sociais, expressas fundamentalmente pela orientações das maiorias, o debate seria substituído pelo
correlação de forças e pelas lutas de classes. axioma; “o projeto profissional” elaborado a partir do deba-
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150 Carlos Montaño
te coletivo é substituído pela “missão natural” determinada Em seu artigo, Di Carlo (2004, p. 10, grifo nosso) afirma
unilateralmente como “óbvia” por alguém. que os autores da PUC-SP “põem a consciência política
Mas esta naturalização muitas vezes conduz a um ver- do assistente social atuante na realidade sobre as suas res-
dadeiro “fatalismo”, ao cristalizar as condições atuais como ponsabilidades como profissional”, dissociando desta
imutáveis, rígidas, perenes, ingressando assim num forma a “consciência política” do assistente social da sua
possibilismo resignado e hipotecando as possibilidades de “responsabilidade profissional”. É possível pensar a res-
um horizonte distinto. Isto é o que se vê em definições como ponsabilidade profissional de um sujeito sem que esteja for-
“o trabalho social possível” (DI CARLO, 2004, p. 13). temente arraigada em sua consciência política? Segue o
Outro aspecto que anda junto com o endogenismo e a autor: “Não é nossa obrigação formar adictos políticos para
naturalização dos processos relacionados ao desenvolvimen- tendências políticas, credos ou grupos ideológicos” (p. 11),
to da profissão é o “messianismo”. Tratado por Iamamoto confundindo orientações ético-políticas de um profissional
(1997, p. 183 e ss.), o “messianismo utópico” considera (ou do coletivo) com posturas partidárias (tendências,
como determinantes da prática profissional “as intenções, dogmas, credos). Já Diego Palma mostra como “muitos
os propósitos do sujeito profissional individual”, promoven- trabalhadores sociais – movidos por um realismo que aba-
do um “voluntarismo” e uma “visão heróica” e “ingênua” fava toda ilusão – propiciaram, a meados dos anos 70, um
da ação do indivíduo. A conseqüência disto é clara: por que retorno para ‘o profissional’[...] como uma atividade clara-
um “Projeto Ético-Político” para a profissão, se cada indi- mente distinta do fazer político”. Para este autor, “‘o pro-
víduo determinaria por si mesmo o sentido e a orientação fissional’ não representa uma atuação objetivamente neutral
de sua prática profissional?; por que um projeto coletivo se no conflito das classes; muito pelo contrário, o trabalhador
é entendido que a “missão natural” está dada, ou que a social, nesse projeto, representa uma função importante no
mera intencionalidade do indivíduo é suficiente para dar sen- processo de enquadramento das classes subordinadas al
tido à própria ação profissional? Mais uma vez opta-se pela esquema de dominação” (PALMA, 1985, p. 94).
direção individual ao invés da construção coletiva. Mas, se a reconceptualização muitas vezes cometeu o
Mas o problema se amplia quando se reconhecem os erro de confundir “tarefa profissional” com “tarefa políti-
determinantes externos, alheios à vontade individual de um co-partidária” (sem que com esta afirmação se ignore o
profissional, ao ver que o sentido de sua prática profissional contexto histórico dos anos 60), por outro lado esse movi-
não está autodeterminado, mas fortemente condicionado mento contribuiu em algo fundamental: incluir na agenda
pela estrutura e dinâmica social, onde as classes sociais do debate profissional a necessidade de politizar (não
apresentam interesses antagônicos, onde existe nítida “partidarizar”) a prática profissional, entendendo-a não
hegemonia do grande capital (hoje particularmente do fi- como um agir neutro e intermediador, mas como uma ati-
nanceiro), etc. A partir de tais constatações (ver as cita- vidade tensa, política, inserida em um espaço de contradi-
ções anteriores), pensar que seria “natural a localização ção e de conflito de interesses.
da profissão ao lado dos mais desfavorecidos” ou que é Deve-se ainda manifestar que o pensamento conser-
“óbvio o compromisso com as classes subalternas” é um vador (no Serviço Social) também é político, também ser-
equívoco teórico com sérias implicações políticas na práti- ve a interesses particulares (neste caso, das classes domi-
ca: pensa-se que se está do lado do trabalhador, do nantes), só que o negando, escondendo-o ou o ignorando.
“povo”, do explorado ou do submergido, por uma su- A partir desta separação do agir profissional em relação
posta condição natural da profissão ou pela mera op- à sua consciência política, com a clara “despolitização pro-
ção e vontade do indivíduo, mas, na verdade, e sem fissional”, outras conjeturas aparecem para mostrar mais
necessariamente sabê-lo, está-se ocupando um lugar indícios de um pensamento conservador. Afirma Di Carlo
na engrenagem das relações sociais dominantes, onde (2004, p. 12, grifo nosso): “Em primeiro lugar cabe conside-
o capital detém explícita posição hegemônica20 . A úni- rar que a necessidade de viver numa sociedade integra-
ca forma de alterar tal situação é a partir da tomada de da é uma necessidade humana universal”, sendo que “o
consciência do papel social real da profissão e de sua Trabalho Social tem como missão buscar a integração so-
tensão – saturá-lo da contradição entre a funcionalidade cial e moral do indivíduo à sociedade […]”. Aparece
sistêmica e a ação que reforça interesses populares e direi- aqui seu projeto profissional (em contraposição ao coleti-
tos conquistados, politizando a prática profissional21 . vo projeto ético-político) até agora implícito: a integração
social e moral do individuo à sociedade. Cabe mencio-
(IV) Indícios de um pensamento conservador. nar que “integração” não condiz com “lutas de classes” e
Em muitos dos textos contestadores das “perspecti- que “inclusão” não elimina a “exploração”. Estes são con-
vas histórico-críticas” é possível constatar indícios cla- ceitos visivelmente reprodutores do sistema social e de seu
ros de um pensamento conservador. Esta afirmação status quo. Com tal “despolitização” da prática profissio-
será fundamentada, sobretudo, por um texto em particu- nal, Di Carlo (p.13, grifo nosso) tenta então definir a profis-
lar (DI CARLO, 2004). são: “Entendemos por trabalho social real em parte o que
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Um projeto para o Serviço Social crítico 151
se exerce bem na realidade atual… e junto com este, o aqui um desdobramento daquele conservadorismo: o cur-
que é possível exercer, diferenciando-os das construções to-prazo, o local e singular e o imediato, hipotecando
puramente irrealizáveis”. É isto o que o autor chama de e deixando em segundo plano qualquer estratégia que
“trabalho social real ou possível”, ou seja, “o possível” é “o tenha um horizonte de longo-alcance, universal e
real”, reproduzindo assim o pensamento conservador que mediato. O conservadorismo aqui assume a nova rou-
congela a “situação atual” (o possível e o impossível hoje), pagem pós-moderna.
perpetuando-a para o futuro. Existe uma clara resignação O Serviço Social não pode, com sua ação, “transfor-
ao possível. Nada mais funcional aos interesses das clas- mar” os determinantes macroestruturais, não pode elimi-
ses poderosas. nar a exploração, as contradições entre capital e trabalho;
Afirmamos, primeiramente, que a tarefa do intelectual por isso (as correntes tradicionais e conservadoras da pro-
consiste na análise crítica da realidade (inclusive do “ser- fissão) desconsideram a crítica ao papel que a profissão
viço social real”), sem mistificações, desvendando-a e tem na estrutura social. Se o Serviço Social não determi-
desnudando-a. Por sua vez, ao perpetuar a (atual e su- na a estrutura, então a estrutura não determina o Serviço
posta) “impossibilidade” de construir um Serviço Social Social, parecem afirmar estes autores. Algo assim como:
crítico e comprometido com os valores já tratados, Di Carlo “se a profissão não pode alterar a realidade macro, não é
incorre em dois problemas: a) desconhece que seus preciso se preocupar com ela”. Então o Serviço Social
interlocutores são enfáticos em afirmar que o sentido, o não teria apenas um papel na estrutura social, mas papéis
significado e o papel social da prática profissional não localizados, reduzidos a suas funções e atividades cotidia-
dependem apenas (nem fundamentalmente) da nas. Para estes autores, são as atividades cotidianas dos
intencionalidade de seus atores (o que significaria um cla- profissionais que determinariam sua função social (e não
ro endogenismo e messianismo), mas das relações soci- o lugar que ocupam na dinâmica e estrutura sociais).
ais, da correlação de forças e das estruturas e dinâmicas Não obstante, sem pretender que a intervenção do
sociais – não é possível ignorar os determinantes históri- assistente social pudesse alterar as relações
cos e estruturais; b) resigna-se à “inalterabilidade” (em macroestruturais, é no espaço entre as classes, entre os
um claro fatalismo), ignorando ou desconsiderando o re- interesses de classes, que se insere o profissional (não
lativo protagonismo dos profissionais para reconduzir, den- como mediador entre elas, claro), tendo, portanto, um pa-
tro de certos limites, sua prática a partir não somente de pel (ético-político) em tais relações. O fato de que a inter-
posições e de capacidades individuais, mas fundamental- venção profissional se desenvolva em torno de manifes-
mente de um coletivo projeto ético-político, construído a tações da “questão social” (desemprego, desnutrição, vi-
partir do debate, das alianças e das maiorias; além do que, olência doméstica, fome, falta de acesso a determinados
a correlação de forças, a dinâmica e inclusive a estrutura bens ou serviços, etc.) sem poder alterar seus fundamen-
sociais, também são históricos, e portanto não imutáveis. tos (exploração, lutas de classes, etc.) não desmente que
o Serviço Social tenha um papel na estrutura social (emi-
(V) O apelo às microexperiências locais e o rechaço à nentemente funcional na reprodução do sistema e do status
função profissional macrossocial. quo e, contraditoriamente, o eventual reforço/fragilização
Efetivamente, e derivado daquela tendência conser- de direitos e conquistas sociais).
vadora, talvez neste caso unido a uma reatualizada “críti-
ca romântica ao capitalismo”22 , os textos contestadores (VI) A redução das respostas profissionais às situa-
em geral incorporam um forte apelo às microexperiências ções emergenciais e imediatas e o conseqüente rechaço
singulares e localizadas (como campo de intervenção por estratégias e projetos de longo alcance.
do assistente social); assim, o espaço de inserção direta Em consonância com o anterior, a proposta dos
do profissional pareceria conformar o horizonte da análi- “contestadores” não apenas rechaça o universal, ao con-
se social. Não existe (ou não se consideram) estrutura centrar-se exclusivamente no local-singular, mas também
social, relações entre classes, questões universais. Exis- rechaça o médio e o longo prazo ao esgotar suas energias
tem, sim, espaços comunitários locais, relações no imediato.
interpessoais, questões singulares. Efetivamente, a dinâmica das demandas emergenciais
Assim, partindo da idéia de que a realidade que inte- e imediatas parece colocar o assistente social em um
ressa ao assistente social é apenas aquela que cerca sua carrossel de respostas imediatas. A reprodução desta re-
prática profissional direta, privilegiam-se as concepções lação demanda-emergencial / resposta-imediata, leva
de “poder local”, do “empoderamento”, das “identidades o profissional (e a profissão) a uma lógica pragmática,
particulares”, rejeitando as teorias universais, as críticas movido pela “pre-ocupação”.
da sociedade capitalista (especialmente a teoria marxis- Segundo Kosik (1989, p. 63, 64), no contexto do capi-
ta), da sociedade de classes, das relações entre classes tal o homem, em sua alienada vida cotidiana, é tomado
(exploração, dominação, lutas de classes). Encontra-se pela “preocupação”. Para ele, a “preocupação” é o as-
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152 Carlos Montaño
pecto fenomênico, alienado, da práxis do indivíduo. Estar- mente não pode prescindir das formas de mediação pre-
se-ia assim substituindo a categoria de trabalho pela de sentes na práxis social e política.
ocupação e, portanto, a atividade criadora pela mera Da mesma forma, é fundamental saturar a prática pro-
reprodução. Na vida cotidiana (desde que alienada, como fissional de mediações, rompendo a relação imediata,
o é no contexto capitalista), mais do que trabalhar, “ocu- utilitarista ou ativista, entre fato/percepção/resposta, per-
pa-se” das coisas que requerem resposta direta e imedia- mitindo o entendimento da vida cotidiana como instância
ta e que são mantenedoras da ordem vigente. De acordo particular que articula as situações singulares com a totali-
com este autor, “a passagem do ‘trabalho’ para a ‘preo- dade social. Desta forma, de acordo com Kosik (1989, p.
cupação’ reflete, de maneira mistificada, o processo de 78), “para que o homem possa descobrir a verdade da
fetichização das relações humanas, [...] onde o mundo cotidianidade alienada, deve conseguir desligar-se dela,
humano se manifesta à consciência diária [...] como um liberá-la da familiaridade, exercer sobre ela uma ‘violên-
mundo já feito”. cia’”.
Ou seja, a ocupação responde a necessidades singula- A mediação (que não deve ser entendida como
res e imediatas dentro de um mundo dado e aparentemente “intermediação” de situações de conflito) constitui, portan-
imutável, naturalizado, perpetuado23. Tem uma prática ape- to, uma necessidade imperiosa para superar o imediatismo
nas reprodutora, sem criar nada novo, portanto sem trans- alienante. Segundo Pontes (2003), para Lukács a media-
formar. Assim, “na perspectiva da ‘preocupação’, o mundo ção se refere ao conjunto de particularidades que relaci-
objetivo e sensivelmente prático se dissolveu, transformou- ona dialeticamente o universal e o singular. O cotidiano
se no mundo dos significados traçados pela subjetividade constitui, assim, um campo de mediações que, não obstante,
humana. É um mundo estático no qual a manipulação, o não aparecem ao sujeito de forma direta, mas lhe são ocul-
ocupar-se e o utilitarismo, representam o movimento do in- tas. É necessário, portanto, “superar o plano do imediatismo
divíduo preso da solicitude, em uma realidade já feita e aca- (da aparência) em busca da essência”, o que exige “cons-
bada cuja gênese está oculta” (KOSIK, 1989, p. 66). truir intelectualmente mediações para reconstruir o pró-
Com isso, o assistente social tradicional apenas opera, prio movimento do objeto” (PONTES, 2003, p. 41). Para
manipula os instrumentos, os aparelhos, mesmo que não Pontes (2003, p. 210), “a captura pela razão dos sistemas
conheça a estrutura e sua dinâmica, nem a realidade além de mediações (ocultos sob os fatos sociais) permite por
da fenomenalidade, da pseudoconcretude. Tem um co- meio de aproximações sucessivas ir-se negando à
nhecimento instrumental, operativo, não crítico, nem fun- facticidade/imediaticidade, e desvelar-se as forças e pro-
damental. Na verdade, ele é quem é instrumentalizado, cessos que determinam a gênese (nascimento) e o modo
manipulado, refuncionalizado para a reprodução do siste- de ser (funcionamento) dos complexos e fenômenos que
ma que não conhece e que considera como dado, estrutu- existem em uma determinada sociedade”24.
ralmente inalterável. Assim, o caminho que vai do abstrato para o concreto,
O assistente social tradicional (e o implícito projeto partindo do concreto real, surge como a verdadeira possi-
conservador) tende a se comportar desta maneira, “ocu- bilidade de superar a visão caótica da totalidade, os fatos
pando-se” com atividades dentro de um sistema conside- isolados, supostamente auto-explicados tal como são apre-
rado como já dado e imutável. Tende a se “preocupar” e sentados de forma imediata, direta, ao sujeito, para uma
a atuar de forma imediata, sem crítica, sem contribuir com compreensão mediada que apreenda a dialética da rela-
a transformação, somente algumas modificações imedia- ção entre o universal e o singular, entre as leis tendenciais
tas, localizadas, que respondam a suas carências diretas; e as situações que enfrenta diariamente.
atua de modo desarticulado, imediato, direto, nos “proble-
mas” singulares, em uma ilusória realidade des-totalizada, (VII) O retorno aos autores “clássicos” do Serviço
deseconomizada, despolitizada, imutável, sem história. Este Social e a tendência ao rechaço da reconceptualização.
agente deixa de ser sujeito, passa a materializar-se em Existe, entre os textos contestadores, a proposta de um
um sistema supra-histórico. Já não se faz (nem se pensa) retorno à bibliografia clássica do Serviço Social (Mary
a História, mas apenas histórias, singulares e cotidianas. Richmond, Gordon Hamilton etc.). Algo assim como: “o
Neste sentido, dotar a prática profissional (que se de- estudo de sociólogos ou economistas sobre a estrutura so-
senvolve no cotidiano) de consciência humano-genéri- cial pode apoiar-se em teorias universais, mas o estudo da
ca, desalienada, é tarefa fundamental para romper com prática profissional do assistente social deve ser local e sus-
a instrumentalização que o capital faz desta prática. Para tentado pelos textos clássicos ‘específicos’ da profissão”.
Lukács (apud ANTUNES, 1999, p. 169), “a vida cotidiana Sem nenhum afã de retirar a importância desta bibliografia
constitui a mediação objetivo-ontológica entre a simples para a formação profissional, tornam-se necessárias duas
reprodução espontânea da existência física e as formas observações. A primeira é que aqueles textos não dão mais
mais elevadas de genericidade”. Assim, a passagem das conta da realidade social atual a partir, fundamentalmente,
necessidades imediatas para o humano-genérico certa- das experiências que incorporam direitos sociais conquista-
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Um projeto para o Serviço Social crítico 153
dos na passagem do século XIX para o XX, particularmen- endogenismo característico deste movimento, que muitas
te na realidade dos países latino-americanos, onde tais con- vezes autonomizou o desenvolvimento profissional das lu-
quistas, mesmo que precárias, ocorrem tardiamente. São tas de classes, do advento do capitalismo monopolista e
textos que remetem à história da profissão, mas não conti- do projeto do grande capital, do papel dos chamados Es-
nuam a fazer sua história. A segunda e fundamental obser- tados de Bem-Estar e de suas políticas sociais28 ; em rela-
vação é que tais autores e textos “clássicos” são expressão ção a um certo rechaço ao Serviço Social institucional e à
do endogenismo, do positivismo e do funcionalismo que condenação da assistência como “assistencialismo” (as
marcaram teórica e politicamente a gênese do Serviço So- “perspectivas histórico-críticas” consideram a assistên-
cial25 . Assim, a opção por estes autores tradicionais ou cia como um direito conquistado pelo cidadão)29 e inclusi-
clássicos como referências centrais representa, sem dúvi- ve em relação ao “fatalismo” (que levou a impugnar a
da, a opção por certas correntes do pensamento liberal/ prática institucional, proclamando como única alternativa
positivista/funcionalista e, portanto, significam opções po- profissional a “mágica” passagem às “comunidades”) e
líticas: as ações corretivas localizadas e imediatas (do ao “messianismo” (onde a auto-proclamação de “agentes
“disfuncional”, do “desintegrado”) por parte do profissio- de transformação” e a nova denominação de “Trabalho
nal, que redundam na manutenção da estrutura social e Social” e “trabalhadores sociais” – ao invés de “Serviço
do status quo. Social” e “assistentes sociais”–, seriam suficientes para
Relacionado a isto se constata também, nos textos que redirecionar o sentido da prática profissional30 . Finalmen-
contestam as propostas de construção coletiva de um “pro- te, reafirmam-se as observações de Netto frente à “críti-
jeto ético-político profissional”, um forte rechaço ao Mo- ca conservadora à reconceptualização”31 .
vimento de Reconceptualização. Um exemplo é a con-
tundente frase de Di Carlo (2004, p. 15), quando afirma (VIII) Tendência ao pós ou antimarxismo.
que a Escola de Serviço Social uruguaia, assim como muitos A heterogeneidade que caracteriza as “perspectivas his-
professores e estudantes, nos anos 70, foi “ameaçada como tórico-críticas”, como já vimos, invalida qualquer pretensão
todas as latino-americanas pela reconceptualização de adjetivá-las como “marxistas”. Mas as diversas tendên-
paralisante […]”, o que levou-o, naquela época, a defen- cias marxistas na profissão sem dúvida fazem parte deste
der o “Trabalho Social real”; ou a afirmação de Cortinas coletivo. Não obstante, uma característica presente na ge-
(2003, p. 28): “[…] da mesma forma que o fez há umas neralidade daqueles que contestam estas perspectivas con-
décadas a chamada etapa de ‘reconceptualização’, a qual siste em um forte e claro anti ou pós-marxismo32 .
freou durante anos o desenvolvimento da profissão.” Efetivamente, um dos avanços do movimento de
A reconceptualização foi “paralisante”? Este não foi um reconceptualização foi ter estabelecido interlocução com
movimento que, no acerto e no erro, questionou e tentou o “pensamento marxista”. No entanto, seu limite está
repensar o papel do profissional? Então não foi “paralisante”, marcado pela incorporação de um marxismo sem Marx;
mas inovador. O problema para estes autores é discordar fundamentalmente mediante manuais e divulgadores liga-
da reconceptualização justamente pelo que significou em dos à Terceira Internacional ou marxismo oficial
termos de mudança, e não por ser “paralisante”. (Harnecker, Stalin), pensadores estruturalistas (Althusser,
Mas estar ou não de acordo com este movimento é o jovem Poulantzas) ou de experiências revolucionárias
um direito. O equívoco é atribuir aos autores das “pers- localizadas (Mao, Che).
pectivas histórico-críticas” a mesma condição daqueles Os limites destas correntes são superados no debate
postulados. Algumas pontuações precisam ser feitas nes- atual, quando intelectuais marxistas do Serviço Social re-
te caso. Primeiro, que efetivamente deve-se constatar que correm à própria obra de Marx (Iamamoto, Netto, Mota),
estes autores e sujeitos profissionais que postulam a cons- a pensadores “dialéticos” de tradição marxista (pela via
trução coletiva de um “projeto ético-político” são herdei- hegeliana) como Gramsci (Simionatto, Maciel, Franci G.
ros do espírito crítico e inovador que prevalecia no cha- Cardoso) ou Lukács (Netto, Barroco, Guerra), a historia-
mado Movimento de Reconceptualização. Segundo, que dores marxistas como Hobsbawm, a pensadores desta
este movimento era extremamente heterogêneo e dentro tradição preocupados na contemporaneidade capitalista,
dele diversas correntes formularam e responderam cer- como Mandel, Mészaros, Petras, Borón. Com estas mu-
tas questões de forma variada, muitas vezes acertando, danças de percurso, a contribuição marxista pós-
muitas vezes incorrendo em equívocos. Terceiro, que os reconceptualização, superando os limites anteriores, está
autores das “perspectivas histórico-críticas” na atualida- em condições de dar novas respostas a velhas e novas
de realizam uma superação dos verdadeiros limites da- questões: gênese, fundamentos e significado social do
quele movimento. Superação em relação a um pensamento Serviço Social; o papel do Estado de “bem-estar”, as po-
progressista que, no entanto, não conseguiu romper com líticas sociais estatais e sua relação com a profissão;
a lógica positivista26 no que se refere às tendências neoliberalismo e reforma do Estado; a prática profissional
epistemológicas e metodológicas 27 , em relação ao a partir do novo contexto social e mudanças nas deman-
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Um projeto para o Serviço Social crítico 155
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acredita na auto-atribuição do sentido da prática profissional
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resigna) a uma ação meramente reprodutora. Esta parece
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31 Mencionemos apenas três das críticas conservadoras que 33 Afirmam Watzklawick e colaboradores (1987, p. 76) que com
Netto (1981, p. 66, 68-69) comenta: a) “a reconceptualização o recurso da “desqualificação” um sujeito “pode se
determinou a ideologização profissional”; para Netto, “o comunicar de maneira tal que sua própria comunicação ou a
Serviço Social clássico e tradicional – assim como qualquer do outro fiquem invalidadas. As desqualificações abarcam
modalidade de intervenção sociopolítica – sempre esteve uma ampla gama de fenômenos comunicacionais, tais como
matrizado por parâmetros ideológicos inequívocos”. Assim, a auto-contradições, incongruências, mudanças de tema,
“reconceptualização mostrou que o Serviço Social enquanto tangencializações, orações incompletas, mal-entendidos,
profissão nunca ultrapassou o horizonte ideológico estilo obscuro ou maneirismos idiomáticos, interpretações
burguês”, o que mostra que “o verdadeiro problema não literais da metáfora e interpretação metafórica das expressões
consiste em integrar ou não componentes ideológicos – literais, etc”.
consiste em qual componente ideológico deve ser integrado”;
portanto, “no fundo, o que se contesta no processo de
reconcpetualização não é ‘ter ideologia’, mas ‘ter ideologia de Carlos Montaño
esquerda’”; b) “a reconceptualização desprofissionalizou o montano@ess.ufrj.br
Serviço Social pela via da politização”; Netto comenta que Universidade Federal do Rio de Janeiro
é inevitável que uma profissão se veja perpassada pelas Escola de Serviço Social
dinâmicas, tendências e relações sociais num determinado Av. Pasteur, 250 – Campus Praia Vermelha
contexto; nesse sentido, “considerar o processo de
Rio de Janeiro – RJ
reconceptualização ‘politizador’ porque refletiu e assimilou
as marcas fulcrais de seu tempo (e onde profissionais
CEP: 22290-140
chegaram a fazer opções políticas), significa … reconhecer a
incapacidade do Serviço Social tradicional para se adequar às
novas demandas sociais”; c) “a reconceptualização
instaurou um hiato entre os centros de formação e as
agências de intervenção”; afirma o autor que “não cabe (aos
centros de formação) simplesmente suprir a demanda real e
imediata posta pelo mercado de trabalho. A formação
universitária…prepara quadros profissionais considerando
tanto a realidade dada como detectando as tendências virtuais
que condicionarão novas demandas. A formação não pode
ser posta a serviço das necessidades imediatas, que neste
caso sempre foram reduzidas às necessidades institucionais
das agências de intervenção” (agências estas representantes,
direta ou indiretamente, dos hegemônicos interesses do
grande capital).
32 Petras (1999, p. 17-20), caracterizando o “pós-marxismo” como
a postura intelectual da moda, a partir do espaço deixado pela
esquerda reformista com o triunfo do neoliberalismo, determina
dez argumentos básicos que compõem tal corrente de
pensamento: 1) o suposto fracasso do socialismo e o fim das
ideologias; 2) a acusação de reducionismo marxista na ênfase
da determinação de classe; 3) o Estado como inimigo da
democracia e da liberdade, propondo como contratendência
o protagonismo da sociedade civil; 4) a afirmação de que a
planificação centralizada leva à burocracia, enquanto o
mercado conduz a um maior consumo e distribuição eficiente;
5) a preferência do poder estatal pelas lutas localizadas mais
do que pelas de esquerda tradicionais; 6) a idéia de que as
revoluções sempre acabam mal, preferindo lutar pela
consolidação da democracia [dentro do sistema]; 7) o enterro
da classe como categoria, erguendo em seu lugar outras
identidades; 8) o descrédito sobre as lutas de classes,
preferindo a cooperação governamental e internacional [para
responder às necessidades na busca do bem comum]; 9) a
desconsideração de imperialismo como fenômeno
significativo; 10) a necessidade de que as organizações
populares não apenas respondam às demandas sociais, mas
que se voltem cada vez mais para a captação de recursos
externos.
KATÁL
KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 141-157
TÁLYSIS
293
DOI 10.34019/1980-8518.2020.v20.32934
RESUMO
O artigo apresentado analisa os fundamentos do conservadorismo clássico, a relação com o
Serviço Social na sua gênese e a posterior ruptura. Destaco a centralidade dos fundamentos na
abordagem sobre a profissão, entendendo aqui por fundamentos a matriz histórico-ontológica,
explicativa da realidade e da profissão, sob múltiplos aspectos, e que permeia a interlocução
entre o Serviço Social e realidade. Concluímos sobre a necessidade de enfrentamento à ofensiva
conservadora que caracteriza o tempo presente.
*
Maria Carmelita Yazbek é professora da PUC/SP, pesquisadora 1 A do CNPq, mestrado (1977) e doutorado
(1992) em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós doutoramento no âmbito de
ciências políticas pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – USP.
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Maria Carmelita Yazbek
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo
realidade não é apenas descobrir os nexos que a constituem, mas ajudar essa realidade a se
constituir.
Trago, portanto aqui, uma apreensão do Serviço Social que não é indiferente do ponto
de vista teórico, social e político e parte da posição inaugurada por Iamamoto em 1982, de que
o significado social da profissão só pode ser desvendado em sua inserção na sociedade, ou seja,
“a análise da profissão, de suas demandas e atribuições, em si mesmas não permite desvendar
a lógica no interior da qual ela ganha sentido. Assim sendo, é preciso ultrapassar a análise do
Serviço Social em si mesmo para situá-lo no contexto de relações mais amplas que constituem
a sociedade capitalista, particularmente, no âmbito das respostas que esta sociedade e o Estado,
pela mediação das Políticas Sociais, constroem, frente à questão social1 e às suas manifestações,
em múltiplas dimensões.” (YAZBEK, 2009, p. 3) Essas dimensões constituem a sociabilidade
humana e estão presentes no cotidiano da prática profissional, condicionando-a e atribuindo-
lhe características particulares. Ao afirmarmos o caráter histórico e político do Serviço Social
que resulta de relações sociais, econômicas, políticas, culturais que moldam sua necessidade
social, suas características e definem seus usuários, partimos da posição de que a profissão é
uma construção histórica e contextualizada, situando-se nos processos de reprodução social da
sociedade capitalista, sendo objeto de múltiplas determinações historicamente processadas.
Gostaria ainda de lembrar que esse processo de reprodução da totalidade das relações
295
sociais na sociedade é um “processo complexo, que contém a possibilidade do novo, do diverso,
do contraditório, da mudança. Trata-se, pois, de uma totalidade em permanente reelaboração,
na qual o mesmo movimento que cria as condições para a reprodução da sociedade de classes
cria e recria os conflitos resultantes dessa relação e as possibilidades de sua superação (cf.
YAZBEK, 2009).
Cabe lembrar aqui que, conforme José de Souza Martins (1975, p. 74), os processos
sociais, constitutivos da vida em sociedade (e em nossa análise a dimensão da profissionalidade
expressa no trabalho profissional), comportam uma dupla dimensão: de um lado expressam
determinações sociais econômicas e políticas, historicamente constituídas (sobre as quais a
profissão não tem ingerência) e de outro, o projeto dos sujeitos aí envolvidos. Condição que
possibilita aos profissionais uma relativa autonomia no desempenho de suas atribuições e
competências (cf. IAMAMOTO, 2007).
Enfrentar e explicitar essa contradição constitutiva do trabalho do assistente social a
1
A Questão Social é expressão das desigualdades sociais constitutivas do capitalismo. Suas diversas
manifestações são indissociáveis das relações entre as classes sociais que estruturam esse sistema e nesse sentido
a Questão Social se expressa também na resistência e na disputa política.
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partir da relativa autonomia de que dispõe, no confronto cotidiano, entre sua condição de
assalariamento e a realização de seu projeto, é condição para seu desvelamento. Assim sendo,
é preciso ter presente que: “Não há espaços sem contradição, não há como o Serviço Social
deixar de participar desse processo, cuja direção está sempre em disputa, pois fazemos parte
dela em qualquer contexto” (YAZBEK, 2018, p. 101). Não é uma escolha, participar ou não
desse processo e das disputas que contem.
Sabemos, pela nossa história, que tivemos fortes marcas de fundamentos doutrinários,
positivistas e sabemos também que o pensamento conservador nos persegue, nos engendra, de
múltiplas formas. Isso porque suas marcas penetram o modo capitalista de pensar, de modo
global e especialmente a Cultura Política Brasileira, as Políticas Sociais, nossos âmbitos de
trabalho, e a própria vida das classes subalternas, com as quais trabalhamos cotidianamente.
Processo que não se dá sem resistências, pois sabemos também que, nas últimas três décadas,
o Serviço Social brasileiro construiu um projeto, para a profissão, sob a direção do pensamento
marxiano e da tradição marxista, com múltiplas faces. E, tendo esses referentes como
balizamento é que devemos enfrentar a ofensiva conservadora colocada, nessa difícil
conjuntura.
Contexto de crise estrutural do capital que avança em seu caráter ultraliberal, predatório
e na banalização da vida. Contexto que, do ponto de vista da Economia Política, configura um
296
tempo de devastação como nos lembra Antunes, “uma fase ainda mais destrutiva da barbárie
neoliberal e financista” (ANTUNES, 2018, p. 10).
Os indicadores que revelam esse quadro crescem a cada dia, agravados há alguns meses,
pelo contexto da pandemia da Covid-19, que vem evidenciando a desigualdade estrutural do
país. Desigualdade que cresce no mundo global e especialmente na América Latina. No
relatório de desenvolvimento humano de dezembro 2019, do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD), a América Latina foi apontada como a região do mundo com a
maior desigualdade de renda e o Brasil como o 7º país mais desigual do mundo. Neste
continente, os 10% mais ricos concentram uma parcela maior da renda (37%) do que em
qualquer outra região do planeta ou cidade, segundo o estudo.
Segundo o estudo: “Em 2020, a regressão econômica e social que decorre da crise
sanitária imposta por onda viral de dimensão mundial encontra os países latino-americanos já
debilitados pela estagnação econômica (0,2% de variação média anual do PIB entre 2010-
2019) [...] Sabe-se que a onda viral atual resulta da forma degradante com que o
desenvolvimento capitalista tem explorado a natureza. As emissões dos gases de efeito estufa,
o desmatamento e a mudança climática agridem o conjunto dos biomas, forçando a liberação
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Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo
crescente de vetores propagadores das doenças virais2. [...] Nesse contexto, o Estado que até
pouco tempo era visto dominantemente como o centro dos problemas nacionais pelo
receituário neoliberal transformou-se rapidamente na condição necessária para sair do quadro
regressivo atual. [...}
No relatório conjunto da Cepal e OIT3, de maio de 2020, o decrescimento do PIB
estimado em 5,3% provocará a elevação da taxa de desemprego de 8,1%, em 2019, para 11,5%,
em 2020. Com o crescimento de 3,4 pontos percentuais na taxa de desemprego, a região deverá
comportar mais 11,5 milhões de novos desempregados” (CEPAL/OIT, 2020).
No Brasil, chegamos ao final do ano, conforme dados do IBGE, com um crescimento
de 35,9% do desemprego em relação ao mês de maio, com impactos de 5 % a mais para as
mulheres, especialmente as negras. Ademais, o desassalariamento amplia-se, com maior
presença, evidenciando o crescimento da informalidade e de ocupações por conta própria.
São tempos difíceis onde se entrecruzam com a crise estrutural do capital, compondo
uma totalidade, outras crises que venho destacando em minhas análises recentes. Relembrando
rapidamente:
Em primeiro lugar destaco – “as profundas transformações observadas nas últimas
décadas, na esfera da acumulação capitalista expressas na reestruturação produtiva e na
financeirização da Economia com seus impactos no mundo do trabalho, na “questão social” e
297
na Política Social, âmbito privilegiado de nossa intervenção” (YAZBEK,2019, p. 87).
Esse é o primeiro ponto e, como sabemos, a desigualdade e a concentração de renda que
se intensificam nas atuais formas de acumulação capitalista, trazem como consequência a
radicalização da questão social, outro conceito que expressa relações capitalistas.
Aprofunda-se a exploração do trabalho. Como lembra Raichelis (2018, p. 51):
Aprofunda-se a tendência do capital de redução do número de trabalhadores
contratados, gerando economia de trabalho vivo [...] amplia-se o desemprego
estrutural além da precarização e deterioração da qualidade do trabalho, dos
salários e das condições em que ele é exercido, que se agravam ainda mais se
considerando os recortes de gênero, geração, raça e etnia.
Sabemos, pelo debate acumulado no âmbito do Serviço Social, que a Questão Social e
a desigualdade são elementos estruturantes da sociabilidade capitalista. Questão que se
reformula e se redefine, mas permanece substantivamente a mesma por se tratar de uma questão
2 Somente na Amazônia encontra-se mapeado a existência de 3,2 mil tipos de coronavírus, nem todos letais ao ser
humano. Em cada 1% de avanço no desmatamento da Amazônia, nota-se, por exemplo, a expansão de 23% na
incidência de casos de malária e 9% de leishmaniose. Para mais detalhes, ver: ANTHONY et al. (2017) e
MAXMEN (2017).
3
Cf. CEPAL/OIT (2020), El trabajo en tiempos de pandemia: desafíos frente a la enfermedad por coronavirus
(COVID-19). Coyuntura Laboral en América Latina y el Caribe.
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Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo
caracterizado pela flexibilização produtiva, com sua nova morfologia do mundo do trabalho
com desemprego, redução de salários e precarização do trabalho e ausência de direitos, tem
como resultado a ampliação de situações de trabalho desprotegido, o aumento da pobreza e o
desmonte da proteção social.
E chegamos aqui à uma terceira dimensão dessa grande crise a ser considerada: as
mudanças que podemos observar no âmbito da Sociabilidade e da Cultura Política que
justificam e sustentam a ordem capitalista e especialmente esse processo mais amplo de
acumulação. Nesse âmbito, vivemos tempos de ofensiva conservadora, de avanço do
irracionalismo, do obscurantismo de ameaças à democracia e de redução dos direitos, tempos
de regressão conservadora que se expressa no avanço da defesa das instituições tradicionais,
na naturalização da desigualdade, no acirramento dos preconceitos, no racismo, no feminicídio,
na homofobia e na criminalização dos movimentos sociais, entre outros aspectos. Trata-se de
um contexto de ascensão global, ao poder de forças conservadoras por toda parte, com altíssimo
teor de violência e barbárie, que nos lembram, para ficarmos apenas no século XX, os anos
1930 que antecederam a segunda guerra mundial e os anos mais recentes de regimes ditatoriais
militares da América do Sul. [...] “É como se tais forças jamais tivessem desparecido de fato,
mas apenas feito um recuo estratégico temporário à espreita de condições favoráveis para sua
volta triunfal” (ROLNIK, 2018) Contexto de paradoxos, onde articulam forças reativas
299
distintas e no qual vai se tornando
evidente que o capitalismo financeirizado precisa destas subjetividades rudes
temporariamente no poder. São como seus capangas que se incumbirão do
trabalho sujo imprescindível para a instalação de um Estado neoliberal:
destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu
imaginário e erradicar da cena seus protagonistas – entre os quais,
prioritariamente, as esquerdas em todos os seus matizes. [...] A torpe
subjetividade destes (neo)conservadores é arraigadamente classista e racista,
para não dizer colonial e escravocrata, o que os leva a querer cumprir este
papel, sem qualquer barreira ética e numa velocidade vertiginosa. Quando
nem bem nos damos conta de uma de suas tacadas, uma outra já está em vias
de acontecer (ROLNIK, 2018).
4
Reflexões desenvolvidas pela profa. Mavi Rodrigues no I Encontro da Rede Mineira de Grupos de Estudos sobre
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Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo
6
Novamente, retomo aqui reflexões desenvolvidas pela profa. Mavi Pacheco Rodrigues no I Encontro da
REMGEFSS, realizado nos dias 1 a 3 de dezembro de 2020.
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conservador deixa de se antagonizar com o capitalismo criando o que Martins (1982) denomina
de um único estilo de pensamento, exprimindo um modo de vida. Nesse sentido, o
conservadorismo não significa apenas a pertinência de ideias presentes na herança intelectual
do século XIX, mas de ideias que atualizadas se transformaram em bases de manutenção da
ordem capitalista. Esse rapto, que expressa a disputa de projetos que emergem com a sociedade
capitalista, obscurece suas contradições e busca encobrir suas desigualdades.
Após a Revolução de 1848, os conservadores vão se posicionar especificamente contra
um dos dois projetos presentes na Revolução Francesa, aquele que defende a emancipação
humana. E vão se aliar aos que defendem a manutenção da ordem capitalista, uma vez que
defender a propriedade privada está de acordo com os seu principal interesse. Nesse sentido o
Conservadorismo é um “fenomeno Multiforme que cumpre funções distintas na pauta da luta
de classes” (RODRIGUES, 2020).
Assim, p.ex., com o advento do neoliberalismo no enfrentamento da crise estrutural do
capital a partir dos anos de 1970, convivemos com faces reformistas desse pensamento,
expresso por autores como Anthony Guiddens (2007) com suas teses sobre a Terceira via e a
reestruturação social democracia; Ulrich Beck (2011) com suas teses sobre a sociedade de
Risco, Pedro Hespanha (2002) com as noções de globalização, risco e Incerteza globais e
Boaventura Souza Santos (2002) com suas abordagens acerca da crise paragmática que
302
caracterizaria os denominados tempos pós-modernos e outros.
Atualmente, com o avanço da “nova direita” no plano internacional e também no Brasil
com a sua moral familista e religiosa, chegamos a um tempo de crescimento do
conservadorismo de traços fascistas, expresso no individualismo competitivo exacerbado,
preconceituoso, pressionado pelo consumo e que vive com um grau de incerteza e ansiedade
sem precedentes. O resultado é o avanço do conservadorismo e da ofensiva reacionária. O
conservadorismo é imprescindível para o capitalismo financeiro global.
Para Evangelista (2020)
Observa-se na política brasileira hoje o uso da religião para fazer avançar suas
pautas: Não é apenas sobre determinados grupos religiosos buscando impor
sua moral para a totalidade da sociedade via políticas de Estado, mas é,
também, sobre as novas facetas do conservadorismo brasileiro usando a
religião para se comunicar com o povo, [...] alcançando um segmento religioso
que cresce em todos os estratos sociais, mas está predominantemente na base
da pirâmide social, em áreas urbanas e periféricas onde a população vive
cotidianamente a ausência do Estado. Estamos falando também de uma
população em sua maioria de baixa renda, negra e feminina.
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Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao conservadorismo
Cabe destacar que é nos Estados Unidos da América que a regressão conservadora,
agora denominada neoconservadora, vai assumir formas semelhantes às que encontramos no
processo que se evidenciou nas eleições brasileiras de 2018. Com destaque para projetos de 303
regulação da moral e dos costumes, a partir da compreensão de que no ocidente aprofunda-se
uma crise de valores que destrói as bases da moralidade social e a família. A crise moral que
alcança a sociedade americana, sua cultura e suas universidades, passa a ser vista como capaz
de desmantelar a estabilidade da sociedade norte americana.
Os neoliberais constituem a liderança da Nova Direita e representam o grupo
que se preocupa com a orientação político-econômica atrelada à noção de
mercado. Os neoconservadores são aqueles que definem os valores do passado
como melhores que os atuais e lutam pelas tradições culturais. Os populistas
autoritários são, em geral, grupos de classe média e de classe trabalhadora que
desconfiam do Estado e se preocupam com a segurança, a família, o
conhecimento e os valores tradicionais (LIMA e HYPOLITO, 2019).
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por outra ordem societária, por um mundo melhor, pela liberdade, pela equidade, pela justiça,
pela construção de direitos, contra práticas racistas, homofóbicas, contra o feminicídio, contra
o genocídio da população negra, entre outras aspectos, nesse contexto? Como levar adiante este
embate desigual? Luta que só se luta no coletivo – um traço dessa nossa história..., mas que
deve ser de cada um, todos os dias, em todas circunstâncias.
Os desafios frente ao quadro aqui brevemente apresentado são enormes, imensuráveis e
permeiam múltiplas dimensões de nosso cotidiano,
O desafio frente ao quadro aqui brevemente apresentado no âmbito da luta pelo
reconhecimento público e a construção dos direitos sociais da população com a qual trabalhamos
é enorme, imensurável. E é nesse âmbito que devemos localizar o significado
CONTRADITÓRIO de nosso trabalho profissional, especialmente na gestão e
operacionalização de políticas sociais: na disputa pelos sentidos da sociedade, na luta contra o
desmanche de direitos cuja regulação vai passando para espaços do mundo privado; na
construção de parâmetros capazes de deter a privatização do público, e a destruição da política,
na perspectiva de construir a hegemonia dos interesses das classes que vivem do trabalho em
nossa sociedade. Isso a política social pode construir, deve construir. E é por isso que a Política
Social pode ao menos minimizar os impactos das transformações aqui analisadas e construir
direitos...
304
Em síntese, de modo geral a profissão é interpelada e desafiada pela necessidade de
construir direitos e outras mediações políticas e ideológicas expressas sobretudo por ações
de resistência e de alianças estratégicas no jogo da política em suas múltiplas dimensões, por
dentro dos espaços institucionais e especialmente no contexto das lutas sociais. Seja no tempo
miúdo do cotidiano, por dentro dos espaços institucionais onde atuamos, politizando nossas
iniciativas, buscando novas práticas, buscando espaços a ocupar como conselhos e fóruns,
considerando as variadas lutas e propostas de resistência. Seja no apoio às resistências
cotidianas das classes subalternas em suas lutas em nossa sociedade, expressando que
profissionalmente caminhamos junto aos nossos usuários.
dando origem a uma nova modalidade de resistência: surge a consciência de
que a resistência tem que incidir igualmente nesta esfera. Isto aparece nos
novos tipos de movimento social que vêm desestabilizando aqui e acolá o
poder mundial do capitalismo financeirizado na determinação dos modos de
existência que lhe são necessários. A propagação deste tipo de resistência, que
se intensificou após o tsunami dos ditos golpes de Estado provocados pelo
novo regime por toda parte, tem surgido principalmente entre as gerações mais
jovens e, mais contundentemente, nas periferias dos grandes centros urbanos.
Nestes contextos, destacam-se especialmente os citados movimentos das
mulheres (numa nova dobra do feminismo), dos LGBTQI (numa nova dobra
das lutas no campo da homossexualidade, transexualidade, etc, na qual estas
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 293-306, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
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permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja
corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
http://doi.org/10.15448/1677-9509.2019.2.35948
Marileia Goin iD
Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil.
ABSTRACT – The article, the result of postdoctoral research, analyzes the teaching of the Fundamentals of
Social Work, considering the current trends related to training at the Brazilian level and those expressed in
the formative operability within the Academic Training Units. This is a documentary research carried out in
the Pedagogical Projects of the selected Courses of the South, Southeast and Midwest. The definition of the
sample was based on the demarcation of the oldest presential institution in each region, with a consolidated
trajectory in the graduate and postgraduate levels. The results indicate that although the presential formation in
Social Work tends to occur in private institutions and concentrated in the Southeast of Brazil, it is clear that the
teaching of the Fundamentals is based on the dialectical and ontological character, characteristic of the nature
of marxist, with notorious efforts to abandon the trichotomous conception of history, theory, and method.
Keywords: Fundamentals. Social Work. Pedagogical Projects.
H
á quase quatro décadas o Serviço Social vem constituindo insurgência ao lugar que historicamente
lhe fora atribuído na realidade brasileira – a sociedade está marcada pela herança escravista,
patrimonialista, patriarcal, machista e conservadora –, ao fundar um amplo movimento ideo-político
profissional, cujas bases se assentam na aproximação fiel com a teoria de cariz marxiano. Todavia, são os
vetores conjunturais dos anos 1990 que potencializam a incursão e a robustez da incorporação teórico-
metodológica, cuja difusão teórica, com lealdade, evidencia-se nos instrumentos ético-jurídicos – a exemplo
do Código de Ética – e formativos – Diretrizes Curriculares –, os quais enfeixam um conjunto de mudanças,
cujo ponto de partida está na apreensão da própria profissão e nas bases que o assentam e legitimam
histórica e socialmente.
Elementarmente, é a partir da revisão curricular de 1996 que os Fundamentos do Serviço Social
ganham novo tônus. Com a substituição das disciplinas voltadas para a História do Serviço Social, Teoria do
Serviço Social e Metodologia do Serviço Social, matriz disposta no currículo aprovado pelo MEC em 1982,
na medida em que as dimensões históricas, teóricas e metodológicas tornam-se orgânicas e imanentes,
diluídas no conjunto de atividades pedagógicas no decurso da formação profissional.
A nova lógica curricular toma a indissociabilidade entre história, teoria e realidade como eixo
articulador da proposta – cujo método é indispensável para seu processo de desocultamento –, de modo a
romper com a endogenia presente no passado profissional – olhar o Serviço Social nele e por ele mesmo – e
possibilitar defrontá-la com os processos sociais, de modo a retornar à profissão como produto e produtora
desses processos, no intento de reconstruí-la em suas múltiplas determinações, como concreto pensado.
Nessa via, as diretrizes traduzem a concepção adotada no âmbito de três Núcleos de Fundamentos –
Núcleo de Fundamentos Teórico-Metodológico da vida social1, Núcleo de Fundamentos da Formação Sócio-
Histórica da Sociedade Brasileira2 e Núcleo de Fundamentos do Trabalho Profissional3 – os quais articulam
um conjunto de conhecimentos elementares à formação e ao trabalho profissional. Não se tratam de eixos
hierarquizados, classificatórios e autônomos, mas interdependentes e indissociáveis, que expressam níveis
diferenciados e complementares de abstração para decifrar a profissão na dinâmica societária e ancoram
os Fundamentos do Serviço Social. Aliás, é na articulação que a sua apreensão se torna possível.
Busca-se, nessa acepção, superar o enquadramento em disciplinas isoladas e prover de dinamicidade
os conteúdos, de modo que os componentes curriculares estabeleçam interface e diálogo entre os enunciados
núcleos. Exigência teórica e desafio político, o novo trato dado ao eixo História, Teoria e Método no Serviço
Social constitui os três núcleos e por ele é constituído, em sua relação dialética, pois como demarca Iamamoto
(2014), situar o Serviço Social na história é distinto da história do Serviço Social.
amplo, englobando produção, consumo, distribuição e troca de mercadorias (IAMAMOTO, 2008), mas da
reprodução da totalidade da vida social, de determinado modo de vida, de valores, de práticas culturais e
políticas, que permeiam as formas de consciência social por meio das quais o homem se posiciona na trama
das relações em sociedade (YAZBEK, 2009).
A superação de vieses mecanicistas e historicistas tem proeminência nessa abordagem ao passo
que remete a um “[...] debate teórico-metodológico que permita pensar a profissão no seu processo de
constituição e desenvolvimento, as exigências frente às transformações sócio-históricas, bem como a
vinculação do projeto profissional aos diferentes projetos societários em disputa” (SIMIONATTO, 2004, p. 33).
Desse modo, o entendimento dos Fundamentos do Serviço Social ultrapassa a noção formalista de
matéria curricular – os conhecidos Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos do Serviço Social – para
situá-los na totalidade histórica, a partir dos
Os referidos elementos ultrapassam a análise do Serviço Social como evolução da caridade e da ajuda,
evitando pensar nele e por ele mesmo, para assentar suas bases no contexto do contraditório, do dinâmico
e do diverso das relações sociais, as quais lhe atribuem configurações particulares. E, para isso, seja em
termos do seu significado social, em termos de suas atribuições, competências, atitudes (investigativa,
propositiva, ética e democrática) ou ainda respostas profissionais que a sociedade e o Estado constroem face
às múltiplas manifestações e dimensões de seu objeto de trabalho. Assim, são fundantes dessa abordagem “a
concepção de profissão no movimento histórico da sociedade capitalista; a questão social e suas expressões
e configurações como âmbito privilegiado do exercício profissional; e o trabalho como categoria fundante
para analisar o exercício do Serviço Social na sociedade capitalista” (YAZBEK, 2018, p. 48).
É nessa ótica que se propõe analisar o ensino dos Fundamentos do Serviço Social no bojo de três
regiões brasileiras4 – Sul, Sudeste e Centro Oeste –, tendo como ponto de partida os Projetos Pedagógicos
de três universidades5 que se destacam na formação graduada e pós-graduada em termos sócio-históricos
e teórico-políticos em âmbito profissional. Oriunda do projeto de pós-doutoramento6 realizado na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), a intencionalidade reside na apreensão da lógica que ancora
o ensino dos Fundamentos, de modo a identificar se ainda encontram-se presentes resquícios advindos da
divisibilidade dos conteúdos ou se prevalece a articulação entre o conjunto de conhecimentos indissociáveis
(história, teoria e método) à formação e ao trabalho profissional.
1 O ensino dos Fundamentos do Serviço Social nos Projetos Pedagógicos dos Cursos
Quadro 1 – Cursos presenciais de Serviço Social no Brasil, conforme natureza (público ou privado)
registro de apenas um curso público em outros 7 estados (Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso,
Piauí, Roraima e Sergipe), em que apenas a Região Sul não se encontra indicada.
Outro destaque é relativo ao estado de Roraima, ao passo que tem 50% da oferta de natureza privada
e 50% de natureza pública, único estado a apresentar tal característica formativa no âmbito do Serviço
Social. Apesar da equivalência numérica dos cursos em relação à natureza institucional, a divergência se
encontra no número de matrículas: enquanto a universidade pública registrou 99 matrículas no ano de
2017, a privada registrou 1.268 no mesmo período (INEP, 2018) Isso demonstra que 93% das matrículas
na graduação em Serviço Social no estado são privadas, equivalendo a 1.110% a mais de matrículas na
instituição privada que na pública.
O estado de São Paulo, diferentemente da realidade roraimense, oferta sozinho, 17% dos cursos
brasileiros, sendo 92% em instituições privadas. Tal percentual se eleva ainda mais se considerado o número
de matrículas, ao passo que 21.069 estão nessas instituições privadas, percentual que equivale a 96% do total
de 22.008 matrículas no estado. Por outro lado, os 8% restantes (públicos) são responsáveis por apenas 4%
de discentes matriculados/as no curso. A configuração expressa no estado indicado é relativa à sua região,
uma vez que a Sudeste concentra, sozinha, 40% da formação brasileira (INEP, 2018) – a segunda tendência
da formação profissional em Serviço Social no tempo hodierno é a concentração na Região Sudeste.
Das 153.548 matrículas registradas, no Brasil, no total dos 451 cursos (presencial e à distância),
135.801 (89%) são em instituições privadas e apenas 17.747 (11%) em instituições públicas, o que equivale
a uma diferença percentual de 600% entre a segunda e a primeira. Em relação ao número de concluintes,
esse distanciamento não se reduz, aliás, se eleva, mesmo que minimamente, uma vez que dos/as 27.971
concluintes, apenas 9,8% (2.753) são oriundos/as de instituições públicas, enquanto 90,2% (25.218) são
de privadas e, dentre esses, aproximadamente 54% estão na modalidade à distância e 46% na presencial.
A terceira tendência revelada é a quase equiparação numérica entre os/as concluintes da modalidade
presencial e à distância, indicador que intensifica o debate acerca do perfil que se está formando nas duas
modalidades e em que medida essa formação dialoga com as Diretrizes da ABEPSS.
Na ótica do número de concluintes, informações das entidades representativas da categoria indicam
que se, em 2007, o montante de profissionais Assistentes Sociais contornava os 70.000 no Brasil, a partir da
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) e do fomento à formação na modalidade
à distância, conforme previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), a ampliação da
oferta de vagas ao curso de Serviço Social, na modalidade presencial e à distância, o número dobrou num
lastro de sete anos, chegando a 145.000 Assistentes Sociais em 2014, e a 182.000, em 2018 (GOIN, 2019).
Em termos percentuais, entre 2007 e 2018, o número de Assistentes Sociais no Brasil aumentou em torno
de 160%, que o coloca em segundo lugar no ranking mundial.
É evidente que a profissão multiplicou o contingente profissional a partir da virada do Século – e
porque não dizer na última década –, mas ao revés, os insuficientes monitoramentos de como as diretrizes
curriculares perpassam o bojo desse universo de cursos deixam em suspenso as abordagens que estão
ancorando os Fundamentos do Serviço Social. Evidencia-se uma categoria cada vez mais heterogênea,
exposta a inúmeras concepções de profissão, de formação, de entendimento acerca das particularidades
profissionais, de objeto profissional, de direcionamento profissional e, quiçá, de seu significado social no
âmbito da divisão social e técnica do trabalho. Para tanto, é preciso lembrar das tendências ao Coaching
Social, ao empreendedorismo social, à responsabilidade social e recentemente ao Design Thinking no
Serviço Social10.
Em pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS),
em 2006, quatro tendências foram apontadas quanto às formas de organização e concepção da matéria
“Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos do Serviço Social”: (1) Tendência de tratamento dos
conteúdos das matérias perpassando os diferentes núcleos que estruturam as novas diretrizes, sendo
que a visão dos Fundamentos do Serviço Social ultrapassa a própria profissão e a sua particularidade,
ao ser articulada ao movimento totalizante da sociedade; (2) Tendência de tratamento dos conteúdos
em componentes curriculares agrupados como “Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos do
Serviço Social”, numa perspectiva fragmentária, sem (a) perpassar os diferentes núcleos de fundamentos e
(b) garantir unidade no trato entre história, teoria e método; (3) Tendência de tratamento do eixo história,
teoria e método de forma dicotômica e reducionista acerca da concepção dos Fundamentos do Serviço
Social, em que seus conteúdos são organizados e tratados de forma isolada; e (4) Tendência de tratamento
do eixo história, teoria e método no âmbito da própria profissão, com eixo articulador por período e não
por núcleos de fundamentos, mantendo a visão reducionista quanto aos Fundamentos do Serviço Social
(CARDOSO, 2007).
Nos Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs) relativos às UFAs pesquisadas11 – projetos que também
são políticos ao indicar a direção e a intencionalidade explicitamente definida – o ensino dos Fundamentos do
Serviço Social dialoga com a primeira tendência apontada por Cardoso (2007). Todavia, apesar da diversidade
curricular, a lógica estruturante dos currículos pressupõem, como aponta a UFA 2 (2008), a não fragmentação
na apreensão dos processos, a partir da contextualização e da articulação do pensamento dominante
e suas formas de materialização, assim como a não dicotomização da relação necessária entre os três
núcleos.
Os PPCs, nessa via, estão sintonizados “com os aspectos socioculturais, abarcando a criação e
recriação de saberes, consoante ao quadro sócio-histórico que atravessa e conforma o cotidiano do exercício
profissional do assistente social, afetando suas condições e relações de trabalho” (UFA 1, 2011, p. 14). Assim,
sendo o fundamento da formação profissional a realidade social,
a apreensão da sociedade brasileira é tida como base para a definição das diretrizes
fundamentais da formação que se explicitam na direção social do curso. Tal direção
social se define com base nas demandas postas pelo movimento da sociedade, visando
à articulação efetiva de um projeto social das classes subalternas em suas relações com
as forças dominantes, o que implica a consolidação de uma legitimidade da profissão
junto àquelas classes, bem como o compromisso real e efetivo com os interesses
coletivos e históricos da classe trabalhadora na construção de uma nova hegemonia
na relação entre as classes sociais” (UFA 3, 2009, p. 13).
O perfil do/a profissional de Serviço Social expressa (a) a apreensão crítica do processo sócio-histórico
como totalidade; (b) as particularidades do Serviço Social no bojo de desenvolvimento do capitalismo, em
sua formação histórica e em seus processos sociais contemporâneas que configuram a sociedade brasileira;
(c) a apreensão teórica enquanto fundamento para o desvelamento da realidade social e a constituição
de mediações no âmbito das condições concretas de realização do trabalho profissional; e (d) a clareza de
que a dimensão técnico-operativa não se trata da aplicação da teoria e tampouco prescinde das dimensões
teórico-metodológica e ético-política, pois tem na teoria os subsídios para a apreensão da dinâmica social
por meio da investigação e, a partir disso, por meio do seu caráter ético e político, articula respostas às
situações singulares com as quais se defronta (UFA 1, 2011).
Um profissional culturalmente versado e politicamente atento ao tempo histórico, ao não-dito,
supõe diálogo com as fontes inspiradoras do conhecimento para (a) decifrar as bases sócio-históricas e os
determinantes da sociedade de classes; e (b) elucidar as tendências presentes no movimento da realidade,
ao entender as manifestações particulares no campo em que incide a intervenção, no intento de não reificar
o saber fazer, subordinando-o ao direcionamento do fazer e recusando espontaneísmos, voluntarismos e
determinismos profissionais (IAMAMOTO, 2007). A hegemonia não é dada para sempre. É preciso consolidá-
la. Portanto, constituir mediações políticas, teóricas, culturais e técnicas é imprescindível para articular o
projeto profissional à conjuntura, de modo particular às reais condições do trabalho profissional (UFA 3,
2009).
As expressões do alinhamento com as Diretrizes e, especificamente, com o compromisso
teórico-político assumido com o que se constitui como Fundamentos do Serviço Social, abaixo se
encontra sistematizado no Quadro 2, em termos de disciplinas obrigatórias ofertadas pelos cursos
pesquisados, o qual dá a tônica concreta do modo como pedagogicamente fazem interface na formação
profissional.
do seu diálogo fecundo com a realidade social; (b) das abordagens metodologistas e o privilégio do debate
de instrumentos, técnicas e estratégias enquanto constitutivas da dimensão técnico-operativa, que não se
basta por ela mesma, uma vez que só pode ser entendida se articulada às dimensões teórico-metodológica
e ético-política; e (c) das abordagens evolucionistas, cronológicas e etapistas, restritas no predomínio do
passado sobre o presente19.
O ponto cêntrico do debate sobre Fundamentos do Serviço Social está na incorporação da dinâmica
dialética, própria da matriz marxiana, que não dissociabiliza História, Teoria e Método e tampouco prioriza
um sobre o outro ou os fragmenta. Apenas o esforço nesse que se denomina de ponto cêntrico possibilita
ultrapassar a barreira da abordagem mecanicista, idealista, estruturalista e determinista e adentrar no
campo fecundo da abordagem dialética.
O debate acerca dos Fundamentos do Serviço Social, indubitavelmente, permanece inconcluso. Talvez
aqui resida o desafio mais robusto à profissão atualmente, uma vez que o distanciamento da apreensão
dialética dos Fundamentos resulta, não somente, em equívocos teórico-conceituais, mas nas sendas que se
abrem às tendências marxistas-estruturalistas, funcionalistas ou às críticas infundadas de que o marxismo
“não dá conta da realidade” – típicas do pensamento pós-moderno. José Paulo Netto (2016, p. 67, grifos
do autor) é categórico ao afirmar que
A articulação entre história, teoria e método permite que a profissão olhe pelo “espelho retrovisor”
numa alusão contemplativa do passado e dos seus avanços, mas também possibilita que se constitua num
momento necessário para situar por onde andar. Isso porque ele revela as possibilidades concretas de seguir
adiante. Sobretudo, é o aceite ontológico e dialético que permite ultrapassar a contemplação, de cariz
fetichizado e repetitivo, para adentrar nos fecundos desafios postos pelo tempo presente, sem negar-lhe
as disputas imersas nesse contexto – teóricas e de projetos –, mas asseverando o gozo de sua hegemonia,
pelo menos no campo acadêmico-profissional.
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Notas
Articula conhecimentos que possibilitam a apreensão do ser social enquanto totalidade histórica, de modo a situar historicamente o
1
processo de constituição e desenvolvimento do modo de produção capitalista. Ao abordar as teorias modernas e contemporâneas, fornece
os componentes que serão particularizados nos demais núcleos de fundamentos.
2
Articula conhecimentos relativos às particularidades da formação social brasileira, de modo a explicitar suas características econômicas,
políticas, sociais e culturais, orientada pelas faces agrária e urbana.
3
Articula conhecimentos para subsidiar o trabalho profissional competente, ético e crítico, fundamentado a profissão como especialização
do trabalho coletivo, partícipe de processos de trabalho, que atrela à sua dimensão técnico-operativa a intelectiva e ontológica, teórica e
politicamente referenciada.
4
A definição pelas regiões foi intencional, na medida em que elas estabelecem vínculos medulares com a autora, seja em termos de formação,
seja em termos de trabalho profissional – nesse último, a docência.
5
A definição da amostra deu-se a partir das instituições mais antigas de cada região, com ampla trajetória na formação graduada e pós-
graduada. Em face de uma das regiões a universidade mais antiga distanciar-se do critério estabelecido, optou-se pela segunda universidade
mais antiga. Por isso, de modo a evitar a exposição das universidades pesquisadas – embora não haja prejuízo, em termos éticos, no caso de
uma possível identificação –, serão identificadas nessa produção como Unidade de Formação Acadêmica 1 (UFA 1), Unidade de Formação
Acadêmica 2 (UFA 2) e Unidade de Formação Acadêmica 3 (UFA 3).
6
O pós-doutoramento foi realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), sob supervisão da Professora Dra. Maria
Carmelita Yazbek, e contou com Bolsa CAPES, fruto do “Prêmio CAPES de Teses, Edição 2017”, na área “Serviço Social”.
7
Em caráter complementar, vale lembrar que as teorias sociais constituem matriz explicativa da realidade de forma totalizante, que incorpora
a dimensão filosófica e permite a profissão fazer o movimento de desocultamento da realidade. Cada teoria tem um método de abordar a
realidade e de explicar o ser social burguês, em seu processo de constituição e reprodução. A teoria social, assim, é um constructo intelectual
e proporciona explicações aproximadas da realidade, cujo padrão de elaboração é o método.
8
Destaca-se que aqui não estão reportados os números de polos que ofertam Serviço Social na modalidade à distância, mas de instituições
no Brasil.
9
26 estados e o Distrito Federal.
10
Pressupõe o uso de soluções inovadoras no trato com os “problemas sociais”. Trata-se, todavia, de uma reedição dos clássicos problemas
de caráter funcionalista, associado ao uso de ideias criativas à sua solução.
11
Indispensável registrar que as UFAs 2 e 3 encontram-se me processo de revisão curricular, sendo seus PPCs datados de 2008 e 2009,
respectivamente. A UFA 1 tem seu PPC vigente datado de 2011.
12
A disciplina relativa à trabalho foi inserida na “Questão Social e Serviço Social”, por trata-se do eixo central “Questão Social”.
13
Embora entende-se que os processos de trabalho são coletivos e não do profissional, a indicação exposta trata-se da nomenclatura adotada
no Projeto Pedagógico do Curso (PPC).
14
Idem nota anterior.
15
A UFA 1 associa a oferta de 140 créditos de disciplinas obrigatórias, o que corresponde a 70% dos créditos (2100 horas) para integralização
do curso, a outros 60 na modalidade optativa (900 horas), das quais 24 créditos (360 horas) são de módulo livre – disciplinas de módulo
livre são aquelas que podem ser cursadas em qualquer departamento da universidade, sem necessidade de estarem previstas no Projeto
Pedagógico do Curso em formação.
16
As Diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 2002, esvazia o conteúdo político imerso das Diretrizes da ABEPSS, as quais
assentam o direcionamento ético e político da formação profissional.
17
Indicadas no item 3.2 das Diretrizes da ABEPSS, as matérias básicas Sociologia, Ciência Política, Economia Política, Filosofia, Psicologia,
Antropologia, Formação Sócio-Histórica do Brasil, Direito, Política Social, Acumulação Capitalista e Desigualdades Sociais, Fundamentos
Históricos e Teórico-Metodológicos do Serviço Social, Processos de Trabalho do Serviço Social, Administração e Planejamento em Serviço
Social, Pesquisa em Serviço Social e Ética Profissional podem ser tratadas em disciplinas, seminários temáticos, oficinas/laboratórios e
atividades complementares (monitorias, pesquisa, extensão, seminários, etc.), os quais são considerados componentes curriculares e
mecanismos formativos (ABEPSS, 1996).
18
“Introdução ao Pensamento Teológico/Cultura Religiosa” – em que pese a herança institucional, que a institui enquanto disciplina obrigatória,
independentemente da área ou curso de formação em nível graduado – e “Empreendedorismo e Responsabilidade Social”.
19
Como lembra Netto (2016), a defesa do projeto ético-político não se basta pela mera reiteração e retórica. É preciso investir na pesquisa e
na elaboração de uma nova história, uma vez que as condições que gestaram e constituíram o conhecido Projeto ético-político não são as
mesmas da virada do Século. Há que debruçar no estudo dos rebatimentos dessas mudanças na profissão e de modo a profissão processou
tais impactos.
Correspondência para:
Universidade de Brasília (UnB)
Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Serviço Social
Campus Universitário Darcy Ribeiro – Asa Norte
70910-900, Brasília, DF, Brasil
Autora:
Marileia Goin
Assistente Social pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2006). Mestre em Serviço Social pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS, 2016). Pós-Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP, 2019). Docente do Curso de Serviço Social
da Universidade de Brasília (UnB).
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-4859-3098
E-mail: mari.goin@hotmail.com
Rodrigo Teixeira*
https://orcid.org/0000-0002-2993-5294
RESUMO
O artigo tem por objetivo apresentar um breve balanço das oficinas da terceira edição Projeto ABEPSS
Itinerante, de 2016, cujo tema foi o debate dos fundamentos do Serviço Social. O ABEPSS Itinerante é uma
estratégia política e pedagógica para a ampliação e difusão da lógica que sustenta as Diretrizes Curriculares.
O artigo estrutura-se a partir de um breve histórico das edições anteriores do Projeto (2012 e 2014); o perfil
das/os participantes das oficinas de 2016; e aponta alguns desafios ao debate dos fundamentos do Serviço
Social. A metodologia utilizada foi a análise dos seis relatórios, um de cada regional da ABEPSS. Conclui-se
pela necessária continuidade do projeto, por maior disseminação da proposta, apontando alguns
elementos para as ações da entidade e das Unidades de Formação Acadêmicas.
PALAVRAS-CHAVE
Fundamentos do Serviço Social. ABEPSS Itinerante. Formação Profissional. Trabalho e Formação.
ABSTRACT
The article aims to present a brief overview of the workshops of the third edition of the ABEPSS Itinerant
Project, 2016, whose theme was the debate on the fundamentals of Social Work. ABEPSS Itinerante is a
political and pedagogical strategy for the expansion and diffusion of the logic that supports the Curricular
Guidelines. The article is structured based on a brief history of the previous editions of the Project (2012 and
2014); the profile of the 2016 workshop participants; and points out some challenges to the debate on the
fundamentals of Social Work. The methodology used was the analysis of the six reports, one from each
ABEPSS regional. It concludes by the necessary continuity of the project, by greater dissemination of the
proposal, pointing out some elements for the actions of the entity and the Academic Training Units.
KEYWORDS: Fundamentals of Social Work. ABEPSS Itinerant. Professional Training. Work and Professional
Training.
*
Assistente Social. Doutor em Serviço Social. Professor da Universidade Federal Fluminense - Rio das
Ostras. (UFF, Rio das Ostras, Brasil). Rua Recife, Lotes, 1-7, Jardim Bela Vista, Rio das Ostras (RJ), CEP.:
28895-532. E-mail: rodrigosersocial@gmail.com.
DOI 10.22422/temporalis.2020v20n40p57-69
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2019 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative
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material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo
que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
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RODRIGO TEIXEIRA
INTRODUÇÃO
O
Curriculares por meio de uma política de educação permanente1 chamado ABEPSS
Itinerante. Esse projeto é uma estratégia política e pedagógica na defesa da direção social
crítica da profissão frente à precarização da formação e do trabalho profissional.
Nesse sentido, os objetivos desse artigo são apresentar o perfil dos participantes e os
principais desafios identificados nos relatórios, da terceira edição do projeto, que incidem
no debate dos Fundamentos do Serviço Social. Foram analisados todos os relatórios
regionais do Projeto ABEPSS Itinerante, do ano de 2016, das seis regionais da ABEPSS
(Centro-Oeste, Leste, Nordeste, Norte, Sul e Sul I). Destaca-se que esse estudo foi parte
da pesquisa para a tese de doutorado finalizada e apresentada em agosto de 20192. Os
relatórios permitiram um aprofundamento da análise, uma aproximação à realidade
concreta dos cursos, dos espaços sócio-ocupacionais, dos campos de estágio e dos
desafios à direção de um projeto de profissão vinculado a uma perspectiva crítica.
1
A concepção de educação permanente pode ser encontrada em CFESS, ABEPSS, ENESSO (2012).
2
A análise dos dados para a tese foi autorizada pela entidade.
3
Ver Antunes (1995), Behring e Boschetti (2006), entre outros.
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O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL
Nos anos de 1980, no mundo, e, especificamente, nos anos 1990, no Brasil, vivenciou-se
uma intensificação do neoliberalismo, que traz como repercussão: a prioridade imediata
para deter a inflação por meio da recuperação da taxa de lucros; a derrota do movimento
sindical; o crescimento das taxas de desemprego, concebido como um mecanismo
natural e necessário de qualquer economia eficiente; o aumento das desigualdades no
conjunto dos países periféricos4 (ANDERSON, 1995).
Cabe destacar que a terceira edição do Projeto ABEPSS Itinerante aconteceu em meio à
conjuntura de Golpe Jurídico Midiático Parlamentar, ocorrido em 2016, e que segue em
curso6. Nessa conjuntura, fortalecer o projeto ABEPSS Itinerante, em todos os estados, e
chegar cada vez mais próximo dos diferentes sujeitos envolvidos na formação
profissional transforma-o numa resistência política de maior grandeza no interior do
Serviço Social.
Este artigo apresentará um breve histórico das últimas edições e os dados quantitativos e
qualitativos do Projeto ABEPSS Itinerante, de 2016. Os dados quantitativos demonstraram
que o Projeto tem ampliado a participação dos diferentes sujeitos da formação, assim
como permitiu, mesmo que de maneira superficial, a construção de um perfil dos
participantes da edição pesquisada, com o intuito de entender melhor seus resultados. Os
dados qualitativos permitiram a construção de desafios que impactam e dificultam a
direção social expressa na lógica que sustenta e estrutura as Diretrizes Curriculares da
ABEPSS, de 1996. Tais desafios particularizam-se nas regionais da ABEPSS, a partir das
condições sócio-históricas distintas do desenvolvimento dos cursos, da intervenção do
4
Este artigo é escrito em meio ao isolamento social para contenção da disseminação do novo coronavírus,
Covid-19. Tal pandemia mundial pode ocasionar uma alteração na forma de intervenção do estado. Há
diferentes tendências acerca desse debate, que não cabe nessa nota, contudo a saída pós-crise pandêmica
dependerá das forças organizadas e em disputa. Sabe-se que muito irá alterar-se em maior ou menor
medida na intervenção do estado.
5
Ver Iamamoto (2009) e também pesquisas recentes que podem ser encontradas em Raichellis (2020) e
Raichellis, Albuquerque e Vicente (2018).
6
Compartilha-se a análise do Golpe de 2016 a partir dos autores Dehmier (2017); Brás (2017) entre outros.
79
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A ABEPSS Itinerante era a nossa menina dos olhos, a gente gostava muito dessa
ideia, foi muito interessante a forma com que ela surgiu. Por que ela surgiu na
oficina regional da ABEPSS Leste, na gestão anterior, essa oficina regional foi em
Juiz de Fora. Estávamos organizando a oficina regional, e nós tivemos uma ideia, a
oficina começaria às duas horas da tarde de segunda-feira. E eu coloquei: - vamos
fazer um minicurso de manhã sobre o projeto de formação profissional? Porque a
gente já estava avaliando, muitas pessoas novas, formando, fazendo mestrado,
doutorado, indo para a docência... Conheciam os documentos, liam, procuravam
conhecer o projeto de formação. Mas não conheciam [...] toda a história do
movimento de construção do projeto de formação profissional, que culminou nos
documentos [...] E aí tivemos uma ideia. Foi muito engraçada. Olha, não vai ter
muita gente, vamos ter [...] 30 vagas, porque a gente queria fazer um minicurso em
formato de oficina, então tem que ser pouca gente. Vamos abrir vagas para 30
pessoas. Não vai encher [...] abrimos a inscrição. No primeiro dia, mais de 100
pessoas querendo fazer. [...] Tivemos que abrir 04 turmas.
Foi com o êxito dessa experiência que, conforme relata Claudia Mônica dos Santos, ao
construírem a proposta de gestão 2011-2012, o nome do Projeto surgiu e compôs as ações
estratégicas daquela gestão. Segundo seu depoimento, o projeto ABEPSS Itinerante
surgiu como uma estratégia contra a precarização da formação e como resistência frente
ao desmonte do ensino superior8.
A primeira edição foi planejada e discutida com vários sujeitos profissionais, no ano de
2011, e desenvolvida nas regionais, no ano de 2012. Teve como público-alvo “[...] docentes
dos cursos de Serviço Social, supervisores de estágio, membros de comissões de
formação dos CRESS e discentes de mestrado e doutorado na área” (ABEPSS, 2011, não
paginado).
7
DOCUMENTÁRIO ABEPSS 70 anos. 14 maio 2017. 1 vídeo (1:33:36). Publicado pelo canal TV ABEPSS.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j1f9a_9NLiw. Acesso em: 20 mar. 2020.
8
O detalhamento das motivações para o desenvolvimento do projeto pode ser encontrado em ABEPSS
(2011).
9
Pesquisa desenvolvida em 2006 e publicada na revista Temporalis n. 14 (ABEPSS, 2007).
80
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O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL
Em formato de curso, com professores de referência em cada área, teve como título
ABEPSS Itinerante: as diretrizes curriculares e o projeto de formação profissional. A
metodologia foi desenvolvida em sete módulos articulados, um projeto arrojado e de
fôlego que contou com uma carga horária de 60 horas presenciais. A avaliação foi
extremamente positiva. Apontou que a experiência coletiva do Projeto ABEPSS Itinerante
mostrou-se como um elemento aglutinador de esforços em torno do fortalecimento do
projeto de formação profissional10.
A ABEPSS, gestão 2015-2016, realizou a terceira edição do Projeto nos meses de julho e
novembro de 2016, cujo título foi Fundamentos do Serviço Social em Debate: formação e
trabalho profissional. A Comissão Organizadora do Projeto manteve, nesta terceira
edição, o formato bem avaliado das oficinas de 20h, possibilitando o debate a partir da
realidade das UFA’s. Os conteúdos foram divididos em três unidades: 1) O processo de
construção e implementação das Diretrizes Curriculares da ABEPSS na particularidade da
sociedade brasileira frente às atuais transformações societárias; 2) A concepção dos
Fundamentos do Serviço Social: principais mediações e desafios da formação e do
trabalho profissional; 3) Estratégias de resistência na sustentação do projeto ético-
político profissional frente ao avanço do conservadorismo na sociedade e na profissão
(ABEPSS, 2016).
A partir das análises dos relatórios, foi possível destacar como avanços a elaboração de
dois vídeos publicados pela ABEPSS, no seu canal da rede social youtube TV ABEPSS. O
primeiro11, referente à chamada das/os participantes com professoras/es de 04 regionais
da ABEPSS; o segundo12, que compôs a metodologia das oficinas, se tratou de uma
10
A avaliação completa, os principais dados acerca dos sujeitos envolvidos e os encaminhamentos podem
ser encontrados em Abreu (2013).
11
PROJETO ABEPSS ITINERANTE. 1 vídeo (5:10). 29 jul. 2016. Publicado pelo canal TV ABEPSS.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wPns1nQ5Gl0&t=6s. Acesso em: 20 mar. 2020.
12
VÍDEO AULA ABEPSS ITINERANTE. 23 ago. 2016. 1 vídeo (55:25). Publicado em Abepss Itinerante.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CSCVzMdzkko&t=28s. Acesso em: 20 mar. 2020.
81
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Para analisar com profundidade os dados qualitativos sobre o Projeto ABEPSS Itinerante,
de 2016, é preciso conhecer o perfil dos participantes dessa terceira edição.
Foram analisados 06 relatórios regionais, fruto das oficinas do Projeto ABEPSS Itinerante,
de 2016, desenvolvidas nos meses de junho a novembro, em todas as Regionais da
ABEPSS. As oficinas ocorrem em 24 estados e no Distrito Federal. Por motivos de logística
local e da própria articulação precária, não foi possível a execução das oficinas nos
Estados do Amapá e Acre. O projeto contou com 34 oficinas. Em decorrência do tamanho
de alguns estados e do número de escolas, algumas unidades da federação realizaram
mais de uma oficina.
A regional Centro Oeste realizou quatro oficinas. No estado de Goiás, foram realizadas
duas oficinas, uma na capital e outra na Cidade de Goiás. O Distrito Federal e Mato Grosso
realizaram uma oficina cada, em suas respectivas capitais. Participaram das oficinas da
13
Para alcançar os objetivos desse artigo, optou-se por trabalhar mais densamente os elementos do Projeto
ABEPSS Itinerante de 2016.
14
Os dados de 2012 podem ser encontrados em Abreu (2013) e o de 2014 em Teixeira, Aquino e Gurgel
(2016).
82
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O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL
A Regional Leste realizou sete oficinas. O Espírito Santo realizou uma oficina em Vitória.
Em Minas Gerais, foram realizadas três oficinas, na capital e nas cidades de Montes Claros
e Uberaba. O Rio de Janeiro realizou três oficinas, uma na capital e as demais nas cidades
de Cabo Frio e Volta Redonda. O total de participantes da regional Leste somou 196
pessoas de 23 UFA’s. A maioria dos/as participantes foi de assistentes sociais docentes, 64
pessoas; seguido por 54 discentes de graduação; 45 profissionais assistentes sociais; 20
discentes de pós-graduação e 13 representantes dos CRESS’s. Das 23 UFA’s presentes, 12
delas eram públicas, 10 privadas e uma confessional.
A Regional Nordeste realizou nove oficinas. O Ceará e a Paraíba realizaram duas oficinas
em cada Estado. No Ceará, ocorreu uma na capital e uma na cidade de Iguatú. Na Paraíba,
ocorreu uma na capital e uma na cidade de Sousa. Nos Estados de AL, BA, PE, SE e RN,
ocorreu uma oficina em cada Estado, todas nas capitais. Participaram das oficinas da
Regional Nordeste 211 pessoas de 58 UFA’s. A regional caracterizou-se por articular o
maior número de UFA’s. Das 211 pessoas, 92 foram assistentes sociais docentes, o maior
índice de participação docente das regionais; seguidos por 47 profissionais assistentes
sociais; 37 discentes de graduação, 14 discentes de pós-graduação e 21 representantes
dos CRESS’s. As UFA´s constituíram-se em 41 unidades privadas: 15 públicas e duas
confessionais.
A Regional Norte realizou sete oficinas. As cidades em que ocorreram as oficinas foram:
Belém (PA), Boa Vista (RR), Manaus (AM), Palmas (TO), Porto Velho (RO), São Luiz (MA) e
Terezina (PI). Em todas as cidades ocorreu 01 oficina. A regional Norte teve um total de
232 pessoas, a maior participação regional nas oficinas. Foram contabilizadas 34 Unidades
de Formação Acadêmicas. Das 232 pessoas participantes, 65 eram assistentes sociais
docentes, 58 profissionais assistentes sociais, 81 discentes de graduação, 15 discentes de
pós-graduação e 13 representantes dos CRESS’s da regional. Das 34 UFA’s, seis delas são
públicas, 26 são privadas e duas são confessionais ou provenientes de fundação
educacional.
A Regional Sul I realizou três oficinas. O Estado do Paraná realizou sua oficina em
Curitiba. Os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul descentralizaram suas oficinas
nas respectivas cidades, Lages (SC) e Caxias do Sul (RS). Participaram das oficinas 101
pessoas de 21 UFA’s. Os/as assistentes sociais docentes que participaram somaram 46, 19
profissionais assistentes sociais, 25 discentes de graduação, duas discentes de pós-
graduação e nove representantes dos CRESS´s. As 21 UFA’s participantes constituíram-se
15
O relatório da regional Centro Oeste não apresentou os dados quantitativos dos Estados de Mato Grosso
e do Distrito Federal. Dessa forma, os dados destas localidades tornaram-se comprometidos.
16
Sabe-se que o indicador Profissionais Assistentes Sociais não é o mais indicado, uma vez que assistentes
sociais são profissionais, regulamentados por legislação específica. Contudo, esse termo foi utilizado para
diferenciar as/os Assistentes Sociais Docentes. Cabe destacar que docentes do curso de Serviço Social são
um dos principais sujeitos a quem se destina o projeto ABEPSS Itinerante. Não foram identificados, nos
relatórios, docentes não assistentes sociais que participaram das oficinas.
83
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A Regional Sul II realizou quatro oficinas: uma na cidade de Campo Grande (MS) e três
oficinas no estado de São Paulo, sendo uma na capital e as demais nas cidades de
Araçatuba e São José do Rio Preto. A regional Sul II contou com a presença de 120
pessoas de 28 UFA’s. Das 120 pessoas, 43 são assistentes sociais docentes, 36 são
profissionais assistentes sociais, 23 discentes de graduação, sete discentes de pós-
graduação e 11 representantes dos CRESS’s. As 28 Unidades de Formação Acadêmicas
constituíram-se em duas públicas, 22 privadas, quatro confessionais ou provenientes de
fundação educacional.
A regional Norte teve a maior incidência de participação, 232 pessoas, 25% do total;
seguidos da Regional Nordeste com 211 pessoas, o que representa 23% do total; a regional
Leste contou com a presença de 196 participantes, 21% do total; a regional Sul II contou
com a presença de 120 pessoas, cerca de 13% do total de participantes; a regional Sul I
teve 101 participantes, 11% do total e a Regional Centro Oeste com 58 pessoas, o que
representou 7% do total.
Outro dado importante que auxilia na caracterização dos sujeitos presentes nas oficinas e
ajuda a entender os dados são as características dos participantes por segmento.
Podemos observar no Gráfico 2.
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Assistentes sociais docentes foi o segmento que mais participou do projeto ABEPSS
Itinerante, em 2016, 330 participantes, 36% do total; os/as discentes de graduação
também tiveram uma participação significativa, 236 participantes deste segmento, 26% do
total; os/as profissionais assistentes sociais17 totalizaram 226 pessoas, cerca de 25% do
total; 68 participantes estavam representando seus respectivos CRESS’s, 7,5% do total; e
58 participantes são discentes de pós-graduação, 6,5% do total.
Esses dados permitem verificar que os debates sobre os Fundamentos do Serviço Social
atingiram um número de assistentes sociais docentes maior que o de assistentes sociais
não docentes, já que o projeto tem por objetivo os/as docentes, prioritariamente. A
participação considerável das/os profissionais assistentes sociais permite, contudo,
dialogar com os dados na relação trabalho e formação profissional.
17
Os dados dos relatórios não permitem identificar se os/as profissionais assistentes sociais são
supervisores/as de campo ou não.
18
CAPES. Relatório da Avaliação Quadrienal: Serviço Social. Brasília (DF), 2017. Disponível em:
http://www1.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/relatorios-finais-quadrienal-2017/20122017-
Servico-Social-quadrienal.pdf. Acesso em: 12 mar. 2019.
19
Foram subtraídos os números de desligamento e abandono, em ambas as modalidades.
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Outro dado importante, que nos ajuda a analisar o impacto do Projeto ABEPSS Itinerante
para os cursos de Serviço Social é a relação das unidades filiadas à ABEPSS e o número de
escolas que participaram do Projeto. Segundo o site da ABEPSS 20, em 2016, eram 41
escolas filiadas, três na regional Centro Oeste, oito na regional Leste, nove na regional
Nordeste, seis na regional Norte, nove na regional Sul I e seis na regional Sul II.
Das 41 escolas filiadas que constavam no site, 38 escolas participaram do Projeto ABEPSS
Itinerante, em 2016; e três escolas não participaram, sendo uma na regional Sul II e duas
na regional Sul I. Assim, aproximadamente, 93% das escolas filiadas à ABEPSS
participaram do Projeto, o que pode demonstrar a adesão das UFA’s filiadas e a
credibilidade da entidade junto a estas escolas.
Contudo, ao constatarmos que 41 escolas eram filiadas à ABEPSS e 407 cursos estavam
aptos a se filiarem21, somente 10,07% das UFA’s eram filiadas à entidade, um número ainda
muito reduzido. Ao deparar-se com a abrangência do Projeto ABEPSS Itinerante, ou seja,
38% do total das escolas, sendo que somente 10% do total são filiadas à entidade, reforça-
se o papel político do Projeto ABEPSS Itinerante. Ou seja, é necessário que o Projeto
possa captar também filiações institucionais à entidade22. Não foram encontrados dados
das/os filiadas/os individuais nos relatórios analisados.
Cabe destacar que das 34 oficinas, 11 delas ocorreram em cidades do interior do país, mais
de 32% das oficinas ocorreram fora das capitais. Esse é um destaque importante para a
análise dos dados, pois permite vir à baila um amplo debate sobre as particularidades do
trabalho e da formação em cidades de médio e pequeno porte, revelando uma necessária
interiorização da ABEPSS. O que chama a atenção nos relatórios é que os debates sobre
mandonismo, autoritarismo, clientelismo, coronelismo, marcas da formação sócio-
histórica do Brasil, foram mais discutidos nas oficinas do interior, não sendo apontados
nos relatórios das oficinas que ocorreram nas capitais. Tais aspectos da formação sócio-
histórica do Brasil não são características particulares do interior, mas transversais à
formação social do país.
20
ABEPSS. Unidades de formação acadêmica filiadas à ABEPSS. Brasília (DF), ©2020. Disponível em:
http://www.abepss.org.br/unidades-de-formacao-academica-filiadas-a-abepss-37. Acesso em: 15 ago. 2018.
21
Segundo o Estatuto da ABEPSS, somente as escolas presenciais cujo Projeto Político Pedagógico do Curso
está condizente às Diretrizes Curriculares da ABEPSS de 1996, estão aptas a se filiarem à entidade.
22
Ao revisitar os dados para a construção desse artigo, foram encontradas 99 escolas filiadas à ABEPSS, em
abril de 2020. Esse dado pode demonstrar que o Projeto ABEPSS Itinerante incide nas filiações, contudo,
merece ainda maiores estudos comparativos entre as UFA’s que participaram e as que se filiaram, ou
regulamentaram-se, nesse período de tempo. ABEPSS. Unidades de formação acadêmica filiadas à ABEPSS.
Brasília (DF), ©2020. Disponível em: http://www.abepss.org.br/unidades-de-formacao-academica-filiadas-a-
abepss-37. Acesso em: 7 abr. 2020.
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De um modo geral, pode-se caracterizar o perfil dos sujeitos que participaram das
oficinas, em sua maioria, assistentes sociais docentes dos cursos de Serviço Social
presencial. Com maior prevalência de assistentes sociais docentes da regional Nordeste.
A maior participação, em geral, encontra-se na regional Norte do país. Os participantes,
em sua maioria, são provenientes das Unidades de Formação Acadêmicas privadas.
01) As oficinas ocorreram logo após o Golpe Parlamentar Jurídico e Midiático que o Brasil
enfrentou no ano de 2016, portanto, esse debate não passou incólume. Os retrocessos na
democracia e a onda reacionária do Congresso Nacional foram debatidos em todas as
oficinas. Aparecem nos relatórios sínteses acerca dos debates sobre: a) a prioridade do
indivíduo e dos valores burgueses na votação dos deputados ao impeachment; b) a
retirada de uma presidente eleita e que afeta a frágil democracia construída, a duras
penas, no Brasil; c) a conjuntura de retrocessos nos direitos sociais; d) os movimentos
sociais contestatórios ao impeachment e a organização coletiva dos trabalhadores; e) os
impactos da conjuntura que repercutem no trabalho de assistentes sociais nas políticas
públicas, ocasionando um duplo impacto nas particularidades da profissão. Os elementos
pontuados podem demonstrar que os debates realizados nas oficinas não estavam
apartados de uma perspectiva mais ampla da realidade social. Assim, pode-se constatar
que os debates não foram realizados de forma endogenista24 para a análise da profissão e
da formação profissional;
23
Realizar-se-á em tópicos para dinamizar e pontuar os principais desafios. Entende-se que cada desafio
poderia ser apreendido em um artigo específico. Há ainda a necessidade de captar as mediações em cada
um tópicos apresentados.
24
Ver mais em Montaño (2007).
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04) Identificou-se uma tensão acerca da concepção de história expressa no debate das
Diretrizes Curriculares, e aquela expressa nos Projetos Políticos Pedagógicos dos Cursos
(PPPC).
25
Referência ao Projeto ABEPSS Itinerante de 2014.
26
Ver Marx e Engels (1982); Marx (1987); Engels (1986), entre outros.
88
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O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL
muitas UFA’s expressam, nos seus PPPC’s, as Diretrizes Curriculares aprovadas pelo MEC,
em 2001, e não as concepções amplamente discutidas no documento aprovado pela
ABEPSS, em 996, e reformatado, sem perder a direção social, em 1999, pela comissão de
especialistas27;
05) Os relatórios apontaram, às vezes de forma mais explícita, outras de forma mais
implícita, que há, na análise da realidade e da profissão, a falta ou a pouca apreensão de
perspectiva de totalidade.
06) Foi apreendido nos relatórios que há, na formação e no trabalho profissional, alguns
equívocos na análise do significado social da profissão. Os relatórios apontaram que a
análise da profissão na divisão social e técnica do trabalho, que tem nas expressões da
questão social seu objeto de intervenção e a/o assistente social é a/o agente profissional,
trabalhadora/or assalariada/o, que vende sua força de trabalho, tem uma incidência
grande do ponto de vista do discurso, mas que ainda, nos espaços sócio-ocupacionais e
na formação profissional, essa concepção deve ser aprofundada nas ações cotidianas.
Foi comum verificar nos relatórios, a partir das repostas dos sujeitos e das análises
apresentadas pelas/os facilitadoras/es que ministraram as oficinas, que há uma confusão
entre os objetivos da Política Social e os objetivos do Serviço Social nos diferentes
espaços sócio-ocupacionais. Muitas vezes o debate apontou que a direção social da
profissão está subsumida à direção social da política social que, por sua vez, é
fragmentada, descontinuada e superficial em seu alcance.
27
Para melhor conhecer a história das Diretrizes Curriculares, ver Iamamoto (2014), ABEPSS (2007), entre
outros.
28
Aliados a intelectuais que inauguraram esse debate na profissão, destaques a Iamamoto e Carvalho
(2011); Netto (2005), entre outros.
29
Ver Lukács (1968, 1981); Pontes (2009), entre outros.
30
Os Núcleos de Fundamentação são: Núcleos de Fundamentos Teórico-metodológicos da Vida Social;
Núcleos de Fundamentos da Formação Sócio-histórica do Brasil; e Núcleo de Fundamentos do trabalho
Profissional; ver ABEPSS (1997).
31
Para um aprofundamento do debate, ver Teixeira (2019)
32
Uma referência importante desse debate pode ser encontrado em Moljo e Silva (2018).
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Muitos relatórios apontam que a formação continuada de profissionais tem ocorrido mais
pelo material dos Ministérios para execução da política social do que respostas
profissionais ancoradas no acúmulo teórico-metodológico do Serviço Social;
Na formação profissional, pode-se verificar que o eixo estrutural, em alguns PPPC’s, não
está no trabalho e na questão social; se a questão social não é central, a execução final da
política social pode ganhar um lugar de centralidade da formação. Se os estágios
supervisionados não debatem o trabalho profissional assentado nas atribuições e
competências, nos princípios fundamentais do Código de Ética e no acúmulo teórico
acerca da profissão, a centralidade recai no modo como a política social deve ser
executada e o que se espera do trabalho de assistentes sociais nela; perde-se, assim, a
potencialidade que a profissão tem em construir respostas para além dos objetivos da
política social, respostas vinculadas à análise crítica da realidade, calcada nos movimentos
sociais vinculados à classe trabalhadora. Esse parece ser um dos principais desafios ao
debate dos Fundamentos do Serviço Social nessa conjuntura;
Analisou-se que, muitas vezes, a razão sensível é priorizada nas respostas profissionais
em detrimento da razão dialética. Concorda-se com Coelho (2013) que, nas ações
imediatas, há uma direção social. O trabalho de assistentes sociais na aparência do
fenômeno reproduz as relações sociais vigentes. Nesse sentido, nas oficinas do Projeto
ABEPSS Itinerante, muito debateu-se sobre a unidade teoria-prática no trabalho
profissional, o cotidiano que ao mesmo tempo aliena e permite possibilidades de
afirmação da perspectiva crítica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há desafios particulares para o debate dos Fundamentos do Serviço Social que foram
apontados nos relatórios e pouco pôde-se discutir aqui. São desafios que apontam à
necessidade de mais pesquisas nos relatórios das diversas edições do Projeto ABEPSS
Itinerante. Tais relatórios devem tornar-se fonte de pesquisa para futuras produções
intelectuais, ainda pouco exploradas, o que aponta também a necessidade de maior
cuidado na condução do Projeto ABEPSS Itinerante referente às sínteses, relatórios e
sistematizações. Foi também possível perceber relatórios muito descritivos e pouco
analíticos, com falta de dados quantitativos e com inconsistência entre a descrição da
atividade e a análise teórica.
Por meio das sínteses aqui apresentadas e dos dados trabalhados, pode-se concluir que o
Projeto ABEPSS Itinerante é uma atividade essencial para difundir a lógica das Diretrizes
Curriculares, debatendo com diferentes sujeitos da formação profissional, visando
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O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL
Os desafios destacados devem ser analisados pela ABEPSS, pelas UFA´s e pelo conjunto
da categoria, no sentido de construir alternativas para ampliar o debate dos
Fundamentos do Serviço Social, na direção da perspectiva de totalidade histórica, da
relação realidade e profissão, reafirmando a lógica que sustenta as Diretrizes Curriculares.
REFERÊNCIAS
ABEPSS. Diretrizes gerais para o curso de serviço social. Rio de Janeiro: ABEPSS, 1996.
Disponível em:
http://www.abepss.org.br/arquivos/textos/documento_201603311138166377210.pdf.
Acesso: 2 out. 2018.
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RODRIGO TEIXEIRA
IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul de. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil:
esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 33. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. A Ideologia Alemã. 3. ed. São Paulo: Ciências Humanas,
1982.
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global
Editora, 1987.
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O DEBATE DOS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL
MOLJO, Carina Berta; SILVA José Fernando Siqueira da. Cultura Profissional e tendências
teóricas atuais: o Serviço Social brasileiro em debate. In: GUERRA, Yolanda et. al. (org).
Serviço Social e seus Fundamentos: conhecimento e crítica. Campinas: Papel Social, 2018.
NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 4. ed. São Paulo: Cortez
Editora: 2005.
PONTES, Reinaldo. Mediação e Serviço Social. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
TEIXEIRA, Rodrigo José. Fundamentos do Serviço Social: uma análise a partir da unidade
dos núcleos de fundamentação das Diretrizes Curriculares da ABEPSS. 2019. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
_________________________________________________________________________________________
Rodrigo TEIXEIRA
Possui graduação em Serviço Social pela Universidade de Taubaté (2004) e mestrado em Serviço Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Atualmente é professor assistente da Universidade
Federal Fluminense. Tem experiência na área de Serviço Social, com ênfase em Serviço Social, atuando
principalmente nos seguintes temas: serviço social, política social, história oral, linguagem profissional e
experiência.
_________________________________________________________________________________________
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O ensino a distância
e as tendências da
apropriação
dos fundamentos
do Serviço Social
Distance learning and trends in the appropriation of the
foundations of Social Work
..............................................................................
* Mestre e doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com período san-
duíche na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Grupo de Es-
tudos e Pesquisas sobre Trabalho (GET/UFPE) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Fundamentos do Serviço
Social Contemporâneo (NEFSSC/UFRJ). Bolsista Capes. E-mail: israelsscarlos@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/
0000-0002-7340-0609.
Introdução
Conclusões
Referências
DOI: 10.12957/rep.2019.45218
Recebido em 15 de março de 2019.
Aprovado para publicação em 04 de julho de 2019.
A Revista Em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea está licenciada com uma Licença Creative
Commons Atribuição 4.0 Internacional.
RESUMO
O relatório que aqui apresentamos é parte da documentação e registro da quarta edição do projeto ABEPSS
ITINERANTE sob coordenação da ABEPSS durante o biênio 2017-2018, intitulado Os Fundamentos do Serviço
Social: as atribuições e competências profissionais em debate. O documento situa historicamente o projeto -
sua construção e execução -, sua lógica, como continuidade das três edições anteriores, como estratégia
político-acadêmica de enfrentamento ao processo de precarização da formação profissional, das condições
de trabalho de assistentes sociais e aos ataques constantes às instâncias de organização acadêmico-
política. Apresentamos os dados referentes à sua implementação nas 34 oficinas em 22 estados do país e no
Distrito Federal, com a participação aproximada de 1300 pessoas entre profissionais e estudantes. Os
principais desafios para a formação, o trabalho e a organização política de assistentes sociais no Brasil são
apresentados, apontando algumas estratégias para o seu enfrentamento.
PALAVRAS-CHAVE
ABEPSS Itinerante. Formação profissional. Trabalho profissional. Organização política. Diretrizes
Curriculares.
ABSTRACT
This report is part of the documentation of the fourth edition of the ABEPSS ITINERANTE project
coordinated by ABEPSS during the 2017-2018 period, entitled Social Work Foundations: Professional Duties
and Competences Under Debate. This document presents the historical context where the project took
place, explains the logic of the project in the continuum of the three previous editions. This project is a
Assistente Social. Doutor em Serviço Social. Professor adjunto IV do Departamento de Fundamentos do
Serviço Social, Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (UFRJ, Rio de Janeiro,
Brasil). Avenida Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Rio de Janeiro (RJ), CEP.: 21941-901. E-mail:
gustavo.essufrj@yahoo.com.br.
Assistente Social. Pós-Doutora. Professora Associada II da Universidade Federal de Ouro Preto. (UFOP,
Ouro Preto, Brasil). rua Professor Paulo Magalhães Gomes, 122, Ouro Preto (MG), CEP.: 35400-000. E-mail:
vcarrara@ufop.edu.br.
DOI 10.22422/temporalis.2020v20n40p284-299
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2019 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative
Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o
material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo
que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
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political and academic strategy to confront the process of precarization of professional training, working
conditions of social workers, and to face the attacks against academic and political organizations. This
document presents data about the implementation of the project at 34 workshops in 22 states as well as in
the Federal District of Brazil. Around 1300 people participated including professionals and students. This
document also presents the principal challenges for training, work, and the political organization of social
workers in Brazil, and proposes strategies to overcome them.
KEYWORDS
ABEPSS Itinerante. Professional Training. Professional Work. Politic Organization. Curricular Guidelines.
INTRODUÇÃO
A LDB, Lei nº 9.394, aprovada em 1996, foi elaborada no contexto brasileiro pós-ditadura
civil-militar-empresarial, numa conjuntura internacional marcada pelo avanço político-
econômico neoliberal. A definição da política de educação nacional expressou os projetos
de educação em disputa e as diferentes concepções de mundo presentes na sociedade
brasileira profundamente marcada pela desigualdade de classe, pelo racismo, pelo
heteropatriarcado, que nos leva a perguntar: educar para qual sociedade?
É no bojo dessa dinâmica que as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Serviço Social
(1996) foram elaboradas, a partir do aprofundamento dos avanços do Currículo Mínimo
(1982). De acordo com Abreu (2007) a proposta apresentada pela ABEPSS sofreu
substantivas alterações em seu processo de aprovação pelo Conselho Nacional de
Educação (CNE)1. No mesmo sentido, Grave (2013) afirma que as diretrizes construídas
pela entidade foram, no seu processo de aprovação, esvaziadas da sua lógica2.
1
Resolução nº 15, de 13 de março de 2002. Estabelece as Diretrizes Curriculares para os cursos de Serviço
Social. O Presidente da Câmara de Educação Superior, no uso de suas atribuições legais e tendo em vista o
disposto na Lei 9.131, de 25 de novembro de 1995, e ainda o Parecer CNE/CES 492/2001, homologado pelo
Senhor Ministro de Estado da Educação em 9 de julho de 2001, e o Parecer CNE/CES 1.363/2001,
homologado em 25 de janeiro de 2002 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2002).
2
O projeto original foi comprometido com alterações inclusive sobre “[...] o perfil de bacharel em Serviço
Social onde constava ‘profissional comprometido com os princípios e valores norteadores do Código de
Ética do Assistente Social’, que foi retirado e substituído por ‘utilização de recursos da informática’ [...]”,
entre outros elementos, segundo Iamamoto (2012, p. 43, grifos da autora).
285
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ABEPSS ITINERANTE QUARTA EDIÇÃO. FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL
Uma das respostas da entidade para acompanhar este processo foi a avaliação3 realizada
pela ABEPSS a respeito da implementação das Diretrizes Curriculares quando dos 10 anos
de sua aprovação. Com os seus resultados, apontou-se uma série de limites e desafios
que demandaram enfrentamento pelas sucessivas gestões da ABEPSS, constituindo o
Projeto ABEPSS ITINERANTE uma das estratégias político-pedagógicas construídas4.
3
Cujos resultados foram publicados em: Abepss (2007).
4
Para maiores informações a respeito das edições anteriores do projeto Cf. Teixeira, Aquino e Gurgel,
(2016) e Abreu (2013).
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questão social, e não como problemas sociais fragmentados. Competência crítica supõe a
apreensão da indissociabilidade das dimensões teórico-metodológica, ético-política e
técnico-operativa. Em outros termos, reduzir a concepção de competência apenas à
competência instrumental imposta pelo mercado de trabalho, como se saber fazer
pudesse se autonomizar das dimensões de por que e para que fazer, fortalecerá
intervenções profissionais funcionais à reprodução da ordem vigente.
5
A proposta do projeto com os objetivos, conteúdos trabalhos nos módulos, e a metodologia, estão
disponíveis em: http://www.abepss.org.br/abepssitinerante4edicao-71.
6
A comissão organizadora Nacional foi composta por membros da Executiva Nacional da Abepss, das
diretorias regionais da entidade, uma representação do Conselho Federal de Serviço Social e uma
representação do GTP da ABEPSS Serviço Social, Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional.
Contamos ainda com a fundamental contribuição da professora Dra. Rosângela Batistoni que gentilmente
autorizou a edição da palestra por ela proferida, em novembro de 2017, no I Seminário Nacional sobre os
Fundamentos do Serviço Social realizado na UFRJ. O vídeo foi utilizado como material didático-pedagógico
durante a execução do projeto. É fundamental destacar, ainda, o apoio político e financeiro do Conjunto
CFESS/CRESS como também das unidades de formação acadêmica que acolheram a realização das oficinas.
7
O projeto foi executado no período de abril a setembro de 2018, se desenvolveu em 22 estados mais o
Distrito Federal, e foram realizadas de 34 oficinas com a presença de 1319 participantes aproximadamente.
Afirmamos que o número é aproximado devido a diversidade de formas de registro identificadas nos
relatórios regionais. Observam-se diferenças entre número de inscritos, de participantes, de concluintes,
nem todos os relatórios apresentam essas especificações. Outra questão a ser destacada diz respeito à
classificação dos participantes por segmento. A referência a “docentes”, neste relatório, não nega a
atividades docente como atribuição privativa de assistentes sociais. Entretanto, ocorreu participação de
docentes não assistentes sociais, por isso a categoria docentes inclui assistentes sociais no exercício da
docência universitária e docentes não assistentes sociais.
8
Uma breve exposição dos dados quantitativos é importante para podermos dimensionar o alcance do
projeto em tempos de condições precárias de trabalho que se traduzem em dificuldades para a participação
de atividades como essa.
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Na região Nordeste o total de participantes nas oito oficinas realizadas em seis dos sete
estados que a compõem foi de 289, tendo sido realizadas em Maceió (Alagoas) Salvador
(Bahia) Fortaleza e Iguatu (Ceará), Patos e Campina Grande (Paraíba), Recife
(Pernambuco) e Aracaju (Sergipe).
A região Norte realizou seis oficinas distribuídas nas cidades de Belém (Pará), Palmas
(Tocantins), Teresina (Piauí), São Luís (Maranhão), Manaus (Amazonas) e Boa Vista
(Roraima), contabilizando 324 participantes.
A região Sul I realizou oficinas nos três estados que a compõem (Paraná. Santa Catarina e
Rio Grande do Sul) com 117 participantes aproximadamente.
Na Região Sul II foram realizadas seis oficinas, dentre as quais cinco tiveram lugar no
estado de São Paulo e uma em Mato Grosso do Sul, com 245 participantes.
Os relatórios regionais destacam aquilo que parece uma tendência constante nos eventos
da profissão em relação a inscrição e efetiva participação. Observou-se em todas as
regionais que esta relação guardou uma proporção de 50%, isto é, em todas as oficinas
participou apenas a metade do contingente que tinha realizado inscrição online. Segundo
análise dos regionais isto foi um dos elementos que obstaculizou a participação, pois a
capacidade total de vagas não foi utilizada.
Nesta quarta edição do projeto realizou-se um grande esforço para garantir a execução
descentralizada das oficinas, e essa dinâmica de interiorização foi positivamente avaliada
em todas as regiões.
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Esse panorama coloca grandes desafios para o exercício profissional sintonizado com os
valores e princípios do Projeto Ético Político Profissional. A identificação de atribuições e
competências profissionais é atravessada por uma confusa e, às vezes, mimética relação
entre política social e profissão. Este dilema compareceu nos debates de todas as oficinas
e se desdobrou nas seguintes questões. Em primeiro lugar, parcela de assistentes sociais
afirma haver pouco conhecimento das atribuições e competências profissionais por parte
dos contratantes dos serviços de assistentes sociais e por parte dos outros profissionais
das equipes. Informam que esta falta de conhecimento se traduz em “requisições
tradicionais, conservadoras”, como: aconselhamento, adequação de comportamento,
técnicas de Serviço Social de Caso, atividades de recreação, ajustamento social,
tratamento com base na remoção dos fatores psicossociais, etc.
9
Enfatizou-se a invasão dos espaços de trabalho no espaço do tempo livre dos trabalhadores,
especialmente com o uso dos recursos tecnológicos comunicacionais. Destacou-se aqui a pertinência do
debate salarial para a categoria profissional.
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10
Os participantes receberam com antecedência as referências bibliográficas, de leitura obrigatória para o
aproveitamento dos debates. No aspecto aqui apontado foi sugerida a leitura de Guerra (2016).
11
Para um aprofundamento a respeito do debate sobre o lugar subsidiário [o que não significa
secundarizado] da profissão na divisão sócio-técnica do trabalho Cf. Iamamoto e Carvalho 1982.
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Outro desafio encontrado por assistentes sociais nos diversos espaços de trabalho –
segundo apontado - é conseguir desenvolver pesquisa. Os registros de algumas oficinas
indicaram que as considerações e debates sobre a sistematização da intervenção
profissional foram inexpressivos, assim como as referências à dimensão investigativa e à
pesquisa como competência profissional, chamando a atenção para o caráter policialesco
dos processos de investigação quando estes são desenvolvidos. É fundamental destacar
que a pesquisa, na perspectiva do projeto ético político, remete a um componente
constitutivo da formação e do trabalho profissional. Essa concepção nos alerta para a
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coerente com as demandas do mercado, que define e forma assistentes sociais para
exclusivamente atender ao que é necessário ao mercado. A tendência à responsabilização
individual pode se reproduzir, também, quando se faz referência ao novo perfil dos
estudantes. Nos debates afirmou-se que estaríamos presenciando um perfil de
estudantes mais pragmáticos, que vendo no diploma superior a chance de se inserir no
mercado de trabalho, encontram nos cursos em EaD, especialmente devido aos custos
das mensalidades, as “condições” para a realização de seus estudos. Diante dessas
colocações, que correspondem com a realidade vivenciada por um importante segmento
de discentes de Serviço Social, reforçamos a necessidade de sua interpretação como
expressões na vida singular desses sujeitos de uma política de exclusão da maioria da
população do acesso à possibilidade de uma educação superior de qualidade.
Uma questão que deve ser destacada, pois comparece expressivamente nos debates e se
repete desde as edições anteriores do projeto ABEPSS ITINERANTE, é uma demanda a
respeito da necessidade de que a formação profissional articule melhor a relação
teoria/prática. Essa demanda recorrente nos remete aos fundamentos da profissão, à
lógica das Diretrizes Curriculares em sua proposta inovadora de formação profissional.
Essa expressão fenomênica, qual seja, a constante reclamação pela relação teoria/prática
nos alerta para a necessidade de continuarmos aprofundando esse debate e sinaliza que
a escolha do tema para a quarta edição do projeto ABEPSS ITINERANTE foi bastante
acertada.
Outra questão que merece destaque é a referência nos debates à dificuldade de “atrair”
assistentes sociais para serem supervisores de campo. Duas questões devem ser
cuidadosamente pensadas. Em primeiro lugar, a referência parece ser sempre às
dificuldades da supervisão de campo e pouco ou nada se problematiza acerca da
supervisão acadêmica que transita por desafios similares. Em segundo lugar, os debates
apontam questões que responsabilizam os estudantes por essa dificuldade. Afirma-se nos
relatórios que os alunos chegam com deficiências de fundamentação teórica, “à espera de
dicas de como fazer, passivos e pouco propositivos o que desmotiva os profissionais a
oferecerem vagas”, “não veem nos estagiários parceiros, mas alguém que precisa de
condução, que exige tempo e dedicação, acarretando mais trabalho”. Relatos dessas
características expõem a necessidade de aprofundar o debate a respeito da natureza do
componente curricular estágio supervisionado. Trata-se de um momento da formação
profissional e, por isso, requer da supervisão de campo e acadêmica. Entretanto,
afirmações como as citadas parecem requisitar do estagiário um
posicionamento/comportamento que não lhe compete, isto é, parece que se espera do
estagiário o comportamento de mais um funcionário que venha a descomprimir os
serviços assoberbados pela ausência de concursos públicos ou contratações. Foram
relatadas as dificuldades que estagiários possuem para realizar uma leitura crítica da
realidade social “aliando teoria-prática e de proporem formas diferenciadas de
intervenção”, reiteramos, parece estar se desconhecendo o lugar pedagógico desse
componente curricular, já que em alguns relatos essas “dificuldades” dos estagiários
aparecem como justificadoras da negativa para a abertura de vagas de estágio
supervisionado. Ao mesmo tempo, os estudantes encontram sérias dificuldades para
permanecerem na universidade por conta do desmonte da política de assistência
estudantil e são obrigados a privilegiar estágios remunerados, o que significa, muitas
vezes, a secundarização da dimensão pedagógica desse componente curricular pela
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necessidade de subsistência.
Uma análise da realidade centrada na biografia individual dos sujeitos pode ser verificada
nas reflexões durante as oficinas e destacadas nos relatórios, como explicitamos em
parágrafos anteriores. Destacou-se o fato de que as novas gerações de estudantes estão
cada vez mais passivas e preocupadas com a certificação da sua participação em eventos,
pouco participativos em sala de aula, e indo para os estágios sem o conhecimento de seus
direitos, de sua condição de estagiário, atribuições e competências. Sem uma leitura que
permita apreender essas biografias individuais como expressões singulares de
determinações universais retrocederemos a análises culpabilizadoras e moralizadoras,
apesar de que as mesmas oficinas chamaram a atenção para a preocupação a respeito de
uma tendência a psicologização da questão social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
13
Cabe destacar que essa afirmação já supõe um equívoco, pois a divisão entre disciplinas teóricas e
práticas é estranha à lógica das diretrizes curriculares.
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A análise dos seis relatórios regionais, cujas principais tendências aqui apresentamos,
confirma que o debate sobre os fundamentos do Serviço Social com ênfase nas
atribuições e competências profissionais foi acertado, mas, evidentemente, não
esgotado. Nesse sentido, a continuidade do projeto como estratégia político-pedagógica
de defesa do projeto de profissão construído no Brasil nos últimos 40 anos é
fundamental.
REFERÊNCIAS
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Brasília (DF), 2019. Disponível em: https://www.andes.org.br/sites/publicacoes . Acesso
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Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES152002.pdf. Acesso em: 22
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REPETTI, GUSTAVO JAVIER; CARRARA, VIRGINIA ALVES
_________________________________________________________________________________________
Gustavo Javier Repetti
Assistente Social formado pela Facultad de Trabajo Social de la Universidad Nacional de La Plata, Argentina
(2001). Mestre (2008) e Doutor (2013) em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professor adjunto IV do Departamento de Fundamentos do Serviço
Social, ESS/UFRJ. Membro pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre os Fundamentos do Serviço
Social na Contemporaneidade (NEFSSC).
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1
1. INTRODUÇÃO
1
A pesquisa foi realizada através de missão de estudos que contou com financiamento do Programa de Bolsas Ibero-
americanas para jovens pesquisadores doutores do banco Santander (Edital 2015).
2
Quais sejam: Revista Lócus Social (Universidade Católica Portuguesa) e Revista Intervenção Social (Universidade Lusófona).
2
A formação de assistentes sociais em Portugal, tal como no Brasil, tem início da
década de 1930, tendo como primeiras escolas o Instituto de Serviço Social de Lisboa
(1935), a Escola Norma Social de Coimbra (1937) e a Escola do Porto (1956). A
institucionalização acadêmica e profissional do Serviço Social tem como cenário o Estado
Novo - regime autoritário e corporativista - conformando uma formação com influências
médico-sanitaristas e com um viés doutrinário e conservador (MARTINS, 1999). A
regulamentação desta formação, datada de 1939, na década de 1950 e 1960 é revisada,
implicando, respectivamente, o aumento o curso de três para quatro anos e o
reconhecimento desta formação como curso superior (BRANCO, 2009).
Na década de 1960 a formação passa por uma reorientação, com a introdução de
disciplinas das Ciências Sociais e dos “métodos” em Serviço Social, sob influência das
abordagens norte-americanas e posteriormente da ênfase desenvolvimentista, as quais irão
coexistir com as práticas tradicionais (BRANCO, FERNANDES, 2005). Após a Revolução de
1974, o Serviço Social, num cenário de democratização que possibilita avanços a profissão,
vivencia um processo de redimensionamento de suas práticas, formação e conhecimentos.
Sob influência das correntes do serviço social crítico latino-americanos, inicia-se um
questionamento à metodologia clássica do Serviço Social (BRANCO, 2009). Verifica-se, ao
longo da trajetória da profissão, interlocuções e intercâmbios sistemáticos com o Serviço
Social brasileiro desde os anos 1960, inicialmente no quadro das tendências
desenvolvimentistas e após no processo de reconceitualização, seguidas da colaboração na
qualificação da pós-graduação, bem como, mais recentemente, por parcerias na
investigação e produção de conhecimento nos marcos da internacionalização do ensino
superior (MARTINS; CARRARA, 2015).
Destaca-se o reconhecimento tardio do grau de licenciatura (1989) e também da
inserção dos cursos de Serviço Social em universidades públicas, que ocorre nos anos
20003. Neste contexto, o processo de Bolonha4, iniciado em 1998, transformou a educação
superior na Europa, tendo um grande impacto na formação da área e no processo de lutas
profissionais em torno da licenciatura, acarretando uma diversidade de planos de estudos,
componentes curriculares e duração dos cursos (MARTINS ET AL, 2015). Demarca-se,
neste contexto, a “natureza classista e elitista da organização de um sistema de ensino
superior que perde a referência da formação pessoal, social e da cultura intelectual, para
uma formação curta, instrumentalizada para o mercado” (MARTINS; TOMÉ, 2008, p. 6).
3
Somente em 2000/2001 inicia-se o funcionamento, na Universidade dos Açores, da primeira licenciatura no ensino
universitário público.
4
A Declaração de Bolonha objetiva criar na Europa um espaço de ensino superior globalmente harmonizado, visando a
mobilidade e a empregabilidade dos estudantes, bem como a adoção de sistema de formação por ciclos, a definição de um
sistema de créditos e a adoção de um sistema de graus acadêmicos comparáveis (MARTINS, TOMÉ, 2008).
3
Esse processo implicou na redução do tempo de formação do Serviço Social, especialmente
no 1º ciclo, com duração diferenciada entre as escolas (6 a 8 semestres). Tal redução,
conforme Martins et al (2015), impacta na minimização de conteúdos voltados à dimensão
teórico-metodológico e ético-politica, fornecendo os contornos de uma formação pragmática,
com ênfase para o desenvolvimento de competências que respondam às demandas técnico-
administrativas de políticas sociais focalistas.
A pós-graduação em Serviço Social em Portugal é constituída também na década de
1980, através de cooperação entre o Instituto Superior de Lisboa e a PUC-SP e, em 1996, o
doutoramento em Serviço Social. A partir de 1995 são constituídos mestrados sob
responsabilidade exclusiva de universidades portuguesas e, em 2003, o primeiro curso de
Doutoramento na Universidade Católica Portuguesa. Atualmente – conforme Branco (2009)
e consulta em sítios eletrônicos das universidades - existem em Portugal 17 cursos de
Licenciatura, 11 programas de Mestrado e 4 programas de Doutorado em Serviço Social.
Nesta trajetória histórica, entre os anos de 1935 a 2009, formaram-se 14.875
diplomados em Serviço Social e, no que tange aos espaços sócio-ocupacionais, o setor
público é o principal campo de atuação, especialmente os Ministérios da Justiça e
Segurança Social, seguidos pelas Organizações Sociais Sem Fins Lucrativos que
representam 83,4% dos equipamentos sociais existentes no país características que levam
a uma dualização das estruturas de carreiras e das condições remuneratórias (BRANCO,
2009). Outros aspectos que impactam na profissão são os processos migratórios dos
profissionais em busca de oportunidades de trabalho, a inserção em programas de
voluntariado e em estágios profissionais e, ainda, o desemprego, que atinge
estimativamente entre 10 a 12% dos licenciados de Serviço Social (MARTINS ET AL, 2015).
Destaca-se também a ausência de regulamentação referente ao exercício
profissional e de diretrizes curriculares para a formação em Serviço Social, bem como a
inexistência de uma Ordem Profissional que atue na regulação e fiscalização do exercício
profissional. Isso reforça a dualização referida e uma tendência de precariedade das
condições de trabalho, acentuada pelos impactos das políticas de austeridade fiscal na
estruturação de serviços sociais públicos. Registra-se a existência de Associação dos
Profissionais de Serviço Social (fundada em 1978), a qual tem lutado pelo seu
reconhecimento como Ordem Profissional através da criação de legislação para tal fim e
adota documentos normativos da International Federtion of Social Work no que tange à
definição de Serviço Social e as diretrizes éticas.
A pesquisa visou identificar como as produções das revistas portuguesas analisam
os Fundamentos do Serviço Social e suas dimensões constitutivas (CLOSS, 2015),
interligadas dialeticamente, quais sejam: a história da profissão, as tendências teórico-
4
metodológicas, a compreensão sobre o objeto profissional, a dimensão ético-política e o
trabalho profissional. Em termos sintéticos, o eixo da história do Serviço Social abarca a
análise da trajetória da profissão na realidade sócio-histórica nacional, numa perspectiva
totalizante que considera a história com eixo articulador (SIMIONATTO, 2004), de modo a
apreender as transformações que se processam nas diferentes dimensões que constituem o
Serviço Social como totalidade histórica (CARDOSO, 2007), ou seja, o trabalho, a formação,
o conhecimento e a organização político-profissional. Já a análise da dimensão teórico-
metodológica abarca a apreensão das matrizes de pensamento social que fundamentam
historicamente a profissão, de como estas são incorporadas nos modos de pensar e intervir
do Serviço Social, considerando também a incidência de tais matrizes na formação e na
produção de conhecimento (ABEPSS, 1996). No que tange à dimensão ético-política, esta
engloba a análise da direção social, dos valores e princípios que orientam o exercício
profissional, considerando como tal dimensão se expressa em normativas éticas (Códigos
nacionais e documentos internacionais). Na sequência, o outro eixo consiste na análise das
concepções de objeto de trabalho, considerando o debate brasileiro da questão social como
matéria de profissional (IAMAMOTO, 2008), embora esta dimensão necessite ser
apreendida no quadro das tendências teórico-metodológicas e da análise das concepções
sobre o trabalho profissional5. Por fim, destaca-se o trabalho profissional, apreendido em
sua conexão com as configurações da questão social, as tendências teórico-práticas do
exercício profissional, a estruturação do mercado de trabalho, a organização dos assistentes
sociais e legislações que o regulamentam.
A partir destas premissas teóricas e da construção de descritores para a revisão
das publicações das revistas, construiu-se banco de dados dos artigos sobre Fundamentos
do Serviço Social, cuja caracterização encontra-se sistematizada no quadro a seguir.
Dimensão ético-política 0 0 7 3
Total 9 30 41 17,59
Fonte: Sistematização das autoras. Dados obtidos na coleta de dados da pesquisa documental.
5
Dentre as revistas pesquisadas não foi identificada uma tendência de debate direto sobre o objeto profissional.
5
A revista Lócus Social possui 30 artigos publicados no período, sendo que 30%
destas versam sobre dimensões temáticas dos Fundamentos (9 de 30), em sua maioria
sobre a dimensão histórica da profissão no contexto contemporâneo (6 de 9), seguida pelo
debate da pesquisa sobre a trajetória histórica do Serviço Social (2 de 9) e, com menor
incidência (1 de 9), registra-se o eixo temático da dimensão teórico-metodológica do Serviço
Social. No que tange à Revista Intervenção Social, registram-se 233 artigos publicados, dos
quais 41 versam sobre dimensões dos Fundamentos (17,59%). A produção concentra-se,
predominantemente, no eixo trabalho profissional (20 de 41), através da abordagem da
atuação do assistente social na política de saúde, empresas, política habitacional,
desenvolvimento local, política de educação, instituições autárquicas, bem como terceira
idade, infância e juventude. Como segunda tendência, situa-se o debate histórico da
profissão (8 de 41), especialmente a formação profissional na conjuntura recente, a trajetória
da primeira escola e da produção de conhecimento em Serviço Social. Na sequência, a
dimensão ético-política da profissão é tema de 6 de 41 artigos, os quais analisam os
principais valores e princípios que orientam a atuação dos assistentes sociais. Como última
tendência, em igual frequência, situa-se o debate teórico-metodológico do Serviço Social, a
partir das seguintes abordagens: os campos paradigmáticos do Serviço Social, o
conhecimento e prática do Serviço Social a partir do pensamento de Pierre Bourdieu, a
relação teoria-prática e os modelos de intervenção, a centralidade do empowerment.
Sobre esta última tendência das produções, destaca-se, inicialmente, a
sistematização de Amaro (2008), a qual propõe uma categorização sobre campos
paradigmáticos e teorias do Serviço Social, a partir da articulação das vertentes sociológicas
e matrizes do pensamento social com o conhecimento e o trabalho da profissão. A primeira
vertente, denominada “perspectivas da ordem e da regulação”, fundamenta-se nos
pressupostos do funcionalismo e do interpretativismo, conformando uma visão mais clássica
e conservadora da ação profissional, ou seja, aquela que objetiva a manutenção do
equilíbrio do sistema e a preservação da sociedade existente, marcada pela abordagem
psicologizante dos problemas sociais. Em direção oposta, destaca a autora (2008), o
“Serviço Social Estrutural”, ancora-se na tradição marxista e estruturalista e compreende a
sociedade como “um composto de estruturas que, apesar de serem construídas pelos
indivíduos, lhe são exteriores e exercem funções de dominação e exploração” (p. 71). Neste
quadro, esta vertente enfatiza a análise de nível macro e um projeto político para a
sociedade e sua reestruturação, tendo como horizonte a emancipação dos setores
oprimidos da sociedade e enfatizando a conscientização como estratégia profissional.
Já a terceira vertente, denominada de “Serviço Social Crítico” - recupera
“postulados do marxismo e do feminismo e articula-os com os contributos mais recentes da
6
teoria social crítica e das perspectivas da pós-modernidade” (AMARO, 2008, p. 72),
configurando-se como uma vertente ativista pós-marxista e pós-estruturalista. Nesse
sentido, caracteriza a autora (2008), que tal vertente preocupa-se em analisar
estruturalmente os problemas pessoais da população atendida, a partir de um olhar vigilante
e crítico sobre as funções de controle e opressão exercidas pela profissão, enfatizando a
questão do poder a partir da influência foucaltina e balizando a intervenção pelas noções de
empowerment e conscientização. Por fim, a autora (2008) situa a vertente da “teoria da
Correlação de Forças”, fundamentada na produção de Vicente de Paula Faleiros,
destacando que a mesma supera as limitações da vertente Estrutural e Crítica, pois “encara
o Serviço Social como uma mediação entre atores e estruturas, num jogo de forças e
poderes em que o assistente social deve tomar partido pelo lado mais fraco” (p. 73). Esta
vertente é enfatizada pela autora como uma alternativa de atuação profissional no mundo
contemporâneo, com um ideal de equidade e justiça social, visando um processo de
fortalecimento e empowerment frente a autonomia e cidadania dos usuários, a partir de um
enfoque que visa capacitar os sujeitos na sua relação com as estruturas sociais opressoras.
Verifica-se que o conceito de empowerment é o que possui maior frequência entre
as produções analisadas, perpassando tanto os dois últimos campos paradigmáticos
discutidos por Amaro (2008), como também sendo tema central de artigos das revistas
portuguesas, seja no eixo teórico-metodológico como também na discussão do trabalho
profissional. Neste horizonte, Pinto (2009) discute o empowerment no trabalho dos
assistentes sociais, compreendendo o mesmo como “princípio político e
técnico/metodológico e como instrumento das políticas sociais e do trabalho social” (p. 399),
enfatizando que, embora esta noção seja polissêmica, um ponto comum entre as diferentes
conceituações é a ênfase para a categoria poder6. Nesta perspectiva, a autora (2009) define
empowerment como um processo articulação, criação e utilização de recursos pelos
sujeitos, comunidades e grupos que implique no acréscimo de poder - social, cultural,
político, econômico – tendo em vista aumentar a eficácia do exercício da cidadania. Destaca
também a relevância do conceito do empowerment para a recriação do Serviço Social, pois
o mesmo “volta a enfatizar a união do sujeito com o seu contexto, a indissolubilidade dos
vários níveis de análise da pessoa-na-situação, a união do micro e macro da prática social”
(PINTO, 2009, p. 408), potencializando o alinhamento da profissão com a procura da justiça
e da mudança social, com vista ao desenvolvimento dos sujeitos, uma vez que tal conceito
não deve restringir-se a intervenção somente no plano individual.
6
“Qualquer conceptualização de empowerment radica não só no conceito de poder, mas também na constatação dos
diferenciais de poder que existem nas sociedades e de uma valoração axiológica desses diferenciais. O empowerment implica
a possibilidade real de mudar os desequilíbrios de poder, seja a nível individual ou coletivo” (PINTO, 2009, p. 402).
7
A ênfase para o empowerment no exercício profissional, com vistas à promoção de
uma cidadania ativa, também está presente na produção de Silva (2003) que, além de
tematizar a categoria poder, atribui centralidade ao fomento da participação. Trata-se, na
ótica do autor (2003), de um processo que envolve mudanças na relação do assistente
social com os utentes, a partir de partilha de saber, de processos decisórios, envolvendo
uma dimensão educacional e emancipatória que implica o acesso aos direitos, processo de
capacitação para a aquisição de consciência crítica que conduza à autoderminação e
autonomia. A conjugação entre as dimensões macro e micro do empowerment na
intervenção profissional - tal como destacada por Pinto (2009) - também está presente nesta
produção, definidas como a “(i) dimensão que procura promover um trabalho - a longo prazo
- com o intuito de propugnar modificações na estrutura social, e a (ii) dimensão que coloca a
ênfase na necessidade de resposta as procuras imediatas dos utentes” (SILVA, 2003, p.
37).
Na sequência, identifica-se como tendência de parte das produções a discussão
do conhecimento e ação do Serviço Social a partir do pensamento de Pierre Bourdieu.
Andrade (2001) discute o campo7 do Serviço Social, analisando o agir dos assistentes
sociais a partir de três eixos correlacionados: os saberes, constituídos por categorias
teóricas, éticas e políticas, conformando um referencial ético-político e teórico-metodológico;
os poderes, que indagam sobre tipos de normatividade que orientam o agir e a vida social;
as subjetividades e subjetivações, considerando os assistentes sociais e os destinatários da
ação como sujeitos de desejos, portadores de memorias, patrimônios simbólicos e culturais.
Neste horizonte, compreende o campo do Serviço Social como constituído socialmente e
legalmente sancionado, mas que também possui uma dimensão instituinte. Ou seja, as
correlações de forças - sejam estas internas ou externas ao campo - ao serem articuladas
com as opções ético-políticas, teórico-metodológicas e culturais do assistente social,
conformam um agir que “pode orientar-se prevalentemente para a regulação, controle e
colonização dos sujeitos destinatários da intervenção, ou para a emancipação e eliminação
da violência simbólica” (ANDRADE, 2001, p. 225). A partir desta abordagem da profissão, a
autora (2008, p. 228) destaca como objeto de trabalho “a situação social vivenciada pelos
destinatários da intervenção do assistente social que é posta nesse espaço, bem como a
rede de relações particulares e também estruturais e processuais envolvidas” que será alvo
de transformação na ação direta de intervenção.
7
“O campo é o lugar de uma forma específica de capital simbólico. O capital científico é fundado sobre atos de conhecimento e
reconhecimento de competências. O campo possui uma estrutura que é mutável e que se define através da posse e
distribuição do capital simbólico entre os agentes sociais constitutivos do campo e pela correlação de forças gerada
(ANDRADE, 2001, p. 225).
8
Também dentre esta tendência teórico-metodológica, situa-se a produção de
Carvalho (2012), a qual realiza uma análise histórica da profissão a partir de três
“espaços/tempos” do conhecimento e ação do Serviço Social, considerando dimensões
como os valores, teorias, instituições, funções sociais, status e cultura, quais sejam: o da
“ação voluntária autónoma”8, compreendido entre o final do séc. XIX até a década de 1920;
o da “ação individualizada e tecnicista”9, situado entre a década de trinta e a de sessenta do
século XX; e desde a década de 1970 a atualidade, a consolidação de um conhecimento em
Serviço Social denominado de “ação pluralista e tendencialmente acumulativa”. Este último
espaço/tempo, conforme a autora (2012, p. 29), é marcado pelo capitalismo desorganizado,
pelo repensar do Estado providência e do paradigma científico dominante, associando-se ao
conhecimento plural da vida social, processo em que a “cumulatividade decorre da
construção do objeto de ação do Serviço Social e a pluralidade da perspectiva teórica para o
analisar”. Assim, o campo do Serviço Social, desde sua gênese, relaciona-se com questões
da desigualdade social entre os setores da sociedade, sendo o objeto da profissão visto
como os “problemas associados a indivíduos, que têm em comum o estarem
frequentemente numa posição de desigualdade, quer por questões individuais ou societais”
(CARVALHO, 2012, p. 29), o que por sua vez, associa-se a “participação do indivíduo e dos
grupos enquanto membros de pleno direito na sociedade. É, então, essa realidade
objetivada, da cidadania social, que poderemos reivindicar como objeto de conhecimento e
de ação do Serviço Social” (p.30). No que tange à pluralidade, a autora compreende que
esta constitui-se por distintas abordagens profissionais, aglutinadas em duas perspectivas: a
emancipadora10, associada ao Serviço Social radical, crítico e consciencializador; e a
perspectiva reguladora de normalização social e ênfase individual, presente em práticas de
práticas de planeamento na construção de procedimento teórico-metodológico como de
diagnóstico, planeamento e execução da ação.
Por fim, situa-se as produções que enfatizam a relação teoria-prática e a
metodologia de intervenção em Serviço Social. Santos (2012) destaca a relevância de
serem adotados modelos de intervenção social para a organização da prática profissional a
partir de uma abordagem polissêmica11, tendo em vista uma postura inovadora e proativa do
assistente social. Neste quadro, destaca o Modelo de Gestão de Casos como voltado para a
mudança social, para o bem-estar e a autonomia, o qual exige um trabalho em rede onde
8
“Neste contexto, prevaleceu um Serviço Social que era “quase uma ordem religiosa”, que pressupunha uma intervenção junto
dos indivíduos das classes sociais mais baixas, de modo a integrarem-se nas normas coletivas e nos valores predominantes,
inculcados pelos que possuíam poder real e simbólico” (CARVALHO, 2012, p. 22).
9
Neste espaço-tempo, a ação do Serviço Social centra-se nos métodos de caso, grupo e comunidade (CARVALHO, 2012).
10
As produções de autores como Lenna Dominelli, Jan Fook e Karen Healy são caracterizadas como pertencentes à tendência
do Serviço Social crítico, ao passo que as formulações do canadense Maurice Maureau são situadas no quadro do Serviço
Social radical e, ainda do brasileiro Paulo Freire como principal fonte da tendência consciencializadora (CARVALHO, 2012).
11
Tal abordagem “preconiza uma intervenção transversal e global com incidência ao nível das estruturas sociais e
comunitárias, no sentido de obter uma apreensão crítica da realidade social (postura holística)” (SANTOS, 2012, p. 133).
9
agentes como o Estado, atores sociais estratégicos e a própria família são recursos
fundamentais para processos de ruptura da exclusão e desfiliação social. Enfatiza que o
processo operativo da gestão de caso - assentado nas estratégias-chave da colaboração,
comunicação e coordenação - ocorre da seguinte maneira (SANTOS, 2012):
avaliação/diagnóstico, que seria o conhecimento profundo, desenvolvido a partir de
genogramas e eco-mapas, da pessoa e do seu contexto; seguido pelo o planejamento, o
qual possui de natureza integrada e estratégica, a fim de responder as questões trazidas
pelo utente e sua família; e, após, a intervenção, desenvolvida com base num contrato
escrito com indicadores e tarefas propostas, prevendo mudanças e ações em conjunto entre
profissionais e utentes.
O debate dos modelos de intervenção também está presente na produção de Pena
(2012), destacando que os mesmos dão sustentação a articulação entre teoria e prática, ou
seja, descrevem a ação do assistente social. Para a autora, tais modelos podem ser
tipificados em termos históricos, sendo denominados de: tradicionais, pois consistem em
propostas de caráter psicologizante, psicodinâmico e comportamentalista, enfatizando a
modificação de condutas individuais; crítico e radicais, propondo a mudança social e a
participação comunitária e coletiva, destacando a conscientização e sustentando-se em
referenciais marxistas; e contemporâneos, com ênfase para interações das pessoas com o
meio social numa perspectiva holística, embasando-se na teoria geral dos sistemas e
matrizes sociológicas e filosóficas como a fenomenologia, a ação comunicativa e o
interacionismo simbólico.
Ainda no que tange às abordagens teórico-metodológicas do exercício profissional,
identifica-se a ênfase para a discussão de métodos do Serviço Social. Para Pena (2012) tais
métodos são influenciados pelas visões e interesses ideológicos de cada contexto histórico
e, na atualidade, é necessário reconfigurar e superar a fragmentação dos métodos clássicos
(Caso, Grupo e Comunidade), potencializando o trabalho em redes e uma visão holística na
compreensão de processos sociais e individuais. Para tanto, a autora (2012) identifica como
fases do método do Serviço Social: a identificação do problema social ou do pedido, a
análise da situação, a avaliação preliminar e operacional, a elaboração do projeto de
intervenção, a execução do projeto, a avaliação e finalização do projeto.
3. CONCLUSÃO
10
No que tange à dimensão teórico-metodológica do Serviço Social, enfatizada na discussão
deste trabalho, identifica-se a tendência de um pluralismo metodológico (TONET, 1995)
marcado por distintas abordagens na compreensão da realidade e da profissão, delineando
abordagens ecléticas e sincréticas (NETTO, 2011) no âmbito dos Fundamentos, através de
distintas matrizes do pensamento social, inclusive trazendo impactos para a identidade
profissional. Sobre este tema, pesquisa de Amaro (2012, p.164-165) identifica a existência
de um “obscurantismo identitário” da profissão em Portugal, engendrado pela polarização
entre as tendências do Serviço Social clássico e pelo frágil debate da história profissional,
das correntes que a atravessam e suas implicações práticas, redundando numa identidade
vaga e imprecisa. Este processo também está relacionado com a não consolidação de um
projeto comum de formação profissional, com a recente consolidação da pós-graduação,
bem como com a dificuldade de regulamentação da profissão em Portugal.
Neste contexto, um dos eixos presentes nas produções consiste na caracterização
das diferentes tendências do Serviço Social português e europeu, as quais convergem no
que tange à compreensão da permanência de tendências “clássicas” relacionadas
historicamente com o Serviço Social tradicional (NETTO, 2011), caracterizadas pela
regulação social e por abordagens psicologizantes dos problemas sociais. Em outro polo,
situam-se tendências caracterizadas como “críticas”, “radicais”, “estruturais”,
“consciencializadoras” e, ainda, pautadas na “teoria da correlação de forças”, perpassadas
por diversas matrizes teórico-metodológicas, embora se destaque como ponto comum, com
exceção do Serviço Social estrutural – cuja denominação em si é problemática, por associar
o marxismo neste âmbito – e da vertente consciencializadora, a ênfase para o
empowerment como dimensão do trabalho do assistente social. Tal noção, é tematizada a
partir de distintos pressupostos teórico-metodológicos, bem como se constitui numa
dimensão presente nas diretrizes liberais-conversadoras do Banco Mundial para as políticas
sociais. Neste quadro, Carvalho (2015) chama a atenção ao “fetiche do empoderamento”,
marcado por mistificações que ocultam as contradições de classe a partir da ênfase na
potencialização de capacidades individuais e de grupos no enfrentamento das
desigualdades e na eficácia de programas sociais. Demarca-se assim, os riscos de uma
incorporação acrítica desta noção controversa pela profissão, assentada numa
compreensão difusa de poder que não o apreende de forma totalizante em seus vínculos
com a apropriação privada e desigual da riqueza socialmente produzida, a qual está na
gênese das múltiplas desigualdades e relações sociais assimétricas que se expressam no
cotidiano da vida social.
Além da ênfase para o empowerment, também verifica-se o debate de modelos e
métodos do Serviço Social, o que evidencia a permanência da histórica tendência
11
endogenista (MONTANO, 2007) na busca uma especificidade interventiva assentada em
esquemas formais de intervenção, o que pode reforçar lógicas tecnicistas. Tal tendência
está associada a existência de um finalismo metodológico no âmbito dos Fundamentos
(AMARO, 2012, p. 94), caracterizado pelo processo em que “o cumprimento do método
passa adquirir estatuto de fim”, ou seja, a centralidade de técnicas de diagnóstico,
planejamento e avaliação em detrimento na relação profissional com a população e da
clareza de direção social do trabalho. Por fim, destaca-se que as considerações tecidas no
que tange a dimensão teórico-metodológica serão adensadas com o debate da produção
dos demais eixos temáticos, o que foge aos limites de exposição deste trabalho.
4. REFERÊNCIAS
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12
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TONET, I. Pluralismo Metodológico: um falso caminho. Revista Serviço Social e Sociedade,
São Paulo, n. 48, 1995.
13
Resumo: Este artigo objetiva resgatar a discussão dos fundamentos históricos e teórico-
metodológicos que marcaram a trajetória do Serviço Social brasileiro, destacando os desafios
profissionais contemporâneos. Metodologicamente, trata-se de levantamento bibliográfico e
documental, de caráter qualitativo, orientado pelo materialismo histórico-dialético.
Palavras-chave: Serviço Social. Fundamentos Históricos e Teórico-Metodológicos. Projeto Ético-
Político Profissional.
Abstratc: This article aims to recover the discussion of the historical and theoretical-methodological
foundations that marked the trajectory of the Brazilian Social Service, highlighting the contemporary
professional challenges. Methodologically, this is a bibliographical and documentary survey, of a
qualitative character, guided by historical-dialectical materialism.
Keywords: Social Service. Historical and Theoretical-Methodological Foundations. Professional
Ethical-Political Project.
1 INTRODUÇÃO
Novarum e Quadragésimo Anno e foi a partir desta vinculação com a Igreja Católica que o
primeiro curso de Serviço Social foi criado, em 1936.
Este perfil conservador católico foi mantido até a primeira metade da década de
1940, quando se iniciou seu processo de tecnificação, a partir da influência norte-americana
e da adoção do Positivismo, conformando o “arranjo teórico doutrinário” (IAMAMOTO,
1992), a partir do que houve uma valorização das técnicas na profissão, de modo a atender
as transformações sociais e demandas da época do Estado interventor e da sociedade,
reclamando uma redefinição do assistencialismo católico e da própria doutrina social da
Igreja (CASTRO, 2007).
Nos anos 1960, as inquietações e os questionamentos relativos ao “Serviço Social
Tradicional” iniciados nos anos 1950 e que circundavam o Movimento de Reconceituação
Latino-Americano deram origem à renovação profissional, um processo global de mudanças,
mas que devido ao cenário autocrático, confluíram para uma nova direção nas mudanças
internas da profissão, cujas discussões redundaram no pluralismo profissional, e disputa
pelos espaços (NETTO, 2011).
A abertura de cursos de graduação nas universidades públicas e, posteriormente,
de pós-graduação permitiram aproximação da profissão com as discussões das Ciências
Sociais e ampliação do escopo investigativo, o que favoreceu o desenvolvimento de uma
“massa crítica” que, nos anos 1980 e 1990, influenciaram as discussões que engendraram o
atual PEPP, voltando-se para um projeto ligado à classe trabalhadora, e sob influência do
marxismo.
Assim, considera-se que mesmo diante de um cenário adverso aos direitos sociais
– se tomados como universais e garantidos em lei –, mas, sobretudo, aos direitos políticos e
civis, a renovação favoreceu a revisão da profissão nos seus aspectos teóricos e
metodológicos, com o propósito de repensar as estratégias de atuação. Em termos teóricos,
este processo se estruturou em três momentos: a “perspectiva modernizadora” (vertente
positivista), com metodologias voltadas ao tecnicismo, burocratismo, com ênfase no
racionalismo, de modo a romper com o empirismo tradicional na profissão, mas que se
traduziam numa separação entre sujeito e objeto; a “perspectiva de reatualização do
conservadorismo” (vertente fenomenológica), priorizando a concepção de sujeito, e uma
metodologia dialógica e compreensiva que fugia a análises macro societárias; e a
“perspectiva de intenção de ruptura” (vertente marxista), impulsionada pelo “Método Belo
Horizonte” (1972-1975), remetendo a profissão à consciência de sua inserção e
aproximação às camadas trabalhadoras na sociedade de classes (NETTO, 2011).
Necessário se faz esclarecer que, em termos teórico-metodológicos, na perspectiva
“modernizadora” o Serviço Social buscou se munir de habilidades e técnicas, bem como
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e Filosofia: das origens a Araxá. 6. ed. São
Paulo: Cortez, Piracicaba, SP: Universidade Metodista de Piracicaba, 2001.
CASTRO, Manuel Manrique. História do Serviço Social na América Latina. 8. ed. São
Paulo: Cortez, 2007.
______; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de
uma interpretação histórico‐metodológica. 16. ed. São Paulo: Cortez: CELATS, 2014.
NETTO, José Paulo. A Construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social frente à crise
contemporânea. In: CFESS; ABEPSS; CEAD. Capacitação em Serviço Social e política
social: Módulo 1: Crise contemporânea, questão social e Serviço Social. Brasília: CEAD-
UNB, 1999. p. 93-110.
______. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. 16. ed.
São Paulo: Cortez, 2011.
SILVA e SILVA, Maria Ozanira (Coord.). O Serviço Social e o popular: resgate teórico-
metodológico do projeto profissional de ruptura. 3. ed., São Paulo: Cortez, 2006.
RAMOS, Sâmya Rodrigues. Organização política dos (as) assistentes sociais brasileiros
(as): a construção histórica de um patrimônio coletivo na defesa do projeto profissional In:
Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, nº 88. p.160-181. 2006.
Abstract: This paper systematizes the preliminary results of a research about the Foundations of the
Brazilian Social Work in the contemporaneity, now in progress. This work is linked to the Institutional
Program for Scientific Initiation Scholarships - PIBIC/UEPB/CNPq, quota 2017-2018, aiming mainly to
analyse, in the scientific productions in the area, the most significant trends about the Foundations of
the profession in the contemporaneity. It is a bibliographical and documentary research, having as
empirical material papers presented at the XV National Meeting of Researchers in Social Work, 2016.
It is based on critical social theory and it is particularly relevant since its results already show a scarce
production on the theme.
Keywords: Social Work. Foundations. Scientific Production.
1. INTRODUÇÃO
5
Para Netto (2001), o termo “questão social” historicamente foi adotado pela burguesia subsumindo o caráter
político da luta dos trabalhadores por melhores condições de vida e de trabalho à fluidez de algo de natureza
“social”, o que justifica o uso das aspas. A partir da segunda metade do século XIX, a expressão “questão social”
deixou de ser usada indistintamente por críticos sociais de diferenciados lugares do espectro ídeo-político,
deslizando paulatinamente, mas nitidamente, para o vocabulário próprio do pensamento conservador. Ou seja,
passou a ser empregada a partir da separação entre o econômico e o social, dissociando as questões
econômicas das “questões sociais”.
6
O GETRAPS é constituído de docentes e alunos de graduação e pós-graduação que desenvolvem pesquisas
de iniciação científica e de mestrado, cujas temáticas estão voltadas para a relação capital x trabalho e para os
fundamentos do Serviço Social, consolidando uma linha de pesquisa que integra o Projeto Pedagógico do Curso
de graduação em Serviço Social da UEPB e contribui para o fortalecimento da Pós- graduação em Serviço Social
desta universidade.
7 Para Netto (1996b), o Serviço Social tradicional é a prática do/as assistentes sociais empirista, reiterativa,
paliativa e burocratizada, fundamentada por uma ética liberal-burguesa, cuja doutrina consiste na correção de
resultados psicossociais considerados indesejáveis, com uma concepção de natureza idealista ou mecanicista
do movimento da realidade social, sendo pressuposta a ordenação capitalista da vida como um dado factual
eliminável.
somente foi expressa a partir dos anos 1980, com a instauração da terceira vertente, ou
seja, a intenção de ruptura.
No que se refere à Modernização Conservadora, esta se constitui na tentativa de
buscar cientificidade para a profissão, bem como a modernização com enfoque no caráter
técnico-operativo, sem romper, contudo, com as bases positivistas, numa clara adesão a
uma nova roupagem conservadora.
Já a Reatualização do conservadorismo, nas palavras de Netto (1996b), com o
propósito de negar o positivismo, sem a pretensão de superá-lo, quando a distensão militar
causava indignação pela ausência de liberdade civil e política, o Serviço Social brasileiro
buscou, de um lado, abrir mão do acervo positivista e, de outro, descreditar do referencial
dialético-crítico, de aparato marxista, fundamentando-se na fenomenologia, de maneira
vulgarizada, o que acabou impossibilitando uma análise rigorosa e crítica da realidade e,
consequentemente, de intervenções profissionais que pudessem ser parametradas e
avaliadas por critérios teóricos e sociais objetivos. Dessa forma, a intervenção profissional
não ultrapassava o campo da ajuda psicossocial para o desvelamento do sentido à pessoa,
ficando apenas no diálogo, isolando assim o usuário do movimento do real em sua
totalidade.
Com relação à tendência de intenção de ruptura, é necessário destacar que foi a
interlocução entre o Serviço Social e a teoria social de Marx, a qual se vincula a uma
vertente revolucionária, cancelando qualquer lastro conservador que vai se configurar
justificada, por um lado, pelo contexto histórico da época e, de outro, pelas próprias
características desta matriz teórica, especialmente apta para subsidiar correntes
sócioprofissionais de sentido crítico (NETTO, 1989).
No entanto, o que se pretendia ser uma renovação do Serviço Social, acabou sendo
uma aproximação inicialmente enviesada à tradição Marxista (NETTO, 1996b); mediação
essa que se deu por fontes secundárias, pouco qualificadas e num registro de forte
ecletismo8. Para Iamamoto (1998, p. 211- 212) uma:
8 Conforme Tonet (1995, p. 35), o ecletismo se constitui na liberdade de tomar ideias de vários autores e articula-
las segundo a conveniência do pensador, sem, contudo, verificar com rigor a compatibilidade de ideias e
paradigmas diferentes, resultando numa verdadeira “colcha de retalhos”. Portanto, não possibilitando a
apreensão do real na sua totalidade.
Como podemos observar o discurso que se pretendia marxista passou a conviver com
uma bagagem teórica eclética, incapaz de efetivar as intenções declaradas, corroborando
na não concretização integral da ruptura anunciada (IAMAMOTO, 1998).
Apesar disso, devemos ressaltar que o pioneiro estudo que marcou a incorporação da
obra marxiana no Serviço Social brasileiro data dos anos 1980, mais precisamente em 1982,
com a obra Relações Sociais e Serviço Social no Brasil - esboço de uma interpretação
histórico-metodológica, de autoria de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho, que apreende o
Serviço Social como uma profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho,
localizada no processo de produção e reprodução das relações sociais (NETTO, 1996b).
Superados os problemas iniciais com a tradição marxista, o Serviço Social passou a
se debruçar sobre os desafios que a história do país tem descortinado à profissão,
dialogando e se apropriando do debate intelectual contemporâneo no campo das Ciências
Sociais do país e do exterior. Desenvolveu-se na pesquisa sobre a natureza de sua
intervenção, de seus procedimentos, de sua história e, principalmente, acerca da realidade
social, política, econômica e cultural onde se insere. Logo, adquiriu o respeito de seus iguais
no âmbito interdisciplinar e conseguiu visibilidade na interlocução com as Ciências Sociais
(YAZBEK, 2000).
Closs (2015) destaca que um marco significativo da problematização dos
Fundamentos do Serviço Social tem como contextualização histórica e teórica o debate
travado em torno da revisão das diretrizes curriculares para a formação em Serviço Social,
desde o currículo de 1982 ao atual projeto de formação profissional de 1996. Portanto, o
processo coletivo de debate e de definição dos eixos centrais, que fundamentam a formação
profissional e explicita as principais tendências do debate teórico-metodológico sobre a
profissão na contemporaneidade.
O recurso à busca dos fundamentos das coisas, da realidade, e mesmo da profissão,
“só tem sentido, em primeiro lugar, quando se opera com uma razão racionalista, historicista
e dialética” (GUERRA, 2004, p.14), recurso este imprescindível para apreensão da
dimensão ontológica do real.
Nesse sentido, de acordo com Ortiz (2010), nos anos 1990 o Serviço Social pode
aprimorar a tendência de ruptura com o denominado Serviço Social “tradicional”,
configurando-a em um projeto profissional com clara direção social e política, expressando
não apenas o amadurecimento interno da profissão, mas sua posição política em face ao
contexto de crise do capital.
No entanto, nesta década, bem como no limiar do século XXI, o quadro
econômico, político, cultural e social do país apresenta repercussões significativas para os
Fundamentos teórico-metodológicos do Serviço Social. Segundo Yazbek (2009), apesar da
vitalidade do marxismo como perspectiva de análise, os desdobramentos das polêmicas em
9Segundo Sousa (2005), a pós-modernidade se restringe ao que é efêmero, descontínuo, fragmentado. Ao negar
a totalidade, a razão dialética e as metanarrativas privilegiam a dimensão fenomênica da realidade, não
apreendendo a essência do real.
Com base nas investigações empreendidas nos artigos selecionados, foi possível
percebermos a prevalência de estudos a respeito do trabalho como fonte de toda riqueza
social, como categoria fundante do mundo dos homens (MARX, 1978), sobre o trabalho
do/da assistente social, sobre a relação existente entre o Serviço Social e o método crítico
dialético, sobre a produção do conhecimento acerca dos fundamentos do Serviço Social,
bem como, um significativo enfoque conferido ao tema do projeto ético-político profissional,
em particular acerca das possibilidades de seu fortalecimento.
Observamos, por exemplo, o debate sobre a atualidade do referido projeto
profissional, visto que a sociabilidade burguesa, em especial o Estado, atravessam
avalanches em decorrência da racionalidade capitalista em sua fase imperialista,
impactando diretamente as profissões e, consequentemente, os projetos profissionais.
Verificamos na unanimidade dos artigos analisados a afirmação da pertinência do
método critico dialético para o Serviço Social, apreendido como sendo o mais adequado
para atender aos interesses teóricos, metodológicos, éticos e políticos da categoria
profissional.
Sobre os Fundamentos do Serviço Social, dos 08 (oito) artigos analisados 03 (três)
tratam do tema, o que nos possibilita inferir que na produção científica em apreço
permanece a tendência já identificada por estudiosos da área. Ou seja, como já observou
Closs (2015), a produção que aborda diretamente os Fundamentos da profissão é bastante
diminuta.
Portanto, no que se refere às tendências sobre os Fundamentos do Serviço Social na
produção científica em apreço, podemos destacar: a teoria social crítica, enquanto
Fundamento do Serviço Social na atualidade; o Projeto Ético-Político, enquanto direção
social da profissão; o trabalho enquanto categoria fundante do ser social e o trabalho
profissional em tempos de crise estrutural do capital.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os achados iniciais nos permitem inferir que, apesar de todos os esforços para que
os artigos analisados fossem retirados exclusivamente do eixo temático sobre os
Fundamentos do Serviço Social percebe-se que este não é o foco das discussões travadas
nessa produção. Constatamos que as tendências predominantes na produção científica
deste eixo são: a teoria social crítica, enquanto Fundamento do Serviço Social na
atualidade; o Projeto Ético-Político, enquanto direção social da profissão; o trabalho
enquanto categoria fundante do ser social e o trabalho profissional em tempos de crise
estrutural do capital.
Desse modo, reiteramos que os resultados desta pesquisa portam uma relevância
acadêmica e social, dada ao papel decisivo que assume a produção cientifica sobre os
Fundamentos da profissão na contemporaneidade e na instrumentalização do assistente
social para a construção de projetos de intervenção e para a intervenção propriamente dita.
Portanto, condição necessária para fundamentar uma intervenção profissional conectada
com os interesses dos segmentos majoritários da sociedade e, assim, fortalecer o projeto
profissional de ruptura com a herança conservadora e confessional da profissão.
Enfim, esperamos que os resultados alcançados possam oferecer subsídios capazes
de contribuir para o aprofundamento do debate sobre os Fundamentos do Serviço Social
brasileiro na contemporaneidade e instigar o interesse de pesquisadores sobre futuros
estudos sobre o tema, pois o nosso propósito não é esgotar as problematizações sobre a
temática, mas, sim, desvendar as tendências mais significativas sobre os Fundamentos da
profissão.
Acreditamos, enfim, que este tema constitui-se como um fecundo campo aberto à
investigação, na medida em que ainda há muito que se explorar sobre os Fundamentos do
Serviço Social brasileiro na contemporaneidade.
Na nossa trajetória enquanto pesquisadoras/es identificamos que as produções de
referência para o estudo dos Fundamentos do Serviço Social brasileiro na
contemporaneidade são parcas, apesar das produções sobre o Serviço Social serem
consistentes, contudo reduzidas, se comparadas às resultantes de pesquisas sobre as
políticas públicas, especialmente as políticas sociais.
REFERÊNCIAS
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
Disponível em:
<https://professores.faccat.br/moodle/pluginfile.php/13410/mod_resource/content/1/c
omo_elaborar_projeto_de_pesquisa_-_antonio_carlos_gil.pdf>. Acesso em: 13 abr.
2018, às 14:40.
______. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço social no Brasil Pós-
64. 3.ed. São Paulo: Cortez, 1996b.